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Mais uma vez a rotina

Sombras e sobras nesse verão quase findo. Tudo marcha a contento naquela rotina feita de um dia
após o outro. Naquele “todo dia ela faz tudo sempre igual” que a gente ouve na música. Rastos e
restos que compõe a monotonia, a surpresa, o encanto e o desencantar-se da vida. Olhamos os
artistas, os esportistas radicais, os grandes inventores e cientistas e, talvez, desejemos aquela vida
em que a rotina é não ter rotina, em que cada dia é um acontecimento diferente. No entanto, se a
nossa vida comezinha não tem a dimensão e nem o dinheiro dessa gente que parece não ter rotina,
talvez necessitemos olhá-la mais de perto, parar de desejar mudanças visíveis e observar os
pequenos acontecimentos e novidades que se fazem para além do “me sacode às seis horas da
manhã”. Pontos e pontes se fazem diuturnamente para que saiamos de nossas ilhas, nossos buracos
existenciais. Morreremos todos sozinhos, é certo, mas até lá a vida é uma troca comunitária, um
esbaldar-se por dentro da rotina. Talvez o caminho seja adestrar, ou como diria o poeta Manoel de
Barros, desadestrar o olhar. Tirar de sobre ele a poeira, olhar além, abaixo, acima da casca do
cotidiano. Olhar nos olhos da rotina também ajuda. Tentar entender uma pichação enquanto espera
o ônibus; observar o limo de um muro abandonado; contar quantos passos uma pessoa dá para
atravessar a faixa de pedestres; admirar a variedade de andares, olhares, movimentos de braços;
compadecer-se, mesmo que momentaneamente, dos bichos abandonados. Olhar o inútil, o feio, o
descartável que compõe a urbanidade e contrapô-los aos jardins, praças, aos velhos nas praças, às
árvores que insistem em sombrear o cimento. E ver o que acontece. Ver e desver. Sair e entrar de si,
dentro de si mesmo para perceber que a vida é essa sucessão de ninharias, é esse acúmulo de
memória e de esquecimento que nos faz felizes ou infelizes. Escolhas e escolhos nos definem.
Somos amplos, abertos, imprecisos, mesmo que rotineiros, mesmo que nos façamos, às vezes, de
pedra cega e cortante, nos façamos um recife imóvel e duro. Equilibrar-se. Bailar na corda bamba
da vida, e não cair. Ou cair, porque nem tudo é rotina, nem tudo é cotidiano.

Rubens da Cunha

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