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CURSO DE FRANCISCANISMO

Contextualização histórica da Vida e dos Escritos de S.


Clara

I Quem é Clara?
Algumas premissas
- A pessoa de Clara, quase sempre considerada à sombra do “Pai”
Francisco, deve ser redescoberta em sua própria grandeza pessoal, em sua
plena luz. Isso significa que deve ser estudada em si mesma, como pessoa,
com a sua autonomia e individualidade.
- Antes de tentarmos traçar alguns dados a respeito da vida de Clara, seria
bom que a situássemos no tempo para assim perceber que não se trata de
um personagem do século XXI. Desde o início de sua vida evangélica tanto
Francisco como Clara aparecem inseridos no movimento penitencial
evangélico europeu. Um papel importante desse fenômeno foi o exercido
pelas assim chamadas “beghinas” que o latim denomina simplesmente
como “mulieres religiosae”.
- Além disso, não se pode esquecer a influência vital e central da presença
do Espírito do Senhor, que desde o início age, inspira, e faz nascer e
amadurecer a vida evangélica de Francisco, de Clara e dos penitentes. RB
5,3: “e não percam o espírito de oração e piedade, ao qual devem servir
todas as coisas temporais”; RCl “Não extingam o espírito da santa oração e
devoção, ao qual as outras coisas temporais devem servir”; Cta Sto Ant.
“contanto que nesse estudo não extingam o espírito de santa oração e da
devoção, segundo está escrito na Regra”. Por isso, não se deve isolar o
movimento franciscano do ambiente medieval em que a presença
renovadora do Espírito Santo é fortemente presente. É essa presença ativa
que explica o carisma do discernimento dos espíritos em que Francisco e

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Clara se mostram mestres, ao distinguir claramente entre o necessário
evangélico inspirado pelo Espírito do Senhor e todo o resto é secundário
enquanto pode ser encarnado ou aculturado segundo leis e formas
diferentes. RNB 2,1: “Se alguém, por inspiração divina, quiser abraçar esta
vida e for ter com os nossos irmãos, esses o recebam carinhosamente”. RCl
6,3-4 citando a forma de vida dada por Francisco: “Desde que, por
inspiração divina, vos fizestes filhas e servas do Altíssimo Sumo Rei Pai
celeste e desposastes o Espírito Santo, optando por uma vida de acordo
com a perfeição do santo Evangelho...”
- O discurso ascético, que em Clara é sapiencial conformidade à pobreza
de Cristo até à nudez da cruz, é em conseqüência sempre dominado pela
consciência de uma resposta ao amor que do Pai recebe tudo. Na montanha
de escritos a respeito de Clara, por vezes, se encontra, infelizmente, uma
leitura do carisma franciscano-clariano composta à luz de outras
espiritualidades, descompondo a admirável síntese da plantinha para fazê-l
a entrar num esquema pré-fabricado, mesmo entre os franciscanos se
propõe seu caminho como um percurso ascendente, que partindo dela
chega à conformidade com Cristo… Tal interpretação força terrivelmente
os textos em que a linha descendente emerge fortemente. Por outro lado se
tenta adequar os textos jurídicos ao esquema monástico-beneditino na parte
que se refere aos religiosos, com a autoridade entrada no abade. Dessa
forma são constrangidos AA suprimir um artigo a respeito do governo
fraterno da ordem, em plena sintonia com o carisma clariano mas em
contraste com a nova normativa do Direito.
Desafio
- Além dessas premissas é preciso, conscientemente, colocar-se diante do
desafio frente à pós-modernidade
Para vencer a idolatria do bem-estar e aprender a alegria de dar com justiça,
o mundo de hoje necessida de mulheres verdadeiramente pobres, felizes de

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possuir apenas Deus. Para isso sua ação na vida concreta deve ser
completamente inventado, uma vez que hoje deve-se descobrir como ser
verdadeiramente pobre num mundo que despreza a pobreza, além disso
como viver o silêncio de uma relação contínua com Deus num mundo
barulhenta, onde se tem medo de entrar em si mesmo; mais, como
comportar-se irmã de acordo com o estilo de Cristo, enquanto a
desconfiança estraga as relações; ainda, como descer a comprometer-se
com a mentalidade atual e oferecer aos jovens mensagens que não sejam
contraditórias, vivendo a honestidade, a justiça, a liberdade.
Em última análise se trata de aderir seriamente à loucura da cruz, porque
Jesus se tornou desprezível neste mundo e por conseguinte exige caminhar
na mesma estrada.
Clara é uma mulher. Sua relação com Deus e com os outros, seu estilo, as
imagens que usa, a opção dos textos que conserva e sua interpretação são
muito marcados por sua feminilidade.
Clara é uma mulher de seu ambiente. Sua concepção de vida, do amor, da
sanidade é a de uma filha de cavaleiro, marcada pela literatura cortesã na
qual o heroísmo desempenha um grande papel para conquistar o coração do
ser amado.
Clara é uma mulher de seu tempo. Seu sentido religioso está marcado pelas
grandes correntes contemporâneas. Se houve uma convivência bem
profunda entre ela e Francisco, foi, sem dúvida, em parte porque ele e ela
eram particularmente sensíveis às novas aspirações de seu tempo.
Esses diferentes elementos devem permanecer sempre presentes, como
pano de fundo, quando se evocam os acontecimentos que envolvem tanto a
Francisco como a Clara.
- As primeiras informações são fornecidas pelo biografo de Francisco,
Tomás de Celano que em 1C 18 ao falar da Igreja de S. Damião afirma:
“Este é o lugar bendito e santo em que afortunadamente nasceu a gloriosa

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religião e a eminentíssima Ordem de senhoras pobres e santas virgens por
obra do bem-aventurado Francisco, há uns seis anos após sua conversão.
Foi aqui onde a senhora Clara, originária de Assis, como pedra
preciosíssima e fortíssima, se constituiu no fundamento das restantes
pedras superpostas. Quando depois de iniciada a Ordem dos irmãos, ela,
pelos conselhos do santo, se converteu ao Senhor, serviu para o progresso
de muitos e como exemplo a inúmeros outros. Nobre de sangue, mais nobre
pela graça. Virgem em sua carne, em seu espírito castíssima. Jovem pelos
anos, madura na alma. Firme no propósito e ardentíssima no desejo do
divino amor. Adornada de sabedoria e singular na humildade: Clara de
nome, mais clara pela vida; claríssima por sua virtude”. Essa página foi
escrita pelos anos de 1228-1230, quando Clara estava viva e tinha 36 anos.
Já então o biografo apresentava Clara como digna de imitação. Nenhum
outro discípulo de Francisco mereceu semelhante louvor.
- Bem mais próximo de nós outro admirador e apaixonado de Francisco
que é o moderno redescobridor do franciscanismo, Paul Sabatier, escreve o
seguinte a respeito de Clara: “A figura de Clara não é apenas uma
reprodução de Francisco, fundador da Ordem. Sua personalidade pode ser
descoberta mesmo sem recorrer de modo algum às biografias oficiais. Ela
aparece como uma das mais nobres presenças da historiografia. Tem-se,
porém, a impressão de que ela tenha permanecido, por trás dos bastidores
por humildade. Mas, tão pouco os outros tiveram com ela a devida
consideração, talvez por inútil prudência ou, quem sabe, pelas rivalidades
entres as várias fundações franciscanas. Sem essas reticências, Clara se
encontraria hoje entre as maiores figuras femininas da história”.
- Além dessas dificuldades apontadas por Sabatier e que não permitiram
fazer aparecer essa grandeza de mulher, deve-se ainda ter em mente o fato
de ser mulher e de se tratar da Idade Média. Embora os dados estejam
resumidos, oferecem, apesar disso, elementos que permitem visualizar uma

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personalidade extraordinária. Assim, por exemplo, entre suas virtudes
humanas se louva particularmente o cuidado exemplar, num serviço
constante da casa e da família, os trabalhos domésticos, a familiaridade, a
cortesia, a afabilidade, a disposição para a hospitalidade, o interesse pelos
problemas culturais, civis e políticos e, por fim, a grande misericórdia para
com os fracos e os pobres de toda espécie, unida à discrição e ao sentido
prático próprios de uma mulher que devia ser, dentro e fora de casa, a
“madonna”, a senhora. Além desses dados referentes ao cotidiano
doméstico, Clara era de uma personalidade forte, valorosa, criativa,
fascinante, dotada de extraordinária afetividade humana e materna, aberta a
todo amor bom e belo, tanto a Deus como aos homens e a todas as demais
criaturas. Ainda mais, como pessoa madura que era, mostrava-se sensível a
todo valor humano e divino e, principalmente, que estava sempre disposta a
conquistá-lo a qualquer preço, mesmo com gestos de humildade, segundo
aquele ideal nobre e cortês encarnado pelos cavalheiros medievais. Sua
singularidade se mostra por ser a única que deu à Igreja e ao mundo uma
família de irmãs pobres; a única que escreveu uma Regra própria e recebeu
a aprovação papal, apesar da proibição do Concílio, e ainda a única a pedir
ao assombrado e comovido papa Inocêncio III o privilégio da pobreza.
Realmente como afirma Alexandre IV na bula de canonização Clara foi
uma mulher nova dentro do mundo medieval.

Clara em seu ambiente familiar e cultural

Clara recebeu sua formação humana no ambiente nobre e cavalheresco da


família. Seu pai era um “miles”, um cavaleiro-guerreiro, e por isso
constantemente ausente da família. A mãe Hortolana se encarrega da
educação (religiosa e cultural) e formação em geral. A formação cultural
exigia que as jovens nobres aprendessem a ler e escrever. Os textos eram o
do saltério e os escritos da cultura cavalheresca, popular, trovadoresca de

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tipo francês, belga ou alemão, muito difundida então. A Távola Redonda e
suas conquistas cavalherescas eram elementos culturais muito presentes no
tempo. Tratava-se sempre de narrações de fatos heróicos, quase sobre-
humanos em que o candidato, um cavaleiro nobre, devia se entregar para
conquistar ou defender um ideal (normalmente a mulher amada). Dentro
desse ambiente cortês se desenvolvia a nova cultura de amor, expressa pelo
desejo profundo e total de ser amado e de amar com todo o ser. Uma das
conseqüências desse amor se encontra na mística do „amor puro‟ vivido em
fraternidade, altíssima pobreza e humildade, encarnada na família espiritual
dos irmãos menores, das irmãs pobres e nos novos penitentes. É por isso
que facilmente se compreende que tanto ela como a mãe se identificam
com aquela forma de vida praticada por muitas mulheres de então nos
vários movimentos das „mulieres religiosae‟, das penitentes, das pobres de
Cristo, das reclusas ou conversas.

- Clara, a novidade de vida


O itinerário percorrido por Clara se insere no húmus cultural e religioso do
tempo; embora seja filha da inspiração de Francisco é, no entanto, evidente
que viveu tal experiência reelaborando-a por meio de sua forte
personalidade e plasmada pela ação do Espírito. Aqui seria bom lembrar
que quando Clara se dirige ao mosteiro das monjas beneditinas de Santo
Angelo di Panzo se dirige a uma comunidade diferente, muito mais
próximas da experiência das assim chamadas “beguinas”. Ela encontra aqui
uma comunidade que se dedica à oração e a atividades caritativas com o
cuidado dos leprosos e, portanto, um ambiente bem semelhante da vida da
primeira geração dos irmãos menores. No entanto, seu parentesco espiritual
com Francisco a situa em outro nível.
- É claro que a experiência se funda no „carisma‟ que é um dom particular
concedido pelo Espírito Santo à jovem mulher com as graças espirituais

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que lhe são ligadas para isso. Clara recebe e assimila o carisma do Espírito
com seus elementos pessoais, de tal maneira que isso constitui a
originalidade de sua experiência. Isso coloca as bases para constituir a
fisionomia espiritual assumida por ela e pelas primeiras irmãs que
condividiram o estilo de vida. A escolha de Clara é radical desde o início e
quando se apresenta às beneditinas já vendeu todos os seus bens e se
apresenta espontaneamente para o seguimento de Cristo com todo seu
coração na pobreza e na humildade. Quer daqui pra frente imitar Cristo que
“sendo rico se fez pobre por nós” (2Cor 8,9), tornando-se serva. Portanto,
entra naquele vasto movimento evangélico dos penitentes que florescia
naquele tempo e responde ao chamado do Senhor numa total insegurança a
respeito do futuro. Isso era impensável para uma mulher de sua classe, era
até um escândalo, arriscando-se ao desprezo e negação, mais até que
Francisco.
Pela afirmação de Bona de Guelfuccio foi Clara que teve a iniciativa de ir a
Francisco para consultá-lo e dizer-lhe de sua vontade de colocar-se no
seguimento de Cristo. A conversão, então, é entendida não como uma
mudança de vida, após experiências negativas, mas simplesmente como um
voltar-se completamente para Deus. Isso mostra uma faceta da forte
personalidade da jovem patrícia de Assis. A luta para continuar no caminho
não teria tido êxitos positivos e duradouros se não fosse sustentada pela
força de suas convicções pessoais, alimentada sem dúvida pelo exemplo da
conversão radical de Francisco. Esse fato explica o uso constante da
palavra conversão de seus Escritos. Esse termo não é usado por Francisco,
pois ele prefere a expressão „começar a fazer penitencia‟ (Test).
- Com a expressão „começar a fazer penitência‟ Clara como Francisco
compreendeu e acolheu a primeira e essencial exigência evangélica
“convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Nessa ótica o fazer
penitência assume um significado bem preciso, quer dizer, o da mudança

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radical de vida e de mentalidade a respeito de Deus, do próprio coração,
dos irmãos e das realidades criadas. No fundo se trata da evangélica
„metanoia‟. Nesse sentido a saída do mundo não é fuga ou desprezo e nem
mesmo a finalidade primeira de Clara, apenas a condição indispensável
para acolher o convite de Cristo de ficar com ele e ir pregar o Reino de
Deus (Mc 3,13-15). O Evangelho é a regra comum. Viver segundo o
Evangelho é o empenho primário e constitui o programa de vida comum
aos frades e às irmãs pobres. Francisco encontrou dificuldades e foi até
contestado (LP 69). Ele conheceu e experimentou a amargura da
incompreensão por parte dos seus, apenas em Clara encontra compreensão
plena. Talvez apenas uma mulher transparente como Clara pode
compreender a paixão que arde no coração do pai pelo Cristo do Evangelho
e por isso decidi-se a viver também ela e sua ordem segundo a norma do
Evangelho.

Uma mulher decidida


- As manifestações decisivas do caráter de Clara não se apresentam apenas
através da expressão, quase autoritária do quero (volo), mas principalmente
através de posições firmes, assumidas por vezes até contra a autoridade do
Papa, como por ocasião da Quo elongati (1230), quando Gregório IX
proíbe que os frades frequentem os mosteiros de irmãs. Segundo a Legenda
de Clara ela teria mandado o seguinte recado ao Papa: “Tire-nos para
sempre todos os frades toda vez que nos retira os que nos administram o
alimento da vida”. E o biógrafo acrescenta “devolveu imediatamente ao
ministro todos os irmãos, pois não queria ter esmoleiros que buscassem o
pão corporal, quando não dispunha dos esmoleiros do pão espiritual”.
Ouvindo isso o Papa Gregório modificou sua decisão e entregou a
proibição apenas ao ministro geral.

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Outra oportunidade aconteceu ainda com o mesmo Papa Gregório IX. Inês,
filha de Otocar I havia pedido ao Papa permissão para viver a mesma forma
vitae dada por Francisco a Clara e suas irmãs. Gregório lhe negou o pedido
dizendo que aquela forma de vida era apenas para principiantes, como leite
para bebês e que a verdadeira regra era a que ele escrevera. Inês escreve
para Clara pedindo conselho. Clara responde ressaltando sem equívocos o
valor da opção pela pobreza (2CtaCl 10-14): “Mas como uma só coisa é
necessária, é só isso que confirmo e aconselho ... Não perca de vista seu
ponto de partida, conserva o que tem, faça o que está fazendo, e não o
deixe, mas em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que
seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre, avance com cuidado
pelo caminho da bem-aventurança. Não confie em ninguém, não consinta
com nada que queira afastá-la desse propósito que seja tropeço no caminho
para não cumprir seus votos ao altíssimo na perfeição em que o Espírito do
Senhor a chamou”. E ainda acrescenta algo muito significativo: “E para ir
com mais segurança pelo caminho dos mandamentos do Senhor, siga o
conselho de nosso venerável pai, o nosso Frei Elias, ministro geral. Prefira-
o aos conselhos dos todos os demais e tenha-o como o mais precioso dom.
Se alguém lhe disser outra coisa ou sugerir algo diferente que impeça a sua
perfeição ou parecer contrário ao chamado de Deus, mesmo que mereça
sua veneração, não siga o conselho. Abrace o Cristo pobre como uma
virgem pobre.” (2CtaCl 15-18). Ainda mais, Clara e Inês, apoiadas por Fr.
Elias, se juntaram para pedir ao Papa para viver, também em Praga,
segundo a forma da pobreza evangélica vivida em S. Damião e o Papa
aceitou dessa vez o ponto de vista de Inês, dando-lhe uma bula semelhante
ao Privilégio da Pobreza que Clara havia recebido e conclui com essas
palavras: “nós, convencidos pelas vossas preces e lágrimas, com a
autoridade desta carta, concedemos que não possais, contra a vossa

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vontade, ser constrangidas a aceitar nenhuma propriedade” (cf, Pia
credulitas tenente 16.04.1238).
- Diante das complicações internas vividas pelo movimento franciscano,
chega-se a conclusão que Clara era ainda quase desconhecida em meados
do século XIII. Seu nome havia desaparecido das legendas hagiográficas
oficiais relacionadas com Francisco. Boaventura, por exemplo, quando
residia em Paris, só a conhecia precariamente a ponto de alguns anos mais
tarde tornado ministro geral teve que pedir informações a Fr. Leão para
escrever uma carta às clarissas.
- Ao longo dos anos essa mulher cheia de entusiasmo, parece converter-se
em uma testemunha sólida da vida franciscana, permanecendo, ao mesmo
tempo alegre e livre. Contudo, aceita e busca o silêncio em torno a sua
pessoa. Em todos os seus escritos não usará nem uma vez a palavra a
respeito de sua vida pessoal.

Privilégio da pobreza
- Já se falou várias vezes a respeito desse privilégio que Clara pediu ao
Papa Inocêncio III quando, após o IV Concilio do Latrão 1215, foi
obrigada a assumir a regra beneditina. Muitos pediam como ainda hoje
pedem e desejam possuir privilégios, a originalidade de Clara se encontra
no fato de pedir algo novo: que ninguém pudesse impedir que ela e suas
irmãs vivessem pobres. Damos a seguir o texto principal do documento:
“Como é manifesto, desejando ardentemente dedicar-vos unicamente ao
Senhor, abdicastes ao desejo das coisas temporais; por isso, tendo vendido
e distribuído tudo aos pobres, proponde-vos a não ter absolutamente
nenhuma propriedade, aderindo totalmente aos vestígios daquele que por
nós se fez pobre, caminho, verdade e vida, e desse propósito não as faz
fugir nem a privação das coisas, pois a esquerda do esposo celeste está sob

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a vossa cabeça para sustentar a fraqueza de vosso corpo, que submetestes à
lei do espírito em caridade perfeita.
Afinal, aquele que dá de comer às aves do céu e veste os lírios do campo
não vos há de faltar tanto para a alimentação como para a roupa até que,
passando, não vos venha servir na eternidade, quando sua destra vos
abraçará mais felizmente na plenitude de sua visão.
Portanto, como haveis suplicado, corroboramos o vosso propósito da mais
alta pobreza com o favor apostólico, concedendo-vos com a autoridade da
presente, que não possais ser por ninguém obrigadas a receber
propriedades.
E se alguma mulher não quiser ou não puder observar tal propósito, não
fique morando convosco, mas seja transferida para outro lugar.
Decretamos, portanto, que não seja lícito, absolutamente, a pessoa alguma
perturbar temerariamente ou atormentar com qualquer tipo de vexames a
vós e a vossa igreja. Por isso, se no futuro, alguma pessoa eclesiástica ou
secular, conhecendo esta página de nossa confirmação e constituição, tentar
temerariamente agir contra ela, e se, depois de admoestada duas ou três
vezes, não corrigir o seu reato por uma adequada satisfação, seja privada da
dignidade do seu poder e de sua honra, saiba que é passível de julgamento
divino pela iniqüidade perpetrada, seja afastado do santíssimo sangue de
Deus e Senhor Jesus Cristo, nosso Redentor e seja severamente submetida
a castigo no juízo final.
Mas a paz de Jesus Cristo esteja com todas vós que observais o amor de
Cristo e ao próprio lugar, para que aqui recebam o fruto da boa ação e
encontrem os prêmios da paz eterna diante do Juiz estrito. Amém”.

Regra
- Primeira Regra escrita por uma mulher e aprovada justamente num
momento em que se havia proibido a aprovação de novas regras. Nela se

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precisa o espírito evangélico-franciscano tal como Clara o havia recebido
de Francisco. Em algumas normas canônicas segue as regras anteriores,
mas com a experiência de 40 anos de vida em S. Damião.
- Clara afirma que após a instalação em S. Damião era preciso encontrar
uma forma de vida que fosse a mais aproximativa possível do Evangelho,
evitando, dessa forma, os obstáculos canônicos postos pela Igreja. A
solução foi encontrada em pouco tempo com um ajustamento que a própria
Clara ofereceu com uma indicação precisa. Trata-se da orientação basilar
que o próprio Francisco inseriu em sua orientação, porém sem descer a
ulteriores esclarecimentos ou acréscimos. No entanto, são bem precisas e
significativas as poucas palavras que Clara, mesmo sendo de um tempo
posterior, introduziu a forma ou modelo de vida que Francisco havia escrito
para sua „irmã‟ e para as outras que já estavam com ela: “Vendo o bem-
aventurado Pai que não temíamos nenhuma pobreza, trabalho, tribulação,
rebaixamento e desprezo no século, ao contrário que os considerávamos
grandes delícias, movido pela piedade nos escreveu um modelo de vida
(forma vivendi) assim: „Já que por inspiração divina vos fizestes filhas e
servas do altíssimo e sumo rei, Pai celeste e vos desposastes com o Espírito
Santo, escolhendo viver segundo a perfeição do santo evangelho, quero e
prometo por mim mesmo e por meus irmãos sempre ter diligente e especial
cuidado‟”.
- Não resta dúvida que se trata de um texto muito importante, porque é um
dos poucos, senão o único em que os dois personagens se põem frente a
frente iluminando-se um ao outro e permitindo colher os múltiplos aspectos
que caracterizam ao mesmo tempo a permanência em Francisco de algumas
constantes das quais apenas uma parte são recebidas por Clara. É conhecida
a sensação de uma perplexidade, de alguma inquietação íntima de
Francisco, prudente, quase preocupado, ele que não havia temido ou
trepidado diante da possibilidade de resistência da delicada fragilidade

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feminina. Devia, agora, lhes prescrever uma linha de comportamento e de
vida que continha a dureza, a severidade e até possíveis amarguras, aquelas
que até os místicos mais austeros conhecem como a aridez da alma, a
aridez terrível de quem se sente abandonado. Certamente Clara sabe dessas
dificuldades e sente então necessidade de precaver-se para si e para suas
companheiras. À ânsia preocupada do mestre e Pai espiritual corresponde a
firmeza simples, mas serena de Clara.
- Na forma vivendi que Francisco lhes dá se afirma que elas escolheram
“viver segundo a perfeição do santo evangelho” e em seu Testamento
escrito mais tarde ele afirma que o próprio Altíssimo lhe revelara que devia
“viver segundo a forma do santo evangelho”. A diferença entre essas duas
expressões não é usual, porque precisa e determina a vida evangélica que
ambos devem seguir, articulando-se numa bipolaridade ligada ao fato que
eram diferentes os „irmãos‟ de Francisco das „irmãs‟ de Clara, por causa
também da diferente função que deveriam viver e agir no interior da Igreja.
Francisco e os confrades haviam escolhido o modelo do Evangelho, quer
dizer, a vida de Cristo e dos apóstolos, itinerante, incerta, sem alguma
segurança do amanhã, como o Filho do homem que não tinha onde
repousar a cabeça. Eles renunciaram a qualquer privilégio, a qualquer
segurança, são os marginalizados voluntários, prontos para qualquer
sacrifício, seguindo o exemplo de Cristo.
- Esse modelo de seguir a forma do santo Evangelho, ou o modelo
evangélico não era possível para Clara e suas irmãs. Então a vida
evangélica deverá lhes servir não como imitação e repetição daquela do
Cristo, mas como ideal de perfeição, que deverá manter sempre presente. A
diferença então entre vivere secundum perfecionem sancti evangelii e
vivere secundum formam santi evangelii não foi percebida pelos estudiosos
de S. Clara, atentos que estão em sublinhar – no que se é completamente de
acordo – a estreita interdependência entre Clara e Francisco. Nessa

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diferença parece que se volta à formulação costumeira de empenhar-se em
seguir não apenas os preceitos de Cristo, mas também os conselhos
evangélicos e esse fato dá origem ao novo e imprevisível da vida de Clara e
de suas irmãs. Isso significa que o ideal da perfeição evangélica não se
determina numa série de formulações normativas, mas é proposto como um
plano de vida concreta, continuamente renovável. Essa perfeição nascerá de
uma contínua relação de assistência e de cuidado afetuoso entre Clara e
suas irmãs por um lado e Francisco com seus irmãos do outro. Por isso, a
perfeição evangélica se torna uma meta ideal que não se atinge mediante a
realização formal desse ou daquele dever, mas apenas através de um
processo de progresso interior e de continua aproximação e para isso faz-se
necessário de um conselheiro que seja, ao mesmo tempo, um juiz. E é essa
a função que Francisco assume e que pensa poder ser continuada por seus
irmãos.
A herança de Francisco na Regra de Clara pode ser resumida nos seguintes
pontos:
- A mesma referência ao Evangelho que constitui o essencial de seu
projeto. Nisso estão de pleno acordo com os movimentos penitenciais de
seu tempo.
- A mesma vontade de viver em altíssima pobreza, sem fontes de ingressos
garantidos, nem em particular e nem em comum. Essa opção fundamental
de ambos traduz, no concreto, sua vontade de viver o Evangelho e o
seguimento de Cristo pobre.
- A mesma importância dada à vida de oração que se expressa pelo ofício e
pelo “espírito de oração a que todas as coisas temporais devem servir”. A
dimensão contemplativa da vida franciscana se expressa em termos
idênticos para os irmãos e para as irmãs (RCl 3,1-5; 2R 3,1-3).
- A mesma vida fraterna sem distinção de classe, caracterizada pela
simplicidade, pela atenção aos mais fracos, pelo compartilhar as tarefas.

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Tanto Clara como Francisco vêem no exercício da autoridade um serviço
impregnado de humildade e de ternura (RCl 10,1.4-5; 2R 1.5-6). É
interessante comparar igualmente RCl 4,11-12 e 2C 185 em que Celano
traça o perfil do ministro geral segundo Francisco. A semelhança dos
termos prova que Clara conhecia bem os primeiros escritos franciscanos.
Além disso, Clara mais que Francisco insiste na responsabilidade comum e
na consulta a toda a comunidade.
- A mesma insistência a respeito do trabalho que permite fugir da
ociosidade “inimiga da alma”, une Clara e Francisco com a grande tradição
monástica, mas ambos acrescentam uma nota característica positiva
considerando o trabalho como um dom de Deus (RCl 17,1-2; 2R 5,1-2).
- A mesma adesão à Igreja, expressa pela obrigação de examinar os
candidatos sobre a fé da Igreja (RCl 2,-4; 2R 2,2-3), bem como a
insistência à submissão ao Papa e à Igreja romana. Dessa forma, ambos se
distinguem dos numerosos grupos heréticos contemporâneos, cuja forma de
vida era bem próxima da sua.
- A relação com o mundo constitui a diferença essencial entre a regra de
Francisco e a de Clara.

II Clara dentro dos movimentos femininos nascentes


da Idade Média
- Clara viveu na Idade Média, isso significa que seu mundo era o da Europa
medieval, num ambiente geral religioso, característico de numerosos
movimentos evangélico-apóstolicos, tradicionais ou novos, nascidos nos
mosteiros ou no mundo semi-religioso e até leigo. Colocar-se no enfoque
histórico significa reconhecer uma quantidade notável de movimentos
evangélico-apostólicos, com fortes conotações pauperísticas, eremíticas,
penitenciais e assistenciais, além de uma proximidade muito forte das

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populações pobres e doentes das periferias dos centros urbanos. São muitos
os nomes que se lhes atribuem. Parece também que as mulheres tiveram
uma presença bem marcante nesses movimentos. Por isso, de modo geral
são chamadas mulheres religiosas ou „mulieres religiosae‟. Do ponto de
vista da Igreja esses movimentos eram qualificados ora de heréticos, ora de
suspeitos e ora de católicos.
Note-se também que o movimento da pobreza não se originou por obra de
homens e mulheres originários das classes inferiores e mais pobres do
povo, mas por gente nobre e rica. A respeito do movimento feminino um
grande estudioso da época assim se expressa: “A opinião, muitas vezes
manifestada, de que esse movimento religioso feminino do século XIII tem
sua origem na difícil situação econômica e social das mulheres das classes
populares baixas e pobres ou que se teria originado principalmente das
mulheres que, por falta de varões, não podiam chegar ao matrimônio e
teriam que buscar outro jeito, é uma opinião que não só contradiz os dados
todos das fontes, mas que, além disso, confunde por completo o sentido da
religiosidade” (H. Grundmann). Portanto, não foi a falta de bens, mas a
fuga das riquezas e do bem-estar que determinou sua decisão pela pobreza
voluntária. O grande movimento de renovação religiosa que agitou a
cristandade ocidental entre os anos de 1179-1230 mostra o fato que, por
trás da multiplicidade e da variedade das novas formas de vida religiosa
que se manifestaram, apareceu uma série de aspirações que possuem um
denominador comum: pregação itinerante do evangelho, desejo de pobreza,
fiel imitação de Cristo. Todas essas manifestações, aparentemente
discordantes procedem, de fato, de uma mesma reivindicação fundamental
que se pode designar com o nome de evangelismo: viver segundo o
evangelho em qualquer estado ou condição em que a pessoa se encontre,
pondo o acento na prática da pobreza e na pregação da Palavra de Deus
entendida como um anúncio querigmático da Boa nova verbo et exemplo.

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Dentro desse movimento o lugar ocupado pelas mulheres é muito
importante e mostra também que, nessa virada religiosa, por causa de sua
condição social e das incapacidades jurídicas que pesavam sobre elas, sua
inserção na vida religiosa foi particularmente trabalhosa e assumiu formas
específicas. De fato, a questão feminina se colocou em grande escala na
cristandade ocidental. A principal dificuldade se encontrava nos
preconceitos e nas censuras e proibições eclesiásticas. Prevalecia sempre a
prescrição de S. Paulo: mulier taceat in ecclesia e uma outra do Concílio de
Cartago: Mulier, quamvis docta et sancta, viros in conventu docere non
praesumat. Por isso, muitas mulheres se sentiram efetivamente tentadas a
incorporar-se aos movimentos religiosos dissidentes, onde encontravam
muito mais espaço.
- Nos séculos XII-XIII a concepção da mulher é a de caput malorum que
vem do Gênese, é considerada como uma criação secundária e uma
tentação primária. Para os clérigos ela encarna todos os perigos da carne e
da matéria, pois sua natureza, essencialmente mundana graças à
predisposição à concepção e à geração de filhos é a causa de sua
condenação, irrevogavelmente voltada a se tornar símbolo de uma
realidade que em nome da santidade deve ser recusada, que deve
permanecer enclausurada fora dos claustros, das abadias e dos mosteiros e
ser combatida com a abstinência e a oração. O indignado clamor dessas
vozes pode ser indicativo de uma atitude de fundo que os homens, clérigos
ou não, possuem a respeito da mulher que vive a seu lado e diante das quais
estão convencidos de poder gloriar-se de uma superioridade não só física,
mas também moral. É verdade, porém, que ainda nesse tempo aparecem
outros pensamentos e justamente dentro da religião aparece uma figura
contrária a Eva pecadora a de Maria, Mãe de Jesus. Maria representa então
a antítese de Eva enquanto é esperança e o refúgio do pecador; nela as
qualidades femininas e principalmente maternas são sublimadas a ponto de

17
alcançar a imaculada perfeição. É mãe, mas, sobretudo, virgem, pura e
corajosa, encarna a recusa de todo compromisso com a matéria e por isso
os clérigos a aceitam e lhe engrandecem os dotes (S. Bernardo).
- O eremitério então ou o convento parecem ser os únicos lugares em que
uma mulher podia verdadeiramente dominar a própria solidão e justamente
daqui surge uma voz diferente. Pela primeira vez não se trata de discursos
imaginários ou referidos por homens, como aconteceu até aqui, mas trata-
se do autêntico testemunho de mulheres da Idade Média, ou melhor, são as
vozes de místicas como Ângela de Foligno, Catarina de Siena e Clara de
Assis. São mulheres tocadas por Deus no mais profundo da alma,
extasiadas pelo contato com Ele. Sua linguagem nova, como nova é a
experiência que vivem em que uma meiguice, tipicamente feminina, se
entrega a lances místicos com Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem
com a envolvente verdade de seu sofrimento, de sua paixão e de sua
ressurreição. Surpreende, então, os bem-pensantes que Deus queira
dialogar „de tu para tu‟ com criaturas tão „ínfimas‟ como são as mulheres.
Abre-se, dessa forma, o caminho para ver a mulher de maneira nova, como
criatura dotada de sensibilidade e raciocínio, capaz de afirmar-se a si
mesma.
- Não se deve também esquecer outros empecilhos de ordem espiritual
como os bloqueios que, na mentalidade dos clérigos, impediam a definição
de uma vocação religiosa possível para a mulher, além do papel
desempenhado por Eva na culpa original, como na debilidade intelectual ou
moral que vinha de longe. De 1200 em diante se assistiu ao aparecimento
de uma espiritualidade feminina que era uma cópia da dos homens. Esse
processo de emancipação religiosa, como a difusão da espiritualidade
penitencial atuou em favor das mulheres na medida em que essa
espiritualidade unia a salvação ao amor e à contrição mais que à
impecabilidade ou às virtudes morais. Daí que a integridade física tinha

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menos importância na perspectiva da salvação que a virgindade espiritual
reconquistada e conservada pela prática da penitência.
- O surgimento do movimento franciscano (Francisco e Clara) acontece
dentro desse ambiente e na medida em que foi crescendo foi se dirigindo
para lugares fora de Assis e de sua região. Ao saírem do lugar de origem
(Assis) onde e como se estabeleceram esses frades? Parece certo que a
expansão se deu mais ou menos assim: primeiro, ocupam eremitérios ou
lugares solitários (Rivo Torto), posteriormente vão se aproximando dos
muros das cidades, provavelmente de algum hospital ou hospício de pobres
ou próximos a uma igreja. Só posteriormente penetram nos centros
urbanos. Essa forma de estabelecimento parece quase como uma prática
geral e comum, não só dos grupos franciscanos, mas também dos demais
movimentos evangélico-pauperísticos e penitenciais. Essa constatação leva
para a pergunta se o adjetivo menor (irmão menor e irmãs menores) são
unicamente de origem franciscana e clareana? Hoje, parece certo para os
historiadores que a denominação menor era corrente na sociedade medieval
italiana e, portanto, não se trata, propriamente, de uma criação ou invenção
original de Francisco.
- Através de uma carta do bispo Tiago de Vitry de 1216 fica-se sabendo
que Francisco e Clara e seu grupo de irmãos e irmãs eram estimados pelo
Papa e pelos cardeais da Cúria. De fato, parece que Inocêncio III havia
reconhecido tanto a Francisco como a Clara – embora não se tenha certeza
a respeito da modalidade e circunstância cronológica. Porém, essa
aprovação deve ter acontecido por volta de 1215-1216. Nesses anos o Papa
concedeu o privilégio da pobreza a Clara e suas irmãs.
- Um segundo fato histórico é que o nome de irmãos e irmãs „menores‟
circulava e era aceito naquele ambiente pontifício e curial e isso sem
reserva ou críticas. O acento deve ser colocado em cima de menores, uma
vez que o de irmãos e irmãs era um genérico comum a todos os religiosos,

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tradicionais ou novos. A nota característica desses irmãos era a de serem
“menores”. Além disso, historicamente, está comprovado que o nome
„menores‟ foi o mais antigo. Na verdade, é provável que o primeiro nome,
depois de „penitentes de Assis‟ fosse o de „pobres menores‟, em lugar de
irmãos menores. Para as irmãs de São Damião e até em geral para as irmãs
„franciscanas‟ o nome de “irmãs menores” foi sem dúvida o primeiro
historicamente conhecido e isso através do testemunho direto de Tiago de
Vitry.
- Parece que a atitude básica evangélica de minores, unida a fratres, como
diferença específica (“Todos os frades... sejam menores e súditos de
todos...”, “os irmãos... sejam menores e estejam sujeitos a todos” 1R 7,1),
certamente encontrou sua primeira expressão já na Proto-regra. A LP (67
c-e) informa sobre esse ponto, bem como uma tentativa de fundamentação
bíblica da menoridade segundo Francisco. No entanto, é fora de dúvida que
a verdadeira fundamentação bíblica dos menores se encontre em Mt 20,20-
28. E o texto franciscano é o da 1R 5,9-12. Na mesma linha se veja 1R 6,3-
4. Tomás de Celano confirma no 1C 38; cf. 2C 148.

Situação da mulher nessa época


- O primeiro dado historiográfico que se percebe a respeito desse tema é
que a história em sua imensa maioria foi escrito por homens e clérigos. As
mulheres são uma parte desse mundo imenso e silencioso formado pelos
marginalizados, por quantos carecem de voz própria na história. Esse
mesmo silêncio é um sinal eloquente da condição da mulher na sociedade
medieval: carece de voz e se encontra numa situação de menoridade. Nessa
condição, o âmbito da vida religiosa é um espaço privilegiado em que se dá
certa expressão à vida feminina. De fato, durante os séculos XII e XIII se
assiste a um florescimento de vida e de experiências religiosas femininas.
As experiências anteriores ao sec. XIII eram monásticas, as de agora são de

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leigas religiosas e as experiências são de vida ativa, de vida contemplativa,
de estrita clausura e de contato com o mundo dos pobres e dos
necessitados. São mesmo protagonistas de novos movimentos religiosos
que surgem em torno dos pregadores itinerantes. As causas desse afluxo de
movimentos femininos se devem ao fechamento da vida religiosa
monástica feminina dos beneditinos e cistercienses e ao afluxo de gente
para as cidades, onde cresce o número de pobres e a falta de pregadores
religiosos.
- A condição da mulher no seio das famílias aristocráticas era algo
paradoxal. Por um lado a domina era exaltada pela poesia cortês-
cavalheresca como o ser mais sublime que o homem podia imaginar (é a
idéia do amor cortês e a idéia da escravidão de amor para a mulher,
sublimada e colocada sobre um pedestal). Portanto, a mulher estava em
certo sentido em cima do prestígio social. Por outro lado, a realidade
concreta era que na família aristocrática a mulher vivia fechada em casa e
constituía uma mercadoria de troca na política matrimonial da família. A
custódia da virgindade das filhas e das esposas era uma das preocupações
do pater famílias. Nesse sentido, dentro das famílias aristocráticas a mulher
possuía uma liberdade muitíssimo mais reduzida que as mulheres de outros
ambientes, p. ex. as do ambiente burguês e comercial.
- O documento chamado privilégio da pobreza, escrito pelo próprio
Inocêncio III e por ele concedido pessoalmente entre os anos 1215-1216 é
uma prova do respeito especial que o Papa e a cúria manifestavam pela
pessoa de Clara e do seu grupo. Pode-se tranquilamente dizer que esse
documento, em nível histórico, revela uma estima única de um Papa,
também único em seu gênero na Idade Média, em relação a uma mulher ou
senhora, única em seu tempo e em todos os tempos. O acento dessa
unicidade é oportuno para compreender melhor a repercussão histórica
concreta senão única, ao menos extraordinária, da pessoa de Clara e das

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damianitas no ambiente das futuras ou próximas irmãs que se inspiram na
fama da “plantinha” encerrada em S. Damião.

A iniciativa de Clara no movimento franciscano primitivo


- Tendo por base as fontes autobiográficas ou dessa índole, como são os
escritos de Francisco e de Clara, aparece claramente e com força o fato que
Clara, em pessoa desempenhou um papel muito dinâmico, autônomo e
valente, mesmo se esse fato ficou ou permanece alheio à historiografia.
Parece que Paul Sabatier já o intuíra. Vejamos alguns fatos históricos que o
comprovam:
1) O episódio que fala das futuras Damas de São Damião previstas pela
profecia de Francisco. Dados: Francisco cheio do Espírito Santo e
extasiado, fala em francês, como costumava fazer nos momentos solenes,
refere-se a um fato futuro. Clara revela esse fato em seu Testamento. De
acordo com ela Francisco não tinha ainda companheiros TestCl 9-14.
Essa vocação “eclesial” consiste exatamente em que Clara e suas irmãs são
colocadas pelo Senhor como “modelo, exemplo e espelho” para elas, para a
Igreja e para o mundo (TestCl 19-23). Daí se entende o incansável e
irresistível esforço e a iniciativa de Clara, até a morte, em permanecer fiel e
perseverante diante de todos, das irmãs, dos irmãos, dos cardeais e do Papa.
2) O segundo fato histórico é sua formação adulta e madura que Clara traz
desde sua casa paterna, mesmo antes de encontrar a Francisco. Desde
jovem mostra-se “penitente”, enamorada do Senhor e que às escondidas
vivia como pobre e humilde “serva”, decidida a dedicar-se totalmente ao
Senhor (Processo XX, 4).
3) Clara assume a iniciativa para o encontro com o jovem Francisco, como
ela o define em seu Testamento (v. 5) antes mesmo do episódio da igreja de
S. Damião.

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4) A forma de vida, escolhida por Clara e pelas irmãs, embora recebida de
Francisco: “Desde que por divina inspiração, vos fizestes filhas e servas do
altíssimo sumo Rei Pai celeste e desposastes o Espírito Santo, escolhendo
viver segundo a perfeição do santo Evangelho, quero e prometo por mim e
por meus frades ter por vós o mesmo cuidado diligente e uma especial
solicitude, como por eles” (RCl 6,3-4).

A confiança de Francisco
Por outro lado, Francisco confiava muito na iniciativa pessoal, valorosa e
sábia de Clara. Após o recebimento na Porciúncula e de lhe ter dado a
Forma de vida, as fontes supõem uma distância pessoal e até uma ausência
total de S. Damião. É por esse tempo que Francisco projeta ir à Espanha e
Marrocos e tenta ir para o Oriente. Embora Clara confesse expressamente
tanto na Regra como no Testamento que manteve sempre a promessa
contida na forma de vida, as fontes revelam uma fraca presença de
Francisco em S. Damião que ele justificava com motivos de prudência, de
bom exemplo e para evitar escândalos.
Há um episódio, porém, em que se mostra a grandíssima confiança de
Francisco na capacidade extraordinária de Clara: a aceitação do ofício de
abadessa para ajustar-se à norma do Concílio Lateranense IV de 1215.
Clara se opôs, mas Francisco que conhecia a força carismática daquela
senhora e que exerceria o ministério com muita autonomia e autoridade,
não temeu confiar o serviço a ela. Assim realizava, também, sua intenção
de não ligar-se muito aos assuntos internos das senhoras de S. Damião.
A respeito da confiança que Francisco depositava em Clara não se pode
esquecer que, um dia, foi lhe pedir conselho a respeito do caminho a seguir:
ou a vida contemplativa ou a apostólica.
Por último, é preciso acentuar a singular criatividade e originalidade, para
não dizer genialidade, quando em 1215-1216 Clara pede ao Papa o

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Privilégio da pobreza para garantir a forma de vida evangélica franciscana,
a partir da estrutura beneditina de sua fraternidade. A obtenção desse
privilégio, único em seu gênero, obriga a acreditar na „genial‟ grandeza
dessa mulher-senhora. Dois são os aspectos que se podem tirar desse fato.
1) Ao lado do conteúdo de não possuir nada em comum, vivendo sem bens
temporais próprios, deve-se ainda admitir que foi ela mesma que teve a
idéia do privilégio. Em seu testamento afirma que pessoalmente (sollicita
fui) pediu ao papa o privilégio. Em nenhuma fonte aparece algo que
Francisco o teria sugerido ou inspirado. Por outro lado, Inocêncio III ficou
tão surpreso pela insólita petição que reagiu de modo inesperado. Afirma a
Legenda (14): “o Pontífice pessoalmente, com muita alegria, redigiu de
próprio punho, o primeiro rascunho do pretendido privilégio”.
2) O outro aspecto é ainda mais impressionante, pois esse privilégio não é
apenas o primeiro documento pontifício redigido pela Santa Sé para a
Ordem franciscana, mas seu conteúdo, que certamente usa as mesmas
palavras de Clara em seu pedido, representa a síntese mais rica e profunda
de toda a espiritualidade evangélica franciscana. Na verdade, é um
maravilhoso mosaico de palavras bíblicas do Antigo e Novo Testamento,
de inspiração sinótica, petrina e joanéia, com uma clara referência ao
Cântico dos Cânticos, ausente por completo nos escritos de Francisco. Não
há a menor dúvida que Clara se revela, aqui, bem mais do que uma simples
“plantinha” de Francisco.

A transformação econômica
- Dentro das transformações religiosas que esse tempo produziu não se
pode deixar de mencionar a mudança que as Cruzadas trouxeram para a
economia e, portanto, para a vida das populações desse tempo. Durante o
século XII e inícios do s. XIII produziu-se no Ocidente uma revolução
econômica de incalculável magnitude. O ponto de partida foi o intenso

24
contato comercial com o Oriente, originado principalmente pelas cruzadas.
Essa mudança teve repercussões na vida social e consequentemente no
religioso também. O mundo ocidental se viu totalmente transformado. O
dinheiro (moeda) se tornou praticamente o único meio de pagamento. Com
isso, a economia do dinheiro se impôs em lugar da economia natural. Quem
tinha o dinheiro, tinha o poder. Um verdadeiro afã do dinheiro se apoderou
dos homens. Acumulavam dinheiro porque esse era e se supunha a maior
segurança na vida. (Será que não provém daqui a ojeriza de Francisco pelo
dinheiro?) O dinheiro aparecia como um valor estável e de que se podia
dispor a qualquer momento. Assim foi, pouco a pouco, surgindo o sistema
econômico do capitalismo. Além disso, o dinheiro trouxe também a
indústria e com ela o trabalho remunerado. Dessa forma, o próprio trabalho
é valorizado. Antes se trabalhava para viver, agora se trabalha para
aumentar os benefícios. Esse trabalho adquire, então, um valor superior na
vida do homem que fica dominada e planificada pelo trabalho. Em
conseqüência dessa transformação surge uma nova classe social a da
burguesia, ao lado dos intelectuais e da nobreza. Além disso, na vida do
burguês o trabalho ocupa uma posição de tal importância que todo o resto,
inclusive a vida religiosa, passa para um segundo plano.
As conseqüências desse desenvolvimento causam no homem a cobiça e a
preocupação pelo material. Passa-se a pensar em primeiro lugar no lucro,
no dinheiro, nas vantagens e isso independente da vida cristã. O critério
econômico chegou a usar do religioso como causa para os interesses
econômicos: A quarta cruzada (1202-1204) foi promovida pelos interesses
econômicos dos comerciantes de Veneza. Essa mentalidade invadiu tudo
até Cúria romana...
O projeto de Francisco e de Clara de viver o seguimento do Cristo pobre e
crucificado e o Privilégio da pobreza de Clara devem ser vistos e colocados
dentro desse contexto...

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26
III Clara autora de uma Regra
- Após aquela noite do Domingo de Ramos de 1212, Clara foi levada por
Francisco com Fr. Felipe e Fr. Bernardo para um mosteiro das beneditinas,
perto de Assis. Logo depois, ela se transfere para outro mosteiro também
de beneditinas em S. Ângelo de Panso. Durante esse tempo segue a Regra
beneditina.
- O cardeal Hugolino escreveu uma regra para as Irmãs pobres de S.
Damião que foi aprovada por Honório III em 1219. Clara aceitou esse texto
porque respondia melhor a seus desejos que a regra beneditina que havia
seguido até então; contudo, deseja possuir uma regra de vida mais
conforme com o ideal franciscano e mais próxima da regra redigida por
Francisco. Diante de várias dificuldades para assumir um texto mais
próximo da regra de Francisco, Clara começou então a redigir um texto que
correspondesse mais plenamente ao tipo de vida que levava com suas
irmãs. Após ter realizado esse trabalho foi necessário uma longa paciência
com gestões e muita diplomacia para garantir aquilo que estava plenamente
empenhada, isto é, a originalidade de sua forma de vida em „altíssima
pobreza‟ mantendo um grande vínculo com Francisco e sua Ordem. Trata-
se realmente de uma regra redigida para a comunidade de S. Damião e que
responde ao ideal de vida pobre, austero, retirado do mundo e que ela
desejava realizar.
- De fato, Clara não pretende criar algo inteiramente novo, por isso mantém
tudo que lhe parecia útil da regra de Hugolino e de Inocêncio IV e sabe
também adaptar a regra do próprio Francisco, base principal da sua, não
apenas para as condições de vida particular de uma comunidade feminina,
mas ao que sua experiência e a de suas irmãs foram descobrindo. Se é
menos exigente que Francisco quanto à pobreza do vestido, é mais rigorosa
que ele nos jejuns, na clausura e conserva uma boa parte das rígidas

27
prescrições da regra de Hugolino. Alem disso sabe também inspirar-se na
regra de S. Bento segundo a qual viveu mais de 30 anos.
- No c. VI de sua regra escreve: “... movido de piedade escreveu-nos
(Francisco) uma forma de vida deste modo: „Desde que por inspiração
divina, vos fizestes filhas e serva do Altíssimo Sumo Rei Pai Celeste e
desposastes o Espírito Santo, optando por uma vida de acordo com a
perfeição do santo Evangelho, eu quero e prometo, por mim e por meus
frades, ter por vós o mesmo cuidado diligente e uma solicitude especial,
como por eles‟” (RCl 6,3-4).
No entanto, é bom não esquecer que entre o desejo de possuir sua própria
Regra até a aprovação dela pelo Papa (1252) se passaram longos anos.
Nesse entretempo apareceram várias regras e formas de vida que
perturbaram a vida enclausurada das damas pobres. Vejamos:
- Em 1215 o Concílio do Latrão IV decreta que as novas ordens devem
assumir uma das Regras existentes.
- Em 1219 O cardeal Hugolino escreveu e impôs a sua Forma de Vida,
muitas vezes chamada de Regra de Hugolino.
- Em 1247 Inocêncio IV escreve uma nova Forma de Vida, adaptando um
pouco a Regra de Hugolino.
- Em 1252 Clara consegue a aprovação do cardeal Reinaldo, protetor da
Ordem, para a forma de vida que ela mesma escrevera. Em 1253 o próprio
Inocêncio IV a aprovou para o mosteiro de S. Damião.
- A regra de Clara é sem dúvida uma das grandes regras monásticas da
Idade Média, diferente não apenas das de S. Basílio, S. Agostinho ou S.
Bento, mas também da de S. Francisco e foi composta expressamente para
uma nova Ordem de monjas de vida contemplativa. Essa regra chegou até
os tempos modernos em várias formulações, duas ainda vigentes: a
chamada Regra I, redigida por Clara e confirmada em 1253 por Inocêncio
IV e a outra promulgada em 1263 por Urbano IV.

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Em sua raiz, ambas partem do mesmo núcleo que, historicamente, se
expressa na “forma de viver” dada por S. Francisco e nas ”observâncias
regulares de S. Damião” (até 1216), bem como na “fórmula de vida” do
cardeal Hugolino (1219).
A pergunta que sobra é a seguinte: Qual seria exatamente o conteúdo da
“forma vivendi” de S. Francisco e das primitivas observâncias regulares de
S. Damião? Na bula de aprovação da Regra se lê: “confirmamos... a forma
de vida e o modo de santa unidade e altíssima pobreza que o vosso bem-
aventurado pai Francisco, em palavra e por escrito, vos transmitiu para que
observásseis”. Por sua vez Clara apresenta em sua Regra dois fragmentos
textuais de Francisco VI, 3-5; VI, 7-9. A LP 45 transmite algumas
indicações a respeito do modo de ordenar a vida em comum e de observar
os santos votos e de administrar as esmolas e de viver na união fraterna e
na santa alegria. Ainda na bula de aprovação da Regra o cardeal Reinaldo
escreve: “... escolhestes uma vida enclausurada e o serviço do Senhor na
mais alta pobreza, para poder ser servas do Senhor com espírito livre...”
- A Forma de Vida de S. Clara, aprovada só para o mosteiro de São
Damião, foi adotada, inicialmente, por poucos mosteiros e permaneceu
esquecida até o final do século XIII. Foi recuperada no século XV por S.
Coleta de Córbia, para os mosteiros que reformou, o das clarissas
Coletinas. No século XVI foi recuperada pela bem-aventurada Maria
Lorenza Longo para a reforma feita por ela e que tomou o nome de
clarissas capuchinhas.
- No século XX a maioria dos mosteiros que levavam o nome de clarissas
urbanistas, redescobriu a “Regra de Santa Clara”.
Qual a razão de tantas regras e formas de vida para as clarissas? Existem
razões plausíveis: As regas representam diferentes tentativas de adaptação
do ideal às exigências daquilo que se considera uma visão mais realista da
vida prática. Mais, Clara e Francisco possuíam um carisma original: viver o

29
Evangelho em fraternidade e em pobreza. Ora, isso sempre pareceu aos
bem-pensantes do cristianismo que era um ideal difícil, para não dizer
inatingível. De fato era muito mais fácil colecionar um conjunto de normas
jurídicas e viver o cristianismo a partir daí. Por isso as aspirações mais altas
de Francisco e Clara continuaram sempre acima de todas as variáveis
soluções acomodatícias. Além disso, sempre permaneceu, em certo sentido,
a necessidade da expressão canônica da própria “conversão”, passando das
regras para a busca da primeira e fontal. É que essa humilde discípula de
Jesus marcou a Igreja com uma característica que não se apaga, apesar dos
séculos. Com Francisco, Clara permanece em pé, vestida com seu manto de
pobreza e lembra à esposa de Cristo todas as exigências da pobreza. É bem
como o afirma a bula de canonização “Ela brilha na Igreja dos pobres como
uma lâmpada que ilumina a casa”.
- Composta entre 1247 e 1252, foi aprovada com uma bula por Clemente
IV em 1253, quer dizer obteve o reconhecimento oficial de sua forma de
vida por parte da Igreja, na véspera de sua morte. As irmãs que rodeavam
Clara colocaram o texto recém aprovado entre as pregas da pobre túnica
“de pano vil” quando lhe fecharam os olhos. Ali escondido, como precioso
tesouro, permaneceu séculos junto ao corpo da santa. Foi sua vitória final,
pois podia deixar às filhas e irmãs aprovado aquele espírito que havia
animado a primeira “Forma de vida”, expresso, agora, numa Regra. Nela se
expressa outro espírito que não se encontra refletido nas anteriores regras
de Hugolino e de Inocêncio IV.
- Dez anos depois da morte de Clara o Papa Urbano IV reunia todos os
mosteiros franciscanos femininos sob o título de “Ordem de santa Clara” e
lhe apresentou uma nova Regra em que “concedia que pudessem ter rendas
e posses, ignorando as exortações e disposições da Santa e se estendia
numa multidão de normas disciplinares minuciosas para prevenir abusos e
enquadrar as monjas num sistema de vigilância e desconfiança.

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- A Regra de Urbano prevaleceu em muitos mosteiros quase até nossos
dias, porém, no princípio, não foi assim, pois a maioria das filhas fiéis a
santa Clara responderam com uma negativa.
- Um estudioso resumiu em alguns pontos para mostrar como Clara
sobressai em seu tempo por causa de um grande discernimento de espírito
humano-cristão-evangélico do qual, ainda hoje, aparecem diversos aspectos
profundos, novos e originais, cheios de riqueza e aplicabilidade
excepcional.
a) Sua liberdade madura, autônoma, criativa em pensamentos, afetos,
palavras e obras, respeitando sempre a todos e a todas as coisas, sem nunca
chegar a ser agressiva ou ofensiva, mas seguindo paciente e tenazmente o
caminho do Senhor, em fidelidade absoluta ao Espírito e junto com
Francisco.
b) Clara é a primeira mulher que escreveu uma regra, aprovada pela Igreja
e a única na Idade Média. É a única pessoa que pediu ao Papa o privilégio
da pobreza e o defendeu diante dos papas sem temor até a morte.
c) Nessa regra, cuja metade é pessoal e original de Clara, ela confessa
espontânea e livremente seu amor filial e total ao bem-aventurado e
glorioso Pai Francisco. (Francisco nunca a nomeia em seus escritos).
d) Ao se comparar essa regra com a de Francisco e com as outras
contemporâneas, a de Clara se distingue nitidamente por sua amplidão e
flexibilidade no que se refere à concretização de aspectos da vida
evangélica, p.e. a pobreza (uso do dinheiro, vestidos, propriedades).
Apenas na prática do jejum e abstinência Clara se mostra mais severa que
Francisco, porém mais liberal que os outros de seu tempo.
e) Uma especial discrição comunitária se mostra no forte e radical desejo
de fraternizar e democratizar a vida religiosa, quer dizer, na
responsabilidade de todas as irmãs a respeito de toda vida fraterna. A
instituição das „discretas‟ parece nova naquele tempo (colegialidade no

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governo-serviço); no exercício da autoridade como humilde e materno
„serviço‟, com um aspecto evangélico até então muito menos vivido. O
próprio Francisco, como também os monges, pensava de uma maneira bem
mais „monárquica‟ (guardião).
f) Um discernimento evangélico, inspirado pelo Senhor e por seu Espírito
no sentido paulino se manifesta no fato de Clara afirmar expressamente que
a centralidade primordial-vital não consiste na pobreza, nem na
contemplação, nem na penitência exterior, mas na santa unidade do
recíproco amor fraterno-materno que é vínculo da perfeição evangélica.
g) Finalmente uma discrição tática, diplomática, de uma mulher tenaz, mas
de forma alguma dura ou rebelde diante da autoridade da Igreja e da
Ordem, unida ao grandíssimo amor e amizade no Espírito.

IV Semelhanças e diferenças dos franciscanismos


masculino e feminino
- Franciscanismo ao feminino? Como seria esse franciscanismo ao
feminino? bastaria apenas substituir o o pelo a? É claro que não! Então em
que se caracterizaria?
- João Paulo II ao caracterizar a Igreja oriental ortodoxa usou a expressão
de que ela seria o segundo pulmão da Igreja católica. Usando essa mesma
comparação se poderia dizer que o franciscanismo que surgiu de Clara seria
também o segundo pulmão da espiritualidade franciscana, diferente sim,
menor talvez, mas sem ele não dá para respirar franciscanamente.
- Alguns números e outros pequenos dados:
- As contemplativas de espiritualidade franciscanas são por volta de umas
20.000 (o número é antigo) e elas fazem parte de um grupo maior de umas
60.000 contemplativas na Igreja. Para nós franciscanos é um dado bem
animador, pois um terço das contemplativas na Igreja segue a

32
espiritualidade franciscana. Dessas as que se denominam clarissas seriam
umas 18.000. A maior parte delas segue a Regra de S. Clara e outras a
Regra de Urbano IV. As clarissas, porém, não possuem as mesmas
constituições, o que significa que cada mosteiro possui suas constituições e
por aí vai...
- É claro que também elas, como toda a vida religiosa moderna, passam por
crises e tentativas de renovação ou atualização. Segundo um autor francês
que está nesse meio, a França nos últimos anos viu aparecer seis novas
experiências de vida clarissa e que continuam, felizmente, com êxito até
agora, aceitas pelas federações e pelas autoridades eclesiásticas. Trata-se
sempre de pequenos grupos (seis ou oito irmãs) e não pretendem ser mais.
Dois grupos colocam o acento sobre o caráter “contemplativo”,
consagrando o tempo para a oração e com disponibilidade de iniciar nela
quem quiser, clérigos ou leigos. Outros dois são de “presença
contemplativa” nos meios mais pobres rurais ou de emigrantes. Os dois
últimos grupos vivem um estilo de vida muito simples e familiar, grande
parte de oração e de recolhimento. As características dessas experiências se
colocam em manter-se como grupo pequeno, com um estilo de vida, de
relações fraternas, de autoridade, de contatos e em edifícios modestos, não
“monásticos”. São formas de vida diferentes...
- Além da Regra e das Constituições comuns a maneira de vivenciá-las é
bem diversa. Alguns grupos interpretam de modo rígido a clausura, a
pobreza, os contatos com o mundo externo. Outros grupos, ao contrário, em
fidelidade à Regra de Clara demonstram uma grande abertura em tudo:
acolhida na oração, no locutório, sendo da fraternidade, autêntica presença
contemplativa no mundo. Portanto é questão de espírito e não de letra.
Vejam-se agora as referencias comuns:
- Francisco – porém, aquele que surgiu dos estudos que foram iniciados por
Paul Sabatier e que continuam até hoje – deu origem a uma espiritualidade

33
que é muito mais conforme as fontes, muito mais direta e evangélica,
centrada principalmente no seguimento de Jesus Cristo pobre e crucificado
(A perfeita [verdadeira] alegria o demonstra). Cabe aos frades transmitir
essa espiritualidade amadurecida para as clarissas.
- Clara, apesar de ser bastante desconhecida por quase todos os
franciscanos, uma vez que seu conhecimento deve se basear nos estudos
que apareceram depois dos anos 60. Percebe-se nela, sem dúvida, a réplica
feminina do carisma masculino de Francisco, além de uma mensagem
espiritual original.
- Os escritos de Clara se classificam em três grupos: Testamento e Bênção,
Regra, Cartas a S. Inês. Cada grupo possui características próprias:
Testamento: é um grito de fidelidade. Tendo recebido a vocação de Deus
através de Francisco, Clara afirma com paixão seus vínculos com Francisco
e sua Ordem, insiste sobre a rejeição de posses, que é o que garante a
originalidade de sua vida religiosa, como também sobre o novo tipo de
relações comunitárias.
- Regra: a primeira, na história, redigida por uma mulher e cuja
confirmação alcançou por sua insistência, apesar das aparências de um
escrito composto sobre a Regra de Francisco, é um texto equilibrado e
longo, principalmente se o comparamos com os modelos em que se inspira.
- As Cartas: mais difíceis de compreensão devido a seu estilo algo
pomposo e à situação de sua régia correspondente, expressa em poucas
páginas toda uma visão espiritual rica, embora fragmentária. O tema centra
é a da união nupcial com Cristo, apresentado em forma lírica e entusiasta.
O tema da pobreza, principalmente espiritual, encontra-se aqui amplamente
desenvolvido. Em todas elas vibra uma espécie de alegria contagiosa, de
agilidade, de corrida para diante, sem falar das expressões da afetividade.
A espiritualidade de Clara é certamente franciscana e não apenas por seus
laços e referência a Francisco e pela tomada quase integral de sua Regra.

34
Mas, coisa admirável, mesmo nos temas como o da pobreza,
principalmente no Testamento e nas cartas apresenta instâncias diferentes,
novas (cf. ClR 8,9-11). A mística de Clara desenvolvida amplamente nas
cartas, é essencialmente crística, por seu tema dos esponsais e por seu
modo de ver o mistério de Cristo, bastante diferente da de Francisco.
- O P. T. Matura (especialista em franciscanismo) resume assim as relações
entre a espiritualidade de Francisco e de Clara:
- Clara não é apenas uma réplica no feminino dos grandes temas
espirituais de Francisco, ela é um pólo diferente, complementário talvez, da
visão franciscana (pulmão de João Paulo II). Sua espiritualidade é mais
luminosa, mais alegre, mais otimista que a de Francisco. Francisco possui
uma visão mais dramática da condição humana e sua experiência de Deus
possui uma dimensão mais trinitária que crística. Em alguns aspectos sua
concepção da pobre interior é mais radical, diria mais paulina: o homem
que não tendo nada a fim de que brilhem nele a glória e a riqueza divinas.
- Deixando de lado a espiritualidade nupcial, tão marcada em
Clara, certamente por causa da renúncia do casamento régio da Inês para
seguir a Cristo, ousa-se até dizer que os escritos de Francisco, em seu
conjunto, possuem um caráter mais místico, mais contemplativo. Pense-se
especificamente nos capítulos 22 e 23 da 1R, nas cartas aos fiéis e na
admoestação 1 e no conjunto de orações que são tão numerosas.
- Além disso, existe um problema que não encontra resposta
imediata. Trata-se de duas dificuldades: 1) o pulmão de Clara é menor e
menos forte que o de Francisco, quer dizer sua mensagem e escritos são
menos e menores. Houve mulheres de seu tempo com muito mais
amplitude como uma Ângela de Foligno etc. 2) a mensagem de Clara é
dirigida às contemplativas de clausura. Pode também aplicar-se às
mulheres e aos homens que vivem no mundo? Mais: a mística nupcial
chega hoje e em que medida aos homens e mulheres que somos nós?

35
- Vamos ainda apresentar algumas perguntas: Conhecem suficientemente
as irmãs e conhecemos nós, os frades, os escritos de Clara e os outros
textos que os situam e os esclarecem para discutir seriamente sobre Clara e
franciscanismo? Outra: não se pode ter verdadeira atitude espiritual
franciscana sem referir-se à mensagem de Francisco, que se encontra
principalmente em seus escritos e sem deixar-se impregnar e modelar por
eles. No entanto o que acontece com a espiritualidade apresentada por
Clara? Serve apenas para as clarissas ou é válida e necessária para toda a
família franciscana? Refiro-me ao modo de Clara viver o Evangelho. Está
muito próximo ao de Francisco, mas não é idêntico. O verdadeiro
„franciscano‟ não deveria respirar com seus dois pulmões, Francisco e
Clara, cada um deles trazendo o mesmo oxigênio evangélico, mas de forma
diferente?
- linguajar e experiência feminina
- pobreza e o Cristo pobre soam diferentemente
- semelhança com Maria: mãe – esposa – serva
Francisco: (RC1 6,3); Clara: (3CtI 18-25)
- S. Francisco em 2CtaF 48-53 interpreta como ser esposo, irmão e mãe
- Clara passa para Inês (certamente também para suas co-irmãs) o
franciscanismo vivido por ela como pobreza e seguimento de Jesus Cristo
- ela mesma se identifica com Maria ...filha e serva do altíssimo Rei e Pai
celestial, Mãe de nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo, esposa do Espírito
Santo... (OfP Ant.) que ela costumava rezar todos os dias.
- Francisco quer que seus frades sejam menores e esse nome passa para a
posteridade, e o acento para se colocar sobre a menoridade como “subditi
omni humanae criaturae (1Rg 16,7; 1Ep 10,4; SVirt 16); enquanto que
chama as clarissas senhoras pobres e Clara chama sua ordem de Irmãs
pobres na Regra (Só em 1263 com a Regra do Papa Urbano, as irmãs

36
pobres assumirão o nome de clarissas). Em todo o caso parece certo que as
irmãs pobres sejam o correspondente a irmãos menores no feminino.
- vida cotidiana eles: apostólica – elas: contemplativas.

QUESTÕES:
1. Em seu Testamento (25) e em sua Regra (6,1) Clara afirma: „Pouco
depois da conversão de Francisco, junto com as irmãs que o Senhor me
havia dado, eu lhe prometi voluntariamente obediência‟. Em termos
canônicos da época significa que Clara se pôs sob a dependência de
Francisco, considerando-se como parte do mesmo grupo religioso que ele,
formando, pois, uma mesma Ordem, embora cada um vivendo em seu
canto. Essa promessa de obediência de Clara incluía da parte de Francisco
sua responsabilidade e a de seus sucessores como o expressa na Forma de
Vida proposta a Clara: “Eu quero e prometo ter sempre por mim mesmo e
por meus frades um cuidado afetuoso e uma solicitude especial para as
senhoras como para eles”. Esse „eu quero e prometo‟ soa quase como um
voto jurídico. Esse compromisso recíproco, limitado, segundo parece,
apenas ao mosteiro de S. Damião foi muito importante para Clara que o
lembra tanto no Testamento (50-51) como na Regra (6,3-5). Na realidade,
Francisco manteve a respeito uma atitude um pouco vacilante e após sua
morte a Ordem masculina de modo algum assumiu juridicamente o encargo
da Ordem das irmãs, contrária à Ordem de Cister e dos pregadores. É bom
lembrar esse problema histórico não no sentido de pretender formar uma
Ordem única, mas serve para interrogação a respeito do modo de viver a
unidade que Francisco e Clara sonharam. Serve ainda para se perguntar se
as relações atuais entre ambas as Ordens são satisfatórias ou se poderia
fazer algo mais.
2. A partir do momento que se fala de “vida integralmente contemplativa”
para as clarissas, bem como da prática da clausura, a vida das irmãs pobres

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não pode estar relacionada com vida “apostólica”, no sentido comum do
termo, com a implicação de atividades exteriores, serviços, mobilidade e
presença no meio dos homens. Elas permanecerão sempre como tendo uma
vida fraterna familiar, com retiro, silêncio, oração e certa separação do
mundo. Essa separação ou “clausura” pode ser entendida e vivida de
diferentes maneiras... embora Clara seja rígida (cf. RCl 2,12).
3. Como os mosteiros são independentes e as superioras colocadas na linha
dos superiores maiores, essa auto-suficiência não basta para que se viva
como grupo, daí surgiram as Federações e as Confederações. No entanto,
falta uma estrutura, mesmo que fosse simbólica apenas, que pudesse
representar o conjunto da família de Clara. É verdade que as Cúrias gerais
dos irmãos menores nomeiam sempre um assistente para as irmãs e isso já
é alguma coisa. Porém, parece fazer falta um centro que fosse de alguma
coordenação, de informações, ou ao menos que servisse de símbolo de
unidade da família das irmãs pobres de santa Clara!

Algo a respeito da amizade entre Francisco e Clara


1) A esse respeito é preciso ter presente o ambiente cultural da época
que se expressa principalmente pelo amor cortês-cavalheresco
2) As fontes não falam nada a respeito de qualquer encontro anterior às
experiências de Francisco com o crucifixo e com o leproso. De Clara
se sabe através das informações em LCl 4-6 e o Testamento 5 fala de
como Clara conheceu Francisco.
3) Não se pode ignorar o profundo processo de espiritualização de
ambos.
4) Clara explica com afeto filial, cheio de nobreza e reconhecimento a
vocação recebida do Pai de toda a misericórdia (TestCl 2-3).
De fato, as fontes falam de um amor afetivo, nobre, cordial e profundo
entre Francisco e Clara inspirado pelo Espírito de caridade. Um amava o

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outro intensamente “no Espírito”, quer dizer como pessoas
verdadeiramente „espirituais‟, por isso, nada justifica pensar em um amor
inicial afetivo, puramente natural-amigável que teria se desenvolvido
depois num amor espiritual. O plano é outro!
Ver os textos 2C 112; 2C 204 e 205.
- O motivo profundo dessa amizade foi a inspiração do único e idêntico
Espírito Santo, autor da vocação evangélica de ambos. Que esse amor
recíproco tenha tido algum aspecto afetivo humano-cristão não se pode
nem afirmar e nem negar. Não existem dados históricos para isso.
a) Quanto a Francisco (cf. 1R 12) e as legendas 2C 112-114, 204, 205. Para
ele o „espírito da carne‟ (cf. 1R 17,11) significa o amor próprio,
individualista, a vanglória e o orgulho que se apossa do bem de Deus e dos
outros, a impaciência, a tristeza. Tudo isso é muito mais importante e grave
que a luta contra o pecado da carne em sentido estrito. Só nesse contexto
geral se compreende sua extrema severidade: a reserva a respeito do afeto e
da amizade e isso formava parte de seu grandíssimo desejo de querer ter o
Espírito do Senhor e de querer ser com toda sinceridade „nobre‟ e „fiel‟ (2C
134, 130, 133) irmão “espiritual”.
- Um aprofundamento, principalmente, do ponto de vista histórico mostra
outra faceta do relacionamento de Francisco com as mulheres. De fato, nos
escritos de Francisco não existem muitas referências às mulheres,
encontram-se algumas breves observações apenas. Essa escassez,
certamente, dá conta de uma atitude que ele queria comunicar a seus frades;
uma atitude sumamente prudente e respeitosa, porém nada misógina, quer
dizer uma atitude sem hostilidade nem pré-julgamentos. Duas indicações
das Regras esclarecem isso.
O primeiro se encontra na RNB em que se convidam os irmãos a precaver-
se dos maus olhares e do trato com mulheres (c. 12 título), quer dizer dos
olhares desonestos, impuros e do trato com mulheres. Essas eram

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preocupações bem concretas. A descrição que se faz na regra é bem viva:
“Ninguém se entretenha ou viaje a sós com elas ou partilhe à mesa do
mesmo prato” (12,2). São conselhos práticos, com a finalidade de evitar
uma familiaridade exagerada, um tratamento demasiadamente familiar que
poderia suscitar suspeitas ou a preocupação de outros. A mesma
preocupação aparece também na RB (c. 11). Esse jeito de ser não se refere
apenas a ter uma atitude geral de respeito e de aproximação, mas se trata de
uma preocupação concreta, uma vez que determina que não se admitam
mulheres na obediência. Esse ponto aparece bem claro na Regra e não pode
dizer-se que seja algo colocado pelos clérigos que o aconselharam e o
ajudaram a escrevê-la. “E nenhum irmão receba à obediência mulher
alguma, mas que ela, ouvido o seu conselho espiritual, vá fazer penitência
para onde muito bem quiser” (12,4). Essa é a idéia de Francisco. As
mulheres não devem ser recebidas na fraternitas franciscana, mas pode-se
falar com elas e aconselhá-las. Percebe-se aqui a idéia de que existem
muitos lugares onde se pode fazer penitência, diferentes experiências em
que as mulheres podem viver a vida religiosa, diferentes ambientes onde
podem por em práticas suas inquietações e experiências. A opinião de
Francisco é que os irmãos falem com essas mulheres, que as aconselhem
espiritualmente, mas que as deixem seguir seu próprio caminho. Essa
observação é importantíssima, pois na época de Francisco havia ordens
mistas (Roberto Abrissel). Francisco nunca quis fundar uma ordem mista,
nem mesmo seguir o exemplo de Domingos de Gusmão, nem fundou uma
ordem dupla, nem foi reformador de mosteiros femininos.
Na RB repete praticamente o mesmo mandamento: “Mando firmemente a
todos os irmãos que não tenham familiaridades suspeitas com mulheres. E
não entrem nos mosteiros das freiras, senão com licença especial da Sé
Apostólica” (11,1-2).

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- Tendo em conta essa atitude de Francisco para com as mulheres, deve-se,
contudo, indicar que em seus encontros pessoais com elas manifesta uma
liberdade e uma franqueza que raramente se encontra em outros casos de
então. A vida itinerante lhe impunha com freqüência encontrar-se e tratar
com mulheres. Nesses encontros e trato ele age com grande liberdade
espiritual. Dois exemplos existem que mostram isso claramente: 1) o caso
de Praxedes, uma eremita romana de que fala o Tratado dos Milagres (181)
e 2) Jacoba de Settesoli que pertencia à nobreza de Roma. Sobre a amizade
espiritual que uniu frei Jacoba e Francisco breves observações. A primeira:
nem Francisco nem Jacoba pensaram alguma vez em que ela optasse por
uma vida de tipo claustral após a morte do marido e da maioridade dos
filhos. Jacoba quis permanecer no século. Sua religiosidade é de tipo ativo,
um ideal que a impulsionava a patrocinar a primeira instalação dos frades
menores em Roma. A segunda observação se refere ao episódio em que
Francisco vendo chegar a hora de sua morte pede que se escreva uma carta
a Jacoba pedindo-lhe que venha vê-lo e que trata aqueles doces que
costumava preparar-lhe durante suas estadias em Roma. A carta nunca foi
enviada, porque quando ia partir o mensageiro Jacoba chegava trazendo
tudo quanto Francisco lhe pedira (cf. LP 8; 3C 37-39; EP 112). As fontes
comparam esse episódio com o da Madalena que ungiu o corpo do Senhor,
assim Jacoba alegrou os últimos momentos da vida de Francisco. Sem
dúvida Jacoba é uma figura excepcional. O apelido de frei Jacoba é um
reflexo de que, segundo Francisco, para ela não valiam nem as normas
tradicionais da clausura, nem a separação de sexos.
- A figura de Praxedes, ao contrário, remete a outro aspecto da nova
religiosidade do sec. XIII: a experiência religiosa das mulheres que
optaram por formas de separação ou reclusão. Eram chamadas as cellanae,
ou reclusas ou até encarceradas. Viviam junto de igrejas ou dos mosteiros,
ou em quartos de suas casas e entregavam-se a oração. Viviam sós ou em

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pequenos grupos, sem ver ninguém e se sustentavam com as esmolas que
os peregrinos lhes davam. Francisco se interessou vivamente por sua forma
de vida religiosa. Praxedes era uma dessas reclusas. Quando conheceu
Francisco vivia encerrada junto a um mosteiro já a quarenta anos. Diz o
Tratado dos Milagres: “Praxedes, famosíssima entre as religiosas de Roma
e do território de Roma, desde mui tenra idade se acolhera a uma cela
estreitíssima e havia já quarenta anos que nela vivia por amor de seu esposo
eterno. Gozava também ela da singular amizade de Francisco. Tinha-a
recebido o Santo à obediência – coisa não outorgada a nenhuma outra
mulher – e concedido o hábito da Religião, ou seja, a túnica e o cordão”
(3C 181). Nesse caso Francisco contradiz sua própria Regra, pela
insistência de uma religiosa reclusa que pede, no final da vida, ser uma
religiosa menor.
- Disso se conclui que o encontro entre o franciscanismo e o mundo
feminino não alavancou imediatamente novas formas de vida comum
religiosa feminina. A atenção de Francisco e de seus primeiros
companheiros se centra mais em dialogar com todas as formas de vida
religiosa feminina: uma viúva se mantém em seu estado de viuvez, embora
esteja unida a Francisco por uma intensíssima amizade espiritual, continua
vivendo com sua família e dedicando-se a obras de caridade. Uma reclusa
veste o hábito franciscano, mas nem por isso deixa de continuar vivendo
sua experiência penitencial de mulher encerrada, tal como o havia feito até
então. São laços espirituais com mulheres que permanecem no mesmo
estado que viviam antes.

Clara
Clara é o único caso em que o esquema funcionou de modo diverso. A
história da amizade entre Francisco e Clara é extraordinária e ao mesmo
tempo é indício do tipo de relação que Francisco mantinha com as

42
mulheres. Essa amizade cresceu durante vários encontros, preparados por
companheiros de confiança (cum honesta societate, com discreta
companhia) diz a Legenda (7c). A palavra honesta deve ser comentada,
pois a RNB recomenda também a honestidade quando afirma que os
sacerdotes podem falar com as mulheres, mas devem fazê-lo honestamente
(honeste) (1R 12,3). A palavra honesta, honeste vem de honor que é uma
palavra feudal por excelência e indica o comportamento de uma pessoa de
boa família. A companhia honesta de que fala a legenda é a companhia de
uma mulher da mesma classe social que Clara. Esses encontros
permaneceram ocultos à família de Clara até após tomar a decisão de seguir
a Francisco e fugir, na noite do Domingo de Ramos de 1211 ou 1212,
certamente com a benevolência do bispo Guido. Nesse episódio todo deve-
se acentuar a liberdade com que Francisco agiu. Certamente foi ele que
escolheu ou insinuou a data, o Domingo de Ramos, foi ele quem cortou os
cabelos de Clara, como afirma o papa Alexandre IV na bula de canonização
(n. 6) e Francisco era apenas, na época, um leigo que assumia a
responsabilidade de consagrar uma virgem. Na segunda de Celano se diz
que quando repreenderam Francisco por não visitar com mais freqüência as
damas pobres de S. Damião, ele respondeu: “Não penseis, caríssimos, que
não as ame com perfeição. Se fosse crime ajudá-las em Cristo, não seria
crime maior tê-las unido a Cristo? Não as haver chamado não seria mal
nenhum, mas não cuidar delas agora que foram chamadas, seria uma falta
de clemência” (2C 205). Francisco sentiu com muita força a
responsabilidade de haver sido quem desposara a Clara com Cristo. Note-se
que Celano escreve estando ainda viva Clara e se não fosse assim ela teria
reagido.
Não resta dúvida que esse fato de Clara suscitou não poucos problemas
para a pequena fraternidade da Porciúncula. É provável que no início,
Francisco se colocou a relação com Clara assim como determinou

43
posteriormente na RNB, quer dizer, dando-lhe seu conselho espiritual e
convidando-a a fazer penitência onde preferiria, isto é, num mosteiro
beneditino. Talvez ele pensasse resolver dessa forma sua relação com
Clara, mantendo talvez uma amizade espiritual.
Clara, porém, não se dirigiu para o mosteiro das beneditinas de S. Paulo
para ser monja, pois já se desfizera de seus bens. E para ser monja
necessitava de um dote. Foi simplesmente como mulher para ajudar no
mosteiro. No fundo se trata de uma experiência idêntica a de Francisco que
após ter devolvido as roupas para o pai se dirigiu a um mosteiro como
penitente (cf. 1C 16b). Sendo assim, Clara se apresentou como penitente no
mosteiro de S. Paulo. Quando os familiares queriam levá-la de volta
mostrou sua cabeça „tonsurada‟, quer dizer como „mulher de igreja‟ e nada
fizeram contra ela (LCl 9). A luta, porém, foi muito forte e o encontro bem
tenso. Poucos dias depois foi para Santo Ângelo de Panzo, que era uma
comunidade de tipo semimonástico, ao estilo das „beguinas‟, bem em moda
então. Por aí se vê que a escolha de Clara foi uma opção religiosa.
- No entanto, a Clara não era suficiente uma vida de penitente num
mosteiro de beneditinas, ela buscava algo mais e diferente. Aí se junta sua
irmã Inês e, portanto, deve pensar não só numa experiência pessoal, mas
deve já pensar numa comunidade realmente nova e exatamente por isso
consegue que Francisco lhe dê S. Damião. Ali nasceu uma comunidade
nova. Reconstruir a trajetória desses acontecimentos é também importante
para conhecer por que Francisco parece ter deixado sozinha a Clara
naqueles momentos. A Legenda de Clara não menciona em nenhum
momento a Francisco quando fala do choque com a família, da chegada de
Inês e das várias mudanças de lugar. Parece como se Francisco estivesse de
fora, na expectativa. Na realidade, o Testamento de Clara induz a pensar
nessa atitude prudente de Francisco: “Vendo o bem-aventurado Francisco
que nós, embora frágeis e fisicamente sem forças, não recusávamos

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nenhuma privação, pobreza, trabalho, tribulação, nem humilhação ou o
desprezo do mundo, e até julgávamos tudo isso as maiores delícias, como
pode comprovar frequentemente em nós, a exemplo dos santos e dos seus
frades, alegrou-se muito no Senhor. E movido de piedade para conosco,
assumiu o compromisso, por si e por sua Ordem, de ter sempre por nós o
mesmo cuidado diligente e a mesma atenção especial que tinha para com
seus irmãos” (TestCl 27-29). A última frase se encontra também na Regra
de Clara, bem como a alusão à forma de vida que Francisco deu às sorores
de S. Damião. Ao se ler a passagem do testamento se tem a impressão que
Francisco pensou resolver o problema de Clara da mesma forma como se
determina na RNB: convidando-a a fazer penitência onde quisesse.
Contudo, após a insistência e a persistência de Clara e de suas
companheiras de viver em altíssima pobreza, Francisco se dobra e aceita o
cuidado delas com a mesma solicitude que dedicava a seus frades. Em
outras palavras, a perseverança de Clara obrigou a Francisco a considerá-la
como parte da fraternidade franciscana. De fato, pode-se afirmar que desde
aquele momento Clara entrou a fazer parte do mundo franciscano,
exatamente igual ao dos irmãos, sem nenhuma distinção entre a primeira e
a segunda Ordem, pois ambas constituem uma mesma e única realidade. A
comunidade de S. Damião, porém, representa uma exceção, devido à
obstinada insistência de Clara que soube conquistar também um lugar de
exceção no coração de Francisco.
- Nesse meio tempo surgiram alguns problemas. Em 1215 o Concílio IV do
Latrão determina que todas as novas experiências religiosas deviam
assumir como Regra uma das já aprovadas pela Igreja. Em s. Damião se
escolheu a beneditina e Francisco pede que Clara assuma o título de
abadessa que ela não queria (cf. LCl 12). Não era questão de humildade,
mas sim de manter o caráter original da comunidade de S. Damião. Para
isso Clara agiu com muita inteligência e com grande intuição espiritual. Ao

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mesmo tempo que aceita a regra beneditina e o título de abadessa,
apresenta ao papa um pedido extraordinário o do privilégio da pobreza,
conseguindo dessa forma o primeiro documento pontifício de toda a
história do movimento franciscano. Trata-se de um documento
extraordinário, belíssimo e absurdo ao mesmo tempo. Na época todos os
mosteiros, tanto de homens como de mulheres, pediam privilégios ao papa
e quanto mais privilégios possuíam tanto maior era a importância. Clara
obteve do papa o privilégio de não ter nenhum privilégio, o privilégio de
que ninguém podia obrigá-la a possuir bens ou a ter posses. Esse
documento é um absurdo jurídico, mas é belíssimo. Diz Clara em seu
testamento: “Para maior segurança tive a preocupação de conseguir do
senhor papa Inocêncio, em cujo tempo começamos, e dos seus outros
sucessores que corroborassem com os seus privilégios a nossa profissão da
santíssima pobreza” (TestCl 42). De fato, a experiência de S. Damião é a
experiência da pobreza absoluta, a experiência de viver o dia. Uma
experiência absurda do ponto de vista humano quando se pensa que em S.
Damião houve um tempo com 50 irmãs e todas viviam da caridade.
- O problema se torna maior após a morte de Francisco, exatamente em
1230, 4 anos após, os frades reúnem-se em capítulo bem tumultuado e que
resolveu levar ao papa, através de uma comissão de peritos (no meio estava
também sto. Antônio) a fim de que o papa resolvesse um série de questões
pendentes. Entre elas encontrava-se o problema da observância do
Testamento e do Evangelho, o problema do uso e da gestão dos bens, o
problema da relação com as religiosas. O papa que. é Hugolino com o
nome de Gregório IX, amigo de Francisco e conhecedor de Clara
respondeu com a bula Quo elongati que interpreta a vida e a regra
franciscanas. Nela se dispõe que os irmãos podem ter um procurador que se
dedique à gestão dos bens, declara que os frades não estão obrigados à
observância de todos os conselhos evangélicos, mas só aos preceitos

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explicitamente lembrados na regra. Determina que o Testamento não obriga
juridicamente a comunidade e declara que para visitar comunidades
religiosas de mulheres devem pedir licença à Santa Sé.
- Houve reações de frades e também de Clara. Quando a notícia chegou a
S. Damião que o papa queria regularizar a escolha dos irmãos destinados ao
mosteiro, Clara reagiu pessoalmente com um discurso que pode ser
definido como uma “greve de fome”. É bom lembrar que junto a S. Damião
havia quatro ou cinco irmãos que se ocupavam tanto em esmolar e,
portanto, trazer o pão para o mosteiro como outros que se ocupavam do
alimento espiritual, quer dizer, da pregação. Clara simplesmente respondeu
assim ao papa: “Tire-nos também os outros frades, já que nos privou dos
que davam o alimento de vida” (LCl 37c) e despediu a todos os irmãos.
Clara sentiu-se no direito de dizer o que se devia fazer em S. Damião, bem
como autorizada a responder ao papa, pois pensou que tinha autoridade
espiritual para fazê-lo, porque havia conhecido a Francisco antes de
Hugolino e, por conseguinte, era uma das poucas pessoas com autoridade
espiritual para dar sua opinião sobre um documento tão importante como a
bula papal. Clara tomou essa liberdade para manter a originalidade de S.
Damião e a unidade com o conjunto do movimento franciscano.
- Dois anos antes em 1228, por ocasião da canonização de Francisco, o
papa passou por Assis. Certamente visitou S. Damião e tentou convencer
Clara de que não se podia viver sempre numa precariedade semelhante, por
isso devia aceitar alguma posse. Diante da tenacidade com que ela
mantinha seu próprio ponto de vista o papa lhe disse: “Se temes pelo voto,
nós te desligamos do voto”. Ela lhe respondeu: “Santíssimo Padre, por
nenhum preço desejo ser dispensada do seguimento indeclinável de Cristo”
(LCl 14), como se dissesse, santidade, não entendestes ainda que a pobreza
só tem uma finalidade que é o seguimento de Cristo! Com isso, Clara foi a
primeira em afirmar com radicalidade que a escolha da pobreza é mais

47
importante que a obediência ao papa. Semelhante liberdade espiritual lhe
vinha, certamente, do fato de ser ela a primeira companheira de Francisco e
o papa sabia disso.
Além disso, não parece ter que Clara tenha tido problemas com o afeto e a
amizade a Francisco. Espontânea e frequentemente ela e suas irmãs
expressam o desejo de ver e ouvir seu Pai (2C 207, cf. 2C 140, TC 15 e
veja também 2C 204). A LP (13) mostra como o afeto humano-cristão se
mostra maduro e harmonizado.

- Como conclusão da amizade de ambos talvez se possa dizer: Evidencia-se


a madura liberdade de Clara, muito prudente, porém com freqüência
afetuosa em suas expressões, especialmente no Testamento e, por outro
lado, a angústia constante de Francisco, temeroso de dar escândalo ou de
permiti-lo aos outros, irmãos ou não. O problema foi bem vivo e presente
em seu tempo, Daí que as relações conhecidas entre Clara e Francisco
aparecem mais reservadas e discretas que em outros casos de amizades
espirituais contemporâneas.
C. Lainati define Clara assim “Clara viveu Francisco em Deus, expressou a
Francisco em seu rosto feminino”. Isto quer dizer o definir-se e o sentir-se
com simples feminilidade sua “plantinha”. De Francisco e de seu ideal
humaníssimo e sublime ela é o complemento humano no verdadeiro
sentido do “adjutorium bíblico”. Portanto uma vocação não paralela, mas
complementária como a de Cristo e Maria “no Espírito que dá vida à
Igreja”.
Clara, com sua forma vitae expressou femininamente e a partir de uma vida
contemplativa o que o Espírito quis dizer e mostrar em Francisco, porém de
um modo próprio. A fecundidade de uma amizade espiritual se expressa
nessa forma complementar de viver um único carisma.

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João Paulo II em 12 de março de 1982 disse: “É difícil separar os nomes de
Francisco e Clara; estes dois fenômenos, essas duas legendas, legendas de
santidade. É algo profundo, algo que só pode ser compreendido com
critérios de espiritualidade franciscana, cristã, evangélica; não pode ser
entendido com critérios humanos. O binômio Francisco-Clara é uma
realidade que só se entende com categorias cristãs, espirituais, celestiais”.
Veja-se também o que Chiara Frugoni em Vida de um homem Francisco
de Assis, Companhia das Letras, pp. 96-101 (ler...).

Clara intérprete de Francisco

- Em sua introdução às Fontes clareanas a clarissa Clara Lainati assim se


expressava a respeito do caráter genuinamente franciscano da história
espiritual de Clara: ela encarnou “uma dimensão não paralela, como
erroneamente, por vezes, se afirma, mas complementar a do próprio
Francisco”. Ainda de acordo com a Lainati os estudiosos do franciscanismo
se concentraram apenas nos escritos e nas biografias de Francisco deixando
de lado as fontes clareanas, pouco conhecidas e, por isso, com notáveis
desvios de interpretação a respeito de seu significado junto de Francisco na
família franciscana. No entanto, na historiografia dos últimos anos se
abandonou essa perspectiva e se obteve uma visão modificada: Clara é nas
fontes franciscana uma testemunha por excelência, igual aos primeiros
companheiros do santo a ponto de seu testemunho não ser apenas marginal,
mas certamente decisivo, sem o qual a imagem que se teria de Francisco
estaria incompleta. Alguns chegaram a chamá-la de “alter Franciscus”, o
que é um exagero, sem dúvida!
Na realidade, porém, não se deve exigir de Clara que seja uma duplicação
feminina de Francisco, mesmo porque ela não se contentaria em ser apenas
isso e além do mais querer colocar simetricamente, lado a lado, Francisco e

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Clara seria uma perigosa e falsa arapuca que não resiste a um primeiro
exame. Além disso, nem se deve exigir de Clara que seja um testemunho
objetivo, pois seus escritos em sua maior parte foram escritos entre 1244 a
1260, período em que, dentro do franciscanismo, se viveu a assim chamada
“síndrome das origens”, cujo exemplo maior é a Legenda dos Três
Companheiros e dois deles se encontram no leito de morte da santa
(Ângelo e Leão). Lainati ao falar do Testamento de Clara lembra isso ao
escrever que o Testamento “evoca o clima de epopéia da Legenda dos Três
Companheiros, porém com características próprias e femininas. É a partir
desta atmosfera heróica das origens que Clara se exprime com palavras
vibrantes, que revelam seu amor pelo ideal abraçado seguindo os passos de
S. Francisco...” (Dicionário franciscano, 732-733). Não se deve esquecer,
porém, que epopéia é quase sempre o resultado da mistura de história e
mito.
Sem dúvida, Clara foi uma “testemunha fiel” ou “um espelho” de Francisco
de acordo com muitos, mas não de todos, pois a partir de 1220 ela e suas
companheiras sofreram uma espécie de marginalização dentro da ordem,
pois na legenda de S. Boaventura delas, praticamente, não se fala. Esse fato
oferece a alguns a convicção de que Clara não tenha sido efetivamente para
Francisco o que alguns pensam que foi. Tanto assim que ela mesma, além
de definir-se “plantinha” também devia estar convencida de ser a herdeira
do pai fundador. Contudo, na lucidez dos escritos nem sempre se mostra
evidente a adequação de Clara ao modelo espiritual de Francisco. Por
exemplo, para Francisco a pobreza absoluta consiste antes de tudo na
máxima obediência que realiza a pobreza de si mesmo. Essa obediência se
refere em primeiro lugar a Deus e depois aqueles que representam Deus na
história, aqueles que o reencarnam no mundo, os sacerdotes, o papa, a santa
romana Igreja. Aquela mesma Igreja que o próprio Francisco, após receber

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irmãos, não encontrando ninguém que lhe dissesse o que fazer, a descobre
como garantia e, portanto, intérprete da vontade de Deus.
Nesse particular Clara é diferente de Francisco não só porque seu
testemunho e monástico, mas principalmente porque, na vontade de
salvaguardar a laicidade – e, portanto a liberdade – da originária e comum
experiência religiosa se obstina em suas próprias posições até recorrer à
“greve de fome”, enveredando-se por um caminho diferente do de
Francisco. Ele também estava igualmente convencido da necessidade de
reafirmar contra tudo e contra todos a laicidade intuída para a sua
fraternitas, Ele vive esse impulso como uma “grande tentação” à qual
resiste até o ponto de se tornar obediente e pobre como Cristo crucificado,
que ele imita até fisicamente com os estigmas.
Clara não consegue vencer aquela tentação, apesar da consciência de ser
intérprete de Francisco e de ser “filha perseverante”, pois ela é uma mulher
cabeçuda e tenaz, capaz de rebelar-se para exigir dos outros, mesmo da
máxima autoridade religiosa, o papa, o absoluto respeito das regras em que
escreveu que renunciaria à própria “liberdade”. Ao reconhecer na pobreza
material a mais preciosa parte da herança de Francisco, seu exclusivo
distintivo histórico mais que espiritual, ela se torna porta-voz contra tudo e
todos acabando por perder de vista outro ensinamento fundamental de
Francisco no tema da pobreza que é o transmitido na carta a um Ministro
onde se lê: “as dificuldades que encontras no amor do Senhor Deus, os
obstáculos que te vêm, quer dos irmãos quer de outros, fossem mesmo
pancadas que te dessem, tudo deves considerá-lo como graça. Oxalá assim
desejes e não de outra maneira. E aceita-o por verdadeira obediência para
com Deus e para comigo, pois estou certo de que é essa a verdadeira
obediência. E ama os que te causam semelhantes aborrecimentos. E não
pretendas deles outra coisa, senão o que o Senhor dispuser a teu respeito. E
ama-os precisamente desta maneira, não exigindo que sejam melhores

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cristãos. E isto valerá para ti mais do que o retiro num eremitério” (CM 2-
8).
Nesse particular, Clara vai muitas vezes mais longe que Francisco no caso
da pobreza, seguindo os Companheiros e depois os espirituais. No entanto,
ambos haviam colocado mal a impostação da pobreza, pois como escreve
alguém: a pobreza “... era... não mais de natureza propriamente mística,
mas histórica e política. Naquele momento todos estavam inseridos no
mundo eclesiástico e a pobreza era apenas uma condição material que se
devia aceitar ou recusar... Aqui se encontra o grande equívoco em que, me
parece, caíram Leão e os companheiros. A pobreza de Francisco não é uma
coisa, não é uma condição institucionalizável, mas é uma condição mística.
A pobreza defendida exageradamente pela esquerda franciscana era, ao
invés, uma condição histórica. Leão lutou por uma pobreza que é a força
histórica da mensagem de Francisco, a premissa da própria perfeição,
melhor a prerrogativa principal para ser perfeito, não por aquela pobreza
que conduz à „vitória‟ mística. O significado profundo da escolha da
pobreza – aquela buscada que é o verdadeiro „gesto‟ de Francisco – se
encontra em ter mostrado um novo modo de experimentar Deus: a imitação
do Cristo pobre e sofredor que leva para a con-crucificação e à posse
escatológica. Mas este novo modo foi mui rapidamente apagado e
esquecido por seus seguidores. Foram as mulheres que o compreenderam a
fundo no sentido do copo a corpo... de Francisco com Deus no Alverna. É a
mística feminina a verdadeira herdeira de Francisco” (Ângela de Foligno,
Clara de Montefalco). “Deus é vivido como o homem-Deus crucificado,
que é a essência do Deus de Francisco. É justamente essa absoluta
centralidade que as torna diferentes dos casos de santidade masculina de
seu tempo, também daqueles franciscanos mais altos. A diversidade se
coloca justamente na excelência da „vitória‟ mística. Nos homens a imagem
de Deus parece muitas vezes velada por um fina camada de interesses e de

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ligações para uma „vitória‟ histórica”. Contudo, Clara parece ser aquela
que, apesar das intuições manifestadas na III carta a Inês, não consegue
ainda encontrar um espaço certo, justamente por sua dificuldade em
conceber uma pobreza exclusivamente mística, acima da história e do
direito, fora da batalha e da polêmica. E chamar repetidamente em causa a
Francisco para sustentar essa batalha e essa polemica generalizada termina
inevitavelmente por transformar a imagem, justamente para poder
interpretá-la.
No entanto, acima dos imperfeitos testemunhos sobre Francisco e além das
complementaridades, paralelismos e simetrias, os escritos de Clara
assumem um grande valor justamente por causa da exigência interpretativa
do franciscanismo, pois se apresentam como referência importante no
dinâmico processo de formação de uma imagem sempre constrangida entre
a história e a agiografia, entre o acontecimento e sua transfiguração.

V Espiritualidade
- A base de sua espiritualidade são os elementos fundamentais do
franciscanismo: Viver o Evangelho – seguir Jesus Cristo pobre e
crucificado e ainda uma vida intensa de oração e contemplação. O princípio
é expresso pelo cardeal Reinaldo e que foi assumido pela bula de
aprovação da Regra: “...seguindo os vestígios do próprio Cristo e de sua
Mãe santíssima, escolhestes uma vida enclausurada (eligistis habitare
incluso corpore) ... para poder ser servas do Senhor com espírito livre
(ut mente libera possitis Domino famulari).
- Quando se busca a essência do viver franciscano se a encontra nas
palavras do Evangelho, traduzidas na vida por Francisco e em sua adesão
imediata ao Evangelho em toda sua plenitude e “sine glossa”. Portanto,
uma vida é tanto mais franciscana quanto mais suas raízes se afundam no

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Evangelho. Um exame dessa espiritualidade conduz sempre a uma única
conclusão: o Evangelho, quaisquer que sejam as palavras mais adequadas e
aptas para revestir essa realidade de fundo. No entanto, ao projetar luz
sobre a vida evangélica de Francisco, se está ainda longe de conhecer em
profundidade a espiritualidade franciscana, porque se está sempre diante de
um abismo que é o abismo do próprio Deus revelado pelo Evangelho no
qual Francisco e Clara encontraram seu ambiente natural. Viver o
Evangelho não é questão de uma simples escolha entre ter ou não ter
determinadas coisas para o uso próprio, mas a essência se coloca no abismo
da vida divina, mistério de Deus, uno e trino, que Cristo revela e cuja
vivência era para Francisco e Clara santa e pura simplicidade.
- Tudo na vida de Francisco tal como aparece exteriormente é uma
conseqüência da essência evangélica de sua própria vida. A inquietação
com a pobreza, a menoridade, a fraternidade franciscanas, radicam no
compreender isso, quer dizer, a inquietude se manifesta quando se tenta
deter o „em si‟ do viver franciscano ou a essência do reviver
franciscanamente a Cristo. Viver Cristo, vivê-lo verdadeiramente, observar
o santo Evangelho implica necessariamente conhecê-lo na fé e abrir-se ao
dom que ele mesmo dá. Isso, porém, significa ainda abrir-se ao mistério de
sua vida divina, una e trina, cujo acesso é o homem Jesus. Então a pobreza,
a menoridade, a fraternidade franciscanas, realizadas em plenitude, são a
cópia da humanidade de Cristo Jesus que será tanto mais perfeita quanto
maior for a imitação. Por isso a vida de Francisco, calcada sobre os passos
do Homem-Deus se abre ao dom de Deus e se aproxima do mistério, de tal
modo que vive nele e dele se reveste.
- Se a vocação franciscana é a de reviver a vida de Cristo como aparece no
Evangelho não se tem direito de separar ação e contemplação, porque
Cristo vive em plenitude o mistério de Deus no monte, sozinho, no meio da
multidão e em Betânia, quer dizer sempre. Uma vida de pobreza, de

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menoridade, de fraternidade realiza praticamente, mas não esgota a
vocação de Francisco que tem sua raiz substancial no viver, absorvido por
Cristo pela comunhão com a vida divina. Tanto Francisco como Clara
reconstroem o Cristo total. Não são dois momentos, duas ordens, mas são a
vida humana e a vida divina de Cristo, vividas ao mesmo tempo, como em
Cristo. Nele há um momento único, em Francisco e Clara há diferenças
pessoais, porém o momento é também único, pelo paralelismo e pela
integração das duas oferendas.
- A espiritualidade seráfica não tem nada de novo. Nada acrescenta e nada
tira ao Evangelho. Diga-se o mesmo de sua teologia a respeito da doutrina
tradicional do cristianismo... Contudo, é revolucionária; é como fermento
que penetra, agita, suscita novas manifestações de vida. Porém sua
revolução consiste precisamente em propor-se não acrescentar nada e não
tirar nada do Evangelho que equivale a dizer: realizar em plenitude a única
gigantesca revolução transformadora que é a obra de Jesus Cristo; realizá-
la em si e no mundo.
- Se a gente quisesse resumir em poucas linhas a espiritualidade de Clara a
partir de suas cartas a Inês de Praga se poderia dizer o seguinte: As cartas
apresentam uma dupla dimensão: de um lado são a expressão humana,
quente e afetuosa de uma correspondência amiga entre duas mulheres que
sabem condividir em plenitude o mesmo ideal de pobreza e de adesão a
Cristo e do outro uma exortação apaixonada para permanecerem fiéis a seu
programa ascético-contemplativo que as assemelha e unifica no amor a
Cristo pobre. Portanto, as cartas mantêm uma unidade inspiracional e de
motivações que manifesta a rica personalidade humana e espiritual de Clara
como mulher e como cristã. Além disso, embora mantendo uma linha
temática de fundo, cada carta mostra certa variedade no desenvolvimento;
para usar uma terminologia musical seriam variações sobre o tema do amor
esponsal a Cristo. Assim, na primeira carta Clara exalta a virgindade como

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desejo de união nupcial com Cristo e da pobreza como a adesão perfeita ao
amor a ele. A segunda insiste no conceito de perseverança e de progresso
nesse amor: “avança confiante, alegre e solícita na via da bem-
aventurança” e “o próprio rei te unirá a si no tálamo etéreo, onde se assenta
glorioso” (5.11-13). A terceira convida à união mais íntima com Cristo e a
manter um ânimo nobre e fiel que contempla (12-14) e, como Maria (16-
19) acolha e guarde o Senhor e torna-te sua morada estável (21-26). A
quarta exorta a “espelhar-se em Cristo pobre e humilde” (14-25) e deixar-se
queimar por seu ardor de caridade (27), para ser atraída por ele (28-30),
introduzida no quarto inebriante (31) e gozar de sua intimidade (9-13.32).

Elementos próprios de uma espiritualidade característica:

- Esposa de Cristo
Em Francisco a experiência cristã fundamental é a do Deus trino; Clara
privilegia a união nupcial crística. Certamente que Francisco não ignora
esse matiz (2CF 50-51), mas isso não está desenvolvido nem ocupa nele
mais que um lugar acessório. Em todo o caso é para nós hoje um pouco
estranho o modo de falar da vida consagrada a Deus como vida esponsal.
Talvez porque por muito tempo um sentimentalismo exagerado e
dificilmente suportável ocultou o verdadeiro significado da palavra
„esposa‟, quer dizer, comunhão de destino com o companheiro do caminho
de vida, amor sem reservas e fidelidade sincera. Estar unida ao Senhor
crucificado significa estar unida ao Rei e, por conseguinte, servir ao rei e
estar desposada com Ele significa servir ao Senhor crucificado.

- Como Francisco, também Clara viveu intensamente a devoção à


humanidade de Cristo Os matizes dessa devoção são diferentes, enquanto
Francisco destaca o pensamento da obediência de Cristo, Clara se
manifesta principalmente impressionada a respeito da pobreza e humildade

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de Cristo. Essas duas virtudes gravaram indelevelmente em Clara a imagem
de Cristo; daí que seu pensamento se dirige particularmente ao nascimento
e à crucifixão.
- Desde o momento em que Clara encontrou a Jesus viveu fielmente uma
relação esponsal de aliança e essa fidelidade foi criativa. A inspiração, a
razão, a regra, o todo de sua vida é Jesus. Constantemente o olha e vibra,
basta ler suas cartas para perceber esse fogo de mulher apaixonada que não
deseja mais que compartilhar a condição daquele que a amou primeiro... até
o presépio, até a cruz. Sua fidelidade esponsal se manifestava no
admoestar, rogar, exortar as irmãs no seguimento do caminho...
- As ícones orientais não conseguem representar a Mãe de Cristo senão
com ele no colo. Nos lugares prediletos de Clara (Belém e a cruz) sempre
encontra a Mãe. Nos mistérios da vida de Jesus, Clara descobre os
mistérios da vida de Maria, feita arca da aliança que carrega em silêncio
humilde, que acompanha em pobreza e fidelidade a seu Filho. Por acaso
não é sob a cruz e junto de Maria que a contemplativa, em fidelidade
esponsal, recebe a missão de amar, orar e levar a humanidade em seu
coração como um peso de amor? Ela escreve a Inês: assim, pois, como a
gloriosa Virgem das virgens o carregou materialmente em seu seio, de
modo semelhante tu, seguindo suas pegadas, principalmente as da
humildade e pobreza, poderás levá-lo sempre espiritualmente em teu corpo
casto e virginal e conter aquele que te contém a ti e a todas as criaturas e
possuir algo que é a mais firme posse (Cta III, 24-26).

Espelho
- Na terceira Carta a Inês (12-13) afirma que Jesus é o espelho da divindade
do Pai, porque nos faz ver, nos manifesta, reflete a divindade e por isso a
podemos ver e contemplar nele. Além disso, o texto indica o uso que Inês
deve fazer do espelho que é Jesus: pôr sua mente, alma e coração nele e

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transformar-se nele através da contemplação. Converter-se, portanto, em
imagem ou espelho de Jesus. Por sua vez a própria Inês é vista, em
conseqüência, como espelho ou imagem de Jesus (v. 13). A confissão de fé
e a contemplação de Jesus como espelho da eternidade, como esplendor da
glória e como figura da divina substância, além de confessar e contemplar a
Jesus em sua dupla dimensão divino-humana, contempla e revela a Jesus
como revelador e manifestador de Deus, do Pai. Jesus Cristo é, então, o
lugar pessoal e permanente da revelação que Deus faz de si mesmo e a
expressão mais autêntica que um homem pode alcançar de Deus. Clara
quer ainda que Inês seja transformada em Jesus, cristificada. Quer que ela
seja sua imagem, espelho seu como ele o é do Pai. Dessa forma Clara
alcança um dos cumes da antropologia cristã.

Quem sabe se poderia terminar o estudo sobre Clara com as palavras de


Raul Manselli: “De Clara pode dizer-se que sua conversão confirmou
Francisco em seu ideal, em sua ambição de criar, dentro da Igreja, um
complexo diferente, renovador, uma força capaz, justamente porque se
dirigia à imensa maioria dos abandonados e dos infelizes e de dar nova
força ao exemplo de Cristo para que os abandonados, os infelizes, os
doentes, os leprosos pudessem finalmente ver retornar sob seus olhos a
possibilidade de realizarem-se. A adesão das mulheres, não como uma
confusa massa falante, mas severa, composta, austera, na busca da
perfeição evangélica, tornava possível a esperança que seu ideal, embora
com adaptações e modificações, pudesse se tornar força arrastadora ou, ao
menos, fermento capaz de movimentar aquela massa inerte de almas
tépidas, por quem Cristo, objeto de veneração, de medo e de outros
sentimentos ainda, não conseguia aquecer os corações a despertá-los
dirigindo-os a uma vida religiosamente fecunda”.

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