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PLAT ÃO E O MÉTODO DE DIVISÃO

A interpretação deleuzeana da filosofia de Platão tem co-


mo objetivo explicitar sua motivação fundamental privilegian-
do seu método de distinção, de separação ou de divisão. "O pro-
jeto platônico só aparece verdadeiramente quando nos reporta-
mos ao método de divisão."1 Mas, para dar conta do que con-
sidera fundamental, Deleuze se situa em dois registros ou define
duas dualidades constitutivas do platonismo - a manifesta e a
latente -, esclarecendo a prioridade que vigora entre elas.
Em uma primeira determinação, o platonismo consiste em
distinguir essência e aparência, inteligível e sensível, original e
cópia, idéia e imagem. Essa "dualidade manifesta"? marcou a
história da filosofia. Segundo Nietzsche, toda a filosofia a par-
tir de Platão se desenvolve nos quadros de uma oposição entre
aparência sensível e essência inteligível. Para explicitar em que
consiste a dualidade manifesta da filosofia de Platão, utilizarei
o célebre texto da República 510a-511a, conhecido como a "pas-
sagem da linha". O que evidenéia esse texto é que para Platão
não pode haver verdadeiro conhecimento do sensível. O que cor-
responde ao domínio do sensível é apenas opinião - conjectura
e crença - e não saber, conhecimento, ciência. Só do inteligí-
vel, das essências, das idéias é possível haver verdadeiro conhe-
cimento. Mas, do mesmo modo que há uma hierarquia do inte-
ligível com relação ao visível, o domínio do inteligível não é ho-

I. L.S., p. 347. As principais referências a Platão estão em: L.S., séries 1 e 18, e "Pla-
tão e o simulacro", pp. 347-361; D.R., pp. 82-95, 165·168,184-186,193-194,340-341,
349-351; P.S., pp. 193-195.
2. L.S., p. 351.

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26 DELEUZE E A FILOSOFIA O NASCIMENTO DA REPRESENTAÇÃO 27

mogêneo, também é hierárquico. E por que a filosofia - a dia- Deleuze não nega que o platonismo seja, de modo geral, uma
lética a noesis - é um saber superior a todos os outros, como, doutrina dos dois mundos: mundo sensível e mutante das cópias
por exemplo, a matemática? A "passagem da linha" aponta dois e aparências; mundo supra-sensível e imutável, que é o mundo
limites da matemática: embora ela pense essências, seres não-sen- verdadeiro das essências, o modelo. Ainda em Mil/e plateaux ele
síveis ela se serve de figuras visíveis com o objetivo de tornar faz referência a essa problemática: "No texto do Timeu (28-29), I
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possí~el a demonstração por uma série de etapas sucessivas; ~l~m Platão considera por um curto instante que o Devir não seja ape-
disso, ela parte de hipóteses não para se elevar a um prInCIpIO, nas o caráter inevitável das cópias ou das reproduções, mas seja
mas para chegar a um término, a uma conclusão. O que acarre- ele próprio um modelo que rivalizaria com o Idêntico e o Uni-
ta uma dupla superioridade da filosofia. Em primeiro lugar, ela forme. Ele só evoca essa hipótese para excluí-Ia; e é verdade que,
não recorre a nada que seja sensível: ela não se serve absoluta- se o devir é um modelo, não apenas a dualidade do modelo e
mente de imagens. Em vez de ser um estímulo, o sensível é um .da cópia, do modelo e da reprodução, deve desaparecer, mas as
obstáculo ao pensamento. A inteligibilidade de uma coisa, em próprias noções de modelo e de reprodução tendem a perder to-
vez de ser um resultado da violência da sensibilidade, que dá a do sentido". 4 No entanto isso não é o mais importante de sua
pensar, que força a pensar, é dada justamente pelo afastamento interpretação. Sua grande idéia consiste em defender que a dua-
do sensível. Em segundo lugar, o filósofo utiliza as hipóteses não lidade entre mundo aparente e mundo das essências não é a dis-
como princípios, mas como pontos de apoio para se elevar até tinção principal estabelecida por Platão; e, mais ainda, consiste
os princípios últimos ou primeiros, até o princípio incondicio- em explicitar como essa distinção manifesta existe em função de
nado, absoluto ou, para empregar a linguagem de Platão na Re- uma distinção ainda mais fundamental que chama de "latente">:
pública, o princípio não-hipotético, princípio universal do Bem, a distinção entre as boas cópias e os simulacros.
que é objeto de uma intuição intelectual. "Pois, de Platão aos Se ele formula essa hipótese interpretativa é, sem dúvida,
pós-kantianos, a filosofia definiu o movimento do pensamento porque pretende afrontar as dificuldades e cumprir as exigên-
como uma passagem do hipotético ao apodítico ... em Platão cias colocadas por uma "subversão" radical do platonismo ou
a dialética se definia assim: partir de hipóteses, se servir de hi- por uma crítica, de inspiração nietzscheana, da filosofia da re-
póteses como trampolins, isto é, como 'problemas', para se ele- presentação. "Que significa 'reversão do platonismo'? Nietz-
var até o princípio não-hipotético que deve determinar a solu- schedefiniu assim a tarefa de sua filosofia, ou mais geralmente,
ção dos problemas e a verdade das hipóteses ... "3 Assim, a dia- a tarefa da filosofia do futuro. Parece que a fórmula queria di-
lética é ascendente: vai das hipóteses ao arché; eleva-se cada vez zer: a abolição do mundo das essências e do mundo das aparên-
mais alto até o princípio absoluto de inteligibilidade, até o prin- cias. Entretanto um tal projeto não seria próprio de Nietzsche.
cípio de tal modo claro que não tem necessidade de explicação. A dupla recusa das essências- e das aparências remonta a Hegel
Mas ela é também descendente: atingindo o princípio não- '.1
e, mais ainda, a Kant. É duvidoso que Nietzsche queira dizer a ,
hipotético do Bem, a filosofia pode descer e iluminar o que está mesma coisa.t'f Essa identificação pré-kantiana entre fenôme-
abaixo, levar a clareza aos outros níveis. Em suma, no que diz no e aparência é salientada pelo próprio Kant: "Desde os tem- i
respeito à distinção entre essência e aparência, o que caracteriza pos mais antigos da filosofia, os que estudavam a razão pura
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a démarche de Platão é a busca de um inteligível superior, de conceberam, além dos seres sensíveis ou fenômenos que com-
um princípio absoluto de inteligibilidade, que é o que se pensa põem o mundo dos sentidos, seres inteligíveis particulares que
melhor e o que torna possível conhecer o inferior, por conseguin- constituiriam um mundo inteligível, e como eles confundiam
te, o sensível. Ascensão para o Bem e retorno ao mundo das ima-
gens. 4. M.?, p. 457, nota.
5_ L.S., p. 351.
3. D.R., pp. 253-254. 6. L.S., p. 347.

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28 DELEUZE E A FILOSOFIA O NASCIMENTO DA REPRESENTAÇÃO 29
fenômeno e aparência, o que é desculpável em uma época ainda Kant é o fundamento do acordo entre as faculdades de conheci-
inculta, só atribuíram realidade aos seres inteligíveis". 7 Não pri- mento, é considerada por ele justamente como o princípio mais
vilegiar a distinção manifesta significa, portanto, considerar que geral da representação. Analisarei posteriormente essa proble-
a abolição do mundo das essências e do mundo das aparências, mática. No momento, o que apenas estou pretendendo assina-
que é um objeto realizado há muito, que é a novidade e a origi- lar é que, em última análise, é par situar-se na perspectiva de
nalidade ou singularidade da filosofia moderna desde Kant, ainda uma filosofia da diferença que para Deleuze é insuficiente defi-
mantém o pensamento no espaço da representação. nir o platonismo pela distinção entre a essência e a aparência.
Com efeito, se até Kant os filósofos, opondo a aparência
sensível à essência inteligível, identificam o fenômeno à aparên-
Realizar uma crítica radical da filosofia da representação
cia, a nova compreensão da noção de fenômeno' que surge a partir
que Platão inaugura com sua teoria das idéias exige privilegiar,
de Kant o identifica não mais à aparência, mas à aparição, ao
na própria interpretação do platonismo, uma distinção ainda mais
aparecimento. E aparecimento não se opõe a essência: é o que
fundamental do que a primeira. "Éiexato definir a metafísica
aparece enquanto aparece, sem que haja sentido em se pergun- pelo platonismo, mas insuficiente definir o platonismo pela dis-
tar se existe algo atrás. É verdade que Kant ainda faz distinção tinção da essência e da aparência. A primeira distinção rigorosa
entre essência e aparência, na medida em que distingue o fenô- estabeleci da por Platão é a do modelo e da cópia; ora, a cópia
meno da coisa em si, do puro noumenon, Mas o que é funda- não é de modo algum uma simples aparência, visto que ela man-
mental para Deleuze é que, dizendo que o noumenon só pode tém, com a Idéia considerada como modelo, uma relação inte-
ser pensado e não conhecido, Kant desloca a questão do conhe- rior espiritual, noológica e ontológica. A segunda distinção, ainda
cimento para a correlação aparecimento-condições do apareci- mais profunda, é a da própria cópia e do fantasma. É claro que
mento, substitui a disjunção essência-aparência pela conjunção Platão só distingue e mesmo opõe o modelo e a cópia para obter
aparecimento-condições do aparecimento. um critério seletivo entre as cópias e os simulacros, umas sendo
Novo modo de definir o fenômeno que implica um novo es- fundadas pelas suas relações com o modelo, as outras, desquali-
tatuto do sujeito. Na metafísica clássica, a noção de aparência ficadas porque não suportam nem a prova da cópia nem a exi-
sensível remete a uma insuficiência, a uma deficiência do sujei- gência do modelo. Se portanto existe aparência, trata-se de dis-
to, a uma constituição do sujeito que deforma, em virtude das tinguir as esplêndidas aparências apolíneas bem fundadas de ou-
ilusões dos sentidos, o conhecimento da essência inteligível e torna tras aparências, malignas e maléficas, insinuantes, que não res-
necessário que o sujeito ultrapasse essa insuficiência para atin- peitam nem o fundamento nem o fundado. É essa vontade pla-
gir a essência, como vimos em Platão. Para a filosofia transcen- tônica de exorcizar o simulacro que acarreta a submissão da di-
dental, ao contrário; o sujeito é condição de possibilidade do apa- ferença.Yf Esse texto nos introduz de forma perfeita à posição
recimento; é constituinte das condições segundo as quais aquilo de Deleuze com relação ao platonismo, expondo os principais
que aparece aparece, em vez de ser responsável pelas limitações elementos de sua interpretação, como veremos a seguir.
ou ilusões da aparência. A principal distinção, a "verdadeira" distinção, estabeleci-
Ora, se para Deleuze a filosofia do sujeito transcendental da por Platão é entre dois tipos de imagens, dois tipos de cópia:
não é uma alternativa para a metafísica é porque não critica os a boa cópia, a cópia bem fundada, o "ícone", que é uma ima-
pressupostos subjetivos da recognição e do senso comum que pos- gem dotada de semelhança, e a má cópia, a cópia que implica
tulam a dupla identidade do eu puro e da forma do objeto qual- uma perversão, o "simulacro-fantasma", que é uma imagem sem
semelhança." "Todo o platonismo é dominado pela idéia de uma
quer. A unidade sintética originária da apercepção, que segundo
8. D~., p. 340.
7. Kant, Prolegômenos, § 32.
9. Cf., por exemplo, D.R., p. 166; L.S., pp. 350-351.
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distinção a ser feita entre 'a coisa mesma' e os simulacros." 10 cação. Platão parte de uma idéia composta e, por uma divisão
A dualidade platônica mais profunda se dá, portanto, ao nível metódica e exaustiva, reconstitui racionalmente o real. Trata-se
dos próprios corpos sensíveis entre as coisas medidas e limita- assim de um método sintético que opera por dicotomias sucessi-
das e um puro devir sem medida, a distinção entre o modelo e vas e eliminações consecutivas, produzindo uma classificação.
a cópia só tendo sentido em função dela, visto qu.e seu principal Considerando a divisão platônica um "silogismo impotente",
objetivo é produzir um Critério de seleção entre as cópias e os Aristóteles critica-a por não estabelecer uma ligação analítica entre
simulacros, entre o que recebe a ação da idéia e o. que escapa as noções e proceder sem mediação, isto é, sem termo médio,
de sua ação. Se é insuficiente definir o platonismo pela distin- de modo que a conclusão não apresenta nenhum caráter de ne-
ção essência-aparência, isto é, se a cópia-ícone não é uma sim- cessidade lógica. O método platônico de divisão é um método
ples aparência é porque mantém com a idéia considerada como sintético que pede que se lhe conceda justamente o que ele deve
modelo uma relação de semelhança que é justamente o que a fun- demonstrar, visto que é preciso conhecer previamente a nature-
da como cópia bem fundada. E, Deleuze insiste várias vezes, es- za da coisa a ser definida para escolher as diferenças que vão
sa relação de semelhança não é externa, mas interna, espiritual, servir para demonstrá-Ia. Assim o método de divisão é incapaz,
no sentido em que a idéia encerra o que é constitutivo da essên- segundo Aristóteles, tanto de provar quanto de refutar.I"
cia interna da coisa. A cópia só se assemelha verdadeiramente Ora, a crítica de Aristóteles seria, segundo Deleuze, correta
a alguma coisa na medida em que se assemelha à idéia da coisa; se o objetivo de Platão fosse realmente dividir um gênero em es-
só é conforme ao objeto sensível porque tem a idéia como mo- pécies opostas. Sua intenção, entretanto, é outra, como já tinham
delo. A cópia é fundada pela semelhança interna com a identi- visto os neoplatônicos.P "Nosso erro é de procurar compreen-
dade superior da idéia. "Julga-se que o modelo goza de uma iden- der a divisão platônica a partir das exigências de Aristóteles. Se-
tidade originária superior (só a Idéia não é outra coisa a não ser gundo Aristóteles, trata-se de dividir um gênero em espécies opos-
o que ela é, só a Coragem é corajosa e a Piedade, piedosa), ao tas; ora, a esse procedimento não apenas falta 'razão', mas uma
passo que a cópia é julgada segundo uma semelhança interior razão pela qual se decide que alguma coisa está do lado de de-
derivada." II Dois tipos de similitude definem assim a relação en- terminada espécie mais do que de outra. Por exemplo, divide-se
tre os dois mundos: "a similitude exemplar de um original idên- a arte em arte de produção e de aquisição; mas por que a pesca
tico e a similitude imitativa de uma cópia mais ou menos seme- com linha está do lado da aquisição? O que faz falta aqui é a
lhante ... " .12 mediação, a identidade de um conceito capaz de servir de termo
Que intenção, que motivação se encontra na base desse pro- médio. Mas é evidente que a objeção cai se a divisão platônica
cesso platônico de fundação da representação? A exclusão, a re- não se propõe de modo algum a determinar as espécies de um
pressão das cópias sem semelhança, os simulacros. Resposta que gênero."16
leva Deleuze a explicitar a singularidade do método de divisão Deleuze não só não interpreta Platão como Aristóteles.jnas
platônico situando sua diferença com relação ao aristotélico.P sobretudo não o critica na mesma perspectiva. É que a crítica
Para Aristóteles, a divisão platônica por dicotomias consiste em aristotélica denota, ainda mais do que a posição de Platão, as
dividir os gêneros em espécies por suas diferenças opostas, de exigências da representação. Isto significa que, enquanto é Aris-
modo a explicar as relações entre as idéias e legitimar a predi- tóteles quem funda e delimita a representação pela divisão em
10. D;R., p. 91.
14. CL Aristóteles, Primeiros analíticos, I, 31.
11.D.R., pp. 165-166.
15. D.R., p. 87.
12. D.R., p. 166;cf. L.S., p. 353. 16. D.R., p. 83. A explicação do método de divisão pelo exemplo da pesca com linha
13. Sobre a aplicação do método de divisão dicotômica nos Diálogos, cf. Les dialogues se encontra no Sofista, 218e-221c. "A que ponto a determinação de espécies é apenas
de Platon de Victor Goldschmidt que, apesar das profundas diferenças de sua posição uma aparência irônica, e não o objetivo da divisão platônica, vê-se bem, por exemplo,
a respeito da filosofia de Platão, me parece ser o grande inspirador da leitura deleuzeana , no Político, 266 b-d " (D.R., p. 84, nota) .
.•.
32 DELEUZE E A FILOSOFIA O NASCIMENTO DA REPRESENTAÇÃO 33
gênero e espécie, que subordina a diferença à identidade pela Ouçamos o que diz Foucault sobre esse ponto central da in-
diferença específica, com Platão os resultados da operação de terpretação deleuzeana: "Platão não divide imperfeitamente -
fundar a representação ainda são duvidosos. E por quê? Justa- como dizem os aristotélicos - o gênero 'caçador', 'cozinheiro'
mente pelas razões que Aristóteles aponta: porque o método <l ou 'político', ele não quer saber o que caracteriza propriamente
de divisão opera sem mediação, age no imediato, vai de uma a espécie 'pescador' ou 'caçador com laço'; quer saber quem é
singularidade a outra. E isso de modo algum desagrada Deleu- o verdadeiro caçador. Quem é? e não o que é? Procurar o au-
ze. A ponto de ele afirmar que a reversão do platonismo con- têntico, o ouro puro. Em vez de subdividir, selecionar e seguir
serva muitas características platônicas e se questionar se não o bom filão ... Ora, como distinguir entre todos os falsos (esses
seria a divisão "que reúne toda a potência diaiética em provei- simulacros, esses soi-disants) e o verdadeiro (o sem-mistura, o
to de uma verdadeira filosofia da diferença e que mede, ao mes- puro)? Não descobrindo uma lei do verdadeiro e do falso (a ver-
mo tempo, o platonismo e a possibilidade de reverter o plato- dade aqui não se opõe ao erro, mas à falsa aparência), mas olhan-
nismo" .17 do acima de todos eles o modelo de tal modo puro que a pureza
A divisão platônica, diferentemente da aristotélica, não busca do puro se assemelha a ele, se aproxima dele e pode ser medida
propriamente a identificação ou a especificação do conceito, mas por ele, modelo que existe com tanta força que a vaidade simu-
a autenticação da idéia; não busca a determinação da espécie, ladora do falso será imediatamente desclassificada como não-
mas a seleção da linhagem. Seu real objetivo é selecionar uma ser ... Diz-se que Platão teria oposto essência e aparência, mun-
linhagem pura a partir de um material impuro, indiferenciado, do do alto e mundo aqui de baixo, sol da verdade e sombras da
indefinido que justamente deve ser excluído para que seja possí- caverna ... Mas para Deleuze a singularidade de PIatão está na
velo aparecimento da idéia. O platonismo é uma dialética dos triagem rigorosa, na sutil operação, anterior à descoberta da es-
rivais e dos pretendentes. Daí, ao método seletivo corresponder sência visto que justamente a exige, que pretende separar os maus
uma participação eletíva.l" A divisão é a medição dos rivais, a simulacros do conjunto da aparência. Para inverter o platonis-
avaliação dos pretendentes a partir de um fundamento seletivo mo é inútil, portanto, restituir os direitos da aparência, lhe dar
que tem como objetivo possibilitar uma participação eletiva. O solidez e sentido, aproximá-Ia das formas essenciais, dando-lhe
fundamento, idêntico e imparticipável, é a idéia: só a justiça é como vértebra o conceito ... abramos a porta a todos esses astu-
justa, só a coragem é corajosa ... Mas o fundamento possibilita ciosos que simulam e gritam à porta". 20
aos pretendentes que passarem por sua prova, por sua seleção,
participar da qualidade que só ele possui inteiramente e lhe ser
semelhantes. "Deve-se portanto distinguir: a Justiça, como fun- Essa proposta nos remete mais explicitamente ao aspecto po-
damento; a qualidade justo, como objeto da pretensão possuí- sitivo e principal objetivo da leitura deleuzeana de Platão: sub-
do pelo que funda; os justos, como pretendentes que participam verter a filosofia da representação significa afirmar os direitos
desigualmente do objeto. É por isso que os neoplatônicos nos dos simulacros reconhecendo neles uma potência positiva, di 0-
dão uma compreensão tão profunda do platonismo quando ex- nisíaca, capaz de destruir as categorias de original e de cópia.
põem sua tríade sagrada: o Imparticipável, o Participável, os Há em Platão uma relação de força entre modelo e simulacro,
Participantes." 19 no sentido em que a idéia é pensada como uma potência capaz
de excluir, barrar, rejeitar as cópias sem fundamento. "A no-
17. Cf. D.R., pp. 82-83,166. ção de modelo não intervém para se opor ao mundo das ima-
18. Cf. L.S., p. 349; D.R., pp. 87-88. gens em seu conjunto, mas para selecionar as boas imagens, as
19. D.R., p. 87. Para Deleuze o papel do mito platônico no método de divisão é de insti-
tuir o fundamento que permite avaliar os pretendentes. Cf. D.R., pp. 85-86; L.S., pp.
que se lhe assemelham do interior, os ícones, e eliminar as más,
348-350. Sobre a teoria neoplatônica da participação, cf. Spinoza et le problême de l'ex-

.-
pression, capo XI, pp. 153-163. 20. "Teatrum Philosophicum", loc. cit., pp. 886-887.
34 DELEUZE E A FILOSOFIA O NASCIMENTO DA REPRESENTAÇÃO 35

os simulacros. Todo o platonismo é construído sobre esta von- va, contestar as noções de identidade e semelhança. O que inte-
tade de expulsar os fantasmas ou simulacros ... "21 A glorifica- gra perfeitamente sua leitura de Platão na perspectiva de seu pro-
ção deleuzeana dos simulacros, que define seu antiplatonismo, jeto filosófico mais geral e torna claro por que sua crítica não
consiste em considerá-los não como simples imitações.P, como se dirige basicamente à tese da existência de urna diferença entre
uma cópia de cópia, uma semelhança infinitamente diminuída, inteligível e sensível - veremos inclusive como ele estabelece es-
um ícone degradado, mas como uma maquinaria, uma máqui- sa relação como uma diferença que reúne imediatamente o que
na dionisíaca, uma potência positiva, "potência primeira" que, ela distingue, através da interpretação dos pensadores que ele
quando não é mais reca1cada pela idéia, é a própria coisa; pois, agencia pela colagem e até mesmo através da elaboração de uma
se no platonismo a idéia é a coisa, na subversão do platonismo teoria das faculdades -, mas à subordinação dessa diferença à
cada coisa é elevada ao estado de simulacro. Não se pode dizer problemática da representação, isto é, ao privilégio da identidade.
que a reversão do platonismo segundo Deíeuze consista apenas
em virar a pretensão do pretendente contra a fonte da preten-
são, o simulacro contra o modelo; o fundamental de sua estra-
tégia antiplatônica de glorificação dos simulacros é o projeto de
abolir as noções de original e derivado, de modelo e cópia, e a
relação de semelhança estabelecida entre esses termos na medi-
da em que tal tipo de pensamento reduz necessariamente a dife-
rença à identidade. "O simulacro não é uma cópia degradada,
ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original quanto
a cópia, tanto o modelo quanto a reprodução. Das duas séries
divergentes, ao menos, interiorizadas no simulacro, nenhuma po-
de ser designada como o original, nenhuma como a cópia. "23
Estamos no âmago da filosofia de Deleuze. O simulacro,
a imagem demoníaca, a imagem sem semelhança, ou que coloca
a semelhança no exterior ,24 é a diferença. Valorizar o simula-
cro é, para ele, uma das maneiras de tematizar o projeto geral
de pensar a diferença nela mesma, sem permanecer no elemento
de uma diferença já mediatizada pela representação, isto é, sub-
metida à identidade, à oposição, à analogia, à semelhanca.P "O
simulacro é o sistema em que o diferente se relaciona com o di-
ferente pela própria diferença." 26 É porque o simulacro é uma
instância que compreende urna diferença em si, como semelhança
abolida, que é possível, quando se afirma sua potência positi-

21. D.R., p. 166.


22. D.R., p. 92.
23. L.S., p. 357; cf. D.R., p. 95. "A simulação designa a potência de produzir um efei-
to", L.S., p. 358.
24. Cf. D.R., 167-168.
25. Cf. D.R., pp. 41, 45.
2f" D.R., p. 355.
2

ARISTÓTELES E A MEDIAÇÃO DA DIFERENÇA

Se Platão é o momento originário da representação, no sen-


tido em que, com ele, a diferença é considerada em si mesma
impensável e subordinada às potências do Mesmo e do Seme-
lhante, também com ele o resultado do projeto de uma filosofia
da representação ainda é duvidoso, visto que Platão ainda não
elaborou as "categorias que permitem desenvolver sua potência".
Segundo uma imagem que aparece algumas vezes no texto de-
leuzeano, é como se o mundo heraclítico e sofístico da diferen-
ça, qual um animal no momento em que é domado, ainda ros-
nasse no platonismo resistindo a seu jugo. Com a teoria das
Idéias, Platão baliza seu domínio - funda-o, seleciona-o, ex-
clui o que o ameaça ~, mas, certamente inspirado em Nietzs-
che, Deleuze se empenha em assinalar que a motivação ou a ra-
zão que preside sua decisão de exorcizar o simulacro é eminen-
temente moral. Não, evidentemente; que essa visão moral do
mundo característica deste primeiro momento desapareça da fi-
losofia da representação. O que ele pretende ressaltar é que é Aris-
tóteles quem, rigorosamente falando, funda ou estabelece a "ló-
gica da representação", criando seus conceitos básicos;' através
de uma operação que pretende tirar a diferença de seu "estado
de maldição", estado em que ela aparece como monstruosa, co-
mo "figura do mal destinada à expiação'L?
Assim, o que está no centro da argumentação de Deleuze
é, como sempre, a relação da identidade e da diferença; neste caso

I. Cf. L.S., pp. 353-354; D.R.; pp. 83, 166, 341.

.-
2. Cf. D.R., p. 44.
38 DELEUZE E A FILOSOFIA O NASCIMENTO DA REPRESENTAÇÃO 39 I
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preciso, a questão é a de saber como na divisão arist.otél~ca se É material e acidental estar em movimento ou em repouso,
dá o "desdobramento da representação" pela subordmaçao da ser branco ou ser preto, que podem ser separados do sujeito e
diferença à identidade ou pelo estabelecimento da relação da di- são diferenças comuns, ou então ser macho ou fêmea, ter o na-
ferença com o conceito através da mediação - justamente o que riz achatado ou aquilino, que são inseparáveis do sujeito e cons-
faltava em Platão - ou da determinação de que diferenças po- tituem, portanto, diferenças próprias. A diferença propriíssima,
dem ser Inscritas no conceito como condição para que sejam por outro lado, é a forma pela qual um ser difere essencialmen-
pensáveis. te de outro, como, por exemplo, racional diferencia o homem
A -tese exposta em Différence et répétition, de modo bas- dos outros animais. A diferença propriíssima, a contrariedade
tante elíptico e que não será explicitada em nenhum dos outros formal e essencial no gênero, é a diferença específica. Ouçamos
livros, é que a fundação da representação se dá em Aristóteles o que diz Aristóteles: "As contrariedades que residem na forma
através de dois conceitos fundamentais: o conceito de diferença criam diferenças específicas, enquanto que as que só existem no
específica e o conceito de ser; a diferença específica, inscreven- ser considerado como associado à matéria não as criam". "Cha-
do a diferença na identidade do conceito indeterminado em ge- mo gênero o que constitui a unidade e a identidade de dois seres
ral; a diferença genérica ou categorial, inscrevendo a diferença e que é diferenciado nesses seres de um modo que não é apenas
na "quase-identidade" dos conceitos determináveis mais gerais, acidental.r'+ .
isto é, as categorias. Tendo como objetivo situar com mais rigor Aí está o pensamento que Deleuze considera como um mo-
a definição deleuzeana da representação como subordinação da do de subordinar a diferença à identidade: " ... é somente em re-
diferença à identidade, apresentarei essa dupla inscrição com- lação à suposta identidade de um conceito [o gênero] que a dife-
plementar da diferença fundada no mesmo postulado da repre- rença específica é tida como a maior. Bem mais, é em relação
sentação, que é o modo propriamente aristotélico de dar conti- à forma de identidade no conceito genérico que a diferença vai
nuidade à problemática platônica do método de divisão.3 até a oposição, é impelida até a contrariedade'v.> Aí está um dos
Vejamos, portanto, em primeiro lugar como a diferença es- elementos que levam Deleuze a considerar a obra de Aristóteles
pecífica subordina a diferença à identidade do conceito indeter- uma filosofia da representação: o privilégio da identidade sobre
minado de gênero. . a diferença está na concepção do gênero como o que permanece
O fio condutor da exposição de Deleuze é que em Aristó- o mesmo ou idêntico para si, tornando-se outro ou diferente nas
teles o conceito de diferença é construído a partir do conceito diferenças que o dividem. O método de divisão tornou-se um pro-
de oposição ou, mais precisamente, do conceito de contrarie- cedimento de especificação. E Deleuze conclui criticamente a ex-
dade, que é um dos quatro tipos de oposição, ao Iado da rela- posição desse primeiro ponto: "Aí está o princípio de uma con-
ção, da privação e da contradição. De um modo geral, segundo fusão danosa para toda a filosofia da diferença: confunde-se o
Aristóteles, dois termos diferem quando convêm em alguma coi- estabelecimento de um. conceito próprio da diferença com a ins-
sa. Neste sentido, se a maior e mais perfeita forma de oposi- crição da diferença no conceito em geral- confunde-se a deter-
ção, isto é, a que melhor convém, é a contrariedade, é porque
minação do conceito de diferença com a inscrição da diferença
neste caso, ao receber opostos, o sujeito permanece substan-
na identidade de um conceito indeterminado". 6 Reconciliação
cialmente o mesmo. Mas nem toda contrariedade' é do mesmo
da diferença com o conceito, inscrição da diferença no concei-
tipo. Há uma contrariedade acidental e material e uma contra-
to, redução da diferença a um predicado na compreensão de um
riedade essencial e' formal; a primeira dá o conceito de uma
conceito, que significa mediatizá-la e, assim, representá-Ia.
diferença comum ou própria, a segunda, o de uma diferença
essencial ou propriíssima.
4. Metafisica , X, 8, 1058b e 1058a, respectivamente.
5. D.R., pp. 47-48.
3. Essa análise é feita em D.R., pp. 45-57. 6. D.R., p. 48 .

. -
40 DELEUZE E A FILOSOFIA O NASCIMENTO DA REPRESENTAÇÃO 41

Mas isso não é tudo, nem mesmo o mais fundamental. Co- é predicado. Por exemplo, animal se diz no mesmo sentido do
mo vimos, a diferença específica é a maior e a mais perfeita com homem e do boi, visto que um animal em nada se distingue de
relação a um gênero; mas ela é ainda pequena com relação à di- um outro animal como pertencentes ao gênero animal. Univoci-
ferença entre os gêneros supremos ou categorias que não estão o
dade quer dizer que um mesmo nome é atribuído a diversos su-
submetidos a nenhum gênero comum. Explicitei o princípio aris- jeitos em um sentido absolutamente semelhante. Se o ser se diz
totélico segundo o qual dois termos diferem quando convêm em em vários sentidos, mas que são completamente distintos, sem
alguma coisa, mostrando em que sentido as diferenças de espé- nenhuma relação, dir-se-á que o ser é equívoco. Equivocidade
cie convêm em gênero. Indicarei agora em que sentido as dife- quer dizer que um mesmo nome é atribuído a diversos sujeitos
renças de gênero convêm em ser. Os dois tipos de relação não em um sentido totalmente diferente, como se só houvesse comu-
~ são semelhantes, mas complementares. Por quê? A razão é que nidade verbal entre as coisas diferentes que a palavra designa.
o conceito de ser não é um gênero. Um gênero é um conceito Por exemplo, entre o cão animal e o cão constelação. Finalmen-
abstrato determinável por uma diferença extrínseca, isto é, por te, se o ser se diz em vários sentidos, mas que guardam uma re-
uma diferença que não deve conter em seu conceito o gênero do lação entre eles, dir-se-á que o ser é análogo. Analogia quer di-
qual ela é a diferença, enquanto que toda classificação de con- zer que um mesmo nome é atribuído a diversos sujeitos em um
ceitos se faz no interior do conceito de ser, isto é, de cada dife- sentido parcialmente o mesmo e parcialmente diferente: diferente
rença de ser, se pode dizer que ela é. Se o ser não é um gênero pelos diversos modos da relação, o mesmo por aquilo a que se
é porque as diferenças são, lembra algumas vezes Différence et refere a relação. O termo "analogia" significa relação, propor-
répétition, Deleuze diz por exemplo: " ... se o ser fosse um gêne- ção, comparabilidade, semelhança imperfeita.
ro, suas diferenças seriam assimiláveis a diferenças específicas, A posição de Santo Tomás é a de que nem existe univocida-
mas não se poderia dizer que elas 'são', pois o gênero não se atri- de nem pura equivocidade, mas analogia do ser. Definindo esse
bui a suas diferenças em si".7 Assim, as diferenças genéricas ou termo, Santo Tomás dirá que se trata de um conceito aristotéli-
os gêneros, considerados como conceitos últimos determináveis co. Ora, hoje se sabe que, rigorosamente falando, Aristóteles não
ou categorias, não se relacionam ao ser como se este fosse um fala de analogia com relação ao ser. Qual é a posição de Deleu-
gênero comum. Mas escapará esse novo tipo de relação da su- ze a esse respeito? A meu ver, ela não pode ser assimilada a ne-
bordinação da diferença à identidade? Sua resposta é que não, nhuma das duas interpretações, embora esteja mais próxima da
porque também neste caso um conceito idêntico subsiste, se bem de Santo Tomás. Isto é, por um lado, ele aceita a tese de que
que de modo bastante especial. Analisemos essa problemática. analogia é um conceito especificamente tomista, explicitamente
Perguntar-se "o que éo ser?", a grande questão da metafí- formulado na Idade Média; por outro lado, ele não estabelece
sica de Aristóteles, significa procurar saber em que sentido o ser nenhuma diferença essencial, sob esse aspecto, entre os dois fi-
se diz, ou, mais precisamente, se o ser se diz em um ou em vá- lósofos, estando sobretudo interessado na continuidade entre eles,
rios sentidos. E, se o ser se diz em vários sentidos, que relação a ponto de, não fazendo propriamente obra de historiador, pre-
existe entre esses sentidos diferentes? tender acima de tudo caracterizar uma posição aristotélico-
A escolástica, pretendendo fixar uma terminologia rigoro- tomista, segundo a qual a teoria dos vários sentidos do ser que
sa, propõe três nomes que assinalam três possibilidades de res- desponta em Aristóteles será retomada e sistematizada na Idade
posta a essa questão. Se o ser se diz em um único sentido, se a Média por Santo Tomás.
palavra "ser" tem apenas um sentido, dir-se-á que o ser é uní- No que diz respeito especificamente a Aristóteles, que é o
voco. Um conceito unívoco é aquele que tem uma significação que nos interessa no momento, a posição de Deleuze é clara. Ela
determinada, una e idêntica para todos os sujeitos dos quais ele consiste em salientar, para mostrar como se dá em Aristóteles
a fundação da representação, que o conceito de ser não é coleti-
7. D.R., p. 51; cf'. p. 49. vo, isto é, explícito e distinto, como um gênero em relação a suas
42 DELEUZE E A FILOSOFIA O NASCIMENTO DA REPRESENTAÇÃO 43

espécies, mas distributivo e hierárquico, tem um sentido comum antes de tudo, da substância. A natureza determinada que se ma-
e um sentido primeiro; um sentido comum distributivo e um sen- nifesta em todas as acepções e relativamente à qual elas são o
tido primeiro hierárquico. Esclareçamos essas duas características. que são, é a ousia, a substância. Daí Aristóteles afirmar logo em
O conceito de ser é distributivo no sentido em que' 'não tem seguida à citação anterior: " ... o ser se toma em múltiplas acep-
um conteúdo em si, mas apenas um conteúdo proporcionado aos ções, mas, em cada acepção, toda denominação se faz com rela-
termos formalmente diferentes dos quais ele é predicado'L'' Para ção a um principie único. Tais coisas, com efeito, são ditas se-
Aristóteles, o sentido do ser não pode ser separado dos sentidos res porque são substâncias, tais outras porque são determina-
irredutíveis que as categorias determinam; a unidade do ser en- ções da substância, tais outras porque são um caminho para a
quanto ser não existe fora das categorias que são os sentidos ~r- substância, ou ao contrário, corrupções da substância, ou por-
redutíveis do ser, os sentidos primitivos dos quais o ser se dIZ, que elas são privações, ou qualidades da substância, ou porque
e que nem podem ser reduzidos à unidade nem são radicalmente elas são causas eficientes ou geradoras de uma substância ou da-
heterogêneos. A relação de cada categoria com o ser é interior quilo que é nomeado relativamente a uma substância, ou enfim
a cada uma delas, isto é, cada uma se define pela interioridade porque elas são negações de qualquer uma das qualidades de uma
da relação. Existem, portanto, vários sentidos e, ao mesmo tem- substância ou negações da própria substância" .10
po, uma unidade entre eles; o que só é possível porque a unida- Dizer que o conceito de ser é hierárquico significa, portan-
de do conceito de ser não é explícita, não é separável dos senti- to, que a substância é o primeiro termo de uma série, isto é, de
dos irredutíveis que as categorias determinam, caso contrário, um conjunto onde há anterior e posterior, e do qual ela é o fun-
o ser seria unívoco. Os múltiplos sentidos da palavra "ser" tam- damento. "Em Aristóteles todas as categorias se dizem em fun-
bém não são propriamente equívocos, mas equívocos pros en, ção do Ser; e a diferença passa no ser entre a substância como
isto é, relativamente a um sentido comum. Trata-se de uma uni- sentido primeiro e as outras categorias que lhe são relacionadas
dade distributiva, implícita e confusa, imperfeitamente determi- como acidentes." 1I E se, entre os vários sentidos do ser, um de-
nada, em que cada sentido implica o ser e este não se confunde les - a substância - é fundamental, e os outros acidentais, a
com nenhum destes sentidos. O ser é a unidade implícita de to- questão do ser é fundamentalmente a questão da substância.
dos os sentidos; ele permanece presente em cada categoria, mas Deste modo, a concepção aristotélica do ser, tal como é ex-
de modo obscuro. . posta por Deleuze, o considera não apenas um conceito distri-
Além disso, o conceito de ser é hierárquico. Os termos, as butivo, que se relaciona com termos diferentes, mas também um
categorias, não têm uma relação igual com o ser. A sucessão das conceito serial, que se relaciona eminentemente com um termo
diversas categorias - substância, qualidade, quantidade, rela- principal.
ção, lugar, tempo, posição, ação, paixão? - é uma sucessão em Evidentemente, essa exposição é importante menos pela
que .há um primeiro sentido primordial. O ser é a unidade de uma originalidade'? do que pela postura assumida contra a teoria de
série de acepções que se regulam por um sentido primeiro toma- um sentido comum e um sentido primeiro do ser, por ela deixar
do como referência, um fundamento que é imanente à série. A subsistir, como acontecia no caso da diferença específica, mes-
lista das categorias constitui uma série em que existe anterior e mo que de outro modo, a identidade de um conceito. Mas, sem
posterior, antes e depois. Na Metafisica, Aristóteles diz: "O ser dúvida, essa posição crítica com relação a Aristóteles só adqui-
se toma em várias acepções, mas é sempre relativamente a um
termo único, a uma mesma natureza determinada". Substância, 10. Metafisica, 4, 2, l003a, 33-34, e l003b, 5-10, respectivamente; cf. 4, 2, 1005 a 7;
7, I, 1028a, 10-20; 7, 4, 1030b3.
qualidade, quantidade ... são sentidos do ser, mas o ser se diz, I!. L.S., 2~ série, p. 15.
12. Ela me parece seguir a linha dos comentaristas clássicos de Aristóteles e, em grande
8. D.R., p. 49. parte, se basear na crítica de J. Brunschwig ("Dialectique et ontologie chez Aristote",
9. Essa lista está em Categorias, 3, 4,25. Revue philosophique, 1964) ao livro de Aubenque Le problême de l'être.
44 DELEUZE E A FILOSOFIA

re toda sua significação quando se considera Spinoza et le pro-


blême de l'expression, livro que tem como um de seus leitmotive
confrontar Espinosa a Descartes e a Leibniz justamente a partir
dos conceitos de univocidade e de analogia do ser. A filosofia
de Deleuze é uma ontologia. E, neste sentido, é através de uma
teoria da univocidade do ser que, repetindo os filósofos, ele for-
mula um conceito próprio de diferença,como veremos, a seguir,
não só por sua interpretação de Espinosa, mas até mesmo, e prin-
cipalmente, de Nietzsche.

2~ PARTE

o ÁPICE DA DIFERENÇA

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