Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
MICHEL FOUCAULT:
reflexões acerca dos saberes
e dos sujeitos
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
Reitor
Pedro Fernandes Ribeiro Neto
Vice-Reitor
Fátima Raquel Rosado Morais
Diretora de Sistema Integrado de Bibliotecas
Jocelânia Marinho Maia de Oliveira
Chefe da Editora Universitária – EDUERN
Anairam de Medeiros e Silva
254p.
ISBN: 978-85-7621-241-6
PREFÁCIO_____________________________________________________7
APRESENTAÇÃO______________________________________________10
6. FOUCAULT E MARX:
entre a utopia e a heterotopia____________________________________138
Maria Veralúcia Pessoa Porto
Telmir de Souza Soares
2. FOUCAULT E A SEXUALIDADE:
Gênero, performance e tecnocorpo________________________________177
Lore Fortes
Kelvis Leandro do Nascimento
Ribamar José de Oliveira Júnior
O último Foucault, aquele dos anos oitenta, irá empreender em seus estudos um
“retorno aos gregos”. Entre os temas em que se debruçará, está o estudo da
parresía8entre os gregos antigos, sobretudo em seus cursos no College de France, entre
38
os anos de 1982 e 1984, e culminando na figura de Sócrates e Diógenes, entre outros,
como parresiastas. Como pano de fundo, nesse retorno aos gregos, está o interesse
pelas práticas de si e a importância do outro, o mestre, nesse processo de formação de
si. Nesse contexto, nos debruçaremos sobre a parresía na vertente socrática que irá
culminar nos cínicos, objeto de estudo de Foucault nos cursos de 1983 e 1984. Entre as
especificidades da parresía cínica está seu modo de vida, a vida cínica [bíos kynikós], e
a coragem de viver de modo escandaloso. Mas o que caracteriza a parresía e o que a
diferencia de outros modos de dizer a verdade? Nem todo falar francamente é parresía,
é preciso que a verdade dita seja perigosa, envolva algum tipo de perigo para o emissor,
daí a coragem desse tipo de verdade, que não pode ser confundida com o falar a verdade
de um geômetra. A parresía também distingue-se da confissão, pois nesta, o falar
francamente refere-se à construção de um discurso sobre si mesmo endereçado a um
outro, seu confessor, que apenas ouve passivamente a confissão. Não há aqui uma
situação de perigo na segurança e anonimato do confessionário, no máximo um
constrangimento pela necessidade de confessar os desejos e pensamentos mais íntimos,
onde o mestre cala-se e o discípulo fala apenas de si. Também se distingue da retórica,
pois, nesta última, a preocupação não reside na sinceridade do discurso, mas na sua
forma, no modo de dizer, enquanto a parresía exige um comprometimento entre aquele
que profere o discurso e o seu conteúdo, de modo mais claro e direto possível, sem
arrodeio, o que não ocorre com o retórico.
Esse dizer verdadeiro, de modo geral, irá se dividir em quatro práticas distintas
na Antiguidade; o profeta, que diz aos homens a verdade dos deuses; o sacerdote que
sussurra verdades através de enigmas; o sábio, no retiro, que diz aos homens a verdade
7
Professor substituto na UFRN e doutorando em Ética e Filosofia Política pela mesma instituição. E-
mail: tuliomadson@hotmail.com
8
Do grego pân rêma, dizer tudo, falar francamente.
Aquele que assume o risco de lhes dizer a verdade deve ser escutado.
E é assim que se estabelecerá o verdadeiro jogo da parresía, a partir
dessa espécie de pacto que faz que, se o parresiasta mostra sua
coragem dizendo a verdade contra tudo e contra todos, aquele a que
essa parresía é endereçada deverá mostrar sua grandeza de alma
aceitando que lhe digam a verdade. Essa espécie de pacto, entre
aquele que assume o risco de dizer a verdade e aquele que aceita ouvi-
la, está no cerne do que se poderia chamar de jogo parresiástico
(FOUCAULT, 2011, p. 13).
Como lembra Foucault: “Diante de Platão que vai ao país de Dionísio dar
conselhos ao tirano, cumpre recordar que havia Diógenes”(FOUCAULT, 2010, p. 260).
Desse modo, para Platão, “filosofia e política devem estar numa relação, numa
correlação, não devem nunca estar numa coincidência” (FOUCAULT, 2010, p. 262). O
filósofo, nessa visão, deve estar atento à prática política como critério de realidade para
suas teorizações. O político, por sua vez, deve procurar na filosofia o parâmetro que irá
embasar suas ações. Enquanto Platão encara uma vida virtuosa como aquela baseada em
uma normatividade, em um agir de acordo com as leis, um nómos, Diógenes ri das
normas e valores de seu tempo, demostrando que uma vida autêntica é espontânea,
imanente, não normativa. De pouco adianta os pomposos discursos dos eloquentes
oradores ou dos filósofos virtuosos, nem tampouco a altivez dos políticos sedentos pela
ilusão do poder, se vivem vidas vazias ou dissimuladas, se são escravos de um modo de
vida, se tornam-se reféns das ilusões que o aprisionam. Diógenes liberta, não por seus
discursos, seu pensamento, seus títulos, sua escola, seu posto, mas pelo seu modo de
vida. Mesmo escravo foi senhor de si, não há grilhões que aprisionem aquele que trilha
o caminho para si. Diz Laertios que Platão ao avistar Diógenes lavando verduras “se
aproximou, segredando-lhe ao ouvido: ‘Se cortejasses Dionísios não estarias lavando
verduras’, tendo ouvido como resposta do filósofo cão: “E se lavasses verduras não
terias de cortejar Dionísios”(LAERTIOS, 2008, p. 168). Platão precisa cortejar
Dionísios pois não basta a si mesmo, falta-lhe autarquia, algo muito caro aos cínicos.
Ele anseia o poder constituído como laboratório para seu pensamento, precisa com isso
da anuência do governante. O caminho para si mesmo passa pela aceitação de sua
natureza, sua physis, aquilo que lhe é próprio, passa também pela autossuficiência, não
depender dos outros, não apenas materialmente, mas de seus costumes, suas opiniões,
9
De acordo com Diógenes Laertios, Diógenes, o cínico, teria apontado para Xeniades ao ser vendido
como escravo, e dito ao leiloeiro “venda-me a este homem; ele precisa de um senhor”. De fato, “Xeniades
realmente comprou-o e o levou para Corinto, onde lhe confiou a educação dos filhos e a administração
doméstica. Em todos os detalhes Diógenes mostrou-se um administrador de tal maneira eficiente que seu
senhor dizia por onde passava: ‘Um gênio bom entrou em minha casa.” (LAERTIOS, 2008, p. 260).
Desse modo, “os cínicos não mudam, de certo modo, o metal dessa moeda. Mas
eles vão modificar a efígie” (FOUCAULT, 2011, p. 200). O propósito de Diógenes, tal
44
como o de Nietzsche e Foucault, é a transvaloração dos valores, é estampar novas
efígies em gastas moedas. O conhecimento de si não se limita à uma lógica identitária:
“conheço quem sou para viver de meu modo, vivendo do meu modo faço os outros
olharem com mais atenção para suas vidas, para que assim vivam como são”, poderia
dizer um cínico, cujo conhecimento de si visa um efeito, uma alteridade externa. Alterar
as normas para cuidar dos outros, entendendo que através do cuidado de si, de uma vida
autêntica, pode-se cuidar do outro através da possibilidade de existência de sua própria
vida. Viver de modo verdadeiro, nessa visão, é evitar a dissimulação. Uma vida
verdadeira [alethès bíos] é aquela que não visa “esconder nada das suas intenções e dos
seus fins” (FOUCAULT, 2011, p. 200). É a vida sem máscaras, roupas e pudor.
Diógenes foi um alterador, e não se altera uma moeda reinterpretando retoricamente a
efígie gravada nela, é preciso uma outra natureza, outra physis, outra formação; uma
efígie mais valiosa, que restitua seu verdadeiro valor. A sua efígie era a vida cínica [bíos
kynikós]10que denunciava pelo escândalo de sua própria existência a hipocrisia dos que
se diziam filósofos. Essa é a radicalidade da parresía cínica, ela não se ocupa em apenas
verificar a veracidade dos enunciados proferidos, mas também em experimentar um
modo de vida que possibilite o falar francamente, mas também o agir francamente, o
viver francamente, que é a vida verdadeira, vida filosófica, vida cínica.
10
Na aula de 14 de março de 1984, Foucault irá vincular as características da vida cínica como estando
“nessa história, ou nessa pré-história, que eu gostaria de esboçar esse ano, a da coragem da verdade”, a
pesquisa acerca da “coragem da verdade” foi a última empreendida pelo filósofo, morto três meses
depois.
Foucault visa com esse estudo resgatar, revalidar, uma visão de prática filosófica
obscurecida pela tradição, encoberta pelas luzes do esclarecimento [aufklärung], qual
seja, da atividade filosófica como modo de existir, como possibilidade de existência,
muito além de mero porteiro da ciência, de delimitador das possibilidades de
conhecimento. Antes de um discurso, a filosofia é uma prática. Em sua obra Crítica da
Razão Cínica, Peter Sloterdijk afirmará que “Diógenes traz para a tradição filosófica 45
ocidental a associação entre felicidade, carência de necessidades e inteligência, já
presentes no pensamento oriental” (SLOTERDIJK, 2013, p. 251), a iluminação hindu
através do desprendimento11. Essa vida cínica está na origem de movimentos que
pregam uma “vita-simplex” (SLOTERDIJK, 2013, p. 251) como os hippies
originários12, e a necessidade em se viver em conformidade com o que se prega, de
modo austero, sem envergonhar-se da pobreza. Diógenes cunhou na tradição europeia a
noção de uma vida inteligente, desprendida, despudorada, com inúmeras manifestações
históricas, dos trovadores aos movimentos de contracultura contemporâneos. Abre com
isso uma linha de filósofos livres na história da filosofia, libertos inclusive da obrigação
de constituir uma escola de pensamento, “como Montaigne, Voltaire, Nietzsche,
Feyerabend” (SLOTERDIJK, 2013, p. 254). Não foram as obras de Diógenes que mais
escandalizaram seus contemporâneos, foi sua possibilidade de existência, o modo como
vivia, ou melhor, de poder viver do modo como vivia. Um modo de vida diacrítica
[diakritikós] que se estabeleceu no imaginário do mundo ocidental, como meio de
desmascarar a hipocrisia, tirar as máscaras, sair da sua persona, de seu personagem, o
poeta boêmio, o trovador zombeteiro, o maluco beleza, são as alcunhas de Diógenes em
nossa cultura. O novo valor que deu à moeda socrática foi o da existência filosófica que
é indiferente [adiáforos] ao nómos, as leis e ao poder [krátos], mas que apesar da sua
indiferença também morde, late e afaga quando convém. Há uma falsificação das
normas que constrange o poder e infringe as normas, uma postura de ilegalidade e
insubordinação que exige coragem. Essa postura subversiva, transgressora, escandalosa,
11
Embora questione se a hipótese é historicamente fundada, Foucault também citará essa relação entre o
pensamento oriental e os cínicos através do artigo de Ingalls intitulado “The seeking of Dishonor” na aula
de 14 de março de 1984, nele o autor relaciona o aspecto da adoxía nos cínicos com uma possível
influência externa, da Índia, através de grupos religiosos hindus que já pregavam a desonra como prática
12
Embora alerta que a figura de ambos não podem ser confundidas, inclusive essa associação intuitiva
com os “hippies, freaks, globe-trotters” nos impede de reconhecer o impacto de Diógenes perante os
atenienses. (SLOTERDIJK, 2013, p. 250)
Referências