NÃO HÁ COINCIDÊNCIAS

Gare do Oriente, março de 2019

Sábado, 6h39 da manhã

Desidério arrasta-se no terminal.

Ontem foi um dia difícil. Esteve na sala de
audiências das 09h45 às 18h45 com 30 minutos para
almoço. Ainda saiu a tempo de ir buscar as crianças
a casa da sogra, deu banho a uma delas e arrumou a
loiça do jantar, sabendo que no dia seguinte teria de
estar em Guimarães às 12h00 para tratar de
questões familiares.
(…)
Ao longe avista o comboio n.º IC521 que o vai levar.
Entra no comboio e senta-se. A carruagem segue
deserta. Ocupa o lugar mais espaçoso que encontra,
com mesas em frente. Fica indeciso entre ver o
telemóvel e ler o jornal matutino. Os olhos decidem
por ele e fecham-se.
(…)

Linha do Norte, algures entre Coimbra e Aveiro.

08h23
“Olá, bom dia!”
Desidério acorda meio-estremunhado.
Não percebe bem onde está ou quem a ele se dirige.
Segundos depois percebe tudo.
os números que avancei?
Epifânia, por coincidência, partilha com ele a
Desidério: Confirmei. Estavam corretos. Porém, por
carruagem que continua deserta e senta-se à sua
coincidência, descobri que o CSM costuma aplicar
frente.
penas disciplinares sem processo disciplinar, pelo
Epifânia: Não esperava podermos retomar o assunto que os números não dizem tudo, além de o fazer
que abordámos recentemente tão cedo. Confirmaste sem base legal.

Epifânia: Não há coincidências, caro Desidério. E
sem base legal é como quem diz. Tenho aqui o nosso
EMJ e o artigo 85.º n.º 4 diz sobre a pena de
advertência que “4 - A pena prevista na alínea a) do
n.º 1 pode ser aplicada independentemente de
processo, desde que com audiência e possibilidade
de defesa do arguido, e não ser sujeita a registo.”.
Além disso, tal expediente, perfeitamente legítimo
como se percebe, tem aplicação dimensão
meramente residual, tendo sido aplicado apenas 3
vezes nos últimos anos.
Desidério: Não tinha ideia desse artigo. Alguém me
disse que não se podia fazer. Mas também me
disseram que o CSM anda a instaurar algo ainda pior
do que processos disciplinares, falaram-me de
processos de acompanhamento. Tens ideia do que
seja?
Epifânia: Processos de acompanhamento!? Com essa
designação nunca ouvi falar… a não ser que te
estejas a referir aos procedimentos com origem no
disposto pelo art. 156º nº5 do Código de Processo
Civil. Se assim for, tem sido fundamental na
ponderação das dificuldades que alguns colegas
poderão enfrentar, seja a nível de volume de serviço
seja de natureza pessoal e familiar, promovendo-se
a partir dessa informação acompanhamento e auxílio
na regularização de atrasos, ao invés de suceder
como no passado em que nada se fazia e no final os
atrasos e por conseguinte as consequências deles
redundavam em processos disciplinares com
acrescida gravidade. Estou até convencida que é
esse acompanhamento dos colegas que explica a
grande descida do número de processos disciplinares
nos últimos anos, facto esse que é um dado objetivo.
Desidério: Está explicado então e de facto é uma
medida positiva. Mas a verdade é que não se tem
falado noutra coisa, sendo que o CSM divulga sem
mais os procedimentos disciplinares em curso mesmo
sem ter em conta a inexistência de culpa formada.
Epifânia: Sei do que falas. De facto houve divulgação
pública da instauração de procedimentos cautelares.
Sucede porém que, como decerto percebeste, essa
divulgação não teve génese no CSM, antes
correspondendo a onda mediática que se formou e
que corria sem controlo causando forte alarme
social, limitando-se o CSM a comunicar formalmente
a existência dos procedimentos, sem desconsiderar
os direitos de defesa. De todo o modo, num dos
casos, mesmo o STJ já se pronunciou em 22-01-2019
no processo n.º 77/18.2YFLSB, que confirmou a
deliberação do CSM e de onde se retira que ambos
os candidatos às próximas eleições se encontram em
plena sintonia quanto aos factos e decisão tomada
no mesmo. O Acórdão está disponível, sugiro que o
consultes.
Desidério: Fá-lo-ei. E quanto aos provimentos, o que
dizes?
Epifânia: Qualquer provimento ou ordem de serviço
de âmbito jurisdicional emanado por Juiz de Direito
não está sujeito a homologação, apenas
conhecimento, por parte do CSM, que sempre assim
atuou. Em caso de dúvida e perante o basilar
princípio da independência, o CSM manterá a
interpretação da natureza jurisdicional do mesmo e
por isso impassível de homologação, sendo apenas
aposto o visto, necessário para garantir a
organização dos serviços de cada Tribunal. Mas,
mais do que isso, foi constituído um grupo de
trabalho entre ASJP e CSM precisamente para
definir com rigor a questão da fronteira dúbia entre
gestão e jurisdição o qual, segundo sei, começou a
trabalhar há pouco tempo.
(…)
Linha do Norte, algures entre Aveiro e Espinho.
08h53

Uma mulher, jovem e jovial, aparentemente bem

disposta, interrompe a conversa.
Artemisa: Ora quem aqui está?
Epifânia: Que mais surpresas o dia reservará?!
Quase jurava que sempre disseste que não gostavas
nada de andar de comboio. Monstros de metal,
dizias tu…
Nota: Artemisa esteve com Epifânia no período de estágio,
mantendo relação próxima desde então.
Artemisa: Nunca pensei que a ida ao Porto a uma
consulta e de comboio me garantisse esta vista, com vagão-bar.
o Oceano Atlântico como pano de fundo. A verdade Epifânia: Noto que pareces preocupada, Artemisa, o
é que o cinto de segurança do carro me começa a que se passa?
incomodar.
Artemisa: Estou no plano de inspeções do próximo
Após alguns segundos de silêncio, os semblantes ano, o que por um lado é bom, dado que todo o meu
ficam mais carregados. Desidério percebe a dica, curso está a ser inspecionado ao mesmo tempo, mas
desculpa-se e refere que vai fazer uma chamada ao ouvi dizer que os inspetores estão a colocar listas
de atrasos em todas as inspeções mesmo que os
mesmos tenham alguma explicação válida ou que seja
poucos…
Epifânia : Também já verifiquei a tentativa de
aproximar as datas de inspeção de acordo com os
cursos de formação, com vista a eliminar eventuais
injustiças decorrentes do desencontro temporal.
Quanto às listas de atraso, tive o mesmo “problema”
mas rapidamente se tornou um “não problema”.
Segundo apurei trata-se de uma orientação com
vista a uniformizar procedimentos. Ou seja os
atrasos são todos descritos o que é diferente de
lhes atribuir significado. Tem-se como objetivo
apenas o de impedir subjetividade na apreciação dos
atrasos dado que no passado alguns inspetores, caso
considerassem justificados os atrasos não os
elencavam e outros na mesma circunstância faziam-
nos constar o que podia gerar diferentes
apreciações a jusante no processo de inspeção. Por
outro lado. segundo percebi, há orientações
expressas de que a maternidade não poderá de
modo nenhum ser critério a ponderar negativamente
em sede de inspeções e quando o período inspetivo
não seja suficiente para atribuição ou verificação de
nota de mérito poderá ser a inspeção prorrogada de
modo à maternidade não ser por essa via elemento
prejudicial.
Artemisa: Fico contente com essas novidades. Mas
ainda sobre os atrasos fico sempre na dúvida dado
que agora existem as chamadas grelhas de
monitorização que não sei bem como se inserem em
matéria inspetivas, sendo certo que nem sempre é
fácil cumprir os 30 dias das sentenças cíveis, que
agora são bastante mais complexas e difíceis de
fazer, juntando tudo com a necessidade de
assistência à família e estando colocada a dezenas
ou centenas de quilómetros de casa.
Epifânia: Tudo questões prementes de facto. Mas
vamos por partes. As grelhas de monitorização são
instrumentos de gestão que visam sobretudo apurar
muito rapidamente situações de elevados atrasos
com vista a evitar que a situação fica descontrolada
como de resto aconteceu várias vezes no passado.
Em caso de excesso de serviço, problemas de saúde,
burn-out até, é possível ponderar numa fase inicial a
melhor forma de proceder, que naturalmente
variará conforme o caso concreto. É natural porém
que não haja grande noção dessa dimensão dado que
nem o CSM nem os visados fazem ou devem fazer
“publicidade” sobre essa matéria, sempre de
natureza reservada, entroncando no que te disse em
relação aos auto-intitulados processos de
acompanhamento.
Quanto ao demais, o CSM sempre se preocupou com
essas matérias, seja com a adequação do serviço
seja com as condições de trabalho e articulação
disso mesmo com a vida familiar. Não foi por acaso
que recentemente constituído grupos de reflexão
com a ASJP em que os temas passou desde logo pela
adequação dos valores de referência processual e
implicações na gestão, colocações e classificação de
juízes, inspeções judiciais em situações de gravidez
por risco clinico, doença prolongada ou licenças
parentais e trabalho à distância e exercício da
função jurisdicional.
Nesse momento Desidério aproxima-se….
Desidério: Vejo que estão mais bem-dispostas. Já eu
acabei de saber que o CSM não paga as portagens
nas nossas deslocações de serviço, logo agora que
vou ter de começar a ir com mais frequência ao meu
juízo de proximidade.
Artemisa: Bem, até eu sei que o que dizes não é bem
assim. O CSM tem pago, mas com o critério legal
como é óbvio. Já te mando o link.
Desidério: Fico a aguardar.
Caras colegas, percebo que a conversa esteja
interessante, mas estamos muito próximos de
Campanhã…

Estação de Porto-Campanhã
9h46

Os três despedem-se. Chegou a paragem onde vão

sair Epifânia e Artemisa.
Desidério continuará até Guimarães. Indeciso sobre
o que fazer, recorda-se que ainda não assinou a ata
do julgamento de ontem, sendo que nem sabe se o
funcionário a partilhou com ele, dada a hora tardia
que terminou o julgamento. Munido de internet
móvel, cartão da assinatura certificada e computador Nota do redator: Qualquer semelhança com nomes,
aproveita para trabalhar. Rapidamente chega o link pessoas ou situações da vida real é mera
prometido por Artemisa: coincidência. Porém, todas as referências à
www.csm.org.pt/2017/04/03/nota. atividade do CSM e aos horários da CP são reais…

Fim * Texto: João Ladeiro

Ilustrações: António Porto