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Quando o que nos une é maior que aquilo que nos separa.

Titulo: Ao Teu Lado (Volume I)


Autor: Ana Ribeiro
Revisão de Texto: Ana Ribeiro
Imagem de Capa: Depositphotos
1ª Edição: Junho de 2017, Lisboa
2ª Edição: Junho de 2018, Chaves
ISBN-13: 978-1717061935
Para o Miguel que inspirou esta história,
E que sempre me inspirou a mim.
Obrigada por tudo!
O tempo não passa pela amizade. Mas a amizade passa pelo
tempo.
É preciso segurá-la enquanto ela há.
Somos amigos para sempre
Mas entre o dia de ficarmos amigos e o dia de morrermos
Vai uma distância tão grande como a vida.

Miguel Esteves Cardoso in “Amigos para sempre”


N os arredores de uma isolada aldeia alentejana, Miguel:
um rapaz de apenas onze anos, vindo de uma família
simples, humilde e com poucas possibilidades
económicas, encontrava-se sentado no meio de um campo de trigo,
debaixo de uma oliveira centenária (segundo já tinha ouvido dizer
ao senhor António, uma das pessoas mais velhas e respeitadas da
aldeia), de caderno no colo a rabiscar com um pedaço de grafite,
numa folha em branco como era seu hábito fazer todos os dias.
Para além de desenhar, gostava de dar grandes passeios pelos
campos, de levar o gado a pastar, de ajudar os pais nas rotinas
diárias e de, por vezes, dar uma ajuda ao senhor António: a
alimentar os animais da sua quinta, a plantar as árvores de fruto, a
apanhar os legumes e as frutas e a recolher os vários produtos da
quinta para posterior distribuição pelos minimercados e grandes
superfícies comerciais. Sempre se ia entretendo.
O calor era abrasador e seco, praticamente insuportável naquela
época do ano; mas ele já estava habituado, vivia naquela aldeia,
praticamente isolada do mundo, desde que se conhecia. Rabiscava
naquele caderno os seus sonhos e aspirações e tudo aquilo que o
rodeava: as flores, as árvores, a natureza, o mundo animal, o que ia
observando. Era a única maneira que tinha para ir descontraindo e
passando o tempo; infelizmente, ele não tinha amigos em grande
abundância. Era das poucas, senão mesmo a única, criança a viver
na aldeia, a grande maioria dos habitantes eram pessoas adultas ou
idosas e o facto de os seus pais serem pobres não o ajudava muito
a fazer novas amizades.
Achava que ninguém gostaria de fazer amizade com uma
pessoa pobre e com o aspecto exterior que ele apresentava todos os
dias: cabelo oleoso e despenteado, escondido por baixo de um

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chapéu amarelo de palha, às vezes até fazia dos dedos das mãos o
seu pente, roupa: suja, desbotada e velha (infelizmente, os seus pais
não lhe podiam dar roupas novas quando ele queria), sapatos roídos
pelas traças e cheios de buracos. Pele com cheiro a pó e escurecida
por alguma sujidade e pela terra e as unhas das mãos
completamente negras, como as que o seu pai, muitas vezes,
apresentava depois dos trabalhos de mecânica que realizava nas
máquinas agrícolas ou na velhinha carrinha do senhor António.
Não tinha possibilidade de tomar banho todos os dias: tomava
apenas uma vez por semana, quando a mãe conseguia que algum
vizinho lhe enchesse o alguidar com água quente para que
pudessem lavar-se. Era o que tinha, não havia dinheiro para mais;
no entanto, ele tinha o sonho de um dia conseguir construir uma
grande amizade, procurava encontrar uma pessoa que ficasse para
a vida, alguém único e especial; mas, o seu sonho tardava em
concretizar-se. Nunca tinha ido à escola: não sabia ler, nem
escrever, e desejava muitas vezes não levar aquela vida e ter uma
vida completamente diferente; mas infelizmente, com ambos os
pais sem emprego, as coisas não podiam mudar muito. Restava-lhe
aguentar, ser resiliente e ter alguma paciência.
Ele não sabia o que queria ser quando fosse grande, na verdade,
ainda nem tinha parado para pensar bem sobre isso, talvez por não
sentir necessidade de fazê-lo; afinal de contas, não sabia se algum
dia mudaria de vida ou o que o futuro lhe reservava; mas sabia que
um dia gostaria muito de ter dinheiro para comprar uma máquina
fotográfica e uma grande mota para poder viajar. Eram os seus
mais profundos desejos.

Os pais de Miguel preocupavam-se constantemente com o ar


solitário, pouco comunicativo, triste e cabisbaixo do filho. Sabiam
que ele não era plenamente feliz, ali, na aldeia, por querer e
procurar incessantemente por ter uma vida melhor: desde muito
novo que não aceitava muito bem a vida simples e humilde que
levavam, por ser filho único e não ter outras crianças, da mesma
idade que ele, com quem pudesse partilhar as brincadeiras e
divertir-se e por ser, desde sempre, um jovem muito sonhador que

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sempre desejou, desde cedo, poder mudar de vida para poder
transformar esses sonhos numa realidade.
Recordavam-se, muito bem, de Miguel ser pouco falador,
gostava mais de ficar sossegado no seu canto, no meio das suas
coisas e do seu mundo. Infelizmente, o facto de viverem numa
aldeia tão isolada e com tão poucas crianças e de não terem muitas
economias fazia com que as vivências de Miguel fossem mais
limitadas, impossibilitando-o de ir à escola e de conviver com
outras crianças. Ele andava quase sempre sozinho pelos campos e
até pela aldeia, por vezes até gostava daqueles seus passeios
silenciosos, bons para pensar e para apreciar a natureza em todo o
seu esplendor. No entanto, ele nunca deixava de se fazer
acompanhar pelo caderno de desenhos e pelo pedaço de grafite
oferecido pelo pai, andava com eles para todo o lado; pois qualquer
momento podia ser um belo e oportuno momento para um bom
desenho. Não era uma criança que tivesse muita facilidade em
conviver, em partilhar coisas e em falar do que lhe ia na alma e isso,
de certa maneira, deixava-os com um peso na consciência por
quererem dar uma vida melhor ao filho e ainda não poderem fazê-
lo.

Por vezes, enquanto ajudava a mãe nas limpezas domésticas, a


tratar dos poucos animais que possuíam, a cuidar do pequeno
jardim e da humilde horta: de onde colhiam alguns dos alimentos
que consumiam, ou na apanha dos legumes para a sopa ou para a
salada, ou de alguma fruta, Miguel ganhava fôlego e coragem para
desabafar um pouco. Ele já sabia que com o pai era um pouco mais
difícil de o fazer; porque ele era mais autoritário e por vezes um
pouco frio e insensível com as suas lamentações, não gostava que
ele estivesse sempre a queixar-se e dizia com frequência que:
devíamos aceitar o destino e aquilo que Deus nos dava.
— Quando é que vamos poder ir morar para uma cidade grande
como Lisboa, mãe? — Perguntou-lhe ele pensativo.
— Não sei, filho! Quando nós tivermos dinheiro para isso; mas
porque perguntas?

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— Porque, às vezes, eu sinto-me cansado, mãe! Cansado de
viver aqui, no meio do nada, sem ter com quem brincar. De andar
quase sempre sozinho e não ter ninguém com quem falar, com
quem jogar à bola, com quem correr ou dar umas gargalhadas.
— Eu percebo, Miguel! Mas tens que ter um pouco mais de
paciência, temos que esperar por melhores dias!
— Esperar até quando?
— Até quando Deus quiser!
— Eu queria e gostava tanto de poder ir para a escola, para
poder aprender a ler, a escrever e a fazer contas e poder ter muitos
amigos como toda a gente.
Aquelas inconfidências de Miguel faziam com que Maria José
se sentisse triste e bastante desconfortável, aumentando assim o seu
peso de consciência e o aperto do seu coração e fazendo com que
ela não soubesse o que dizer…
— Um dia, as coisas vão mudar, vais ver! Temos que ter fé e
esperança, não é?!
— Isso é verdade… Gostava tanto de poder sair daqui para
conhecer outras cidades: sítios diferentes e pessoas novas. Aqui, já
não há nada de novo para descobrir e conhecer; afinal de contas
conheço isto todos os dias, de fio a pavio. Gostava tanto de um dia
poder ir ver o meu Sporting ao Estádio de Alvalade, em Lisboa.
Maria José sabia o quanto Miguel era sonhador e o quanto
ansiava por uma vida bem diferente daquela que tinha.
— Eu sei que tu tens muitos sonhos, filho!
— São os sonhos que nos incentivam a seguir em frente e que
comandam a vida, não é, mãe?!
— É mesmo, Miguel! Independentemente de tudo aquilo que
possa vir a acontecer daqui para a frente, nunca deixes de sonhar.
Isso é muito importante para sermos felizes. — Miguel sorriu, um
pouco mais conformado — Bem, ajudas-me a levar estas cestas
para dentro?
— Ajudo, sim!
— Pega nelas com cuidado para não pisares a fruta, está bem?!
— Não se preocupe, mãe! Eu tenho cuidado…

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Maria José tinha um filho com uma sensibilidade especial e
uma atenção e um cuidado muito particulares. A sua simplicidade
e humildade de Miguel conseguiam tocar muito facilmente as
pessoas, quem lhe dera que também fossem capazes de fazê-lo
conquistar grandes e verdadeiras amizades. Era sem dúvida, aquilo
que ela mais queria. Naquele momento, ela sentia que isso era
muito importante e essencial para Miguel, para a sua felicidade e
bem-estar. Acreditava que poderia ser possível; mas, só o tempo
poderia dizê-lo.
Ambos estavam muito longe de imaginar as mudanças que
iriam acontecer em breve. Há já alguns dias que Mizé dizia a
Miguel, com um singelo sorriso estampado no rosto, que em breve
ele iria ter uma surpresa: finalmente, ele iria ter companhia para as
suas brincadeiras, deixando-o com bastantes expectativas. Os netos
do senhor António: Ana e João, chegariam brevemente à quinta,
vindos de Lisboa, para passarem as férias do Verão, como era
hábito acontecer todos os anos. Ele mostrava-se ansioso e bastante
entusiasmado, principalmente, por poder quebrar a monotonia dos
seus dias. Sentia que o mais importante não eram as inúmeras
coisas que eles poderiam fazer todos juntos; mas sim, a
possibilidade de ter um amigo com quem partilhar tudo aquilo que
o satisfazia e fazia verdadeiramente feliz.
Sonhava acordado e desejava fortemente que eles chegassem
depressa, para ter com quem correr, com quem desenhar, com
quem dar umas valentes gargalhadas, com quem jogar à malha, ao
berlinde e à bola. Com quem conversar sobre os mais diversos
assuntos e principalmente sobre futebol, nomeadamente sobre o
seu Sporting) e quem o acompanhasse quando levava as ovelhas a
pastar para o monte ou quando dava uma ajuda ao senhor António
nas limpezas, a dar de comer aos animais, na apanha das frutas e a
tratar do jardim da Quinta da Juventude.

Será que era desta que faria a grande amizade da sua vida?

Algo lhe dizia que aqueles próximos dias, de Verão, poderiam


vir a ser inesquecíveis…

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A manhecia em Lisboa, avizinhava-se um magnífico e
luminoso dia de Sol que antecipava a chegada da
Primavera: o céu apresentava-se limpo e de um azul-
bebé, as flores começavam a desabrochar e a dar o ar da sua graça,
colorindo o meio-ambiente de mil e uma cores e tornando-o mais
harmonioso. Já se sentia um aroma perfumado no ar, a cor verde
começava a destacar-se e as roupas frescas e arejadas começavam
a aparecer. Nos cafés por onde se passava, as esplanadas ao ar livre
começavam a surgir e a encherem-se de pessoas que pareciam mais
alegres e bem-dispostas e que aproveitavam ao máximo a chegada
das elevadas temperaturas tão típicas daquela época.
E no serviço de Pediatria, de um dos muitos hospitais centrais
da capital, a azáfama de mais um dia de trabalho também já fazia
notar; os enfermeiros já prestavam os primeiros cuidados do dia,
aos meninos internados. Hoje a doutora Ana Salgado: médica
atenciosa e preocupada encontrava-se a trabalhar; para além de
Médica-Pediatra também continuava a realizar voluntariado,
naquele mesmo serviço, na companhia do seu melhor amigo: o
Miguel. Como sempre tinham feito desde muito jovens.

Na sala de atividades, os meninos internados tinham à sua


disposição os mais diversos jogos e brinquedos para se distraírem
e para fazerem com que o tempo andasse mais depressa: puzzles,
bolas, livros e histórias para lerem, bonecas e ursos de peluche,
carrinhos e muitas folhas em branco para fazerem desenhos e
pintarem. Até tinham uma enorme casa para poderem pôr a sua
imaginação a voar e um miniteatro de fantoches onde, por vezes,

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se realizavam algumas pequenas, peças de teatro, nas quais eles
também podiam entrar e serem os protagonistas da história.
E era naquela sala, que as coisas mais giras, improváveis e
divertidas aconteciam, graças à Ana e ao Miguel, que todos dias
largavam a sua faceta de adultos e voltavam a ser crianças por um
bocadinho. Todos os meninos gostavam muito deles, porque eles
conseguiam transformar a estadia num hospital num momento
alegre e divertido; apesar de, o hospital ser um lugar aonde se ajuda
a tratar as pessoas: sejam adultos ou crianças, que estão doentes.
Quando se fala nestas instituições de saúde associa-se sempre a
doenças, dores, internamentos e tratamentos e também a alguma
tristeza e solidão. Para as crianças e muitas vezes também para as
suas famílias, nem sempre é fácil perceber tudo o que envolve o
meio hospitalar.

Apesar da sua vida agitada e da sua profissão como engenheiro


mecânico, Miguel (agora com trinta anos) continuava a ser uma
pessoa alegre, bem-disposta e divertida; desde pequeno que era
assim, era uma característica muito típica da sua personalidade.
Mesmo sendo um homem já adulto, não tinha perdido o seu bom
humor. Era solteiro, pois a sua vida era demasiado preenchida, às
vezes até dizia que quase nem tinha tempo para si próprio, e
também achava que não era a altura mais oportuna para casar-se e
constituir família. Para além disso, sentia que, ainda não estava
preparado para assumir esse compromisso e que ainda havia muita
coisa para conhecer, descobrir e viver antes de dar esse grande
passo. Não dispensava as saídas com os amigos, as viagens, os
passeios de mota, os roteiros de fotografia, muita aventura e
adrenalina. Estava-lhe tudo no sangue e fazia tudo parte da sua
maneira de ser e estar perante a vida e do seu estado de espírito.
Gostou sempre imenso de crianças, e estas nunca o largavam; o
facto de Miguel ter uma mota vistosa também contribuía e muito
para os mais pequenos gostarem ainda mais dele, principalmente
os rapazes. A primeira coisa que eles lhe perguntavam, quando
Miguel entrava pela porta da sala era pela mota, sempre cheios de
entusiasmo e excitação. Queriam sempre saber tudo sobre os
passeios que ele já tinha dado, as expedições que tinha feito, os

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sítios que ele tinha visitado, o que tinha gostado mais e… quando
é que ele os levava a dar uma voltinha. Enchiam-no sempre de
perguntas, como se de um interrogatório policial se tratasse. Daí ter
querido, desde sempre, manter o voluntariado e conseguir conciliá-
lo com a sua futura profissão.
Ele contava-lhes sempre imensas anedotas e piadas secas (eram
a sua verdadeira especialidade) e também gostava de lançar-lhes
alguns desafios interessantes, resumindo e concluindo, Miguel era
um brincalhão por natureza. As crianças adoravam-no e gostavam
e apreciavam imenso a forma como ele encarava a vida: sempre
com um sorriso nos lábios. Ele gostava de aproveitar cada
momento, em pleno, tornando-o inesquecível e memorável; por
isso fazia por passar-lhes sempre a mensagem de que a vida não
pára e passa bastante depressa, como tal eles deviam sempre
aproveitar e viver cada dia ao máximo como se fosse o último,
dando sempre primazia, importância e valor aos pormenores mais
básicos e insignificantes. Nunca deviam deixar nada por dizer nem
nada por fazer, para não correrem o risco de perder várias
oportunidades e momentos importantes que podiam não voltar a
acontecer.
Para os mais novos, Miguel era um exemplo a seguir e uma
pessoa de referência; diziam eles muitas vezes que quando fossem
grandes queriam ser como ele. Desde a altura em que foi viver para
casa dos Salgado que Miguel começou a fazer voluntariado com
Ana: acompanhava a mãe de Ana: Joana Salgado e Ana ao serviço
de Pediatria do hospital e adorava brincar e fazer as mais diversas
actividades com os meninos; era algo que o realizava e divertia
imenso, e que ele fez imensa questão de continuar a fazer já em
adulto. Por vezes, ele saía, ao fim do dia, da sua oficina: cansado,
desgastado: física e psicologicamente e sem paciência para nada.
Só queria chegar rapidamente a casa para poder deitar-se no sofá a
descansar um bom bocado; no entanto, ao chegar à sala de
atividades do serviço de Pediatria para mais uma visita e ao ver os
seus doentinhos preferidos: que lhe faziam sempre uma festa
enorme, mal ele entrava a porta, parecia que as suas energias

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ficavam completamente renovadas, que lhe nascia uma alma nova
e que o cansaço pura e simplesmente desaparecia.
Adorava aquela sensação única de conseguir pôr uma criança a
sorrir sem que ela se apercebesse e estivesse sistematicamente a
recordar-se que estava internada num hospital porque estava
doente. Era algo que o deixava sempre satisfeito. Os pais dos
meninos apreciavam imenso o facto de haver pessoas capazes de
conseguir minimizar a dor psicológica dos seus filhos; enquanto
eles estavam internados no hospital, entretendo-os com atividades
lúdicas.
Com o passar dos anos, Miguel começou a levar cada vez mais
a sério a sua actividade de voluntariado; por isso, ele decidiu ir um
pouco mais longe. Nos seus tempos livres e dias de folga, ele
decidiu realizar uma longa formação hospitalar especializada para
poder evoluir e aprender um pouco mais e isso fez com que ele
conseguisse integrar a equipa da Operação Nariz Vermelho, que
todas as semanas: pelo menos uma vez por semana, trabalhava
naquele serviço e naquele hospital. Como os doentinhos de palmo
e meio já o conheciam bem, mostravam-se mais à vontade para
participar nas atividades e assim era tudo mais fácil. Esta foi uma
formação que o tinha marcado imenso e que lhe tinha oferecido
ensinamentos e aprendizagens muito importantes e fulcrais para a
sua vida, Miguel tinha adorado fazê-la e sentia que tinha sido uma
mais-valia e que tinha feito uma excelente opção.

Por seu lado, Ana: enquanto Médica-Pediatra daquele serviço,


tirava sempre um tempinho, durante o seu turno, para dedicar aos
mais pequenos, os seus doentinhos de palmo e meio; tinha vinte e
sete anos e uma vitalidade enorme, que já muito a caracterizava na
infância e adolescência. Nunca parava sossegada, fazia mil e uma
coisas ao mesmo tempo, adorava ajudar os outros, inventar novas
atividades e manter os meninos sempre ocupados e entretidos.
Também ainda não tinha constituído família, achava que ainda era
cedo para assumir esse compromisso, partilhando assim da mesma
opinião de Miguel: ainda queria fazer muitas coisas antes de casar-
se e de ter filhos.

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Ainda gostava de fazer planos com as amigas, de saírem juntas
para irem às compras, de irem até uma esplanada ao fim do dia
tomar um café ou irem a um bar ou a uma discoteca ao fim de
semana para dançarem um pouco, tomarem uma bebida e porem a
conversa em dia. Não dispensava as viagens, no Verão, só com as
suas meninas; no início de cada ano tentavam sempre conciliar as
férias, umas das outras, para poderem viajar juntas. E nos dias em
que tinham folga ou quando Ana tinha mais disponibilidade, eles
aproveitavam para estar juntos e para fazerem alguns planos juntos:
almoçavam ou jantavam, iam ao cinema ou tiravam,
simplesmente, uma tarde para porem a conversa em dia.
Continuavam a ser grandes amigos e a forte cumplicidade que
os unia mantinha-se e era cada vez mais coesa, tal como tinha
acontecido na infância e na juventude. Também continuavam a
telefonar-se com regularidade, como faziam na adolescência; pois,
sentiam que não podiam ficar muito tempo sem notícias, um do
outro.
E claro, quase todos os dias se encontravam no hospital, para
mais um momento de pura diversão com os seus doentinhos
preferidos. A imaginação e a criatividade conseguiam ser sempre
inesgotáveis porque havia sempre imensas ideias novas para
explorar, novos mundos para descobrir e muitas atividades que se
podiam fazer em conjunto.

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N aquele momento, Ana estava a divertir-se com os
meninos, estavam todos sossegadinhos e sentadinhos
numa mesa grande e redonda, a fazerem desenhos na
bata dela e a colorirem-na. Era unicamente branca, sem mais nada
e todos acharam que assim não tinha graça nenhuma; por isso, Ana
decidiu lançar-lhes este desafio; estavam muito entusiasmados a
deixarem a sua imaginação voar, a fazerem os seus desenhos, a
pintarem e a conjugarem as cores.
Ana também decidiu tatuar a sua própria bata com um pequeno
desenho da sua autoria: uma mamã ursa, em tons de castanho,
muito fofinha, com um grande sorriso, abraçada ao seu filhote; os
meninos pediram-lhe tanto que ela não teve coragem de recusar e
estava a ficar o máximo.

A manhã ia a meio e quando menos esperavam, bateram com


insistência à porta da sala, interrompendo assim a concentração e o
sossego dentro da mesma. Num ápice, Ana e os seus doentinhos
preferidos ficaram em transe, de olhos postos na porta: ansiosos e
curiosos por descobrirem quem estava do outro lado. A expectativa
era enorme…
— Quem será?! Mandem entrar! — Disse-lhes Ana muito
depressa.
— Entre! Pode entrar! — Disseram eles ao mesmo tempo.
— Olá pessoal! Tudo bem por aqui? — Cumprimentou-os
Miguel espreitando pela porta com um grande sorriso e acabando
por entrar na sala alegre, divertido, bem-disposto e brincalhão
como de costume.

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— Olhem, quem chegou!!! — Disse Ana para os meninos
muito animada e sorridente.
— Mikas!!!! — Gritaram eles em conjunto, largando as
atividades que estavam a fazer, levantando-se rapidamente da
mesa: aonde estavam sentados e correndo em direção a ele
agarrando-o: uns nas mãos, outros pela cintura. Miguel quase nem
conseguia andar.
— Bem… mas que grande recepção! Parece que já não te vêm
há uma eternidade… — Disse-lhe ela embevecida.
— Podes crer! É por isso que isto tudo vale a pena, é tão bom
ser sempre recebido desta forma tão calorosa, ver a boa-disposição
deles… Nem imaginas!
— Eu sei, que sim! São estas pequenas coisas que fazem a
diferença e é por isto que estamos aqui! É isto que nos move e
realiza.
— Sem dúvida!
— Isto só mostra o quanto és especial para eles!
— Lá estás tu com a mania de que eu sou e tenho que ser sempre
mais especial do que tu. Tu também és especial para eles e penso
que isso seja fácil de se ver; uma vez que eles te adoram. Ai,
doutora Ana Salgado, assim não pode ser… — Brincou ele
roubando imensas gargalhadas aos meninos e sentando-se de
seguida no sofá. Alguns meninos sentaram-se ao seu colo;
enquanto outros fizeram uma roda à sua volta, sentando-se em
cima de almofadas, no chão.
— Só uma pergunta pequenina… Por aqui a esta hora? —
Perguntou-lhe ela intrigada, consultando o seu relógio de pulso.
— Eu sei que parece estranho; porque não é habitual eu vir cá…
— Por isso é que ficamos todos espantados; mas muito felizes
e satisfeitos — como sempre — por ver-te e pela tua inesperada
visita.
— Hoje a oficina só abre à tarde, porque houve um pequeno
curto-circuito e vai lá um eletricista, ao final da manhã, resolver o
problema, senão não consigo trabalhar.
— Que chatice! Mas vais ver que tudo se resolve!

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— Oh, claro que sim! Tomara que muitos problemas se
resolvessem tão facilmente como este.
— Podes crer!
— Sendo assim, aproveitei a escapadela e vim fazer-vos uma
visita.
— Oh… és um amor! Fizeste muito bem, nós, como já viste,
adoramos ter-te cá. Não é, meninos?
— Sim!!!!
Miguel olhou de relance para cima da mesa, onde se encontrava
a bata de Ana, a começar a ganhar cor.
— Então e por aqui o que é que se faz? — Perguntou ele
apontando para a mesa grande, redonda. — Já vi que andam numa
de trabalhos manuais… — Disse ele rindo-se.
— Ui! Por aqui faz-se sempre muita coisa, como tu bem sabes!
— Disse-lhe ela muito sorridente. — Desafiei-os a colorirem a
minha própria bata: era uma peça de roupa sem graça, sem cor e
sem estilo nenhum; por isso estamos numa espécie de oficina de
remodelações. Diz lá que não está a ficar muito mais bonita e
colorida? — Perguntou-lhe ela apontando para a sua bata.
Miguel levantou-se do sofá e aproximou-se da mesa para ver
melhor…
— Que ideia genial! Está a ficar muito gira. Já estou a ver que,
temos aqui muito bons artistas…
E os meninos olharam uns para os outros e ficaram por breves
momentos muito pensativos, a olharem fixamente para ele, tinham
acabado de ter uma grande ideia.
— Mikas, e se tu participasses connosco? — Convidaram-no
eles.
— Que excelente ideia, maltinha! — Exclamou Ana muito
entusiasmada, sorrindo para eles — De facto, está mesmo a faltar-
nos o nosso artista maior… Anda lá, Miguel, deixa também a tua
tatuagem artística na minha bata; tu tinhas um jeito enorme para
desenhar quando andávamos na escola e na adolescência também,
de certeza que não o perdeste ao fim deste tempo todo. — Insistiu
ela.

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— Mas era muito mais interessante se fossem só eles a
participar. Eu não quero, de forma alguma, destacar-me de vocês.
— Ai! Às vezes, és tão modesto! Não vais nada destacar-te,
cada um desenha e pinta à sua maneira; para além disso é normal
que uns desenhem e pintem melhor que outros. Faz parte… Acho
que é simples e muito fácil de entender. — Disse-lhe ela com um
ar surpreendido.
— Vá lá, Mikas, por favor, desenha e pinta connosco! —
Imploraram os meninos insistentemente.
— Não vais recusar o nosso convite, pois não? Olha que nunca
mais te perdoamos; eu também já fiz um desenho, como podes
ver… — Disse-lhe ela mostrando-lhe a sua mamã ursa — Eles
insistiram tanto comigo, para eu participar e tatuar também a
minha bata que não tive coragem de recusar. Agora só faltas tu!
Anda lá…
— Pronto, está bem! Convenceram-me; para além disso, eu
acho que era mesmo impossível recusar um convite tão tentador,
vindo de vocês. Mãos-á-obra, pessoal!!! — Disse Miguel
desabotoando e arregaçando as mangas da camisa, ele também não
tinha conseguido recusar o convite, sabia que eles iriam ficar muito
tristes se ele não participasse, pois gostavam imenso dele e que ele
participasse com eles, em todas as atividades que eles faziam.
— Boa!!!! — Disseram logo os meninos muito contentes e
entusiasmados, abraçando-se a ele.

A manhã passou rápido, mas foi bastante divertida, com todos


sentados à volta da mesa, a desenharem e a pintarem. As
gargalhadas não paravam e ouviam-se no serviço todo, o Miguel e
as suas piadas secas conquistavam toda a gente e não deixavam
ninguém indiferente, já para não falar das anedotas e das muitas
histórias que ele foi contando das suas aventuras de mota; fizeram
as delícias de todos, até de Ana. Era impossível resistir.
Bem perto da hora do almoço, a bata da doutora Ana estava
irreconhecível. Os artistas estavam estafados; mas o esforço tinha
valido bem a pena; Miguel tinha desenhado um pôr-do-sol à beira-
mar que estava magnífico.

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— Ficou cinco estrelas! Agora é só deixarmos secar… —
Comentou Miguel.
— Estamos todos de acordo, não estamos, meninos? —
Perguntou-lhes Ana.
— Sim!!!! — Disseram os meninos eufóricos.
— É unânime! — Disse ela a olhando para Miguel com um
grande sorriso. — Estamos mesmo todos de parabéns! Eu adoro o
resultado final.
— Eu acho, muito sinceramente, que nenhum de nós estava à
espera do contrário. — Disse-lhe Miguel sorrindo.
— Vai ser, sem dúvida, a bata mais gira original de todo o
hospital! E tenho a certeza que vai fazer imenso furor e até
desconfio que as minhas colegas vão todas querer ter uma igual…
— Disse-lhe ela sorridente, piscando-lhes o olho.
— O Mikas e a doutora Ana são os maiores! — Disseram os
meninos de seguida, muito felizes, abraçando-os.
— Ai a minha vida! Devo estar corado como um tomate! —
Brincou Miguel muito sorridente; mas ao mesmo tempo tímido e
envergonhado.
Os meninos desataram logo a rir-se à gargalhada.
— E eu! Eles deixam-me sempre nostálgica com a sua
honestidade e sinceridade. — Disse Ana comovida.
A seguir, almoçaram, descansaram e depois regressaram à sala
de atividades para a chamada Hora do Conto, em que Ana e
Miguel lhes contavam sempre uma boa história que no fim lhes
transmitisse uma grande mensagem.
— E que tal se lhes contássemos a nossa história? O que é que
tu achas? — Sussurrou ele a Ana.
— Achas que é boa ideia? — Perguntou-lhe ela pensativa.
— Acho! Eles adoram de histórias; por isso nada melhor do que
uma história em que têm os próprios protagonistas à sua frente.
Vão adorar, não duvides…
— Sempre quero ver isso… — Anuiu ela expectante; mas algo
renitente e com certas dúvidas.
Entretanto, chamaram a atenção dos meninos:

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— Maltinha, prestem atenção, por favor: vamos à Hora do
Conto? — Perguntou Miguel.
— Vamos!!!! — Gritaram eles, dirigindo-se, numa correria
desenfreada, para o cantinho da Hora do conto.
— Com calma! Sem correr! Não vale a pena estarem a
atropelarem-se, porque há espaço para todos.
— Preparados para mais uma história? — Perguntou-lhes Ana.
— Claro!!!!
Os meninos mostravam-se muito concentrados e não
conseguiam desviar o olhar de Miguel e da doutora Ana por um
segundo que fosse; começava a notar-se uma certa agitação neles,
a curiosidade adensava-se… E de repente, fez-se silêncio na sala.
— ‘Bora lá então! Façam a rodinha do costume, sentem-se,
acomodem-se nas almofadas e preparem-se para mais uma viagem
especial.
— A viagem de hoje vai ser mesmo muito especial! Não vão
querer perder! — Disse-lhes Ana sorrindo e piscando-lhes o olho.
— Hoje, eu e a nossa doutora preferida vamos contar-vos uma
história muito especial!
— Que fixe! E é sobre o quê?! — Perguntou Juliana.
— Esta é a nossa história de amizade e de vida também que nós
queremos partilhar convosco!
— Uau! Vamos a isso! — Pediram eles entusiasmados e
eufóricos — Então, estão à espera de quê para começarem?!
— Espero que gostem e que vos faça pensar, no futuro, sobre a
importância da amizade e de sabermos aceitar as pessoas tal como
elas são. — Alertou-os Miguel.
— Nunca se esqueçam que a amizade é essencial para a nossa
vida e para sermos melhores pessoas; por isso, façam por se rodear
sempre de bons amigos: aqueles que vos querem bem, que vos
respeitam, que vos apoiam, que vos aconselham, que estão
incondicionalmente ao vosso lado e que também vos alertam
quando estão na eminência de errar. Esses são os verdadeiros
grandes amigos, aqueles que devemos preservar, manter e cuidar.
E lembrem-se também que nunca devem julgar os vossos amigos

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por aquilo que são, vestem ou têm; cada um é como é e devemos
aceitar as pessoas com as suas diferenças, defeitos e virtudes.
Os meninos ouviam-na com muita atenção.
— Mikas, tu e a doutora Ana, já se conhecem, há muito tempo?
— Perguntaram-lhes eles curiosos e pensativos.
— Para fazerem uma pequena ideia, nós conhecemo-nos desde
a vossa idade! — Disse-lhes ele sorridente.
— Isso é mesmo muito tempo, não é?
— É, pois! Na verdade, já somos amigos há mais de 20 anos.
— E ao fim de todo este tempo continuam a ser amigos?
— Claro que sim! Porque não haveríamos de continuar a ser
amigos? Felizmente, a amizade é das poucas coisas que não
envelhece com o passar do tempo, como acontece com as pessoas;
aliás, quanto mais velha ela é, melhor se torna.
— A sério?! E vão continuar a ser amigos para sempre?
— Eu espero bem que sim! — Disse Miguel de ar feliz.
— E eu também! Porque o Mikas é muito especial para mim!
— Se há amiga que eu não quero nem posso perder é a nossa
doutora preferida!
— É sempre triste quando, nós perdemos amizades de longa
data. Ficamos a sentir-nos como se estivéssemos vazios, como se
nos faltasse alguma coisa: uma espécie de pedaço de nós. Afinal de
contas, deixamos de ter alguém especial permanentemente ao
nosso lado.
— Vamos então à história? — Propôs Ana.
— ‘Bora!!!!

Miguel e Ana começaram então a contar a sua história.

E tudo começou assim…

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28
T udo fez por se iniciar da forma mais inesperada,
improvável e inocente, precisamente como uma amizade
deve começar: ao acaso, à descoberta e sem esperar nada
em troca.
O mês de Junho acabava de chegar: quente e solarengo como
seria de esperar, pedindo roupas: frescas e leves, sorrisos em dobro,
boa-disposição e muita diversão. As aulas estavam prestes a
terminar para darem lugar às tão desejadas férias de Verão, já se
sentia no ar o aroma a praia, calor, gelados e mar.
Com apenas dez anos, uns imponentes olhos azuis, cabelos
longos, louros e de incontáveis caracóis, herdados da mãe e a viver
em plena idade da inocência; Ana adorava esta época do ano,
principalmente por poder contar aos seus colegas, como eram as
suas férias de Verão e pelo tão desejado regresso à quinta dos avós
maternos: António e Conceição. Não continha o entusiasmo e a
forte excitação para que tão aguardado dia chegasse: o dia em que
viajaria com a sua família para a Quinta da Juventude, em pleno
Alentejo.
Era paragem obrigatória, em plenos meses de Verão, para
descansar, descontrair, colmatar saudades da natureza e da família
e recarregar baterias. Naquele ano, as férias iam ser ainda mais
especiais, pois era a primeira vez que iam passá-las como uma
família de quatro elementos.
Joana tinha trinta e três anos, era uma jovem mulher que não
conseguia passar despercebida: bonita, atraente, esbelta e com uma
beleza tropical peculiar: olhos grandes, de um azulão conquistador,
cabelos compridos, ondulados e louros: como os de Ana e um
corpo bem cuidado: de cintura fina e recheado de curvas. Era
licenciada em Medicina há cinco anos e especialista em Pediatra
há três anos: uma profissão que amava imenso e que a completava
e realizava em toda a sua plenitude; já que, se lembrava de ter,

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desde sempre, uma enorme paixão por crianças. Algo que acabou
por passar inevitavelmente para Ana, que parecia partilhar do
mesmo gosto da mãe e do forte desejo de vir a exercer a mesma
profissão que ela quando fosse grande.
Em Julho, do ano anterior, em plenas férias de Verão, no
Alentejo, tinha descoberto que estava grávida do seu segundo filho
e que desta vez iria ser um rapaz; a notícia foi recebida com euforia.
Agora, um ano depois, os avós maternos iam, finalmente, conhecer
o novo neto e membro da família e estavam todos muito ansiosos
e felizes.

Quanto ao Pedro era um homem de trinta e cinco anos,


licenciado em gestão financeira há sete anos e bancário de
profissão há cinco anos; pois desde muito cedo que se tinha
deixado fascinar e conquistar pelo vasto universo dos números.
Recordava-se, perfeitamente, de adorar tudo o que tivesse a ver
com a disciplina de Matemática e Física.
Tinha olhos de um castanho profundo e uma aparência:
cuidada, robusta e bastante corpulenta; pois ele era, um ávido
adepto de desporto, de passeios e actividades ao ar livre e de levar
a vida como se de uma aventura se tratasse. Destacava-se a sua
personalidade aventureira, descontraída, bem-humorada e
divertida.
A família Salgado morava, numa modesta vivenda na cidade
que lhes havia conquistado, o coração: Lisboa: pela agitação diária,
pelas vistas, pelos jardins, pela gastronomia típica, pelos muitos
museus, pelos recantos pitorescos, etc. Ana era uma aficionada por
tudo o que tivesse a ver com o mar e a natureza; por isso, se havia
sítio que ela adorava era o Oceanário, em pleno Parque das Nações.
Se pudesse era capaz de ficar lá o dia inteiro a observar os peixes,
os leões-marinhos, os tubarões e todas as outras espécies de
animais que ali se podiam encontrar; ficava sempre fascinada. O
Jardim Botânico e o Jardim Zoológico eram outros sítios da capital
que muito a deslumbravam.
Ana tinha uma vitalidade enorme e uma personalidade:
extremamente alegre, extrovertida e bastante sociável: fazia

30
amigos com muita facilidade. Gostava imenso de aprender e
descobrir coisas novas; por isso, adorava ir à escola. Um dos seus
passatempos predilectos era andar de baloiço, adorava sentir a sua
longa cabeleira encaracolada a esvoaçar ao vento, dizia que se
sentia livre como um pássaro.
Outra das coisas que Ana também gostava muito era de
convidar os seus amigos para uma tarde bem passada na sua casa
e faziam sempre tantas coisas giras: brincavam na piscina, jogavam
ao elástico, à macaca, à apanhada e às escondidas, ou aproveitavam
para ver um dos filmes preferidos de Ana. A meio da tarde, quando
já se sentiam cansados, Joana preparava-lhes um delicioso lanche,
junto à piscina, com tudo aquilo que eles mais gostavam.
Por fim, ela também adorava o campo e ajudar os avós em todas
as tarefas da quinta, mesmo sabendo que o dia começava bem
cedo: era pela madrugada bem fresca que se trabalhava melhor,
segundo palavras do avô. Havia sempre imensas coisas para fazer;
mas ela não se importava nada de acordar cedo, ao contrário do que
costumava acontecer quando tinha escola, era sempre um castigo
para se levantar. Apesar da idade, ela se deixava ficar para atrás:
era inteligente, esperta, perspicaz e bastante desenrascada; por
vezes, também um pouco teimosa e refilona. Mesmo nas tarefas
mais complicadas e exigentes, ela mostrava ser bem capaz de
ajudar, sem precisar de auxílio ou até mesmo da supervisão de um
adulto.
Apreciava o contacto com os animais e com a natureza, assim
como a praia; perto da quinta existia uma pequena praia fluvial,
para onde costumava ir, de vez em quando, com os pais e o irmão,
para umas verdadeiras tardes de sol bem divertidas. Vestida com o
seu biquíni preferido e um simples vestido de praia, óculos de sol
postos, um chapéu a combinar e de saco de praia ao ombro: com
todos os seus brinquedos preferidos. Aquelas eram tardes
recheadas de banhos no rio, jogos na areia e muitos passeios.
Alguns dias depois, quando regressarem a casa, após as últimas
férias, Ana decidiu confidenciar algo ao pai:

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— Pai, porque é que não há muitos meninos da minha idade,
com quem eu possa brincar e divertir-me, perto da quinta? —
Perguntou-lhe ela durante um jantar.
— Sabes que antes de existir a quinta, havia uma pista de
corridas para cavalos. Essa pista sempre esteve localizada na
aldeia; quando os avós decidiram transformar a pista de corridas
numa Escola de Hipismo e mandaram construir a quinta, não
quiseram mudá-la de lugar. Infelizmente, as pessoas que viviam na
aldeia foram envelhecendo, os filhos delas tiveram os seus filhos;
mas não quiseram permanecer lá. Daí haver muito poucas crianças.
— Eu gosto imenso de ajudar os avós, divirto-me sempre
muito; mas, por vezes também sinto falta de ter alguém com quem
me divertir: com quem correr atrás do Faísca e atirar-lhe a bola,
com quem andar de bicicleta e saltar à corda, com quem fazer um
puzzle ou com quem fazer castelos na areia. O avô costuma fazer
isto tudo (e muito mais) comigo; mas nunca é a mesma coisa.
— Eu percebo! Mas agora já tens o João para brincar.
— Oh! Ele ainda é demasiado pequeno para andar atrás de
mim…
— Vais ver que ainda vão divertir-se muito, juntos.
— Eu preferia alguém tão crescido como eu…
— Quem sabe, possas ter sorte!
— Espero que sim!

Para Ana, depois das aulas terminarem, os dias que se seguiam


custavam sempre a passar; pois ela não via a hora de poder
começar a fazer as malas para ir para quinta dos avós; enquanto o
mais desejado dia não chegava, ela ia juntando a um canto, do seu
quarto, as inúmeras coisas que queria levar, não podia esquecer-se
de nada. E todos os anos se repetia sempre o mesmo: ela queria
sempre levar muitas coisas. Não poderia faltar a companheira
preferida para os passeios: a bicicleta cor-de-rosa, que era mesmo
indispensável nas férias: para as longas tardes solarengas a
percorrer a natureza e os campos de trigo. As bonecas para aquelas
tardes de muito cansaço, depois de andar um dia inteiro, a participar
em todas as actividades com os avós. Os brinquedos da praia, para

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as manhãs e os fins de tarde à beira-rio, a fazer construções e os
mais diversos castelos na areia. Os livros com as histórias de
encantar preferidas, para poder lê-las com a mãe, antes de
adormecer e por fim, os filmes com os seus desenhos-animados
preferidos para as sessões de cinema depois do jantar. O conteúdo
da mala do carro: eram na grande maioria coisas de Ana; muitas
vezes a tarefa tornava-se complicada; porque o espaço era cada vez
menor e à última da hora apareciam sempre mais coisas para levar.
Na véspera da partida, a confusão instalava-se e era uma
azáfama em casa: fazer as malas, carregar o carro com tudo o que
era necessário e deixar tudo arrumado. A excitação e a euforia,
facilmente, tomavam conta de todos; Ana era sempre a mais
entusiasta. As saudades que sentia dos avós apertavam e a vontade
de regressar à quinta era muita.
Todos adoravam a vida no campo, as rotinas típicas e o próprio
quebrar da rotina habitual, o ar puro, o contacto directo com a mãe-
natureza e os animais, e claro todo o sentimento de liberdade
inerente. Facilmente se deliciavam com tudo o que os rodeava; por
isso, as expectativas para mais umas férias inesquecíveis estavam
nitidamente em alta. Ana mostrava-se ansiosa por poder rever o
Faísca e a Faneca e por poder montar na sua égua branca. E estava
cheia de curiosidade para conhecer as novas actividades que o avô
lhe iria propor, todos os anos, o avô lhe apresentava actividades
inéditas para ela desenvolver e os novos desafios que aquelas férias
lhe iriam trazer e que surpresas a esperariam.
Também estava desejosa de poder voltar a provar os bolos e as
deliciosas compotas caseiras da avó. Mal sentia o cheiro espalhado
pela cozinha, ficava logo com água na boca e muito curiosa para
descobrir, que misturas de sabores a avó tinha decidido
experimentar; pois ela adorava misturar o doce com o salgado,
especiarias exóticas entre outras coisas.
E na sua cabeça pairavam inúmeras questões ainda sem
resposta:

Haveria animais recentes na quinta? Como estaria a sua égua?


E a Faneca e o Faísca?

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Mal podia esperar por encontrar respostas para todas estas
inusitadas questões…

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N o dia da partida (Sexta-feira), todos fizeram por acordar
cedo, Ana não continha a euforia e excitação por poder
voltar à quinta dos avós para mais umas férias no campo
e ao ar livre. A viagem até à quinta foi rápida e correu
bastante bem, debaixo de um sol abrasador: aproveitaram para
ouvir música variada, para partilhar histórias e para conversar sobre
os mais diversos temas. Na hora de almoço, pelo final da manhã,
dirigiram-se a um parque verde, onde fizeram um piquenique,
depois passearam, aproveitaram a sombra das árvores presentes.
Ana e João brincaram, depois aproveitaram para descansar e pelo
início da tarde voltaram a retomar a viagem.
Chegaram à quinta, já a tarde ia a meio. Os avós já os esperavam
ansiosamente e com um banquete recheado dos mais diversos
petiscos, preparados sempre com tudo o que era produzido na
quinta. Quando passavam férias na quinta, adoravam usufruir dos
muitos produtos biológicos que lá se produziam: as várias frutas e
legumes cultivadas pelos avós, o queijo que era feito a partir do
leite das vacas e ovelhas da quinta; o pão feito água e farinha
produzidos na quinta; os enchidos feitos com a carne produzida
apenas na quinta; o vinho produzido a partir das castas das
melhores uvas colhidas das videiras tratadas pelo avô.
O azeite de Rosas era considerado um dos melhores da Europa
porque a sua qualidade, a sua textura e o seu sabor eram tão suaves
e tão leves, que quase pareciam as pétalas de uma rosa. As doces e
delicadas azeitonas eram colhidas das várias oliveiras da quinta,
que eram tratadas com todo o cuidado para que as azeitonas fossem
sempre da melhor qualidade. Depois eram vendidas, pelo avô, a
empresas ou pessoas particulares que produziam o azeite e o
vendiam à quinta.

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E o folar, salgado ou doce, feito com os ovos caseiros (retirados
das galinhas poedeiras criadas na quinta), e a carne originada do
abate dos animais que eram criados na quinta, apenas com
produtos naturais e sem substâncias para fazê-los engordar. O avô
António não gostava nada de usar esse tipo de coisas, dizia
constantemente que a carne perdia o seu sabor e que só faziam mal
à saúde: dos animais e das pessoas, levando-as a não quererem
consumir a carne. Hoje em dia, as pessoas faziam por ter cada vez
mais cuidado com a sua alimentação, procuravam cada vez mais
alimentos saudáveis e biológicos, que não tivessem muitos
químicos; pois, segundo o avô, o mal de muitos problemas de
saúde advinha dos químicos dos alimentos.
Tudo aquilo que era produzido na quinta era também vendido
aos vizinhos, às pessoas que visitavam a quinta e a outras pessoas
que eram atraídas à quinta pela qualidade dos seus produtos e pela
informação positiva que lhes chegava de pessoas conhecidas. Para
além disso, a quinta também fornecia algumas mercearias da vila
mais próxima; assim como, grandes superfícies comerciais.
A família Salgado estacionou o carro logo à entrada da quinta e
já os avós surgiam todos entusiasmados, de braços abertos e de
sorriso estampado no rosto prontos para os receberem para mais
uma bela temporada de férias, bem divertida e em muito boa
companhia.
— Avó!!! — Gritou logo Ana correndo ao seu encontro.
— Olá, querida! Sejam bem-vindos! Fizeram boa viagem? —
Perguntou, cumprimentando com beijinhos e abraços.
Há um ano que não se viam e ficaram admiradíssimos com o
grande crescimento da neta mais velha, que já estava no quinto ano
de escolaridade e que estava cada vez mais crescida.
— Apesar do calor intenso, correu tudo bem, obrigada! —
Agradeceram eles, carregando nos braços a alcofa onde o pequeno
João dormia.
— Ainda bem, isso é que interessa! E o nosso netinho mais
novo como é que está?
— Já está um matulão com apenas um mês… — Anuiu Joana
de felicidade estampada no rosto.

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— Podemos espreitar? — Pediram os avós.
— Claro que sim!
Os avós aproximaram-se da alcofa, de ar apaixonado e bastante
embevecido.
— Que bonito que ele é e que grande que já está. É a cara da
mãe e herdou a farta cabeleira acastanhada do pai. — Disse
prontamente a avó.
— E tenho a certeza que vai herdar do avô, a paixão pelo campo
e pela natureza. Estou ansioso que ele cresça para poder mostrar-
lhe a quinta toda.
— Da maneira como eles crescem bem depressa, não há-de
faltar muito… — Argumentou Pedro sorridente.
Joana e Pedro ficaram embasbacados e comprometidos quando
viram a mesa farta que os avós tinham preparado para os receber.
— Oh! Meu Deus! Não era preciso terem tido tanto trabalho, a
fazerem isto tudo só para nos receberem…
— Oh! Já estão fartos de saber que nós somos assim; gostamos
sempre de vos receber bem, quando nos visitam. Nós gostamos
muito de vos ter cá, e isto é tudo do bom e do melhor, não
encontram coisas tão boas, como aqui e depois não dá trabalho
nenhum, é um prazer enorme.
— Nós agradecemos imenso! Também gostamos muito de
passar as férias convosco; os miúdos precisam mesmo de apanhar
ar puro, de se divertirem um pouco e de terem uns dias mais
calmos. A vida na cidade é bastante agitada: sempre a correr de um
lado para outro, não dá para sossegar muito e o contacto com a
natureza é importante e faz-nos bem a todos. E na cidade é muito
mais difícil de conseguir isso: eles poderem andar a brincar na rua
à vontade, como acontece aqui. Há sempre um perigo à espreita,
há muita poluição, carros sempre a circular de um lado para o outro,
a estrada, etc, e depois nós trabalhamos durante a semana, só ao
fim de semana é que temos um bocadinho de tempo para
brincarmos e passearmos ao ar livre todos juntos. Aqui, é muito
diferente, podemos ir até à praia, podemos dar longos passeios,
podemos jogar à bola, andar de bicicleta, correr pelos campos,
misturar-nos com os animais. Descobrir a natureza, sentir o ar puro

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e o cheiro dos frutos e das flores. É muito bom! — Disse Pedro
com um ar satisfeito.
— Os avós esboçaram um grande sorriso… — A Ana gosta
muito de ter espaço para brincar e de actividades ao ar livre: poder
passear, andar de bicicleta, correr, saltar à corda, contactar com a
natureza e com os animais: pelos quais sempre teve uma forte
paixão. E aqui, tem excelentes condições para fazer isso tudo, até
para apanhar sol e fazer um pouco de praia. — Disse Joana
satisfeita.
— Ficamos muito felizes por saber isso. Nós gostamos sempre
imenso quando vocês nos visitam, passamos o ano quase todo, aqui
sozinhos e vocês trazem vida à nossa casa, fazem-nos companhia.
— Disseram os avós.
— Nós também gostamos muito de estar cá! — Disseram Pedro
e Joana com um grande sorriso.
— Mas venham, venham! Vamos entrando, não vamos estar
aqui à porta a tarde toda! — Disseram os avós.
— Nós vamos só descarregar algumas coisas do carro e já
vamos ter convosco! — Disse Pedro.
— Sendo assim, deixem que eu levo o pequeno João para
dentro, para não andarem carregados. — Propôs a avó.
— Querida, tu já foste conhecer o Picasso? — Perguntou o avô
a Ana.
— Quem é o Picasso?! Há animais novos na quinta? —
Perguntou-lhe ela pensativa, mas expectante e curiosa.
— O avô sorriu perante o enorme entusiasmo da neta — De
facto nós temos um novo membro da família: chama-se Picasso e
é um papagaio falante.
— Uau! Tu tens um papagaio falante, avô?! — Disse-lhe ela
espantada.
— Tenho, pois! Está connosco há apenas dois meses!
— Que fixe! E fala mesmo como dizem?
— Acho que vais ter que, ser tu mesma, a descobrir isso; mas,
na verdade, posso adiantar-te que na maior parte do tempo, ele
parece mais uma gralha! — Disse o avô rindo-se — Fala que se
farta; por isso é melhor tu não lhe dares muita conversa porque

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senão ele nunca mais se cala. Para além disso, adora gozar com as
pessoas e imitar tudo o que elas dizem, não há mesmo paciência.
Ana sorriu, estava cada vez mais desconfiada e curiosa acerca
de Picasso; por isso, quando menos esperavam já tinha
desaparecido, desatando a correr em direção à casa dos avós para
ir à marquise conhecer o papagaio falante.
— Eu ajudo-vos! — Disse o avô.

A casa de António e Conceição ficava localizada numa pequena


aldeia muito tradicional, em pleno Alentejo, onde todos faziam por
se ajudar uns aos outros, onde se trocava um pouco de tudo do que
havia em casa, até os animais. Era uma casa feita de pedra, bastante
rústica, constituída por rés-do-chão e primeiro andar: no rés-do-
chão podia encontrar-se uma casa de banho simples e pequena;
uma cozinha grande com um escano; uma lareira grande para os
Invernos frios e não poderiam faltar os tradicionais potes de barro
preto para fazer os deliciosos pratos, que só a avó São sabia
preparar e fazer.
Na sala, que ficava a paredes meias com a cozinha, os avós
prepararam um cantinho muito especial para Ana: uma espécie de
esconderijo, em forma de quarto, só para ela; a casa era pequena e
como só havia dois quartos e Ana era a menina dos avós, eles
quiseram fazer-lhe um cantinho especial com tudo o que uma
menina de dez anos deve e gosta de ter. A sala era o único espaço
mais amplo da casa onde era possível fazê-lo.
No primeiro andar, podiam encontrar-se dois quartos: o quarto
dos avós e o quarto destinado às visitas, uma casa de banho e
também uma pequena divisão que servia para fazer algumas
arrumações: era como se fosse uma espécie de sótão. Ana adorava
passar lá horas, entre baús e caixotes antigos, à descoberta dos
segredos escondidos da quinta e da vida dos avós maternos. Por
vezes encontrava álbuns de fotografias do tempo em que os avós e
a mãe ainda eram jovens e ela ainda não era nascida, deliciava-se a
ver as fotografias e como era cada vez mais parecida com Joana.
Adorava saber mais sobre o seu passado e o passado da sua
família: o que faziam, o que vestiam, o que comiam e como era a

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vida naquela altura. Era uma criança bastante curiosa; no entanto,
aquilo que mais a fascinava eram os livros: paixão herdada do pai,
que passava grande parte do tempo a ler. O sótão guardava imensos
livros antigos sobre os mais diversos temas: agricultura,
jardinagem, hipismo, sementeira, decoração entre outros. Ana
deslumbrava-se sempre com a farta quantidade de coisas que
aqueles livros ensinavam. Para além dos álbuns de fotografias e
dos livros, havia ainda uma coisa que Ana gostava muito: as
colecções do avô. Era naquele sótão, longe dos olhares dos mais
curiosos e hiperativos que ele guardava algumas das suas mais
preciosas colecções e eram tantas.
Tudo tinha começado com um simples selo do correio. A
paixão por aquele quadradinho foi tanta que sempre que viajava
tentava adquirir um selo de cada país que visitava e ao longo da
vida visitou muitos. Depois dos selos surgiram os cavalos e que
grande colecção que ele já tinha: cavalos de todos os tamanhos e
feitos nos mais diversos materiais: corda, madeira, cristal, metal,
papel e até mesmo borracha. Ele gostava de deixar fluir a
imaginação e de se deixar levar pelas horas. Também havia, no
sótão, o clássico cavalo de pau onde Ana adorava balançar-se
quando era mais pequena, não há muito tempo, de certeza absoluta
que o pequeno João seria o próximo a maravilhar-se.
O hipismo estava bastante presente na vida de António e de
Conceição, tanto na sua humilde casa como na zona turística da
quinta. Havia imensas referências àquela arte: fotografias, pinturas
de cavalos ou competições de cavalos, realizadas no longínquo
tempo em que existia, a pista de corridas naquele espaço.
Esculturas de cavalos e figuras do mesmo, espalhadas em cada
canto e esquina.
Estas eram as colecções preferidas do avô e aquelas que ele
fazia por estimar com mais afinco; por seu lado, a avó São não era
senhora de ter paciência para fazer colecções. Mesmo assim, havia
um pequeno segredo que ela guardava muito bem guardado
consigo, a enorme paixão que nutria por bonecas de porcelana; não
sabia explicar muito bem o que a fazia encantar-se por aquelas
bonecas, sabia e sentia que para ela tinham um encanto e um brilho

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especiais. Naquele sótão guardava algumas, que tinha consigo
desde os tempos em que era uma catraia e não tinha nada mais
com que pudesse brincar, não gostava de ver aquela sua fixação
como uma colecção; mas era feliz junto daquelas bonecas e Ana
adorava divertir-se com elas às escondidas.
A quinta também tinha uma zona turística, que tinha mais luxos
que a casa simples dos avós; o local perfeito para alojar Ana e a sua
família; mas os avós tinham sempre imenso gosto e prazer em
recebê-los na sua humilde casa, apesar de pequena havia sempre
espaço para todos. Joana e Pedro não se importavam; porque não
apreciavam grandes luxos nas férias; para eles o mais importante
era o descanso, o convívio e desfrutarem em pleno daqueles dias
de descanso para relaxarem, para quebrarem a rotina e para
fazerem algumas das coisas que mais gostavam, e que não
conseguiam fazer durante o resto do ano, sem terem que pensar em
horas. Davam mais valor à simplicidade e aos pormenores básicos
e pequenos da vida.
Depois de uma viagem tão cansativa, debaixo de um dia de sol
intenso, de descarregarem as malas e reorganizarem tudo; nada
melhor do que um delicioso lanche ajantarado: sentaram-se todos
à mesa, muito descontraídos e animados e as conversas circularam
naturalmente. Os assuntos foram variados: sobre a escola, o
trabalho, o dia-a-dia e como andavam as coisas pela capital; Ana
fartou-se de contar histórias sobre os amigos, brincadeiras que ela
fazia na escola, peripécias com o irmão, os brinquedos que tinha
trazido para as férias e o que queria fazer na quinta. Uma verdadeira
tagarela, não se calou um bocadinho, como costumavam dizer os
mais antigos: Parecia um rádio!
No fim do serão, que se prolongou até bastante tarde: o sol já
tinha desaparecido, a noite já caía e a lua e as estrelas já queriam
fazer-se notar; Joana deitou os dois pequenos traquinas, enquanto
Pedro ajudava a arrumar tudo. Algum tempo depois Joana
apareceu na cozinha, depois de tudo arrumado, os avós também já
se tinham ido deitar, porque madrugavam cedo; enquanto os pais
de Ana e João foram sentar-se no jardim. Abraçados, a sentirem a
brisa da noite e a aproveitarem o facto de estarem um pouco

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sozinhos e de estar tudo mergulhado no silêncio para namorarem
um bocadinho. Na rotina do dia-a-dia, na cidade de Lisboa — onde
viviam — com a azáfama de tudo o que tinham para fazer, das
responsabilidades no trabalho e com os filhos, as tarefas
domésticas, etc… chegavam ao fim do dia muito cansados e não
sobrava grande tempo para desfrutarem só os dois.
— Que bom, podermos tirar este bocadinho só para nós! —
Desabafou Pedro de ar apaixonado, abraçado a Joana.
— Sem dúvida! Acho que estávamos mesmo a precisar!
— Já nem me lembro da última vez que estivemos assim,
apenas os dois, a namorar e a aproveitar esta paz, este calor e a
beleza de uma noite estrelada de Verão…
— Em Lisboa, temos uma vida tão ocupada e recheada de
compromissos que por vezes nem nos lembramos de fazer uma
pausa para aproveitar e desfrutar das coisas mais simples e básicas.
Vivemos demasiado focados nas rotinas, no trabalho e nos
objectivos que temos que atingir.
— E sermos pais também nos absorve por completo, chego à
conclusão que ser pai é uma tarefa bem árdua; pois por um lado
rouba-nos muito do nosso precioso tempo: tempo que poderíamos
aproveitar só os dois; mas outro lado, oferece-nos imensas coisas
inesquecíveis e enriquece-nos como pessoas e como ser humanos.
— Concordar plenamente! Sinceramente, eu acho que já não
sabia viver sem aqueles dois pestinhas.
— Também eu, amor!
— Tenho andado a pensar que um dia destes, nós temos que
planear uma curta viagem a dois. O que achas?
— Excelente ideia! Gostava imenso; pois, desde que a Ana
nasceu nunca mais viajamos só os dois e agora com o João tão
pequeno, mais difícil se torna. Vai ser bom para voltar aos nossos
bons velhos tempos de namoro.
— Penso que não haja nada, nesta vida, que não se possa
contornar; afinal de contas, não é por acaso que os avós são
considerados os nossos segundos pais.
— Joana sorriu apaixonada — Já pensaste num possível
destino?

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— Acho que sim! Como sempre disseste que gostavas muito
de países exóticos, pensei numa visita à Austrália, ou a Marrocos
ou até ao Dubai.
— Hum… Confesso que tenho uma enorme curiosidade de
conhecer o país dos cangurus.
— Bem, sendo assim, quando o Joãozinho fizer um ano
começamos a planear a nossa segunda lua-de-mel. — Disse-lhe
Pedro sorridente e entusiasmado.
— Não posso gostar mais da ideia! Vai ser uma viagem
fantástica!
— Podes crer! Vai ser a viagem perfeita para celebrarmos o
nosso amor e para aproveitarmos e desfrutarmos da vida.

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A manhecia na bela Quinta da Juventude; a casa
despertava, como era hábito, com o cantar do galo
Zecarias e com o chilrear dos pássaros nas árvores
circundantes, aquela sinfonia pela manhã tão típica do campo era
uma verdadeira delícia: vida campestre, que deixava qualquer um
bem-disposto, a manhã ainda se sentia fresca e o sol mal espreitava
no horizonte.
Na cozinha sentia-se já a azáfama de mais um dia; a avó São já
tinha saído para o jardim para tratar das suas rosas, pelo fresco das
madrugadas e ainda ia passar na horta para apanhar os legumes
mais tenros para fazer a sopa. O avô António encontrava-se ainda
a tomar o pequeno-almoço, com o jornal da aldeia aberto, em cima
da mesa, para poder esfolheá-lo, enquanto comia: café com leite e
uma torrada de pão centeio caseiro com manteiga era o seu
pequeno-almoço habitual; para saber as últimas novidades.
Havia leite e café bem quentinhos, pão, queijo de cabra e
ovelha, manteiga, iogurtes, compotas caseiras, mel e um leve
cheirinho, a torradas e a bolo de laranja acabadinho de fazer. Hoje,
o avô tinha-se levantado bem cedo e tinha ido à pastelaria comprar
alguns bolos sortidos, com um aspeto delicioso. Era um dia
diferente e especial, havia visitas em casa e por isso eles gostavam
de ter sempre tudo do bom e do melhor para oferecer.
O resto da família ainda dormia, depois de quase um ano inteiro
a acordarem cedo nada melhor para começar as férias que
aproveitar para pôr as horas de sono em dia. Já Ana acordou bem
cedo; os avós já tinham saído, a vida na quinta não podia parar. Ela
ficou muito zangada por não ter conseguido acordar mais cedo, e
pelo facto de o avô não ter esperado por ela. Queria mesmo ter
acompanhado os avós desde logo; apressou-se o mais que pode,

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vestiu-se muito rapidamente, calçou-se num piscar de olhos, tomou
o pequeno-almoço e saiu a correr, para ir ao carro dos pais buscar
a bicicleta e ir à procura dos avós.
Num ápice, ela encontrou a avó que ainda andava pela horta,
ocupada com a rega, antes do calor apertar, e com a apanha dos
legumes; enquanto trauteava uma das suas músicas preferidas dos
Discos Pedidos e perguntou logo, pelo avô:
— Olá, avó! Bom dia! — Cumprimentou-a ela, acabada de
chegar na sua bicicleta, dando-lhe dois beijinhos.
— Olá minha querida, bom dia! Já acordada, tão cedo?
— Sim! Hoje, eu e o avô temos muito para fazer; mas ele nem
sequer esperou por mim, quando eu acordei já se tinha ido embora.
— Disse ela muito triste e desanimada — Sabes aonde é que ele
está?
— Muito trabalhadores que vocês estão... O avô já anda pelo
estábulo a tratar dos cavalos! — Disse a avó de sorriso de orelha a
orelha, piscando-lhe o olho e continuando na apanha dos seus
legumes.

Ana na sua inocência de criança pousou, desde logo, a bicicleta


e já não voltou a falar mais com a avó. Desatou a correr o mais
depressa que pôde até ao estábulo, que ficava a escassos metros da
horta.
— Não corras tanto! Vai com cuidado... Olha que cais, filha. —
Gritava e recomendava a avó; mas Ana já ia longe e apesar dos
apelos e preocupações da avó, o mais provável era que ela não
tivesse prestado atenção a nada do que ela lhe havia dito e
recomendado.
Outro dos grandes segredos da Quinta da Juventude é que os
avós de Ana e de João também faziam criação de cavalos e de
éguas; antigamente, quando a quinta ainda não existia, havia uma
pista de hipismo. Treinavam-se naquela pista alguns dos melhores
cavalos da Europa e do mundo, a pista dividia-se em campo de
treinos e pista de hipismo. Realizavam-se naquela pista, corridas
com os cavaleiros mais prestigiados do mundo, que eram uma das
grandes atrações da época e que atraíam pessoas das mais variadas

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classes sociais, que vestiam as suas melhores roupas, para uma
tarde a apostar e a ver as corridas. A grande maioria das pessoas
presentes eram, essencialmente, homens; mas também havia
algumas senhoras que iam sozinhas com as suas criadas, ou a
acompanharem os maridos. As crianças, não tinham lugar neste
género de rumarias.
E havia também, uma famosa escola de hipismo onde se
trabalhava o contacto com estes animais: tão fascinantes quanto
sensíveis e algo exigentes e se ensinava a andar de cavalo. Mais
tarde, e porque os avós eram apaixonados pela vida campestre, por
atividades ao ar livre, pelo sossego e pelo contacto com a natureza
e com os animais, juntaram o útil ao agradável e transformaram a
pista de hipismo e o centro de treinos numa grande quinta de
turismo rural, que se mantinha até aos dias de hoje.
Quando a Ana nasceu, os avós decidiram comprar-lhe uma
égua branca, para a neta poder montar quando fosse crescida, na
altura a égua era ainda um potro; mas agora já estava crescida e
chamava-se Palmira. Durante o ano, eram os avós que cuidavam
dela; mas durante as férias de Verão, já era Ana que tratava dela
sozinha, ainda que sob o olhar atento do avô: era ela que lhe
escovava o pêlo, que lhe dava de comer e que a levava a passear.
Ana também já tinha iniciado, há algum tempo, as suas aulas de
equitação na quinta, nas quais participava durante as férias. E
adorava, porque fazia sempre novos amigos e divertiam-se
bastante, juntos, durante as aulas. Também tinha aprendido imenso
sobre tudo o que tinha a ver com cavalos e mostrava-se sempre
entusiasmada e eufórica com este novo desafio. Quando teve a
primeira aula, a excitação era tanta que até já queria andar sozinha
a cavalo e tudo; mas o professor Anselmo não deixou.

— Avô, aonde estás? — Perguntou ela para o interior do


estábulo, onde se viam cavalariças com os cavalos e vários
utensílios de limpeza e para o tratamento destes animais. —
Entretanto fez-se silêncio e ninguém respondeu… — Estás a
esconder-te de mim, é? Deixa estar que eu vou encontrar-te, tu vais
ver! — Disse-lhe ela muito determinada e senhora do seu nariz,

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correndo pelo estábulo adentro, espreitando para dentro de cada
cavalariça; mas nem sinal do avô.
Ana gostava imenso de brincar com o avô; apesar dos seus
quase oitenta anos, ele era um senhor cheio de energia e com um
espírito muito jovem, ainda lia sem óculos e era ele que tratava de
grande parte da quinta, sozinho e que servia de guia turístico para
quem a visitava. Quando tinha os netos por perto ainda conseguia
ter energia suficiente para alinhar nas suas brincadeiras. Não
gostava nada de televisão e de estar muito tempo parado, dizia ele
no seu perfeito juízo que, o mal de aparecerem as doenças estava
no facto das pessoas hoje em dia já não saberem aproveitar a vida:
praticando exercício físico, dando longos passeios ao ar livre,
contactando com a natureza, convivendo com os animais sem
maltratá-los nem abandona-los à sua sorte. Tratando dos seus
jardins e das suas flores, cultivando as terras e até a sua própria
horta, e saindo com os amigos e família para umas jantaradas.
Como se fazia antigamente, nos bons velhos tempos da sua
juventude; hoje em dia as pessoas tinham uma vida tão ocupada
que se esqueciam por completo destes pequenos prazeres da vida.
Acabavam por substituir tudo isto, por um bom serão fechados em
casa, em frente ao computador ou à televisão, a verem um bom
filme, em vez de fazerem atividades na rua. Longe iam os tempos
em que não havia televisão, telemóveis, computadores, Internet e
jogos de vídeo; as crianças brincavam com o que tinham: jogavam
à bola, às escondidas, à apanhada e ao berlinde, saltavam à corda e
ao elástico, liam histórias. E eram crianças bem mais felizes e
saudáveis. Hoje em dia, já não se via nada disso.
Na escola, ia tudo de mal a pior, cada vez a rapaziada sabia
menos, portava-se mal, batia nos colegas, insultava os professores
e até agredia os pais, em casa. Para além disso, só se viam
desgraças, eram assaltos e mais assaltos, pessoas amedrontadas,
indefesas, pobres e doentes: porque era cada vez mais caro ir ao
médico, infelizes, stressadas e sempre a correrem de um lado para
o outro. Andavam tão focadas nas suas vidas, que já nem um pobre
idoso ajudavam como devia ser: às vezes ele andava a carregar a
carrinha, cheio de caixas nos braços, com os mais variados

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produtos para distribuir, passavam imensas pessoas por ele e
ninguém era capaz de lhe dar uma mãozinha. Então a mocidade
nova; para além de não quererem saber das pessoas mais velhas
ainda gozam com elas e insultam-nas, só querem boa vida, não
estudam, não trabalham, não ajudam os pais em casa, nem querem
fazer nada.
— Ai, valha-me Deus, como isto está, antigamente não era nada
assim. Isto tudo deve-se a muita preguiça e a essas malditas
tecnologias que inventaram agora. — Monologava ele, várias
vezes, para si mesmo.
Para António era muito difícil conseguir compreender o evoluir
dos tempos e das gerações, olhava-os com angústia e tristeza;
perante as mudanças que tinham acompanhado o avançar da sua
idade. Ele ainda era um homem à antiga, que não gostava nada de
modernices; pois vinha de outra geração em que se aprendia a viver
com pouco, com coisas simples e básicas e havia um grande
espírito de poupança; não se ouvia falar das doenças modernas de
que tanto se ouvia falar agora. Aliás, poucas eram as vezes em que
as pessoas iam ao médico e respirava-se saúde; por isso é que o avô
António era um homem tão saudável e rijo, os males que tinha
eram as coisas próprias da idade: a visão que já não era igual, uma
dor aqui, uma artrose ali; nada de muito preocupante. No entanto,
ninguém o conseguia parar, era um velhinho barrigudo, mas todo
porreiraço.
De facto, a vida era mesmo, um ciclo de recheado de mudanças
e de fortes aprendizagens.

A avó Conceição tinha perto de setenta e cinco anos e era a


responsável por todas as tarefas domésticas e pelos deliciosos
cozinhados: era sempre difícil resistir aos pratos de comida
tradicional portuguesa da avó São. Também era ela que colhia as
frutas e legumes e que tratava da horta e do jardim: onde tinha o
seu precioso Roseiral, de rosas vermelhas. E acompanhava sempre
o avô nas viagens à vila para vender os produtos produzidos na
quinta.

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Era uma senhora com muita força para trabalhar; apesar de já
ter alguns problemas de saúde, mesmo assim fazia sempre o que
podia (e às vezes, até aquilo que não podia). As coisas mais
complicadas, ela deixava-as para o avô que era mais forte e tinha
mais paciência. Gostava também de passear com os netos pelo
campo: de lhes contar histórias da sua vida: falar-lhes da sua
juventude, de como se tinha apaixonado pelo avô, do gosto pela
natureza, pelas flores: principalmente rosas vermelhas e pelos
animais. E também não dispensava as longas noites frias de
Inverno à lareira bem sentada e quentinha, com a Faneca no colo,
a tomar o seu chá e a bordar. Ou então, ficava sentada nas traseiras
da casa, junto à cozinha, no banco do jardim, com o Faísca a seus
pés, a apanhar o calor do sol; enquanto lia um bom livro e ouvia
rádio.
Para António e Conceição, não custava nada cuidar da quinta
nem dava trabalho, eles gostavam imenso de tratar das plantas e
dos animais e apreciavam o contacto com a natureza e as pessoas:
fossem vizinhos, simples curiosos ou até turistas que ficavam
completamente deslumbrados com a vida no campo, com o ar
puro, com a grande diversidade de atividades que se podiam fazer
e adoravam ter os avós como guias turísticos. Gostavam de saber
um pouco sobre tudo: sobre os animais (aproveitavam para
experimentar as aulas de equitação); sobre as plantas, sobre a
quinta e os seus produtos. Pediam conselhos à avó: sobre este ou
aquele prato; como fazer esta ou aquela compota e ainda
aproveitavam para levar para casa: frutas, queijo, azeite, vinho e se
gostassem daquilo que levavam, no ano seguinte regressavam e até
aconselhavam os produtos e a estadia na quinta a outros amigos.

Após Ana procurar o avô em, praticamente, todas as cavalariças


do estábulo, foi encontrá-lo, precisamente, na última cavalariça,
junto ao cavalo Messias: o cavalo mais antigo da quinta e que
precisava de mais cuidados. Vestido com o seu habitual macacão
azul, galochas verdes e a sua boina preferida, na cabeça: castanha
e com o típico padrão axadrezado.
— Cucu! — Disse o avô rindo-se — Olá! Bom dia!

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— Olá, avô! Encontrei-te! Eu disse que te ia encontrar? —
Disse-lhe ela muito depressa com um ar muito sorridente e
matreiro, mal viu o avô.
— Pois, disseste! Foste rápida, querida! — Disse-lhe o avô com
um grande sorriso e cumprimentaram-se os dois com um grande
abraço e dois beijinhos.
— O que é que estás a fazer? — Perguntou-lhe ela com o olhar
mais curioso do mundo, a espreitar o que o avô estava a fazer.
— Estou aqui com o Messias! Hoje, decidi começar os
trabalhos, do estábulo, com os cuidados do nosso velhote: já o
escovei e já lhe limpei a cavalariça: é preciso tirar — todos os dias
— a palha e colocar uma nova, retirar as fezes e lavar tudo bem
lavado para não corrermos o risco dos cavalos apanharem alguma
doença. Agora estou a alisar os cascos das patas dele, para no fim
colocar uma ferradura, para que os cascos não se desgastem.
— Que giro! Posso ajudar?
— Nisto não! Este trabalho é muito sensível e perigoso, é só
para ser feito por gente crescida que já está habituada a tratar destes
animais. Não quero que te magoes; porque é que não vais fazer
outra coisa, enquanto eu acabo isto? Eu prometo que não me
demoro…
Ana divertiu-se imenso com os outros cavalos e com a sua égua:
escovou-a, fez-lhe festas e deu-lhe beijinhos. E o avô terminou o
que estava a fazer num instante e depois voltou a chamá-la…
— Ana, chega aqui! — Pediu-lhe o avô.
— Sim?!
— Já terminei o que estava a fazer, agora já me podes ajudar.
Queres?
— Claro! — Afirmou ela toda eufórica.
— Bem, agora eu tenho que limpar e mudar a palha das outras
cavalariças, enquanto eu faço isso, tu podias ajudar-me e podias
escovar os cavalos e a tua égua. O que é que achas?
— Hummm… Está bem! O primeiro a acabar ganha um
prémio.
— Combinado! — Disse o avô e trocaram um aperto de mão.

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Na casa da quinta, aonde viviam os avós de Ana, já se sentia
uma roda-viva na cozinha, a avó já estava sentada à mesa a
vasculhar num dos seus muitos livros de culinária. No andar de
cima, Joana e Pedro acabavam de se levantar; eram dez horas da
manhã e a manhã já ia longa; entretanto eles chegaram à cozinha.
— Bom dia, mãe! — Disse Joana ainda com cara de sono,
depois de sentar-se à mesa com Pedro e de espreguiçar-se como se
fosse um felino.
— Bom dia, meus filhos! Dormiram bem? — Perguntou a avó.
— Muito bem! Sabe da Ana? — Perguntou Joana com um ar
visivelmente preocupado; enquanto começava a arranjar o seu
pequeno-almoço e o de Pedro.
— Ui! Ela hoje acordou quase com o cantar do galo, por pouco
não me ganhava a mim; encontrei-a bem cedo ao pé de mim, na
horta — de bicicleta na mão — toda apressada à procura do avô.
— Nas férias nunca lhe custa levantar-se, só na altura das aulas
é que é um verdadeiro castigo! — Disse Pedro com um ar muito
bem-disposto.
— Sabe como as crianças são! Ela vinha toda zangada por ter-
se deixado dormir até mais tarde e o avô não ter esperado por ela.
— Disse a avó.
— A Ana não tem emenda! — Disse Joana a brincar, rindo-se.
E entretanto tocaram a campainha…
— Ai, valha-me Deus! Vão acordar-me o menino! — Disse a
avó, muito apressada e preocupada, levantando-se muito
rapidamente da cadeira: aonde estava sentada, largando tudo o que
estava a fazer, saindo da cozinha e atravessando rapidamente o
corredor que dava acesso à porta da frente da casa.
— Olá! Bom dia, dona São! — Cumprimentou-a a vizinha da
casa debaixo, a dona Maria José.
— Oh! Olá, bons dias! Então dona Maria José, o que a traz por
cá? — Perguntou a avó de Ana com a simpatia que sempre a
caracterizava.
— Sabe, dona São, precisava muito de dois ovos para estrelar
para o meu Miguel e para o meu Alfredo, os meus acabaram-se e
ainda não pude ir comprar. Desculpe lá o incómodo; mas vinha

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pedir-lhe se mos podia emprestar, eu depois pago-lhe ou quando
puder devolvo-lhos.
— Oh! Não precisa nada de mos pagar, nem de mos devolver.
Eu até lhe dou meia dúzia com todo o gosto, estamos cá para
ajudar-nos uns aos outros, não é?
— Lá isso também é verdade! — Disse a vizinha.
— Não quer entrar um bocadinho? Faço-lhe um chá ou toma
uma bebida fresquinha. — Convidou a avó.
— Agradeço o convite; mas como tenho uma panela ao lume,
não posso demorar-me muito. Fica, para outra vez!
— Está bem! Espere então um bocadinho que eu trago-lhe já os
ovos.
A avó São entrou novamente em casa e foi à capoeira, que
ficava nas traseiras, buscar alguns ovos frescos, de caminho passou
pela horta e colheu algumas alfaces, meia dúzia de tomates, alguns
pimentos e cebolas e ainda juntou a tudo isto alguma fruta da
época. Não demorou mais de cinco minutos a voltar.
— Já cá estou! — Disse ela entregando um saco à vizinha com
imensos produtos.
— Meu Deus! Eu só pedi dois ovos, não pedi isto tudo.
Desculpe, mas não posso aceitar… — Disse a vizinha.
— Pode, deve e vai aceitar, sim senhora! Não aceito uma
recusa. Já sabem que, naquilo que vocês precisarem podem sempre
contar connosco.
— Muito obrigada! Quando tiver algum problema em casa, ou
até na carrinha do senhor António, fale comigo, o meu Alfredo é
bastante jeitoso nessas coisas. Arranja quase tudo: avarias nas
máquinas agrícolas e nos carros, muda lâmpadas, pinta e até dá
uma mãozinha nas canalizações. Ele é mesmo muito jeitoso nessas
coisas.
— Não se preocupe que se precisarmos de alguma coisa nós
avisamos. Prometo que não me esquecerei, mais uma vez, de
vocês.
Num ápice, estava de regresso à cozinha
— Quem era, mãe? — Perguntou Joana.

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— Era a dona Mizé: a nossa vizinha, da casa mais abaixo.
Sabes, é uma família com pouco dinheiro, estão os dois
desempregados e só têm um filho que é pouco mais velho que a
Ana. Às vezes nem têm comida que chegue para uma semana. É
uma situação muito complicada; por isso nós damos-lhes imensas
coisas da quinta, também nos custa vê-los passar por necessidades,
temos que nos saber ajudar uns aos outros; afinal de contas chega
e sobra para todos. Para além disso, se a situação fosse connosco,
com certeza que também nos deitavam uma mãozinha. — Disse a
avó sorridente.
Aquelas palavras dela deixaram Joana e Pedro a pensar.
— Sei muito bem quem vai gostar muito de saber que há por
aqui um menino com quem pode brincar… — Disse Pedro.

Entretanto, depois de tudo feito no estábulo e de Ana ter sido a


mais rápida, chegaram à capoeira. Deixaram sair as galinhas para
o pátio e começaram a tratar de tudo.
— Enquanto eu vou arrumar à capoeira; tu podias pegar nesse
balde que esta aí à entrada, junto à porta, e podias ir deitando algum
milho aqui fora às galinhas. Depois podias pegar naquele cesto, que
está ali nas traseiras da carrinha e colocar nele todos os ovos que
encontrares aqui dentro da capoeira, nestes ninhos. — Explicou-
lhe o avô.
— Ena! Que fixe! — Disse Ana toda entusiasmada.
— Espera! Já me ia esquecendo de um pormenor muito
importante…
— E o que é, avô? Conta! — Pediu-lhe ela com toda a atenção,
depois de parar o que estava a fazer e de se virar em direção à porta
da capoeira, aonde estava o avô.
— Anda cá, quero mostrar-te uma coisa! Vais encontrar
algumas galinhas que ainda estão no ninho, como aquelas ali em
cima, vês? — Mostrou-lhe o avô depois de entrarem na capoeira.
— Porque é que elas estão ali sentadas e tão sossegadas? —
Questionou-o ela muito intrigada.
— Estas galinhas são especiais, sabes?
— A sério! Porquê?

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— Ahahahaha! — Riu-se o avô.

Ele mostrava-se sempre embevecido quando conseguia


despertar a curiosidade da neta. Era engraçado ver a forma como
ela ia descobrindo, aos poucos, os vários detalhes da quinta e o
interesse que demonstrava, ao querer conhecer cada vez mais
coisas e em querer sempre copiar as coisas que o avô fazia.
— Oh! Porque é que te estás a rir? — Perguntou-lhe ela com
um ar muito amuado; ela não gostava nada quando o avô gozava
com ela.
— Vem cá, querida! Eu só achei piada à tua expressão de
espanto. Sabes que, há muito poucos meninos interessados nestes
bichos como tu. Na tua idade, gostam de brincar e de fazer outras
coisas; por isso fico sempre muito feliz por ver que gostas muito de
andar a fazer estas coisas comigo. É só isso!
— Ah! Eu gosto mesmo muito da quinta e de estar aqui contigo
e com a avó! Vem cá, avô… — Disse-lhe ela e abraçaram-se,
trocando daqueles fortes e intensos abraços que só avôs e os netos
é que sabem dar.
— Oh, querida, que abracinho tão saboroso! Obrigada! —
Disse-lhe o avô emocionado.
— De nada! Gosto muito de ti!
— O avô também! Bem, mas voltando ao nosso assunto das
galinhas especiais. Estas galinhas estão ali sentadas e sossegadas;
porque estão ainda a chocar os ovos.
— Estão a chocar os ovos? O que é que isso quer dizer? —
Perguntou-lhe ela intrigada e confusa.
Habituada a viver na cidade, todo o ano, Ana já não se lembrava
bem daqueles pequenos, pormenores da vida no campo.
— Sabes, assim como as galinhas são especiais, também os
ovos o são. Estes ovos quando aquecidos debaixo das penas da
galinha dão origem a um pintainho pequenino e fofinho que ao
crescer fica tão grande e forte como a mãe. Daqui a uns dias
verás…
— Uau!!! Que espetáculo! Quando nascem, avô?
— Ainda leva o seu tempo!

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— Achas que vão nascer antes de eu voltar para Lisboa?
— Acho que sim, querida! Mas quando eles nascerem, tu serás
a primeira a vê-los, prometo; e com tudo isto, o que te queria dizer
é que neste caso não podes ir lá tirar os ovos, tens que deixá-los
ficar. E tens que ter cuidado para não assustares estas galinhas, que
elas por vezes são ariscas. Sabes, elas precisam de paz e sossego
nesta fase…
— Ah, está bem! — Disse-lhe Ana.

Minutos depois, Ana e o avô regressaram a casa, aonde já se


sentia o aroma do almoço na cozinha. A avó São já estava
concentradíssima nos cozinhados: estava a preparar um delicioso
arroz de marisco e uma deliciosa tarte de requeijão para a
sobremesa.
Ouvia-se o rádio na cozinha, com os Discos Pedidos: o
programa favorito da avó São. Ela adorava ouvir uma bela
melodia; enquanto preparava os seus petiscos, por vezes até
trauteava algumas canções, decididamente reinava o sossego no
reino da avó de Ana, mas segundos depois…
— Já chegamos! Onde se meteram todos? — Perguntou o avô,
acabado de chegar à cozinha, pousando a sua boina axadrezada em
cima da mesa e sentando-se à mesa.
— Ai credo! Valha-me Deus, nossa Senhora do Carmo! Que
susto, que tu me pregaste, homem… Estava aqui tão entretida a
preparar o almoço que nem te senti entrar. — Disse a avó muito
espantada e um pouco assustada
— Calma, mulher! Não te assustes; sou só eu! — Disse o avô
rindo-se.
— Já voltaste? E a Ana aonde está? — Perguntou a avó.
— Estou aqui! — Disse ela depressa, acabada de chegar à porta
da cozinha.
— Então querida, gostaste da manhã? — Perguntou-lhe a avó.
— Adorei! Trabalhamos muito hoje! Olha, tratamos dos
cavalos e das galinhas, demos de comer aos porcos, fomos buscar
farinha ao moinho, fizemos muita coisa.

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— Ena, sim senhora! E que trazes aí nesse cesto enorme? —
Perguntou a avó cheia de curiosidade.
Ana levantou o pano que tapava o cesto, para proteger os ovos
— que ela havia apanhado, sozinha, na capoeira — do calor e
mostrou tudo à avó
— Meu Deus!!! Tantos ovos! Foste tu que os apanhaste todos,
sozinha? — Perguntou-lhe a avó.
— Fui! — Disse-lhe ela toda orgulhosa.
— E não tiveste medo?
— Nadinha!
— Muito bem! Parabéns! Põe aqui o cesto, em cima da mesa,
que eu vou já arrumar tudo.
— E o resto do pessoal? — Perguntou o avô.
— Foram à praia…

Ana ajudou a pôr a mesa no jardim; enquanto esperava que o


resto da família chegasse para almoçar, algo que não demorou
muito. Entretanto, ainda houve espaço para umas brincadeiras com
o Faísca: o cão pastor que ajudava o avô com as ovelhas: era
brincalhão, muito pacato e meigo. E a Faneca: era a gata siamesa
da avó, de aspecto tresmalhado, olhos azuis, simpática,
ronronadora, companheira de todas as horas e louca por tudo o que
mexesse, como os novelos da lã, adorava brincar com eles, quando
a avó se sentava na cadeira de balançar, do átrio, a fazer croché.
— Chegamos!!! — Disseram os pais de Ana, desde a porta das
traseiras, acabados de chegar da praia.
— Então querida, que tens andado a fazer? Mal te vimos hoje…
— Perguntou-lhe a mãe.
— Tenho andado muito ocupada a fazer imensas coisas com o
avô! — Disse-lhes ela, contando-lhes, como tinha passado a manhã
com o avô.

Depois, Joana e Pedro foram arranjar-se e a seguir a avó


chamou para a mesa: o almoço estava pronto a ser servido. A hora
de almoço foi, como sempre, demorada, muito animada e recheada

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de conversas inusitadas; Ana mostrava-se entusiasmadíssima; pois
tinha mil coisas para contar.
Quando já tinha tudo comido, decidiu fazer um pedido especial
à mãe:
— Mãe, eu já acabei de comer, posso ir dar um passeio de
bicicleta?
— Podes! Mas vai com cautela para não te magoares, não te
afastes muito daqui e leva um chapéu por causa do sol, está bem?
— Recomendou-lhe a mãe.
— Está bem…

Ana levantou-se rapidamente da mesa, saiu para a rua, pegou


na bicicleta cor-de-rosa e no chapéu preferido e foi passear pelo
meio da aldeia, junto aos campos de trigo, buzinando com
insistência, de ar bem-disposto como era sua característica. Sentia-
se muito feliz, estava a passar as férias na quinta dos avós, que ela
adorava, onde aprendia sempre imensas coisas novas; onde podia
andar de bicicleta à vontade, correr e brincar sem perigos à espreita.
Também podia ir até à praia, ela adorava a praia , e tinha o Faísca
e a Faneca como companheiros de brincadeiras. O mesmo não
acontecia em Lisboa.
Vestia: uns calções em ganga azul e uma camisola sem mangas
de um tom amarelo-torrado e trazia o cabelo bem apanhado num
rabo-de-cavalo, feito por ela própria. Por fim, calçava umas
confortáveis sandálias brancas com uma flor azul estampada à
frente. Nunca descurava o pormenor das unhas pintadas com o
mesmo verniz que a mãe usava e de vez em quando também se
maquilhava, era vaidosa e gostava se sentir sempre bonita.

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E ia Ana bastante descontraída a passar, pelos campos de trigo,
na sua bicicleta, quando viu alguém: pareceu-lhe um rapaz
mais ou menos da sua idade, estava sentado, sozinho debaixo
da oliveira centenária. Ela ficou excitadíssima com a possibilidade
de ter, finalmente, encontrado alguém com quem pudesse brincar.
Seria o primeiro amigo que arranjaria na quinta; apesar de se
divertir sempre imenso na companhia do avô, chegava uma altura
em que ela preferia ter alguém da sua idade para brincar: alguém
para saltar à corda, para jogar à macaca, ao berlinde e até às
escondidas, para saltar ao elástico e à corda, para brincar ao pião e
para andar a correr atrás do Faísca. Brincadeiras que o avô já não
podia fazer por causa da sua idade avançada.
A curiosidade que ela sentia e a sua personalidade extrovertida
fizeram com que ela se aproximasse, um pouco mais, para saber
quem ele era e o que ele estaria a fazer por ali. Para seu espanto e
enorme surpresa, ela descobriu que debaixo daquela emblemática
árvore, sentado numa pedra irregular, coberta por ervas e musgo e
de aspecto solitário estava um jovem rapaz: alto, cabelo liso, curto
e de tom castanho-escuro, de aspeto magro e franzino e tinha um
chapéu amarelo, de palha, na cabeça. Vestia uma camisola branca
de mangas curtas: velha, escurecida pela sujidade e com um aspeto
desbotado; calças azuis também desbotadas e rasgadas e calçava
umas botas bastante gastas, a lembrarem os velhos trapos: feitas de
buracos das mais variadas dimensões, comidas pelas traças.
Mostrava-se cabisbaixo e de ar triste e desolado, tinha na mão
direita um desgastado ramo de uma árvore, e entretinha-se a riscar
a terra, tentando fazer alguns desenhos bem simples. Ana saltou da
bicicleta, encostou-a junto à oliveira e com a plena inocência de

59
menina, decidiu meter conversa; mas o rapaz não lhe prestou muita
atenção, continuou sentado, impávido e sereno, cabisbaixo e a
riscar a terra, como se não fosse nada com ele, tão pouco se
apercebeu de que ela ali estava, mal levantou a cabeça para olhar
para ela.
— Olá! — Cumprimentou-o ela.
— O… Olá! — Disse-lhe ele a medo, de voz trémula e muito
tímido e envergonhado, tendo até alguma dificuldade em soltar as
palavras, mantendo-se cabisbaixo e continuando a desenhar na
terra.
Ana ficou pouco satisfeita com aquela parca resposta, simples e
sem mais nada; por isso decidiu insistir com ele. Pareceu-lhe um
rapaz pouco sociável.
— Posso saber como é que tu te chamas? — Perguntou-lhe ela
cada vez mais curiosa com o novo amigo, sentando-se ao seu lado
e tentando espreitar para ver o seu rosto — Eu chamo-me Ana,
estou de férias na quinta dos meus avós, fica aqui perto.
— Eu… Chamo-me Miguel. — Disse-lhe ele ainda bastante
envergonhado, olhando-a, finalmente, nos olhos.
Ele tinha uns olhos grandes e expressivos, de um tom castanho
claro e num ápice, ele conseguiu ganhar coragem para iniciar um
breve diálogo.
— Não és de muitas falas, pois não? — Concluiu ela.
— Mais ou menos! Mas porque é que dizes isso?
— Porque ainda mal me falaste e me contaste coisas acerca de
ti. Continuas tão calado…
— Sou um pouco tímido e envergonhado, sabes?
— Ah! — Exclamou ela espantada.
Entretanto, fez-se um pequeno e leve silêncio.
— Já estás aqui há muito tempo? — Perguntou-lhe ele.
— Não! Acabei mesmo agora de chegar. Porque é que tu estás,
assim tão triste?
— Porque sim… — Disse-lhe ele em poucas palavras, com um
encolher de ombros desinteressado.
— E essas roupas?
— O que é que têm?

60
— São tão...
— Velhas e sujas! Podes dizer, sem medo. Eu sei que é isso que,
a grande maioria das pessoas pensam; mas, infelizmente, eu não
tenho outras melhores para vestir.
Ana mostrou-se entristecida com o desabafo dele.
— Queres brincar?
— Sabes, eu acho que nós não devemos ser amigos. Desculpa,
mas tenho que me ir embora; os meus pais estão à minha espera.
Adeus. Até outro dia.

Miguel despediu-se e foi-se embora a passos largos, deixando


Ana ali, debaixo da oliveira: sozinha, pensativa e estupefacta. Não
deixou de se sentir triste com a atitude dele; logo ela que era tão
teimosa e persistente. Para além disso, ela não desistia com
facilidade das coisas e não iria desistir de conseguir que ele fosse
seu amigo. O súbito aparecimento de Ana tinha deixado Miguel
assustado, apreensivo e sem saber o que dizer, o que fazer e como
reagir; ele achava que não podia ter amigos por ser pobre, não se
achava digno de ser amigo de uma menina linda e simpática como
Ana, porque não era como ela. Eram de mundos completamente
diferentes; ele não vivia uma vida como a dela e não vestia roupas
boas como as dela. Há quanto tempo ele não sabia o que era ter
roupa nova; mas infelizmente, os seus pais não lha podiam dar-
porque não tinham trabalho, nem dinheiro.
Ele tinha imensa vergonha que Ana descobrisse que ele era
pobre, tinha a certeza absoluta que iria ser gozado para o resto da
vida e que ela nem iria querer ser sua amiga depois de saber disso.
Ele sentia-se diferente das outras pessoas. Desejava poder ser, um
dia, igual aos outros meninos: ter uma casa grande, ter um quarto
confortável só para si, roupa nova, muitos brinquedos, poder ir para
a escola; mas, infelizmente, não podia ter nada disso. Sentia-se
triste e desgostoso pela a vida que era obrigado a levar e por ter que
viver naquela aldeia tão isolada e deserta e isso fazia com que se
afastasse das pessoas e evitasse o contacto com elas.

61
Ana voltou para a quinta, muito triste e desiludida, pousou a
bicicleta no sítio do costume: lá fora junto à carrinha do avô e ao
contrário do que acontecia, na maior parte das vezes; naquele dia
ela já não entrou em casa a correr apressadamente, bem-disposta,
excitadíssima e pronta para contar todas as suas aventuras a toda a
gente. Ouviu-se o silêncio dentro de casa e assim continuou… Ana
dirigiu-se para o pátio (nas traseiras da casa) e por lá ficou a brincar
com a siamesa Faneca; o Faísca tinha ido, bem cedo, com o avô
guardar o rebanho das ovelhas para o monte. O avô gostava imenso
dele e Ana também já sentia saudades.
Mais tarde, quando já se suspirava de preocupação porque Ana
nunca mais aparecia em casa; eis que o sábio avô a encontrou sem
mais demoras.
— Afinal estavas aqui! Já andávamos, há imenso tempo, à tua
procura.
— Desculpem! Cheguei do passeio e apeteceu-me, vir para
aqui, brincar um pouco com a Faneca… — Disse-lhe ela,
continuando a fazer festas à gata.
O avô António mostrou-se muito intrigado com a apatia da neta;
já que ela costumava andar sempre bem-disposta e cheia de
energia, quando estava na quinta. E estava sempre pronta para
alinhar e ajudar em todas as tarefas e actividades, nunca parava. E
naquele final de dia, estava muito diferente: triste, introspectiva,
apática e reservada; ficou pensativo. Será que se tinha passado
alguma coisa durante o passeio?
— E se nos sentássemos um pouco nas escadas? — Propôs o
avô.
— Porquê? Estou bem assim…
— O avô precisa muito de falar contigo!
— O que é que se passa, avô?
— Queria que me contasses o que se passou contigo durante o
teu passeio!
— Mas não se passou nada! — Disse-lhe ela a tentar disfarçar.
— Tens a certeza absoluta? Olha que eu conheço-te muito bem,
tu estás a tentar enganar o avô, eu sei que se passou alguma coisa
durante o teu passeio que tu estás a tentar esconder-me. Tu sabes

62
que podes sempre confiar no avô e para além disso, também sabes
que eu sei e consigo descobrir sempre tudo muito depressa.
— Oh, eu sei disso! — Disse-lhe ela envergonhada e ainda de
ar triste.
— Então conta lá ao avô, o que é que aconteceu…
— Pronto, está bem! Eu conto… Mas só se me prometeres que
não contas nada a ninguém! — Pediu-lhe logo ela.
— Prometido e jurado! Sou todo ouvidos… — Disse-lhe o avô
muito atento.
— Quando fui andar de bicicleta, depois do almoço, encontrei
um menino junto aos campos de trigo.
— A sério?! Mas isso não é bom? Afinal de contas, encontraste
alguém com quem partilhar as brincadeiras…
A Quinta da Juventude ficava localizada numa aldeia onde os
habitantes eram pessoas idosas, não havia crianças com quem Ana
pudesse brincar;
— Deveria ser! Mas ele não quer ser meu amigo… — Disse ela
quase a chorar de desgosto.
— Porque dizes isso?
— Porque ele disse-me que não podíamos ser amigos e foi logo
embora… Mal falamos; acho que ele não gostou de mim.
— Não digas isso, nem fiques triste… Não sabemos os motivos
para ele ter ido embora, provavelmente os pais estavam à espera
dele. Não acredito que se tivesse ido embora por não gostar de ti
ou por não querer ser teu amigo. Tu és uma menina tão bonita, tão
simpática, tão brincalhona e divertida, que muito dificilmente não
gostarão de ti.
Ana sorriu levemente, perante os elogios do avô
— Eu queria tanto que ele fosse meu amigo…
— E vai ser… Amanhã levas-me contigo que eu também quero
conhecê-lo.
— Está bem! Vais convencê-lo a ser meu amigo? — Perguntou
ela já a sorrir e muito mais alegre.
— Quem sabe…
— Fixe! És o maior!
— Não queres vir até à cozinha lanchar?

63
— Quero! Já estou cheia de fome. — Disse ela sorridente.
— Ouvi dizer, por aí, que a avó fez um bolo de Maçã delicioso!
— A sério? Adoro os bolos de Maçã da avó!
— Vem um cheirinho da cozinha… Anda, acho que acabou de
sair do forno e sabe bem comê-lo quentinho.
— Podes crer, avô!
— Eu cá não resisto! Traz a Faneca contigo, pode ser que ela
também queira.

Ana deu uma valente gargalhada, se havia pessoa que


conseguia deixá-la sempre sorridente e bem-disposta era o avô.
Sempre com o seu ar alegre e brincalhão, ela nunca lhe resistia;
aliás, nenhuma criança lhe resistia, mesmo as crianças que não o
conheciam e que contactavam com ele apenas quando vinham à
quinta de férias com a sua família. Ele contagiava as pessoas com
facilidade, com a sua ternura, simpatia, energia e bom humor.
Mas Ana ainda não tinha parado de pensar no que teria levado
Miguel a não querer a sua amizade. Para ela, não havia nada que o
levasse a fazê-lo, não encontrava motivos alguns; por isso, decidiu
aproveitar a hora do lanche para questionar o avô sobre as suas
dúvidas e preocupações. Talvez, ele lhe pudesse explicar porque é
que Miguel teria reagido daquela forma…
— Avô, posso perguntar-te uma coisa? Porque é que o Miguel
não quis ser meu amigo? — Perguntou-lhe ela pensativa; enquanto
dava uma dentada numa fatia de bolo.
— Não sei, minha querida! Pode ser por vários motivos…
— Será que ele teve medo de mim?
— O avô riu-se — Essa cabeça tolinha, só diz disparates!
— Vá lá, não gozes! Achas que os pais dele, não o deixam ter
amigos? Ele pareceu-me tão triste…
— Tenho sérias dúvidas de que seja mesmo isso, porque os pais
só querem o melhor do mundo para os filhos.
— Tu podias falar com eles e pedir-lhes para eles o deixarem
ser meu amigo? Queria tanto que ele fosse meu amigo… — Pediu-
lhe ela com muita força e convicção.

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Depressa, o avô se deixou emocionar pela insistência e força de
vontade da neta, em fazer de Miguel seu amigo. Se ele bem a
conhecia, ela não iria desistir assim tão facilmente, era demasiado
teimosa e persistente para isso e iria fazer de tudo para consegui-lo.
Acreditava que, seria bastante bom e enriquecedor para ambos, se
conseguissem ser grandes e verdadeiros amigos; teriam imensas
coisas para partilhar e ensinar um ao outro.
Miguel era um rapaz muito simples e humilde, que olhava a
vida de uma forma bastante diferente de Ana, por isso, ele estava
certo que eles iriam aprender imensas coisas interessantes, juntos.
Mas apenas o passar do tempo poderia dizê-lo…

65
66
N
terra,.
o dia seguinte, após um almoço descontraído, Ana e
o avô fizeram-se à estrada, na carrinha, porque estava
muito calor, em busca do rapaz que dizia chamar-se
Miguel e que estava sempre a fazer desenhos na

Ana estava entusiasmadíssima com a possibilidade de poder vir


a fazer um amigo, na quinta; não falava noutra coisa e já pensava
nas muitas coisas que iriam poder fazer juntos. A imaginação não
parava… Quando já se estavam a aproximar do local, aonde Ana
tinha conhecido Miguel na véspera; ela avistou-o de novo. Estava
sentado na mesma pedra irregular e coberta de musgo, debaixo da
oliveira centenária, continuava cabisbaixo e triste, usava o mesmo
chapéu de palha, vestia a mesma roupa e calçava as mesmas botas,
já para não falar de que continuava a fazer desenhos na terra: com
aquelas mãos de pele escurecida e as unhas pretas de sujidade.
— Lá está ele! — Disse-lhe Ana muito depressa, apontando
para a oliveira, bem no centro dos campos de trigo.
O avô permaneceu em silêncio e continuou a conduzir a sua
velha carrinha, à medida que se aproximava do sítio que a neta lhe
havia mostrado. Ele mostrava-se bastante introspectivo, porque, na
verdade, ele já conhecia o novo amigo da neta. Estacionou então a
carrinha e por entre espigas e espigas de trigo chegaram junto à
oliveira.
— Olá Miguel! Estás bom? — Cumprimentou-o o avô.
— Bom dia, senhor António! Vai-se andando, um dia de cada
vez, obrigado! — Cumprimentou-o ele.
— Mas… Vocês conhecem-se? De onde e desde quando? —
Perguntou Ana estupefacta e muito intrigada.

67
— Calma, uma pergunta de cada vez! Eu e a avó somos
vizinhos e amigos dos pais dele. — Explicou-lhe o avô.
— Ah! Não sabia! — Disse ela espantada.
— Miguel, apresento-te a minha neta Ana! — Disse-lhe o avô
fazendo as devidas apresentações.
— Olá outra vez! Muito prazer em conhecer-te — Disse-lhe ele.
— Olá Miguel! Nós já nos conhecemos ontem, lembras-te? —
Questionou-o logo ela, de forma zangada.
Miguel ficou um pouco envergonhado.
— É verdade! Desculpa… — Disse-lhe envergonhado.
— Ai, ai, menina Ana, não fales assim com o Miguel! —
Ralhou-lhe o avô.
— Oh, não faz mal! Não lhe ralhe por minha causa, ela não tem
culpa. Eu é que me portei mal, com ela, fui um bocado antipático.
Peço, mais uma vez, desculpa! — Disse ele algo comprometido.
— Não faz mal, Miguel! — Disse o avô.
— Então, hoje, já queres ser meu amigo? — Perguntou-lhe
Ana.

Miguel olhou, fixamente, para ela sem saber muito bem o que
lhe dizer; entretanto, o avô António fez um pedido especial à Ana:
pediu-lhe para ela ir à carrinha buscar um saco de pão e ir, dar de
comer aos patos; enquanto ele falava um bocadinho a sós com
Miguel. Ela fez o que o avô lhe pediu sem hesitar e sem levantar
quaisquer objeções. Ana respeitava sempre muito o avô.
— Bem agora que estamos aqui sozinhos, eu gostava muito de
te dar uma palavrinha. Posso? — Perguntou-lhe o avô.
— É claro que pode! Diga senhor António…
Sentou-se junto de Miguel, pousou a boina e a bengala ao seu
lado e aproveitou a sombra da oliveira, que era fresca e agradável
em dias de muito calor como aquele. Era um dos senhores mais
respeitados da aldeia, devido à sua sabedoria e idade avançada.
Trazia imensas experiências na bagagem da vida, sabia muito bem
o que dizia e quando o dizia: no momento mais certo e oportuno e
era raríssimo falhar ou até mesmo enganar-se. Era muito sábio e
muitas pessoas da aldeia lhe pediam ajuda e conselhos.

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— Ontem, a minha neta chegou a casa muito triste. Contou-me,
de olhar desapontado, que se cruzou, aqui, contigo e que tu não lhe
falaste e que fugiste dela. Ela ficou muito desgostosa, a pensar que
não tinhas gostado de a conhecer e que não querias ser amigo dela.
O que é que tens para me dizer acerca disso? — Questionou-o
António de ar pensativo.

Fez-se silêncio. Miguel sentia-se envergonhado por ter sido tão


desagradável com Ana, que era tão simpática e que apenas queria
tê-lo como amigo. Não sabia muito bem como havia de explicar-
se…
— Sabe, eu nunca tive amigos; porque nunca fui para a escola
e a viver aqui na aldeia também não encontro muitos meninos com
quem possa partilhar as minhas brincadeiras preferidas e divertir-
me. Os meus pais são pobres, como o senhor António bem sabe —
Miguel ficou muito triste e engoliu em seco ao ter que dizer aquilo
—, não conseguem arranjar trabalho e isso também não ajuda
muito a fazer novas amizades.
— Eu percebo-te, meu rapaz!
— Eu não fiz o que fiz por não gostar da sua neta ou por não
querer ser amigo dela. Ela foi muito querida, não tenho nada de mal
a dizer dela e era uma grande oportunidade para eu fazer uma
amiga; no entanto ela começou a questionar-se acerca da minha
roupa, seria inevitável que isso não acontecesse, ela iria acabar por
reparar, e acabei por perceber que ela tinha vergonha de mim. Do
meu aspecto, percebe? Por isso achei que o melhor era não sermos
amigos, porque vivemos em mundos diferentes e não levamos o
mesmo tipo de vida.
— Sabes, eu conheço bastante bem a Ana, melhor que qualquer
pessoa, sei que a vejo poucas vezes, porque ela vive em Lisboa e
só nas férias de Verão nos visita; mas, conheço-a o suficiente para
saber que o facto de ela ter questionado o teu aspecto exterior não
foi por mal. Simplesmente é uma realidade diferente daquela com
que ela contacta, todos os dias, na cidade onde vive, é natural que
lhe desperte alguma curiosidade; apesar de eu ter a certeza que ela

69
também terá meninos, como tu, na escola dela. Na cidade também
existem meninos com dificuldades idênticas às tuas.
— A sério? Não fazia ideia; mesmo assim não seria de maneira
nenhuma um bom amigo e uma boa influência para ela, como lhe
disse vivemos vidas completamente diferentes e somos de mundos
diferentes: a Ana tem uma vida boa — bem melhor que a minha;
uma vez que, os meus pais não têm dinheiro para me pagarem os
estudos, para me poderem dar roupas e brinquedos novos, como os
dos outros meninos e quando eu quero e para me ajudarem a
realizar todos os meus sonhos. Na verdade, nem sei se tenho
sonhos, sabe? Nunca pensei muito sobre isso; mas já me perguntei
sobre o que é ter um sonho. — e vive numa cidade grande, onde
pode ir para a escola e realizar os seus sonhos. Eu não quero que a
minha amizade com a sua neta leve a que as outras pessoas a
magoem por minha causa, não quero que a prejudiquem. Sabe
como as pessoas são hoje em dia…
António mostrou-se sentido e até sensibilizado, com a forma
madura de Miguel pensar nos outros. Chegou até a emocionar-se
com tamanha generosidade e humildade.
— Agora deixaste-me sem palavras. Permite-me que te diga
uma coisa, fruto da idade e da vasta experiência que trago na
bagagem da vida: tu não tens que ter vergonha por seres pobre. Eu
percebo que na actual sociedade em que vivemos e nos tempos que
correm as diferenças entre as pessoas não sejam bem aceites e que
até sejam alvo de chacota. Na verdade, já nada é como
antigamente: quando havia entreajuda, quando as pessoas sabiam
respeitar-se e respeitar as diferenças; hoje em dia, viver com
dificuldades implica ser: excluído, gozado, injustiçado,
desrespeitado e até mesmo posto de parte. No entanto, ninguém
tem que te julgar por seres pobre, antes pelo contrário, deviam ter
o maior respeito por ti, apoiar-te em tudo e até sentirem-se
orgulhosos pela tua força, coragem e resiliência para enfrentares as
vicissitudes da vida, como sempre enfrentaste até hoje: com garra,
com força e com determinação. Até deviam ter-te como exemplo
e referência; para além disso, o facto de seres pobre não devia
influenciar as tuas futuras amizades. Sabes, quando eu era um

70
gaiato como tu — assim jovem — havia um cantor negro da
Jamaica: é um país lá muito longe daqui, que também não era
muito bem aceite pelas outras pessoas, por causa da cor da sua pele.
— A sério?! Não sabia disso! — Disse ele espantado.
— Mas é verdade. E sabes o que ele costumava dizer?
— Não… — Anuiu Miguel
— Dizia o seguinte: vocês riem-se de mim por eu ser diferente,
eu rio-me de vocês por serem todos iguais.
Miguel ficou alguns minutos a pensar naquela frase e nas
palavras sábias do avô da sua nova amiga e de repente parecia que
tudo fazia mais sentido para ele, acabou mesmo por comover-se e
até por ganhar um novo fôlego e uma nova vontade para encarar a
vida e as dificuldades que rodeavam a sua família.
— É uma bonita frase…
— E se pensarmos bem, é também uma enorme lição de vida.
No fundo, eu acho que é com esta maneira de pensar que tu deves
enfrentar a vida e que tens que encarar as pessoas que se afastam
de ti e que gozam contigo, deves ignorá-las e não lhes dar
importância. Tu também tens o teu valor independentemente de
teres muito ou pouco dinheiro, não podes deixar-te ir abaixo.
— Obrigado pelas palavras e conselhos tão sábios, sabe que
lhes dou sempre valor. Mas, infelizmente, por vezes as coisas são
bem mais difíceis do que parecem.
— Eu sei! Mas não tem que ser sempre assim… Tu tens que ser
rijo e que ter coragem e sangue-frio para conseguires enfrentar a
vida e seguires o teu caminho. Olha que até teres a minha idade,
muitos mais obstáculos e dificuldades irás encontrar pela frente;
por isso, não podes baixar os braços. Como te disse, tu não podes
deixar afectar por aquilo que as outras pessoas dizem e mais
importante que as dificuldades que vives interfiram com as tuas
futuras amizades. Tens que tentar passar por cima disso; porque tu
também tens direito a fazer amigos; independentemente de tudo,
ninguém pode proibir-te de teres amigos. Já sabes que se
precisarem de alguma coisa, podem sempre contar connosco.

71
— Obrigado por tudo e pelos seus bons conselhos, acredite que
vou ficar a pensar neles e nesta conversa que tive consigo. —
Disse-lhe ele sorrindo timidamente.
— Assim é que é falar! Estava aqui a pensar e surgiu-me uma
ideia, o que achas se nós combinássemos um lanche, para amanhã
lá na quinta, para poderes conhecer melhor a Ana e brincar um
pouco com ela? O que é que achas?
— Gostava muito; mas não sei se deva ir, se calhar a Ana já não
quer a minha companhia e muito menos a minha amizade depois
de eu ter sido tão mau e tão desagradável com ela, e também não
sei se os meus pais vão deixar…
— Mas é claro que deves vir! A Ana está desejosa de ter a tua
amizade e a tua companhia para poder partilhar contigo todas as
suas brincadeiras preferidas; acredita que sei bem o que digo. Ela
vai adorar conhecer-te melhor e tenho a certeza que tu também vais
gostar imenso dela. Ela é uma menina muito extrovertida e
divertida, está cá de férias e também anda à procura de amigos,
aposto que ainda vão ser grandes bons amigos. Quanto aos teus
pais, não te preocupes, que eu trato disso.
— Eu acho que vou aceitar o seu convite. Obrigada! — Disse-
lhe ele ainda comprometido.
— Que bom! Vocês vão dar-se bem, vais ver. Amanhã às
quinze horas, nós contamos contigo e esperamos por ti na quinta.
Poucos minutos depois, Ana estava de regresso já com o saco
do pão completamente vazio.
— Já cheguei!!! — Disse ela muito depressa, pousando o saco
na parte detrás da carrinha e sentando-se ao pé do avô e de Miguel.
— Ena! Pelo que vejo trabalhaste bem e depressa! — Disse o
avô entusiasmado e brincalhão.
— Tu já sabes que eu sou muito rápida. Então, estiveram a falar
de quê durante este tempo todo?
— Estivemos a ter uma conversa de homem para homem.
— Ai sim? — Questionou-se ela estupefacta e desconfiada.
— Sim! E sabes uma coisa?
— Conta! Conta! — Pediu ela feliz e toda entusiasmada.

72
— Acho que amanhã nós vamos ter um convidado especial
para o lanche! Será que adivinhas quem é?
— Não sei, quem poderá ser…
— Tens a certeza? — Perguntou-lhe ele.
Miguel sorriu levemente.
— Tenho! Quem será? Vamos receber visitas na quinta?
— Não! O Miguel vai lanchar lá a casa contigo!
— A sério?! Já o convenceste a ser meu amigo?
— Acho que sim! Já sabes que eu nunca falho!
— Maravilha! Eu já vou ter um amigo com quem brincar,
nunca mais chega amanhã.
António fez por mostrar a Miguel que Ana não pensava da
mesma forma que as outras pessoas. Ela queria fazer dele o seu
melhor amigo; aliás não ia descansar enquanto não o conseguisse
e o resto não tinha qualquer importância. Entretanto, Ana e o avô
regressaram a casa e pelo caminho acabaram por ter uma conversa
muito interessante, que pôs os dois a pensar:
— Avô, o Miguel é pobre? — Perguntou ela, preocupada.
— Como é que tu sabes?
O avô mostrou-se algo desconfiado e ficou a pensar que Ana
tivesse ficado a escutar a conversa que ele tinha tido com Miguel.
— Não sei! Mas desconfiei, por causa das roupas que ele vestia
ontem e hoje…
— Sabes que os pais do Miguel não trabalham, como tal não
ganham dinheiro e assim não lhe podem dar roupas e brinquedos
novos, nem podem deixá-lo ir para a escola.
— Eu também tenho um colega na escola que é pobre como o
Miguel. Ele come na escola e são as pessoas que lhe dão a roupa e
os livros e que levam a comida a casa dele. Dizem que a casa dele
não tem luz, nem tem água; uma vez contou-me que estudava à luz
das velas.
— Essas situações deixam-me sempre triste! — Disse o avô
— Muitas vezes ele nem brinca connosco no recreio, fica na
sala sozinho, nós até já o convidamos para vir brincar connosco,
mas ele recusa-se sempre. Algumas pessoas, quando passam por

73
ele estão sempre a dizer-lhe: Olhem o pobrezinho do Jaime. Então
Jaime, quem é que te ofereceu roupa e comida hoje?
— Infelizmente, hoje em dia, as pessoas são mesmo más e não
têm plena consciência do quão podem magoar os outros com a suas
atitudes, comportamentos e palavras.
— Nem imaginas como ele fica triste, desata a chorar e a correr
pelo pátio e muitas vezes é difícil encontrá-lo.
— É natural! Quando dizem todas essas coisas ao vosso colega,
magoam-no e fazem-no sofrer. Nunca devemos julgar as pessoas
pelo facto de terem muito ou pouco dinheiro, ou pelo tipo de roupa
que vestem e isso também nunca deveria interferir com as nossas
amizades. Que diferença faz se os teus amigos têm muito ou pouco
dinheiro ou se vestem roupas que não sejam de marca? Só por
causa disso já não vais ser amiga deles? Achas que já não são bons
amigos?
— Claro que não! A amizade é muito mais importante que o
dinheiro; por isso eu gosto de todos os meus colegas, mesmo do
Jaime.
— Boa! Assim é que é falar, era mesmo isso que eu queria
ouvir. És um grande exemplo. Posso contar-te um segredo?
— Sim! Sim! Conta! Conta! — Gritou Ana eufórica.
Ela adorava segredos…
— O Miguel apesar de viver com algumas dificuldades e de não
ter muito dinheiro já é rico, sabias?
— Estás a falar a mesmo sério, avô? Como é que isso é
possível? As pessoas não podem ser pobres e ricas ao mesmo
tempo, pois não?
— Pensando bem… Até podem sê-lo! O Miguel é rico; mas de
uma forma diferente: é rico por ter amigas como tu, que gostam
dele tal como ele é. Não se é rico só por se ter dinheiro, muitas
vezes o dinheiro não é tudo na vida.

Ana foi o resto da viagem a pensar naquela conversa e à noite


não perdeu a oportunidade de falar sobre Miguel aos pais e à avó,
notava-se nela um entusiasmo particular. Mal conseguiu dormir
com a enorme excitação de ir receber o novo amigo lá em casa no

74
dia seguinte, estava desejosa de poder partilhar com ele todas as
brincadeiras e mais algumas, a sua mente parecia não conseguir
parar com as muitas ideias que lhe surgiam para as mais diversas
brincadeiras.
Queria passear de bicicleta com o seu novo amigo, mostrar-lhe
toda a imensidão dos campos de trigo, irem juntos ao lago, darem
de comer aos patos. Correrem atrás do irrequieto Faísca e
lançarem-lhe também a bola e fazerem muitas festas à Faneca, que
ronronava a toda a hora. Cuidarem dos cavalos, darem de comer
aos diversos animais e acompanharem o avô na distribuição dos
muitos produtos, da quinta, pelas mercearias e hipermercados.
A verdade, é que na quinta, não faltavam actividades para eles
se divertirem, até não restar mais nenhuma energia.

75
76
N o dia seguinte, bem cedo, pela manhã fresca, a
família Salgado começou a preparar tudo para o
lanche e a receção ao Miguel: decoraram o jardim,
fizeram diversas comidas e todo o tipo de doces. O avô e a Ana
juntaram-se e trataram da grande maioria jogos. Depressa ficou
tudo pronto, só faltava o convidado especial; Ana mostrava-se
entusiasmada, não conseguia controlar a ansiedade e parar de olhar
o relógio, as quinze horas pareciam não querer chegar.
Entretanto, quando ela menos esperava estavam a tocar à
campainha: Miguel acabava de chegar. Aos olhos da avó São,
parecia-lhe, particularmente, diferente: naquele dia, a mãe de
Miguel tinha conseguido um alguidar com água quente e tinham
podido tomar um banho decente. Miguel apareceu sem o chapéu
amarelo, de palha, na cabeça, bem penteado e até ligeiramente
perfumado. Uma vizinha também tinha dado à dona Maria José,
alguma roupa nova do filho mais novo, que já não lhe servia e que
Miguel podia usar. Era roupa praticamente nova, sem acentuadas
marcas de uso, estava mesmo em excelente estado; por isso,
Miguel ostentava um aspecto muito mais limpo e cuidado e fazia
por mostrá-lo ainda que de uma forma discreta.
Vestia: umas calças de ganga praticamente novas, muito
diferentes das que ele costumava usar: velhas, desbotadas e rotas,
uma camisa de meia-estação de padrão-axadrezado entre o azul e
o vermelho. E calçava umas sapatilhas novas, sem buracos feitos
pelas traças, que tremeluziam limpeza, o amarelo-torrado
destacava-se, até parecia que brilhava ao longe. Miguel mostrava-
se feliz, orgulhoso e satisfeito pela roupa nova que vestia; na sua
cabeça pairava a ideia de que, talvez assim, Ana quisesse, mais
facilmente, ser sua amiga. Esperava que o final daquele dia lhe
desse as respostas que ele tanto esperava e desejava.

77
— Olá! Boa tarde! — Cumprimentou Miguel.
— Boa tarde, Miguel! Entra, a Ana já está nas traseiras à tua
espera. Vem comigo, eu levo-te até lá.
— Obrigado dona São! — Agradeceu ele, sorrindo.
— Ai, por favor, não me trates por dona São. Esquece lá isso,
senão sinto-me mais velha. Sou só avó São, está bem?
— Está bem! Peço desculpa…

Entrou no portão preto de acesso às traseiras da casa e


acompanhou a avó de Ana; de seguida entraram em casa,
atravessaram o corredor e a avó deixou-o logo na cozinha a
conversar com o avô; enquanto se dirigiu ao jardim para chamar
Ana que andava entretida a brincar com o Faísca no pátio.
— Não queres vir à cozinha, ver quem chegou?
— Oh, Meu Deus! O Miguel já chegou?
— Já! Anda!
— Fixe! Larga Faísca, voltamos a brincar mais tarde! — Disse
ela para o cão, tentando afastá-lo das suas pernas.
Já na cozinha, Ana e a avó encontraram Miguel sentado à mesa
a conversar com o avô.
— Olá!!! — Cumprimentaram elas. Ana aproveitou e deu dois
beijinhos a Miguel e sentou-se ao lado dele.
— Olha, quem temos aqui! — Disse o avô.
— Então estiveram a conversar sobre o quê? — Perguntou a
avó depois de sentar-se também à mesa.
— Sobre nada em especial! O Miguel esteve a contar-me
algumas coisas sobre ele. Sabiam que ele também é adepto do
Sporting Clube de Portugal? É cá dos meus!
— E que mais coisas contou ele? — Questionou Ana toda
entusiasmada e cheia de curiosidade.
— Gosta imenso de andar de bicicleta e de desenhar, até me
prometeu que um dia destes vai trazer o seu caderno para nos vai
mostrar alguns dos desenhos. Também adora motas e tem o grande
sonho de ter uma mota para poder viajar e conhecer sítios novos e
paisagens únicas.

78
— Uau! Eu nunca andei numa mota a sério… Quando tiveres
uma, levas-me contigo, Miguel? — Perguntou-lhe ela, quase de
uma forma suplicante.
— Levo, pois e com todo o gosto! — Disse-lhe ele muito
simpático.
— Boa!!!!
— Mas com muita cautela, porque as motas são bastante
perigosas, nada de altas velocidades! — Recomendou o avô.
— Não se preocupe, senhor António! Eu levo a Ana com todo
cuidado, prometo!
— Ainda bem! Eu sei que tu és um bom rapaz!
— E que tal se petiscássemos qualquer coisa? — Propôs a avó.
— Nós queríamos ir brincar primeiro, não é Miguel? Tu queres
vir brincar comigo, até lá fora? — Perguntou-lhe ela.
— Posso ir? — Perguntou ele aos avós de Ana com um ar
comprometido, tímido e envergonhado.
— Claro que sim! Vão lá e divertiam-se.

Ele pegou na mão dela, levantaram-se apressadamente da mesa


e saíram disparados até à porta que dava acesso às traseiras da casa
e ao jardim. Estiveram divertidíssimos à jogar ao berlinde, à
macaca e às escondidas, a saltar à corda e ao elástico e a correr atrás
do Faísca, que também estava eufórico. Já se notava aquele brilho
de felicidade nos olhos de Miguel, ele parecia um rapaz
completamente diferente: alegre, extrovertido e divertido.
Depressa a amizade entre os dois começou, aos poucos, a
intensificar-se.
Após muitas brincadeiras, Ana decidiu propor algo a Miguel:
— E se fôssemos, lanchar? Já tenho fome…
— Por mim pode ser! — Disse-lhe ele sentindo-se já um pouco
mais à vontade.
— O que é que vais comer?
— Pode ser o mesmo que tu; mas agora só queria mesmo um
copo de água fresca. Arranjas-me, por favor? — Pediu-lhe ele com
delicadeza.
— Claro! Vem comigo!

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António e Conceição continuavam à conversa na mesa da
cozinha, até se assustaram quando os sentiram entrar.
— Que grande correria vem a ser esta? — Perguntou a avó
muito bem-disposta.

— Desculpa avó! Só queríamos mesmo um copo de água bem


fresca, por favor; estamos a morrer de sede. Está um calor enorme
lá fora… — Disse Ana.
— E vocês não pararam um segundo, que nós estivemos a ver-
vos aqui da janela; nas não seja por isso… — Disse a avó que se
levantou logo da mesa, dirigiu-se ao frigorífico, tirou uma garrafa
de água fresca e encheu logo dois copos, que eles esvaziaram, de
imediato, e de uma vez só, tal era a sede. Depois encheu uma
caneca e colocou-a em cima da mesa para eles levarem para o
jardim.
— Obrigada, avó!
— De nada! Brinquem com cuidado!
— Nós prometemos que nos portarmos bem e que vamos ter
muito cuidado e juízo!
— E tenham atenção ao levarem a caneca para não se
magoarem! — Alertou a avó.
— Eu tomo conta da Ana e levo a caneca!

Regressaram ao jardim, pousaram a caneca em cima da mesa,


e lancharam precisamente o mesmo: um sumo de laranja e uma
tosta mista; enquanto conversavam: falaram um pouco de tudo
para se conhecerem melhor. Miguel revelou-se um rapaz bem
diferente daquilo que ela tinha conhecido da primeira vez: alegre,
simpático, atencioso, divertido, e bem-humorado. Deram valentes
gargalhadas, juntos. E aos poucos descobriram que, apesar de
serem diferentes, até tinham imensas coisas em comum: gostavam
dos mesmos pratos de comida e de jogar os mesmos jogos, até
descobriram um pormenor muito interessante: faziam anos no
mesmo dia, algo que deixou Ana bastante feliz e entusiasmada.
Tinha acabado de ter uma grande ideia…

80
A tarde passou bem depressa e a empatia entre ambos foi tanta,
logo à primeira vista, que perderam, literalmente, a noção do tempo
e das horas com as conversas que foram tendo. Quando se
aperceberam já era quase hora do jantar.
— Tenho que me ir embora, Ana! — Disse-lhe ele já com o seu
ar triste.
— Oh! Já?! Mas ainda nem experimentámos os jogos que eu
estive a preparar com o meu avô…
— Eu sei! Mas, tem mesmo que ser! Desculpa, fica para a
próxima!
— Oh! Eu queria tanto que ficasses mais um bocadinho para
experimentarmos os vários jogos e podermos dar um passeio na
minha bicicleta. E depois até podias jantar cá em casa comigo. —
Disse-lhe ela muito triste.
— Também gostava muito de ficar mais um pouco; mas não
posso, porque os meus pais estão à minha espera para jantar. Ainda
assim, obrigado pela tarde, gostei imenso de te conhecer melhor e
diverti-me imenso!
— Também gostei imenso de brincar contigo. — Disse-lhe ela
sorridente, dando-lhe um inesperado abraço.
— Desculpa por te ter tratado mal no outro dia e por ter sido
antipático, não queria magoar-te. Desculpas-me?
— Não faz mal! Já passou! — Disse-lhe ela sorridente e feliz.
— Volta sempre que quiseres! — Disse a avó São.

Miguel e trocou com o avô António que estava sentado numa


cadeira de balançar, junto a entrada da cozinha, um sorriso feliz.
António acenou-lhe e Miguel correspondeu acabando por perceber
que o avô de Ana tinha tido sempre razão quando lhe havia dito
que Ana não era como os outros meninos. E de facto, ele tinha
comprovado que Ana era uma amiga muito especial; pois ela tinha-
lhe mostrado que gostava muito dele e da sua companhia, mesmo
que ele tivesse pouco dinheiro e vivesse com dificuldades.
Joana e Pedro regressaram à quinta, jantaram todos bem cedo e
depois juntaram-se no alpendre para dois dedos de conversa,
parecia que Ana tinha muito para lhes contar:

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— Amanhã eu posso ir chamar o Miguel para vir brincar
comigo? — Perguntou ela ao avô.
— Se os teus pais não tiverem nada a opor, por mim não há
problema. Ele é bom rapaz, não têm porque preocupar-se. — Disse
logo o avô.
— Sendo assim, nós também não temos nada contra! — Disse
Pedro.
— Fixe!!! — Disse Ana muito eufórica.
— Essa amizade parece mesmo um caso sério; já estou a ver
que gostas mesmo muito de brincar com o Miguel! — Disse-lhe a
mãe.
— Gosto imenso! Ele é o meu primeiro amigo na quinta e gosto
muito dele. Há muito tempo que não me divertia tanto como hoje,
ele faz-me rir e é divertido.
— Eu vou com ela e mostro-lhe onde é a casa deles, não é
muito longe daqui. Depois ela até pode passar a ir de bicicleta até
lá.
— Pronto, está bem! — Disse Joana.
— Sabiam que o Miguel faz anos no mesmo dia que eu? O que
acham se nós fizéssemos a festa de anos, juntos? — Propôs ela.
— Ui! É melhor irmos com muita calma; porque ainda agora
acabaste de conhecer o Miguel. Temos que ponderar bem essa
hipótese e que pensar sobre isso mais tarde, está bem? — Disse-
lhe o pai.
— Está bem! Mas eu adorava poder festejar os anos com o
Miguel.

No regresso a casa, Miguel sentia-se bastante eufórico e feliz


pela tarde que tinha tido na quinta dos avós da nova amiga, tinha-
se divertido imenso. Há muito tempo que os pais não o viam assim
tão entusiasmado; em plena hora do jantar, ele partilhou tudo com
eles: o que tinha feito, o que tinha aprendido, as conversas que tinha
tido com a nova amiga e como tinham sido todos tão simpáticos.
— O lanche em casa do senhor António e da dona São correu
bem? Portaste-te bem? — Perguntou-lhe a mãe, com a voz a

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transbordar alguma preocupação; enquanto levava uma garfada de
bacalhau à boca.
— Correu sim, mãe! Sabe que eu me porto sempre bem.
— Eu sei que sim! Come, não deixes arrefecer a comida; este
Bacalhau à Espanhola ficou mesmo uma maravilha.
— Tu vê lá… Nada de fazeres disparates! Sabes que nós já
conhecemos o senhor António e a dona São há anos e eu não quero
vir a ter queixas a teu respeito. Eles ajudam-nos muito e são gente
de bem; por isso, sempre que fores à quinta brincar com a neta
deles, tens que respeitá-los, que fazer tudo o que eles mandarem e
que tratar bem a menina Ana, ouviste?
— Ouvi sim, pai! Não se preocupe!
— Espero bem que sim!
— Deixa o teu filho em paz, homem! Até hoje, tens tido alguma
queixa dele?
— Felizmente, até agora não… Mas se vier a ter, ele já sabe que
fica de castigo.
— Oh! Tu já sabes que ele se porta sempre bem.
— Pois… Mas por vezes os gaiatos desta idade tendem a
descuidar-se…
— Não ligues ao teu pai, filho! O mais importante foi teres-te
divertido. — Disse-lhe a mãe
— Nunca tinha visto uma quinta assim, tão grande, tem
imensos animais, principalmente cavalos e tem um lago com patos.
A Ana mostrou-me o lagar do azeite e a fábrica de queijo, depois
aproveitamos para jogar às escondidas, à macaca e à apanhada. Foi
mesmo bom. — Disse Miguel sorridente.
— Que bom, meu filho! Fico mesmo feliz por ti!
— Um dia destes, eu posso voltar à quinta, para brincar outra
vez com a Ana?
— Por mim, podes! Não há problema nenhum…
— Posso, pai?
— Se te portares com juízo, podes!
— Prometo! A Ana é uma amiga diferente: quer a minha
amizade e a minha companhia e aceita-me tal como sou. Isso é
muito importante, não é mãe?

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— É mesmo! Nos tempos que correm e na sociedade em que
nós vivemos: onde quem é pobre não têm lugar certo, o que faz
falta, são pessoas assim: compreensivas. Ainda bem que ainda, há
neste mundo, gente boa, respeitadora e com bom um coração, que
não julga os outros por aquilo que são, mas que sabe aceitá-los
como são.
— Concordo plenamente!
— No entanto, não deixo de ter medo de uma coisa.
— De quê, mãe? — Perguntou-lhe ele algo pensativo.
— Que te magoes, ou seja, que cries muitas expectativas e
ilusões com essa amizade e que ela acabe por não ser nada daquilo
que esperavas e imaginavas e que acabe por ser uma desilusão para
ti.
— Mas isso não vai acontecer, vai ver!
— Espero mesmo que não, filho! Não quero que sofras mais
desilusões; por isso tem cautela!
— Vou ter, mãe! Não se preocupe… Posso levantar-me da
mesa?
— Podes, sim! Leva o teu prato para a cozinha…

Na quinta, Joana e Pedro ficaram a pensar na ideia de Ana, para


o seu aniversário, que era bastante interessante e divertida. E se
conseguissem trazer os colegas da turma de Ana para participarem
na festa, melhor ainda; era perfeito e Ana iria delirar.
Os avós prontificaram-se, desde logo, a ajudar em tudo o que
fosse preciso e o avô António até se lembrou que seria um belo
prémio a oferecer à neta por ter ganho o desafio que tinham feito
durante o tratamento aos cavalos. Pedro prometeu tratar de tudo, o
mais depressa possível: iria falar com a professora Filipa para saber
se era possível ela fazer chegar o convite para a festa aos pais dos
colegas de Ana.
E assim fez, quando Ana se encontrava no jardim com o avô,
Pedro começou a tratar de tudo; a professora Filipa achou a ideia
fantástica, era uma boa forma de os colegas de Ana se divertirem e
passarem uns dias num ambiente diferente do ambiente da cidade:
sem poluição, onde pudessem conviver com vários animais,

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brincar ao ar livre, fazer praia e desfrutar da natureza. Prometeu
fazer o que estivesse ao seu alcance para que a ideia fosse para a
frente e Pedro ficou expectante, achava que iria fazer bem a todos
um bocadinho de agitação.

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86
A
na acordou bastante cedo, não tinha conseguido
pregar olho a noite inteira, por causa da euforia de ir
buscar Miguel para passarem uns dias juntos na
quinta. O avô prontificou-se a acompanhá-la; mas
para isso teve que acordar bastante mais cedo que o
habitual, quase no romper da aurora (ainda estavam todos a
dormir), para tratar das tarefas da quinta: acomodar a bicharada,
tratar dos cavalos, regar o jardim e a horta, fazer as limpezas e tratar
de tudo o resto. Quando Ana chegou à cozinha para o pequeno-
almoço, o avô já estava pronto e à sua espera: de boina axadrezada
na cabeça, vestido com o seu macacão azul e calçado com as suas
galochas verdes.
— Bom dia, querida! Estás pronta para irmos buscar o Miguel?
— Perguntou-lhe ele sorridente e bem-disposto.
— Estou, pois! — Disse-lhe cheia de entusiasmo, depois de se
sentar à mesa para tomar o pequeno-almoço: bebeu o leite com
chocolate e levou o pão na mão para comer pelo caminho, para não
demorarem mais tempo, não aguentava esperar mais.
O avô António pegou nas chaves da carrinha e fizeram-se à
estrada, num ambiente alegre e bastante descontraído. Demoraram
pouco mais de vinte minutos a chegar à casa de Miguel. O avô
António estacionou junto ao portão da casa, saíram da carrinha e
Ana tocou a campainha. Depois sentaram-se junto ao muro da
casa; enquanto esperavam, ela mostrava-se muito sorridente,
estava ansiosa por poder brincar com Miguel outra vez e a espera
de milésimas de segundo parecia uma verdadeira eternidade.

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Algum tempo depois, uma voz de mulher que aparentava ter
quarenta e poucos anos respondeu:
— Só um momento por favor! Quem é? — Perguntaram do
outro lado da porta.
— Olá! Bom dia dona Maria José! Sou o senhor António da
Quinta da Juventude.
— Bons dias senhor António! Desculpe a demora, sabe que
com os tempos que correm não se pode abrir a porta a qualquer
pessoa. — Disse-lhe Mizé.
— Ora essa! Não faz mal, esteja à vontade! Eu sei que hoje em
dia todo o cuidado é pouco…
— Então, o que é que o traz por cá? — Perguntou-lhe ela de ar
simpático e acolhedor, eram pessoas bastante simples e humildes.
— Eu vim com a minha neta pedir-lhe se podia deixar o Miguel
ir passar uns dias lá à quinta.
A mãe de Miguel ficou um pouco pensativa, mas depois não
hesitou na resposta.
— É claro que deixo… Ele gostou muito do lanche do outro
dia, veio muito feliz e entusiasmado. Fartou-se de nos contar coisas
sobre o que tinha feito e aprendido, o que tinha visto e as
brincadeiras que tinha feito com a sua neta.
— Que bom! Fico muito contente que assim tenha sido!
Ana olhou para o avô e mostrou um rasgado sorriso, do
tamanho do universo.
— Sabe como é… Viver aqui na aldeia não é fácil e o Miguel
andava sempre tristonho, cabisbaixo e a lamentar-se por não ter
muitos amigos com quem brincar.
— Eu sei! Percebo perfeitamente a sua preocupação.
— No entanto, a companhia da sua neta, sair daqui uns dias para
ir para a quinta e mudar um pouco de ares, vão fazer-lhe muito
bem. Vai ser bom para ele, ter alguém com quem se entreter.
Passava o tempo todo a dizer que, não tinha amigos nem ninguém
com quem falar, nem com quem se divertir; alguém da idade dele,
percebe, que goste das mesmas brincadeiras que ele.
— Fixe!!! — Disse logo Ana muito contente.

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— Mesmo assim eu vou chamá-lo porque não sei se ele quer ir.
Mas entrem, entrem, estejam à vontade; querem comer ou beber
alguma coisinha? — Ofereceu ela.
— Não, obrigado! Acabamos mesmo agora de tomar o
pequeno-almoço!
Ana e o avô aguardaram no hall de entrada da casa.

A casa onde vivia o Miguel e a sua família era uma casa


pequena e de construção antiga e rústica; tinha paredes simples,
revestidas a madeira e pouco impermeabilizadas, não tinha havido
atenção a esses pormenores. As janelas também eram feitas em
madeira, fazendo com que a casa conservasse pouco o calor; por
isso, no Verão era uma casa fresca, mas no Inverno era muito fria.
Feita de pedra no interior, aquecê-la era uma missão difícil, a
família Ribeiro contornava os dias mais frios usando cobertores e
mantas e vestindo mais roupa.
Não tinham luz, água quente ou saneamento, os banhos eram
dados numa bacia com um fervedor com água quente que Mizé
aquecia em casa dos vizinhos; os alimentos que precisavam de
estar mais frescos eram guardados na zona mais fresca da casa, pois
ainda não havia frigorifico. Tinha o chão em soalho, bastante
desgastado, as paredes tinham a tinta descascada e o tecto
apresentava várias manchas de humidade. O telhado era bastante
antigo, nunca tinha sido arranjado e como já havia várias telhas
partidas, quando chovia deixavam passar a água. Era uma casa
com apenas rés-do-chão, onde havia cinco divisões: dois quartos,
uma casa de banho, uma cozinha, paredes meias com uma sala e
uma despensa minúscula. Mas apesar de tudo era uma casa muito
asseada e arejada, tinha sempre um aroma a limpo.
— Olá! Bons dias! — Cumprimentou-os Miguel acabado de
chegar.
— Olá, Miguel! — Cumprimentou-o Ana, dando-lhe um
abraço, parecia que já se conheciam há uma eternidade
— A Ana depois da vossa tarde animada de ontem, não
sossegou; enquanto não a trouxe cá para pedir à tua mãe que te

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deixe vir passar uns dias com ela à quinta. O que me dizes? —
Perguntou-lhe o avô.
— Pois, eu sei! A minha mãe já me contou! — Disse ele um
pouco tímido, mas alegre e bem-disposto.
— Oh Miguel, por favor, diz que sim! Anda lá, vem connosco!
— Suplicou-lhe ela.
Miguel mostrou-se eufórico e excitado, mas pensativo durante
alguns momentos.
— Posso ir, mãe? — Pediu-lhe ele, sorrindo timidamente.
— Por mim, podes; desde que te portes bem e faças tudo o que
o senhor António e a dona Conceição mandarem.
— Eu prometo que me porto bem! — Disse ele à mãe.
O seu coração batia aceleradamente, tal era a ansiedade e o
entusiasmo de ir passar uns dias com a sua nova amiga na quinta.
— Sendo assim, podes ir buscar as tuas coisas! Vê lá se não te
esqueces de nada!
— Vou já, já! — Disse ele muito depressa, desaparecendo a
correr.
— Traz o teu fato-de-banho! — Gritou Ana.
Mizé e o avô António não conseguiram deixar de rir à
gargalhada. Miguel voltou num piscar de olhos, de sorriso rasgado
e sacola às costas, a felicidade estampada no seu rosto falava por
si, já os sábios diziam que os olhos são o espelho da nossa alma e
que um sorriso vale mais que mil palavras… e era bem verdade.
— Vais adorar a quinta! Quando chegarmos mostro-te tudo!
— Inté, mãe! — Disse ele à mãe, despedindo-se com um abraço
e dois beijinhos.
— Porta-te bem e não te esqueças daquilo que te disse!
— Não se preocupe! Vai correr tudo bem!

Regressaram à quinta e Ana foi logo mostrar a Miguel, o seu


cantinho secreto e partilhar com ele todas as suas coisas e todas as
brincadeiras que ela mais gostava de fazer. Miguel adorou tudo e
acabou também por ficar instalado, junto de Ana, num cantinho
especial que os avós acabaram por preparar para ele, para não
terem que separar os dois mais recentes amigos. Aproveitaram para

90
fazer, um dos puzzles preferidos de Ana; ela já o havia feito muitas
vezes; mas voltar a fazê-lo, naquele preciso e exacto momento, era
especial, pois tinha a companhia de Miguel. E também
conversaram, Ana não perdeu a oportunidade de falar ao novo
amigo sobre Picasso.
— Quando terminarmos o puzzle quero apresentar-te o Picasso.
Vais adorar!
— Quem é o Picasso? — Perguntou-lhe ele curioso.
— É o papagaio falante dos meus avós e é o máximo! — Disse-
lhe ela entusiasmada.
— Uau!!! Os teus avós têm um papagaio falante?
— Sim, têm! Porquê?
— Por nada! Como nunca vi nenhum ao vivo, só nos livros de
histórias que às vezes me emprestam ou oferecem; pensei que nem
existissem de verdade.
— Eu também nunca tinha visto nenhum de perto, é a primeira
vez. Tens mesmo que ir vê-lo, é mesmo divertido. Vamos fartar-
nos de rir, juntos, com ele.
— A sério?!
— Sim… Vais ver!
— E ele fala mesmo como dizem?
— Fala, pois! E garanto-te que não se cala. Como diz o meu
avô, parece-se mais com uma verdadeira gralha.

Miguel sorriu e mostrou-se expectante e curioso. Ana pegou na


mão dele e correram até à marquise para verem Picasso, que estava
sossegado e de olhos bem fechados: como que meio adormecido,
no seu poleiro, tinha mesmo um ar angelical, escondido por detrás
da sua verdadeira rebeldia. Ana decidiu incentivar Miguel a
cumprimentar o pássaro, para ver o que ele fazia. Ele ficou um
pouco renitente, apesar da imensa expectativa; no entanto, Ana
disse-lhe para não ter medo porque Picasso jamais lhe faria mal e
ele decidiu arriscar. Ele respondeu ao cumprimento, abrindo os
enormes olhos: como se fossem duas esferas verdes, olhando para
Miguel e batendo energicamente as asas. Miguel ficou rendido e
deslumbrado com o animal, quanto mais coisas, ele dizia; mais o

91
pássaro repetia. Para além disso, perdeu a conta à quantidade de
carícias que fez a Picasso, se pudesse pegava nele e levava-o para
a sala, para junto com Ana poderem brincar com ele. No entanto,
Miguel sabia que os pássaros eram animais sensíveis e que
gostavam de sossego; por isso por ali ficaram os três: por entre
muitas gargalhadas, brincadeiras sem fim e troca de galhardetes.
Divertiram-se bastante. A seguir almoçaram em grande clima de
animação e descontracção e à primeira vista Miguel parecia ser um
rapaz muito educado, simples, interessado, e que gostava muito de
ajudar.
Após o delicioso almoço, Ana decidiu fazer um convite especial
ao novo amigo:
— Miguel, tu queres vir dar um passeio de bicicleta comigo?
— Adorava! — Disse-lhe ele de imediato, com um brilho
instantâneo no olhar — Achas mesmo que podemos ir? Os teus
pais e os teus avós deixam?
— Sim! Sem problemas!
— Sabes, eu sempre gostei muito de andar de bicicleta, era dos
poucos brinquedos que tinha; mas há muito que não ando, porque
a que eu tinha estragou-se e os meus pais não me podem dar uma
nova.
— Não faz mal, andas na minha!
— Oh! Obrigado por partilhares a tua bicicleta comigo. Posso
mesmo andar nela?
— Sim! Vai ser fixe, passearmos juntos pelos campos!
— Pois, vai! E cabemos os dois na tua bicicleta?
— Cabemos, pois! A minha bicicleta tem dois lugares!
— Porreiro!
Ana pegou na mão de Miguel e saíram da mesa a correr até ao
jardim, onde ela guardava a bicicleta.
— Queres ir tu a pedalar?
— Gostava muito, não te importas?
— Não! Não me importo nada!
— Quando voltarmos, vens tu a pedalar! Pode ser?
— Combinado!

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Miguel sentou-se no assento da frente e Ana sentou-se logo
atrás dele. Felizes e contentes, pedalaram pelos campos fora,
partilhando inúmeras conversas e sorrisos. Mais importante que a
diferença era saber entender o verdadeiro sentido da partilha. A
tarde foi passada a experimentarem os jogos que Ana e o avô
tinham preparado para a tarde anterior; mas que tinham ficado por
estrear. Divertiram-se imenso: correram, pularam, riram, jogaram
à bola, saltaram à corda, jogaram à apanhada, à cabra cega e até ao
berlinde. A brincadeira durou até bem perto da hora do jantar.
Na cozinha, os adultos mostravam-se surpreendidos e
completamente estarrecidos, à janela, a vê-los brincar e a ouvirem
as suas gargalhadas, Miguel não parecia o mesmo rapaz que Ana
tinha encontrado junto aos campos de trigo há dois dias atrás.
Notava-se mesmo um brilhozinho nos seus olhos e uma felicidade
que não passava despercebida a ninguém, por momentos ele tinha
esquecido tudo o que o deixava triste, principalmente o facto de ser
pobre e de os pais terem poucas possibilidades económicas, e
estava a viver ao máximo cada momento, ali na quinta. Finalmente,
ele tinha encontrado alguém com quem partilhar as mais diversas
brincadeiras e até já tinha aprendido jogos novos que até então
desconhecia. Ele estava a aprender o que era ter uma verdadeira
amiga, alguém que gostava de desfrutar da sua companhia sem se
importar com o facto de ele ser pobre; quem olhasse para Ana e
para Miguel, juntos, não diria que eles se conheciam apenas há
menos de vinte e quatro horas. Parecia que eles se conheciam,
desde sempre, havia uma empatia e uma cumplicidade incríveis.
Entretanto, a avó São chamou para jantar. Ana e Miguel
entraram em casa ofegantes (quase sem fôlego) de tanto correrem,
rirem e saltarem a tarde toda, lavaram as mãos e sentaram-se à
mesa; quase não mastigavam, nem provavam a comida tal era a
pressa para irem novamente brincar, queriam aproveitar o tempo
em pleno. A energia dos dois parecia inesgotável. Num ápice, eles
já estavam na sala a ver televisão e a jogarem Mikado, as muitas
gargalhadas continuavam a preencher a casa, nunca tinham visto
Ana tão feliz. Ter ali Miguel, estava a ser com certeza a melhor
coisa daquelas férias.

93
Antes de irem dormir, houve um serão bem animado com
Miguel a contar imensas anedotas e piadas secas, que puseram toda
a gente a rir-se à gargalhada até doerem os músculos da barriga. A
noite estava estrelada e o céu limpo como era característico nos
longos meses de Verão, Ana decidiu falar ao amigo de uma
música, de que se tinha lembrado naquele preciso e exacto
momento que o avô António gostava muito e que andava sempre
a cantarolar quando andava a trabalhar pela quinta. Até ela já sabia
a letra quase toda de cor chamava-se Não há estrelas no céu e era
cantada por um senhor chamado Rui Veloso.

Na manhã seguinte, a avó Conceição e Miguel foram os fortes


madrugadores, pelo cantar do galo e com o Sol ainda a raiar no
horizonte já andavam na horta na apanha dos legumes e da fruta.
Miguel andou sempre deliciado a ouvir as muitas histórias de vida
da avó, nunca pensou que a vida numa quinta fosse tão
interessante. Já a manhã ia longa quando apareceu Ana.
— Bom dia! Já estão a pé? — Perguntou ela ainda com cara de
sono.
— É verdade! O Miguel deu-me uma preciosa ajuda na apanha
dos legumes e de algumas frutas, agora o sol já vai muito alto e por
isso está na altura de regressarmos a casa, para o fresco, já não se
pára aqui fora com o calor.
— Quer ajuda para levar tudo até casa, avó São?
— Não é preciso, obrigada! Já me ajudaste muito. Agora, vai lá
brincar com a Ana que já mereces, não faças esperá-la mais;
divirtam-se e tenham cuidado com o sol, levem um chapéu! —
Recomendou.
— Está bem, não se preocupe que nós temos cuidado! Mas não
quer mesmo ajuda? Veja lá, não me custa nada, a sério… —
Insistiu, ele.
— Deixa estar, meu filho! Agradeço-te muito a simpatia e
disponibilidade. Eu desenrasco-me bem sozinha.

Quando menos esperavam, ouviu-se um assobio. Ana e a avó


reconheceram-no imediatamente; pois conheciam aquele assobio

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de ginjeira: era do avô. Algo se passava e a curiosidade adensou-
se, Ana e Miguel desataram a correr atrás daquele som, que parecia
vir da capoeira.
— Olá, avô! O que é que se passa? — Perguntou Ana depressa.
— Já temos elementos novos aqui… — Disse-lhe o avô alegre
e sorridente.
— A sério? Já nasceram?
— O que é que já nasceu? — Perguntou Miguel confuso e
intrigado.
— Os pintainhos! Anda ver! — Disse-lhe ela pegando na mão
do amigo e desataram a correr até junto do avô, para verem melhor
os novos membros da quinta.
— Calma, Ana! Anda devagar! — Pediu-lhe ele.
— Blhac! Oh avô, eles são tão feios… — Exclamou Ana
bastante desiludida.
— Só ficam amarelos e lindos mais tarde! — Explicou o avô
rindo-se.
— Agora precisam de muita proteção e atenção por parte da
mãe e também alguns cuidados com a comida, não é?
— Isso mesmo! Ainda são muito pequeninos e indefesos; por
isso precisam de muitos cuidados! Vejo que estás bem
informado…
— Quando eu era mais pequeno lembro-me de os meus avós
também terem galinhas e de ser também o meu avô a cuidar delas,
ele era muito exigente, assim mais ou menos como o senhor
António.
— Ah! Muito obrigada pelo elogio! — Agradeceu o avô.
— De nada! Aquilo que sei foi ele que me ensinou.
— É sempre bom aprender coisas novas. É para isso que cá
estamos…
— O que é que comem eles? — Perguntou Ana.
— Por enquanto, comem farelo, rações próprias e pão
demolhado que eu arranjo; quando forem mais crescidos é que
começam a comer couves cegadas.
— Podemos dar-lhes de comer? Gostávamos muito, não é
Miguel?

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— Sim! Sim!
— Hoje, ainda não! Mas amanhã deixo-vos, sim? — Disse o
avô.
— Está bem!

Ana aproveitou o resto da manhã para mostrar toda a quinta a


Miguel, que ficou estupefacto com tudo: com os animais, com as
árvores, com as flores, com o moinho, com a fábrica do queijo,
com o lagar do azeite; assim como toda a rotina da quinta que ela
fez questão de explicar-lhe com todo o pormenor.
No entanto, como se aproximava a hora do almoço, Ana
decidiu guardar para a tarde a melhor parte da visita guiada à
quinta; almoçaram nas traseiras da quinta, a avó São com a ajuda
dos pais de Ana pôs uma mesa junto ao lago, com um grande
guarda-sol para se protegerem do calor e foi assim que decorreu o
almoço: ao ar livre, bem perto da natureza. Também não faltaram
muitas conversas à mistura; dois dias depois de Miguel chegar à
quinta, este já se sentia completamente integrado e à vontade com
toda a gente, fartou-se de contar histórias e falou um pouco de tudo
o que já tinha aprendido e descoberto na quinta. Já parecia um
miúdo diferente e isso notava-se a olhos vistos, desde que ele tinha
chegado.
— Vem comigo, quero mostrar-te uma coisa! — Disse-lhe ela,
levantando-se da mesa, pegando na mão do amigo e desatando a
correr.
— Aonde vamos? — Perguntou-lhe ele curioso.
— É uma surpresa! — Disse-lhe ela toda apressada.
— Que fixe! E o que é? — Perguntou-lhe ele curioso, desatando
a correr atrás da amiga.
— Já vais ver… — depois de alguns minutos a correrem sem
parar, pararam junto a uma porta — Chegamos!!!
— O que é que há por detrás desta porta?
— Se é surpresa, não te posso contar, não é?
— Isso não vale!
— Oh! Tu estás é com medo!
— Não estou nada! Eu não tenho medo de nada…

96
— Então, quero que feches os olhos, vou vendar-tos com este
lenço. Não vale espreitar, senão é batota!
— Está bem!
— Não estás a ver nada, pois não?
— Não! Podes confiar. Estou a falar a sério…
Ana abriu as portas do estábulo, deu a mão ao amigo e entraram
os dois juntos, depois cheia de entusiasmo retirou-lhe o lenço dos
olhos e gritou:
— Surpresa!!!!
— Uau!!!! Que espetáculo! Tantos cavalos… São todos teus?
— Achas? São do meu avô e aquela ali é a minha égua, chama-
se Palmira — Disse-lhe ela, mostrando-lhe uma égua branca que
estava numa cavalariça, na ala direita.
— É linda! Obrigado por esta surpresa, gostei muito!
E mecanicamente trocaram um forte abraço; mas Ana acabou
por não reparar que o seu novo amigo tinha cedido às emoções
fortes e libertado, algumas singelas lágrimas.
— De nada! Estou a adorar estar aqui na quinta contigo! —
Disse-lhe ela comovida.
— Eu também estou a adorar; para além disso, estou a passar
dias fabulosos. Arrisco até a dizer que estão a ser os melhores dias
da minha vida e de sempre. Tens sido uma amiga fantástica, para
mim és a irmã que eu nunca tive. — Disse-lhe ele embevecido e
emocionado.
— Sabes, tu já és o meu melhor amigo e eu gosto imenso de ti!
— Eu também gosto muito de ti! — Disse-lhe ele muito
envergonhado; na verdade nunca lhe haviam dito aquilo com tanta
ternura e franqueza.
— Porque estás a chorar? Estás triste? — Perguntou-lhe ela
preocupada.
— Oh, desculpa! — Anuiu ele sorrindo e limpando as lágrimas
com as mangas da camisola. — Como te disse, eu estou a adorar
estar aqui, na quinta, contigo; no entanto, eu fiquei um bocadinho
emocionado; porque nunca me tinham dito que gostavam assim
tanto de mim, só mesmo os meus pais.
— A sério?!

97
— Sim…
— Ana abraçou-o novamente, reconfortando-o — Bem, queres
que te mostre os cavalos?
— Gostava muito!
— Então… Anda comigo, vou mostrar-te tudo!

E o tempo passou depressa; os dois amigos divertiram-se com


os cavalos e até tiveram a oportunidade de montar na égua Palmira
com a ajuda do professor Anselmo. Para Miguel era uma
experiência completamente nova, algo que nunca tinha
experimentado e experienciado; por isso, ele gostou imenso de
poder cavalgar pela primeira vez. Foi um momento inesquecível
para ele.
Depois do jantar, começaram a ver um filme de desenhos-
animados; mas depressa caíram na cama estafados, tinham gasto
as energias todas ao longo do dia. Ana tinha por hábito ler sempre
uma história antes de dormir; mas naquele dia nem se lembrou
disso, tal era o cansaço. Tinha tido um dia em cheio, preenchido de
muitas actividades na companhia do seu novo amigo; apesar de
sentir-se estafada, estava feliz por, finalmente, ter alguém com
quem partilhar as suas brincadeiras preferidas e as suas férias na
quinta. Alguém capaz de conseguir partilhar do seu mesmo
entusiasmo e euforia.
Miguel tentava manter os olhos abertos, a muito custo…
— Estou estafado! Tu não?
— Eu também! Gostaste do dia?
— Adorei! Obrigado por me deixares passar estes dias aqui na
tua quinta, quer dizer… dos teus avós, sempre dão para distrair um
pouco.
— De nada! Vais ver que vais gostar disto!
— Eu já estou a gostar…
— Ana sorriu — Que bom! Estou muito contente por estares
aqui!
— Também eu! O que vamos fazer amanhã? — Perguntou-lhe
curioso.
— Ainda não sei!

98
— Está bem! Não faz mal…

Apesar do forte cansaço que sentiam, não conseguiram


adormecer sem fazerem um pacto muito especial…

99
iguel, tu queres ser o meu

—M
melhor amigo para sempre? —
Perguntou-lhe ela, já deitada na
sua cama.
— Adorava!
— Que bom!!! — Disse-lhe
ela de ar feliz, eufórico e entusiasmado.
— Sabes, durante este tempo todo, foste a primeira amiga que
tive.
— A sério?! — Exclamou ela espantada.
— Sim… — Entretanto, Miguel teve uma grande ideia —
Sabes, um dia, quando era pequeno assim como tu, o meu pai
ofereceu-me dois corações perfeitos, em madeira, feitos por ele, à
mão. Ando sempre com eles no bolso, acho que me dão sorte na
vida, vês? — Disse-lhe ele, ajoelhando-se ao seu lado e mostrando-
lhe os dois corações perfeitos que tinha acabado de retirar do bolso
das calças.
— Que lindos! Gosto muito! — Disse-lhe ela maravilhada.
— Toma, fica com um! Quero que andes com ele como prova
da nossa amizade eterna e para dar-te muita sorte. Tu mereces! —
Disse-lhe ele feliz e sorridente oferecendo-lhe um dos corações.
— Que máximo! Posso mesmo ficar com ele?
— É claro que sim! Podes e deves!
— Não te importas?
— Não! Não me importo absolutamente nada; esse é o meu
coração, andará sempre contigo para te proteger.
— Obrigada! Nunca mais vou deixá-lo… Prometo! — Disse-
lhe ela fechando a mão direita e encostando-a ao peito.

100
— De nada! E este, que tenho aqui, é o teu coração; também vai
andar sempre comigo. Bem, vamos dormir? — Perguntou-lhe ele
não tirando os olhos dela.
— Vamos! Estou mesmo cansada! Posso pedir-te uma coisa?
— Claro! Tudo o que tu quiseres!
— Dás-me a mão para eu poder adormecer?
— Dou, claro!
E de mãos dadas voltaram a tentar adormecer; mas Ana não
conseguia mesmo dormir.
— Miguel? Nós nunca mais nos vamos separar, pois não? —
Perguntou-lhe ela olhando-o, olhos nos olhos.
Miguel olhou-a, bem no fundo dos seus intensos olhos cor de
mar, fez-lhe uma festinha: suave, doce e ternurenta no rosto e de
sorriso nos lábios decidiu questioná-la, de ar muito admirado e
surpreendido:
— Porque perguntas isso?
— Por nada! Só para saber…
— Ana, connosco isso nunca vai acontecer. Prometo-te!
— Fixe! Boa noite! Gosto muito de ti!
— Eu também, minha princesa pequenina!

Ana adormeceu e Miguel voltou para o sofá onde acabou


também por ceder ao cansaço.

Na sala das actividades, onde Miguel e Ana estavam reunidos


com os meninos, a contar-lhes esta história, o ambiente era de
grande concentração e atenção, não se ouvia qualquer tipo de ruído.
Aquele grupo de crianças: sentados em círculo, no chão, em cima
de almofadas de várias cores, não conseguia tirar os olhos deles,
estavam entusiasmadíssimos com a história da qual aqueles dois
adultos, tão especiais para eles, eram os grandes protagonistas.
Naquele preciso e exacto momento da história, Ana e Miguel
tinham praticamente a idade deles; por isso, estava a ser uma
grande aventura, o entusiasmo fazia-se sentir em toda a sua
intensidade.

101
— Mikas, e depois? Tu e a doutora Ana ficaram mesmo amigos
para sempre? — Perguntaram-lhe eles cheios de curiosidade.
— Hummm… — Miguel riu-se e mostrou-se disfarçadamente
pensativo — O que é que vocês acham? — Desafiou-os ele.
— Acham que sim, ou acham que não? — Perguntou-lhes Ana.
— Sim!!!! — Disseram logo eles, de imediato, fazendo uma
grande festa.

Ana e Miguel entreolharam-se e sorriram: embevecidos, felizes


e contentes; pelo facto de os seus meninos estarem a gostar tanto
da sua história, estarem a divertir-se imenso e mostrarem-se
entusiasmados e excitados com tudo; esquecendo-se por completo,
durante algum tempo, que estavam doentes. E de a história estar a
inspirá-los tanto. Miguel tinha tido uma excelente ideia ao decidir
contar aos meninos a história especial que o unia à Ana;
inicialmente, ela tinha-se mostrado renitente relativamente à ideia
dele, mas agora estava completamente rendida à forma como os
meninos tinham recebido a história, com tanta felicidade e
entusiasmo, e às várias reacções que já tinham vindo a demonstrar
e que falavam por si.
— Bem, continuamos a história? — Propôs Miguel.
— Curiosos para saber se nós conseguimos realmente ser bons
amigos?
— Sim!!! Contem mais! Contem mais! Estamos ansiosos…
— Então, vamos fazer novamente silêncio?
— A doutora Ana ainda guarda, aquele coração que o Mikas
lhe deu na história?
— Claro que sim! Tenho-o guardado em casa, colocado num
fio como uma espécie de amuleto; um dia destes trago-o para
mostrar-vos.
— Fixe!!!
— Tu também o tens guardado num fio, Mikas? — Perguntou
a traquina da Andreia.
— Tenho! Qualquer dia combino com a nossa doutora
preferida e também trago o meu para verem!

102
— Os meninos sorriram — Vá, agora continuem com a história,
queremos saber o resto…

Eles sorriram e continuaram a mostrar-lhes o melhor da


amizade e como uma verdadeira amizade devia ser.
Os dias seguintes foram de pura diversão. Miguel e Ana
fartaram-se de ajudar o avô a dar de comer aos animais e a levar as
ovelhas a pastar, tiveram aulas de equitação — algo que fascinou
imenso Miguel porque nunca tinha contactado com cavalos tão de
perto. Ficou deslumbrado quando experimentou novamente a
sensação de montar a cavalo, confidenciando que tinha sido das
maiores e melhores sensações que tinha vivido. Apanharam frutas
e legumes, ajudaram a avó São com as compotas caseiras, com os
cozinhados e até com os bordados. Foram à praia, aonde tudo
servia para ponto de diversão: chapinhavam à beira-rio, corriam,
faziam castelos na areia, jogavam à bola e até faziam jogos com o
João.
Eles já eram inseparáveis, em tudo e não havia nada que eles
não planeassem, em conjunto. Quando acontecia alguma coisa era
com Miguel que Ana desabafava (e vice-versa) e era no novo
amigo que ela procurava aconchego, aquele abraço que só os bons
amigos sabem dar e aquele calor humano que nos conforta sem
medida, mesmo em crianças, quando tudo parece desabar sem
aviso prévio. Eles eram mesmo como almas gémeas: onde estava
um, estava o outro; para além disso, havia muita empatia e partilha
entre os dois. O que pensava e sentia um, pensava e sentia quase o
outro, era como telepatia completa. Pareciam autênticos e
verdadeiros gémeos.
Ainda aproveitaram para visitar o lagar do azeite, aonde Miguel
aprendeu como era feito o azeite de Rosas: desde que a azeitona
era colhida até ser transformada em azeite. Foram à fábrica do
queijo, aprender a fazer este delicioso produto com recurso ao que
era produzido na quinta e até puderam provar um bocadinho do
queijo com pão caseiro, por fim recolheram alguns dos produtos da
quinta com o avô para, no dia seguinte, irem com ele abastecer as

103
mercearias da vila mais próxima, Ana e Miguel também queriam
muito poder acompanhá-lo nesta tarefa.
Pelo final da tarde, durante um breve descanso, Ana e Miguel
decidiram conversar sobre o seu futuro:
— Já pensaste no que queres ser, quando fores grande? —
Perguntou-lhe Miguel de ar curioso.
— Já! Quero ser médica-pediatra como a minha mãe, para
também poder tratar dos meninos doentes. E tu?
— Pintor ou fotógrafo! Para poder dar a volta ao mundo a
desenhar ou a tirar fotografias.
— Isso deve ser o máximo!
— Pois deve! Mas o meu maior sonho é, quando tiver dinheiro,
poder ter uma máquina fotográfica. Sabias que o meu caderno de
desenhos; por enquanto, é como se fosse a minha máquina
fotográfica?
— A sério? Não sabia que tu gostavas de desenhar?
— Adoro! Um dia destes trago o meu caderno para tu veres,
adorava poder-te mostrar alguns dos meus desenhos, enquanto não
tenho possibilidades de fotografar.
— Estou ansiosa e curiosa!
— Ainda há muitas coisas sobre mim que não conheces; mas
prometo que tas darei a conhecer, a todas, daqui para a frente.
— Sabes o que é que eu costumo fazer quando estou em
Lisboa?
— Não! Mas gostava que me contasses tudo!
— Adoro acompanhar a minha mãe ao hospital para poder
brincar com os meninos doentes, divertimo-nos sempre imenso.
— Uau!!! A sério?! Deve ser espectacular.
— Pois é! Quem sabe um dia não possamos fazê-lo juntos.
— Gostava muito!
— Eu também! E que mais sonhos tens? Conta-me…
— Um dia, gostava muito de visitar o estádio do meu clube de
futebol, o Sporting Clube de Portugal, que fica em Lisboa, aonde
tu vives, e quero também juntar dinheiro para comprar uma mota
para poder fazer grandes viagens. E tu?

104
— Gostava muito de encontrar o meu príncipe encantado e de
viver uma linda história de amor; como as dos livros que adoro de
ler com príncipes e princesas. E também ter uma casa na praia,
porque adoro a praia.
— Também gosto muito de praia! É curioso, somos tão
diferentes e acabamos por ter sonhos tão parecidos.
— Pois é!
— Como é a cidade de Lisboa?! Gostas de viver lá?
— Gosto muito de viver em Lisboa! Lisboa é uma cidade
enorme e bonita. Tem muitas paisagens, estradas compridas onde
circulam carros o dia todo, tem muitas ruas, muitos prédios altos,
centros comerciais, museus divertidos e jardins. Sabes, eu adoro
passear com os meus pais e o meu irmão junto ao rio e no Jardim
Tropical.
— Deve ser bem giro! Como eu adorava, um dia poder também
conhecer Lisboa!
— Quem sabe um dia também possas ir até lá!
— E a tua escola como é?!
— É uma escola grande, com muitos professores, muitas salas
e uma biblioteca. E tem também um pátio enorme, com um campo
de futebol, baloiços e um escorrega.
— Uau! Gostava tanto de um dia poder ir para a escola, para
aprender a ler, a escrever e fazer contas.
— E eu gostava muito que tu viesses para a minha escola,
assim podíamos passar o tempo todo, juntos.
— Achas que eu podia ir?
— Não sei! Acho que tinha que falar com os meus pais; mas
tenho a certeza que eles deixariam.
— Que bom! Era giro vivermos na mesma casa e andarmos na
mesma escola, não era?!
— Pois era!
— Quem sabe um dia eu venha a ter essa sorte… Vais ficar aqui
na quinta, de férias, muito tempo? — Perguntou-lhe ele expectante.
— Não sei bem; mas devem ser alguns dias. Porquê?

105
— Porque gostava muito que ainda pudéssemos brincar juntos,
mais algum tempo. Estou a gostar imenso de passar estes dias
contigo, tu não?
— Eu também estou a gostar muito, és o meu primeiro amigo
desde que passo férias com os meus avós.
— A sério?! — Questionou-a ele estupefacto e mostrando um
largo sorriso.
— Sim!
— Tu também és, a minha primeira amiga; desde que me
lembro de viver aqui.
— Temos que aproveitar estes dias, para fazermos o máximo
de coisas, em conjunto, não achas?
— Acho, pois! E se jogássemos à bola?

Ana sorriu por entre um simples encolher de ombros, para ela


qualquer brincadeira servia; aliás o mais importante nem eram as
brincadeiras, que iriam escolher; mas sim terem a companhia um
do outro. E a conversa continuou a um ritmo acelerado dividida
entre desejos, sonhos e aspirações. Era tão bom poder ter alguém
com quem partilhar tudo aquilo que lhes ocupava a alma e o
coração. Tanto Ana como Miguel fizeram por continuar a partilhar
tudo, um com o outro.
Entretanto a avó chamou para jantar, já se fazia tarde e o sol já
se havia posto no horizonte, há muito tempo. Eles nem se tinham
apercebido do passar das horas, Ana adorava conversar com
Miguel; apesar das poucas possibilidades económicas dos seus
pais, ele era muito humilde e sonhador e nada invejoso, pelo facto
de ela poder ter mais coisas que ele. Isso fazia com que a amizade
intensa que os unia se tornasse cada vez mais sólida e cúmplice.
Inconscientemente, Ana desejava poder concretizar os seus sonhos
de criança sempre na companhia de Miguel e também queria poder
ajudá-lo a concretizar os seus.
Com o cair da noite, a euforia de Ana aumentava com o pouco
tempo que faltava para a chegada do seu aniversário e do de
Miguel: ela adorava fazer anos, faziam sempre uma grande festa.
Naquele ano, em particular, estava bastante ainda mais

106
entusiasmada, ainda não tinha parado de falar no mesmo; uma vez
que tinha Miguel a seu lado, que fazia anos no mesmo dia que ela.
Mal podia esperar que o grande dia chegasse para descobrir tudo o
que os esperava. Tinha imensa curiosidade em descobrir, qual seria
a misteriosa prenda que os pais teriam comprado para ela; todos os
anos se repetia o mesmo: na véspera do seu aniversário, o pai fazia
por esconder, em casa, uma prenda desconhecida. Ana, na sua
inocência de criança, tinha a certeza absoluta de uma coisa: aquela
iria ser mais uma noite, em que iria ter bastantes dificuldades em
adormecer.

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E os dias foram passando a um ritmo quase alucinante,
recheados de tudo aquilo que era capaz de transformar um
Verão: num Verão inesquecível. Não faltavam
actividades, aventuras, novas brincadeiras e rotinas, gargalhadas,
tardes de lazer junto ao rio, sessões de cinema e claro uma amizade
sem fim. Ana continuava a ter umas férias bastante felizes e
preenchidas, na companhia daquele que já era considerado o seu
melhor amigo: Miguel. A amizade entre ambos continuou a crescer
a passos largos e eles cada vez se tornavam mais cúmplices e
unidos.
No meio de todo aquele frenesim, quase deixavam passar a
aproximação da chegada do seu aniversário, faltavam pouco mais
de cinco dias e na quinta vivia-se um entusiasmo e uma excitação
muito particulares; à excepção de Pedro que à medida que os dias
iam passando não conseguia controlar o nervosismo e ansiedade.
A professora de Ana tinha ficado de ligar-lhe para confirmar-
lhe se tinha conseguido contactar todos os colegas e respectivos
pais para a festa; mas ainda não lhe havia dito nada. O tempo
começava a esgotar-se e era necessário começar a pensar nos
preparativos para a festa; e enquanto estes pensamentos percorriam
a mente de Pedro, tocou um telemóvel no bolso dos seus calções,
que veio chamar o pai de Ana à terra. A chamada foi curta e rápida.
As notícias boas: indo de encontro ao que era esperado, a
professora Filipa tinha conseguido contactar quase todos os
colegas de Ana e seus respectivos pais e todos tinham ficado
bastante entusiasmados com o convite para a festa e com a ideia de

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irem passar uns dias ao campo e à quinta; à exceção do Guilherme:
o Bolachinhas, e da Maria João que já estavam de férias fora de
Portugal.
Pedro ficou muito satisfeito por poder contar com os amigos de
Ana para a festa e por poder avançar desde logo com os
preparativos da mesma; ele e Joana ficaram encarregues de tratar
dos transportes dos colegas e de enviar um convite formal para a
festa por correio eletrónico. O pai de Ana foi quem tratou dos
convites, num abrir e fechar de olhos, visto ele trabalhar com
computadores diariamente na sua agência bancária; por isso foi
com facilidade que desenhou uns convites bem giros. Ana também
gostou imenso e não perdeu tempo a chamar Miguel, de ar
eufórico, para lhe mostrar tudo, deixando-o bastante entusiasmado
e surpreendido; depois foi só enviar com um simples clique.
A véspera do dia de aniversário de Ana e Miguel chegou
depressa. Eles não eram capazes de se cansar de falar no assunto:
de que faziam anos no dia seguinte e logo no mesmo dia. O
ambiente na quinta tentava ser o de um dia normal de trabalho para
não dar nas vistas acerca dos preparativos para a festa: enquanto os
avós se ocupavam com as tarefas diárias da quinta, Ana e Miguel
andavam distraídos e focados nas suas brincadeiras. Joana e Pedro
também decidiram aproveitar o dia e o tempo quente para irem à
praia, para descansarem e se divertirem com o João. Só ao final do
dia, quando a paz e o sossego chegaram à quinta e os cúmplices
mais traquinas já dormiam é que começou o reboliço; era preciso
decorar tudo, preparar as comidas e os jogos e pôr as mesas, tudo
aconteceu pela noite dentro. Para os adultos, não havia lugar para
o sono e o descanso.
Na manhã seguinte, o tão aguardado dia seis de Julho, Ana e
Miguel acordaram em grande êxtase e com um humor especial,
fruto do dia que se celebrava. Pela manhã bem cedo, levantaram-
se e Ana pegou, de imediato, na mão dele e desataram a correr até
à cozinha, no máximo de silêncio que conseguiam; a euforia era
quase incontrolável.
— Miguel mostrava-se curioso e expectante — Aonde vamos?

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— À cozinha… Todos os anos, os meus pais escondem uma
prenda misteriosa para mim.
— A sério?! — Miguel ficou estupefacto — Que sorte!
— Estou ansiosa por descobrir o que é…
— Queres que te ajude a encontrá-la?
— Quero! Ajudas-me?
— Claro que ajudo! O que é que costumas fazer quando fazes
anos?
— Todos os anos, eu festejo o aniversário aqui na quinta,
porque estou cá a passar férias; decoramos tudo e fazemos sempre
uma enorme festa com muitos presentes, jogos e muitas
guloseimas e bolos. Adoro!
— Que espectáculo!
— E tu o que costumas fazer?
Miguel mostrou-se algo comprometido com a pergunta…
— Na verdade… Nunca comemorei muito o meu aniversário,
acho que nunca lhe dei muita importância.
— Que pena! É tão divertido fazer anos, eu gosto muito e no
ano passado recebi a melhor prenda de todas. Queres saber qual?
— Quero! Conta-me!
— Soube que ia ter um irmão!
— Uau!!! Também gostava de ter um irmão, para poder ter com
quem brincar a toda a hora.
— Quem sabe um dia não venhas a ter!

Na cozinha cruzaram-se com o avô António, que já tinha


madrugado há muito tempo e que estava a terminar de tomar o seu
pequeno-almoço e de ler o jornal.
— Muito bom dia, rapaziada! Então diz que hoje temos
aniversário a dobrar? — Anuiu ele de ar brincalhão e bem-
disposto.
— É verdade, avô!
— Isso é que vai ser festejar…
— Podes crer que vai! Mal podemos esperar, não é Miguel?
— S… sim! — Disse-lhe ele tímido e de voz trémula.

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— Muitos parabéns aos dois! Aproveitem bem este vosso dia,
divirtam-se e jamais se esqueçam de continuarem a ser sempre
assim amigos e de desfrutarem ao máximo do tempo em que são
crianças. É a fase mais bonita da vida, acreditem, quem me dera a
mim poder voltar à infância, quando era assim gaiato como
vocês… — Disse-lhes ele, dando-lhes um forte abraço.
— Obrigada!
Entretanto o avô consultou o relógio…
— Madrugaram hoje!
— Não consigo esperar mais para descobrir qual é a minha
prenda misteriosa deste ano. Tu sabes o que é e onde está?
— Eu não! Isso são coisas dos teus pais; para além disso, sabes
que ando o dia todo pelo campo a tratar dos afazeres da quinta e
dos animais, só chego a casa à noite. Por isso, muitas vezes só vejo
os teus pais na hora do jantar.
— Mas eu e o Miguel vamos encontrá-la!
— Divirtam-se neste vosso dia!
Ana pegou novamente na mão de Miguel e desataram a correr
até à sala, para procurarem a misteriosa prenda noutras divisões da
casa; a meio da manhã, quando já se sentiam cansados de tanto
procurar e nada encontrar, Miguel teve uma ideia:
— Queres vir a minha casa?
— E o que vamos fazer lá?
— Como faço anos, gostava muito de ir dar um beijinho aos
meus pais. Aproveitávamos e dávamos um passeio por aí, na tua
bicicleta; isto se tu concordares. O que achas?
— Acho uma excelente ideia…

Vestiram-se num piscar de olhos e depressa saíram para as


traseiras da casa, onde era habitual Ana guardar a bicicleta, junto
da carrinha do avô. Sempre juntos e animados, pedalaram pelos
campos fora, partilhando gargalhadas sem fim, aspirações, sonhos
e expectativas para aquele dia de festa; desfrutando também de
mais um dia quente de Verão e de todos os detalhes da paisagem
envolvente.

112
Em casa de Miguel, esperava-o um pequeno-almoço especial:
uma chávena de café com leite e uma fatia de pão centeio frito com
açúcar; Miguel adorava quando a mãe fazia aquelas fatias de pão
douradas, aproveitando assim o pão centeio que sobrava e ia
ficando mais seco. Por entre felicitações, beijinhos e muita
comoção, o pequeno-almoço decorreu recheado de alegria,
felicidade, boas conversas e boa-disposição. Ana estava mesmo
deliciada com aquele pão centeio frito e ansiosa por chegar a casa
e pedir à avó para no dia seguinte lhe fazer algo igual.
Entretanto, enquanto os dois pequenos traquinas estavam longe
da quinta, a professora Filipa e todos os colegas de Ana, chegavam
à quinta: foram muito bem-recebidos por toda a gente, o avô
António aproveitou logo o resto da manhã para fazer uma visita
guiada e para explicar tudo e contar imensas histórias aos amigos
da neta. A professora Filipa também ficou, desde logo, rendida à
quinta e aproveitou para ficar junto da avó São e dos pais de Ana a
conversar e a ajudar nos últimos preparativos para a festa.
Pela hora do almoço, o avô foi a uma pastelaria da vila buscar
o bolo de aniversário: dividido ao meio: metade pintado com o
símbolo do Sporting Clube de Portugal e a outra metade com a cara
da Barbie (a boneca predileta de Ana). Estava mesmo giro, toda a
gente na quinta partilhava da mesma opinião: eles iam adorar.
Depois de uma manhã preenchida e recheada de brincadeiras,
Ana e Miguel decidiram regressar à quinta, cheios de energia e sem
qualquer cansaço que se notasse. Ainda havia o mistério da prenda
desconhecida por resolver; Ana sentia-se inquieta por não saber
que prenda os pais, teriam escolhido para aquele seu aniversário.
— Gostaste de visitar a minha casa? — Perguntou-lhe ele a
medo e com bastante receio que Ana não tivesse gostado e não
quisesse ser mais sua amiga.
— Gostei muito!
— Fico muito contente!
— Porquê?
— Porque… Infelizmente, eu nunca tive a sorte de poder levar
amigos a minha casa.

113
— A sério?! Eu, quando estou em Lisboa, convido sempre
alguns amigos para virem brincar, ao fim de semana, para minha
casa. — Disse Ana espantada.
— Tens sorte!

Na quinta, já estava tudo pronto, nas traseiras da casa: a


decoração há muito que estava posta: balões das mais variadas
cores e uma enorme faixa; os jogos já estavam preparados para
serem estreados, a música escolhida para começar a tocar a
qualquer momento. As diversas mesas já estavam recheadas de
várias petiscos, guloseimas e alguns doces que tanto cativavam
miúdos e graúdos neste género de festas.
A excitação e o nervosismo, pela chegada dos aniversariantes
mais traquinas da quinta, pareciam querer tomar conta de todos; a
professora e os colegas de Ana também já estavam reunidos e
vestidos a preceito: de chapéus na cabeça e apitos nos lábios,
preparadíssimos para saudarem Ana e Miguel.
Quando menos esperavam, eles estavam de regresso, o avô com
o seu ouvido afinado foi quem deu o alerta para que fosse feito
silêncio absoluto, não fossem os cúmplices estragar a surpresa.
Ana e Miguel optaram por encurtar o percurso, utilizando para isso
alguns atalhos que os levariam mais rapidamente à quinta; por isso,
por ironia do destino e alívio de todos os que os esperavam nas
traseiras, desta vez, entraram em casa pela porta da frente. O
silêncio. dentro de casa, era quase esmagador; aproveitaram e
revistaram, mais uma vez, tentando não fazer muito barulho,
algumas divisões em busca da misteriosa prenda; no entanto, a
fome começou a intensificar-se e optaram por deixar uma nova
busca para depois do almoço. De seguida, correram em direção ao
quarto para vestirem uma roupa mais confortável para a hora de
almoço; qual não foi o espanto de ambos, quando se depararam
com um singelo embrulho, em cima das respetivas camas.
— Não acredito!!! A prenda misteriosa! — Exclamou Ana com
um enorme ar de espanto.
— Procuramo-la tanto e afinal, parece que esteve aqui o tempo
todo. — Concluiu Miguel surpreendido.

114
— Podes crer! E já viste, tu também tens uma prenda!
— A sério?! Aquele embrulho é mesmo para mim? — Disse
ele incrédulo.
— É, pois!
— Uau!!! Já não me lembrava da última vez que recebi um
presente nos meus anos.
— Bem, agora já recebeste um, não é?
— Pois é! Estou mesmo feliz, sabes?
— Acredito! E se as abríssemos?
— Achas que podemos?
— Claro que sim!

Num ápice, Ana e Miguel estavam sentados na mesma cama,


eufóricos por descobrir o que continha aquele primeiro presente,
de corações em ritmo acelerado, rompiam o papel de embrulho
com afinco. Miguel foi o primeiro a descobrir o conteúdo do seu
embrulho, ficando sem reacção perante uma mala com os mais
diversos materiais para desenho e pintura.
— Que espectáculo! Uma mala de pintura… Nem sabia que
isto existia.
— Ana sorriu perante o entusiasmo do amigo — Agora, já vais
poder fazer muitos desenhos. — Disse-lhe ela feliz e contente.
— Pois é! E vou andar sempre com ela, para poder desenhar a
toda a hora. E tu o que recebeste?
— Uma mochila da Barbie para a escola; é a minha boneca
preferida, sabes?
— A sério? Não fazia ideia!
— Gostas da mochila?
— Gosto! É o máximo!
— Eu também gosto imenso dela!
— Gostavas de fazer um desenho comigo? Queria estrear a
mala de pintura…
— Sim! Mas podemos fazê-lo depois do almoço? Já tenho
fome…
— Podemos, claro! Também já tenho fome.

115
Pousaram os presentes a um canto e de mãos dadas
encaminharam-se até ao pátio — nas traseiras — junto à cozinha,
onde era notória uma movimentação suspeita. Quando ambos
abriram a porta…
— Parabéns!!! — Gritam todos.

Ana nem queria acreditar no que via. Miguel ficou bastante


emocionado, não estava nada à espera de ter uma surpresa daquelas
no seu dia de anos, nem sequer imaginava que Ana iria fazer uma
festa de anos juntamente com ele, ficou muito feliz e deslumbrado.
Nem sabia o que fazer ou o que dizer, ao ver o pátio todo enfeitado,
com duas mesas enormes com todo o tipo de coisas: guloseimas,
sandes, sumos naturais, batatas-fritas, gelatina, pipocas, que eles
mais gostavam; cheio de crianças e com uma grande faixa
pendurada a dizer: Parabéns Ana e Miguel.
Os amigos de Ana estavam todos vestidos a rigor com chapéus
na cabeça e apitos nos lábios, Ana também ficou deslumbrada com
tudo aquilo, não estava nada à espera de uma surpresa daquelas,
realmente tinha a melhor família do mundo.
— Não acredito!!! Uma festa de aniversário, surpresa! —
Exclamou Ana estupefacta.
— Nunca tive nem nunca tinha visto uma festa de aniversário
assim… — Disse-lhe ele abismado.
— Estou a adorar ter-te aqui comigo e podermos fazer a nossa
festa de anos juntos.
— Eu também e ainda há pouco tempo cheguei aqui à quinta.
Só posso mesmo agradecer-vos: a ti e a toda a tua família por esta
festa magnífica; acredita que jamais a irei esquecer e irei esquecer
o que vocês estão a fazer por mim.
— E se nos fôssemos divertir? — Propôs Ana.
— Acho uma boa ideia! Anda… — Disse-lhe ele muito feliz e
entusiasmado.

Desceram as escadas de acesso ao pátio e receberam logo


imensas felicitações, abraços e beijinhos. Alfredo e Mizé
mostravam-se bastante emocionados com o gesto da família de

116
Ana: em organizarem uma festa de aniversário conjunta, algo que
eles nunca teriam oportunidade de fazer, e conseguirem assim
trazer um pouco de felicidade e alegria à vida de Miguel.
Ana fez logo questão de apresentar Miguel a todos os colegas
da escola, que o receberam muito bem; apesar de Miguel se sentir
bastante tímido e envergonhado. E depois os aniversariantes do dia
começaram a receber os presentes, Miguel nunca tinha recebido
tantos presentes de aniversário na vida, estava muito feliz e
entusiasmado com tudo; principalmente por poder abri-los e
descobrir o conteúdo dos mesmos; no entanto, tanto ele como Ana
optaram por juntá-los a um canto e deixar isso para mais tarde.
Eram horas do lanche e das brincadeiras. Fizeram uma roda à
volta da mesa e deliciaram-se com as iguarias que a avó São e a
Joana tinham preparado, enquanto punham a conversa em dia; Ana
estava radiante por poder ter os seus colegas da escola a
participarem na sua festa de anos. Joana até tinha feito uma
selecção de músicas divertidas para a festa; por isso o ambiente
estava mesmo completamente ao rubro na quinta.
Minutos depois, o avô António deu por inaugurados os jogos,
Ana e os colegas desataram a correr para o primeiro jogo da tarde:
cabra cega. Tinham que vendar os olhos e tentar rebentar um balão
que estava preso alguns centímetros acima: numa árvore, de forma
a conseguirem obter os chocolates que estavam no seu interior. De
repente, a quinta era pintada pelo som de várias gargalhadas e
correrias, colorindo o ambiente de alegria; mas, Miguel acabou por
não se juntar a Ana e aos outros meninos para se divertirem, todos
juntos; deixou-se ficar a comer encostado a um canto, começando
a sentir-se um pouco desenquadrado: os sentimentos de
inferioridade pareciam ter voltado à sua cabeça.
Ana estava no seu ambiente, era a sua festa de anos, estava com
os seus amigos que tão bem a conheciam e que não precisavam,
nem quereriam um amigo pobre para brincarem; na verdade, nem
tinham dado pela sua falta. Ele não tinha dinheiro para comprar
roupas boas e bonitas como as que os colegas de Ana vestiam, tão
pouco tinha conseguido comprar uma prenda de aniversário para
oferecer à Ana e que tanto a merecia por dar-lhe tanta atenção e por

117
estar a proporcionar-lhe os melhores dias da sua vida. Nem podia
agradecer-lhe convenientemente pela sua verdadeira amizade,
sentia-se triste; não gostava da vida que tinha, não queria ser pobre,
só queria poder ser igual a todos os outros meninos; porque é que
não podia ser como eles? De cada vez que pensava nisso sentia-se
ainda mais triste e angustiado.
Mas Miguel não sabia que estava a ser observado por António,
que vendo-o em tal aflição, decidiu ir até junto dele e sentar-se ao
seu lado…
— Então Miguel, porque é que tu não estás a divertir-te, junto
deles? — Questionou-o ele.
— Oh senhor António… Eu peço imensa desculpa de não estar
a aproveitar esta festa magnífica que vocês prepararam com tanto
carinho para mim e para a Ana; mas… olhe para ela.
— O que é que tem?! — Questionou-o o avô pensativo.
— A Ana está no seu ambiente, com os seus amigos que a
conhecem como ninguém, não precisam de um rapaz pobre, como
eu, para brincar. Olhe para mim, nem sequer tenho uma roupa de
jeito para vestir, nem pude oferecer nada à Ana de prenda de anos.
— Disse-lhe ele muito triste.
— Meu rapaz, esses pensamentos de inferioridade não te fazem
nada bem e só te vão fazer sofrer daqui para a frente. Tens que te
esforçar por alterar isso… Aliás, já tínhamos falado sobre isso há
uns dias, recordas-te?
— Recordo, sim! Mas não é fácil senhor António… — Disse-
lhe ele cabisbaixo.
— Entendo! No entanto, a Ana gosta muito de ti e aceita-te tal
como tu és, acho que ela já te provou bastante isso ao longo destes
dias. Não vai ser hoje, que isso vai mudar pelo facto de ter aqui os
seus colegas.
— Acha? Eu não sei, tenho sérias dúvidas… — Disse-lhe ele
pensativo.
— Eu não acho, eu tenho a certeza absoluta. Eu conheço muito
bem a Ana e ela não vai sossegar, enquanto não fizer com que os
amiguinhos dela passem também a gostar tanto de ti, como ela, e a
serem teus amigos.

118
— A ver vamos… — Disse-lhe ele ainda desconfiado.
— Vai por mim, podes acreditar no que te estou a dizer; para
além disso, para a minha neta o mais importante não é
propriamente o presente que lhe podes ou não oferecer; mas sim, a
tua companhia e amizade.
Miguel sorriu e Ana não demorou muito tempo a sentir a falta
do seu melhor amigo, começando a procurá-lo por todo o lado.
Vendo que ele não aparecia, nem se encontrava junto dela e dos
seus amigos, foi descobri-lo junto do avô e decidiu ir ao encontro
dos dois:
— Então Miguel… Está tudo bem? Porque é que estás aqui
sozinho e não estás a brincar connosco? — Perguntou-lhe ela com
um ar pensativo, sentando-se ao seu lado.
O avô António ficou comovido com a preocupação da neta para
com o amigo.
— Sim, eu estou bem; estava só aqui a conversar um bocadinho
com o teu avô. — Disse-lhe ele sorrindo.
— Não estás a gostar dos jogos? Queres brincar a outra coisa?
— Vamos continuar os jogos, Ana? — Perguntou a Lília.
— Claro que sim! Continuem que eu e o Miguel já vamos…
— Está bem!
— Vens?! — Perguntou-lhe ela.
— Vou, sim! — Disse-lhe ele um pouco mais animado.

Ela pegou na mão dele e juntaram-se aos outros; mais uma vez,
Ana tinha feito Miguel perceber que se preocupava
verdadeiramente com ele e que não se importava com o facto de
ele ser pobre. Para ela o mais importante era a amizade dele. Todos
juntos divertiram-se imenso, até para lá da hora do jantar, quando
chegou o momento de cantar os Parabéns. Joana foi quem trouxe
o bolo de aniversário que deixou os dois aniversariantes
deslumbrados.
Miguel nem queria acreditar que tinha um bolo do seu Sporting,
o clube de futebol do seu coração, e Ana adorou o bolo com a sua
boneca favorita, ficou mesmo apaixonada nem queria que o
cortassem para não ficar estragado. Não faltaram imensas

119
fotografias, para mais tarde recordar; principalmente dos dois
amigos, juntos, ao lado do seu respetivo bolo de aniversário, antes
de cortarem e distribuírem fatias por todos. A seguir, veio o
momento de abrirem os presentes: Ana recebeu mais um presente
dos pais: uma mala de maquilhagem e dos avós: uma linda carteira
(ela adorava tudo o que eram malas e bolsas) e também recebeu
imensos presentes dos colegas: livros, bonecos de peluche, jogos,
roupa, entre outras coisas.
Os colegas de Ana voltaram a mostrar uma grande prova de
amizade; pois também fizeram questão de trazer uma lembrança
para Miguel, mesmo não o conhecendo. Ofereceram-lhe roupa,
jogos, bolas de futebol, bonés de desporto, livros, filmes entre
muitas outras coisas; Miguel agradeceu a todos emocionado e de
lágrimas nos olhos e não perdeu tempo a ir experimentar algumas
das roupas novas que tinha recebido. Dos seus pais, Miguel
recebeu o presente mais inesperado do dia: uma bicicleta; Mizé e
Alfredo juntaram algumas das suas poucas economias para lhe
oferecerem este presente tão especial que ele já andava a pedir há
imenso tempo. Ele ficou muito feliz e ainda mais emocionado, ter
uma bicicleta nova era tudo o que ele mais queria; assim, agora, já
podia acompanhar Ana nos seus passeios de bicicleta. Mas os
presentes não se ficaram por ali; Ana desatou a correr, bem
depressa, para dentro de casa regressando segundos depois ao
jardim com um embrulho nas mãos.
— Isto é para ti, Miguel! Abre! Vais adorar! — Disse-lhe ela a
fervilhar de entusiasmo.
— Outro presente para mim? Mas não era preciso; eu já tive
imensos presentes hoje. — Anuiu ele muito tímido e
envergonhado.
— Mas esse presente é só meu, por isso é especial!
— Oh, Meu Deus! Um presente, só teu, para mim? Estou sem
palavras…

Miguel abriu o embrulho cheio de euforia e entusiasmo,


rasgando o papel com rapidez, tal era a ansiedade e a curiosidade
de descobrir o que estava no seu interior. Quando desvendou o que

120
continha o embrulho, ficou sem reação correndo para Ana, lavado
em lágrimas e abraçando-a com força. Ele deparou-se com o
equipamento completo do seu clube do coração e tinha também a
camisola assinada pelos jogadores e pela equipa técnica; para além
disso, a camisola tinha o nome Miguel Ribeiro e o número vinte e
seis inscritos nas costas. Ele adorou imenso o presente; pois aquele
era um dos seus sonhos, não perdia nenhum jogo e ouvia sempre
os relatos no rádio. Quando fosse grande também gostaria de ser
um grande jogador de futebol, de preferência do Sporting, claro, ou
então mecânico de automóveis. Ele adorava tudo o que tivesse
ligado a carros e velocidade; mas agora tudo o que mais queria era,
um dia ter a sorte de poder fazer uma visita ao estádio do seu clube:
o estádio doutor José Alvalade, do Sporting Clube de Portugal.
Esse ia ser o momento mais feliz da sua vida.

121
122
M iguel nunca mais largou o equipamento, andava
quase sempre com ele vestido ou com pelo menos
alguma peça, a preferida era a camisola. O avô
António com a sua visão de lince, ainda Miguel
vinha lá longe e já dizia: Lá vem o meu Sportinguista favorito!
E num momento de distracção de Miguel com os presentes,
Ana aproveitou para ter uma conversa com o avô:
— Sabes avô, gostava muito de poder ajudar o Miguel…
— Então porquê, querida? — Perguntou-lhe o avô.
— Porque gosto muito dele e porque ele é o meu melhor amigo.
Sabes, o Miguel contou-me que nunca foi à escola, que gostava de
aprender a ler, a escrever e a fazer contas e que não tem muitos
amigos. Achas que ele podia vir para a minha escola?
— Não sei, minha querida! É uma questão a pensar… Mas
gosto muito da tua ideia, é bastante boa e até interessante; acredito
que o Miguel iria adorar e iria ficar muito orgulhoso de ti e de ter
uma amiga tão fantástica como tu, que se preocupa sempre tanto
com ele, se estivesse agora aqui a ouvir a nossa conversa. No
entanto, eu não sei se será fácil de concretizar…
— Ohhhh! Porquê?! Gostava tanto que o Miguel viesse para
Lisboa comigo, para a minha escola e para a minha casa! — Disse-
lhe ela muito triste.
— Eu percebo! Mas é uma situação um pouco complicada;
porque o Miguel está habituado a viver, aqui, na aldeia com os pais
e nunca se separou deles, entendes? Porém, eu vou falar com os
teus pais e ver o que se pode arranjar.

123
— A sério? Fazias isso por mim? — Perguntou-lhe ela eufórica
e feliz.
— Claro que sim! Sabes que o avô faz sempre tudo por ti!
— Adoro-te! Tenho o maior e o melhor avô do mundo!
— E a propósito de me teres contado que o Miguel não tinha
amigos; parece-me que ele hoje já fez muitos amigos novos, não
concordas comigo? Por isso, agora já não pode dizer que não tem
amigos…
— Tens toda a razão!

Começou a entardecer e a casa dos avós de Ana foi ficando


praticamente vazia: os colegas de Ana foram regressando à zona
turística e Mizé e Alfredo também regressaram a casa. O dia tinha
sido muito cansativo e longo, estavam todos bastante cansados; de
forma que, o avô António deixou uma conversa muito especial
para o dia seguinte.
O amanhecer na quinta foi agitado, com a presença dos colegas
de Ana que fizeram por madrugar cedo, para aproveitarem mais
um dia em pleno; quebrando por completo o habitual sossego dos
dias. A manhã foi preenchida com diversas actividades bastante
lúdicas, dando especial destaque às aulas de equitação que
entusiasmaram toda a turma: eram muito poucas as crianças que
podiam contactar assim tão de perto com cavalos, muitas delas
nunca tinham visto nem tocado em nenhum; por isso aquela
primeira proximidade com aqueles animais foi vivida com uma
emoção muito particular. Estavam todos muito atentos e
concentrados nas explicações dadas pelo avô António e todos se
mostravam deslumbrados e deliciados por poderem fazer festas
aos animais e ajudar o avô a dar-lhes de comer.
Por fim, pelo final da manhã, puderam conhecer o divertido
professor Anselmo, que era responsável pelas aulas de equitação e
que lhes deu a primeira aula; a euforia tomou conta de todos e foi
um dos momentos altos do dia, oferecendo incontáveis doses de
felicidade e euforia aos amigos de Ana. Ficaram todos desejosos
pela chegada do dia seguinte, para terem nova aula de equitação e
para poderem cavalgar novamente.

124
Pela hora do almoço, depois de Ana e a sua família terem uma
manhã bem preenchida à beira-rio, quando já estavam reunidos à
mesa, o avô António decidiu falar:
— Agora que estamos todos reunidos à mesa, já descansados
depois do dia de ontem: tão agitado, quero partilhar convosco uma
ideia muito nobre que a Ana partilhou ontem comigo.
— Boa, avô! Conta! Conta! — Disse-lhe ela entusiasmada.
Ela e o Miguel entreolharam-se o que revelava a grande
amizade e cumplicidade que os unia.
— Ela contou-me que gostava muito de poder ajudar o Miguel;
pois ele havia-lhe dito que um dos seus sonhos era poder ir para a
escola, para aprender a ler e a fazer contas e fazer muitos amigos.
Quem me conhece, sabe que, eu faço tudo pelos meus netos; por
isso, queria saber o que é que vocês acham da ideia do Miguel ir
para Lisboa convosco e para a escola da Ana — Perguntou o avô
falando para Joana e Pedro.
— Não sei, pai! Confesso que, agora fomos apanhados
desprevenidos e de surpresa perante essa ideia da Ana. — Disse
Joana pensativa olhando para Pedro,
— Eu não quero, de forma alguma, atrapalhar a vossa vida.
Vocês é que sabem, se isto vos fará diferença ou não…
— Querida, por mim está tudo bem e não há problema nenhum.
Onde cabem quatro pessoas, também cabem cinco e para além
disso acho que a Ana ia adorar ter o Miguel lá em casa com ela.
Eles dão-se tão bem…
— Pronto! Se o Pedro concorda com a ideia, não vou ser eu que
vou dizer que não. O Miguel pode vir para a escola da Ana, nós
damos-lhe estadia lá em casa e também o ajudamos, com todo o
gosto, com a escola. De certeza que os livros da Ana servirão para
ele; quando chegarmos a Lisboa, já tratamos de tudo.
— Sabia que podia contar convosco e também com a vossa
gentileza e amabilidade. Então Miguel, que achas da ideia? —
Perguntou-lhe o avô.
Miguel mostrou-se bastante corado e envergonhado.
— Eu… eu… Nem sei o que dizer e como agradecer-vos.
Obrigado por se terem lembrado de mim; se os meus pais

125
autorizarem, gostaria muito de aceitar e de ir com a Ana e a sua
família para Lisboa.
— Não é a nós que tens que agradecer; mas à Ana, foi ela quem
teve a ideia brilhante. — Disse-lhe o avô.
— Que fixe, Miguel! Vais vir morar para Lisboa e para a nossa
casa e nós vamos andar na mesma escola e tudo. Mal posso
esperar… Já vou ter com quem brincar a toda a hora. — Exclamou
ela toda eufórica.
Ele não sabia muito bem o que lhe dizer, entreolharam-se e de
ar bastante emocionado e comprometido, disse:
— És a melhor amiga do mundo, sabias? Gosto muito de ti,
princesa pequenina.
Joana mostrou-se divertida e até algo comovida com a alcunha
simpática que Miguel tinha dado à Ana, era realmente amorosa e
engraçada.
— Também gosto muito de ti, Miguel! — Disse-lhe ela
abraçando-o intensamente logo de seguida.
— Bem, agora só falta saber o que acham os pais do Miguel,
acerca tudo isto; mas disso trato eu, não se preocupem. — Disse o
avô com um grande sorriso.

Após o prolongado almoço, António foi falar com Mizé e


Alfredo e contou-lhes tudo sobre a ideia de Ana. Eles foram
apanhados de surpresa, mostrando-se bastante emocionados e
comovidos.
— Oh, Meu Deus! Nós não estávamos nada à espera disto.
Estamos habituados, desde sempre, a viver só os três, na aldeia,
nunca nos separamos; por isso, vai ser um pouco difícil. Vamos ter
muitas saudades do nosso menino.
— Eu compreendo!
— No entanto, sabemos que ele não é feliz aqui, porque não
tem amigos, não pode ir para a escola e nós não temos
possibilidade de lhe dar tudo aquilo que, ele necessita e de lhe
proporcionar a vida que realmente sonha, ambiciona e merece. Por
isso, se esta separação lhe trouxer a felicidade que ele tanto procura

126
e o ajudar a realizar os seus sonhos, nós não o podemos impedir de
seguir o seu caminho. Temos e devemos deixá-lo ir.
— Não se preocupem! Ele vai ficar bem e em boas mãos,
acreditem e confiem em mim.
— Não temos quaisquer dúvidas disso, senhor António!
Confiamos em si e sabemos perfeitamente que a sua filha é de
plena confiança.
— O Miguel e a minha neta dão-se muito bem, com certeza irão
ajudar-se um ao outro e a minha filha tem todo o gosto em dar ao
Miguel estadia na sua casa e em ajudá-lo com os estudos; por isso,
não precisam de se preocupar com nada.
— Nem sabemos como agradecer a vossa generosidade e
simpatia e principalmente, a vossa gentileza. Obrigada, do fundo
do coração, pelo que têm feito e estão a fazer pelo Miguel;
principalmente por lhe proporcionarem o que nós, infelizmente,
ainda não temos possibilidade de lhe dar. — Agradeceram eles.
— Não têm nada que agradecer, fazemos isto com todo o gosto
e estamos cá para nos ajudarmos uns aos outros. Podem ligar ao
Miguel sempre que quiserem e na Páscoa e férias de Verão ele virá
sempre cá visitar-vos. Esperamos que ele seja muito feliz por lá e
que se divirta com a minha neta. Vou mantendo-vos informados,
de tudo.
— Muito obrigada, senhor António!
— Ora essa!
António regressou à quinta e foi falar com Miguel, que estava
com Ana a fazer um desenho, sentado no banco do jardim.
— Olá rapaziada! — Cumprimentou o avô.
— Olá! Olá! — Disseram eles.
— Miguel, eu já falei com os teus pais!
— E eles o que acharam da ideia da Ana?
— Bem… Ao início, custou-lhes um bocadinho a aceitar, algo
normal, visto nunca se terem separado de ti. Disseram que vão
saudades tuas, e tu deles com certeza; mas que se esta separação te
fizer mais feliz e te permitir realizar alguns dos teus sonhos que —
de facto — não podem impedir-te de seguires o teu caminho.

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— Que bom! Estou muito feliz e entusiasmado por poder passar
uns tempos com a Ana em Lisboa e na sua casa e por poder ir —
finalmente — para a escola, aprender a ler, a escrever e a fazer
contas. Prometo que não vão se arrepender, vou portar-me sempre
muito bem.
— Não duvido, meu rapaz! Sei que és um bom menino…
Sendo assim, parece-me que já podes ir fazendo as malas! —
Disse-lhe o avô com o seu ar muito brincalhão.
— É verdade! — Anuiu ele com a felicidade estampada no
rosto.
— Já sabes que, podes ligar aos teus pais todos os dias e na
Páscoa e férias de Verão virás sempre cá fazer-nos uma visita.
— Que bom! Muito obrigado por tudo!
— Ora essa! Não tens que agradecer!
— Avô, tu nem imaginas como o Miguel desenha bem, esteve
a mostrar-me alguns dos seus desenhos. Gostei tanto…
— Por favor, Ana… Estás a deixar-me envergonhado.
— Não estou nada! Mas é verdade, tu desenhas mesmo bem!
— Obrigado! Sempre me vou distraindo, quando não tenho que
fazer.
— Não sejas tão modesto, meu rapaz!
— Sinceramente, eu acho que não desenho nada de especial;
mas obrigado na mesma pelos elogios.
— Vais ter mesmo que me mostrar isso tudo! — Disse-lhe o
avô muito curioso.
— Com todo o gosto! É só dizer… — Anuiu ele.
Entretanto, Ana decidiu fazer um pedido muito especial a
Miguel:
— Ensinas-me a desenhar assim tão bem como tu, Miguel?
Adorava saber desenhar assim.
— Claro que sim, princesa pequenina! Com a minha mala de
pintura, nós vamos poder desenhar imenso e vou poder ensinar-te
tudo.
— Fixe! Estou ansiosa para começarmos!

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O final do dia foi bastante animado, após o jantar, sentaram-se
todos no alpendre e Miguel aproveitou para mostrar alguns dos
seus desenhos aos avós e aos pais de Ana. Eles teceram-lhe
imensos elogios e incentivaram-no a nunca desistir daquele seu
talento. Ele estava bastante entusiasmado com a viagem para a
capital, não falava de outra coisa e Ana andava numa tremenda
excitação; logo ela que adorava estar na quinta. Naquele momento
só falava do dia em que regressaria a casa com Miguel a seu lado.
Todos partilhavam da felicidade dela, compreendendo o seu
entusiasmo: de ter um elemento novo a fazer parte da sua família.
Os poucos dias que restavam para o fim das férias continuaram
a ser agitados, preenchidos e recheados de animação; pois em
breve teriam que voltar para Lisboa, por isso, fizeram questão de
aproveitar tudo ao máximo: jogaram à bola, desenharam e
pintaram, deram longos passeios de bicicleta, foram até à praia,
fizeram jogos em família, e serões divertidos ao fim do dia.
Ajudaram o avô em todas as rotinas da quinta, montaram a cavalo,
acompanharam o avô na distribuição dos produtos da quinta e
divertiram-se imenso com a avó na apanha dos legumes e frutas e
a fazer compotas e doces caseiros. Também brincaram com o
Picasso, viram muitos filmes e desfrutaram em pleno do melhor
que o campo lhes oferecia, antes do regresso à cidade.
E continuaram amicíssimos, andavam sempre juntos para todo
o lado, partilhavam brinquedos e diversas brincadeiras, trocavam
segredos, gargalhadas, inúmeras conversas, desejos e sonhos. E até
para respirar quase parecia que respiravam, juntos. Ninguém os
separava um segundo; afinal de contas, entre grandes amizades não
há espaço para simples separações.

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E o dia do regresso a casa por fim chegou; iriam ter que dizer
adeus à quinta e aos avós, e se das outras vezes era sempre
um martírio para Ana ir embora — nunca queria ir —;
desta vez, só queria chegar rápido a casa para poder
mostrar tudo ao novo amigo. Miguel despediu-se dos pais com
emoção, saudade e nostalgia, foi uma despedida bastante
comovente; mas notava-se que, apesar de tudo, ele estava muito
feliz, eufórico e entusiasmado.
A viagem de regresso a casa e a Lisboa correu bem, debaixo de
um calor imenso e de um sol fantástico, pelo caminho as saudades
da família apertaram, principalmente da mãe quando no rádio
tocou um Fado que era o preferido da dona Maria José: Os
Búzios da fadista Ana Moura. Mizé adorava Fado e cantava-a
muitas vezes; enquanto fazia a tarefas domésticas em casa, Miguel
deixou-se emocionar e soltou, em silêncio, algumas lágrimas, de
olhar fixo e atento sobre a paisagem que passava a correr. Não iria
ser fácil viver aqueles primeiros tempos em Lisboa, longe das suas
raízes, dos pais e da sua casa; mas, apesar das intensas saudades
que sentia e que ele sabia que iria sentir durante algum tempo,
aquela viagem era algo que ele desejava e queria muito, podia ser
o verdadeiro começo para a tão ansiada mudança na sua vida.
Ele estava bastante feliz e entusiasmado; para além disso, sabia
que podia sempre contar com Ana e a sua família para o ajudarem
em tudo o que precisasse, principalmente com a questão das
saudades que iria sentir de casa e dos seus pais. Pareciam-lhe boas
pessoas; por isso sempre que precisasse de desabafar sobre os seus
receios e medos e sobre as saudades que sentia por estar longe dos
pais, poderia sempre falar com eles; por isso, não havia razões para

131
ele se sentir triste ou com vontade de desistir, só por ter saudades
da família e de ir viver para longe dela. A partir daquele momento,
ele já era como um membro da família Salgado.
Mal entraram em plena cidade de Lisboa, Miguel mostrou-se
deslumbrado com tudo; o ar de espanto e o olhar estático perante
todo aquele mundo novo não deixava ninguém indiferente. Ele
parecia querer absorver tudo o que via e ouvia: cada edifício, cada
rua, cada jardim, o rio, a Ponte 25 Abril, até mesmo o brilho do sol
parecia diferente. Sussurrou à Ana que parecia que estava dentro
de um sonho, que nunca tinha visto nada assim. Ficou estupefacto
com toda a grandiosidade da cidade, com a quantidade de prédios,
com as imensas ruas, com o Fado: um dos tipos de música favoritos
da mãe, só faltava provar a comida; mas Lisboa tinha muito mais
para mostrar e oferecer.
Os dias que se seguiram, seriam para Ana e a família lhe
mostrarem mais sobre a cidade. Mal chegaram a casa, Ana pegou
na mão dele, saíram do carro e entraram logo a correr. Subiram as
escadas e ela levou-o até ao seu quarto para mostrar-lhe tudo; afinal
de contas, nas grandes e verdadeiras amizades não existem
segredos.
— E chegamos ao meu quarto. Gostas? — Disse-lhe ela.
— Uau! Tens um quarto fantástico! Quem me dera poder ter
um quarto assim, como o teu, só para mim.
— E vais ter um dia!
— O meu quarto sempre foi o mesmo quarto dos meus pais;
pois eles não puderam construir uma casa maior.
— Não faz mal! Por enquanto podes ficar aqui comigo, quero
muito partilhar o meu quarto contigo. Aqui podemos brincar
sempre, juntos
— Muito obrigado, Ana! Não te importas mesmo que eu fique,
aqui, no teu quarto? Não quero, de forma alguma, ser um
empecilho; se preferires eu fico muito bem na sala. — Disse-lhe
ele apreensivo e envergonhado.
Joana surgiu por acaso à porta do quarto de Ana e decidiu
espreitar a cumplicidade que os dois amigos tinham e a maneira
como Ana partilhava com Miguel cada cantinho da sua casa e do

132
seu quarto; assim como cada uma das suas coisas. Ficou estarrecida
com o enorme carinho que ela nutria pelo novo amigo; eles
estavam tão concentrados a descobrir cada recanto do quarto que
nem deram pela sua presença, e comoveu-se com a simplicidade e
humildade de Miguel. Parecia ser mesmo um bom rapaz, o amigo
ideal para Ana.
Entretanto, Joana foi obrigada a intervir perante a resposta que
Miguel havia dado a Ana.
— Miguel, a partir de agora, tu fazes parte da nossa família,
como tal a casa também passa a ser tua; por isso, não te preocupes
que tu não invades nada, nem nunca serás um empecilho para nós.
O que é nosso também passa a ser teu; portanto, não vais ter que
ficar na sala. — Disse-lhe ela.
— Obrigado, Joana! — Agradeceu ele humildemente.

A seguir Ana mostrou o resto da casa a Miguel. Na sala, ela


mostrou-lhe os filmes e os programas de televisão que mais
gostava e que raramente perdia e os brinquedos com que gostava
de brincar. E deixou a sua divisão favorita da casa para depois do
jantar. Entretanto, Miguel instalou-se no quarto de Ana, a seguir
ajudaram Joana a fazer o jantar e ainda houve tempo para eles
verem, um dos programas preferidos de Ana: que continha uma
espécie de medley de desenhos animados. Poucos minutos depois,
jantaram num ambiente animado, descontraído e divertido; Ana e
Miguel comiam depressa para ainda poderem brincar mais um
pouco antes de irem dormir. Mas Ana ainda tinha uma pequena
surpresa para o novo amigo:
— Mãe, nós já acabamos de comer, podemos sair da mesa?
Quero ir mostrar uma coisa ao Miguel. — Pediu-lhe ela com um
ar inquieto.
— Podem! Mas tenham juízo e vejam lá o que fazem! —
Recomendou Joana.
— Nós prometemos que nos portamo bem!
Ana pegou na mão de Miguel e levou-o até à porta que dava
acesso à biblioteca do pai

133
— Bem, agora que já te mostrei a casa quase toda, quero
mostrar-te a minha divisão favorita cá de casa. — Disse-lhe ela
com um ar misterioso.
— E qual é? Eu pensei que era o teu quarto, onde tens as tuas
coisas e os teus brinquedos. — Disse-lhe ele baralhado.
— Eu adoro imenso o meu quarto; mas gosto ainda mais deste
sítio que te vou mostrar agora… tcharan!!! — Anuiu ela, abrindo
as portas da biblioteca do pai.
— Ena!!!! Que máximo! Nunca vi tantos livros na minha vida.
De quem são?
— São dos meus pais. Eles adoram livros, sabes? Há aqui
vários: banda desenhada, histórias, livros antigos, livros com
muitos números e contas, entre muitos outros.
— Que espectáculo! Nós podemos vir para aqui, às vezes, ver
alguns livros? Gostava muito!
— Claro que sim! Eu venho para aqui muitas vezes ver livros e
passo imenso tempo. Adoro… Mas temos que ter muito cuidado
para não os estragar, porque o meu pai não gosta de ver os livros
estragados e com as folhas dobradas ou soltas, fica mesmo
zangado. Eu também não gosto.
— Está bem. Eu não estrago nada!

À noite, juntaram-se na mesa da sala, para jogarem um jogo de


tabuleiro, foi um serão bem divertido; no entanto, rapidamente o
cansaço se apoderou de Miguel e Ana. Vestiram os pijamas,
lavaram os dentes e foram para a cama; antes de adormecerem,
aproveitaram para ler uma história. Como Miguel não sabia ler,
Ana lia para ele e ele ficava concentradíssimo a ouvi-la e a tentar
imaginar os mundos que ela ia descrevendo. E viajava, por montes
e vales, castelos de príncipes e princesas e lutas do bem contra o
mal e ficava simplesmente feliz. Miguel teve bastante dificuldade
em adormecer; as saudades de casa e dos pais vieram-lhe à
memória novamente; para além disso, estava num ambiente novo
e diferente, numa casa e num quarto que não eram os seus. E ainda
não estava ambientado, ainda estava a adaptar-se; por isso, chorou
um bocadinho, em silêncio, para não acordar Ana.

134
No dia seguinte, Ana e Miguel foram os primeiros a levantar-
se; como Miguel era mais velho decidiu propor que pusessem a
mesa e preparassem o pequeno-almoço, juntos; ela concordou sem
hesitar. Minutos depois, Joana e Pedro levantaram-se, tomaram
todos juntos o pequeno-almoço e já a manhã ia a meio quando
iniciaram o tão aguardado passeio por Lisboa. Joana e Pedro
aproveitaram para mostrar os melhores locais da capital a Miguel:
museus; monumentos históricos e típicos; as ruas mais
emblemáticas, as melhores vistas sobre a cidade; as zonas verdes
mais bonitas, os bairros mais conhecidos, lojas e casas típicas. Até
foram ao centro comercial: local onde Miguel nunca tinha ido nem
fazia ideia que pudesse existir, ficou completamente apaixonado,
dizia ele que aquilo parecia uma segunda cidade (e na verdade, era
mesmo).
Almoçaram e de seguida pararam num café para Miguel poder
provar os deliciosos Pastéis de Nata de Belém: que ele adorou,
dizendo que nunca havia comido nada igual e que quando visitasse
os pais iria levar-lhes alguns daqueles doces típicos da cidade para
eles provarem. Iriam ficar derretidos. À tarde, Joana e Pedro
tinham uma surpresa reservada para ele, e Ana andava numa
verdadeira pilha de nervos para contar a Miguel o que era a
surpresa, mas se lhe contasse já não era surpresa.
Iriam levar Miguel a fazer uma visita ao estádio do seu clube de
futebol: o Estádio doutor José Alvalade, do Sporting Clube de
Portugal, ajudando-o assim a concretizar o seu sonho. Ele nem
queria acreditar, quando se viu frente a frente com a catedral do
Sporting, era o seu sonho tornado realidade. A visita teve direito a
um guia que lhes foi explicando tudo: a história do Clube, dos
jogadores, prémios recebidos, competições, tudo o que pudessem
imaginar. Miguel mostrava-se fascinado, adorou os troféus, os
balneários, os equipamentos e a sala de imprensa, poder ver tudo
tão de perto. Assistiu a um treino da equipa; no entanto o momento
mais especial do dia foi poder cumprimentar os jogadores e a
equipa técnica, chorou imenso de alegria e emoção e não saiu do
estádio sem uma fotografia ao lado dos seus ídolos.

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Ainda se pôde sentar nas bancadas como se fosse assistir a um
jogo, conhecer o camarote do presidente, sentar-se na cadeira, onde
ele se costumava sentar para ver os jogos, e no fim a sensação mais
especial e única da sua vida: pisar o relvado e sentar-se no banco
da equipa técnica, era algo indescritível, o coração dele batia a mil
à hora. Agora ele já conseguia imaginar, como é que os jogadores
de um clube de futebol se sentiam quando entravam em campo,
com o estádio cheio. Era assombroso e de uma intensidade e
dimensão inexplicáveis; ele sentiu-se mesmo pequeno perante a
grandeza do estádio do seu clube, delirou por completo e adorou
imenso aquele dia. Quanto à experiência ficou-lhe com certeza na
memória para sempre.

A adaptação de Miguel à nova cidade: à agitação diária, aos


vários barulhos inerentes, à movimentação e presença de mais
pessoas, à nova casa, e às novas regras não foi fácil e levou o seu
tempo. Dizia com frequência que no campo era tudo mais fácil e
simples; nos primeiros dias ele sentia-se um bocadinho
comprometido, tímido e envergonhado. A sua simplicidade e
humildade levavam-no a pedir sempre licença quando queria fazer
ou pedir alguma coisa; mas muitas vezes ficava renitente e tinha
medo de pedir ou de mexer em certas coisas com receio de estragá-
las fazendo com que por vezes se isolasse um pouco, não queria
que os pais de Ana se zangassem com ele. No entanto, eles
explicaram-lhe que ele não precisava de ter medo ou receio de
nada, que aquela casa, agora também era dele e que gostavam que
ele estivesse à vontade e aos poucos ele foi melhorando e mudando
de atitude.

E o início das aulas chegou bem depressa; alguns dias antes do


regresso às aulas, Ana e Miguel mostravam-se bastante ansiosos e
nervosos, principalmente Miguel porque não sabia o que era ir para
a escola, nunca tinha estado em nenhuma, iria ser mais uma
experiência nova para ele e mais um mundo novo para descobrir.
Exibia com orgulho e felicidade a sua primeira mochila, os livros
novos e todo o restante material, desejoso de poder estreá-los na

136
primeira aula. Ele adorou imenso a escola e mais uma vez,
mostrou-se bastante entusiasmado e admirado com tudo,
principalmente com o facto de andar na mesma escola que Ana e
de poder vê-la a toda a hora e de estar com ela nos intervalos;
estavam sempre juntos e tentavam colmatar as saudades todas de
estarem apenas alguns minutos separados.
Durante os primeiros dias, Ana fez por ajudar Miguel a integrar-
se no meio escolar e a fazer amigos, mostrou-lhe os principais
recantos: a biblioteca, a cantina e o ginásio, deu-lhe a conhecer os
professores e os funcionários; ambos sentiam-se muito felizes por
estarem juntos na mesma escola, tornaram-se ainda mais unidos,
sendo mesmo inseparáveis. Surpreendentemente, Miguel fez
rapidamente novos amigos e adaptou-se muito bem à escola; com
o passar do tempo, ele revelou-se um rapaz muito aplicado e
estudioso: tirava sempre boas notas e Ana ajudava-o sempre
imenso em tudo, que adorava ajudar em tudo. Até era capaz de
tomar conta do pequeno João sozinho; era tão atencioso, divertido
e carinhoso com as pessoas que João já só o queria a ele e
perguntava por ele o tempo todo. A cumplicidade que tinha com
Ana estava também a estender-se ao irmão dela.
Miguel falava, semanalmente, com os pais pelo telefone e
contava-lhes tudo sobre a cidade: as diversas coisas novas que já
tinha descoberto e aprendido; como corria a escola; as muitas
aventuras com a Ana; os novos amigos e os professores. Também
começou a ajudar Joana, no serviço de Pediatria do hospital onde
ela trabalhava como médica, tal como Ana fazia, acompanhando-
a nas tardes de brincadeira com os meninos doentes. E estava a
gostar imenso da experiência, era óptimo poderem ajudar aqueles
meninos que precisavam tanto de alegria, de boa-disposição e de
se distraírem com coisas animadas, coloridas e cheias de vida,
divertiam-se sempre imenso, juntos. Inventavam jogos novos,
faziam construções com Legos, faziam puzzles e até contavam
histórias uns aos outros. Todos os dias variavam sempre imenso
nas brincadeiras para que nunca houvesse lugar para o cansaço e
para a falta de imaginação e energia, que todos os dias pareciam ser
inesgotáveis.

137
Todas as tardes, o bom humor e a animação eram, sem dúvida,
a forte imagem de marca daquele serviço, não passando
despercebidos a ninguém, e contagiando toda a gente, fazendo com
que as tardes de brincadeira fossem sempre diferentes e muito
intensas.
Miguel adorava rir e fazer rir quem o rodeava e conseguia
contagiar, facilmente, toda a gente com a sua personalidade alegre,
divertida e bem-humorada. Joana comovia-se e derretia-se imenso
ao ver e ouvir as gargalhadas espontâneas que os meninos davam
quando Ana e Miguel se juntavam e os visitavam, eram mesmo
gargalhadas felizes e descontraídas dadas com imensa vontade.
Ana e Miguel, apesar da sua tenra idade, conseguiam fazê-los
mesmo esquecerem-se, durante uns bons minutos que estavam
internados num hospital; porque estavam doentes. Agora aqueles
doentinhos especiais já não perguntavam só pela Ana, mas também
pelo Mikas: que era a alcunha que Mizé e Alfredo haviam dado a
Miguel; os meninos do hospital acharam-lhe tanta graça que
começaram a usá-la todos os dias e com imensa frequência,
deixando-a instalar-se para sempre. E ficavam muito tristes e
zangados quando Mikas não aparecia para brincar com eles. Os
meninos adoravam brincar com os dois; mas Miguel era mais
divertido e contava muitas piadas e muitas anedotas, o que os fazia
rir à gargalhada até doerem os músculos da barriga. Três vezes por
semana no serviço de Pediatria, daquele hospital, era o Dia do
Mikas e da Ana.

E anoitecia em plena cidade de Lisboa, na casa da família


Salgado, o repouso e o sono tão melódicos e profundos já se faziam
sentir. O dia tinha sido cansativo e cheio de emoções fortes; no
quarto de Ana e agora também de Miguel, recheado de brinquedos
e fotografias de ambos, ouvia-se o silêncio do seu respirar
adormecido.
Em cima das mesas-de-cabeceira, podia ver-se uma fotografia
exactamente igual nas duas, tirada pela Joana aos dois, juntos na
praia fluvial, durante as férias de Verão, na quinta, ambos se
mostravam sorridentes e felizes, abraçados um ao outro. Ana e

138
Miguel tinham gostado tanto daquela fotografia que não se tinham
calado até a terem nas respectivas mesas-de-cabeceira. Era mais
uma prova irrefutável da amizade genuína e forte que os unia. Na
mesa-de-cabeceira do pequeno Miguel destacava-se a fotografia
que ele tinha tirado com os jogadores e a equipa técnica do seu
Sporting: o seu maior orgulho; assim como algumas fotografias
com os pais. Ao lado de cada fotografia e em cima de cada uma
das mesas-de-cabeceira estava um singelo fio, com um coração
perfeito, em madeira e esculpido à mão, eram os corações que
Alfredo: pai de Miguel havia feito e oferecido ao filho, e que
Miguel tinha partilhado orgulhosamente com Ana.
No fio de Miguel, estava inscrita a letra A (de Ana) e no fio de
Ana estava inscrita a letra M (de Miguel); quando regressaram a
Lisboa, Ana pediu ao pai que os ajudasse a colocar os corações de
madeira, num fio para usarem e ele prontificou-se logo a ajudá-los
nisso. Eles queriam muito transformá-los numa espécie de amuleto
e também num símbolo de amizade verdadeira; assim enquanto
andassem com aqueles amuletos ao peito sabiam que de uma
maneira ou de outra estariam eternamente ligados um ao outro.

E assim foi…

139
140
E os anos passaram…

na e Miguel são agora, dois jovens adultos e muito mais

A maduros, já estão quase a terminar o secundário e


brevemente irão para a faculdade para entrarem nos seus
cursos de sonho. Cresceram tendo por base o pacto que
tinham feito na infância, fazendo de tudo para o
manterem e cumprirem. Continuam a ser grandes amigos (ou mais
ainda), como na infância; apesar de serem muito diferentes,
principalmente na personalidade. Não sabem o que esta nova etapa
da vida lhes reserva, se a amizade que os une é um sentimento
assim tão forte capaz de ultrapassar todas as dificuldades e
obstáculos que se lhes apresentem pelo caminho. Mas de uma coisa
têm a certeza, querem continuar a fazer parte da vida, um do outro,
e querem continuar a desbravar caminhos juntos, assim como viver
e partilhar momentos inesquecíveis e inexplicáveis.
A vida de Miguel mudou radicalmente, desde que tinha ido
viver para Lisboa e para a casa de Ana, há sete anos atrás; foi todo
um recomeçar de uma nova vida que até então nunca tinha tido
nem vivido. Descobriu como era viver numa casa com todas as
condições, muito diferente daquela que os seus pais tinham na
aldeia, e com todo o conforto e numa grande cidade e as muitas
oportunidades que isso poderia trazer-lhe no presente e no futuro.
Foi para a escola, onde mostrou ser um excelente aluno e um jovem
com vontade de aprender depressa: era aplicado, estudioso e
dedicado, tirou sempre boas notas e nunca falhou um ano e por isso
rapidamente se igualou à Ana.
Fez novas aprendizagens, aprendeu novas regras e novos
conceitos e aprendeu, principalmente, a lutar pelos seus sonhos e

141
objectivos e a nunca desistir à primeira dificuldade. Esta foi das
suas maiores descobertas; afinal de contas todos os sonhos são
passíveis de serem realizados, assim se esteja disposto a lutar por
eles com afinco e essa foi uma das premissas mais fortes que o
acompanharam ao longo dos anos.

É fim de semana, onze horas da manhã, está um Sábado gélido


e cinzento: o vento: cujo ruído mais se parece com um longo e
delicado assobio, faz balançar as árvores com fervor lá fora, de um
lado para o outro, a chuva cai intensamente e a grande velocidade
molhando o chão do passeio mesmo junto ao portão de acesso à
casa e formando diversos charcos. Miguel encontra-se encostado à
janela da cozinha de máquina fotografia pendurada ao pescoço a
sentir a chuva e a ver e a ouvir os relâmpagos que iluminam o céu
de um azul esbranquiçado. O ambiente lá fora dá medo; mas ele
não aparenta ter medo nenhum, antes pelo contrário, o temporal até
lhe traz alguma inspiração e excitação. Uma tempestade é sempre
um excelente motivo para tirar umas magníficas fotografias.
A fotografia era uma das grandes paixões que tinha
acompanhado o crescimento de Miguel, fazendo com que ele
desejasse fazer dessa mesma paixão o seu futuro profissional, ele
adorava fotografar um pouco de tudo: paisagens; pessoas; animais;
coisas abstratas e tudo o que tivesse a ver com a natureza, sem
esquecer as corridas de carros e motas a que por vezes assistia com
os amigos no autódromo do Estoril.
Tudo tinha começado em pleno Alentejo, na sua infância, como
não tinha muitos amigos com quem se divertir e partilhar
brincadeiras, passava a maior parte do tempo sozinho, no meio da
natureza: a observar as pessoas, os animais, as plantas e as
paisagens, sentado debaixo da oliveira centenária da aldeia, de
caderno no colo. Era um caderno relativamente envelhecido, de
folhas completamente brancas, enrugadas e amarelecidas pelo
tempo e pelos anos, que o pai tinha encontrado lá por casa e lhe
havia dado. Miguel fazia por estimar muito aquele caderno de tão
grande e inestimável valor, no qual tinha feito os mais variados
desenhos; este caderno tão especial e carregado de

142
sentimentalismo acompanhou-o durante praticamente todo a sua
infância e adolescência. Ainda o tinha nos dias de hoje e ainda
conseguia arranjar sempre espaço para mais um desenho, nem que
fosse no simples cantinho de uma folha. Naquela altura, ele não
podia fotografar porque ainda não existiam máquinas fotográficas;
por isso aproveitava para desenhar o que ia observando, usando
apenas um pedaço de grafite oferecido pelo pai; à medida que foi
crescendo, e mesmo já tendo uma máquina fotográfica, foi sempre
aperfeiçoando a sua paixão pelo desenho.
Facilmente se deixava conquistar e render perante a beleza dos
seus próprios desenhos, feitos apenas a carvão; sabia que tinha
revelado, desde muito cedo, uma certa aptidão e um talento
especial: quer para o desenho, quer também para o registo de
pormenores: sempre tinha enquadrado muitíssimo bem tudo aquilo
que desenhava no papel. Muita gente já lhe havia dito isso mesmo,
principalmente a mãe e Ana, que também gostava muito dos
desenhos que ele fazia, nomeadamente dos a preto e branco.
Tinham uma magia e uma beleza muito peculiares e ambos
partilhavam dessa mesma opinião; afinal de contas, os desenhos a
preto e branco também podiam brilhar tanto ou ainda mais que os
desenhos feitos a cores. Esta maneira especial de desenhar: sem
qualquer cor, foi algo que ele quis sempre manter.
Para Miguel, cada um dos seus desenhos era diferente e especial
e tinha a sua beleza particular; para além disso, havia sempre algo
que sobressaía neles que ele nunca sabia explicar muito bem,
apesar de achar que na maior parte das vezes bastava um simples
pormenor para fazer toda a diferença. Na verdade, sentia que
muitas vezes, a grande magia de uma verdadeira obra de arte era
não haver palavras para descrevê-la.
Foi já, nos tempos vividos em casa de Ana que ele comprou a
sua primeira máquina fotográfica, ainda das mais simples e baratas
que havia, que ainda hoje mantinha. Sempre teve um grande
fascínio por tudo o que envolvia o mundo da fotografia, muitas
pessoas lhe diziam que ele tinha muito jeito para fotografar e que
devia seguir essa área no futuro. Havia até quem lhe perguntasse se
ele não era fotógrafo profissional tal era a originalidade e a

143
qualidade dos seus registos fotográficos; mas ele respondia sempre
da mesma maneira, com toda a sua simplicidade e humildade que
tanto o caracterizavam:

— Sou apenas um amador à procura de conseguir aprender a


pintar com a luz.

Na rua, apesar do péssimo tempo e do frio que faziam sentir-se,


próprios da estação do ano em que se encontravam, havia uma
grande movimentação (mesmo ao fim-de-semana); parecia
mesmo uma espécie de mar de gente atarefado e em passo
apressado constante a passarem nas ruas, de um lado para o outro
ou a tentarem atravessar a estrada. Havia até quem corresse por
entre as gotas da chuva, mesmo abrigados pelo chapéu-de-chuva,
tentando escapar àquele agreste vendaval; Miguel divertia-se com
aquela agitação e apreciava todo aquele frenesim. Por entre os
relâmpagos da tempestade ele gostava de fotografar aquela
movimentação das pessoas: captar os seus gestos, as suas diversas
expressões, a aparente troca de palavras e até quem sabe os seus
mais humildes pensamentos. As feições daqueles múltiplos rostos
mostravam-se por vezes sorridentes e elásticas, outras vezes
compenetradas e sérias, absorvidas nas suas próprias vidas e nos
vários problemas que deveriam ter para resolver.
O Verão tinha levado a boa-disposição, o sorriso e a alegria de
outros tempos; já o Outono tinha trazido a melancolia e a tristeza
do frio, que se entranhava na pele, e do mau tempo que deixava as
pessoas algo deprimidas, mal-humoradas e até pachorrentas. Não
havia nada para fazer lá fora, o tempo não permitia grandes
escapadelas e em casa as atividades eram mais limitadas, sem nada
de interessante para fazer parecia que faltava o ar.
As pessoas surgiam de roupas quentes, grossas e descoloridas:
marcadas pelos tons mais escuros e sem graça, de longas
gabardines vestidas e bem abotoadas, de gorros ou chapéus na
cabeça, de botas grossas e longas e imensos chapéus-de-chuva, que
pintavam as ruas de várias cores fazendo um desenho pitoresco. À
medida que elas se movimentavam e andavam no asfalto

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humedecido, calcavam nas poças de água e levantavam
minúsculas gotas de água que salpicavam os pés e tudo à sua volta,
o reflexo da água da chuva no chão transparecia uma imagem bem
outonal.
Miguel vestia umas calças de ganga e uma camisa bege com
um padrão axadrezado, estava de auscultadores nos ouvidos a
ouvir Learning to Fly da sua banda predileta: os Pink Floyd, no seu
leitor de música portátil, que mais uma vez tinha adquirido com as
poupanças que tinha feito das mesadas. Desfrutava do silêncio que
reinava em casa: Joana, Pedro e João estavam sentados na mesa da
sala a jogar jogos de tabuleiro, numa tarde de jogos em família e
Ana estava no quarto enterrada nos livros de Matemática a estudar
para a frequência que iria ter na semana seguinte. Aproveitou para
pegar no telemóvel e ligar aos pais.

Entretanto, na cozinha da avó São, em plena Quinta da


Juventude, por entre tachos e panelas, especiarias e diversos
aromas, tocou o telemóvel da dona Maria José, que não perdeu
tempo a atender a chamada quando se apercebeu que era Miguel:
— Olá mãe! — Disse-lhe ele.
— Olá, meu querido filho! Está tudo bem por aí? — Perguntou-
lhe a mãe.
— Está sim! Hoje está mau tempo por aqui, está muito frio e
um vento e uma chuva bastante fortes e pouco convidativos,
estamos metidos em casa.
— Ai, sim? Sabes como é filho, no Outono e no Inverno é
sempre assim…
— É verdade! A Ana está no quarto a estudar; a Joana, o Pedro
e o João estão a jogar um jogo de tabuleiro, na sala. Eu, como não
tenho nada de interessante fazer, estava aqui na cozinha à janela a
ouvir música e a tirar umas fotografias à tempestade. Então e vocês
como vão?
— Está tudo bem, graças a Deus! Temos tido muito trabalho,
por aqui já sabes como é, nunca se pára. O tempo também tem
ajudado um pouco, tem estado um sol de Inverno delicioso e mais

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ou menos quente; mas o que interessa é trabalhar e fazer coisas. E
os teus estudos como é que vão?
— Claro! Isso é que é importante! Os meus estudos vão bem,
esta semana está mais calminha, não tenho trabalhos nem
frequências: é mais para relaxar.
— Vê lá, filho, tu não te descuides. Estuda… A estudar é que
se anda para a frente. Queres dar uma palavrinha ao teu pai?
— Não se preocupe, mãe! Está tudo controlado! Claro que
quero, passe-lhe o telefone, por favor.
— Até já, querido!
— Inté, mãe!

Os pais de Miguel tinham acabado por ficar a trabalhar na


Quinta da Juventude. A mãe de Miguel tinha ficado como ajudante
na cozinha, ao lado da avó São: ela adorava cozinhar, experimentar
especiarias e sabores novos e acima de tudo… inovar e inventar. O
senhor Alfredo era o homem dos sete ofícios: para além de ser o
jardineiro da casa: adorava cuidar das árvores, das flores e das
terras, de ajudar o avô António em todas as tarefas da quinta, ainda
conseguia trabalhar como pastor quando o avô António estava
mais atarefado com as rotinas da quinta. Enquanto as ovelhas
pastavam, ele aproveitava para desfrutar da sua companhia
preferida: o rádio, passava horas de ouvido atento às notícias, a uma
ou outra melodia dos Discos Pedidos e claro não podia passar
despercebido aos relatos de futebol: era aquilo que mais o fazia
ficar agarrado àquele pequeno aparelho, sem perder pitada de
nenhuma jogada.
E fazia pequenos arranjos em coisas que estivessem avariadas;
segundo palavras da sua mulher, ele era muito jeitoso nessas
coisas: era canalizador, pintor e eletricista, já para não falar das
enormes habilidades com as avarias dos automóveis, sabia arranjar
quase tudo e mexia em quase tudo: tirava e punha peça sem se
enganar e sem sobrar nenhum parafuso. Quem o conhecia bem
costumava dizer que ele tinha queda para ser um excelente
mecânico.

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O senhor Alfredo e a dona Maria José eram dois empregados
muito dedicados, decidiram agarrar bem, com as duas mãos, a
oportunidade que o avô de Ana havia-lhes dado; por isso, eles
chegavam à quinta muito cedo: eram praticamente os primeiros
empregados a chegar e os últimos a sair, quando já todos dormiam.
Maria José gostava de deixar os cozinhados adiantados para o dia
seguinte, não fosse alguma coisa falhar à última da hora e surgirem
imprevistos. Já Alfredo ficava a fazer pequenas coisas até a mulher
estar despachada.
A vida da família Ribeiro tinha mudado imenso, depois do
senhor Alfredo e da dona Maria José terem arranjado o trabalho na
quinta; não deixaram de ser pobres para serem ricos, mas agora que
tinham um trabalho e recebiam um salário fixo todos os meses,
podiam viver confortavelmente fazendo face às dificuldades.
Foram juntando algumas poupanças ao longo dos anos e
aproveitavam esse dinheiro para coisas extra: a primeira mudança
que fizeram foi na casa onde viviam: era velha, o chão era de
madeira, mas estava a precisar de ser remodelado com urgência;
pois a madeira estava velha, levantada e carcomida pelos bichos.
A casa tinha imensa humidade, fraco isolamento, precisava de
aquecimento; pois ainda não tinha instalação elétrica, usavam um
candeeiro a petróleo, e o senhor Alfredo ouvia os relatos num rádio
velho a pilhas.
O saneamento era fraco, as telhas estavam muito velhas e a
chuva penetrava dentro de casa; por isso, não perderam tempo e
remodelaram a casa quase de raiz, transformando-a num local
harmonioso, confortável, aconchegado e com condições para ser
habitado. Colocaram um recuperador de calor e isolaram muito
bem todas as portas e janelas; assim como as paredes para os
rigorosos Invernos. Instalaram luz elétrica e colocaram o
saneamento, as mobílias da casa foram mudando conforme era
possível, assim como a aquisição de alguns eletrodomésticos e um
esquentador para poderem tomar-banho de água quente. Ficou
completamente irreconhecível.

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Entretanto, o pai de Miguel veio ao telefone, andava há horas
pelo pomar da quinta a ajudar na apanha da Maçã:
— Olá, meu rapaz! Então, que tal vai tudo por aí? — Perguntou-
lhe o pai.
— Olá, pai! Tudo na mesma como a lesma e consigo? —
Brincou Miguel sorridente.
— Também, Miguel! Tens acompanhado os jogos dos nossos
leões na televisão?
— Vou tentando acompanhar sempre que me é possível. Um
dia destes, o pai tem que vir a Lisboa para irmos os dois ao estádio.
— Sabes que gostava muito, Miguel! Mas por enquanto, não
posso deixar o trabalho, aqui, na quinta; porque temos tido ainda
muita gente. Terá que ficar para outra altura.
— Compreendo!
— A tua mãe é que fica toda arreliada comigo quando eu vejo
os jogos na televisão, porque eu não fico calado um bocadinho,
sabes?
— Então não sei?! O pai foi sempre assim, até quando havia
relatos de futebol no rádio; mas não se deve enervar, não vale
mesmo a pena, olhe que eles não o ouvem.
— Lá nisso tens razão! Mas, eu fico danado e não consigo
aguentar, tenho mesmo que gritar com eles; às vezes não jogam
nada, parecem umas lesmas, só querem brincar com a bola e fazer
fintas, não passam a bola em condições e cometem erros crassos
de pôr os cabelos em pé. Coitada da tua mãe, passa a vida a dizer:
Oh, homem, não te arrelies! Não sei como é que tu e o Miguel
podem gostar assim tanto de bola, com os tempos difíceis que aí
estão e a crise pagam a esses homens todos tanto dinheiro para
andarem a dar pontapés a uma bola. Valha-me Deus!
— Já sabe que a mãe é assim… — Disse-lhe ele rindo-se;
ouvindo a mãe a falar do outro lado do telefone.
— Oh, homem! Larga o telefone; olha que o nosso filho fica
sem dinheiro no telemóvel. Quando começam a falar da bola não
despegam…
— Ouves a tua mãe? Já está a mandar-me desligar!

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— Deixe-a lá! Dê-lhe um descontozinho! Bem, vou despedir-
me: até para a semana, pai. Tudo de bom para vocês, um grande
abraço. Passe lá o telefone à mãe, por favor…
— Está bem! Um grande abraço, meu filho! E bons estudos!
— Sim, filho? Ai, este teu pai e a euforia com bola; mas o pior
nem é isso, é quando as coisas não correm de feição, fica tão
maldisposto e zangado que nem dorme, dá voltas e reviravoltas na
cama, levanta-se imensas vezes e não pára sossegado. Fico mesmo
arreliada com ele porque fico num estado de preocupação e de
nervos tão grandes que acabo também por não consigo descansar.
— Oh, Meu Deus! Não se preocupe tanto, mãe! Isso depois
passa-lhe, vai ver…
— Quando lhe passa, meu filho! Às vezes, ele passa dias que
não diz uma palavra, fica com um humor péssimo por causa das
derrotas do Sporting; mas tu não tens que aturar estas coisas todas,
deixa lá, vai lá à tua vida que eu não quero maçar-te mais. Não
gastes mais dinheiro, que a vida agora é tão cara, tens que poupar
para quando fores grande e um homem de barba rija, o dinheiro
hoje em dia faz tanta falta…
— Oh, mãe! Não chateia nada, os vossos problemas e as vossas
preocupações também me dizem muito respeito! Vá lá, não se
preocupe tanto…
— Vou tentar, filho! Porta-te bem e bons estudos. Quando fores
grande, eu quero muito que sejas um grande doutor,
— Obrigado, mãe! Até para semana! Beijocas para vocês!
Miguel desligou o telefone, voltou a colocar os auscultadores
nos ouvidos e fez mais alguns registos fotográficos; uns segundos
depois apareceu Ana na cozinha.
— Olá! Olá! — Cumprimentou-o ela com o seu habitual ar
bem-disposto.
Miguel tirou novamente os auscultadores dos ouvidos…
— Olé, princesa marrona!
— Estás com muita piada! Por acaso, estavas a falar com quem
ao telefone? — Perguntou-lhe ela curiosa.

149
— Com os meus pais, com quem poderia ser? Sabes como é: a
minha mãe e as suas histórias, depois o meu pai e o futebol, nunca
mais desligavam.
— Pois! Eu oiço-te falar ao telefone há horas…
— Que exagerada! Demoramos menos de quinze minutos. E
tu, não devias estar a estudar?
— Devia! Mas vim arejar um bocadinho: beber um copo de
água e buscar umas bolachas; a frequência de Matemática está a
pôr-me louca com tantos exercícios e problemas. Já estou farta de
números, contas, equações e variáveis: é x para um lado, é y para o
outro, é que nem imaginas. Bolas! — Disse ela rindo-se.
— Acredito! Mas para quem quer ser uma grande médica, tem
que ser mesmo assim: muito estudo e marranço; por isso, eu acho
bem que vás estudar! — Gozou ele.
— Continua a gozar comigo, Miguel! Estás muito
engraçadinho, hoje… Eu queria ver-te a ti; mas deixa estar que não
esperas pela demora, não tarda nada vai ser a tua vez de estares na
minha situação e depois quem vai gozar contigo sou eu.
— Ui, que medo! Já estou todo arrepiadinho, não vês? — Disse-
lhe ele fazendo de conta que mostrava os pêlos do braço — Eu, por
enquanto, não tenho frequências; hoje tirei o dia para a preguiça…
Estava aqui a ouvir música e a fotografar o frio e a tempestade que
se faz lá fora, o céu está magnífico hoje: com estas nuvens escuras
e os trovões, a tempestade foi, sem dúvida, um excelente mote para
fazer uns belos registos fotográficos e depois se calhar vou jogar
qualquer coisa no computador.
— Fogo! A vida vai para ti… Rica vidinha que tu tens!
Também quero!
— Cada um tem o que merece!
— Que parvo! Não quero mais conversa contigo…
Miguel piscou-lhe o olho.
— Estou no gozo, não te zangues comigo Anocas! Bem,
mudando para outro assunto; logo à tarde eu vou sair com a Isabel
e com o pessoal, vamos dar uma volta por aí e vamos ao bowling.
Não queres vir connosco?

150
— Bem gostava, para ver se me livrava um pouco da
Matemática e se arejava a cabeça e as ideias; mas com frequência
para a semana e com a montanha de exercícios que ainda tenho
para fazer… não posso mesmo ir. Mas obrigada pelo convite!
— Estás mesmo tramada!
— Podes crer que estou mesmo! Quer o triste destino que eu
fique em casa fechada a um Sábado, para não dizer o fim de
semana inteiro; é melhor nem pensar nessa hipótese senão dou em
doida em pouco tempo.
— Coitadinha! Nem imaginas, como eu fico triste por ti! —
Gozou ele.
— Ri-te, ri-te! Quando estiveres tu na minha situação, vou ser
eu a rir-me e a gozar. Olha que quem ri por último, ri sempre
melhor!
— Ai, sim, tolinha?
— Sim!!! Estás impossível hoje… Mas pronto, o que me vale
é que está frio e mau tempo lá fora, senão entrava em paranoia, só
de pensar que tinha que ficar aqui fechada a estudar Matemática a
tarde toda. No entanto, deixa lá que aquilo que tem que ser, tem
que ter muita força; infelizmente, eu tenho mesmo que ir continuar
a estudar.
— Espera aí! Aproveito a companhia e vou contigo para cima.
Quero trabalhar as fotografias no Photoshop.
— Depois quero ver tudo, pode ser?
— É claro que sim! Quando estiverem prontas, chamo-te!
— Está bem!
E já no primeiro andar…
— Até já, sortudo!
— Inté, princesa marrona!
— Já te calavas com isso!
— Se quiseres posso repetir, outra vez…
Ana atirou-lhe com uma almofada e de seguida entraram nos
respetivos quartos. E voltou a reinar o silêncio em casa…

Miguel tinha vinte e um anos e era, agora, um jovem de


personalidade forte e fortemente vincada, mesclada entre o seu

151
lado mais simples, pacato, verdadeiro e modesto: onde a inveja não
existia e do qual pendia a verdadeira sinceridade e honestidade. Se
havia coisa que ele não gostava nem fazia com demasiada
frequência, era gabar-se, não gostava muito que as pessoas à sua
volta ficassem a pensar que ele achava-se superior aos outros; na
infância a mãe tinha-o ensinado que ninguém é melhor ou pior que
as outras pessoas, todos somos feitos de qualidades e defeitos e é
isso que nos distingue uns dos outros.
Habituado a viver com pouco e com aquilo que a vida lhe ia
dando, não apreciava quaisquer luxos; na verdade, se havia pessoa
que sabia dar um valor inestimável às pequenas coisas da vida:
aquelas coisas mais simples e mais básicas era mesmo ele. Tinha
crescido tendo, por base, essa mesma premissa, tinham sido esses
os mais fortes valores transmitidos pelos pais, perante as suas mais
duras dificuldades na vida. Também gostava de ajudar, era algo
que lhe dava prazer e era dedicado às pessoas, fazendo sempre por
lhes agradar e por retribuir tudo o que faziam por ele.
E a sua verdadeira sede desmedida de viver. Aventureiro por
natureza, de ávida paixão pela descoberta do mundo e de tudo
aquilo que o rodeava, considerava-se um rapaz extrovertido e
rebelde na medida certa. Namorava com Isabel, por quem estava
perdidamente apaixonado: uma jovem de cabelos cor de mel, olhos
claros, alta, esbelta, atraente e bastante bonita: não passava
despercebida aonde quer que fosse.
Era um jovem sedutor e cheio de charme: alto, corpulento e bem
constituído, considerava-se uma pessoa irrequieta por natureza,
que gostava de estar sempre ocupada com alguma coisa. Adorava
roupa de desporto: sobretudo roupa simples com a qual se sentisse
confortável, caça submarina, sair com os amigos: não dispensava
os verdadeiros serões de anedotas, de cinema e as noites de copos
e bowling, fotografar e andar na sua mota: prenda dos pais de Ana
pelos seus dezoito anos. Este era outro dos seus sonhos de criança,
agora que tinha conseguido concretizá-lo só lhe faltava mesmo
experimentar a adrenalina e a loucura de uma concentração de
motas; mas enquanto não terminasse o 12º ano e entrasse para a
faculdade, não poderia experimentar tudo isso, os seus pais e os

152
pais de Ana não deixavam. Primeiro pelo perigo que era circular
de mota na estrada, nunca se sabia que perigos estavam reservados
aos motociclistas e depois as concentrações de motas convidavam
sempre a muita loucura, excesso de velocidade, algum álcool e
sabe-se lá mais o quê…

Já Ana tinha dezoito anos, ainda não tinha o seu coração


ocupado e continuava a ter a mesma beleza incontornável da
infância: olhos azuis como o mar, cabelos longos, loiros e
encaracolados e corpo esbelto, esguio e bem constituído; era muito
feminina, gostava muito de se arranjar e gostava de estar sempre
bonita. Adorava sair com as amigas, fazer longas maratonas de
séries relacionadas com o tema da Medicina, ler, fazer vários
programas com Miguel e claro fazer voluntariado no hospital onde
Joana trabalhava também sempre na companhia do melhor amigo.
Continuavam a adorar crianças e a gostar imenso de brincar e de
entreter os meninos doentes e de fazer-lhes companhia: pintavam
desenhos, faziam puzzles, contavam histórias e faziam colagens.
Ana também tentava fazê-los sorrir, apesar de essa ser a
especialidade do bestfriend, que passava o tempo todo a contar-
lhes anedotas e piadas secas e a fazê-los rir às gargalhadas,
roubando-lhes sorrisos com muita facilidade. Quando o Mikas não
podia acompanhar Ana nas visitas ao hospital, os meninos faziam
por perguntar imenso por ele: Nós temos saudades do Mikas. O
Mikas hoje não vem? Porquê?
Independentemente da doença que tivessem; estar num hospital
também podia ser bem divertido, não tinha que estar só relacionado
com coisas más e dolorosas. Um dos grandes objectivos de vida de
Ana era no futuro, quando fosse mais crescida poder ajudar muito
mais aqueles doentinhos de palmo e meio, tal como fazia a mãe. O
seu maior sonho era conseguir ser médica-pediatra como a mãe e
era para isso que estudava e lutava tanto, todos os dias.

E quando menos esperavam o tempo tinha passado depressa,


aproximava-se a hora do almoço e como a tempestade parecia ter
aliviado um pouco, decidiram todos ir almoçar fora. O almoço foi

153
animado com muitas anedotas e piadas à mistura (Miguel
continuava a ser um especialista em fazer rir toda a gente à
gargalhada) e conversas sobre tudo em geral: escola, tempos livres,
música, leitura, cinema, jogos entre outros assuntos.
Partilharam até algumas histórias dos tempos de infância,
peripécias que faziam, brincadeiras, entre muitas outras coisas, foi
um momento muito bem passado entre os cinco. A seguir ao
almoço foram todos dar um passeio até ao jardim, o Sol parecia
estar a esforçar-se por dar o ar da sua graça; havia neste, um
pequeno parque infantil onde o João pôde brincar um pouco e
divertiu-se bastante: fartou-se de andar no escorrega, de correr atrás
dos outros meninos, de jogar à bola, de andar de baloiço e de ir
buscar o pai para participar nas brincadeiras com ele. Era uma
criança cheia de vida para a inocência da sua idade, irrequieta,
rebelde e bastante extrovertida.
Miguel e Ana aproveitaram para relaxar um pouco: sentaram-
se num banco do jardim a apanharem um pouco de ar e a
apreciarem a paisagem. Ele gostava muito do contacto com a
natureza, do aroma a terra fresca, do perfume das flores, dos
diversos cheiros que balançavam à sua volta, de sentir a água a
correr nas fontes. Da paz e sossego que os lugares verdes
transmitiam, eram ideais para se fazerem uns bons registos
fotográficos e eram também perfeitos para se pensar e para se
descansar.
No entanto, apesar de Ana estar gostar da tarde descontraída, do
almoço animado e do excelente passeio na companhia de Miguel,
tinha a cabeça longe dali. Só via números, contas, variáveis e
problemas para resolver, a frequência de Matemática estava a
deixá-la mesmo doida e a dar-lhe que fazer, não deixava sossegá-
la nem um bocadinho. Ela não queria baixar os dezoito valores que
tinha tido nas frequências anteriores, se baixasse a média das
disciplinas, principalmente a média de Matemática, a média final
também descia e assim não poderia ir para Medicina, como era seu
desejo, continuava a querer ser médica-pediatra como a mãe, para
poder ajudar crianças doentes. Mas para Ana ser uma boa médica-
pediatra tinha que estudar muito e que tirar muito boas notas daí a

154
sua grande preocupação, ela já era uma mulher cheia de objetivos
pré-definidos e de metas que queria atingir; por isso, quando
alguma coisa falhava, ela ficava bastante triste e até desiludida
consigo própria, porque ela sabia que conseguia fazer mais e
melhor, e que se dedicava e esforçava imenso por isso. Os pais bem
tentavam convencê-la de que não devia penalizar-se tanto; mas ela
era uma miúda decidida, de personalidade forte e de muitas
convicções, tal como a mãe, que tinha os pés bem assentes na terra
e no chão da vida e que sabia muito bem o que queria. Era muito
exigente consigo própria e não admitia falhas; pois passava noites
e noites a estudar e às vezes dormia pouquíssimo, porque
levantava-se bem cedo para rever matérias para os testes. Para Ana
as boas notas eram a melhor recompensa que podia receber pelo
seu esforço, dedicação, espírito de sacrifício e entrega.
E enquanto a Ana reflectia, Miguel ia descrevendo-lhe tudo
aquilo que mais gostava naquele jardim e naquela paisagem
natural; mas ela não tinha ouvido nada do que ele lhe havia dito,
estava mesmo a quilómetros de distância dali.
— Olá! Olá! Terra chama Ana, escuto? — Brincou ele.
— Desculpa… Disseste alguma coisa? Não estava mesmo cá!
— Pois… Que não estavas cá, percebi eu! De facto, eu até disse
muitas coisas; mas tu não ouviste nada do que eu disse.
— Oh! Desculpa, mais uma vez! Enquanto não passar esta
maldita frequência de Matemática, eu vou andar sempre com a
cabeça na lua.
— Não faz mal! É na boa! Eu percebo…
— Ana sorriu — Ainda bem! Levas-me a casa?
— Já? — Disse-lhe ele consultando o relógio de pulso — Não
ficas mais um pouco? Fazia-te bem para descontraíres e aliviares a
cabeça.
— Eu sei! Mas não dá, Miguel! Sei, perfeitamente que, a tua
intenção era boa; mas, tenho mesmo que ir estudar.
— Pronto, está bem! Já insisto mais…
— Agradeço-te imenso a preocupação!
— Não tens nada que agradecer!

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— Sabes que nestas alturas, cada minuto é precioso e o tempo
parece que tem tendência a fugir a sete pés.

Miguel sorriu e avisou, de seguida, Joana e Pedro que ia levar


Ana a casa, ela não continha a euforia e a excitação; pois era a
primeira vez que ia andar com Miguel de mota. As expectativas
eram imensas acerca de como seria a sensação de andar numa
mota, nunca havia experimentado. João ainda começou a fazer
uma birra; pois também queria ir, mas rapidamente a mãe lhe
explicou que ele ainda não tinha idade para andar de mota, que
ainda era demasiado pequeno para isso. Por fim, não faltaram as
recomendações do costume: levarem o capacete, irem devagar e
com cuidado, entre muitas outras, uma vez que era Miguel que iria
a conduzir; mas ele prometeu que ia correr tudo bem, que Ana
estava segura com ele e que chegaria sã e salva a casa.
Antes de se colocarem em cima da mota e da aventura começar,
Miguel foi ao cesto da mesma e retirou de lá dois poderosos
capacetes…

156
reparada para um belo passeio? —

—P
Perguntou-lhe ele com a euforia e a
muita adrenalina a intensificarem-se;
pois, pela primeira vez ia passear com
Ana na sua mota.
— Preparadíssima e ansiosíssima,
para voar na tua menina de duas rodas! Só por acaso, não vou ter
que usar capacete, pois não? É que desconfio que vou sufocar com
isso, para além de que me vai tirar as vistas todas sobre a
paisagem… — Disse-lhe ela perdendo rapidamente todo o
entusiasmo que sentia, há momentos atrás.
— Pois! Mas, se tu queres que te leve a casa na mota, vais ter
mesmo que usar o capacete; foi aquilo que os teus pais mais nos
recomendaram. Por isso, se não cumprirmos a promessa, garanto-
te que vamos estar, os dois, metidos em grandes sarilhos: acabam-
se os passeios na Maria Vinagre. Isto parece desconfortável; mas é
apenas uma questão hábito, não te preocupes que não sufocas.
— Espero bem que sim! — Disse-lhe ela um pouco renitente e
apreensiva.
— Não te preocupes! Vai correr tudo bem, estás perfeitamente
segura.
— Eu sei que sim! Confio plenamente em ti! Nunca, em algum
momento, duvidei disso.
— Sabes que, tenho aqui uma companheira de duas rodas
extraordinária, tem-se portado muitíssimo bem: muito poucas
avarias, nenhum desastre de maior e muitas viagens e passeios.
Felizmente nunca me falhou e já tem uns bons quilómetros nas
costas. — Disse-lhe ele de ar satisfeito.
— Coitadinha! Mas olha que não se nota nada…

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— Ela faz sempre por disfarçar isso muito bem! — Disse-lhe
ele sorrindo com o seu típico ar brincalhão.
— Bem, ‘bora lá montar na Maria Vinagre?
— Desculpa?! O que é que disseste? Só podes estar a gozar
comigo; a mota também tem um nome próprio? Não acredito…
Nunca tinha visto coisa igual, uma mota ter um nome próprio. Meu
Deus, essa agora foi a do século.
— Oh Anocas, tu não gozes com a minha menina, ouviste?!
— Não estou nada a gozar. Mas que acho o nome muito original
e engraçado, lá isso acho. Sinceramente, só tu para inventares uma
coisa destas.
— E não te disse tudo! É que Maria Vinagre também é o nome
de uma vila algarvia.
— A sério?! Estou oficialmente pasmada! Isso não sabia, sou
sincera…
— Estás a ver? As coisas que tu aprendes comigo!
— Convencido! Mas, até acho uma curiosidade engraçada e
interessante. Um dia destes, nós temos que ir até lá: à terra da tua
mota.
— Escusado será dizer que eu alinho nisso, já!
— Claro! Óbvio! Até ficava admirada se tu não alinhasses
numa coisa destas!
— Bem, põe o teu capacete para irmos andando!
— É para já! — Disse-lhe ela muito descontraída.
Colocaram os respetivos capacetes, sentiam-se animados e
felizes, e depois ele emprestou uma peça muito especial à sua
cúmplice.
— Veste isto! — Disse-lhe ele passando-lhe para a mão o seu
casaco de cabedal preto: uma das suas peças de roupa preferidas de
sempre.
— Mas… Mas, isto é o teu casaco de cabedal, é a peça de roupa
que mais gostas e estimas: das primeiras coisas que compraste com
as mesadas.
— Pois é! Este casaco é realmente uma peça especial para mim,
muito especial mesmo, que estimo e preservo muito. Sabes bem
que eu sempre quis ter um casaco destes, poupei muitas mesadas

158
para conseguir ter um, porque são bastante caros; para além disso
são casacos muito quentes, almofadados e feitos de cabedal
genuíno, não são como as imitações que se veem por aí.
— Eu sei que sim!
— E para mim, as peças especiais como esta, só se partilham
com pessoas especiais como tu; logo eu quero que vistas o casaco
agora. Não imaginas como é desconfortável andar de mota mal
agasalhado; isto não é como andar de carro: aconchegada e
quentinha. Faz um ar fresco e eu não quero que fiques doente por
causa de um descuido.
— Oh! Tens a certeza absoluta que posso mesmo vesti-lo?
Tenho um pouco de receio de estragá-lo, visto ser uma peça
mesmo muito importante para ti.
— É na boa! Sei perfeitamente, que tu o estimarás, tanto, quanto
eu; por isso, vá lá, veste-o, quero ver como te fica…
Ana vestiu o casaco de cabedal, apertou-o, bem apertadinho e…
voilá!
— Então que tal me fica? — Perguntou-lhe ela de ar feliz e
entusiasmado.
— Uau!!! Fica-te mesmo bem… Estás de arrasar e pareces uma
verdadeira motard!
— Achas?! — Perguntou-lhe ela, dando uma volta sobre si,
mesma.
— Claro que acho!
— A sério?! Fica-me um pouco largo e é um bocado pesado;
mas é quentinho. Prometo que não o estrago!
— É na boa! Fica à vontade!

De seguida, subiram para a mota, Miguel pô-la a trabalhar e


Ana sentiu, de imediato, a adrenalina típica daqueles momentos,
que a consumiu rapidamente. Ela ficou bastante entusiasmada e
eufórica com a aceleração do veículo, quando Miguel carregava no
acelerador.
— Oh Meu Deus! Que emoção! As minhas amigas vão passar-
se quando lhes contar que andei numa mota a sério.
— Miguel riu-se à gargalhada — Só mesmo tu!

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— E desconfio que, quando as minhas amigas souberem deste
passeio não vão largar-me até conseguirem experimentar também.
Prepara-te para seres cobiçado…
— Ui, ui! Isso já é um caso mais complicado, sobre o qual irei
ter que ponderar bem se vier mesmo a acontecer.
— Mas podes acreditar que vai mesmo acontecer, andar de
mota parece-me ser uma experiência brutal.
— Fico contente por ouvir isso! Espero que tu mantenhas a
mesma opinião, quando terminarmos o passeio.
— Nem duvides!
— Vá, agora quero que te agarres muito bem à minha cintura e
não me largues de forma alguma. Aí vamos nós!

Ana seguiu as recomendações à risca e poucos segundos


depois, ela já estava fascinada pelas diversas emoções e sensações;
pela adrenalina, pelas inúmeras borboletas que esvoaçavam na
barriga; pela brisa fresca que envolvia todo o corpo e pela paisagem
a passar por eles e a mudar, constantemente, a alta velocidade e a
uma rapidez impressionante, sem lhes dar sequer tempo para
distinguirem nada. Andar de mota era incrível e de uma liberdade
indescritível e a aceleração dava mesmo a sensação de que tinham
asas para voar. A meio do caminho pararam junto à Praia da
Princesa para se sentarem a relaxar e sentirem o mar e a areia nos
pés; ambos adoravam a praia e mar. Miguel queria muito mostrar
aquela praia a Ana, era algo que já queria fazer há bastante tempo;
pois era um lugar especial, que sempre lhe tinha oferecido
excelentes boas recordações e que, de certa forma, o fazia pensar
mecanicamente nela. Esperava que ela também gostasse tanto dele
como ele.
— Bem, agora que já fizemos quase metade do percurso até
casa, eu quero que me contes tudo. Que tal está a ser a experiência?
Estás a gostar do passeio?
— Estou a adorar imenso, nunca pensei que andar de mota fosse
tão bestial e tão libertador. Sentimo-nos como se vivêssemos sem
qualquer tipo de gravidade, tornamo-nos leves como uma singela
pena, deixamos a nossa imaginação fazer o que lhe apetecer; no

160
fundo, é uma mescla tão grande de sensações que praticamente nos
obriga a deixarmo-nos levar e a deixarmos voar tudo à nossa volta.
— Nem imaginas como é bom ouvir isso! Parece-me que há
mais alguma coisa em que passamos a estar nitidamente em
sintonia.
— Sem dúvida! vou querer repetir isto mais vezes.
— Quando quiseres! É só dizeres… Mudando agora de
assunto: sabes como se chama esta praia?
— Não!!! Como? — Perguntou-lhe ela cheia de curiosidade.
— Praia da Princesa!
— Ana mostrou-se estupefacta — A sério? Que fixe!!!
— Descobri esta praia há já algum tempo, durante um dos
muitos passeios que costumo fazer, de mota, com os meus amigos;
é um lugar especial, que me costuma trazer muita paz e
tranquilidade e muito boas memórias e recordações e que me faz
pensar muito em ti.
— A sério?! Não fazia ideia… Nem sei que dizer!
— Já tinha planeado trazer-te cá, há bastante tempo, para ta
poder mostrar; mas ainda não tinha conseguido, ainda bem que a
visita se proporcionou hoje.
— Não conhecia esta praia, nem fazia ideia que existia.
— Lembras-te que quando éramos pequenos eu chamava-te
princesa pequenina?
— Pois era!!! E eu adorava! — Disse-lhe ela entusiasmada.
— Quando vi o nome da praia, para além de ficar ainda mais
curioso para conhecê-la, lembrei-me logo de ti e de te trazer até cá.
Achei que irias adorar conhecer este sítio.
— Obrigada pela lembrança e por me trazeres cá. Como te
disse, não conhecia esta praia; mas estou a adorar conhecê-la e estar
aqui contigo, é lindíssima. Lembras-te da primeira noite em que
ficaste comigo na quinta?
— Então não havia de me lembrar? Acho que me ficou na
memória para sempre; essa noite e a tua verdadeira amizade
contribuíram muito para eu mudar, foi literalmente o começo de
uma nova personalidade e de uma nova vida.

161
— E também foi deveras importante para sermos aquilo que
somos hoje…
— É verdade! Gostava muito que a partir de hoje esta praia
fosse um refúgio só nosso; o que achas da ideia?
— Agrada-me bastante e acho que faz todo o sentido; já que é
um sítio que irá passar a estar sempre ligado a nós e onde
partilharemos sempre memórias só nossas.
— Nem imaginas como eu fico contente! Sê bem-vinda à tua e
à nossa praia.
Era quase impossível, eles não se renderem por completo às
óptimas recordações que traziam da infância. O tempo corria
sempre depressa demais; no entanto, as memórias permaneciam
para sempre: quer na alma, quer no coração; pois tornavam-se tanto
intemporais como também eternas. E ao longo dos anos, eles
haviam vivido muitos momentos e situações juntos e também
tinham partilhado coisas, juntos. De sorriso rasgado e um pouco
rebelde, abraçaram-se.
— Apetece-me muito fazer uma coisa!
— Ui, ui! Nem quero saber o que vem aí… — Gozou ele.
— Não gozes! Assim já não te conto nada!
— Oh! Não sejas tolinha, estava a brincar contigo. Diz lá…
— Vou molhar os pés no mar. Vens comigo?
— Estás a brincar comigo, não estás? — Disse-lhe ele
estupefacto
— Não! Estou mesmo a falar a sério! — Disse-lhe ela divertida.
— Anocas, eu acho que não estamos numa estação do ano
muito propícia para fazermos isso. Já viste o frio que se fez sentir
este fim-de-semana?
— Pois, eu sei! Tens razão! Mas apetece-me tanto, estou com
tantos desejos de sentir a água salgada, do mar, nos pés; por isso,
acho que vou correr o risco. Alinhas comigo? Vá lá Miguel, por
favor… — Implorou-lhe ela.
— Está bem… É sempre completamente impossível resistir
aos teus pedidos! — Disse-lhe ele de sorriso rebelde.

162
Descalçaram-se e de seguida correram pelo areal fora até à
beira-mar, às gargalhadas e a atirarem areia um ao outro; tal como
costumavam fazer em crianças, na praia fluvial: brincaram,
correram descalços à beira-mar (a água do mar estava
razoavelmente fresca), salpicaram-se um ao outro e riram muito.
Estavam felizes, sorridentes e com um brilho especial no olhar,
como se voltassem à infância. Miguel já tinha as calças molhadas
praticamente até ao joelho e Ana abraçava-se com toda a força ao
casaco e fazia por friccionar os braços, com as suas mãos, por causa
do frio gélido. As pernas e os pés, de ambos, mostravam-se algo
arroxeados, estavam gelados de estarem, há tanto tempo, húmidos
e também por causa do ar frio que se fazia sentir junto à praia.
De repente, quando menos esperavam, começou a chuviscar e
a soprar novamente o vento gelado de Inverno; por isso, decidiram
regressar para junto das toalhas de praia.
— Foi fixe, não foi? — Perguntou-lhe ela de ar satisfeito,
sentando-se na areia a descansar, já estava exausta de tanto correr,
rir e brincar.
— A ideia até pode ter sido louca; mas vou ter que admitir que
adorei, foi mesmo bestial e para além disso diverti-me à grande.
Senti-me mesmo como se fosse um verdadeiro puto..
— Bem me parecia que ias adorar… Repetimos?!
— É melhor não! Acho que o clima já não o permite!
— Lá terá que ficar para uma próxima e em maior dose!
— Concordo plenamente! Bem, acho que é melhor irmos
embora, estás gelada e eu também; já está a ficar muito frio, temos
que nos secar rápido, senão amanhã estamos os dois de cama: com
uma gripe. Para além de que vai chover não tarda nada.
— De facto, eu já me estou a sentir como num congelador:
geladinha. O que me vale é o teu casaco, que é mesmo quentinho.
— Vês? Eu bem te disse que andar de mota desprotegido não
era pêra doce, faz muito fresco. E tu não querias vesti-lo… Devias
ouvir mais vezes os conselhos do teu bestfriend. Ele ainda sabe
umas coisas e o que diz — Brincou, sorrindo de esguelha.

163
— Já cá faltava o convencido do costume! — De repente, Ana
olhou preocupada para o relógio de pulso — Ai, meu Deus, tu já
viste as horas?
Miguel espreitou também o seu relógio de pulso.
— Ui! Acho que fomos longe demais, já estamos aqui há mais
de uma hora. Desculpa… Eu bem te digo que sou um
desencaminhador nato. — Disse-lhe ele corando, sentia-se
bastante envergonhado e comprometido.
— Lá se foi a minha tarde de estudo! Quando chegarmos a casa
vou ajustar contas contigo.
— Eu é que estou tramado! Já perdeste uma tarde de estudo, se
baixares as notas e amanhã ficares doente por causa desta
brincadeira, vou recambiado para o Alentejo.
— Achas? Eu também quis vir aqui, de livre e espontânea
vontade; por isso a culpa também é minha, se houver algum castigo
também terá que ser para mim, como é óbvio.
— Oh! Isso não faz sentido nenhum; porque se pensares bem
fui eu que te trouxe aqui de mota. Lembra-te que prometi aos teus
pais que iria correr tudo bem, que eu iria tomar bem conta de ti e
que tu estarias em segurança comigo.
— Deixa-te dessas coisas! Que parvo… Tu tomaste
perfeitamente bem conta de mim e para além disso correu tudo
lindamente; por isso, não há razão para teres medos ou receios.
— Tens a certeza? Não estás mesmo chateada comigo?
— Eu chateada contigo? Achas mesmo? Isso é um perfeito
disparate; só tenho mesmo que agradecer-te por teres-me trazido
até este sítio magnífico, gostei tanto e soube-me tão bem. Ajudaste-
me imenso a tirar a frequência da cabeça por breves instantes,
adorei mesmo muito este bocadinho e diverti-me imenso. Amanhã
quero repetir, pode ser? Esta praia é mesmo linda!
— Claro que sim! Acho uma grande ideia, eu alinho com todo
o gosto; aliás, eu sabia que ias adorar este lugar e que irias querer
imenso cá voltar…
— Ana sorriu — Boa! Então, fica já combinado.
Miguel tirou, do cesto da mota, uma toalha que costumava
trazer para o caso de haver imprevistos, como aquele, era sempre

164
bom estar prevenido. Enxugaram as pernas e os pés, voltaram a
calçar-se e estavam prontos para se fazerem novamente à estrada,
de regresso a casa.
— Posso pedir-te uma coisa quase impossível?
— Ui! Não sei se posso aceitar, acabaste de dizer-se que era
quase impossível!
— Oh! Pára de brincar! Estou a falar muito a sério…
— E eu também! — Disse ele rindo-se.
— Pronto, mesmo que seja uma coisa quase impossível, eu vou
pedi-la na mesma: posso ir sem capacete? É só desta vez, vá lá…
— Esse teu pedido é um bocadinho arrojado e perigoso. Já para
não falar dos sarilhos em que nos podemos meter.
— Vá lá, por favor… Eu prometo que não te peço mais
semelhante, é só hoje e se pensarmos bem não vai acontecer nada
de mal. Porque haveria de acontecer?
— Para bem de ambos, é bom que não aconteça mesmo nada
de mal. Mas pronto, está bem; é uma vez sem exemplo e que os
teus pais nem sequer sonhem com isto.
— Está bem! Fica um segredo, só nosso!
— Combinado!

Ana soltou os seus longos cabelos louros e encaracolados que


voaram ao sabor do vento, durante o curto percurso. Já em casa,
tomaram um duche bem quente e lancharam de seguida; pouco
tempo depois Ana começou a preparar-se para regressar ao estudo,
ainda havia muita euforia, adrenalina e excitação no ar; por isso a
concentração ia ser bastante complicada. Miguel ficou na sala,
deitado no sofá a ver um filme, sentia-se completamente exausto.
— Bem, vou voltar ao mundo de Pitágoras e companhia
limitada.
— Queres uma ajuda, Anocas? — Perguntou-lhe ele com o seu
ar de gozão.
— Acho que é melhor não… A tua ajuda, neste caso, só se fosse
para eu me distrair mais depressa.
— Pois! Talvez… — Disse-lhe ele rindo-se.

165
— Tu já sabes como nós somos: não somos muito amigos do
silêncio e onde estivermos juntos, está também uma boa dose de
gargalhadas e desassossego.
— Sem dúvida! Sendo assim, bom estudo! Inté!
— Até já!
Ainda não tinha passado meia hora, quando Ana bateu à porta
da sala…
— Posso entrar?
— Mas é claro que podes! O que é que estás a fazer, já aqui?
Isto assim não vale, estás a fazer batota; não devias estar a estudar?
— Questionou-a ele, olhando para o relógio.
— Sim, devia! Mas lembrei-me de uma coisa: só por acaso,
hoje não ias sair com a Isabel e com o teu pessoal?
— Sim, sim, ia! Mas desmarquei tudo para ficar a fazer-te
companhia; para além disso, o nosso programinha do início da
tarde foi fantástico e bastante cansativo também.
— Ana mostrou-se bastante envergonhada — A sério? És
mesmo querido. Mas não devias ter feito isso, não é justo para a
Isabel e para os teus amigos.
— É na boa! Não te preocupes… Eles não se importam; para
além disso, eu acho que não trocaria a nossa tarde por nada deste
mundo…
— Não há mesmo ninguém como tu! Fazes mesmo parte dos
amigos raros da nossa vida. Bem vou voltar ao estudo e tu que vais
fazer? — Perguntou-lhe ela depois de lhe dar um ternurento beijo
na testa.
— Vou ler um pouco! Não queres estudar aqui na sala e fazer-
me companhia?
— Ui! Não sei se isso será boa ideia…
— Oh, vá lá! Tens que retribuir o que eu fiz por ti!
— Que espertinho que tu me saíste! Eu, até fico aqui; mas só se
me deixares estudar, sossegada e concentrada.
— Está bem! Juro e prometo que não te interrompo, que não
digo piadas e que não te faço rir; neste espaço vai ouvir-se apenas
silêncio absoluto.

166
— Exagerado… Eu quero que estejas à vontade! Tu podes
interromper-me; mas só de vez em quando.
— Então, isso quer dizer que vais ficar aqui, na sala, a estudar e
a fazer-me companhia?
— Acho que sim! Vou só buscar o meu caderno, a calculadora
e o resto do material e já volto.
— Boa! — Disse-lhe ele sorrindo de felicidade.

Ana correu pelas escadas acima e num instante estava de volta


à sala junto de Miguel. Já o fim de tarde caía quando Pedro, Joana
e João chegaram do descontraído passeio, encontraram a casa
mergulhada numa espécie de sono profundo, até estranharam.
Quando Pedro atravessou o corredor até à cozinha, passou pela sala
e viu o improvável: Miguel, deitado no sofá, a ler um livro de ficção
científica, o seu tipo de livros favorito, e de auscultadores nos
ouvidos a ouvir música; já Ana estava sentada à mesa da sala de
jantar concentrada no estudo. Pedro ficou a espreitar…
— Olá, meninos! Mas que bem, tão concentrados que estão…
Ana sobressaltou-se, assustando-se com a inesperada chegada
dos pais e do irmão.
— Bolas! Que susto, pai! Já chegaram?
— Sim, já!
— E o resto do passeio como correu? — Questionou Miguel
— Foi ótimo. E vocês, que tal foi a tarde?
— Foi… refrescante! — Apressou-se ela a responder.
— Humm… Bem, não vos interrompo mais! Até já!
— Até já!
— Bem, foi por um triz, por pouco não estávamos metidos em
problemas!
— Que bem que nos safei aos dois! Foi mesmo o que me veio
à cabeça naquele momento.
— És a maior maluca, que conheço!
— E tu és o maior!
— Não sou nada… Quer dizer: afinal de contas até sou; mas só
em altura! — Disse-lhe ele a brincar.
— Oh! Lá estás tu! És sempre o mesmo…

167
— E tu continuas a mesma tolinha de sempre!

Uma hora mais tarde, bem perto da hora de jantar, depois de


Ana estar a estudar sem interrupções, Miguel decidiu quebrar a
monotonia que se fazia sentir:
— Acabei de ter uma grande ideia…
— A sério?! Conta-me tudo, já!
— Já está na hora de fazeres um curto intervalo no estudo para
aliviares um pouco a cabeça, descansares e descontraíres; por isso:
o que é que achas se fôssemos nós a fazer o jantar?
— Excelente ideia! Gosto disso! Anda… Vamos para a
cozinha!!! — Disse-lhe ela pegando na mão dele e arrastando-o até
à cozinha.

Decidiram preparar um jantar especial, surpreendendo o resto


da família e durante a refeição, falou-se de muita coisa; mas o tema
principal foi, sem dúvida, o passeio de mota que Miguel e Ana
haviam dado. Ana partilhou todos os pormenores sem hesitar; a
começar pelo casaco de cabedal de Miguel, que ela tinha adorado
vestir e claro não podiam também faltar os pormenores do passeio
e das brincadeiras na Praia da Princesa. Miguel fico receio que os
pais de Ana lhe dessem uma reprimenda; mas Joana e Pedro
deixaram-se embalar tanto pelo entusiasmo de Ana que nem se
preocuparam com o facto de ela ter perdido uma tarde de estudo;
por vezes também era preciso saber quebrar um pouco a rotina e
arranjar tempo para um pouco de descontracção. Esquecer tudo o
resto por um bocado e aproveitar a vida; eles sabiam que Ana era
muito responsável e que iria compensar muito bem a tarde perdida.
As conversas continuaram e dominaram todo o ambiente,
nomeadamente: o facto de vir a realizar-se uma recolha de
brinquedos no serviço de Pediatria aonde Joana trabalhava. Ana e
Miguel propuseram-se, desde logo, a ajudar e prometeram também
eles fazerem uma pequena recolha de brinquedos que usavam na
sua infância, que tivessem guardados e que já não quisessem para
doarem aos seus doentinhos preferidos. Eles iriam adorar. O resto
da noite foi passada em família a jogarem dominó.

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No dia seguinte, Domingo, o tempo melhorou
consideravelmente: o sol de Inverno já espreitou qualquer coisa e
o calor fez-se sentir um pouco. Ana continuou com o seu estudo;
enquanto Miguel passou a manhã a namorar com Isabel e a
divertir-se com os amigos: foram passear de mota até às Azenhas
do Mar, aproveitaram para fazer alguns registos fotográficos,
Miguel passeou com Isabel à beira-mar e depois almoçaram perto
da Praia do Guincho. Ao início da tarde, foram até ao centro
comercial para uma sessão de cinema, seguida de algumas partidas
de bowling.
Em casa dos Salgado, depois de uma manhã de pijama a pôr as
séries preferidas em dia, Ana decidiu almoçar algo ligeiro; ela
adorava domingos assim, a preguiçar sem ter nada em especial
para fazer. À tarde, Ana também decidiu fazer um programa com
as amigas; mas optaram por ficar por casa: a falar sobre assuntos
relacionados com a escola e sobre inúmeros assuntos de raparigas
como: namorados, moda e beleza, música, cinema entre outros.
Mais tarde, Raquel sugeriu fazerem umas panquecas saudáveis e
aproveitassem o resto da tarde para estudar.
Ao fim do dia, Miguel cumpriu com o prometido, e levou-a
novamente a passear na Maria Vinagre até à Praia da Princesa,
levaram toalhas de praia e sentaram-se um pouco na areia, a ver o
pôr-do-sol e a beberem chocolate quente.
— Que tal correu o teu programa de Domingo com a Isabel e o
teu pessoal?
— Correu bem, como sempre! E o teu?
— Também! Deu para descontrair bastante!
— Miguel sorriu — Estás muito pensativa… Passa-se alguma
coisa? — Perguntou-lhe ele pensativo
— Não! Nada de especial… Há já algum tempo que queria
perguntar-te uma coisa. Posso fazê-lo?
— Claro! Estás à vontade!
— Por vezes não te dão saudades da tua família?

169
— Ele ficou algo surpreendido com a questão — Sim… Na
verdade, eu penso nos meus pais todos os dias e por vezes sinto
saudades deles e da casa na aldeia; mas porque perguntas?
— Por nada em especial, lembrei-me disso há uns dias!
— Apesar das saudades que por vezes me consomem, da minha
verdadeira família e das minhas raízes; agora vocês também
passaram a ser a minha família. Foi graças a vocês que a minha
vida mudou e foi também graças a vocês que eu tive oportunidade
de concretizar alguns dos meus maiores sonhos, como poder ir para
a escola: que era algo que eu queria muito. Sabes bem que nunca
vou saber como vos agradecer por tudo, que vos devo muito e que
irei ter para convosco uma dívida de gratidão eterna por tudo o que
fizeram e continuam a fazer por mim, principalmente, por me
terem acolhido tão bem em vossa casa, sem reservas e sem
quaisquer restrições, como se de um filho se tratasse. Por terem
cuidado sempre tão bem de mim e me terem dado aquilo que eu
mais precisei, naquela altura; aliás, vocês deram-me muito mais do
que aquilo que os meus pais me podiam dar, por isso, só posso
mesmo sentir-me agradecido. Para além disso, sou extremamente
feliz convosco e sei e sinto que vocês se preocupam e gostam
verdadeiramente de mim e que posso contar sempre convosco para
tudo o que precisar, porque já faço parte da vossa família.
Vou ser-te sincero: neste momento, para mim, vocês é como se
já fossem a minha verdadeira família; por isso, é quase impossível
eu me conseguir sentir triste ou, desamparado, porque vos tenho a
vocês e vocês estão e estarão sempre ao meu lado. No entanto, não
deixo de por vezes sentir saudades das minhas verdadeiras origens
e da minha verdadeira família, acho que é um processo normal.
— Ana sorriu comprometida — Espero que continues a gostar
de estar cá e que permaneças connosco por muito tempo.
— Eu ainda vou estar cá muito tempo para te chatear e tu ainda
vais ter muito, mas mesmo muito que me aturar; por isso não te
preocupes. Na verdade, não tenho motivos para não estar a gostar
de estar aqui e para me querer ir embora.
— Não podias deixar-me mais feliz… Sabes o que é que isto
me faz lembrar?

170
— Não! O quê?
— Os fins de tarde, na quinta, quando éramos pequenos e
vínhamos da praia. As noites quentes e longas e os serões de
histórias, de anedotas e de piadas secas, que tu nos proporcionavas.
Era fantástico.
— É verdade! As coisas que tu ainda te lembras. Por vezes, eu
também sinto uma certa nostalgia e saudades desses tempos,
quando os recordo.
— Era tão bom quando nós éramos crianças: a idade da
inocência, da ingenuidade e genuinidade é tão bonita: podermos
viver numa espécie de mundo à parte onde tudo parece fácil, onde
não existem dificuldades, responsabilidades, obstáculos e
preocupações.
— Sem dúvida! É a melhor fase da vida; a vida de adulto é
demasiado complicada e recheada de stresses, de
responsabilidades e de ansiedade, tornando-se monótona e
agridoce. Parece que à medida que crescemos vamos
desaprendendo a aproveitar o melhor da vida em toda a sua
plenitude, deixamos de dar valor às pequenas coisas, aos
sentimentos, às palavras, às emoções e até às fortes ligações que
estabelecemos com os outros.
— Podes crer! Na infância é tudo vivido com tanta emoção e
intensidade…
— Literalmente! Outros tempos…
— E não há nada como a vida no campo: sem preocupações,
sem stress, sem horas, sem a agitação da cidade. Adoro sentir
aquela paz tão própria, aquele sossego desassossegado e o ar puro.
— Concordo contigo! Na cidade, muitas vezes andamos
sempre a correr e tão ocupados com as nossas vidas, com os nossos
problemas e com tudo o que temos para fazer, para alcançar e
concretizar que até nos esquecemos que a vida acaba por ser bem
mais do que: só isso.
— Quando vamos à quinta, é quando me apercebo
profundamente disso, porque lá damos valor a outras coisas: bem
mais pequenas, desfrutamos dos pequenos momentos, dos
pequenos prazeres da vida como: os cheiros, os aromas, o contacto

171
com a natureza e os animais, interagimos mais com as pessoas.
Andamos mais bem-dispostos, arriscamos mais, aceitamos novos
desafios com mais facilidade. É completamente diferente; na
cidade isso não acontece tanto, é uma vida mais atarefada,
exaustiva e acelerada.
— É exactamente isso! Sabes, é bom saber que partilhas
comigo a paixão pelos pequenos detalhes da vida.
— Se pensares bem, na realidade, também tenho o campo
entranhado na alma e na pele. Desde muito nova que passei férias
na quinta dos meus avós, no meio de todas as rotinas típicas do
meio rural; por isso compreendo-te perfeitamente, também adoro
todo aquele ambiente e tudo o que tem a ver com o campo.
— Parece que somos cada vez mais parecidos, nas entrelinhas
das nossas diferenças.
— Sem qualquer dúvida! Acho que é isso que faz da nossa
amizade algo tão único e especial.
— Podes crer! Nem imaginas como aprecio imenso estes
pequenos momentos só contigo.
— Também adoro estes pequenos momentos de partilha, só
nossos. Sabem tão bem.
— Sei que és das poucas pessoas que conheço que consegue
compreender-me realmente bem.
— Muitas vezes não são necessárias grandes palavras, para
duas pessoas conseguirem compreender-se bem.

172
À
medida que o tempo foi passando e Ana e Miguel foram
crescendo, também se foram conhecendo mais e melhor,
a ponto de gostarem imenso dos seus momentos a dois.
A semana que se seguiu foi exaustiva e stressante; as
aulas recomeçaram e com elas o regresso às mesmas
rotinas e ao estudo. Miguel já não podia preguiçar, já tinha matérias
para rever e organizar e trabalhos para fazer; já Ana continuou a
estudar Matemática. Terça foi o dia da frequência: saiu cedo de
casa para ter ainda tempo de rever algumas coisas e quando Miguel
acordou ela já tinha saído, sentiu-se mesmo desconcertado por não
conseguir acordar a tempo de lhe desejar Boa Sorte; mas ainda não
era tarde…
Na escola, Ana estava no pátio com a amiga de sempre:
Mafalda. Estavam sentadas num banco de pedra, a rever as últimas
coisas; entretanto tocou o telemóvel de Ana, acusando a chegada
de uma mensagem escrita.
— Quem será, agora? — Questionou-se ela para si própria
olhando para o ecrã do telefone e lendo de seguida a mensagem
escrita. — Oh, tão amoroso.
— Ui, ui, miúda! Boyfriend? — Brincou Mafalda.
— Que engraçadinha! Sabes bem que não! Por acaso é o
Miguel…
— O que quer ele? Será que vocês não conseguem passar um
segundo, um sem o outro? Ainda há pouco saíste de casa… Estou
a ficar muito curiosa. — Disse ela estupefacta.
— Oh! É só para desejar-me Boa sorte para a frequência. —
Disse-lhe ela sorrindo corada de vergonha.
— Confessa lá… Ele é muito especial para ti, não é?
— Sabes perfeitamente que sim…
— É que os teus olhos têm um brilho incrível, quando falas
dele; quase parece que faíscam.

173
— Ele, para mim, é como um irmão mais velho. Vivemos
imensas coisas, em conjunto, partilhamos tudo ou quase tudo um
com o outro, desde pequenos, e apoiamo-nos imenso. Gosto
mesmo muito dele.
— Sim, sim, Ana! Conta-me histórias…
— Mafalda cala-te! Não faças filmes onde eles não existem! O
Miguel tem namorada, lembras-te? Namora com a Isabel há quase
um ano.
— Isso não quer dizer nada!
— Deixa-te de coisas!

Ana sorriu timidamente; de facto ao pôr-se a pensar notou que


desde que Miguel tinha passado a fazer parte da família que muita
coisa tinha mudado na sua vida. Ele podia ser rebelde e gostar de
folia, de motas e de saídas com os amigos; mas lá no fundo ele era
um rapaz diferente e era por isso que ela o admirava imenso: era o
amigo perfeito, ele olhava para ela e sabia logo o que se passava
com ela: se era algo bom ou mau, ou o que ela estava a pensar. Ele
conhecia as expressões dela, os gestos dela, a forma de ela olhar e
até mesmo o seu jeito de pensar. Ele tinha uma sensibilidade dentro
dele que não passava despercebida a ninguém; para além disso era
preocupado com tudo e com todos, atencioso e cuidadoso, nem os
mais ínfimos pormenores lhe escapavam. Por detrás do ar rebelde
e brincalhão, por vezes até um pouco desassossegado escondia-se
um rapaz muito cavalheiro e com um grande coração: ela dizia
muitas vezes que ele tinha um coração de ouro.
Ana dava-se muito bem com Miguel, era das poucas pessoas
com quem nunca discutia. Era mesmo impossível discutir com ele,
no segundo a seguir já estavam a pedir desculpa um ao outro, já
tinham esquecido todos os mal-entendidos, já estava tudo bem
outra vez e já andavam os dois a rirem-se à gargalhada. Miguel era
daquelas pessoas para quem estava sempre tudo bem; acontecesse
o que acontecesse, nunca se chateava com nada. Era tudo sempre
em boa onda e até as amigas de Ana salientavam isso e chegavam
mesmo a roer-se de inveja. Para Ana, havia poucas pessoas tão
pacientes como ele.

174
Com Miguel a seu lado, Ana tornou-se uma jovem muito mais
forte, atenta e espontânea; aprendeu outros valores e verdadeiras
lições de vida: Miguel explicou-lhe a importância de sabermos dar
mais valor às coisas pequenas e simples da vida e mostrou-lhe
ainda que a vida deve aproveitar-se ao máximo e que devemos
fazer por não levá-la demasiado a sério, devemos saber encará-la
de uma forma descontraída: desfrutando e tirando partido de cada
momento. Ana aprendeu ainda a dar sem querer receber nada em
troca, a ajudar mais os outros, a rir das coisas mais banais. A dar o
melhor de si e a entregar-se de corpo e alma a tudo o que fazia
porque assim as recompensas tinham um sabor muito mais intenso
e especial. Tornou-se ainda mais lutadora e aprendeu a não desistir
de nada e a seguir sempre as suas metas e os seus sonhos, por mais
difíceis e complicados que fossem, porque no momento mais certo
e oportuno sabia que tinha sempre um grande amigo ao seu lado,
que lhe dizia: Não desistas. Vai em frente. Eu sei, que tu és capaz,
tu vais conseguir. Estou a torcer por ti.
Foi, principalmente, com Miguel que Ana descobriu o
verdadeiro sentido de ser feliz. Foram estes os valores básicos e
humildes que ele lhe passara sem que ela se apercebesse, resultado
das incontáveis conversas que haviam tido, dos momentos
especiais que haviam partilhado, das histórias que haviam contado,
das memórias e recordações que faziam parte da vida de ambos e
das muitas brincadeiras que não dispensavam juntos. Ele queria
retribuir tudo o que ela e a sua família haviam feito por ele, desde
a infância até então, e esta era uma óptima forma de fazê-lo,
partilhando as humildes aprendizagens que tinha feito ao longo da
sua vida e estando incondicionalmente ao seu lado.
Aquela panóplia de pensamentos ligados a Miguel trouxe-lhe,
de imediato, à memória, uma melodia que ela adorava e que
descrevia, na perfeição, o seu estado de espírito: Si No Te Hubiera
Conocido, um dueto entre a norte-americana Christina Aguilera e
o espanhol Luís Fonsi.

Num ápice, quando elas menos esperavam, a campainha tocou


com o seu toque estridente. Ana sentia-se bastante nervosa e

175
ansiosa: o coração batia desassossegado e havia aquelas borboletas
esvoaçantes dentro da barriga. O peso da responsabilidade
assolava-a, ela sabia que tinha estudado muito e que sabia bem toda
a matéria, assim como, os vários tipos de exercícios que podiam
sair; no entanto, não deixava de ter medo e receio que no último
momento se esquecesse de tudo e a frequência corresse mal. Mas,
como Miguel já tinha previsto, a frequência acabou por correr-lhe
muito bem, tinha ido de encontro aos exercícios e fichas de trabalho
que ela havia feito nas aulas e no fim de semana; por isso tinha sido
até bastante fácil. Contava tirar nota máxima, agora era só esperar
para ver.
Miguel tinha tido a manhã sem aulas; no entanto fez por
aproveitar o tempo livre disponível para pôr a matéria em dia e
fazer uns desenhos para a cadeira de artes. Há uns dias que andava
a pensar no seu futuro, no próximo ano letivo ia para o derradeiro
ano, o ano de todas as decisões e depois entrada na faculdade. E a
sua dúvida era: que área escolher. Ele tinha uma grande paixão pelo
desenho e pela mecânica: sendo ele um apaixonado por motas e
pela adrenalina da velocidade e da vida muito dificilmente não iria
gostar de trabalhar numa área que tivesse a ver com tudo o que
estivesse relacionado com automóveis. Mas ele tinha um grande
dilema: entre o desenho e a mecânica não sabia muito bem o que
escolher, gostava de ambas as áreas; sentia-se mesmo confuso e a
tudo isto juntava-se ainda outro problema complexo que se
resumia em apenas três letras: Ana.
Infelizmente, por muito unidos que eles fossem tinham sonhos
diferentes e isso iria inequivocamente obrigá-los a separarem-se, a
cada um seguir o seu caminho e era precisamente disso que ele
tinha muito medo, da separação. Não sabia se devia seguir o seu
sonho, tinha muito medo que isso pusesse em causa a amizade com
Ana, eram demasiado unidos para se separarem e ficarem longe
um do outro, praticamente não viviam um sem o outro. Como iria
ser estarem separados grande parte do tempo? E se as novas
amizades que Ana fizesse na faculdade, fizessem com que ela se
esquecesse dele? Não conseguia imaginar…

176
No ano seguinte Ana já iria para a faculdade, aquele seria o
último ano que estariam juntos na mesma casa e na mesma escola,
Miguel sentiu um aperto no peito, sentia-se desassossegado, iria
perder a melhor amiga e aquela que ele considerava, como sua
companheira e cúmplice. De imediato lembrou-se que a melhor
forma de afastar todos aqueles pensamentos precipitados da cabeça
era convidar Ana para um almoço, a dois, e assim fez, era a maneira
perfeita para descontrair, relaxar e pensar noutras coisas bem mais
positivas.

A escola frequentada por Ana e Miguel, era um edifício


construído em formato de L, com três andares cheios de salas de
aulas. No rés-do-chão ficava a cantina, enquanto o bar dos alunos
e a sala dos professores ficavam no segundo andar do edifício. O
bar dos alunos ficava próximo de um amplo terraço da escola, os
alunos gostavam imenso de tomar o pequeno-almoço, almoçar ou
apenas aproveitar os minutos de intervalo sentados ao sol na
esplanada: que só abria em plenos meses de calor. Mas estava
sempre cheia fizesse chuva ou sol, naquele espaço cruzavam-se
alunos de todos os anos e falava-se de tudo: música, noticias,
futebol, trabalhos, exames nacionais, aulas, sonhos, faculdade, sem
faltarem umas piadas pelo meio.
As funcionárias do bar não tinham mãos a medir para servir
tantos estudantes quase em simultâneo, saíam cafés acabados de
fazer, leites com chocolate, croissants: simples ou recheados, bolos
diversos, sumos, torradas e tostas, mas elas não se importavam, até
gostavam do que faziam; pois isso permitia-lhes fazerem conversa
com os alunos, partilharem histórias, darem conselhos e rirem das
piadas deles. Muitas vezes até chegavam a participar nas muitas
conversas. Havia ainda docentes e alunos que preferiam o sossego
do interior do bar onde passava sempre muito boa música, o rádio
estava sempre ligado e animava o ambiente.
Após uma longa aula de Biologia, Ana encaminhava-se
apressadamente para as escadas de acesso à cantina, quando viu
Miguel sentado num banco, no átrio, à sua espera.
— Olá Miguelinho! A que se deve tão ilustre visita?

177
— Vim convidar-te para almoçares comigo, aceitas?
Entretanto aproximaram-se deles, a Sandra e a Susana: duas das
melhores amigas de Ana, precisamente para lhe fazerem o mesmo
convite.
— Vens almoçar connosco, Ana? — Perguntaram.
— Oh! Desculpa, Anocas… Não sabia que já tinhas coisas
combinadas; vai lá almoçar com as tuas amigas, não as faças
esperar e não te prendas por mim. Almoçamos para a próxima…
— Disse-lhe ele algo triste e desiludido
— Mas poderia eu, algum dia, recusar um convite para almoçar
vindo do meu bestfriend? É que nem pensar…
— Mas não faz muito sentido que deixes as tuas amigas
penduradas por minha causa, almoçamos noutro dia; afinal de
contas, vamos ter mais oportunidades para almoçarmos juntos. Vai
à vontade… Por mim não há problema nenhum,
— Mas eu e elas não tínhamos combinado almoçar juntas, hoje;
por isso, podemos perfeitamente almoçar os dois. Sabes bem que
eu adoro os nossos almoços a dois. Não se importam pois não,
meninas? Desculpem, almoçamos para a próxima… — Disse-lhes
ela.
— Oh! Assim fico a sentir-me um bocado mal por estares a
alterar a tua vida por minha causa.
— Mas eu não estou a alterar rigorosamente nada!
— Tens a certeza?
— Absoluta!
— Bem, sendo assim ficou um bocadinho mais descansado!
— E se fôssemos almoçar? Já começa a fazer-se tarde!

Ele sorriu e encaminharam-se para a saída do átrio da escola.


Sandra e Susana ficaram a vê-los irem-se embora frustradas e
cheias de raiva por estarem sempre a ser trocadas por ele. Miguel
mostrou-se preocupado…
— Parece-me que as tuas amigas não ficaram nada contentes,
com o facto de as teres trocado para vires almoçar comigo!
— Oh! Não te preocupes com isso, o mau humor passa-lhes
depressa.

178
— Vê lá… Eu não quero que tu arranjes problemas por minha
causa, ainda estás muito a tempo de voltares atrás. Se quiseres ir
almoçar com elas, vai; eu não me importo, e não fico chateado
contigo. Estou a falar muito a sério!
— Achas?! Nem penses! Era o que mais me faltava agora, eu
não poder fazer planos contigo, estar e partilhar coisas contigo e ter
a amizade e cumplicidade que tenho contigo; assim como os
nossos momentos e de sermos unidos como sempre fomos até
aqui, porque as minhas amigas não gostam, e fazem birra. É coisa
que não me preocupa minimamente. Se não estão bem com a tua
presença, têm bom remédio: que se mudem.
— Tens mesmo a certeza que não queres ir almoçar com elas?
Acredita que percebo perfeitamente se preferires ir…
— Tenho a certeza absoluta! Vamos almoçar e esquece as
minhas amigas.
— Está bem! — Disse ele sorrindo mais aliviado.

Almoçaram numa pizzaria perto da escola, onde ambos


gostavam imenso de almoçar com frequência; no entanto, Ana
continuava a achar Miguel algo estranho. Parecia-lhe preocupado
com alguma coisa e muito pensativo.
— O que é que se passa contigo hoje? Estás estranho, parece
que não estás cá. Passou-se alguma coisa?
— Não! Está tudo nos conformes!
— Tens a certeza? É que estás tão calado…
— Estou só cansado… Desde de manhã que a Isabel não pára
de me ligar para o telefone; mal acordei já tinha: uma chamada não
atendida, duas mensagens escritas e até uma chamada de voz. Ela
estava furiosa, por eu não atender o telefone… Não descansa, nem
me deixa descansar a mim.
— Credo! Que exagero! Andas no controle?
— Não gozes, Ana! Ela chega a ligar-me quase de quinze em
quinze minutos, apenas para saber o que estou a fazer ou com quem
estou, parece querer ser sempre o centro das atenções e as
chamadas não demoram mais de cinco minutos. Nunca se
preocupou ou importou em saber se estava tudo bem comigo ou se

179
eu precisava de alguma coisa, já que sou namorado dela. Está
sempre muito mais preocupada com a minha vida, com as pessoas
que me rodeiam e em controlar-me, do que propriamente comigo.
Estou a começar a ficar saturado desta situação, ela não era nada
assim: no início da nossa relação, quando a conheci; mas, a partir
do momento que soube que existias tornou-se uma mulher
possessiva, obcecada, controladora e bastante ciumenta. Mas se ela
pensa que vai ser desta forma que, vai conseguir afastar-me
completamente de ti e impedir-me de estar contigo e de fazer
planos contigo, está muito enganada. Eu não vou ceder assim tão
facilmente, bem pode esperar sentada.
Ana mostrou-se envergonhada e embevecida ao ouvir o que ele
acabava de dizer.
— Já tentaram conversar sobre essas mudanças? Já a
confrontaste com o que pensas e sentes?
— Ui! Fi-lo muitas vezes, mas parece que ela nunca me quer
ouvir. Até que me cansei de insistir sempre no mesmo, mal lhe falo
em ti começa logo aos berros comigo: a dizer que passo o tempo
todo a falar de ti, que marco mais planos contigo que com ela e que
qualquer dia ainda a vou trocar por ti.
Perante aquelas afirmações, acabaram os dois a rirem-se à
gargalhada
— Passou-se! Mas agora falando mesmo a sério, tens que
compreender que não deve ser nada fácil, para ela, ter que aceitar e
que lidar com a nossa cumplicidade e com aquilo que nos une. E
isso deve provocar-lhe alguns receio e medos e ansiedade
incontrolável; mas por outro lado a atitude dela pode também
querer dizer que gosta muito de ti e que tem apenas medo de
perder-te.
— Percebo! Mas não é necessário fazer um drama e estar
constantemente a controlar-me, eu já sou crescido e como tal sei
muito bem aquilo que faço; eu também tenho direito a ter amigas,
assim como ela também tem direito a ter amigos. Quando ela sai
com algum amigo, eu não me faço nenhum escândalo nem passo
o tempo todo a ligar-lhe a perguntar onde está e com quem está,
como ela faz comigo. Nunca fui de andar a controlar a vida das

180
outras pessoas. Ela chega ao cúmulo de deixar de me falar durante
vários dias; já não tenho paciência, um dia destes farto-me desta
relação e termino tudo.
— Calma! Também não é preciso, tu seres tão radical. Se gostas
dela, e eu acho, muito sinceramente, que tu gostas mesmo dela, tu
deves pensar muito bem naquilo que pretendes fazer, não te deves
precipitar, nem deves agir por impulso e a quente para não te
magoares ainda mais e não te arrependeres mais tarde.
— Eu sei! E tens toda a razão, eu gosto realmente dela: é uma
mulher linda e bastante inteligente; para além disso, temos muitas
coisas em comum e ela até me fazia sentir bem. No entanto se as
coisas continuarem assim, não estou disposto a continuar a
alimentar esta relação, não faz sentido, prefiro terminar tudo;
porque para mim isto já não é um amor saudável, é um amor
doentio e um dia destes, vamos acabar por nos magoar a sério, sem
ser necessário.
— Nisso tens razão!
— Oh Meu Deus! — Exclamou ele, de repente.
— O que foi?
— Peço-te imensa desculpa!
— Porquê? Não estou a entender…
— Com o decorrer da conversa, nem te cheguei a perguntar
como te correu a frequência de Matemática. Deixei-me levar pelos
meus desabafos e desvarios e problemas com a Isabel e acabei por
me esquecer de ti. Que vergonha, tens um bestfriend mesmo
desleixado… Não pode girar tudo à minha volta.
— Não faz mal! Não te preocupes, desabafar faz bem e já sabes
que eu estou cá sempre para te ouvir. Podes contar sempre comigo.
— Eu sei! Obrigado por tudo!
— De nada! A frequência correu muitíssimo bem, conto tirar
vinte valores!
— Claro! Nem esperava outra coisa de ti. — Disse-lhe ele de ar
rebelde.
— Relativamente ao assunto da Isabel; vais ver que tudo se há-
de resolver.
— Espero bem que sim!

181
A conversa prolongou-se e eles acabaram por se esquecer do
almoço que já estava frio; o tempo voou e quando se aperceberam
só faltavam quinze minutos para o regresso às aulas. Comeram à
pressa, Miguel fez questão de pagar o almoço, e regressaram de
seguida à escola. A tarde foi preenchida com muitas aulas; Ana e
Miguel viam-se de raspão nos intervalos das aulas, mas nem
tinham tempo de trocar umas simples palavras, só voltaram a
encontrar-se ao final do dia no regresso a casa.
— Olha o meu motard favorito! Mal te vi a tarde toda… —
Disse-lhe ela disfarçadamente triste.
— É verdade! Isto de nós termos aulas separados não tem muita
graça; não gosto nada de estar tanto tempo longe da minha
bestfriend preferida. — Brincou ele.
— Ui, ui! Olha a Isabel!
E de repente o telemóvel de Miguel toca…
— Eu não posso acreditar!
— O que foi? Não me digas que é ela…
— Podes crer que é!
— A sério?! Bolas! Agora senti um valente arrepio, isso mais
pareceu coisa do outro mundo. — Disse-lhe ela algo assustada,
olhando à sua volta com medo de algo que nem sabia bem o quê.
— Mais parece que nos ouviu!
— Podes crer! Não é por nada, mas foi deveras assustador…
Será que ela não andará por aqui?
— Não! Duvido muito! Ela não costuma ter aulas, hoje à tarde!
— Então as paredes têm ouvidos!
Miguel começou também a ficar assustado…
— Será que ela veio até cá para me espiar e para me controlar?
— Não sejas tonto! Que exagero! Já estás com macaquinhos na
cabeça… Não acredito que ela se desse a esse trabalho!
— Mas eu acredito; ela tinha coragem e enorme lata para fazer
isso! Infelizmente, a Isabel não é nem nunca foi muito de confiar.
Tinha potencial para ser uma grande mulher, se não fossem os seus
ciúmes loucos e doentios.

182
— Pois! Pelo que me contaste, com a Isabel nunca se sabe, tudo
é possível. Ela parece ser capaz de tudo.
— Nem queiras saber!
— Bem, levas a tua bestfriend até casa?
— Claro que sim! Com todo o gosto e prazer!
— O que achas de pararmos pelo caminho para lanchar? Desta
vez pago eu…
— Acho uma óptima ideia! Proposta aceite! — Disse-lhe ele
passando-lhe o capacete.

Seguiram a alta velocidade e pelo caminho, tal como haviam


combinado, fizeram uma curta paragem no café “A Brasileira”, em
plena baixa da cidade, para lancharem. Depois regressaram a casa;
enquanto Ana foi à cozinha, Miguel aproveitou e foi até ao quarto
descansar um pouco. De repente, o silêncio foi interrompido por
uma discussão vinda do quarto de Miguel, que se ouvia por toda a
casa; até Joana saiu esbaforida do escritório pensando que Ana e
Miguel estivessem a discutir, algo meramente improvável e que
nunca tinha acontecido. Ana apercebeu-se, de imediato, do que se
passava…
— O que se passa? Que gritaria é esta? — Perguntou Joana
preocupada.
— Arrufos de namorados...
— O Miguel está com problemas com a Isabel? — Perguntou
ela pensativa séria.
— Sim! Ele desabafou comigo, em plena hora de almoço e
contou-me que a Isabel anda um bocado exageradamente
controladora, possessiva e ciumenta. Liga-lhe várias vezes durante
o dia para saber onde ele está e com quem está e nem sequer se
preocupa com ele. Sempre que ele não lhe atende as chamadas ou
não lhe responde às mensagens escritas, ela deixa-lhe mensagens
de voz e mostra-se extremamente irritada. E quando ele lhe fala de
mim, as coisas pioram substancialmente; já que ela começa a
discutir e aos berros com ele, faz-lhe uma cena de ciúmes e chega
mesmo a deixar de lhe falar durante vários dias. Ela tem um bocado
de inveja de mim e da proximidade que eu e o Miguel temos; diz-

183
lhe constantemente que ele só fala de mim, que só faz planos
comigo e que qualquer dia ainda a troca por mim.
— Estou surpreendida! Não imaginava que a Isabel fosse
assim…
— Pois! Mas, infelizmente é. E não me parece que ela esteja
disposta a mudar a sua maneira de ser…
— Até me custa a acreditar, porque ela sempre demonstrou
gostar tanto do Miguel; para além disso, ela pareceu-me sempre
uma miúda madura, inteligente e ponderada.
— Não haja a mínima dúvida de que as aparências iludem. Nós
até nos rimos da situação; uma vez que é completamente
improvável que eu e o Miguel venhamos a ser, algum dia, mais do
que amigos. Ele é como um irmão mais velho, para mim, não
consigo imaginá-lo como meu namorado.
— Percebo! Mas nunca se sabe… Sabes que aquilo que
sentimos por uma pessoa pode mudar como do dia para a noite.
— Isso também é verdade!
— E é provavelmente disso que a Isabel deve ter medo e receio:
que a vossa proximidade e cumplicidade leve a um envolvimento
entre vocês. O comportamento inadequado e exagerado que ela
tem tido, poderá querer significar que ela gosta mesmo do Miguel
e que apenas está a sentir algum medo de o perder
— Foi precisamente isso que eu expliquei ao Miguel, durante a
nossa conversa; mas ele anda triste, desiludido e de rastos com esta
situação: porque lá no fundo ele gosta dela, no entanto, não está a
conseguir suportar a situação tal como está. Está a sair um pouco
do controle e ele está a ficar sem paciência, até me disse que a
relação que ele tinha com ela já não era saudável, mas doentia e
que estava a pensar seriamente em terminar tudo. Pelos vistos, a
avaliar pela discussão que acabamos de ouvir, acho que desta vez
perdeu a paciência definitivamente e pôs mesmo um ponto final no
namoro.
— Também me parece!
— Coitado do Miguel! Deve estar a passar um mau bocado…
Vou falar com ele!

184
— Fazes bem! Neste momento e mais do que nunca, ele vai
precisar muito de ti!

Ana não sabia o que esperar, custava-lhe muito ver Miguel a


sofrer, daquela forma tão rude e insensível por uma pessoa que ela
tinha sérias dúvidas se o amava na mesma medida que, ele a amava
a ela. O seu coração dizia-lhe que devia marcar um encontro com
Isabel e falar com ela, tentar chamá-la à razão e explicar-lhe o
quanto Miguel estava a sofrer por causa das suas atitudes infantis;
no entanto provavelmente, Isabel não iria querer ouvi-la, nem
seguir os conselhos dela. Sabia que Isabel não gostava muito dela
devido à cumplicidade que tinha com Miguel; ainda assim, naquele
momento, isso era aquilo que tinha menos importância. O mais
importante era conseguir que Miguel não sofresse tanto e se
sentisse melhor; mas por outro lado, algo lhe dizia que não devia
fazê-lo, não devia meter-se no meio de um assunto que, na verdade,
não lhe dizia respeito, porque só iria piorar ainda mais a situação e
não queria que Isabel acabasse por ter motivos para ter atitudes
piores com Miguel. Devia ser ele a tomar essa decisão quando se
sentisse preparado e quando achasse que era o momento certo.
Infelizmente, por muito que quisesse ajudar ou fazer alguma coisa,
sentia que não havia grande coisa que pudesse fazer para tentar
amenizar a situação; estava tudo nas mãos de Miguel.
Subiu as escadas, de acesso ao primeiro andar da casa, a medo
e com a alma num grande alvoroço, aquele prolongado silêncio que
se tinha abatido sobre o interior da casa e sobre o quarto de Miguel,
após a discussão dele com Isabel, incomodava-a e fazia-a
questionar-se sobre um sem fim de coisas: Como estaria Miguel?
O que estaria a fazer? Em que estaria a pensar?

Por um lado, ela sentia um ligeiro aperto no peito e um medo


profundo que Miguel pudesse fazer algum disparate perante a
instabilidade emocional em que se encontrava; mas por outro lado,
também não sabia se ele quereria a sua presença ou falar com ela
sobre o assunto. Normalmente, em situações, como aquela: de
desgosto amoroso, as pessoas preferem ficar sozinhas e não falar

185
muito sobre o assunto, porque precisam de espaço e de tempo para
pensar, aceita e assimilar toda a situação. No entanto, ela sabia de
antemão que ele, nunca, jamais, recusaria a sua presença, a forte
ligação que tinham não permitia que isso fosse possível; por isso,
ela decidiu arriscar, só assim poderia ajudá-lo e conseguiria obter
respostas para as suas inusitadas questões.

186
C
hegou à porta do quarto de Miguel e apesar da enorme
ansiedade e dos nervos que a consumiam por completo e
sentindo imensas borboletas a esvoaçarem no estômago;
bateu à porta. Do outro lado, uma voz meia abafada
respondeu:
— Entre!
— Posso entrar, Miguelinho?
— Claro que sim!
— Podemos conversar? — Perguntou Ana espreitando pela
porta.
— Podemos, Anocas! — Disse ele de sorriso tímido.
— Como estás? — Perguntou-lhe ela, sentando-se na cama ao
seu lado. — Eu estava lá em baixo, na sala, e ouvi a discussão.
— Miguel mostrou-se envergonhado — Seria de admirar se
alguém não a tivesse ouvido!
— Pois!
— Estou magoado, muito magoado mesmo, e desiludido. Eu
amava-a muito, entendes? Não queria nada que isto tivesse
acontecido, nem ter que ser obrigado a fazer isto: a acabar as coisas
assim desta forma tão abrupta e ríspida; mas ela não me deu outra
hipótese. Desta vez foi mesmo a gota de água, não dava para
aguentar mais.
— Percebo!
— Nem imaginas o quanto me está a custar, está a custar-me
imenso, só me apetece voltar atrás e correr imediatamente atrás
dela. Independentemente de tudo aquilo que ela me tenha feito, eu
continuo a amá-la, mas sei que tenho o orgulho ferido para

187
conseguir fazer isso e principalmente para conseguir perdoá-la, e
para além disso, acho que já é tarde de mais.
— Não sei o que hei-de dizer-te…
— Eu compreendo que nem sempre seja fácil encontrar as
palavras certas para estas situações, porque são sempre
complicadas; por isso não precisas de dizer nada. Só o facto de
estares aqui a ouvir-me e a ter uma enorme paciência para mim, já
tem um enorme valor e muita importância para mim.
— Oh! Já sabes que podes sempre contar comigo, estarei
sempre aqui para ti! — Disse-lhe ela apertando a mão dele com
força.
— Tivemos uma discussão tão feia… Ela disse-me coisas tão
duras de ouvir. Tudo porque nos viu à tarde a lanchar juntos. Qual
é o problema disso? Nós somos só dois bons amigos, não podemos
lanchar juntos? Para além disso, eu e tu já éramos amigos muito
antes de ela fazer parte da minha vida e eu nunca, jamais, abdicaria
da nossa amizade e cumplicidade, dos nossos planos a dois, dos
nossos momentos, das nossas partilhas e acima de tudo de estar
incondicionalmente ao teu lado por causa dela. Não iria permitir
que isso acontecesse, nem fazia sentido para mim. Há certas alturas
em que o amor e a amizade não se misturam; juro que não consigo
entender a atitude dela. Não é nada justo, eu não merecia ouvir
todas as coisas que ela me disse, logo eu que fazia tudo por ela.
— Acredito!
— Estou de rastos! Isto dói que se farta...
— Eu sei! Mas vais ver que a esqueces em três tempos; se calhar
isto até serviu para perceberes uma coisa importante: que ela não
te merecia e que afinal de contas não gostava assim tanto de ti como
dizia e demonstrava. Talvez tenha sido melhor assim.
— Talvez! Ai… Sinto-me tão estranho, sinto aquele vazio.
Parece que me falta qualquer coisa.
— É normal e natural. Quando perdemos as pessoas que
amamos, sentimo-nos sempre incompletos. — Disse-lhe ela
sentindo-se desolada ao vê-lo sofrer assim.
— A quem o dizes! Posso pedir-te uma coisa?
— Todas as que tu quiseres!

188
— Dás-me um abraço? — Pediu-lhe ele.
— Não era preciso pedires-me uma coisa dessas… Vem cá! —
Disse-lhe comovida.
E, de forma mecânica e instintiva, abraçaram-se: com força,
com intensidade, sem tempo e sem pensar.
— Era mesmo disto que estava a precisar para tentar recompor-
me: de um abraço teu.
— Vá lá, não fiques assim…
— Disse-lhe para esquecer que eu existia e para não voltar a
ligar-me.
— Não penses mais nisso. Irás de certeza encontrar alguém à
tua altura, que realmente te mereça e que mereça o teu amor e tudo
aquilo que tu tens para dar.
— Tens razão! — Disse ele sorrindo.
— Mas passa-se algo mais contigo! Estás estranhamente
pensativo e abatido; há mais alguma coisa que queiras contar-me?
— Deixa lá! Não te quero incomodar mais com os meus
problemas. Já chega…
— Queres parar de dizer disparates se faz favor? Tu não me
incomodas nada. Desembucha!
— Tens a certeza?
— Todas as certezas do mundo!
— Bem… Tenho andado a pensar na ida para a faculdade! —
Disse-lhe de ar sério.
— A sério? Já? — Questionou-se Ana algo pensativa.
— Sim…
— Porquê? Tu só vais para a faculdade para o ano, ainda não
precisas de te preocupar já com isso; eu é que já vou este ano.
— Eu sei! E é precisamente isso mesmo que anda a deixar-me
bastante desassossegado. Já pensaste que daqui a poucos meses
vamos ter que nos separar pela primeira vez? Não tenho parado de
pensar nisso…
— Sabes, por vezes eu também dou por mim a pensar no
mesmo. A partir de Setembro, só nos vamos ver aos fins de
semana.

189
— Está a custar-me imenso meter isso na cabeça, aceitar e
mentalizar-me da situação. Não estou muito habituado a viver sem
ti; uma vez que crescemos e fizemos sempre tudo juntos. De
repente, vou passar a ver-me um pouco sozinho cá em casa, sei que
tenho cá os teus pais e o teu irmão; mas nunca será a mesma coisa
que ter-te aqui todos os dias. Vou ter tantas saudades tuas…
— Penso que esse sentimento é muito mútuo. Também vou
sentir o mesmo; aliás, eu já ando a senti-lo há algum tempo. Tenho
andado com insónias frequentes e até tenho sonhado com o dia da
nossa separação, não sei bem porquê, já que ainda falta quase meio
ano.
— A sério? Não fazia ideia… Nunca me contaste nada!
— Eu achei que não te devia preocupar com estas coisas; mas
pelos vistos, parece que já andamos os dois preocupados com o
mesmo.
— Vou sentir tanto a tua falta… Acho que a partir de Setembro
os dias se vão transformar em semanas e as semanas em meses.
— Que exagero! Vamos estar a três horas um do outro, e se
apanharmos o comboio, depressa colmatamos as saudades todas.
— Mas vai ser a tua ausência diária que vai fazer toda a
diferença, há coisas que só gosto de falar e partilhar contigo.
Quando tiver um problema, quando precisar de desabafar e de falar
com alguém com quem é que vou fazê-lo? Podia fazê-lo com a tua
mãe: que é quase como se estivesse a falar contigo; mas nunca será
a mesma coisa. Não vou ter-te aqui, vão faltar as nossas partilhas,
as nossas sessões de cinema, os nossos momentos, as nossas saídas,
os nossos passeios na Maria Vinagre, as nossas doses de
gargalhadas, as nossas conversas até altas horas, os nossos abraços
e até mesmo a nossa cumplicidade. Vai faltar praticamente um
pouco tudo.
Ana mostrou-se triste, e sentiu o coração cada vez mais pequeno
e apertado.
— Ouve uma coisa: eu sei que a partir de Setembro, não vou
estar presente, fisicamente, uma boa parte dos dias; no entanto,
sempre que precisares de mim, de falar comigo, de desabafar, de
partilhar alguma coisa, podes ligar-me sempre ou mandar-me

190
mensagens escritas. Eu vou estar sempre disponível para ti, a
qualquer hora do dia e da noite.
— Eu sei disso! Afinal de contas, tu nunca me falhas, consegues
arranjar sempre tempo, espaço e paciência para mim no meio dos
teus compromissos. Mas não pode continuar a ser assim, eu não
vou poder estar sempre a incomodar-te e a interromper-te com as
minhas coisas. Se entrares em Medicina, vais ter que estudar muito
e que te focar no teu objectivo: seres uma grande médica-pediatra
como a tua mãe. Não posso estar constantemente a roubar a tua
atenção.
— És tão tonto e de vez em quando dizes cada disparate! E se
mudássemos de assunto e não falássemos mais nisto? Ainda é cedo
para estarmos já a sofrer assim por antecipação; até Setembro ainda
vamos viver muitas coisas, juntos.
— Espero mesmo que sim. Às vezes sinto uma angústia e um
aperto no peito tão grandes; o tempo passa tão rápido. Quando
dermos por isso, Setembro está aí e eu tenho medo de não
conseguir fazer tudo o que quero contigo, concretizar todos os
planos que tenho na cabeça…
— Eu sei, Miguelinho! Acredita que te compreendo; mas vais
ver que vai haver tempo para fazermos tudo. Sabes o que estava
agora, aqui, a pensar?
— Não! O quê? Conta-me!
— O que achas de darmos um passeio na Maria Vinagre, para
apanharmos ar e para espairecermos um pouco? Estás mesmo a
precisar de sair daqui, de pensar noutras coisas, de aliviar a cabeça
e de relaxar um pouco. Vai fazer-nos bem, principalmente a ti.
— Estás a propor fazermos isso agora?
— Sim! Agora! Já! Porquê?
— Porque não sei se me apetece muito fazer isso hoje.
Desculpa, princesa… — Disse-lhe ele mostrando-se tristemente
comprometido e pouco entusiasmado com a ideia.
— Oh! Não acredito! Tu a recusares um passeio de mota? Estás
mesmo mal... Isso nem parece teu.
— Eu sei! Mas hoje não estou mesmo com espírito para isso,
nem seria grande companhia para ti. Estou demasiado em baixo.

191
— Por isso mesmo… Um descontraído passeio vai arrebitar-te;
para além disso, tu és sempre muito boa companhia mesmo
quando estás em baixo. Vá lá, anda lá comigo, faz esse esforço e
esse sacrifício pela tua bestfriend.
— Tu não vais desistir, pois não?
— Enquanto não aceitares; acho que não! Sabes que eu sou
muito persistente, teimosa e persuasiva quando quero muito uma
coisa e não desisto facilmente até consegui-la. Nem que eu tenha
que arranjar mil e uma maneiras de te tirar daqui e de te convencer
a vires comigo, em último caso pego na Maria Vinagre e levo-te
de arrasto comigo.
Miguel deu uma valente gargalhada.
— Sempre gostava de ver isso! Andas muito atrevida…
— Tu não me subestimes, nem me gozes!
— Eu? Eu não!
— Mas queres experimentar?
— Pronto! Rendo-me! Convenceste-me… Vamos lá dar esse
passeio na Maria Vinagre.
— Boa! Eu sabia que te ia conseguir convencer e levar a
melhor. Vais ver que te vai fazer bem; vais ficar como novo e com
uma alma rejuvenescida. Podíamos ir até ao Cabo da Roca, ver as
vistas, principalmente a Praia da Pedra da Ursa, eu sei que tu adoras
ir até lá fotografar. — Propôs Ana.
— Miguel mostrou-se espantado — Inacreditável!
— O que foi?
— Tu és incrível!!!
— Eu? Porque é que dizes isso?
— Porque são impressionantes, os argumentos que tu arranjas
para me conseguires convencer a fazer tudo o que tu queres. Não
me dás mesmo hipótese.
— Ana sorriu de esguelha — Esse é o mal de eu te conhecer
demasiado bem; neste tipo de situações dá sempre jeito, porque sei
sempre com que trunfos jogar. Tu já sabes, como eu sou…
— Pois é! És uma chata do pior…
— Que graça! Uma pessoa a esforçar-se para te tentar levantar
a moral e tu a gozares. Para a próxima vais ver, deixo-te ficar aqui

192
a remoer no desgosto de amor. — Disse-lhe ela de semblante
carregado.
— Não sejas má! Só estava a brincar… Tu sabes que eu te
agradeço sempre imenso por tudo o que tu fazes por mim: cada
gesto, cada esforço e cada sacrifício, para me veres bem e para que
eu me sinta sempre bem. Contigo ao meu lado nunca consigo ficar
triste.
— Penso que, qualquer bom amigo tem a brilhante capacidade
de conseguir apagar toda e qualquer tristeza ou mágoa que nos
acompanhe.
— Sem dúvida! Agora disseste uma grande verdade!
— Sendo assim, parece-me que afinal de contas, não sou a
única a conseguir dar-te a volta com facilidade; tu também
consegues fazer o mesmo comigo.
— Significa que nos conhecemos bem e que nos momentos
menos positivos, sabemos sempre como nos ajudar, um ao outro.
— Concordo plenamente!
— Bem, estás pronta?
— Prontíssima! Não te esqueças de levar a máquina fotográfica
para tirarmos umas fotografias.
— A princesa manda!
— Eu não mando nada, só faço sugestões! Espero por ti lá em
baixo!
— Eu já desço!
— E já me ia esquecer de um pormenor importante: não quero
que penses na Isabel, porque não quero ver tristeza nesse rosto,
senão prefiro ir sozinha.
— Prometido! — Disse-lhe ele sorrindo.
Ana adorava ver Miguel sorrir, derretia-se sempre com aquele
sorriso terno e doce, humilde e simples.
— Acho bem! Assim é que é falar!

Miguel pegou no casaco de cabedal, na máquina fotográfica e


nas chaves e desceu logo de seguida. Poucos minutos depois
estavam a fazer-se à estrada até à vila de Sintra e ao Cabo da Roca.
Apesar da tarde primaveril, no Cabo da Roca estava um vento

193
gelado, quase parecia que estavam noutra estação do ano.
Estacionaram, agasalharam-se e aproximaram-se do miradouro
para verem as vistas, o Sol não deveria demorar muito a pôr-se;
para além disso, ambos adoravam o mar: apesar de, naquele dia,
estar particularmente revolto. Sempre que tinham algum problema
que não conseguiam resolver, gostavam de se refugiar na praia para
sentirem o aroma a água salgada, a brisa marítima e os grãos de
areia: escaldada pelo sol, a envolverem-lhe os pés. O mar tinha esse
poder majestoso e um efeito bastante relaxante sobre eles, fazia
com que Ana e Miguel se esquecessem dos problemas e obrigava-
os a pensar noutras coisas: mais felizes, positivas e
descomplicadas.
Gostavam de se divertir à beira-mar, de sentir a frescura das
ondas a tocarem-lhes a pele e de se sentarem na areia: sossegados
e em silêncio, apenas a vislumbrar a paisagem e serem invadidos
pelos diversos ruídos que os rodeavam.
— Não há nada melhor neste mundo que poder vislumbrar isto:
ter esta imensidão à minha frente. Acho que há coisas que só o mar
é que cura.
— Podes crer! Esta vista é mesmo magnífica… Já viste que
daqui podemos ver a Praia da Pedra da Ursa?
— Eu sei! Esta zona de praias é maravilhosamente linda.
Obrigado por teres insistido tanto comigo e por me teres
convencido a vir até aqui, não podias ter pensado em melhor plano
para descontrairmos. Estou a adorar.
— Eu sabia… Eu só tenho boas ideias; tu, é que muitas vezes
me subestimas e não confias nas capacidades da tua amiga do
peito.
— Oh! Não digas isso! Sabes bem que não é verdade…
— Estou a brincar contigo!
— Vamos dar uma espreitadela ao farol?
— Vamos!!!!

Visitaram então o farol, Miguel aproveitou para tirar algumas


fotografias, depois tiraram uma selfie, juntos, com o mar como
pano de fundo e o início de um pôr-do-sol magnífico e indescritível

194
e rumaram a Belém. Iria saber bem, darem um pequeno passeio de
barco pelo Tejo e uma caminhada pela marginal até à hora de
jantar, para descontraírem, sem terem pressa nem nada em
concreto em que pensar. Estarem apenas ali, a percorrer um
caminho, desfrutando da companhia, um do outro e deixando que
a troca de palavas só acontecesse no momento mais certo e
oportuno. Às vezes, é mais importante a presença, que uma
possível troca de palavras.
— Então já te sentes melhor? Mais relaxado e descontraído e
menos pessimista? Pelo menos estás com melhor cara...
— Basta-me ter a tua companhia para me sentir logo melhor!
Vês, Ana? Quem é que, a partir de Setembro me vai ajudar a
descontrair em momentos de crise, de meia-idade, como este? Vou
sentir tanto a tua falta e a tua companhia, nem imaginas...
— Mas nós sabíamos, desde sempre, que as coisas poderiam
ser assim: temos sonhos diferentes, queremos seguir caminhos
diferentes. Não podemos pôr tudo, de lado, em prol da nossa
amizade.
— Concordo, infelizmente!
— A realização pessoal é muito importante e nada nem
ninguém pode impedi-la. Não podemos fazer nada para alterar o
rumo das coisas, a vida é mesmo assim.
— A separação seria inevitável.
— Sim… E nós vamos ter que nos conformar, habituar e
adaptar, da melhor forma, a isso. Afinal de contas é algo que
acontece a toda a gente; apesar de haver pessoas que superam
muito melhor que outras, a questão da distância, das saudades e da
ausência.
— Claro! Mas custa cada vez mais a aceitar.
— Percebo! Mentir-te-ia se te dissesse que a mim não me custa,
o sentimento é muito mútuo, como já te tinha explicado em casa.
— Achas que a nossa amizade vai resistir?
— Não sei! Mas espero mesmo que sim; porque seria difícil
seguir em frente sem te ter por perto, iria existir sempre aquele
vazio inexplicável em mim; para além disso, não saberia viver sem
ti em casa. — Disse-lhe ela quase em estado de choque.

195
— Também sentiria o mesmo! Acho que não aguentaria perder-
te.
— No fundo, isto não passa de um desafio. Uma forma que a
vida arranjou de pôr a nossa amizade à prova. É mais um obstáculo
que teremos que ultrapassar.
— Às vezes, eu tenho medo que nós não sejamos capazes de
ultrapassá-lo. Nem imaginas o imenso receio que sinto de te
perder… Posso ter muitos amigos; mas tu és especial.
— Oh!!! Eu sei! Tu também és muito especial para mim; mas,
tu nunca me vais perder. Por mais distantes que possamos estar e
por mais projectos independentes que possamos ter, a nossa
amizade nunca deixará de existir e de ser o que é e aquilo que
sempre foi até aqui. Nunca deixarei que isso aconteça.
— Juras e prometes?
— Mas é claro que sim! Iremos ser amigos para sempre,
garanto-te, aquilo que a infância ajudou a criar e a construir, a idade
adulta não fará por destruir.
— Espero que tenhas mesmo razão…
— Nem duvides! Eu, raramente, falho ou me engano!
— Assim fico um pouco mais descansado e aliviado.

Estava quase na hora do jantar; por isso regressaram a casa. Mal


entraram a porta sentiram, de imediato, o cheiro delicioso do rolo
de carne com ananás da Joana, Miguel adorava aquele prato e
Joana tinha decidido fazê-lo, para o jantar para ver se ele se
animava.

196
N
o entanto, o desassossego de Miguel não ficaria por
aqui. No dia seguinte, Miguel regressou às aulas de
ar rejuvenescido, descontraído e confiante e com a
alma e o coração bem mais calmos, sentia-se
preparado para tudo e trazia consigo uma dose
renovada de coragem para enfrentar novos desafios. O
desassossego que tinha sentido nos últimos dias, e com maior
intensidade na véspera tinha acalmado e pela primeira vez desde
há muito tempo Isabel parecia ter conseguido dar-lhe algum tempo
e algum espaço: um tempo e um espaço que ele sentia que
necessitava havia meses, principalmente, para poder respirar do
sufoco de um amor que havia muito, que parecia ter deixado de ser
verdadeiro e genuíno.
Para além disso, parecia que Isabel também tinha conseguido
deixá-lo, definitivamente, em paz, parando com as suas inusitadas
insistências. O silêncio tinha-se, finalmente, apoderado do seu
telefone que há horas que não tocava acusando a chegada de
chamadas persistentes que ele não tencionava atender ou de
mensagens escritas às quais ele não queria de todo responder; de
certa forma, para ele isso era um alívio. Devia à Ana, a sua actual
leveza de espírito, que, mais uma vez, tinha estado
incondicionalmente ao seu lado, apoiando-o incansavelmente em
mais um momento difícil, incerto e inseguro. Tinha sido ela que o
tinha resgatado da monotonia que um duradoiro amor lhe havia
oferecido, transmitindo-lhe as energias positivas que só ela lhe
conseguia oferecer. Tinha sido ela a animá-lo, da forma que só ela
sabia fazer. Tinha sido ela a dar-lhe os melhores conselhos do
mundo e tinha sido ela que tinha conseguido roubar-lhe o melhor
de todos os sorrisos, por entre um fim de tarde descontraído
recheado de planos e detalhes que só ela tão bem conhecia.

197
Nada seria igual e tudo seria completamente diferente sem a
presença dela, havia um estado de acalmia pura nela que o
conquistava facilmente, que o transformava e o mudava sempre.
Começava a ficar sem quaisquer recursos para conseguir
agradecer-lhe por tudo e por tanto; sentia que havia grandes
pessoas: como Ana, para as quais, uma simples palavra não
bastava; eram também necessárias acções e gestos maiores, por
forma a demonstrar essa mesma gratidão que fazia por encher-lhe
o coração.

Ana também havia acordado feliz e bem-disposta, a tarde


descontraída, da véspera, havia feito muitíssimo bem a Miguel, que
parecia plenamente renovado, apenas por ver o seu melhor amigo
mais alegre e positivo. Se havia pessoa que não merecia sofrer
assim por amor, era ele. Os medos e receios de Isabel poderiam, de
facto, ter alguma razão de ser; mas, no fundo, não faziam qualquer
sentido; ela e Miguel eram apenas dois bons amigos que não
tencionavam vir a ser namorados, porque sentiam que não eram
mais do que dois irmãos mais velhos. Que haviam construído uma
longa história juntos, que haviam partilhado imensos detalhes e
momentos especiais e que tinham imensas coisas em comum.
Isabel não tinha o direito de magoar Miguel assim daquela
forma tão insensível e fria, só porque sentia medos e receios
relativamente ao namoro com ele. Ele que gostava dela com uma
intensidade que Isabel provavelmente não fosse capaz de entender,
ele que era das pessoas mais dedicadas e atenciosas que conhecia,
ele que fazia tudo por ela. Cada vez mais sentia que Isabel não era
a pessoa certa para ele, poderia gostar muito dele; mas não era um
amor sentido e genuíno. Ela apenas queria manter Miguel a seu
lado, para mostrar que também tinha namorado e para não destoar
das suas amigas. Ana achava que Isabel não amava Miguel na
mesma medida que ele a amava a ela.

Na escola decorria o intervalo grande da manhã, Miguel tinha


começado o dia com uma aula de noventa minutos de Educação
Física: era uma disciplina de que ele gostava muito, começar o dia

198
a praticar exercício físico aliviava-lhe a tensão e também o stress.
Estavam na fase do futebol, que era uma das suas áreas preferidas;
aqueles minutos de exercício tinham-lhe feito muito bem.
Por seu lado, Ana tinha acabado de ter uma aula de noventa
minutos de Química, tinha sido uma aula cansativa com muita
matéria teórica e exercícios, sentia-se exausta e estava mesmo a
precisar de descontrair e de repor energias e nada melhor para isso
que um bom café. Antes de sair de casa e como era habitual,
combinou com Miguel encontrarem-se no bar, durante o intervalo
grande da manhã, para tomarem um café juntos e porem a conversa
em dia. E ela já estava no bar à espera que ele chegasse; enquanto
esperava foi pedindo os cafés e os respectivos pastéis de nata: era
um pequeno-almoço infalível O bar já estava cheio, muitos alunos
esperavam de pé pelos pedidos e também por uma mesa que se
encontrasse vaga; o ambiente era descontraído e recheado de
conversas, música, gargalhadas e histórias à mistura. Miguel chego
logo de seguida e sentou-se descontraidamente à frente de Ana, na
mesma mesa que ela.
— Desculpa a demora! A aula acabou em cima da hora e ainda
estive a ajudar o professor Marco a arrumar o material e depois
ainda tive que tomar duche.
— Não faz mal! Não esperei assim tanto…
— Ainda bem! Assim fico mais descansado!
— As aulas de Educação Física do professor Marco são sempre
assim, com a minha turma acontece exactamente o mesmo; por
isso, não te preocupes.
— Miguel sorriu — Fizeste bem em ires pedindo os cafés e os
pastéis de Nata; enquanto esperavas. Obrigado!
— Precisas mesmo de agradecer-me por isso?
— Miguel mostrou-se envergonhado — Talvez, aches que não
seja preciso; mas a minha maneira de ser e estar diz-me que devo
fazê-lo e que é o mais correcto. É tudo fruto das minhas raízes e da
educação que me foi dada.
— Eu sei! Como te sentes hoje? Pareces-me mais alegre,
descontraído e animado que ontem…

199
— Estou muito melhor e tudo graças a ti! Obrigado por tudo:
por teres estado, mais uma vez, incondicionalmente ao meu lado,
por me teres apoiado, pelos bons conselhos e por teres insistido
para sairmos e descontrairmos, estava mesmo a precisar de arejar
as ideias; para além disso, acertaste mesmo em cheio no programa
e tiveste a melhor ideia de sempre e uma enorme paciência para
mim. Muito sinceramente, eu acho que não teria conseguido
ultrapassar isto sem ti.
— Mais uma vez, não tens nada que agradecer, os bons amigos
existem para estas ocasiões.
— E tu és mesmo um bom exemplo disso mesmo. Mudando de
assunto, a tua primeira aula correu bem?
— Correu! Apesar de ter sido cansativa; já sabes como é a
disciplina de Química.
— Imagino a complexidade e as dores de cabeça…

Miguel deu uma dentada no seu pastel de nata e levou a chávena


de café aos lábios, saboreando aquele líquido quase afrodisíaco;
enquanto a conversa se ia desenrolando a um bom ritmo.
Entretanto, já estavam prestes a terminar o pequeno-almoço
quando foram interpelados pelo Sr. Raposo que pediu a Miguel que
o acompanhasse e que levasse a mochila com ele. A diretora da
escola parecia ter bastante urgência em falar com ele; Miguel e Ana
entreolharam-se apreensivos e bastante pensativos.
— Aconteceu alguma coisa que não me tenhas contado? —
Questionou-o ela.
— Não! O mais certo é não ser mesmo nada de especial, não te
preocupes… Eu já volto e depois conto-te tudo.
— Está bem! Espero aqui por ti! — Disse-lhe ela continuando
calmamente a beber o café, mas sentindo um desassossego
estranho.

Miguel encaminhou-se para o pavilhão: aonde ficava o


conselho executivo, subiu umas escadas e num ápice estava
mesmo em frente à porta que dava acesso ao gabinete da diretora
da escola: a professora Manuela. Tinha vindo o caminho todo a

200
pensar nas razões que o teriam levado a ser chamado pela diretora;
mas não conseguia encontrar nenhuma que fizesse sentido, pensou
que não devia sofrer por antecipação, o mais certo seria não ser
nada de especial, dali a menos de um minuto já iria saber tudo.
Respirou fundo, como se tivesse alguma coisa a temer, ganhou
força e coragem e bateu à porta. Do outro lado, uma voz de
senhora: forte, assertiva e poderosa, mandou-o entrar e sentar-se.
Miguel sentou-se na cadeira em frente à secretária e questionou a
diretora sobre o que se passava, de semblante sério e frio, ela
explicou que estava a passar-se uma situação bastante grave; pois,
durante o intervalo diversos alunos da turma dele haviam-se
queixado do desaparecimento de vários objetos pessoais durante a
aula de Educação Física. E alguns desses alunos haviam jurado que
os objectos tinham sido roubados por ele.
Miguel estava estupefacto perante a situação, disse-lhe, de
imediato, que era tudo mentira e explicou que só podia ser uma
brincadeira de muito mau gosto; porque ele não tinha roubado
absolutamente nada. Apesar da infância que tinha tido: recheada de
dificuldades, naquele momento, sentia-se de bem com a vida;
nunca, jamais, roubaria alguma coisa aos seus colegas, não
precisava disso e também não fazia parte da sua maneira de ser e
estar.
A professora Manuela reforçou ainda, o facto de a delegada de
turma também ter confirmado a ausência dele, obrigando Miguel a
desfazer-se em justificações. Salientou que se tinha ausentado para
ir à casa de banho e que a funcionária do ginásio: a dona Matilde
podia confirmar isso mesmo porque o tinha visto. Logo a seguir
tinha regressado ao ginásio para ajudar o professor Marco a
arrumar o material usado na aula, tal como ele lhe havia pedido.
Por isso, era impossível, ele ter roubado o que quer que fosse,
porque não tinha tido tempo para o fazer. Aconselhou a directora a
falar com o professor Marco, que não hesitaria em confirmar o que
ele lhe estava a dizer, caso ela ainda tivesse dúvidas. No entanto, a
directora, continuava a mostrar-se algo desconfiada e até descrente
nas palavras dele, algo normal e natural perante uma queixa
daquela natureza; por isso, ele decidiu reforçar a sua versão

201
convidando-a a revistar a sua mochila para poder confirmar que ele
não tinha roubado absolutamente nada; afinal de contas, quem não
deve, não teme. Mostrando um grande à vontade.
A professora Manuela mostrou-se renitente em fazê-lo, pois
tomar aquela atitude ia contra os seus princípios; mas depois
acabou mesmo por decidir avançar, ao sentir que não tinha outra
hipótese. Miguel sentia-se de consciência tranquila, porque sabia
que não tinha feito nada, que era completamente inocente e que não
tinha nada a temer nem a esconder. Pegou então na mochila e
começou a despejá-la em cima da secretária sem medos e com à
vontade, o que sucedeu a seguir deixou ambos incrédulos:
começaram a surgir vários telemóveis, carteiras de documentos,
dinheiro e um saco com várias peças em ouro.
Ele ficou lívido e surpreendido perante aquela situação insólita,
não sabia como é que todas aquelas coisas tinham ido parar à sua
mochila, não sabia como havia de explicar-se. O nervosismo e
ansiedade que ele sentia começaram a aumentar e o coração
acelerou, estava metido num sério problema. A directora mostrou-
se admiradíssima, não sabendo como reagir, pediu-lhe, sem
hesitar, que ele se explicasse; mas ele parecia não ter palavras
suficientes para dizer, não sabia como é que todas aquelas coisas
haviam aparecido dentro da sua mochila. Jurou que não havia sido
ele a roubar tudo aquilo e que a única explicação aceitável que
encontrava era que alguém as tivesse colocado lá sem ele se
aperceber, para o culpabilizar de algo que ele desconhecia de todo.
Mas ela continuou a não acreditar na versão dele, mesmo com ele
a insistir na sua plena inocência e acabou por lhe dizer que iria
reunir-se, ainda naquele mesmo dia, com a dona Matilde, o
professor Marco e outros elementos do conselho executivo para
tomarem uma decisão. No entanto, era provável que Miguel fosse
suspenso; enquanto a situação estivesse a ser alvo de averiguações,
frisando que, se não conseguissem resolvê-la, o mais breve
possível, teriam que chamar a polícia.
Nem queria acreditar no que ouvia, não achava correcto nem
justo, estarem a acusá-lo injustamente de algo que ele sabia que
nunca havia feito e que não passava de brincadeira de mau gosto

202
ou de uma mera vingança contra ele; apesar de ter plena
consciência de que até prova em contrário ele seria sempre
inocente, mesmo que as provas estivessem contra ele. A directora
fez por salientar que perante provas tão óbvias, não poderia fazer
mesmo nada, lamentando de seguida e pedindo-lhe que se
mantivesse contactável para o caso de precisarem dele novamente.
Ele assentiu, prometendo que iria fazer tudo aquilo que estivesse
ao seu alcance para provar que estava inocente e que não havia
roubado nada. Deixou o gabinete da directora da escola e enviou
uma mensagem a Ana, prometendo contar-lhe tudo durante a hora
de almoço e regressou às aulas, sentindo-se triste, injustiçado e
principalmente desiludido com a forma como estava a ser tratada
aquela situação; no entanto, depressa chegou à conclusão que de
facto a professora Manuela não poderia fazer mais nada, pois, as
provas contra ele eram muito evidentes. Estava desejoso que
chegasse a hora do almoço para poder contar tudo à Ana, quem
sabe ela não o pudesse ajudar a encontrar uma solução milagrosa
para o seu problema; mas enquanto a hora de almoço não chegava
tinha que fazer um esforço por se manter atento e concentrado nas
aulas.
Entretanto, a direcção da escola reunia-se com a dona Matilde
e o professor Marco, confrontando-os com a situação em causa,
ambos acabaram por confirmar a versão de Miguel, deixando a
professora Manuela ainda mais confusa, com as mesmas dúvidas
e sem saber o que fazer.
A hora de almoço chegou, por fim; Miguel encontrou-se com
Ana junto ao pavilhão principal para irem almoçar, o seu ar
entristecido e desiludido não passou despercebido à amiga:
— O que é que tens? Estás cá com uma cara… Até estás pálido.
Correu mal o resto das aulas?
— Não! Não tem nada a ver com isso… Se eu te contar, nem
vais acreditar!
— Estás a deixar-me assustada e preocupada! Conta lá o que é
que se passa…

203
— Tem a ver com a minha ida ao conselho executivo da
escola… Quando estivermos sentados, confortavelmente, à mesa
conto-te tudo.
— Está bem! Como queiras!

Encaminharam-se para a cantina, prepararam os respectivos


tabuleiros, escolheram o que almoçar: o prato do dia era carne de
porco à Alentejana que apreciavam bastante e de seguida Miguel
escolheu uma mesa num local: recatado, calmo e onde não
houvesse grande barulho, bem no fundo da cantina. Após a
primeira garfada, dada em silêncio, Ana decidiu voltar a interpelá-
lo:
— Então queres contar-me o que aconteceu, afinal? Parece-me
que não foi coisa nada boa.
— Não foi mesmo! Nem sei bem por onde começar, sinto-me
tão envergonhado e injustiçado. A directora acusou-me de andar a
roubar coisas a alguns colegas.
— O quê? Tu a roubar? Só podes estar a brincar comigo… Isso
não tem pés nem cabeça.
— Estou a falar muito a sério!
Respirou fundo, ganhou coragem e força e decidiu contar
detalhadamente a Ana, tudo o que se havia passado na ida ao
conselho executivo, o olhar dele transparecia lentamente toda a
tristeza e vergonha que sentia. Pela primeira vez, uma simples
conversa fazia-o sentir-se comprometido perante a amiga.
— Eu nunca vi, uma situação tão surreal… Até me custa a
acreditar que a professora Manuela duvide assim da tua palavra e
da tua inocência, depois de seres aluno desta escola há tanto tempo
e de nunca teres feito coisa semelhante.
— Partilho da tua opinião; no entanto, tenho as provas todas
contra mim, que decidiram aparecer, por magia, no interior da
minha mochila. Isto está a ser terrível, sinto-me angustiado e
desiludido; porque, apesar de estar de consciência tranquila e de
saber que não roubei nada, paira sobre mim, este sentimento
agonizante de dúvida.

204
— Imagino que sim! Mas tens que ter calma, vais ver que as
coisas vão acabar por se resolver mais cedo ou mais tarde.
— Espero mesmo que sim! — Disse-lhe ele preocupado.
— Mas é claro que sim! Nem duvides, esta situação não faz
mesmo qualquer sentido…
— No entanto, por enquanto não consigo sossegar; porque eu
não tenho maneira de provar a minha inocência.
— Tudo se há-de arranjar, vais ver! Juntos, havemos de arranjar
uma solução como sempre fizemos, quando tivemos problemas
para resolver. Não te esqueças de uma coisa muito importante, a
verdade vem sempre ao de cima.
— Isso é bem verdade! Mas eu não quero que venhas a ter
problemas por minha causa.
— Porque haveria eu de ter problemas? Por ajudar um amigo?
Isso é um perfeito disparate…
— Mas acontece, mais vezes do que gostaríamos, porque,
infelizmente, as pessoas nem sempre são justas; por isso, é melhor
ser eu a resolver este assunto sozinho.
— Nem pensar! Não vou permitir que me deixes de parte, nós
resolvemos sempre os problemas todos, em conjunto e não vai ser
agora que isso vai ser diferente. Se há coisa que eu não tenho é
medo. Porque haveria de me acontecer alguma coisa?
— Sei lá… Às vezes é uma questão de retaliação por me estares
a ajudar.
— Não te preocupes, isso não vai acontecer!
— Espero que não! Não quero mesmo que te aconteça nada;
porque és das pessoas que menos merece. Ainda assim, agradeço-
te muito por tudo: por me ouvires e pelo teu apoio e ajuda. Tu sabes
que é sempre imprescindível e uma mais-valia.
— Oh! De nada! Já sabes que podes contar sempre comigo…
O que é que estás a pensar fazer a seguir?
— Nada! Acho que só me resta esperar pelo desfecho da
situação; infelizmente não há mais nada que eu possa fazer, no
entanto esta espera está a matar-me, é difícil e terrivelmente dura.
Pergunto-me quanto tempo mais irá durar e o que poderá acontecer
a seguir. Acredita que, estas dúvidas estão a dar cabo de mim.

205
— Eu percebo! Mas tenta descontrair e não pensar muito nisso;
vai correr tudo bem, vais ver. Por enquanto não podemos fazer
mesmo nada, temos que ter paciência.
— Sabes, estava aqui a pensar naquilo que eu vou dizer aos teus
pais, como é que eu os vou encarar depois de tudo isto. Que
vergonha… O que vão pensar eles de mim? Vão ficar tão
desiludidos.
— Não vão nada! Eu conheço muito bem os pais que tenho.
Não te preocupes com isso, os meus pais vão acreditar em ti, tal
como eu e vão apoiar-te e ficar do teu lado. Acredita no que te digo.
— Achas mesmo?
— Tenho a certeza absoluta!
— E os meus pais? Coitados, quando souberem de tudo vão
ficar tão tristes e desgostosos comigo.
— Não vão nada! Como não tiveste culpa da situação, não faz
qualquer sentido eles se mostrem ressentidos contigo e não
acreditarem em ti. São os teus pais e as pessoas que melhor te
conhecem.
— No entanto, eu não consigo deixar de me sentir
envergonhado!
— Não fiques assim! Não vai adiantar nada, tu estares a sofrer
por antecipação e teres esses pensamentos negativos. Tens que
reagir, tu não te podes deixar consumir por esta situação; porque
isso é o que pretendem. As pessoas não têm porque te julgar, ainda
que as provas sejam muito evidentes, até prova em contrário tu vais
ser sempre inocente; por isso não tens razões para estar assim
ansioso e receoso.
— Mas é tão difícil suportar este ambiente pesado que me
rodeia. Não é nada fácil estar aqui contigo, querer descontrair e
estar à vontade e sentir constantemente que todos os olhares
recaem sobre mim. Que as pessoas sabem o que se passa e devido
a isso olham-me de lado. E nem consigo imaginar o que poderão
estar a dizer de mim, nas minhas costas.
— É só impressão tua, não te preocupes e não lhes ligues. Tenta
abstrair-te.

206
— Não consigo! Olho à minha volta e só me apetece fugir daqui
a sete pés. Parece que do nada este lugar passou a ser
completamente desconhecido para mim, perdeu a familiaridade
que tinha; sinto-me estranho e descontextualizado aqui.
— É normal e natural. Mas quando tudo isto ficar resolvido, já
não te irás sentir assim. Acredita e confia em mim. — Disse-lhe ela
sorrindo ao de leve.
— Nem me apetece comer…
— Mas tens que comer, não vai ser por deixares de comer que
tudo se vai resolver mais depressa.
— Eu sei! Mas apesar de até ter fome, não consigo engolir nada,
parece que tenho uma pedra no estômago. — Disse-lhe ele que
ainda mal tinha provado a comida.
— Custa-me tanto ver-te assim, só espero que isto se resolva
bem depressa.
— Também eu! Para além disso, se há coisa que, neste
momento, mais me preocupa é que no fim disto tudo acabe por
ficar com a fama de ladrão, quando eu nunca roubei nada. Sabes
como estas coisas são, e como é que funcionam; mesmo que se
prove que eu nunca fiz nada, as pessoas vão desconfiar sempre de
mim e vão ficar sempre com o benefício da dúvida.
— Percebo! Mas não dês importância a isso, com o tempo as
pessoas acabam por se esquecer da situação. É sempre assim…
— Achas mesmo que sim?!
— Acho! Por isso, agora anima-te um pouco, pensamento
positivo. Quero ver um sorriso nesse rosto; já sabes que eu não
gosto nada desse ar triste e pensativo.

Ana agarrou as mãos de Miguel e assim ficaram durante alguns


minutos. Ele sentia-se logo melhor quando sentia o apoio, a
energia, a força e o incentivo que Ana lhe transmitia, sempre, em
situações como aquela. E sorriu levemente.
— Só mesmo tu para me conseguires acalmar, distrair e fazer
sorrir, sou um verdadeiro sortudo por ter uma amiga como tu;
parece que fica logo tudo melhor e que todos os problemas são

207
fáceis de resolver. Acho que deves ser a única pessoa que consegue
fazê-lo de uma forma tão natural e objectiva.
— São os pequenos segredos das verdadeiras amizades! —
Disse ela piscando-lhe o olho.

Miguel sorriu enternecido. Acabaram de almoçar, Miguel fez


um esforço por acabar a refeição, e entretanto tocou a campainha e
ambos regressaram às aulas. Na turma de Ana, o suposto roubo
feito por Miguel era tema central de todas as conversas, o que
deixava Ana irritada por ouvir os seus próprios colegas julgarem
uma pessoa sem conhecerem bem toda a situação. Limitavam-se a
falar mal dele e a deixarem alguns insultos no ar; esteve para
intervir, mas depois chegou à conclusão que não valia mesmo a
pena dar credibilidade àquelas pessoas.
Na turma do Miguel, as coisas também não estavam fáceis nem
melhores, desde que tinha entrado na sala de aula que se via perante
a rejeição dos seus colegas: todos se juntavam em grupos para
conversarem um pouco; enquanto o director de turma não chegava,
deixando Miguel de parte. Durante a aula, ele acabou por ficar
sentado sozinho numa mesa; pois nenhum colega se quis sentar ao
seu lado, deixando-o frustrado e ainda mais triste e desesperado. A
situação começava a tornar-se angustiante e insustentável.
No final de uma tarde dura e demasiado longa, em que a
concentração e a atenção não estiveram nos seus melhores dias,
reencontrou-se novamente com Ana para regressarem a casa: mal
se haviam visto o resto da tarde; ambos tinham tido um horário
extremamente preenchido de aulas.
— Preparada para regressar a casa? — Perguntou-lhe de ar
disfarçadamente bem-disposto.
— Claro! Estou exausta, os dias em que tenho aulas o dia todo,
são sempre tão cansativos.
— Faço das tuas as minhas palavras… E hoje foi um dia
particularmente complicado.
— Eu sei! Dás-me boleia?
— E precisavas de perguntar isso? Já sabes que sim e com todo
o gosto e prazer.

208
— Ana sorriu — Estás tenso ou é impressão minha?
— Não nego que me sinto algo contraído e constrangido; pois
ainda me espera um duro desafio: contar tudo aos teus pais e estou
bastante receoso da reação deles.
— Não tenhas receio, vai correr tudo bem.
— Espero que sim, Ana! Porque, neste momento, preciso muito
de ter um pouco de paz e tranquilidade, no meio de toda esta
confusão.
— Não tem porque correr mal, mais importante que tudo é teres
pensamento positivo.
— Nisso tens toda a razão!
— Então anima-te!

Já em casa, Ana e Miguel aproveitaram para lanchar e para ver


televisão para descontraírem um pouco, não estava a dar nenhum
programa interessante; mas o que importava mesmo era ocupar a
cabeça com outras coisas.
O dia já tinha sido difícil o suficiente, sentiam-se cansados.
Miguel adormeceu num ápice, enquanto Ana decidiu escolher um
filme para ver, até à hora do jantar: Doce Novembro, foi o eleito
para aquela curta sessão de cinema. O tempo passou a correr, a hora
de jantar chegou e com ela o momento pelo qual Miguel tanto
receava, não conseguia conter os nervos e a ansiedade, tinha um
medo inexplicável da reacção dos pais de Ana e por breves
momentos sentiu-se renitente sobre se devia ou não contar-lhes
tudo; mas depois acabou por chegar à conclusão que não tinha
outra alternativa, tinha mesmo que lhes contar, não queria correr
risco que eles soubessem de tudo por outras pessoas. E foi no
decorrer do jantar que tudo aconteceu, Miguel aproveitou o melhor
momento e a medo, com o coração a bater a alta velocidade e de
voz embargada, a querer falhar-lhe a qualquer momento, contou-
lhes tudo.
Pedro acreditou plenamente nele e em tudo aquilo que ele tinha
acabado de lhes contar, mostrando desde logo todo o seu apoio
para com ele e vontade em ajudá-lo. Já Joana não se mostrou
totalmente convencida: durante o resto do jantar, ela mostrou-se

209
muito pensativa, calada e de semblante carregado; olhando para
Miguel com uma certa desconfiança e desilusão e dando o
benefício da dúvida sobre a inocência dele. Por breves momentos,
o ambiente tornou-se algo pesado e até mesmo estranho, abatendo-
se sobre todos eles um inoportuno e constrangedor silêncio
Após o jantar Ana e Miguel subiram para os respectivos quartos
para estudarem e organizarem tudo para o dia seguinte; desde que
haviam terminado de jantar que Miguel se mostrava mais triste,
apático e calado. Ana estava visivelmente preocupada, no entanto,
deixou-o estar em paz e sossego no seu canto, não insistindo em
manter qualquer conversa com ele. Sabia que ele tinha ficado
bastante magoado e desiludido pelo facto de a mãe não acreditar
plenamente nele e isso deixava-a de coração apertado.
— Vá lá, Miguel, não fiques assim… Vais ver que mais cedo
ou mais tarde a minha mãe vai acreditar em ti. Dá-lhe um pouco de
espaço e de tempo para ela assimilar a situação; de certa forma foi
um choque para ela. Toda esta situação foi inesperada e tanto a
minha mãe como o meu pai foram completamente apanhados
desprevenidos e de surpresa, é normal e natural que não saibam
ainda muito bem como lidar com tudo isto. Como fazer a gestão
destas coisas…
— Sabes, apesar de eu não achar justa, esta atitude dos teus pais;
porque eles deviam conhecer-me melhor ou pelo menos deviam
conhecer-me bem o suficiente para não terem dúvidas, em
situações deste género. Sabem como eu sou e em que valores, a
minha vida assenta; para além disso, nunca vos dei motivos para
duvidarem assim de mim, uma vez que, vivo convosco há mais de
dez anos. De certa maneira, eu até entendo a reacção deles, se
estivesse numa situação igual, se calhar reagiria da mesma forma e
também acabaria por dar o benefício da dúvida. Penso que seja
uma questão de bom senso…
— Acredita que compreendo aquilo que estás a sentir.
— Mas não deixo de me sentir um pouco revoltado e
desapontado pela forma como os teus pais reagiram à situação,
principalmente a tua mãe. Parecia que acreditava piamente que eu
tinha roubado as coisas.

210
— Mas como te disse, eles foram apanhados de surpresa e
muitas vezes nestas situações, nos primeiros momentos, não se
consegue pensar nem raciocinar bem. Fica-se meio anestesiado;
mas vais ver que quando eles se debruçarem a sério sobre a
situação, vão perceber logo que não faz mesmo sentido nenhum
acharem que tu poderias roubar aquelas coisas. Só precisam
mesmo de um pouco mais de tempo.
— Espero que sim! Nunca imaginei que as pessoas invejassem
assim tanto a nossa amizade, a ponto de se quererem vingar de mim
e que até fossem capazes de me fazer sofrer assim só por nós
sermos bons amigos.
Ana sentiu o coração a vacilar e ficou mesmo triste perante o
desabafo de Miguel.
— Sabes que como é… Há sempre pessoas a quem incomoda
a felicidade dos outros. Gente invejosa, maldosa e com segundas
intenções. Faz parte da vida, por isso prepara-te e vai-te
habituando; porque, infelizmente, tu vais encontrar imensa gente
assim.
— Eu sei! Infelizmente, hoje em dia já nada me surpreende…

E a conversa acabou por terminar ali. Já todos dormiam,


excepto Ana que não conseguia pregar olho só de pensar na
angústia e tristeza por que Miguel estava a passar. Farta de estar na
cama sem conseguir adormecer, levantou-se silenciosamente,
dirigiu-se à cozinha para ir buscar um copo de leite e de seguida
sentou-se no sofá da sala a bebê-lo. Minutos depois apareceu Joana
também ela consumida pelas insónias, foi também à cozinha
buscar um copo de leite e ficaram ambas sentadas no sofá a
conversar sobre a situação que envolvia Miguel.
— Posso fazer-te uma pergunta, mãe? — Pediu-lhe ela algo
pensativa e renitente.
— Claro, querida!
— Quais são as tuas principais dúvidas sobre a inocência do
Miguel?
— Sabes, eu queria muito acreditar nele; uma vez que já
convivemos com ele há bastante tempo e até este momento nunca

211
tivemos motivos para duvidar ou desconfiar dele; no entanto, há
aquela questão das coisas roubadas terem aparecido na mochila
dele, que faz com que eu não seja capaz de acreditar, totalmente,
nele nem de dar o mínimo benefício de dúvida. Sinto-me um pouco
triste, desiludida e algo desapontada com o possível envolvimento
dele nesta situação.
— Percebo, mãe! No entanto, nunca ponderaste a hipótese de
se terem aproveitado da ausência dele, para colocar tudo na
mochila dele? É algo que pode impor-se.
— Nisso até tens razão! Sabes que, na maior parte das vezes,
perante situações como esta, ficamos um pouco bloqueados e nem
conseguimos pensar.
— Eu sei! Sinceramente, eu acho que aquilo que, muito
provavelmente, aconteceu foi que alguém roubou as coisas,
aproveitou-se da ausência do Miguel da aula para ir à casa de banho
e depois colocou tudo na mochila dele, sem ninguém se aperceber,
para que ele ficasse com as culpas. Uma espécie de brincadeira de
mau gosto; para além disso, durante as várias conversas que tive
com ele, ao longo do dia, o Miguel pareceu-me sempre muito
sincero e verdadeiro.
Joana mostrou-se pensativa, apesar de não deixar de se sentir
magoada
— Nem imaginas o quanto me custa e custa-me imenso, não
conseguir acreditar nem confiar totalmente nele. Sabes que eu
gosto muito do Miguel e que sempre o vi como um rapaz simples,
humilde e exemplar.
— E ele continua a ser assim… Nem imaginas como ele se tem
sentido triste e angustiado pelo facto de tu não teres acreditado nele,
desde o início, como fez o pai.
— Por muito que nós gostemos de uma determinada pessoa, em
certas alturas e situações todos temos direito a duvidar e a dar o
benefício da dúvida, mesmo que achemos que não seja justo ou
que não faça qualquer sentido. Eu sei que muitas vezes nos custa a
acreditar nisto e percebo que gostes dele e que ele seja uma pessoa
muito especial e importante para ti. Mas, a verdade é que, as

212
pessoas também mudam, mesmo aquelas de quem gostamos
muito. Ele pode ter mudado e tu não te teres apercebido.
— Não acredito nisso! O Miguel não mudava assim tão
radicalmente, a ponto de começar a roubar coisas, do nada. Ele teve
uma infância difícil, com bastantes dificuldades e com escassas
economias; mas, jamais, roubaria o que quer que fosse. Eu
conheço-o muito bem e sei que ele não teria coragem para o fazer;
para além disso, não teria coragem de me mentir. Acredita e confia
em mim.
— Eu gostava muito de conseguir acreditar nas tuas palavras;
mas ainda não tenho motivos suficientes para fazê-lo. Só isso não
me chega para me convencer.

Ana mostrou-se desiludida; pois sabia que a mãe não se deixava


convencer assim tão facilmente, ela precisava de razões aceitáveis
e bastante plausíveis, porque era uma mulher muito ponderada,
assertiva: media sempre os prós e os contras das coisas e de ideias
fixas. Mas não iria desistir de consegui-lo; afinal de contas sempre
havia sido teimosa. A mãe iria ceder, mais cedo ou mais tarde.
— Nós ainda te vamos conseguir provar que estás errada.
— Vamos ver! Mas se assim for, eu só tenho que assumir o meu
erro e que pedir desculpa ao Miguel; mas até isso acontecer, talvez
seja melhor ele ir passar uma temporada com os pais ao Alentejo.
— Não faças isso, mãe! Peço-te por tudo, só vais fazer com que
ele se sinta ainda pior, ele vai sentir-se ainda mais triste, destroçado
e desgostoso. Não acho que essa atitude seja a mais justa e correcta,
vamos esperar mais uns dias, vá lá… — Pediu-lhe ela
surpreendida.
— Eu acho que, enquanto os ânimos não acalmarem e a
situação não ficar resolvida, é o melhor a fazer: o Miguel ir passar
uns dias à quinta com os pais. Tenho a certeza absoluta que ele vai
compreender…
— Não concordo! Mas tudo bem, vocês é que sabem; no
entanto, lembrem-se que podem estar a cometer um erro.

213
Ana sentia o coração às voltas e o medo a consumi-la; por isso
decidiu não continuar a conversa, pois achava que não valia muito
a pena. A mãe parecia mesmo irredutível; já se fazia bastante tarde,
por isso, acabaram por se ir deitar para tentarem dormir as poucas
horas que lhes faltavam até o sol começar a sorrir.
No dia seguinte, na hora de almoço, Joana e Pedro decidiram
falar com Miguel para lhe explicar a decisão que tinham tomado e
fazê-lo entender a situação. Para além da tristeza profunda que o
consumia, desde a véspera, ele sentiu-se inesperadamente
incrédulo com a decisão, não estava nada à espera e tinha sido
apanhado de surpresa; no entanto fez por se mostrar resignado e
compreensivo, mesmo não concordando. Infelizmente, não havia
muitas palavras com que pudesse argumentar ou justificar-se; nem
havia nada que ele pudesse fazer, restava-lhe apenas aceitar, sem
ripostar, ir passar uns dias à quinta com os pais; enquanto a situação
não ficava resolvida e esperar pacientemente por um final feliz.
Por seu lado, Ana sabia muito bem o quanto estava a custar a
Miguel aceitar aquela decisão que os pais dela haviam tomado,
podia não o demonstrar; mas no seu interior a desilusão, a mágoa
e a angústia eram cada vez maiores. Ele não queria incomodar os
pais com os seus problemas e sabia que eles iriam estranhar ele
aparecer assim, sem mais nem menos, na quinta, em pleno período
de aulas. Iriam ficar desconfiados e questioná-lo acerca do que se
passava. Era com um tremendo aperto no peito que ele imaginava
a reacção deles quando soubessem de tudo, principalmente da mãe
que seria quem mais desiludida ficaria. Muito dificilmente, eles
iriam conseguir compreender as suas justificações; já que, vinham
de uma geração diferente. O desgosto deles iria ser gigantesco,
porque para os pais de Miguel, não tinha sido aquela a educação
que lhe haviam dado na infância.
Custava muito a Ana ver o amigo a sofrer assim, quando tinha
a certeza absoluta que ele não tinha roubado absolutamente nada e
custava-lhe ainda mais saber que ele ir-se-ia embora
temporariamente. Doía-lhe a alma e o coração por vê-lo tão triste e
desanimado; no entanto, ela sabia que não podia fazer nada, apenas
esperar que tudo se resolvesse da melhor forma possível. Após o

214
almoço, Miguel foi até ao seu quarto preparar, calmamente, uma
mochila com roupa, iria viajar para a quinta de mota; por isso, para
além de não poder levar muita coisa, não tinha assim muita pressa.
E de seguida Ana foi ao seu encontro:
— Posso entrar? — Perguntou-lhe ela espreitando à porta do
quarto.
— Claro que sim! — Disse-lhe ele sorrindo timidamente,
enquanto acabava de fechar a mochila.
— Lamento profundamente que as coisas tenham chegado a
este ponto. Muito sinceramente, eu acho que não era necessário, os
meus pais terem tomado uma decisão destas; afinal de contas todos
confiamos plenamente em ti.
— Na verdade, eu sinto que nem todos confiam plenamente em
mim e na minha palavra; mas penso que isso seja compreensível
porque em situações como esta, há sempre o benefício da dúvida,
não concordas?
— Infelizmente, não posso deixar de concordar; eu acho que,
de certa forma, é normal e natural. Faz parte…
— Podes crer! Mas, às vezes, depende das situações!
— Sim! Sabes o que penso realmente? Os meus pais podiam
ter esperado mais uns dias, para ver se tudo se resolvia; mas a
minha mãe não quis. Eu ainda tentei demovê-la; já que, ontem à
noite estivemos a conversar acerca da situação até tarde, mas não
consegui. Desculpa…
— Por favor, não tens nada que pedir desculpa, fizeste o melhor
que podias e sabias.
— Gostava de ter feito muito mais; mas não foi possível!
— Não te menosprezes, acredita que fizeste muito mais do que
imaginas; por isso, só tenho mesmo que te agradecer por teres
acreditado e confiado sempre em mim e na minha inocência, desde
o início, e sabes que a confiança é a base de tudo. Por todo o apoio
que me tens dado, pelos pensamentos positivos que me
transmitiste, pela paciência gigante que tiveste comigo e claro pelas
inúmeras conversas descontraídas e aconchegantes que tivemos
nos últimos dias, que acalmaram o meu desassossego, a minha
angústia e a minha revolta. Tudo isso foi extremamente importante.

215
— Não tens nada que agradecer! Sabes, acho que continuo sem
ter palavras para dizer e para descrever toda esta situação.
— Não te preocupes que eu vou ficar bem. Olhando para toda
esta situação pelo lado positivo; de certa forma, até foi bom, tudo
isto ter acontecido assim… Aproveito e vou colmatar saudades de
casa e da minha família.
— Tens toda a razão! No entanto, vais fazer-me imensa falta,
vou ter saudades tuas todos os dias.
— Vá lá, não fiques assim! Vais ver que os próximos dias vão
passar rápido, quando menos esperares já estou de volta
novamente. Nem vais ter tempo para sentir a minha falta e
saudades minhas. — Disse-lhe ele com um suave ar rebelde.
— Não digas isso! — Disse ela de ar visivelmente preocupado;
entretanto, após um curto espaço de tempo silencioso, Ana decidiu
fazer um pedido especial a Miguel — Posso pedir-te uma coisa?
— Claro! Tudo o que tu quiseres!
— Por favor, vai-me dando notícias tuas.
— Não te preocupes! Eu vou ligando e enviando mensagens
escritas.
— Obrigada! Assim fico mais descansada! Eu sei que não
vamos estar muito tempo longe um do outro; no entanto, acho que
já não sei estar separada de ti, assim tanto tempo.
— Sinceramente, eu acho que já não és a única!
— Ana sorriu e de seguida abraçou-o — Apesar de tudo, espero
que encontres, durante estes dias, a paz e a tranquilidade que tanto
anseias e precisas e que desfrutes de tudo da melhor forma. Não
quero que te preocupes com mais nada, do resto trato eu.
— Por favor, peço-te por tudo que tenhas o máximo de cuidado.
Não quero que te metas em problemas por minha causa, nem que
te aconteça nada de mal; gosto demasiado de ti para permitir isso.
Para além disso, acredita que não me perdoaria se isso acontecesse;
pensando bem, se calhar é melhor ser eu a tratar de tudo quando
regressar. — Disse-lhe ele pensativo.
— Achas?! Quando voltares já poderá ser tarde, vai descansado
e principalmente com muita calma que vai correr tudo bem. Hei-
de conseguir arranjar uma maneira de provar que não roubaste

216
nada; penso que não será uma tarefa muito difícil de conseguir. A
verdade vem sempre ao de cima, quer queiramos, quer não.
— É verdade!
— Mal tenha alguma novidade, prometo que te ligo.
— Combinado! Eu sei que posso contar sempre contigo para
tudo.
— Vais poder contar comigo para tudo, a vida inteira, nunca te
esqueças disso!
— Mais uma vez, tu deixas-me sem palavras; no entanto, eu
não quero que tu deixes de viver a tua vida, de te focar nos teus
sonhos e nos teus objectivos e principalmente que tu ponhas de
lado o estudo por causa desta situação. Não quero que baixes as
notas por minha causa.
— Não te preocupes com isso!
— Mas eu tenho que me preocupar; porque eu sei bem como é
a minha bestfriend preferida, se ela puder abandona tudo só para
me poder ajudar e é muito capaz de o fazer sem hesitar e sem
sequer parar para pensar nela. Esquece-se literalmente dela própria
e até do mundo se for preciso.
— Vês como me conheces bem? — Disse-lhe Ana sorridente
— Mas não pode ser assim! Tu não podes anular-te nem anular
tudo à tua volta em prol de mim. Não quero que o faças, não é justo,
não faz sentido, nem acho que o mereça.
— Achas mesmo que não mereces? Eu penso que, há poucos
amigos, neste mundo, que mereçam tanto como tu e contra factos
não há argumentos.
— Não sei que dizer… Desculpa!
— Porque sabes que é tudo verdade!
— A maior certeza que eu tenho é vou que gostar sempre muito
de ti, até ao fim das nossas vidas.
— E eu de ti! Porta-te bem e vais ver que tudo se vai resolver!
— Não tenho a mínima dúvida que sim! Mais uma vez,
obrigado por tudo.

217
M
iguel chegou à quinta ao final da tarde, bem perto
da hora de jantar. Que saudades profundas que já
sentia daquele refúgio tão especial, de regressar ao
seu eu, às suas verdadeiras raízes, à sua casa e à sua
família. Aquele ar: puro, saudável, fresco e leve do campo fazia
sempre por lhe encher a alma e o coração a cada novo retorno e
recompunha sempre tudo no seu respetivo lugar; pelo menos assim
ele esperava que fosse. A primeira pessoa que viu, após estacionar
a mota junto aos acessos à sua casa, foi o avô António: sempre
alegre e bem-disposto, a idade e a velhice pareciam não querer
passar por ele, apesar das inúmeras rugas que já apresentava, a sua
energia parecia sempre inesgotável.
Ele sabia bem, como o avô da Ana gostava sempre de se manter
ocupado a fazer coisas, não era pessoa de se manter parada muito
tempo; no seu vagar e ao seu ritmo ia fazendo todas as coisas de
que mais gostava e que mantinham o seu corpo e a sua mente
sempre saudáveis e viçosos. Àquela hora, ele gostava sempre, de
ficar sentado no alpendre a apanhar os derradeiros raios de sol,
enquanto fazia festas ao Faísca: o seu velho e bonacheirão
ajudante. Tinham uma cumplicidade muito particular,
característica de anos de companheirismo, dizia ele à boca cheia
que ninguém o compreendia tão bem como aquele cão. Bastava
uma troca de olhares para quase ficarem a saber tudo acerca um do
outro.
Miguel encaminhou-se para o portão das traseiras: que conhecia
tão bem da sua infância com Ana, entrou, aproximando-se logo do
senhor António. Como era hábito, foi recebido de braços abertos e
de curiosidade bastante espicaçada pela sua inesperada presença
ali, a meio da semana. Sem se alongar demasiado para não ter que

218
se desfazer novamente em justificações, disse-lhe que tinha
aproveitado o facto de não ter que estudar para visitar os pais. Após
alguns minutos de conversa sobre os mais diversos temas, Miguel
despediu-se e regressou a casa, estava na altura de encarar aquele
pequeno problema que o tinha trazido até ali, de pé e de frente,
contando aos pais os motivos da sua inesperada visita. E tudo
aconteceu, em plena hora de jantar, Miguel ganhou força e
coragem, respirou profundamente e contou-lhes tudo o que se tinha
passado. Sentia-se algo tímido e comprometido; pois sabia que a
sua maneira de ser e estar perante a vida e os outros não se
identificava em nada com aquela situação concreta; nos rostos dos
seus pais viu apreensão e desapontamento, nada que não fosse de
esperar.
Mesmo sabendo que estava inocente, sentia que, de certa forma,
tinha falhado e que isso iria entristecer imenso os seus pais. Nos
minutos que se seguiram, o ambiente ficou algo pesado e o silêncio
apoderou-se de todos, parecia que, de repente, havia muito poucas
palavras para dizer; até que a mãe Mizé decidiu quebrar a
monotonia que os envolvia.
— Estamos bastante desiludidos contigo, Miguel! Acho que a
menina Joana e o doutor Pedro não mereciam isso de ti; depois de
te terem ajudado tanto.
— Já pensaste bem como é que nós, agora, vamos encarar o
senhor António e a dona Conceição quando eles souberem de toda
a situação? A vergonha que nós vamos passar? — Questionou-o o
pai de ar frio e sério.
— Calma, Alfredo! Temos que ir com calma.
Miguel sentia-se mesmo mal.
— Eu compreendo perfeitamente a vossa posição! E peço-vos
imensa desculpa por tudo; mas como vos expliquei: isto, não passa
de uma espécie de brincadeira de mau gosto e de um mero mal-
entendido que vos prometo que irá ficar resolvido não tarda, mal
eu regresse a Lisboa.
— Muito sinceramente, eu penso que não foi essa, a educação
que nós te demos quando eras mais novo.

219
— Eu juro por tudo que não roubei absolutamente nada aos
meus colegas; jamais o faria porque não preciso disso. Neste
momento, eu posso dizer que tenho uma vida estável: não tenho
tudo; mas também não me falta nada; para além disso, quando
quero muito uma coisa ou luto muito por ela ou vou juntando
dinheiro para poder consegui-la. Eu sei que não é a roubar que se
conseguem as coisas, não me esqueci do que me ensinaram.
— Isso não desculpa aquilo que fizeste e a atitude que tiveste!
— Disse-lhe o pai de ar zangado, autoritário e algo severo.
— Alfredo, se o Miguel diz que não roubou nada é porque,
realmente, é verdade. Como pais dele temos que acreditar no nosso
filho e que dar o benefício da dúvida, não podemos levar esta
situação assim tanto a peito.
— Eu vou conseguir provar-vos que nunca, jamais, roubei
nada. Podem ter a certeza absoluta disso, não vou descansar;
enquanto não o conseguir. E depois vocês vão acabar por me dar a
razão.
— Espero mesmo que sim e que depois tenhas a humildade de
pedir perdão a todas as pessoas a quem tens que o fazer.
— Com toda a certeza, pai!
— Agora, tu vais ouvir com muita atenção aquilo que eu te vou
dizer: eu espero, muito sinceramente que, uma situação destas não
se repita; o meu filho não é, nem nunca vai ser nenhum bandido,
não foi para isso que eu o eduquei. Caso contrário, eu garanto-te
que tu voltas recambiado para cá, acaba-se Lisboa, acaba-se a
universidade e acaba-se tudo; passas a ajudar-me em todas as
tarefas no campo e também em casa do senhor António e a dona
Conceição para aprenderes. Por isso, eu aconselho-te a pensares
muito bem naquilo que estás a fazer. — Disse-lhe o pai, enquanto
descascava uma maçã de sobremesa.
— Não sejas tão bruto, homem!
— Tem que ser! O nosso filho tem que aprender e que perceber
que errou; para além disso, na idade dele, os gaiatos não podem
ficar a achar que podem fazer tudo aquilo que querem e que lhes
apetece, sem consequências. Não é assim… Não podem ter rédea
solta.

220
— Já acabaste de comer, filho?
— Já sim, mãe!
— Então dá-me uma ajuda a levantar a mesa e a levar os pratos
para a cozinha e depois podes ir para o teu quarto.
— Está bem!
Levantaram-se da mesa, dirigiram-se à cozinha e, num ápice, o
silêncio voltou a imperar em casa da família Ribeiro.
— Não ligues ao teu pai, já sabes como ele é… Reage sempre
assim, a quente, a tudo!
— Acredite que eu compreendo o vosso ar de incredulidade;
assim como a vossa desilusão, a vossa mágoa e o facto de não
acreditarem totalmente em mim. Eu também fui apanhado de
surpresa e também me sinto triste com esta situação, porque o
benefício da dúvida existe sempre nestas situações; no entanto,
volto a salientar que estou inocente e de consciência tranquila,
afinal de contas não roubei absolutamente nada.
— Eu acredito em ti, Miguel!
— Obrigado, mãe! Nem imagina como isso é importante para
mim, como me dá algum alento e me deixa mais descansado.
Maria José foi até à bancada da cozinha e começou a lavar a
loiça do jantar; enquanto continuavam a conversar:
— Já podes ir para o quarto, eu agora acabo de arrumar a
cozinha.
— Tem a certeza que não quer ajuda?
— Não é preciso, eu acabo isto num instante.
— Está bem! Se precisar de mim, chame!

Deixou a cozinha e foi para o seu quarto, num repente a sua


mente recuou até à infância, há longos anos atrás. Ele sentia-se
como se fosse o miúdo daquela altura: carregado de sonhos e
desejos para o futuro e sedento de uma radical mudança de vida,
que os pais faziam por castigar quando falhava em alguma coisa
ou fazia alguma asneira. Recordava-se perfeitamente do pai o
obrigar a levantar-se bem cedo da cama: mesmo no Inverno, em
dias às vezes bastante frios e a ir o dia todo com ele e com o gado
para o monte como castigo. Regressavam a casa, quase sempre ao

221
final do dia, e antes de jantar Miguel ainda tinha que levar as
ovelhas até à respectiva cerca e ordenhar as vacas, só depois de ter
tudo concluído se podia sentar à mesa para comer a sopa e a fatia
de pão frito. Antes de ir dormir ainda ajudava a mãe a arrumar a
cozinha e nas tarefas domésticas.
Apesar de, já ser um adulto, estava a ser castigado, quase
praticamente da mesma forma, por algo que sabia que não havia
feito e fazer crer os pais disso estava a ser extremamente difícil; de
certa maneira, a reacção deles era compreensível, ainda que não
conseguisse aceitar bem tudo aquilo e conformar-se. Precisava
urgentemente de lhes conseguir provar a sua inocência, para ter
finalmente paz e sossego e tirar aquele enorme peso de cima dos
ombros; só não sabia como havia de o fazer.
De caminho passou pela sala onde o pai se encontrava sentado
no sofá, entretido a ver um filme de ação; sentia-se bastante triste
com a reação sem precedentes que ele tinha tido perante a situação,
mas principalmente magoado pelo facto do pai acreditar piamente
que ele havia roubado as coisas. Não conseguia conformar-se,
nenhum pai devia ter o direito de tomar aquele tipo de atitude, de
duvidar assim daquela forma dos seus próprios filhos; no entanto,
já estava à espera que os pais reagissem mal e que o pai reagisse
daquela maneira. Ainda assim consolava-o o facto de saber que,
mais cedo ou mais tarde, lhes iria conseguir provar a sua inocência
e fazer o pai mudar radicalmente de opinião.
Precisava mesmo de falar com Ana, de senti-la mais perto, de
desabafar com ela sobre aquilo que se tinha passado e sobre tudo
aquilo que sentia, de ouvir os seus bons conselhos, que tanto o
acalmavam e tantas energias positivas lhe davam. De descontrair e
conversar sobre outras coisas. Às vezes, sentia que só ela o sabia
compreender como ninguém. Ela nem imaginava a enorme falta
que já lhe fazia e as muitas saudades que ele já sentia dela; por isso,
enquanto se preparava para uma longa noite de estudo, aproveitou
e ligou-lhe. Apesar de Ana não se encontrar em casa: estava a
tomar café com as amigas, não deixou de se mostrar preocupada
com ele, pareceu-lhe: triste e preocupado, despediu-se logo das

222
amigas e enquanto regressava a casa de metro aproveitou para
conversar com ele:
— Desculpa por estares, mais uma vez, a mudar a tua vida por
minha causa. Não queria nada que deixasses as tuas amigas
penduradas para falares comigo e ouvires as minhas lamentações.
— Achas?! Não digas disparates! Nós já tínhamos tomado, há
muito tempo, o nosso café, estávamos apenas a pôr a conversa em
dia; por isso, não íamos demorar muito a vir embora.
— Mesmo assim… Não é justo! Desculpa-me, mais uma vez!
— Não faz mal! Esquece isso…
— Sabes, estava mesmo a precisar de falar com alguém; é
nestas alturas que sinto mais a tua falta e a tua ausência. Não estou
a conseguir aguentar, nem a saber lidar muito bem com esta
situação, parece que vou explodir a qualquer momento.
— Eu sei! Mas tu tens que tentar ter calma e que não perder a
cabeça, é o mais importante. Não adianta nada, tu estares a sofrer
por antecipação, nem te vai ajudar em nada.
— Eu sei, Ana! Mas sinto um sufoco tão grande, isto está a
custar-me tanto, principalmente por sentir todo este descrédito e
todo este sentimento de dúvida à minha volta. Nem imaginas o
quanto tenho sofrido e o quanto anseio que tudo isto se resolva e
acabe.
— Acredita que te compreendo e custa-me amargamente ver-te
a sofrer assim desta maneira e ainda não ter conseguido fazer nada.
Mas, afinal de contas, os teus pais reagiram assim tão mal?
— Não fazes a mínima ideia… A minha mãe nem tanto; já o
meu pai reagiu mesmo pessimamente.
— É normal e natural! Tens que lhes dar tempo…
— Tempo para quê? Porque é que os meus próprios pais não
confiam em mim e na minha palavra?
— Tenta compreender que os teus pais são de uma geração
diferente da nossa, veem as coisas de maneira diferente. Toda esta
situação também é nova para eles, também foram apanhados
desprevenidos e de surpresa.
— Mas deviam confiar mais em mim e na minha palavra. Se eu
lhes disse que nunca roubei nada, porque haverão de duvidar?

223
— Sabes como é… Fica-se sempre com a dúvida!
— Pois! E é isso que me magoa e angustia; para além disso, se
eu não conseguir provar que não roubei nada, o meu pai quer
obrigar-me a voltar definitivamente para cá. Não é justo nem faz
sentido que estejam a tratar-me assim; apesar de gostar de estar
aqui porque são as minhas raízes, é o lugar onde nasci e cresci, onde
sempre vivi e onde se encontra a minha casa e a minha família.
Neste momento eu já tenho uma vida completamente diferente e
organizada em Lisboa: vivo e estudo aí, tenho a minha rotina, tenho
os meus amigos e tenho-te a ti e à tua família e de certa forma não
quero, nem sei se serei capaz de voltar a viver aqui em definitivo,
já não estou habituado a este ambiente, percebes? Não quero deixar
para trás tudo aquilo que consegui e conquistei até aqui, com tanto
esforço, sacrifício e dedicação.
— Mas isso não vai acontecer; porque eu tenho, a certeza
absoluta que, nos próximos dias, vai ficar tudo resolvido. — Disse
ela em desalento.
— Achas? Gostava tanto de ser assim tão optimista e positivo
como tu!
— É claro que acho; por isso, peço-te que não desesperes e que
tenhas um pouco mais de paciência.
— Ainda mais paciência do que aquela que já tenho tido?
Sinceramente, não sei se sou capaz…
— Mas é claro que és! Superaste tantas coisas bem mais
complicadas e difíceis, na tua vida; que isto é só mais uma prova
de fogo que terás que ultrapassar.
— Meu Deus! Às vezes sinto-me tão impotente…
— Tentaste explicar aos teus pais, principalmente ao teu pai,
tudo aquilo que pensas e sentes; tal como fizeste agora comigo?
— Não! Não iria valer a pena, ele não iria compreender nem
querer ouvir-me; para além disso só iria piorar as coisas. Sabes que
o meu pai não gosta de ser contrariado.
— Fizeste mal, quem sabe o teu pai não ter-te-ia surpreendido
com uma reacção diferente.
— Duvido muito, princesa! Infelizmente, o meu pai não cede
com facilidade quando está muito zangado.

224
— Assim não é fácil! No entanto, talvez nos próximos dias
tenha novidades para ti.
— A sério?! — Disse-lhe ele sentindo-se esperançoso.
— A directora da escola vai começar amanhã, a chamar ao
gabinete dela, cada um dos teus colegas de turma. Quer falar com
todos, individualmente, por causa da situação do roubo; por isso,
estou convicta que no final da semana haja novidades.
— É tudo o que eu mais quero! — Disse-lhe ele, sentindo-se
um pouco mais aliviado — Os meus pais estão a querer castigar-
me por uma coisa que eu não criei nem fiz.
— Não desanime! E tenta não pensar, nem te preocupar muito
com este assunto, eu vou ficar o mais atenta possível ao desenrolar
da situação e vou dando notícias.
— O que seria de mim sem ti. Obrigado por tudo,
principalmente por acreditares e confiares em mim, por estares
incondicionalmente ao meu lado e por todo o apoio que me tens
dado desde o início. Nem imaginas quão grato me sinto, neste
momento. És a única pessoa em quem consigo confiar; para além
disso, continuas a ser das pessoas mais incríveis e mais fantásticas
que a vida me permitiu conhecer. Nada seria igual se tu não
estivesses permanentemente desse lado, sou um sortudo por te ter
conhecido e por podermos fazer parte da vida um do outro.
— Lamechices à parte, um último recadinho: tenta descontrair
um pouco e levar as coisas com alguma calma e principalmente a
bem, por muito difícil que isso seja, sem entrares em muitos
conflitos com os teus pais, isso só vai complicar ainda mais a
situação.
— Vou tentar, Anocas!
— E fica descansado que eu vou-te mantendo informado do que
se passa.
— Agradeço-te, mais uma vez, por tudo, principalmente, por
esta conversa tão reconfortante. Acredita que me ajudou muito,
estava mesmo a precisar de desabafar um pouco contigo.
— Não tens nada que agradecer, estou cá para isso!
— Felizmente, eu tenho a sorte de ter uma amiga que está
sempre disponível para tudo!

225
— Os amigos de longa data são assim!
— Nunca vou saber como te agradecer dignamente!
— Oh! Deixa lá isso!
— Sabes bem que é verdade! Bem, vou estudar e também vou
deixar-te descansar, acho que já te chateei demasiado. Beijocas e
até amanhã.
— Estás farto de saber que nunca me chateias. Até amanhã,
Miguelinho.

Nos dias que se seguiram, Miguel dividiu-se entre o estudo e a


ajuda dada aos seus pais nos seus respectivos trabalhos. Não
adiantava nada ripostar; pois só iria criar mais conflitos, ele
limitou-se a aceitar e a aguentar pacientemente e sem quaisquer
objecções. Para ele o dia mais cansativo e difícil havia sido o dia
seguinte à sua chegada, pois o pai tinha-o obrigado a acordar cedo
para ajudá-lo nas respectivas tarefas, na Quinta da Juventude; de
certa forma, até foi bom regressar àquela rotina que sempre lhe
fazia lembrar as férias, na companhia de Ana, no campo. Tinha
sido perfeito para descontrair, para pensar noutras coisas e limpar
a alma de más energias; o dia tinha sido bastante longo e duro, na
véspera tinha ouvido o pai dizer que no dia seguinte era dia da
apanha do trigo e do centeio. Ainda que fosse feita com recurso a
máquinas agrícolas não deixava de ser um trabalho pesado;
principalmente, porque tinha voltado a sentir-se um forte calor tal
como tinha estado no dia anterior. Não tinha sido nada fácil…
Depois de uma manhã preenchida de colheitas, almoçaram e à
tarde, ajudou o pai na oficina do senhor António e ainda houve
tempo para alguns trabalhos de jardinagem. Já o final do dia se
fazia notar, quando ele pôde fazer uma curta pausa para lanchar e
enviar uma pequena mensagem escrita a Ana; sentia-se de rastos,
o dia tinha sido bem preenchido, mas muito trabalhoso e cansativo.
Só queria poder chegar a casa e deitar-se no sofá, aquele estava a
ser um castigo bem penoso. Perto da hora do jantar, o pai decidiu
dispensá-lo e deixá-lo regressar a casa, Miguel nem queria
acreditar, sentiu-se mesmo aliviado, finalmente iria poder
descansar; apesar de tudo, achava que já merecia.

226
Chegado a casa, pôs a mesa para quando os pais chegassem,
aqueceu um prato de sopa, fez uma sandes e atirou-se para o sofá,
sentia que não tinha forças para mais. Estava a dar um bom filme
de acção com o actor Jean-Claude Van Damme, que era um dos
seus actores preferidos de sempre, ainda tentou prestar atenção
durante alguns minutos; mas num ápice cedeu ao cansaço e
adormeceu. Foi a mãe que o chamou para ir para a cama, já
bastante tarde, quando ela e o pai chegaram a casa do trabalho,

Em Lisboa, o tempo passava, a passos largos, sem trazer


novidades boas que Ana pudesse dar a Miguel. A directora da
escola continuava a chamar alunos ao seu gabinete para conversas
particulares; mas ainda não se sabia nada e Miguel era forçado a
ter que continuar suspenso até a situação se resolver, algo que se
arrastava cada vez mais e que estava a demorar demasiado tempo.
Ana desesperava a cada minuto que passava e as aulas custavam a
passar; desde o almoço do dia anterior que não tinha notícias de
Miguel e isso fazia aumentar o seu estado de preocupação. Aquela
distância temporária porque estavam obrigados a passar, estava a
custar-lhe imenso, pouca gente imaginaria a enorme falta que ele
lhe fazia e o profundo vazio que ela sentia pela sua ausência.
Parecia que parte de si havia hibernado; infelizmente, a Ana restava
apenas esperar que ele lhe ligasse ou lhe enviasse uma mensagem
escrita com notícias.

No dia seguinte, como só tinha aulas de manhã, Ana tinha


combinado almoçar com Mafalda e depois tirarem a tarde para
irem fazer umas compras até ao centro comercial, precisava de
aliviar a cabeça, toda a situação que envolvia Miguel havia-a
deixado bastante tensa e exausta.
— Estás bem, miúda? Pareces algo estranha! — Questionou-a
Mafalda, que não se mostrou indiferente perante o ar aluado de
Ana.
— Não te preocupes! Estou apenas um pouco cansada, o meu
horário tem sido preenchido com muitas aulas. Confesso que
estava mesmo a precisar destes almoços só contigo, para

227
relaxarmos, rirmos e falarmos de outras coisas. Há dias em que me
sinto esgotada, sabes? E hoje é mesmo um desses dias.
— Eu sei perfeitamente que toda esta situação do Miguel
também te está a custar bastante.
— Nem imaginas, o quanto me tem custado
— Posso perguntar-te uma coisa? Tu acreditas, realmente, nele?
Achas mesmo que ele não roubou nada?
— Como posso eu duvidar de uma pessoa que conheço,
praticamente desde a infância, e com a qual cresci e convivi toda a
minha vida? — Questionou-a ela de ar pensativo.
— Tens razão! Mas também tens que admitir que as pessoas
por vezes mudam…
— Sim… Mas eu conheço o Miguel há bastante tempo e como
mais ninguém, e sei que ele nunca roubaria nada. Ele não é esse
género de pessoa, é algo com o qual ele não se identifica e que não
tem nada a ver com a sua maneira de ser e estar perante a vida e os
que o rodeiam. Para além disso, jamais mudaria assim tão
radicalmente de personalidade e eu tenho a certeza absoluta que ele
não teria coragem de me mentir. Nas poucas conversas que
tivemos sobre o assunto, vi sempre plena sinceridade nos olhos
dele. Acho que se ele tivesse roubado as coisas não se mostrava tão
preocupado.
— Isso também é bem verdade!
— Por isso, não vejo motivos para não acreditar nele!
— Já vi que não vai haver quem te faça mudar de ideias…
— Até a situação ficar resolvida, não! Mas não te preocupes,
porque eu tenho a certeza que tudo vai acabar bem.
— Espero que sim! Sabes o que realmente me preocupa? Que
tu saias magoada disto tudo e que ele acabe por te desiludir.
— Agradeço imenso a tua preocupação; mas se há pessoa em
quem, realmente, confio, é mesmo no Miguel. Isto não passa, de
uma mera brincadeira de mau gosto ou de uma estúpida vingança
sem motivo. Vai por mim, vais ver que tenho razão.
— Tu lá sabes, miúda! Só peço para que tenhas cuidado…

228
— Vou ter, não te preocupes! E que tal se nos focássemos na
nossa tarde de compras, em vez de estarmos a pensar neste
assunto?
— É para já! Vamos a isso!

Acabaram o almoço Vegan e de seguida iniciaram a tarde de


compras. Percorreram os diversos andares do centro comercial,
entrando em grande parte das lojas: desde lojas de roupa, lojas de
calçado, lojas de decoração e até perfumarias, num verdadeiro
corrupio desenfreado. Entre o veste e despe, calça e descalça, iam
experimentando perfumes e maquilhagem, por entre sorrisos e
conversas. O mais importante, não era esbanjar dinheiro; mas sim
passar tempo e descontrair.
Ana adorava as tardes de miúdas na companhia de Mafalda,
divertiam-se imenso, mesmo em dias difíceis como aquele.
Gostavam daquela azáfama típica: os fortes empurrões no interior
das lojas, os ruídos dos sacos de papel e os barulhos ensurdecedores
das pessoas e das suas conversas. Por seu lado, Miguel já não
apreciava tanto aquele género de programas femininos; apesar de
por vezes fazer o esforço de a acompanhar. Já passava da hora do
lanche, quando se sentaram numa esplanada da zona de
restauração: que estava apinhada de gente àquela hora. Ana
aproveitou para ver o telemóvel, onde se deparou com uma
mensagem escrita. Não conseguiu deixar de sorrir por ter a certeza
absoluta que seria uma mensagem de Miguel. E era de facto…
Ele tinha passado grande parte do dia a ajudar a mãe com os
cozinhados, na cozinha da avó São; tantas e tantas memórias
aquela tarde e aquela fusão de cheiros e sabores lhe tinham trazido,
relacionadas com a sua infância e aquelas férias de Verão em que
tinha conhecido Ana. Sentiu uma emoção enorme e teve imensa
pena que Ana não pudesse estar ali, ao seu lado, a desfrutar e a
divertir-se com ele. Tinha sido tão bom poder colmatar saudades
daquelas rotinas típicas do campo: que ele tão bem conhecia; assim
como da casa onde havia passado tantos momentos marcantes,
felizes e aconchegantes. Aquele reencontro com os avós de Ana
tinha sido especial e reconfortante, eram duas pessoas que ele

229
prezava e gostava muito, devia-lhes a eles a vida estável e sem
grandes dificuldades que vivia naquele momento e o facto de ter
podido concretizar alguns dos seus maiores sonhos; por isso, sentia
um certo peso na alma e no coração por, de certa forma, estar a
desiludi-los, ao ver-se envolvido naquela situação do roubo.
Continuava preocupado com o lento desenrolar da mesma e as
parcas notícias; quanto mais tempo passasse e a situação
demorasse a resolver-se, mais tempo teria que permanecer ali. Por
um lado, até gostava de ali estar, gostava daquele ambiente, das
rotinas e claro das pessoas; mas, por outro lado, já sentia saudades
de Lisboa, do frenesim e agitação típicos, do stress da cidade, das
saídas com os amigos dos programas a dois que fazia com Ana.
Sentia falta de tudo isso e ansiava com grande intensidade que o
dia do regresso chegasse. Aproveitou a mensagem escrita para
enviar também a Ana beijinhos de todos.
Após a divertidíssima tarde de compras que tinha tido com
Mafalda, Ana regressou, no dia seguinte, à sua habitual rotina de
aulas. Por sorte, aquele era o dia mais folgado da semana; por isso,
sempre dava para relaxar um pouco; mal chegou à escola sentiu
uma profunda agitação no ar, mas não conseguiu perceber, de
imediato, as razões para tão intenso burburinho entre alunos.
Encaminhou-se para o pavilhão aonde iria ter aulas de manhã e
cruzou-se com a Mafalda que estava, à entrada do pavilhão, numa
amena cavaqueira com um grupo de colegas.
— Olá! Bom dia! — Cumprimentou-a Ana.
— Bom dia, miúda! Ainda bem que te encontro! — Disse-lhe
Mafalda.
— A que se deve esta agitação toda pela escola?
— Ainda não sabes?
— Não sei o quê?
— Ontem o Gonçalo: da turma do Miguel, foi chamado pela
directora e ele disse-lhe que depois do Miguel regressar ao ginásio,
a Sandra e a Susana se ausentaram logo de seguida. E houve mais
um ou dois alunos que confirmaram o mesmo.
— Estás a falar a sério?

230
— Sim! Elas vão ser as primeiras a ser ouvidas hoje. Na escola,
não se fala de outra coisa.
— Nem sei que dizer, agora apanhaste-me completamente
desprevenida e de surpresa. Não estava mesmo nada à espera desta
novidade, ainda que… Não acredite muito que elas fossem capazes
de fazer uma coisa destas ao Miguel; afinal de contas, são duas das
minhas melhores amigas. E sabem o quanto gosto dele, por isso,
jamais o prejudicariam; de certeza que alguém anda a tentar atirar
as culpas de toda esta situação, para cima de pessoas de quem eu
gosto, só não consigo perceber porquê.
— Não achas tudo isto muito estranho?
— Não posso esconder que fiquei algo apreensiva…
— E se pensares bem, a delegada de turma do Miguel, é amiga
delas.
— Ana mostrou-se pensativa — Eu sei…
— Quando soube de tudo, lembrei-me logo de ti; uma vez que,
vocês são muito amigas.
— Pois! No entanto, custa-me a crer que elas possam ter feito
uma coisa destas: saberem de tudo, verem-nos a sofrer este tempo
todo e não terem humildade e coragem de dizer rigorosamente
nada…
— Infelizmente, hoje em dia, nós não podemos confiar nas boas
intenções das pessoas. Na primeira oportunidade que têm
apunhalam-nos pelas costas, ouve o que te digo.
— Eu garanto-te que, se isto for mesmo verdade, nunca mais
lhes perdoo, nem lhes falo. E também não quero que elas
continuem a ser minhas amigas; isto assim não se pode considerar
amizade.
— Infelizmente, nós temos que duvidar de toda a gente; por
isso, tem muito cuidado. Distancia-te suavemente delas, não lhes
dês demasiada conversa e confiança e dá-lhes o benefício da
dúvida, para não saíres ainda mais magoada; é o conselho que te
dou.
— Obrigada! Vou seguir certamente os teus conselhos!

231
— Confesso que estou desejosa de ver o desfecho de tudo isto;
sinto que esta história poderá vir a sofrer uma reviravolta e ser
ainda mais surpreendente do que se imagina. Vai por mim…
— Achas mesmo?
— Sem dúvida!
— Resta-nos esperar para ver…
— Vemo-nos na hora do almoço?
— Claro que sim!
— Então até mais logo e boas aulas!

Ana foi para a aula de Português com pouca vontade e com


ainda menos concentração, aquele era um assunto que não lhe
querer sair do pensamento; para além disso, a conversa que
acabava de ter com Mafalda havia-a deixado inquieta e a pensar.
Poderia um verdadeiro amigo, fazer sofrer assim, de livre e
espontânea vontade, outro amigo?
Infelizmente, Ana não tinha respostas para aquela questão e isso
deixava-a preocupada e agitada. Estaria a ser traída por duas das
suas melhores amigas? Porquê? Porque se dariam a tanto trabalho?
O seu coração cada vez se tornava mais pequeno e acelerado,
tentou focar-se na aula e na matéria que estava a ser dada; mas era
difícil de conseguir. Sentia um forte aperto no peito e não
conseguia deixar de pensar que Miguel estaria a ser mesmo
acusado injustamente e que até tinha sido suspenso por uma coisa
que nunca tinha feito, era difícil aceitar e lidar com isso. Não era
justo, nem fazia sentido; principalmente que duas pessoas que ela
considerava serem as suas melhores amigas tivessem sido capazes
de criar uma situação, com o intuito de o prejudicarem,
culpabilizarem e para se vingarem dele. Custava-lhe muito a
acreditar que houvesse pessoas assim tão más e malformadas, que
sentissem tanto prazer em viver com o mal dos outros; mas,
infelizmente, já nada a surpreendia. A manhã continuou a ser
preenchida com aulas e a passar em passo lento; por breves
momentos Ana fazia por se sentir algo perdida e sem saber muito
bem em que acreditar.

232
Por terras alentejanas, Miguel tinha tirado parte da manhã para
fotografar. Tinha pedido à mãe se podia interceder por ele, junto do
pai, para que, naquele dia, ele pudesse ter uma pequena folga; pois
precisava de descansar e também gostava de ter algum tempo para
fazer algumas coisas de que gostava. Alfredo ainda começou a
resmungar, recusando-se a aceitar o pedido, porque Miguel estava
de castigo; no entanto, Mizé fez-lhe ver que Miguel tinha
aprendido a lição, passando por dois dias duros e intensos e que
independentemente de tudo, ele também merecia descansar.
Alfredo acabou por aceitar, ainda que bastante contrariado; Miguel
agradeceu a ajuda da mãe e prometeu tratar da pequena horta, nas
traseiras da casa, e também do almoço; enquanto os pais iam
trabalhar.
Como a manhã estava a começar e a temperatura estava amena,
ele pegou na máquina fotográfica e no caderno de desenho e
decidiu dar um passeio sem destino programado. Lembrava-se, de
na infância, gostar particularmente, dos passeios que dava sozinho,
traziam-lhe paz e tranquilidade; para além disso, ofereciam-lhe
sempre energias positivas para momentos difíceis como aquele e
ajudavam-no quando tinha problemas complicados para resolver.
Apreciava imenso aquele contacto directo, aberto e até silencioso
com a natureza, poder perder-se sem fim naquela profunda
imensidão e naquele infinito, sem tempo, sem espaço e sem ter
nada que fazer, nem nada em que pensar.
De máquina fotográfica em punho, foi vagueando lentamente:
por aqui e por ali, por entre as diversas paisagens em que o seu
olhar ia pousando, desfrutando do momento e do ambiente e
respirando a brisa amena que se fazia sentir. Pelo caminho cruzou-
se com a dona Henriqueta: uma senhora já com uma certa idade,
quase noventa anos. Uma idade que lhe pesava nas muitas rugas
intensas e profundas que lhe marcavam o rosto; assim como nos
braços e pernas: que há muito que tinham deixado de ser o que
eram, nos movimentos e passos lentos e frágeis e no olhar exausto
da vida. Lembrava-se perfeitamente de a ver vender leite porta a
porta quando era mais pequeno; infelizmente, há muito que tinha

233
deixado de o fazer, porque já não tinha a saúde de outros tempos,
de quando era mais nova e gerigota.
A dona Henriqueta ainda se recordava de, há uns anos, sair bem
cedo pela fresca, para correr o monte com as vacas e as ovelhas
para levá-las a pastar. Apanhava o trigo e o centeio e até pegava no
tractor e lavrava as terras, agora já estava um bocado enferrujada
dos ossos, já não conseguia dar dois passos sem se cansar. O
marido, vendedor ambulante: de artigos em segunda mão, de
profissão, tinha falecido com um problema desconhecido no
coração quando ela ainda era relativamente nova e desde essa
altura que ela vendia o leite das suas vacas, porta a porta, para
ganhar a vida. Cumprimentava sempre Miguel: o gaiato que
desenhava na terra, como ela lhe chamava, com um sorriso nos
lábios e mesmo sendo ele já crescido, continuava a oferecer-lhe
caramelos, tal como fazia quando ele era pequeno, que comprava
quando ia à vila mais próxima.
Cruzou-se também com o senhor padre Jacinto que trabalhava
na paróquia mais próxima há décadas; desde que o senhor padre
Gervásio havia falecido de males desconhecidos. Lembrava dele a
celebrar a missa de Domingo, quando era pequeno; aos Domingos,
as pessoas vestiam as melhores roupas e iam, em família, à missa.
Era raro os seus pais falhavam; deu por si a sorrir, nas entrelinhas
de mais um registo fotográfico. Se havia coisa que mais gostava e
que mais o satisfazia, quando permanecia naquele lugar tão
especial, era a quantidade de memórias suas passadas que ele
conseguia despoletar. Memórias referentes a pessoas, a convívios
alusivos a determinados aromas e cheiros, a conversas e
brincadeiras alusivas a determinados lugares. Sentia uma
felicidade inexplicável e indescritível quando todas essas pérolas
se juntavam à sua volta e preenchiam o seu pensamento. Por
momentos, Ana veio ao seu pensamento; apesar de adorar tirar
partido daqueles passeios tão solitários, quão reflexivos, também
gostava muito dos passeios que costumava dar com ela, da sua
companhia, da sua presença, das conversas e inconfidências que
trocavam, das gargalhadas que davam e das memórias e
recordações que partilhavam. Não via a hora de poder regressar a

234
casa para aquelas noites quentes e longas de palavras que,
costumavam ter praticamente todos os dias. Começavam por ser
curtas conversas, que sem aviso prévio, faziam por se prolongar
sem limite de tempo; ele achava que isso só acontecia quando duas
almas se encontravam em sintonia e eles conseguiam sempre
surpreender-se por se descobrirem, em sintonia, diversas vezes e
nas mais diversas situações.
Era surpreendente que duas pessoas fossem naturalmente tão
diferentes e ao mesmo tempo conseguirem entender-se tão bem;
assim se passava entre ele e Ana. Parecia que conseguiam ler-se
olhos nos olhos, como se houvesse telepatia mútua ou tão só
transmissão de pensamentos. Sorriu com intensidade e alguma
timidez: um sorriso tolo e comprometido, mas feliz, descontraído
e cheio de saudade; que demonstrava as densas marcas que uma
amizade verdadeira e genuína era capaz de deixar.
Entretanto, a hora de almoço já se aproximava e estava na altura
de Miguel voltar para casa; pois ainda tinha algumas tarefas para
fazer. Aquela manhã tinha sido bastante inspiradora e
principalmente produtiva, rica em excelentes registos fotográficos
que era algo que o satisfazia e realizava; poder tirar partido de uma
determinada situação para fazer aquilo que mais gostava. Sentia-se
mais calmo, menos stressado e de energias renovadas, não havia
nada melhor que a vasta solidão da mãe-natureza para colocar tudo
nos seus devidos lugares. Ainda o esperava uma longa, fantástica e
descontraída tarde a desenhar, tinha planeado no dia anterior
regressar a mais um lugar especial. Ele queria muito voltar a sentar-
se debaixo da oliveira centenária que se encontrava plantada no
meio da imensidão dos campos de trigo, para poder desfrutar do
chilrear das aves e do balançar das espigas de trigo e milho, sentir
a doçura de laranjas acabadas de colher, o aroma a funcho e a
queijo acabado de fazer e também da terra húmida, e tantos outros
cheiros tão característicos do campo e da sua infância.
Ia ser óptimo poder regressar àquele seu refúgio secreto e ao
lado mais solitário da sua infância. Tinha sido ali que havia passado
tempos infinitos a desenhar: quer na terra, quer nas folhas em
branco do seu caderno; apesar da solidão que aquele lugar

235
transmitia, a ele trazia-lhe memórias boas da infância,
principalmente quando o partilhou com Ana. Tinham trocado
muitas gargalhadas, à sombra daquela árvore, por vezes também
sabia bem dividir um pequeno pedaço da nossa própria solidão
com alguém, Miguel gostava de desfrutar dos seus momentos de
solidão na companhia da sua bestfriend.

Em Lisboa, Ana dirigia-se para a cantina, para almoçar com


Mafalda, depois de uma manhã infernal de aulas. Sentia o coração
acelerado e incerto, a ansiedade acumulava-se a um ritmo
galopante para saber se havia novidades, acerca da situação em que
Miguel parecia estar envolvido. Só esperava que, Sandra e Susana
não tivessem mesmo nada a ver a situação do roubo. Mafalda já
estava na cantina à sua espera…
— Desculpa a demora! Estava uma verdadeira confusão à saída
do pavilhão. Espero não te ter feito esperar muito.
— Não te preocupes! Estou aqui há pouco tempo!
— Ainda bem! Vamos buscar o almoço?
— Vamos! Estava desejosa que chegasses, porque tenho muita
coisa para te contar.
— Novidades boas ou más? — Perguntou-lhe Ana à medida
que preparava o seu tabuleiro.
— Umas boas outras más!
— Ui! A sério?! Tens que me contar tudo, já!
— Confesso que tenho algum receio da forma como vais
reagir… — Disse-lhe ela enquanto procuravam uma mesa mais
recatada.
— Porquê?
— Porque não vais gostar muito de saber algumas coisas; por
isso prepara-te…
Imediatamente, Ana pensou em Miguel e o seu coração quase
colapsou com medo e receio que se tivesse verificado que ele tinha
realmente roubado todas aquelas coisas.
— Estás a assustar-me e a deixar-me deveras preocupada.
— Calma! Não é nada do que estás a pensar… A Sandra e a
Susana já estiveram no gabinete da directora.

236
— E então? — Perguntou-lhe ela ansiosa, mas pensativa.
— Confessaram tudo!
Ana mostrou-se incrédula e chocada; no entanto fez por respirar
de alívio; algo que não passou despercebido a Mafalda que,
percebeu que, apesar de Ana ter acreditado sempre muito em
Miguel, também tinha sentido um ligeiro sentimento de dúvida.
Daí a sua reação.
— Inacreditável! Como é que foram capazes de fazer-me isto?
Juro que nunca pensei que tal coisa fosse acontecer…
— As pessoas estão sempre a surpreender-nos! Tens que
afastar-te delas o mais depressa possível e que lhes mostrar que elas
não podem fazer o que querem.
— Pelo final da tarde, eu já vou tratar disso, não quero amigas
assim; aliás nem podem considerar-se amigas.
— Elas confirmaram à directora que se tinham ausentado, após
o Miguel regressar da casa de banho, e disseram-lhe também que
tinham roubado todas aquelas coisas aos colegas e colocado tudo
na mochila dele; porque tu estavas sempre a trocá-las por ele. Que
pretendiam pregar-lhe um susto para ver se ele se afastava de ti.
— O quê?! Nem sei que dizer… Estou embasbacada!
— Também eu! Fiquei sem palavras quando soube…
— Como é que eu me pude deixar enganar assim desta maneira
por elas, nem consigo acreditar.
— Infelizmente, hoje em dia, as pessoas têm dupla
personalidade; há sempre um lado que nunca se conhece e que
surge quando menos se espera.
— A quem o dizes…
— Nem sempre as pessoas mostram a sua verdadeira essência.
— Sem dúvida! Como é que conseguiram ter coragem? Não
consigo aceitar isso…
— Para fazer mal, toda a gente ganha sempre coragem!
— Deixarem o Miguel ser acusado injustamente e suspenso por
uma coisa que ele nunca fez; isso não se faz a ninguém…
— É uma atitude e um comportamento lamentáveis; mas o
objectivo delas era mesmo esse: vingarem-se dele e fazerem-no
sofrer.

237
— Meu Deus! Como é que é possível, não consigo deixar de
me sentir incrédula… Nem imaginas o quanto me custa acreditar e
meter tudo isto na cabeça.
— Pudera… Vindo de duas pessoas que consideravas serem
tuas amigas. Acho que se fosse comigo reagiria exactamente como
tu! É uma traição e tanto…
— Espero bem que a directora lhes dê um castigo exemplar e
as suspenda durante muito tempo: o tempo suficiente para
reflectirem no que fizeram e aprenderem.
— Não tenhas dúvidas disso! Se há pessoa que não compactua
com este género de coisas, nem deixa estas situações passarem
impunes, é a professora Manuela. Ela não gosta nada de injustiças.
— Ainda bem que, ainda há gente justa neste mundo.
— Acho que o facto de elas serem obrigadas a confessar tudo
aquilo que fizeram já foi um grande castigo e uma enorme lição.
— Concordo! E conseguir provar-se a inocência do Miguel foi
a maior derrota da existência delas.
— Nem tenhas a mínima dúvida! Imagino, a reprimenda que
devem ter levado e a vergonha que devem ter passado. Espero que
ao menos tenham aprendido. — Disse-lhe Mafalda sorrindo.
— Tenho que ligar ao Miguel para lhe contar tudo, ele vai ficar
tão feliz com as notícias; finalmente, a verdade repôs-se, como ele
tanto queria. Eu sabia e tinha a certeza que a verdade iria acabar
por vir ao de cima, mais cedo ou mais tarde e que ele nunca teria
feito uma coisa assim. Conheço-o bem demais…
— Eu sei! Já que falas nisso: a directora de turma dele, que é
minha professora de Inglês, pediu-me para te dizer, ela sabe que
nós somos grandes amigas, já nos viu juntas diversas vezes, que o
Miguel tem que falar com ela e que ir ao gabinete da directora
amanhã de manhã.
— Amanhã de manhã?! Isso vai ser complicado, para não dizer
quase impossível; porque não sei se ele tem autocarro que lhe
permita chegar cá a tempo.
— E hoje não tem?

238
— Penso que não! Só há um autocarro de manhã… Mas não te
preocupes, num dos intervalos da tarde eu vou tentar falar com a
directora de turma dele.
— Está bem! Fazes bem!
— Nem imaginas, como eu me sinto feliz e aliviada, não me
poderias ter dado melhores notícias. Tanto eu como o Miguel
estávamos mesmo a precisar, há bastante tempo, de um pouco de
paz e descanso. Mal posso esperar que ele regresse e que tanto a
directora, como os meus pais façam por lhe pedir desculpa.

Mafalda conseguia ver no olhar da amiga, um misto de


emoções. Por um lado, sentia-a mais calma e aliviada perante
aquele desfecho; principalmente por se ter conseguido provar que
Miguel não tinha, de facto, roubado nada. Mas por outro lado, sabia
que, lá no fundo, ela estava desfeita, desiludida e arrasada pela
descoberta do envolvimento das amigas na situação. Podia não o
demonstrar, mas conhecia-a muito bem para perceber, o que ela
sentia.
Terminaram de almoçar e depois seguiram para as aulas. Para
Ana, o intervalo grande da tarde parecia querer demorar imenso a
chegar; quando as dezasseis horas, finalmente, chegaram, a
campainha tocou e ela saiu disparada, em direcção ao pátio. Sandra
e Susana estavam sentadas, descontraidamente, num banco, entre
conversas e sorrisos. Perante aquele cenário, apoderaram-se de
Ana, uma fúria e uma raiva intensas; no entanto, fez por se tentar
acalmar. Mais importante que a desilusão e o desgosto que a
consumiam, era trazer Miguel de volta; não valia a pena preocupar-
se com duas pessoas que na realidade não mereciam, nem se
preocupavam minimamente com ela.
Dirigiu-se até um lugar mais recatado e pegou no telemóvel.
Miguel estava quase há duas horas sentado debaixo da oliveira
centenária a desenhar, fazia-se acompanhar pela música: “Jardins
Proibidos” de Paulo Gonzo, que era outro dos artistas nacionais
que ele tanto apreciava. Entretanto sentiu-se, ligeiramente, cansado
e decidiu parar um pouco para relaxar, encostou-se ao envelhecido
tronco da árvore, respirou fundo, fechou os olhos e deixou-se levar

239
pelo ambiente circundante: o calor do sol, os sons e os sabores e
aromas. Gostava, particularmente, daquela forma simples de
descomplicar os problemas e momentos difíceis, abstraindo-se por
completo do mundo real. Fazia aquilo com bastante frequência e
aquele regresso ao campo, era o mote perfeito para repeti-lo; e
pelas palavras que iam surgindo na música, quantas e quantas
vezes a tinha ouvido na companhia de Ana, era uma música que o
fazia pensar imenso nela. Quando menos esperava, foi despertado
do seu sono acordado pela vibração do telemóvel que se
encontrava no bolso dos calções, quando viu o nome: Princesa no
visor do telefone foi inevitável não sorrir. Já tinha saudades de
ouvir a voz dela.
— Olá, Anocas! Nem de propósito, estava mesmo a pensar em
ti!
— Espero bem que estejas a pensar apenas em coisas boas a
meu respeito!
— Já sabes que sim! Sabes onde estou?
— Não! Mas quero saber…
— Estou sentado no meio dos campos de trigo, debaixo da
oliveira, a desenhar, acompanhado de uma música do Paulo Gonzo
que já ouvi muito contigo. Penso sempre em ti, quando a oiço.
— Oh! Já sei qual é… Não me importava nada de estar agora
aí, também a ouvi-la contigo. Tenho saudades desse nosso refúgio.
— Eu queria mesmo era já estar aí; mas parece que esse
momento nunca mais chega. Bom, desabafos à parte; afinal de
contas a que se deve este teu inesperado, mas tão delicioso
telefonema? Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
— Está tudo mais que óptimo! Não te preocupes! Precisava só
de falar urgentemente contigo.
— Afinal de contas, passa-se alguma coisa; já que precisas de
falar comigo; mas tu não me queres contar nada.
— Nada disso e já vais perceber tudo! Primeiro que tudo, tenho
uma proposta para ti…
— Ui, ui! O que será que vem aí?
— O que me ofereces em troca das novidades que tenho para te
dar?

240
— Depende… São boas ou más?
— São excelentes!
A ansiedade e a curiosidade de Miguel fizeram por aumentar.
— Sendo assim… Ofereço-te qualquer coisa, aquilo que tu
quiseres.
— Mesmo?
— Sim! Sabes que falo a verdade e que cumpro sempre o que
prometo!
— Eu sei! Então… Podes ir começando a fazer as malas!
— Porquê?
— Tens que estar aqui na escola, amanhã de manhã.
— Por favor, conta-me lá o que se passa, princesa. Estou a ficar
mesmo preocupado.
— Pronto, não te vou fazer sofrer mais… O assunto do roubo
já está resolvido e a tua vinda à escola é apenas para receberes o
respectivo pedido de desculpas da directora.
— Não acredito! Estás a falar a sério? Provou-se que eu não
roubei nada?
— Claro! Mas tinhas dúvidas disso? Nem poderia ser de outra
maneira…
— Acho que não posso deixar de concordar… Finalmente foi
feita justiça!
— Já não era sem tempo, só tenho pena que tenha demorado
tanto. Nem imaginas como estou tão feliz por ti.
— Obrigado, princesa! Eu sei que sim!
— Descobriu-se que foram a Susana e a Sandra que roubaram
todas aquelas coisas e que as colocaram na tua mochila, para te
culpabilizarem, te fazerem sofrer e se vingarem de ti; por eu ter
optado almoçar contigo no outro dia. Mas pior que isso foi elas
saberem de tudo, fazerem-nos sofrer aos dois e não terem coragem
para me contar nada. Não consigo aceitar isso e só me apetece fazer
um tremendo disparate.
— Nem sei que dizer! Confesso que, de facto, quando regressei
ao ginásio, naquele dia, durante a aula de Educação Física, reparei
na ausência delas e na sua demora; mas não dei muita importância.
Não fazia a mínima ideia que estivessem a tentar tramar-me.

241
Sinceramente, eu esperava tudo, menos uma coisa assim. Nunca
lhes fiz mal nenhum para me fazerem passar por algo deste género.
— Também não estava à espera, fui apanhada completamente
de surpresa e fiquei mesmo desiludida e magoada; eu considerava-
as duas das minhas melhores amigas, não imaginava que elas
fossem capazes de me atraiçoar assim desta maneira, logo na
primeira oportunidade que tiveram: magoando e fazendo sofrer
uma pessoa de quem gosto muito. Isto para mim não é amizade,
nem é ser-se amigo. Ainda me custa a acreditar que seja possível
haver pessoas assim: frias, más, vingativas e insensíveis, capazes
de encontrarem felicidade no mal dos outros. Que não olham a
meios para atingirem os seus fins; pessoas falsas, egoístas e
calculistas. Estou furiosa comigo por me ter deixado levar durante
este tempo todo e não ter-me apercebido da sua maneira de ser
mais cedo. Nem imaginas o quanto lamento que tivessem logo que
te fazer sofrer a ti.
— Vá lá, não te chateies mais com isso! Afinal de contas, não
foi nada de mais, já passei por coisas bem piores. E, no fundo,
estamos sempre a aprender com estas situações. — Disse ele
sorrindo.
— Isso é bem verdade!
— Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, elas iriam tentar
vingar-se de mim e fazer alguma coisa contra mim. Isto foi tudo
premeditado e estava pensado e planeado há muito tempo; para
além disso, estava escrito nos olhos delas: na raiva e no ódio que
mostraram sentir por mim, naquele dia. Por isso, de certa forma a
atitude delas não me admira nem me surpreende muito.
— Não me consigo perdoar pelo facto de não ter estado mais
atenta às reacções delas, podia ter previsto e evitado toda esta
situação; para além disso devia ter-te dado ouvidos naquela altura,
quando me falaste sobre a forma negativa como elas tinham
reagido.
— Não gosto nada de te sentir assim, nem quero que te
penalizes por causa desta situação; afinal de contas tu não tens
culpa. Pode ser?
— É um bocadinho difícil; mas vou tentar e fazer um esforço.

242
— Agora, não quero que penses mais nisto, o melhor que tens
a fazer é esquecê-las e não lhes dar importância, que é o que elas
merecem!
— Tens toda a razão! O mais importante foi, nós conseguirmos
provar que tu nunca tinhas roubado nada; apesar de eu ter a certeza
absoluta disso, desde o início.
— Há que seguir em frente, para lhes mostrar que façam elas o
que fizerem; jamais conseguirão deitar-nos abaixo.
— Mas isto não vai ficar assim; eu e elas ainda vamos ter uma
conversa muito séria. Era para ser neste intervalo, mas achei que
que era muito mais importante ligar-te, do que perder tempo
precioso com elas; no entanto de amanhã não passa.
— Fazes muito bem, princesa! Pessoas assim, só nos magoam
e fazem mal, tenho a certeza que vais arranjar amigas bem
melhores que elas.
— Claro que sim!
— Só espero que a partir de agora as pessoas mudem de atitude
relativamente a mim.
— Mas é claro que vão mudar! Não tenhas dúvidas disso…
— Espero mesmo que sim…
— Agora é que elas vão ver, realmente, como estas brincadeiras
doem, vão sentir bem na pele aquilo que tu passaste. Vou adorar
ver.
— Vou ser-te muito sincero, não gosto nada de dizer estas
coisas, até porque não faz muito parte da minha maneira de ser,
estar e pensar, nem quero descer ao nível baixo delas; mas a
verdade é que elas, bem o merecem por tudo o que me fizeram
passar.
— E merecem-no mesmo, não tenhas medo de o dizer, porque
é mesmo verdade. Vai fazer-lhes bem, para aprenderem a lição e
pensarem duas vezes quando decidirem fazer brincadeiras parvas
como esta. Aposto que não vão querer repetir a gracinha. Resta-me
pedir-te desculpas por tudo aquilo que passaste e sofreste por causa
de duas pessoas que eram minhas amigas. Não merecias que te
fizessem isto, por causa de uma escolha que foi minha; não é justo,
nem faz sentido. Isto podia ter tido consequências graves para ti,

243
para além das marcas psicológicas que podia ter deixado. Não
estou disposta a continuar com esta amizade, não quero amigas
assim, era o que mais me faltava.
— Por favor, não tens nada que pedir desculpa, ainda há pouco
te disse que a culpa não é tua, não podias adivinhar; por isso não te
censures nem martirizes. As pessoas mais próximas, muitas vezes
são as primeiras a apunhalarem-nos pelas costas, quando menos
esperamos; para além disso, se toda esta situação teve este desfecho
tão rápido e positivo, a ti o devo. Foste a única pessoa que nunca
desistiu de mim e que mais lutou para que tudo se resolvesse e se
provasse que eu estava inocente. Confiaste e acreditaste sempre em
mim e nunca vacilaste um só momento que fosse; por isso, não
tenho motivos nenhuns para te culpar do que quer que seja.
— Mesmo assim, não deixo de me sentir triste, envergonhada e
algo constrangida.
— Esquece! Além de mais, ouviste-me, tentaste acalmar-me,
fizeste tudo para me distrair e mostraste-me mais uma vez o lado
positivo das coisas. Isso também foi fundamental para que tudo
corresse tão bem; só posso agradecer-te, do fundo coração, por
tudo o que fizeste por mim, acredita que foi muito importante e
claro teve imenso significado e valor.
— Não tens nada que agradecer, Miguelinho! Faria tudo de
novo e sem pensar duas vezes!
— Miguel sorriu comprometido — Agora, só tenho mais um
pequeno problema para resolver: não sei como é que vou estar aí,
amanhã, a tempo, já não tenho transporte a esta hora.
— Não te preocupes com isso! Eu falei com a tua directora de
turma, expliquei-lhe tudo e tanto ela como a directora da escola
disseram que podes vir até à hora de almoço.
— Tu és maravilhosa! Nem sei que dizer, não tenho palavras,
consegues pensar sempre em tudo.
— E isso acontece porque apenas quero o melhor para ti, que tu
não tenhas mais problemas nem surpresas desagradáveis e que
possas encontrar um pouco de paz e sossego.
— Nunca vou conhecer uma pessoa tão incrível como tu! Na
falta de mais e melhores palavras, resta-me dizer-te que te adoro

244
daqui até à lua. Quem me dera que ainda conseguisse arranjar um
autocarro para poder estar ainda hoje aí, quero muito poder correr
para ti e esmagar-te num abraço, daqueles só nossos; mas,
infelizmente, eu vou ser obrigado a ter que esperar por amanhã.
— Desculpa por te ter avisado tão em cima da hora; mas só
soube de tudo na hora do almoço, depois tive aulas e só agora pude
ligar-te.
— Não faz mal! Mesmo que me tivesses avisado na hora do
almoço, não poderia ir na mesma; no entanto, apesar da ansiedade
que sinto pelo tão aguardado regresso, sei que a espera vai valer
imenso a pena e também já sei que mal vou dormir com a euforia
e os nervos.
— Ana riu-se — Que exagero… Não é preciso tanto!
— Acredita que é! Esta curta distância temporária, entre nós,
pareceu-me semanas. E custou-me amargamente…
— Eu sei que sim! Mas amanhã essa distância já vai deixar de
existir; para além disso, eu vou lá estar à tua espera, no terminal dos
autocarros para o tão aguardado abraço.
— Mas o autocarro pode atrasar-se por qualquer motivo e eu
não quero que faltes à primeira aula por minha causa. Encontramo-
nos no intervalo seguinte, eu espero por ti à entrada do pavilhão.
— Disse-lhe ele preocupado.
— Nem pensar! Achas mesmo que eu consigo aguentar e
concentrar-me nas aulas, sabendo que estás à minha espera? Para
além disso, nunca se devem fazer esperar os abraços dos melhores
amigos.
— Lá fiquei eu novamente sem argumentos… E também já
percebi que não te vou conseguir dissuadir!
— Pois é! Continuo a ser uma teimosa por excelência…
— Podes crer!
— Vou ter que desligar, Miguelinho! Vou ter aula daqui a uns
minutos.
— Vai lá, Anocas! Não te atrases… Mais uma vez, obrigado
por tudo. Nem imaginas a felicidade e alívio que sinto neste
momento.
— Acredito e imagino!

245
— Vou já contar as novidades aos meus pais; finalmente, eu
vou provar-lhes que tive sempre razão, desde o início.
— Eu também vou contar as boas notícias aos meus pais,
quando chegar a casa. Vou conseguir mostrar à minha mãe que,
como sempre lhe havia dito, ela estava completamente errada a teu
respeito. Nem vai saber o que dizer…
— Vê lá, não arranjes problemas em casa por minha causa.
— Não te preocupes! Vou ter uma conversa calma e
descontraída com eles.
— Assim fico mais descansado! Sabes, acabo por chegar à
conclusão que os adultos também falham e erram.
— Sem dúvida! E que deviam confiar mais naquilo que os
filhos lhes dizem…
— Miguel deu uma valente gargalhada — Só tu! Mais logo, eu
ligo para falar com todos!
— Está bem! Então até logo!
— Até logo, Anocas! Boas aulinhas!

Ana regressou às aulas de coração mais sossegado e alma mais


leve; enquanto Miguel de ar sorridente e calmo se dirigiu para a
quinta para uma curta conversa com os pais, principalmente com o
pai. Estava desejoso por, finalmente, poder mostrar-lhe que tinha
sido sempre inocente desde o início e que como ele lhes havia dito,
eles jamais haviam tido motivos para não confiarem e para
duvidarem da sua palavra. Alfredo tinha tirado a tarde para
jardinar: as diversas árvores de fruto e principalmente as roseiras
da dona Conceição estavam a precisar de ser podadas, a avó da Ana
prezava muito as suas belas rosas vermelhas; por isso, o pai de
Miguel fazia por tratar sempre muitíssimo bem daquelas roseiras
tão especiais e carregadas de sentimentalismo.
Miguel foi ao encontro do pai e explicou-lhe, a medo e com
algum receio que Ana lhe havia ligado e contado que duas amigas
dela haviam confessado à directora da escola que tinham sido elas
a roubar as coisas aos colegas e a colocá-las na mochila dele. Só
para o verem sofrer e se vingarem dele, por Ana ter escolhido
almoçar com ele em vez de com elas, algumas semanas atrás.

246
Alfredo continuou o seu trabalho de jardinagem, respondendo:
ainda bem que está tudo esclarecido, de ar constrangido, seco e
frio. Sem o olhar nos olhos, nem lhe dar uma justificação ou um
simples pedido de desculpas pela forma como tinha reagido.
Miguel sabia bem que o pai tinha ficado a remoer no seu erro, no
entanto, não deixou de se sentir um pouco triste e desiludido; pois,
por um lado estava à espera que ele reagisse de forma diferente;
mas por outro lado, aquela reacção não o surpreendia, porque o pai
era mesmo assim.
Sempre fora um homem orgulhoso, que não gostava de se
manifestar muito, quando se apercebia que havia errado e que não
tinha razão, perante uma determinada situação e era muito difícil
fazer com que ele desse o braço a torcer; no entanto, ele sentia nele
alguma angústia e saltava à vista o seu ar inconformado e
comprometido por não ter acreditado no filho e ter sido tão severo
e tão impulsivo. Justificava-se a si próprio com o conflito de
gerações. Sem mais palavras que pudessem trocar; Miguel
despediu-se do pai, explicando-lhe que ainda queria ir contar tudo
à mãe, perguntando-lhe, de seguida, se ela se encontrava pela
cozinha. Ele acenou afirmativamente, quando Miguel se preparava
para virar costas para ir à cozinha da avó de Ana, o pai levantou-
se, sacudiu a terra das luvas, tirou-as e pediu-lhe que esperasse.
Olhos nos olhos, ele disse-lhe as palavras que Miguel mais queria
ouvir: Desculpa-me, meu filho. Sei que cometi um grande erro.
Perdoa-me pela forma como reagi perante a situação, estou
mesmo triste e envergonhado.
Miguel emocionado perante a atitude do pai e de lágrimas nos
olhos abraçou-o. Juntos, aproveitaram aquele pedaço de tempo
para conversarem e jardinarem um pouco. Ele sabia que o pai não
era uma pessoa de muitas conversas, era um homem reservado e
introspectivo; mas, sabiam sempre bem as partilhas masculinas
que tinham um com o outro. Poucos minutos depois, ele despediu-
se, em definitivo, do pai e foi ao encontro da mãe que andava a
aspirar na zona turística da quinta. Foi recebido de braços abertos
e com todo o amor que apenas uma mãe sabe dar.

247
Mizé fez uma pequena pausa na tarefa que estava a desenvolver
e convidou Miguel para ir com ela até à cozinha para tomarem um
chá; enquanto conversavam. Ele aceitou entusiasticamente o
convite, sentaram-se então à mesa e ele contou-lhe tudo, de
felicidade e satisfação estampadas no rosto. A mãe não se mostrou
muito surpreendida com as notícias; pois, sempre tinha acreditado
que ele era inocente. Conhecia muito bem o filho que tinha e sabia
que ele, nunca faria algo semelhante, aquilo só tinha vindo
confirmar o que ela já sabia; no entanto, não deixava de se sentir-
triste e pensativa, por haver pessoas com tanta inveja e tão mau
carácter e falta de educação.
Não passou despercebida a Miguel, a singela desconfiança que
a mãe parecia sentir naquele momento relativamente a Ana, por
terem sido amigas dela a fazerem com que ele passasse por toda
aquela situação tão humilhante e embaraçosa. E ele não perdeu
tempo a defender Ana e a mostrar à mãe que ela não tinha culpa de
nada. Explicando-lhe que, Ana tinha acreditado e confiado sempre
nele e que o tinha apoiado incondicionalmente e ajudado imenso a
resolver toda a situação; afinal de contas, nunca sabemos quando
as pessoas decidem mostrar o seu lado mais negro. Mizé parou para
reflectir naquelas palavras do filho e depressa percebeu que ele
tinha razão. Tinha que ligar a Ana para lhe agradecer por tudo o
que tinha feito por ele.

Em Lisboa, Ana que não continha a euforia e a ansiedade para


regressar a casa e contar todas as novidades aos pais. Tinha
combinado ligar a Mafalda, mais à noite, para lhe contar como tudo
tinha corrido. Chegou a casa, perto da hora do jantar, o ambiente
estava calmo e relaxado, por isso, quando se reuniram à mesa, ela
decidiu ter uma conversa séria; mas calma e tranquila com os pais.
Olhou para a mãe muito sorridente e contou de seguida tudo acerca
da confissão que as amigas tinham feito à directora da escola.
Pedro mostrou um sorriso satisfeito, mas incrédulo perante a
atitude e comportamento de Sandra e Susana, que ele pensava
conhecer relativamente bem; de facto, as aparências podiam
mesmo iludir-nos e acabou por manifestar-se pouco, pois

248
acreditava em Miguel desde o início; por isso a confirmação de que
ele não tinha roubado mesmo nada, acabou por não o surpreender.
Já Joana engoliu em seco, de semblante carregado,
envergonhado e algo comprometido; naquele preciso e exacto
momento não soube dizer nada, não sabia o que havia de dizer nem
como se desculpar. Sabia que devia ter ouvido e acreditado naquilo
que Ana lhe havia dito, que lhe devia ter dado a razão e acreditar
logo em Miguel. Não o fez e isso estava a pesar-lhe na consciência.
Ana vendo o ar introspectivo da mãe, disse-lhe para não se
preocupar, porque Miguel ainda iria ligar e ela iria ter oportunidade
de se redimir. Joana mostrou um leve sorriso amarelo e pediu-lhe
para depois ela lhe passar a chamada para o escritório.
O resto do jantar decorreu com normalidade, ainda que, o
assunto do roubo tenha sido tema da grande maioria das conversas,
até João parecia incrédulo com aquela inesperada atitude; porque
estava habituado a que Sandra e Susana fossem presença assídua
em casa. Eram as melhores amigas de Ana. Após o jantar, Ana
ajudou a mãe a levantar a mesa e a arrumar a cozinha e depois subiu
para o quarto para pôr o estudo em dia; enquanto Miguel não
ligava. Faltavam poucos minutos para as dez da noite quando
sentiu o telemóvel a vibrar, em cima da secretária, largou os
cadernos e os apontamentos e saltou da cama a alta velocidade.
— Boa noite, Miguelinho! Já estava a ficar triste, pensei que já
não ias ligar…
— Ui, ui! Isso são tudo saudades? — Brincou ele, como era
hábito fazer.
— Não sei porque é que te dás ao trabalho de perguntar, já sabes
que sim!
— Miguel riu-se — Estou no gozo, princesa! Desculpa ter
demorado, mas estava tão focado a fazer a mala que nem dei pelas
horas.
— Não faz mal! Já tens tudo pronto?
— Acho que sim! Estou agora mesmo a fechar a mala!
— Mal posso esperar pelo teu regresso!
— Faço das tuas, as minhas palavras. Estou mesmo ansioso por
voltar e claro por te ver e abraçar até ficares sem fôlego.

249
— Meu Deus… Estou perdida!
— Que tens feito, desde que falamos à tarde?
— Nada de muito especial: acabei as aulas, vim para casa,
jantamos e enquanto esperava que ligasses aproveitei para estudar
um bocadinho.
— Como correu a conversa com os teus pais? Espero que tenha
corrido bem…
— Fica descansado que correu dentro da normalidade. O meu
pai não ficou muito surpreendido com o desfecho da situação; já
que, também acreditava e confiava em ti. A minha mãe ficou
bastante envergonhada quando soube do desfecho, penso que é
normal depois da reacção que teve. Até me pediu para lhe passar a
chamada quando tu ligasses.
— A sério?! Coitada, deve estar a sentir-se mesmo mal…
— Nem imaginas! Por isso é que se quer redimir!
— Não sejas má! Afinal de contas, são coisas que acontecem,
errar é humano e todos temos o direito de duvidar,
independentemente das situações. Não vou negar que, essa mesma
dúvida magoe; mas temos que aprender a lidar com essa incerteza.
— É impressionante! És mesmo pacífico e tens mesmo bom
coração!
— Já sabes como sou… Prefiro evitar os conflitos do que criá-
los!
— A conversa com os teus pais como correu?
— Correu bem! A minha mãe reagiu muito bem. O meu pai,
quando lhe contei tudo, mostrou alguma indiferença e ficou um
pouco calado. Não me conseguiu encarar, olhos nos olhos e deu-
me uma resposta algo fria, distante e desprovida de sentimento.
— A sério?! Nem sei que dizer…
— Não me surpreendeu muito, sabes? Eu percebi logo que ele
se sentia comprometido e envergonhado por causa da reacção que
tinha tido para comigo. O meu pai é assim, é orgulhoso e não gosta
nada de dar parte fraca e de mostrar aos outros que falhou, prefere
ficar a remoer para dentro, do que dar o braço a torcer; no entanto,
depois quando já estava a preparar-me para ir ter com a minha mãe,

250
ele conseguiu deixar o orgulho dele de lado e pediu-me desculpa.
Trocamos um abraço e tudo.
— Que bom! Fico tão contente por ti!
— Nem imaginas o conforto que senti e como me soube mesmo
bem. Abraço de pai é diferente, mas também tem o seu lado
especial; apesar do meu pai não ser muito de demonstrar carinho e
afecto. À noite, após o jantar, enquanto tomávamos café, só os dois,
tivemos uma conversa franca, daquelas conversas de homem para
homem. Acabei por chegar à conclusão que não posso culpá-lo,
nem censurá-lo pela sua atitude e pelo castigo que me deu. São
fruto da educação que teve e da forma como ele aprendeu a educar.
É verdade que é uma forma de educar um pouco dura e severa; no
entanto, já estou habituado a ela desde pequeno. Custou-me um
pouco ter que aceitar aquele castigo; mas teve que ser; confesso-te
que nem me importei nada de ajudar os meus pais nos seus
trabalhos, sempre gostei de o fazer.
— É tão inspiradora a tua forma de encarar e ver a vida e os que
estão à tua volta. Sinto-me uma verdadeira sortuda e uma
privilegiada por te ter conhecido durante aquelas férias de Verão,
na quinta. Ainda bem que nos cruzamos e que tivemos
oportunidade de nos conhecer. Tenho aprendido muito contigo,
nestes anos, principalmente a aproveitar mais a vida e a dar mais
valor às pequenas coisas.
— Estou sem palavras; porque eu pensava que não tinha nada
de especial para ensinar aos outros.
— Mas tens… e muito! Acho que as pessoas mais simples e
humildes, aquelas que conseguem conquistar pequenas, grandes
coisas, as que mais lutam por aquilo que querem e em que
acreditam, são aquelas que mais têm para ensinar aos outros. E tu
és um exemplo disso, lutaste sempre imenso por uma mudança na
tua vida, por mais impossível que isso pudesse ser e parecer,
enfrentaste com garra e determinação cada obstáculo e cada
dificuldade, nunca desististe dos teus sonhos e conseguiste
conquistar imensas coisas e vencer na vida. Para além disso, como
viveste sempre com pouco e sem muitos luxos, aprendeste a dar
mais valor às pequenas, grandes coisas e à própria vida,

251
aproveitando-a e desfrutando dela e de cada momento ao máximo.
Isso é muito inspirador; aliás a tua própria história de vida é
inspiradora, pelo menos para mim… Foi uma das muitas coisas
importantes que aprendi contigo.
— Meu Deus! Sinto-me mesmo muito lisonjeado com as tuas
palavras e por saber que te consegui ensinar tanto. E sinto-me ainda
mais honrado por saber que as minhas singelas experiências de
vida foram tão úteis para alguém.
— Se parares para pensar, vais perceber que não me inspiraste
só a mim…
— Não?! Então inspirei mais quem? — Questionou-a ele
estupefacto.
— Inspiraste todos os meninos com quem fazemos
voluntariado no hospital. Eles adoram-te e veem-te como um
verdadeiro exemplo a seguir.
— É verdade! É uma felicidade enorme poder enriquecer a vida
de alguém com coisas simples.
— Eu que o diga! Vou passar o telefone à minha mãe, porque
tens que te deitar cedo. Dorme bem e até ao nosso encontro, já
amanhã.
— Bons sonhos, princesa! Prepara-te para o maior abraço que
alguma vez recebeste.
— Venha ele com a máxima força!

Ana passou o telefone à mãe que não perdeu tempo a explicar


a Miguel os seus motivos e pontos de vista e de seguida pediu-lhe
desculpa pelo erro que tinha cometido, ao não ter acreditado logo
nele. Miguel na sua simplicidade masculina mostrou-se
compreensivo e perdoou-a, não queria entrar em conflito por uma
coisa tão simples. Percebia que ela não tinha feito aquilo por mal,
todos têm o direito de errar, de duvidar das coisas e de vacilar de
vez em quando; mesmo quando a nossa razão nos dá certezas
suficientes para acreditarmos. Falhar, faz parte da espécie humana.
Antes de desligar ainda teve uma curta conversa com Pedro.

252
No dia seguinte, Miguel levantou-se bem cedo, quase de
madrugada, os pais saíam cedo para trabalhar e ele queria despedir-
se deles antes de viajar para Lisboa. Foi uma despedida sentida e
emotiva, principalmente quando ele se despediu do pai, via no
olhar dele que ele ainda sentia algum ressentimento pela forma
como o tinha tratado. Miguel apressou-se a descansar o pai,
dizendo-lhe que estava tudo ultrapassado e que deviam seguir em
frente e deixar o resto no passado. Ainda envergonhado, ele
concordou e deu-lhe o abraço mais apertado que Miguel tinha
memória.
Em Lisboa, Ana também tinha madrugado. Não conseguia que
ansiedade e a euforia que sentia se acalmassem. A noite não tinha
sido fácil; pois não havia pregado olho. Levantou-se e consultou o
relógio do telemóvel, a chegada de Miguel estava prevista para as
nove da manhã, faltavam pouco mais de vinte e cinco minutos.
Tomou o pequeno-almoço à pressa e apanhou de seguida o metro
até à Gare do Oriente, em pleno Parque das Nações, era ali, num
dos seus lugares preferidos da capital, que se iria reencontrar com
Miguel. Na estação de camionagem, onde já se notava um frenesim
matinal tipicamente lisboeta: pessoas a chegarem de viagem e
pessoas a quererem apanhar os respectivos autocarros para irem
trabalhar ou viajar para outros lugares, sentou-se num dos poucos
bancos disponíveis àquela hora da manhã e aproveitou para ouvir
música e ler alguns apontamentos das aulas. No entanto, a
concentração não estava nada fácil de conseguir, ela olhava para o
relógio de pulso a cada cinco minutos e não via a hora de ver o
autocarro, que trazia Miguel, chegar.
Quando ela menos esperava, o telemóvel começou a tocar
dentro da carteira acabava de receber uma nova mensagem escrita,
Ana soube desde logo que só poderia ser de Miguel e não perdeu
tempo a pegar no telefone para a ler. Era mesmo dele, para avisá-
la que ia chegar alguns minutos atrasado por causa de um
contratempo que tinham encontrado durante a viagem. Ela sentiu
o seu coração acelerado e a excitação que a consumia era quase
incontrolável. Tentou focar-se nos apontamentos, quem sabe o
tempo assim passasse mais depressa; mas foi completamente em

253
vão, os ponteiros do relógio pareciam querer andar cada vez mais
devagar. Cerca de dez minutos depois, o silêncio que
temporariamente a envolvia foi interrompido pelo barulho da
chegada de um autocarro. Ana tirou, de imediato, os auscultadores
dos ouvidos, desligou o leitor de música, arrumou os apontamentos
dentro da pasta que trazia e sentiu os nervos a aumentarem de
intensidade, dali a uns minutos, aguardava-a um abraço especial.
No interior do autocarro, Miguel também já estava de pé, tinha
perscrutado toda a estação em toda a sua amplitude em busca de
Ana e não tinha sido difícil encontrá-la. O dourado dos cabelos dela
nunca passava despercebido onde quer que ela estivesse. Contava
os segundos para que o autocarro parasse, e quando isso aconteceu,
Miguel saiu a correr. Mal ela o viu descer mostrou o seu mais
luminoso sorriso e a partir daí o tempo parou para ambos.
Correram para os braços um do outro, transformando aqueles
centímetros que os separavam numa distância insignificante.
Quando menos esperavam, o tão desejado abraço: infinito,
intemporal e sem fôlego tinha chegado e foi quando já se
encontravam entrelaçados que se deram conta que à sua volta toda
Lisboa tinha pura e simplesmente ficado em pausa.
— Por fim, estou de volta a casa e principalmente à tua
companhia! Nem imaginas, o quão ansiei este momento, durante
todos estes dias…
— Também eu! Confesso que o meu dia-a-dia, sem ti, já não
era igual. Fizeste-me mesmo muita falta e senti imensas saudades
tuas.
— Sentimento mútuo, princesa! Mas pronto, agora o que
interessa e importa é que estou de volta!
— Ana sorriu — A viagem correu bem?
— Correu, Anocas! Foi um pouco longa e cansativa; mas
correu muito bem!
— Que bom! Preparado para o tão aguardado regresso à escola?
— Penso que sim! Apesar de sentir bastante receio e medo;
porque não sei muito bem aquilo que me espera, como é que os
meus colegas e restantes alunos da escola vão reagir ao meu

254
regresso; para além disso, eu não queria mesmo nada ter que me
cruzar com as tuas vis amigas.
— Vai correr tudo bem, não te preocupes; por isso podes ir
tranquilo e em paz.
— Espero mesmo que sim! Vamos embora?
— Vamos! Não queres passar por casa para deixar a mala?
— Não! Não quero que faltes mais às aulas; isto não pesa
praticamente nada.
— És mesmo tolo!

Miguel sorriu bem-disposto. Apanharam, de seguida, o metro e


cerca de vinte minutos depois estavam a chegar às imediações da
escola, Ana acompanhou Miguel neste seu regresso. Para ele, este
era um regresso recheado de nostalgia, desejado e esperado há
bastante tempo e ao contrário do que ele pensava, e tal como Ana
já lhe tinha dito, a atitude da maioria dos seus colegas e restantes
alunos da escola, para com ele, acabou por se alterar radicalmente.
Todos perceberam que ele, nunca, jamais roubaria alguma coisa;
por isso, eles fizeram por recebê-lo muito bem, ansiosos pelas suas
piadas secas tão emblemáticas, que deliciavam toda a gente. De
seguida, Miguel encaminhou-se para o conselho executivo, bateu
à porta e a professora Manuela mandou-o entrar. Recebeu-o de
sorriso nos lábios, convidou-o a sentar-se e não perdeu tempo a
pedir-lhe desculpa por ter errado e não ter acreditado e confiado
nele e na sua palavra. Explicando-lhe que aquelas nem sempre
eram situações fáceis de resolver.
Miguel compreendeu e de seguida a directora disse-lhe que,
brevemente, ele seria recompensado por todos os danos causados
e por ter sido suspenso, injustamente, durante aqueles dias; mas ele
acabou por lhe dizer que não queria nenhuma recompensa.
Explicando que, para ele, o mais importante tinha sido o facto de
se ter conseguido repor a verdade; momentaneamente, ela ficou
sem palavras e sem saber muito bem o que dizer, mostrando-se
impressionada e até sensibilizada com a humildade e simplicidade
de Miguel; assim como com a sua honestidade e sinceridade.

255
Com o passar do tempo, o rosto de Miguel voltou a espelhar:
felicidade, satisfação, alegria, tranquilidade e muita motivação.
Para ele, era também saboroso e compensador poder voltar a sentir
aquele lugar como seu, sem ter receio das pessoas e daquilo que
estas pensariam dele; assim como toda a familiaridade que o ligava
a ele, tal como acontecia antes do roubo ter sucedido.
Quanto à relação com a Joana, não mudou em nada; apesar de
tudo o que se havia passado. Miguel continuava a ter a mesma
confiança nela, a partilhar e a confidenciar-lhe coisas e a pedir-lhe
ajuda quando precisava de desabafar ou de algum conselho mais
sábio.

256
A
s semanas que se seguiram passaram depressa tanto
para Ana como para Miguel, que nem se aperceberam
da passagem do tempo, de tão focados que andavam no
estudo; às vezes, sentiam que o pouco tempo livre que
tinham para estudar não chegava para tudo e passava sempre a
correr. O terceiro período estava quase a terminar e tinham que
estar mais concentrados que nunca nas últimas matérias dadas e
nos últimos testes intermédios. Todo e qualquer esforço ou
sacrifício, por mais pequenos que fossem, eram fulcrais, na fase
em que se encontravam e para continuarem a obter os melhores
resultados.
Miguel estava na recta final do décimo primeiro ano e
caminhava a passos largos para o derradeiro último ano do
secundário; já Ana estava prestes a concluir o secundário e
precisava de tirar as melhores notas para entrar na faculdade e no
curso de Medicina. No entanto, apesar da preocupação e do ar
stressado e ocupado de ambos, também era possível vislumbrar
um entusiasmo especial, principalmente em Ana. Dali a poucas
semanas iria ser a sua viagem de finalistas e ela estava muito
eufórica, mesmo sabendo que não devia e muito menos se podia
deixar consumir por essa mesma euforia e pela energia
contagiante que o aproximar da viagem já lhe transmitia. Ainda
assim, ela não conseguia controlar a excitação que sentia,
principalmente porque na turma já se decidia o destino da viagem,
ainda que estivesse a ser bastante difícil chegar a um consenso.
Todos sugeriam sítios diferentes.
Depois de mais um dia cheio de aulas, Ana esperou por
Miguel junto ao portão da escola, para regressarem a casa;
aproveitaram e pararam em Belém para comerem um pastel de
nata e tomarem um café. Ana aproveitou aqueles minutos de

257
descontração para contar tudo a Miguel, acerca das incertezas que
pairavam na sua turma:
— Nem imaginas a confusão que anda na minha turma por
causa do destino para a viagem de finalistas… — Disse-lhe ela
algo pensativa, à medida que levava a chávena de café aos lábios.
— A sério?! Então o que se passa?
— Oh! O mesmo do costume…
— Não me digas que ninguém se entende… — Disse-lhe ele
com um suave sorriso.
— Parece que acertaste na muche! E isto está a deixar-me
doida; porque querem ir, todos, para destinos diferentes e assim
vai ser muito complicado.
— Pois! Assim vai ser mesmo muito difícil, vocês se
entenderem e escolherem um destino que agrade a todos.
— Sabes, não queria nada que esta viagem fosse igual a todas
as outras viagens de finalistas. Por ser a minha viagem de
finalistas, queria muito que fizéssemos algo diferente; mas
também não sei bem o que quero fazer, e entreolharam-bastante
pensativos, não tenho nada pré-definido. No entanto, pensando
bem… Acho que tu és a pessoa perfeita e ideal para me sugerir
algo diferente e divertido; afinal de contas, tu tens viajado imenso
por aí com os teus amigos.
— Isso é verdade! Confesso que há um sítio que nunca visitei,
que adorava imenso conhecer e que era capaz de ser ideal para
vocês visitarem nesta viagem. Pelo menos é algo diferente do
habitual, que é aquilo que estás à procura.
— E que sítio é esse? Agora deixaste-me muito curiosa…
Quero saber tudo!
— E se a vossa viagem fosse ao Parque Nacional dos Picos da
Europa?
— Só podia! Há anos que te oiço falar nesse parque natural.
Confesso que a ideia me agrada imenso porque não o conheço
nem nunca o visitei e do pouco que já me falaste e mostraste
acerca dele, acho que iria adorar tudo.
— Nem duvides! É um sítio magnífico que tem vistas e
paisagens deslumbrantes e impressionantes sobre as montanhas.

258
— Imagino!
— Na minha infância, o meu pai tinha um amigo, também
vendedor ambulante, chamado Joaquín, que era espanhol e vivia
na zona das Astúrias. Uma ou duas vezes por mês, ele vinha a
Portugal entregar encomendas de produtos asturianos que alguns
clientes portugueses lhe faziam e como tinha clientes na aldeia,
fazia-nos sempre uma visita e oferecia-nos um queijo. Eu
adorava, parece que ainda agora estou a sentir aquele sabor
salgado intenso, era uma verdadeira delícia, e ficava sempre
muito atento às conversas que ele tinha com o meu pai e ainda
mais deslumbrado com as descrições que o Joaquín fazia sobre a
vida nas Astúrias, como era o trabalho dele por lá e também os
pormenores da paisagem. Se a memória não me falha, penso que,
chegou a fazer referência ao Parque Nacional dos Picos da
Europa.
— A sério?! Não fazia ideia…
— Por acaso, não sei porque é que nunca partilhei esta
memória contigo. — Disse-lhe ele pensativo.
— Não faz mal! Afinal de contas, o ser humano é feito de
tantas memórias que muitas vezes é difícil partilhar todas.
— Isso é bem verdade!
— Desde o início do ano lectivo que disse que queria algo
diferente, para esta viagem, algo que fosse mesmo inesquecível e
que marcasse bem o final desta etapa da minha vida; porque já
não voltarei mais ao secundário. E essa tua sugestão é ideal, vai
mesmo de encontro ao que eu queria e procurava.
— Que bom… Nem imaginas como fico feliz por ouvir isso!
— Mas… Não vai ser nada fácil fazer os meus colegas
aceitarem essa sugestão. Eles sempre foram um bocadinho mais
virados para a praia e para a vida noturna; por isso, sugerir que a
viagem se realize a um parque natural, não vai ser a melhor das
sugestões e será de esperar que não vá ser muito bem aceite.
— Acredito! No entanto, vais ver que eles vão acabar por
aceitá-la, não vão conseguir resistir à curiosidade.
— Achas mesmo que sim?!
— Plenamente!

259
— Também quero acreditar que sim…

Miguel também ansiava, há já alguns dias, pela chegada do


mês de Julho, altura em que sairiam os resultados dos exames
nacionais. Queria muito realizar, no Verão, mais um dos seus
sonhos, desde que se conhecia: a primeira participação numa
concentração motard. Os pais de Ana tinham-lhe prometido que
se ele tirasse boas notas e passasse de ano o deixariam ir; por isso,
ele não conseguia conter os nervos que o consumiam. Não podia
mesmo falhar os seus objectivos, correndo o risco de perder mais
uma aventura. Jerez de la Frontera, em Espanha, perto da
localidade de Cádiz seria o local escolhido para a sua primeira
experiência; enquanto aficionado por motas, pela aventura e pela
adrenalina da vida. Quem sabe talvez conseguisse convencer Ana
a alinhar naquela boa dose de loucura, seria o Verão mais que
perfeito.
À noite, antes de dormirem, Miguel decidiu contar-lhe tudo o
que lhe ia na alma.
— Pareces-me pensativo ou estou errada? — Perguntou-lhe
ela sorridente.
— Oh! Não é nada de especial, mas queria falar contigo sobre
uma coisa que tenho andado a pensar…
— Ui, ui! Quando tu pensas nunca sai coisa boa!
— É isso que tu pensas de mim? Julgas mesmo mal o teu
melhor amigo. Sabes bem que eu só penso em coisas boas!
— Sim! Sim! E és mesmo um grande convencido…
— És mesmo má! Sendo assim, já não te vou contar nada!
— Estou a brincar!!! Diz lá o que querias tanto falar comigo…
— O que é que tu achas de vires comigo, no Verão, à
concentração motard de Jerez de la Frontera? Gostava imenso
que viesses…
— Agora, fui apanhada completamente de surpresa, não
estava nada à espera desse teu convite inusitado. Não achas que
ainda é demasiado cedo para estares a pensar já nisso?
— É provável! Mas tu sabes bem que este é outro dos meus
sonhos e que os teus pais me prometeram, que eu o podia realizar:

260
se eu tirasse boas notas e passasse nos exames nacionais e de ano.
Eu queria muito concretizá-lo este ano e que tu viesses comigo e
fizesses parte dele. Seria perfeito e acredita que seriam as férias
de Verão, mais espectaculares de sempre
— Eu acho que não é o ambiente ideal para mim, não sei se
me iria sentir muito bem.
— Porque dizes isso?! Achas que também não há mulheres
aficionadas por motas? — Disse-lhe ele sorrindo.
— Não! Não é nada disso! Eu sei que também já há muitas
mulheres motards; simplesmente, não é um ambiente com me
identifique. Talvez me vá sentir um pouco desintegrada e
descontextualizada…
— Pois! Eu sei disso e compreendo perfeitamente!
— Para além disso, não sei se nessa altura poderei ir por causa
das candidaturas à faculdade e acho que os meus pais não vão
achar muita piada à ideia.
— Não te preocupes com isso, eu convenço-os facilmente a
deixarem-te ir. Sabes que eu consigo ser muito persuasivo quando
quero uma coisa.
— Não duvido!
— As pessoas continuam a ter uma ideia errada das
concentrações de motas, o que as leva a generalizar: não são só
feitas de muita loucura, bebida, algumas drogas e alta velocidade,
segundo dizem. Há também muito convívio, companheirismo,
entreajuda e cumplicidade entre motards de todo o mundo e dos
mais diversos países. Há de tudo um pouco; mas nem tudo é
levado ao exagero como se pensa e fala por aí. Acredita que é
uma experiência única, que valerá imenso a pena, sem quaisquer
dúvidas.
— Acredito que sim!
— Os teus pais não têm quaisquer motivos para terem medos
e receios, vamos portar-nos bem e não nos irá acontecer nada.
Jamais, eu deixaria que te acontecesse alguma coisa?
— Eu sei! Eu confio plenamente em ti…

261
— Eu queria muito experimentar! Os meus amigos costumam
participar, todos, na concentração motard de Faro, a mais
emblemática do nosso país. Falto só eu…
— Tenho a certeza absoluta que vai ser desta vez!
— Espero que sim! Gostava tanto… Mas só se tu vieres
comigo, caso contrário, não vou.
— Estás a gozar, não estás? Vais desistir e abdicar do teu
sonho por minha causa? Estás doido?
— Este sonho foi pensado para ser concretizado contigo a meu
lado; por isso, se tu não puderes vir comigo, não faz qualquer
sentido, eu ir.
— Sabes que mais? Tem juízo. Nunca mais me perdoava e iria
sentir-me culpada para o resto da vida por ter sido responsável
por tu desistires e abdicares de um sonho que tens há tanto tempo
e que é tão importante e especial para ti e que tens agora
oportunidade para realizar. Não te vou deixar fazer uma parvoíce
dessas, podes ter a certeza.
— Então… Vem comigo! — Disse-lhe ele de sorriso rebelde
estampado no rosto.
— Tu não vais mesmo desistir dessa tua ideia, pois não?
— Claro que não!
— Queres mesmo convencer-me à força a alinhar nessa
loucura contigo…
— Sabes perfeitamente que tens um bestfriend muito rebelde
e desencaminhador…
— A quem o dizes… Fazemos assim: quando os exames
nacionais terminarem, falamos melhor sobre esta tua ideia, pode
ser?
— Claro que sim! Olha que, não me vou esquecer dessa tua
promessa!
— Fica prometido!
— Estou mesmo a contar contigo!

Ana mostrou-lhe o seu melhor sorriso.


No dia seguinte, Ana acordou ansiosa para chegar à escola,
estava muito entusiasmada para apresentar à sua turma a ideia que

262
Miguel lhe tinha dado para a viagem de finalistas. Tentava a não
se entusiasmar demasiado; pois sabia à partida que os colegas não
iriam aceita bem a sugestão, ainda assim, tentar não custava nada.
Nos últimos cinco minutos da aula de Espanhol, Ana decidiu falar
com a turma e propor a sua sugestão; mas como seria de esperar,
inicialmente, a turma não gostou muito da ideia, destacando que
seria uma seca se a viagem de finalistas tivesse como destino um
parque natural, não teria graça, nem poderiam divertir-se como
haviam planeado. Ela sentiu-se triste e desiludida, pois queria
muito que a turma aceitasse a sugestão para que Miguel pudesse
concretizar o seu sonho; mas não iria ser nada fácil.
Ainda assim, a professora Marta arriscou a pedir-lhes para
irem para casa pensar calmamente na ideia que Ana tinha dado;
pois não era assim tão má como parecia. De seguida, contou-lhes
que uma das viagens mais marcantes da sua vida tinha sido,
precisamente a um parque natural; onde tinha desfrutado e tirado
o máximo de partido da natureza e de todo o seu esplendor, onde
tinha feito longos passeios e caminhadas; assim como algumas
actividades ao ar livre que nunca havia feito: como fotografar e
apreciar e saborear a paisagem sem ter pressa. Pequenos, detalhes
que eram subtraídos pela vida agitada e stressante da cidade.
Também havia aproveitado para descontrair, quebrar algumas
rotinas e fazer com que o tempo parasse um pouco. Explicou-lhes
também que o contacto directo com a natureza era importante,
agradável e benéfico e que fazia as pessoas mais felizes e
saudáveis; para além disso, era uma excelente forma de repor
baterias e afastar más energias. Uma experiência que
recomendava a todos e que podia ser bem divertida.
O silêncio instalou-se na sala, a turma de Ana ouvia a
professora com toda a atenção e quase sem pestanejar. Lia-se nos
olhares dos alunos, quão espicaçados estavam pela curiosidade,
após os diversos testemunhos que tinham ouvido. A delegada de
turma prometeu que iriam pensar melhor e que diriam alguma
coisa, nos próximos dias.
Ana sorriu, pois pressentia que poderiam vir aí notícias muito
positivas.

263
Mais tarde, Ana e Miguel encontraram-se, à entrada da
cantina. Entraram, pediram os almoços e depois sentaram-se
numa mesa onde pudessem conversar sem muitos ruídos de
fundo. Miguel ficou pensativo a olhar para ela.
— Pareces-me algo preocupada! Passa-se alguma coisa? —
Perguntou-lhe ele de ar visivelmente preocupado.
— Não! Nada! — Disse ela sorrindo.
— Será?!
— Sim… Está mesmo tudo óptimo! Não te preocupes!
— Sendo assim, conta-me como é que a tua turma reagiu à tua
sugestão para a viagem? Gostaram ou provocaste uma
tempestade na tua turma? — Disse-lhe ele soltando uma leve
gargalhada.
— Inicialmente, não foram muito receptivos, para dizer a
verdade. — Anuiu ela um pouco triste e desiludida.
— Acredito e imagino! Estava mesmo a ver-se…
— Nem toda a gente é aficionada pela natureza e pelo ar da
montanha como nós. A minha turma o que quer é folia durante
aquela semana: praia, banhos-de-sol e saídas nocturnas.
— Percebo! É pena, porque é um lugar extraordinário.
— Mas mesmo assim, eu trago novidades boas: a minha
professora de Espanhol convenceu-os a pensarem melhor na
ideia. Contou-nos que uma das viagens mais marcantes da vida
dela tinha sido a um parque natural e depois explicou-nos também
as muitas vantagens do contacto directo com a natureza.
— Que bom! Fico mesmo muito contente por ouvir isso.
— Acho que a minha turma não se mostrou indiferente aos
testemunhos da professora Marta. Via-se nos olhares dos meus
colegas, a imensa curiosidade com que ficaram.
— Eu disse-te, não disse? Tenho a certeza absoluta que vocês
vão adorar a experiência. É um sítio lindo e magnífico, que nos
presenteia com paisagens incríveis.
— Nem duvido! Sabes, tenho esperança que eles acabem por
mudar de ideias e aceitar a minha sugestão.
— Vais ver que sim…

264
A conversa continuou animada e depois seguiu-se mais uma
tarde de aulas. Miguel acabou por sair mais cedo, mas Ana só saiu
mesmo ao final da tarde, chegou a casa estafada. Jantaram cedo e
de seguida ela ainda conseguiu arranjar energias para estudar
Biologia até tarde, como era seu hábito. Quando Miguel já se
preparava para ir dormir, perto da meia-noite, reparou que Ana
ainda tinha a luz do quarto acesa, bateu à porta e espreitou para o
interior. Ela estava sentada à secretária ainda a estudar, de ar
visivelmente preocupado aconselhou-a a fazer uma pausa no
estudo; no entanto, ela disse-lhe que não se podia dar ao luxo de
folgar naquele momento. A matéria já se começava a acumular,
os derradeiros testes intermédios estavam a chegar e os exames
nacionais aproximavam-se depressa, tinha mesmo que dar tudo
durante as semanas que aí vinham.
Miguel não ficou indiferente ao ar exausto da amiga,
conseguia ver no olhar dela o peso da responsabilidade que ela
sentia, de ter que se dedicar, que se sacrificar e que dar o seu
melhor para conseguir tirar boas notas, para poder entrar no curso
de Medicina. Sabia que era um curso bastante exigente; mas
também tinha plena consciência que para Ana, a entrada naquele
curso era o seu maior sonho, não a conseguia ver a fazer mais
nada, no futuro, que não fosse exercer Medicina e especializar-se
em Pediatria, tal como tinha acontecido com a mãe; por isso toda
a entrega, dedicação e esforço dela iriam valer a pena. Custava-
lhe muito vê-la cansada, a roubar horas ao descanso e ao convívio
com a família e amigos, no entanto: o que não se faz pelo sonho
de uma vida?
Ele tinha a certeza absoluta que ela iria conseguir tirar as
melhores notas e entrar no curso que tanto queria, confiava na
Ana e nas suas capacidades. Ela ia conseguir.

No dia seguinte, a turma de Ana revelou-se uma grande


surpresa; pois aceitou que a viagem fosse ao Parque Nacional dos
Picos da Europa, nas Astúrias, deixando-a muito feliz. No
intervalo grande da manhã, ela não perdeu tempo em ir falar com
a directora de turma sobre a possibilidade de Miguel os

265
acompanhar, mesmo sendo de um ano diferente. A professora
Leonor mostrou-se comovida com o gesto de amizade de Ana e
disse-lhe que não haveria problema nenhum, Miguel poderia ir;
no entanto, Ana também deveria falar com o presidente da
Associação de Estudantes da escola que era quem estava a
organizar a viagem. Ela prometeu tratar de tudo nos próximos
dias. Não era capaz de conter a ansiedade e o entusiasmo de poder
contar tudo a Miguel, o mais rápido possível, estava desejosa de
ver a reacção dele perante aquela surpresa. O seu sonho iria,
finalmente, tornar-se uma realidade.
Como à tarde, não tinham aulas, Ana convidou Miguel para
almoçarem pela Baixa de Lisboa e depois irem dar um passeio
até ao Miradouro da Graça, em pleno Bairro Alto: tinha uma das
melhores vistas sobre Lisboa e era um dos mais conhecidos e
emblemáticos. Miguel nem precisou de pensar, aceitou logo o
convite. Combinaram encontrar-se no Chiado, junto a uma loja
centenária e assim foi, à hora combinada nenhum dos dois falhou.
— Olá, Miguelinho! Estás pronto para um bom almoço? —
Perguntou-lhe ela sorridente.
— Prontíssimo, Anocas! Estás com um ar muito misterioso
hoje ou é impressão minha? Aconteceu alguma coisa?
— Não! Está tudo bem! No entanto, eu trago boas notícias.
— E que boas notícias são essas? — Perguntou-lhe ele de ar
expectante.
— Conto-te tudo quando estivermos a almoçar!
— Está bem! Almoçamos no Martinho da Arcada?
— Por mim, está perfeito!
Foram até ao Terreiro do Paço e sentaram-se na esplanada do
restaurante a escolherem o que almoçar:
— Então que novidades boas são essas?! Quero saber tudo…
— A minha turma aceitou que a viagem de finalistas se realize
ao Parque Nacional dos Picos da Europa. — Disse-lhe ela com
um brilhozinho muito especial no olhar.
— A sério?! Vês? Eu bem te disse que eles não iriam
conseguir resistir à curiosidade que iria começar a consumi-los e
que iriam acabar por aceitar. Espero, sinceramente, que se

266
divirtam e que aproveitem, ao máximo, as vistas e a paisagem, já
sabes que depois não te vou largar, vou querer saber tudo e ver as
fotografias todas.
O coração de Ana batia a alta velocidade; pois, a surpresa de
Miguel estava prestes a chegar.
— E a propósito desta nossa conversa, nem imaginas a ideia
brilhante que eu tive esta manhã…
— Ui, ui! O que é que será que virá aí?
— Tem a ver contigo, por isso, prepara-te!
— Comigo?! Agora estou mesmo a ficar curioso…
— Depois da conversa que nós tivemos ontem, lembrei-me de
uma coisa: e se viesses à viagem connosco? O que é que tu achas?
Gostavas? — Perguntou-lhe ela de sorriso nos lábios, apanhando
o amigo de surpresa. Estava a morrer de curiosidade para ver a
reacção dele.
— Estás a falar mesmo a sério?! Eu amava!!! — Disse-lhe ele
mostrando-se espantado e surpreendido com o convite.
— Acredita que nunca falei tão a sério na vida!
— Estás mesmo a convidar-me para ir contigo à tua viagem
de finalistas? — Perguntou-lhe ele, novamente, de ar incrédulo,
mas feliz e entusiasmado. Tentando perceber se estava mesmo a
viver algo real ou apenas uma ilusão ficcionada.
— Sim!!!
— Agora, tu deixaste-me mesmo sem reacção, não estava
nada à espera deste convite. Estou sem palavras, nem sei o que te
hei-de dizer, resta-me agradecer-te do fundo do coração e repetir-
me: és incrivelmente maravilhosa.
— Oh! Não estou a fazer nada de mais, já não se pode
convidar o melhor amigo a fazer-nos companhia na viagem das
nossas vidas?! — Brincou ela.
— É claro que estás, Ana! Só o facto de teres parado para
pensar um pouco em mim, já é uma grande atitude. Para mim,
esse teu gesto é especial e tem imenso significado e tu sabes bem
porquê; no entanto, não é nada que não fosse de esperar de ti,
sempre foste assim, desde que éramos crianças. Sempre tiveste

267
um enorme coração e uma sensibilidade gigantesca e eu sou
prova disso mesmo.
— Já paravas de me deixar sem jeito…
Miguel riu-se; mas de repente, ele parou para pensar e mostrou
um ar triste e desiludido, todas as expectativas e toda a alegria que
tinha sentido há momentos antes, acabaram por se desvanecer em
escassos segundos
— Espera! Mas eu não posso ir…
— Oh! Porquê?! Tu querias tanto isto; por favor, não me faças
uma desfeita dessas! — Pediu-lhe ela.
— E continuo a querer imenso concretizar esse sonho; mas,
esqueceste-te de uma coisa muito importante: somos de anos
diferentes; por isso é que eu não vou poder ir contigo.
— Ah, isso! Não te preocupes que eu já tratei de tudo!
— Já?! Como?!
— De manhã, eu fui falar com a minha directora de turma,
contei-lhe do teu sonho e expliquei-lhe a tua situação e ela disse
que não se importava que tu fosses connosco. No entanto, ainda
tenho que falar com o presidente da Associação de Estudantes da
escola, para ver se ele também concorda que vás.
— Meu Deus!!!! Inacreditável! Tu não existes mesmo… Não
sei mesmo o que dizer. — Disse-lhe embasbacado.
— É simples: apenas tens que aceitar o convite e que te
divertir, ao máximo, connosco. Nada mais…
— Como poderia eu, algum dia, recusar um convite tão
tentador e único como este?! — Disse-lhe ele sorridente.
— Que maravilha! Não me poderias ter deixado mais feliz
com essa resposta, tenho a certeza absoluta que vai ser a aventura
das nossas vidas…
— Nem duvido! Sabes, eu sinto-me como se, de repente,
ficasse literalmente perdido no tempo. Queria tanto, mas tanto
isto, há tanto tempo, que ver este sonho tornar-se assim uma
realidade, desta forma tão inesperada, ainda me deixa atónito.
Continua a ser algo, no qual, ainda não consigo acreditar, acho
que só vou ter plena consciência de tudo, quando estivermos lá e
eu tiver oportunidade de pisar aquele chão pela primeira vez.

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— Percebo completamente!
— É uma mistura enorme e intensa de emoções. Não estava
nada à espera deste teu convite e que me fizesses uma surpresa
destas. Tu sabes bem que este é um sonho bastante antigo que me
acompanha desde a minha infância… — Disse-lhe ele tímido e
comprometido.
— Já sabes que eu sou bastante imprevisível.
— Pois, eu sei perfeitamente disso!
— E que também gosto muito de ajudar os outros,
principalmente se forem pessoas de quem eu gosto muito.
— O que é que eu heide dizer? Pensas sempre em mim, há
realmente coisas para as quais nunca irei ter palavras. Mesmo
sendo a tua viagem de finalistas, que só a irás viver uma vez na
vida, que deverias aproveitar para te divertir com os teus colegas
e para desfrutar de toda a viagem e do final desta etapa da tua
vida. Ainda consegues parar para pensar em mim e nos meus
sonhos…
— A amizade verdadeira é isso mesmo, pensarmos
constantemente nos nossos melhores amigos: aqueles que não
falham, que não desiludem, que não nos magoam, que nos
querem bem e que estão incondicionalmente ao nosso lado para
nos apoiarem em tudo, para nos incentivarem quando
precisamos, para nos fazerem rir nos bons e maus momentos, para
nos darem força e para nos ouvirem ou conversarem connosco. E
fazermos tudo, mesmo tudo, os possíveis e os impossíveis por
esses amigos, ajudando-os também na concretização dos seus
sonhos. É simples e tu és um amigo desses e sabes que também o
mereces.
— Deixares-me completamente desconfortável com esses
elogios, não conta…
Ana achava imensa piada ao ar tímido de Miguel, quando o
elogiava.
— Não precisas de te preocupar porque eu vou fazer tudo
aquilo que tu referiste há pouco: eu vou aproveitar para estar com
a minha turma, para me divertir e para desfrutar da viagem com
eles; mas também quero muito estar contigo e fazer parte de cada

269
momento e de pormenor da realização do teu sonho. Achas
mesmo que eu ia aguentar uma semana inteirinha sem ti?!
— Deixas-me sempre sem jeito; mas para dizer a verdade,
acho que também não aguentaria tanto tempo longe de ti. Ia sentir
muito a tua falta e a tua ausência…
— Vês?! Parece que afinal o sentimento é mútuo, assim,
vamos poder passar aquela semana sempre juntos e vai ser
óptimo e perfeito; para além disso, eu gosto muito de ti, tu és o
meu melhor amigo e se tens o grande sonho de conhecer este
lugar é óbvio que faça sentido que me acompanhes na minha
viagem.
Não perderam tempo, a trocar um abraço forte e muito
emotivo. E quando se aperceberam aquela tarde descontraída já
ia a meio, a conversa tinha sido longa e recheada de partilhas
especiais. Terminaram o almoço com uma alegria contagiante e
depois aproveitaram o que restava da tarde para darem o já
planeado passeio pelo Miradouro da Graça e pelo emblemático
Bairro Alto. Em pleno Chiado, Miguel foi surpreendido por um
Fado que lhe era algo familiar: Os Búzios da fadista Ana Moura.
— Não há nada melhor que a melodia perfeita para uma tarde
fantástica, na companhia ideal. Adoro esta música!
— Ana cruzou o olhar de Miguel e sorriram muito cúmplices
— Pois é! É a música preferida da tua mãe, não é?
— É!!! Foi a minha mãe que me passou o gosto pelo Fado, é
o género de música preferido dela. Sabias, que há um verso
particular nesta música que me faz pensar sempre em ti quando o
oiço?
— Ana ficou espantada — A sério?! Qual?
— Este: Vê como os búzios caíram virados pr’a norte. Pois eu
vou mexer no destino, vou mudar-te a sorte. Acho que tem muito
a ver contigo...
— Comigo?! Porquê? Agora fiquei sem perceber…
— Se pensares bem, tu foste a principal responsável pelas
mudanças da minha vida e pela minha nova personalidade mais
alegre e lutadora; foste tu que me encontraste naquela tarde,
debaixo da oliveira centenária, perdido algures nos campos de

270
trigo. Foste tu que não desististe de mim e que me mostraste o
verdadeiro significado da amizade genuína e o lado bom e mais
positivo da vida. Sei e sinto que se nós não nos tivéssemos
cruzado, eu não seria a pessoa que sou hoje; por isso, se hoje sou
uma pessoa completamente diferente daquilo que era nessa
altura, devo-o a ti.
— Não deves nada! Naquela altura, nós éramos apenas duas
crianças que procuravam um amigo para brincar; no entanto, isso
permitiu-nos perceber que as diferenças entre as pessoas não
devem interferir nem devem impedir as pessoas de criarem laços
com os outros e de fazerem as suas amizades. E permitiu que nos
conhecêssemos melhor e que fôssemos amigos para toda a vida.
— Isso é verdade. E esse teu lado generoso e sensível, essa tua
enorme vontade de ajudar os outros já se destacava bastante
naquela altura; porque nunca mais me largaste até sermos amigos.
Realmente, devo-te muito, sabias? Tudo aquilo que aprendi: cada
pequena lição de vida, cada sorriso que dei, tudo o que fui
descobrindo contigo e com a tua família, ao longo de todos estes
anos. Foi muito importante para mim; na verdade, nunca fui tão
feliz como nestes anos que passei ao teu lado e da tua família. —
Disse-lhe ele nostálgico.
— Oh! Eu tenho muito orgulho em ter um amigo como tu!
— Assim, não há coração que aguente tanta sinceridade!
— Acho que andamos numa de inconfidências. — Disse-lhe
ela dando uma gargalhada.

Depois de uma tarde muito descontraída, Ana e Miguel


regressaram a casa e aproveitaram o tempo livre que lhes restava
para estudarem; no entanto Miguel não se conseguia concentrar
em nada por muito que tentasse e se esforçasse. Aquele convite
inesperado de Ana tinha-o deixado de cabeça completamente nas
nuvens, estava mesmo deslumbrado. Para ele, aquela iria ser
mesmo uma experiência nova, algo que nunca tinha vivido nem
experienciado e que no seu passado achava meramente
impossível de se concretizar, tendo em conta a situação em que

271
os seus pais viviam e o facto de não ter possibilidade ir para a
escola.
Era difícil não se recordar que Ana tinha sido a principal
responsável pelas mudanças radicais que a sua vida havia sofrido
e pela oportunidade de ele poder estudar e batalhar pela conquista
dos seus sonhos. Aquele era um deles e estava extremamente
grato por isso, sentia que já estava a viver intensamente a
experiência mesmo que ela ainda nem sequer se tivesse iniciado.
Sentia-se excitadíssimo para que os preparativos para a viagem
se iniciassem, tinha sido Ana quem lhe havia falado, pela primeira
vez, nas viagens de finalistas que aconteciam pelo décimo
segundo ano; assim como na azáfama e emoção que ofereciam
aos alunos. Estava desejoso que as férias da Páscoa chegassem
para poder comprovar tudo aquilo que a amiga lhe tinha dito e
para viajar com ela, à aventura pelo Parque Nacional dos Picos
da Europa.
O desassossego de Miguel não passou despercebidos a Ana;
pois, era demasiado visível para não ser notado.
— Pareces-me desassossegado… — Disse-lhe ela de ar
pensativo.
— Oh! Desculpa, Ana!
— Não tens nada que pedir desculpa…
— Tenho, sim! Porque eu não te estou a deixar concentrar no
estudo!
— Achas mesmo?! Não digas disparates…
— Não são disparates! Só estás a dizer isso para eu não me
preocupar e para me fazeres sentir bem; no entanto, eu continuo
a sentir-me culpado à mesma.
— És mesmo tonto! Sabes perfeitamente que nunca me
incomodas…
— E tu deixas-me sempre envergonhado. — Ana riu-se —
Sabes, o teu convite foi tão inacreditável que eu ainda nem estou
bem em mim, não tenho parado de pensar nele…
— Eu sei muito bem a importância e o significado que isto tem
para ti e para além disso dar-te-á muita realização pessoal.

272
— Nem imaginas o quanto. Só posso agradecer-te, mais uma
vez, por me ajudares realizar algo que eu sempre quis tanto, estou
desejoso de embarcar contigo nesta aventura e poder realizar este
sonho.
— Nem duvido! Também estou ansiosa para poder partilhar
esta viagem contigo. Nos próximos dias, o presidente da
Associação de Estudantes vai reunir-se com todos os delegados
de turma do décimo segundo ano, para começarem a organizar a
viagem e decidirem o itinerário. Estou muito ansiosa e curiosa
para conhecê-lo.
— Já que falas nisso! Eu acabei agora mesmo de me lembrar
que tenho uns amigos que, há uns anos, foram até às Astúrias e
ao Parque Nacional dos Picos da Europa. Fizeram uma expedição
de mota até lá, já que é um sítio muito pretendido por amantes de
motas e de fotografia por causa das paisagens. Se quiseres posso
falar com eles e perguntar-lhes se ainda têm panfletos com
informações relativas ao itinerário que eles fizeram. Do que me
recordo era brutal porque permitia atravessar o parque e percorrer
os vários maciços que o constituem.
— Não te importavas de fazer isso? Era perfeito!
— É claro que não! Nem poderia ser de outra forma depois do
teu enorme gesto para comigo. É o mínimo que eu posso fazer
para te agradecer por tudo aquilo que tu estás a fazer por mim.
— Obrigada, és um querido! — Disse-lhe ela tímida.
— Não! Tu é que és mesmo uma amiga magnífica! Mais logo
quero mostrar-te algumas imagens do Parque na Internet.
— Acho uma óptima ideia! Estou curiosa para ver tudo. Posso
fazer-te uma pergunta?
— Podes, pois! Todas as que quiseres!
— Quais são as tuas expectativas, para esta viagem?
— Ui, tantas… Como te disse: é o sonho de uma vida! —
Disse-lhe ele como se sonhasse acordado, de brilho intenso no
olhar e com um grande sorriso nos lábios, que transparecia com
facilidade a felicidade que ele estava a sentir.
Entreolharam-se e Ana percebeu, de imediato, que para o
melhor amigo aquela viagem era realmente muito importante e

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especial, era mesmo a realização de um enorme sonho e o melhor
presente que lhe podiam ter dado.
— Eu sei que sim! Acredita que fico mesmo muito feliz por ti,
e por te poder ajudar a concretizar este teu sonho.
— Eu é que agradeço por nunca te esqueceres de mim e por
me estares a dar esta oportunidade incrível: de poder ir, pela
primeira vez, a uma viagem de finalistas e por poder realizar o
meu sonho, tendo a tua companhia. Vai ser espectacular,
principalmente por tu poderes fazer parte de tudo isto e eu poder
partilhar esse momento contigo. Não poderia ser mais mágico e
único.
— Tenho a certeza absoluta que também vou adorar!
De repente, Miguel olhou para Ana e começou a rir-se, ela
ficou logo desconfiada e pensativa.
— Porque é que te estás a rir?
— Desculpa, Anocas! Mas lembrei-me de um pormenor
engraçado relacionado contigo e com os Picos da Europa e não
consegui deixar de rir.
— Ui… Que pormenor é esse? Desembucha e conta-me já
tudo!
— Lembras-te que, quando eu te falei a primeira vez no
Parque Nacional dos Picos da Europa, me perguntaste se eu
andava pela Europa fora a subir às montanhas de mota? Agora
veio-me esse detalhe à memória, a propósito da nossa conversa…
— Isso não se faz, Miguel! Gozares assim com a minha
ignorância…
— Desculpa, mais uma vez! Peço-te, por favor, que não leves
a mal; mas não consegui resistir ao teu ar de espanto. Foi mesmo
engraçado.
— Achas? É na boa!
— E tu também tens imensas expectativas para a viagem? —
Perguntou-lhe curioso.
— Vou confessar que até tenho bastantes expectactivas e uma
vasta curiosidade para conhecer esse Parque Nacional dos Picos
da Europa, de que tu tanto falas.

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— Se for tal e qual como eu imagino, estou certo que vais
adorar! — Disse-lhe ele orgulhoso e satisfeito.
— Assim o espero! Veremos daqui a uns dias!
— És mesmo incrivelmente fantástica e às vezes, eu nem
tenho plena consciência da sorte que eu tenho em te ter na minha
vida e como amiga, cúmplice e companheira.
— Eu acho que somos, os dois, uns verdadeiros sortudos por
podermos fazer parte da vida, um do outro, por nos sabermos
apoiar mutuamente e por nos completarmos desta maneira tão
simples, intensa e bonita.
— Concordo plenamente!
— Ana sorriu — E que tal se agora nos concentrássemos um
bocadinho no estudo? — Propôs ela.
— Pensando bem, acho que é melhor! Já te desconcentrei
demasiado.

Após o jantar e antes de regressarem ao estudo, Miguel e Ana


sentaram-se animadamente no sofá a ver fotografias do Parque
Nacional dos Picos da Europa na Internet. Miguel mostrou-lhe as
várias paisagens que poderiam vir a encontrar: zonas
montanhosas, vegetação verde, zonas com neve, quedas de água,
caminhos pedestres; o Pico mais alto dos Picos da Europa (Pico
Urriellu), entre muitas coisas.
Ana mostrava-se deslumbrada com tudo, olhava imenso
tempo para cada fotografia que via e mal conseguia conter a
vontade enorme que sentia de poder atravessar cada uma
daquelas imagens e entrar naquele mundo natural.
A imensidão daquele parque natural que era constituído por
vários maciços, deixava qualquer um sem fôlego. Num repente,
deu por si a olhar disfarçadamente para Miguel que se mostrava
ainda mais deliciado e deslumbrado do que ela. Apresentava o
brilho do sol reflectido no olhar e a palavra sonho desenhada na
expressividade do seu rosto.
Ana conseguia senti-lo cada vez mais impaciente para que a
grande viagem chegasse; por isso não foi difícil para ela perceber
o quão importante era para ele, a realização daquele sonho e o

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quanto ele gostava de estar em contacto permanente com a
natureza.
E isso encheu-a de felicidade e de concretização pessoal,
sentiu-se mesmo de alma e coração cheios.

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O
tempo foi passando a um ritmo acelerado e as derradeiras
semanas, antes das férias da Páscoa tinham sido um verdadeiro
corrupio para Ana e para Miguel, com um horário muito
preenchido de aulas com pouco tempo livre para
descomprimirem. Dividiam-se entre o estudo: ainda havia muita
matéria para estudar e as últimas avaliações; quando se
aperceberam, o mês de Abril e da colorida Primavera chegou
trazendo uma temperatura bastante mais quente e amena e um
ambiente alegre descontraído; assim como a tão aguardada viagem
de finalistas de Ana e as desejadas férias da Páscoa. No entanto,
eles não deixavam de andar entusiasmados com os preparativos
para a viagem, sempre que não tinham muito que estudar,
aproveitavam para se reunir com a turma de Ana: faziam longas
pesquisas na Internet, conversavam e partilhavam sugestões.
Ninguém resistia à excitação e à alegria que os consumia e que
conquistava toda a gente à sua volta, todos estavam extremamente
animados e cheios de expectativas.
Miguel não consegui conter a ansiedade para que o dia da
partida chegasse e parecia estar a demorar tanto; as Astúrias e o
aclamado Parque Nacional dos Picos da Europa eram o tema e o
centro de todas as conversas e fazia com que muito poucos colegas
de Ana, conseguissem concentrar-se às aulas. Todos pareciam
estar num verdadeiro estado de euforia e de nervos para que a
última semana de aulas, antes das férias da Páscoa, chegasse
depressa, contavam-se os dias e até mesmo as semanas.
Para Ana, mas principalmente para Miguel, parecia que o tempo
nunca mais passava; no entanto, o facto de estarem ocupados com
assuntos escolares fez com que a derradeira semana chegasse num

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ápice. Quando se aperceberam, faltavam pouco mais de sete dias
para a partida e a excitação apoderou-se, logo de Miguel, era difícil
acalmar as borboletas que teimavam em esvoaçar dentro da barriga
o dia inteiro e o entusiasmo que o consumia há semanas.

Na véspera da partida, a casa dos Salgado parecia virada


completamente do avesso: havia diversas malas espalhadas pela
casa, cadernos de apontamentos, máquinas fotográficas, livros
entre outros. Quem olhasse para aquela desarrumação, diria que
mais parecia que Ana e Miguel iam dar a volta ao mundo em
oitenta dias. Estava mesmo quase tudo pronto para eles
embarcarem, no dia seguinte, na viagem das suas vidas. Naquela
noite, foi quase impossível, eles adormecerem; ambos sentiam
uma euforia e uma excitação muito difíceis de controlar,
aproveitaram as poucas horas de sono para conversarem e
partilharem aquilo que mais desejavam visitar e conhecer durante
aqueles dias nas Astúrias. Miguel tinha imensas dificuldades em
escolher; porque lá bem no fundo do seu coração, ele queria visitar
e conhecer tudo, não conseguia deixar nada de fora.
E quando menos esperavam, o grande dia chegou com toda a
importância que tinha para ambos. Miguel não continha a emoção
e o entusiasmo. Saíram de casa carregados de bagagens e muito
bem acompanhados. Já no recinto da escola e após as respectivas
recomendações e despedidas, juntaram-se à turma de Ana,
aproveitaram para pôr a conversa em dia: partilhavam-se
novidades, emoções, curiosidades e expectativas e para colocar as
bagagens, no porta-bagagens do autocarro. O ambiente estava ao
rubro, a excitação e a euforia já tinham tomado conta de toda a
turma, sentia-se mesmo no ar uma atmosfera animada,
descontraída, alegre e divertida.
A viagem levou praticamente o dia todo, pois tinham que
atravessar Portugal quase de lés-a-lés para chegarem às Astúrias.
Miguel e Ana conversar imenso, até quase esgotarem palavras e
até assuntos, aproveitaram para ler, para ouvir música e para tirar
as primeiras fotografias. Ao final da tarde chegaram à cidade de
Oviedo: a primeira cidade aonde eles iriam parar, o clima não

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estava muito apetecível: um frio bem cerrado e alguma chuva
gelada, algo normal para a época do ano. Era de esperar que fossem
também encontrar alguma neve. Dirigiram-se ao hotel onde iriam
ficar alojados, pousaram as bagagens e aproveitaram para
descansar um pouco; a viagem tinha sido bastante longa e
cansativa. Tinham combinado encontrar-se todos, com os
responsáveis pela viagem, dali a meia hora, à entrada do hotel, para
irem jantar à emblemática: Calle Gascona — El Bulevard de la
Sidra. Uma das ruas mais conhecidas da cidade, onde existiam
diversos restaurantes e bares, ao longo de toda a sua extensão, que
serviam tapas e pratos típicos asturianos; assim como a famosa
sidra de maçã. Era uma rua muito movimentada: quer de dia, quer
à noite.
— Estou exausta! Confesso que hoje não me apetecia nada ir
jantar fora. Se pudesse, ficava por aqui pelo quarto, vestia o pijama,
comia qualquer coisa e de seguida ia para a cama. — Disse ela,
deitando-se em cima da cama.
— Parece-me que somos dois a desejar o mesmo. Também me
sinto moído; apesar das várias paragens que fizemos ao longo da
viagem, foram muitas horas sentados no autocarro, sempre na
mesma posição.
— Podes crer! Estas viagens podem ser muito divertidas e
espectaculares, mas também são extremamente cansativas.
Chegamos ao destino completamente de rastos; porque são quase
sempre feitas de autocarro.
— Mas mesmo que nos sintamos bastante cansados, nós
devemos aproveitar bem o tempo que estamos na cidade; caso
contrário não vemos nada.
— Tens toda a razão!
— Há que tentar ser superior ao cansaço, nestas alturas. Tenho
a certeza absoluta que a maioria dos alunos se sente ou mais tão
cansada da viagem do que nós; mas, mesmo assim, aposto que
ninguém vai faltar ao jantar. A sede de liberdade e diversão supera
tudo.
— Acho que vou ter mesmo que concordar!
— Vais ver que vai ser divertido!

279
— Leva a máquina fotográfica para tirarmos algumas
fotografias.
— Mas haverá algum fotógrafo ou aspirante a fotógrafo, neste
mundo, que saia de casa sem o seu instrumento de trabalho? —
Brincou ele.
— Desconfio que não, principalmente se for um aspirante a
fotógrafo como tu! — Disse-lhe ela sorrindo.
— Entretanto Miguel sentou-se ao lado de Ana — Sabes uma
coisa? Cheguei a ponderar desistir e não vir a esta viagem…
— Porquê? — Perguntou-lhe ela de ar espantado, sentando-se
num ápice ao seu lado.
— Porque, por breves momentos, eu senti que não devia vir e
que devia desistir; porque, não podia nem devia impor a minha
presença a ninguém, na tua turma, pelo facto de eu querer
concretizar um sonho. Esta era continua a ser uma viagem vossa,
que só vai acontecer uma vez na vossa vida e para todos os efeitos
eu sou um perfeito desconhecido que pouco ou nada convive
convosco. Como tal ninguém tinha que ser obrigado a gostar de
mim e a aceitar a minha presença. Já paraste para pensar que se a
tua turma não me tivesse aceitado e eu tivesse insistido em vir,
podia haver alunos a recusarem-se ou até mesmo a desistirem de
vir por minha causa?
— Mas isso não era um problema teu, a partir do momento que
a escola e a Associação de Estudantes aceitassem que tu viesses à
viagem, a minha turma não podia fazer nada. Não iam ser os meus
colegas que iam decidir se tu podias ou não podias vir à viagem,
eles tinham que se limitar a aceitar-te e mais nada; para além disso
somos todos adultos e maduros e devemos comportar-nos como
tal, quando estamos na presença de uma pessoa que vem de fora.
Quanto à possibilidade de haver pessoas a recusarem-se ou a
desistirem da viagem por tu também vires, penso que quem se
sente mal é que deve se mudar. Se alguém não se sentia bem na tua
presença, tinha um bom remédio, não vinha. É uma escolha
simples e fácil.
— Mas não era justa e eu não queria nada que isso acontecesse,
não queria que ninguém desistisse de vir por minha causa; porque

280
todos os alunos têm o direito de vir e não ia ser a minha presença
que ia impedi-lo.
— Muito sinceramente, eu acho que ninguém iria ter coragem
de recusar ou de desistir da viagem, ou até mesmo de arriscar
impor-se perante a tua presença na viagem, sob pena de ser
impedido de vir à mesma; por isso, não penses mais nisso,
aproveita, ao máximo, pensa no sonho que estás prestes a
concretizar... Isso é que é realmente importante.
— É verdade! E nem te cheguei a confidenciar uma coisa: se eu
estou aqui e não desisti de vir a esta viagem é por tua casa. É
incrível como os melhores amigos conseguem sempre, dar-nos a
volta com tanta facilidade. Antes de ter tomado alguma decisão, eu
decidi parar para pensar um pouco em ti, na tua tremenda
dedicação e no teu esforço para que eu pudesse vir nesta viagem
convosco e pudesse concretizar o meu sonho. E quão desiludida
ficarias se eu não viesse, percebi que não fazia sentido algum eu
desistir; por isso, independentemente de tudo aquilo que pudesse
acontecer, decidi arriscar e vir na mesma.
— E tomaste a decisão mais acertada; para além disso, tu nem
imaginas como me sinto feliz por te ter aqui ao meu lado.
— Tenho que confessar que até agora não estou nada
arrependido da escolha que fiz.
— Que bom! Ainda bem! — Disse-lhe ela roubando-lhe um
beijo ternurento no rosto.

Descansaram mais alguns minutos, Ana dormitou quase


instantaneamente e à hora marcada desceram até ao hall de entrada
do hotel para seguirem para a Calle Gascona. Pelo caminho
aproveitaram e fizeram uma curta pausa junto à Foncalada: uma
fonte de água potável que tinha sido mandada construir pelo rei
Alfonso III. Seguiram caminho e antes de escolherem um
restaurante simpático e acolhedor, onde pudessem comer umas
tapas, aproveitaram para percorrer toda a calle para verem todas as
opções.
Alguns minutos depois, entraram num restaurante, sentaram-se
e pediram alguns pratos típicos da região: Cachopo e Chipirones

281
fritos, para beber: a emblemática Sidra de Maçã: a forma desta ser
servida deixou todo o grupo embasbacado. Para a sobremesa,
escolheram Arroz con Leche: semelhante ao arroz doce português.
O jantar foi longo e animado, recheado de várias conversas, de
expectativas e de alguma troca de galhardetes. Perto das dez da
noite regressaram ao hotel para o tão merecido descanso.
No dia seguinte, Miguel foi o primeiro a madrugar; enquanto
Ana dormia mais um pouco, ele aproveitou o sossego e pacatez da
cidade e foi dar um ligeiro passeio. Ficou agradavelmente
surpreendido com tudo e ansioso para que a aguardada visita
começasse. Já a manhã ia a meio, quando se reuniram para o
pequeno-almoço, o estado de espírito do grupo estava ao rubro;
cerca de vinte minutos depois da primeira grande refeição do dia,
estavam a iniciar o curto passeio pela cidade. A primeira paragem
iria ser na zona histórica da cidade para visitarem a Plaza del
Fontán: que era muito agradável, de formato rectangular e primava
pela belíssima decoração dos edifícios: um pormenor que valia a
pena observar com toda a atenção e que Miguel fez por fotografar
imenso e pela presença de inúmeras estátuas. Tiveram também
oportunidade de visitar o Mercado del Fontán: mercado típico da
cidade. Adoraram a visita ao interior do mercado, principalmente
Miguel; pois, aquele espaço trazia-lhe à memória a sua infância:
recordações das visitas que fazia na companhia da mãe ao mercado
da vila. Parecia que até conseguia sentir os mesmos cheiros e
sabores daquela época, foi difícil não se emocionar e não tirar
imensas fotografias.
Ainda visitaram a Catedral de San Salvador, de estilo gótico,
também conhecida por Sancta Ovetensis referindo-se à qualidade
e quantidade das relíquias que continha. E o Jardín de los Reyes
Cadillos: que apresentava no seu interior um conjunto de
esculturas dos doze reis das Astúrias; mais um belíssimo espaço
verde típico da cidade. Almoçaram num centro comercial e
aproveitaram o início da tarde para descontrair e fazer umas
compras, depois regressaram à cidade para observarem o edifício
da Casa Consistorial de Oviedo: equivalente à Câmara Municipal,

282
e a Iglesia de San Isidoro el Real e verem com particular atenção
algumas das muitas estátuas espalhadas pela cidade.
Já a tarde ia a meio, quando fizeram uma curta pausa para
provarem um dos doces típicos da cidade: o Carbayon: um
pequeno bolo de massa folhada, recheada com pasta de amêndoa,
ovos e açúcar e coberto por uma capa feita à base de açúcar;
enquanto observavam o edifício do Teatro Campoamor: teatro de
Ópera de Oviedo, conhecido por receber a entrega dos Prémios
Princesa das Astúrias. O edifício do Teatro Filarmónica: sede da
Sociedad Filarmónica de Oviedo e o edifício da Junta General del
Principado de Astúrias: órgão supremo de representação do povo
Asturiano. Miguel ainda não tinha parado de fotografar, era o único
elemento do grupo que possuia máquina fotográfica, os outros
usavam os smartphones para fazer registos fotográficos e publicar
fotografias nas respectivas redes sociais. Pelo final da tarde,
aguardava-os a visita mais especial, que os deixou extasiados
perante tamanha beleza: o Campo de San Fancisco. Era o parque
urbano da cidade, onde no seu interior se podiam distinguir
diversos passeios e avenidas, observar animais exóticos e um lago
com patos e tirar fotografias junto à estátua da boneca Mafalda,
entre outras coisas incomuns.
A primeira impressão foi comum a todos, parecia tirado de um
filme do famoso realizador Tim Burton; apesar da tarde estar no
fim, todos quiseram permanecer ali um pouco mais, para tirarem
algumas fotografias e selfies e se deixarem levar por aquele espaço
verde: conquistador, magnífico e de cortar a respiração, durante
alguns minutos, que parecia querer fazê-los perder a noção das
horas. Quarenta e cinco minutos depois despediram-se de Oviedo
e regressaram ao hotel para descansarem um pouco, pelo caminho
aproveitaram para observar a estátua de homenagem da cidade, ao
actor e realizador Woody Allen, como sinal de agradecimento
pelos elogios deixados pelo mesmo à cidade. Um bom mote para
uma selfie de grupo.
Miguel trazia a máquina fotográfica cheia de registos
fotográficos que testemunhavam os vários momentos especiais e
as muitas emoções que tinha vivido naquele primeiro dia. Tinha

283
sido intensa a troca de partilhas que havia feito com Ana naquela
tarde; estar ali, em plenas Astúrias, prestes a concretizar um dos
seus maiores e mais antigos sonhos estava a ser tão bom e tão
incrível que por vezes chegava a sentir que lhe faltavam as palavras
para descrever tudo o que estava a acontecer à sua volta. Só queria
mesmo poder absorver tudo, para guardar na memória para todo o
sempre: cada som, cada cheiro, cada cor e cada paisagem.
Jantaram no restaurante do hotel e à noite ainda houve energias
e forças para uma saída nocturna até uma discoteca; no entanto,
Ana e Miguel optaram por regressar mais cedo; porque estavam
cansados e não se queriam deitar tarde; pois tinham que voltar a
madrugar no dia seguinte. Antes de adormecerem, decidiram fazer
um singelo balanço daquele primeiro dia.
— O que achaste deste primeiro dia? Gostaste? Vá, quero saber
tudo… — Disse-lhe ela cheia de curiosidade; enquanto fazia a
mala.
— Adorei! Foi cansativo, mas valeu imenso a pena; a cidade é
fantástica e tem lugares espectaculares, tenho muita pena de não
podermos ficar cá, pelo menos, mais um dia.
— Também gostava de ficar cá mais tempo para podermos
explorar e desfrutar mais da cidade; mas pronto, não foi possível.
Fica para uma próxima.
— Estava aqui a pensar que, da próxima vez que viermos cá,
temos que vir só os dois e de mota!
— Ui! Não sei se isso será muito boa ideia! — Disse-lhe ela de
sorrido divertido.
— Porquê? Não te sentes segura comigo, nem confias em mim?
— Perguntou-lhe ele admirado e algo entristecido.
— Não tem nada a ver com isso, é claro que confio em ti e sei
muito bem que jamais deixarias que algo de mal me acontecesse.
— Então de que tens medo?
— Não sei explicar bem, como é algo que nunca experimentei,
sinto algum receio do desconhecido.
— É normal! Mas, posso garantir-te que é uma experiência
diferente e única, por teres oportunidade ver o mundo à tua volta

284
de uma perspectiva muito diferente, daquela que tens quando
viajas de carro.
— Não duvido!
— Gostava muito que tu partilhasses e alinhasses comigo nessa
aventura; nem imaginas como ficaria feliz.
— Eu prometo que vou pensar melhor no assunto; apesar de
não sentir toda essa adrenalina a correr-me nas veias, como
acontece contigo e de não ser tão aventureira como tu. E também
vou ver se tu realmente mereces esse esforço e esse sacrifício da
minha parte.
— Que engraçadinha!
— Estou desejosa para espreitar as fotografias que tiramos,
acho que ficaram todas fantásticas.
— Mal regressemos a casa, vou logo tratar delas.
— Já sabes que depois eu vou querer ver tudo ao pormenor!
— Com todo o gosto e prazer, se há companhia que não
dispenso é a tua!
— Muito ansioso por amanhã? Vamos iniciar, finalmente, a
visita ao Parque Nacional dos Picos da Europa.
— Estou a transbordar de ansiedade e curiosidade e sinto-me
numa verdadeira excitação. Duvido muito que consiga dormir, o
aproximar da realização de um sonho deixa-nos num verdadeiro
estado de euforia permanente.
— Acredito e imagino!
— Já imaginaste dois lagos no cume da montanha? Deve ser
um cenário indescritível, estive há pouco a ver os panfletos que nos
deram durante a viagem e quase fiquei sem fôlego. A paisagem
deve ser brutal.
— Espera-nos mais uma aventura inesquecível!
— Sem dúvida! As Astúrias têm-nos reservado deliciosas
surpresas!

O dia amanheceu mais frio e chuvoso, pouco convidativo a


passeios; no entanto, isso não roubava o entusiasmo ao grupo que
tentou despachar-se, o mais depressa possível, a tomar o pequeno-
almoço, para seguirem viagem até à pequena cidade de Cangas de

285
Onís. A viagem foi rápida, demorou cerca de meia hora, chegados
à cidade deram um curto passeio e observaram a emblemática
Ponte Romana que ostentava no centro do seu arco central uma
grande Cruz da Vitória: símbolo das Astúrias. Ana e Miguel não
perderam a oportunidade de tirarem uma selfie. De seguida
visitaram a Iglesia de Nuestra Señora de la Asunción de Santa
Maria que era muito visitada por turistas devido à beleza da sua
fachada e também à sua arquitetura peculiar. Também observaram
a estátua do rei Don Pelayo contígua à igreja, no jardim em frente,
e uma estátua de uma típica velha asturiana.
O resto da manhã foi passado a tirar algumas fotografias e a ver
algumas lojas de recuerdos, a seguir decidiram escolher um
restaurante relativamente perto para almoçarem e provarem mais
alguns pratos típicos como: chorizo a la sidra, fabada e Cordero a
la Sidra e de sobremesa: tarta de queso afuega. Na hora do café,
enquanto descansavam e descontraíam um pouco, partilharam
entre todos as várias fotografias que já haviam tirado. Os registos
feitos pelo Miguel fizeram imenso sucesso, tal era a qualidade e
detalhe dos mesmos. Ao início da tarde, encaminharam-se até à
vila da Covadonga para visitarem a Basílica de Santa Maria la
Real de Covadonga que apresentava uma nave principal belíssima
e sumptuosa.
Na esplanada da Basílica puderam ver a imponente estátua de
bronze, do rey Don Pelayo, obra de Eduardo Zaragoza e também a
Casa Capitular que continha o escudo de Covadonga, em plena
fachada, e que contemplava um salão de recepções, uma sala
capitular e uma biblioteca; infelizmente, não houve tempo para
visitarem o museu e as relíquias que este guardava no seu interior.
Seguiram para o Santuário Santa Cueva de Covadonga que se
localizava no interior de uma gruta no sopé do Monte Auseva, de
ambos os lados da estrada encontraram dois leões em mármore de
Carrara, que guardavam a entrada do santuário e que eram cópias
de uma obra de Pompeio Marchesi. Dentro da gruta era possível
observar-se: a capela e o respectivo altar do santuário, a imagem da
Virgem de Covadonga e os túmulos do rei Don Pelayo e da sua
esposa: rainha Gaudiosa e do rei Alfonso I e da esposa: rainha

286
Ermesinda; assim como, as três cruzes de pedra da Covadonga. A
partir dali, tinha-se uma vista privilegiada sobre a Basílica. Desde
o exterior, podiam observar-se pequenas cascatas de água que
pendiam desde a gruta e que faziam com que a paisagem
apresentasse uma beleza mística muito particular digna de ser
fotografada. Também se podia encontrar a Fuente dos 7 Caños:
uma fonte em forma de copo a partir da qual pendiam sete repuxos
de água, conhecida como a fonte do matrimónio. A tarde já ia
quase a meio quando retomaram viagem, continuando a subir pela
montanha, até aos Lagos da Covadonga, ainda demoravam cerca
de quarenta minutos. A paisagem que os envolvia, dividida entre o
verde e a montanha, era esplendorosa e resplandecente, captando a
atenção desde o primeiro minuto.
Miguel estava entretidíssimo, desde que tinham entrado no
autocarro, a fotografar tudo, podia ver-se no brilho dos seus olhos
a enorme felicidade que ele estava a sentir por estar, finalmente, a
realizar um sonho antigo há muito desejado. Ana sabia que não
eram necessárias palavras para descrever o misto de emoções que
o melhor amigo estava a viver naquele momento. O olhar dizia-lhe
tudo, nele podia ler-se o fascínio que Miguel estava a sentir por
todo aquele ambiente circundante.
Quando já estavam muito perto do primeiro lago, fizeram uma
curta paragem no Mirador de la Reina, para observarem e
desfrutarem das vistas deslumbrantes sobre as montanhas do norte
dos Picos da Europa, as planícies férteis de Güeña e a costa da
Cantábria. A vista panorâmica a desde o miradouro era
impressionante, Miguel estava extasiado perante tamanha beleza,
pegou na máquina fotográfica e tirou o máximo de fotografias que
conseguiu. Depois deram um pequeno passeio pelas redondezas,
por entre o verde resplandecente e aproveitaram para piquenicar
numa área onde havia uma pequena mesa concebida para o efeito.
A paisagem que os envolvia permitiu-lhes vislumbrar, ao longe,
algumas montanhas ainda com alguns resquícios de neve, o que
intensificou o entusiasmo de todo o grupo. Antes de continuarem a
viagem até aos Lagos, juntaram-se junto à pedra que continha o

287
nome do mirador e tiraram uma selfie. Miguel também quis tirar
uma selfie só com Ana para mais tarde recordarem.
A viagem prosseguiu, quando já estavam a poucos metros do
primeiro lago, o autocarro estacionou num parque: já bem
preenchido de turistas e excursões e fizeram o resto do percurso a
pé. Os Lagos da Covadonga eram constituídos por dois pequenos
lagos de origem glacial situados na parte asturiana do Parque
Nacional dos Picos da Europa e no maciço ocidental: o lago Enol
e o lago Ercina.
Apesar do clima frio e fortemente nublado, a paisagem não
deixava de ser esplêndida: aquele enorme lago rodeado por
montanhas e vegetação. Todos fizeram inúmeros registos
fotográficos. Minutos depois, regressaram ao autocarro para a
visita ao segundo lago: Ercina que ficava cerca de um quilómetro
mais acima. A paisagem que encontraram foi igualmente
arrebatadora, digna de belíssimos registos, até tiveram
oportunidade de ver alguns animais a pastarem. Desde ali,
seguiram a pé até ao Mirador Entrelagos ou de la Picota que se
localizava precisamente entre os dois lagos e que lhes ofereceu
vistas irrepreensíveis. Não pôde faltar a selfie de grupo e claro
Miguel fez questão de tirar também uma selfie apenas com Ana.
Pelo fim da tarde, retomaram a viagem até à vila de Cabrales,
aonde iriam pernoitar. Ana estava num verdadeiro desassossego,
não conseguia controlar a inquietação e curiosidade que sentia para
saber como Miguel estava a vivenciar aqueles primeiros momentos
da viagem e de concretização do seu sonho; assim como toda
aquela mescla intensa e profunda de emoções. No entanto, pelo
enorme sorriso que ostentava podia facilmente concluir que ele
respirava felicidade. De repente, Miguel suspirou, profundamente,
de emoção e contentamento; enquanto ia vendo, muito
concentrado, na máquina fotográfica as muitas fotografias que
tinha tirado ao longo do dia e decidiu quebrar aquele curto silêncio.
— O dia de hoje foi tão especial, intenso e incrível que ainda
continuo sem ter palavras para o conseguir descrever, estou nas
nuvens. Foi literalmente um sonho tornado realidade.
— Acredito e imagino que sim!

288
— Nem imaginas o quanto… E mais uma vez, devo a ti a
felicidade e alegria que sinto e também esta mistura tremenda de
sensações únicas que me envolvem e o facto de ter conseguido
realizar mais um grande sonho. Obrigado por tudo e por tanto e
principalmente por permitires que eu fizesse parte de tudo isto e
que tudo isto fosse possível, teve uma importância e um significado
enormes.
— Eu sei que sim! Não tens nada que agradecer…
— Sabes uma coisa? À medida que os dias vão passando, cada
vez estou a gostar mais da viagem. Está a ser tudo fantástico.
— Que bom! Fico muito contente por ouvir isso e penso que
não precise de perguntar mais nada, a expressão do teu rosto diz
tudo.
— Infelizmente, nunca fui muito bom a guardar só para mim,
tudo aquilo que sinto, acho que sempre fui uma pessoa demasiado
aberta; talvez fruto das minhas origens humildes.
— Concordo!
— Neste momento, eu sinto uma satisfação e uma sensação de
realização pessoal indescritíveis e inexplicáveis.
— Ana sorriu — O Parque superou as tuas expectativas
relativamente à ideia que trazias?
— Completamente! É ainda mais soberbo que aquilo que eu
imaginava, tenho mesmo imensa pena de não podermos ficar mais
tempo. Queria explorar tudo isto melhor e um pouco mais a fundo.
— Não desanimes! Ainda temos muitos dias pela frente para
nos perdermos neste paraíso natural; afinal de contas só estamos a
meio da viagem.
— Mas o tempo passa sempre a correr, nestas ocasiões!
— Mais um bom motivo para tentarmos tirar o máximo de
partido disto e amanhã espera-nos um novo dia recheado de
aventura, de paisagens deslumbrantes e de muitas surpresas.
— Sem dúvida!
— Confesso que, apesar de ter gostado do dia, já me sinto muito
cansada. As minhas pernas já se começam a ressentir desta correria
desenfreada, ainda bem que estamos de regresso para um descanso

289
bem merecido. No entanto, tu não te deves nada cansado, a avaliar
pela euforia e pela excitação que trazes,
— Acho que acertaste mesmo na muche! Se pudesse, voltava
já para trás e vivia tudo novamente.
— Claro, nem podia ser de outra maneira!
— Quando chegarmos ao hotel vou aproveitar para ligar aos
meus pais. Saber se está tudo bem com eles e contar-lhes tudo
sobre a viagem.
— Ui, acho que isso vai dar para a noite toda!
— Que exagero! Vais ver quão rápido vou ser…
— Sempre quero ver isso…

Aproximadamente quarenta e cinco minutos depois, antes de


chegarem a Las Arenas, fizeram uma curta paragem na localidade
de Poo de Cabrales para visitarem o Mirador de Pozo de la
Oracion, a partir do qual era possível ver-se o Pico Urriellu. Como
o clima estava mais ameno e menos chuvoso e o nevoeiro tinha
baixado consideravelmente, foi possível observarem-no, deixando
todo o grupo estupefacto perante a paisagem. Miguel foi depressa
à mochila buscar o tripé para poder tirar uma boa selfie de grupo e
também uma selfie só com Ana a seu lado e uma lente maior para
poder captar o Pico Urriellu com mais pormenor e definição.
Poucos minutos depois, por entre diversos registos fotográficos,
gargalhadas e conversas, Ana deu por si a focar-se, por breves
minutos e com alguma atenção na figura de Miguel, adorava ficar
a observá-lo quando ele estava a fotografar. Ele conseguia ter
mesmo postura de fotógrafo profissional: muito concentrado a
tentar enquadrar a paisagem, focando e desfocando com a lente e
dominando com extrema facilidade a máquina fotográfica.
A área circundante ao mirador era de uma beleza extrema, com
o verde a predominar e convidava a mais alguns registos
fotográficos. Miguel decidiu tirar algumas fotografias discretas a
Ana, antes de continuarem a viagem até à vila de Cabrales, que
ficava a poucos minutos dali. Mal chegaram ao hotel, pousaram as
bagagens nos quartos e já não saíram para visitarem a vila. O dia
tinha sido longo e cansativo e o grupo precisava muito de

290
descansar, sentiam-se todos estafados. No quarto: Naranjo de
Bulnes, naquele hotel os quartos tinham todos um nome diferente,
onde Ana e Miguel estavam alojados; enquanto Ana se instalava,
Miguel dirigiu-se à janela para tirar mais algumas fotografias. A
vila estava localizada no cerne do Parque Nacional dos Picos da
Europa, por isso, estavam rodeados por apenas vegetação verde e
montanhas. Um quadro rural bem típico que agradava imenso a
Miguel; porque lhe fazia recordar a sua infância, as suas raízes e o
seu Alentejo e que não deixava ninguém indiferente. As vistas
também eram magníficas e conquistavam qualquer um com
facilidade.
Ana aproveitou o ar concentrado de Miguel, para lhe tirar uma
fotografia com o telemóvel para guardar para si, estava
particularmente bonito focado na sua paixão pela fotografia. Já
passava da hora de jantar quando se distribuíram por dois ou três
quartos para jantarem todos juntos e de seguida deitar-se-iam cedo;
pois no dia seguinte iriam madrugar novamente. E assim foi…

No dia seguinte, bem cedo, Ana e Miguel decidiram dar um


passeio matinal pela vila que tinha um ar muito simpático,
pitoresco e acolhedor. Foram a uma loja de recuerdos comprar
algumas lembranças e encontraram, no centro, um minimercado
para comprarem alguma comida e uma pastelaria onde poderiam
todos tomar o pequeno-almoço. Regressaram ao hotel, onde todos
já estavam prontos para mais um dia recheado de aventura e
intensidade; a próxima paragem seria na Ruta del Cares, muito
conhecida como Garganta Divina do rio Cares, considerado um
dos percursos de senderismo mais belos de Espanha e mais
conhecidos dos Picos da Europa: que atravessava grutas, pontes e
caminhos esculpidos em plena rocha. Iriam passar lá uma boa parte
do dia. Tomaram o pequeno-almoço na pastelaria existente no
centro da vila e no caminho de regresso ao hotel, os responsáveis
pela viagem foram num instante ao minimercado comprar algumas
coisas para poderem realizar um piquenique na hora do almoço.
De seguida, organizaram-se nos autocarros e saíram de Las Arenas
em direcção às localidades de Poncebos e Camarmeña. Ao

291
contrário do esperado, foram brindados com um dia Primaveril
inesperado: com um sol bem quente e resplandecente. Miguel
fazia-se acompanhar de todo o material fotográfico que havia
levado; porque queria fazer os seus melhores registos fotográficos.
Chegados à localidade de Poncebos, os autocarros
estacionaram no parque existente e rapidamente alguém arriscou a
lançar um desafio surpreendente: e se fossem a pé até à localidade
de Camarmeña, na qual se localizava o Mirador de Naranjo de
Bulnes para verem o Pico Urriellu outra vez? O entusiasmo foi
geral perante a ideia, apesar do percurso não ser nada fácil nem
prático; uma vez que era a subir e estava um dia muito quente; no
entanto, todos quiseram arriscar, recheados de ansiedade e boa-
disposição. Miguel mostrava-se bastante eufórico com aquela
primeira proposta de aventura; e por entre sorridos, conversas
animadas, fotografias, partilha de emoções, chegaram depressa à
localidade Camarmeña e também ao Mirador de Naranjo de
Bulnes que lhes oferecia uma encantadora vista sobre o Pico
Urriellu com uma área verde circundante esplêndida e
simplesmente magnífica. Aproveitaram para passear pelas
redondezas, para piquenicar e descansar; enquanto desfrutavam
daquela deslumbrante paisagem.
Antes de regressarem a Poncebos, Miguel decidiu propor que
tirassem uma fotografia juntos com o Pico Urriellu como cenário
de fundo e a ideia agradou, de imediato, a todos. Divertidos e
descontraídos e de sorrisos estampados nos rostos, a máquina
fotográfica de Miguel registou mais um momento único para mais
tarde recordar. Algum tempo depois, quando já se encontravam
junto dos autocarros, depois de um regresso a Poncebos bem mais
fácil e rápido, sempre a descer, foi-lhes lançado um novo desafio
pelos responsáveis pela viagem: e se experimentassem um passeio
de funicular pelas montanhas antes da caminhada?
Apesar da relutância de alguns elementos, todo o grupo decidiu
aceitar aquele novo desafio com entusiasmo e excitação. O
Funicular de Bulnes unia as aldeias de Poncebos e Bulnes para
ajudar os habitantes da aldeia de Bulnes: célebre pelo seu
isolamento, por não ter acessos por estrada e só ser acessível por

292
um caminho não asfaltado ao longo do desfiladeiro do rio Bulnes,
no transporte de bens, animais e pequenos tractores agrícolas.
As vistas panorâmicas a partir do cume das montanhas
deliciaram o grupo e deixaram-no sem muitas palavras que
pudessem dizer. A imensidão do verde sobre as montanhas e a
transparência da água do rio transmitiam uma tranquilidade e uma
paz inqualificáveis; de telemóveis em punho, todos quiseram
fotografar e fazer vídeos para mais tarde recordarem e para
partilharem nas suas redes sociais.
Depois iniciaram a caminhada que levou uma boa parte da tarde
e que lhes proporcionou um dos melhores e mais marcantes
momentos do dia: verem o pôr-do-sol a partir das montanhas. Era
quase impossível não ficarem assoberbados perante tamanha
beleza sem igual, houve quem se deixasse levar pela emoção.
Quando Miguel pôde ficar a sós perante aquela dádiva da Mãe-
Natureza: tão profunda, quão intensa e tridimensional, ele pegou
na máquina fotográfica e captou aquele cenário de rara e
intemporal beleza para se recordar de como tinha sido inexplicável
e inesquecível a realização daquele sonho. O detalhe, perfeição,
intensidade e alta definição com que ele havia captado aqueles
últimos raios-de-sol daquele dia, transmitiam, a qualquer um, a
ideia de que o Sol insistia em querer atravessar a fotografia e
transpor os limites da realidade. Quase arriscavam dizer que, eram
capazes de se sentir completamente encadeados perante aquele
brilho fotográfico invulgar.
Antes da viagem de regresso, Miguel convidou todo o grupo a
tirar uma fotografia com as montanhas pinceladas de neve, como
cenário de fundo, sob aquele brilho intenso do sol e onde
sobressaíssem apenas as respectivas silhuetas de cada um. O
registo transbordava magia. No regresso, as emoções
permaneciam ao rubro bem e à flor da pele:
— Há imagens que valem por mil palavras! — Desabafou Ana
ainda a sonhar acordada, sentindo-se como se ainda estivesse
noutra dimensão e um pouco anestesiada.
— Sem a mínima dúvida! Quase arriscava dizer que nestes dias
tirei as melhores fotografias de sempre.

293
— Acredito! Afinal de contas, só um fotógrafo tão fantástico
como tu seria capaz de captar, com tal perfeição, os diversos
momentos únicos que nós vivemos hoje, aqui.
— Miguel mostrou-se comprometido — E só uma amiga tão
extraordinária como tu é capaz de deixar um aspirante a fotógrafo
como eu, corado com tantos elogios.
— Isso é porque realmente os mereces!
— Vais mesmo continuar a deixar-me sem jeito nenhum
perante tanta gente?
— Pronto, eu paro! Sabes uma coisa? Tenho o coração a
transbordar de felicidade e de emoções, nem sei bem como é que
hei-de gerir tudo isto.
— Então eu que o diga! — Disse-lhe ele sorrindo.
— Nem imaginas, a grande quantidade de vezes que eu já
pensei em ti, desde que aqui chegámos.
— Eu disse-te que este sítio era espectacular e recheado de
paisagens inimagináveis!
— Ainda bem que me sugeriste que viéssemos aqui, não me
podias ter dado melhor sugestão. Obrigada por isso… Esta viagem
está a superar cada vez mais as minhas expectativas, nunca pensei
vir a ser assim surpreendida, dia após dia, pela Natureza e sentir-
me tão rendida aos seus encantos. Estou a adorar tudo, mas,
principalmente, poder ter-te aqui ao meu lado.
— Que bom! Não tens nada que agradecer; aliás, o melhor
agradecimento que eu posso ter é ter oportunidade de ver o teu ar
de felicidade e satisfação e saber que está tudo a corresponder às
tuas expectativas. Só isso, já faz com que tenha valido muito a pena
arriscar em te sugerir que a viagem fosse aqui. Acredita que tem
sido um enorme prazer poder estar aqui ao teu lado.
— Se pretendia que esta viagem marcasse bem o fim desta
etapa da minha vida, estou mesmo a conseguir atingir esse
objectivo em pleno.
— Que maravilha! Se há pessoa que mais o merece, és tu.
— Acho que agora chegou a minha vez de ficar corada…

294
— Que pena que está tudo a chegar ao fim, foi uma semana
inesquecível e vou confessar-te uma coisa, se pudesse já nem
voltava para Portugal, ficava aqui para sempre.
— Já esperava essa tua reacção e desconfio também que esse
seja o sentimento da maioria de todos nós…
— Não me podia sentir mais feliz ao ouvir isso; acho que, há
certos encantos aos quais é bastante difícil resistir.
— Concordo plenamente!
— Quero muito voltar cá contigo! Este é daqueles lugares que
vale muito a pena revisitar e partilhar só com uma pessoa especial.
E para mim, essa pessoa especial és tu.
— Quem sabe o futuro nos traga um dia de volta!
— Espero mesmo que sim!

Chegaram ao hotel em Cabrales, encaminharam-se para os


quartos, petiscaram qualquer coisa e depois cederam ao cansaço.
O dia tinha sido bastante exaustivo; mas também bastante emotivo.
Traziam cada paisagem gravada na memória; como se fosse um
negativo fotográfico indestrutível. Foi com grande tristeza que
começaram a fazer as malas para o regresso, todos partilhavam do
mesmo sentimento: a forte vontade que tinham de ali
permanecerem mais alguns dias, nunca uma viagem de finalistas
tinha sido tão rica em momentos únicos e especiais e ao mesmo
tempo havia passado tão depressa. Sem dúvida que tinha sido uma
viagem marcante para todos e que muito dificilmente iriam
conseguir esquecer.
E o dia do indesejado regresso chegou mais depressa do que
esperavam, apresentava-se luminoso e muito solarengo como era
desejado por todos. Aproveitaram os primeiros minutos da manhã
para darem um passeio pela vila e depois dirigiram-se à localidade
de Sotres: a aldeia mais alta dos Picos da Europa, onde
aproveitaram para dar mais um pequeno passeio, até bem perto da
hora do almoço, quando se encaminharam para a localidade de
Potes para almoçarem. Almoçaram numa esplanada bem
simpática e acolhedora muito próxima de uma das pontes da vila.
Depois, seguiram até ao Puerto de San Glorio para visitarem o

295
Mirador del Corzo: decorado com uma imagem metálica de um
corzo da autoria do escultor cantábrico Jésus Otero. A paisagem
era fantástica e deixa qualquer um sem fôlego, perante aquela vasta
imensidão de verde e montanhas. Miguel estava mesmo nas suas
sete quintas, sorridente e com um brilho especial no olhar, por entre
registos fotográficos intermináveis.
A viagem prosseguiu; uma vez que, ainda tinham muitos
quilómetros para percorrer e já se fazia tarde. Em jeito de
despedida, decidiram percorrer, de autocarro, o emblemático
Desfiladeiro de la Hermida, que se prolongava por entre enormes
paredes verticais de pedra calcária. A paisagem que se podia
observar era soberba, estarem ali no cerne da Mãe-Natureza estava
a ser uma experiência única e fantástica. À medida que as Astúrias
iam ficando cada vez mais longe, Miguel ia apercebendo-se, de ar
triste e coração apertado, que um dos seus maiores sonhos, pelo
qual havia lutado, durante toda a vida, tinha passado num ápice.
Ainda nem conseguia acreditar que se tivesse mesmo realizado,
parecia tudo uma espécie de utopia, sentia-se mesmo de felicidade
plena.
Durante aqueles dias, ele tinha sido testemunha da existência de
um lugar impressionante, com uma beleza rara e única e as muitas
paisagens que tinha observado e fotografado eram todas
magníficas e especiais. Aqueles pensamentos obrigavam-no a
conter a respiração perante a imensidão do que havia visto e
conhecido, regressava a casa com a máquina fotográfica cheia de
registos fotográficos mostravam os inúmeros e incontáveis
momentos felizes e memoráveis que tinham vivido juntos. Quando
se apercebeu, os seus olhos estavam marejados de lágrimas de
emoção e de felicidade, apressou-se a limpá-los, discretamente,
para que Ana não se apercebesse do que ele estava a sentir e de
seguida olhou para ela muito envergonhado e embevecido.
— Então passa-se alguma coisa, Miguelinho? — Perguntou-lhe
ela de ar pensativo e preocupado tirando, de imediato, os
auscultadores dos ouvidos.
— Miguel sorriu, beijou-a com ternura na testa e sossegou-a
rapidamente — Não! Está tudo óptimo…

296
— A que se devem essas lágrimas?
— São só lágrimas de emoção e felicidade. Olhar, agora, para
ti fez-me perceber algo importante: que sou um grande sortudo por
ter uma amiga como tu, ao meu lado. Ainda não consigo acreditar
que o meu sonho se tornou realidade, que estive mesmo nas
Astúrias e no Parque Nacional dos Picos da Europa. Era sem
dúvida, um dos meus maiores desejos.
— Compreendo que quando nós realizamos aqueles sonhos que
desejávamos muito e que nos tiravam, por completo, o sono, há
imenso tempo, nos sintamos como se por breves momentos
passássemos a viver numa outra dimensão, à qual ainda não
tínhamos chegado nem tocado. Sonhar é isso, vivermos num
mundo à parte: um mundo sem dificuldades, preocupações e
complicações; por isso, penso que esse teu estado de espírito e esse
misto de emoções que sentes fazem parte de todo este processo.
— Por vezes, eu ainda dou por mim a pensar que lá estamos a
reviver tudo como se não houvesse amanhã: sem fôlego, com a
mesma emoção e com a mesma intensidade e adrenalina, a
absorvermos tudo aquilo até ao último minuto. Acho que ainda não
tive tempo de voltar à realidade e de assimilar tudo o que esta
semana me deu.
— Acredito! Acho que, até eu me sinto assim, tudo aquilo que
vivemos ao longo desta semana foi mesmo incrível e muito intenso
e especial.
— Sem dúvida! Sinto-me como se ainda estivesse anestesiado
e a viver dentro do meu sonho, parece tudo uma ilusão, não me
apetece mesmo nada voltar à realidade; porque ainda mal nos
despedimos e as fortes saudades já apertam e já me consomem. Foi
uma das viagens e um dos momentos mais colossais e únicos da
minha vida, superou mesmo
as minhas expectativas. Acho que, nunca, jamais o irei conseguir
esquecer e que nunca irei ter palavras para te agradecer por tudo o
que fizeste por mim, foi tão espantoso que continuo sem ter
grandes palavras para dizer.

297
— Que maravilha poder ouvir-te dizer isso! Fico mesmo feliz e
satisfeita que esta viagem tenha conseguido ir além das tuas
expectativas.
— Obrigado, mais uma vez, por tudo e principalmente por me
teres convidado para te acompanhar nesta viagem, adorei a
experiência, foi mesmo perfeita e inexplicável.
— Não tens nada que agradecer, foi um prazer enorme para
mim poder partilhar contigo esta viagem tão especial e também
poder fazer parte da realização do teu sonho.
— O privilégio foi todo meu por poder partilhar contigo a
concretização deste meu sonho, deu-me uma satisfação enorme.
— Já vamos ter muitas histórias para contar!
— Nem duvides!

Ele continuava a achar tudo aquilo inacreditável, mesmo depois


de já ter pisado aquele mesmo chão que tanto desejava pisar um
dia. Cada vez que dava consigo a pensar no que lhe tinha
acontecido e no que tinha vivido naqueles últimos dias,
emocionava-se. Uma emoção que o levava a concluir que não
havia amizade como aquela que o unia à Ana, nem amiga nenhuma
como ela. Até arriscava a dizer que ela era a amiga que muita gente
gostaria de ter na sua vida; porque era uma pessoa incomparável e
insubstituível. Nada do que ele pudesse dizer conseguiria explicar
o muito que, ela havia feito para que o sonho dele se realizasse: o
esforço, a dedicação e a entrega tinham sido impressionantes. Era
a ela que ele devia aquele momento de forte realização pessoal e
era graças a ela que tudo se tinha tornado uma realidade. Sonhava
com aquele dia praticamente desde que tinha ouvido o amigo do
pai: Joaquín a falar sobre as Astúrias e sobre aquele autêntico
paraíso natural. Não sabia bem, os motivos para ter querido tanto
conhecer aquele lugar; mas sabia que era um sítio que tinha, sem
dúvida, tudo a ver com ele, que o fascinava e que ele iria amar
conhecer. Talvez devesse ao facto de ser uma pessoa muito terra-
a-terra, nascido e crescido na aldeia, num meio rural, simples e
humilde. No meio da natureza. A natureza era a descrição mais fiel
de si próprio.

298
Os poucos dias que restavam das férias da Páscoa, depois da
viagem às Astúrias, foram passados em casa e em família entre:
algum estudo, algum descanso, saídas com os amigos, passeios de
mota, cinema e idas ao centro comercial. O Domingo de Páscoa,
que acontecia dali a três dias, ia ser passado, no Alentejo e na
quinta, como já era habitual, juntando assim toda a família em mais
uma quadra festiva. Tanto Ana, como Miguel estavam radiantes,
principalmente Miguel que ia poder rever os pais; pois, desde o
Natal que não os via e assim iria poder colmatar todas as saudades
que já sentia e estar com eles em mais uma quadra festiva.
Ana e Miguel foram os primeiros a irem para a quinta, Sábado
de manhã, para ajudarem nos preparativos. Miguel arriscou em
convidar Ana para viajarem de mota até ao Alentejo, ao início ela
mostrou-se um pouco renitente; mas depois não conseguiu resistir
à curiosidade que sentia, pois, nunca haviaa viajado de mota com
ele e era algo que já queria fazer há algum tempo. Para além disso,
era uma excelente forma de terminarem bem aquelas férias: com
mais uma singela aventura. Saíram de Lisboa, pela manhã bem
cedo, vestidos a preceito: ambos ostentavam roupas de cabedal,
quentes e confortáveis para a viagem refrescante que se
aproximava.
Montaram na Maria Vinagre e depressa se fizeram à estrada
com a brisa fresca da manhã a envolvê-los e a paisagem a alterar-
se à velocidade da luz, não lhes dando tempo para distinguirem
cores e formas. Agarrada à cintura de Miguel, Ana estava cada vez
mais deslumbrada e rendida àquela forma peculiar de olhar o
mundo à sua volta, andar de mota era realmente fantástico. Aquela
intensa sensação de liberdade era encantadora e viciante.
Chegaram à aldeia e à quinta quase pela hora do almoço,
Miguel não perdeu tempo e foi logo colmatar todas as saudades
que sentia dos pais. O reencontro foi muito especial para ele; apesar
de se sentir bem em casa de Ana por vezes também sentia saudades
das suas raízes e do seu verdadeiro lar, do aconchego da sua
verdadeira família e das origens humildes. Por isso foi com
comoção que voltou à quinta e a casa, também gostou de rever os

299
avós de Ana que tanto o haviam ajudado, tinha também para com
eles uma grande dívida de gratidão eterna.
Nas datas festivas como a Páscoa, férias de Verão e Natal, a
Quinta da Juventude era o local de reunião da família Salgado,
todos faziam por se juntar para conviverem um pouco e porem a
conversa em dia, partilhando as novidades que se iam juntando ao
longo do ano. A vida na quinta ficava sempre mais agitada: muita
gente a falar em simultâneo, os primos Sofia e Gaspar sempre a
correrem, de um lado para o outro, aos gritos e às gargalhadas ou
com as habituais zaragatas entre irmãos e portas a baterem com
frequência; no entanto, apesar da avançada idade e da vida calma
que os avós de Ana levavam na maior parte do ano, naquelas
alturas, eles adoravam ter a família toda reunida. Acabavam por ser
sempre momentos bem divertidos; porque todos ajudavam nas
tarefas e assim tudo era mais fácil e descomplicado. À noite havia
sempre longos serões familiares com jogos, conversas longas,
anedotas e várias histórias; desta vez o tema central da maioria das
conversas era a viagem de finalistas de Ana e como tudo tinha
corrido.

Naquele primeiro dia, tal como já vinha a ser hábito, Miguel


convidou Ana para jantarem em sua casa; era uma espécie de ritual
sempre que regressavam à quinta. Ela aceitou o convite sem pensar
duas vezes, pois gostava imenso de jantar em casa dele e de
conviver e estar ainda mais perto dele e da sua família. Era um
prazer enorme. E foi, como sempre, um momento bastante
acolhedor; a casa estava muito diferente do que era antigamente:
quando eles eram pequenos. Ana lembrou-se, por breves
momentos que naquela altura a casa ainda era feita em pedra, não
tinha luz, não tinha água quente, nem aquecimento, e o saneamento
era muito escasso. Era uma casa simples e humilde, tendo em conta
as possibilidades dos pais de Miguel naquela altura, no entanto, não
tinha nem de perto, nem de longe, as condições de conforto que
tinha naquele momento; entretanto havia sido toda renovada.

300
Após o jantar reuniram-se na sala a conversar sobre um pouco
de tudo, principalmente sobre a viagem de finalistas de Ana, onde
Miguel tinha concretizado mais um dos seus grandes sonhos. Ana
estava muito feliz por poder estar ali junto da família do seu melhor
amigo e Miguel também se mostrava radiante por poder tê-la,
novamente, presente na sua casa. Minutos depois, foram até ao
quarto dele e ficaram por ali a conversar, junto à janela, sob o olhar
de uma noite fresca e intensa de lua cheia.
— Espero que tenhas gostado do jantar! — Disse-lhe ele
bastante sorridente.
— Oh! Já sabes que eu gosto sempre imenso de jantar cá e de
poder estar na tua companhia e na dos teus pais. Gosto muito de
vocês…
— Também gosto imenso de te ter cá e de partilhar contigo,
algo tão meu.
— Não te preocupes porque esteva tudo óptimo! Sempre que
volto cá, vêem-me à memória imensas recordações da nossa
infância: da primeira vez que aqui entrei com o meu avô para te
virmos buscar para passares uns dias comigo na quinta. Lembras-
te?
— Perfeitamente! O forte entusiasmo que eu senti nesse dia foi
mesmo indescritível; aliás a vossa visita foi a melhor coisa que me
podia ter acontecido.
— Nem duvido!
De repente, os olhos de Ana recaíram sobre a mesa-de-
cabeceira, onde Miguel ainda tinha emoldurada a fotografia que
havia tirado no Estádio José Alvalade, com os jogadores e equipa
técnica do Sporting.
— Uau! Ainda tens esta fotografia?
— Talvez tenha sido das fotografias que mais preservei.
— Ana sorriu — Já passou quanto tempo? Uma década?
— Quase… Oito anos!
— Meu Deus! O tempo passa num ápice!
— Podes crer!
Entretanto, Miguel dirigiu-se a uma estante com livros que
estava em frente da cama e retirou de lá um álbum.

301
— Lembras-te desta fotografia, princesa? — Disse-lhe ele,
mostrando-lhe uma fotografia que haviam tirado na infância,
durante uma divertida tarde, na praia fluvial.
— Lembro, pois! Foi uma tarde bem preenchida e recheada de
brincadeiras e sorrisos.
— É mesmo incrível como a descoberta do amigo certo, nos
permite encontrar o lado supremo da felicidade. Senti isso, desde o
primeiro momento em que te conheci; principalmente por haver
alguém capaz de gostar de mim para além das diferenças.
— Naquela altura, o mais importante para mim era conseguir a
tua amizade porque nunca tinha tido amigos durante as férias; o
resto era insignificante.
— Por isso é que nunca desististe de mim, mesmo com o meu
péssimo feitio!
— Claro! Numa amizade verdadeira, as diferenças são o que
menos importa; ainda que pense que amigos diferentes se
conseguem completar ainda mais que aqueles que partilham
personalidades semelhantes. É uma espécie de enriquecimento
mútuo.
— Bem pensado! Concordo!
— Acho, sinceramente que, ao longo da vida, nos fomos
sempre enriquecendo imenso, um ao outro, com as nossas
respectivas diferenças. E isso fez de nós pessoas melhores.
— Sem dúvida!
A conversa prolongou-se e continuou bastante animada.
Aproveitaram ainda para relembrar mais momentos e situações da
infância, por entre muita alegria, boa-disposição, gargalhadas,
detalhes e mais algumas memórias que Miguel fazia por guardar.

No dia seguinte, Domingo de Páscoa, bem cedo, Ana e Miguel


começaram o dia com um pequeno passeio matinal, sabia bem a
brisa fresca, o cheiro dos frutos e da terra húmida, o som dos
pássaros e de outros animais, a paz e a tranquilidade da quinta, a
vasta imensidão dos campos e o verde da paisagem; aproveitaram
e colheram um balde de sumarentas laranjas para fazerem sumo
natural para o pequeno-almoço. Depois regressaram a casa, já

302
estava toda a gente levantada da cama e a azáfama era grande: o
avô António já andava de volta do forno de lenha a assar o leitão,
a mãe de Miguel e a avó São já estavam na cozinha rodeadas de
tachos e panelas a fazerem os cozinhados e na sala de jantar, na
parte turística da quinta, Joana já punha as mesas. Quanto ao Pedro
tinha pegado no carro e tinha ido com o pequeno João comprar o
jornal à vila mais próxima, os restantes membros da família tinham
ido até à praia.
Entretanto, a família de Ana ia começando a chegar,
intensificando por completo a azáfama que se vivia na quinta;
primeiro chegaram o tio Henrique: irmão mais velho da mãe de
Ana e a sua esposa: a tia Carlota. Viviam em Góis (uma localidade
perto de Coimbra) e não tinham filhos. Seguiram-se o tio Diogo e
a tia Bárbara e os primos Sofia e Gaspar, que eram gémeos, por
entre abraços e beijinhos foram cumprimentando toda a gente e
conversando sobre os mais diversos temas.
Ana e Miguel tomaram o pequeno-almoço e depois Ana foi
ajudar a mãe; enquanto Miguel foi fazer companhia ao pai nas
vinhas da quinta. Ainda havia muitas coisas para fazer antes do
almoço; por isso, depois de deixar a mesa posta, Ana juntou-se a
Miguel que já andava no pátio com o pai a ajudar o avô António
com os assados. Algum tempo depois, a mãe de Miguel chamou
para o almoço, que já estava na mesa: esta apresentava-se recheada
das mais diversas iguarias; foi um almoço muito animado, que fez
por se prolongar pela tarde fora, tal como acontecia habitualmente
em todos os almoços de família. Transformando-se num momento
de grande convívio, recheado de conversas sobre vários assuntos,
de histórias antigas do avô, das travessuras de Sofia e Gaspar que
fizeram as delícias de toda a gente, roubando gigantescas
gargalhadas à mesa perante a sua ingenuidade e genuinidade. De
muitas novidades, das anedotas e piadas secas de Miguel que
conquistaram toda a gente, ninguém conseguia ficar indiferente. E
ainda havia espaço para se comentarem as notícias mais recentes.
Pelo fim da tarde: já fugidio e tardio, Ana e Miguel foram até à
praia fluvial; mas os primos Sofia e Gaspar quase lhes estragavam
os planos.

303
— Aonde vão? — Perguntaram-lhes eles, mal Ana e Miguel se
levantaram da mesa.
— Vamos até à praia!
— Que fixe! Também queremos ir, podemos?
Ana não gostou nada da ideia, torcendo o nariz e mostrando-se
desagradada e pensativa, não queria nada levar os primos; pois, ela
queria passar aqueles derradeiros momentos das férias, a sós com
Miguel.
— Não acho que seja muito boa ideia…
— Oh! Porquê? — Perguntaram eles muito tristes e
desanimados.
— Porque vamos de bicicleta e a praia ainda fica longe para
vocês.
— Nós aguentamos! Vá lá, também queremos ir…
Miguel vendo a desilusão e consequente preocupação de Ana,
decidiu intervir para resolver o problema:
— Desta vez não vão mesmo poder vir, porque é muito longe;
no entanto, o que é que vocês acham da ideia de eu vos lançar um
desafio, para vocês desenvolverem enquanto eu e a Ana vamos à
praia?
— Que desafio?
— Venham comigo! — Disse-lhes ele sorridente.
Sofia e Gaspar seguiram-no expectantes e numa correria
desenfreada; Ana também se mostrou muito curiosa e Miguel
encaminhou os dois pequenos traquinas para as traseiras da quinta
onde se encontrava uma mesa de jardim.
— Sentem-se, mas não se atropelem; porque há cadeiras para
os dois.
— Afinal, o que é que estamos a fazer aqui, Miguel?
— Já vão ver! — Miguel foi ao seu quarto e trouxe duas folhas
em branco e a mala de pintura da sua infância, estava praticamente
intacta — Ouvi dizer que gostavam muito de desenhar; por isso, o
que eu vos proponho é que façam um desenho onde ilustrem aquilo
que mais gostaram destas férias. O desenho mais original ganha
um prémio.
— E o que é o prémio?

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— Isso, eu não vos posso contar, senão o desafio perde a piada.
Quando voltar da praia, quero ver essa imaginação.
— Está bem! — Disseram-lhe eles muito entusiasmados,
pondo mãos-à-obra.
— Miguel voltou, depressa, para junto de Ana que o esperava
ansiosamente na sala — Pronto, o problema com as companhias
indesejadas, já está resolvido.
— Ana riu-se — O que fizeste com os meus primos?
— Estão entretidos com uns desenhos que lhes pedi para
fazerem sobre as férias da Páscoa, o melhor desenho ganha um
prémio. Já não devem incomodar-nos mais até amanhã.
— És incrivelmente fantástico! Sendo assim… Como o nosso
pequeno problema já está, definitivamente, resolvido, eu posso te
ter, finalmente, só para mim.
— Mas é claro que sim! E podes levar-me onde tu quiseres,
estou à tua inteira disposição.

Ana pegou na mão de Miguel, foram aos quartos buscar as


mochilas e as toalhas de praia e de seguida pegaram nas bicicletas
e encaminharam-se para a praia para apanharem os banhos-de-sol
que restavam. Vinte minutos depois, estavam a estender as toalhas
no areal, Ana não perdeu tempo a ter uma grande ideia.
— Vou dar uma pequena corrida à beira-mar, não queres vir?
— Perguntou-lhe ela
— Desculpa, mas agora não me apetece muito! Acho que
prefiro, ficar aqui a desenhar e a fotografar, não te importas?
— É claro que não! Até já!
— Inté, princesa minha!

Miguel estendeu-se na toalha ao sol e aproveitou para tirar


algumas fotografias: a maioria delas a Ana e para voltar a desenhar,
com o frenesim das aulas tinha deixado de ter tempo para dedicar
à sua paixão pelo desenho; por isso, decidiu aproveitar aqueles
poucos dias de férias que faltavam até ao regresso às aulas, para
levar o caderno de desenhos consigo, para o Alentejo, para poder
preencher mais algumas folhas em branco. Se havia coisa que ele

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mais gostava, era da paisagem tipicamente alentejana: quente,
verdejante, bravia e preenchida de cor, a musa mais que perfeita
para uns fantásticos momentos de desenho e pintura.
Minutos depois, com o sol a querer pôr-se no horizonte e já
cansada de tanto correr e chapinhar no rio, Ana decidiu regressar
para junto de Miguel e permaneceram mais algum tempo por ali,
para verem o pôr-do-sol.
— Esta paisagem consegue deixar-me sempre sem palavras, é
sempre tão sublime…
— Podes crer! É mesmo incrível, apaixonante e romântica. Já
reparaste na fabulosa beleza natural com que a natureza nos
brinda?
— É uma pena que, há medida que crescemos deixemos de
saber apreciar estas pequenas preciosidades e pior ainda que isso,
as estraguemos com as nossas manias e excentricidades. Paisagens
como esta são uma enorme dádiva e nós devíamos saber tirar um
maior partido delas
— Concordo! Mas agora não vamos pensar nisso, vamos
apenas desfrutar deste momento e desta paisagem, juntos.
— Excelente sugestão! — Disse-lhe ela olhando-o
apaixonadamente.

Abraçaram-se, os dedos de ambas as mãos entrelaçaram-se,


beijaram-se longamente e assim ficaram até regressarem a casa.
Chegada à quinta, tomaram um duche rápido, jantaram algo ligeiro
e aproveitaram para fazer as malas; pois regressariam a Lisboa, no
dia seguinte, depois do almoço. Quando eles já tinham tudo pronto,
decidiram fazer uma sessão de cinema, que se prolongou noite
dentro.
A Páscoa passou num ápice e quando Ana e Miguel se
aperceberam, uma nova semana estava prestes a iniciar-se, com o
regresso às aulas cada vez mais próximo. No dia do regresso a casa,
acordaram bem cedo e aproveitaram para dar o último passeio
matinal pela quinta, desfrutando assim da brisa fresca e do
ambiente calmo tipicamente rural. O resto da manhã foi bem
ocupado e atarefado a ajudarem o avô António nas tarefas da

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quinta, estavam exaustos, mas felizes; porque, ambos adoravam
aquela rotina e agitação próprias do campo.
Pelo fim da manhã, Ana e Miguel regressaram a casa,
prepararam a Maria Vinagre com a bagagem, almoçaram e a meio
da tarde viram-se forçados a regressar a Lisboa. No dia seguinte já
era dia de regressarem às aulas. Pelo caminho ainda passaram pela
Praia da Princesa, para colmatarem as enormes saudades que
sentiam daquele refúgio que era tão especial para os dois e só
depois foram para casa.
Sentaram-se no sofá, de pipocas no colo e aproveitaram para
ver um bom filme romântico, enquanto descansavam da viagem e
aproveitavam os últimos momentos do último dia das férias da
Páscoa.

Mas as aventuras destes dois cúmplices


não se ficarão por aqui…

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