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Salo de Carvalho
Professor dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação (Mestrado em Direito) do Centro Universitário
La Salle (Professor Permanente) e da Universidade Federal de Santa Maria (Professor Colaborador).
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Penais da UFRGS (2010-2011). Professor Titular
do Departamento de Ciências Criminais e do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado)
da PUCRS (1997-2010). Graduado em Direito pela UNISINOS (1993). Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina (1996). Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná
(2000). Pós-Doutor em Criminologia pela Universidad Pompeu Fabra (Barcelona, ES) (2010). Pós-
Doutorando em Criminologia, com bolsa de pesquisa aprovada pelo CNPq, na Universitá di Bologna
(Bologna, ITA) (2013-2014). Presidente do Conselho Penitenciário do Rio Grande do Sul (2001-2002).
E-mail: salo.carvalho@awsc.com.br
Resumo
A partir da percepção do vertiginoso aumento do número de pessoas presas nas últimas décadas,
especialmente no Brasil, a pesquisa procura indagar sobre o papel da teoria do direito penal. O
artigo parte do pressuposto de que a violência da prisionalização produz inevitáveis implicações
éticas, sociais e políticas na dogmática penal. Assim, procura indagar as relações entre as teorias
de justificação da pena e o fenômeno (empírico) do encarceramento em massa. As questões que
movem a reflexão são, portanto, a instrumentalidade das teorias da pena na expansão do po-
testas puniendi e as explicações que os modelos justificacionistas ofereceriam ao problema da
hiperpunitividade. A hipótese central do trabalho é a de que as tradicionais teorias da pena, em
razão de sua fundamentação (jurídica) contratual e de sua perspectiva (social) consensualista,
são incapacitadas de oferecer um modelo efetivamente redutor do punitivismo, situação que
somente pode ser superada com a adoção de critérios de interpretações fundados na ideia de
conflito – condições de possibilidade de uma penologia crítica.
Palavras-Chave: Punição; Teorias da pena; Penologia; Criminologia crítica
Resumen
Desde la percepción del vertiginoso incremento en el número de personas presas en las últimas
décadas, especialmente en Brasil, la investigación busca indagar acerca del papel de la teoría
del derecho penal. El presente artículo parte del supuesto de que la violencia de la prisionaliza-
ción produce inevitables implicaciones éticas, sociales y políticas en la dogmática penal. Así,
busca indagar las relaciones entre las teorías de justificación de la pena y el fenómeno empírico
del encarcelamiento masivo. Las cuestiones que mueven la reflexión son, por lo tanto, la instru-
mentalidad de las teorías de la pena en la expansión de la potestas puniendi y las explicaciones
que los modelos justificacionistas brindarían al problema de la hiperpunitividad. La hipótesis
central del trabajo consiste en que las tradicionales teorías de la pena, sobre la base de su fun-
damentación (jurídica) contractual y su perspectiva (social) consensualista, están incapacitadas
para brindar un modelo efectivamente reductor del punitivismo, situación que sólo podrá supe-
rarse con la adopción de criterios de interpretación fundados en la idea de conflicto – condicio-
nes de posibilidad de una penología crítica.
Palabras clave: Punición; Teorías de la pena; Penología; Criminología crítica
Abstract:
Taking into consideration the perception of a great increase in the number of people imprisoned
in the last decade, the research seeks to question the role of criminal law studies. The article
makes the assumption that the violence of incarceration produces inevitable ethical, social and
political implications in criminal sciences. Thus, it seeks to question the relationship between
the theories of punishment and the (empiric) phenomenon of mass incarceration. Therefore,
the issues that move this reflection are the instrumentality of the theories of punishment in the
expansion of potestas puniendi and the explanations that the justify models could offer to the
problem of hyperpunishment. The core hypothesis of this work is that the traditional theories
of punishment, due to its contractual (legal) basis and its consensual (social) perspectives, are
unable to offer a model that reduces punishment effectively, a situation that can be overcome
with the adoption of interpretation criteria based on the idea of conflict – conditions that makes
possible a critical penology.
Keywords: Punishment; Theories of punishment; Penology; Critical criminology
crítica do direito (penal) e, em especial, da realidade, não é, sem embargo, idílica, mas
criminologia crítica. conflituosa e tem, todavia, muitos pontos de
No campo da punição, a criminolo- contato, onde às vezes entram em claro en-
gia crítica evidenciou a profunda discrepân- frentamento a solução que propõe uma par-
cia entre os discursos oficiais, elaborados te, a normativa, e a que propõe a outra, a
pelas teorias de justificação (dever-ser), e as empírica, não sendo raro que, às vezes, esta
funções efetivamente exercidas pelas agên- seja uma das causas da disfunção e ineficá-
cias de punitividade (experiência fenomêni- cia das normas jurídico-penais na solução
ca). A criminologia crítica operou, portanto, de determinados conflitos ou que o próprio
uma espécie de revogação ou suspensão da saber empírico careça de influência na re-
Lei de Hume, permitindo que o saber empí- gulação jurídica de um determinado proble-
rico sobre o funcionamento do sistema pe- ma” (Hassemer & Muñoz Conde, 2001:06).
nal servisse como instrumento de descons- Vera Batista, apropriando-se das advertên-
trução, de modificação e de transposição do cias de Zaffaroni, sintetiza de forma precisa
saber dogmático. Exatamente nesta linha foi o problema ao direcionar à sanção penal: “a
desenvolvida a perspectiva da criminologia pena não pode ser pensada no ‘dever ser’,
crítica como crítica do direito penal nos paí- mas sim na realidade letal dos nossos sis-
ses ocidentais de linhagem jurídica romano- temas penais concretos” (Batista, 2011:91).
-germânica2, tradição distinta da crimino- Neste aspecto, o presente trabalho
logia desenvolvida nos países da common assume explicitamente aquilo que Ferrajo-
law. li designa como vício ideológico. A opção
Nesta perspectiva crítica, sustentam pela criminologia crítica implica em aban-
Hassemer e Muñoz Conde “a importância donar a devoção à Lei de Hume em nome da
que, para evitar a cegueira frente à realida- preocupação efetiva com a vida das pessoas
de que muitas vezes tem a regulação jurídi- que sofrem nas intermitências criadas entre
ca, o saber normativo, ou seja, o jurídico, as grandes narrativas teóricas de justificação
deva ir sempre acompanhado, apoiado e da pena e a experiência real da aflição puni-
ilustrado pelo saber empírico, isto é, pelo tiva. Não por outra razão Zaffaroni postula
conhecimento da realidade (...)” (Hassemer um sistema de compreensão do direito penal
& Muñoz Conde, 2001:05). No entanto no- construído a partir dos seus dados empíricos
tam os autores que “a relação entre o sa- e configurado com a finalidade exclusiva de
ber normativo e o saber empírico, próprio limitação do poder punitivo.3
de cada uma destas formas de abordar a
(Bourdieu)5, uma técnica inocentemente útil Uma hipótese que parece ser bastan-
às demandas e às variáveis políticas. te razoável diz respeito à ausência de um ra-
Pavarini é preciso ao referir que no dical questionamento sobre os fundamentos
divórcio entre filosofia e dogmática penal da punição na consolidação da Modernida-
os fins da pena acabaram não fazendo parte de, solo no qual emerge a forma carcerária
das preocupações da ciência propriamente de punição e os seus discursos legitimado-
penal (Pavarini & Giamberardino, 2012). res. Parte significativa da responsabilidade
Em consequência, sustenta o autor que a por esta ausência decorre de a doutrina do
história dos modelos punitivos não passou direito penal aproximar (e em alguns casos
de uma história ideal, escrita pela metade, simplesmente confundir) dois problemas
em que há uma “(...) certa plausibilidade nitidamente distintos: os fundamentos e as
argumentativa apenas se pressuposto que o justificativas da pena.
penalista dogmático tenha sempre sido um As teorias de justificação (teorias da
‘útil idiota’, ao menos o suficiente para ter pena) operaram historicamente como dis-
acreditado, com boa fé, que as finalidades cursos de racionalização do poder soberano
da pena não fossem apenas retóricas do ar- de coação direta. Se o Estado detém o mo-
bítrio, mas princípios de ‘fundação do di- nopólio da coação legítima (Weber), caberia
reito de punir’” (Pavarini & Giamberardi- à teoria do direito penal justificar (raciona-
no, 2012:30). lizar) esta violência programada, atribuindo
4. Em razão de as indagações acer- determinados fins à sanção penal – retribui-
ca dos déficits criminológicos (sociológicos) ção (pena justa) ou prevenção (pena útil)
que caracterizam as teorias da pena serem (Pavarini, 1983).
direcionadas aos teóricos do justificacionis- No entanto, apesar de distintas em
mo, evidentemente que não cabe à crítica termos de projeção das suas finalidades, é
usurpar o seu direito de resposta. Todavia, possível perceber que as tradicionais teorias
para além das possíveis tentativas de jus- da pena partem de um pressuposto político
tificar a Lei de Hume na complexidade do comum, que é o do consenso acerca da le-
mundo contemporâneo, resta ainda ao crimi- gitimidade da intervenção punitiva estatal.
nólogo crítico procurar explicações sobre as Aliás, Baratta, ao propor as diretrizes car-
blindagens históricas que impediram que a deais que formam o núcleo do pensamento
realidade do sistema punitivo ingressasse no de defesa social – ideologia que “passou a
debate acerca das justificativas da punição. fazer parte da filosofia dominante na ciên-
cia jurídica e das opiniões, não só dos re-
máquina de fazer leis e por que, então, ape- apesar de terem sido restritos os efeitos nas
lar para um Direito Superior [metafísico]? teorias de fundamentação da pena.9
Bastava a ordem estabelecida”(Lyra Filho, Aliás, é possível ser ainda mais in-
1991:42). cisivo e sustentar que mesmo com a muta-
Assim é forjada a ideia de a punição ção do modelo de Estado liberal em Estado
constituir-se como um direito público sub- social e sua posterior crise – primeiro, com
jetivo do Estado que nasce com a prática do o estabelecimento de novas economias de
delito. Com a violação livre e consciente do intervenção punitiva (correcionalismo);
pacto social, corporificado nas normas de segundo, com as teorias funcionalistas e
condutas positivadas (direito público obje- os modelos de penologia fundamentalista
tivo), é atribuído às instituições do sistema (Pavarini, 2009) –, o pressuposto de ordem
punitivo o direito-dever de punir. Os únicos (mito) que tem orientado as teorias justifi-
limites impostos à atividade punitiva são cacionistas da pena segue sendo a hipótese
aqueles designados pelo próprio Estado. contratualista.
Neste cenário são consolidadas as ideias de É importante perceber, para que
direito de punir e de pretensão punitiva. se possa efetivamente avançar e superar a
5. Embora a doutrina penal tenha re- crise, que as tradicionais teorias da pena
alizado importante crítica ao contratualismo – absolutas (teorias de retribuição ou teo-
(perspectiva metafísica) a partir da tese de a rias da pena justa) ou relativas (teorias de
pena estar amparada em um direito público prevenção ou teorias da pena útil) – foram
subjetivo do Estado, as ideias fundacionais edificadas sobre o mesmo fundamento
representadas nas noções de direito de punir contratual. Sem perceber que os discursos
e de pretensão punitiva se mantiveram vi- oficiais de justificação estão consolidados
gorosas. Inclusive após o giro copernicano em um modelo consensual de sociedade
imposto, após a Segunda Guerra, pela teoria que encontra na teoria do pacto social a
dos direitos fundamentais e pelo novo cons- sua manifestação primeira (sua emergên-
titucionalismo, cujo efeito foi o da substan- cia ou sua invenção), o debate que envol-
cialização da teoria da validade das normas ve as práticas punitivas e os seus discursos
jurídicas – a construção de uma cadeia de legitimadores permanecerá estagnado. No
princípios potencialmente limitadores da máximo será reduzido à revitalização dos
punibilidade provocou significativos refle- seus tipos ideais históricos, como ocorre
xos na relação entre autoridade e indivíduo, atualmente com os distintos vieses do ne-
está presente na menor punição” (Foucault, bem e mal, a lei não seria mais do que a
1991:82). forma escrita deste acordo; (b) a lei é igual
Assim, a ideia de direito de punir para todos: se as formas legais refletem a
(ius puniendi) é a consequência lógica de vontade coletiva, a lei não favorece e não
um modelo que opera desde uma perspec- representa nenhum interesse particular; (c)
tiva consensualista de sociedade, na qual a violação da lei penal é ato de uma mi-
determinados valores morais seriam natu- noria: se a maioria está de acordo com as
ralmente aceitos pelo corpo social; as nor- definições de bem e de mal, de justo e de
mas representariam legitimamente estes in- injusto, o pequeno grupo que pratica deli-
teresses; o desvio seria a expressão de uma to deve possuir algum elemento em comum
conduta anômala, episódica e disfuncional que o diferencia da maioria que respeita a
que romperia com a ordem e o equilíbrio lei (Pavarini, 1988:95).
(estado normal da sociedade); e as sanções No que diz respeito ao conteúdo do
reestabeleceriam o consenso e a harmonia direito de punir, todos os modelos teóricos
como justa retribuição, coação psicológica, de justificação da pena, desenvolvidos a
reconversão do delinquente, preservação da partir da Ilustração, operam a partir desta
confiança e da fidelidade na ordem jurídica, mesma fundação (teoria do contrato), cujo
reforço das expectativas normativas frustra- pressuposto é um modelo de sociedade con-
das pelo comportamento criminoso, dentre sensual. E apenas neste contexto será lícito
outras finalidades. ou possível referir um direito de punir (jus
Segundo Pavarini, a hipótese con- puniendi) do Estado.
sensual representa a sociedade como rela- 6. Se na primeira modernidade são
tivamente estável e bem integrada e cujo os teóricos do contrato que forjam as pers-
funcionamento se funda no consenso da pectivas jurídicas consensuais, no campo
maioria em relação a certos valores gerais. sociológico sua consolidação acontece a
No que diz respeito às relações entre in- partir das perspectivas funcionalistas na tra-
divíduo e autoridade, lei e sociedade, Pa- dição que se desdobra com Durkheim, Mer-
varini enfatiza que os princípios de fundo ton e Parsons.
deste modelo podem ser sintetizados em Contrapõem-se, porém, às teorias
três perspectivas: (a) a lei reflete a vonta- do consenso as teorias do conflito e o inte-
de coletiva: se os membros da sociedade se racionismo simbólico. Aliás, é importante
encontram de acordo sobre as definições de registrar que estas três distintas tradições
a dogmática penal pouco avança no sentido pectiva, “(...) não constitui fenômeno de
de uma ruptura radical com os sentidos da sobrevivência histórica de vingança retalia-
punição na contemporaneidade. Ruptura ne- tória, nem resquício metafísico de expiação
cessária em razão do dano genocida produ- ou compensação da culpabilidade” (San-
zido pelo punitivismo nas últimas décadas. tos, 2005:19) –, procura demonstrar como
A condição de possibilidade de a pena criminal, sobretudo a partir dos pro-
uma penologia crítica pressupõe, portan- cessos de industrialização, tem correspondi-
to, abdicar das tradicionais teorias da pena do aos fundamentos materiais e ideológicos
e, seguindo a perspectiva da criminologia dos sistemas econômicos fundados na rela-
crítica12, integrar os legados das teorias do ção capital/trabalho assalariado. A respos-
etiquetamento e das teorias do conflito para ta punitiva do Estado, portanto, representa
consolidar um corpo teórico capacitado para uma equivalência jurídica derivada das rela-
(a) compreender e denunciar o fenômeno da ções de produção existentes nas sociedades
punição desde as perspectivas da violência capitalistas contemporâneas.
institucional (atuação das agências do siste- O modelo de retribuição equivalen-
ma penal) e da violência estrutural (simbio- te, proposto por Pasukanis (Teoria Geral do
se entre estrutura política e controle social) Direito e Marxismo, 1926), e desenvolvido
(pauta negativa) e (b) promover ações con- posteriormente por Rusche e Kirchheimer
cretas para a redução dos danos causados (Pena e Estrutura Social, 1939), demonstra
pelo punitivismo e para a superação da lógi- que a pena desempenha uma função central
ca carcerária (pauta positiva). na manutenção dos sistemas de exploração
Neste sentido, duas construções teó- e de exclusão social. Conforme Juarez Ci-
ricas superam os fundamentos consensuais rino dos Santos, se a estrutura material das
da pena e projetam perspectivas penológi- relações econômicas no capitalismo é base-
cas críticas: (a) a teoria da retribuição equi- ada no princípio da retribuição equivalente
valente; e (b) a teoria agnóstica da pena. em todos os níveis da vida (trabalho-salá-
7.1. A teoria da retribuição equiva- rio, mercadoria-preço, p. ex.), “no âmbito
lente, desenvolvida a partir de uma críti- da responsabilidade penal, a retribuição
ca materialista/dialética da pena criminal, equivalente é instituída sob forma da pena
procura revelar a natureza real ou latente privativa de liberdade, como valor de troca
da retribuição nas sociedades capitalistas. do crime medido pelo tempo de liberdade
Centrada em premissas distintas do mode- suprimida” (Santos, 2005:21). Na constru-
lo clássico de retribuição – pois, nesta pers- ção de Pasukanis, “a privação de liberdade
com uma duração determinada através da sante perceber como as questões criminal e
sentença do tribunal é a forma específica penal são atualmente ressignificadas neste
pela qual o Direito Penal moderno, ou seja, desdobramento cultural do sistema econô-
burguês-capitalista, concretiza o princípio mico, que é a sociedade de consumo. A ló-
da reparação equivalente (...). Para que a gica do consumo excessivo de bens, aliada à
ideia da possibilidade de reparar o delito intensa exploração da violência pela grande
através de uma multa pela liberdade tenha mídia (agências de notícia e indústria do en-
podido nascer, foi necessário que todas as tretenimento), criou uma cultura de puniti-
formas concretas da riqueza social tivessem vidade na qual o crime, a pena e a prisão
sido reduzidas à mais abstrata e mais sim- foram transformados em produtos. O crime,
ples das formas, ao trabalho humano medi- a pena e a prisão não serão apenas produtos
do pelo tempo” (Pasukanis, 1988:130).13 (consequências) de uma cultura que goza
A perspectiva da retribuição equi- com a punição; mas representarão, em si
valente permite compreender a instrumen- mesmos, produtos (commodities) para con-
talidade da pena nas conflitivas sociedades sumo, mercadorias comercializadas como
capitalistas industriais, sobretudo o papel bens.14
latente da prisão na regulação do mercado 7.2. A teoria agnóstica (ou nega-
de trabalho através do controle do exceden- tiva) da pena nega qualquer espécie de
te da força de trabalho (Rusche e Kirchhei- justificação jurídica da sanção, conce-
mer) e na disciplinarização da mão de obra bendo a punição como uma manifestação
com a criação de um exército industrial de concreta do poder político. A metáfora da
reserva formado por corpos dóceis (Fou- pena como guerra, no preciso resgate de
cault). A concepção materialista/dialética Tobias Barreto realizado por Zaffaroni
possibilita, inclusive, atualizar os signifi- (1993; 1997), cria uma imagem da sanção
cados da punição nos sistemas capitalistas penal totalmente distinta daquela perspec-
neoliberais, nos quais o encarceramento tiva idílica na qual os cidadãos deliberam
massivo adquire uma função específica de livremente sobre a necessidade de punir
controle das massas dissidentes e/ou exce- para manter íntegro o pacto social. O fun-
dentes através da segregação, da neutraliza- damento da teoria agnóstica, portanto, é
ção e da exclusão. identificado com o mais radical dos con-
Mas para além destas funções espe- flitos, ou seja, com uma situação de guerra
cíficas desempenhadas nas versões do ca- na qual todos os direitos são suspensos e a
pitalismo industrial e neoliberal, é interes-
violência adquire uma intensidade incon- sentido de redução da potentia punitiva (po-
trolável. testas puniendi).
Ao deslocar o fundamento da pena 8. A dogmática jurídica, conforme
do jurídico (direito de punir) para o político foi possível perceber nos discursos funda-
(poder de punir), o modelo agnóstico evi- mentadores e justificadores da pena, atuou,
cando o Estado através da concretização do por esse motivo, mesmo as teorias da pe-
fenômenos físicos, sociais, culturais, crime, que era considerado como um dado
econômicos, políticos etc., em permanente social e não criação do próprio poder
mudança, em uma realidade que flui político” (Prado, 2011:26).
continuamente, protagonizada por pessoas 6
“O Estado, como expressão da sociedade,
que interagem e se comportam conforme está legitimado para reprimir a criminalidade,
certos conteúdos psicológicos. Todas estas da qual são responsáveis determinados
coisas são reais e sucedem deste modo e não indivíduos, por meio de instâncias oficiais
de outro, e as leis devem ser interpretadas de controle social (legislação, polícia,
neste mundo e não em outro que não existe. magistratura, instituições penitenciárias).
O impossível é neste mundo, tanto por Estas interpretam a legítima reação da
razões sociais como físicas. Se é impossível sociedade, ou da grande maioria dela,
caminhar sobre a água, igualmente é dirigida à reprovação e condenação do
ressocializar o preso” (Zaffaroni, Alagia & comportamento desviante individual e
Slokar, 2006:77). reafirmação dos valores e das normas
4
Sobre os equívocos da reiteração da punição sociais” (Baratta, 1997:42).
como solução ao problema da violência, 7
Embora em momento imediatamente
importantes as reflexões de Jacinto Coutinho posterior o autor conclua que os conceitos
a partir da posição de Stippel (Coutinho, de fundamento e de função não sejam
2013). coincidentes e que seja necessária a
5
A partir de Bourdieu, Geraldo Prado comprovação da utilidade da pena – “a
sustenta que é necessário escapar às função [retribuição ou prevenção] é, pois,
tentações narcotizantes da “ciência pura” a base do fundamento, mas ambos os
(alheias às necessidades sociais) e da conceitos não coincidem, pois o fundamento
“ciência escrava” (submetida às demandas tem que provar a necessidade da função”
político-econômicas). Exatamente por isso (Mir Puig, 2003:98) – acaba por designar à
procura problematizar os pontos de partida criminologia a verificabilidade empírica dos
não como dados, mas como construções. No objetivos da pena atribuídos pela dogmática
direito penal, um dos principais será o delito penal.
– “as teorias penais surgiram nos séculos Assim, o discurso do direito penal só
XIX e XX para legitimar o funcionamento aparentemente vincula sua construção teóri-
do sistema criminal, conforme o discurso ca com a realidade do sistema punitivo, pois
da modernidade, não problematizando no não apenas delega a análise da vida fenomê-
início um dos seus elementos principais, o nica à criminologia como, na maioria das
vezes, invocando a Lei de Hume, descarta pela ideia de pretensão acusatória. Nas
seus resultados na edificação dos seus siste- palavras do autor, “é equivocado falarmos,
mas. Desta forma, mesmo que de forma não no Estado Democrático de Direito, numa
explícita, o real funcionamento das agências suposta pretensão punitiva do Estado
do sistema penal é inescrupulosamente ex- surgida no momento em que um crime é
cluído das problematizações dogmáticas. praticado. Isso porque, em primeiro lugar, a
8
Ensina Lyra Filho que a contestação da notícia da prática de um caso penal não faz
ordem aristocrático-feudal pela burguesia surgir, desde já, para o Estado, o ‘direito’
ocorreu através da reivindicação de um (subjetivo) ou ‘dever’ de punir o suposto
jusnaturalismo de cunho antropológico, que infrator, mas sim o dever fundamental de
gira em torno do homem, em contraposição movimentar a jurisdição criminal segundo
ao de caráter teológico, voltado a Deus. a estrutura operacional determinada na
A nova classe político-econômica “(...) Constituição e limitada por ela mesma. Por
recorreu, então, à forma de direito natural, enquanto, o máximo que se poderia falar,
que denominamos antropológico, isto é, do nas palavras de Aury Lopes Júnior, é em
homem, que extraía os princípios supremos pretensão acusatória ou persecutória do
de sua própria razão, de sua inteligência. Estado, devidamente resistida pelo direito
Estes princípios, e de novo não por mera de liberdade do acusado assegurado na
coincidência, eram, evidentemente, os que garantia de presunção de inocência. Esta
favoreciam as posições e reivindicações da afirmação é complementada por outra,
classe em ascensão – a burguesia – e das de natureza organizacional: o monopólio
nações em que capitalismo e protestantismo da jurisdição faz recair sobre um órgão
davam as maõs para a conquista do seu do Estado o dever de iniciar a persecução
‘lugar ao sol’” (Lyra Filho, 1991:42). penal (princípio da obrigatoriedade);
9
Neste sentido, importante a revisão a outro órgão, o dever de decidir sobre
realizada por Schmidt, na qual, a partir de a matéria objeto do processo (princípio
Antolisei (na crítica à doutrina clássica do da jurisdicionalidade); e, por fim, a um
direito subjetivo do Estado) e, posteriormente terceiro, a tarefa de defender o acusado
Ferrajoli (na definição dos pressupostos de (princípio da ampla defesa). Nessa etapa
validade das normas jurídicas a partir dos do processo de conhecimento teríamos de
direitos fundamentais), a ideia de pretensão falar (impropriamente, frise-se), então,
punitiva do Estado (e, consequentemente, em ‘pretensão’ acusatória, ‘pretensão’
de jus puniendi) é refutada e substituída
vi
Pasukanis (1988) desenvolve, igualmente, Batista, Vera. Introdução Crítica à
importante crítica às tradicionais teorias da Criminologia Brasileira. Rio de
pena e o desdobramento politico da teoria da Janeiro: Revan, 2011.
retribuição equivalente. Carvalho, Salo. Penas e Medidas de
13
É possível notar que a indústria cultural Segurança no Direito Penal
transformou a violência em um rentável Brasileiro. São Paulo: Saraiva,
produto de entretenimento que se encontra 2013a.
presente em uma série incontável de mídias Carvalho, Salo. Criminologia Crítica:
(rádio, cinema, televisão, jornais, games, dimensões, significados e
internet), inclusive em forma de arte perspectivas atuais in Revista
(música, filmes, literatura, artes plásticas, Brasileira de Ciências Criminais, v.
fotografia, quadrinhos, publicidade). Neste 104, 2013b.
sentido, percebem Hayward e Young que “o Christie, Nils. A Indústria do Controle do
Morgan, R. & Reiner, R. (eds). The Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen
Oxford Handbook of Criminology. 4. Juris, 2012.
ed. Oxford: Oxford Press, 2007. Prado, Geraldo. Campo Jurídico e Capital
Larrauri Pijoan, Elena & Cid Moliné, José. Científico. Ensaio apresentado no
Teorías Criminológicas: explicación Departamento de História das Ideias
y prevención de la delincuencia. da Universidade de Coimbra para
Barcelona: Bosh, 2001. obtenção do título de Pós-Doutor.
Löwy, Michel. As Aventuras de Karl Marx Coimbra, 2011.
contra o Barão de Münchhausen. 5. Sabadell, Ana Lucia. Manual de Sociologia
ed. São Paulo: Cortez, 1994. Jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista
Lyra Filho, Roberto. O que é Direito. 12 ed. dos Tribunais, 2010.
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Penología Contemporânea in Revista Garantismo: Discutendo com Luigi
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