Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Do original:
A good enough parent.
Capa
Otavio Studart
ISBN 85-7001-529-1
(Edição original: ISBN 0-394-47148-2, Alfred A. Knopf, mc., New York, USA.)
Ficha Catalográfica
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Bettelheim, Bruno, 1903-
Uma vida para seu filho / Bruno Bettelheim; traduçáo Maura Sardinha e Maria Helena Geordane. — Rio
de Janeiro: Campus, 1988.
B466v
88-0305
SUMÁRIO
PARTE 1
PAIEFILHO. 1
CAPÍTULO 1
À GUISA DE INTRODUÇÃO: A IMPORTÂNCIA DAS PRIMEIRAS EXPERIÊN CIA 3
CAPÍTULO 2
CONSELHO DE ESPECIALISTA OU EXPERIÊNCIA INTERIOR? 13
CAPÍTULO 3
PAI OU ESTRANhO? 28
CAPÍTULO 4
AS RAZÕES DELES E AS NOSSAS 39
CAPÍTULO 5
DESEMPENHO ESCOLAR: UMA QUESTÃO CONTROVERTIDA 47
CAPÍTULO 6
NOSSA HUMANIDADE COMUM 59
CAPÍTULO 7
A PERGUNTA “POR QUÊ?” 66
CAPÍTULO 8
SOBREAEMPATIA 75
CAPÍTULO 9
SOBRE A DISCIPLINA 84
CAPÍTULO 10
POR QUEO CASTIGO NÃO FUNCIONA 95
CAPÍTIJLO 11
EXPLORANDO A INFÂNCIA ENQUANTO ADULTO 113
WÍU1O 12
REVELANDO AOS FILHOS O PASSADO DOS PAIS 119
PARTE II
DESENVOLVENDO A INDiVIDUALIDADE 125
CAPÍTULO 13
CONSTRUINDO A IDENTIDADE 127
CAPÍTULO 14
BRINCADEIRA: PONTE PARA A REALIDADE. 141
CAPÍTULO 15
COMPREENDENDO A IMPORTÂNCIA DA BRINCADEIRA. 156
CAPÍTULO 16
BRINCADEIRA COMO SOLUÇÃO DE PROBLEMAS 167
CAPÍTULO 17
BRINCADEIRA E REALIDADE UM EQUILÍBRIO DELICADO 179
—
CAPÍTULO 18
PAIS E BRINCADEIRA: O PADRÃO DUPLO 192
CAPÍTULO 19
TESTANDO-NOS ATRAVÉS DA COMPETIÇÃO 203
CAPÍTULO 20
FONTES INCONSCIENTES, REALLZAÇÕES CONCRETAS 211
CAPÍTULO 21
ALÉM DE GANi-LAR E PERDER 225
CAPÍTULO 22
TORNAR-SE CIVILIZADO 236
PARTE III
FAMÍLIA, FILHO, COMUNIDADE 245
CAPÍTULO 23
IDEAL E REALIDADE 247
CAPÍTULO 24
OS LAÇOS QUE UNEM 259
CAPÍTIJLO 25
À PROCURA DE UM LUGAR LEGÍTIMO 271
CAPÍTULO 26
A FAMÍLIA QUE APÓIA 284
CAPÍTULO 27
DIAS MÁGICOS 295
CAPÍTULO 28
NÃO ACREDITAR EM PAPAI NOEL 307
CAPÍTULO 29
O “VERDADEIRO” PAPAI NOEL, O COELHILHO DA PÁSCOA E O DIABO 315
1
À Guisa de Introdução:
A Importância das Primeiras
Experiências
No sentido em que se verga o broto se inclina a árvore.
— ALEXANDER POPE, Moral Essays
ESTE LIVRO sintetiza o esforço de toda a minha vida para descobrir e testar tudo
o
que uma criação de filhos bem-sucedida envolve e requer — isto é, a criação de
um filho que pode não ser necessariamente um sucesso aos olhos do mundo, mas
que, pensando bem, está satisfeito com a maneira pela qual foi criado e, no
conjunto, está contente consigo mesmo, apesar das deficiências que atingem
todos nós. Acredito que outra indicação de ter sido bem criado é sua capacidade
de enfrentar razoavelmente as infindáveis vicissitudes, as muitas agruras e as
sérias dificuldades que, muito provavelmente, encontrará pela frente, e fazer isso
sobretudo porque se sente seguro. Embora nem sempre livre de dúvidas sobre si
mesmo — pois só os tolos arrogantes escapam inteitamente disso—, essa pessoa
bem criada, independentemente do que aconteça em sua vida externa, possui
uma vida interior rica e gratificante, com a qual está, conseqüentemente, satisfeita.
Por fim, embora certamente não menos importante, crescer numa famiia onde
sempre são mantidas relações boas, íntimas entre os pais, e entre eles e seus
filhos, torna um indivíduo capaz de estabelecer relações duradouras, satisfatórias,
íntimas com os outros, o que confere sentido à sua vida e à dos outros. Também
será capaz de encontrar sentido e satisfação em seu trabalho, achando-o digno
dos esforços que faz para realizá-lo, porque não ficará satisfeito com um trabalho
destituído de significado intrínseco.
Minha preocupação com a criação de filhos data de cerca de 70 anos; comecei a
lutar com as questões que ela provoca ainda muito moço e, mais tarde, alguns
anos depois, enquanto adolescente. Meus esforços continuaram sem qualquer
esmorecimento, desde então. Durante os primeiros anos, meu interesse era
simultaneamente teórico e muito pessoal; tentava compreender tudo o que
envolvia a criação de filhos tal como eu a experimentei e como a observei em
tomo de mim. Embora tivesse pais muito bons, mesmo assim questionava alguns
aspectos de minha criação, rejeitando inteiramente outros tantos. De um modo
geral, estava convencido de que muitas das formas pelas quais se cria-
3
vam os filhos podiam e deviam ser bem aprimoradas, sobretudo à luz dos então
inteiramente novos insights da psicanálise.
Quando cheguei aos 20 e tantos anos, cerca de 55 anos atrás, a criação de filhos
tomou-se também um problema eminentemente prático e imediato pasa mim, na
medida em que comecei a dedicar-me à árdua tarefa de corrigir graves danos
psicológicos infligidos a crianças muito perturbadas. Aplicando o que julgava bons
métodos de criar filhos, baseados em princípios psicanalíticos, tentei curar uma e,
por algum tempo, duas crianças autistas que viveram comigo durante muitos anos.
Na década de 40, sob circunstâncias bem diferentes, meus esforços — até então
restritos a muito poucos jovens além dos dois já citados — foram estendidos a um
número bem maior de crianças vítimas de perturbações gravíssimas, que viviam e
eram tratadas e educadas na Sonia Shankman Orthogenic School, da
Universidade de Chicago. Este trabalho foi descrito em vários livros e em número
ainda maior de artigos, não havendo, portanto, necessidade de alongar-me sobre
isso aqui.
Sendo pai de três filhos, aprendi, entre muitas outras coisas, que existem
significativas diferenças psicológicas e — mais importante ainda — emocionais
entre a maneira de criar nossos próprios filhos e a de criar filhos que não são
nossos, por mais devotada que seja. O que aprendi de todas essas experiências
— o que achei útil e o que achei nocivo e por quê — constitui a base deste livro.
Abordei o material tendo em mente também meus quase 40 anos de experiência
em transmitir a Outros a melhor maneira de lidar com os problemas da criação de
filhos. Esses outros consistiam principalmente em dois grupos bastante diferentes:
mães inteligentes e muito motivadas de filhos mais ou menos normais; e a equipe
da Orthogenic School, dedicada à reabilitação de crianças que sofrem de
deficiências psicológicas muito graves, vivendo com elas, educando-as de forma
adequada e tratando delas. Meus esforços eram no sentido de induzir esses
adultos a lidar por sua conta, através de recursos próprios, com os problemas e
questões encontrados em seus filhos ou nas crianças entregues a seus cuidados,
de forma a permitir que ambos fossem beneficiados com os resultados. Dizer-lhes
especfficamente o que fazer e o que evitar nunca resolveria os problemas, pois o
conselho generalizado esbarra na singularidade de cada adulto e dc cada criança,
e nas inúmeras situações extremamente variadas e em constante mudança nas
quais se acham enquanto adulto que cria a criança, e criança que reage à criação.
gilidade, pode não ser capaz de resistir. Mas essas aceitações forçadas só servem
para interferir com a capacidade da criança de enfrentar a situação problemática
de forma construtiva.
É por isso que, neste livro, não desejo oferecer respostas definitivas, mas sugerir
métodos de abordagem suficientes para desenvolverem a capacidade tanto do pai
quanto do filho de serem espontâneos e muito autênticos em tudo o que acontece
com eles; isso, em contrapartida, dará à criança melhores condições de enfrentar
a realidade em seus próprios termos.
Mesmo que um dos pais insista que seu ponto de vista sobre determinada questão
deve prevalecer e suas regras devem ser obedecidas, isso não garante que a
criança aceite isso em seu íntimo. No que tange à experiência anterior, em geral
filho e pai seguem, cada um, suas próprias regras, sem que elas tenham sido
sequer explicitadas para si mesmos ou para o outro. Mais do que isso, não só a
maioria de pais e filhos segue suas próprias regras como pode e muda facilmente
essas regras no processo de interação sem avisar úm ao outro, quase sempre
sem qualquer consciência de que defato as mudaram, ou como. Não há um
acordo claramente compreendido e livremente aceito sobre o que constitui ou
decide o resultado desejado nas relações pai-filho. E agora, a diferença mais
aguda entre a criação de filhos e o xadrez: a vida real não é um jogo, mas coisa
muito séria.
Embora banal e supersimplificado enquanto metáfora para as relações humanas,
o xadrez pode ilustrar o fato de que, numa interação complexa, nunca se pode
planejar mais do que uns poucos lances adiante. Cada jogada deve depender da
resposta à precedente. Portanto é mais importante avaliar corretamente a
constante mudança da situação global:
uma primeira jogada adequada pode indicar, na melhor das hipóteses, qual deve
ser a resposta correta para o primeiro contra-ataque.
O jogador de xadrez principiante que tenta seguir seus pianos sem considerar os
contra-ataques do parceiro será rapidamente batido. E o mesmo acontecerá com
um pai que seguir um plano preconcebido, baseado em explicações recebidas ou
conselhos que lhe foram dados quanto ao modo de lidar com seu filho. Um pai,
deve, contínua e flexivel- mente, adaptar sua forma de agir às respostas de seu
filho e reavaliar as constantes mudanças da situação geral, à medida que se
desenvolve. No xadrez, logo fica óbvio que é um erro tentar seguir seu próprio
plano sem considerar com bastante cuidado o plano do oponente, e cada uma de
suas reações a nossos próprios movimentos. Essa consideração pelas intenções
e reações de uma criança também é crucial para as ações paternas. Mas é muito
comum à criança, quando em desacordo com os pais, esconder seus verdadeiros
sentimentos, com medo de sua reação, deixando, assim, os pais bloqueados.
O bom jogador de xadrez pode contemplar, com antecipação, um determinado
número de jogadas possíveis e prováveis contra-ataques, mas apenas porque
aprendeu a reconsiderar e a reavaliar a situação global a cada passo. O pai que já
sabe como reconsiderar assim sua relação com seu filho difidilmente precisa de
conselho; ele saberá o que fazer e, a cada ação e reação do filho, reavaliará
amiúde a situação. Pode-se dizer, portanto, que um pai apto a tirar proveito de um
conselho sobre criação de filhos quase nunca precisa dele, enquanto o pai
incapaz de avaliar e reavaliar a situação global corretamente não sabe usar o
conselho de forma inteligente e com êxito. É por isso que outra coisa, que não a
explicação e o conselho, se toma necessária, isto é, ajudar o pai a perceber, por si
mesmo, o que pode estar ocorrendo no íntimo de seu filho. Se aprendermos a nos
projetar na mente da
serem. Não é fácil explicar por que essa teoria do homem enquanto ser
completamente manipuláve) foi e aiiida é tão amplamente aceita, de um modo
geral sem que os pais o percebam de uni modo específico. Na verdade, toda
experiência paterna indica que, desde o nascimento, as crianças diferem em suas
reações, e que até mesmo em tenra idade têm mentes próprias que, muito
amiúde, tentam fazer valer até contra seus pais, embora esses esforços
permaneçam frustrados devido ao estágio de desenvolvimento do bebê.
Há quem ache a doutrina behaviorista aceitável, porque ela sustenta que a vida de
uma criança é um começo inteiramente novo, para o qual todo tipo de
desenvolvimento futuro é uma possibilidade real, e que um preparo mais
cuidadoso e deliberado é necessário para se obterem os fms desejados.
Hoje em dia, só os behavioristas extremados ainda sustentam a reivindicação
exagerada de que qualquer resultado desejado pode ser alcançado pelo
treinamento, agora batizado wm os nomes mais “científicos” de condicionamento e
modfficação comportamc oral. Mas pouco mudou no que conceme à difundida
convicção basicamente behaviorista deque o destino da criança na vida adulta
depende inteiramente da maneira pela qual foi educada na infância. Sem tomar
consciência disso, muita gente adota e aplica a seu semelhante essa teoria
derivada do estudo dos reflexos condicionados dos cães de Pavlov e pombos de
Skinner; em sua maioria, não percebe que essas reações foram produzidas e
estudadas em animais de laboratório treinados para atravessarem labirintos,
tornando-se, ciii decorrência desse condicionamento, incapazes de sobreviver por
conta própria em seus habitats naturais — isto é, tornaram-se naquilo que, no
homem, descreveríamos como pere’hiptoriamente desajustado e neurótico,
incapaz de responder, com espontaneidade, por conta própria, às diversas
situações, capaz de agir apenas do modo como foram “condicionados” a fazer.
O behaviorismo tornou-se a escola psicológica dominante nos Estados Unidos
durante o segundo quarto deste século, quando os métodos tradicionais de criar
filhos foram repudiados em favor de uma abordagem nova e mais científica que
parecia ser exigida pela crescente complexidade da vida. Continuou sendo a
doutrina psicológica predominante na América desde então, a tal ponto que a
maior parte das pessoas nem percebe que “behaviorismo” é o nome daquilo em
que elas acreditam.
Essa aceitação usualmente tácita, sem. exame, portanto acrítica, do behaviorismo
é antiética aos princípios de teorias científicas muito diferentes e bem mais
fundamentadas:
evolução e genética. Ambas mostram, com provas inquestionáveis, que o ser
humano não é, deforma alguma, completamente manipulável; a mente (la criança,
ao nascer, não é, em absoluto, uma tábula rasa — pelo contrário, sua própria
natureza restringe severamente suas possibilidades ulteriores de desenvolvimento
pessoal. A genética demonstra que boa parte do que a pessoa vai ser é
determinada no momento de sua concepção pela mistura particular de genes com
que os pais contribuem. Essa mistura difere de pessoa para pessoa (com a única
exceção feita a gêmeos idênticos, que têm a mesma dotação genética). Através
de nossos genes, herdamos também os resultados do longuíssimo processo da
evolução humana. Tanto a dotação genética quanto o processo evolutivo limitam
as alterações que podem ser produzidas num indivíduo pela educação ou outras
experiências da vida.
A teoria freudiana do desenvolvimento humano, que compete com o behaviorismo,
encontrou uma aceitação bastante ampla nos Estados Unidos, ao mesmo tempo
em que o behaviorismo varria o país. A teoria freudiana sublinha a não-
maleabilidade de grande
10
por aqueles com quem partilhamos nossa vida, e ser útil à sociedade, de modo a
poder sentir orgulho do que conseguimos realizar, apesar dos inevitáveis
contratempos da vida, e sem considerar o que os Outros possam pensar de
nossas realizações. Podemos ajudar nossos filhos a atingir esses objetivos,
ajudando-os a desenvolver meios de enfrentar as vicissitudes da vida, de forma a
que, ao invés de serem derrotados, eles ganhem maior insigbt e força —
particularmente, um insight também sobre suas vidas interiores.
Assim, as duas principais doutrinas da psicologia infantil enfatizam que muito
depende do que a criança experimenta ao longo dos vários estágios de seu
crescimento em direção à maturidade, e que o modo de o pai lidar com essas
situações não só é da maior importância, como pode ser fatal quando as coisas
correm mal. Agora, portanto, o pai modemo está muito bem informado sobre
aquilo com que deveria se preocupar ao lidar com o desenvolvimento do filho! E,
infelizmente, preocupação é o que não lhe falta.
Dadas essas doutrinas e o fato de que a maioria das pessoas, enquanto jovens,
não tiveram experiências de primeira mão na criação de crianças, não é de
admirar que o pai consciencioso sinta ansiedade diante da possibilidade de falhar
enquanto pai e tema prejudicar o fflho que ama. Mas a ansiedade do pai —
embora compreensível — causa um grande mal tanto a ele quanto ao filho.
Winnicott, cujo conceito de mãe bastante boa mencionei no início para explicar o
título do livro, diz sobre essa mãe bastante boa que a criança, ao olhar para o
rosto dela, se vê nele — ou, poderíamos dizer, se encontra nele — porque a mãe
bastante boa, devido a sua profunda empatia com o filho, reflete em seu rosto os
sentimentos dele; é por isso que ele se vê no rosto dela como se vê num espelho,
e se encontra na medida em que se vê nela A mãe não bastante boa falha em
refletir o sentimento do filho em seu rosto, porque está preocupada demais com
seus próprios problemas, tais como seus cuidados em saber se está fazendo o
que é certo pelo filho, sua ansiedade em achar que pode fracassar em relação a
ele. A criança que não se encontra refletida no rosto dessa mãe responde, ao
invés disso, à preocupação dela e torna-se preocupada consigo mesma. Pior que
isso, ela vê o rosto de um estranho onde deveria encontrar o que há de mais
familiar, sentindo-se, portanto, sozinha, ao invés de profundamente ligada, como
acontece com a criança que se encontra refletida no rosto da mãe de um modo
positivo.
Daí se segue que, para sermos um pai bastante bom, devemos ser capazes de
nos sentir seguros em nossa condição de pai e em nossa relação com nosso filho.
Seguros a ponto de, embora cuidadosos com o que fazemos em relação a nosso
filho, não ficarmos ansiosos demais com isso e não nos sentirmos culpados por
não sermos um pai bastante bom. A segurança do pai quanto a ser pai tomar-se-á
eventualmente a fonte do sentimento de segurança do filho em relação a si
próprio. Portanto, minha esperança é de que este livro, longe de fazer com que os
pais se sintam ansiosos ou culpados com o que fazem quanto a seu filho, lhes dê
antes o sentimento de que “É isso mesmo, é o que estou fazendo” ou, pelo
menos, “É isso que eu gostaria de fazer!” Em resumo, espero que o livro fliça com
que eles se sintam mais seguros enquanto pais, menos preocupados com o que
possam fazer de errado.
Mesmo assim, apesar do fato de a segurança do pai quanto ao modo como lida
com seu filho ser tão significativa para o bem-estar da criança e o seu próprio,
hoje em dia grande número de pais devotados a seus filhos sente que suas
responsabilidades são, por vezes, quase pesadas demais. Até os problemas mais
normais e inevitáveis podem assumir
11
12
2
Conselho de Especialista ou
Experiência Interior?
O conselho raramente é bem-vindo; e aqueles que mais o desejam são sempre os
que menos gostam dele
— CONDE DE CHFSTERFIELD, Carta a seu filho, 29 de janeiro de 1748
O que é realmente irritante nas instruções desse tipo é que elas deixam implícito
que só há um modo de juntar essa churrasqueira — o seu modo. E essa
presunção liquida qualquer criatividade Na realidade bá centenas de maneiras
dejuntar a churrasqueira e quando nos fazem seguir apenas uma delas, sem
mostrar oproblema como um todo, as instruções tornam-se dificeis de ser
seguidas deforma a não cometer envs Você perde o atiorpelo trabalha ii como se
não bastasse isso, é muito pouco piovavel que lhe tenham mostrado a melhor
maneira
— ROBERT M. PIRSIG, Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas
AS MANEIRAS DE OS PAIS criarem seus filhos têm enorme influência sobre seu
desenvolvimento e sobre o tipo de pessoa em que se transformarão. E
compreensível, portanto, que os pais procurem o aconselhamento de
especialistas, principalmente quando não conseguem decifrar o significado do
comportamento de seu filho ou estão ansiosos a respeito de seu futuro, quando
não sabem ao certo se devem agir e como devem agir, ou quando seus esforços
para corrigir o comportamento do filho o tornam infeliz e despertam sua
resistência.
Mas existem outras razões importantes para que, durante as últimas décadas,
muitos pais tenham procurado e tenham vindo a confiar nos conselhos e
recomendações encontrados em livros e artigos sobre a criação de filhos. Uma
delas é a grande atração pela abordagem do “como” apresentada em muitas
dessas publicações, como se a vida fosse um jogo que pudesse ser jogado “de
acordo com as regras.” Tanto o behaviorismo quanto a trivialização das teorias de
Freud ajudaram a consolidar a idéia de que, se você seguir certas instruções item
por item; automaticamente alcançará determinados resultados.
13
A experiência “faça você mesmo” ensina que, uma vez apresentados bons
projetos e instruções corretas, somos capazes de construir objetos bastante
complexos para nossa total satisliição, ao passo que, sem as instruções, teríamos
nos atrapalhado ou fracassado por completo. Este fato explica a atual
popularidade de livros e manuais do tipo “como” nos mais diversos campos, até
mesmo naqueles em que os sentimentos mais particulares e as relações mais
íntimas estão presentes. Muitas pessoas não hesitam em aceitar os conselhos
que esses livros oferecem; o medo do fracasso é tão grande que não é de admirar
que o desejo de fazer o melhor pelos filhos tenha levado os pais a uma biblioteca
completa de livros, oferecendo conselhos sobre a melhor maneira de criá-los.
Além do mais, há um preconceito quase universal em nossa sociedade, no sentido
de que só existe uma forma de fazer alguma coisa corretamente, enquanto todas
as outras estão erradas. E de que, se seguirmos esta maneira certa, conseguir
nosso objetivo toma-se um processo relativamente simples. Por isso, quando as
coisas se tornam diliceis ou complexas, os pais tendem a acreditar que nãqdevem
ter usado a abordagem correta porque, se tivessem, as coisas teriam fluído
facilmente e com êxito. Quando temos dificuldade na montagem de algum objeto
complicado, consultamos os esquemas e as instruções e, com bastante
freqüência, chegamos à conclusão de que cometemos um erro. Tão logo o
corrigimos, e seguimos as instruções, as peças se ajustam.
É sobre esta convicção dualista que os manuais do tipo “como” apóiam sua
pretensão e, naturalmente, o sucesso que obtemos quando seguimos essas
instruções fortalece. tal pretensão. Na realidade, a corrente “como” mostrou-nos
que existe com freqüência um método correto de se fazer as coisas, o qual de fato
é relativamente simples de ser aplicado com sucesso. No entanto, isto é válido, na
maioria das vezes, quando aplicado à confecção de objetos, em especial quando
tudo de que se necessita é a montagem correta de peças j existentes. Em nossa
sociedade, que em muitos aspectos alcançou seu sucesso máximo na maquinaria
para produção em massa, as pessoas são tentadas a acreditar que os mesmos
princípios tão eminentemente exitosos no campo da engenharia dêveriam também
ser aplicados às relações e ao desenvolvimento humanos.
Os pais que confiam nos livros sobre “como” criar filhos estabeleceram
inconscientemente, ou com maior freqüência subconscientemente, uma analogia
entre suas interações pessoais mais íntimas com seus fflhos e a montagem de
uma máquina.
Uma vez que aqui, e ao longo de todo o livro, usamos os conceitos de
inconsciente e subconsciente, talvez fosse útil sugerir a diferença entre um e
outro. Normalmente, uma pessoa não está a par daquilo que se passa seja no seu
inconsciente seja no seu subconsciente. Mas, em geral, o conteúdo do
subconsciente se lhe tomará acessível através de um exame cuidadoso de seus
pensamentos, sentimentos e motivos. Embora o processo possa ser dificil, é
possível trazer para o campo da consciência o que acontece no subconsciente.
Entre a mente consciente e a inconsciência, no entanto, existe uma barreira quase
impenetrável, pois o que acontece no inconsciente é aquilo que é inaceitável à
mente consciente, tendo sido, por isso mesmo, severamente reprimido. O
conhecimento total do que acontece no inconsciente pode ser conseguido, se for o
caso, somente após vencermos uma resistência máxima. Penetrar a barreira que
separa o consciente do inconsciente requer esforço e determinação concentrados
além de um grande trabalho intelectual. Em muitos casos, isso será possível
apenas até um determinado nível e, em outros, totalmente impossível.
14
Neste exemplo, a idéia de que eles vêem e procedem como se existisse uma
analogia entre a montagem e o funcionamento de uma máquina e o
comportamento de seus filhos pode ser tão repugnante para alguns pais
simplesmente incapazes de aceitá-la. Para eles, essa analogia, embora determine
de fato seu pensamento e seu comportamento, permanece inconsciente. Outros
pais, após ponderarem cuidadosamente sobre a matéria e após fazerem um
esforço sério para analisarem seus pensamentos e motivos, podem chegar a
reconhecer que, embora eles o ignorassem até então, de fato estabeleceram uma
analogia entre o comportamento de seus filhos e o funcionamento de uma
máquina. Em seu caso, essa analogia não chegou a ser reprimida até o
inconsciente, mas tinha, até a hora do reconhecimento, permanecido
subconsciente.
Em qualquer caso, os pais podem facilmente falar do desejo de que seu filho “se
desempenhe” ou “funcione” melhor — este último constituindo um motivo bastante
comum para buscar conselhos. Mas os pais cuja maior preocupação é que OS
filhos vivam bem e aproveitem suas vidas terão pouca probabilidade de se
referirem a eles como “fimcionando” bem ou mal. Na realidade, é esta analogia
subconsciente entre fenômenos não- comparáveis, como uma máquina que
funciona bem e uma vida bem vivida, que torna os pais insatisfeitos consigo
mesmos e com os filhos, quando seus esforços no sentido dc criá-los bem deixam
de “produzir” exatamente os resultados que esperam. Eles concluem, então, que
deve haver alguma coisa errada com sua “técnica” de criar filhos, que devem ter
aplicado um método falho, porque, do contrário, os resultados corretos teriam sido
obtidos. É esse tipo de pensamento que leva os pais a confiar em manuais que
lhes dizém como desempenhar-se melhor como pais, quando o verdadeiro
problema flo é “desempenhar-se bem”, e sim ser um bom pai.
Isto não significa que os pais não se devam preocupar em fazer o melhor por seus
filhos, nem que devam deixar tais coisas ao acaso. Os pais devem, através de seu
próprio comportamento e dos valores nos quais se baseiam, apontar uma direção
para seus filhos. Mas é preciso que se liyrem da idéia de que existem métodos
infalíveis que, quando bem aplicados, produzirão certos resultados previsíveis. O
que quer que seja que façamos por nossos filhos deve fluir da compreensão que
temos deles e da nossa percepção da situação específica e da relação que
desejamos que exista entre nossos filhos e nós.
Robert Pirsig, em seu livro Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas, assegura
que, mesmo quando estamos montando algum aparelho, seguir indicações ou
instruções nos impede de nos sentirmos criativos em relação ao que estamos
fazendo. Isto, do ponto de vista da experiência humana, significa uma perda muito
maior do que o que ganhamos quando instruções precisas facilitam nosso trabalho
de montar coisas; assim, mesmo quando tudo que estamos fazendo é montar um
objeto, o sentimento com que nos dedicamos a nossa tarefa faz uma diferença
enorme na satisfação que po&mos ter com isso. E dificil sentirmo-nos realmente
bem conosco mesmos e nosso filho, quando utilizamos em nossas interações
conselhos dados por alguém de fora. Iso priva a interação da espontaneidade que
gera experiências significativas do ponto de vista humano e, conseqüentemente,
verdadeiramente satisfatórias.
Parece simples montar uma máquina, desde que se disponha de instruções ou
esquemas. Nossas expectativas quanto às conseqüências de seguir as instruções
são todas positivas; não há ansiedade interferindo em n’-.ssa capacidade de
compreender e obedecer as instruções. E se ficamos cansados, desanimados ou
entediados, porque o trabalho se
15
tomou mais dificil do que parecia, sabemos que nada será perdido, a não ser
dinheiro ou trabalho, se abandonarmos o projeto; nada tão grave acontecerá, se
pedirmos a alguém para terminar o trabalho por nós ou se pararmos por algum
tempo antes de continuar.
Como são complicados, em comparação, os sentimentos dos pais, quando
aturdidos pelo problema de como lidar com um filho em situação dfficil. Nesse
caso, temos que agir, e no entanto julgamos isso altamente complexo e, muitas
vezes, além de nossas possibilidades emocionais, no sentido de nos conduzir de
maneira a atender nossas próprias necessidades e a ajudar a criança a
desenvolver plenamente sua própria personalidade e ganhar, a cada pequeno
passo, uma visão correta e ao mesmo tempo positiva dela própria e do mundo.
Embora não chegue a constituir nenhum afago ao nosso amor-próprio o fato de
não sabermos montar um objeto, temos medo de ser inadequados enquanto pais,
no momento emque somos incapazes de descobrir, por nós mesmos, as respostas
“certas” a perguntas sobre criação de filhos. Dessa forma, é com ansiedade e um
certo desconforto que encaramos os conselhos que encontramos em um livro.
Quanto maiores a perplexidade e a necessidade, maior a pressão para encontrar
uma solução imediata. Quanto mais perturbados estamos, menos somos capazes
de pesar cuidadosamente as coisas, e maior o nosso desejo de sermos instruídos
por uma autoridade. Assim, nossa vontade, enquanto pais, de confiar naquilo que
nos dizem tem muito a ver com nossa vontade de acertar na criação de nossos
filhos e relativamente pouco a ver com a correção das instruções dadas pelos
livros. De outra forma, seria preciso haver um acordo amplo em relação a que livro
seguir e qual rejeitar — um acordo que raras vezes existe. Mas, paradoxalmente,
quanto mais queremos esses conselhos, menos gostamos deles, uma vez que
nossa necessidade é conseqüência de sermos confrontados com um problema
que, bem no fundo, sentimos que deveríamos ser capazes de enfrentar com
nossos próprios meios.
Além do mais, quase sempre não podemos evitar a hipótese de que, seguindo os
conselhos, realmente ficaremos em situação melhor ou seremos levados a
problemas ainda maiores com nosso filho. A questão é válida, porque, mesmo que
o conselho como tal seja apropriado, por alguma razão interna ou externa
podemos não ser capazes de aplicá-lo corretamente, e as coisas podem ficar até
piores do que eram de início. Em muitas situações complexas, grande parte
depende de como o conselho é entendido, de como é adaptado à situação
especffica e às naturezas do pai e filho em questão e do sucesso com que é posto
em prática; em todos esses aspectos e em vários outros, podemos encontrar
muitas armadilhas.
O melhor conselho é baseado num exame e numa avaliação criteriosos dos
detalhes específicos, como, por exemplo, os antecedentes da situação-problema;
assim, nunca poderá ser encontrado em um livro. Mas mesmo quando o conselho
é dado apenas após uma análise cuidadosa de todas as nuanças, podemos ser
incapazes de segui-lo de maneira adequada Isto pode agravar a dificuldade
original, porque, então, sentimo-nos mal não só em relação ao problema, mas
também em relação a nossa incapacidade de bem utilizar o conselho que
recebemos. Isto é razão suficiente para rejeitá-lo, quando examinamos
retrospectivamente a questão; se íamos falhar de qualquer maneira, melhor teria
sido falhar com nossos próprios meios.
Subconscientemente, desconfiamos dos conselhos sobre criação de filhos,
mesmo quando os procuramos. Lá no fundo, sabemos muito bem que vários
antecedentes prece-
16
deram o problema para o qual estamos buscando orientação; ele não surgiu do
nada e contém muitas particularidades do pai e do filho em questão. Embora a
situação e nosso comportamento dentro dela possam ter traços em comum com
aqueles que o autor descreve e, mesmo quando o problema que estamos
enfrentando é comum, cada um de nós é um indivíduo único. Assim, não há autor
de livro escrito para pais em geral que possa saber e pesar todos os fatores que
compõem nossa situação específica. Estamos prontos a acreditar que os
conselhos dados podem servir para a maioria das situações análogas, mas não
nos sentimos tranqüilos, porque não temos certeza de que serve para o nosso
caso. Sabemos também que o conselheiro não terá nada a perder se o tiro sair
pela culatra, enquanto conseqüências inenarráveis poderão advir para nós e
nosso filho, se nossa implementação for falha ou inadequada ou se o conselho, ou
nossa compreensão dele, for incompleto.
Novamente, neste ponto, pode ser pertinente uma comparação com o
acompanhamento das instruções para a montagem de um objeto. Se, à medida
que estamos tentando seguir as instruções de montagem, elas nos parecem
ardilosas, incompreensíveis ou irrelevantes, ou se realmente nos levam na direção
errada, podemos colocá-las de lado ou objetara elas e procurar outras melhores;
nem por isso ficamos em situação pior do que estávamos antes. Mas, no trato com
uma criança, é muito mais difícil desfazer o dano conseqüente de coisas feitas na
hora errada, de conselhos pouco claros OU mal-entendidos ou daqueles que
erram completamente o alvo. Sabemos que, tão logo começamos a seguir o
conselho, a situação originil mudou, em função do que aconteceu entre nós e
nosso filho; não podemos recompor nossos passos ou começar de novo de onde
partimos.
Quando estudamos as instruções de montagem, poucos de nós se afligem ao
saber que existem pessoas que podem dispensá-las. Mas, quando lemos sobre
como lidar melhor com nosso filho, ficamos com um sentimento de derrota,
julgando que outros pais sabem e sentem-se seguros nesses assuntos, enquanto
nós não. Por que temos que ler tudo sobre como educar bem o fflho para ir ao
banheiro, ou sobre suas idiossincrasias alimentares, quando outros pais parecem
não ter esses problemas? Não importa a quantidade de vezes que lemos que
outros pais têm a mesma experiência e passam pelas mesmas dificuldades, pois
sabemos, através de conversas com outros pais, que alguns não têm. Existe a
criança que se auto-educou em relação ao banheiro; uma outra que sempre
dorme a noite toda; outra ainda que está encantada com o recém-nascido. Desta
fonna, para cada criança cujo pai precisa de ajuda em relação a determinado
problema, existe outra que não provocou esse problema ou, pelo menos, assim
parece ao pai preocupado.
Além disso, quando o pai tenta receber ajuda, ele se torna presa do ressentimento
inconsciente, partindo da idéia de que o comportamento do filho o está forçando a
procurar conselhos. Muito amiúde, os pais, como adultos relativamente
controlados, sentem que seu filho não deveria ter passado por essa dificuldade
específica ou deveria, de certa forma, ter sido capaz de resolver esse problema
aflitivo sozinho. Se outros filhos podem fazer isso, por que não os nossos? Ou —
o que ainda é pior — é culpa nossa se nosso filho tem dfficuldades que outros não
têm? Se pensamos assim, nossas apreensões tornam ainda mais difícil aceitar
conselhos com aquela serenidade de espírito necessária para compreendê-los
adequadamente e aplicá-los sem distorções.
Assim, infelizmente, as emoções que sentimos quando lemos os conselhos sobre
como criar nossos filhos são geralmente confusas ou negativas. Temos medo de
poder
descobrir que já fizemos alguma coisa irremediavelmente errada; ou que o curso
de ação
17
igualmente algumas idéias contrárias que eles rejeitam. Para constatar isso, basta
observar alguns pais escolhendo em uma estante livros sobre criação de filhos.
Enquanto todos os livros sobre criação de filhos são escritos pelos chamados
“especialistas”, esses autores são aceitos como tal por alguns, e não por outros. A
realidade é que, apesar de existirem especialistas em crianças e em
desenvolvimento infantil em geral, só uma pessoa que esteja intimamente
familiarizada com o que acontece entre um pai específico e um filho específico
pode ser um especialista neles.
Tudo o que um pai que procura orientação pode fazer é tirar da grande variedade
de livros existentes, um em que encontre conceitos que considere persuasivos,
por se conformarem a suas idéias, e esperar que todo o resto seja assim também.
Como poderia agir de outra forma? Se queremos alargar nossa visão a respeito de
assuntos nos quais não estamos pessoalmente envolvidos, podemos ler autores
cujas opiniões sejam contrárias às nossas, mas, quando se trata de nosso filho,
queremos consultar alguém que veja as coisas com uma visão bem próxima da
nossa.
Até mesmo o conselho convincente por natureza não será fácil de ser seguido, se
estiver vinculado a algum tipo de obstâculo. Isto vale não só para os conselhos
dados por outros, mas também para aqueles que damos a nós mesmos ou
aqueles que, falando objetivamente, deveriam ser mais ou menos fáceis de serem
seguidos. Por exemplo, todos os livros que mencionam o assunto aconselham
colocar produtos potencialmcntc perigosos fora do alcance das crianças. No
entanto todos os dias crianças são trazidas aos hospitais porque engoliram esses
tipos de substâncias. Todos nós temos uma forte tendência a agir como Mary
Wortley Montagu que, em carta à Condessa de Mar, escreveu: “Algumas vezes,
dou a mim mesma conselhos admiráveis, mas sou incapaz de segui-los.”
O conselho que vai ao encontro da tranqüilidade ou dos pontos dc vista paternos é
mais facilmente seguido, a despeito de opiniões contrárias emitidas por algum
“especialista”. Eis porque o conselho para deixar a criança “chorar à vontade”, ao
invés de pegá-la e afagá-la, é ainda muito seguido. Não que essa linha de ação
signifique uma carga menor sobre o pai, uma vez que o gemido da criança o deixa
constrangido; o problema é que acabamos por nos aborrecer com todos aqueles
que nos deixam constrangidos e, inconscientemente, o pai ressente-se do choro
prolongado do filho e, dessa forma, se convence de que pegar a criança não lhe
fará qualquêr bem. Mesmo que um pai que esteja aborrecido com o choro
prolongado do filho o pegue — como freqüentemente também o aconselham —,
qualquer beneficio que a criança pudesse ter, desaparece diante de sua má
Vontade, o que, em seguida, prova ao pai que pegar a criança não lhe faz nenhum
bem. Embora seja fácil seguir nossos impulsos, quase sempre é muito difícil
mimar as pessoas que nos aborrecem, mesmo quando são nossos filhos. Assim,
se um conselho é seguido por um pai ressentido, quase sempre terá efeito
contrário.
Conheci vários pais com comportamentos estranhos em relação a seus filhos.
Quando indagados sobre o porquê desse comportamento, quase sempre diziam
que haviam lido ou ouvido dizer que essa era a melhor maneira de proceder. O
resultado, não raro, é que tinham recebido conselhos no sentido oposto, mas
segui-los tinha-se mostrado inconveniente ou inadequado, razão pela qual haviam
recorrido à literatura até encontrar um conceito com o qual podiam concordar.
Em resumo, é difícil ler conselhos sobre como se comportar como pai sem
reações
pessoais fortes, e essas reações interferem na compreensão, para não mencionar
a objetivi-
19
dade necessária para evitar projetar nos conselhos, elementos que na realidade
eles não contêm. E, uma vez que procuramos o conselho, torna-se dificil tirá-lo da
cabeça. Devemos chegar a um acordo com ele, aceitá-lo, rejeitá-lo, adotá-lo em
parte ou, pelo menos, considerá-lo. No entanto, uma vez que procuramos
conselhos quando estamos num impasse em relação a nosso filho — seja por
conta de seu ciúme de um irmão, de seu medo de cachorros ou de ir à escola, de
molhar a cama, de comer demais ou de recusar-se a comer —, falta-nos tempo e
disposição para examinarmos os conselhos que recebemos com o equilíbrio que
nos permitiria fazer escolhas adequadas. Estamos por demais pressionados —
porque nosso filho continua a recusar-se a ir à escola ou a ter medo de cachorros,
a não comer ou a comer demais, a fazer coisas perigosas ou a nos pedir para
protegê-lo de perigos imaginários. Mesmo que nosso filho não nos peça para
“fazer alguma coisa”, sentimo-nos compelidos a ajudá-lo, um tipo de pressão que
provavelmente não nos ajudará a tomar uma decisão objetiva quanto aos
conselhos. Se, por acaso, o comportamento- problema cessa temporariamente,
continuamos a nos preocupar com as razões que podem tê-lo provocado, pois
sabemos muito bem, de experiências passadas, que a interrupção pode não durar
ou que o problema pode desabrochar de alguma outra forma. Assim, não
podemos deixar de meditar sobre os conselhos, de sermos incomodados por
alguns de seus aspectos ou intrigados por outros, o que nos impede amiúde de ter
uma avaliação objetiva da medida exata em que se aplicam ao nosso problema.
Os livros com freqüência dizem aos pais como ser em relação ao filho — ser
compreensivo, paciente e, acima de tudo, amoroso. Mas, por mais que queiramos
ser, se não ideais, pelo menos muito bons pais, é praticamente impossível
sustentar tantas atitudes positivas em situações de crise, quando nossas emoções
nos sacodem fortemente porque perdemos a paciência com o que nosso filho está
fazendo ou decidido a não fazer. Não conseguimos entender o que o faz tão
obstinado. Sentimo-nos impossibilitados de amá-lo quando ele fere gravemente
nossos sentimentos, ou quando nos põe em dificuldade, destrói alguma coisa que
nos é importante, derrama sua comida em cima de nós ou libera sua raiva contra
nós ou contra seu irmão menor, batendo-nos ou chutando-nos, literal ou
figurativamente. Embora existam ocasiões em que encaramos tudo de bom humor
e nos deixamos afetar pouco por tudo isso, há momentos em que estamos
simplesmente fartos com o comportamento de nosso filho, por mais típico que
possa ser para a sua idade.
É óbvio que a grande maioria dos pais ama seus filhos a maior parte do tempo e
gostaria, acima de tudo, dc poder amá-los o tempo todo; não é necessário
destacar como é agradável sermos capazes de amar nosso filho sem reservas.
Contudo há poucos amores inteiramente livres de ambivalência. Isso se aplica até
mesmo ao amor de uma mãe por seu primogênito, que, segundo Freud, de todas
as relações conhecidas do homem é a mais singniarmentc positiva e a menos
ambivalente. Não apenas o nosso amor por nossos filhos é às vezes atingido pela
irritação, pelo desânimo e pelo desapontamento; o mesmo se aplica ao amor que
nossos filhos sentem por nós.
Em muitas situações de conifito, pais mais criativos dirão a si mesmos que tudo
isso é uma parte necessária, embora dificil, do crescimento do filho, e que querem
que seus filhos desenvolvam idéias e valores próprios. Infelizmente, esse insight
correto é de ajuda apenas limitada quando os pais sentem que não só seus
valores, mas sua maneira de viver é ameaçada e questionada pelos próprios
filhos, em torno dos quais, antes de qualquer outra coisa, construiram grande
parte de suas vidas.
20
singular dessa experiência que a faz vívidao bastante para ser não apenas
lembrada, mas revivida com sentimento.
Mesmo que um pai em situação semelhante, como nesse exemplo de ser xingado
pelo próprio filho, seja capaz de seguir os conselhos de terceiros no sentido de se
manter frio em momentos de dificuldade — e alguns pais conseguem exercer o
autocontrole necessário para tanto — , ao fazê-lo terá um comportamento artificial,
até mesmo mecânico, uma vez que não se trata de uma conseqüência natural de
seus sentimentos mais proftmndos. Assim, ele não parece mais, e sim menos
humano a seu filho. É dfficil lembrar, e mais ainda agir com base neles, os
conselhos para se comportar de maneira carinhosa nas ocasiões em que
exatamente nosso amor por nosso fflho que faz com que nos preocupemos com
seu comportamento. É exatamente porque amamos tanto nossos filhos que somos
tão vulneráveis — quanto mais amamos, mais nossos sentimentos podem ser
feridos, e nosso equilibrio emocional, do qual depende nossa capacidade de
permanecer pacientes e compreensivos, pode ficar comprometido. Fôssemos nós
mais indiferentes a nossos fiIhos, e eles não teriam o poder de nos fazer perder a
compostura.
Sentimo-nos tão próximos de nossos filhos porque vemos muito de nós mesmos
neles; para usar uma terminologia técnica, tanto quanto eles se identificam
conosco, nós nos identificamos com eles, em geral muito mais e de maneiras mais
diversas do que conscientemel te imaginamos. Ficamos felizes quando
reconhecemos neles traços que aprovamos em nós mesmos. Mas nossa
proximidade em relação a eles vem não só de identificaçõ s positivas, mas
também das negativas. Irritamo-nos muito quando acreditamos ver em um’ filho
aspectos que desaprovamos em nossa própria personalidade, via de regra,
tendências que lutamos muito para sobrepujar. Nessa variedade de sentimentos, o
conselho para ser paciente, compreensivo e carinhoso não ajuda em nada. Por
outro lado, perceber em tais momentos que vemos em nosso filho alguma coisa
irritante porque tivemos ou ainda temos que lutar contra a mesma tendência em
nós mesmos pode fazer-nos entender que, na realidade, estamos menos
preocupados com nosso filho do que conosco mesmos; compreendemos, então,
que o problema está inicialmente conosco e em nós, e apenas secundariamente
nele. Isso torna mais fácil aceitá-lo e nos ajuda a não ser tão duros com nosso
filho por conta dé alguma coisa que é muito mais problema nosso do que dele.
Na realidade, quase todos os pais são capazes de agir de maneira razoável, de
serem pacientes e compreensivos, desde que suas emoções não estejam em jogo
— ou seja, em circunstâncias que não evoquem seus sentimentos pessoais mais
profundos. Mas, quando se trata de nosso filho, muitas situações trazem à tona
esses sentimentos. O problema é que, com freqüência, quando pensamos estar
emocionalmente neutros e nos comportando de maneira totalmente racional, não
estamos. Um exemplo pode ser ilustrativo.
O maior desejo de um casal de alto nível de educação era que seu único filho,
nascido quando já não eram jovens, se tornasse o tipo de pessoa que mais
valorizavam: um homem culto, de muita leitura, de educação refinada. Não
conseguiam ver nada de bom para ele a não ser isso. Mnda assim, aceitaram
seus modos infantis quando ainda era muito jovem e tudo acontecia sem maiores
obstáculos. Mas quando, já adolescente, desinteressou-se da escola, embora
continuasse a ter notas suficientes para ser aprovado e não causasse maiores
problemas, ficaram muito irritados com sua paixão pelos esportes e sua
negligência em relação aos assuntos acadêmicos. Começaram a criticá-lo muito e
deixaram bcm.claro o quanto estavam desapontados com ele. o pai
especialmente, um destacado
22
cientista, temendo pelo futuro do filho, exerceu enorme pressão para que tivesse
outros interesses. Essa atitude, ao invés de produzir os resultados esperados,
afastou os dois, muito amigos até que o pai começou a achar que, a menos que o
filho tivesse um interesse sério por assuntos acadêmicos, pouco significaria, a
seus olhos, ou quase nada.
O menino via as coisas de maneira diferente. Nem ele nem seu pai compreendiam
que desprezava os livros porque sentia que de nada adiantaria competir com o pai
em sua própria área, daí ter escolhido esmerar-se onde não estaria competindo
com ele, especificamente nos esportes, pelos quais o pai não tinha o menor
interesse. Ignorando que era isso que se escondia por detrás de sua falta de
motivação naquilo que era o mais importante para seus pais, o menino sentia sua
crítica e preocupação com seu futuro como dúvidas em relação a ele como pessoa
— o que era verdade. Isso, assim sentia, colocava sua própria existência em
questão. As mesmas pessoas que ele precisava que tivessem confiança irrestrita
nele, acreditassem nele, para que pudesse acreditar em si mesmo, faziam- no
sentir-se profundamente inseguro, duvidar de si mesmo e de tudo o que fazia. Isso
o feria muito e deixava-o fortemente ressentido, o que lhe tomava ainda mais
impossível de ser e fazer o que seus pais queriam. O que ele necessitava era ser
não uma cópia imperfeita de seus pais, mas uma pessoa autônoma, e isso eles
pareciam incapazes de aceitar ou dc aprovar.
Os pais estavam convencidos de que suas razões eram inteiramente racionais, de
que, para seu bem, o filho tinha que desistir de seus interesses atuais e tomar-se
estudioso. Estavam de tal maneira comprometidos com o que desejavam para ele
que isso lançou uma sombra sobre tudo o que lhes acontecia. O filho que, quando
criança, amara muito os pais, e ainda os amava e admirava, estava
profundamente magoado porque esses amados pais, tão importantes para ele, já
não conseguiam ver nada de bom nele ou no que fazia. Afastou-se de ambos,
para que sua desaprovação não à ferisse tanto. A situação em casa tomou-se
desesperadora para os três, o que o fazia passar a maior parte do tempo com
amigos que tinham o mesmo interesse em esportes. Os pais, por sua vez,
ressentiam-se, uma vez que isso afastava o filho do seu convívio e daquilo que
desejavam para ele.
Quando o pai buscou conselhos sobre como lidar com o filho, asseguraram-lhe
que provavelmente se tratava de uma fase passageira, que quando o menino
amadurecesse era quase certo que reconheceria os méritos dos valores patemos
e os adotaria. Mas essas ponderações caíam em ouvidos surdos e o pai,
finalmente, em desespero, buscou ajuda profissional para saber o que fazer para
mudar a maneira de viver do filho. Reclamou muito dele com o terapeuta,
esperando escutar o que fazer para modfficá-lo. Finalmente, o terapeuta
persuadiu-o a falar sobre sua própria infância e adolescência e sobre sua própria
relação com o pai. À medida que se lembrava do que havia acontecido no final de
sua adolescência, opai subitamente se deu conta de uma coisa de que se
esquecera inteiramente, ou seja, de que passara pela mesma experiência como
filho e de que reagira a seu pai tal como seu filho fazia agora em relação a ele. Na
geração anterior, a questão tinha sido a determinação do pai para que o filho
seguisse seus passos e assumisse os negócios da família Contra isso tinha-se
rebelado; estava decidido a seguir uma carreira inteiramente diversa daquela que
o pai tentava impingir-lhe, e assim tomou-se um cientista. Isto os levou a um
grande período de distanciamento, mas, por fim, com o coração pesado, o pai
aceitou a recusa do filho de atender seus desejos e acabou por eventualmente se
orgulhar de suas verdadeiras realizações.
23
Reconhecendo a analogia entre sua relação com seu pai e a de seu filho com ele,
o pai foi capaz de mudar a natureza de sua identificação com seu próprio filho,
passando de uma, baseada na escolha profissional, para outra, alicerçada nas
experiências de vida: na luta do filho para encontrar um caminho para tomar-se ele
mesmo, sem ter que competir como pai. Essa mudança foi em grande parte
facilitada pelo entendimento tardio do pai — que até aquele momento não tinha a
menor noção disso — de que uma das razões que o havjam impedido até mesmo
de considerar assumir os negócios do pai era sua convicção de que jamais
alcançaria seu sucesso, e continuaria pela vida toda a sentir-se inferior a ele. O
reconhecimento eventual da analogia entrL as experiências de seu filho e as suas
próprias permitiu-lhe não apenas aceitar a maneira de viver de seu filho, mas de
ter a mais profunda empatia com o menino. Quase do dia para a noite pai e filho
tornaram-se muito amigos e puderam, mais uma vez, amar-se abertamente.
Em ambos os casos, os pais estavam completamente convencidos de que eram
motivados pelo mais sensível julgamento do que era melhor para seus filhos: o pai
do cientista acreditava que a maneira melhor e mais fácil do filho ter sucesso na
vida seria assumindo os seus prósperos negócios; o cientista pensava que apenas
uma carreira acadêmica poderia oferecer a seu filho a verdadeira satisfação. O
que nenhum dos dois reconhecia era que, por detrás dessas considerações
racionais, existiam motivos profundos e principalmente inconscientes, cuja força
era usada para comprovar os méritos dos desejos conscientes. Esses motivos
inconscientes eram complexos e múltiplos, mas os mais importantes eram,
primeiro, uma identificação com o fflho e o desejo de mantê-la permanente-
mente, fazendo com que vivesse como havia vivido; e, depois, um desejo
seguramente até mais reprimido de manter a superioridade sobre o filho, com
base na crença de que não teria um desempenho tão bom quanto o do pai na
mesma carreira. Assim, ambos desejavam, bem no fundo, que o filho fosse, de
alguma forma, uma duplicata menos perfeita deles próprios, parã que o elo entre
eles jamais se quebrasse ou modificasse pelo questionamento sobre a autoridade
do pai. Para serem capazes de agir com base nesses desejos inconscientes,
ambos os pais precisaram convencer-se de que estavam pressionando seus filhos
em direção a um determinado modelo, porque isso era o melhor para eles e de
que estavam motivados por motivos inteiramente altruístas. Precisavam acreditar
nisso para impedirem que a dúvida aflorasse e para poderem exercer pressão
sobre os filhos de consciência tranqüila. Em ambos os casos, os filhos
perceberam subconscientemente o que estava acontecendo; daí sua decisão de
não se tomarem réplicas mal-acabadas de seus pais.
A vontade de que um filho siga os passos do pai não se deve simplesmente a um
desejo de manter sempre a superioridade paterna. Baseia-se substancialinente
em um anseio de continuar uma relação com um filho, na forma em que era mais
forte e satisfatória para ambos. Inicialinente, as aptidões maiores dos pais
garantem a segurança e o bem-estar do filho; ele ama e admira o pai que
preenche tais necessidades. A recusa posterior do filho a seguir o padrão paterno
ameaça, dessa forma, um elemento antigo, bem-estabelecido e importante no
relacionamento pai-filho: a superioridade do pai em lidar com os problemas da
vida, que na infancia tinha sido um elo importante a uni-los. Como é
compreensível, assim, que o pai queira que esse elo continue a não ser
perturbado, com o filho assumindo a ocupaçao do pai, na qual ele é tão mais
qualificado. Como esse desejo é altamente egoísta, permanece inconsciente e é
substituído pela convicção consciente de que essa escolha profissional é a melhor
para o filho. -
24
Essas coisas, ficam muitas vezes, ainda mais complicadas porque, mais ou
menos na época em que o adolescente está afirmando seu desejo de uma vida
independente, opai chegou a uma idade em que começa a temer que sua força
esteja declinando. Nesse caso, os passos do filho em direção à independência
são considerados uma ameaça à potência do pai, uma ameaça que poderia ser
minimizada se a experiência do pai na ocupação em que o filho está para se
engajar garantisse sua superioridade, pelo menos em relação ao seu trabalho.
O ciúme da mãe, cuja beleza e cujos atrativos femininos estão em declínio
justamente quando os da filha estão em pleno desabrochar, está imortalizado na
Rainha em “Branca de Neve”; e, de forma semelhante, o da figura paterna
confrontando a força e as conquistas de seu jovem sucessor aparece na estória
do Rei Saul e Davi. Nessas estórias antigas, o rei e a rainha tentam destruir o
jovem q.Ie está a um passo de suplantá-los, na hora em que a idade começa a
cobrar seu tributo.
A reação dos pais modernos ao auge da juventude dos filhos no momento em que
seu declínio está para começar ocorre mais freqüentemente através da negação
do fato, tentando manter-se tão bonitos, tão jovens, tão fortes e tão atraentes
quanto eles. Em nossa cultura, o ato de ficar velho deve ser temido. Não é
necessário que seja assim, como demonstra o exemplo da antiga China. Lá,
quanto mais se envelhece, mais venerável se é; la, os pais não têm razão para
sentirem ciúme dos sucessos da juventude de seus filhos ou qualquer
necessidade de competir com eles nesse sentido. Mas nossa cultura é orientada
para a juventude. E qualquer coisa que pareça desafiá-la, como, por exemplo, o
crescimento dos filhos, é vista como uma ameaça para ser repeicla através da
tentativa de ser, ou pelo menos parecer, tão jovem, forte ou atraente quanto eles.
Enquanto no passado a mãe tentava abafar a sexualidade florescente da filha, a
fim de não ser ameaçada pelas perspectivas de a filha substitui-la, hoje a mesma
mãe competiria provavelmente com a filha no que toca aos atrativos femininos ou,
até mesmo, em juventude. Os pais tentam não ficar atrás dos filhos no fisico. Essa
competição, ao nível da criança, faz o pai parecer mais um irmão mais velho do
que um pai. No entanto, a despeito dessa competição relativa à juventude — que
coloca pai e filho em pé de igualdade —, o pai ainda quer reter a autoridade
paterna, amplamente baseada na diferença de gerações que essa competição
nega. Ela nega a superioridade da geração do pai, nèga que a criança, para sua
segurança e para sua capacidade, precisa ver o pai como uma figura a ser
respeitada e não como alguém com quem vá competir.
Assim, relativamente cedo a criança deseja ter sua própria vida, diferente da do
pai, o que para muitos pais, é bastante dificil de aceitar; da mesma forma, os
assuntos tornam-se muito mais complexos psícologicamente, quando o pai quer
ser parte da vida do filho, mantendo-se fisicaniente tão atraente e competente
quanto ele, mas esperando ao mesmo tempo ser respeitado por seu maior
conhecimento de vida Para ambos, pai e filho, a situação que se apresenta é de
impasse, uma vez que o pai continua incapaz de reconhecer o lado inconsciente
de sua rivalidade com o filho. Se, por outro lado, o pai consegue conscientemente
aceitar o que está se passando dentro dele, então talvez a satisfação pelas
conquistas do filho, que é mais atraente em sua juventude, substituirá as reações
inconscientes de ciúme, superficialmente encobertas por racionalizações sobre o
que é melhor para o filho e por que é vantajoso para todos que o pai tenha a
aparência mais jovial possível.
25
26
Pai ou Estranho?
Proposições gerais não decidem casos concretos
—JUSTICE O. W. HOLMES
JUSTICE HOLMES disse que proposições gerais não podem decidir casos
concretos. Nem por um momento subestimou as proposições gerais, mas sabia
que, para decidir sobre casos concretos, é necessária uma cuidadosa
consideração de todos os seus intrincados detalhes. Portanto decisões judiciosas
exigem algo mais do que a sábia aplicação de princípios gerais; tambem exigem
cuidadosa atenção para os aspectos sempre singulares do caso concreto em
questão. No mesmo sentido, Freud ressaltou consistente- mente a importância de
uma compreensão não só dos aspectos psicanalíticos como dos meios singulares
nos quais estes se revelam numa situação concreta. Textos ou treinamento
psicanalíticos podem colocar um estudante inteiramente a par dos problemas
gerais e dos caprichos do desenvolvimento humano durante a vida. Essa
familiaridade oferece uma boa oportunidade para a compreensão do que pode
estar subjacente às particularidades de uma situação; mas isso constitui apenas o
ponto de partida para cuidadosas deliberações sobre o caso individual. O próximo
passo para um pai, assim como para um jurista ou psicanalista, é evocar em si
próprio ressonâncias do problema como um todo e da forma específica e concreta
pela qual o problema se apresenta, fazendo com que a sua compreensão venha a
ser não apenas racional, mas também empática e emocional.
Se conselhos de um estranho ocasionam um curto-circuito nesse processo de
descoberta, opai pode ficar tentado a acreditar que a luta pela compreensão é
desnecessária. Contudo, por mais que esteja corretamente informado ou
inteigentemente aconselhado, tendo sido dito a ele o que fazer — cm
contraposição a ter sido estimulado a pensar por conta própria—, o dizer destrói
sua espontaneidade em confrontar o problema e sua satisfação em achar seu
próprio método de lidar com ele. Isso tem muita importância na criação dos filhos,
onde emoções complexas estão permanentemente em jogo e onde não podemos
deixar de sentir que a melhor e mais genuína solução é a nossa. Buscar, com a
ajuda de terceiros, como, por exemplo, a consulta a especialistas, uma
compreensão do problema como um todo, com o qual podemos muito bem não
estar familiarizados, é um procedimento razoável. Mas agir segundo as
recomendações de outros, não pode evocar em nós os sentimentos de
confirmação que só crescem em nosso íntimo quando compreendemospor nossa
conta, a nosso modo, o que está em jogo numa situação particular, e o que
podemos, portanto, fazer a respeito.
28
Para evitar ter que examinar os méritos de cada caso, discutindo-o novamente
com o filho, alguns pais gostam de estabelecer regras, em geral ligadas a como
ofilho deve agir ou se comportar; muito raramente se sentem, eles mesmos,
presos a regras. E algumas crianças gostam de receber regras: isso não só as
livra, também, do problema de ter que examinar, a cada vez, o que pensam e
sentem sobre uma situação particular, como lhes permite canalizar o
ressentimento para a regra, não para o pai que a estabeleceu e agora a impõe. (E
consideravelmente mais fácil ficar zangado com uma regra impessoal do que com
alguém muito importante para nós, alguém por quem nutrimos sentimentos fortes.)
Isso tira o ressentimento do contexto pessoal e o relega para o plano das
considerações abstratas, como o mérito da regra e sua aplicabilidade a um
contexto particular. Mas por isso mesmo tira a relação entre pai e filho do plano
pessoal, transferindo-a para um campo teórico e impessoal de discussão ou
ressentimento em relação a regras. O filho remete-se à regra e ao que ela implica,
mais do que a seu pai, a pessoa de maior importância em sua vida. Guiar-se por
regras, em última análise, afasta opai do filho.
Enquanto em situações impessoais as regras têm uma certa vantagem ao nos
poupar do processo de tomada de decisões, as regras objetivam e
despersonalizam. Era isso que Pirsig tinha em mente: por mais prático que seja
“seguir as regras” na hora de montar um objeto, é dificil não nos tornarmos — ou
pelo menos nos sentirmos — escravizados por elas. As regras são os inimigos da
espontaneidade e dos sentimentos positivos.
Uma vez formuladas e mais ou menos obedecidas pela criança, elas roubam ao
pai e ao filho o real prazer que ambos experimentam quando o filho
espontaneamente se oferece para executar determinada tarefa porque deseja nos
ser útil, ou apenas nos mostrar, por meio da retribuição, o quanto aprecia o que
fazemos por ele.
Só pessoas compulsivas gostam de agir baseadas em regras, uma vez que suas
compulsões neuróticas não lhes permitem fazer outra coisa. Os outros não
encontram muita satisfação em seguir regras, nem os filhos em obedecê-las nem
os pais em impô-las. Pode existir, e freqüentemente existe, conveniências nas
regras, mas prazer quase nunca; e fazer as coisas de acordo com regras não
intensifica os sentimentos de pai e fflho um para com o outro. Regras entre pai e
filho, não importa sua procedência, objetivam e mecanizam o que deveria ser a
mais pessoal, a mais essencialmente humana, a mais espontânea das relações —
aquela que nos pode proporcionar novos prazeres a cada dia.
SEGURANÇA: UMA ATITUDE PATERNAL
Em quase todos os problemas de criação de filhos — mesmo quando
circunstâncias estão acima do poder de influência ou controle do pai, como
conflagrações, terremotos, doenças, morte na família —, opai e o filho são o
problema e também a solução. Como o proble. ma é vivido pela criança, e
portanto, o que significa para ela, é onde o pai pode exercer sua influência. Por
exemplo, a criança pode vivenciar uma doença grave, até mesmo uma que ponha
sua vida em risco, como um acontecimento positivo por conta da devoção e amor
sinceros que isso despertou em seus pais, o que os deixou mais próximos um do
outro do que em qualquer outra época.
Qualquer que seja o problema, o insight de suas emoções centrais e aspectos
psicológicos, de sua natureza e origens, certamente nos colocará perto de sua
solução. Para esclarecer essas tuestões, no entanto, os pais devem usar seu
próprio insight, não o de outra pessoa, como, por exemplo, alguém que dê
conselhos. Freud descobriu a falácia da
32
34
Muitas, se não a maioria, das crianças ficam um pouco hesitantes diante da nova
situação, e, de início, têm alguma dificuldade em separar-se da pessoa que as
levou lá, quase sempre suas mães. No entanto algumas crianças acostumam-se
facilmente, e outras apenas com a maior e mais prolongada dificuldade. Tudo
depende dos sinais que a criança recebe da mãe; se esses lhe dão a entender
que se trata de uma situação segura e desejável, ela logo, de bom grado,
aproveita a nova experiência Se, por outro lado, a dificuldade inicial da criança em
deixar sua mãe ir embora lhe evoca respostas que sugerem ao filho que ela
também esta preocupada com o que pode acontecer e não deseja deixá-lo, então,
naturalmente, sua perturbação inicial se agrava. Isso parece validar as primeiras
preocupações da mãe e aumentá-las; a criança choraminga e agarra-se à mãe,
que fica cada vez mais insegura sobre se será capaz de controlar a situação, se
estava na hora certa de enviá-la para o jardim de infância. Mesmo quando a mãe,
abertamente, tranqüiliza o filho dizendo- lhe que estará seguro na escola, a
criança, a essa altura, se deixa levar por sua ansiedade e não vai reagir às
palavras da mãe, mas apenas a seus sentimentos de ansiedade relativos à
separação.
É muito mais a ansiedade da mãe do que a da criança que mantém o processo
em andamento. Isso está relacionado ao fato de que a mãe sabe uma coisa que a
criança nem sequer suspeita: que esta separação é apenas o começo de um
longo processo que finalmente levará o filho a ter uma vida própria, independente
de seus pais, à medida que se desenvolve através dos anos escolares e, depois,
na vida. De um modo geral, é a antecipação ansiosa das separações muito mais
graves por vir que detona a ansiedade de separação da mãe, presente o tempo
todo em seu inconsciente como resultado de suas próprias experiências infantis.
Este processo e seus efeitos em outras crianças na sala de aula pode ser ilustrado
por uma anedota que me foi contada por uma professora de crianças de três anos,
embora pudesse ter acontecido em qualquer jardim de infância
Segundo a experiência dessa professora, só as crianças cujas mães têm
dificuldades em se separar delas têm dificuldades em se separar de suas mães. A
mãe que verdadeiramente sente que o jardim de infância será bom para seu filho
transmite essa mensagem através de seu comportamento. Ela deixa o filho, em
seu primeiro dia de escola, sem muita hesitação, e ele logo participa alegremente
das atividades com seu professor e as outras crianças. Mas a história é muito
diferente se há dúvidas íntimas quanto a deixar seu filho; ela transmite isso ao
demorar, ao fazer um movimento de ir embora só para voltar imediataniente ao
primeiro sinal de desconforto por parte da criança. Esta logo percebe que sua mãe
acha que deixá-la não é uma coisa boa, começando, portanto, a chorar e agarrar-
se a ela. Assim que as outras crianças observam isso, também ficam em dúvida
quanto a estarem na escola e põem-se a gritar por suas mães, embora até esse
momento estivessem brincando felizes.
Particularmente interessante para essa professora, e bem indicativo do que
acontece nesse tipo de situação, foi o comportamento de seu próprio filho. Um dia,
uma das mães que levava o filho à escola pela primeira vez ensaiou
repetidamente ir embora só para voltar e abraçar o filho que, a cada repetição,
ficava mais agitado e agarrava-se mais desesperadamente a ela Ele parecia
perceber que ela, na verdade, não queria deixá-lo e, de bom grado, correspondeu
à expectativa dela em relação a ele, não a deixando partir. A medida que o choro
da criança aumentou e se tornou mais frenético, embora ela ainda estivesse bem
ali, outras crianças aderiram num coro de “Eu quero mamãe.” Finalmente, o
36
filho da professora juntou-se a elas, gritando que queria sua mãe, apesar de, até
então, ter estado brincando alegremente, e nunca ter manifestado anteriormente
qualquer ansiedade ao deixar sua mãe pela manhã e entrar no jardim de infância,
mesmo nos dias em que ela não era uma de suas professoras. Neste dia em
particular, ela era sua professora e ficou bem a seu lado; ela ia — e ele sabia —
passar o resto do dia com ele na sala de aula, e ficou, portanto, desconcertada
com sua choradeira. Quando lhe fez ver que ela estava bem ali, ele parou,
confuso, mas, após um pequeno momento de hesitação, gritou ainda mais alto:
“Então, eu quero o papai!”
As crianças, ao observarem a mãe que não conseguia separar-se do filho devido à
sua ansiedade de separação, tiveram a sua própria ansiedade ativada. Em meio à
agonia dessa ansiedade, ficaram desesperadas pela ausência da mãe, porque
esta é a origem e forma básica da ansiedade de separação. O menininho cuja
mãe estava bem ao seu lado também foi tragado pelo clima geral da ansiedade de
separação. Quando sua mãe lhe mostrou que gritar pela mamãe não tinha
sentido, ele precisou encontrar alguma justificativa, o que fez passando a gritar
pelo papai (embora seu pai jamais o tivesse acompanhado à escola nem ele
jamais tivesse chorado por ele quando deixado na escola). Não foi a ausência do
pai que fez o menino chorar por ele, mas sua ansiedade de separação.
Infelizmente, nessas situações não adianta nada a professora confrontar a mãe
com sua incapacidade de se separar do filho, ou impressioná-la com o fato de que
sua relutância em deixar o filho toma as coisas muito mais dificeis para ele. A mãe
pode fazer um esforço consciente que aliviará o momento, mas isso não diminuirá
sua ansiedade, que pode então passar a expressar-se de formas mais sutis.
Portanto o bem-intencionado conselho de “soltá-lo” pode ajudar na superticie,
mas, tomando o problema subjacente menos visível, pode impedir sua solução e
criar problemas mais sérios a longo prazo.
Seria melhor, ao invés disso, convidar a mãe relutante a tentar recordar seu
primeiro dia de escola, quais teriam sido suas esperanças e ansiedades, e de
onde elas surgiram. I.embrar-se de como se sentiu nessa ocasião e do que
eventualmente a ajudou a soltar-se da mãe vai levá-la a encontrar, por conta
própria, meios de tornar essa experiência mais fácil para o seu próprio filho. Pode
ser que ela perceba que o apego do filho a ela não se quebra por causa de sua
entrada na escola; reconhecer isso, enquanto experiência interior, deve dar,
mesmo a uma mãe ansiosa, a segurança de que necessita para soltá-lo.
Uma compreensão mais profunda da ansiedade do filho torna-se possível quando
o pai usa a experiência como uma passagem para a descoberta de como ele
próprio se sentiu, enquanto criança, em situações similares. Essa empatia
permite-lhe compreender as origens de seu próprio envolvimento na atitude de
seu filho em relação à escola. Portanto o procedimento mais útil numa situação
como essa é aquele que ajuda o pai a recordar as ansiedades de sua própria
infância. Fazendo isso, compreenderá que papel estas desempenharam na
ansiedade relativa a separações tanto dele quanto de seu filho. De um modo
geral, porém, um pai só descobre isso depois que chega a compreender a
verdadeira natureza da ansiedade de seu filho, que não tem quase nada a ver
com o que pode acontecer na escola, mas apenas com o medo de perder sua
mãe. Os detalhes de comportamento, únicos para cada criança, oferecem as
melhores pistas para se encontrar o que causa isso, mas se conseguimos
descobrir essas pistas (p. exemplo, o menininho que chorava pela mãe, passando
a dizer “Então eu quero o papai! )“, seremos capazes de avaliar o que está
realmente acontecendo.
37
Quer pai e filho descubram ou não as origens mais profundas de suas ansiedades
interligadas, o simples fato de o pai esmiuçar seu passado para compreender seu
filho e o filho sentir que seu pai está fazendo isso para ajudá-lo aproxima os dois
muito mais, enquanto brigam com a situação. É por isso que afirmo: o filho e o pai
são o problema, mas também a solução.
O conselho de um especialista não irá ajudar o pai, a menos que ele tenha as
experiências interiores apropriadas; este conselho pode até impedi lo de
empenhar-se na laboriosa tarefa de descobrir as causas das dificuldades de seu
filho e, no decorrer do processo, descobrir coisas sobre sua própria vida e maneira
de ser que o aproximam tão mais de seu filho e seu filho dele. A experiência
interior certa, por outro lado, revelará como até o melhor conselho é superficial e
impessoal, se aplicado a uma situação complexa provocada por sentimentos
extremamente pessoais — uma situação que pode crescer em complexidade à
medida que novos sentimentos pessoais são instigados por ela. E por essa razão,
desejo reiterar, uma vez mais, que neste livro não pretendo oferecer “conselho
especializado”, mas estimular o leitor a investigar os próprios sentimentos
envolvidos nas questões relativas à criação de filhos.
38
cações paternas que orientam o seu despertar para o mundo — e isto acontece
mesmo que os pais não se dêem conta do que estão fazendo. As palavras e os
gestos de um pai, seu tom de voz e sua expressão facial podem, de repente,
lançar uma luz muito diferente sobre as coisas, o mesmo valendo também para
sua ausência de resposta. Não apenas o comportamento explícito dos pais, mas o
que acontece em sua mente consciente e inconsciente, influencia
signiflcativamente a criança, fornecendo-lhe os dados sobre os quais baseia sua
visão de si mesma e de seu mundo.
40
Essa é a razão pela qual um pai bastante bom é aquele cujas ações e reações,
cujas aprovações bem como críticas (ambas igualmente importantes e
necessárias na criação de um filho) são temperadas por uma ponderação
criteriosa das percepções da criança. Os pais bastante bons esforçam-se para
avaliarem e reagirem a quaisquer assuntos, tanto de sua perspectiva adulta
quanto da perspectiva totalmente diferente do filho, e basear suas atitudes em
uma integração razoável das duas, ao mesmo tempo em que aceita que a criança,
por conta de sua imaturidade, possa entender as questões apenas de seu próprio
ponto de vista.
Isso é muito mais fácil de dizer e entender na teoria do que de ser colocado em
prática no cotidiano. Essa perspectiva dualista toma-se quase impossível de ser
mantida quando o assunto é daqueles que provocam emoções fortes ou aparenta
ser de grande urgência, seja por razões pessoais seja porque nos parece de
importância considerável para o atual bem-estar de nosso filho ou para seu futuro
sucesso na vida. Estamos convencidos de que nossa visão madura está correta, e
é dfficil sair desse quadro de referência e considerar seriamente o assunto da
perspectiva de nosso filho. Afinal, que razão pode ter ele para querer fazer essas
coisas irracionais, impossíveis ou perigosas? Que motivos possíveis pode ter para
desejar tão intensamente — ou ficar tão irritado com — o que para nós é uma
simples bagatela?
Quanto mais um assunto nos parece importante e óbvio, menos estamos aptos a
nos preocupar com as possíveis razões das atitudes de nosso filho. Sabemos que
ele é freqüentemente influenciado por impulsos momentâneos e irracionais, que
tende a agir com precipitação, sem se preocupar com as conseqüências. Por que
tentar, então, descobrir o que pode estar por baixo de seus pensamentos e
atitudes OU considerar suas razões seriamente? E se o comportamento de uma
criança parece bizarro ou até mesmo pervcrso, muitos pais acharão impossível
descobrir seus motivos.
Quando o comportamento de uma criança é inaceitável, os pais mais inteligentes
tentam argumentar com ela, explicando-lhe seus erros e expondo a superioridade
dc seu ponto de vista. Infelizmente, uma vez que ela se decidiu, esses esforços
bem- intencionados só raras vezes a convencem a mudar sua maneira dc ser ou
dc pensar. Os pais podem, de fato, conseguir que ela lhes obedeça enquanto é
pequena. Mas, muito amiúde, isso os leva a acreditar que, já que a criança agora
faz o que lhes dizem, é porque aceitou seus argumentos; ou, pior ainda, não se
importam com o que acredita, desde que “se comporte.” O assunto pode estar
resolvido para eles, mas de modo algum para a criança. Ela pode estar infeliz por
ter sido contrariada; mais ainda, pode guardar rancor do pai que a obrigou a ir
contra aquilo que continua a considerar boas razões, uma vez que não teve
chance alguma de descobrir se não eram.
Um adulto pode superar facilmente a argumentação de uma criança, sem sequer
perceber que está fazendo isso, uma vez que o poder de argumentação do pai é
muito maior que o do filho, incapaz de impor seus argumentos de maneira
convincente. Mas, a capacidade superior dos adultos de discutir e o seu maior
domínio de fatos relevantes — tão convincentes para o pai — podem ser vistos
pelo filho simplesmente como a derrota de sua opinião. E muitas crianças,
sabendo, de experiências anteriores, que o pai fará o que quer, ficam irritadas ou
infelizes, por antecipação, com o resultado que esperam, seus sentimentos
impedindo-as tanto de expor seus argumentos quanto de entender os de seu pai.
Assim, a criança sente-se superada pela capacidade de raciocínio do pai, e sentir-
se
41
Ser levada a sério traz uma enorme satisfação a uma criança, assim como o
sentimento de ser entendida por seu pai. Uma vez que o que ela busca é a
satisfação, receber essas satisfações pode tornar-se uma compensação aceitável
pelo fato de ter que modificar o seu comportamento.
Na realidade, a maioria das pessoas precisa sentir que suas opiniões receberam
total atenção antes de se mostrarem dispostas a querer ou a ser capazes de
considerar quaisquer opiniões fervorosamente opostas que lhes são
apresentadas. É necessário ter uma segurança interior considerável para ser
capaz de levar em conta opiniões contrárias às nossas, uma segurança que ainda
falta às crianças de todas as idades. Mas toma-se muito mais fácil, se sentimos
que a outra pessoa está disfosta a esforçar-se para entender nossas razões e
levá-las (e, com elas, nós) em conta seriamente — aí estaremos abertos a outros
argumentos e talvez até mesmo dispostos a aceitá-los.
A razão mais freqüente de discórdia entre pais e filhos é a insistência da parte dos
pais no sentido de que os filhos entendam os assuntos da maneira como eles os
entendem e reajam de acordo com esse entendimento — a despeito da
advertência de São Paulo de que uma criança só pode pensar e compreender
como uma criança, e não como um adulto. Terêncio afirmou, antes até, que há
tantas opiniões quanto pessoas. É verdade: o mesmo fenômeno pode parecer
diferente até mesmo a adultos que têm basicamente a mesma formação, uma vez
que é a soma de nossas experiências anteriores e nosso quadro de referência
particular que determinam nosso ponto de vista. E as coisas são ainda mais
complicadas quando se trata de pais e filhos, porque as diferenças de experiência,
objetividade e compreensão são muito maiores até do que as existentes entre
adultos de formações diferentes. Por isso, se queremos que nosso filho
compreenda alguma coisa da forma que entendemos correta, ou benéfica para
ele, devemos considerar o que o acontecimento ou a experiência podem significar
para ele, dado o seu próprio quadro de referências. Baseados nisso, podemos
ajustar nossa própria conduta ao fato, de forma a que este faça sentido para ele
da maneira que queremos. Isso não é fácil, nem mesmo nas situações mais
comuns do cotidiano — nem mesmo quando nenhum fator externo interfere entre
nós e nosso filho.
Sabemos muito bem que nós e nossos filhos vemos as coisas de perspectivas
diferentes, mas isso permanece quase sempre como um conhecimento teórico
que perdemos de vista, sempre que somos apanhados em uma situação na qual
nossa perspectiva e a de nosso filho entram em conflito. Por exemplo, os
supermercados são lugares onde mães e filhos podem facilmente se aborrecer
uns com os outros. Quando isso acontece, ambos estão convencidos de que sua
irritação em relação ao outro justifica-se plenamente, enquanto a do outro não é
razoável — um conffito de opiniões de maus presságios para ambos. Como
observou Anna Freud, a criança que se perde em algum corredor sente-se
desamparada, grita ansiosamente pela mãe, mas nunca diz: “Eu me perdi”, e sim,
acusadoramente, “Você me perdeu!” É rara a mãe que admite ter perdido o filho!
Ela espera qúe seu filho fique com ela; pela sua experiência, foi a criança que
perdeu a pista da mãe, enquanto, pela experiência da criança, foi a mãe que
perdeu sua pista. Ambas as opiniões são corretas da perspectiva do indivíduo, O
que acontece, na realidade, é que tanto a mãe quanto o filho se deixam atrair, ou
distrair, por alguma outra coisa; ela, concentrada nas compras, pelas escolhas que
tem que fazer, e ele, por outras coisas; ou, mais provavelmente, ele se sente
entediado porque a mãe está lhe dando menos atenção do que às coi-
43
sas nas prateleiras. Assim, começa a vagar ou hesita, quando sua mãe se muda
para outro corredor. De repente, quando se conscientiza de sua ausência, parte
para encontrá-la e logo, tendo ido para outra parte da loja, na ânsia da busca,
compreende, horrorizado, que está perdido.
A mãe entende a ansiedade do filho, mas sabendo que estão ambos ainda na
mesma loja e que a criança pode ser facilmente encontrada, pode deixar de reagir
à magnitude de sua ansiedade; quando o medo da criança é traduzido para a
linguagem adulta, é como estar súbita e inesperadamente perdido na selva
absoluta. A mãe sensível, de alguma forma, reconhece isso, mas pode ser-lhe
muito doloroso concluir que projetou seu filho em tal estado de ansiedade; é dificil
para ela reconhecer que estava concentrada em alguma coisa — a escolha de
mercadorias — tão pouco importante quando comparada à agonia de seu filho.
Mais ainda, pode ressentir-se de sua acusação implícita de negligência ou achar
que foi culpa da criança, e não sua, o fato de ela ter-ser perdido. Assim, mais para
salientar o que sente a respeito da pouca atenção dada ao filho do que por falta de
sensibilidade ao que ele sente, a mãe volta a considerar a situação com o
equilíbrio de um adulto e com base nos recursos disponíveis a um adulto.
Embora a visão dela seja correta quando considerada de sua perspectiva, ela de
fato é injusta para com a visão da criança, que estava inicialmente ansiosa por ter-
se sentido perdida e agora sente-se mais desesperada por não ser entendida pela
mãe. É esta combinação que faz esses acontecimentos do cotidiano
verdadeiramente aterradores para a criança se não reagimos adequadamente a
eles e à sua experiência interior em relação a eles.
Aqui, como em muitas situações análogas, se reagimos adequadamente ao terror
da criança, tudo fica bem, mas se somos insensíveis a esse terror e nos
aborrecemos por ela fazer tanta confusão e exigir tanto nossa atenção, então a
criança sente-se ainda mais perdida. Agora ela não está fisicamente perdida, mas
perdida porque é mal-entendida pela única pessoa cuja compreensão dela e de
suas necessidades constitui sua fonte exclusiva de segurança. Uma vez que
fomos nós quem escolhemos levá-la a um lugar onde tantas coisas atraem sua
atenção e a distraem, impedindo-a de nos manter o tempo todo dentro de seu raio
de visão, na opinião dela a culpa é toda nossa.
Um outro exemplo pode ilustrar ainda a diferença de perspectivas. Uma criança
deixa cair um objeto valioso e ele se quebra. O pai, irritado com a perda do objeto,
deixa transparecer o quanto está aborrecido com a falta de jeito do filho. Vamos
considerar, no entanto, o incidente do ponto de vista da criança. Ela está ansiosa
por ter quebrado o objeto e pela reação que espera do pai, que, ela sabe, será de
crítica e de irritação. Para piorar as coisas, ela sabe que seu pai, para começar,
não teria deixado cair o objeto. Assim, sua própria falta de jeito, que lhe é
mostrada de forma tão dolorosa, acrescenta um devastador sentimento de
inferioridade e impropriedade ao seu medo da ira paterna. Se os pais pudessem
sempre ter em mente que esse é o estado de espírito de uma criança, não se
aborreceriam tanto pela perda material. Ao contrário, seu coração se abriria para
seu pobre filho que está tão infeliz consigo mesmo, infeliz pelo que fez e pelo
medo da raiva dos pais. Eles desconsiderariam o fato de o objeto ter-se quebrado
e concentrar-se-iam em minimizar a profunda angústia de seu filho.
Esses dois exemplos muito comuns ilustram como reagimos de maneira diferente
quando conseguimos ver as coisas de ambas as perspectivas — a nossa e a de
nosso filho.
Na realidade, no último exemplo é o filho quem mais provavelmente entenderá o
que
44
Uma vez que consigamos entender como as coisas parecem a nosso filho quando
vistas de sua perspectiva, de alguma forma nos apropriamos da sua experiência,
não a seu, mas a nosso modo, e assim conseguimos uma compreensão mais
profunda dele como pessoa Se conseguimos isso, reagimos então a cada situação
não apenas a nosso modo, mas simultaneamente, por delegação, a seu modo
também. Isso nos permite participar do que acontece — não como iguais, que não
somos, mas como sócios igualmente importantes no comum e mais relevante
empreendimento de nossas vidas, que é viver como uma família
Esse empenho para entender e, de certa forma, por delegação, experimentar o
que nosso filho está experimentando, e reagir à situação com base nisso, tem
também freqüentemente o valioso efeito colateral de trazer à mente incidentes
parecidos ou análogos de nossa infância, significativos mas esquecidos há muito.
Permite-nos, por fim, compreender mais profundamente o significado que tiveram
então para nós, o papel que desempenharam na formação de nossa
personalidade e na imagem que temos do mundo. Se isso acontece,
enriquecemo-nos com uma compreensão melhor não apenas de nosso filho, mas
também de nossa própria infância Podemos até ser capazes de resolver
problemas enterrados antes do tempo, e portanto não resolvidos, agora revelados
sob a tríplice e totalmente diversa luz da reação de nosso filho, da reação da
criança que éramos quando aquilo nos aconteceu, e do adulto que somos agora
Na hora em que conseguimos isso, nós e nossos filhos nos aproximamos
emocionalinente e como pessoas, e nos tomamos capazes de conhecer e gostar
de nossos filhos como são: crianças.
46
deve haver razões muito poderosas em ação para causar esse fracasso, razões
que, para ela, são claramente mais compulsivas do que as recompensas pelo
sucesso acadêmico. Para entendê-las, devemos encarar o ensino acadêmico sob
uma perspectiva a partir da qual o fracasso parece mais desejável do que o
sucesso. É a convicção paterna apriori de que não existe a possibilidade de
semelhante perspectiva que impede os pais de compreender as razões que levam
seu filho a escolher o fracasso em lugar do sucesso. Se os pais tentassem ver as
coisas por um prisma que tornasse a escolha do filho compreensível, entenderiam
seu modo de pensar e o considerariam lógico; e, o que é mais importante, o
desacordo entre eles se resolveria, e eles saberiam como modificar a escolha da
criança, transformando-a em outra mais dc acordo com a deles.
Temos aqui um caso ilustrativo. Ella, era uma adolescente cujos pais, ambos muito
ambiciosos, atribuíam grande importância tanto a seu considerável sucesso
acadêmico quanto ao de seus fflhos. Acontece, porém, que Elia era uma aluna
bem medíocre, muito diferente de seu irmão mais velho, um verdadeiro estudioso,
para a satisfação evidente dos pais. Embora Ella tivesse obtido anteriormente
notas respeitáveis em cada uma das matérias, de repente fracassou em todas
elas. Compreensivelmente, isso trouxe grave preocupação à sua mãe, que se
inquietou durante anos com a indiferença de Ella quanto à educação; tentou sem
sucesso controlar o tempo que Ella gastava vendo televisão e fazê-la ler “bons”
livros. Entrevistas com os professores falharam em lançar qualquer luz sobre o
assunto; eles também estavam atordoados.
Infeliz e confusa com a situação, a mãe buscou orientação profissional sobre
como induzir a menina a ler boa literatura e sair-se melhor na escola. Falou
livremente a respeito de suas preocupações com a falta de interesse da filha pelos
livros, sua ociosidade com os muitos amigos, sua mania de televisão; também
descreveu sua maneira aberta e severa de criticar a filha. A única coisa que não
mencionou, até ser questionada diretamente sobre a situação familiar, foi que seu
marido tinha saído de casa vários meses antes, para sua grande infelicidade. A
separação fora obviamente tão dolorosa que ela preferia evitar até mesmo falar ou
pensar no assunto, embora estivesse consciente de que isso tinha criado sérias
dificuldades para toda a sua família. Se é que era possível, sentia-se mais
fortemente obrigada do que antes, a zelar para que seus filhos não se
desgarrassem. Mas ao pressionar Ella a melhorar seu desempenho na escola,
obteve o efeito contrário.
Não ocorreu a essa mãe que poderia haver razões válidas para o comportamento
de sua filha, portanto não se preocupou em verificar que razões seriam essas; ao
invés disso, achou que a indolência e a procura de divertimento fácil pareciam
explicações suficientes para o comportamento extremo da menina.
Se a mãe tivesse partido da convicção de que sua filha deveria ter motivos tão
bons para suas atitudes quanto a mãe para querer que ela lesse boa literatura e
se aplicasse aos estudos, talvez lhe tivesse ocorrido perguntar-se por que é que
Elia, que sempre tirava notas suficientes para passar, de repente tinha fracassado
em todas as matérias, não apenas numa ou noutra. A mãe, em seu trabalho
científico profissional, estava acostumada a considerar cuidadosamente todas as
circunstâncias que cercam um acontecimento antes de chegar a quaisquer
conclusões sobre sua causa. Mas no que conceme à sua filha, não se fez as
perguntas apropriadas. Que causa importante poderia explicar uma mudança tão
radical na realização escolar de sua filha? Que outros acontecimentos
significativos tinham ocorrido mais ou menos na mesma época do fracasso
acadêmico? Tivesse ela ponderado
48
essas perguntas, teria ficado óbvio que uma grande mudança se operara na vida
da menina; a partida de seu querido pai, e a possível conexão entre esses dois
acontecimentos teria pelo menos sido sugerida.
O próprio temor da mãe de que a ruptura de seu casamento pudesse ter
conseqüências destrutivas para seus filhos, e sua determinação de impedir que
isso acontecesse, fez com que não percebesse as verdadeiras intenções de sua
filha Seus sentimentos de medo e determinação sobrepuseram-se à sua
convicção básica de que não poderia haver qualquer motivo para o fracasso
acadêmico. A subestima dos motivos de sua filha, que via como preguiça,
frivolidade, ou busca desmiolada de prazer, e a tristeza que isso lhe causava
fizeram com que a mãe não procurasse uma explicação mais generosa para o
comportamento da filha. Convencida de que suas impressões sobre os motivos de
sua filha estavam corretas, simplesmente foi incapaz de compreender que Ella
queria exatamente a mesma coisa que ela: trazer seu pai de volta para a famiia.
Contrariamente à idéia da mãe de que o fracasso da filha demonstrasse que ela
não dava importância à escola, na verdade a menina tinha absorvido a convicção
de seus pais de que o sucesso acadêmico podia mudar a vida de uma pessoa e
fazer com que ela alcançasse seus fins mais importantes. Decidira, portanto, usar
o grande peso que seu pai atribuía à realização acadêmica para atingir seu
objetivo mais importante naquele momento:
fazê-lo voltar à família. ElIa era bastante esperta para saber que, se continuasse a
ter média na escola, seu pai interpretaria isso como querendo dizer que estava
tudo bem, apesar de sua saída de casa, não havendo, portanto, necessidade de
que ele voltasse. Seu fracasso total — o que nunca tinha acontecido antes —
poderia preocupá-lo a ponto de fazer com que as coisas voltassem ao que eram:
ele viria para casa, e ela tornaria a tirar boas notas. Seu completo fracasso em
todas as matérias era um artificio para atraí-lo de volta, embora só tivesse
consciência do sentimento de que, sem seu pai para ampará-la, não conseguia
funcionar. Sua mãe, envolvida com os próprios problemas, só queria poupar novos
aborrecimentos à família, mas Elia era mais Otimista: acreditava que a partida de
seu pai podia ser revogada, e pôs-se em campo para concretizar isso do melhor
modo que sabia. Com relação ao que era mais importante, estava em total acordo
com sua mãe, embora esta não conseguisse perceber isso.
Por conseguinte, um comportamento que parece indicar que pai e filho estão em
total desentendimento pode, na verdade, ser motivado por sua busca do mesmo
objetivo, se bem que por meios muito diferentes. Muito bem, Ella pode ter agido de
modo ingênuo e imaturo, pouco ligando para as conseqüências mais distantes.
Mas tendo em vista sua idade, como poderia ter sido de outra maneira? Além do
que, realisticamente falando, o que mais poderia ter feito para causar uma
impressão tão forte em seu pai?
Com mais freqüência do que a maioria dos pais se dá conta, os objetivos de seu
filho são iguais aos seus. Está tão profundamente apegado a eles, sua vida tão
interligada à deles, que não pode senão responder intuitivamente ao que se passa
em seus corações e mentes. As crianças, freqüentemente, reagem menos ao que
ocupa a mente consciente de seus pais do que ao que está trabalhando em seus
inconscientes, já que elas mesmas estão muito mais sob a influência de seus
inconscientes do que os adultos. Portanto a criança reage, principalmente, ao
inconsciente do pai. Em seu mundo, onde o sol se levanta e se põe com seu pai, e
onde tudo parece ser possível para o pai, pouco conta o que poderíamos chamar
de realidade objetiva.
49
Por mais que a mãe desejasse seu marido de volta, sendo realista e sabendo
como são as coisas, conhecendo, sobretudo, seu ex-marido, não tinha
esperanças. Por mais que desêjasse que ele se reincorporasse à família, sentia-
se ambivalente em relação a ele, porque sua saída machucara-a muito; tinha
sentimentos contraditórios em relação ao ex- marido depois do que ele tinha feito.
Convencida de que nada o traria de volta, não lhe ocorreu que o desejo de que ele
voltasse pudesse estar motivando sua filha.
Os sentimentos de Ella por seu pai não eram ambivalentes, de modo que
respondeu apenas a um dos lados da ambivalência materna — aquele que queria
ver a famiia reumda; como esse lado da ambivalência de sua mãe vinha ao
encontro dos desejos da própria Elia, a menina atuou sobre eles (embora
inconscientemente) com grande determinação, incapaz de compreender por que
sua mãe não conseguia compreender seu ponto de vista. Elia, vivendo no
presente, não se preocupava com seu futuro — ao contrário de sua mãe, tão
empenhada nisso —, mas sentia uma dor real e constante pela perda do pai.
Por experiência própria, Ella não conhecia seu pai enquanto marido, ou enquanto
adulto do sexo masculino com inúmeros interesses fora do lar. Conhecia-o
essencial- mente apenas como seu pai; tudo mais, a respeito dele, tinha pouca
realidade para ela. Agora que essa relação, tão absolutamente importante, tinha-
se rompido, não conseguia pensar em outra coisa que não em seu desejo de
restaurá-la. Não era capaz de ver a relação de seus pais como realmente era, via-
a como ela, filha, gostaria que fosse. De sua perspectiva, a volta do pai parecia
muito mais possível, muito mais fácil de se concretizar do que sua mãe achava,
portanto tratou de ir fazendo tudo o que podia para tornar realidade o seu próprio
desejo e o desejo ambivalente de sua mãe.
A infelicidade nesse caso foi que a mãe da menina, convencida de que sua filha
desafiava deliberadamente o que mais desejava para ela, não pôde entender que
a garota tentava conseguir o que ambas mais queriam. Não se deu conta de que,
a longo prazo, se seu marido pudesse ser induzido pelo menos a funcionar
enquanto pai, um período escolar fracassado seria um preço muito pequeno a
pagar.
Os sentimentos de que temos consciência podem ser comparados à ponta visível
do iceberg — sua menor parte —, enquanto o grosso de seu volume, como
nossos sentimentos e motivos inconscientes, permanece submerso e invisível. O
fracasso acadêmico de Ella era sua resposta a seu dilema, uma reação ditada por
forças em grande parte submersas — isto é, impulsos oriundos de seu
inconsciente. Portanto, seria errôneo acreditar que seu fracasso na escola foi o
resultado de um plano cuidadosamente elaborado, do qual ela estava mais ou
menos consciente. Os processos mediante os quais o inconsciente opera são
desconhecidos, caóticos e confusos; os motivos são muito misturados, não raro
contraditórios; e apenas alguns desses elementos podem, temporariamente, vir à
consciência, sob a forma de pensamentos fugazes que são imediatamente
empurrados de volta ao inconsdente. Pode ter pensado rapidamente: “Se eu
fracassar em todas as matérias, isso vai realmente mostrar a meus pais como eu
fiquei mal com sua separação; isso vai fazer com que meu pai faça alguma coisa
por mim.” Com medo, porém, desses pensamentos, assim como de suas
conseqüências, caso se deixasse levar por eles, ela os reprimiu — o que não os
impediu de induzi-la à ação sugerida por eles, sem que ela tivesse consciência do
que estava fazendo e por quê.
50
quanto sua filha era realmente vulnerável, o quanto ela precisava da atenção e
afeição de seus pais.
A solução para isso, como também para a maior parte dos impasses entre pai e
filho, é não tentar fazer com que a criança obedeça nossos desejos, o que os pais
tão freqüentemente vêem como a única solução aceitável, e na qual tentam
concentrar seus esforços. Mesmo conseguindo impor nossa vontade, isso é obtido
com a derrota da criança, o que não é de bom alvitre para sua autoconfiança;
além disso, é possível que a criança acabe por nos derrotar no final, não
necessariamente em relação a essa questão específica, mas em outras, e,
possivelmente até, mais importantes batalhas. E uma cunha se mete entre nós,
contribuindo para a eventual alienação de nosso filho em relação a nós, à medida
que vai crescendo.
Já que a criança não pode ver além do momento, ou apreender a idéia de que
pode haver outros meios de solucionar um problema sem ser o que ela tem em
mente, os pais é que devem encontrar uma solução que faça razoável justiça ao
ponto de vista de ambos e ao do filho. Para chegarmos a isso, precisamos
compreender e dar crédito aos motivos de nosso filho. Para descobrir quais são
eles, devemos partir da pressuposição de que ele, sendo nosso filho, assim como
nós, só deve ser motivado pelo que considera boas causas. (Essas, é claro, são
coloridas por sua perspectiva das coisas, sua idade, e as particularidades da
situação como vistas por ele. ) Quando procedemos dessa maneira, damos a
nosso filho a sensação de que estamos com ele na tentativa de buscar a solução
para o problema em jogo, não contra ele e seus desejos. Então podemos levantar
com segurança a questão sobre se a sua forma de atingir seus propósitos não
pode ser melhorada, se colocando nossas cabeças juntas não podemos
vislumbrar um modo melhor para que ele alcance suas metas.
Não seria tão diticil proceder assim, se pelo menos pudéssemos ser racionais no
trato com nosso filho, uma vez que o princípio básico da busca da justiça é dar à
outra parte o beneficio da dúvida. No entanto nosso intenso envolvimento com
nosso filho nos deixa infelizes se ele age contra nossas vontades. Ficamos tão
magoados com isso que nossa reação emocional nos impede dc acreditar que
alguém capaz de nos ferir possa ter bons motivos para agir desse jeito. Para
tornar as coisas mais dificeis, esse mesmo envolvimento interno com nosso filho
— afinal, fomos nós que o lusemos no mundo, lhe ensinamos tudo que sabe,
tomamos conta dele dia e noite — leva-nos a crer que já sabemos quais são seus
motivos. Portanto não sentimos necessidade de procurar cuidadosamente por
eles. Um estranho paradoxo — é a própria força de nosso amor por nosso filho
que nos faz ser menos que justos com ele. Só quando juntamos proximidade
emocional e empatia com objetividade suficiente para ver as coisas de sua
perspectiva, podemos descobrir, ou ele nos revelar, seus verdadeiros motivos.
Para isso, devemos ser capazes de sair — temporariamente, com propósitos de
exame e descoberta — de nosso próprio quadro de referência para o de nosso
filho. Todas as situações pai/filho estão carregadas de sentimentos. Isso é
inevitável, mas é como deveria ser, já que só as ações paternas imbuídas dc
sentimentos positivos por nosso filho convencem-no de sua importância para nós,
urna experiência de que ele necessita desesperadamente para poder acreditar
que também pode ser importante para outros. Na verdade, por mais doloroso que
seja para um filho provocar emoções negativas em seu pai, isso é melhor do que
nada. Pais emocionalmente frios e indiferentes tendem a produzir filhos
emocionalmente frígidos ou muito violentos.
52
Mas também aqui existem graves perigos. Pais que estão muito aborrecidos ou
zangados por alguma razão que não tem ligação direta com o filho podem excitar-
se com uma infração menor, e assim descarregar suas emoções sufocadas. A
criança percebe instintiva- mente o que está acontecendo e fica muito ressentida.
Como todos nós, ela quer ser o recipiente apenas das emoções que
verdadeiramente lhe pertencem.
Outra armadilha, e uma na qual pais em geral muito razoáveis e atentos
freqüentemente caem, é a situação em que o pai se acredita envolvido
emocionalmente com o filho, enquanto a percepção do filho é a de que o pai, na
realidade, não está nem um pouco preocupado com ele. Isso pode acontecer
quando um pai dá grande ênfase á necessidade do sucesso acadêmico e tem
uma reação exagerada diante de qualquer fracasso nessa área. Nossas
inquietações quanto ao futuro de nosso filho, quanto a seu prestígio diante de
professores e colegas de turma, quanto a sua autoconfiança. talvez até quanto à
reputação familiar, pode conferir uns laivos de paixão e de fervor excessivo áquilo
que, de outra forma, passaria por um desejo perfeitamente racional. Infelizmente,
algumas crianças vi- venciam de forma negativa essa preocupação com o trabalho
escolar. Sob certas circunstâncias, nosso filho pode chegar a sentir que só
estamos interessados em sua situação acadêmica. não nele como pessoa. Isso
pode induzi-lo a odiar esses estudos, que acredita serem mais importantes para
nós do que ele. Esta é apenas uma das muitas situações nas quais um pai está
certo de que só se preocupa com seu filho, enquanto o filho está certo de que
seus pais só se preocupam com suas realizações, não com ele.
Aqui mais uma vez, se tentarmos ver as coisas a partir da perspectiva da criança,
projetando-nos para alguma situação analoga de nossas vidas, geralmente
podemos dar crédito a seu ponto de vista. Por exemplo, muitos de nós tivemos a
experiência em fl0S50 emprego de que outros só estavam interessados em nossa
realização profissional, não importando quão pouco mérito ou prazer pudéssemos
encontrar naquilo ou quanto de esforço aquilo nos exigia. Nessas circunstâncias,
sentimo-nos usados mais do que apreciados, tratados como objeto mais do que
como um sujeito, como um produtor mais do que uma pessoa.
No entanto, quando se trata de nosso filho e de seu trabalho escolar, estamos
COflvencidos de que nosso interesse e preocupação com seu desempenho é o
mesmo que se preocupar com ele, e esperamos que também ele acredite nisso.
Mas não é assim que ele sente. E não é por preguiça ou falta de interesse que ele
não se aplica aos estudos. É o grande desapontamento que experimenta quando
acha que estamos mais preocupados com seu desempenho do que com ele
enquanto pessoa. Conseqüentemente, pode vir a ressentir-se da escola e de tudo
o que ela representa, a detestar o trabalho escolar a ponto de ser, realmente,
incapaz de fazê-lo. Qual de nós pode aplicar-se com êxito a alguma coisa que
detestamos?
Outra criança, que por alguma razão se sinta derrotada por seus pais, pode
recusar- se a se sair bem na escola como única maneira de combatê-los, e
possivelmente imporlhes uma derrota recíproca, igual a que ela pensa que seus
pais lhe infringiram. E uma outra ainda, que precise provar a si mesmo que não é
um boneco cujas cordas são puxadas por pais ou professores, confirma sua força
por um desafio que assume a forma de fracasso escolar.
Embora eu tenha dito que algumas crianças “pensam” que é o trabalho escolar
que causa suas dificuldades com seus pais, na verdade, com muito mais
freqüência, alimentam
53
Quando assumimos que nosso filho acredita que seus motivos são bons, quase
sempre descobrimos que isso é verdade, embora esses motivos possam estar
baseados numa visão de mundo muito imatura; mas, sendo criança, que outra
visão poderia ter? Se prosseguimos com essa suposição, logo descobrimos que
as razões de nosso filho e as nossas, que pareciam mundos separados, podem,
na maioria dos casos, ser reconciliados de forma bem satisfatória. Isso exige boa
vontade de ambas as partes, e talvez da nossa, uma dose considerável de
paciência Mas isso não é tão dillcil de contornar, depois que nos tornamos
capazes de compreender o que move nosso filho e pudermos apreciar isso.
Quando compreendemos quais são ou quais podem ser seus motivos, não apenas
a comunicação entre nós será mais fácil e agradável para ambos, como nossa
empatia por nosso filho resultará em maior estima por ele, portanto, num maior
prazer e satisflição de ser seu pai.
58
6
Nossa Humanidade Comum
Homo sum bumani nibil a me alienum puto.
(Sou humano; nada que é humano me é estranho)
59
mas vezes sentiu-se petrificada pelo medo de se perder e não conseguir encontrar
o caminho de volta para casa. Nunca lhe tinha ocorrido que seu filho pudesse ter
sido dominado por alguma sensação semelhante. Ela estava lá, a seu lado; como
podia ele ter medo de se perder? Mas agora compreendia que nem sempre a
presença de seus pais tinha sido segurança suficiente contra o seu medo de se
perder; mesmo quando estava com eles sentia- se temerosa de que, de alguma
forma, pudessem separar-se e não serem capazes de se encontrar. Só lhe
ocorreu que seu filho pudesse ter ficado com medo de alguma coisa parecida,
depois de ter-se lembrado dessa grande ansiedade em sua própria infancia, mas,
uma vez atingido esse ponto em suas ruminações, sentiu uma profunda simpatia
por seu filho em seu medo, profundamente diferente da irritação anterior diante de
seu comportamento “irracional”. Quando sugeri mais adiante que seu filho podia
ter tido medo não apenas por ele, mas possivelmente por ela também, temeroso
de que ela pudesse ferir-se atravessando a rua, imediatamente compreendeu o
quanto ele estava alarmado diante da possibilidade de se ver só em uma cidade
estranha, onde não conhecia ninguém, não sabia locomover-se, nem como
encontrar o caminho de volta para casa.
O medo do abandono é uma das maiores causas de ansiedade na infância, e a
criança consegue imaginar muitas formas de isso acontecer. Pais na mesma
situação dessa mãe explicam racionalmente que não há perigo; mas, quando
somos dominados pelo terror, as explicações racionais não afetam nossa maneira
de sentir. A tranqüilidade do pai demonsti-a que ele está no comando da situação
e de si mesmo, mas as emoções e os medos da criança ainda a subjugam. E se
ela acha que o pai não leva em conta seu grau de ansiedade, então sua
segurança tranqüila não é uma ajuda, mas um obstáculo. O pai parece estar
falando de um mundo completamente diferente; o que ele diz sobre esse outro
mundo (adulto) não se aplica ao mundo próprio da criança e não minimiza seu
terror.
Se pensarmos retrospectivamente, a maioria de nós conseguirá lembrar-se de ter-
se sentido atemorizado em criança, talvez quando entramos em uma casa escura
e desconhecida ou dormimos em um quarto escuro como breu. Quando gritamos
que vimos alguma coisa espreitando no escuro, nosso pai explicou
cuidadosamente que não havia o que temer, mas se seu tom de voz ou sua
conduta revelassem que ele pensava que estávamos sendo bobos, ficávamos
convencidos de que ele simplesmente não conhecia todo o terror que existe na
escuridão. Se, por outro lado, demonstrava empatia com nosso medo, então
adquiríamos segurança e nossa ansiedade diminuía, porque sentíamos que já não
estávamos sós com ela
O pai que permanece distante de nosso terror não está conosco na situação; fica
vivencialmente fora dela Mas opai que demonstra empatia com nosso terror, que
mostra que o considera legítimo e real, faz-nos sentir que sabe sobre o que está
falando. E essa é a razão pela qual podemos confiar no que nos está dizendo.
Devemos lembrar-nos disso quando em confronto com uma situação como aquela
em que essa mãe se encontrou. Se reagimos ao estado emocional de nosso filho,
ao invés de à nossa própria avaliação das coisas, então continuar as compras não
parecerá muito importante, ao mesmo tempo em que alivias seu terror terá
preferência sobre qualquer outra coisa. Para diminuir seu medo, tentaremos
confortá-lo, pegá-lo e protegê-lo em nossos braços, ou de amenizar de alguma
outra forma seus receios, ao invés de esperar que ele aceite explicações racionais
num momento em que seu grande grau de ansiedade toma isso impossível.
Quando o menino ficou petrificado de medo, provocado ou aumentado pelo aI-
60
voroço da grande cidade ao qual não estava acostumado, provavelmente ele
estava mais incapacitado por um sentimento de total inadaptação do que por uma
ansiedade específica em relação ao trânsito ou a possíveis acidentes. Um
sentimento semelhante pode ter sido a causa do medo que sua mãe teve na
infancia de perder contato com os pais. Por muito tempo, ela não teve memória
consciente dessa ansiedade, mas, quando se deu conta dela, isso a ajudou a
reconhecer as emoções que dominaram seu filho. Anos mais tarde, ela contou-me
que seus esforços posteriores para imaginar as circunstâncias que poderiam tê-la
feito querer agir como seu filho, freqüentemente acompanhados por lembranças
de sua própria infância, ajudou muito aos dois. A presença da empatia mudou a
situação. Antes, ela e seu filho tinham objetivos opostos, e agora ela sentia, se
não exatamente como ele, pelo menos, e de maneira forte, com ele. Em resumo,
uma vez que aprendeu a ter empatia com o comportamento do filho, sentiu-se
motivada para lutar por uma compreensão intuitiva e emocional, ao invés de
intelectual, das forças atuantes nele.
Um entendimento empático do que pode motivar nosso filho quando se toma diticil
ou irritado, combinado com lembranças evocadas de nossa própria vida, torna
possível uma aceitação interna de seu comportamento. Sem isso, em uma
circunstância como a que essa mãe e esse filho enfrentaram, a reação paterna
talvez seja de irritação. A irritação não acontecerá apenas em relação ao impasse
do momento — a recusa da criança de mover-se — mas mais ainda com sua
incapacidade de atuar em uma simples situação cotidiana e também com o fato de
que nossa presença e nosso cuidado pareçam impressioná-lo tão pouco. Assim,
sem uma reação empática e de simpatia à situação de nosso filho, nossa irritação
aumenta, e as coisas vão de mal a pior em nossa relação.
Essa irritação, normalmente ignorada, toma dificil, no calor do momento, sentir
empatia com o ponto de vista de nosso filho. Portanto algumas vezes não
conseguimos ajuda- lo a assenhorar-se de si mesmo; nossa raiva só aumenta sua
ansiedade. Mas, quando somos capazes de recordar nossas próprias experiências
semelhantes na infância, é quase impossível irritar-se. Nesse ponto, a
compreensão intelectual não basta; devemos também nos abrir a nossos próprios
sentimentos e recordações de experiências análogas de infância para
encontrarmos pistas válidas sobre o que fazer para dar alívio a nosso filho. Se
conseguimos nos lembrar do que nos paralisava de medo — uma experiência que
toda criança tem de vez em quando —, podemos lembrar-nos também do que
queríamos que nossos pais fizessem para que nos sentíssemos melhor, e isso
sugerirá o que pode funcionar agora.
Nem sempre é possível lembrarmo-nos de situações verdadeiramente análogas;
perdemos contato com nossas primeiras experiências ou talvez não tenham
ocorrido situações semelhantes em nossa infância. Enquanto esta mãe conseguiu
lembrar-se de ansiedades que teve na infância, semelhantes às do filho; a mãe de
ElIa não pôde recorrer a experiências próprias. Só conseguia lembrar-se de que
ler tinha sido um dos maiores prazeres de sua infância, e isso impossibilitou
qualquer tipo de empatia quanto às reações opostas da filha.
Quando nossas próprias recordações falham, devemos recorrer a outro tipo de
aproximação e perguntar a nós mesmos o que poderia nos levar a agir como
nosso filho, independentemente das diferenças existentes entre os detalhes
externos da situação. Por exemplo, a mãe de Eila teria que parar de pensar em
livros, em leitura e no grande valor que atribuía à cultura, do que sua filha
obviamente não compartilhava — a experiência interior de Ella em relação aos
livros era de repulsa. Mas a verdadeira questão emocional
61
entre essa mãe e essa filha não eram os livros cm si; era a incapacidade de Ella
fazer o que sua mãe mais queria Os livros eram apenas o ponto incidental em que
o conffito se centrava.
Para desenvolver uma empatia em relação ao estado emocional de Ella, sua mãe
teria necessitado desenterrar a lembrança de uma época em que ela
simplesmente não conseguia obrigar-se a fazer alguma coisa que outras pessoas
faziam facilmente, recuperar a experiência de um sentimento de repulsa relativa
ao objeto de desejo de seus pais. Lembrando-se do que tinha sentido então,
continuando a especular e descobrindo o que poderia ter-lhe causado tal reação,
poderia ter dito a si mesma: “Isto é o que Ella deve estar sentindo.” Teria então
compreendido como era grave e penosa a situação atual de sua filha, e que era
impossível repreendê-la. Teria perguntado a si mesma: “Quando era incapaz de
fazer o que meus pais mais queriam que eu fizesse, porque embora eles me
dissessem que era agradável só me provocava repulsa, o que é que eu queria que
eles fizessem para me ajudar em relação ao que sentia?” Teria tido então uma boa
idéia do que agradaria a qualquer criança em circunstâncias similares. E este seria
o melhor remédio para ajudar Ella a superar sua dificuldade naquele momento.
Tomemos por exemplo o pai de um menino que bateu em outro. Ao invés de se
convencer de que é sempre errado bater, este pai poderia ter-se perguntado: “O
que é que precisaria acontecer, o que eu teria que sentir para bater em alguém ou,
pelo menos, ter vontade de bater em alguém?” Não teria então repreendido seu
filho, entendendo que o que ele precisa é de ajuda para vencer a raiva e
orientação a fim de compreender que bater em alguém não é a melhor maneira de
resolver essas situações.
Assim, o pai bastante bom, além de estar convencido de que seja o que for que
seu filho faça, ele o faz porque acredita naquele momento que é o melhor que
pode fazer, perguntará também a si mesmo: “O que, afinal, me faria agir como
meu filho está agindo neste momento? E se me visse forçado a agir dessa forma,
o que me faria sentir melhor?” Se emos responder de maneira honesta a essas
duas perguntas relacionadas, saberemos
— com bastante precisão — o que motivou nosso filho, mesmo que ele não
consiga ou não queira nos contar ele próprio; e saberemos como ajudá-lo a lidar
com seu problema.
Na realidade, este princípio tem mais de dois mil anos. Terêncio formulou-o desta
maneira: Homo sum humani nibil a me alienum puto; Já que sou humano, nada
que é humano pode ser estranho a mim, o que significa que, o que quer que outro
ser humano pense ou faça, devo ser capaz de encontrar um equivalente dentro de
mim, pelo menos como uma possibilidade teórica Se isso se aplica ao
comportamento de pessoas totalmente estranhas, muito mais ainda se aplicará a
nosso próprio filho.
Talvez seja dificil acreditar que existem situações na vida capazes de nos fazer
agir como nunca pensamos que pudéssemos. Èu mesmo, principalmente quando
a idade e a experiência ainda não me haviam ensinado, pensava com freqüência:
“Jamais faria isto”, mas aprendi a ver as coisas de modo diferente, sobrevivendo a
duas guerras mundiais, ao colapso de um império, e a dois campos de
concentração alemães, além de trabalhar com grande variedade de casos
psiquiátricos, incluindo criminosos e psicóticos. Descobri que tudo que algum dia
achei que jamais poderia fazer era possível sob determinadas circunstâncias
(normalmente extremas); quase sempre me sentia muito tentado a fazer algumas
dessas coisas, tendo sido preciso um grande empenho para não ceder; renunciar
a isso sobrecarregou seriamente meu autocontrole.
62
Não se pode esperar tal disdplina das crianças. Não devemos ser tão convencidos
a ponto de pensar a respeito de qualquer coisa que nosso filho faça: “Jamais faria
isto.” Ao contrário, devemos acreditar que, se a concatenação das circunstâncias
fosse a mesma, nós nos sentiríamos exatamente assim e, se não agimos como
ele, isto só se deve ao nosso conhecimento muito maior do mundo e à nossa
capacidade madura de nos controlar. Se aceitarmos essa verdade, não será tão
difícil imaginar o que poderia induzir nosso filho a agir assim. Ainda mais, se nos
empenharmos na tarefa mental de resolver tudo isso, descobriremos coisas
fascinantes sobre nós mesmos e nosso filho, e sobre o muito que temos em
comum.
Para que o amor de um pai seja total e positivamente efetivo, deve ser iluminado
pela atenção. Tudo o que fazemos, assim como por que e como fazemos,
provocará um impacto consciente ou, mais freqüentemente, inconsciente em
nosso filho. Mesmo um grande amor pode ser egoísta e nos arrebatar, quando
considerações mais cautelosas nos teriam feito agir com maior prudência
Devemos conhecer e avaliar nossos motivos e não ficarmos satisfeitos apenas
com o exame daqueles que podemos imediatamente aprovar. Devemos
reconhecer em beneficio de quem agimos de fato — se em nosso ou no do nosso
filho — e identificar a possibilidade de podermos estar sendo influenciados pela
preocupação com a reação de terceiros — pais, amigos e vizinhos. Isso não quer
dizer que esteja errado agir em beneficio próprio quando adequado, mas apenas
que devemos estar conscientes desse fato e não nos tentar enganar ou, pior
ainda, tentar enganar nosso filho, e levá-lo a acreditar que estamos agindo
inteiramente em seu beneficio.
Colocar o filho na cama pode proporcionar um exemplo freqüente e doméstico
dessa decepção patema. Os pais, de uma maneira geral costumam ser flexíveis a
respeito da hora de dormir, mas também estão prontos para se mostrarem
inflexíveis quando lhes convém. Quando estão cansados à noite e desejam
repouso ou tempo para desempenharem suas próprias atividades sem serem
incomodados pelo filho, tendem a insistir em que ele vá para a cama porque está
na hora e porque ele precisa dormir, o que é óbvio, tanto para ele quanto para nós.
Mas não há nada definitivo a respeito de qualquer horário específico para dormir,
como sabemos por nossa própria experiência, nem a respeito de quando essas
horas necessárias de sono devem começar ou terminar, muito menos
evidentemente para as crianças menores que ainda não têm que ir à escola na
manhã seguinte. Sabemos também, por experiência própria, que quando não
dormimos o suficiente uma noite, temos possibilidade de compensar na seguinte,
e nossos filhos podem, além disso, tirar uma soneca mais longa no outro dia
Não há nada errado em querer estar livre à noite. Isso só se torna um problema se
o pai acredita que está mandando o filho dormir para o beneficio dele, e não para
o seu próprio. Se se trata dessa última hipótese, insistir numa hora determinada
para dormir, ao invés de ser flexível, significa recorrer a regras a fim de não ter
que avaliar, a cada vez, o grau de cansaço da criança ou sua disponibilidade
interior de achar que chega por hoje. Nosso filho toma-se consciente disso ainda
muito pequeno, na mesma época em que se dá conta de que somos livres para
dormir a qualquer hora, dependendo de como estejamos nos sentindo ou do que
esteja acontecendo. Normalmente, a única coisa de que a çriança tem consciência
é de que quer ficar acordada mais tempo, porque deseja ainda fazer alguma coisa
ou continuar a participar do que está acontecendo na casa. Mas isso não significa
que, em Outro nível, não se ressinta de nosso poder de forçá-la a fazer o que não
quer.
63
É particularmente detestável para uma criança o fato de alguém lhe dizer que esta
cansada quando não está. Embora aceite bem que seus pais saibam mais a
respeito do mundo em geral, porque é óbvio, isso não pode ser estendido aos
seus sentimentos; ela pode não ser capaz de articulá-los, mas os conhece. As
crianças têm um senso muito sutil para saber em beneficio de quem determinada
atitude está sendo tomada — se para o deles ou para o nosso. Uma criança pode
aceitar — embora não facilmente — que nossos interesses são legítimos, mesmo
que suas conseqüências possam ser desagradáveis para ela, quando explicitamos
nossos motivos. Mas a maior parte de nós se sente ferida quando percebe que
querem livrar-se de nós, e o mesmo acontece com nosso filho, O sentimento de
dor transforma-se em raiva quando alguém tenta encobrir o fato de que estamos
sendo marginalizados, dizendo que tudo é feito estritamente em nosso beneficio; e
o mesmo se aplica à criança, muito embora possa ser incapaz de perceber
claramente o que a faz sentir-se tão magoada e zangada e não consiga traduzir
isso em palavras.
Quando os pais, apesar de entenderem que desejam tempo para si mesmos,
tentam enganar-se, dizendo que estão insistindo para que o fflho vá dormir porque
chegou a hora e ele precisa de sono, estarão sendo e parecendo ser justos;
quanto mais parecerem assim, mais quererão esconder de si mesmos que seus
motivos podem ser em parte egoístas, e que a necessidade de a criança
descansar e dormir, bastante real, é uma desculpa conveniente. A criança
perceberá o que está acontecendo, e sua irritação com os pais fará com que seja
muito mais dificil dormir tranqüilamente; pode até ter pesadelos, já que nos sonhos
tenta vingar-se das injustiças que lhe são infligidas pelos pais ou porque se sente
culpada pela raiva reprimida contra eles.
Se, por outro lado, os pais são honestos a respeito de sua necessidade de algum
tempo para eles próprios, aceitarão compassivamente o ressentimento do filho
pela exclusão temporária de suas vidas. Será possível estabelecer uma
concessão — digamos mais 15 minutos —, e poderão ser encontradas maneiras
de fazer o afastamento mais agradável, como, por exemplo, sentar-se com ele por
algum tempo e ler uma estória e, quando for um pouco mais velho, deixá-lo brincar
ou ler um pouco sozinho. Devemo-nos esforçar para mantermos a casa em
silêncio, depois que as luzes tiverem sido apagadas em seu quarto, para que o
excluído não sinta que está perdendo coisas importantes.
Em outras palavras, devemos ver esta situação tanto da nossa perspectiva de pai
— precisamos de tempo para nós mesmos e ele precisa de uma boa noite de
sono — quanto da da criança. A criança acredita que, quando as pessoas são
afastadas, é porque não são desejadas, não são queridas; meus pais estão
tentando me mandar embora, o que significa que não me querem mais. Como é
terrível não ser querido pelos próprios pais, mesmo que seja apenas durante a
noite! Se nos colocarmos em seu lugar, naturalmente vamos querer dissipar esses
medos, para restaurarmos sua confiança em nós e em si mesmo, a fim de que
possa dormir feliz e facilmente.
A discussão sobre a hora de dormir pode ser irritante, mas muito raramente se
torna um assunto sério. No entanto nos dá a oportunidade de nos perguntar como
nos sentiríamos se alguém mais tivesse que decidir que era hora de nós irmos
para a cama, estivéssemos dispostos ou não, e isso nos daria uma idéia bastante
boa de como nossos filhos se sentem. Entender suas reações aos acontecimentos
diários, como dizer-lhes o que usar, quando lavas aswãos, o que comer, o que não
comer, pode nos ensinar muito sobre nós e
64
sobre eles e sobre nossa relação. Quando, além disso, nos perguntamos como
reagiríamos se alguém exigisse isso de nós e insistisse para que fizéssemos o
que nos é mandado, podei-íamos ao mesmo tempo imaginar o que nosso filho
pensa de nossas razões para fazê-lo. Poderíamos perguntar-lhe que razões ele
acha que temos quando lhe fazemos essas exigências. Para muitas crianças,
seria uma experiência inteiramente nova ser questionada sobre sua visão acerca
dos motivos de seus país, mas isso só dará resultado se a criança sentir-se livre
para dizer-nos o que pensa — se acreditar que a ouviremos com seriedade, ao
invés de estarmos inclinados a recusar qualquer coisa que diga.
Dificilmente haverá melhor maneira de convencer nosso filho de que suas opiniões
são importantes para nós do que inquiri-lo a respeito delas, não com o intuito de
criticá-las ou refutá-las, mas de ponderar seriamente sobre elas. O melhor
resultado de estarmos interessados nas opiniões de nosso filho sobre o porquê de
nossas atitudes em relação a ele, e de levarmos a sério os seus pontos de vista, é
que isso encora)ará muito na criança o sentimento de que não chegamos às
opiniões que temos sobre ela arbitrariamente. Pelo menos o nosso senso de
justiça, se nada mais, exige que consideremos suas opiniões sobre o que motiva
nosso comportamento em relação a ela Com tanta seriedade quanto queremos
que ela considere as nossas. E se estamos verdadeiramente convencidos do
quanto ternos em comum, de como são semelhantes as origens de nossas
atitudes — mesmo que não concordemos sempre sobre todos os assuntos —,
isso nos levará muito mais perto de uru entendimento mútuo.
Perguntar a nosso filho o que ele pensa de nossos motivos é muito diferente dc
inquiri-lo a respeito dos seus, quando mais não seja porque podemos forçá-lo a
nos obedecer, enquanto ele pode precisar recorrer a manobras sinuosas para
impor sua vontade. E essa diferença de força para fazer valer nossa vontade que
transforma nossa investigação sobre as idéias de nosso filho em um procedimento
unilateral, sobretudo se não estamos inteiramente prontos a considerar suas
indagações sobre nossos motivos, respondendo a elas aberta e completamente.
Mesmo que estejamos, pedir a uma criança que revele seus motivos e seus
pensamentos mais íntimos é um procedimento questionável que merece ser
cuidadosamente pesado, como sugere o capítulo seguinte.
65
7
A Pergunta “Por quê?”
Fazer peiguntas não é de bom-tom entre cavalbeiros
— SAMUEL JOHNSON, conforme relatado por BoswelL
QUANDO EU ERA CRIANÇA, como a maioria dos filhos de classe media de pais
preocupados e inteligentes, devem ter-me perguntado inúmeras vezes por que fiz
ou pensei alguma coisa. E, pelo que me lembro, raramente considerei que meus
pais estavam verdadeiramente interessados em minhas razões. Em muitas
ocasiões, o resultado de minha resposta à sua pergunta foi ter sido impedido de
fazer o que tinha em mente, e ainda criticado pela intenção. As frustrações
avolumam-se bem mais em minha mente do que as instâncias freqüentes, mas
menos impressionantes, em que a resposta de meus pais era mais positiva. Na
realidade, gostava tão pouco da situação que quando me perguntavam “Por quê?”
Eu não esperava ser ouvido com imparcialidade, sem preconceitos. Isso me fazia
detestar a pergunta, mesmo nos casos em que o resultado me era favorável.
Contudo, muitas vezes minha reação à pergunta “Por quê?” era apenas um pouco
negativa, basicamente porque isso me era perguntado tantas vezes que tinha
como certo que isso éo que os adultos perguntam quando desaprovam ou
ignoram o que seus filhos estão pretendendo, ou quando os filhos se comportam
de maneira considerada, de certa forma, inconveniente ou inadequada. A
freqüência com que me perguntavam “Por quê?”, mesmo em relação a assuntos
aparentemente Óbvios, eu atribuía ao fato e que os adultos simplesmente não
entendiam as crianças; caso contrário, não haveria necessidade do que me
parecia um questionamento incessante.
Retrospectivamente, minha lembrança mais forte é de que sempre que me
questionavam dessa maneira eu me sentia posto na berlinda, e isso me
desagradava. Minha reação interna era: “Bastava vocês tentarem me entender
para responderem facilmente a sua própria pergunta. Vocês só me perguntam
porque acham que não vale a pena pensar por vocês mesmos.” Hoje eu poderia
sintetizar o que sentia como uma convicção de que se aqueles que me
questionavam fossem sensíveis a mim e ao que se passava comigo, não teriam
precisado perguntar meus motivos. Também me lembro de como ficava magoado
quando uma resposta honesta não mè valia para nada, se tudo que eu ganhava
com ela eram críticas. O que tornava a experiência dolorosa era que o que eu
dizia não fazia diferença para as decisões que, estava certo, meus pais já tinham
tomado antes de me pe-
66
67
mente em minha mente pelos mais de 75 anos que se passaram desde então.
Eu era um ótimo aluno, um jovem quieto, introspectivo, até mesmo submisso. Um
dia, entretanto, o comportamento de um dos nossos professores, que sempre me
aborrecera — assim como à maioria dos meus colegas, por ser tão diferente do
comportamento de todos os outros professores, passados ou presentes —,
provocou-me tanto que, repentinamente, sem premeditação, agarrei-o e, com mais
dois outros garotos, induzidos pelo meu exemplo a me ajudar, empurrei-o para
fora da sala de aula Assim que acabamos, fiquei chocado com o que fizera, pois
isso pouco tinha a ver com minha atitude dentro e fora da escola. Só sabia que me
sentira tão ultrajado que precisava ter feito alguma coisa; mas não tinha a menor
idéia cio que, especificamente, detonara minha ação, de que motivos outros, além
da raiva, atuaram em mim; nem tampouco sabia o que é que provocara minha
raiva.
Nem então nem durante décadas depois disso, pude entender o que me levou a
agir de forma tão contrária à minha maneira de ser. Nunca pensei que fosse capaz
de uma tão temerária, agressiva e — considerando o ambiente, um ginásio
austríaco ao tempo da velha monarquia — inaudita quebra de disciplina. Tentei
imaginar o que tinha despertado minha raiva súbita, já que o professor não se
tinha comportado de modo diferente do usual em relação a mim ou ao resto dos
alunos. Meu auto-exame de nada me serviu; mas me sentia incapaz de aliviar meu
pavor das conseqüências, pensando alguma desculpa para minha atitude.
Absolutamente nada veio à minha mente. O diretor da escola, um erudito muito
distinto, era um feitor severo e um disciplinador estrito, distante e austero, e eu
tremia diante da expectativa de um castigo pesado. Achava que ia ser expulso, e
talvez até impedido de ingressar em todos os ginásios de Viena, o que teria
trazido as mais drásticas conseqüências para minha vida flitura.
No dia seguinte, no meio da manhã, o diretor entrou em nossa sala de aula,
acontecimento raro e sempre muito impressionante, até mesmo sinistro. Enquanto
permanecemos de pé em atitude de atenção, ele nos fustigou verbalmente,
acusando os outros mcm- nos do crime de não ter-me impedido, mas
particularmente me acusando, enquanto líder, dessa façanha nefasta e sem
precedentes. “Hipócrita” foi o nome mais suave que me chamou, mas que parecia
expressar seu ultraje mais profundo, pois até então eu sempre tinha sido ou,
segundo ele, pretendido ser, um menino tão bom. Ouvindo sua invectiva, fiquei
com um medo ainda maior da punição, e o mesmo ocorreu com meus colegas,
como me disseram mais tarde.
Tendo gritado comigo e arengado e aterrorizado todos nós pelo que nos pareceu
uma eternidade, ele subitamente ficou silencioso por um momento, e então
acrescentou na voz mais tranqüila — um contraste total e muito impressionante
em relação à furia exacerbada do momento anterior — palavras de que nunca
esqueci. Ele disse: “É claro que sei que se o Dr. X tivesse se comportado como
espero que todos os mestres dessa instituição se comportem, nada disso teria
acontecido.” E dirigindo-se a mim nominalmente, concluiu: “Amanhã você ficará
por duas horas após o período escolar trabalhando sozinho nos estudos que o Dr.
X deveria ter tomado tão interessantes a ponto de não dar margem a esse tipo de
comportamento.” E, com isso, calmamente se afastou. Esse foi todo o meu
castigo, à exceção da nota baixa em procedimento que recebi naquele marcante
período, quando antes, e a partir daí também, sempre tirava a nota mais alta
nesse item.
68
Tendo, com razão, temido pelo pior, fiquei profundamente aliviado por esse castigo
incrivelmente brando, que nem meus colegas nem eu entendemos.
Maso que me causou forte impressão na ocasião e a partir dela foi não ter sido
questionado com relação a meus motivos. Não me pediram que fizesse uma
confissão, que repudiasse meu comportamento ou que apresentasse justificativas
ou desculpas. Na verdade, o diretor simplesmente apareceu e nos disse que sabia
qual tinha sido a causa do incidente; e embora não o tivesse tolerado, não só o
compreendeu como também, em certa medida, aceitou o fato de que ele ou sua
instituição arcavam com uma parcela da culpa, tendo-nos dado um professor que
ele próprio não podia respeitar.
Foi um tremendo alivio. Tinha especulado o dia inteiro e durante uma noite sem
dormir sobre o que poderia apresentar como explicação — para não mencionar
justificativa de meu comportamento, pois sabia que isso não existia — mas não
pude encontrar nenhuma. Dizer que esse mestre era um professor inadequado
não chegava a ser uma explicação, sobretudo porque eu sabia que não dava
muita importância ao fato; pretender que isso é o que tinha me indignado teria
sido, efetivamente, o auge da hipocrisia. Sabia, assim como a maioria dos meus
amigos, que tinha zombado de sua atuação vazia, fraca e, pior do que tudo, de
sua tola personalidade. Isso nos deu motivos para implicar com ele e ridicularizá-
lo, o que muito nos agradava; então, por que é que eu tinha que me livrar de uma
fonte de tanto júbilo, de um professor em relação a quem nós todos nos sentíamos
muito superiores, o que era um alívio diante do nosso sentimento de inferioridade
em relação à maior parte dos Outros? Por que minha súbita necessidade de livrar-
me dele? — na qual fui bem-sucedido, pois não ousou entrar outra vez em nossa
sala no dia em que o pusemos para fora.
Meu ato fora claramente simbólico. Mas quais tinham sido meus motivos? Aí se
delineava um espaço em branco. Tinha contado com uma inquisição sobre meus
motivos antes de ser julgado, e a verdade é que simplesmente ignorava por que é
que tinha feito aquilo. Sabia, no entanto, que isso não poderia, de forma alguma,
ser aceito pelas autoridades, e só irritaria àqueles que iriam decidir sobre o meu
destino. Desesperado, estava pronto para mentir, mas nem mesmo uma mentira
semiconvincente me ocorreu; estava absolutamente indefeso. Não havia desculpa
para o que fizera e, sabendo disso, o diretor não tentou fazer com que eu
mentisse para ele. Precisei de muito tempo para compreender o quanto ele fora
sábio.
Não demorou muito, o Dr. X foi dispensado, e substituído por um homem que nós
todos respeitávamos, não só pela excelência de seus sentimentos e por sua
retidão no trato conosco como também por sua segurança interior e pela
masculinidade óbvia que ele emanava, embora nunca a exibisse. Só anos mais
tarde me ocorreu que o diretor talvez tenha escolhido esse homem porque achava
que merecíamos ser compensados pela má experiência que tivéramos com o Dr.
X, tendo-o substituído, portanto, por alguém que era seu extremo oposto.
Antes desse incidente, eu era um aluno anônimo, sem rosto, entre muitas
centenas de outros, mas a partir desse dia, sempre que cruzávamos um pelo outro
no corredor, o diretor parecia reconhecer-me e tratar-me com uma distância fria
misturada com uma boa dose de respeito, embora dificilmente com amizade; nem
tampouco me fez quaisquer favores. Anos mais tarde, comecei a compreender
que sua atitude expressava um desejo de que eu soubesse que ele ainda
desaprovava muito o que eu tinha feito, e portanto, não
69
gostava de mim, mas reconhecia que minha atitude fora bastante compreensível.
Do meu lado, levei um bom tempo para entender suas razões. Mesmo isso não
me fez gostar dele; era autoritário demais, e seus valores eram o oposto dos meus
no que .conceme à política e educação. Apreciar alguém cujos valores eram
contrários aos meus exigia uma maturidade de raciocínio que eu, à época, ainda
não possuía. Mas lentamente, através dos anos, adquiri-a Gradualmente, fui
ficando impressionado com o fato desse diretor rígido, antiquado e autoritário ter
percebido, sozinho, o que deve ter me dado raiva, e não ter precisado corroborar
seu ponto de vista, quer me interrogando, quer esperando que eu concordasse
com sua avaliação de meus motivos. Foi sensível às necessidades que me
impulsionaram a agir, embora eu lhe tivesse causado problemas de direção na
escola, ameaçando a disciplina Pelo castigo insignificante — nitidamente
simbolico — e por não exigir qualquer declaração de contrição ou promessa de
mudança ou aprimoramento, deixou claro que não esperava que eu me
modificasse.
Quanto mais velho ficava, mais apreciava que, longe de me interrogar, o diretor
tivesse formulado suas conclusões sem qualquer necessidade ou incentivo para
fazê-lo. Compreendia meninos da minha idade suficientemente bem para saber o
que se passava na cabeça deles, mesmo quando eles próprios não sabiam.
Desaprovou o que eu tinha feito, mas compreendera sua essência: tudo decorreu
do fato de o Dr. X ser um homem tão tolo. Não perscrutou meus motivos
específicos, em parte porque os considerou relativamente sem importância após
decidir qual fora a causa essencial de tudo, e em parte porque talvez —
corretamente — tenha presumido que um menino em minha situação dfficilmente
saberia o que, no fundo, o movera
Embora sendo um disciplinador estrito, sabia como lidar comigo; teve o cuidado de
não destruir meu respeito próprio, obrigando-me a professar remorsos que eu não
sentia, mas teria sido obrigado a fingir, caso ele me perguntasse sobre meu
deslize. Com efeito, teria sido contrário ao objetivo da escola de instilar respeito
próprio minar o meu, forçando-me a revelar e defender meus motivos mais
íntimos, mesmo pressupondo que eu seria capaz de fazê-lo. Se tivesse sido
forçado, por medo do castigo, a mostrar-me falsamente contrito, isso equivaleria a
renunciar a uma parte essencial de mim mesmo. E, se tivesse sustentado o
contrário, quando questionado, ou seja, que o que tinha feito estava certo —
inimaginável no contexto dessa escola —, ele teria sido obrigado a me punir em
conseqüência de tê-lo obedecido e me exposto. Isso, longe de corrigir meu
comportamento, teria me convencido de que eu fora vítima de injustiça, e teria
feito com que eu odiasse tanto a escola quanto o diretor.
No sentido mais profundo, o diretor talvez tenha tomado meu ato pelo que
realmente era: uma declaração simbólica de minha necessidade de ter bons
professores a quem eu pudesse respeitar. Portanto meu castigo, duas horas
retido, também foi simbolico, assim como a nota baixa em procedimento num
boletim intermediário que nunca se repetiu e não fez parte de minha ficha
permanente. Isso refletiu o reconhecimento do diretor de que minha explosão tinha
sido um ato isolado.
Foi preciso que eu atingisse a plena maturidade e me tomasse um experiente
educador e terapeuta infantil — e pai — para perceber em plenitude que ele me
mostrara alguns dos requisitos de um educador judicioso, particularinente em
situações de tensão e diliculdade: é preciso pesar em nossa própria mente quais
poderiam ter sido os motivos de nosso filho para poder aprender as razões de seu
comportamento, o que o levou a isso, a
70
71
73
vante para o incidente. Estava interessado no que ele pensava sobre o assunto,
não no que eu pensava.
Mas não mc interrogando sobre meus motivos — que eu mesmo ignorava — e
confiando, ao invés disso, em sua avaliação do que estava errado, ganhou meu
eterno respeito,
coisa que todo pai deseja alcançar na relação com seu filho.
74
Sobre a Empatia
76
triste. Disseram-lhe que era triste porque demontrava quão pouco ele gostava dele
mesmo — é necessário alguém desgostar de si mesmo profundamente para
enxergar apenas o maL nos outros e para estar tão zangado com eles e com o
mundo.
Ao tentar sentir-se como uma pessoa que investe contra aqueles de quem deveria
estar mais próximo e amar mais, o leitor também foi capaz de experimentar a fonte
interior dos sentimentos do menino. Ficou claro para ela que apenas uma tristeza
profunda poderia ser responsável por isso, uma tristeza causada pelo desespero
de ser incapaz de gostar de si mesmo. Ser entendido assim, em seus sentimentos
mais profundos, e vê-los aceitos com simpatia — ao invés de rejeitados, como
normalmente acontecia —, marcou o início de uma mudança nas opiniões do
menino a respeito do mundo e dele próprio. A aceitação de sua analista poderia
não ter conseguido isso, não nesse momento inicial da terapia, uma vez que o
menino era inteligente o bastante para saber que aceitá-lo era sua função. Mas,
que uma pessoa que não tinha essa obrigação e que mal o conhecia fosse capaz
de reconhecer que o problema não era sua raiva, como até agora todos os adultos
estavam convencidos, mas sua tristeza, deu-lhe a esperança de que por acaso as
pessoas mais importantes para ele, seus pais, pudessem reagir positivamente à
sua tristeza, ao invés de apenas negativamente à sua raiva. Nenhum
questionamento, por mais bem- intencionado que fosse, teria conseguido isso;
teria apenas corroborado sua convicção de que ninguém o entendia ou queria
entender.
Assim como eu nunca poderia ter relatado a alguém as ansiedades que
provocaram minha explosão violenta contra o Dr. X, também era impossível, até
mesmo para esse inteligentíssimo garoto de oito anos, descobrir as origens da
raiva que o consumia. A intensidade dos sentimentos de raiva das crianças é
como um muro impenetrável que esconde tudo o que existe por detrás dele.
Devíamos estar acostumados a isso, com base na incapacidade que jovens de
muito mais idade têm de reconhecer a verdadeira origem de sua raiva A razão
disso é que pessoas que vivem sob o impacto emocional de sentimentos tão fortes
que fominam toda a sua vida — sobretudo quando esse sentimento é de raiva —
não conseguem pensar racionalmente sobre essas emoções esmagadoras. A
raiva os domina de tal maneira que não conseguem distanciar-se dela o suficiente
para entenderem suas causas.
Distanciar-se dos sentimentos que as consomem, penetrá-los além de suas
origens, é dificil até mesmo para pessoas muito mais maduras. No entanto
conseguir fazê-lo é uma boa indicação da verdadeira maturidade, uma vez que um
dos seus aspectos muito importante é a capacidade de, digamos assim, sair de si
mesmo e de seus sentimentos, mesmo quando eles são fortes, a fim de
contemplá-los objetivamente. Mas, mesmo os jovens muito além da adolescência
são incapazes de consegui-lo, quando sentem emoções fortes. Por isso, se
quisermos entender nosso filho quando ele se deixa levar por essas emoções,
devemos tentar compreender através da empatia com ele o que está acontecendo
bem no seu interior, e reagir com nossos sentimentos e atitudes àquio que, assim,
descobrimos dentro de nós mesmos e de nosso filho. E para sermos capazes de
fazer isto, não podemos nos deixar levar por nossas reações ao comportamento
da criança.
Esse menino só conseguia dizer: “Isso me dá tanta raiva,” “iss” sendo, no caso,
seu inconsciente, a origem de sua raiva Pressionado para ser mais específico,
tudo que conseguiu foram racionalizações, uma vez que o conteúdo de seu
inconsciente lhe era desconhecido. Sentia vagamente que suas racionalizações
eram vazias, superficiais e, em última
77
análise, fora de propósito; se questionado, o interrogatório só faria aumentar sua
raiva, porque ele seria forçado a admitir os limites de seu entendimento.
Se tivesse sido obrigado a explicar meu ataque ao Dr. X, tudo o que eu poderia ter
dito com sinceridade era que “alguma coisa” tinha me levado a isso, “alguma
coisa” que me tomou anos para identificar, uma ansiedade tão ameaçadora e
incontrolável que eu a reprimira em meu inconsciente. Se tivesse sido pressionado
a dizer o que tinha sido, uma vez que “alguma coisa” não era explicação, eu teria
ou ficado mudo — o que seria mal interpretado como obstinação, e não como
desamparo — ou feito alguma declaração a respeito das falhas do Dr. X como
professor. Tanto o diretor quanto eu teríamos achado a explicação inadequada.
Por fim, eu teria ficado com raiva do diretor por ter-me pedido para fazer alguma
coisa que eu não podia — explicar-me —, enquanto ele teria ficado com raiva de
mim por recusar-me obstinadamente a admitir minhas motivações reais. E, em
grande parte, o mesmo teria acontecido se o paciente de Olden tivesse sido
pressionado para revelar a origem de sua raiva. Onde estão presentes os
sentimentos mais profundos, o desejo compreensível dos pais de descobrir o que
motiva seu filho leva-os a pressioná-lo para explicar-se. Mas, urna vez que ele não
consegue explicar-se, mesmo que quisesse, os pais e o filho ficam cada vez mais
irritados e perdem a confiança um no outro.
A maioria dos pais hoje sabe o que era telra incógnita para o diretor — que temos
emoções inconscientes fortes que determinam muitas de nossas atitudes, e que
pode levar anos de muito trabalho até que consigamos trazer esses sentimentos
ao nível do consciente, e que sermos obrigados a fazê-lo provavelmente tornará
esse material inconsciente ainda mais inacessível. Uma vez que a razão da
repressão dos sentimentos consistia em que reconhecê-los era irritante ou
perigoso demais, ser solicitado a revelá-los aumenta a ansiedade; o que reforça a
repressão. Mas, por que custa tanto aos pais reconhecer tudo isso? Afinal, sabem
que encobrem dos filhos alguns aspectos de suas vidas. Acredito que o problema
— assim como muito do que falha entre pais e filho — deriva dc seu desejo
inconsciente de estar perto do filho e de seu sentimento inconsciente de que ele
só pode ser realmente seu, se não tiver segredos para ele. Urna vez que ele é seu
filho, não deveria haver nada nele ou que diga respeito a ele que seja escondido
dos pais, incluindo sua vida íntima. Estão prontos a reconhecer o fato de que seu
filho possui um inconsciente, mas, embora aceitem que esse inconsciente se
esconda de qualquer pessoa, ele não deve esconder-se deles, seus pais!
78
Se quisermos que nosso filho nos dê uma resposta não adulterada, devemos
deixar claro que a respeitaremos, uma promessa que podemos transmitir através
de nossa atitude e da formulação de nossas perguntas. Então, não sentirá
compulsão para nos responder com desculpas ou para alegar ignorância ou
incapacidade. Seguro de nossa boa vontade, ele ficará satisfeito de poder
aumentá-la, revelando-nos (e a ele próprio) o que está acontecendo em sua
mente.
Mesmo quando reagimos às razões de nosso filho com empatia pela sua maneira
de ver as coisas, haverá ocasiões em que não poderemos subscrever sua visão
das coisas ou aprovar sua conduta; mas, se estiver seguro da nossa boa vontade,
será capaz de orientar-se dentro de um quadro positivo. Pode não gostar de
nossas objeções, mas não se sentirá derrotado; e se, conforme esperamos,
modifica suas opiniões e maneiras de agir, o fará não por ansiedade, mas por
amor — não porque teme nosso descontentamento, ou talvez até mesm nossa
punição, mas porque quer conservar nossa boa opinião a respeito dele. É
verdadeiramente espantoso o quanto estamos dispostos a fazer sacrifícios
consideráveis a fim de ganhar ou conservar o respeito e a boa vontade de
pessoas que são importantes para nós e que, sentimos, são simpáticas à nossa
maneira de pensar e fazer as coisas. Ressentimo-nos de fazer os mesmos
sacrifícios, se nos sentimos forçados por pessoas sobre cuja boa vontade temos
dúvidas. No primeiro caso, tudo é prazer e, por isso, normalmente bem feito; no
último, tudo se toma, no máximo, uma tarefa desagradável e, por isso,
freqüentemente feito de forma medíocre.
Como é difícil evitar as situações que podem provocar um “não sei,” é melhor não
questionar uma criança sobre seus motivos. Mesmo que ela saiba muito bem o
que a motivou, não é sempre recomendável interrogá-la, porque, embora possa
não haver qualquer intenção de crítica, ela pode julgar que não é assim. O fato é
que a experiência da maioria das crianças mostra que raramente pedimos que nos
expliquem qualquer conduta que aprovamos totalmente; pedimos explicações
quando estamos mal-satisfeitos, e as crianças sabem disso. Por exemplo, a
maioria de nós não tem o hábito de perguntar: “Por que você estudou tanto para
tirar notas excelente na escola?” Perguntamos: “Por que você não fez seu dever
de casa?”, e não “Por que você veio fazer seu dever de casa quando estava se
divertindo tanto brincando lá fora?” Raramente, OU nunca, perguntamos: “Por que
você é tão gentil com seu irmão?” ou “Por que arrumou seu quarto tão bem?”
Podemos estar dispostos a ser pródigos em elogios a uma criança bem
comportada, mas não é provável que questionemos seus motivos — muito embora
possam ser tão complexos e até mesmo questionáveis quanto aqueles que
caracterizam o mau comportamento. Assim, ela sabe que uma pergunta
geralmente implica desaprovação.
APRENDENDO A MENTIR
Mesmo quando uma criança está tão segura ou convencida de que está certa a
ponto de poder explicar seus motivos, a despeito de uma consciência de que eles
não nos são simpátieos, as coisas nem sempre são fáceis. Por exemplo,
perguntamos a nosso filho por que bateu em outra criança e ele, sinceramente,
nos diz que ela merecia — “Ela estava pedindo.” Se forçamos nosso
interrogatório, explica que a outra criança o irritou ou provocou.
81
Muitos pais reagiriam dizendo que não nos devemos permitir ser provocados
(embora eles próprios possam, algumas vezes, achar difícil seguir essa receita)
OU que a irritação não é razão suficiente para se bater em alguém. Na sociedade
civilizada, a violência fisica deve ser evitada sempre que possível. Mas, com
freqüência, o que é possível para um adulto está além da capacidade de uma
criança — controlar-se, por exemplo; a diferença está na maturidade, no grau em
que somos capazes de controlar nossos impulsos. Quando os pais fazem essas
declarações, tudo o que a criança aprende da experiência é que o pai não a
entende, OU conclui: “Quando digo honestamente por que fiz alguma coisa, tudo o
que consigo é que me digam que estou errado!” É espantoso quantas
experiências desse tipo a criança média reúne em poucos anos — e, a cada uma,
ela aprende que a conseqüência da sinceridade é a crítica da pessoa que lhe é
mais importante. Se a criança teve essa experiência, será dificil para ela resistir a
enfeitar os fatos para fazê-los mais agradáveis a nós, uma vez que está
convencida de que não nos pode dizer toda a verdade.
Uma explicação comum para a violência é: “Ele me obrigou a fazer isto!” Não se
trata de uma tentativa de deslocar a culpa — como muitos pais podem pensar —‘
mas uma declaração sincera do que a criança sentiu quando o comportamento do
outro inundou-o de emoções tão fortes que esmagaram sua capacidade de
controlar-se. O pai, que talvez tenha observado que a outra criança não bateu
primeiro, pode dizer a seu filho: “Não ele não fez isso!” — querendo dizer que a
outra criança não deu motivo: mas havia razões fortes do ponto de vista da
criança. tJm adulto, em geral,pode ser capaz de viver de acordo com o princípio
de não-violência, mas é razoável esperar que uma criança tenha o mesmo
autocontrole?
A dificuldade aqui, como em muitas outras situações, é que o pai avalia a situação
da sua perspectiva e decide como reagiria, e de alguma forma espera que seu
filho faça o mesmo. Mas a criança é muito mais suscetível ao seus sentimentos e
muito menos capaz de controlar seus impulsos. A lei leva em consideração a
capacidade reduzida de uma pessoa de se controlar; não deveríamos nós, como
pais, fazer o mesmo, e não esperar que nossos filhos sejam capazes de exercitar
um autocontrole não condizente com sua idade?
Se começarmos com a convicção de que as atitudes de nosso filho são baseadas
cm boas razões, poderemos então presumir que se ele bateu em outra criança é
porque deve ter sido tão seriamente provocado que, em sua opinião, essa era a
única resposta adequada. Se agirmos com base nessa presunção, não teremos
que perguntar: “Por que você bateu nela?” pois conheceríamos muito bem a
resposta. Ainda assim, não saberemos qual foi o ato de provocação, mas
podemos conformar nossa pergunta adequadamente, com simpatia por nosso
filho, que se sentiu tão lesado que achou que a retaliação fisica era a única
resposta possível: “É péssimo que ele tenha feito você se zangar tanto! O que foi
que ele fez?” A criança sentirá que estamos do seu lado e ficará tranqüila porque
entendemos que a situação não lhe permitiu agir de outra forma Não haverá então
motivo para que não nos conte a história exatamente como a viu. Isso evitará o
impasse entre nós, e restar-nos-á apenas o problema de fazer nosso filho
consciente de uma alternativa, de uma reação mais çonstrutiva à provocação. Se
acreditarmos que nosso filho é essencialmente bom, podemos então esperar até
que não esteja mais irritado ou zangado para conversar com ele sobre o porquê
de nossa objeção à violência física e as razões pelas quais devemos desenvolver
nosso autocontrole. Quando ele não mais estiver no auge da raiva, poderá ouvir e
absorver aquilo de que o estamos tentando convencer.
82
É necessaiio acrescentar que não convenceremos nosso filho de que deve abster-
se da agressão fisica, se nós próprios aplicamos castigos fisicos? Se
conseguirmos, tudo o que a criança aprenderá é que a agressão fisica é válida
quando se pode levar a melhor e quando se acredita que está sendo aplicada por
uma boa causa. Uma vez que a criança está sempre convicta de que sua causa é
justa, só aprenderá a abrir mâo ‘de bater se dermos o exemplo, nunca utilizando a
agressão fisica contra ela, nem mesmo naquilo que consideramos uma causa
justa. Isso nos leva a considerações sobre disciplina e castigo.
83
Sobre a Disciplina
As crianças precisam de modelos mais do que de críticos
—JOSEPH JOUBERT, Pensées 1842
84
88
capaz de encarar as coisas com mais leveza e não trabalhasse tanto a ponto de
não poder divertir-se. Acrescentou que ele mesmo não tinha sido tão dedicado a
vida inteira — não até encontrar um trabalho que tivesse sentido e interesse — e
que, quando jovem, gostava de levar as coisas na maciota. O menino entendeu a
sério as observações do pai, e relaxou, mas, à medida que cresceu, tomou-se
cada vez mais disciplinado. Sem ser pressionado a identificar-se com o estilo de
vida do pai, não obstante incorporou, eventualmente, os seus valores. Se
tivéssemos esperado dele que, aos nove anos de idade, fosse tão consciencioso
quanto um adulto de 29, o resultado talvez não tivesse sido tão favorável.
Uma criança fica mais impressionada com seus pais quando estes agem
naturalmente, sem ligar para o efeito; e o exemplo de auto-respeito é tão
irresistível que uma criança dificilmente pode evitar o desejo de emular seus pais.
Um pai que se respeita não precisa reforçar sua segurança, exigindo respeito de
seu filho. Seguro de si, não se sentirá ameaçado em sua autoridade e aceitará
que seu filho — por vezes — mostre falta de respeito para com ele, sobretudo
como as crianças pequenas tendem ocasionalmente a fazer. Ele sabe que, se isso
acontece, é devido à imaturidade de julgamento que o tempo e a experiência por
vezes corrigirão. Por outro lado, uma exigência de respeito revela à criança um pai
inseguro a quem falta a convicção de que isso lhe será dado naturalmente, O que
é exigido é dado, quando o é, de má vontade, e é sempre experimentado,
consciente ou inconscientemente, como proveniente da insegurança interior da
pessoa que exige. Quem gostaria de se formar à imagem de uma pessoa assim?
Infelizmente, o filho de pais inseguros quase sempre cresce como eles. Mesmo
que ele não intemalize, e portanto, adote a atitude de seus pais, a falta de pais
autoconfláveis é suficiente para fazer a criança transformar-se num adulto
inseguro.
Toda vez que um pai prega aquilo que não pratica, a lição fracassará
redondamente, no sentido de que não se generalizará além da instância
especffica. Na verdade, quanto menos deliberada for a instmção dada pelo pai e
quanto mais ele viver consistentemente, de acordo com seus próprios valores, de
forma natural, melhor.
No Início desse capítulo foi citada uma observação do moralista francês Joubert:
“As crianças precisam de modelos mais do que críticos.” Provavelmente em seu
tempo, como hoje, os pais estavam mais prontos para criticarem e passarem
sermão do que para confiarem em sua própria eficácia como modelos para seus
filhos. E, de fato, a curto prazo a correção produziu resultados mais imediatos;
mas esses tendem a ter vida efêmera, se comparadas ao que os modelos
paternos conseguem.
Corrigir uma criança — para não falar em ordenar-lhe o que fazer — também tem
o efeito de diminuir seu respeito próprio, chamando sua atenção para suas
limitações. Mesmo que ela obedeça, não se beneficiará da correção; a formação
de uma personalidade independente não será encorajada. Os princípios ou
pressuposições subjacentes de seu comportamento só se alterarão se e quando
ele próprio realizar que uma mudança lhe fará obter aquilo que mais deseja:
respeito próprio.
Ser disciplinado pelos outros, aceitar viver segundo suas regras toma o
autocontrole supérfluo. Quando os aspectos importantes da vida e comportamento
de uma criança são regulados por outros, ela não sentirá a necessidade de
aprender a controlar-se, uma vez que esses outros fazem isso por ela. Por essa
mesma razão, não consegue aprender a auto- controlar-se antes de estar
suficientemente madura para compreender por que é necessário e vantajoso
adquirir essa capacidade. O castigo pode nos levar a obedecer as ordens
90
que recebemos, mas no máximo ensinará uma obediência à autoridade, não um
autocontrole que aumenta nosso respeito próprio. Só após termos atingido a idade
em que estamos aptos a tomar nossas próprias decisões é que podemos aprender
a ser autocontrolados; isso pode ocorrer relativamente cedo, mas não antes que
possamos raciocinar por conta própria; já que o autocontrole baseia-se no desejo
de agir de acordo com as próprias decisões, às quais chegamos através de
nossas próprias deliberações.
É instrutivo comparar os diferentes modos pelos quais os japoneses e os
ocidentais ensinam a seus filhos — controle baseado nas ordens paternas, em
nossa cultura; autocontrole baseado em seu próprio raciocínio, no Japão.
Recentemente, foi empreendido um estudo para descobrir por que os jovens
japoneses superavam os americanos academicamente. A comparação de
métodos de ensino, materiais etc. não forneceu qualquer pista; mas quando os
pesquisadores formularam a pergunta sobre controle paterno ficou visível que
havia divergências culturais radicais que pareciam explicar as diferenças na
realização acadêmica. Quando crianças ocidentais corriam de um lado para o
outro em supermercados, suas mães, freqüentemente demonstrando
aborrecimento, lhes diziam: “Pare com isso,” quando não gritavam com os filhos.
No melhor dos casos, uma mãe diria: “Eu lhe disse para não se comportar dessa
maneira!” Uma mãe japonesa abstém-se tipicamente de dizer ao filho o que fazer.
Ao invés disso, perguntar-lhe-á: “Como é que você acha que o dono se sente
quando você corre de um lado para outro em sua loja?” ou “Como é que você
imagina que eu me sinto?”
Similarmente, uma mãe ocidental mandará seu filho comer alguma coisa, ou lhe
dirá que deve comê-la porque é bom para ele, enquanto uma mãe japonesa
perguntará: “Como é que você acha que sesente o homem que cultivou esses
legumes para você comer, quando você os rejeita?” ou “Como é que você acha
que se sentem essas cenouras, que cresceram para você comê-las, quando você
não as come?” Assim, desde tenra idade diz-se à criança ocidental o que fazer,
enquanto a criança japonesa é encorajada não só a considerar os sentimentos
dos outros — parte importante da socialização japonesa, bem menos importante
na socialização ocidental, e, portanto, nos preocupando menos aqui — mas a
refletir sobre o seu comportamento, ao invés de limitar-se a obedecer ordens.
(No tocante à questão da realização acadêmica, que foi o foco desse estudo,
pode-se presumir que a aquisição cedo, por parte da criança japonesa, do hábito
de pensar por sua própria conta lhe é vantajoso, mais tarde, na escola, quando
tem que dominar o material acadêmico. À criança americana, por contraste, não
se pede que baseie suas. decisões e ações em deliberação própria; espera-se
que ela faça o que lhe foi dito. Não só não é encorajada a pensar por sua conta
nas situações que os pais consideram importantes, como a expectativa de que
deve agir como lhe foi dito pode tender a desiludi-la com relação à importância
deseus próprios processos de pensamento.)
A mãe japonesa espera que seu filho seja capaz de chegar a boas decisões, mas
também lhe pede que não a embarace — ficar envergonhada é uma das piores
coisas que pode acontecer a uma pessoa na cultura japonesa tradicional. Sua
pergunta “Como é que você acha que eu — ou o dono da loja — me sinto quando
você se comporta dessa maneira?” implica que, corrigindo-se, a criança faz a ela,
ou ao dono da loja, um grande favor. Pedir a uma pessoa que pense por conta
própria e que aja em função disso, assim como dizer-lhe que está em condições
de prestar a alguém importante um grande favor, aumenta o res-
91
peito próprio, enquanto que mandar uma pessoa fazer o oposto do que quer
contribui para destruí-lo.
Igualmente importante no desenvolvimento da autodisciplina — e os japoneses
são um povo excepcionalmente disciplinado — é a paciência com que a mãe
espera que o filho se decida Sua paciência dá um importante exemplo e também
abrange a convicção de que, dispondo de tempo, ele chegará sozinho à decisão
correta — uma convicção que, adicionalinente, aumenta muito o respeito próprio
da criança.
Durante uma estada prolongada no Japão, nunca vi uma criança ser repreendida,
nem tampouco chorando, ou brigando com outra criança Era impressionante ver
uma mãe ensinando ao filho a tirar os sapatos antes de entrar num cômodo.
Nunca observei ninguém mandando uma criança fazer isso; na realidade, a mãe,
tipicamente, nada disse, apenas esperou, silenciosa e pacientemente, que a
criança agisse. É bem verdade que às vezes, silenciosamente, indicava que ela
ainda não devia entrar no cômodo. Mas quase sempre nada era dito; a atitude da
mãe enquanto esperava era o bastante. Em situações similares, a maioria dos
pais ocidentais não demonstraria nada parecido com essa paciência, dando
imediatamente ordens. A criança pode obedecer, mas seu ressentimento pode
surgir mais tarde, sob a forma de comportamento desregrado. A questão é que o
pai que tem pressa impõe disciplina, enquanto ensinar autodisciplina requer tempo
e paciência, além da confiança de que a criança, agindo por conta própria, fará o
que é certo.
Um outro estudo de contrastes é o modo como os pais americanos (ou da Europa
Ocidental) apanham os filhos na escola maternal no final do dia, em oposição à
maneira como a mãe japonesa o faz. (Incidentalmente, a mãe japonesa em
questão observara durante todo o ano o comportamento dos outros pais, sua filha
sendo a única criança japonesa nesse maternal.) Esses pais, assim que
chegavam, metiam imediatamente as crianças em seus ‘asacos e saíam porta
afora. Apesar do óbvio desejo das crianças de demorar mais um pouco, em alguns
minutos todas tinham ido embora A mãe japonesa entrava e sentava-se
silenciosamente, não fazendo qualquer esforço para chamar a atenção da filha. Às
vezes, falava suavemente com a criança, mas seu modo era tão sem pressa
quanto o da criança, que continuava a lidar com as coisas que lhe interessavam.
Por vezes o processo de ir embora levava até uma hora, quando então partiam
muito contentes.
Eis uma criança que podia sentir que suas necessidades eram respeitadas, que
sua mãe não privilegiava seu desejo de ir embora em detrimento da vontade da
criança de fazer uma lenta transição entre o ambiente da escola e ficar com sua
mãe. Mais que isso, a mãe estava dando à fflha uma demonstração de
autocontrole que lhe era favorável quando comparada ao que as outras crianças
tinham que agüentar. Este exemplo, mais do que qualquer outra coisa, ensinaria à
criança o valor de seu autocontrole.
Esse completo respeito pelo lento desenvolvimento da autodisciplina de uma
criança não está, de modo algum, restrito à cultura japonesa. Por exemplo, Ruth
Benedict, antropóloga americana, descreve seu espanto diante da paciência com
que os índios americanos aguardam que seus filhos estejam prontos, a seu
tempo, para fazerem o que lhes foi pedido. Ela conta como mal pôde se conter
para não apressar a criança a fazer o que lhe tinha sido solicitado. Mas quando se
movimentou nesse sentido sentiu tamanha desaprovação por parte dos índios que
desistiu. Ficou envergonhada por ter mostrado tão pouco respeito pela
necessidade da criança de proceder lentamente, de modo a poder convencer-se
de que fazia a tarefa porque queria, não apenas porque lhe mandaram.
92
93
94
10
97
nosso ponto de vista, se esperássemos para conversar com ela quando estivesse
tão farta que não conseguisse sequer pensar em comer. No momento em que seu
desejo de comer doces estiver satisfeito, será capaz de aceitar a idéia de que
comer doces demais não é bom. A voz suave da razão pode ser ouvida com
facilidade, porque não há emoções interferindo.
Tudo isso é tão sensato que poderíamos nos perguntar por que não seguimos
sempre essas normas. As razões são óbvias e várias. Para começar, não estamos
dispostos a nos satisfazer com sua simples desistência; queremos também que
concorde que estamos certos ao fazê-la desistir. Um exemplo pode ilustrar:
Uma certa mãe, cuja relação com o filho era, de maneira geral, excelente, teve
que dizer não quando ele lhe pediu uma nova bicicleta de dez marchas. O jovem
ficou muito infeliz e começou a importuná-la, até que ela lhe pediu que se
sentasse com ela e começou a explicar-lhe em linhas gerais a situação financeira
da família. O garoto escutou paciente- mente e tentou absorver tudo, mas depois
disse à mãe: “Não me agrada a idéia de não poder ter a bicicleta, mas estava
disposto a aceitar o seu não. Mas me pedir para, além disso, ouvir uma lição de
economia é demais!” Felizmente, a mãe enxergou a validade de seu ponto de
vista, e pediu desculpas. Ela compreendeu que, ao invés de tornar mais fácil para
a criança aceitar não ter a bicicleta, ela tomou tudo mais dfficil. Ao invés de
simplesmente demonstrar simpatia por seu desapontamento, também quis que ela
visse as coisas a seu modo, o que no momento era impossível para a criança.
O problema é que freqüentemente, justo porque detestamos desapontar nossos
filhos, deixamos de sentir simpatia pelo que sentem quando temos que lhes negar
alguma coisa que desejam. Queremos que aceitem e compreendam nossas
razões numa hora em que seu envolvimento emocional impede que isso aconteça
Tivesse a mãe encarado o desapontamento do filho como justificável naquele
monjento e esperado até o dia seguinte para explicar-lhe as finanças da família,
quando ele já tivesse tido tempo de absorver sua decepção, o filho poderia ainda
assim não se mostrar muito interessado, mas teria sentido que sua mãe estava
fazendo todo o possível para que aceitasse sua desilusão. O discurso da mãe fez
o menino sentir: “Minha mãe espera que eu seja muito mais maduro e razoável do
que posso.” Esse sentimento é prejudicial ao seu amor-próprio. Mas, tivesse ela
adiado suas explicações e simplesmente oferecido sua simpatia no momento da
recusa, ele teria sentido que sua decepção era aceitável e razoável, e seu amor-
próprio teria aumentado. E então, se tivesse voltado ao assunto no dia seguinte,
ele teria sentido que ela não havia considerado sua infelicidade superficialmente,
mas que seus sentimentos haviam sido acolhidos de maneira séria e considerados
validos.
NÃO NOS DEIXEIS CAIR EM TENTAÇÃO
Provavelmente, nenhuma das trangressõcs comuns na infancia irrita mais os pais
do que o roubo e, mais importante do que o ato propriamente dito, é a idéia de que
a criança vá ser um ladrão na idade adulta. Assim, a reação dos pais é, com
freqüência, mais proporcional à sua ansiedade em relação ao futuro do que ao
delito real. Para a criança, que não tem a menor intenção de se tornar um
criminoso quando pega qualquer objeto, essa reiição drástica parece totalmente
inadequada, e fica muito magoada quando seus pais pensam nela como um
crimino em potencial. Via de regra, ela sabe que agiu mal e está pronta a
100
aceitar a insatisfação dos pais, mas apenas em relação ao que fez aqui e agora
Não está preocupada com o futuro — primeiro, porque não pode imaginá-lo muito
bem e, depois, porque sua cabeça está totalmente ocupada com as pressões do
presente.
Não pretendemos sugerir que os pais devam negligenciar a conduta do filho. O
que quer que ele faça, bom ou ruim, suas reações positivas ou negativas
influenciam fortemente a formação de sua personalidade. Uma falta séria pede
uma resposta adequada, de maneira que a criança aprenda com o exemplo. Se o
roubo é negligenciado, ou co”iderado superficialinente, ela pode sentir-se
encorajada a repeti-lo, talvez em escala maior. Assim, é importante que os pais
estejam conscientes do que a criança faz, o que esteve tramando, por exemplo,
quando de repente aparece com algum objeto de orig m desconhecida. É quase
desnecessário dizer que o roubo deve ser tratado com seried de; mas igualmente
importante é que a reação paterna, para ser eficiente, deve ser adequada ao ato
real e não ao que tememos possa decorrer dele no futuro. Em outras palavras,
embora não devamos menosprezar o fato, tampouco devemos exagerá-lo além do
que a criança pode entender como justificável.
Falando claramente, não devemos permitir que desfrute daquilo que adquiriu de
forma desonesta. O que roubou deve ser imediatamente devolvido ao dono, com
as devidas desculpas — toda criança consegue entender essa necessidade — e,
se qualquer prejuízo tiver sido causado, o dono deve ser compensado de maneira
adequada. Mas não devemos encarar o fato como se ela tivesse cometido um
crime; em nosso sistema jurídico uma criança não comete crimes e não devemos
ser mais severos do que a lei. Por outro lado, mandá-la sozinha para devolver o
que tirou pode não ser a melhor idéia. Sem nossa supervisão, não podemos ter
certeza de como a devolução será feita. O mais importante, na minha opinião, é
que, se a acompanhamos, ela vai observar, em primeira mão, Como estamos
desconcertados com sua atitude. Para a criança que ama seus pais, perceber que
os envergonhou aos olhos de um estranho é uma das piores experiências que
pode ter.
No entanto, se tambtm a castigamos, isso pode diminuir consideravelmente os
efeitos de sua angústia. Em linhas gerais, nosso sistema jurídico reflete os
sentimentos comuns da humanidade, e um deles é de que o castigo apaga a
culpa. Da mesma forma, nossa experiência com o sistema jurídico penal indica
que o castigo é uma coibição ineficaz; o agredido sente-se tão revoltado contra
aqueles que o infligiram que pode chegar a rejeitar a idéia de que o merece e,
além disso, uma vez paga a pena, ele tem muito menos razão para continuar
sentindo-se culpado. E muito melhor simplesmente deixar a criança observar o
sofrimento e o desconcerto que nos causou através de nosso comportamento em
relação àqueles de quem roubou. Ela se lembrará disso e ficará apta a evitar
repetições.
Pode fazer pouca diferença para nós, que tememos pelo futuro da criança, se o
roubo foi de uma loja ou de nós mesmos, mas, para a criança, tirar alguma coisa
de um membro da família e de um estranho são questões inteiramente diferentes.
Podemos destruir nossos próprios esforços para acertarmos as coisas, se não
discriminarmos adequadamente entre essas duas situações.
Poucas crianças não se sentiram tentadas a apanhar pequenas moedas que os
pais deixaram à vista; ou tirá-las sub-repticiamente de alguma bolsa que tenha
sido deixada convenienteniente por perto. Há muitas razões possíveis para isso. A
criança pode querer comprar algum objeto que deseja; pode querer descobrir em
que medida os pais estão atentos aos próprios bens e aos dela; pode querer
conscientizar os pais de que deseja de
101
por que o tinha roubado, para começar, já que não tinha qualquer intenção de
gastá-lo. Fui ficando mais e mais irritado por ter sido levado à tentação por alguém
.que, além do mais, era tão negligente que não se dava conta da falta do dinheiro.
E então, em toda a minha pouca idade, entendi que tinha querido puni-lo por me
tentar, que esse tinha sido o motivo, uma vez que não tinha nenhum plano para
gastar o dinheiro. Na minha cabeça, não perdoei essa pessoa por sua falta de
cuidado, primeiro me tentando a apanhá-lo, e depois por permitir que saísse com
ele tão facilmente.
Assim, a partir de minha própria experiência, sei que uma criança pode apanhar
coisas em casa simplesmente para punir aqueles que o tentam ou para descobrir
se estão atentos o bastante para perceberem o que está acontecendo, e
interessados o suficiente para tomarem alguma providência Ninguém jamais
descobriu o que eu tinha feito, para meu grande alívio. Mas a culpa que senti foi
tão dolorosa que me impediu pelo resto da vida de sequer pensar em apanhar
alguma coisa que não me pertencesse.
Se o roubo tivesse sido descoberto e eu questionado sobre ele, estou certo de que
103
guém que está muito irritado com ele ou que pareça já ter decidido que esses
motivos não são justos.
Se não tentarmos genuinamente entender todas as razões, as explícitas e as
implícitas, então a criança ficará convencida deque nos interessamos apenas pelo
dinheiro, e não por ela. E claro que a preocupação da maioria dos pais é com o
filho e seu desenvolvimento futuro, e não com a perda, que na maioria dos casos
é relativamente pequena. Mas as crianças têm muita dificuldade de entender isso,
a menos que os pais se esforcem e consigam deixar claro que sua grande
preocupação não é com o roubo ou com o que possa prognosticar para o futuro da
criança, mas sim a compreensão da necessidade que motivou sua ação. Somente
se tiver certeza de que nos importamos menos com sua atitude, ou com nossa
conveniência, do que com ela própria, estará disposta a ganhar e manter nossa
boa vontade, a manter inviolado o bom conceito que temos a respeito dela.
Tirar objetos, assim como algum dinheiro, de dentro da família quase sempre
mostra que as crianças têm pontos de vista muito diferentes daqueles dos pais
sobre os bens de família. Tanto do que existe pela casa é para ser usado
livremente por qualquer um, ue as crianças podem ter grande dfficuldade em
traçar a linha que conceme ao dinheiro. Vendo que nós, seus pais, nos sentimos
livres para controlarmos grande parte de sua vida, ela pode tentar exercer um
controle análogo sobre nós. Decidimos o que ela pode ou não ter, portanto, não
deve ela decidir também quais de nossos bens pode considerar seus? Para ela,
faz uma grande diferença se o dinheiro que apanhou estava jogado, pois percebe
que nos sentimos à vontade para manipularmos ou até mesmo dispormos das
coisas que ela não guarda. E se tivéssemos sugerido ou até mesmo pedido que
dividisse seus objetos de estimação com Outros, pode não ver nada de errado em
conseguir que dividamos alguns de nossos bens com ela. É claro que os pais que
solicitam dos filhos essa divisão têm em mente apenas um uso temporário. Fariam
melhor se lhe pedissem apenas para emprestar um brinquedo a outra criança,
porque um empréstimo implica a continuação da posse, o que não é
necessariamente verdadeiro quando se trata de dividir alguma coisa
Ainda aqui, o fato principal é que nos sentimos à vontade para dizer a nosso filho
o que fazer com seus pertences, quando permitir que outros os usem, como cuidar
deles, como guardá-los, até mesmo quando se livrar deles, para não mencionar as
vezes em que simplesmente os tiramos dele por qualquer motivo. Por que não
deveria ele pensar que tem o direito de fazer o mesmo em relação a nossa
propriedade? Se ele de fato pensa assim, mas não lhe damos abertamente essa
igualdade, pode tentar fazê-la valer de maneira subreptícia. É claro que é jovem
demais para deduzir tudo isso, mas é assim que se sente, e sentimentos intensos
que não conseguem ser conípletamente articulados podem com freqüência
exercer pressão mais forte para a tomada de atitudes do que pensamentos
explícitos.
Provavelmente o que está mais presente quando um filho “rouba” de seus pais é o
que sente a respeito da família. Já que ele pertence à família, em especial aos
pais, estes também não pertencem a ele? Há muitas teorias diferentes sobre a
origem e o objetivo da famiia. Sua função principal, é óbvio, é a necessidade de
prover as carências dos jovens enquanto eles ainda não se podem cuidar. Mas
existe uma teoria de que a família na sua formação atual originou-se de um grupo
que dividia propriedades comuns. Houve épocas, e há sociedades, nas quais tudo
o que uma família possui é propriedade comum, para ser usado por todos os seus
membros, como sugere a idéia de uso comum, e de acordo com as
104
105
ção ao que fez, uma vez que, aos olhos dojai, pagou a pena, muito embora
normalmente veja a pena como mais severa do que o castigo justificaria. Ambos,
pai e fllho, livres das emoções que existiam entre eles, podem sentir que a paz foi
restabelecida.
Qualquer atitude paterna que tenha a intenção de ser um castigo, não importa se
ameno, leva a criança ao ressentimento, e, quanto mais drástico o castigo, mais
profunda a indignação que provoca Quem é capaz de emular ou identificar-se com
alguém de quem se ressente, não importa o quanto essa pessoa possa ser
admirável sob outros aspectos? Assim, qualquer castigo, por mais que se
justifique aos nossos olhos e até mesmo aos de nossos filhos, interfere em nossos
principais objetivos, ou seja, de que nosso filho deva nos amar, aceitar nossos
valores, e querer viver o que consideramos uma vida digna. Um castigo brando
nos afastará menos desses objetivos do que um outro mais pesado, mas isso não
muda o fato de que o castigo, tendo sido destinado e concebido como tal por pai e
106
filho, o tomará menos desejoso de nos igualar reduzindo, assim, suas
possibilidades de se sentir bem consigo mesmo e com sua vida em geral.
Mesmo quando o castigo fïsico ou qualquer outro não causa dano psicológico
permanente — o que não raro acontece —, isso prova apenas que pais que são,
no geral, bastante bons podem sair-se bem de várias situações sem causar
prejuízos sérios aos filhos. Ser um bom pai compensa muito o que de outra forma
impediria o crescimento da personalidade da criança; mas o fato de que
compensa muitos erros que cometemos na criação de nossos filhos não altera o
fato de que eles e nós nos sentiríamos muito melhor se esses erros pudessem ser
evitados antes de qualquer outra coisa.
Eis porque acredito que é sempre um erro castigar uma criança; mesmo quando
ela própria acha que merece, ela ainda sente, uma vez castigada, que foi tratada
de forma mjusta. Pode não fazer essas distinções claramente, ou através de uma
compreensão consciente, mas o sentimento é, no entanto, muito forte.
Por que uma criança reage assim? Em primeiro lugar, porque o castigo ameaça a
segurança que existe no fato de ver o pai como um protetor que a tratará sempre
com muito carinho; e, em segundo, porque é da natureza humana ressentir-se de
qualquer pessoa que tenha o poder de nos castigar. Não podemos sentir-nos
seguros, se nossa segurança depende de uma pessoa de quem nos ressentimos.
Certamente, toda criança ressente-se com freqüência de certas atitudes de seus
pais, mas, em circunstâncias normais, esses ressentimentos, decorrentes dos
inúmeros casos em que um pai tem que reger ou pelo menos supervisionar
aspectos importantes da vida do filho — além dos muitos mais que ele apenas
acha que tem que supervisionar—, não se comparam com o tipo de ressentimento
magoado que sentimos em relação àqueles que se arrogam o direito de nos
castigar.
A diferença entre ensinar a uma criança um comportamento adequado, ou regular
aspectos de sua vida, e “ensinar-lhe” por meio de castigo pode parecer pequena
ou irrelevante para um pai que esteja convencido de que o objetivo de seu castigo
é ensinar ao filho como agir melhor no futuro, mas no que se refere à criança a
diferença é enorme. Se sente que a intenção do pai é fazer tudo da melhor
maneira para ele, mesmo que não concorde com a correção ou proibição, ele
ainda sabe, no fundo, que o pai está bem- intencionado; nada turva sua visão do
pai como seu principal protetor. O pai que castiga seu filho, achando que o faz
para evitar que faça coisas que possam ter conseqüências perigosas para ele,
também acredita que o está protegendo, mas a criança sente de maneira
diferente, e uma pequena consideração sobre nosso sistema jurídico prova que
ela está certa.
Pense em todas as salvaguardas a que todo acusado tem direito antes de ser
considerado culpado. Não se trata apenas de ser considerado inocente até que a
culpa seja provada; ele é defendido não por ele próprio, mas por um advogado
com os mesmos direitos, pnvilegios e prestigio do promotor. Mais importante até, o
caso é ouvido por um juiz e um júri independentes que dão aos argumentos do
defensor e do promotor pesos iguais. Mas, quando nosso filho está em
“julgamento,” tem de apresentar sua própria defesa, enquanto nos encontramos
nos papéis mutuamente incompatíveis de promotor e juiz — e não há Juri. Se nós,
na qualidade de país, pudéssemos ter em mente as salvaguardas a que temos
direito antes de podermos ser considerados culpados pela sociedade, talvez não
tivéssemos vontade de castigar nosso filho por qualquer razão, porque veríamos
que nos faltam a
107
108
seu comportamento agora e no futuro por motivos seus, e não pelos do pai.
A maneira de fazer isso é tirar a criança por pouco tempo da nossa presença.
Podemos mandá-la para fora da sala ou, se possível, para seu quarto. Ou
podemos retirar-nos para nosso próprio quarto. Não importa de que maneira ou
forma o pai indique claramente: “Estou tao decepcionado com você que neste
momento não quero estar ao seu lado; sinto-me incapaz de estar fisicamente perto
de você.” No caso, a distância fisica representa a distância emocional, e esse é
um símbolo que fala ao consciente e ao inconsciente da criança ao mesmo tempo;
por isso é tão eficiente.
O objetivo de mandar a criança para longe da presença fisica dos pais não deve
ser nunca puni-la, mas apenas permitir a ambos, pai e filho, distanciarem-se do
que aconteceu, esfriarem, reconsiderarem; tudo isso sem ter que falar. Tudo
ajuda. Mas é a ameaça da deserção que, muito provavelmente, impressiona muito
a criança. Foi mencionado que a ansiedade da separação talvez seja a primeira e
mais básica ansiedade do homem. A criança experimenta isso quando a pessoa
que primeiro toma conta dela se afasta, uma ausência que, caso se tome
permanente e a pessoa não seja substituída, pode de fato levar a criança à morte.
Qualquer coisa que reavive essa ansiedade é experimentada como uma ameaça;
portanto, enquanto a criança — não importa quão vagamente — imagina que sua
própria existência está em perigo se a primeira pessoa que cuidou dela a
abandona, vai reagir a essa ameaça real, implicita ou fantasiosa com sentimentos
de ansiedade. Mesmo quando já tem idade suficiente para saber que sua vida não
está em perigo, reagirá com sentimentos de depressão, porque, apesar de tudo,
em algum nível sente como se estivesse. A diferença é que com mais idade o
medo não é de privação fisica. mas emocional.
Aqueles que na infância foram sujeitos a esse distanciamento por um pai a quem
amavam vão lembrar-se de como se sentiram perdidos e sós, quando mandados
para o quarto. Essa reação poderosa seria incompreensível se não tivessem
experimentado o fato de serem mandados para o quarto como uma ameaça da
supressão do amor, que, em seu inconsciente, reviveu a ansiedade da separação.
Uma vez que em outras ocasiões eles gostavam de ficar sós em seu quarto e se
saíam muito bem longe da presença fisica do pai, ficar isolados não poderia ter
sido a causa de terem se sentido como se estivessem realmente abandonados.
Seus sentimentos decorreram dc sua compreensão de que aquilo que estava em
jogo era a perda potencial da afeição paterna, uma ameaça séria para o filho, que
sabe não poder conduzir sua vida se perder o pai como protetor.
Se tivéssemos alguma dúvida de que essa separação física é uma expressão
eficiente de nosso desgosto com o comportamento de nosso filho, então seu
próprio comportamento pode ensinar-nos. A pior ameaça que uma criança pode
imaginar quando está profundamente desgostosa com os pais é fugir. As crianças
estão convencidas de que essa ameaça será suficiente para nos fazer mudar
nosso comportamento — uma expressão clara de como a criança vê esses
assuntos. Por isso, entende muito bem que nossa ameaça de afastamento físico é
um símbolo de um distanciamento emocional em relação a ela, e é provável que
essa ameaça a impressione profundamente.
Como castigo planejado, esse distanciamento físico perde muito de seu impacto
emocional, porque o que o faz surtir efeito não é a atitude cuidadosamente
pensada e executada, mas a declaração cheia de emoções fortes. Foi esse o
impacto da pergunta de meu pai sobre mim, após ter sabido que eu dissera
palavrões à minha mãe. Foi a reação mais forte que lhe ocorreu no momento,
transmitir-me sua decepção. (O interessante é
109
que não respondi, nem com uma desculpa nem com qualquer promessa de me
emendar; estava por demais abalado para isso. Ao invés disso, fui para meu
quarto remoer as coisas. Tinha que afastar-me fisicamente da força dos
sentimentos de meu pai; ele não precisou mandar-me para o meu quarto.)
Ter uma reação emocional forte diante de um delito sério de um filho é bastante
natural; retirar nosso amor temporariamente porque as atitudes da criança foram
tão desapontadoras a ponto de nos fazerem sentir distanciados por algum tempo é
o desdobramento lógico de nossos verdadeiros sentimentos. Assim, nessa
situação, mandar o filho para fora da sala, para longe da nossa presença, é uma
reação adequada aos nossos sentimentos. Se a criança experimenta esse fato
como um castigo é outra questão, e sugere que entende corretamente que o pior
que um pai pode fazer é ameaçar retirar seu afeto. Mas,. no sentido mais
profundo, não é um castigo, e sim apenas uma expressão de sentimentos.
Ser temporariamente afastado da presença dos pais reaviva inconscientemente a
antiga ansiedade da criança de que, privada dos pais, está perdida. A ativação
dessa ansiedade no seu subconsciente toma-la-á agudamente consciente do
quanto precisa dos pais, e isso a induzirá a tentar reconquistar seu amor. O alívio
emocional e freqüentemente a verdadeira felicidade que pai e filho experimentam
quando, após uma separação curta, se reúnem novamente fortalecerá seu
relacionamento.
Tudo isso só funcionará bem se o motivo subjacente do pai não for o desejo de
punir o filho, mas uma vontade de não ficar tão irritado pelo seu mau
comportamento a ponto de essa irritação poder conduzir a uma ruptura mais séria
de sua relação basicamente amorosa.
Os pais que querem castigar e magoar seu filho são capazes de usar qualquer
oportunidade para fazê-lo. Assim, não chega a ser surpreendente que alguns pais
não tão bons tirem vantagem do método de retirada do afeto para seus objetivos
nefandos, o que podem fazer, poi que aí a agressão fisica não está presente,
como no castigo corporal. Eles podem, conseqüentemente, enganar-se que não
estavam expressando seus sentimentos hostis, mas queriam apenas corrigir o
filho. Esses pais punem um filho não conversando com ele durante dias e até
mesmo semanas. Isso pode provocar-lhe tamanha ansiedade que não só sua
telação com o pai toma-se sriamente prejudicada — como ,o foi, talvez todo o
tempo, por conta da hostilidade básica do pai — mas também a personalidade do
filho.
Uma certa.mãe foi até mais além, ao castigar sua filha. Se ela não se comportasse
bem, a mãe ficava sem falar com ela durante meses; pior, empenhava-se para
contar a qualquer pessoa que quisesse ouvir os supostos delitos da menina. Nas
suas amargas reclamações sobre a filha, ela inconscientemente revelou seus
verdadeiros sentimentos, uma vez que também contou às pessoas que a menina
não era, na realidade, sua filha. Deve ter sido assim que ela se sentia, no fundo, e
essa era a causa de seu comportamento de rejeição no que conceme à menina.
Assim, tudo o que acontece dentro da relação pai-filho depende do que o pai
sente pelo filho. O pai bastante bom sentir-se-á mal quando tiver que pedir ao filho
para se separar dele por algum tempo, a fim de que ambos se assenhorem de
seus sentimentos negativos e permitam que os positivos gahhem novamente
ascendência. O pai não bastante bom, quando zangado com o filho, irá puni-lo
com severidade, independentemente do método especffico de castigo que decidir
utilizar. Ele o fará provavelmente porque se res-
110
sente do filho, cuja presença o faz confrontar-se com sua natureza pouco
amorosa. Não acredito que esse pai aja assim porque seja mau — não creio que
existam tais pessoas —. mas, como qualquer um, reage a suas necessidades
interiores, qualquer que possa ter sido sua origem. Uma mãe como aquela que
nega ser mãe de sua filha não faz isso por ser má — embora seu comportamento
tenha consequências desastrosas para a filha —, ma.s não tem condições dc ser
confrontada pela filha com o fato de que não consegue amar e não é uma mãe
bastante boa. Assim, ela ajusta contas com a criança pelas aflições que a faz
passar por saber subconscientemente o quanto ela é uma mãe ruim. Ela castiga a
filha não por conta dos erros que declara terem sido a causa da pumção, mas
porque a criança a faz sentir-se mal consigo mesma.
Uma vez que este livro não é escrito para detalhar os danos que o pai não
bastante bom inflige ao filho, mas para aconselhar os pais bastante bons que
queiram fazer o melhor por seus filhos, não há quase sentido em estender-me
sobre o quanto é horrível para pais e filhos se seu relacionamento não é
basicamente de amor.
Opai bastante bom evitará castigar seu filho e fará qualquer esforço para que suas
críticas sejam ultrapassadas pelos elogios que também lhe fará sempre que
adequados: o
elogio merecido será muito melhor para ambos.
O elogio, também, é eficiente menos porque somos bons juízes de valores
objetivos, e mais porque é uma expressão de nossas emoções positivas fortes, de
nossa alegria e prazer ao ver nosso filho bem. Nossa reação ao seu mau
comportamento também deve ser principalmente emocional, expressando nossos
sentimentos, e não nossos julgamentos objetivos. Assim, o elogio — símbolo de
um aumento de nosso amor e afeição — e a retirada temporária da afeição são as
duas melhores maneiras de influenciar a formação da personalidade de uma
criança. Ao elogiar, chegamos mais perto emocionalmente de nosso filho e, com
freqüência, também fisicamente — abraçando-o, por exemplo —, e ele entende
isso. A reação oposta é conseqüência de nossa decepção com nosso filho. Temos
todo o direito de nos decepcionar, mas nossa decepção não nos dá o direito de
castigar. A criança o sabe; essa é a razão pela qual se ressente de nosso castigo
e, ainda assim, modifica seu comportamento paradesfazer nossa decepção.
Quando tem certeza de que a amamos, nossa decepção com seu mau
comportamento é compreensível para ela. Justamente por isso, seu amor por nós
é a razão de temer nossa decepção.
Somente o exemplo de nosso próprio bom comportamento induzirá nossos filhos a
fazer desse comportamento parte de suas personalidades — e mesmo então, só
se estamos abertos a respeito do assunto, e nem forçamos nossos valores nem
esperamos que sejam capazes de emular nossos exemplos antes que seu próprio
desenvolvimento os tome aptos a fazê-lo. Devemos aceitar isso como
compreensível, e não ficarmos desapontados com eles, se às vezes falham; e
devemos sempre permanecer em nossa convicção de sua bondade inerente,
reconhecendo que leva muito tempo até que nosso exemplo frutifique
completamente, assim como aconteceu em nossas próprias vidas. Quanto mais
compreendemos o qüanto isso foi verdadeiro para nós, melhor será para eles,
assim como para nós, e mais fácil e mais suave será o seu desenvolvimento.
E devemos ser igualmente honestos e abertos a respeito de nossas emoções,
mostrando através de nosso comportamento o quanto amamos profundamente
nossos filhos sem que haja necessidade de estarmos sempre dizendo isso a eles,
embora isso também tenha seu lugar. Devemos acreditar que nosso amor tem seu
melhor efeito através das
111
112
dos mais dificeis aspectos de nossa própria relação com o pai do mesmo sexo.
Assim, é mais provável que uma mãe se pegue falando como sua própria mãe ao
criticar sua filha, enquanto um pai se apanhará repetindo, em suas interações
negativas com seu filho, aquelas que aconteceram em sua infância entre ele e seu
pai.
Este é apenas um exemplo de como tendemos a projetar nossos próprios conflitos
não resolvidos em nossos filhos. Se tiramos proveito da oportunidade que essas
situações oferecem para examinarmos o que nos faz agir dessa maneira,
podemos ser capazes, enfim, de so’lucionar conflitos infantis que ainda não
tínhamos resolvido. Essa abertura a nossos próprios sentimentos também
facilitará nossa compreensão de que é exatamente a tremenda importância que
temos para nosso ifibo, e o amor deles por nós, que gera sua hostilidade
ocasional. Ficará evidente que quando a hostilidade se declara abertamente,
aquilo com que nos confrontamos é apenas o reverso de sua grande afeição por
nós. Essa constatação alterará nossa atitude de aborrecimento ou coisa pior para
uma de aceitação compreensiva das forças emocionais subjacentes, embora-
ainda tenhamos que inibir o comportamento agressivo de nosso filho. Isso pode
até nos fazer reconhecer que, ao refreá-lo, estamos reproduzindo a conduta de
nossos pais em situações análogas. I.emhrarmonos de como achávamos nossos
pais injustos nos ajudará a não reagirmos excessivamente ao comportamento de
nosso filho. Com essas deliberações, as coisas devem cair cm seu lugar certo, e o
que hoje nos aborrece com relação a nosso filho não será alimentado e agravado
por sua ligação com todos os sentimentos hostis que reprimimos em nosso
inconsciente. Sobretudo, enquanto percebemos que, apesar de todas as
tendências agressivas que tínhamos enquanto crianças, crescemos e nos
tomamos adultos não-violentos, respeitadores da lei, é menos provável que
venhamos a ser severos demais com relação ao comportamento agnssivo de
nosso filho, por ansiedade de que ele se tome incontrolável uma vez crescido.
A repressão do lado negativo dos sentimentos ambivalentes de uma criança para
com seus pais, se feit.i com excessivo rigor, pode ter como resultado a
interferência na expressão dos sentimentos positivos, que são apenas o outro lado
dessa ambivalência. Conheci muitas crianças que só puderam estabelecer
ligações com seus pais depois que deixaram de sentir-se com pelidas a reprimir
todos os seus sentimentos negativos em relação a eles.
É claro que se somos capazes de reconhecer, através da introspecção, que
nossos sentimentos para com n ssos filhos tampouco são completamente livres de
ambivalência, já não precisamos reprimir quaisquer sentimentos negativos que
brotem dentro dc nós de vez em quando. A pressuposição de que nosso filho, por
causa de sua imaturidade e falta de controle, tem ocasionalmente sentimentos
negativos em relação a nós, enquanto nós estamos inteiramente livres desses
sentimentos para com ele, pode trazer sérios problemas para o relacionamento.
COMPREENDENDo OS PESADELOS
O que se disse a respeito (las origens de nossos sentimentos ambivalentes para
com nossos pais também vale, mutatis mutanclis, para todo o período da infancia.
Nossas primeiras experiências, e as de nosso filho, são em sua maior partë
inconscientes e, portanto, não disponíveis em forma direta à nossa lembrança,
mas estágios posteriores de seu desenvol-
115
vimento repetem algumas de nossas experiências não necessariamente
inconscientes ou
-reprimidas por nós ou que, se o foram, não o foram tão profundamente. Essas
lembranças podem ser recordadas mais prontamente, embora isso ainda
possa requerer um esforço considerável.
Poucos de nós podemos nos lembrar, com todos os detalhes, dos pesadelos
com que tanto sofremos, como todas as crianças; mesmo aquelas que
conseguem lembrar-se de alguma coisa sobre seus pesadelos, e de como
eles eram perturbadores, têm pouca noção de suas causas, além do fato óbvio
de que a criança pequena sente-se irremediavelmente ansiosa a respeito de
muitas coisas incomprecosíveis para ela Não é muita gente que percebe que
uma das grandes fontes dos pesadelos das crianças pequenas são seus
superegos em desenvolvimento, que tentam puni-laspo suas “inaceitáveis,”
senão “pecaminosas,” tendências. Entre outras, essaspodemIsernecessidades
sexuais, ou o desejo de se rebelar contra a autoridade ou se ver livre de um
pai ou irmão. Enquanto precursor, um estágio anterior de uma consciência
mais plenamente integrada, o pesadelo desempenha um papel importante no
desenvolvimento da personalidade de todos nós; teve esse papel em nosso
desenvolvimento como tem, agora, no de nosso filho.
Perceber isso nos ajudará a tratar os pesadelos de nosso filho com maior
cuidado e com o respeito que uma consciência em desenvolvimento merece.
Quanto mais compreendemos nossos pesadelos (dos quais não estamos
inteiramente livres, mesmo na vida adulta), mais bem equipados estaremos
para ajudarmos nossos filhos com os seus. O fato de termos esquecido
tanta coisa sobre eles sugere que reprimimos os desejos e medos infantis
que se manifestavam nesses sonhos obsedantes. Subjacente a essa alienação
de algumas de nossas experiências infantis está o desejo de não saber de
que se tratava, talvez até algum vago reconhecimento de que o terror que
sentimos então deixou em nós alguns resíduos dos quais não nos
conseguimos livrar inteiramente. Serve de exemplo a ansiedade irrealística
de que muita gente ainda sofre, por exemplo, quando confrontada com
animais inofensivos, como cobras de jardim. Seu medo está freqüentemente
enraizado nos pesadelos infantis em que cobras ameaçavam devorá-los.
Assim, podemos usar os pesadelos de nossos filhos como uma oportunidade
de explorar e reexplorar — como sugeriu T.S. Eliot —o que pode ter-se
escondido por trás dos nossos, e quaisquer resquícios disso que ainda
possamos carregar conosco. Portanto, devemos de fato, pela primeira vez,
conhecer verdadeiramente nossos pesadelos e seu significado em nossas
vidas. Realizar isso será uma dádiva para nós e nossos filhos, já que então
seremos capazes, compreendendo-nos, de ajudá-los em seus pesadelos com
uma simpatia pessoal tanto pelo sofrimento imediato quanto pelo significado
dessas experiências na formação de sua personalidade, uma profl.indidade de
empatia que, de outro modo, poderia não estar ao alcance de nenhum de nós.
Ao contrário de nossos pesadelos, de que temos apenas vagas recordações,
nossas ansiedades com relação à entrada na escola permanecem com a
maioiia de nós; na verdade, algumas pessoas passam a vida demonstrando
para elas mesmas, mais do que para outras, que seus temores infantis dc
fracasso acadêmico e social eram irrealistas. Como essas preocupações
fazem, em geral, parte de nossas lembranças conscientes, ainda que
freqüentemente apenas de forma fragmentária, temos uma compaixão
considerável pelas ansiedades de nosso filho quando de sua primeira ida à
escola. Infelizmente, alguns pais parecem ter gasto sua compaixão quando
wna criança mais velha desenvolve uma fobia à
116
escola por motivos análogos. É aqui que uma compreensão baseada nas próprias
experiências de cada um poderia ser particularmente proveitosa
Essas situações representam muitas outras que podem ocorrer em nossas
interações com nossos filhos; esforços para se compreender o papel
desempenhado por eventos análogos em nosso desenvolvimento sempre trazem
mudanças benéficas à medida que fornecem nova clareza sobre nós mesmos.
Ganhamos uma compreensão mais profunda do que certas experiências
significaram em nossas vidas e em nossa relação com nossos pais, assim como o
modo pelo qual essas experiências modelam agora nossa atitude em relação
àquio que nosso filho experimenta e manifesta em torno de ocorrências similares.
Essa compreensão nos permite sentir empatia pelo que quer que mobilize nosso
filho, e isso quase sempre dá à nossa relação maior profundidade e sentido,
tornando-a uma experiência mais agradável para os dois. Portanto, em torno de
uma experiência comum, não apenas influenciamos as atitudes de nosso filho
como também mudamos a nossa, em virtude de uma compreensão melhor do que
significaram eventos similares para nós enquanto crianças.
As crianças são muito sensíveis às razões de seus pais para fazerem alguma
coisa com ou para eles. Será que os pais acham que devem fazer isso, ou gostam
disso de verdade? Será que mamãe esul lendo uma história para mim porque quer
me acalmar? Ou será porque ela acha que é sua obrigação? Talvez ela acredite
que eu vou gostar dessa história em particular, ou de que ela leia para mim, ou
ambas as coisas? É claro que se trata de uma experiência mais gratificante para
um filho se ele pode perceber em sua mãe o desejo de lhe dar prazer.
A experiência da criança para quem se lê, é radicalmente diversa da do pai,
embora estejam empenhados juntos numa única atividade. No entanto, quando os
próprios pais reagem à história, os dois podem realmente partilhar a experiência
Talvez, o pai seja mobilizado a recordar importantes lembranças de sua própria
infância. Disseram-me que pessoas que leram meu livro sobre contos de fadas,
Psicanálise dos Contos deFada.s, subitamente compreenderam porque uma
história em particular tinha sido especialmente significativa para elas em sua
infância Naquela ocasião tinha-os cativado de algum modo, tinha despertado
ansiedade ou prazer, ou ambos; mas só agora perceberam a razão disso, com
que experiências ou problemas pessoais o conto tinha estado relacionado, de
forma a tornar-se singularmente significativo para elas.
Enquanto crianças, essas pessoas tinham querido um pai que lesse história
repetidas vezes porque, embora ignorassem na ocasião, mas compreendessem
agora, tinham esperado subconscientemente que ela transmitisse um importante
recado ao leitor. Para uma tinha sido A Família Robinson; tecendo fantasias em
torno dessa história, ela encontrara consolo para sua situação familiar infeliz. O
mesmo livro também tinha sido muito significativo para outra menina que sofria
com as repetidas e prolongadas ausências de seus pais, quando ficava entregue
aos cuidados de parentes que cuidavam muito bem dela fisicamente, mas que a
menina detestava, principalmente porque tomavam o lugar de seus pais. Só
depois de adulta se deu conta de que tinha apoquentado os pais e os parentes
para lerem A Família Robinson em voz alta para ela, porque tinha esperanças de
que percebessem o recado de que as crianças precisam da presença dos pais.
Subconscientemente, esperava que, a partir da história, eles compreendessem o
quanto ela queria que seus pais ou parassem de viajar ou a levassem com eles.
Assim que essa mulher percebeu que o desejo de uma criança de ouvir uma certa
117
história repetidas vezes pode derivar de sua esperança de que seu pai entenda o
recado que ela presume que a história transmite, ler história para seu próprio
filho tomou-se uma experiência muito mais gratificante para ela. Mais que
isso, começou a prestar uma atenção bem diferente às histórias que seu filho
pedia, pois se lembrava com especial pungêneia de como ficara gravemente
desapontada pelo fato de nem seus pais nem seus parentes terem entendido
a mensagem que ela tinha tentado mandar-lhes através de A Família Robínson.
Ler história para seu filho tinha, agora, assumido outros níveis de significado
para ela para ela, queria dar-lhe esse prazer. Agora lhe ocorria que, ao pedir
determinado conto, -seu filho poderia estar tentando dar-lhe alguma coisa —
isto é, um recado sobre algum assunto de grande importância para ele. Ela
apreciava essa demonstração de confinça nela, seu desejo de dizer-lhe —
não importa por meio de que circunlóquio — alguma coisa de sentido
pessoal.
Sua compreensão da importância que a A Família Robinson teve um dia para
ela deu a essa mãe uma nova perspectiva de sua própria infância, O que
anteriormente recordara e vira apenas como uma fuga para fantasias
realizadoras de desejo, agora reconhecia como uma ação inteligente,
alterodirigida, com um propósito especifico: assegurar alívio numa situação
aflitiva, a longa e freqüente ausência de seus pais. Antes, lembrava-se de si
mesma como tendo sido incapaz de melhorar as condições que a oprimiam,
mas agora compreendia que, na verdade, tinha feito o melhor que podia para
persuadir sua família a mudar sua maneira de ser. A partir daí, quando lia
histórias para seu filho, sempre se lembrava de que foi através dessa
experiência que adquiriu uma imagem mais positiva de si mesma como
criança e, com ela, de si mesma como pessoa.
O que foi dito aqui com relação à leitura de histórias vale também, com as
variações devidas, para muitos outros aspectos da criação de fillhos.
Entender nossas experiências de infância enquanto adulto pode proporcionar
novos e importantes insigbts. Quando isso acontece, tanto o pai quanto o filho
têm uma significativa experiência através do que estão fazendo juntos;
embora em níveis diferentes, as diferenças são de menor importância do que
o fato de que cada um está devendo ao outro por ter ganho mais insights e
por ter proporcionado o ambiente para esse crescimento. O elemento de
igualdade numa experiência partilhada como essa é muito importante para a
criança, porque cada participante toma-se provedor e beneficiário ao mesmo
tempo.
Muitas experiências de infância ficaram, por necessidade, profundamente
enterradas no inconsciente durante o processo de desenvolvimento de
nossa personalidade adulta. Essa separação ou distanciamento da própria
infancia já não é necessária quando a personalidade adulta está plena e
seguramente formada, mas, a essa altura, a distância já se tomou, para a
maioria das pessoas, uma parte dessa mesma personalidade. A separação de
nossa infância é temporariamente necessária, mas se for permanentemente
mantida nos priva de experiências íntimas que, quando nos são devolvidas,
podem manter-nos jovens de espírito e também nos permitir uma proximidade
maior com nossos filhos.
118
O pai, por seu lado, pode relutar em conversar sobre sua experiência, em parte
porque essas recordações so muito dolorosas e, portanto, é melhor que sejam
evitadas, e, em parte, porque sabe que o filho não pode compreender de fato o
Holocausto, mas principalmente porque não quer sobrecarregar o filho com a idéia
de que sofreu tanto, nem com o fato de que a vida pode ter aspectos tão terríveis.
Se, movido por um desejo de proteger seu filho, o pai não conversa com ele sobre
o Holocausto — cujo significado não pode ter passado despercebido ao filho de
qualquer sobrevivente —, esse silêncio é interpretado como uma exclusão
deliberada do período mais importante da vida do pai, outra causa de indagações
e preocupação. Ele pode achar também que as reticências do pai são baseadas
na crença de que não entenderia, o que, apesar de bastante verdadeiro, dá-lhe a
sensação de ser considerado incompetente, se não totalmente indigno de receber
essas confidências.
Assim, enquanto o silêncio do pai sobre uma parte significativa de seu passado é
baseado em um desejo de proteger o filho, é provável que o filho veja nisso um
sinal de sua própria incompetência. Em retaliação, ele pode tentar equilibrar as
coisas, escondendo aspectos importantes de sua própria vida de seu pai. Mesmo
quando uma criança percebe vagamente que o pai quer protegê-la, a qualidade
positiva dessa intenção protetora não será suficiente para contrabalançar seu
sentimento negativo de exclusão, alienação e inferioridade.
Tudo é igualmente ou talvez mais complicado quando um sobrevivente não conta
a seu filho sobre o Holocausto. As injustiças extremas que o pai sofreu não podem
deixar de impressionar o filho, dado o fato de que sua própria vida é tão mais fácil.
Em conseqüência, pode conchiir que, em nenhuma circunstância, deve dar a um
pai que já suportou tanto, qualquer outra razão de sofrimento. Pode até julgar que
é sua obrigação compensar o passado, dando ao pai apenas prazer, por mais
impossível que esse objetivo possa ser. Assim, sempre que, ao longo do processo
de crescimento, a criança inevitavelmente fizer alguma coisa que preocupa ou
desaponta o pai, sentir-se-á imediatamente culpada. Isso estraga a relação,
especialmente na medida em que a criança se ressente do pai que, ainda que
indiretamente, o faz sentir culpa Mais uma vez o esforço de um pai para fazer o
melhor pelo filho, agora através de uma tentativa de fortalecer os laços emocionais
entre eles, tomando o filho como confidente e dando-se a conhecer, termina
interferindo com os bons sentimentos existentes entre eles!
Esses sentimentos de culpa em relação a um pai cria problemas suficientes para a
criança, mas há sempre um perigo adicional de que o pai se refira à experiência
do Holocausto numa hora em que o filho se sente preocupado ou em dúvida a
respeito de alguma atitude dele próprio. Nessa situação, a criança pode achar que
o pai mencionou deliberadamente seu passado de sofrimento a fim de fazê-la
sentir-se culpada ou fazê-la demonstrar uma consideração maior pela geração
anterior. Com o passar do tempo, pode vir a acreditar que essa “chantagem
emocional” lhe era infligida para que se comportasse, e não porque o pai queria
dividir com ela um aspecto muito importante de seu passado. Essas noções
podem deixá-la aborrecida porque lhe contaram esses fatos, e até mesmo ficar
ressentida com o próprio pai.
Esses pensamentos em uma criança podem ser mais do que distorções vazias.
Sem estar consciente de que este é um de seus motivos, o pai pode aludir a seu
passado para influenciar o filho a ser mais atencioso com ele e a dar mais valor ao
que lhe faz. E pode também acontecer que o pai — novamente sem se dar conta
disso — sinta algumas ponta-
120
das de ciúme do filho, cuja juventude é tão mais feliz do que a sua, e se ressinta
das graves privações que sofreu. Emoções desse tipo trazem o passado do pai
vívidamente à sua memória e o induzem a falar dele.
Embora o pai não tenha consciência desses sentimentos, e ficasse chocado se
soubesse de sua existência camuflada, a criança pode reagir subconscientemente
ao que sente e ficar ressentida, ao invés de feliz, ao tomar conhecimento do
passado do pai. Pode até achar que apenas alguma terrível atitude sua pode ter
estimulado opai a falar dessas experiências horríveis.
Como as crianças são mais autocentradas do que os adultos maduros, elas
naturalmente tendem a acreditar que são a causa do que quer que seja que seus
pais façam. A criança pensa: “Por que ele escolheu este momento, e com que
objetivo, para me contar isso?” E pode concluir — talvez incorretamente — que a
revelação foi provocada pelo seu comportamento, não apenas por sua curiosidade
carinhosa.
Mesmo as privações mais comuns deixam sua marca, e se não estamos livres de
ressentimento — e muito poucos adultos que passaram por sénas affições o estão
—, independentemente de nossa vontade, essa atitude penetrará em nosso relato,
dando-lhe outro sabor. A criança, mais receptiva a processos inconscientes e
menos atenta a conteúdos objetivos, perceberá o ressentimento e reagirá
vívidamente a ele, uma vez que se trata de sentimentos com os quais está
familiarizada, enquanto o passado lhe é estranho. Considerada essa
autocentralização, achará que estamos com ciúme dela porque sua vida é muito
melhor. Ou seja, percebendo nosso ressentimento, sentir-se-á ressentida; a
seguir, ressentir-se-á da causa de tudo isso: o fato de lhe termos contado sobre
nosso passado.
Se, de fato, subconscientemente ou inconscientemente, o pai é amargo porque o
filho não dá valor aos privilégios que ele próprio não teve, a criança ressentir-se-á
de ser levada a sentir-se culpada por gozar de privilégios que não pediu. Pode
indagar-se se não estaria melhor sem eles — pelo menos não seria obrigada a
sentir-se grata. A maioria dos pais acha muito dfficil não reagir, consciente ou
inconscientemente, ao fato de que seu filho tem uma vida melhor do que a que
tiveram. E a maioria dos pais acha ainda mais dificil compreender que é quase
impossível para uma criança apreciar “vantagens” em relação às quais não teve
escolha.
A criança que sabe das dfficuldades que o pai enfrentou e venceu provavelmente
terá medo de não ser capaz de também vencer dfficuldades semelhantes; isso a
faz sentir- se inferior, se não incompetente. Pensando em como o pai se saiu bem
em circunstâncias tão árduas, ela pode sentir-se derrotada muito antes de ter a
oportunidade de testar sua capacidade, muito antes de descobrir como poderia, na
realidade, ombrear-se com seu pai. Ela está muito mais preocupada com seus
sentimentos atuais sobre si mesma do que com o que lhe dizem sobre a vida do
pai, os acontecimentos de um passado vago e distante que lhe parece irreal e
dificil de visualizar.
Encontrei essas atitudes em Israel nos primeiros pioneiros e seus filhos, de
maneira típica, mas não exclusiva, entre os fundadores dos kibbutzim e as
gerações posteriores. Esses jovens declaravam abertamente seu ressentimento
de que todos os grandes feitos ligados ao estabelecimento dos judeus e do Estado
de Israel já tinham sido realizados pelos pais; sentiam que não havia nada
importante para fazerem. Mas, por baixo da superficie, também se preocupavam
em pensar se seu desempenho seria tão bom quanto o de seus pais, caso se
apresentassem a eles façanhas igualmente heróicas. Apesar de admirarem
121
abertamente as realizações da geração anterior, dissimuladamente se ressentiam
dc ser obrigados a se achar inferiores e ouviam as histórias de seus pais com
bastante ambivalência Algumas poucas crianças, das mais novas, permitiam-se
compensar-se com fantasias sobre as grandes proezas que fariam quando
crescessem, mas até mesmo essas, à medida que amadureciam e aprendiam a
ver as coisas de maneira mais realista, não conseguiam manter suas ilusões
grandiosas. Dada à relativa insuficiência da capacidade de urna criança, quando
comparada à dos pais, e as incríveis dificuldades que esses pioneiros tiveram que
enfrentar, como podia a geração mais jovem sentir-se de outra maneira?
Os jovens de Israel costumavam dizer: “Ah, nossos pais e suas grandes idéias!” —
para expressarem tanto uma tremenda admiração quanto uma rejeição interior. Os
pais, por seu lado, ficavam proftmndamente desapontados de que seus registros
de lutas passadas não fossem recebidos com apreço. Quando esperavam ser
motivo de grande interesse, se não também de admiração, confrontavam-se com
uma atitude de tédio. Uma vez que não entendiam que esse tédio não se devia a
uma falta de interesse, mas que era uma defesa contra a ansiedade e os
sentimentos de inferioridade, compartilhar o passado tinha um efeito oposto ao
pretendido, e restava-lhes o sentimento desapontador de que suas vidas não
podiam de fato ser entendidas pelos filhos.
Mas os sentimentos de inferioridade do filho não são os únicos obstáculos nesse
caso. Na medida em que recordamos o passado, é fácil nos deixarmos levar pelas
emoções provocadas por memórias dolorosas. Envolvidos em nossas próprias
emoções provocadas por essíis recordações, não estamos em boa posição para
avaliarmos o efeito que essas recordações podem ter sobre nosso filho. De
alguma forma esperamos que ele não apenas simpatize com nossos infortúnios,
mas também que comprenda e aprecie o quanto sua situação é melhor. Talvez ele
devesse — mas, da perspectiva da criança, sua vida é apenas normal, coisa que
ele já se habituou a esperar e a ter como certa, Tudo aquilo que conhecemos a
vida toda, não pode ser visto por nós, a não ser como alguma coisa normal.
Assim, apesar de da boca para fora defender a idéia de que teve mais sorte do
que seus pais, isto é, na melhor das hipóteses, o que ouviu dizer e, como tudo que
se ouve dizer, traz em si pouca convicção. No findo, ele não acredita que sua vida
seja especialmente feliz, embora seja isso que seu pai queira incutir nele.
Quando um pai espera que seu filho entenda como é feliz, está pressupondo que
o jovem, de alguma forma, conseguiu ver objetivamente a própria vida e a vida do
pai, embora não tenha nenhuma experiência direta desta última. Essa objetividade
está muito além da compreensão de uma criança - para não mencionar o fato de
que o que o adulto considera uma vida de privilégio pode não ser vivenciado da
mesma forma pelo filho. Ele tem sua própria definição de dificuldade, que pode
perfeitamente incluir cargas impostas pelo padrão de vida do pai, sobre o 9ual não
pode optar. Por exemplo, ter que usar galochas quando chove não parece ser um
privilégio para a criança, que tem dificuldades para calçá-las e descalçá-las, e tem
que limpá-las antes de entrar em casa. Ser obrigada a lavar as mãos antes de se
sentar para comer, escovar os dentes, arrumar o quarto, além de cumprir as
milhares de outras regras que a vida de classe média impõe — essas são as
“dificuldades” que conhece, e não tem idéia de como seria sua vida se não tivesse
que andar às voltas com elas. Na realidade, para ela, a perspectiva de não usar
galochas ou de viver em uma casa miserável onde nada precisa ser guardado ou
protegido pode parecer romântica e atraente, ao invés de constituir uma vida de
duras privações.
122
Grande parte disso pode ser ilustrada com uma história contada por Freud.
Quando seu pai lhe narrou uma experiência degradante que tinha tido com um
fanfarrão anti- semita, maus tratos que tivera que sofrer passivamente, seu
jovem filho não sentiu qualquer simpatia, somente desprezo, porque seu pai
não havia revidado. Da posição vantajosa em que seu pai o colocara, Freud
sentiu-se superior ao homem mais velho. Se essa foi reação do jovem Freud
quando lhe contaram as dificuldades pelas quais o pai tinha passado, o que
podemos esperar de nossos filhos?
Para tiós, tanto quanto para o pai de Freud, contar nosso passado para
nossos filhos, com a esperança tácita de que isso nos ajudará a forjar um elo
mais forte, pode, ao invés, provocar desavença entre nós. Este é, então, um
beco sem saída? Estarei sugerindo que contar o passado a uma criança terá
sempre o efeito oposto ao pretendido? Felizmente, não é sempre assim.
Contar nosso passado a nosso filho, com os sentimentos adequados, no
momento certo, no contexto certo, pode, de fato, aproximar-nos. Trabalhei
sobre os problemas possíveis principalmente para ilustrar o ponto global de
que quanto mais significativa e sensível do ponto de vista emocional uma
situação é, mais importante se toma que a tratemos com cuidado,
examinando nossos próprios sentimentos e especulando sobre os possíveis
sentimentos da criança. Situações carregadas de emoção, assim como os
remédios fortes, possuem potencial para o bem e para o mal. Quando
aplicados corretamente, e de maneira adequada às condições, a tendência
para o efeito benéfico esta presente — mas o uso inadequado pode provocar
mais mal do que bem.
“Manuseie com cuidado” impõe uma consideração cuidadosa do possível
efeito da nossa narrativa sobre a criança, dado o seu quadro de referências
limitado. Se o objetivo é que a história provoque admiração, há o perigo de
que esta estima seja tomada por sentimentos de ciúme e inferioridade e, se
entendemos que aquilo que contamos a nosso filho pode fazê-lo sentir-se
inferior, movidos por nosso amor vamos moderar nossa fala para evitar isso.
No que diz respeito a mostrar-lhe o quanto está melhor do que estávamos,
ao entendermos que na realidade estamos tentando fazê-lo sentir-se
agradecido, refrearemos nosso impulso. Sabemos por experiência própria
que, apesar de sermos abertamente gratos àqueles que colaboraram para
melhorarem nossa vida, ressentimo-nos profundamente de que esperem
nossa gratidão, uma vez que isso implica inferioridade. Assim, devemos
tentar não passar esse sentimento para nosso filho, e isso se tomará mais
fácil se considerarmos que, de sua perspectiva, a maior parte das vantagens
são dadas, não escolhidas, e podem não parecer-lhe vantagens.
Usei o exemplo de contar a nosso filho experiências passadas diticeis e
importantes para ilustrar como, numa determinada situação, o tiro pode sair
pela culatra, muito embora não haja desacordo ou conifito entre pai e filho,
mas, ao contrário, uma intenção consciente de melhorar o entendimento.
Assim, com freqüência, pai e filho vêem sua experiência, quando não um ao
outro, “através de um vidro escuro,” porque olham as coisas apenas de seu
próprio marco de referências. Uma vez que a criança não pode fazer de outra
maneira, cabe ao pai tentar ver a situação de ambas as perspectivas. Isso
requer, entre outras coisas, que sejamos honestos conosco mesmos sobre
nOSSOS sentimentos em relação a nosso fflho e honesto com ele e conosco
sobre nossos motivos; que os examinemos cuidadosamente, de modo a
termos certeza de que o que estamos fazendo é orientado para o melhor
interesse da criança.
Esse exemplo também pode sugerir que, como em todas as interações entre
pai e
123
Construindo a Identidade
Quando lhe perguntaram o que é mais df ícil para o bomeni, o
filósofo grego Tbales respondeu “Conhecer a si própria”
AO NASCER, TODOS OS BEBÊS possuem diversos traços de suas futuras
personalidades, ainda que, em geral, só na mais incipiente das formas. São
necessários anos de vida e experiência, antes que esses primeiros indícios de
uma disposição fritura comecem a emergir como os contornos de uma
personalidade, e muitos o’itros passarão, antes que um caráter tenha sido
completa e seguramente desenvolvido — um caráter que enfrentará os
rigores da vida e servirá bem àqueles que suportaram todas as provas e
atribulações necessárias para se tornarem os “senhores e donos de seus
rostos.”
Construir a própria identidade freqüentemente acarreta sérias armadilhas e
pode levar-nos a começos errados e a desvios. É um processo que exige
retraçarmos os próprios passos, e é também, além disso, um caminho
semeado de incertezas quanto a que direção seguir. No processo de
conquistar uma identidade segura, somos projetados em dúvidas profundas
que tentamos — particularmente quando jovens e inseguros de nós mesmos
— corrigir e negar, fingindo grandes certezas. Entretanto, por mais difícil que
seja tornarmonos nós mesmos, é ainda mais difícil descobrir em que
consiste esse nós — reconhecer quais os componentes essenciais e quais
os acidentais de nossa personalidade. Somente se pudermos discriminar
com segurança esses traços teremos desenvolvido nossa identidade.
Justamente porque todos temos características das quais não gostamos ou
que não aprovamos, ou sobre as quais podemos ter nossas dúvidas,
conhecer a nós mesmos é uma realização difícil. Os rodeios na busca da
identidade podem ser dolorosos e perigosos. Testamo-nos — não raro sem
saber que é isso que estamos fazendo—, e depois temos que refletir sobre o
que esses testes revelam a nosso respeito.
Sejam quais forem as particularidades da situação, seja qual for a idade do
menino ou da menina, a empada dos pais com relação à diticil batalha do filho
pela individualidade, e a simpatia por suas tentativas de descobrir, afirmar e,
finalmente, definir e testar a si próprio são de suprema importância para a
criança. Ela precisa da sua simpatia como um meio emocional, para que seja
capaz de construir uma identidade viável e consistente que lhe permitirá lidar
com a vida de modo autêntico. No que diz respeito ao crescimento de nosso
filho em direção à individualidade, devemos manter uma atitude interior de
boas
127
vindas, mesmo que seus atos no momento sejam confusos; a expressão externa
dessa atitude, porém, deve mudar de acordo com as formas variantes que tal
busca de identidade toma à medida que a criança amadurece.
Quanto mais nova a criança, mais essa atitude básica deve traduzir-se num
comportamento dos pais que mostre claramente seu desejo de ajudar o filho a
desenvolver a própria identidade, por exemplo, com demonstração franca de
aprovação e prazer quando a criança dá passos positivos no sentido de se afirmar.
A participação ativa dos pais é necessária porque a identidade primitiva da criança
desenvolve-se inteiramente ao redor deles; sua identidade só será de natureza
positiva, se estiver em harmonia com as atitudes dos pais em relação ao filho.
Será uma identidade fragmentada, se as atitudes dos pais forem parcialmente
negativas.
Quando as crianças experimentam que o que são e fazem dá prazer aos pais,
ficam contentes e sentem-se importantes, uma vez que são elas que os pais
reconhecem como a fonte de seu prazer. Nesse sentido, a aprovação patema
torna-se o incentivo para a formação de um eu, permitindo às crianças sentirem-se
reconhecidamente elas mesmas, diferentes de todos os outros. A importante
substituição do sentimento das crianças de que o que elas fazem dá prazer, pelo
pensamento de que são elas, em si próprias, que dão prazer, ocorre durante os
primeiros anos de vida. Falando tecnicamente, o prazer que os pais sentem com o
filho proporciona as experiências de que ele precisa para desenvolver seu
narcisismo, isto é, o amor-próprio que é a fonte permanente do desejo de construir
uma personalidade singular que se ajuste melhor a ele.
Paradoxaimente, o desenvolvimento da singularidade começa quando a criança
repete uma coisa que fez e que proporcionou aos pais — e através deles, a si
própria — prazer. Isso se pode tornar uma faceta permanente de seu
comportamento, com o objetivo de conseguir-lhes contínua aprovação. O gozo
dessa aprovação é uma fonte do comportamento repetitivo das crianças
pequenas. É de suma importância que os pais tomem claro quais são as ações do
filho que lhes dão prazer, e deixar que a criança experimente isso repetidas vezes.
Ela precisa de indicações claras e persistentes para repetir alguns tipos de
comportamento com bastante freqüência até que se tornem habituais; a
aprovação paterna dá-lhe motivo para incorporar, de modo duradouro, essa
conduta à sua personalidade florescente.
Infelizmente, o processo que foi descrito aqui em termos positivos também pode
ocorrer de forma negativa. A criança, sentindo que recebe principalmente — ou
pior, apenas — reações de desprazer de seus pais irá, em autodefesa ou
retaliação, reagir de forma negativa não só a eles, como inclusive a si própria.
Isso, também, pode tornar-se uma faceta habitual e repetitiva de seu
comportamento, uma força motivadora na personalidade em desenvolvimento:
dando desprazer àquelas pessoas importantes que criam tamanho
descontentamento para ela, mas ao mesmo tempo, ficando profundamente
desencantada consigo própria O padrão de descontentamento e de desprazer
pode, então, tomar-se uma parte tão definida do caráter da criança quanto o
desejo de dar prazer a si própria (e fazer o que o proporciona).
Contudo, se os pais demonstram repetidamente prazer, e tudo vai bem, num
próximo passo os filhos começarão a dar satisfações mais especfficas à sua
individualidade, através de identificação parcial com os pais, selecionando
características da personalidade de cada um para moldarem sua própria Outros
contornos serão desenhados a partir de
128
O precursor do que será mais tarde o eu de uma pessoa — o que irá formar sua
identidade — é o que por bons motivos foi chamado de eu corporal. Este eu
corporal é a fundação sobre a qual todos os aspectos mais elaborados e
específicos da personalidade serão construídos, e que irá determinar seus futuros
conteúdos e estrutuas, assim como o quão segura ou frágil essa estrutura virá a
ser. o eu está contido no corpo do bebê; assim, as atitudes que ele desenvolve
com relação a seu corpo são importantíssimas. Se o percebe como agradável ou
repugnante, ou, com mais probabilidade, algo entre os dois, isso é um reflexo das
atitudes dos pais — predominantemente, daquele sob cujos cuidados costuma
ficar — com relação ao seu corpo.
Muitas experiências marcantes combinam-se para determinarem a atitude do bebê
com relação ao próprio corpo e, assim, formarem a base de seu eu. Por isso é tão
importante, por exemplo, se tem prazer na amamentação; se é uma experiência
agradável, que pode ser levada de modo tranqüilo, ou se está sendo apressado
porque a mãe tem urgência de acabai. Uma grande variedade de experiências
concorre para que o bebê forme uma visão de si próprio, um desenvolvimento que
se dá através das interações entre ele e os pais, quaisquer que sejam elas. No ato
da amamentação, que é uma experiência tão central, faz grande diferença segurar
o bebê confortável ou desconfortavelmente, a atitude com que é posto para arrotar
— que reação se tem quando ele dá uma goflula? —, e assim por diante. Se a
atitude dos pais é positiva, o bebê virá a sentir que seu corpo é bom,
129
funciona bem e tem reações que são inteiramente aceitas. Se, ao contrário, suas
reações encontram uma atitude negativa, perceberá seu corpo como inadequado,
se não ruim. No primeiro caso, o seu eu corporal será investido de conotações
positivas; no segundo, de negativas.
Essas percepções básicas são reforçadas por muitas outras experiências infantis
ser banhado, limpo, vestido, despido, ter as fraldas trocadas, ser embalado para
dormir. Muito dependerá de se o pai gosta de lidar com o corpo do bebê nessas
situações, ou se sente alguns aspectos do cuidar da criança como urna tarefa
pesada, quando não absolutamente repugnante. Se este último foro caso, o bebê
não conseguirá sentir-se bem com seu corpo e suas funções e,
conseqüentemente, consigo próprio.
Em todas essas interações e em muitas outras, não são importantes apenas os
sentimentos conscientes do adulto, mas também aqueles dos quais não tem
consciência, aí amplamente incluídos os que são reprimidos porque ele se acha
obrigado a atender bem às necessidades de seu bebê, quaisquer que sejam. Esta
última convicção interfere amiúde com a habilidade de encarar o que seriam seus
verdadeiros sentimentos se se permitisse tomar consciência deles. Por exemplo,
pode achar a evacuação repugnante, por causa de alguma coisa relacionada à
sua aprendizagem de asseio. Se é esse o caso, por mais que tente limpar as
fezes do bebê com uma atitude positiva, sua revulsão interna — da qual pode
estar de todo inconsciente, já que ela foi profundamente reprimida desde que era
uma criança pequena irá ser transmitida subconscientemente para ele. É claro que
a criança recebe essas mensagens apenas num nível subconsciente, se não por
outra razão porque em sua idade os elementos conscientes, subconscientes ou
inconscientes são difidilmente separados um do outro. Eles certamente não atuam
em separado, mas como uma unidade total de experiência. A criança, não
obstante, responde ativamente às reações íntimas do adulto, ainda que sejam
expressas por traços faciais quase imperceptíveis, ignora. dos pelo próprio adulto;
ou pelo jeito como o corpo do adulto enrijece; ou por como todo o processo é feito
às pressas; ou não tanto pelas palavras que acompanham o que o adulto está
fazendo, como pelo tom com que são pronunciadas; ou pelos sentimentos
veiculados através da manipulação do corpo do bebê; ou por inúmeros outros
sinais.
Por conseguinte o desenvolvimento da individualidade começa mesmo é na
infância, quando o comportamento dos pais exprime — ou não consegue exprimir
— seu interesse e preocupação com o corpo do filho e com o que ele é capaz de
fazer, e a convicção deles de que seu corpo é valioso, merecedor de todo amor e
carinho. Sinais são dados diariamente. Por exemplo, quando um bebê atira coisas
fora do berço e espera que as devolvamos para que possa jogá-las novamente,
está testando se, apesar de suas dúvidas, é verdade que ele pode atuar nesse
mundo.
É muito mais diflcil ter empatia com nosso filho apenas dois anos depois, durante
o estágio em que começa a andar, quando faz birra e berra desesperadamente, ao
invés de gorgolejar feliz, corno fazia quando devolvíamos seu chocalho. Então sua
irracionalidade, falta de controle e desespero perturba-nos tanto que podemos não
reconhecer que ele está procurando essencialmente o mesmo que queria quando
brincava no berço: descobrir o que pode fazer, e quais as conseqüências de seus
atos.
A birra é a expressão do desespero da criança por não ter um eu que trabalhe
para ela .O problema é que, já que esse sentimento a dominou a ponto de ela
fazer birra — ou devo dizer, mais corretamente, uma vez que seu desespero fez
com que ela embirrasse
130
qualquer idade, “recolher os cacos,” o que isso significa especificamente varia com
a idade, a maturidade relativa da criança e o estado de sua relação com os pais.
O RESPEITO COMEÇA COM O EU CORPORAL
Porque todos os estágios posteriores do desenvolvimento da individualidade têm
suas bases no eu corporal, uma das melhores coisas que os pais podem fazer
pelo filho é ajudá-lo, ainda bebê, a desenvolver uma atitude saudável e positiva
com relação ao próprio corpo; fazer com que se sinta bem a respeito do que ele
pode fazer, e ao mesmo tempo demonstrando o quanto o amam e valorizam, de
modo que a criança possa fazer o mesmo. Se opai consegue instilar tais atitudes
no filho pequeno, isso irá oferecer excelentes proteções contra os riscos perigosos
que o adolescente assume cm relação a seu bem-estar tísico, pessoal e social. Se
o corpo de uma criança—e, claro, todo o resto dela — recebeu amor e carinho,
então, enquanto ela cresce, descobre e, posteriormente, estabelece seu eu. irá
internaLizar esse amor e carinho que seu corpo recebeu corno respeito por ele e
por si próprio como pessoa. O apreço paterno pelo corpo do filho e pelo que ele
pode fizer eventualmente se traduz no respeito e no apreço da criança por seu
próprio corpo, num desejo de mantê-lo inviolado — seja pelos perigos envolvidos
em dominar o mundo exterior através de proezas flsicas arriscadas, por enfrentar
pressões internas deixando dc comer, como na anorexia, por comer em excesso,
como na bulimia, pelo uso dc drogas, ou por abusar da sexualidade.
Era mais fácil transmitir convincentemente essas atitudes paternas numa época
cm que mesmo as crianças muito doentes eram tratadas em casa pelos pais. E
numa sociedade onde reinava a escassez, fornecer boa comida era, em si
mesmo, urna demonstração do grande interesse dos pais pelo bem-estar do filho.
Aqui, também, atitudes que no passado podiam ser transmitidas através de ação
direta devem hoje em dia ser insinuadas de maneira mais sutil e psicológica. Mas
o respeito pelo corpo e pelo eu ainda estão enraizados na percepção, pela
criança, do modo como ela e seu corpo foram tratados pelos pais.
Assim, no longo processo de desenvolvimento de uma identidade pessoal da
criança, que em sua forma interna mais primitiva só é alcançada na adolescência,
os atos e atitudes dos pais podem constituir tremento apoio ou obstáculo. Para
fazer com que cada passo sucessivo seja construtivo no desenvolvimento,
primeiro, de um eu e, depois, dc uma identidade pessoal rica, o pai deve tomar
muito clara sua aprovação desse crescimento em direção à independência; sem
isso, cada nível alcançado pode ficar abalado, uma fundação pobre para que
sobre ela se possa construir futuramente.
Existem, é claro, muitos problemas envolvidos na experimentação da criança com
o que ela pode fazer para e por si mesma à medida que começa a dominar seu
ambiente. A criança que começa a andar entra em todo o tipo de apuro quando
tenta explorar e compreender o mundo. Aqui, como em tantas outras situações da
criação dos filhos, é praticamente impossível aprovar tudo o que ela faz, ficar
satisfeito e — quando flão — encorajála, e suprimir todas as proibições. As
respostas paternas não podem ser sempre positivas; simplesmente têm que haver
“nãos,” além dos “sins,” sendo que muitos desses últimos são inaceitáveis para
uma criança, que os considera tão ofensivos quanto os “nãos” .
O que é essencial para que a criança venha a gostar de ser ela mesma — e
desenvolver o seu eu — é, em primeiro lugar, que sua experiência da aprovação
paterna sobrepuje
a experiência da desaprovação. Além disso, a aprovação deve ser acompanhada
de elogios
134
sinceros e deleite interior por parte dos pais (e mais tarde de outros adultos
importantes na vida da criança) e, em ocasiões apropriadas, acentuada com
recompensas adequadas. E as desaprovações devem ser verbalizadas o mais
brandamente possível, de modo a criar o mínimo de ansiedade e
desencorajamento.
Isso requer que o pai evite ansiedades ou aborrecimentos sobre o que a criança
está fazendo; ou, se não é possível, que tenha certeza de que tais sentimentos
são proporcionais apenas à situação do momento. De fato, as reações paternas
freqüentemente se estendem além do que as condições do presente justificam,
voltando-se para preocupações com o futuro; e esse tipo de ansiedade pode
provocar um rigor injusto ou uma inibição intensificada. Isso é duplamente
lamentável porque a criança se relaciona apenas com a situação presente, e
pensa que os pais estão fazendo o mesmo. Do mesmo modo, quando a
preocupação do pai está limitada ao problema atual, e não agravada por
considerações sobre possíveis aborrecimentos futuros, é muito mais fácil pensar
em condutas alternativas para propor à criança. Não preciso mencionar que
qualquer atitude negativa com relação ao comportamento — ou aos planos — da
criança não deve ser-lhe estendida, nem a seu desejo de explorar ativamente seu
mundo, uma vez que só assim ela pode desenvolver seu eu, sua inteligência e sua
capacidade de formular juízos.
RESTRINGINDO O CRESCIMENTO
Se por algum motivo os pais, em vez de encorajarem o desenvolvimento do eu do
filho, criam estorvos, a criança pode renunciar a seu eu florescente a fim dc obter
uma pseudosegurança através de uma fusão com a mãe — ou quem quer que
tenha tomado seu lugar, quer na realidade ou em sua imaginação. Ou então,
achando a tarefa de desenvolver seu próprio eu’ muito perigosa, a criança pode
fixar-se num pseudo-eu, esforços que tipicamente resultam, na vida futura, numa
existência psicótica marcada pela despersonalização. Em ocasiões raras, isso
pode acontecer sem culpa direta dos pais, pela combinação de uma infeliz
cronometragem com outras circunstâncias.
Um exemplo: um bebê, logo após ter realmente aprendido a engatinhar,
engatinhava sobre uma mesa quando caiu num chão de pedra, sofrendo
complexas fraturas que exigiram que fosse imobilizado por longo período, ficando
praticamente impedido de todos os movimentos espontâneos dos braços e
pernas. Quando removeram o gesso, acabou aprendendo a andar, se bem que
cheio de ansiedade e incerteza. Mas seu desenvolvimento intelectual também foi
interrompido. A despeito do fato dc ter aprendido a falar enquanto convalescia,
continuou incapaz de expressar qualquer idéia própria; seu desenvolvimento
intelectual foi tão severamente bloqueado que aos sete anos de idade era
considerado débil mental. Sem ser propriamente autista, apresentava diversos
sintomas de autismo, inclusive a ausência do “eu” no vocabulário. Foram precisos
vários anos de terapia para desfazer essa situação, e outros tantos até que ficasse
claro que experimentara o fato de ter sido engessado como um castigo por ter
tentado locomover-se, e como um aviso para que não desenvolvesse qualquer
independência — isto é, um eu.
Como em geral acontece, foi uma combinação de experiências internas e externas
que concorreram para uma interrupção tão completa no desenvolvimento do eu. O
gesso restritivo e doloroso armou o cenário, mas a causa verdadeira da tragédia
do garoto estava na atitude da mãe: quando começou a tentar locomover-se
depois de retirado o gesso, ela
135
— superansiosa, temendo uma possível repetição do acidente, pelo qual se
culpava por não ter tido cuidado suficiente para impedir a queda da criança — não
podia ficar contente com os esforços que ela fazia para locomover-se de novo. Ela
respondia a esses esforços com enorme ansiedade, expressa em advertências
zangadas ou num silêncio ainda mais impressionante. Tudo isso alertava a criança
para a onipresença de perigos desconhecidos, tão grandes que, para eles, não
havia sequer palavras. Ele sentia que a única coisa segura era desistir de
qualquer iniciativa de locomover-se, não tanto fisica quanto intelectualmente,
porque só se subordinasse seu eu ao da mãe, poderia cada um deles sentir-se
relativamente seguro, e ele sentir-se aceito por ela A mistura frustrante da
satisfação do menino em sua recém-adquirida, mas ainda limitada éapacidade de
se movimentar e a terrível ansiedade que isso evocava na mãe expôs o garoto a
sinais tão contraditórios que ele não ousava tomar-se um eu.
Ele não conseguia coordenar a confusão perplexa entre sua experiência de que
era vantajoso poder movimentar-se e a consciência de que essa mobilidade
projetava sua mãe — de quem ele dependera inteira e exclusivamente enquanto
engessado — numa grave ansiedade e culpa Combinado com a lembrança,
quando muito indistinta, do fato que o levou a ficar imobilizado e que ele
experimentou como um castigo por sua auto-afirmação (locomover-se), este
paradoxo criou nele uma dúvida incontrolável sobre se deveria ou não desenvolve
um eu. Como conseqüência, movimentava-se apenas quando mandado, ou
quando sentia que essa movimentação era aprovada pela mãe. Entretanto, devido
à ambivalência e ansiedade da mãe quanto à sua locomoção, sua aprovação era
uma mensagem que ele raramente recebia com clareza. Podia mover os
membros, mas apenas de modo rígido, como um autômato cujos movimentos
fossem controlados externamente; seus movimentos não pareciam originar-se de
sua própria vontade, e nunca eram espontâneos.
Assim, aprendeu a locomover-se sem nunca ter a certeza de que mover o corpo
era um comportamento aceitável. Incapaz de se movimentar com liberdade, não
pôde desenvolver um eu corporal baseado na capacidade de decidir quando e
como se movimentar, sentimento sobre o qual toda a individualidade futura é
construída. A ansiedade materna que acompanhava qualquer movimento —
mesmo os que ela conscientemente aprovava — e a culpa que ela sentia pela
falta de jeito do menino por que também se responsabilizava, impediam-no de
qualquer alegria com sua mobilidade, e não permitiam o desenvolvimento da
espontaneidade nos feitos de seu eu corporal. Mas embora possamos nos
movimentar sem espontaneidade, sem ela não podemos ter pensamentos
originais — destituídos dela, os pensamentos ficam estereotipados, oriundos de
fora, incapazes de expressar qualquer eu interior.
É óbvio que esse é um exemplo extremo: dffidilmente as coisas chegam tão longe
da linha normal de desenvolvimento, mesmo quando, num momento crucial, uma
doença ou desgraça interrompe o surgimento do eu corporal de uma criança
Mesmo nesse caso, se a ansiedade e a culpa da mãe tivessem sido menos
intensas, se o prazer que sentiu ao vê-lo recobrar a mobilidade tivesse sido maior
e expresso com mais clareza, o impacto do 1 trauma original (ter sido engessado)
teria sido menos intenso.
Um resultado diferente também teria sido possível se as atitudes temerosas da
mãe tivessem sido contrabalançadas pela reação de outras pessoas significativas,
principalmente o pai, que não estando presente quando a criança caiu da mesa,
não se sentiria
136
ctãpado a esse respeito. Assim, seu prazer com o fato de o filho voltar a tornar-se
fisicamente ativo não teria sido uma mensagem ambivalente. Além do que, um
menino em crescimento tende naturalmente a identificar-se como pai, cujas
reações estão de acordo com as tendências do desenvolvimento do filho em
direção à conquista de um eu independente. Infelizmente, o pai quase nunca
estava em casa quando o menino estava desperto e, desapontado com ele por
causa da longa doença, perdeu o interesse pelo filho durante a demorada
convalescença.
Este não é senão outro exemplo da importância de ter os dois pais à mão, de
modo que, quando a relação com um é problemática, a criança possa achar
consolo nas respostas diferentes do outro, e usá-las para contrabalançar as
reações do primeiro. Nesse caso, a culpa opressiva interferia com os sentimentos
positivos da mãe para com o filho, uma vez que, inconscientemente, ela o
responsabilizava pelo acidente e ressentia-se com ele, por isso. As coisas
pioraram porque o pai, ao invés de apoiar a esposa em sua angústia e tentar
aliviar sua culpa — o que teria ajudado bastante, já que ela o respeitava —
aumentou sua culpa, acusando-a de ter sido descuidada e causado todo o
problema.
Quando existem dois pais que estão envolvidos emocionalmente nas minúcias da
vida do filho, eles envolvem-se diferentemente, já que são duas pessoas
diferentes com reações diferentes para o mesmo fato. Assim, nenhum
acontecimento precisa ser tão completamente devastador para a criança, como
pode suceder quando as reações de um dos pais não são atenuadas ou
neutralizadas pelas do outro. E a criança sofre menos nas situações em que um
dos pais, profl.indamente ansioso ou desapontado, encontra alívio para seus
sentimentos através do apoio do cônjuge.
A história desse garoto é incomum, mas conheci outros casos nos quais a inibição
da motricidade na infância gerou interferências severas na aquisição de um
sentimento de individualidade. Essa história mostra o impacto danoso que a
ansiedade dos pais — mesmo sendo compreensível em muitas situações — pode
provocar quando as atitudes da criança pequena, nos seus esforços para
descobrir o que pode fazer por si própria, são estorvadas ou não conseguem ser
ratificadas pelo prazer dos pais com sua movimentação em direção ao mundo,
único fator que lhe permite começar a estabelecer os rudimentos de um eu.
A “REBELIÃO ADOLESCENTE”
Os adolescentes precisam que os pais mantenham os próprios valores, mas não
que os defendam com excessiva veemência. O motivo para essa aparente
contradição é que os adolescente precisam definir-se não apenas ao redor dos
pais e baseados na aprovação paterna, mas também contra eles, por medo de
que os pais ditem suas personalidades, ao invés deles mesmos. Para terem
certeza de que são o que eles querem ser, até certo ponto tentam ser também
aquilo que os pais não querem que sejam, presumindo que só isso lhes pode
assegurar a independência. É esse desejo ambivalente e, com freqüência,
contraditório, que faz a vida do adolescente tão dilacerada e dilicil, tornando
também tão problemático para os pais viver com ele.
E como se esse já não fosse um conflito bastante grande para o adolescente,
ainda por cima somado aos conflitos com os pais, ele precisa também se definir
positiva e negativamente como parte do mundo mais amplo no qual se movimenta.
Se os pais são ativos
137
140
Talvez a lição de maior valor que as crianças podem aprender brincando seja que,
quando perdem, o mundo não acaba Se a criança perde o jogo, pode ganhar no
próximo, ou no seguinte. Perdendo em jogos que podem ser disp.itados de novo e
vencidos, as crianças entendem que, apesar de reveses temporários na vida,
ainda podem ter sucesso, inclusive na mesmíssima situação em que
experimentaram a derrota É claro que, para que a criança aprenda isso, seus pais
não devem enfatizar a vitória, e sim o prazer do jogo. Devem mostrar a ela que
perder não é uma demonstração de inferioridade pessoal, assim como ganhar não
é de superioridade. Os ingleses que, como nação, são conhecidos por sua grande
esportividade, têm grande admiração pelo bom perdedor. Eles sabem que é fácil
ser um bom vencedor e aquecer-se nos sorrisos do mundo e da fortuna. Mas
aceitar uma perda de bom grado e não permitir que ela nos derrote, admitir que foi
justificada pelas regras do jogo, é não apenas louvável em si mesmo, más protege
o perdedor de ter solapada sua auto-estima. Nossos filhos seriam muito mais
felizes se nossas atitudes relativas a perder fossem similares.
141
Freud via a brincadeira como o meio pelo qual a criança efetua suas primeiras
grandes realizações culturais e psicológicas, e dizia que através da brincadeira ela
expressa a si própria; isso é verdade mesmo para um bebê, cuja brincadeira
consiste em nada mas do que sorrir para a mãe enquanto ela lhe sorri. Percebeu
também o quanto e como as crianças exprimem bem seus sentimentos e
pensamentos por meio das brincadeiras. São, por vezes, sentimentos sobre os
quais a própria criança permaneceria ignorante, ou sob os quais estaria esmagada
se não lidasse com eles representando-os sob a forma de fantasia lúdica.
Até a criança mais normal e competente encontra muitas dificuldades que se Lhe
apresentam como problemas de vida intransponíveis. Mas representando-as, um
aspecto do problema de cada vez, ela pode conseguir enfrentar dificuldades
bastante complexas num processo xisso-a-passo. Usualmente o faz de maneiras
simbólicas que são muitas vezes diliceis até para ela mesma entender, reagindo a
processos internos dos quais ela própria não tem consciência, processos cuja
origem pode estar profundamente enterrada no inconsciente. Isso pode resultar
numa brincadeira que faz pouco sentido para nós no momento, ou que pode até
parecer desaconselhada, já que não sabemos a que propósitos serve ou como
terminara É por isso que, em geral, quando não há perigo imediato, é me(hor
aprovar a brincadeira da criança sem inteiferir, uma vez que ela está tão
absorvida. Os esforços para ajudá-la em seus empenhos, mesmo bem-
intencionados, podem desviá-la da busca e eventualmente do encontro — de uma
solução que lhe servirá melhor. É mais provável que nossa interferência desvie a
criança de seus propósitos, porque nossas sugestões são capazes de fazer
sentido num nível consciente, sendo, portanto, convincentes para a criança,
facilmente influenciável e ignorante das pressões inconscientes com as quais
tenta lidar. Mas, no processo de dar conselhos razoáveis, podemos impedir a
criança de dominar as dificuldades psicológicas que a assediam.
Uma menina de quatro anos reagiu à gravidez da mãe regredindo. Apesar de ter
sido bem treinada, começou a molhar-se de novo; insistia em ser alimentada
apenas pela mamadeira e voltou a engatínhar pelo chão. Isso tudo perturbou
enormemente a mãe, que,
142
prevendo as exigências de um novo bebê, contava com a relativa maturidade da
filha para tornar tudo mais fácil. frelizmente, ela não tentou impedir as regressões,
o que teria sido bastante dfficil, uma vez que a criança não estava apenas
brincando de ser um bebê, mas insistindo em agir como tal.
Depois de alguns meses desse comportamento regressivo, a menina substituiu-o
por brincadeiras bem mais amadurecidas. Agora brincava de “boa-mãe.” Tomou-se
extremamente carinhosa com sua boneca, cuidando dela de todas as maneiras e
muito mais seriamente do que antes. Tendo-se identificado no estágio regressivo
com o futuro bebê, agora, no que era claramente uma brincadeira, passou a
identificar-se com a mãe. Na época em que o irmãozinho nasceu, a menina já
havia realizado grande parte do trabalho de que precisava para enfrentar a
mudança na família e sua posição nela, e sua adaptação ao novo bebê foi mais
fácil do que a mãe esperava e temia .
Em retrospecto, pode-se ver que a criança, tendo percebido a gravidez da mãe e
que um novo bebê viria juntar-se à família, deve ter sentido medo de que o bebê
lhe privasse de suas gratificações infantis, de modo que ela mesma tentou supri-
las. Deve ter pensado que sua mãe queria uma criança pequena, o que ela não
era mais. Deve ter então decidido — se podemos chamar uma reação
inconsciente de decisão — que ela própria seria dc novo um bebê. E não haveria,
portanto, necessidade de sua mãe arranjar outro, podendo, assim, desistir da
idéia.
Já que lhe permitiram agir a partir de noções como essas, depois de um tempo a
menina deve ter entendido que ficar molhada não era tão agradável quanto podia
ter irnagínado, que poder comer uma grande variedade de alimentos tinha
vantagens definitivas quando comparado a tomar leite numa mamadeira, e que
andar e correr traziam bem mais satisfações do que engatinhar. A partir dessa
experiência, convenceu-se de que ser mais crescida é melhor do que ser um
bebê. Desistiu então de fingir que era um e, ao invés disso, resolveu ser como a
mãe — na brincadeira, ser como ela agora e, na imaginação, tomar-se, em algum
momento futuro, mãe de verdade. A brincadeira proporcionou à criança e à mãe
uma solução feliz para aquilo que, de outro modo, poderia ter resultado num
impasse dificil.
Aos quatro anos, a menina estava numa idade em que poderia agir tanto como o
bebê quanto como a mãe, e acreditar nisso. Crianças maiores não podem regredir
tão fácil e abertamente, nem acreditar, mesmo em brincadeiras, que são pais de
verdade. Para muitas, uma boa saída, quando não podem mais se permitir fingir
ser o que não são, é representar esses papéis como atores numa peça, ou num
teatro de marionetes. Como atores ou manipuladores de bonecos, têm condições
de representar as situações de maneira a proteger a sua maturidade duramente
conseguida, ao mesmo tempo em que se permitem ser tão infantis quanto o
necessário, ou mais amadurecidos do que realmente são. Desse modo, as
crianças, entregues a seus próprios artilïcios, encontram com freqüência soluções
para os problemas que as affigem. Mas não serão capazes de fazê-los, se nós,
pensando sabermos melhor do que e como elas devem brincar, interferimos por
motivos nossos com o que a criança está fazendo por suas próprias razões.
Não são apenas problemas de vivência desse tipo que as crianças tentam
dominar através da brincadeira. Com freqüência, brincar faz parte de seu esforço
de simplesmente entender o mundo. A menininha que cuida das suas bonecas
como sua mãe faz com ela, e as crianças que brincam de trabalhar como os pais,
estão na verdade, tentando entendê-
143
los, a princípio como pessoas, mas também por suas ocupações, imitando seus
atos. A criança pequena que brinca imitando os irmãos mais velhos está tentando
entendê-los e, ao mesmo tempo, o que significa ficar mais velha
Os esforços lúdicos da criança podem ser realmente autocurativos, como quando
brinca de cuidar de bonecas, ou de animais de pano ou de verdade, como gostaria
que os pais cuidassem dela, e assim, por substituição, tenta compreender as
deficiências sentidas. Infelizmente os adultos não reconhecem amiúde a
importância da brincadeira infantil e, portanto, sentem-se em liberdade para
interferirem nela. Insensíveis ao significado pro. fundo que aquela brincadeira
absurda e repetitiva pode ter, podem privar seus filhos da chance de passar horas
sem fim fazendo o que parece ser a mesma coisa repetidas vezes. Dc fato, é raro
as crianças repetirem do mesmo modo o seu processo de brincadeira, exatamente
com o mesmo detalhe. A observação cuidadosa revela minúsculas mudanças no
padrão, refletindo as direções variáveis que a brincadeira toma se entregue a seu
próprio curso. E quando não há variação — quando a brincadeira é exatamente
idêntica de um dia ou momento para o outro—, esse fato em si carrega uma
mensagem significativa. A repetição verdadeira nos padrões do brinquedo é um
sinal de que a criança está lutando com questões de grande importância para ela,
e de que, embora ainda não tendo sido capaz dc encontrar uma solução para o
problema que explora através da brincadeira, continua a procurá-la.
O VALOR DA BRINCADEIRA
144
outra recebida por sinais subliminares (que a própria pessoa que fala pode no se
dar conta de estar fazendo), a criança fica totalmente confusa, pois o que lhe foi
dito é o oposto do que sente ser a verdade. Isso a impedirá tão eficazmente de
perseverar diante de dificuldades quanto as críticas por seu fracasso ou os elogios
apenas para os sucessos. As ambições compreensíveis do pai com relação ao
filho, e o desejo de que ele tenha sucesso podem, com freqüência, constituir
impedimentos à habilidade da criança desenvolver a persistência diante de
dificuldades.
Aqui, como em tantas outras situações, a profunda convicção íntima de que o filho
vai sair-se bem, não importa o tempo que leve, é a melhor proteção contra a
necessidade de pressioná-lo a realizações, ou a tendência a ficar desapontado
quando fracassa — assim como contra fazer falsos elogios que os pais não
sentem, realmente, serem merecidos. A criança sabe muito bem se seus esforços,
mesmo terminando em fracassos, são merecedores de elogios ou não; e elogios
que ela sabe não serem merecidos dizem-Lhe que temos uma má opinião a seu
respeito porque acreditamos que não pode fazer melhor. A fé íntima do pai em seu
filho e no que ele está fazendo pode mover montanhas, incluindo as das dvidas da
criança sobre si mesma Deixar suas próprias dúvidas em repouso permite à
criança tentar e tentar novamente, sem experimentar sentimentos destrutivos de
derrota.
Consta que Einstein, aos três anos, ainda não conseguia falar. Preferia comunicar-
se com— e, se os adultos fossem receptivos, através de — blocos de construção
ou quebra- cabeças. Podemos supor que, mesmo nessa idade, seus pensamentos
fossem de uma natureza que não podia ser comunicada ou tornada compreensível
por meio da linguagem de uma criança de três anos. Mais tarde, ele fez duas
declarações que iluminaram o que pensava sobre o valor dos jogos combinatórios
(como os quebra-cabeças) para o desenvolvimento da mente. “O homem,”
Einstein escreveu, “procura formar para si próprio, do modo que lhe for
conveniente, uma imagem simplificada e lúcida do mundo, e assim superar o
mundo da experiência, tentando substituí-lo até certo ponto por essa imagem.” O
que Einstein parece estar dizendo é que as crianças superam a experiência
derrotante de viver num mundo que não podem dominar, criando um mundo mais
compreensível que elaspodem entender, que fazem isso de uma forma só
conveniente para elas, e que só elas podem saber que forma é essa.
147
Alguns pais (em geral por motivos que na maior parte das vezes, ignoram) nãd
ficam satisfeitos com o modo como o filho brinca. Então, começam por dizer-lhe
como devem usar um brinquedo, e, se ele continuar seguindo sua própria
inclinação, “corrigem-no,” esperando que use o brinquedo de acordo com seu
suposto propósito, ou do jeito que acham que deva ser utilizado. Se insistem
nessa orientação, o interesse da criança pelo brinquedo — e, por extensão,
também pela brincadeira em geral — tende a declinar, porque o projeto passou a
não ser mais dela, e sim dos pais.
Como se isso já não fosse bastante ruim, mais tarde podem aparecer sérias
conseqüências. É provável que esses pais continuem a dominar e dirigir as
atividades do filho, motivados pelas mesmas tendências internas que não lhes
permitem gozar a brincadeira inteiramente do jeito que ele a desenvolveu. Mas
agora tudo acontece num nível intelectual mais complexo. Os pais podem tentar
melhorar o dever de casa, sugerindo idéias muito sofisticadas, e que, de qualquer
modo, não são do filho. Em conseqüência, ele pode perder o interesse em
desenvolver idéias próprias, que empalidecem em comparação às dos pais. O que
ele esperava, falando aos pais sobre o dever de casa, era a apreciação de seus
esforços, o estímulo no sentido de que suas idéias eram valiosas, e não uma
demonstração de que essas idéias não eram boas o suficiente. Esses pais podem
ficar perpiexos ao descobrir que seus esforços para ajudarem o filho foram a
causa de sua relutância em interessar-se pelo dever de casa, quando não a
recusa total em fazê-lo. Mas isso é a conseqüência de ter ficado repetidamente
desapontado com as próprias tentativas, porque as idéias dos pais eram muito
melhores que as dele.
Einstein, em suas observações sobre a importância da brincadeira no
desenvolvimento da habilidade de formar construções lógicas e criar uma imagem
própria do mundo, também pode ter pensado sobre o que se requer para que isso
aconteça: tanto a criança como o adulto precisam ter em abundância o que em
alemão é chamado de Spielraum. Mas Spielraum não é, originariamente, um
quarto de brinquedo. Apesar de a palavra também possuir esse significado, seu
sentido original é liberdade de ação, abundância de espaço, não apenas para
mover o corpo, mas para mover a mente; liberdade de açào para experimentar
com coisas e idéias à vontade ou, falando coloquialmente, para brincar com
idéias. Essa frase sugere corretamente que a mente criativa brinca com idéias
como a criança brinca com brinquedo; em geral, Isso é reconhecido. Menos
comum é saber que quando uma criança brinca com seus brinquedos, ela explora
e forma idéias, ainda que não consiga colocá-las em palavras. Do mesmo modo
que o adulto criativo precisa brincar com idéias, a criança, para formar suas idéias,
precisa de brinquedos — e muitas hroas vagas e liberdade de ação para brincar
com eles como quiser, não do jeito que os adul acham apropriado. É por isso que
precisamos dar-lhe essa liberdade, para que sua brinca deita seja bem-sucedida e
proveitosa.
148
uma fazenda ou do lar. Ao contrário, hoje em dia a brincadeira sugere uma ampla
variedade de possibilidades abertas à criança. Enquanto brincam com animais e
bonecas, caminhões e aviões, kits de médico e enfermeira e jogos de construção,
as crianças fantasiam sobre essas atividades, explorando como é ser um carteiro
ou um médico, um inventor ou um astronauta, experimentando imaginativamente
possíveis papéis adultos. Isso é muito importante hoje em dia, quando lhes
acenam com tantas oportunidades de carreira e fica dificil uma escolha sensata.
Tendo experimentado mentalmente tais possibilidades de acordo com a sua
“medida,” a criança estará numa posição melhor para escolher satisfatoriamente.
Entretanto tudo isso só funciona se não interferirmos demais. Podemos ficar
tentados a depreciar algumas das opções de nosso filho porque aquelas
ocupações em particular não nos agradam. O procedimento inverso —
supervalorizar algumas escolhas porque têm grande apelo para nós — é
igualmente nocivo. Em ambos os casos, é um equívoco reagir à tentativa de
exploração de uma ocupação pela criança como se já fosse uma escolha
definitiva. A mãe que decide que sua filha certamente crescerá para ser uma
criadora de animais ou veterinária, porque gosta demais de bichos, não auxilia à
criança. Nem ajuda a melhorar as coisas convencer-se de que a única boa vida
para sua filha é a de dona-de-casa, patinadora ou advogada. Todas as crianças
precisam que os pais as encorajam na idéia de que estão se preparando para uma
boa-vida, quer estejam se dedicando apenas a cuidas de hamsters, quer se
cansem subitamente desses bichinhos e se voltem tão exclusivamente quanto
antes para a dança ou o esporte.
FANTASIA E BRINCADEIRA
150
passado estão cheias de narrativas sobre longas horas gastas, quando
adolescentes, na beira de um rio, pensando sozinhas, vagucando pelos bosques
com seu cão fiel, ou sonhando. Mas quem hoje em dia tem tempo e oportunidade
para isso? Se um jovem tenta fazê-lo, é bem provável que os pais se affijam por
ele não estar usando o tempo construtivamente, por perder o tempo em devaneios
quando deveria estar-se dedicando aos assuntos sérios da vida E isso, apesar de
o desenvolvimento de nossa vida interna, incluindo as fantasias e devaneios, estar
entre as coisas mais construtivas que um indivíduo em crescimento pode fizer.
Os dias da maioria das crianças de classe média são cheios de atividades
catalogadas— reuniões de escoteiros, aulas de música e dança, esportes
organizados — que lhes deixam poquíssimo tempo de sobra que seja apenas
deles. De fato, são continuamente desviados da tarefa de autodescoberta,
forçados a desenvolver seus talentos e personalidades do jeito que os
encarregados dessas várias atividades acharem melhor. Isso inclui a scola,
atualmente começando numa idade que antes se considerava muito cedo para o
ensino formal. A televisão proporciona às crianças de hoje fantasias prontas, mas
o que torna isso mais pemicioso é que, não tendo tido lazer suficiente para
desenvolver uma vida de fantasia rica e pessoal — que requer tempo demorado
para emergir e crescer —, esses jovens. confiam na mídia para preencherem uxha
atividade que não podem encontrar sozinhos, porque foram privados de
oportunidades adequadas de explorar livremente seus impulsos, sonhando com
um mundo de sua própria criação. As condições da vida moderna e as atitudes
dos pais pr vam nossos filhos das longas horas e dias de lazer para pensarem em
si mesmos, um elemento essencial no desenvolvimento da criatividade, que não
pode ser adquirido em meias-horas roubadas de coisas consideradas mais
importantes pelos que direcionam suas vidas.
Goethe, falando sobre outro grande poeta, Torquato Tasso, mas, simultaneamente
se referindo a si próprio, fez questão de afirmar que o talento é mais bem nutrido
na solidão. Ele sabia, e esperava que soubéssemos, que a imaginação poética,
como todas as fantasias significativas e ricas da vida, só pode emergir de longas
horas de concentração — mais ou menos ininterruptas e divertidas — em nossa
vida interior.
Quando a criança moderna parece perdida em devaneios, muito pai preocupado
pode sugerir (ou insistir em) que use o tempo mais objetivamente. Isso não é
aconselhável. Não apenas demonstra menosprezo pela importância de a criança
modelar a própria vida interior para tornar-se um autêntico indivíduo (o que requer
grande quantidade de energia, ainda que o trabalho seja invisível), como transmite
ao jovem o sentimento de que fazê-lo é errado. Os pais podem exprimir da boca
para fora o desejo de que a criança se tome uma pessoa de verdade. Não lhe
permitindo concentrar sua energia nesse esforço árduo — energia que nesse
momento fica inviável para qualquer outra coisa — ela não estará apta a realizar
esse desejo.
Em larga medida, o fato de acriança não ter tido lazer suficiente para desenvolver
uma vida interior rica é que faz com que ela pressione os pais para obter diversão,
ou que ligue a 1V. Não é que o mau investimento dessa diversão produzida em
massa, ponha fora de circulação o bom investimento da riqueza interior; é que, à
criança, não foi dada a oportunidade de criar sua própria moeda de uma vida
interior rica Assim, num círculo vicioso, a falta de oportunidade de despender h a
parte de suas energias na vida interior e a ausência de tempo suficiente para fazê-
lo, levam a criança a voltar-se para um estímulo pronta-
151
mente utilizável que preencha seu vazio interior. Não tendo tido ensejos
suficientes de desenvolver habilidades necessárias parasonhar um elaborado
“jardim secreto” que seja seu, a criança cai de volta nas atividades ocas que os
pais proporcionam ou nas quais insistem; ou mesmo num passatempo ainda mais
vazio, que impede que esse “jardim secreto” seja, primeiramente, criado e, em
seguida, preenchido com as belas flores de sua própria imaginação que à medida
que ela cresce, poderiam transformar-se em imagens mais maduras que dariam
um significado mais profundo à sua vida.
E claro que é muito menos trabalhoso ter nosso tempo Qrganizado pelos outros —
com aceitação ou ressentimento, seja qual for o caso — do que desenvolver no
processo lento e dfficil de tentativa e erro nossa própria iniciativa para organizar
nossa vida. A iniciativa é pobremente desenvolvida em crianças forçadas a contar
com outros para a organização de suas vidas.
Quando a criança, visivelmente, dá muitas partidas falsas ou cai em freqüentes
erros quando tenta organizar sua vida, os medos do pai tendem a se impor. Então,
ele priva-a não só da oportunidade de autodesenvolvimento mas, pior, da
necessidade de fazê-lo por si mesma Sem oportunidade ou necessidade, a
maioria das crianças não desenvolverá suas próprias iniciativas de organizar a
vida, e a convicção não-expressa do pai sobre sua incapacidade de fazê-lo,
transforma-se numa profecia autoconsumada. Devemos lembrar tambem que a
iniciativa não é desenvolvida e testada com base naquelas raras ocasiões em que
a criança, por acaso, tem uma oportunidade de ser realmente ela mesma por um
curto período de tempo, muito menos quando, ao fundo, está sempre assomando
alguma atividade organizada e cobrada. A iniciativa não crescerá num solo estéril,
embora haja, ocasionalmente, raras crianças que, de algum modo, possuem essa
iniciativa e seguem vivendo suas vidas apesar de todos os obstáculos. É
extremamente dificil aprender a viver por nossa própria iniciativa, e isso requer
coragem e determinação, o que muitas crianças só acumularão se tiverem de
fazê-lo. Se não, deixarão que outros cuidem desses assuntos; ao mesmo tempo, é
provável que se ressintam disso e, no fim das contas, fiquem profundamente
insatisfeitas consigo mesmas, com seus pais e com suas vidas.
Sem dúvida, existem certos perigos inerentes a deixar que a criança desenvolva
sua iniciativa. Nem adiante encorajar uma criança a fazê-lo, como alguns pais
tentam. Em tais circunstâncias, as ações da criança podem parecer fruto de sua
própria iniciativa, mas ela sabe que não são — está fazendo o que os pais
esperam ou exigem dela Portanto tudo que um pai pode fazer é conscientizar-se
da existência dos perigos quando o filho começa a desenvolver a iniciativa de gerir
realmente importantes aspectos de sua vida; então o pai pode dai o melhor de si
para minimizar as más conseqüências dessa iniciativa. Quando um filio está apto
a desenvolver sua iniciativa enquanto ainda é pequeno, os perigos são
relativamente insignificantes, e facilmente se podem evitar conseqüências
extremas. Por outro lado, algumas vezes um adolescente toma de súbito a vida
em suas próprias mãos de modo ressentido, defensivo e agressivo. Se esse é o
caso, em geral essa pessoa foi privada de qualquer desenvolvimento real de sua
iniciativa, e então a possibilidade de cometer sérios erros, de provocar perigos
muito mais graves é, com freqüência, bem grande.
Com oportunidade suficiente para alargar seus pensamentos, a maioria das
crianças começa logo a usar jogos de fantasia para colocar ordem em seu caótico
mundo interior, ou para libertar-se de seus indesejáveis aforamentos. Fazendo
isso, começam a aumentar suas capacidades de enfrentar a realidade. Todas as
crianças tentam voar para um mundo
152
Nossos filhos não têm menos capacidade para a fantasia que outras gerações. O
problema hoje é que não se concede espaço suficiente para que as fantasias
pessoais se desenvolvam, e elas são continuamente violadas pelos produtos de
fantasia impessoais e desindividualizados da mass media. Com isso, as fantasias
e especulações unicamente pessoais de nossos filhos não conseguem animar
suas vidas “reais.” Além do mais, a ênfase no pragmatismo e na realidade interfere
com a oportunidade de nossos filhos, em casa ou no colégio, se entregarem à
fantasia lúdica de sua própria criação. E mesmo que sejam encorajados nessa
atividade, exige-se cedo demais que falem sobre elas ou que as expressem por
outras formas, muito antes de que estejam maduras para a expressão. Quando a
criança revela sua fantasia, os adultos ficam freqüentemente ansiosos para
influenciá-la, fazendo perguntas ou afirmando sua aprovação e deleite, o que
elimina a necessidade de a criança ganhar clareza sobre si própria. Em todo caso,
a fantasia é abortada antes de florescer em plenitude. Se isso acontece
repetidamente, muitas crianças ficam desiludidas com suas próprias fantasias, não
por falta do interesse dos adultos, mas por seu interesse prematuro e excessivo.
Os esforços para ajuda-la a desenvolver suas fantasias fazem com que sinta que
elas não são mais suas.
Infelizmente, virou moda em certos círculos chamar de “criativa” quase qualquer
atividade não-estruturada da criança Esta aceitação acrítica da fantasia como
realidade impede a construção de uma ponte entre os dois mundos. As crianças
testam os limites que a realidade impõe, representando suas fantasias. Por
exemplo, uma criança estã aborrecida com alguém, e imagina cortar fora a cabeça
da pessoa. Isso não tem importância na fantasia, porque no momento seguinte
pode colar a cabeça de novo, e tudo bem. Mas na realidade, é claro, as coisas são
diferentes.
Há um conhecido conto de fadas sobre uma esposa a quem são concedidos três
153
desejos e que desperdiça um, pedindo algumas salsichas. O marido fica furioso
por tanta tolice e, sem parar para pensar, deseja que as salsichas fiquem
pregadas no nariz da esposa. Quando isso ocorre, ele entende como precisamos
ser cuidadosos com nossos desejos, e o que pode acontecer quando se tornam
realidade. Não havia nada a fazer senão gastar o último desejo pedindo que as
salsichas saíssem do nariz da mulher. E assim o casal aprende o que acontece
quando a fantasia é submetida aos testes e limitações impostos pela realidade.
A criança aprende a mesma lição importante quando vai além da fantasia de cortar
uma cabeça e efetivamente decapita seu bichinho de brinquedo. Ela está
submetendo sua fantasia às limitações da realidade, visualizando, assim, em que
consiste o seu desejo — o que não pode fazer, enquanto este continua a ser mera
fantasia. Aprende logo que uma cabeça não pode ser reintegrada facilmente ao
corpo. Com tais experiências, suas fantasias vingativas — “Vou arrancar fora sua
cabeça” — mudam aos poucos. Ela pensa: “Agora eu quero fazer uma coisa
drástica, mas sei que não vou fazê-lo, porque aprendi que isso causaria
conseqüências irreversíveis. Por conseguinte, os desejos do inconsciente são
moderados pelo impacto das limitações da realidade, tal como vivenciada na
brincadeira. As idéias extremas abraçadas por alguns jovens, e sua crença de que
elas podem ser logo realizadas mostram quão poucas oportunidades tiveram em
crianças de aprender, através da brincadeira, -a respeitar as limitações que a
realidade impõe na realização da fantasia .
INTEGRANDO OS MUNDOS INTERNO E EXTERNO
Existt um período ótimo, no qual muitas das experiências humanas podem
contribuir mais para o nosso desenvolvimento. Se não as experimentarmos nesse
tempo, pode ser que elas jamais venham a ter um impacto tão construtivo sobre a
formação de nossa personalidade. A idade das brincadeiras é o tempo certo para
construirmos a ponte entre o mundo do inconsciente e o mundo real. De fato, essa
é a principal tarefa para o desenvolvimento nessa idade. Mais tarde na vida,
depois que os dois mundos estiveram separados tempo demais, pode ser
impossível integrá-los— ou pelo menos integrá-los muito bem. E por isso que
algumas pessoas que não conseguiram essa integração escapam para um mundo
de fantasia induzido por drogas, enquanto outras suportam extremos esforços iii-
telectuais para alcançarem essa integração, por exemplo, através da psicanálise.
Esforços
terapêuticos não são sequer um segundo melhor meio de alcançar a integração,
mas se esse passo do desenvolvimento não é dado, a própria vida pode vir a ser
experimentada como profundamente insatisfatória.
A brincadeira que recorre à imaginação é muito importante porque proporciona os
meios básicos para a integração dos mundos interno e externo. Com ela,
inclusive, a criança constrói uma ponte por onde passar dos significados
simbólicos dos objetos para a investigação ativa de suas verdadeiras funções e
particularidades.
Um exemplo pode ilustrar. Quando uma criança constrói uma torre de blocos e
depois a derruba, não é apenas porque, depois de ter agido “construtivamente,”
suas tendências destrutivas tenham adquirido ascendência e encontrado
expressão. Há um significado muito mais profundo nessa atividade. Na parte da
brincadeira em que estava cõnstruindo, trabalhou sujeita às limitações impostas
pela realidade sobre sua imaginação — sua realidade interior. Mesmo enquanto
assegurava o domínio sobre os blocos, fazendo
154
com que se ajustassem ao seu projeto, ela ainda precisava fazer concessões à
natureza dos materiais, à gravidade, às leis do equilíbrio e sustentação. Em
revolta contra essas restrições, ela destrói a torre — não tanto para dar vazão a
suas tendências destrutivas como para reafirmas seu domínio sobre um meio
relutante. Assim, o que acontece é muito mais significativo que a simples
alternância de ações construtivas e destrutivas. O que essa prática realmente
espelha é uma experiência crucial de aprendizagem sobre as realidades interna e
externa, e sobre o domínio.
A criança aprende, com sua brincadeira, que pode ser o senhor supremo — mas
apenas de um mundo caótico. Se quer assegurar pelo menos algum domínio
sobre um mundo estruturado e organizado, ela deve renunciar a seu desejo
‘infantil” de domínio total e chegar a um acordo entre esses desejos e a dura
realidade — i.e., as limitações de construir com blocos. Aprende, enquanto repete
seguidamente a experiência, que o desejo de exercer domínio total, derrubando a
torre de blocos, leva ao caos.
Eventualmente, com a repetição da brincadeira, as vantagens de um acordo, no
qual a realidade interna toma conhecimento da natureza da realidade externa,
tornam-se tão óbvias que o mesmo é aceito como a ordem correta das coisas — a
princípio e por algum tempo de modo relutante, mas, finalmente, de boa vontade.
Só através dessas experiências a criança aprende a moderar suas exigências
internas à luz do que é factível no mundo cm que vive. Brincar é o processo pelo
qual ela se inteira dos dois lados da realidade — interno e externo—, e começa
não só a fazer as pazes com as legítimas exigências de ambos, mas também a
aprender como satisfazê-los em beneficio próprio e dos outros.
155
15.Compreendendo a
Importância da Brincadeira
Não deveríamos procurar os primeiros fraços das atividades poéticas já na
criança? Talvez devêssemos dizer Cada criança, em suas brincadeiras; comporta-
se como um poeta, enquanto cria seu mundo próprio, ou, dizendo melboi
enquanto trans- põe os elementos formadores de seu mundo para uma nova
ordeni mais agradável e conveniente para ela
— FREUD, em “O Poeta e a Fantasia”
AMAIORIA DOS PAIS deseja criar bem seus filhos, e faz tudo que pode para
alimentar as habilidades e atitudes que acredita levarem à satisfação pessoal e
ao sucesso. Em algumas áreas, seu encorajamento vem naturalmente, sem
qualquer esforço especial. Por exemplo, muitos pais acham fácil implantar um
interesse na leitura, nos es- portes e na música, em seus filhos, meramente
vivendo suas vidas e fazendo o que lhes interessa mais. Mas quando se trata
de reforçar a habilidade primitiva e mais básica de ligar-se a uma tarefa,
mesmo quando ela é exigente ou frustrante, os pais podem não reconhecer
que brincar com o filho é um fator crucial no desenvolvimento desse traço. As
razões fundamentais para isso são bastante óbvias. Os pais lêem porque
gostam, o mesmo acontece com relação à música ou aos esportes. Desse
modo, quando lêem para os filhos, ouvem ou tocam música com eles, jogam
bola com eles, estão encorajando o interesse na leitura, música ou esportes
através de atitudes espontâneas e muito inconscientes. Sen adultos, é raro se
permitirem, do mesmo modo, brincar com brinquedos, de forma quç não há
estímulo autQmático, através das predileções paternas, para a maior parte das
atividades lúdicas das crianças.
As atitudes internas dos pais sempre têm um grande impacto sobre os filhos;
assim, modo pelo qual os pais se sentem a respeito das brincadeiras, a
importância que lhes dão ou a falta de interesse nelas nunca passam
despercebidas pelo filho. Só quando os pais - à brincadeira não apenas
respeito e tolerância, mas seu interesse pessoal, a experiên lúdica propicia à
criança uma base sólida sobre a qual desenvolver sua relação com eles
posteriormente, com o mundo. Esse ponto é facilmente compreensível, se
bem que, certa forma, os pais costumam não ter êxito em mostrar um
compromisso real com atividades lúdicas dos filhos, a despeito de afirmá-lo
da boca para fora, e de comprar brinquedos.
156
Algumas vezes, por exemplo, nos referimos a uma tarefa aquém de nosso
interesse como “mera brincadeira de criança.” A frase indica o abismo que separa
o mundo adulto do infantil, e certa porção de desprezo com relação à brincadeira.
Com muita freqüência, os pais vêem a brincadeira como um passatempo “infantil”
— e isso apesar de sua compret nsão da parte importante que ela ocupa na vida
da criança.
Entretanto não foi sempre assim. A separação do mundo da criança do mundo
adulto é um desenvolvimento relativamente recente da história humana, que
demorou a chegar. Até o século XVI1I, e até mais recentemente, em grande parte
do mundo, crianças e adultos brincavam dos mesmos jogos, quase sempre juntos.
Assim, havia uma compreensão imediata entre adulto e criança não só enquanto
brincavam juntos, mas enquanto se observavam mutuamente participando de uma
coisa que era pessoalmente significativa para ambos.
BRINCADEIRA E JOGO
157
158
compreendi espontaneamente sua importância para meu pai; e, foi a partir de sua
experiência que ele teve plena compreensão e empatia pelo que esse jogo
significava para mim e meus amigos.
Com nosso interesse e prazer comuns no jogo de cartas, era apenas natural que,
quando a ocasião surgisse, como num feriado chuvoso, meu pai jogasse conosco
por longas horas os mesmos jogos que jogava com os amigos. Contudo, essa era
uma experiência completamente diversa, mesmo que o jogo fosse idêntico.
Quando meu pai jogava conosco, sua função e atitude era a do pai que tinha
prazer na atividade porque ela era prazerosa para os filhos. Isso tomava a
experiência muito diferente de quando eu o olhava jogar o mesmo jogo com os
amigos — nessas horas ele levava cada segundo tão a sério quanto eu, quando
jogava com meus amigos.
É a partir de experiências como essa que sei a diferença entre um pai jogando
com o filho—por mais importante e agradável que seja para ambos quando tudo
corre bem —e o pai e o filho, inteiramente independentes, jogando o mesmo jogo
com seus contemporâneos. Quando pai e filho, cada um por suas próprias razões,
estão absorvidos no mesmo jogo, pode formar-se entre eles um laço que é
verdadeiramente sui generis.
DIMINUINDO A CONSCIÊNCIA
Não faz muito tempo que OS adultos ainda compreendiam instintivamente a
brincadeira das crianças e a apreciavam. Até um século atrás, o jogo da cabra-
cega e outros similares eram a recreação favorita para todas as idades. A cabra-
cega é mencionada como um jogo apreciado por crianças e adultos já há
seiscentos anos, no Romance ofAlexander. Shakespeare refere-se a esse jogo em
Hamlet, Goldsmith em The Vicar of Wakefield,e Dickens em Tbe Pickwick Papers.
É mencionado por Rabelais e no The Pentamerone como um jogo da família real.
Muitos artistas, inclusive Goya, o retrataram. Pepys contou que, em 26 de
dezembro de 1664, ele finalmente foi para a cama, mas sua esposa e membros da
famiia continuaram a jogar cabra-cega até as quatro da manhã. Num século
posterior, a Sra, Tenyson contou numa carta que seu marido, o poet laureado,
divertiu-se jogando isso com Jowett e o poeta Paigrave, durante as festividades de
natal de 1855.
Parte da diversão advinda do jogo de cabra-cega e de similares vem de que eles
proporcionavam exercícios excitantes apesar de seguros—de desorientação; e
excursões a um mundo de escuridão, mais quç de cegueira. O jogo existia em
várias formas, da primitiva à mais sofisticada, o que o tomava atraente aos jovens
e aos velhos. Em algumas variantes, os jogadores ficavam absolutamente
silenciosos, mas precisavam permanecer nos lugares, e a pessoa vendada devia
localizar uma delas, tocando-a. Em outras, os participantes movimentavam-se, de
modo que a “cabra-cega” não podia ter certeza de onde estavam, se bem que os
participantes dessem indícios verbais ao gritarem por ela. Havia versões nas quais
não era permitida qualquer mudança no ambiente — coisas e pessoas ficavam
nos mesmos lugares —, mas o participante vendado, tendo sido girado muitas
vezes, precisava reorientar-se e localizar um alvo previamente fixado em mente
(como em “pregar o rabo no burro ).“ Mas quaisquer que sejam -as variações, a
maioria dos adultos de hoje consideraria aquém de sua dignidade tomar parte
nesse jogo. Eram muito apreciados por gente grande de outros tempos, mas os
adultos de hoje tendem a evitar brincar do que lhes parece sem pé nem cabeça e,
portanto, “criancice.”
159
Mas até que ponto essas atividades são sem pé nem cabeça? Talvez nos
pareçam sem sentido, porque, abrindo mão delas, perdemos uma compreensão
espontânea de seu significado inerente. Só com a participação empática podemos
entender varios tipos de brincadeiras. Se não soubermos, por nossa própria
experiência, como espectadores ou participantes, o que é o futebol, ou basebol,
rebater OU chutar uma bola pelo campo pode parecer uma atividade sem pé nem
cabeça e irracional. O mesmo vale para mexer peças num tabuleiro, ou jogar
dados — um dos brinquedos mais antigos, jogado e apreciado por jovens e velhos
ao redor do mundo. Só depois de nos termos envolvido nesses jogos é que eles
começam a fazer sentido para nós.
O mesmo acontece com a maioria das brincadeiras de nosso filho pequeno. Se
nos reuníssemos a ele de coração, nossa participação revelaria logo como a
brincadeira pode ser significativa para quem a leva a sério, mas enquanto nos
considerarmos do lado de fora. parece uma atividade boba e aleatória. Entretanto,
jogos como o da cabra-cega e tantos outros lidam de fato com experiências muito
significativas, e é por isso que crianças e adultos jogaram essas coisas com
grande deleite durante séculos.
No grau mais simples, jogos como cabra-cega e pregar o rabo no burro
representam tentativas de passar sem a visão, propiciando ao jogador testar até
que ponto pode confiar em seu senso de direção. No jogo da cabra-cega, o
participante vendado sente seu caminho de objeto a objeto e fica
momentaneamente perdido nos espaços vazios entre eles. É a mesma
experiência de quando andamos às apalpadelas num quarto escuro à noite. O
medo da escuridão é um dos terrores mais antigos e difundidos do homem, e
certamente era ainda mais intenso, mesmo entre adultos, nos séculos em que não
havia luz artificial. Mas mesmo hoje em dia, todas as crianças ficam apavoradas
de se “perder” no escuro, ou não poder encontrar o caminho, quando não há luz.
Jogos como o da cabra-cega repetem essa experiência de maneira lúdica,
permitindo à criança sentir que pode dominar sua ansiedade relativa à escuridão.
A alegria que irrompe quando o jogador vendado toca em outro espelha o alívio
que a criança sente quando, na escuridão da noite, finalmente entra em contato
com os pais. O jogo reassegura-lhe que pode confiar na capacidade de fazê-lo.
Como adultos, parecemos ter dominado esse medo; na maioria das vezes, tudo
que precisamos fazer para escapar à escuridão é acender uma lâmpada. Talvez,
por esse motivo, tenhamos perdido o interesse pelo jogo de cabra-cega, não
empatizando mais com a criança pequena, que ainda sofre os tormentos de seus
medos noturnos, quando não, também, o terror da escuridão, e para quem esse
jogo tem muito a oferecer.
Quando brincamos vendados, também colocamos à prova as boas intenções dos
outros; precisamos assegurar-nos de que nossos amigos não tirarão vantagem
indevida quando não podemos ver o que fazem. Assim, a brincadeira nos dá
segurança sobre nosso ambiente: a integridade das pessoas e a permanência dos
objetos. Ela formula e responde a uma das perguntas mais básicas para nos
sentirmos a salvo nesse mundo: precisamos estai em guarda, de vigia, o tempo
todo, ou é seguro acreditar que as coisas permanecerão es sencialmente as
mesmas e previsíveis?
Uma regra básica para esse jogo às cegas é que os objetos devem ficar nos
lugares apesar de as pessoas poderem mover-se. Há uma boa razão nessa regra,
que ensina uma importante lição para a vida: a segurança no mundo flsico
depende, em grande medida, c permanência dos objetos. Podemos encontrar
nosso caminho porque alguns objetos - portas, escadas, mesas e cadeiras para a
criança pequena; ruas e casas, montanhas e árvores
160
para os mais velhos — são marcos confiáveis. Por outro lado, as pessoas não
estão fixas nos lugares; a segurança quanto a elas não vem tão facilmente. Que
outra experiência poderia ensinar essa lição tão direta, simples e
convincentemente?
A lição inerente a um jogo como o da cabra-cega é que toda criança precisa
aprender a superar sua ansiedade primal - medo do abandono e da escuridão. Por
um grande período, o bebê quer que a mãe esteja junto de si o tempo todo: só sua
presença fisica, como se ela fosse um objeto, oferece tranqüilidade.
Eventualmente, um sentimento de segurança, baseado na atenção conflável da
mãe para com o fflho será suficiente; ele estará satisfeito com o sentimento de que
ela sempre voltará quando for necessária. Isso lhe permite sentir-se seguro,
mesmo que a mãe não esteja sempre flsicamente presente.
De modo similar, o medo de ficar perdido, ou desorientado, é outra ansiedade
básica da criança pequena. Num jogo como o da cabra-cega ficamos
desorientados de verdade, mas, ao invés de ser uma experiência destrutiva, ela
oferece o prazer de ver as coisas imediatamente se rearrumarem, quando a venda
é removida. E a alegria geral alivia nossa momentânea ansiedade, ao
percebermos que, até certo ponto, estávamos enganados sobre onde todos
estavam.
Jogos como o da cabra-céga ajudam a criança a confrontar problemas que são de
importância central no aprendizado do mundo. De fato, quando esses problemas
se acham no contexto relativamente sofisticado de uma experiência lúdica
organizada, eles já foram explorados em incontáveis cenários. Por exemplo,
quase todas as crianças, cedo ou tarde, tentam andar por um cômodo com os
olhos fechados para saber se os objetos continuam no mesmo lugar quando não
estão sendo atentamente observados e, também, para aprenderem que tipo de
coisas são estacionárias e que tipo de coisas podem não ser. Há quase infinitas
variantes dessa experiência. Em unia, a criança fecha os olhos, e quer que um
adulto a segure pela mão enquanto anda. A pergunta feita aqui é: “será que eu
posso confiar que você me vigie, ou devo ficar em guarda todo o tempo?” Algumas
vezes, a criança fecha os olhos, mas, num momento crucial, abre uma fresta,
espreitando. Agora ela está perguntando: “será que eu preciso vigiar o tempo todo,
ou posso deixar minha atenção vaguear e confiar em meus instintos para me
dizerem o momento certo em que devo voltar a prestar cuidadosa atenção?”
Numa outra versão dessa experiência, a criança caminha com os olhos fechados,
e pede aos adultos que avisem antes que ela bata num obstáculo. Aqui a pergunta
é: “estou suficientemente protegida para me arriscar a explorar o desconhecido,
representado pelo que não posso ver?” O prazer da criança quando sempre
avisamos em tempo demonstra o quão importante é para ela essa confirmação.
Ela percebe: “mesmo quando eu não vejo o perigo, meus pais, como anjos da
guarda, me vigiam.” Uma criança, assediada por medos noturnos que lhe
interrompiam o sono, dominou sua ansiedade jogando vezes e mais vezes esse
jogo particular. Durante o dia, testava repetidamente SC OS pais velariam por sua
segurança quando não pudesse ver os perigos. Desde que eles lhe
proporcionaram essa importante tranqüilidade, ela pôde abandonar sua vigília
noturna e voltar a dormir a sono solto.
161
162
quanto era importante para eles que ela sempre apreciasse e encorajasse suas
brincadeiras de modo terno, amigável e benigno.
Qual é a probabilidade de que uma experiência assim possa repetir-se hoje em
dia? Por mais que afirmemos estar interessados em ajudar nosso filho a resolver
sérios impasses emocionais, se aprofundarmos a questão, veremos que,
provavelmente, estaríamos um pouco mais interessados nos pratos do que na
criança, e preocupados com a possibilidade de um comportamento destrutivo
como aquele, ficando sem freios, levar a terríveis conseqüências.
A história de Goethe sugere que, cm tempos passados, as pessoas sabiam que as
crianças precisavam extravasar, e que a brincadeira espontânea é um dos
melhores meios de fazê-lo, se bem que não se costumasse falar nisso desse jeito.
Hoje, a necessidade de os adultos extravasarem talvez seja comumente aceita,
mas, quando as crianças tentam fazêlo e ficam irritadas — o que acontece com
freqüência, porque são tão frustradas nas tentativas dc arranjar as coisas a seu
gosto, o&i de apenas fazer as coisas —, são corrigidas pelos adultos. Explosões
destrutivas, como a de Goethe, hoje não encontram uma atitude dc alegria
obsequiosa, como a dele; conosco, essas brincadeiras destrutivas provocam
atitudes adultas opostas, de crítica interna, quando não, também, de
desaprovação aberta.
O resultado é que esses fatos, ao invés de se tornarem lembranças felizes
partilhadas por adultos e crianças durante suas vidas — formando um laço forte
entre eles por causa do sentimento da criança de elevada auto-estima e legítimo
bem-estar devido à aprovação recebida dos adultos — é mais provável que se
tomem, atualmente, lembranças iradas ou cheias de culpa que separem pais e
filhos. Hoje, se uma criança fosse jogar pratos pela janela deliberada e
sistematicamente, seu comportamento seria mais provavelmente rejeitado e
provocaria sérias críticas, assim como sanções punitivas. O comportamento seria
certamente interrompido muito antes de ter seguido todo o seu curso, quase
sempre sem que o adulto tentasse entender os motivos da criança. Frustrados em
suas intenções inconscientes e reprovados por seus atos, nossos filhos em geral
aprendem a reprimir quaisquer sentimentos que causem seus impulsos destrutivos
e esquecem todo o incidente. Mas os sentimentos de raiva não vão embora; ou
encontram saída por meios tortuosos, onde seu significado não pode ser
facilmente compreensível e onde a ação está tão longe da causa que provoca
pouco alívio, ou a raiva é reprimida e continua a trabalhar com força total no
inconsciente. Em caso de rivalidade entre irmãos, à qual Goethe reagiu quebrando
os pratos, a repressão pode resultar numa animosidade por toda a vida, porque o
ódio da criança não pôde ser resolvido numa reação de raiva, O oposto foi
verdade para Goethe, que, tendo purgado a raiva pelo irmão num ato grande e
freqüentemente lembrado, pôde clcsenvo’iver uma excelente relação com ele, o
que foi muito ajudado pelo fato de sua reação de raiva ter sido vista de forma tão
positiva. É bastante fácil superar nossa raiva quando sua expressão tem
conseqüências tão favoráveis; é impossível fazê-lo quando precisamos reprimi-la.
Um sentimento compreendido durante um momento bastante dificil de sua vida
juntou-se à convicção de que, mesmo em situações ruins, a vida pode oferecer
compensações. O episódio transformou-se numa lembrança compartilhada que
reforçou o laço entre adultos e criança Se ocorresse hoje em dia, o fato seria
esquecido ou reprimido; lembrá-lo trai-ia apenas recordações desagradáveis. Ou
seria lembrado como uma ocasião cm que a cr ança agiu tola e destrutivamente,
fazendo com que a recordação fosse prejudicial
165
Diferentes dessa brincadeira solitária inventada pela criança são os jogos da mãe
com o bebé. Constituem a primeira introdução da criança em sua cultura e no
processo comunicativo. Quando a mãe brinca de esconde-esconde e “cadê o
nené?” com seu fflho, chega um momento cm que ele começa a entender a
natureza comunicativa do jogo e participa por vontade própria. Encantado com o
pensamento de que sua mãe joga com ele porque gosta tanto dele, e que deseja
que ele entre no jogo, ele entra. Isso inicia o processo comunicativo através do
qual o bebé descobre o outro — sua mãe — e, simultaneamente, a si mesmo.
Essa descoberta forma a base de nossas interações conscientes, ainda que na
forma mais rudimentar; é a base essencial sobre a qual toda a comunicação futura
será construída, já que ela requer a noção de que uma pessoa pode interagir
significativa- mente com outra. A reciprocidade inicia-se com a amamentação, mas
o que acontece nesse caso é muito inconsciente. Nas brincadeiras de interação
entre mãe e bebê, a reciprocidade toma-se uma experiência consciente. As
expressões faciais felizes e os ruídos do bebê evocam um prazer adicional na
mãe, e motivam-na a continuar o jogo com maior entusiasmo. Ele percebe que o
que está fazendo é a causa disso, e que lhe comunicou alguma coisa — alguma
coisa, a que ela respondeu, e respondeu como ele desejava.
A importância dessa brincadeira no estabelecimento da individualidade foi-me
demonstrada por uma menina autista de oito anos. Como freqüentemente
acontece, a patologia grave de seu caso permitiu a observação de um fenômeno
também visto no comportamento normal, mas como se aumentado por um
microscópio, ou posto em alto relevo por uma luz brilhante. Rejeitava
completamente todos os esforços feitos para atingi-la fisica ou verbalmente, e não
respondia a qualquer aspecto de seu ambiente. Ressentia-se de todos os esforços
feitos para se entrar em contato com ela; se alguém tentasse agilmente se
aproximar dela, respondia com um retraimento raivoso e aterrorizado.
Demorou mais de um ano durante o qual respeitávamos cuidadosamente seu
desejo de ser deixada sozinha — embora ainda tentando cuidar dela suave e
amorosamente —, antes que moderasse seu isolamento total e permitisse
aproximações casuais, se bem que não respondesse a elas em qualquer modo
discernível. De todos os muitos e variados caminl-ios pelos quais tentamos
alcançá-la, finalmente respondeu a um: um jogo simples que combinava
características do esconde-esconde e cadé-o-nenê, no qual eu a “procurava”
avidamente, e expressava meu prazer quando a encontrava. Apesar de ela estar
lá o tempo todo, eu fingia por momentos não vê-la, de modo que podia alegrar-me
quando a “descobria.” Eventualmente, ela chegava a esconder-se atrás de uma
cortina, até espiava por detrás, imitando o que eu havia feito inúmeras vezes na
minha brincadeira dc procurá-la. Em uma ocasião em que mais uma vez,
estávamos nesse jogo há algum tempo, ela permitiu-me abraçá-la. Então eu
expressei mais alto minha alegria em encontrá-la — e meu prazer foi
verdadeiramente grande e genuíno, especialmente porque ela permitira esse
íntimo contato fisico sem recuar de imediato. Prosseguimos com o jogo, e ela
continou a permitir que fosse abraçada; enquanto eu a segurava gentilmente, ela,
de súbito, pronunciou uma frase completa, sua primeira frase, dizendo o que
queria de mim.
Essa menina americana, trazida a Viena para tratamento psicanalítico, vinha até
então, vivendo conosco há um ano e meio. Já que era muda, parecia não haver
sentiçlo em falar com ela—ou na frentedela — em inglês; assim, desde que
chegara a Viena só se tinha falado com ela, e ela só tinha ouvido alemão. Não
obstante, quando pronunciou sua primeira frase, disse em perfeito inglês: Dê-me o
esqueleto de George Washington.” A tragé-
169
dia de sua vida havia-se originado no fato de seu pai ser completamente
desconhecido, não apenas dela, mas também da mãe, pela mais estranha das
circunstâncias. A mãe, que só tomara consciência da gravidez no quarto mês,
tentara livrar-se do feto. Depois de a criança vir à luz, ela desejou que a menina
nunca tivesse nascido, para que sua própria vida — como ela a via — não fosse
destruída pela filha Só depois de a menina ter cinco anos e ser claramente autista,
a mãe começou a ser atormentada pela culpa, e tentou fazer o melhor que podia
por ela. Seus esforços desesperados para assegurar à menina tratamento com os
maiores especialistas dos Estados Unidos mostraram-se inúteis, pois ela foi
universalmentc declarada caso perdido. Assim, veio finalmente para Viena e para
Ana Freud, que lhe disse que apenas a vida num ambiente psicanaiiticamente
organizado — o ambiente que nós criamos para ela — poderia oferecer
esperança. É completamente obscuro como é que ela adquiriu conhecimento
suficiente da própria história para saber que seu problema se devia ao fato de ter
pai desconhecido. Mesmo assim, em sua frase ela disse que o que precisava era
de um pai e, como uma menina americana que não conheceu o pai, ela só podia
pensar no pai de seu país para solucionar o problema Desde que o pai
desconhecido era o “esqueleto no armário de sua vida, ela pediu esse esqueleto.
É importante notar que, dizendo-me o que queria que lhe fosse dado, ela não
apenas falou pela primeira vez na vida, mas falou numa frase completa, referiu-se
a si própria atravês do pronóme pessoal “me”, e chamou-me pelo meu nome.
Esses detalhes são notáveis, tendo em vista que as crianças autistas, mesmo
depois de começarem a falar, não usam o pronome pessoal. Daí em diante, nunca
deixou totalmente de falar, se bem que por algum tempo tenha usado a linguagem
apenas de modo econômico.
Essa menina — que até então havia recusado qualquer contato com o mundo —
conquistou os rudimentos de um eu através do esconde-esconde, e, jogando-o,
reconheceu o outro, a quem comunicou uma coisa de suma importância para ela
Foi através do esconde-esconde e do outro jogo no qual eu a “procurava” que
entendeu que ela é que estava escondida, que era ela que estava sendo
procurada e achada Jogar esses jogos habilitaram-na a se encontrar e, ao mesmo
tempo, encontrar o mundo das outras pessoas; através da brincadeira, juntou-se
ao mundo. Também através da brincadeira, tornou-se capaz de esperas que
aquilo de que necessitava tão desesperadamente pudesse lhe ser dado.
O sentimento de individualidade e a experiência de poder comunicar e receber
comunicação são adquiridos por meio desses jogos simples, mas eles servem
também a outros propósitos importantes. Ensinam à criança que, mesmo quando
ela e sua mãe estão temporariamente fora do campo de visão uma da outra, a
interrupção do contato visual não significa que seu contato emocional esteja
partido. A busca frenética da mãe no “cadêo-nenê” e seu deleite em encontrá-la
demonstra claramente que fora da vista não significa fora da mente — ao
contrário, deixar de ver o bebê apenas aumenta o desejo de sua presença
Propicia-lhe a segurança extremamente necessária de que o contato não vai ser
perdido, não importa o que aconteça Na solidez desse conhecimento, aprende
que nâo precisa estai agarrado à mãe o tempo todo; pode deixar com segurança
que ela saia por um pouco de sua vista. E o prazer da mãe quando o encontra, e o
seu, por ter sido encontrado, adicionam uma dimensão positiva à sua ousadia em
deixá-la, ou em permitir que ela fique invisível por um momento.
170
Assim como o esconde-esconde garante à criança que ela não vai ser perdida ou
esquecida, outras ansiedades são aliviadas por jogos que demonstram a
integridade e a importância de todas as partes de seu corpo; por exemplo, “dedo-
mindinho-seu-vizinho,” que implica tocar e dar o nome aos dedos. Esse jogo
comunica à criança a informação de que seu corpo está em boa forma, nada está
faltando ou sujeito a ser ignorado. Ainda mais importante, assegura que as várias
partes de seu corpo são emocionalmente sigtiificativas para os pais.
Além de aquietar as ansiedades a respeito de desaparecimentos, jogos nos quais
a criança assume um papel mais ativo, como o pique-esconde, também servem
para acentuar seu domínio sobre si própria e sobre o mundo. Pique-esconde é um
dos jogos mais antigos e permanentes conhecidos pela humanidade. Todos os
esforços são envidados em procurar o jogador escondido. Isso lhe convence de
que, mesmo não estando visível, não foi esquecido; e que é importante para todos
que ele seja encontrado, porque a atividade
— e, num sentido deslocado, a vida — não pode seguir sem ele. É essa a
dignidade e a confirmação que brincadeiras “simples” podem oferecer aos
participantes.
No jogo de esconder mais primitivo, o “cadê-o-nenê,” a criança espera até ser
encontrada, se bem que pode ajudar gritando: “Olha eu aqui” No pique-esconde e
suas variantes, o sucesso depende de chegar em segurança (ao pique, ou em
casa) por seus própnos esforços. O que ela aprende através desse jogo mais
avançado é que pode permitir-se aventurar por si mesma no mundo, arriscando-se
a ficar exposta aos perigos (representados pelo perseguidor e pelos estranhos
lugares onde se esconde), e retornar a salvo à segurança permanente da casa-
pique. Pode testar sua habilidade, sorte e ousadia lá fora, confiante de que, de
algum modo, conseguirá encontrar de novo a segurança O jogo, inclusive, propicia
um prêmio de consolação embutido: quem for apanhado não perde nem precisa
abandonar o jogo, mas, ao contrário, transforma-se no perseguidor poderoso e
ativo na próxima rodada.
AUMENTANDO O DOMÍMO
Através da brincadeira, mais do que qualquer outra atividade, a criança conquista
domínio sobre o mundo externo. Aprende a manipular e a controlar seus objetos
quando constrói com blocos. Ganha domínio sobre o corpo, quando salta e corre.
Lida com problemas psicológicos, quando desempenha novamente, nos jogos, as
dificuldades que encontrou na realidade, assim como quando inffige a seu animal
de brinquedo uma experiência dolorosa que ela própria sofreu. E aprende sobre
relações sociais, quando começa a entender que deve ajustar-se aos outros se
quer que a brincadeira continue.
Muitas experiências de vida que seriam lugar-comum para um adulto são
opressivas para a criança Os adultos aprenderam a conhecer, aceitar, e mesmo a
prevê-las. Nada disso é verdadeiro para a criança; para ela, muitas experiências
são inteiramente novas e inesperadas. Mesmo eventos que se tornaram bem
conhecidos para a criança um pouco maior são excitantes ou esmagadores para a
menorzinha, por causa de sua inexperiência Só raramente um adulto encontra o
não-usual, o muito excitante, a ocorrência desafiadora e inesperada Mas tais
eventos são mais a regra que a exceção para a criança pequena, ainda que o
acontecimento em si pareça ordinário, inócuo, ou mesmo agradável para o
observador adulto.
171
mesmo modo como foi instruída, e colocando pedacinhos de papelão para tirar
raios-X. Se não houver outro “paciente” disponível, um bichinho de brinquedo
servirá. A quantidade de horas que a criança passar nessa brincadeira é uma
indicação clara de quanto tempo ela precisaria ficar na cadeira do dentista para
entender verdadeiramente o que lhe foi feito, por quê, e enfrentax
apropriadamente as emoções que a experiência gerou. Assim como podemos
entender e analisar eventos que se processam muito rapidamente, repassando- os
em câmara lenta, a criança aprende a entender e a analisar, em longas horas de
pia yback repetitivo, cventos que antes estavam além de sua compreensão.
Crianças mais velhas, tendo uma reserva bem maior de experiências diretas ou
análogas, podem, até certo ponto, dominar os eventos por antecipação. Por
exemplo, aos lO anos de idade, elas têm suficiente experiência de primeira ou
segunda mão para entenderem a explicação do que acontecerá quando um dente
kr extraído, e podem começar a compreender e assimilar o evento antes que
ocorra. Isso esta inteiramente além das capacidades da criança pequena, para
quem todo domínio significativo é alcançado depois do acontecimento, pela
brincadeira. Por exemplo, é impossível preparar uma criança pequena para a
hospitalização. Mesmo que entenda as palavras, essas não têm realidade
concreta, porque ela não tem experiência de hospitais em que se basear. Quando
o evento acontece, é opressivo, e seu domínio requer subseqüentes repetições da
brincadeira, primeiro, com os detalhes e, depois, com a experiência em sua
totalidade.
É verdade que a maioria dos pais tenta preparar os filhos para experiências
traumáticas como a hospitalização. Infelizmente, a preparação verbal quase
sempre só é efetiva em aliviar a ansiedade do próprio pai com relação ao fato.
Seria muito melhor para a criança se os pais tivessem brincado de hospital com
ela, antes. Mesmo que isso não lhe possa dar o verdadeiro domínio do
acontecimento, pode pelo menos tomar algumas das particularidades menos
surpreendentes e aflitivas.
Depois da hospitalização, a criança precisa representar, repetidamente, facetas
sim- pies da experiência. Então, aos poucos, ficará apta a dominá-la por inteiro na
brincadeira Pode começar dando no ursinho uma série infinita de injeções,
focalizando tanto aquele detalhe, que os pais podem, equivocadamente, concluir
que ela só se recorda de ter tomado injeções. Mas, lentaniente, à medida que
adquire domínio sobre esse aspecto, ela constrói segurança bastante dentro de si
para passar a outro. Pode então representar o cuidado das enfermeiras, cada
detalhe de uma vez, repetindo o processo de novo e de novo, até que o fato
comece a perder suas conotações ansiosas. Desse modo, chega eventualn’iente a
sentir: “Eu posso entender, Eu sei para que serve e do que se trata.” Enquanto
representa cada parte do evento, uma de cada vez, sua compreensão dos
segmentos levam-na a uma percepção do quadro inteiro, que, de início, era muito
complexo para que entendesse. E enquanto inflige aos brinquedos os processos
que sofreu como sujeito passivo, começa a entender que não precisa ser sempre
a vítima desamparada, mas pode fazer a outros o que lhe foi feito. Assim, pela
brincadeira, o sofrimento passivo da criança torna- se um domínio ativo.
Os acontecimentos traumáticos, em particular, podem ser dominados melhor
através da brincadeira. Por exemplo, uma criança pequena não concebe que uma
cirurgia seja necessária para salvaguardar sua saúde ou sua vida. É terrivelmente
ameaçador ‘para ela sequer considerar que sua vida esteja verdadeiramente em
perigo, ou mesmo que sua perna vá ser imobilizada no gesso por longo tempo
para que possa andar bem no futuro. O
175
fato de que a criança passe por tal experiência sem incidente não significa que a
aceitou, muito menos que a ac citou como importante para o seu contínuo bem-
estar. Nessa situação ela não pode admitir aceitação, porque isso implica que a
experiência pode ser repetida novamente — unia experiência muito apavorante
para ser considerada. É muito mais láril admitir tais fatos como necessários para
os outros, ou para os brinquedos. Uma criança pode fingir que seu cachorro de
brinquedo machucou a perna, e que, a menos que seja consertada por espessas
bandagens, o pobrezinho nunca poderá voltar a correr depressa Ou pode brincar
de que se o dente do macaquinho não for obturado, ele não poderá morder uma
maçã dura, e vai precisar viver de gelatina e bananas macias. Representar nossos
traumas com brirquedos dispersa aos poucos a ansiedade maciça que interfere
com a compreensão da experiência Uma vez que compreendemos que o
atendimento médico é inevitável, e até benéfico, para o cachorrinho ou o
macaquinho de brinquedo, então sua aplicação em nós mesmos é admitida com
mais tranqüilidade.
Assim, a criança representará seu trauma centenas de vezes com um brinquedo,
assegurando ao animal de pane, vezes sem conta, que o tratamento lhe fará bem.
Ouvindo sua própria voz tranqüiizadora, termina eventualmente por convencer a si
própria. Mas, primeiro, é absolutamente necessário que os pais a tranqüilizem,
porque só com isso em mente a criança pode tranqüilizar o brinquedo. Como em
tantas outras atividades lúdicas, é o pai que deve cuidar para que se estabeleça o
processo de aceitação na criança
A PRIMAZIA DA BRINCADEIRA
Quanto mais oportunidades a criança tenha de desfrutar a riqueza e a liberdade
de fantasia da brincadeira em todas as suas formas, mais solidamente seu
desenvolvimento se processará. Os encontres posteriores com os estudes, jogos
e esportes reforçarão e acentuarão seu conhecimento e domínio do mundo. Mas,
para que os jogos, esportes ou mesmo os estudos sejam totalmente significativos,
sua experiência anterior com as brincadeiras já deverão ter propiciado uma base
firme. É por isso que crianças culturaimente carentes, que tiveram mínimas
chances de brincar, e cem as quais es pais pouco brincaram, têm tantas
dificuldades na escola — sem a experiência do êxito nas brincadeiras, elas não
acreditam que possam ter êxito na escola Por isso, não é suficiente que os pais
esperem para compartilharem atividades lúdicas quando elas chegarem a um
estágio mais formalizado. As atividades das crianças maiores podem oferecer
interesse mais intrínseco para os pais, mas, nessa hora, já pode ser muito tarde.
Tanto as brincadeiras como os jogos são necessários para um bom crescimento.
As crianças perdem muito, se a televisão ou mesmo as atividades come o ensine
acadêmico a impedem de ter experiências ricas com brincadeiras e jogos. A
habilidade de desfrutar de jogos é construída sobre a experiência lúdica.
Por exemplo, não há nada de errado com um jogo como Go to tbe bead oftbe
class; é divertido e educativo. Mas não ajudará a criança a dominar a experiência
escolar; meramente a repete e formaliza. O domínio da experiência escolar
precisa ser conquistado através dos canais mais imaginativos das prim&as
brincadeiras. Uma criança que acabe de entrar no jardim de infância pode alinhar
seus animaizinhos de brinquedo ç “ensinar” a eles. Ou pode dai “aulas” para os
irmãos menores. Fazendo isso, estará aprendendo ativamente a dominar uma
experiência à qual esteve passivamente submetida durante o dia de aula. Passa a
representar o papel da professora, o que a torna mais aceitável como pessoa,
176
Por exemplo, todos nós provavelmente nos lembramos das caminhadas rituais de
nossa infância Andávamos sobre o meio-fio, parávamos apenas em certos
quadrados do pavimento, ou andávamos o mais perto possível dos edificios.
Talvez tivéssemos que parar em todas as rachaduras da calçada, ou em nenhuma
delas; ou tivéssemos que colocar um pé exatamente na frente do outro a cada
passo, ou depois de tantos passos dar uma volta, repetindo alguma fórmula
secreta. Brincadeiras como essas têm uma natureza tão ancestral e uma
persistência tão universal que subsistiram a impérios, sistemas sociais e religiões.
A despeito disso, os rituais espontâneos da infância têm sido pouco estudados.
De fato, parece existir séria incompreensão do significado real dos rituais de
andar. A psicanálise tende a explicá-los como esforços compulsivos para subjugar
a ansiedade, mas essa interpretação — conquanto pertinente em certas instâncias
— não faz justiça à importância dessa brincadeira para todas as crianças. Rituais
de andar parecem ser fenômeno normal e ubíquo, a despeito da possibilidade de
elaboração neurótica Esses rituais parecem siples à primeira vista, mas têm
alguns aspectos notáveis. Um é o seu aparecimento difundido e sua persistência
em certa faixa etária, sem pressão social ou encorajamento adulto. Igualmente
interessante é o fato de a maioria das crianças, depois de chegar a uma certa
idade, abandonar espontaneamente esse tipo de brincadeira, com a notável
exceção de crianças patologicamente compulsivas, que podem carregar o
comportamento obsessivo para a vida adulta
Rituais de andar podem ser mais bem compreendidos como uma experiência e
demonstração de autodomínio, uma prova da capacidade de comandarmos nossa
própria atividade. A criança aprende que tem algum controle, se não ainda do
mundo externo, pelo menos de suas ações dentro dele. Rituais como esse são por
inteiro invenções espontâneas da criança; a verdadeira essência da atividade é
que as regras devem ser auto- escolhidas e auto-impostas. Detalhes podem ser
copiados de outras crianças, e podem mudar de momento para momento,
enquanto ela decide. O que nunca deve mudar é que as regras são autofixadas, e
que a criança está convencida de que, obedecendo-as, conseguirá resultados
“mágicos.” Opiniões de qualquer outra pessoa sobre as regras do jogo serão
rejeitadas. Se o padrão é não pisar nas rachaduras, a criança responderá com um
olhar incrédulo à sugestão de subvertê-lo, pisando em todas as rachaduras.
A dimensão “mágica” da brincadeira está no sentimento que a criança extrai dela,
de que, mesmo sendo uma mera criança, sujeita às restrições do mundo adulto,
subitamente se toma senhora de si. Ela própria estabeleceu a tarefa; e também
a executa sozinha, sem ajuda de ninguém. Que mágica maior do que usar um
artillcio simples, sem significado para qualquer outra pessoa e, por esse mesmo
artfficio livrar-se de uma vida de servidão para uma de liberdade? É um segredo
maravilhoso, muito mais excitante na medida em que ninguém pode imaginá-
lo, especialmente os adultos.
Na realidade da criança pequena, essas atividades não são infantis, e sim as
mais maduras de todas, por uma razão: permitem-lhe capitanear seu destino.
O sentimento de poder que a criança deduz desse sentimento de
autodomínio convence-lhe de que é senhora, de certo modo, de seus
senhores aparentes: os adultos que nem mesmo sabem o que ela está
fazendo. Daí o verso “Step on a crack, break my motber’s back” (“Pisar numa
rachadura quebra a espinha da minha mãe”). O que magicamente dá à
criança poder sobre si própria, ao mesmo tempo lhe dá também sobre seus pais.
178
Brincadeira e Realidade Um Equilíbrio
Delicado
De todas as pessoas, as crianças são as mais imaginativas.
Abandonam-se sem reserva a cada ilusão.
Por exemplo, no tratamento psicológico, a criança pode ser encorajada a atirar numa
figura com um revólver de brinquedo; isso pode ser feito quer para liberar suas
agressões, quer para descobrir sua origem e objetivo. Mas isso ocorre na
presença de um aduito agindo como terapeuta, numa situação terapêutica de
“como se.”Já o pai encorajar o filho a atirar em alguém, ou mesmo nele próprio,
numa brincadeira normal, é um equívoco: ele não está levando a brincadeira da
criança suficientemente a sério. Se estivesse ao invés de apenas fingir fazê-lo
—
mostra de agressão tão inequívoca contra os outros, para não mencionar contra si
próprio.
179
confiança em que ela irá usá-lo apropriadamente, até mesmo sensatamente, do modo que achar apropriado ou sensato,
segundo sua perspectiva.
Incidentalmente, isso vale para todos os brinquedos que damos à criança. O fato de lhe propiciarmos um material lúdico
não deve ser mais do que uma afirmação de nossa parte de que está tudo bem, caso ela escolha brincar com ele; nosso
presente nunca deve ser o resultado de nosso desejo de que ela deva brincar com ele, ou que deva fazê-lo do modo como o
fabricante previu. Essas atitudes não apenas roubam a espontaneidade de sua brincadeira, o que já seria bastante ruim, mas
controlam o que deveria ajudá-la a afirmar sua liberdade, a estar no comando, ao contrário do resto de sua vida, que é
controlada pelos adultos.
As crianças têm necessidade dc se livrar de sua agressividade, pelo menos através dc brincadeiras simbólicas, e, dar-lhes
brinquedos ajustáveis a esse propósito é permissão suficiente para que o façam. Se encorajamos a criança a brincar dc
modo agressivo, exercemos — não importa o quão sutilmente — controle sobre sua agressividade, o que provavelmente
incrementará sua frustração ou agressão e, com isso, a necessidade dc descarregá-la, ao invés de libertar a criança dessa
necessidade. Por outro lado, se a sua brincadeira agressiva é dirigida contra nós — como pode acontecer, mais porque ela
deseja descobrir qual seria nossa reação, do que porque deseja nos ferir, mesmo de brincadeira —, e não reagimos de modo
apropriado, estaremos efetivamente lhe demonstrando que não a estamos levando, nem a sua agressão, muito a sério. Se
mostramos uma abordagem contraditória à brincadeira, intelectualizando-a dc início “( Deixe que ela trabalhe suas
agressões )“ e subseqüentemente tentando tomar a brincadeira inofensiva “(Mesmo que você tenha ‘atirado’ cm mim, isso
não quer dizer nada )“. tais atitudes destroem as qualidades sérias que aquela brincadeira tem para a criança.
Mas quando uma criança “atira” NOS pais, eles devem atirar de volta? Certamente não; agressão contrária por parte do
adulto — seja brincando OU a sério — nunca se mostrou benéfica para a criança. De qualquer modo, não ajuda muito deixar
que ela atire em nós com seu revólver de brinquedo, sem termos uma reação apropriada. A reação, é claro, não deve ser à
ação como tal, mas às suas intenções. Apenas nossa avaliação imediata do que motivou o ato pode dizer-nos se a melhor
resposta é uma admiração pela mira da criança — que guerreiro poderoso ele é! — ou uma dramática queda de brincadeira
flO chão, ou uma sombra de ansiedade, OU uma pergunta sobre como é que ela vai se arranjar, já que estamos tóra do
caminho. A propósito, uma pergunta bem colocada como essa é muito mais eficiente para convencer a criança de que
atirar e matar é prejudicial a seu bem-estar do que qualquer discussão teórica sobre os males da guerra ou da violência.
Isso porque a criança vive no presente imediato e nos confins limitados da experiência direta. As guerras, mesmo vistas na
tela de TV, acontecem em algum lugar longínquo e não têm uma relação compreensível com ela. E se conseguimos
impressioná-la com as trágicas conseqüências da guerra, o efeito primário será infundir-lhe um opressivo sentimento de
falta de poder. Afinal de contas, a criança é esperta o suficiente para imaginar que não tem qualquer efeito sobre algo que
acontece lá longe no mundo. Mas atirar no pai é uma coisa que elapode controlar, e a respeito da qual pode fazer, de fato,
alguma coisa. Quase toda criança entende que — não importa a raiva com que esteja do pai, nem o quanto queira livrar-se
dele no momento — não quer perdê-lo para sempre. As crianças são agudamente cônscias do quanto necessitam do carinho
e da proteção dos pais, e do
180
quão profundamente liam sofrer se os pais, em retaliação, se voltassem contra elas, ou desaparecessem permanentemente.
A caridade começa em casa, e o mesmo acontece com o aprendizado sobre a agressão. A criança entenderá que atirar e
matar pessoas é errado quando o pai, que foi o alvo da brincadeira, pergunta quem irá providenciar o leite no futuro, ou
comprar sorvete. Esse tipo de pergunta pode convencer a criança da necessidade de manter sua agressão sob controle no
seu melhor interesse, de uma forma que nenhuma descrição abstrata dos horrores da guerra poderia conseguir. Dizerem
que o que queremos fazer — dar um tiro — é errado nos aborrece e frustra, e nos coloca na defensiva. Mas entender as coisas
na b’ase de nossa própria experiência e interesse — ou seja, o pai que levou o tiro não pode mais servir ao filho — faz com
que o aprendizado se tome positivo.
Qualquer que seja a resposta ao “tiro”, o pai deve levar a brincadeira a sério, e não responder pregando sermões ou
agredindo de volta. Por outro lado, quando as crianças brincam de atirai entre si, a contra-agressão é uma reposta
adequada à idade, que faz pouco mal e, talvez, algum bem. Embora a criança possa descarregar alguma agressão atirando
nos companheiros, também acumula uma grande porção de ansiedade nova quando outra criança atira nela. Um acúmulo
de tais ansiedades criadas por jogos de atirar pode eventualmente convencê-la de que todo mundo perde num tiroteio, uma
vez que o atirador é também o alvo. Entretanto essa importante lição vai por água abaixo, quando os adultos, tentando ser
“bonzinhos”, deixam os filhos crivá-los de balas de “mentirinha” sem mostrar qualquer reação apropriada.
Alguns adultos podem reagir exageradamente a esse tipo de brincadeira de tiros. Em geral, os pais que caem nessa
armadilha estão mais preocupados com seus próprios sentimentos sobre agressão do que em ajudar a criança a dominar
sua agressividade através da brincadeira — ao invés de apenas reprimi-la. Isso também se aplica às ansiedades sexuais ou
de outros tipos, que as crianças enfrentam através de brincadeiras de atirar. Assim, quando as proíbem, bloqueiam a
válvula de escape segura e necessária que elas podem propiciar. Ao mesmo tempo, roubam à criança a valiosa lição de
que, se tentamos atirai nos outros, eles atirarão de volta, e todo mundo vai sair perdendo.
Alguns pais, a partir de seu horror à guerra e à violência, tentam controlar ou proibir completamente qualquer brincadeira
com revólveres de brinquedo, soldados, tanques, ou outros brinquedos que copiam e representam instrumentos bélicos.
Ainda que esses sentimentos com relação à violência sejam bastante compreensíveis, quando o pai proibe ou critica
severamente a brincadeira de atirar — não importam suas razões conscientes para fazê-lo —, não está agindo em beneficio do
filho, mas tão-somente a partir de preocupações ou ansiedades adultas. Alguns pais temem, inclusive, que esse tipo de
brincadeira possa fazer da criança que a aprecia muito, um futuro assassino, mas as armadilbas desse modo de pensar são
muitas e sérias.
Em primeiro lugar, assim como brincar com blocos não indica que a criança crescerá para ser um arquiteto ou construtor,
como suas brincadeiras com carros ou caminhões não profetizam um futuro mecânico ou chofer de caminhão, assim, suas
brincadeiras com revólveres de brinquedo nada nos dizem sobre o que fará ou será mais tarde na vida. Em segundo, é
razoável esperar que, se através de brincadeiras a criança sente que pode proteger-se, e se descarrega a maior parte de seus
sentimentos agressivos, então menos desses sentimentos vão se acumular e exercer pressão por canais de descarga perigo-
181
sos na vida fatura. Jogos de atirar proporcionam válvulas de escape para frustrações acumuladas e são, portanto, capazes
de reduzi-las. Assim, os sentimentos agressivos e hostis da criança podem ser mais prontamente controlados por ela do
que quando opai impede sua descarga, tomando impossível a redução através de brincadeiras simbólicas. Tais proibições
também levam à frustração e raiva adicionais que se acumulam porque a criança é impedida de usar uma válvula de
escape que ela vê usada livremente por outras, e que lhe é sugerida pela mass-media.
Desde que, em relação à violência, o assunto é o controle da agressão versus sua descarga, o melhor caminho para os pais
enfrentarem o problema — seta ou não um problema, em sua avaliação — é fazer todo o possível para impedir o filho de
experimentar frustração ou acumular sentimentos hostis. Mesmo sendo impossível abrigar nosso filho inteiramente — pois
toda vida, e particularmente a da criança, é cheia de frustrações —, podemos tentar não acrescentar outras, por exemplo,
proibindo brincadeiras das quais a criança queira participar.
Em terceiro lugar, e de longe a atitude mais importante, porque mais perniciosa em suas conseqüências, é o medo paterno
— seja falado ou implícito — de que a criança possa tornar-se uma pessoa violenta, talvez mesmo um assassino. Esse
pensamento é muito mais perigoso para o bem-estar emocional e o sentido de mérito próprio da criança do que qualquer
brincadeira com revólveres pode ser. Isso é particularmente verdadeiro por causa da importância que atribui à visão que os
pais têm dela. Afinal de contas, a criança ganha visão de si própria, primariamente, a partir dos pais. Essa opinião
desfavorável pode fazer com que ela sinta muita raiva com relação a eles e ao mundo, e incrementa sua propensão a
externar sua raiva, não apenas em brincadeiras simbólicas mas na realidade, uma vez que tenha crescido a ponto de sair do
controle paterno. Ela sabe que quer brincar com armas, e se os pais pensam que isso pressagia um futuro assassino, sua
imagem do tipo de pessoa que é, ou na qual pode tomar-se, corre o perigo de ser seriamente distorcida, Como o exemplo
de Goethe mostron, a necessidade que a criença tem de descarregar agressão tem pouco a ver com guerra, ou mesmo com
violência nas ruas, mas muito. dc um modo geral, com acontecimentos que ocorrem em casa, como o ciúme de um irmão
ou a raiva do pai. Portanto permitir à criança a oportunidade de descarregar sua raiva simbólica- mente em uma terceira
pessoa — outra criança, talvez, com a qual ela brinca de polícia e ladrão — é preferível à necessidade de ter de reprimi-la. Se,
então, não há uma válvula de escape permitida para a raiva, esta continuará a inflamar dentro dela.
As meninas, como OS meninos, estão sujeitas a todo tipo dc frustração, incluindo amplamente a rivalidade com innãos e a
raiva dos pais, de modo que lhes fará igualmente bem descarregar sua raiva através de brincadeiras simbólicas, como com
armas de brinquedo. Além disso, isso impediria que se sentissem frustradas porque um tipo importante de brincadeira
simbólica acessível aos garotos não o é a elas. Brincando com revólveres, elas também poderiam extravasar. Perceberiam,
então, que os meninos não estão em vantagem quando comparados às meninas a esse respeito.
Com freqüência, o desejo de a criança distrair-se com armas de brinquedo é motivado principalmente por sua vontade de
poder proteger-se simbolicamente. Se os pais a impedem de fazer isso, ela sente-se privada, por aqueles que deveriam ser
seus protetores naturais, da oportunidade de proteger-se. E se os pais temem seriamente que ela possa tornar-se um
assassino por causa desses desejos naturais — autopreservação. liberação da
182
hostilidade, expressão da agressividade na brincadeira de modo a não precisar fazê-lo na realidade — então sua proscrição
não só da brincadeira, mas também do desejo dela torna-se, por virtude de suas convicções, um ataque devastador à
pessoa da criança e uma denúncia de sua existência presente e futura.
Depois de tanto ser dito para sugerir que os pais não devem proibir brincadeiras simbólicas que têm papel tão importante
no trato da criança com pressões internas, pode ainda parecer necessário enfatizar que não há sentido em proibir qualquer
atividade lúdica à criança, nem encorajá-la, por exemplo, a brincar com revólveres de brinquedo ou qualquer outro
instrumento de guerra. Se querem fazê-lo, e quando, deve ser deixado inteiramente a critério delas, meninos e meninas
igualmente. Mas quando quiserem participar de uma brincadeira do tipo, devemos aceitá-la como é: uma brincadeira
importante naquele momento e que não diz nada sobre a vida futura. Como sempre, o mais importante para o presente e o
futuro da criança são as convicções íntimas dos pais a seu respeito, como a de que ela — não importa do que brinque no
momento — é uma ótima pessoa agora, e continuará sendo ótima quando crescer. Mais que qualqeur coisa, isso ajudará a
criança a se sentir tão segura de si que se sentirá pouco pressionada a agir agressivamente contra os outros.
Quanto mais seriamente as crianças exploram todas as possibilidades que lhes atraiam, e quanto mais
os pais apóiem todos esses esforços, mais aptas estarão posteriormente a deci que é melhor para elas. Muitas crianças
limitam espontaneamente suas brincadeiras a uma ou poucas áreas correlatas, por algum tempo ou mesmo por anos. Uma
escolha de ocupação permanente pode vir daí, e se assim for, as lembranças de brincadeiras felizes podem acrescentar um
sabor permanente a nossa atividade. Mais amiúde, porém, a preocupação da criança se deve à necessidade de trabalhar
algum problema, e quando ele finalmente é resolvido, a preocupação se esvai; a brincadeira serviu a seu propósito. Tendo-
se concentrado nela, a criança parece ter conseguido “extravasar” esse tipo particular de atividade. Mais tarde, quando
tiver abraçado uma carreira inteiramente diferente do que suas brincadeiras infantis podem ter sugerido; não haverá
arrependimento, porque já se terá fartado da outra atividade.
É freqüentemente difidil imaginar, e impossível prever, como a concentração continuada da criança num determinado
tipo de atividade pode criar uma expectativa e prepará-la para o que parece uma profissão ou passatempo bastante
diferente. Só aposteriori podemos perceber o quanto estavam dirigidas para um objetivo as atividades da criança. Um
exemplo: desde a infância uma menina rodeou-se progressivamente de grande variedade de animais de pano. Nunca se
separava deles, passando os dias a brincar exclusiva- mente com eles, a ponto de, ao entrar na escola, não poder
desenvolver interesse em aprender, nem mesmo sobre animais. Quando se tornou adolescente, preservou cuidadosamente
todos os bichos de brinquedo, mas transferiu seu interesse para o cuidado de animais de verdade; então passou a gastar
todo o tempo livre, assim como as horas em que deveria estar na escola ou fazendo o dever de casa, visitando uma clínica
veterinária, onde logo se tomou ajudante bem-vinda. Limpava as gaiolas e fazia Outros trabalhos humildes que nunca teria
feito em casa, brincava com os bichos e cuidava deles excelentemente.
183
Naquela época, tanto ela quanto os pais estavam convictos de que se tomaria veterinária. Os pais encorajavam a idéia,
felizes pela filha estar afinal ocupando o tempo construtivamente e preparando-se para. uma profissão que eles (se bem
que com algumas reservas íntimas) podiam aprovar. Ela entrou na universidade para estudar veterinária. Entretanto,
quando havia quase completado os estudos, subitamente abandonou a faculdade e voltou aos velhos hábitos, passando a
estar e trabalhar com animais de maneira aleatória, embora sempre preocupada com seu bem-estar. Aos 30 anos, essa
mulher subitamente abandonou a fascinação e a devoção de toda uma vida em relação aos animais. Finalmente saciara- se
deles. Voltou à universidade para tomar-se uma assistente social, concentrando-se em trabalhar com pessoas muito
doentes. Só então entendeu que toda a sua dedicação aos animais tinha sido um deslocamento, porque até esse momento
jamais acreditara que pudesse cuidar de pessoas.
A progressão da paixão por animais de pano para os de verdade, e daí para a capacidade de trabalhar cuidando de pessoas
finalmente se tomou clara para ela, e para todos os que acompanharam o seu desenvolvimento. O que agora parecia tão
óbvio, entretanto, de m’ ato algum havia sido óbvio antes. Subconscientemente, ela preparou-se com animais e tstou sua
habilidade de cuidar desses “substitutos” antes de, por fim, poder fazer o que durante todo o tempo havia dominado sua
vida inconsciente: cuidar de pessoas.
Nem sempre é tão óbvio que a brincadeira da criança e a preocupação do adoles(ente sejam apenas a preparação para uma
profissão adulta lntretanto, nas vidas de muitos que tiveram a oportunidade de organizar a própria existência, a brincadeira
infantil é, de certa forma, significante em estabelecer as fundações do que poderá no futuro tornar- se um interesse
principal.
Enquanto a criança é pequena, a questão do que eventualmente irá escolher como ocupação é remota. O que importa,
então, é como ela conseguirá divertir-se na brincadeira — não como preparação para papéis futuros, mas pelo que ela
significa no momento. Mais do que qualquer coisa; conseguir inteira satisfação de uma atividade apropriada ao estágio de
desenvolvimento em determinada idade traz a promessa de que continuaremos a gostar do que faremos na vida Para que
uma criança tire esses sentimentos de prazer e autovalortzação de uma brincadeira, ela precisa da confirmação consistente
dos pais com relação à importância de suas ativiades lúdicas. Assim, é crucial para seu bem-estar que não a
menosprezemos através de indiferença ou falta de compreensão, ou a desencorajemos com atitudes críticas que
freqüentemente têm mais a ver com nossas preocupações adultas sobre o futuro do que com o que ela está fazendo no
momento. Todos os pais atentos têm preocupações com o futuro dos filhos, tentam planejá-lo, gostariam de poder ajudá-
los a atingir seus objetivos. Mas, hoje em dia, muitos pais vão além dessa solicitude normal, ficando ansiosos com o
futuro dos filhos. Se estão assim, não importa o quanto procurem manter isso em segredo, os fflhos sentem e em geral,
sentem muito. Essa ansiedade, seja ela abertamente expressa ou mantida em segredo, cria nas mentes dos filhos graves
dúvidas que podem enraizar-se a ponto de até mesmo sucessos marcantes na vida fatura não as erradicarem. A segurança
interna é o resultado da percepção desde cedo de que nossos pais aprovam o que fazemos, e isso é traduzido no
subconsciente como significando que estamos nos saindo bem como pessoas. Assim, quando o pai mostra prazer pelo
filho estar brincando bem — que sua brincadeira é importante, com objetivos e significauva —, isso incrementa na criança o
sentimento de mérito próprio e, com ele, a segurança
184
sobre ela mesma e seu futuro. Por isso, nada é mais vital para nossos filhos do que sentirmos verdadeiramente, e
comunicar-lhes, nossa convicção da importância que a brincadeira tem para eles e, por conseguinte, para nós.
Desde que muitos de nós adultos não podemos mais nos envolver espontânea e diretamente na brincadeira da criança
pequena, como gerações mais antigas conseguiam. devemos usar outros caminhos para compensar; nossa compreensão
deve tomar o lugar do que perdemos em proximidade e espontaneidade. Uma avaliação mais profunda da ampla
importância da brincadeira e do que está inerentemente envolvido nela pode transformar a compreensão intelectual de seu
significado teórico naquele comprometimento emocional em relação às atividades lúdicas que toda criança precisa obter
dos pais.
Existem muitas contribuições que só os pais podem dar às brincadeiras dos filhos. Por exemplo, nenhum professor, e
certamente nenhum colega da mesma idade, pode envolver-se tão profunda e emocionalmente em brincadeiras que
pareçam relacionar-se com o futuro da criança como os pais. A brincadeira está ancorada no presente, mas também levanta
e tenta resolver problemas do passado, ao mesmo tempo em que está freqüentemente dirigida para o futuro. Assim, uma
menina que brinca de boneca antecipa sua possível maternidade futura e também tenta enfrentar pressões emocionais do
presente. Se ela estiver com ciúme do cuidado que um irmão recebe da mãe, brincar de boneca permite- lhe que represente
e domine seus sentimentos ambivalentes. Ela lida com os aspectos negativos tratando mal a boneca, que representa o
irmão. Desse modo simbólico, pode puni-lo pelos ciúmes sofridos, dos quais ele é a causa inocente. Pode remediar as
atitudes negativas para com o irmão e satisfazer os elementos positivos de sua ambivalência, quando cuida bem da
boneca, assim como a mãe faz com ele, e, desse modo, livrar-se da culpa e identfficar-se com a mãe. Em acréscimo, a
menina também se identifica com a boneca, recebendo indiretamente o cuidado que a mãe prodigaliza ao irmão. Assim,
numa infinidade de formas, brincar de boneca está intimamente ligado à relação da menina com a mãe.
É um azar para õs meninos que só raramente lhes ofereçam oportunidades de brincar com bonecas e, ainda mais
raramente, os encorajem a isso. Muitos pais sentem que brincar de boneca não é para meninos e, por isso, eles são em
geral impedidos de lidar com questões como rivalidade entre irmãos e problemas da constelação familiar (entre muitos
outros) desse modo conveniente simbólico. Talvez, se os pais pudessem ver quão avidamente os meninos usam bonecas e
casas de bonecas nos tratamentos psicanalíticos (decerto tão ávida e persistentemente quanto as meninas) para resolverem
problemas familiares e ansiedades a seu próprio respeito, estariam mais dispostos a reconhecer o valor da brincadeira de
boneca para ambos os sexos. Por exemplo, brincando de casa de boneca, os meninos — tão avidamente quanto as meninas —
põem uma figura representando o irmãozinho fora de casa, põem uma figura representando um dos pais no teto ou
trancam-no no porão, colocam os pais juntos na cama, sentam uma figura representando a si mesmos no banheiro ou
colocam-na bagunçando a casa, e, de incontáveis modos, visualizam, representam, tornando-se capazes, assim, de
enfrentar melhor a pressão dos problemas familiaies.
185
Quando lhes dão liberdade para tanto, meninos e meninas usam bonecas, com grande beneficio, na resolução de
problemas; reinterpretam experiências do passado recente ou da infância, ou experiências de fantasia que gostariam de ter
tido, ou lidam com quaisquer outros resíduos do passado de que precisem dominar. Alguns pais acham que brincar de
boneca é contrario à masculinidade, o que não é verdadeiro. Há uma grande quantidade de experiências no passado do
menino (assim como no da menina), como, por exemplo, o modo como foi alimentado, posto no colo, banhado OU
treinado nas questões de asseio, que ele pode dominar melhor brincando de boneca ou com mobílias de casa de bonecas,
como banheiras ou vasos sanitários. Para ele existem, também, problemas do presente, como rivalidades entre irmãos. E,
embora, cuidar de crianças não venha provavelmente a desempenhar um papel tão central em sua vida como na de uma
menina, isso pode tornarse um aspecto importante de sua vida como pai.
Se OS pais têm receio de que brincar de boneca ferninize o menino, tudo de que precisam para se tranquilizar é observar
como os meninos brincam com bonecas, porque é muito diferente do modo como as meninas o fazem. A não ser que o
menino já tenha abraçado a feminilidade por causa de uma séria neurose, ele não segura ou brinca com as bonecas como
as meninas. Sua abordagem é bem masculina, tipicamente muito mais agressiva e manipulativa do que a delas.
É certo que a brincadeira de bonecas tem vida usualmente mais curta para os meninos do que para as meninas, e não
representa uma experiência tão significativa; mas isso não é razão para que deixem de absorver o que ela pode propiciar.
Na verdade, os brinquedos considerados típicos de meninos, conquanto possam oferecer oportunidades de representar
problemas do presente e antecipar o futuro, são muito menos conveniéntes do que as bonecas para dominarem
dificuldades do passado. Se Os pais encaram com naturalidade que os filhos brinquem com bonecas, irão propiciar-lhes
oportunidade valiosas para enriquecer sua vkla lúdica. Para que isso aconteça, não é suficiente que os pais simplesmente
evitem desprezar tais brincadeiras; por causa da atitude ainda predominante de que brincar de bonecas é só para meninas,
ambos os pais precisam ter um sentimento positivo a respeito de o menino brincar de boneca, para que ele possa tirar o
máximo proveito disso.
Hoje, quando é relativamente raro que o pai se envolva tanto numa brincadeira quanto o filho, ainda existem brinquedos
que evocam sentimentos profundos tanto num, quanto no outro. As bonecas talvez sejam os melhores exemplos disso.
Quer a mãe meramente observe ailha brincar de boneca, encoraje-a a fazê-lo, ou participe de forma ativa, com freqüência
está profundamente envolvida em muitos níveis. Ela pode reexperimentar aspectos da própria infância, quando brincava
de boneca, e o envolvimento de sua mãe com aquela atividade e consigo própria, simuiraneamente sentindo o que
significa agora ser mãe de uma menininha que brinca com bonecas. A criança, enquanto brinca, sente de algum modo as
fortes emoções reinantes na mente consciente e subconsciente da mãe, e experimenta uma proximidade baseada no
envolvimento profundo que ambas têm na brincadeira da menina Essa proximidade dá à brincadeira uma importância
especial e um significado profundo que a criança nunca atingiria sem o envolvimento da mãe. A mãe não precisa estar
sempre presente, nem, quando está presente, precisa estar tão pessoalmente envolvida em muitos níveis; basta que a
criança carregue uma imagem mental de seu envolvimento. Uma experiência dessas com a mãe pode pro
186
duzir um impacto tão permanente que a criança levará essa imagem consigo e irá reativála todas as vezes que brincar
com sua boneca — tamanha a sua importância Continuará a reagir aos sinais emocionais que recebeu da mãe, combinando-
os, na brincadeira de bonecas, com outros’sentimentos originados em suas experiências do passado e do presente de ser
cuidada pela mãe e brincar de ser mãe. Importantes como são seus sentimentos sobre ser cuidada e tomas-se mãe um dia,
a brincadeira de boneca não atingiria a mesma profi.indidade de sentido se a mãe ocasionalmente, não tivesse estado
profunda e pessoalmente envolvida pelas recordações que a brincadeira lhe evocou.
IDENTIFICAÇÃO PATERNA
Poucos tipos de brincadeiras podem-se comparar à de bonecas para trazer à tona um envolvimento paterno profundo. Mas
há muitos outros aspectos das brincadeiras infantis que podem afetar muito o pai, através de recordações e de outros
sentimentos que são ativados, particularmente quando uma brincadeira do filho faz com que o pai se recorde de ter
brincado com o mesmo brinquedo, ou de modo similar. Também, quanto mais velha a criança, mais facilmente as
atividades lúdicas repercutem não só nas experiências infantis dos pais, mas, inclusive, nos seus hobbies ou recreações
do presente. Por exemplo, o adolescente que joga xadrez a sério tem uma experiência muito similar à do pai que faz o
mesmo. Ter empatia com as tristezas e alegrias da criança na escola ou ns qudras de esporte, e reviver nossas próprias
experiências, é fato corriqueiro na vida dos pais; e isso se aplica também quando, poucos anos mais tarde, nosso filho
passa pelas agonias e emoções do primeiro amor. Mas, a essa altura, a personalidade do jovem está em grande parte
formada, e ele luta para libertar-se do domínio paterno. Nos anos de adolescência, o jovem é — ou deveria ser — por demais
ele mesmo para que o pai veja ou projete muito de seu próprio passado nas suas brincadeiras. Embora as brincadeiras
adolescentes — e outras experiências — possam evocar no pai experiências aniilogas de sua própria vida, ele não pode mais
idenfficar-se com o filho como alguns anos antes.
Apenas durante os primeiros estágios da formação da personalidade, tipicamente a época de brincar com bonecas mais
itensiva, a mãe pode fantasiar que sua filha é como ela mesma em criança, que a menininha irá se desenvolver enquanto
mãe exatamente da maneira que ela espera, e evitará as armadilhas e perigos que ela própria não pôde evitar. Os pais
sabem que seus filhõs, mais provavelmente, terão uma vida bem diferente da deles, e que apenas enquanto as crianças são
pequenas eles podem identificar-se por inteiro com elas, e reviver algumas de suas experiêhcias infantis nas brincadeiras.
Mas, enquanto podemos nos identificar com nossos filhos em suas brincadeiras, através dessas lembranças, isso torna a
brincadeira singularmente significativa para ambos, e, enquanto nossos filhos ainda são muito pequenos, podemos
imaginar que seguirão nosso caminho em seu desenvolvimento futuro.
Essa identificação positiva com a brincadeira infantil era muito mais fácil quando as atividades da vida dos meninos e
meninas repetiam a dos pais. Por exemplo, brincar com um cavalinho de pau — como a boneca, um brinquedo muito antigo
— tinha um Outro significado diferente numa era em que os cavalos eram o principal meio de transporte e tração, para não
mencionar seu papel na guerra A criança, montando um cavalinho de pau, imitava uma atividade adulta importante numa
escala apropriada à idade, e o pai, ob
187
servando-a, sabia que ela estava se preparando para aspectos importantes da vida adulta. Esse
conhecimento podia facilmente ocasionar fantasias sobre o futuro da criança, e os pais devem ter lembrado as
próprias fantasias quando montavam cavalinhos de pau. Esses pais também podiam meditar nas diferenças
entre essas lembranças e a realidade presente, do mesmo modo que os pais modernos podem responder às
brincadeiras de boneca ou “astronauta’dos filhos.
Hoje, mesmo que um adulto goste muito de cavalgar, essa é uma atividade de lazer, o que reduz seu
significado sério. Cavalgar ou usar um cavalo para trabalho não é mais uma dimensão importante na vida da
maioria dos adultos. Com exceção dos escassos vaqueiros e jóqueis, é raro um pai que, olhando o filho montar
um cavalinho de pau, pense com prazer sobre como ele está se preparando bem para ter sucesso na vida, ou
como essa vida será semelhante à sua própria. Hoje os pais aceitam o fato de que não é provável os filhos
seguirem seus passos.
Com a criança mais velha as coisas podem ser um tanto diferentes. Ver um jovem com um computador, ou
tocando um instrumento musical, permite que o pai tenha fantasias prazerosas sobre o futuro do filho. Ainda
assim, para a maioria dos pais as realizações acadêmicas parecem mais propensas a oferecer promessas de
sucesso futuro. Por isso, muitos pais (sem, no momento, perceberem sua motivação) hoje em dia empurram os
filhos às realizações acadêmicas muito cedo, no maternal, ou mesmo antes! Eles acreditam que isso
promoverá o progresso do filho na escola primária, mas para tudo na vida há o tempo certo e o errado; se
empurramos a criança para realizaçôes, ou para ter êxitos, o mais freqüente é que isso provoque o efeito
oposto. Ensinar leitura ou matemática não é recomendável para a maioria das crianças antes dos seis ou sete
anos. Ainda que o intelecto da criança possa ser estimulado muito mais cedo, isso é benéfico apenas quando
feito de modo adequado à idade.
Inconscientemente, expondo-o cedo a experiências acadêmicas, os pais desejam poder antecipar o sucesso
futuro do filho; sentem prazer com esses pensamentos, e tendem a suavizar os medos que podem abrigar
nesse sentido. O problema com tais esforços é que eles são prematuros, e, por conseguinte, quase sempre
contraproducentes. Embora sea verdade que muitas crianças podem aprender a ler, escrever, contar e fazer
cálculos matemáticos simples com pouca idade, em geral essas atividades não têm significado intrínseco para
elas, a não ser pelo fato de que realizá-las agrada aos pais. O resultado pode ser que essas atividades
acadêmicas continuem mais tarde a carecer de sentido para essas crianças. Entretanto é apenas esse
significado intrínseco que motivará a criança a dedicar. se ao tipo de aprendizado oferecido no primeiro grau.
Se uma criança pequena é empurrada cedo demais para os trabalhos escolares, ela o faz apenas para agradar
aos pais. Se for assim, mais tarde, quando entrar em conflito com eles, pode sentir-se tentada a feri-los,
fracassando nos estudos. Quanto menor o significado intrínseco do ensino acadêmico para a criança no
primeiro contato, maior a probabilidade de que venha a abandoná-lo mais tarde. É muito melhor adiar a
exposição da criança ao aprendizado intelectual de natureza acadêmica até que esteja suficientemente
amadurecida para isso, e seu intelecto suficientemente desenvolvido, para que o que está aprendendo tenha
um significado iatrínseco considerável.
Muitos pais que desejam impor um ensino formal aos filhos pequenos tentam fazê-lo de maneira lúdica, mas
para a criança aquilo não é brincadeira, se bem que ela possa gostar
188
da atenção paterna. Alguns pais inconscientemente vêem os filhos de tal modo como parte de si próprios que não podem
imaginar que o que lhes dá prazer, como as proezas acadêmicas, possa ter um efeito muito diferente nos filhos. O mesmo
fenômeno explica por que outros pais impelem os filhos a realizações atléticas. ‘Eles sentem prazer genuíno nelas e, por
conseguinte, não podem compreender que, conquanto a criança goste de dar prazer aos pais, pode ser que a atividade
envolva pressões, tensões, esforços e ansiedades demais çom relação a derrotas — que seja uma tarefa demasiado exigente
para ela. A criança, então, enfrenta um dilema: ressente-se de ser pressionada, mas dar prazer ao pai é tão importante que
ela não pode permitir que o pai conheça seus sentimentos verdadeiros.
Os pais que não consideram que o prazer do filho pode não ser análogo ou igual ao seu próprio, podem criar para ele
sérios problemas. Um exemplo disso pode ser observado nas brincadeiras violentas entre pais e filhos. As crianças em
geral gostam dessas brincadeiras, mas apenas até certo ponto. Muitos bebês e crianças pequenas gostam de ser jogadas
para o alto e apanhadas, se isso é feito com moderação e grande cuidado, e não por muito tempo. Essa brincadeira limitada
lhes reafirma que podem com segurança perder contato por um momento com o pai sem perigo; além disso, lhes dá
confiança de que os pais podem transformar situações potencialmente perigosas em seguras. Mas alguns pais, levados
pelo prazer que essa brincadeira lhes dá, e incapazes de imaginar que uma coisa tão agradável pode ser apavorante para a
criança, vão muito além do que lhe é prazeroso. E quando as coisas ficam excitantes demais para a criança, a excitação
pode tomar-se insuportável e gerar medo.
Há também o tipo de briga na qual o pai derruba ou brinca de boxear o filho, adorando a própria força e superioridade
atlética; com freqüência acredita firmemente que a criança também deve gostar daquilo de que ele gosta tanto. Mas o
prazer da criança logo se mistura à experiência de inadequação relativa ao pai, à ansiedade por sua comparativa fraqueza e
absoluta dependência, e ao temor de que o pai possa deixar-se levar perigosamente por sua superioridade. Então, o que
começou como uma experiência agradável termina por avassalar a criança com ansiedade e sentimentos de derrota. O pai
confia no conhecimento de que não tirará vantagem de sua laprça superior, e acredita que o que ele sabe a criança também
sabe. Mas não é esse o caso; tudo que a criança sabe é que aquilo se tomou demais para ela.
É por isso que a participação do pai numa brincadeira que o filhoescolheu sozinho é muito mais segura e gratificante
para ambos os pais assim como para a criança. Se, além disso, a brincadeira estimula recordações patemas de brincadeiras
similares de sua infância, e permite fantasias felizes sobre o futuro da criança, ela proporcionará uma experiência
eminentemente construtiva e feliz para todos os participantes. A mãe brincando de boneca com a filha é o paradigma dessa
brincadeira. A maneira adorável como a menina cuida das bonecas parece prometer aos pais que ela será uma boa mãe e
obterá disso grande satisfação, realização e prazer.
Os pais que fazem um investimento positivo na brincadeira dos filhos instilam neles o sentimento seguro de que, quando
crescerem, terão condições de realizar as tarefas da vida adulta. Essa confiança nasce no momento em que a criança sente
estar brincando bem, e que a satisfação dos pais é um elemento importante nesse sentimento. O encorajamento e o
comprometimento dos pais com relação à importância imediata da brincadeira para os filhos solidifica o papel da
brincadeira na preparação da criança para o futuro.
189
Até muito recentemente, quando a menina brincava de bonecas ou cie culuar az casa e da família, ela estava mais perto
das atividades que preenchiam grande parte da vida da mãe, e para as quais esperava que o futuro a dirigisse. Hoje, com o
trabalho fora de casa tendo-se tornado um papel central na vida da maioria das mulheres americanas, isso não é mais
verdadeiro; e é ainda menos verdadeiro para meninos que brincam com soldados, caminhÕes ou trens de brinquedos.
Em suas brincadeiras típicas, a maioria dos meninos pode manipular brinquedos que representam objetos (carros, aviões)
e fazê-lo agressivamente, enquanto as meninas tendem a brincar de cuidar de brinquedos (bonecas) que representam
pessoas. Assim, o garoto pode tender a ficar perdido em abstrações e relacionar-se com o mundo agressivamente, ao invés
de carinhosamente. Mas não precisa ser assim; se os pais reagem com carinho — ao invés de criticamente — mesmo à
brincadeira agressiva do menino, essas atitudes carinhosas irão instilar atitudes análogas no filho. E muitos meninos
pequenos são tão afetuosos quanto as irmãs, quando vestem ou despem seu bichino dc pano, dão banho ou os põem para
dormir.
Por isso, acredito que essas características não são inteiramente, ou mesmo primariamente, relacionadas com o sexo, mas
basicamente uma questão de condicionamento cultural. Imitando a mãe, t brincadeira da menina é muito mais dirigida
para o cuidado das pessoas, e são as interações pessoais que determinam a natureza de grande parte de nossa realidade
cotidiana. Além disso, sob as condições da vida moderna a menina tem muito mais oportunidades de observar e ajudar a
mãe em suas atividades maternais e domésticas, mesmo se são realizadas apenas depois que ela chega do trabalho, do que
o menino tem dè observar o pai e participar da sua atividade adulta principal. Ajudar o pai em tarefas dc casa num fim-de-
semana ou acompanhá-lo a uma pescaria não se pode comparar cm intensidade e importância com a observação de todo
dia, ou pelo menos de toda tarde, da mãe, e a ajuda em seus afazeres. Mesmo que a mãe esteja fora a maior parte do dia, a
menininha tem, em geral, a mesma oportunidade de observar a babá. Recriar na brincadeira o que a mãe faz, e ajuda-la
nisso, na verdade propicia outra série de experiências que ancoram a pessoa do sexo feminino firmemente na realidade
cotidiana, e prepara-a para enfrentar suas exigências.
Quanto melhor a criança compreende que a ocupação dos pais é significativa num nível que ela pode entender, de
preferência por sua própria experiência, mais imitará na brincadeira o que considera aspcc-tos importantes da vida deles.
A partir de suas próprias experiências, as crianças sabem como é importante o trabalho de alguns adultos, Como OS
professores, sacerdotes, médicos e enfermeiras. As crianças cujos pais não estão empenhados em atividades do tipo, não
obstante, brincam de médicos e enfermeiras, em parte porque isso lhes permite explorar os corpos dos outros, e em parte
por causa da importância que essas profissões têm para elas quando estão doentes. Apesar de todas as crianças brincarem
dessas ocupações, se um ou ambos os pais fazem esse trabalho, a brincadeira tornar- se-á muito niais significativa para
pais e filhos, porque facilita a identificação mútua.
O filho de um artista, digamos, um pintor, pode observar o que o pai faz, e acreditar que realmente entende seu trabalho,
se também pinta. E aquele pai estará muito mais envolvido com os borrões pintados pelo filho a dedo ou a pincel do que a
maioria dos outros. Com os computadores tornando possível a muitos pais trabalharem em casa, podemos esperar que
grande parte do dano causado pela industrialização à vida íntima de pais e
190
filhos possa ser parcialmente desfeito. Ainda que o que o pai faz com o computador seja um livro fechado para a criança
pequena, quando ela crescer terá muito mais condições de entender-lhe a vida profissional.
E de se esperar que o futuro desenvolvimento social e tecnológico — Como o computador — permita que os pais façam a
maior parte do trabalho em casa. Se for assim, seu trabalho, que muitas crianças conhecem apenas de ouvir falar,
tornar-se-á muito mais real para elas. Mais importante ainda, seus pais tornar-se-iam, no trabalho, tão reais quanto) o são,
hoje, em casa ou nos momentos de lazer. Assim, as vidas de pais e filhos, em sua totalidade, ficariam reciprocamente
reais. É de se esperar que isso ajude os pais a entender e aceitar que o mundo lúdico da criança é tão real e importante
para ela quanto o éo mundo profissional para eles, e que, portanto, deve-se-lhe conceder a mesma dignidade.
191
Mas ficam igualmente felizes ao serem, eles mesmos, absorvidos na brincadeira? Se a atividade lúdica do
filho é agradável ao pai, principalmente porque assim ele pode prosseguir.em suas atividades adultas sem se
sentir mal por negligenciar o filho, a criança não demorará a percebê-lo. Ela descobre logo que, para o pai, a
brincadeira em si não é importante, mas, sim, que ela esteja fora do caminho; essa lição a diminui e
diminui simultaneamente seu prazer na brincadeira, reduzindo a capacidade de essa brincadeira
desenvolver sua inteligência e personalidade.
O verdadeiro teste da crença do pai na brincadeira reflete-se não no que diz, mas na maneira como se
comporta. O fato é que os pais, com freqüência, comportam-se inconscientemente. Algumas vezes tudo
vai bem: o pai não está fazendo nada de especial importáncia, o filho o chama para brincar, e ele aceita,
pelo menos por um tempo. O filho quer que ele admire o que construiu, e o pai novamente acede. Masse
o pai está ocupado com alguma coisa que demande sua atenção, usualmente a resposta ao convite é:
“Agora não; estou ocupado.” Se o pai está de bom humor, pode prefaciar sua recusa com uma desculpa
ou promessa & compensá-lo depois, promessa nem sempre cumprida. Os pais tendem a pensar que, se o
filho não repete o apelo, é porque resolveu ou se esqueceu do problema. Mas muita criança ouve a
afirmação “dentro de um minutinho” como um fora, e não desea levar um segundo fora, caso repita a
solicitação.
Esse comportamento paterno sugere aos fIlhos que suas atividades raramente nos parecem tão
importantes quanto e dificilmente mais do que as nossas próprias. Não há nada de muito errado nisso
— — —
se ambas as partes estão çmpenhadas de modo igualmente sério, por que os pais deveriam abandonar o
que estão fazendo para juntar-se ao filho?
A situação é diferente, claro, quando há uma emergência, mas nesses casos a transferência de nossa atenção
é virtualmente automática. Isso é muito importante para a se-
192
gurança do filho e, portanto, algumas crianças inteligentes testam até que ponto podem confiar nisso, afirmando que uma
emergência surgiu. Outras, sem estar necessariamente quêrendo confirmar quão dignos de confiança os pais serão numa
crise, fingem que existe uma emergência a fim de trazerem o pai correndo para seu lado quando têm um grande desejo
de contar ou mostrar-lhe uma coisa importante. Mas isso só funciona por alguns minutos; depois o pai pára de responder, e
não faz mistério de seu aborrecimento por estar sendo explorado desse modo, como na fábula em que o menino gritava
“lobo” o tempo todo. Isso é compreensível. Mas será que está realmente sendo explorado quando o filho não poupa
sacrificios para mostrar-lhe como é importante que venha até ele, emergência ou não? Ou, colocando de modo diferente,
será que apenas o que nós consideramos emergência — como um perigo de verdade ou uma desgraça — é verdadeiramente
uma emergência? Ou será que a necessidade da criança de se tranqüilizar com relação à importância que tem para nós, ou
a importância do que está fazendo, não é também uma emergência?
Se o pai for apenas um pouquinho mais paciente com o chamado de emergência do filho, quando do que ele necessita é
convencer-se de que o pai está pronto a abandonar tudo e correr para o seu lado, se necessário — mesmo que possamos não
acreditar que seu pedido urgente seja justificado pela situação —, ele poderá sentir-se mais seguro a respeito de sua
importância Esse desenvolvimento da segurança interna da criança refletir-se-á num desenvolvimento paralelo de sua
relação com o pai, que será expresso numa relação mútua muito melhor. Tal resultado pode bem valer a inconveniência de
termos acedido ao que a criança sente como uma emergência, mesmo que, de nosso ponto de vista, não o seja.
As crianças apreciam nossa atenção imediata durante as emergências; entretanto elas também sabem que, na maioria das
vezes, é apenas uma emergência que nos leva imediatamente para seu lado, não o interesse em sua brincadeira. Elas
prefeririam que sempre deixássemos tudo por causa delas, mas à medida que crescem e amadurecem, deveriam aprender a
aceitas que não é razoável esperar que se duas pessoas estão absorvidas, uma sempre abandone o que está fazendo para se
juntar à outra.
Mas o que acontece quando a criança está profundamente absorvida numa brincadeira e os pais estão prontos para sair?
Eles chamam-na para vir vestir-se. Ou talvez queiram que venha cumprimentar uma visita, ou venha para a mesa
aLmoçar. Sua resposta é, como a nossa seria numa situação análoga: “Agora não, estou ocupado.” Será que estamos
preparados para honrar a declaração de nosso filho, como esperamos que ele honre a nossa? Ou insistimos: “Venha cá,
agora?” Se o fazemos, mais uma vez conseguimos impnmir nele a conclusão de que não levamos suas atividades tão a
sério quanto fazemos com as nossas. Pior, demonstramos que não levamos suas atividades nem um pouco a sério, quando
entram em conflito com nossos planos.
Mesmo não sendo um critério ideal, o fato é que muita gente afere o valor dos outros, assim como o seu próprio, pelo que
fazem. Se sua atividade é considerada importante, sentem-se importantes também. Essa avaliação pode ser injusta e
motrar grande desprezo:
a pessoa deve ser julgada pelo ser humano que é, não por seu trabalho ou status. Mas, considerando que muitos
adultos se avaliam e avaliam os outros desse modo, como podemos esperar que a criança aja de outra forma? Pode ser um
modo imaturo de avaliar alguém, mas a criança é imatura; ainda não desenvolveu um senso claro de que “o que eu
193
sou” é diferente de “o que eu faço,” e esse sentimento é frágil e assediado por grande insegurança Se o que a criança faz
não é considerado importante, ela freqüentemente vem a sentir que pensamos que ela, como pessoa, também é pouco
importante. Assim, a atitude do pai com relação à brincadeira do filho irá influenciar fortemente seus sentimentos futuros
sobre sua própria capacidade de ser importante e fazer coisas significativas.
Se levarmos a brincadeira de nossos filhos tão a sério quanto levamos nossas tarefas. não toleraremos interrompê-la, assim
como não gostamos que interfiram conosco quando estamos trabalhando. Esse é o padrão exigido pela consistência e pelo
senso de justiça; e uma recompensa por respeitar a brincadeira de nosso filho é que isso aumenta sua própria percepção de
que a brincadeira é uma atividade importante no contexto integral da vida familiar.
Isso não quer dizer que os pais sempre subestimem a brincadeira. Afinal, queremos que nossos filhos se divirtam;
compramo-lhes brinquedos e levamo-los ao plavground; somos conscienciosos a respeito de arranjar oportunidades para
brincarem. Infelizmente, entretanto, muitos pais dedicam-se seriamente apenas de forma muito seletiva, a alguns aspectos
das brincadeiras dos filhos, e o que escolhem costuma ser atividades pelas quais a criança se interessa quando já é bem
mais velha. As atitudes básicas, porém, São amplamente formadas mais cedo, e a criança maior pode já estar sofrendo as
conseqüências de suas brincadeiras antigas terem sido subestimadas. Por exemplo, se um pai e um filho estão no meio de
uma boa partida de xadrez, ou se um pai está envolvido nas ativid4des do filho na liga infantil de beisebol, dificilmente a
chamada para o jantar será logo respondida.
O pai que participa integralmente da atividade do filho por um envolvimento pessoal tem uma compreensão perfeita de
quão importante ela é — e essa atitude participativa é i’nuito diferente de estar envolvido apenas como pai. No primeiro
caso, o pai se juntará ao filho no protesto de que o jogo simplesmente não pode ser interrompido; no segundo, insistirá em
que a criança abandone o que está fazendo e obedeça à chamada para o jantar imediatamente. A criança observa essa
diferença e desanima quando entende como é raro levarmos sua brincadeira a sério, e que só o fazemos quando ela é
importante também para nós, não importa o quanto o seja para ela.
O que a criança explora em seus vários jogos de desorientação, como foi exemplificado antes no jogo da cabra-cega,
não é mais tão importante para os adultos, que há muito tempo conseguiram um bom grau de domínio sobre esse tipo
de confusão. Por outro lado, não podemos esperar reexperimentar a satisfação profunda que nosso filho obtém dc sua
investigação em brincadeiras que respondem a essas questões prementes de sua vida. Mas se compreendermos de verdade
o que essa brincadeira significa para ele, podemos, ao menos por tabela, participar de seu prazer. Podemos sentir prazer
em sua capacidade de absorver experiências significativas e sentir respeito por suas tentativas de encontrar respostas para
as questões existenciais que o atormentam. Na verdade, as questÕes dc permanência dos objetos e das intenções dos
outros estão entre os enigmas da idade das brincadeiras, e não estão, de modo algum, limitados apenas à infância remota.
A despeito de nosso encorajamento da brincadeira, nunca é benéfico que OS pais brinquem com seus filhos apenas por um
sentimento de dever. Brincar porque “deve
194
mos” não é simplesmente o mesmo que brincar junto com nosso filho, ou mesmo apreciar a importância de sua
brincadeira. Essa confusão sobre a intenção do pai é precisamente o que estraga muito da brincadeira da criança. Muitos
adultos, sejam pais ou professores, tentam brincar com as crianças com propósitos externos à brincadeira; podem querer
distrair, educar, diagnosticar ou guiá-las. Mas não é o que a criança deseja. A não ser que a brincadeira em si seja o
objetivo, ela perde muito do significado para a criança, e a participação do adulto torna-se ofensiva; a criança pode
perceber o propósito do adulto e aborrece-se com o fingimento de uma participação empolgada.
O uso de brinquedos educativos, tão do agrado de muitos pais, pode servir como ilustração. Não há nada de muito errado
com brinquedos educativos — se a ênfase está inteiramente no prazer da brincadeira, e não na intenção de educar. Tais
brinquedos tornam-se problemáticos, entretanto, quando a ênfase patema é colocada no que o uso dos mesmos
supostamente ensina à criança, mais do que no como a criança pretende usá-los. Os brinquedos educativos tomam-se
absolutamente mortais quando se espera que a criança aprenda o que eles foram destinados a ensinar, ao invés de aprender
o que ela quer, brincando com eles como seu capricho do momento sugerir. A criança deve poder usar qualquer brinquedo
da maneira que quiser, e não como o pai, o professor ou o fabricante pensa que ele deveria ser usado.
É surpreendente o que uma criança pequena pode aprender apenas brincando com o cartucho de papelão de um rolo de
papel higiênico, ou quão construtivo, imaginativo e educativo pode ser brincar com caixas vazias. Antigamente, quando as
linhas vinham em carretéis de madeira, as crianças pequenas usavam os carretéis como blocos e obtinham tanto prazer e
aprendizado deles quanto, agora, dos blocos de construção especialmente construídos. Na verdade, elas provavelmente
tiravam alguma coisa mais da brincadeira com carrctéis do que com blocos, desde que sabiam que os carretéis de madeira
tinham uma função essencial nos trabalhos de costura de suas mães. Assim, pais e filhos viam algo de importante
representado nos carretéis de madeira, ao passo que os blocos são importantes apenas para as crianças.
Alguns pais percebem espontaneamente o valor de um envolvimento pessoal nos objetos lúdicos do filho, se bem que nem
sempre estejam conscientes de quê é isso o que os motiva. Instintivamente adicionam uma nova medida de reciprocidade
ao prazer do filho, sem intenção expressa de fazê-lo. Com mais lazer e com seu próprio prazer em atividades artesanais,
esses pais podem ter tempo e inclinação para criarem brinquedos para os filhos, duplicando, assim o que seus pais ou avós
fizeram por necessidade. Esses pais criam uma experiência através da qual se tornam emocionalmente envolvidos com o
brinquedo que criaram com as próprias mãos. Eles obtêm uma enorme alegria não só da tarefa, mas também de imaginar
como o filho brincará com aqueles brinquedos. O significado que os pais investiram no brinquedo permanece ativo
quando brincam com o filho ou observam sua brincadeira
Outros pais fazem da produção de brinquedos um projeto comum. Por exemplo, com a ajuda do filho recolhem pedaços
de madeira Fazendo-o, ambos imaginam a forma que darão a esses retalhos. Juntos, lixam a madeira, e talvez a criança
convide algum colega para ajudar nesse trabalho e na pintura e no envernizamento que vêm em seguida. A partir de então,
e para sempre, esses blocos tornam-se especiais para pai e filho. Nenhum bloco comprado em loja pode comparar-se em
importância com esses exemplos visíveis e tangí
195
Mas então o pai começou a insistir que o filho começasse a levar a “sério” o que estava fazendo, e a aprender tudo o que
se relacionava ao saber e à ciência do colecionamento de selos. Isso foi um choque e um desapontamento terrível para o
garoto, que, até esse momento, acreditava que o que estava fazendo era muito sério. Agora já não lhe permitiam
entregar-se à fantasia enquanto organizava os selos a seu próprio modo, mas foi-Lhe dito que deveria ser maduramente
sistemático — como o pai. O que anteriormente fora um laço forte entre pai e filho rapidamente se tomou uma fonte de
mútua irritação, com o pai insistindo em que o filho manuseasse os selos do “modo correto.” Essa exigência não fazia
sentido para o garoto, porque requeria muito de sua jovem paciência e muito mais conhecimento do que ele possuía
Enquanto esteve livre para tecer seus devaneios sobre selos e o pai esteve igualmente envolvido nos próprios pensamentos
sobre selos, cada um podia sentir prazer no que fazia. Mas quando o pai transformou-se num educador consciente e tentou
ensinar não pelo exemplo de seu envolvimento sério, que tinha sido a origem do interesse do menino, mas forçando-o a
colecionar selos de modo adulto, sua atividade comum tomou- se uma fonte de grande conflito. O menino sentiu
(legitimamente) que jamais poderia satisfazer as exigências do pai, e o pai sentiu que o filho não estava aproveitando tudo
o que deveria da atividade. Décadas após, o menino — agora um homem adulto — ainda se entristecia pelo fato de uma
atividade que durante algum tempo foi e poderia ter permanecido um laço profundo entre ele e o pai ter-se tomado, ao
invés, uma fonte de profundo desapontamento.
Muitos pais, como o dessa história, se deixam levar pelas perguntas do filho sobre como fazer alguma coisa, ou pelo
desejo de ver o filho fazê-la bem. Tendem a responder às
196
perguntas com grandes detalhes técnicos, tentando equivocadamente ensinar habilidades complexas e minúcias, ao invés
de ajudar a criança a encontrar o nível apropriado à sua idade de fazer e entender. A criança quer adquirir perícia, mas
pode fazê-lo apenas pouco a pouco, à sua própria maneira e .em seu próprio ritmo. Forçar profissionalismo prematuro nas
crianças pode azedar seu interese original numa atividade, e que passa a não ser mais agradável para ela em seus próprios
termos.
A verdadeira tragédia—uma tragédia que é repetida muito mais vezes e de modos muito mais variados na vida das
crianças do que os pais imaginam — é que as intenções do pai eram boas: ele queria fazer do colecionar selos alguma coisa
de que ele e o filho pudessem reahnente compartilhar. O nenino também estava motivado pelo desejo de fazer uma coisa
que o ligasse mais ao pai. Mas quando este lhe deu a impressão de que aquilo que estava fazendo não se enquadra’a nos
seus padrões, o menino desapontou-se, não apenas com relação a colecionai selos e ao que isso poderia oferecer, mas
consigo próprio, porque não podia chegar à altura da expectativa do pai.
Eles continuaram a trabalhar juntos com selos, mas apenas por pouco tempo. Opai tomou-se frustrado porque seus
esforços de ensinar ao filho o modo apropriado de colecioná-los não levou a nada, a não ser a uma insatisfação mútua. O
menino sentiu-se ainda mais frustrado, porque agora não podia mais gostar do que fora seu maior prazer na vida. Ainda
pior foi o desapontamento consigo próprio. Até o momento em que o pai decidiu que ele devia levar mais a “sério” a
atividade de colecionar selos, o menino vinha se achando ótimo, mas agora se sentia inferior, incapaz de alcançar o que se
esperava dele.
Anos mais tarde, depois da morte do pai, o filho tomou-se muito mais bem-sucedido em sua prQfissão do que o pai jamais
fora. Mas ainda passava tempos difíceis lutando contra seu sentimento de inferioridade, cujas sementes, estava
convencido, foram plantadas nessa experiência frustrante. Depois disso, passou a não poder mais confiar em si próprio,
quando pensava que estava fazendo alguma coisa direito. A maioria de suas lembranças do pai era uma combinação desse
desejo nostálgico do paraíso que desfrutara antes que o pai se convencesse de que era hora de introduzi-lo aos níveis
adultos da filatelia, com seu ressentimento por ter sido subitamente criticado e levado a sentir-se inferior. Ele não pôde
atenuar esse sentimento precisamente porque tinha se sentido otimamente até o momento em que o pai incutiu-lhe a
impressão de que não estava se saindo bastante bem. A tragédia mencionada anteriormente foi dupla: do pai, porque o
esforço de aproximar-se do filho levou a um afastamento mútuo; e do filho, porque seu sentimento de estar tão próximo
do pai e tão feliz terminou subitamente, deixando-o, daí em diante, privado desse sentimento que até então o sustentara. A
partir dessa ocasião, a simples idéia de colecionar selos desanimava-o.
Nós todos gostaríamos de acreditar que, mais tarde na vida, nossos filhos se lembrarão de nossos esforços para ensinar-
lhes a fazer bem as coisas; essa esperança é, com freqüência, a motivação para os pais agirem como educadores
conscientes, como nesse exemplo. Mas devido à insegurança que toda criança sente, é, infelizmente, mais provável que a
dor da crítica patema crie uma impressão mais forte e mais duradoura do que os esforços conscientes para ensinar ao filho
como “fazer as coisas direito.” As crianças sempre tomam essas críticas paternas em sentido pessoal, já que não têm a
vantagem da objetividade adulta.
197
O que aconteceu em relação a selos, nesse exemplo, também pode acontecer em inúmeras outras situações, como quando
o pai começa a treinar o fllh para torná-lo um astro da liga infantil de beisebol. Num processo sério de treinamento
visando à vitória, é provável que algo se perca — a alegria do jogo, pelo menos. E, bastante paradoxalmente, a atenção
paterna intensa, do tipo errado, pode lançar as sementes de um desenvolvimento infeliz no futuro, O conflito de motivos
entre pai e fflho que começa no jogo — quando o motivo do pai desconsidera o do filho — pode transformar-se, mais tarde,
no que chamamos de abismo entre gerações. E isso pode acontecer com pais que estão convictos que não haverá abismos
entre eles e os filhos, uma vez que sempre ensinaram o que as crianças queriam aprender. É claro que elas querem
aprender, mas num ritmo próprio. Em suas fantasias, as crianças querem fazer exatamente o que o pai ou a mãe faz — mas
as fantasias do que os pais fazem são muito diferentes da realidade. As crianças não podem entender isso, mas os pais
devem. Pensar que as fantasias suscitadas por alguma atividade, ou que as ações em si podem ser as mesmas para o pai e o
filho é negar a dimensão real da diferença de idades entre os dois.
Assim, sempre houve e sempre haverá situações lúdicas em que o adulto não pode participar inteiramente da alegria do
filho na atividade em si. Não podemos sentir o mesmo prazer que uma criança pequena sente ao jogar bolinhas plásticas
numa garrafa de leite centenas de vezes, ou quando empurra um caminhãozinho para frente e para trás, ou puxa um
brinquedo pela casa com a infinita atenção que essas importantes atividades merecem a seus olhos. Essas são situações em
que somente nossa apreciação da importância que a brincadeira tem para a criança e nosso prazer cm sua alegria pode
formar a ponte entre pai e filho.
Talvez devamos ter em mente essa analogia quando observarmos o que nos parecerá uma brincadeira monótona. Pode
servir para nos lembrar do quanto são significativos para o adulto certos comportamentos rcpctitivos, apesar de os
chamarmos de “esportes,” ao invés de “brincadeiras.” Finalmente, quando olhamos nossos filhos brincarem, podemos
sentir prazer em sua alegria e em sua inteligência, persistência, habilidade, boa aparência ou charme. Enquanto nos
deliciarmos com nossos filhos por quaisquer razões que sejam naturais para nós, eles interpretarão nossa felicidade como
alegria pelo que estão fazendo, já que eles próprios estão encantados com sua brincadeira e, mais ainda com nossa
aprovação deles e de seus esforços. Por mais que tenham pensamentos diferentes, tanto os pais quanto os filhos terão,
assim, uma experiência emocional comum que forma um laço que, bem nutrido em muitas experiências, irá durar
enquanto viverem.
198
BRINCANDO JUNTOS
A despeito de tudo que foi dito, é óbvio que os pais não podem ter sempre empatia direta com a experiência lúdica dos
filhos. Mas, certamente, é possível ajudar os pais a se tornar conscientes das diferentes necessidades, antecipações e
desejos que a criança traz para sua brincadeira, desde que o pai perceba e aceite o fato de que existem divergências entre
pai e filho. E, quanto maior o envolvimento emocional do pai na brincadeira, mais benéfico ele é para o filho e para a
relação entre os dois.
Quase toda mãe pode lembrar com prazer as fantasias elaboradas que representou com suas bonecas: o carinho com que
cuidou delas, a raiva feroz com que as maltratou. Essa mãe irá fornecer bonecas aos filhos; pode mesmo criar lindas
roupas para elas. Mas quantas horas estará disposta a passar brincando de bonecas com a filha? Hoje em dia, as mães
acreditam estar muito ocupadas com coisas mais importantes para se incomodarem com brincadeiras. Agindo assim,
privam-se de experiências que, se se permitissem mergulhar nelas, poderiam revelar-se muito mais significativas do que
seriam capazes de imaginar. Se a mãe arranjar tempo para brincar com a fflha, por exemplo, ficará certamente fascinada
pelas histórias que a criança inventa sobre as bonecas e o tipo de experiências pelas quais as faz passar. Isso pode até
trazer de volta para a mãe, histórias que teceu sobre suas próprias bonecas, ela pode descobrir aspectos anteriormente
desconhecidos ou há muito esquecidos de sua infância. Se seguir essas linhas de pensamento, os paralelos e diferenças
entre suas fantasias de criança e as da filha irão dizer-lhe muito sobre a menina, e dar-lhe-ão um sentimento preciso de
como a criança se sente. É muito ruim que muitas mães tenham esquecido tão completamente o grande prazer alegria que
sentiam quando ua mãe concordava em brincar com elas, e o sentimento de abandono que experimentavam quando ela
não se juntava à brincadeira.
Aqui há um aspecto muito importante da brincadeira, um que freqüentemente é subestimado: faz grande diferença para a
criança e sua brincadeira poder dividir suas experiências com um adulto capaz de lembrar experiências de infância a
respeito da mesma brincadeira Há muito lugar na vida da maioria das crianças para brincadeiras com outras crianças, tanto
as espontâneas como as organizadas na escola maternal ou nos plavgrounds, e também para brincadeiras solitárias. Isso é,
haveria muito lugar para brincadeiras em casa se a televisão não o ocupasse. Mas os pais, mesmo aqueles preocupados
com a televisão, não raro deixam de se perguntar com a devida atenção por que seu filho parece mesmerizado por ela. A
razão mais comum para essa fascinação é o desejo que a criança tem de escapar à solidão e estas em contato pelo menos
com personagens imaginários na tela, quando pessoas reais não estão disponíveis. A não ser que sua relação com os pais
esteja gravemente perturbada, ou sua capacidade de se relacionar seriamente debilitada
— ambos sinais nefastos de distúrbio emocional —, toda criança preferiria interagir com pessoas reais num ambiente real a se
relacionar com pessoas imaginárias na tela de televisão. A brincadeira solitária, que os pais com freqüência tentam
promover no lugar da televisão, não pode satisfazer essa necessidade, nem tomar o lugar das pessoas, mesmo as
imaginárias, se as reais não estão disponíveis.
Quando pessoas que cresceram antes que a televisão se tornasse onipresente nos lares refletem sobre o passado, vêem que
conseguiam preencher seu tempo vago com brincadeiras e se perguntam por que será que as crianças modernas parecem
incapazes de
199
fazê-lo e se voltam para a televisão; mas em geral se esquecem de se perguntar o que fariam se houvesse televisão naquele
tempo. Muito provavelmente também sentiam, com freqüência, a necessidade de interação com pessoas e, quando isso
não era possível, voltavam-se para a brincadeira e para a fantasia dessas interações, brincando com bonecas, soldados, ou
outras figuras de brinquedo, apenas porque interações imaginarias com pessoas, como através da televisão, não estavam a
seu alcance. Além disso, antes que a televisão constituisse uma saída para essa necessidade, talvez essas crianças
insistissem mais energicamente em que os pais ou irmãos brincassem com elas, satisfazendo assim, eventual- mente, seu
verdadeiro desejo. Muitas crianças modernas, rejeitadas pelos pais, não continuam a insistir para que brinquem com elas,
mas, désanimados, voltam-se para a televisão como a segunda melhor oportunidade de interação com figuras pelo menos
imaginárias. Infelizmente, essas crianças são seriamente privadas de oportunidades de forjar laços de intimidade com as-
pessoas mais importantes de suas vidas — os pais—, ao redor de ativictades lúdicas também absorventes e significativas
para ambos.
Já que muitas crianças hoje vão para a escola maternal mais cedo, e lá têm a oportunidade de brincar, por que essa
experiência não pode substituir a brincadeira com OS pais? A resposta mais óbvia é a mais importante: porque esses outros
companheiros dc brincadeiras não são os pais. Nada que qualquer outra pessoa diga ou faça pode comparar-se cm
significância para uma criança com o que seu pai diz ou faz. A criança pequena não pode evitar a procura da aprovação
paterna; nada sustenta mais a sua auto-estima do que a aprovação do pai. Mais que isso, nada a precipita num desespero
mais profundo do que a falta de interesse ou a crítica do pai. Quanto mais nova a criança, mais isso é verdade. Por coa-
seguinte, apenas um tipo de envolvimento paterno na brincadeira da criança pode fazer com que ela pareça
verdadeiramente importante e proveitosa. Sem is-so, a brincadeira é “coisa de criança,” sem muita relevância, algo que
urna professora de escola maternal ou uma babá faz porque é seu trabalho, e mantém a criança quieta.
A criança não quer que a façam “ficar quieta.” Ela precisa e quer fazer coisas que lhe pareçam importantes. Por exemplo,
é sempre excitante para a criança pequena investigar o conteúdo de uma bolsa — mas nada se pode comparar com virar a
bolsa de sua mãe pelo avesso. Fascinantes como são em geral os segredos dos adultos, nenhum é mais interessante
que os de nossos pais. A criança é curiosa a respeito do conteúdo das gavetas dos pais! O que outras pessoas fazem, o que
têm, como organizam as coisas — tudo isso se torna importante à medida que a criança começa a aprender as diferenças
entre como as coisas são feitas por sua família e como são feitas em outros lares. Mas, primeiro, ela quer saber como as
coisas são feitas em casa.
Por exemplo, por mais inócuo que seja o conteúdo da bolsa de sua mãe, explorá-lo é uma brincadeira
excitante e importante para a criança. A bolsa deve ser tremendamente importante, ela pensa: olha só como ela
sempre a carrega consigo, apertando-a de modo a não perdê-la. Se encararmos desse modo as investigações
de nosso filho, podemos sentir prazer em seu desejo ávido de descobrir as coisas, e ficar gratificados por seu
interesse em nós e no que possuímos. Mas podemos também ir mais longe e entender o significado profundo e
freqüentemente simbólico, inconsciente que essa busca tem para ele. As próprias crianças, sem dúvida, não se
dão contado motivo de suas explorações, mas podemos imaginar o significado oculto por trás do grande e
natural desejo de investigar o conteúdo da bolsa da mãe e da cômoda do pai. Pesquisas psicanalíticas
mostraram que essas explora-
200
ções, particularmente a da bolsa da mãe, têm muito a ver com a curiosidade sexual da criança Mas uma curiosidade sexual
a seu próprio nível — não em relação ao sexo como nóso consideramos.
Vale a pena ressaltar nesse sentido que a brincadeira ccim revólveres, sobretudo pistolas de água (e isso é verdade
basicamente para os meninos, quanto mais não seja, porque às meninas — o que muito as prejudica — são dadas menos
oportunidades para esse tipo de brincadeiras), tem freqüentemente a ver com os esforços da criança para entender a função
da genitália masculina. E isso não em termos do conhecimento sexual adulto, mas dentro dos parâmetros do conhecimento
direto dos meninos e meninas da função do pénis — urinar. Em termos da experiência da criança pequena isso é tudo que
interessa. Já que as meninas têm tanto interesse por isso quanto os meninos, brinquedos que espirram água (incluindo
pistolas) são de grande interesse para ambos os sexos. Similarmente, a fascinação de meninos e meninas pela bolsa da
mãe está inconscientemente ligada à curiosidade sobre o que pode estar escondido na vagina, e os segredos que lá podem
ser encontrados. As crianças geralmente deduzem que, de algum modo obscuro, elas foram encontradas lá — quem sabe
que outros segredos podem ser descobertos? Novamente, o órgão sexual é visto não em termos adultos, mas a partir dos
próprios pontos de referência da criança Todas as crianças são curiosas sobre a serventia dos órgãos sexuais, como é que
eles vêm em duas variedades tão interessantes. É isso que tentam explorar, e é sobre isso que precisam de informações —
não sobre o que os adultos fazem quando se empenham em atividades sexuais.
Se damos aprovação tácita à investigação de nosso filho das gavetas e bolsas, e tambem à sua brincadeira com brinquedos
que espirram água, estamos lhe dando também segurança implícita com relação à curiosidade sexual correta para sua
idade. l)eixamos implícito que sexo é um assunto de interesse legítimo para ele. Criticando esse comportamento — puxando
irritados a bolsa para evitar que sqi conteúdo derrame, ou proibindo ou mostrando aborrecimento com a brincadeira com
pistola de água ou qualquer brinquedo que espirre água —, estamos sendo inibidores do sexo, e justamente numa idade em
que a liberdade de explorar é o mais importante. Se explorar a bolsa ou as gavetas da mãe é errrado, como poderá ser certa
a tentativa de compreender a função de sua vagina? Essas ações inibidoras terão conseqüências infelizes não importa quão
seriamente os pais digam aos filhos que o sexo é “normal,” “prazeroso,” seja qual for a terminologia empregada na
esperança de evitar futuros “grilos” sexuais. l)izer à criança que seu comportamento sexual futuro será prazeroso ou
aprovado ajuda pouco se ela é levada a sentir-se culpada por sua exploração sexual simbólica do presente. Para ela, a
proibição só pode siguificar que é errado tentar entender o sexo OU dominar problemas scxuais a nível lúdico. Daí se segue
(em sua mente ) que qualquer tipo dc SCXO é errado, não importa o que os pais possam dizer em seus esforços conscientes
de propiciar informação sexual “correta.” Apenas a informação dada de forma apropriada à idade é compreensível para a
criança; o que seria informação apropriada à idade para um adulto, não é, portanto, correto para a criança.
Mas se, através de nossas atitudes com relação a suas investigações sexuais simbolicas, pudermos móstrar à criança que
está tudo bem, dar-lhe-emos oseitimento de que o sexo é um aspecto normal da vida humana. Se encorajamos uma atitude
positiva de expIo-
201
ração, a criança pequena, que tem apenas as noções mais nebulosas sobre o sexo em geral, aos poucos
chegará a uma compreensão mais completa; terá obtido o sentimento de que o sexo é normal a partir de
nossa atitude positiva quanto a suas atividades sexuais infantis e suas explorações sexuais sitnbólicas, e
isso se estenderá e será mantido a cada novo nível de percepção sexual adequada à idade.
202
Testando-nos através da Competição
‘Agora veremos quem é mais forte, eu ou eu”
— Holofernes, na peça de NestroyJuditb e Holofernes
A CRIANÇA FAMILIARIZA-SE com as coisas materiais e suas propriedades enquanto brinca com elas;
assim, domina os objetos e eles tornam-se aceitáveis. É por esse motivo que brincar com a comida é tão
importante para a criança pequena, é por isso que tenta alimentar a pesssoa que a alimenta. Manuseando-a, a
comida fica sedo familiar; torna-se verdadeiramente sua comida. Quanto mais a amassa, mais sente que é
segura e mais agradável de ser ingerida. Alimentando a mãe, demonstra a si mesma que não é apenas o
recipiente passivo de comida, mas também seu ativo distribuidor; dominar o processo de alimentação torna o
comer muito mais agradável.
Quem alimenta quem é uma das primeiras competições das quais a criança participa; ela baseia-se nos
sentimentos mais carinhosos e felizes. Um bebê que tem sentimentos negativos a respeito de sua comida ou a
respeito da pessoa que o alimenta se bem que na tenra idade dificilmente possa separar os dois resistirá a
— —
ser alimentado e lutará com quem tenta fazê-lo comer; além disso, não terá o desejo de alimentar os outros.
Em torno da primeira relação do be1ê, que é com a pessoa que cuida dele, e ao redor da experiência mais
antiga, a de ser alimentado, pode ocorrer a competição mais positiva, ou a mais negativa, culminando com a
recusa da criança a alimentar-se. A competição lúdica positiva é conveniente e benéfica, e a negativa é
destrutiva, mas ambas são esforços de auto-afirmação. Se não é derrotada nessas competições, qualquer dos
dois tipos pode contribuir para sua auto-estima. No entanto, quando é derrotada nessas primeiras competições,
a experiência terá sérias conseqüências prejudicais à sua auto- estima e à sua capacidade de relacionar-se com
os outros.
Quando a auto-estima éo resultado de competições em que os contendores são positivamente relacionados não
há perdedores, mas apenas vencedores. Quando a criança, porque gosta tanto de ser alimentada, deseja
propiciar à mãe a mesma experiência, ambos são vencedores. Essas competições terão apenas conotações
felizes; constituem a base para boas relações com os outros. Em contraste, é muito difícil desenvolver
qualquer auto-estima mesmo em tomo de uma auto-afirmação bem-sucedida lutando contra experiências
— —
indesejáveis, como quando a criança cospe a comida com a qual é alimentada de modo para ela inaceitável ou
ofensivo. Qualquer estima que possa ser obtida a partir dessa espécie de auto-afirmação negativa terá, no
melhor dos ca
203
sos, conotações defensivas, e se tornará a base de esforços para retê-la e reforçá-la de modo solitário, ao invés de através
de boas relações com os Outros.
Outra grande fonte de auto-estima é a experiência do bebê de que pode fazer coisas — segurar objetos, fazer com que façam
o que quer, e fazer com que o corpo faça coisas para ele, como quando aprende a engatinhar. Aqui, como ao longo de toda
a infância, é fundamental para a sua auto-estima a aprovação, admiração e o amor das pessoas mais importantes para ele.
Mais tarde, o conhecimento e o domínio dos objetos pela criança toma-se relativamente seguro através da brincadeira, e
ela entende melhor o que pode fazer. Aos poucos, ela se torna mais interessada e mais bem equipada para desfrutar
também das formas mais avançadas de domínio que os jogos podem propiciar — um domínio alcançado através de
competições. Brincadeiras solitárias e jogos com outros são atividades que, daí em diante se alternarão, dependendo das
oportunidades e das necessidades ou predileções do momento.
Quanto maior a criança vai ficando, mais o desenvolvimento de sua auto-estima depende do sucesso em competições reais
ou lúdicas, incluindo bastante aquelas em que compete com suas próprias performances do passado, ou nas quais um
aspecto de sua personalidade compete com outros pelo domínio. É então que os jogos ficam ainda mais importantes,
como experiências, e para o desenvolvimento da personalidade da criança. Jogando, ela pode demonstrar a si próopria e
aos outros o quanto pode fazer, como pode ter bom desempenho intelectual e físico. Através de sua vitória ganhará
admiração — ou pelo menos assim espera — que reforçará a sua auto-estima.
Enquanto a brincadeira pode ser, e freqüentemente é, solitária, os jogos implicam algum tipo de companheirismo, como
indicado pela palavra gaman, das línguas saxônica e gótica antigas, significando “companheirismo”, da qual a palavra é
derivada. A palavra modernagame pode referir-se a qualquer tipo de brincadeira, mas seu sentido particular, de acordo
com o Webster’sNew WorldDictionary, é “qualquer diversão ou esporte específico envolvendo competição mental ou
fisica sob regras específicas” e, para enfatizar que esses são dois tipos muito diferentes de competição, está acrescentado
entre parênteses: “futebol e xadrez sãojogos “TheShorterOxfordEnglishDictionary exprime a mesma idéia
oferecendo essa definição: “Uma diversão de natureza competitiva, jogada de acordo com regras, e decidida por
habilidade, força ou boa sorte.” Assim, a competição é a essência dos jogos, e vencer é o objetivo desejado; isso é claro.
Que a criança tente ganhar e provar sua competência competindo não chega a ser surpresa, desde que ambas as palavras
são derivadas da mesma raiz latina, competere, que tem, entre outros significados, o de “lutar por (alguma coisa) junto
com outra.”
O que não é tão óbvio é que quase sempre o elemento mais importante da competição nos jogos seja a contenda interna
entre aspectos diferentes de nossa personalidade. Se o domínio particular que buscamos alcançar, jogando, é sobre nós
mesmos — e com ele a auto-estima que pode vir em conseqüência —, esse objetivo é camuflado pela competição com outros,
cuja importância, então, é servir como contraste ou padrão contra o qual o indivíduo se mede. O sentimento de auto-
estima que adquirimos através de jogos envolvendo competição — quando jogamos bem e ganhamos — é em
204
geral muito mais importante do que a derrota do competidor, e freqüentemente constitui o incentivo principal para se
jogar, a princípio.
Consideremos as competições em que as crianças pequenas se empenham, particularmente durante os estágios primários
do jogar. Elas olham uma para a outra, e a primeira a piscar ou rir perde; competem para ver quem segura a respiração por
mais tempo; ou apertam a mão uma da outra para ver quem suporta a dor sem desistir. Na superfície, parece que o
propósito de tais competições é vencer o outro, mas num nível mais importante, o domínio que é buscado e testado é sobre
nós mesmos: descobrir e demonstrar nossa resistência, controlar nossas expressões emocionais involuntárias e nossas
reações fisicas. Muito mais significativo que mostrar superioridade sobre o antagonista é a auto-estima que adquirimos
através desse domínio sobre nós mesmos.
Algumas crianças marcam pontos por sua habilidade em exercitar esse tipo de autocontrole, e sabem muito bem que a
questão é a capacidade de sua mente, ou vontade, de conscientemente dominar as reações espontâneas do corpo. Esses
jogos são tão comuns que podemos afirmar que todas as crianças, numa época ou outra, empenham-se em jogos cujo
propósito principal é testar a si e a seu desempenho. Conheci um menino de seis anos que marcava os pontos em duas
colunas que rotulara de “Eu” e “Minha mente”, indicando que para ele a questão não era se ele ou o parceiro ganhava, mas
em que medida sua mente podia controlar seu corpo.
DEFININDO O EU
Há um mundo de diferença entre obedecer ao comando de outro e nos controlarmos. A aprendizagem de asseio — por ser
uma experiência socializante tão fundamental — pode ser usada para ilustrar esse ponto. Na superfície parece que a criança
torna-se treinada porque o pai o quer; mas as coisas não acontecem na verdade desse modo. Não importa o quanto o pai
possa querer que o filho domine a aprendizagem de asseio, pois se a criança recusa, o treinamento falha. A aprendizagem
como resultado de um pacto com o pai — “eu obedeço e você vai me amar” — é muito problemática. Algumas crianças que
cedem à pressão paterna passam a desenvolver traços neuróticos.
A aprendizagem de asseio mais bem-sucedida parece ser o resultado de um pacto da criança consigo mesma: “Eu vou me
controlar, de modo que meus pais gostem mais de mim, e de modo que eu possa orgulhar-me de mim mesma.” Essa
atitude é a única verdadeiramente efetiva, O “faça isso pela mamãe”, enquanto ponto de partida necessário para esse tipo
de auto-restrição, levará a um fracasso definitivo no desenvolvimento da personalidade se não culminar no pacto da
criança consigo mesma: “Eu que. ro me treinar” — que afinal resulta na auto-estima baseada no “eu fiz sozinha.” Assim,
embora Piaget esteja certo em sugerir que o pacto conosco deriva dos outros, de seus desejos e de um desejo de agradá-
los, eu acredito que esse é apenas o ponto de partida.
A psicanálise tende a ver o desenvolvimento do eu como derivado da relação contínua entre a criança e a pessoa que cuida
dela, e isso é indubitavelmente verdadeiro. Muito mais questionável, entretanto, é a noção simplista de que a criança
torna-se socializada primariamente para agradar à mãe. O desenvolvimento humano normal requer a integração de duas
experiências: primeiro, de agradar a nós mesmos, e também de agradar aos outros. Isso pode ser observado no
comportamento e na experiência do
205
bebê. Ele baba, faz bolhas, estica a língua para agradar a si próprio e adquirir informação sobre o que sua boca
pode fazer por ele. A experiência é prenchida de prazer funcional, e, como todas as brincadeiras, é direcionada
no sentido de adquirir mais controle e domínio.
O prazer que a fflãe sente ao olhar o prazer do bebê, e a maneira pela qual responde a seus ruídos
gorgolejantes com seus próprios sons transforma a brincadeira solitária numa atividade mútua na qual cada
participante provoca uma reação no outro. Nesse sentido, ela espelha a dinâmica de muitos jogos. Mas nesse,
como no que a criança alimenta a mãe, ninguém perde; ao contrário, ambos ganham. À medida em que mãe e
filho repetem a experiência uma e outra vez, reafirmando a integração de agradar a si mesmo e ao outro, a
criança se fortalece em sua convicção de que ter e dar prazer são facetas inter-relacionadas, e não separadas,
da vida.
COMPETIÇÕES COM O EU
Os jogos da criança consigo mesma, nos quais se impõe regras estritas e rigorosamente as õbedece, sempre
precedem a insistência de que outros obedeçam às regras. Esses jogos são de enorme importância na
preparação da criança para jogos bem-sucedidos com os outros. Nem todos os jogos que a criança joga
sozinha entram nessa categoria, mas muitos servem exatamente a esse propósito. Isso é verdade para os jogos
de não se mexer ou titubear, mencionados antes, ou naqueles que requerem suplantar um sentimento de
revulsão etc. Existem semelhanças espantosas entre esse e os jogos rituais, como ordenar-se a não pisar em
rachaduras, ou pular sobre um pé por alguma distância auto-imposta, se bem que esses jogos constem menos
de demonstração de autodomínio e mais de propiciar a experiência de triunfo sobre um obstáculo. A essência
desses jogos é que a dificuldade é auto-imposta, e a conseqüência da experiência lúdica é uma intensificação
do eu.
Uma comparação psicológica de jogos em que as regras ou obstáculos sao auto- impostos com outros nos
quais as regras são externamente determinadas sugere um- processo de duas etapas no desenvolvimento da
personalidade. O eu individual desen volve-se em comparativo isolamento, enquanto o caráter, ou
personalidade social, só pode ser alcançado através da interação com os outros. Obedecer a uma regra auto-
imposta quando se está “jogando sério” ou enfrentar outros desafios dessa espécie aumenta o
desenvolvimento do respeito próprio e o sentimento de autodomínio. Obedecer às regras prefixadas de um
jogo formal e organizado leva ao desenvolvimento do indivíduo no sentido de um ser humano social. Goethe,
num dito que citei parcial- mente antes, descreveu maravilhosamente esse desenvolvimento bifurcado
necessário para alcançar a humanidade integral: “O talento é mais bem formado em solidão; e o caráter, nas
tempestades do mundo” (“Es bildet em Talent sich in der Stille, und em Charakter in dem Sturm der Welt”).
Aprender a controlar e a demonstrar agressividade éo propósito subjacente de muitos jogos, sobretudo os que
envolvem contato físico. Todos os esportes de contato requerem que a agressividade seja mantida nas
fronteiras estabelecidas pelas regras do jogo, se bem que a agressão seja excitada pela competição inerente ao
jogo e pela necessidade de resistir à agressão do antagonista. Este, por sua vez, precisa também se
206
limitar ao que é permitido pelas regras; não obstante, suas ações são experimentadas como ameaças ao nosso
corpo e a nosso sentimento de competência; assim, elas aumentam nossas tendências agressivas, o que torna o
autocontrole tanto mais difícil quanto mais necessário.
Há muitos jogos que podem ser jogados sozinhos ou com outros; mas, exista ou não a competição com outros,
há sempre competição conosco mesmos, e nossa auto- estima está sempre em jogo. Jogar uma bola na parede
e pegá-la de volta, ou jogá-la num cesto, seja um jogo no qual nos empenhamos por prazer ou para aprimorar
nossa habilidade, podem ainda evocar sentimentos bastante irados e agressivos quando as coisas não correm
bem. Essa agressão precisa ser mantida sob controle, como as crianças logo percebem se não, elas cometem
—
ainda mais erros. Isso é certamente verdadeiro no golfe, por exemplo. Esse jogo é claramente designado para
nos testar, e talvez para impressionar espectadores reais ou imaginários. Isso pode ser verdade mesmo quando
as crianças brincam com brinquedos como ioiôs. Muitos jogos de pular corda são claramente meios de
mostrar e melhorar nossas habilidades tanto quanto de competir com outros. Existem muitos jogos enérgicos
nos quais não se permite contato corporal que, não obstante, são altamente competitivos, como o tênis ou
basquete, e, é claro, jogos de contato físico como futebol americano ou luta livre também são muito
competitivos. Mas mesmo nos jogos que claramente envolvem a vitória sobre nossos competidores estamos
freqüentemente empenhados não tanto na vitória sobre os outros como em competir conosco e provarmo-nos
a nós mesmos e em impressionar terceiros (presentes ou ausentes) cuja admiração e aprovação reforçam nossa
auto-estima.
O SIGNIFICADO DA VITÓRIA
Na tradição medieval, um cavaleiro que entrava num torneio deixava claro que estava competindo
primeiramente pelo favor e pela admiração de sua dama e para provar-lhe sua bravura. Ao mesmo tempo,
estava provando sua bravura a si mesmo e aos outros, para que ele próprio se sentisse seguro a esse respeito.
Apenas secundariamente o seu propósito era o de derrotar o oponente. Similarmente, hoje, o valor principal
de um troféu ganho em competição é o prazer de exibi-lo para a admiração dos outros que, assim, continuam
a reforçar nossa auto-estima. Embora no calor da luta desejemos derrotar nossos oponentes, assim que nos
tornamos vitoriosos os oponentes ficam, em comparação, relativamente desimportantes, a não ser que por
acaso alguma inimizade pessoal esteja envolvida. Seja reconhecida abertamente ou escondida, seja ela um
sucesso numa competição mental ou fisica, a vitória é vivenciada pela criança como uma justificação de si
própria, e como um presente que oferece aos pais ou a outros que ela deseja que dêem valor a ela própria e à
sua vitória. Assim, os jogos permitem verdadeiramente às crianças a oportunidade de demonstrar seu valor,
mostrando-se superiores aos outros.
A investigação psicanalítica mostrou repetidamente que a rivalidade das crianças nos jogos é uma projeção de
sua rivalidade pelo amor dos pais, ou de outros que ocupam o lugar deles. A competição na sala de aula,
particularmente nos primeiros anos, se dá não pelas notas em si, mas pela aprovação dos professores, devido
ao reforço da
207
auto-estima que ela propicia. As outras crianças servem apenas como uma cobertura conveniente para
disfarçar o objeto real da competição. Nessa idade, os professores são, em muitos aspectos, vistos
subconscientemente como substitutos para os pais, e se sair melhor do que outras crianças é muito desejado
porque, ao vencê-las, a criança recebe a aprovação e a afeição paterna.
Não há parques de diversões sem jogos de habilidade e sorte. Nos primeiros, competimos conosco mesmos
com relação a alguma aptidão. (Outros jogos combinam habilidade com liberação e controle da agressividade,
como, por exemplo, atirar uma bola em alvos que são derrubados, ou destruídos, comø figuras de barro.) Mas
jogos de sorte exercem uma atração misteriosa, em especial sobre as crianças, porque são tão inseguras
quanto a se merecem ser amadas ou escolhidas pelo destino, sendo o destino apenas outro substituto para os
pais. E por isso é tão importante para as crianças que a máquina de chiclete de bola na qual introduzem uma
moeda lhes devolva alguma coisa maravilhosa. Por mais desprezível que possa parecer para os adultos o
objeto oferecido pela máquina, para a criança ele é da maior importância como uma demonstração de que o
destino o favoreceu.
Os videogames, hoje tão populares, e osfliperamas, que eles substituíram amplamente como as principais
máquinas de jogos devem seu atrativo a uma combinação de habilidade e sorte. A vitória, ou pelo menos o
bom desempenho, nesses jogos é desejada como demonstração de habilidade e, por conseqüência,
merecimento, mas também sugere nossa superioridade sobre competidores reais ou imaginários.
Inconscientemente, ganhar é também uma demonstração de que o destino nos favorece, uma idéia que reforça
muito o sentimento de autoconfiança que procuramos ganhar. Não é de se admirar, então, que sejam jogados
com grande intensidade e persistência por pessoas ou grupos etários inseguros, como adolescentes e jovens,
que tentam compensar seus sentimentos de inferioridade e aquietar dúvidas internas através da demonstração
tanto de habilidade quanto de sorte.
No primeiro capítulo, o xadrez foi usado como metáfora das relações humanas. Aqui, eu gostaria de enfatizar
que esse, o mais intelectual, complexo e refinado de todos os jogos, do qual a sorte é inteiramente excluída, é
essencialmente um jogo de guerra. No xadrez, o espírito de luta, sem o qual o sucesso não é possível, deve ser
sublimado ao grau máximo; de outro modo ele interfere com a enorme dose de concentração, planejamento e
previsão que são necessários o tempo inteiro.
Se um pai joga xadrez, a criança pequena imita o que vê. A complexidade do jogo ainda está fora do seu
alcance, mas ela brincará com as peças muito antes de poder jogar, manipulando-as, colocando-as aqui e ali,
de acordo com o que suas fantasias sobre o rei, o cavalo ou a rainha ditam. À medida que cresce, ela desloca-
se da brincadeira expressa e regulada pela fantasia para o jogo de xadrez com suas regras definidas. Se, como
uma criança mais velha joga xadrez, ela continua cedendo às especulações da fantasia por exemplo, se
—
imagina as relações maritais entre o rei e a raiiha, ou o status do peão no reino do tabuleiro, tão parecido com
o seu próprio no reino da família não conseguirá concentrar-se suficientemente para jogar bem. Disso apren
—,
208
derá que, para ser bem-sucedido numa determinada estrutura, devemos prestar a devida atenção às suas exigências.
Então, à medida que a criança aprende de verdade a jogar xadrez, ela irá colocar e mover as peças de acordo com o que as
regras e estratégias, suas e do oponente, determinam. Observamos aqui as diferenças entre brincadeira e jogo: a
brincadeira envolve as tentativas da criança de estabelecer harmonia apenas dentro de si mesma; nos jogos, ela tenta
harmonizar-se com as exigências do jogo e com o que requer a estratégia de seu oponente. Na primeira instância, ela
estabelece uma ordem interna; na segunda, aceita e trabalha com a ordem externa para alcançar seus objetivos.
O xadrez talvez seja o mais destacado e familiar exemplo do puro jogo mental. Um mestre, Richard Reti, chegou ao ponto
de sugerir que o xadrez simboliza a vitória da mente sobre a matéria, porque geralmente é necessário sacrificar peças
(renunciar à matéria) com o objetivo de executar com êxito um plano mais alto. Isso sugere que, pelo menos para Reti, as
associações inerentes ao jogo levam a uma visão de mundo mais refinada.
Mais importante é o que o jogo de xadrez (como outros jogos, mas de modo diverso da brincadeira) pode fazer pelo
desenvolvimento da personalidade. O xadrez contém um elemento fortemente competitivo e, portanto, agressivo, mas em
virtude de sua organização e regras, ele força o jogador a resistir à entrega direta às tendências agressivas e, ao invés
disso, sublimá-las em alto grau, usando engenhosidade, aplicação e paciência para suportá-las. Isto é, ele aprende não só a
controlar e dominar sua agressividade, nas a fazê-la servir a um empreendimento socialmente aprovado.
Qualquer pessoa que tenha experimentado o prazer inerente a um bom jogo de xadrez conhece a profunda satisfação
consigo mesma que essa sublimação do desejo de superar o oponente pode propiciar. A satisfação de jogar bem — isto é,
sublimando
— dfficilmente é afetada sequer pela perda do jogo, desde que ele tenha sido interessante. As regras do xadrez encorajam
vivamente um jogo interessante para ambos os participantes, permitindo ao jogador mais fraco a vantagem de uma ou
mais peças. Assim, o jogador de maiores habilidades não precisa aborrecer-se com um jogo de rotina e uma vitória certa; o
mais fraco pode vencer porque a vantagem igualou as habilidades.
As qualidades desenvolvidas ao máximo no jogo de xadrez são comuns a todos os jogos; são o que faz os jogos tão
importantes para o crescimento da personalidade da criança. Os jogos ensinam a controlar os impulsos, permitindo de
modo seguro a descarga simbólica de emoções agressivas ou negativas, enquanto encoraja e premia a sublimação. Mas
cada jogo particular tem seu significado simbólico específico.
Mesmo fazendo as mais altas exigências à racionalidade do homem, o xadrez não exerceria tal fascinação se não estivesse
também cheio de significados simbólicos que exercem influência no inconsciente do jogador, se bem que a maioria das
pessoas não tenha a menor idéia do motivo pelo qual são fascinadas pelo jogo.
Já houve considerável quantidade de especulação a respeito dos significados psicológicos subjacentes no xadrez. Uma
sugestão é a de que ele permite a exploração simbólica de conflitos edipianos ou familiares. Nesse sentido, pode-se
mencionar que a figura mais humilde, o peão, símbolo da criança na família, não só pode vencer qualquer figura (todas as
peças podem fazê-lo), mas, alcançando seu objetivo, pode-se tornar a figura mais poderosa do jogo, e isso é uma
prerrogativa só sua. Assim como o peão
209
pode tornar-se a rainha ou o bispo, após chegar a seu destino, também a criança espera o dia em que chegará ao seu
destino e se tornará poderosa por direito próprio como adulto e pai.
O rei e a rainha podem simbolizar os pais, mas foi apenas na Itália do século XV, com seu culto religioso a Maria, que a
figura mais poderosa foi chamada de rainha. Até então, essa figura era o vizir — o verdadeiro soberano em alguns países
orientais onde o rei era meramente uma figura de proa. As outras peças, por exemplo o bispo e a torre, também podem ser
comparadas a adultos importantes que, apesar de poderosos na família e com relação à criança, são, entretanto,
subordinados aos pais.
Contudo todas essas conotações psicológicas bastante óbvias das peças parecem insignificantes quando comparadas com a
essência do xadrez: precisamos entender suas regras e as variedades infinitas de ataques e contra-ataques. Cada tipo de
peça move-se de maneira especffica, não compartilhada por qualquer outro. O jogo requer uma compreensão das
vantagens e riscos desses movimentos específicos. Assim, ele nos ensina, simbolicamente, como devemos conhecer e usar
nossos talentos particulares e nosso lugar na sociedade para tirar partido de nossas oportunidades especiais em nosso
melhor proveito, com o devido respeito à matriz complexa em que esse jogo — representando a vida — se insere. Devemos
poder estimar os contra-ataques prováveis do oponente, como na vida devemos considerar e antecipar as reações
prováveis a nossos movimentos, uma h bilidade muito importante para a vida bem-sucedida com os outros.
O xadrez é um exemplo excelente de como os jogos podem ensinar as habilidades necessárias à vida enquanto vão, ao
mesmo tempo, ao encontro de necessidades conscientes e inconscientes. Independentemente do nível de complexidade ou
da natureza específica de um jogo, todos os jogos ensinam a necessidade de conhecer e seguir as regras. E viver de acordo
com algumas regras — de preferência regras morais, auto-escolhidas, auto-impostas e afinadas com nossa sociedade — éo
que define o homem como ser social. É a condição pela qual ele é elevado do isolamento solitário para a vida bem-
sucedida com os outros.
210
—JOHN LOCKE
Nesse sentido, inicia-se um processo que eventualinente determinará o sucesso ou o fracasso na vida: se (e até
que ponto) podemos modificar e sublimar as pressões internas, de forma a aliviá-las, e satisfazer nossas
necessidades na rcalidade e isso não só no presente imediato, mas também a longo prazo. Quanto mais nos
—
tomamos aptos a tirar proveito permanente, mais o princípio do prazer é substituído pelo viver de acordo com
o princípio de realidade. Quanto mais tomarmos isso possível, mais seremos capazes de poupar energias
originadas no inconsciente e fazer com que elas nos sirvam construtivamente em termos de realidade,
aprimorando assim nossa capacidade de dominar a vida. Os jogos desenvolvem essa capacidade e adicionam-
lhe uma dimensão social.
Na brincadeira, a criança tenta aliviar pressões internas, ter prazer, fugir do desprazer; e, se isso não é possível
na realidade, ela escapa para a fantasia e tenta conseguir na imaginação o que a realidade lhe negou. Enquanto
amadurece, mais e mais suas atividades são compromissos entre aquilo que seus desejos e suas necessidades
exigem e o
211
que lhe é dado na realidade, ou seja, o que é possível nela ou permitida por ela. Isso inclui cada vez mais não
apenas a realidade fisica, mas também a social. Resumindo, crescer nesse mundo e tornar-se capaz de ser bem-sucedido na
vida requer que se aprenda a enfrentar a realidade em todos os seus aspectos. Jogar permite à criança adquirir essa
capacidade passo a passo, e fazê-lo de maneiras amiúde prazerosas que não só encorajam o aprendizado, como o tornam
psicologicamente possível, porque o prazer do jogo faz suportável o manejo de frustrações que também estão envolvidas,
como a possibilidade ou a efetividade da derrota. Isso seria insuportável se o jogo em si e as interações sociais durante e
ao redor do mesmo não propiciassem compensações.
Como já foi discutido, a criança testa na brincadeira sua capacidade de satisfazer necessidades interiores na realidade; mas
se a realidade não se presta a isso, ou se exige obediência demasiada, a brincadeira é interrompida, e a criança retira-se
para a fantasia. Na verdade, as satisfações imaginárias toríiam as frustrações impostas pela realidade um pouco mais
suportáveis. Contudo, há grande diferença entre a criança ocupar-se com a fantasia pura onde não há aprendizado, e
representar suas fantasias até certo ponto também na realidade, quando brinca com blocos ou bonecas, ou usando uma
casinha de brinquedo. No primeiro caso, não são feitas concessões à realidade no segundo, a criança está aprendendo a
usar características da realidade para propósitos de fantasia. Quanto mais avançada sua brincadeira se torna, mais
apropriados são os elementos da realidade que a criança usa para seus propósitos — como todos precisamos aprender na
vida, se queremos ser capazes de alcançar nossos objetivos de maneira realística. Nada disso é aprendido, entretanto,
quando a criança se retira para a fantasia solitária sem representá-la na brincadeira. Esse afastamento para a fantasia e,
com ele, para uma auto-absorção potencialmente perigosa (porque isoladora) não é possível nos jogos, porque o contexto
social em que são jogados alivia enormemente o solipsismo. Um exemplo pode ilustrar esse processo.
Quando as circunstâncias da existência de uma criança — isto é, sua vida cotidiana em casa com os pais — a tornam infeliz
(e dadas as condições de nossas vidas esse é freqüentemente o caso), ela tenta compensar isso satisfazendo as vontades
com fantasias de uma vida muito diferente que não lhe faria exigências e atenderia a todos os seus desejos. Essa vida
imaginada também deve ocorrer num lar, desde que a criança não pode concebê-la de outra maneira nem sequer pensaf
que suas necessidades e desejos possam ser atendidos em outro cenário. Então, ela fantasia sobre uma casa diferente, não
apenas onde suas necessidades são logo satisfeitas, mas também na qual possa livremente expressar sua raiva, se isso não
acontece sempre. No próximo estágio, apenas a fantasia não é suficiente; a criança deseja fabricar esse mundo imaginário
no qual controla todas as coisas. Poucos elementos, uma caixa de papelão, alguns blocos, são suficientes para sugerirem
essa casa. A medida que a capacidade da criança de manipular objetos aumenta, objetos como blocos são arrumados de
forma mais elaborada, e outros, como bonecas ou mobilia de brinquedo, são colocados dentro da estrutura, tornando-a
assim uma réplica cada vez melhor de uma casa de verdade. Atividades mais complicadas da vida são realizadas nesse
cenário de brinquedo, como festas de bonecas ou de animais, usando pratinhos de brinquedo e comida real ou imaginária.
A criança aprende a usar como brinquedos o que a realidade oferece, arranjando e usando essas coisas com adequação
crescente.
212
Ainda assim, isso tudo é apenas brincadeira, porque a criança pode alterar as coisas de um momento para
outro, fingindo que a boneca é agora um dos pais, depois um irmão, outra hora ela mesma, e assim por diante.
Tudo isso muda quando o mesmo desejo de um lar ideal e de ter a vida sob inteiro controle é expresso pela
criança num jogo, ou seja, com outras pessoas. Então, fingir que um bloco é uma cama, depois um fogão e,
finalmente, um carro não funciona. É mais provável que as crianças juntem material para construírem uma
casa na árvore, ou alguma estrutura do tipo, com uma mesa de verdade e cadeiras de verdade. Ou ela e os
companheiros construirão um esconderijo no canto da casa, de preferência longe dos pais e de sua realidade,
num lugar retirado, no porão ou no sótão. Lá, juntos, representam um modo de vida peculiar, agora que têm
uma casa própria. Mas essa casa que construíram para elas mesmas não precisa apenas ser arrumada de
acordo com os objetos que conseguiram coletar; precisa também ser planejada e arrumada para agradar a
todos os participantes. Assim, a consideração pelas idéias e desejos dos outros torna-se parte do planejamento:
a criança, jogando, aprende a cooperar com outros para que a brincadeira seja um sucesso. Se tudo corre bem,
mais e mais elementos da realidade serão incorporados a essa casa de faz-de-conta. As crianças podem não se
satisfazer mais com festas para si próprias, suas bonecas e animaizinhos de pano, com tortas de lama no lugar
de comida e xícaras vazias. Ao invés disso, farão uma incursão à geladeira e comerão sanduíches e biscoitos;
beberão bebidas de verdade e irão desfrutá-las em sua residência particular que, então, assume cada vez mais
características similares às da realidade. Mais e mais aspectos da realidade entrarão na brincadeira, até que a
criança, agora já mais velha, começa a dar festas para os amigos. Nesse processo, aprende a seguir as “regras”
do jogo social, explorando e aprendendo quais dos seus amigos são compatíveis uns com os outros, e por que
o são ou não. Pode aprender certas etiquetas sociais: telefonar para os amigos para convidá-los, ou mesmo
escrever e mandar pelo correio os convites a tempo; comprar e preparar os suprimentos, e mesmo economizar
ou ganhar dinheiro para comprá-los; arrumar a mesa e planejar e preparar jogos para o entretenimento;
resumindo, fazer o papel de anfitriã, e fazê-lo bem, e até mesmo limpar tudo depois.
O desenvolvimento básico esbóçado aqui é um que, mutatis mutandis, também acontece em muitos outros
jogos das crianças. Começando com CandyLand e Chutes and Ladders, jogos simples que, não obstante,
requerem capacidade de contar, de esperar a vez, de ir apenas onde as cartas ou os dados permitem, as
crianças chegam ao Parcheesi, xadrez chinês e, eventualmente, ao Monopólio, que requer que ela escolha a
partir de uma variedade de estratégias, e leve em consideração os planos do oponente; e então, a jogos ainda
mais difíceis e complexos, como o xadrez, cada um exigindo mais planejamento, engenho e previsão do que o
precedente.
De muitas formas, outro aprendizado da infância é análogo a essa progressão da fantasia ao respeito pela
realidade, da brincadeira mais simples àquela cada vez mais orientada para a realidade, e desta para os jogos
requerendo a participação dos outros. Nesse processo, a criança dá passos importantes em sua socialização e
incorpora aspectos significativos de sua herança cultural. O xadrez, por exemplo, é uma forma sublimada de
combate, e o Monopólio, um similar não tão sublimado dos empreendimentos capitalistas. Há jogos como
Cowboys e Índios que copiam fatos históricos, e outros que simulam viagens, descobertas, e assim por diante.
213
Na brincadeira espontânea, quando a criança empurra um cartucho vazio de papel higiênico para frente e para trás, ela
redescobre a roda; e, se não descobre a gravidade na construção com blocos, ela averigua seus efeitos e aprende a reagir a
eles com a sustentação adequada das peças, de modo que não desmoronem imediatamente. Quando brinca com
caminhões, repete feitos importantes do transporte. Assim, no desenvolvimento de suas brincadeiras, reproduz as grandes
aquisições culturais do homem. O mesmo acontece quando domina a maior realização cultural humana: a capacidade de
ler e escrever. Ler e escrever não surgiram, -na vida da humanidade, como uma habilidade utilitária: nem deveriam surgir
assim na vida da criança.
Muitos jogos que não são sistematicamente instrutivos o são, não obstante, efetivamente: muitos jogos requerem a
capacidade de contar e também alguma leitura, como a das instruções. Outros jogos equivalem ao aprendizado escolar,
como Spill and Spell, onde ler faz parte da essência, e onde aprender a soletrar é muito mais agradável que em sala de
aula. E, apesar de não ser amplamente reconhecido, não é de se surpreender que também o aprendizado formal espelhe e
corra em paralelo ao desenvolvimento característico das brincadeiras e jogos.
DIMENSÕES MÁGICAS
Aprender a ler, tão básico para toda realização acadêmica, ilustra não apenas essas analogias como sua importância, se
pretendemos que os temas intelectuais sejam aprendidos e obtenham um significado pessoal e profundo. A criança que,
jogando jo. gos de complexidade progressivamente maior, dominou a habilidade de controlar até certo ponto as tendências
bastante caóticas de seu inconsciente, e de utilizar suas energias em propósitos amplamente conscientes e orientados para
a realidade, achará mais ou menos fácil aplicar as mesmas habilidades para o aprendizado da leitura. Mas, a não ser que
tenha aprendido e expandido essa técnica brincando, não conseguirá aplicá-la ao aprendizado da leitura, que pode então
parecer um empreendimento muito árido e insatisfatório, quando não absolutamente impossível, ou tão desagradável que
deva ser evitado. Seja uma questão de brincadeiras e jogos ou de aprendizado acadêmico, o sucesso no domínio de tais
empreendimentos requer que o inconsciente esteja pronto, capaz e desejoso de investir suas energias na atividade. Isso é
muito importante no começo e nos primeiros estágios dos esforços intelectuais , antes que tenham provado seus méritos,
mas também é verdadeiro durante todo seu desenvolvimento posterior. Não importam os méritos “reais” de uma atividade
intelectual; para ser totalmente desfrutada e apreciada, ela deve oferecer, a mais, satisfações agradáveis, ou senão desejá
veis, incluindo as de natureza imaginária, até mesmo, à primeira vista, mágica, que atraíam nosso inconsciente e vão de
encontro a algumas das necessidades nele originadas.
Os adultos, em geral, não percebem que aprender a ler, o que vêem como um empreendimento racional e uma típica
realização do ego, pode ser bem dominado apenas se a criança inicialmente, e por algum tempo depois, experimentar a
leitura como satisfação da fantasia — como a brincadeira — e como uma mágica poderosa. A criança que gosta muito de
ouvir histórias que estimulam e satisfazem sua fantasia, desejará ainda saber ler sozinha esses contos absorventes, quando
ninguém estiver disponível
214
para fazê-lo. Mas, se não experimentou o prazer de termos lido para ela, nao ficará facilmente interessada em aprender a
ler. Perdendo essa experiência, duvidará de que áprender a ler seja uma coisa que quer fazer, e o trabalho duro envolvido
no aprendizado não parecerá valer a pena.
Mas mesmo ouvir as histórias de que gostam muito não será motivação suficiente para a maioria das crianças se empenhar
livre e alegremente na difícil tarefa de se alfabetizar. Para isso,o exemplo do interesse dos pais na leitura será sempre
necessário, ou, pelo menos, ajudará muito. Se os pais se interessam por ler e obtêm disso significado e prazer, será um
grande incentivo para a criança imitá-los. Se ler é importante para os pais, será para os filhos, a não ser em raras exceções,
como as discutidas antes, nas quais a alfabetização transforma-se no campo de batalha em que a criança tenta derrotar o
pai. Na maioria dos casos, as crianças querem poder entender esse aspecto importante na vida dos pais, e participar com
eles disso. Sem uma imagem paterna positiva dos méritos da leitura, a criança pode fracassar em desenvolver interesse por
ela.
À primeira vista, a capacidade de ler e escrever parece pura mágica, e sem o menor objetivo prático. Isso é tão verdadeiro
para a criança pequena como o foi para a humanidade. Originalmente, ler e escrever serviam a fins religiosos e mágicos.
Sabemos, por exemplo, que Homero ouviu falar sobre a escrita, embora na ocasião em que compôs seu épico oral a
Ilíada a Grécia ainda não tivesse desenvolvido sua escrita. Simplesmente não lhe ocorreu que a escrita, sobre a qual tinha
ouvido falar vagamente, pudesse ser usada com propósitos utilitários. Ele descreve o processo de fazer sinais significantes
em tabuletas e decifrá-los, como atos essencialmente mágicos. Quando Homero pensou na escrita, foi como propiciando,
na verdade, um poder secreto, e não simples informação. Isso não foi apenas porque a tradição oral da era homérica, e a
dependência extrema da memória que ela exigia, tornasse a escrita virtualmente desnecessária. Foi também porque essa
idéia era comum a sociedades pré-letradas, que atribuíam à palavra escrita o poder mágico que está implícito e refletido na
afirmação das Escrituras: “No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus.”
Por séculos, o poder da palavra escrita permaneceu um segredo, conferindo privilégios especiais a poucos selecionados.
Prova disso foi o longo debate sobre se devia ser permitido ao homem comum ler as Escrituras. Prova, também, foi o fato
de que, quando a alfabetização se tornou mais comum, seu exercício primário era na leitura da Bíblia. A primeira cartilha
impressa nesse continente começa: “In Adam ‘sfaii / We sin - ned ali. / Thy life to mend / This book attend” (Com a
queda de Adão / Nós todos pecamos. / Esse livro cuida / De reparar tua vida.), O valor real da leitura para nossos
ancestrais estava em seu poder único — quase mágico — de ajudar os que a dominavam a alcançar a salvação.
Felizmente para muitas crianças, os primeiros livros que lhes são lidos — conquanto não mais tratem do maior prodígio de
todos, a vida eterna e a salvação— contêm eventos mágicos suficientes para convencê-las de que, aprendendo a ler,
aprenderão também mais sobre o sobrenatural. Histórias que contêm material rico na estimulação da fantasia propiciam
satisfações imaginárias que demonstram o valor e o mérito da leitura.
215
Há muito já se foi o tempo em que aprender a ler estava diretamente ligado ao aprendizado sobre o sobrenatural e a
magia, sobre os perigos do pecado e a esperança da salvação. E por isso que muitas crianças, a despeito de toda a
inteligência requerida para se aprender a ler bem, não conseguem fazê-lo. Mesmo que aprendam a ler, a leitura permanece
emocionalmente vazia e sem interesse. É por esse motivo que muitíssimas crianças não se voltam para a leitura por
desejo próprio. Para elas, ler não é sustentado pelo poder de estimular e satisfazer sua imaginação-a respeito de questões
importantes e urgentes, nem cria um apelo forte no id através de seu significado mágico. Se não se tornou atraente durante
os anos formadores da criança, pode nunca mais parecer atraente, mesmo quando o seu valor prático é reconhecido. Por
outro lado, depois de a leitura ter sido bem aprendida numa base inconsciente, forte e atrativa, pode aos poucos divorciar-
se disso, enquanto a criança, por sua própria experiência, se convence dos muitos méritos reais da alfabetização, além do
estímulo da imaginação e do oferecimento de satisfação indireta através da fantasia, elementos que permanecerão sempre
importantes. Mas se a leitura é muito precoce ou muito radicalmente privada — ou nunca esteve imbuída — de significados
mágicos, a criança não investirá muito nela.
Mas mesmo a mágica da leitura não afetará suficientemente muitas çrianças, se seus pais não atribuem importante valor à
“leitura de livros”. O grande investimento emocional dos pais na leitura torna-a atraente de modo especial para a criança,
pois a partir de então a leitura forma outro vínculo unindo fortemente o filho ao pai. Estou certo de que a alfabetização
judaica foi auxiliada pelo fato de que era costume — no dia em que o filho entrava numa das yeshiva.s (escolas
talmúdicas) — o pai carregá-lo nos braços para a escola, embora ele, a essa altura, já pudesse andar muito bem. Isso
simbolizava para a criança que aprender nessa escola não significava a renúncia à proximidade do pai ou às satisfações
primitivas em geral, como, por exemplo, ser abraçado.
Seria benéfico para todas as crianças se as escolas — e os pais — tornassem claro para ambos, através de gestos simbólicos,
como os dos pais judeus ortodoxos, e através de seus atos e atitudes, que fazer mais coisas de gente grande na escola e no
mundo não significa que precisam abandonar todos os comportamentos infantis ou ser privadas de satisfações mais
infantis; e que aprender na escola não diminuirá sua oportunidade de ter seu quinhão de brincadeiras, nem o fato de ser
capaz de ler fará com que os pais deixem de ler com e para elas. Esse medo está por trás de muitos fracassos escolares; a
criança acredita que, não aprendendo na escola, irá resguardar-se da perda de prazeres máis infantis. Por isso é má idéia
tentar motivar a criança dizendo-lhe que ela já é “bem grandinha” para fazer alguma coisa. Conquanto toda criança goste
que lhe digam como é crescida, ela não quer ter dc pagar um preço alto por isso, e se o preço lhe parece alto demais pode
não querer nada disso. Ao contrário, devemos convencer nossos filhos de que agora têm uma dupla vantagem: podem
fazer mais coisas de gente grande e ainda podem desfrutar de todas as satisfações mais primitivas.
É claro que apenas dizer isso não funciona, a não ser que nosso comportamento prove à criança que estamos falando
sério. Devemos assegurar-nos de que nossos filhos continuam a desfrutar dos prazeres mais primitivos mesmo que possam
agora se realizar em níveis mais elevados. Se o fazemos, esses tipos mais infantis de comportamento irão retroceder cada
vez mais, só aparecendo em momentos de tensão, quando propi. ciam um alívio muito necessário. Mas se a criança
precisar abrir mão deles porque
216
agora está mais velha e pode fazer mais coisas de gente grande, então ela não gostará dessas coisas novas
tanto quanto poderia, e o desejo por tipos mais antigos de satisfações estragará suas realizações mais elevadas.
APRENDER BRINCANDO
Depois dessa digressão sugerindo como o aprendizado através da brincadeira é paradigma de todo
aprendizado, e que, para o verdadeiro sucesso no aprendizado, ele deve satisfazer pressões inconscientes e
necessidades alinhadas com as exigências da realidade, vamos passar adiante, considerando o que pode ser e é
aprendido brincando. Não há fim para esse tema, assim como não o há para os jogos que as crianças
inventam, nem para aqueles que transmitem de geração para geração, inventando-os e reinventandoos a cada
época. A semente de sabedoria psicológica inerente mesmo aos jogos tradicionais mais simples pode ser
ilustrada no “Mamãe, Posso Ir?”, no qual a “mãe” diz ao “filho” até onde e quão rápido ele pode avançar,
enquanto o filho tenta trapacear, assim que a “mãe” vira as costas. É quase impossível superestimar até que
ponto “ludibriar” a mãe de verdade se torna desnecessário através desse jogo; ele faz com que a obediência
seja aceitável na realidade porque, no jogo, podemos nos rebelar, sendo até premiados por isso.
Esse jogo também ritualiza a suspeita de todo filho de que sua mãe não quer que ele avance tanto quanto
gostaria. Por outro lado, a criança, fazendo o papel da mãe, experimenta, pelo menos de modo simbólico,
como ela se sente quando o filho tenta levar vantagem mal ela vira as costas. Mas, a despeito de toda essa
“desobediência”, em nenhum momento o jogo nega a suprema importância emocional que a mãe tem para o
filho. O verdadeiro propósito do jogo é chegar a ela o mais rápido que podemos; ela é o objetivo final, o
centro da vida da criança. Todos os jogos grupais que as crianças jogam espontaneamente podem revelar
significados psicológicos igualmente profundos, se procurarmos por eles.
Absorvida no livre toma-lá-dá-cá desses jogos, as crianças aprendem a adaptar-se facilmente aos papéis que
as várias situações exigem, desfrutando da liderança num momento, e participando como parte do grupo no
seguinte. Aprendem a esperar a vez quando o jogo o requer, e a tomar a iniciativa quando surge a
oportunidade. Acima de tudo, podem aprender o que muitas crianças de nossa sociedade não conseguem: a
importância de ser um bom perdedor. As crianças tornam-se capazes de perder com naturalidade, sem se
sentirem derrotadas por isso porque reconhecem que, num jogo, como mais tarde na vida, não podemos estar
sempre no topo. Entretanto, para que isso aconteça, sua participação no jogo deve ser espontânea e livre de
pressão exterior.
Dizer simplesmente a uma criança que “competir” é o que importa não dará a essa mensagem um impacto
real. Ninguém adquire atitudes apenas, porque dizemos que elas são desejáveis. Uma criança só pode
transformar essas atitudes em parte de sua vida, participando de situações que as exijam e também
demonstrem suas vantagens.
Por exemplo, é fácil para a criança aprender a aceitar a derrota através de um jogo em que o perdedor
automaticamente se torna o líder no exato momento de sua queda. Esse éo padrão de muitos jogos de pique,
nos quais a criança que é apanhada imediatamente se torna o ser poderoso que tem o direito de caçar todas as
outras. O medo de
217
ser apanhado se transforma num instante no sentimento poderoso de ser o caçador que todas os demais temem. E se não
somos apanhados, também há satisfação por termos superado em astúcia o pegador.
Esperar pacientemente na fila é outra lição difícil para a criança aprender. Mas quando, como no jogo Last One First, a
criança que espera pode ver como cada movimento dos outros jogadores leva-a mais para perto do último lugar e de sua
vez, então esperar faz sentido. Com tais possibilidades implícitas de mudar de papel, podemos esperar nossa vez e
obedecer às regras do jogo, já que elas garantem que logo estaremos na posição de liderança. Compare-se isso com o
conceito de espera que, supõe-se, a criança deva aprender na escola — um lugar que não oferece perspectivas de reverter os
papé1s de liderança, ou mesmo qualquer promessa inerente de que seremos recompensados por esperar nossa vez.
Aprender fazendo o que a situação exige, como, por exemplo, entrar na fila e manter nosso lugar porque, caso contrário, o
jogo não funciona, é muito mais efetivo e agradável do que ouvir preleções sobre a necessidade de entrar na fila para o
lanche na escola. Muitas crianças chegam a ressentir-se freqüentemente em silêncio, do aprendizado discursivo e das
pregações sobre cooperação e responsabilidade social com as quas são bombardeadas. Elas não apreciam o fervor
moralístico do pai ou do professor. E fútil dizêr-lhe que essas virtudes são desejáveis, porque ela sente que seria muito
melhor se simplesmente seguisse suas tendências egoísticas. Mas se ela tenta fazer isso durante um jogo, este se
desintegra; portanto, aprende a controlar-se.
Prestar atenção ao que está acontecendo e nos controlarmos são as habilidades básicas que formam o arcabouço de todo
aprendizado posterior na escola e na vida. Sem elas, não podemos cooperar, cumprir uma tarefa, esperar resultados, ou
continuar tentando, mesmo que tenhamos perdido dessa vez. Essas habilidades são bastante diferentes uma da outra e
difíceis de aprender, mas, através de jogos, podem ser adquiridas de maneira prazerosa, e mesmo excitante. Em quase
todos os jogos grupais ativos, a criança aprende a prestar atenção a quem pega e a quem é apanhado. Em muitos jogos,
aprende a controlar-se — acima de tudo a controlar sua agressividade — e a suportar a agressão limitada dos outros. Aprende
isso nos tap games, onde não podemos bater forte demais, e ainda mais diretamente nos jogos que envolvem agressão
específica e limitada. Por exemplo no Battle Royal, um jogador deve arrancar uma sacola de papel da cabeça do outro,
mas estará “fora”, se tocar na cabeça ao fazê-lo. Esses jogos ensinam a vantagem da descarga controlada da agressão,
porque se exercitarmos o autocontrole, ganhamos, e, onde quer que falhemos em exercê-lo, perdemos.
Em muitos jogos, não apenas de guerra ou heróicos, ganharperse é menos importante que ganhar jogando limpo. As
regras, seja em jogos de tabuleiro ou em quadras, são concebidas para promoverem essa sublimação.
Os jogos mais populares falam engenhosamente a perplexidades inconscientes, e seu atrativo resulta da proposição de
soluções para elas. Por exemplo, em Careers, vence-se pela pré-seleção da combinação correta de pontos marcados para
dinheiro, fama ou amor. Em qual dos três se concentrar é um problema e tanto para a criança na idade em que se interessa
por esse jogo. Ela fica honestamente confusa sobre o que mais deseja para si própria: o aplauso dos outros, posses
materiais, ou ser amada. O jogo permite que explore todas as opções. Dá, por exemplo, à criança que não se sente amada
218
uma oportunidade de vencer sem ser amada; alternativamente e com uma outra disposição, ela pode tentar ganhar todos os
pontos possíveis para o amor, usando, assim, o jogo para contrabalançar seus medos relativos à sua situação de vida real.
“Será que ganharei dos meus competidores sendo mais habilidosa em combinar o que a vida pode ter para me oferecer? O
acúmulo de grandes somas de dinheiro me possibilitará adquirir o que a vida não me deu espontaneamente?” Essas são
apenas algumas das perguntas que a criança inconscientemente tenta responder com esse jogo.
APRENDENDO AS REGRAS DO JOGO
Piaget enfatiza a importância de a criança aprender as regras do jogo, porque ela precisa tornar-se capaz de controlar-se no
processo de socialização, dominando, sobretudo, suas tendências de agir agressivamente para alcançar seus objetivos. Só
então pode desfrutar das interações bilaterais com os outros, interações envolvidas no jogo com parceiros que são
também, simultaneamente, oponentes. Assim, de muitas maneiras, o domínio dos objetos, que a criança adquiriu através
de seu manuseio em brincadeiras estende-se lentamente ao autodomínio obtido por meio dos jogos e, mais importante, ao
domínio da própria agressividade. A transição é gradual, da brincadeira (caracterizada pela espontaneidade, fantasia e
súbitas mudanças de conteúdo da realidade para a imaginação) para atividades de jogos, que requerem um grau
consideravelmente maior de autocontrole para esperar nossa vez e conformidade com as regras, ainda que obedecê-las nos
leve à derrota.
Obedecer às regras e controlar nossas tendências egoístas e agressivas não é coisa que se possa aprender da noite parao
dia; é o resultado finalde um longo desenvolvimento. Quando começa a jogar, a criança tenta comportar-se como podia
em suas primeiras brincadeiras: muda as regras para agradar a si própria, mas então o jogo desmonta. Num estágio
posterior, começa a acreditar que as regras são inalteráveis; trata- as como leis transmitidas de um tempo imemorial que
não podem ser transgredidas em nenhuma circunstância, e vê a desobediência das regras como um crime sério. Só após ter
aprendido a obedecer às regras e a ser capaz de conter suas tendências egoísticas e agressivas a ponto de poder evitar
torcer ou zombar das regras, a criança torna-se capaz de compreender e aceitar o fato de que as regras são cumpridas não
por motivos abstratos, mas porque, apenas se o forem, o jogo pode processar-se de maneira ordenada. Somente então, e,
em geral, isso vem bastahte tarde no desenvolvimento da criança — com freqüência não antes da adolescência, é algumas
vezes mais tarde ainda —, ela pode compreender que concordamos voluntariamente com as regras só pelo jogo em si, não
tendo elas dutra validade, e podendo ser livremente alteradas desde que todos os participantes concordem com as
mudanças. A democracia, baseada num consenso livremente negociado, que é obrigatório apenas depois de ter sido
formulado e voluntariamente aceito, é uma realização muito tardia no desenvolvimento humano, mesmo nos jogos.
Por isso, Piaget insistia em que aprender a seguir as regras do jogo é um dos pasSOS mais importantes na socialização da
criança. Quando as crianças têm liberdade de agir como desejam em jogos não-supervisionados por adultos, com bastante
freqüência as discussões sobre o quê, como vão jogar e que regras devem seguir toma a maior parte do tempo, de modo
que pouco acaba sobrando para jogar. Deixadas a seu próprio
219
Embora os vencedores possam sentir-se exultantes no momento da vitória, sabem também que os derrotados
ficarão ressentidos com isso e com e1es assim, qualquer segurança obtida com a vitória será desfigurada por
ter alienado os que eram seus amigos até bem pouco tempo antes,,p sentimento bom que foi criado e reinou
durante a discussão que antecipou o jogo evapora-se totalmente, assim que a competição começa. As crianças
sabem disso muito bem, e é por isso que, se deixadas sozinhas, gostain de gastar a maior parte de seu tempo
planejando o jogo, preferindo que o período de cooperação seja maior que o de competição.
Enquanto o jogo arnda não começou, todos podem imaginar-se vitoriosos, mas assim que ele começa, isso
não é mais possível. Se os adultos interrompem logo esses
220
critério, as crianças podem levar horas em deliberações frutíferas até concordarem com as regras e questões
correlatas, como, por exemplo, quem deverá iniciar o jogo e qual será o papel de cada criança. E é assim que
deve ser, se é para o jogo socializar as crianças. Só ponderando extensivamente as vantagens dos vários jogos
possíveis e sua relativa adequação à s’tuação em que se encontram, como o tamanho do grupo, as condições
do local etc., e que regras devem ser aplicadas e por que, elas desenvolverão suas capacidades de raciocinar,
de julgar o que é e o que não é apropriado, de pesar os argumentos, de aprender como se pode alcançar o
consenso e de como esse consenso é de suma importância para o deslanchar de um empreendimento.
Aprender isso tudo é infinitamente mais significativo para o desenvolvimento da criança como ser humano do
que o domínio de qualquer habilidade que possa desenvolver no jogo em si. Mas nenhuma dessas habilitações
sociais será aprendida se os adultos tentarem controlar que jogos devem ser jogados, ou se impedirem a
experimentação com as regras (o que eles temem possa levar ao caos), ou se exgirem impacientemente que o
jogo comece sem mais demora.
Quando os adultos intervêm para organizar o jogo, privam a criança do crescimento pessoal que pode obter
através desses absorventes jogos preliminares, Com muita freqüência, os adultos desconsideram a grande
diferença entre as situações sociais do planejamento do jogo e o jogo em si. Enquanto discutem o que jogar,
por que, e como, as crianças são parceiros iguais num processo de tomada de decisão, e apreciam sua
capacidade de participar de urna atmosfera de livre troca. Quando o fazem, cooperam mutuamente, e um
agradabilíssirno espírito de camaradagem é mantido. Elas se sentem aceitas e seguras umas com as outras,
porque estão sendo amigos que compartilham coisas.
Tudo isso muda de figura no instante em que o jogo começa. Então, os amigos e cooperadores tornam-se
competidores, sentindo que devem mostrar-se superiores aos que, apenas há um momento, eram seus iguais.
Isso faz com que se sintam inseguras e tensas, onde anteriormente tinham estado seguros e relaxados. Agora,
não apenas querem derrotar seus até então camaradas e amigos, como até mesmo os membros de seu próprio
time tendem a ser críticos quando um jogador não atende a expectativas (freqüentemente muito
despropositadas, dado o desejo de que o time seja vitorioso). Embora as discussões antes do jogo tenham sido
amigáveis, as que se seguem costumam ser críticas e ásperas e, por parte dos vencedores, algumas vezes de
franco regozijo pela tristeza alheia. O humor é exatamente o oposto do que caracterizou o período de
preparação.
prazeres antecipatórios e insistem em que o jogo deve ser jogado de acordo com suas regras, conseguem apenas levar
as emoções competitivas das crianças a seu grau máximo. E depois esperam que as crianças — a quem incitaram a jogar
para ganhar — aceitem que tudo é “apenas um jogo,” que não deve levar a sentimentos de desânimo pela perda ou de
superioridade pela vitória. Com freqüência, esses mesmos adultos são incapazes, a despeito de sua experiência, muito
maior, de aceitar a derrota com equanimidade e sem perda de auto-estima. Não obstante, esperaih dc seus filhos maior
maturidade do que eles próprios possuem. As crianças não podem — nem devemos esperar que possam — possuir esse
controle amadurecido sobre suas emoções, particular- mente quando a intervenção adulta ergueu os seus sentimentos a
uma intensidade febril.
Os pais devem decidir o que é mais importante: que seus filhos venham rapidamente a jogar pelas regras adultas, ou que
trabalhem no sentido de se tornarem seres humanos atentos e autodeterminados através do planejamento do jogo, mesmo
que grande parte do tempo disponível seja gasto nesse dificil processo. Precisamos da experiência — independentemente de
tempo estipulado, e através da repetição — de que podemos determinar como gastar nosso tempo, assim como que regras
devem determinar nossa conduta; precisamos também do sentimento de que tais decisões são assuntos sérios que
requerem muita deliberação e experimentação. É a combinação de todos esses elementos que propicia o
verdadeiro respeito próprio. Apenas o escravo precisa obedecer a regras impostas sem
poder questioná-las.
Claro que é mais simples ouvir o que nos mandam fazer e obedecer a essas ordens do que lutar para
tomar uma decisão própria; a obediência não requer o aprendizado de pesar as escolhas, de chegar livremente a um acordo
com os outros seres humanos, e de testar na prática a funcionalidade das regras sobre as quais decidimos teoricamente. A
criança que brinca como lhe é mandado pode melhorar sua habilidade num jogo particular, mas não aprenderá como
cooperar com seus pares, nem aprenderá o que está envolvido na elaboração de regras para sua própria conduta em
cooperação com os outros; o jogo pode ser bastante bem aprendido, mas a criança não se socializará jogando-o.
A FUNÇÃO C1VILIZATÓRIA DOS JOGOS
Ao contrário dos temores dos adultos — o motivo usual para os pais supervisionarem e regularem os jogos dos filhos —,
mesmo as brincadeiras agressivas na infância servem a funções civilizatórias cruciais. Isso é verdade, se as crianças forem
deixadas à vontade, situação que apenas raramente leva a uma desventura. lona e Peter Opie, a quem devemos o estudo
mais sensível e compreensivo dos jogos que as crianças modernas da Inglaterra jogam por si mesmas ou sob supervisão
dos adultos, escreveram:
quando as crianças são reunidas no pátio de recreio, que é onde os educadores, psicólogos e cientistas sociais se juntam
para observá-las, sua brincadeira é marcadamente mais agressiva do que quando estão na rua Na escola brincam de
queimado, de pegar, entram em duelos, como, por cxemplo, de cascudos, nos quais o prazer, se não o propósito, do jogo é
dominar o outro jogador e infligir dor Esse comportamento não seria tolerado entre os jogadores na rua.
221
Quando os Opies perguntavam às crianças o que jogavam nos pátios de recreio supervisionados pelos adultos, elas
freqüentemente diziam: “A gente só sai por aí irritando as pessoas.
Quando se retira o auto-regulamento das crianças, substituindo-o pela insistência do o quê e como devem jogar, a
brincadeira torna-se ao mesmo tempo mais viciosa e menos satisfatória. Quando a brincadeira de stíckball (jogo de bolas
com bastões) das crianças nas ruas e em terrenos baldios transformou-se nos jogos da liga infantil de beisebol organizados
e treinados por adultos, uma atividade previamente prazerosa que se transformou num esforço sério. Ganhar na
competição começou a ter precedência sobre o prazer do jogo.
Quando pensamos sobre organizações como a liga infantil de beisebol, deveríamos ter em mente que as funções mais
importantes das brincadeiras e dos jogos para o bem-estar da criança é oferecer-lhe uma oportunidade de trabalhar
problemas não resolvidos do passado, enfrentar pressões do momento, e experimentar os vários papéis e formas de
interação social no sentido de determinar sua conveniência para ela própria. Todos esses objetivos são negados quando os
adultos impõem seu padrão de “seriedade” às atividades das crianças. Os efeitos perniciosos dc tais critérios impostos por
adultos foram descritos na história sobre a coleção de selos; naquela situação, o garoto era tão sério a respeito do que
aquilo significava para ele quanto o pai, mas as diferenças residiam nos objetivos a que seu passatempo servia.
Enfatizar o jogo “apropriado” e i vitória, como nas competições da liga infantil de beisebol, e impor seriedade adulta ao
beisebol às expensas do que faz o jogo importante para a criança. A diferença pode ser vista claramente, se visualizarmos
o que acontece quando um grupo de crianças se junta para um jogo de bola espontâneo. Um jogo desses pode transcorrer
de forma muito desigual, porque mudanças súbitas podem ocorrer, como as ditadas pela necessidade de uma criança
representar alguma fantasia violenta, usando o jogo para lidar com um problema emocional do passado ou do presente.
Um jogo de bola livremente organizado parece muito violento, e é. As crianças usam o jogo para servir a suas
necessidades individuais e grupais, de modo que há interrupções para demonstrações de mau gênio, digressões para
discutir algumas coisas ou seguir uma linha de jogo paralela por algum tempo, atos surpreendentes de compaixão (“dê
outra chance aos garotinhos,”) tudo fora do protocolo adulto dos jogos. Se OS adultos querem ver um jogo de beisebol
polido, jogado de acordo com os manuais, não precisam ir além de seus aparelhos de televisão. Mas, impondo suas noções
de ordem num jogo infantil, deveriam pensar duas vezes no que estão fazendo e em suas prováveis conseqüências, e
naquilo de que estão privando os filhos.
É por isso que muitas crianças preferem brincar na rua do que num pátio supervisionado por adultos. Nem são apenas as
condições da moderna vida urbana que forçam as crianças a brincar nas ruas . Aparentemente, elas faziam o mesmo nos
tempos bíblicos; lemos em Zacarias que a cidade de Deus “deve estar cheia de meninos e meninas brincando nas ruas”. O
profeta não pôde pensar numa imagem melhor para sugerir a liberdade e felicidade que reinariam na cidade de Deus,
embora as crianças, mesmo naquele tempo, indubitavelmente não brincassem apenas de modo ordeiro. Apesar de não
termos testemunhas oculares do que acontecia quando as crianças brincavam li-
222
vremente nas ruas da Jerusalém Bíblica, temos relatos sobre as cidades medievais. Para citar os Opies novamente:
Em 1332, achou-se necessario proibir os meninos de brincar nas imediações do palácio de Westminster, enquanto o
parlamento estivesse reunido. Em 1385,0 bispo de Londres foi forçado a fazer uma declaração contra o jogo de bola perto
da Catedral de St. Paul. . Em 1447, em Devonshire, o bispo de Exeter queixava-se da “gente jovem” jogando no claustro,
mesmo durante o serviço divino (...).
Assim, conquanto algumas restrições fossem consideradas necessárias, não ocorria às pessoas, em tempos passados,
estabelecer que as crianças não deviam brincar e se divertir nas ruas a seu próprio modo.
O que torna a rua ou um terreno baldio tão mais atraente do que o pátio? Em tais lugares, as crianças podem criar seu
próprio ambiente — uma consideração muito importante quando o resto de suas vidas é passado em cenários criados por
adultos. Nesse sentido, o bombardeio dc Londres foi uma bênção para uma geração de crianças. Por volta de 1955, uma
criança escreveu: “Os locais onde caíram as bombas de Hitler são muitos, e os maiores, com certa quantidade de entulho,
propiciam terrenos ótimos para pique-esconde e Tin Can Tommy.” Outra escreveu: “Nosso parque é bom: ainda há
lugares selvagens.”
Quando as crianças podem arrumar as coisas por conta própria, seus jogos lhes ensinam.autocontrole. Esse era um
conhecimento comum em 1834, quando o Boy’s Week-Day Book observou: “É uma visão agradável a dos jovens de
mesma idade jogando.., nessas diversões juvenis muita abnegação e boas ações podem ser praticadas.” Mesmo antes, John
Locke observou que “não pode haver recreação sem prazer, o que nem sempre depende da razão, mas, mais
freqüentemente, da fantasia; deve-se permitir que a criança não apenas se divirta, mas que o faça a seu próprio modo.”
Como seriam afortunados nossos filhos se nós, adultos, seguíssemos o conselho desse grande filósofo!
MOTIVOS INCONSCIENTES
O corredor que mede seu tempo ou tenta aumentar sua distância e velocidade, ao mesmo tempo em que se
exercita conscientemente por sua saúde, está tentando provar-se para si próprio, e, inconscientemente,
tentando provar seu valor pa?a os pais ou quem quer que tenha tomado o lugar deles em seu inconsciente.
Com boas razões, as primeiras grandes competições atléticas eram festivais religiosos, ou estavam
intrinsecamente ligadas a eles. Os jogos olímpicos, em seu começo na Grécia clássica, não tinham como
objetivo encorajar exercícios saudáveis ou testar as capacidades dos atletas de enfrentar desafios da realidade.
Transcendendo essas considerações, havia o fato de que os jogos constituíam uma cerimônia religiosa em
honra aos deuses olímpicos, que deram o nome de sua morada à competição. O atleta entregava-se aos rigores
punitivos da competição olímpica por um sentimento de que sua participação servia a fins religiosos e
mágicos. Os deuses tinham interesse especial pelo homem que ganhava uma competição limpa; ou,
dependendo de como lemos as Odes Olímpicas, de Píndaro, os deuses revelaram por que homens tinham um
interesse especial, permitindo-
223
lhes que vencessem. Em ambos os casos, a coroa de louros do vencedor era um símbolo de muito mais do que
a vitória numa competição atlética.
Se bem que os esportes tenham agora se secularizado, não perderam suas importantes dimensões “mágicas”
de servir a necessidades inconscientes não-expressas. Existe razão para as olimpíadas modernas frisarem sua
conexão com os jogos religiosos da Grécia antiga, nos quais a escolha dos vencedores pelos deuses indicava o
povo e a cidade que favoreciam sobre todas as Outras. Hoje em dia, não mais vivemos em cidades-estados,
mas tudo isso se estendeu às nações Os atletas em nossas competições olímpicas competem não só como
indivíduos, mas também como representantes nacionais. As vitórias individuais são celebradas com o
hasteamento da bandeira do país vencedor que, desse modo, parece demonstrar sua superioridade sobre os
outro. Obviamente, é uma superioridade simbólica, mas que sugere que não nos afastamos tanto do
sentimento (e talvez do pensamento) de que vencer nessas competições tem um significado muito além
daquilo que acontece na realidade, e mostra que algumas nações são superiores ou mais favorecidas do que as
outras por algum motivo. Todas as competições internacionais fazem alarde desse significado, como pode ser
ilustrado pelo campeonato mundial de xadrez, que agora passou a ser visto amplamente como um evento de
relevância política.
224
POR ANOS E ANOS, a criança em crescimento move-se para frente e para trás entre as várias exigências
que o jogar lhe impõe.Já foi mencionado que, a princípio, ela tenta alterar as regras do jogo a seu favor;
depois, acredita que a autoridade a força a obedecer às regras; finalmente, entende que é vantagem para os
jogadores aceitar essas regras.
Quando tudo vai bem, a criança pode reagir à altura de quaisquer que sejam as exigências do jogo. Mas
quando as coisas se tornam psicologicamente muito desnorteantes ou frustrantes, ela pode voltar à brincadeira
espontânea. Se bem que ainda possa entender as regras que governam o jogo e mesmo insistir em que os
—
outros as sigam ela própria não consegue obedecê-las e pode declarar que não se aplicam a seu caso. Por
—
exemplo, uma criança pequena pode saber perfeitamente como jogar damas. Tudo correrá tranqüilamente até
que ela perceba, ou acredite, que perderá. Então, pode de repente pedir: “Vamos começar tudo de novo.” Se o
outro jogador concorda e o segundo jogo é mais favorável à criança, tudo vai bem novamente e o jogo
Continuará. Se as coisas parecem sombrias para a criança pela segunda vez, ela pode repetir sua solicitação de
um recomeço, e fazê-lo repetidas vezes. Isso pode ser frustrante para o adulto, capaz de decidir que a criança
deveria aprender a terminar o jogo uma vez que o tenha iniciado, mesmo estando aponto de perder. Mas se o
adulto puder ser paciente e concordar em repetir outras vezes, mesmo que o jogo de damas possa nunca se
concluir, a criahça eventualmente aprenderá a jogar melhor.
Mas se o adulto insistir em que a criança continue a jogar quando estiver tendendo a perder, muito será
exigido de seus controles ainda frágeis. Se pudesse articular sua postura, ela poderia dizer: “Obedecer às
regras quando parece que vou perder é simplesmente demais para mim. Se você insistir para que eu continue,
vou desistir dos jogos e voltar às brincadeiras de fantasia, onde não posso ser derrotada.” Então o jogo de
damas, no qual se aceitou que as peças fossem movidas apenas de acordo com regras estabelecidas, passa
subitamente a ter as mesmas movimentadas de acordo com a imaginação da criança, ou de um modo que
pareça assegurar sua vitória. Se isso não é aceito, as peças podem transformar-se em mísseis muito pessoais,
para serem lançados fora do tabuleiro, ou mesmo no oponente vencedor.
225
As razões para o comportamento da criança não são difíceis de se compreender. Sentindo-se momentaneamente derrotada
pelas realidades complexas e dolorosas do jogo — ela está perdendo e, portanto, seu respeito próprio muitíssimo tênue está
em vias de ser prejudicado, o que deve ser evitado a todo custo — ela volta a um nível lúdico em que as regras já não têm
razão de ser, de modo preservar inviolado o seu sentimento de competência ameaçado. Se o oponente é também uma
criança, ela compreenderá intuitivamente (se bem que nâo aplauda) a ação do companheiro. A criança oponente poderá
dizer em resposta: “Qual é, agora? Você está agindo como um bebê.” Como se reconhecendo — provavelmente por sua
experiência própria em situações similares — que o que está acontecendo é uma regressão a um estágio anterior do
desenvolvimento, porque o mais elevado se mostrou muito doloroso, e assim, não merecedor do esforço de ser
preservado. Ou ela pode sugerir: “Vamos brincar de outra coisa,” sabendo o jogo de damas ficou muito difícil.
Se o oponente é um adulto, entretanto, pode ser que essa compreensão intuitiva não esteja presente. Alguns
pais, infelizmente, ficam muito ansiosos para verem o filho comportar-se de modo amadecido antes que esteja
pronto para isso. Então ficam infelizes com seu comportament quando reverte à brincadeira simples e
desestruturada. Mas a crítica e a insistência num comportamento maduro, exatamente quando a criança se
sente mais ameaçada, apenas agrava seu senso de derrota. Deveríamos reconhecer que a criança pode ser
forçada, por pressões ainda incontroláveis, a menosprezar ou mesmo subverter as regras do jogo num
determinado momento, e que, se o fizer, isso acontece por motivos prementes.
De novo devemos lembrar-nos de que, para a criança, um jogo não é “apenas um jogo,” do qual participa pela diversão, ou
como uma distração de assuntos mais sérios. Para ela, jogar pode ser, e freqüentemente é, um sério empreendimento em
cujo resultado ela deposita seus sentimentos de auto-estima e competência. Já foi discutido em vários contextos como
brincar é importante para a criança, e i essaltado que o mundo lúdico é, em muitos sentidos, o seu mundo real. Colocando
em termos adultos. jogar é a verdadeira realidade da criança; isso a leva muito além das fronteiras de seu significado para
os adultos. Perder não é apenas uma parte do jogo, como para os adultos — pelo menos na maior parte do tempo —, mas uma
coisa que coloca em questão o sentimento de competência da criança e, freqüentemente, o enfraquece. Perder não é mais,
então, apenas parte do jogo; é não apenas um insulto, mas uma coisa que, colocando em questão seu valor próprio e sua
integridade como pessoa, coloca cm risco sua própria existência, o que deve ser evitado a todo custo. Fazendo a criança
sentir que pode perder seu valor próprio, perder pode causar a desintegração de sua compostura a ponto de deixá-la
subitamente incapaz de separar a realidade do jogo da realidade da vida.
É por isso que a criança que conhece as regras do jogo e insiste em que o parceiro as siga, enquanto deseja vencer, é a
mesma criança que zomba das regras com determinação, quando pensa que está perdendo. Isso confunde amiúde os
adultos — se a criança pode seguir tão bem as regras do jogo quando está ganhando, por que não pode fazê-lo quando está
perdendo? Para um adulto, ambas são a mesma si.uação de jogo; mas, para a criança, ambas são realidade. Quando vence,
entusiasma-se além do razoá vel, uma vez que é “apenas um jogo.” Quando perde, sente-se destruída e reage de
226
acordo: sua maturidade desintegra-se, assim como acontece com adultos em situações nas quais se sentem defrontados
com a total destruição.
O que torna tudo tão confuso é que, de vez em quando, a criança é perfeitamente capaz de terminar um jogo, mesmo
quando tem certeza de que está perdendo. Então, se pode aceitar a derrota em algumas ocasiões, por que não sempre? Já
que pôde fazer ontem, os adultos esperam que aja de modo igualmente maduro hoje, e tentam exigir isso dela, ou são
críticos, se não o fizer. O que esquecem é que eles mesmos não agem muito diferentemente na vida real. Podem aceitar a
derrota com relativa equanimidade, quando se sentem seguros em outros assuntos importantes; em outros momentos, a
derrota desintegra-os temporariamente, torna-os deprimidos e incapazes de agir. Sua reação depende dos detalhes da
situação nas quais se encontram no momento da derrota — o quão seguros estão de si próprios e com relação aos outros e
como podem contrabalançar sua derrota com a força que possuem em outros assuntos de importância. Isso é verdadeiro
em situações da vida real para a maioria dos adultos. Desde que o jogo seja para a criança uma experiência da vida real,
ela comporta-se de acordo:
quando se sente relativamente segura, é capaz de dominar a derrota, num jogo, sem desmoronar; mas quando insegura,
não pode. Como a incapacidade de aceitar a derrota num jogo é um sinal de que a criança naquele momento está um tanto
insegura, torna- se ainda mais importante que não pioremos a situação com nossas críticas.
Considerando que os adultos atribuem tal significado altamente simbólico à vitória em jogos competitivos, como poderia
ser de oto modo para as crianças, que são ainda mais propensas a ver significados e conotações mágicas e.n quase tudo? O
exame psicanalítico das competições esportiçTas mostrou qu, em muitos casos. as pessoas as usam para externarem
conflitos internos. Projetando-os no jogo, não precisamos mais reprimir ou sentirmo-nos dilacerados por tais conflitos,
mas podemos externar esses 4 sentimentos, mais ou menos diretamente como participantes, ou indiretamente çomo
espectadores. O perigo que ameaça de dentro — conflitos internos — é deslocado para o mundo externo por meio do jogo; a
ansiedade neurótica é convertida na ansiedade consciente sobre a derrota no jogo e, assim, torna-se mais fácil aceitar e
viver com ela.
Que estamos lidando aqui com conflitos inconscientes é demonstrado pelo grau de tensão e excitação que os eventos
esportivos produzem tanto nos participantes quanto nos espectadores, e por seu intenso envolvimento pessoal no que é
supostamente apenas um jogo. Prova disso é, por exemplo, a excitação aguda gerada em espectadores que, com
freqüência, nem podem ver com clareza o que está acontecendo por causa da imensidão da arena. Prova também é o
orgulho de pessoas que nunca se preocupam com esportes, quando o time local ou nacionaL vence, e sua fúria e desânimo
. quando perde, e a violência que algumas vezes explode no fim de um jogo disputado apaixonadamente. E que dizer dos
milhares que passam o domingo assistindo a jogos de bola pela televisão? Sua devoção é apenas outra indicação de que há
muito mais envolvido nesses jogos do que uma competição para ver qual time é o melhor.
A criança que brinca de pique-esconde está experimentando questões vitais como: “É seguro para mim deixar minha
casa?” “Conseguirei retornar à segurança de casa, se eu sair?” O problema análogo do adolescente é libertar-se do
domínio paterno, provar sua coragem e suas oportunidades de sucesso com seus pares no grande mundo. Enquanto tenta
conseguir o primeiro, ele ataca amiúde o que significa sua casa, en
227
quanto que, para ter êxito no último, ainda precisa de sua segurança; assim, é profundamente ambivalente a
respeito da casa e dos pais. Mesmo não mais brincando de pique. esconde, ou apenas fazendo-o raras vezes, o
adolescente joga avidamente jogos de bola. Em muitos desses, por exemplo no futebol, o problema é atacar e
invadir a área ou o gol do adversário com uma bola, e defender o próprio território a todo custo contra esses
perigos.
O futebol resume-se na agressão e na defesa contra ela; mas, em particular, o jogo é sobre o ataque e a defesa da área-casa.
Apenas um jogador — o goleiro — fica nessa casa — área e regras de conduta especiais aplicam se a ele apenas. Como quem
fica em casa e precisa defendê-la diretamente, ele pode simbolizar o pai ou os pais. Todos os outros jogadores, atacantes e
defensores, devem ficar lá no campo, fora ia área-casa. Os times são como dois grupos de irmãos — seu número limitado a
quantcs irmãos podemos ter na realidade — que não mais residem em casa. Como adolescentes na vida real, eles atàcam a
área-casa e o pai (do outr o time) e simultaneamente defendem os seus próprios. Assim, no jogo, podem ter ambos, como
o adolescente tão freqüentemente gostaria de poder na realidade: atacar e defende;- uma casa e um pai simbólico.
Os vencedores ganham o aplauso e a aprovação pública por seu ataque e por sua defesa, o que lhes assegura que está certo
descarregar parte de sua agressividade dentro das fronteiras do campo. Ganhar reforça sua auto-estima, algo de que os
adolescentes precisam ainda mais do que outros grupos etários. Embora pareça duvidoso que a batalha de Waterloo tenha
sido vencida nos campos de jogos de Eton, há boas razões para admitir que a batalha eterna dos adolescentes de todos os
tempos e lugares é representada simbolicamente em todos os tipos de campos de jogos.
Atribuímos muitos significados psicológicos ou simbólicos a nossos times, independentemente de sermos jogadores ou
espectadores, e essas são as origens de grande parte do interesse dos jogos. Há, por exemplo, um grande número de atletas
de sucesso que subitamente perdem o interesse em competir, apesar de continuarem a gostar do seu esporte. Quando esses
casos são investigados nsicanaliticamente, um padrão interessante emerge. O atleta parece ter acalentado uma crença
mágica de que vencer provaria alguma coisa a seu respeito, ou seria uma previsão do que aconteceria no seu futuro (mas
não em termos das conseqüências realistas de ganhar ou perder). Quando perde essa çrença, perde um motivo poderoso
para se expor aos rigores e perigos da competição. Uma dessas crenças mágicas mais comuns tem a ver com a
indestrutibilidade do corpo; o desejo de acreditar nisso e de prová-lo através de testes repetidos responde por muitos feitos
de ousadia atlética. Quando esses motivos irracionais se vão, nem a aclamação da massa nem prêmios financeiros são
razão suficientemente convincente para se continuar competindo.
JOGOS DE AZAR
Aos jogos de azar, damos o significado insconsciente de que o destino indicará quem é seu favorito, e se os deuses —
aqueles substitutos superlativos dos pais — sorrirão para nós. O vício do jogo é usualmente a conseqüência de tentativas de
forçar nossa sorte a confirmar nosso merecimento; Por outro lado, o jogo contínuo em face da perda per
228
sistente é uma fonte de autopunição; no inconsciente, o perdedor sente que não merece a sorte, e sim perder por causa de
alguma culpa. Alguns jogadores acreditam que ganhar provará que finalmente foram perdoados por algum pecado anterior
e trazidos de volta a um status mais favorecido. E alguns ficam permanentemente ligados ao uso de tais artifícios
mágicos para corrigirem sua sorte na vida real. Esses excessos não alteram o fato de que, no jogo, o poder inconsciente é
administrado para servir ao menos a algumas exigências impostas pela realidade, como por exemplo, considerar as
possibilidades das cartas, dos dados ou da roleta.
Quando a criança se submete às regras do jogo, não o faz apenas para vencer a competição. De fato, mesmo os adultos
não se poderiam empenhar tão emocional- mente em jogos, se tudo girasse apenas em torno dos ganhos realísticos do
vencedor. Em todo tempo e lugar, há um elemento inconsciente também envolvido. Por isso, podemos competir” como se
a vida estivesse em jogo” — o que só é possível se acreditarmos que, em algum nível, isso é verdade.
Para a criança (mesmo quando está entrando na adolescência) vencer significa ter-se tornado um dos eleitos. Por exemplo,
as crianças quase sempre jõgam paciência, obedecendo estritamente às regras, não só porque desejam ganhar a partida, e
não apenas para matar o tempo ou desenvolver sua capacidade de atenção. Ao contrário, jogam porque acreditam que o
resultado irá magicamente fazer, ou predizer, por exemplo, que passarão num exame ou conquistarão um amigo que
desejam, ou que algum outro desejo secreto se tornará verdadeiro. Mas a idéia requer que não trapaceiem na paciência,
porque, então, o resultado não predirá nada.
Através de tais experiências, as crianças aprendem a fazer com que seu inconsciente poderoso e suas fontes irracionais de
energia sirvam a tarefas exigidas pela realidade. Esse é um dos aprendizados mais importantes que elas podem obter dos
jogos — a capacidade de usar pressões e desejos insconscientes para dar-lhes força de enfrentar tarefas reais. Mas isso não é
tudo. Jogando, a criança aprende não só a direcionar as forças irracionais de seu inconsciente para atividades realistas —
como jogar paciência para tornar verdadeiros seus desejos —, mas também aprende a controlar essas forças para chegar ao
seu objetivo: “não devo me deixar ser levado pela trapaça na paciência, porque isso não permitirá nenhuma previsão.” É
por isso que jogar é um passo muito importante, quase indispensável, ao tornar-se civilizado, porque a civilização requer
que seus membros usem as forças inconscientes com objetivos realistas e, ao mesmo tempo, que exercitem um controle
razoável sobre as mesmas. Uma vez que a criança tenha adquirido a capacidade de fazer seu insconsciente servir às
exigências da realidade, pode aplicar as energias dele a outras tarefas. Tendo aprendido a usar e a dominar as forças de seu
inconsciente, ela tornou-se seu próprio senhor, e o fez através dos jogos.
RETIRADAS TÁTICAS:
A NECESSIDADE DE A CRIANÇA VENCER
Algumas crianças — e a maioria delas em alguns estágios de suas vidas — simplesmente não suportam perder. Então
trapaceiam para ganhar. De um ponto de vista adulto, claro, a trapaça é altamente questionável e repugnante; mas aqui,
como em tantas outras
229
situações, devemos cuidar para não julgar os sentimentos e ações da criança pelos nossos padrões maduros. As crianças
que recorrem à trapaça fazem-no por causa dos enormes riscos envolvidos — enormes, claro, para elas — e, portanto, é
errado prendê-las às regras do jogo, porque podem desistir inteiramente de jogar e ficarem profundamente desanimadas e
desapontadas consigo mesmas. Se, ao invés de objetar à sua trapaça nós a aceitamos silenciosamente, desse modo
possibilitando-lhes vencer, elas desfrutarão do jogo e continuarão a jogá-lo. À medida que continua a jolr — e a trapaccar
—, a criança lentainente se torna mais experiente no jogo e precisa trapacear cada vez menos, e de forma menos ultrajante.
Por isso é especialmente importante que os pais joguem com os filhos, porque os outros não estarão tão propensos a
deixá-los trapacear sem pelo menos comentá-lo. A trapaça, porém, pode ser necessária se queremos que a criança jogue
com freqüência suficiente para tornar-se capaz de vencer sem trapacear. A vitória toma-a mais e mais segura quanto à sua
capacidade de se manter firme-no jogo, e logo desistirá totalmente de trapacear, mesmo que não possa ganhar sempre.
Poder, agora, vencer sem trapaça, propicia-lhe segurança suficiente no jogo para que uma perda ocasional não seja
experimentada mais como uma derrota tão grave a ponto de fazer com que ela evite totalmente o jogo. Mas isso requer do
pai tempo e paciência, até que o filho se torne um jogador suficientemente bom para não se sentir devastado quando
perde.
Se formos observadores, o comportamento da criança, nos modos como tenta trapacear, nos sugerirá a intensidade de seu
medo da derrota e a profundidade devoradora de sua ansiedade. Parar o jogo freqüentemente não é o bastante; algumas
vezes, nem mesmo manipular sua sorte movendo as peças contrariamente às regras é suficiente. Em vez disso, pode
imaginar que todas as suas peças são reis, que podem comer todas as do adversário. Se essas fantasias são aceitas cdm
bom humor, a confiança da criança pode ser restaurada, e ela pode tentar, mais uma vez, jogar de acordo com as regras.
Mas se é impedida de reverter do jogo à fantasia com o objetivo de escorar seu ameaçado sentimento de competência, ela
pode perder todo o interesse nos jogos. Quando isso acontece, a criança pode acatar roubada da oportunidade que os jogos
oferecem de aprender graus mais elevados de socialização.
As expressões da criança, enquanto se concentra no jogo, revelam seu estado psicológico. Enquanto acredita que pode
vencer, fica totalmente absorvida no jogo, sem perceber o que acontece em volta. É “toda ego”, inteiramente
alterodirigida, cheia de concentração na tarefa a cumprir e inteligentemente indo de encontro a suas exigências. Tudo isso
pode mudar num segundo quando ela sente a derrota. Seu rosto pode ficar distorcido; a voz, perder o tom tranqüilo; pode
não ser mais capaz de concentrar se no jogo, mas apenas na tentativa de impedir a derrota, não importa que
comportamento ultrajante seja necessário. O jogo e suas regras podem ter sido tudo que impor. tava até poucos instantes,
mas agora não valem coisa alguma. A realidade retrocede diante da raiva e da frustração que a possuem às expensas de
tudo mais. Resumindo, o ego, que estava no comando, perde sua frágil integridade enquanto todo o seu ser se deixa
submergir num desânimo ansioso.
Se permitirmos à criança nessa situação satisfazer seus sentimentos — isto é, desabafar, desafogar sua raiva com relação ao
jogo que tanto a frustrou e ameaçou com um desmoronamento — a situação pode ser restaurada quase tão rápido quanto se
de-
230
teriorou, e o controle do ego pode novamente prevalecer. Se sua explosão é aceita pelos outros, com bom humor, como
legítima, e eles dizem: “Essa não valeu: vamos começar tudo de novo” —, ela pode ter condições de fixar-se num outro
jogo sério e, no processo, aprender a jogar com mais habilidade e mesmo enfrentar pequenas quantidades de frustração.
Através dessas experiências repetidas, ela aprende uma lição muito importante: que pode recompor-se depois de ter
perdido temporariamente o controle e ter sido subjugada por pressões dos instintos.
Perder ou temer que possa perder não são, de modo algum, as únicas situações nas quais a criança se torna incapaz de ver
um jogo como tal e obedecer a suas regras. Qualquer situação de jogo pode despertar pressões emocionais tão fortes que o
seu controle pelo ego seja impossível.
Quando a criança leva uma boiada durante um jogo, sua raiva ou ansiedade podem chegar ao ponto em que ela toma a
situação como um insulto pessoal e um ataque deliberado. Pode ficar furiosa e contra-atacar a sério, convencida de que foi
golpeada não como parte do jogo, ou por acaso, mas deliberadamente. Sua capacidade de jogar de acordo com as regras
pode desmoronar; mas, ainda mais seriamente, ela pode regressar a um estágio anterior de desenvolvimento, quando
acreditava que os objetos tinham propósitos, como o de destruí-la por motivos próprios. A bola, então, não é mais um
material do jogo, mas um míssil perigoso. Quando perguntada por que reage tão violentamente, ao ter sido golpeada por
acaso, a criança pode exprimir seu ponto de vista sobre o assunto dizendo: “Ele fez isso acidentalmente de propósito.” —
concordando da boca para fora com nossa visão de que aquilo aconteceu por acaso, enquanto, ao mesmo tempo, insiste em
seu ponto de vista de que foi feito de propósito.
Podemos admitir ser golpeados como parte do jogo apenas enquanto podemos aceitar que isso acontece numa situação
“como se”, para a qual as regras do jogo se aplicam, regras que não são idênticas às que pertencem ao resto da vida. Poder
reconhecer situações “como se”, e aceitar que diferem da vida real requer um grau de sofisticação e maturidade
relativamente alto. Quando as emoções subjugam a criança, ela não pode mais manter essa maturidade, e, para ela, a
situação “como se” desmorona. Então, ser golpeada por uma bola torna-se o resultado de uma agressão direta, contra a
qual precisa defender-se. Reage, então, exatamente como muitos de nós reagiríamos se fôssemos deliberadamente
insultados e atacados.
Mas se não passamos a criticar a criança por responder como se fosse um ataque de propósito, e se reconhecemos seu
dilema concordando que sentiu que uma grande injustiça lhe foi feita — porque apenas pretendia jogar, e viu-se numa
situação que lhe pareceu colocar sua integridade corporal em risco —, então nosso apoio vai ajudá-la a sentir-se mais segura
novamente e, em geral, ela consegue retornar ao jogo sem demora. Mas se a criticamos, isso se acrescenta à sua
insegurança, que já foi poderosamente estimulada por ter sido atacada, e ela pode não conseguir continuar a jogar,
podendo mesmo desligar-se inteiramente do jogo.
Admitindo a validade do que (de nossa perspectiva) é uma visão destorcida do que aconteceu, damos à criança o
sentimento de que, em sua angústia, encontrou um amigo compassivo que vê as coisas como ela; esse sentimento
contribui, mais do que qualquer outra coisa, para restaurar a segurança. Cria um solo fértil para os esforços de induzi-la a
ver as coisas do nosso modo; ela pode, então, ouvir-nos quando explicamos
231
que o que aconteceu foi apenas uma fatalidade, e não a ameaça de vida ou morte com a qual a confundiu.
Ouvir com simpatia, compreender o ponto de vista da criança e concordar com sua validade freqüentemente
lhe permite retornar à situação “como se” do jogo. Quanto mais ela tiver dessas experiências, mais aprenderá
a Lição mencionada anteriormente: que ainda pode recompor-se depois de ter sido dominada por um tempo
pela raiva e pela ansiedade. Pouco a pouco, aprenderá a manipular situações “como se” enquanto tais; poder
fazê-lo é um passo importante para alcançar um grau mais alto de compreensão e maturidade.
O ELEMENTO DO ACASO
Qualquer que seja a natureza de um determinado jogo, alguns jovens não conseguirão aceitar ou enfrentar as
exigências da realidade simbolizadas pelas regras do jogo. Por conseguinte, algumas crianças trapaceiam ou
param de jogar porque são incapazes de perder sem sofrer um sério baque em sua auto-estima. Só conseguem
sentir-se contentes consigo mesmas quando podem manter uma fantasia de onipotência. Isso acontece, em
geral, porque só podem visualizar duas possibilidades: ou o poder e o controle sobre todas as coisas ou o total
desamparo.
Os mesmos mecanismos psicológicos também podem ser observados na atitude da criança com relação ao
aprendízado e aos estudos, quando finge possuir conhecimentos que não tem, ou aborda o aprendizado com
ansiedade e resistência, convencida de que nunca vai conseguir. Para ela, trapacear pode representar um meio
termo entre sua necessidade emocional de onipotência e seu reconhecimento crescente das limitações
impostas pela realidade.
Os jogos de azar são os primeiros pelos quais as crianças aprendem as “regras do jogo”. Esses jogos oferecem
à criança pequena uma oportunidade que ela não pode desperdiçar: consegue vencer oponentes mais velhos a
despeito de sua maior força ou habilidade. Entretanto, mesmo quando a mera sorte cega determina quem
vencerá o jogo, a criança ainda deve obedecer às regras: não pode mover-se por mais espaços do que os dados
determinam. Se pára num lugar onde há uma penalidade, como ter que se mover para trás alguns espaços,
deve fazê-lo. É claro que a criança pequena freqüentemente objeta e tenta melhorar sua sorte, trapaceando,
fazendo uma jogada extra, ou errando na conta.
Em jogos de azar, mesmo uma criança pequena pode vencer honestamente seus competidores mais velhos,
incluindo os pais. Em todos os outros esforços humanos, ela só pode vencer se aquelas pessoas mais velhas
fizerem concessões: desistir, entregar o jogo, fingir. Assim, a criança quer aprender a obedecer as regras dos
jogos de azar, porque, respeitando-as, pode vir a ser o vencedor. Uma vez que tenha aprendido a jogar de
modo ordenado porque o jogo de azar lhe oferece essa oportunidade única, será mais fácil concordar com as
regras mesmo de jogos de habilidade, nos quais está em desvantagem competitiva.
Por muito tempo inúmeras crianças continuam não querendo testar-se contra a realidade; jogarão apenas jogos
puramente de azar. A dependência da sorte representa uma visão muito primitiva de como o mundo funciona e
reduz toda atividade a uma questão de destino. Mas, gradualmente, a criança começa a ver que habilidade e
conhe
232
cimento podem exercer alguma influência em jogos que combinem habilidade com “pura” sorte. Conseqüentemente, fica
encorajada a procurar conhecimentos mais elevados e a sublimar suas tendências primitivas.
Hoje, tanto nas ciências sociais como nas fisicas, alguns dos problemas mais complexos são resolvidos pela análise
estatística. Uma vez que comparar a probabilidade de um evento com o qde realmente acontece nos ajuda a entender os
fenômenos, o que quer que o jovem aprenda sobre probabilidades estatísticas a partir dos jogos de azar é de grande valor.
Em grandes áreas da vida, o sucesso ou o fracasso dependem inteiramente da capacidade de se ter uma noção realista das
regras de probabilidade, e os jogos dc azar podem ensinar às crianças lições importantes a esse respeito. A criança que está
profundamente envolvida nesses jogos aprenderá bem tais lições.
Jogos mais bem estruturados, que combinam sorte e habilidade, propiciam a oportunidade de competições abertas numa
estrutura de confiança, situações nas quais a amizade coexiste com a competição clara. Quanto mais um jogo depende de
habilidade, mais as regras, e não o destino, controlam as condições de rivalidade, e maior é a probabilidade que o
“melhor” vença. Mas o elemento do acaso, ainda muito presente, reduz a tensão da competição consciente e ajuda a
manter as coisas calmas.
O vencedor se bem que possa interiormente se congratular pela habilidade, pode ainda exteriormente objetar e, com
modéstia, dizer ao perdedor: “Ah, eu apenas tive sorte.” Assim, pode derrotar o amigo sem aliená-lo. O perdedor, por
outro lado, pode consolar-se com o pensamento do quanto a “má sorte” contribuiu para sua derrocada, de modo que não
precisa sentir hostiidade com relação ao oponente vencedor. Por conseguinte, a criança não precisa sentir-se
indevidamente culpada ou sem valor em virtude de vencer ou perder um jogo assim. Uma criança nesse estágio de
adaptação à realidade jogando pode ficar aborrecida pela suspeita de que o oponente não “está tentando”, e também pelas
ocasiões em que este demonstra um comportamento pouco esportivo em resposta à vitória ou à derrota. Ambas as atitudes
tendem a negar o valor do jogo — a primeira sugerindo que não era a sério, a segunda implicando que não era amigável.
O Monopólio, que recria as operações financeiras, pode servir como exemplo do que a criança pode aprender através de
sua participação em jogos. O jogador neófito pode no início se agarrar a todo o seu dinheiro, entesourando-o ansiosamente
e recusando-se a investi-lo em casas ou hotéis. Mas logo aprende que esse enfoque não funciona, e que ser um marionete
de suas ansiedades leva à derrota. Por outro lado, investimentos temerários também não são a resposta. Isso às vezes se
torna claro para a cri •anç que investe todo o seu dinheiro numa propriedade, de alto preço, equivocada- mente convencida
de que seus companheiros de jogo irão necessariamente parar ali. Ela também se achará na bancarrota.
Nesse sentido, os jogos (tão distintos da livre fantasia lúdica) forçam a criança, se quer vencer, a conter seus pensamentos
ávidos ou ansiosos e a procurar acordos viáveis entre as pressões de seus desejos conscientes e inconscientes e as
exigências da realidade. Manter-se fiel às regras dos jogos de tabuleiro é análogo a ter ê*ito no mundo, procurando a
satisfação dos desejos dentro dos limites dc aceitação da sociedade. Nenhuma estratégia propicia sucesso todo o tempo,
porque nossa sorte e nossos oponentes mudam, mas a criança aprende a melhorar suas oportunidades.
233
O SIMBOLISMO DA VITÓRIA
Sentir-se ameaçado pelo que é tomado como um ataque pessoal ou pela derrota iminente não é a única
situação em que uma integração maior desmorona e ocorre uma regressão temporária. As crianças algumas
vezes sentem-se compelidas a desistir de uma realização mais elevada por motivos muito particulares. Uma
menina, bastante hábil no xadrez, derrotava regularmente a mãe em jogo limpo e apreciava intensamente seu
sucesso. Então, ficou bastante doente. Como diversão, um dia ela e a mãe jogaram uma partida de xadrez,
como tinham feito freqüentemente no passado. Mas dessa vez a menina cometeu o que pareciam enganos
deliberados, a despeito dos quais ganhou. Ao invés de regozijar-se pela vitória como antes, caiu em lágrimas e
começou a repreender a mãe por deixá-la vencer.
A pobre mãe, que jogara o melhor que sua limitada habilidade lhe permitia, ficou pasma. Por que sua filha,
que sempre adorou ganhar, subitamente ficou tão deprimida pela vitória e tão zangada com ela? Nesse caso, a
filha estava amedrontada pela doença e queria usar o jogo de xadrez com outros propósitos além da distração
e de provar a própria competência. Naquele momento, ao invés de experimentar o xadrez como um jogo bom
para provar sua habilidade, a menina precisava vê-lo agora como uma prova da competência de sua mãe.
Amedrontada pela doença, precisava de confirmação profunda de que seu destino estava nas mãos de uma
pessoa mais competente e mais instruída do que ela prória. Como todas as crianças, precisava poder ter féna
pessoa que protegia sua vida. Nessa situação, ela desejava que a mãe saísse vencedora da batalha contra a
doença, e queria ver-lhe as habilidades superiores demonstradas pelo sucesso no xadrez.
Quando a mãe perdeu e revelou-se menos competente do que a filha, a vitória da menina derrotou os
propósitos pelos quais estava jogando naquele momento. Ela sabia que em circunstâncias normais podia
derrotar a mãe no xadrez. Mas o que precisava, então, era da confirmação, num nível virtualmente mágico, do
poder superior da mãe. Essa confirmação não vinha, a despeito de seus esforços para jogar mal. Assim, sua
reação à vitória foi sentir-se decepcionada; estava com raiva da mãe por não se mostrar uma pessoa mais
poderosa, capaz de vencer quando a filha sentia que ela própria estava perdendo com relação à doença. Sob
—
as circunstâncias extraordinárias de sua doença, a menina tentou usar o jogo dc xadrez para conseguir uma
segurança infantil de estar bem protegida por poderes superiores e benevolentes.
A história dessa menina, tomada em conjunto com a descrição anterior de uma criança que não podia admitir
perder no jogo de damas, ilustra como em algumas situações de jogos a criança precisa ganhar, e em outras
(mas muito mais raras) perder. Tomados juntos, esses exemplos sugerem por que é errado dar aos pais regras
do que fazer quando estão jogando com os filhos. O que é melhor numa situação pode ser um jeito pobre de
proceder cm outra, ou mesmo na mesma situação em Outro dia. Precisamos sentir isso e ser guiados pelo que
acontece no momento. Mesmo o pai bem afinado com o filho nem sempre pierá saber antecipadamente que
caminho é melhor. Mas podemos confiar em que &.riança logo mostrará do que precisa. E fará isso mais
claramente, quanto menos a foi çarmos a agir do modo que pensamos ser correto. Devemos .deixar a criança
proceder como deseja, e seu comportamento nos dará seu recado.
234
No exemplo do jogo de damas, a criança não admitia perder, e seu comportamento indicava isso. Se
entendemos o recado, podemos tomar uma decisão. Por outro lado, a menina doente não precisava realmente
perder no xadrez. Ela precisava ser tranqüilizada com relação a outros assuntos: a habilidade de sua mãe em
ser capaz, forte e sábia, quando ela se sentia tão vulnerável, e a boa vontade de sua mãe em tratá-la como a
criancinha desamparada que ela se sentia no momento. Se a mãe tivesse entendido a mensagem inerente ao
comportamento da filha, mesmo tendo perdido no jogo, podia ter-se dirigido diretamente à ansiedade causada
pela doença e lhe dado a segurança de que tão desesperadamente necessitava naquele momento. Felizmente, a
mãe entendeu sem demora o que estava ocorrendo e pôde aliviar a ansiedade da filha por conta de estar
doente.
235
Tornar-se Civilizado
O propósito de toda civilização é converter o homem, uma fera de rapina, num animal dócil e civilizado.
— NIETZSCHE
As pessoas que estudaram o papel dos jogos no desenvolvimento humano chegaram a duas diferentes teorias
sobre como eles alcançam seus propósitos e significados. Karl Groos, alinhado com o racionalismo objetivo
predominante no começo do século, vê nas brincadeiras e nos jogos a preparação da criança para suas futuras
atividades na vida. Jean Piaget, seguindo as mesmas linhas, encontra na brincadeira vários passos no
desenvolvimento cognitivo, movendo-se de estágios mais baixos para os mais altos da compreensão e da
realização intelectual. Freud, apesar de não ter discutido a brincadeira sistematicamente, impressionou-se
muito pelo quanto de nossa herança arcaica ainda carregamos conosco. Ele frisou repetidamente sua
convicção de que a ontogenia repete a filogenia, isto é, que o indivíduo, em muitos aspectos, recapitula o
desenvolvimento da espécie. Assim, ao invés de ver as atividades lúdicas como uma preparação para o futuro,
ele as via como uma evidência do quanto devemos a nosso passado coletivo.
As fúrias da criança pequena, o modo como joga objetos, em sua raiva e frustração, não são diferentes de
como imaginamos tenha sido o comportamento do homem primordial. Bertrand Russel afirma: “É
biologicamente natural que as crianças vivam, em imaginação, através das vidas de remotos ancestrais
selvagens.”
O processo de desenvolvimentos biológico, intelectual, social e emocional nunca nos permite omitir
inteiramente um estágio importante. Cada estágio na maturação do indivíduo deve acontecer em seu tempo
devido; se isso não ocorre, ou se é abortado antes de poder seguir mais ou menos o seu curso integral, disso
resultará um
236
desajustamento. É por isso, por exemplo, que alguns adolescentes tentarão viver por um tempo a “vida do selvagem” —
seja como hipies ou como revolucionários, ou apenas “caindo fora” — se não tiveram oportunidade suficiente para fazê-lo
na infância. Na adolescência tenta, então, jogar fora a canga dos pais que tentaram educá-los sem reconi-iecer que esse
processo deve abarcar a representação e a elaboração do “estágio selvagem” no tempo certo, para que possa ser
transcendido. Mesmo se privadas, enquanto crianças, da oportunidade de viver e elaborar importantes estágios de
desenvolvimento, já não podem fazê-lo como o fariam na infância, porque, enquanto adolescentes, vivem no mundo da
realidade em grau muito maior que as crianças. Assim, costumam usar eventos contemporâneos para servirem como
estrutura externa para sua representação e tentativa de dominar pressões internas — alinhando-se, por exemplo, com os
campos conflitantes de ideologias contemporâneas extremistas, alguns sustentando causas profundamente boas por
motivos bastante irrelevantes com relação a essas mesmas causas. Os problemas internos que estão, desse modo, tentando
elaborar são revelados através do modo “selvagem” como abraçam alguma ideologia, mesmo que esses modos sejam
bastante antiéticos para a causa em questão.
Um dos maiores passos no progresso humano foi a domesticação dos animais. Então, não devemos ficar espantados
quando as crianças repetem essa experiência quando “domesticam” ou fazem de um cão ou gato seu companheiro íntimo.
Crianças mais velhas adoram cuidar de — e montar — cavalos. Se fosse factível, teriam como companheiros outros, e
maiores, animais. Quanto maior o bicho, mais feroz sua natureza, maior é o desejo da criança domá-lo e torná-lo amigo.
Muitas histórias de crianças (e um significativo número de fábulas e parábolas adultas) são baseadas no reconhecimento
(inconsciente) desse fato.
Os antropólogos nos contam que o homem deu um grande salto na direção da civilização, quando se assentou num
território definido que demarcou para si próprio. Podemos ver, entender e apreciar os ecos desse processo em nossos
filhos, quando insistem que certo território — seu esconderijo, seu quarto, seu quintal, sua parte da rua, vizinhança ou
cidade — é exclusivamente seu, um lugar no qual ninguém pode entrar sem permissão. Se provocados, irão juntar-se para
defenderem sua “área”. Mesmo crianças bastante pequenas conhecem esses jogos territoriais; amarelinha é um exemplo
típico. Os homens primitivos agrupavam-se e aprendiam a comunicar-se e a cooperar com o propósito de uma vida mais
bem-sucedida e agradável; as crianças formam turmas por motivos similares.
Alguns historiadores nos dizem que a principal ocupação das cidades-estado gregas era travar guerras, e que altas
organizações sociais e políticas foram criadas com esse propósito. Os mitos homéricos nos dizem que os gregos
descobriram sua identidade como povo através do empreendimento comum da guerra contra Tróia, e que esse mito
formou a base de sua civilização. As cidades-estado alcançaram os picos de suas realizações quando se juntaram como
uma espécie de nação temporária para defenderem seu território contra os invasores persas. Podemos ver um
desenvolvimento paralelo, quando turmas juvenis rivais fazem uma trégua temporária e formam uma aliança para se
defenderem contra um inimigo comum. Nem a analogia termina aqui. Não devemos subestimar quanto do progresso
político e tecnológico, incluindo a formação
237
de nações a partir de grupos lmgüísticos — a Itália, por exemplo — e o desenvolvimento de refinamentos técnicos, como a
fissão e a fusão atômicas, se deveu ou estava relacionado com a guerra.
Porque estou profundamente preso à convicção de que é mais do que hora de dispensarmos nossa herança arcaica da
guerra, acredito que não apenas como raça (não parecemos estar dando certo nessa frente), mas como indivíduos,
deveríamos trabalhar todos esses remanescentes primitivos dentro de nós, de modo a podermos nos libertar deles. É
exatamente isso que os jogos de guerra podem fazer pela criança. Para tudo há uma época certa; empenhar-se em guerras
como adulto não é nem oportuno nem razoável. A infância éo tempo em que devemos externar e sepultar essa herança
ancestral, e fazê-lo apenas por meio de ações simbólicas, assim como as crianças brincam de guerras nas quais suas
agressões, inseguranças e ansiedades encontram saídas que não provocam dano sério e, certamente, não permanente a
quem quer que seja.
A criança desenvolve um código moral externando sua agressividade, ao mesmo tempo em que passa do tiroteio de
mentirinha indiscriminado e do esforço de estabelecer domínio a todo custo para uma batalha do bem contra o mal,
seguindo regras organizadas. Esse progresso forma um currículo de como controlar, educar e sublimar tendências
destrutivas até que estejam tão domadas que sua energia possa servir a objetivos sociais. É um currículo que as crianças
inventam e reinventam espontaneamente, se lhes dão a oportunidade de fazê-lo.
JOGOS DE GUERRA
Os jogos de guerra são diferentes da brincadeira simples de revólver, discutida anteriormente; eles permitem a expressão
de uma série inteira de sentimentos, desde a auto- afirmação opressiva à descarga emocional de frustração e hostilidade.
Através desses jogos, essas tendências afirmativas são transformadas em brincadeiras construtivas e apropriadas à idade.
Nas formas mais primitivas dos jogos de guerra, a criança se vê como um guerreiro poderoso que vencerá todas as
batalhas; a realidade dificilmente representa qualquer papel nessas fantasias. Quando avança e brinca de cowboys e
índios com outros, alguns elementos históricos entram e alguns aspectos da realidade do cowboy e do índio são
usualmente respeitados. Mesmo assim, o jogo pode facilmente deteriorar num “vale-tudo”.
Simplesmente brincando com soldados de brinquedo, a criança distancia-se de sua agressividade; ela já não luta; ao invés
disso, seus conflitos encontram expressão simbólica em eventos históricos. Em sua brincadeira, ela torna-se um grande
general e, nesse ponto, uma identificação mais específica com um herói cultural pode acontecer. Quando reencena grandes
batalhas, coloca seus soldados de brinquedo mais ou menos de acordo com a história; não pode mais simplesmente seguir
seus devaneios. Esses jogos mais complicados envolvem muitos fatores, como, por exemplo, formações geográficas que
devem ser levadas em conta. Enquanto a criança dispõe as forças inimigas, aprende a avaliar uma situação dos diferentes
pontos de vista de duas forças opostas, com suas forças e fraquezas relativas. As considerações racionais começam a
dominar sobre os desejos agressivos. Dispor uma complexa formação de batalha com soldados de brinquedo requer
esforço e paciência persistentes — atitudes difíceis para a criança pequena dominar, mas qualidades inestimáveis para a
obtenção de sucesso na vida.
238
Visitantes do Castelo Blenheim vêem as elaboradas cenas de batalhas que o jovem Winston Churchifi armou com seus
soldados de chumbo. Vê-las é perceber como o grande estadista, sem o saber, preparava-se para suas futuras tarefas, e
como seus prazeres infantis nutriram as relações adultas. Em suas brincadeiras de criança, Churchili começou a
desenvolver a perseverança e a preocupação com detalhes que o sustentou, e à nação britânica, em seu tempo de maior
adversidade.
Tendências agressivas e auto-afirmativas são controladas nos jogos de guerra e desenvolvidas para se tornarem atitudes de
séria aplicação. Ao mesmo tempo, o desejo de ser uma pessoa poderosa e de fazer o que bem entendermos começa a ser
modificado por identfficaçõés do ego e do superego com uma figura histórica: Washington, Napoleão, Grant, Lee ou
qualquer outro. A criança pode estudar a vida de seu general ou herói favorito, desejando imitá-lo. Aprender história
ilumina seus jogos de guerra. A luta não é mais pela simples superioridade, ou para nos livrarmos da agressividade, ou
para negar as derrotas que experimentamos na vida. O jogo agora se torna uma batalha com um objetivo: ganhar
independência como na Guerra Revolucionária, derrotar outro país e beneficiar o nosso próprio. Quanto mais elaborados
esses jogos, mais eruditos se tornam: fatos históricos dominam cada vez mais a brincadeira. Em jogos globais, como
Risk, alianças são formadas e quebradas, como possa parecer melhor para o jogador. Agora as qualidades de perícia,
planejamento e previsão podem modificar os resultados que. antes eram dirigidos pelo puro acaso.
Em alguns jogos de tabuleiro planejados para recriar batalhas, a identificação com um general estende-se até o reviver em
fantasia eventos particulares de uma guerra de verdade. Um coniiecimento de história e estratégia incrementa e
realisticamente reforça o sentimento de competência da criança; a identificação com grandes figuras históricas serve às
necessidades do ego e do superego. Desse modo, a criança começa a fazer o que Freud achava que fosse o processo
essencial de tornar-se ainda mais humano: onde originalmente havia o id, deve haver sempre mais ego. Quando se permite
que o jogo de guerra evolua de seu início agressivo e caótico para um empreendimento cada vez mais intrincado, os
elementos do id continuam a propiciar a energia motivadora, mas as ações tornam-se controladas pelo ego à medida que
os soldados são alinhados em formações complexas, e movimentados apenas de acordo com planos cuidadosos.
Em acréscimo, os jogos de guerra, como toda brincadeira infantil, têm outras dimensões importantes. Eles servem para a
criança enfrentar e resolver problemas emocionais e de crescimento, do presente, mas há muito mais além disso. A Guerra
Revolucionária presta-se à exploração de questões cruciais de independência, por exemplo. Um jogo sobre a Guerra
Civil,* por outro lado, pode servir como um veículo para assuntos bastante diferentes que a criança precisa abordar e
tentar compreender.Já que a Guerra Civil foi a guerra de “irmão contra irmão”, ela presta-se muito bem a problemas de
rivalidade entre irmãos. Mas um jogo sobre a Guerra Civil também pode servir como uma representação imaginativa de
outras discórdias internas na família, como a batalha entre pai e mãe, ou entre pais e filhos.
239
É claro, a Guerra Civil foi disputada por problemas de escravidão e terminou com a liberdade dos escravos. A criança
sente-se mais ou menos escravizada, uma vez que sua vida é controlada pelos pais; assim, qualquer guerra de libertação
também reprsenta o desejo e a luta da criança pela libertação do controle paterno. As batalhas parecem espelhar os
progressos e retrocessos em sua luta pela autodeterminação, enquanto o resultado final da Guerra Civil — liberdade para os
americanos negros — parece prometer também sua vitória. Com tais idéias e identfficações no fundamento dos jogos de
guerra, é perfeitamente natural que muitas crianças se deixem absorver profundamente por eles.
Além disso, as crianças também podem usar a situação da Guerra Civil num nível mais primitivo, a fim de enfrentar
medos e agressões, enquanto os soldados são movimentados, empurrados, alvejados. No extremo oposto, uma criança sem
problema familiar particular no momento pode jogar simplesmente como um exercício de pensamelito histórico, testando
sua agilidade mental e capacidade social para se sair bem dentro das regras. Crianças com motivações muito variadas
podem brincar juntas e amigavelmente no mesmo jogo de guerra, cada qual tirando do jogo os aspectos que sirvam a
necessidades e propósitos próprios. Ainda, certas crianças lutarão para vencer, outras para perder, conforme a auto-estima
ou um sentimento de culpa ou inutilidade ditarem, independentemente dos usos simbólicos ou imaginativos que façam do
cenário da Guerra Civil.
Há um aspecto especffico dos jogos da Guerra Civil que ilustram muito bem a inter-relação entre a realidade e a fantasia
nos jogos. Como foi observado, a Guerra Civil foi uma guerra dentro de uma família, uma guerra de irmão contra irmão.
Em sua própria família, a criança experimenta rivalidade com irmãos e testemunha discussões — quando não também
brigas — que, ela sente, irão ameaçar sua própria existência, como a Guerra Civil ameaçou a vida da nação. Essas batalhas
familiares põem em risco o sentimento de bem-estar da criança mais do que qualquer outra coisa, porque, se não há
segurança dentro da família, onde é que ela poderá ser encontrada?
Aqui, a realidade entra em sua forma mais tranqüilizadora, pois hoje as devastações da Guerra Civil estão curadas e os
Estados Unidos aparecem mais poderosos que nunca. De fato, apesar da Guerra Civil — um verdadeiro desastre na ocasião
— o país sobreviveu, e fortaleceu-se muito, na verdade. Assim, os fatos históricos oferecem uma tranqüilidade muito
necessária: a despeito de toda a luta, a despeito dos sofrimentos que infligimos uns aos outros, não nos separamos; no
final, ficaremos juntos e estaremos melhores do que nunca.
Um jogo sobre a Guerra Civil, se bem que possa ser estruturado de maneira altamente intelectualizada e “educativa”,
apela, não obstante, para nossas emoções mais profundas. Ele fala a nossas maiores ansiedades e nos atrai por causa da
tranqüilidade inconsciente que nos oferece. Como Aristóteles disse da tragédia, que corretamente chamamos de peça*
teatral, ela educa nossa mente enquanto depura nossas emoções. Em certo sentido, isso se aplica a todas as atividades
humanas construtivas.
Muitos pais amantes da paz objetam que os filhos brinquem com soldados de
240
brinquedo. Assim, valeria a pena citar o que George Orwell, certamente um homem profundamente contrário à violência,
tinha a dizer a respeito. Ele escreveu: “O socialista que encontra os filhos brincando com soldados fica em geral
aborrecido; mas ele jamais pode pensar num substituto para os soldadinhos de chumbo; pacifistas de chumbo, seja como
for, não servem.” Certamente que não; se bem que as crianças brinquem espontaneamente de médicos e enfermeiras,
nunca brincam de pacifistas, por mais que alguns pais assim o desejassem. Pacifismo é um conceito adulto sofisticado.
Quando pensamos em brincadeiras e jogos, precisamos nos lembrar de que os motivos subjacentes à brincadeira infantil
são os conflitos internos que pressionam em busca de expressão e solução. Pacifistas de brinquedo, mesmo se existissem,
não poderiam prestar-se à expressão e solução de nossos conflitos internos; é por isso que “não servem”, enquanto os
soldados de brinquedo servem admiravelmente a esse tipo de brincadeira.
Uma vez que muitos pais conscienciosos não objetam a jogos de tabuleiro que representem as batalhas de Waterloo ou
Getrysburg, mas proíbem jogos de atirar, pode ser útil voltar mais uma vez a esses últimos. Os que condenam de imediato
esses jogos diretamente combativos como exercícios de violência ou de irracionalidade não consideram a dualidade de
nossas naturezas humana e animal e a distância entre elas. Decerto que há uma grande quantidade do animal — e com ele
da violência — nos seres humanos, e algumas vezes essas forças irracionais aparecem nos jogos infantis, o que causa
desconforto a muitos pais. Porém, mais freqüentemente, é na verdade o desenvolvimento do senso de humanidade da
criança que motiva aquilo que parece ao pai não-envolvido e desinformado ser mera “brutalidade”. Desde tempos
imemoriais as crianças encenam jogos de guerra em que nós lutamos contra eles, sendo eles o inimigo do momento
histórico. Historiadores do período clássico nos contam que na Grécia do quinto século as crianças estudavam a Ilía&i de
Homero. Aventuro-me a imaginar que também encenavam a Guerra de Tróia em seus jogos, como meus amigos e eu, em
nossa infância, fazendo uso apropriado à idade da educação clássica parcialmente impingida a nós e parcialmente
abraçada por nós.
Mas foi durante esses jogos bárbaros de guerras com espadas de papelão ou madeira, escudos e capacetes que o que
aprendíamos na sala de aula tornava-se real para nós. Aquiles e Heitor tornavam-se vivos, assim como Ulisses, cujas
provações e atribulações nós também reencenávamos. Desse modo, os poemas homéricos tornavam-se uma parte real de
nossa vida. Encenando a guerra dos Sete contra Tebas podíamos chegar a apreciar, compreender, e mesmo amar a tragédia
grega e, por conseguinte, a cultura e a arte gregas. Naquela época, nada disso teria tido muita substância para nós, se não
as tivéssemos representado em jogos. À medida que o fazíamos com os mitos gregos, a herança clássica tornou-se nossa
e nos civilizou.
As crianças da Idade Média certamente brincavam de cavaleiros e infiéis, como nossos filhos brincam de polícia e ladrão.
Diz-se que Elizabeth 1 indagou se os meninos estavam brincando da guerra dos ingleses contra os escoceses. Na Europa
do início desse século, muitas brincadeiras incluíam a Legião Estrangeira contra os árabes. E assim que se ergueu o muro
separando Berlim Oriental da Ocidental, as crianças alemãs começaram a atirar umas nas outras sobre muros em
miniatura. O importante denominador comum desses jogos de batalha é que eles invariavelmente representam o conflito
do bem contra o mal, em termos e imagens que a criança pode claramente entender.
241
Em jogos como polícia e ladrão, a criança explora e experimenta identidades morais. Esses jogos permitem-lhe visualizar
suas fantasias, e ela Lhes dá “corpo” ao ser o policial ou o ladrão. Representar esses papéis permite-lhe chegar próximo à
realidade desses personagens e de como eles se “sentem”, o que a leitura ou a televisão não pode propiciar. Um papel
passivo e receptivo não é substituto para encontros atrativos com a realidade experimental.
Em jogos representando o conflito do bem contra o mal, constitui um mau presságio para o ajustamento social da criança
à realidade e à moralidade, se as condições nas quais ela cresce não lhe permitem perceber claramente os “polícias” como
os mocinhos. Isso pode acontecer nas favelas, onde os que enganam a polícia são considerados, senão “bons”, pelo menos,
mais espertos. Se essas são as condições de sua realidade, a criança terá dificuldades de desenvolver uma identidade moral
clara. Mas mesmo essa criança terá mais facilidade de ter êxito na vida, se a identidade final que escolher for a que
defende a ordem moral. Mas, não importa quem sejam os mocinhos, a criança deve finalmente adotar a identidade deles
como a sua.
Falando psicanaliticamente, esses conflitos entre “bem e mal” representam a batalha entre as tendências anti-sociais do id
e as do diametralmente oposto superego. Tais batalhas — sejam dramatizadas por dois grupos de crianças guerreando um
contra o outro, ou representadas por uma ou mais crianças manipulando os soldados de brinquedo — permitem alguma
descarga de agressividade, real ou simbolicamente, através do conflito. Só após essa descarga de raiva ou violência podem
as forças do superego ganhar ascendência para controlarem ou contrabalançarem as do id; com o que o ego torna-se capaz
de funcionar novamente.
Enquanto observamos o progresso da atividade agressiva em nosso filho, podemos gradualmente discernir um progresso
do desenvolvimento da brincadeira livre, que permite a expressão e satisfação do id (o tiroteio não-estruturado em que
vale tudo, no qual a agressividade é livremente descarregada), para um jogo mais estruturado em que não a mera descarga
de agressividade, mas uma integração maior — a ascendência do bem sobre o mal — éo objetivo. Assim, nós destruímos
eles, os gregos derrotam os patifes malfeitores troianos, os cavaleiros cristãos destroem os infjéis, os policiais encurralam
os ladrões, os cowboys esmagam os índios selvagens.
Como adultos objetivos, devemos saber que a cultura troiana era talvez superior à dos gregos da idade do bronze, ou que a
causa dos índios era pelo menos tão boa quanto a dos cowboys. Mas essa objetividade é o produto final de uma luta
moral e intelectual prolongada, um longo processo de depuração, moderação e refinamento das emoções. Para a criança,
essa objetividade não pode ser fácil ou rapidamente alcançada, porque as emoções, e não o intelecto, estão no controle
durante os primeiros anos. Nossas crianças querem acreditar que o bem vence, e precisam acreditar, para seu próprio
bem-estar, de forma a poder se tornar pessoas boas. Repetir o conflito eterno entre o bem e o mal numa forma primitiva,
compreensível para elas, e ver que o bem triunfa sobre o mal serve à sua humanidade em desenvolvimento.
Quando as brincadeiras e os jogos tiverem estabelecido firmemente a ascendência do bem na mente da criança, de modo
que o resultado da luta já não esteja em ques.
242
tão, ela pode voltar-se para outros refinamentos humanitários do jogo de guerra original. Então, a questão se expande: não
é mais apenas um caso da ordem contra o caos, do bêm versus o mal, mas da sublimação de emoções violentas.
Nesse ponto, já não se trata do problema dc se o cavaleiro vencerá o infiel (é claro que sim), mas se ele poderá fazê-lo
com elegância, de acordo com os protocolos da arena, ou da virtude cavalheiresca, O problema colocado e resolvido pelo
jogo está detrminando não só o que é mais forte — o id ou o superego, meu eu primitivo ou meu eu civilizado —, mas se o
ego pode assegurar a vitória do superego de um modo que reforce o respeito próprio no processo. Não apenas o bem deve
triunfar sobre o mal, mas deve fazê-lo de modo a demonstrar o valor de nossa humanidade maior. O cavaleiro errante não
apenas mata o monstro, mas o faz para livrar a donzela cativa, O bem prevaleceu, mas prevaleceu com um propósito,
obtendo satisfação erótica (do id) como parte da barganha. Assim, o ego e o superego combinam para prometerem ao id
uma recompensa se ele fizer sua parte. Servir o bem torna-se reforçado pela força motivadora de um propósito mais alto.
Quando a criança encena essa compreensão, aprende a apreciar uma lição que não pode ser convincentemente ensinada de
modo puramente didático: que lutar contra o mal não é suficiente; devemos fazê-lo em honra a uma causa e com valor
cavalheiresco — isto é, dc acordo com as regras do jogo, a maior das quais passou a ser agir com virtude. Isso, por sua vez,
irá promover a auto-estima, um estímulo potente para a futura integração do id, ego e superego — isto é, para se tornar mais
civilizado.
243
Ideal e Realidade
Não bá família que possa ostentar o cartaz ‘Aqui não temos problemas”
— Provérbio chinês
247
metro continuar levando a vida exatamente como aiites, mas logo se tornam
conscientes de como os seus dias estão modificados. Esses novos acertos
externos refletem mudanças internas mais importantes nos novos pais,
modificações profundamente assentadas e de longo alcance, na forma como se
vêem e vêem seus objetivos de vida. Assim, desde o começo, a criança exerce
uma influência significativa e formativa sobre os pais e, em conseqüência, sobre a
família inteira. No início, ela faz isso passivamente, apenas por conta de sua
chegada e sua presença, mas logo passa a fazê-lo também através de suas
ações, através da sua maneira de reagir ao que os pais fazem a ela e com ela.
249
Por exemplo, uma mãe que se lembra de que como era infeliz por não ter
bnnquedos, por ninguém brincar com ela, e como se sentia mal a respeito disso
tudo — de como se ressentia de seus pais por não lhe darem brinquedos ou
estarem interessados em brincar com ela — será provavelmente a que ficará mais
encantada de ver seu fflho feliz com seus brinquedos e a que mais gostará de
brincar com ele. Indiretamente, participando do prazer do filho em brincar com
seus brinquedos, e diretamente, tirando satisfação de brincar com ele fará com
que compense, consideravelmente, sua própria infelicidade na infância. Se nos
lembramos de nossas privações e dos sentimentos que tínhamos em relação a
elas, podemos transformá-las em bons espíritos, desejando o bem de nosso filho
e sentindo prazer com sua felicidade.
Uma situação muito contrastante nos é oferecida pela mãe que se lembra de sua
infância de privação, mas de uma maneira distante, banal, porque reprimiu seus
sentimentos de infelicidade e raiva. Essa mãe inconscientemente teme que as
brincadeiras do filho despertem seus sentimentos reprimidos de infelicidade e
raiva, a ponto de não poderem mais permanecer reprimidos, mas virem a explodir,
com conseqüências possivehuente devastadoras. Desse modo, para manter a
repressão, ela pode tentar impedir que o filho seja feliz demais, não despertando
assim seu ciúme, ou pode distanciar- se emocionalmente do filho, de maneira a
impedir que o que ele faça cause um impacto muito forte sobre ela, a ponto de
demolir suas repressões. Assim, é o fantasma não lembrado da própria infância
infeliz de cada um que pode tomar-se a fonte do espírito mau que irá espalhar
tristeza no ambiente que essa mãe criou para seu filho. A razão é que, não
estando consciente de quais tinham sido então seus verdadeiros sentimentos, ela
deve por motivos inteiramente inconscientes evitar ser confrontada com os
sentimentos de felicidade do filho, uma vez que estes podem despertar-lhe
emoções que ela será completamente incapaz de enfrentar; assim, ela omite-se
em relação a contatos sentimentais com o filho.
Naqueles casos relativamente raros em que foi possível colocar essa mãe em
contato com os sentimentos de raiva e depressão que tinha experimentado
quando criança, foi então como se uma maldição que a impossibilitasse de sentir,
tivesse sido retirada e ela tivesse se tornado capaz de apreciar a felicidade do filho
e permitir que esta a compensasse de alguma foi:ma por sua própria desgraça, da
qual agora consegue lembrar-se não só como um fato, mas também como um
sentimento, O que estava faltando era uma reação sentimental ao filho; a mãe
tinha que permanecer indiferente a ele, à medida que tinha que permanecer
indiferente ao que tinham sido seus próprios sentimentos de infância, dos quais se
tinha alienado completamente porque, de outra forma, eles a teriam soterrado com
sua característica depressiva. Felizes serão o filho e o pai, se o pai, através da
relação com o filho, conseguir exumar os espíritos maus de seu passado e colocá-
los de lado, dando a seu filho a infância feliz que ele próprio almejou, mas jamais
conseguiu ter.
Há incontáveis experiências em criação de filhos que inesperadamente ativam em
nós remanescentes de nossas próprias experiências de infância, muitas delas
parcialmente esquecidas e reprimidas. Por isso, ao considerar métodos de
aprendizagem de asseio, poucas mães estão conscientes de que assim fazendo
estarão reativando conflitos esquecidos, mas não resolvidos, que tiveram quando
passaram pela mesma experiência. Da mesma forma, limpar uma criança após ter
sujado as fraldas não pode
251
personalidades dos pais, normalmente, sem que eles estejam conscientes disso.
Se eles resistem a esses desenvolvimentos ou se os aceitam, neles e nos
cônjuges, ou, como é mais freqüente e natural, resistem a alguns e aceitam
outros, novos ajustes começam a ser feitos em suas personalidades e em suas
relações um com o outro. Pode levar anos até que esses desenvolvimentos
estejam completos, reconhecidos e aceitos. Muito depende, para o filho e para os
pais também, se as mudanças são experimentadas pelos pais essencialmente
como um enriquecimento de suas vidas, um enriquecimento tão grande que os
sacrifícios feitos tornam-se insignificantes, ou se a nova situação exige que
renunciem a alguma coisa que é considerada uma perda importante, apesar do
prazer que sentem por terem se tornado pais.
Muitos anos podem se passar antes que uma criança comece a ponderar
conscientemente a respeito do que se tornar, e ser pai pode ter significado para
cada um de seus pais e pode ser até que ela nunca faça isso. A maior parte de
nós simplesmente encara os pais como algo gratuito. Mas, praticamente a partir
do nascimento, o sentimento de amor-próprio e bem-estar emocional da criança
depende da convicção do pai de que o enriquecimento decorrente de ser pai
dessa criança compensa radical- mente qualquer coisa de que tenha desistido
para se tornar pai. A infância é o estágio narcisista do desenvolvimento, quando a
criança acredita que o mundo só existe para servi-la. Por causa disso, pode-se
objetar que toda criança está convencida de sua auto- importância. Isso é
bastante verdadeiro, mas causa um grande impacto sobre a criança se esses
sentimentos narcisistas são desmentidos pela realidade paterna ou são apoiados
por ela, no sentido de que seus pais têm sentimentos positivos quanto à
paternidade.
Com a única exceção do dom natural, nada molda mais a personalidade da
criança do que a experiência da vida em família — os sentimentos que desperta e
as atitudes que inculca. Suas opiniões a respeito de si mesma são igualmente
influenciadas, assim como suas relações com outros e suas expectativas relativas
ao mundo mais amplo. O que ela observa sobre como os membros da família, em
especial seus pais, vivem uns com os outros e como interpreta essas observações
determina se em sua vida ela procurará com sucesso relações íntimas com outros
ou se terá medo de fazê-lo. Se seus pais — independentemente de irritações
ocasionais um com o outro e das dificuldades concretas que são parte da vida de
todo mundo — estão essencialmente satisfeitos com seu casamento, esse
contentamento constituirá base firme para uma relação profundamente satisfatória
com o filho, que é visto por eles como um símbolo de sua união. A medida que os
pais se alegram juntos com seu bem-estar, ou dividem suas preocupações sobre
ela, a criança se convence de sua importância e grande valor para eles; nessa
base, ela desenvolve suas convicções sobre seu próprio valor como pessoa.
Por outro lado, se os pais são infelizes um com o outro, embora tentem manter
essa insatisfação escondida, esse fato lançará uma sombra sobre suas relações
com seus filhos. Mesmo quando um ou ambos os pais amam profundamente o
filho e tentam protegê-lo não o deixando penetrar em seus conflitos, ele, ainda
assim, sofrerá com sua infelicidade. Se eles tentarem encontrar compensação
pelo que está faltando em seu casamento através de sua relação com o filho, não
beneficiarão ninguém. Nessas situações, um pai pode querer receber do filho
demasiadas satisfações, ou o tipo errado de satisfação, o que ou joga uma carga
demasiado pesada sobre ele ou leva a uma relação
253
doentia entre pai e filho. Um exemplo comum disso é o pai que está decepcionado
com algum aspecto de sua vida, como suas condições econômicas ou seu status
social, e que quer e impulsiona o filho para conseguir mais. Por mais
compreensíveis que esses desejos possam ser, eles colocam uma carga pesada
sobre a criança, que deve então perseguir os objetivos do pai ao invés de
determinar os seus próprios.
Uma das contradições infelizes da vida é que um pai que se ressente da falta de
companheirismo e amor no casamento, e procura uma satisfação compensatória
em seu filho, na realidade encontrará menos do que o pai que está satisfeito com
o casamento. Nenhuma criança de qualquer idade pode proporcionar amor
maduro ou companheirismo adulto a um pai, e se (conscientemente ou muito mais
provavelmente inconscientemente) um pai faz essas exigências inadequadas, a
criança ficará muito confusa e bloqueará seus esforços para oferecer-lhe seu
próprio amor infantil. Além disso, sentindo acertadamente que estão querendo
dela mais do que pode oferecer, se ressentirá das exigências paternas e isso
interferirá em sua afeição mútua.
Um pai tampouco pode ser amigo do filho tanto quanto alguns pais desejam hoje
em dia. A amizade exige um tipo de relacionamento diferente do paterno. Quando
um pai espera que seu filho se torne um amigo íntimo, o resultado é um
relacionamento baseado em relativa imaturidade. O pai está procurando a
amizade de uma pessoa que é imatttra quando comparada a ele; a criança é
levada a buscar a amizade de uma pessoa que não está suficientemente apta a
oferecê-la de maneira satisfatória, por conta da constêlação de experiências
emocionais que ocorreram entre pai e filho durante os anos de formação da
criança.
Mesmo sob as melhores condições, o único espaço na vida de um pai que um
filho pode preencher adequadamente, e ficar feliz por fazê-lo, é o lugar de filho.
Tampouco pode compensar alguma coisa que possa estar faltando na vida do pai,
não importa o quanto o pai possa desejá-lo. Além do mais, tudo o que um pai pode
ser para seu filho é exatamente isso: um pai cuidadoso e terno; ou seja, uma
pessoa madura que, cheia de amor e cuidado, aceita as imaturidades do filho,
ajuda-o a não se sentir mal a respeito delas e também cuida para que não
provoquem quaisquer conseqüências ruins, enquanto, ao mesmo tempo,
proporciona ao filho exemplos de maturidade que o guiarão ao longo de seu
próprio crescimento.
254
sem limites, ou do desejo de cada um dos pais de viver pelo menos parte de sua
vida independentemente, apesar de também atender às muitas exigências que lhe
são feitas pelas obrigações familiares. Uma compreensão melhor de que
expectativas são razoáveis e de quais não têm razão de ser, no casamento e na
vida familiar, podem aliviar enormemente essas dificuldades; pode evitar que
culpemos pessoas injustamente, como nós mesmos ou outros membros da
família, e pode ajudar a libertar os membros da família de se sentirem
decepcionados quando alguém não corresponde às fantasias irreais a respeito de
como as coisas poderiam ou deveriam ser.
O modelo dessas expectativas exageradas de satisfações sem limites e contínuas
a respeito da vida em família forma-se na infância e na meninice, quando
nenhuma compreensão realista do que é efetivamente possível interferiu na
crença de que todos os nossos desejos podiam ser satisfeitos. Apesar de o
contato posterior com a realidade dura, modificar algumas dessas expectativas
infantis, é assustador constatar quantas delas permanecem ativas, pelo menos no
subconsciente; isso explica por que muitas insatisfações profundas vão e vêm,
quando uma análise realista mostraria que nenhuma delas é justificável.
O mito dos “velhos bons tempos,” de uma época de ouro, ou do paraíso, que pode
ser encontrado em tantas culturas, é ainda difundido em nossa sociedade e
continua a ser persuasivo, quando até mesmo a mais simples reflexão mostraria
que a vida era muito mais difícil para os pais e também para os filhos em qualquer
época passada do que é hoje. A crença ingênua em uma época de ouro marca o
início da vida de cada pessoa, uma vez que a criança espera que todas as suas
necessidades sejam preenchidas sem esforços e sem questionamento. É claro
que se deve dar muito à criança para assegurar sua sobrevivência, sem esperar
que ela nos dê qualquer coisa em troca. Assim, já que parece ter realmente havido
essa época de ouro na vida de todos nós, é compreensível que em algum nível
profundo acreditemos no mito de uma época de ouro e também abriguemos
esperanças de que ela acontecerá outra vez. Além do mais, já que, como
crianças, experimentamos em família o que nos parece retrospectivamente uma
existência livre de problemas, subconscientemente acreditamos que podemos
reproduzir essa utopia com nossa família de agora. Esse desejo infantil, muito
comum e persistente, não é, evidentemente, percebido pela maioria dos pais, em
nível consciente, mas permanece em algum nível em seu inconsciente; a mesma
expectativa existe em um grau maior na mente consciente e inconsciente da
criança e interfere na sua capacidade de encontrar uma satisfação genuína na
realidade da vida familiar. A tendência difundida hoje em dia de procurar a
satisfação máxima em atividades de recreação mais do que em objetivos adultos
mais sérios e responsáveis é apenas uma expressão desse sentimento de que
apenas valem a pena verdadeiramente os prazeres infantis.
Um outro aspecto desse mito é a noção de que, em épocas passadas, a vida
familiar era muito mais satisfatória do que é hoje. Nesse passado imaginário e
nebuloso, supõe-se que a família proporcionou sem dificuldade a gratificação de
todas as necessidades emocionais e de outras carências psicológicas a todos os
seus membros. Uma vez que, por suposição, essa foi a regra até bem
recentemente, parece claro que alguma coisa deve ter dado muito errado para as
famílias de hoje, inclusive para a nossa própria.
Todas as terríveis dificuldades que nossos ancestrais sofreram, e das quais
existem registros históricos, são convenientemente esquecidas frente ao mito,
porque elas
256
257
gem muito mais, emocionalmente, uns dos outros; têm também expectativas
psicológicas mais altas das satisfações que a vida familiar deveria proporcionar-
lhes. São essas exigências e expectativas muito maiores, apesar de ao mesmo
tempo muito menos tangíveis, que fazem as relações familiares tão precárias,
causando, assim, algumas de nossas dificuldades mais sérias. Se aceitarmos
esse fato com uma percepção clara de como ocorreu e do que está presente nele,
poderemos caminhar muito em direção ao encontro das soluções certas para
esses problemas, ou, pelo menos, tomarmo-nos mais tolerantes em relação a
eles, fazendo com que seu impacto seja menos dilacerador.
258
PARA NOS SENTIRMOS CONFIANTES de que estamos desempenhando relativamente bem nosso
papel de pai, talvez seja útil considerar o que deu sustentação à família no passado e o que mudou a esse
respeito. Há apenas 200 anos, a média de vida no mundo ocidental era de aproximadamente 30 anos;
no resto do mundo era, como ainda o é em vários lugares, muito mais reduzida. O tempo médio que um
casal vivia junto era de 17 anos, pela simples razão de que, na maioria dos casos, ou a esposa ou o
marido tinha morrido. Hoje, mesmo com todas as separações e divórcios, o casamento médio dura mais
tempo, o que também oferece maiores oportunidades para problemas sérios ocasionais. Além disso, no
passado, as necessidades econômicas e a repressão da igreja contra a separação freqüentemente
induziam um casal a prolongar seu casamento, a despeito de suas incompatibilidades; convencidos de
que tinham que se entender de alguma forma, uma vez que o divórcio era impensável, eles o faziam.
Hoje, o divórcio oferece uma forma bastante fácil de interromper a vida em conjunto e a sociedade
aceita esse fato.
Mas isso, de maneira alguma, é tudo. Com uma expectativa de vida muito mais longa, os casais ainda
têm muitos anos depois que os filhos crescem. Assim, em muitos casos, a necessidade de cuidar dos
filhos e o desejo de não se separar deles por mais tempo trabalham contra o divórcio. Na realidade,
muitos dos que hoje se separam já viveram juntos tanto tempo quanto os casais do passado, antes que
um dos dois morresse.
Sabemos que o divórcio causa com freqüência a ruptura da vida da família e interfere duramente nas
boas relações entre os pais e os filhos. Independentemente das disposições jurídicas, a criança sofre por
ter sido forçada a dividir sua lealdade, e não pode evitar de se perguntar o que há de errado com seus
pais que os impediu de viverem juntos em harmonia; além disso, ela sente-se freqüentemente lesada
porque um dos pais escolheu não viver com ela. A riqueza crescente e o fato de que ambos, homens e
mulheres, podem alcançar a Independência e se sustentar e a seus filhos, tomou a vida muito mais fácil
para todos nós. Entre muitas outras amenidades, isso nos permite proporcionar a nossos filhos muitos
anos mais de estudo; e abriu igualmente novas e amplas oportunidades de escolha, muitas das quais bem
dificies.
259
Uma vez que os grandes acontecimentos da vida do indivíduo costumavam acontecer no lar, e aí serem comemorados com
a própria família, esses acontecimentos nos uniam simbolicamente e em nossos sentimentos mais profundos à família. Era
dc tal forma assim que, na percepção de cada um, lar e família eram praticamente idênticos. Poucos de nós
experimentaram a segurança e a estabilidade decorrentes de viver a vida inteira na casa onde várias gerações de ancestrais
fizeram o mesmo. Embora para alguns isso fosse uma dificuldade, a segurança interior e a estabilidade experimentadas
nesse tipo de infância tornou possível suportar bem a carga da ancestralidade. Hoje, apenas uma pequena e afortunada
maioria vive toda a sua infância e os anos de crescÍmento na mesma casa; a maioria das pessoas passa por várias
mudanças, cada uma delas produzindo, em certo nível, algum tipo de ruptura.
Em minha família, fui a última criança a nascer em casa; minha mãe foi encorajada e ajudada no trabalho de parto por
uma parteira, como tinha sido anteriormente durante o nascimento de minha irmã mais velha. Depois de mim, tanto
quanto eu saiba, todas as crianças nascidas de membros da minha família viram a luz do dia em hospitais. Meus avós
paternos foram os últimos membros da minha família que- morreram em casa, em suas camas, cercados por todos os
filhos. Meus outros paretUes morreram ou ém hospitais ou em casa, mas nenhum de seus filhos ou netos estava presente;
a família reunia-se depois de sua morte para o enterro. Assim, a ênfase foi deslocada do ritual de passagem, no qual a
morte de uma pessoa querida é efetivamente testemunhada, para o conforto dos sobreviventes.
Tradicionalmente, em muitos dos países antigos, os funerais eram acontecimentos cerimoniosos e elaborados, até mesmo
em famílias que mal podiam custear as despesas freqüentemente consideráveis, O corpo da pessoa morta não era
emb4lsamado e exposto em uma casa funerária, mas colocado e visitado no melhor quarto de sua casa, que era
adequadamente decorada de preto (assim como a entrada, senão toda a casa). Após a visitação, o corpo era escoltado por
um cortejo primoroso de familiares e amigos a um lugar de culto, antecipando o enterro propriamente dito no cemitério.
Após o enterro, começava um período tradicional de luto, durante o qual os membros próximos da família usavam trajes
de luto por muitos meses. Durante vários dias depois do enterro, membros menos próximos da família visitavam os
enlutados para consolá-los
— a família mostrando assim seu apoio em horas de necessidade, o lar sendo o lugar onde esse apoio era recebido. O hábito
irlandês do velório e o hábito judeu do luto de sete dias são exemplos tradicionais de maneiras efetivas através das quais
aqueles que são mais afetados por uma perda são ajudados a suportar sua tristeza pelo círculo mais amplo de familiares e
amigos.
O nascimento e a morte não eram os únicos acontecimentos que enalteciam o valor central do lar e da família quando eu
era criança. Por exemplo, os aniversários de minha avó paterna eram celebrados em sua casa com uma encenação
preparada com semanas de antecedência, no qual seus muitos netos representavam para ela e para a família reunida; tomar
parte em uma dessas encenações é uma de minhas lembranças mais antigas. Na realidade, até bem recentemente, todos
os grandes momentos da vida de cada um — nascimento, casamento, comemorações, morte — aconteciam dentro dos limites
dos lares e do seio da famiia. Havia o sentimento de que nos tornávamos parte de uma família e experimentávamos os
principais acontecimentos de nossas vi
260
das dentro dela; e de que, quando se deixava a vida, isso acontecia dentro de nossas casas, cercados, atendidos, e
confortados por aqueles que continuariam, começando do ponto em que tivemos que partir.
Isso ocorria no passado, quando as condições de vida forçavam os membros da família média a passar a maioria de seus
dias em grande proximidade física, talvez até mesmo dentro de um único quarto ou, no máximo, em apenas poucos
cômodos de uma casa pequena. Além disso, quase sempre os membros da família trabalhavam juntos durante o dia nas
atividades afins de uma fazenda ou loja da família. Eles tinham que confiar um no outro na doença, mas também na saúde;
nos tempos bons e ruins. É verdade que algumas vezes brigavam entre si, mas também dependiam um do outro para se
informarem e se divertirem. Havia menos oportunidades e tentações de procurar satisfação fora da família. Quase todos os
aspectos da vida desenrolavam-se dentro de uma esfera muito mais estreita, centrada no lar ou na igreja, que a família
também freqüentava junta.
Hoje, quando o grande valor que a família tem para seus membros individuais baseia-se essencialmente no oferecimento
de satisfações psicológicas, ao invés de no preenchimento de necessidades físicas básicas, é lamentável que muitas
experiências que davam um significado mais profundo à vida não sejam mais compartilhadas pela família. Por exemplo,
antigamente a religião unia os membros da família, à medida que participavam, como uma família, dos eventos religiosos,
como visitas regulares à igreja e suas festividades. Isso ainda persiste em algumas famílias ou entre mórmons e menonitas
confessos, por exemplo. Isso deu estabilidade à família e segurança aos praticantes. Mas agora, para muitas pessoas, a ida
à igreja e as expressões simbólicas dos acontecimentos mais importantes da vida — as comemorações familiares — tiveram
sua importância bem reduzida e muitas vezes desapareceram do lar. Para equilibrar isso, os pais hoje podem enfatizar o
significado simbólico dos acontecimentos familiares, como aniversários e outras ocasiões especiais, de maneira a que
esses acontecimentos dêem aos filhos o sentimento de segurança que a família, e somente a família, pode proporcionar.
Nossos filhos são muito mais saudáveis e amadurecem muito mais cedo do que os das gerações anteriores; através de
vacinas preventivas e cuidados médicos, a maior parte das doenças que debiitavam as crianças foi eliminada ou foi
possível controlá-las e reduzir seu impacto. Quando criança, por exemplo, tive desinteria, escarlatina, difteria, sarampo,
caxumba e outras doenças, para não mencionar vários ataques de gripe e amigdalite, que, a cada vez, me mantiveram na
cama por várias semanas. Com as vacinas preventivas e a disponibilidade de remédios à base de sulfa e antibióticos, tudo
isso mudou.
A despeito das várias doenças sérias e longas que tive quando criança, jamais fiquei um só dia no hospital; era tratado em
casa pelo médico, como o eram todos os outros membros de minha famiia. As visitas ao consultório médico tornaram-se
regulares após a Primeira Guerra Mundial. Poucas coisas podem ressaltar melhor como tudo mudou do que o fato de que,
no início de sua carreira profissional, Freud atendia regularmente chamados domésticos. Hoje, o tratamento médico
adequado requer visitas ao consultório médico e, se necessário, estadas em hospitais; esses se tornaram o lugar de
tratamento de muitos males que costumavam ser tratados em casa. Assim, a casa
261
perdeu parte de sua função (e identidade) como o melhor e mais seguro abrigo que podemos procurar quando nos
deparamos com problemas físicos sérios, como doenças e parto.
Na infância, meu cuidado diário era confiado à minha enfermeira, e mais tarde a empregadas ou governantas. Mas, sempre
que ficava doente, minha mãe atendia a todas as minhas necessidades. Ela passava horas cuidando de mim e me
distraindo, e dava-me as refeições. Durante as muitas noites em que estive seriamente doente, minha mãe sentava-se à
beira da minha cama, friccionando meu corpo febril e trocando as compressas frias para me dar alívio. Em momentos
como esse aprendi a compreender e a levar em conta que uma mãe faz toda a diferença do mundo quando estamos em
necessidade, sentindo muitas dores, profundamente preocupados ou até mesmo desesperados.
Nem por um momento é minha intenção sugerir que devemos abandonar qualquer dos grandes avanços que ocorreram na
medicina desde a minha infância, nem as vantagens do tratamento hospitalar (quando indicado) sobre o tratamento
caseiro, O tratamento hospitalar acabou, em grande parte, com as complicações de parto, melhorou a saúde dos bebês,
reduziu largamente as deficiências provenientes do parto etc.: o tratamento hospitalar no caso de doenças sérias prolongou
e salvou muitas vidas. A medicina moderna protege as crianças de muitas das doenças sérias de infância que me
mantiv’eram na cama por tantos períodos longos.. Ainda assim, acredito que existam poucas outras ocasiões em que as
crianças se sintam bem cuidadas e percebam o quanto um pai se preocupa com elas como quando estão de cama,
particularmente durante a noite,
Isso se aplica não apenas à doença. Quando criança, sempre que não conseguia dormir, ficava no colo de minha mãe — e
algumas vezes no de meu pai — até adormecer. Mais. tarde, se acordasse apavorado com um pesadelo, um dos meus pais
vinha e sentava-se na minha cama, conversava e brincava comigo, confortava-me e dava-me segurança, lia uma história
para mim, Tanto quanto é do meu conhecimento, foi essa a época em que meus pais e eu estabelecemos os laços de
proximidade que mais nos sustentaram na vida. Meus pais sabiam, talvez por suas próprias experiências de infância, que
ter pesadelos à noite não é nada incomum entre as crianças, embora naquela época as razões desses pesadelos e sua
ocorrência universal em certas idades não tivessem sido ainda elucidadas pelos psicanalistas, Até mesmo hoje, quando
tudo isso é bem conhecido, por alguma razão muitos pais acreditam que urna criança não deve ter pesadelos. E se ela tem
dificuldades para dormir, muitíssimos pais — freqüentemente seguindo conselhos de pediatras (algumas vezes porque
atendem aos desejos dos pais ou porque isso parece a solução mais simples) — apóiam-se em tranqüilizantes para
aquietarem a criança, ao invés de confiarem na segurança que sua presença proporciona ou no conforto que as histórias ou
uma bebida quente podem oferecer. Os remédios funcionam, mas usá-los dessa forma ensina muito cedo à criança a
confiar em remédios para confortar-se, ao invés de procurar esse conforto por meio de relações humanas satisfatórias. Não
é de admirar que, quando adolescentes, muitos jovens se apóiem nas drogas para aquietarem suas ansiedades, assim como
acontecia na infância. Nesse ponto, não adianta fazer sermão sobre os perigos das drogas, porque, a partir de suas
experiências enquanto crianças, trazem profundamente arraigada em seu inconsciente
262
a noção de que as drogas são a maneira mais simples de se ter alívio. Esses atalhos modernos, ao mesmo
tempo em que são convenientes e exigem menos o tempo dos pais, privam a criança de receber conforto
humano numa situação em que ela mais necessita e deseja isso. Priva igualmente os pais de perceber o quão
desesperadamente o filho precisa deles e de receber gratidão quando a criança aprecia o seu cuidado.
Proporciona uma grande satisfação aos pais perceber que, por causa de seus esforços, seu filho sente-se
seguro onde não se sentia antes; que, graças a eles, seu filho dorme bem e está em paz com o mundo. É essa
experiência recíproca de pai e filho que os faz sentirem-se tão melhores, que se transforma em um laço forte a
uni-los.
A amamentação une mãe e filho em um laço íntimo que é, ao mesmo tempo, físico e emocional. Talvez uma
experiência pessoal possa ilustrar. Fui amamentando até quase três anos, mas não pela minha mãè ela era um —
tipo vitoriano demais para esse papel. No entanto vivia profundamente preocupada com o bem-estar dos
filhos e tomava todos os cuidados ao selecionar amas-de-leite, que se sentiam muito felizes de poder
preencher todas as nossas necessidades físicas e emocionais. Muito embora não tenha recebido de minha mãe
éssas satisfações físicas que decorrem da amamentação, a atenção que recebi foi suficiente. Minha ama,
enquanto morou conosco, era considerada parte da família e, por isso, minha relação com ela uniu-me muito
ao meu lar e à segurança que ele representava, configurados em minha ama e seus excelentes cuidados, O
respeito que minha ama tinha por meus pais, e sua felicidade em ser parte de nosso lar (era muito importante
para meus pais que ela fosse saudável e feliz, de maneira que tivesse muito leite de boa qualidade e gostasse
de tomar conta de mim, razão pela qual recebia excelentes cuidados) eram elementos importantes para
convencer-me de como eu tinha sorte de que aquela fosse minha casa.
Falando retrospectivamente, talvez estivesse também impressionado que meus pais tivessem escolhido uma
pessoa que estava inteiramente devotada ao meu cuidado e que não tinha outras tarefas que a impedissem de
concentrar-se inteiramente em mim. Era hábito naquela época que uma ama-de-leite não tivesse quaisquer
outras obrigações além de cuidar o bebê; todo o trabalho da casa era feito por uma empregada que residia
conosco e por uma cozinheira, e a ama dedicava-se inteiramente a mim. Por outro lado, se minha mãe tivesse
cuidado de mim, teria que ter continuado a cumprir suas outras obrigações sociais e, portanto, não teria sido
capaz de dedicar-me todo o seu tempo como fazia minha ama. Também era hábito que um-t ama-de-leite que
tivesse feito o melhor pelo beê fosse presenteada, no final, com um dote generoso, como acréscimo ao
pequeno salário que recebia, que lhe permitiria casar-se e retornar à sua própria vida, o que muito
freqüentemente incluía a doação de uma casa para o bebê que ela tinha deixado em sua cidade natal quando
fora para a cidade procurar emprego como ama-de-leite. Assim, ela tinha um grande empenho pessoal em
meu bem-estar. Desnecessário dizer que, mesmo depois que minha ama deixou nossa casa e se casou,
263
permaneceu por muitos anos como uma pessoa importante em minha vida. No entanto, algumas vezes me ocorreu que
teria gostado ainda mais se minha mãe tivesse cuidado de mim pessoalmente.
A amamentação éo exemplo arquetípico do que nos une ao mesmo tempo a outra pessoa e à própria vida. Até
relativamente pouco tempo, quando a mamadeira tornou-se eficiente graças à higiene moderna e à pasteurização do leite,
a amamentação era a única forma de alimentar um bebê e mantê-lo vivo e em crescimento; há, é óbvio, a importante
vantagem adicional — até mesmo mais importante antes das vacinas — de transmitir ao bebê algumas das imunidades e
resistências a doenças que a mãe adquiriu durante sua vida. A amamentação, porém, proporciona muito mais do que
simplesmente assegurar ao bebê a nutrição de que ele necessita: ser alimentado é a experiência central da vida; espalha
sua luz sobre todas as Outras experiências, que, por sua vez, tiram muito de seu significado dela. Ser cuidado é o
acontecimento nuclear da existêneia do bebê e, se feito adequadamente, servirá de base firme na qual a confiança da
criança em si mesma, nas outras pessoas significativas em sua vida e, por extensão, no mundo será construída. Se as
coisas não dão certo para o bebê enquanto está sendo alimentado — quando se toma uma experiência desagradável e
frustrante para ele —, então essa experiência de ser alimentado de forma desapontadora será a semente de uma profunda
desconfiança dele próprio e do mundo. Se a experiência destinada a dar a satisfação máxima ao bebê falha, pode tornar-se
a causa de graves decepções e estabelecer, assim, o cenário para a desconfiança e a insatisfação gerais.
O que une mãe e filho com segurança um ao outro na amamentação é o fato de que nesse ato cada um está recebendo e
dando ao outro gratificação de necessidades físicas, alívio de tensões e satisfações emocionais. Nessa interação, ambos,
mãe e filho, são ao mesmo tempo ativos e passivos; eles são inteiramente eles mesmos e servem a eles mesmos, mas
também estão estreitamente ligados para servir e servem um ao outro. A mãe é ativa ao oferecer o peito ao filho, ao
segurá-lo, ao conversar ou fazer barulhos e gestos tranqüilizadores e encorajadores para ele, ao sorrir para ele; mas é
passiva quando deixa o bebê alimentar-se de seu peito. O bebê é ativo ao agarrar o mamilo, ao sugá-lo, ao ajustar seu
corpo ao modo como a mãe o segura, ao olhar e sorrir, ao absorver a imagem da mãe. É passivo ao se deixar segurar e
afagar. Quando se alimenta ativamente, o bebê sacia sua fome e assim satisfaz uma necessidade fisica que o pressiona,
enquanto a mãe alivia a pressão do leite em seu peito. O prazer que cada um, dessa forma, proporciona a si mesmo e ao
outro é o elo “que coração a coração e mente a mente, no corpo e na alma podem atar”, como diz o poeta.
Após termos falado tanto a favor da amamentação e, uma vez que muitas mães, por uma ou outra razão, não têm
condições de amamentar seus filhos, deve ser ressaltado que a alimentação através da mamadeira, quando bem-feita, pode
caminhar muito em direção a substituir a amamentação, e as crianças que foram alimentadas com mamadeira podem
desempenhar-se na vida tão bem quanto as que foram amamentadas. A razão disso é que a base da confiança da criança
nela própria e no mundo é o amor da mãe por ela; na medida em que a mãe a estima, ela aprenderá a se estimar, a estimar
a mãe e o mundo que ela representa. As mensagens que a criança recebe através da alimentação dada com amor no
momento certo, com a quantidade certa de comida, que durará aproximadamente o período certo de tempo; ser seguro de
maneira confortável
264
mas segura, o contato agradável entre sua pele e a da mãe — tudo isso combinado e em interação convence a criança de que
ela está bem, e de que tudo está bem com o mundo. Quando o bebê ouve a batida regular do coração da mãe contra seu
peito — como acontecia em seu útero antes de nascer —, estabelece-se um vínculo entre sua existência pré e pós-natal; dá-lhe
a sensação, embora vaga e incoerente, de que o coração de sua mãe continua a bater com e por ele. Todos esses elementos
que o bebê é incapaz de selecionar, ou perceber como tal, formam um universo de experiências do mundo que produzem
um impacto indestrutível em seus sentimentos mais proftmndos, e que afetarão fortemente suas experiências posteriores.
Para que isso funcione, e funcione bem, a alimentação não deve ser considerada pela mãe como uma atividade de tempo
limitado, como uma tarefa cujo objetivo principal é dar (e para o bebê ingerir) nutrição e que termina tão logo esse
objetivo é alcançado, como parece ser tão amiúde o caso entre nós. Em muitos outros países, como no Japão, o contato
pele a pele é prolongado muito além da experiência da alimentação; deixa-se a criança dormir no peito da mãe, com o
mamilo na boca, e a mãe fica satisfeita quando isso acontece. Tudo isso é muito facilitado quando a criança divide a cama
com a mãe, ou com ambos os pais, como acontece em muitas culturas.
As circunstâncias dentro das quais o bebê é alimentado com mamadeira devem ser semelhantes às condições que
acabamos de descrever tanto quanto possível e adequado. Por exemplo, o fluxo da mamadeira não deve ser fácil ou rápido
demais, porque isso priva o bebê da experiência de trabalhar ativamente para conseguir seu alimento. Ele trabalha para
obter seu jantar, digamos assim, e essa é sua primeira experiência de conseguir alguma coisa importante através de seus
próprios esforços. O bebê deve ser mantido confortavelmente e com segurança junto ao peito da mãe, esteja ele sendo
amamentado ou tomando mamadeira. Não há necessidade de privá-lo dos prazeres cinestésicos que lhe são dados pela
sensação de sua pele contra a pele quente da mãe, nem de ouvir a batida do coração da mãe. Quando a mamadeira foi
introduzida no Japão, as mães habitualmente desnudavam a parte superior do corpo e embalavam os bebês nus em seus
braços, contra o peito, enquanto lhe davam a mamadeira, da mesma forma que os segurariam nus contra o peito nu se os
estivessem amamentando. O que essas mães faziam instintivamente, a mãe americana moderna que alimenta seu filho
com mamadeira também pode fazer. Ela precisa apenas compreender que seu amor por seu filho é transmitido a ele
através do mais estreito contato corporal.
Já que mencionei o Japão, poderia acrescentar que lá, como em algumas outras culturas, são usadas formas simbólicas
importantes para dar expressão aos laços estreitos do bebê com a mãe. Segundo um costume antigo e venerável, a mãe de
um recém-nascido é presenteada com um pedaço preservado do cordão umbilical que micialmente ligou a mãe ao
filho. As mães japonesas freqüentemente guardavam todos os cordões de todos os filhos em uma caixa decorada, num
lugar destacado da casa. Em algumas regiões, quando um filho se casava, davam-lhe seu cordão para levar ao novo lar
como um símbolo da continuação do laço com a mãe.
Hoje, conforme ressaltamos anteriormente, os filhos não são mais unidos às famílias por necessidade extrema, nem ao lar
como o único abrigo seguro em um mundo estranho. Todas as antigas forças centrípetas que uniam estreitamente o filho à
família foram substituídas por incontáveis forças centrifugas, como os estímulos tentadores
265
vindos do mundo exterior — a importância da escola (começando muito cedo com creches e maternais), o fato de ser
cuidado por pessoas que não são parte da família e a influência do grupo de companheiros. Agora, são os laços emocionais
que, primordial- mente, têm que servir de âncora para a criança junto a sua família. Por isso é particular- mente importante
que, numa época em que o mundo exterior ainda não interfere com sua experiência, sejam proporcionados à criança todos
os contatos fisicos e emocionais mais íntimos com as pessoas que mais gostam dela, de modo que a segurança ganha
dessa forma contrabalance as forças alienantes que são abundantes demais na vida moderna, mesmo dentro da família.
Assim, o tipo adequado de experiências de alimentação e todos os outros aspectos do cuidado infantil, como a troca de
fraldas, o banho e a brincadeira — sempre com as emoções certas —, são necessários para instilarem confiança na criança,
assim como um sentimento gregário, de modo que ela saiba que pertencemos àqueles que nos amam e que eles nos
pertencem. Para nosso bem-estar emocional precisamos sentir que pertencemos e que aqueles a quem pertencemos
querem que pertençamos a eles e eles a nós. Se não experimentamos isso, bem cedo, sentimonos perdidos, mesmo que
estejamos no meio de muitos.
A CRIAÇÃO DA ADOLESCÊNCIA
A melhoria da saúde e da alimentação proporcionou-nos maior longevidade; não só vivemos muito mais, mas
vivemos muito mais tempo juntos, como uma família. Isso é uma bênção, mas também faz grandes exigências
a pais e filhos, que agora vivem uns com os outros or muito mais tempo, o que em si mesmo cria
determinados problemas novos; e isso continua muito depois de os filhos terem ultrapassado a infância, o que
provoca sérias tensões. Os progressos na saúde trouxeram uma força física muito maior a cada nova geração,
assim como uma maturação psicológica e sexual mais precoce; enquanto a abundância permite, e a
complexidade cada vez maior do mundo tecnológico exige, um período muito mais longo de estudo e
treinamento para os jovens. Conseqüentemente, nossos filhos, embora se tornem maduros muito mais cedo do
que em qualquer outra época, têm que aceitar o fato de ir à escola por muito mais tempo do que se pensou ser
exeqüível. Isso, por outro lado, exige que eles vivam por muito mais tempo na dependência econômica e, em
grande parte também social, dos pais. A tensão afeta pais e filhos: os pais têm que manter os filhos muito
tempo depois de terem ultrapassado a infância e de terem cessado de sentir e agir como crianças, o que
tornava o fato de sustentá-los relativamente fácil e muito mais compensador emocionalmente. Ter que
sustentar adolescentes, que se ressentem de sua dependência dos pais, quando com toda razão se sentem
perfeitamente adultos, é psicologicamente muito mais exigente e problemático.
As relações entre pais e filhos raramente são assaltadas por dificuldades sérias antes de os filhos chegarem à
adolescência. Há cerca de dois séculos, e até tempos consideravelmente mais recentes, a idade média de uma
criança quando perdia um dos pais era mais ou menos 14 anos ou seja, uma idade em que os filhos e os pais
—
modernos normalmente começam a entrar em sérias dificuldades uns com os outros. Apesar da morte de um
pai criar sérias dificuldades para os filhos, estas eram muito diferentes daquelas que nós e nossos filhos
adolescentes estamos habituados a ter uns com os outros.
266
Na realidade, a adolescência não é nem um estágio de desenvolvimento proporcionado por Deus nem alguma coisa que
vem da nossa própria natureza — é conseqüência de condiões sociais recentes. Pode-se ver o quanto é recente a partir das
descrições do que era a vida até mesmo nos países mais adiantados do mundo, por volta do fim do último século.
Escrevendo sobre a vida do campo naquela época (onde vivia um segmento muito maior da população do que vive hoje),
Flora Thompson, emLarkRise to candleford, conta como no lugarejo inglês em que cresceu “um estranho teria
procurado em vão pela doce camponesa de tradição, com seu chapéu de sol e seu ancinho... Não havia menina de mais de
12 ou 13 anos que vivesse permanentemente cm casa. Algumas eram enviadas ao primeiro emprego (como domésticas)
aos 11 anos. A maneira como eram empurradas para o mundo com tão pouca idade poderia ter parecido desumana a um
observador eventual. Tão logo uma menina se aproximava da idade de deixar a escola (o que acontecia em torno dos 13
anos, mas por conta dc necessidades econômicas muitos deixavam a escola antes de chegar a essa idade), a mãe dizia: ‘Tá
na hora de ganhar a vida, menina’. . Os irmãos, quando deixavam a escola, começavam a trazer algum dinheiro para casa
toda semana (como empregados de fazendas).” Em outros lugares, as crianças eram treinadas fora de casa igualmente
cedo para trabalharem e aprenderem uma profissão, se ainda não trabalhavam em minas ou fábricas.
A adolescência, tal qual a conhecemos agora, existia, há um século, apenas entre famílias de alta classe que podiam
manter seus filhos além da infância, e existe ainda hoje como um estágio comum de desenvolvimento apenas nos países
desenvolvidos do mundo, onde a riqueza e a longevidade permitem um longo período de escolaridade.
Obviamente, quando se tinha uma expectativa de vida de menos de 30 anos, era economicamente impossível para a
grande maioria passar a metade de suas vidas sendo sustentados. Até mesmo hoje, para que o processo funcione nos países
tecnologicamente avançados, a maior parte dos cidadãos tem que ser membro contribuinte da sociedade durante um
período bem maior do que a metade de suas vidas. Assim, apenas a riqueza e um período de vida muito mais longo
permitem a nossos filhos e aos jovens passarem seus primeiros 18 anos, ou mais, recebendo educação. Philippe Ariès, o
historiador francês da família e da infância, escreve em Jenturies of childhood: “As pessoas não tinham idéia do que
chamamos adolescência e a idéia ficou durante muito tempo tomando forma. Pode-se ter uma (primeira) visão disso no
século XVIII... A consciência da juventude (ou seja, da adolescência) tornou-se um fenômeno generalizado, no entanto
(apenas), depois do final da Primeira Guerra Mundial.”
Embora a adolescência seja uma fase de desenvolvimento criada socialmente, a puberdade é um fenômeno de
desenvolvimento natural, a conseqüência das mudanças fisicas que acontecem no corpo, à medida que se alcança a
maturidade sexual. É difícil chegar-se a dados exatos sobre o começo da puberdade no passado, mas existem relatórios
confiáveis que afirmam que a idade da primeira menstruação na Europa no século XVII era aproximadamente 17 anos.
Nos Estados Unidos essa média baixou de 14 anos e três meses em 1980 para uma atual de mais ou menos 12 anos e
meiO. Desde o começo deste século a idade da primeira menstruação caiu cerca de três meses a cada década o mesmo
acontecendo com a idade em que os meninos alcançam a maturidade
267
sexual. Assim, nossos filhos amadurecem sexualmente muito mais cedo do que as pessoas no começo do
século. E, no mesmo período, o tempo que a maioria dos jovens passa na escola aumentou em pelo menos o
mesmo número de anos, senão em muitos mais.
A maturidade fisica e sexual precoce, unida a um período muito mais longo de dependência, leva inevitavelmente a
tensões dentro do indivíduo e entre ele e sua família. Com a maturidade sexual precoce, não é de admirar que muitos de
nossos filhos tornem-se sexualmente ativos muito cedo — contudo, agora podemos questionar se é correto chamar esses
indivíduos maduros de crianças. Nesse sentido, talvez valha a pena considerar que no direito romano (o corpusJuris
Civilis dejustiniano, do século V) a idade da maturidade jurídica era estabelecida quando as crianças alcançavam a
maturidade sexual, uma visão que foi confirmada alguns milhares de anos mais tarde pelo Concílio de Trento.
Na tradição judaica, a maioridade é celebrada aos treze anos, quando os meninos (e ultimamente também as
meninas) são cerimoniosamente introduzidos na comunidade dos adultos, pelo menos no que concerne à
religião. Em muitos países católicos, a primeira comunhão é feita mais ou menos na mesma idade. Até a
Segunda Guerra Mundial, na maioria dos países ocidentais, a escolaridade gratuita terminava entre 13 e 14
anos, dependendo do país. Apesar de as crianças que deixavam a escola não serem ainda consideradas adultas
completamente, tornavam-se membros ativos da sociedade e, em muitos casos, viviam mais ou menos
independentes de seus pais. Apenas uma minoria relativamente pequena, em sua maior parte de classe alta ou
classe média alta, ligada à universidade, continuava os estudos além da idade de 14 anos.
Se a mesmas perguntas tivessem sido feitas a mulheres jovens há um século e meio, a votação teria
seguramente tido resultados diferentes. Por mais que as moças quisessem então ter filhos, o medo do que
poderia acontecer durante o parto, quando tantas mulheres morriam, e sua ansiedade justificável sobre a
mortalidade infantil, que era então comum, fazia-as hesitar em dizer que queriam ter filhos. Ultrapassada a
infância, a chance de sobrevivência de uma criança até a maturidade aumentava muito, e, portanto, naqueles
tempos as mulheres jovens mais provavelmente teriam desejado ter filhos mais velhos. Naqueles dias, a
adolescência não era considerada um estágio separado de desenvolvimento, uma vez que mais ou menos na
idade de 13 anos a maioria dos jovens estava trabalhando em tempo integral ao lado dos adultos. Mas todo
mundo
268
teria desejado filhos adultos, porque na velhice as pessoas dependiam quase que totalmente de sua ajuda e apoio.
Assim, quando os filhos já adultos retribuíam aos pais o cuidado que tinham recebido na infância, havia uma
reciprocidade de relações que unia as gerações psicokgicamente, à medida que sua dependência econômica um do outro
os mantinha juntos de fato. Mas, nesse país acostumamo-nos a um arranjo familiar em que os pais têm que cuidar dos
filhos durante mais tempo do que nunca, enquanto, por outro ladq, não mais se espera que os filhos — que na maioria dos
casos nem desejam ou querem — cuidem dos pais na velhice, O sistema previdenciário foi organizado em meados da
década de 30, mas nós, enquanto sociedade, tendemos a esquecer o quanto essa mudança nos fatos é recente: só neste
século a riqueza e o controle da doença permitiram, pela primeira vez na história, a um largo segmento da população dos
países mais adiantados acumular durante os anos de trabalho alguma quantia que pelo menos se aproximasse de um
excedente suficiente para permitir-lhes cuidar de suas próprias necessidades na doença e na velhice.
Assim, há apenas algumas gerações, a reciprocidade que acabamos de mencionar dava aos pais uma sensação de
segurança a respeito de seu futuro que deviam aos filhos, enquanto os filhos adquiriam seus sentimentos de segurança na
infância com seus pais. Esse acerto proporcionou sentimentos mútuos de segurança, mas não chegou a ter seu
funcionamento testado por muito tempô; a média de vida era muito pequena para isso. Contudo, enquanto os pais viviam,
os filhos acreditavam que eles viveriam o suficiente para cumprirem sua parte, e assim esperavam os pais. Uma vez que
eles acreditavam firmemente que, quando chegasse suavez, tomariam conta dos pais, os filhos tinham então poucas razões
para se sentirem culpados pelo que os pais faziam por eles.
Isso não se. aplica mais. Apesar de muitos adolescentes reconhecerem prontamente o seu ressentimento, decorrentes do
longo período de dependência dos pais, não falam abertamente sobre seus sentimentos de culpa em relação a tudo que
seus pais fizeram e fazem por eles; muitos não estão conscientes desse sentimento de culpa, já que o reprimem por ser
doloroso demais, sobretudo porque nada podem fazer para mudar a situação que o provoca. Mas isso não significa que a
culpa deixa de trabalhar dentro deles. Em um grau considerável, a rejeição do adolescente aos pais (e à sua maneira de
viver) é motivada por essa culpa reprimida, que permanece inconsciente e é amiúde negada abertamente pelo desafio ao
pai ou pela crítica feita a ele e a sua maneira de ser. Uma expressão ruidosa desse sentimento de culpa acontece quando o
filho acredita ou afirma que o dinheiro gasto com ele provém de ganhos ilícitos. A implicação dessa afirmação é que não
precisamos nos sentir culpados em relação a gastar dinheiro ou ao dinheiro gasto conosco quando foi ganho ilicitamente.
Além dos sentimentos de desconforto e culpa em relação ao fato de que sua criação foi e continua a ser cara e cheia de
exigências, os filhos também se sentem sem jeito por terem que aceitar tanto dos pais sem qualquer chance de oferecerem
qualquer coisa em troca. E, no entanto, isso é inevitável dentro de nossos padrões e convenções sociais. Em muitos casos,
tudo isso impede os filhos de mostrarem gratidão por tudo que os pais fazem por eles, porque agir assim significaria ter
que reconhecer o quanto lhes foi dado, um reconhecimento que seria uma carga demasiado pesada para a criança, que
nada pode fazer para aliviá-la de maneira considerável.
269
A ausência de expressões de apreço, muito mais do que o verdadeiro dar e fazer, é o que, de tempos em tempos, causa
algum ressentimento no pai. Esse sentimento é em geral rapidamente reprimido; o pai sabe que o filho não pede a maior
parte das coisas que recebe e simplesmente lhe é dada porque as condições dc vida da classe média assim o exigem. A
maior parte dos pais sente-se muito contente, e até mesmo orgulhosa, de poder fazer tanto pelos filhos. Mas, com
freqüência, não pode deixar de sentir uma ponta de ressentimento quando os filhos parecem aceitar tudo como se lhes
fosse devido ou, pior ainda, reagem com críticas ao pai por fazer tudo isso. (Isso pode acontecer na adolescência,
conforme mencionado antes, para escapar da carga de culpa que se tornou pesada demais.) Assim, por estranho que possa
parecer, é o sentimento de culpa do filho, ou, ao invés disso, sua repressão e sua negação, que priva os pais de seu
(inconscientemente esperado) apreço.
Até recentemente, a expectativa de serem bem atendidos pelos próprios filhos na velhice equilibrava o ato de dar entre
pais e filhos; criava um laço forte entre eles, com base numa reciprocidade reconhecida. Esse laço específico desapareceu,
e seu lugar foi tomado por uma interação da culpa não reconhecida da criança e do ressentimento igualmente não
reconhecido do pai. O que costumava ser um laço que proporcionava segurança social.e econômica recíproca tornou-se
uma fonte de irritação — se não uma insatisfação direta — em decorrência de a prestação de serviços ser tão unilateral.
Apesar de essas reações negativas permanecerem, em sua maior parte, ocultas, são, no entanto, prejudiciais àqueles bons
sentimentos entre pais e filhos que beneficiam tanto uns e outros.
Hoje, a adolescência é um período demasiado longo de dependência social e econômica imposta aos jovens, que se tornam
maduros física e sexualmente muito mais cedo do que em qualquer outra época e que muito provavelmente são muito
mais desenvolvidos intelectualmente do que os jovens da mesma idade no passado. Essas contradições criam tantas
tensões entre os adolescentes e seus pais que se torna particular- mente importante que os pais construam um “laço que
coração a coração e mente a mente no corpo e na alma podem atar” suficientemente forte, para repetir mais uma vez o
poeta. O elo entre pai e filho, que só pode ser criado pela devoção do pai, deve ser firme, de maneira que as dificuldades
da adolescência não o rompam de maneira perigosa para ambas as gerações. Por causa dessa grande insegurança interior,
tudo o que o filho deseja é que os pais criem esses laços fortes entre elçs. O pai bastante bom será capaz de confiar na
força permanente desse elo e em sua maleabilidade; se isso acontecer, toda a família será capaz de dirigir com êxito seu
curso através das tempestades da adolescência.
270
A Dictionary of Contemporany
American Usage
nos criou desde a infância e, mais tarde, também à família que criamos para nós mesmos e nossos filhos.
De acordo com o dicionário, “pertencer” significa ter um lugar legítimo. Um lugar legítimo não significa algo
proporcionado pelos poderes existentes, nem mesmo pelos pais; essa é uma fonte precária demais para um
verdadeiro sentimento de pertencer. Um lugar legítimo é o lugar que conquistamos para nós mesmos, primeiro
amando e sendo amados da maneira certa, mais tarde através de nossos próprios esforços. Só isso torna o
lugar seguro, nosso próprio lugar.
Através da história, a família tem sido uma necessidade para a sobrevivência de cada um de seus membros. A
não ser que todos na família trabalhassem muito e por muito tempo, o mais provável era que todos sofressem
sérias privações. Desde que houvesse bastante comida, um teto, roupa e algum rudimento de saber, tudo
estava bem na famiia e todos sabiam qual era seu lugar legítimo nela. Proporcionar à família o
271
essencial era prova suficiente dos seus méritos em geral e do valor do pai em particular. Os pais e os filhos tinham que
dedicar-se seriamente a suas tarefas para sobreviver e sentiam-se justificadamente orgulhosos e satisfeitos com seu
desempenho. As crianças trabalhavam desde muito jovens para ajudarem a assegurar o bem-estar econômico da famíilia;
independentemente de sua contribuição, não podiam -duvidar que havia um objetivo e um significado em suas vidas;
sentiam que eram boas pessoas porque desempenhavam seu papel no trabalho. Depois de longos e duros dias de trabalho —
na maioria das famílias longos demais e duros demais —. nos campos, nas lojas e em casa, o filho estava convencido de que
tinha feito tudo que pudera e tudo que se esperava dele. Sabia que tinha um lugar legítimo na vida da família e que o
conquistava a cada dia; e com esse conhecimento vinha um sentimento de pertencer forte e cheio de segurança, assim
como de auto-estima. E se os pais não apreciavam sua contribuição — como ocasionalmente acontecia até mesmo naquela
época —, então a criança sabia que não tinha culpa e que estava sendo injustiçada. -
A criança moderna da qual não se espera nenhum trabalh físico e cuja carga de trabalho parece tão mais leve, nunca pode
sentir uma segurança.semelhante a respeito de si mesma. Há sempre alguma coisa mais que ela pode estudar; há sempre
alguém mais em relação a quem ela sofre. Suas responsabilidades acadêmicas não estão de modo algum claramente
definidas, seu objetivo estando, na melhor das hipóteses, tão distante no tempo, que chega a parecer insípido em
determinado momento. Assim, a criança moderna nunca pode ter a certeza de que cumpriu, e bem, todas as suas
obrigações. Não consegue sentir-se segura de si mesma, à medida que seu valor é determinado pela avaliação que o
professor faz de seus esforços ou depende de sua capacidade de proporcionar satisfação emocional a um pai, formando
sua personalidade de maneira a agradá-lo, ao invés de seguir suas próprias inclinações, talentos pessoais e experiências.
Assim, a criança carece de confiança em seu desempenho e sente-se desconfortável em relação a suas condições de
trabalho e vida; ela não percebe que isso se deve não a suas próprias limitações, mas às condições modernas que não lhe
permitem adquirir certeza sobre seu desempenho ou sobre o que legitimamente esperar de si mesma. Ela sabe apenas o
que os outros esperam dela e isso, com freqüência, não é esclarecido; além do mais, quando as expectativas são
expressadas, muitas vezes deixam de fazer sentido para ela. Falando objetivamente, pode parecer que se pede muito
menos à criança moderna de classe média em comparação com o passado, mas muitas vezes elas acabam ficando
profundamente insatisfeitas consig6 mesmas e com o mundo, sem saber exatamente por quê, o qie torna esses sentimentos
miis desconcertantes.
Os pais e os professores podem dizer a uma criança que aprender bem é essencial porque pode conduzir a um emprego
melhor ou a um trabalho mais importante muitos anos mais tarde, mas isso pouco convence a-criança, para quem até
mesmo um ano soa como a eternidade. Antes, uma criança que trabalhasse nas lavouras para alimentar a família via o
significado de seus esforços, assim como acontecia quando ajudava a fabricar objetos que tomavam forma diante de seus
olhos. Assim, quando, no passado, a criança se dedicava a suas tarefas, isso lhe provava seu valor; mas, atualmente, os
resultados dessa dedicação são intangíveis, na melhor das hipóteses, com todas as dúvidas e incertezas que fazem parte
das coisas intangíveis. A convicção sobre o próprio valor
272
vem apenas do sentimento de que desempenhamos bem nossas tarefas, e que essas tarefas têm um sentido em si mesmas
enquanto as estamos executando. Não é apenas o tédio, ou as injustiças das condições sociais, que leva um jovem a
procurar distração ou esquecimento através da música tão alta que afugenta qualquer pensamento ou, ainda pior, a escapar
através das drogas, mas um sentimento dominante de insegurança ou uma insatisfação consigo mesmo, tão dolorosa que
deseja desesperadamente se livrar dela, pelo menos por algum tempo, independente do quanto possa lhe custar.
Alguns pais esperam que seus filhos façam pequenos trabalhos em casa, mas, mesmo quando bem executadas, essas
tarefas não conseguem dar à criança moderna de clase média uma parcela mínima da segurança que uma criança no
passado tirava de sua contribuição ao bem-estar da família. A execução desses pequenos trabalhos torna as coisas mais
fáceis para os pais, mas não contribui significativamente para o bem-estar da família e — da maior importância nesse
contexto — para o da criança. Ela não consegue perceber como seu trabalho na casa pode fazer a vida melhor para ela. Pior
ainda, sabe que essas tarefas exigem um tipo de trabalho que seus pais não valorizam o bastante; o trabalho não contribui
significativamente para a renda ou para a segurança da família. Quando não gostamos do trabalho — e em geral a criança
não gosta de desempenhar essas tarefas —,ele nada pode acrescentar a nossos sentimentos de mérito e respeito próprio.
Apesar de todos termos que desempenhar pequenos trabalhos ou tarefas de rotina, conseguimos fazê-lo sem
ressentimento, se estão ligados a atividades mais importantes, das quais são conseqüência. Por exemplo, em muitas
famílias, pede-se às crianças que se alternem na tarefa de lavar os pratos. Ter que lavar os pratos é conseqüência de uma
refeição ter sido servida neles. O planejamento e o preparo da refeição podem ser vistos como um empreendimento
criativo; exige escolhas, decisões e habilidade. Se uma pessoa está encarregada dessas decisões, então a pequena tarefa de
limpar depois é apenas o resultado lógico de tudo que aconteceu antes. Mas quase sempre a criança tem um papel
pequeno, ou nenhum, no processo de tomada de decisão e na satisfação que criar uma refeição agradável proporciona.
Assim, a tarefa de limpar mais tarde não é parte integral do processo, mas simplesmente uma atividade de rotina. Se temos
que fazer o trabalho pesado depois de alguém mais ter feito o trabalho criativo, sentimos que nosso papel é o dr
empregada, mesmo quando bem desempenhado, que tende a reduzir nosso status no processo total, ao invés de fomentá-
lo. Só quando colaboramos também com a criação podemps extrair respeito próprio daquilo que estamos fazendo. A
comunicação de que temos que fazer alguma coisa, e também quando e como, tende a diminuir ainda mais o prazer que
sentimos naquilo que estamos fazendo e a satisfação que podemos tirar daí. Em relação a brincar, foi mencionado que a
criança que tem liberdade para decidir sobre o tempo de sua atividade, e sobre a maneira de desempenhá-la, tem uma
oportunidade muito melhor de orgulhar-se do fato de fazê-la bem do que a criança que tem pouca liberdade para tomar
suas próprias decisões, pelo menos nesses aspectos. O mesmo se aplica a qualquer coisa que se peça à criança para fazer
como contribuição à vida da família.
Alguns pais pensam que pedir ao filho para fazer trabalhos domésticos irá ensinar- lhes a ter responsabilidade.
Infelizmente, não nos tornamos responsáveis pelo fato de nos dizerem que temos responsabilidades. Isso continua a ser
válido, mesmo que o pai
273
insista em que algumas tarefas são de responsabilidade de uma criança e as entregue ao filho. A criança aprenderá a agir
responsavelmente em oposição a obedecer ordens — só a partir de sua própria convicção de que o respeito próprio exige
que ela cumpra determinadas obrigações e que as desempenhe bem. Se uma criança tem essa convicção, dificilmente será
necessário dizer-lhe quais são suas obrigações, ou suas responsabilidades; ela decidirá sozinha. Se lhe dizem que fazer
determinada coisa é sua responsabilidade, isso tende a provocar atitudes negativas; ela está obedecendo a uma ordem,
quando deveria escolher livremente, se pretendemos que ganhe respeito próprio desenvolvendo essa atividade. E se um
pai — a principal autoridade na vida de uma criança — recorda-lhe suas responsabilidades ou, pior ainda, força-a a fazer o
que declara ser sua responsabilidade, então ela compreende que ele não confia nela para se comportar ou de acordo com
suas convicções ou com seu respeito próprio.
Por exemplo, muitos pais dizem ao filho que é sua obrigação cuidar de seu quarto porque é seu quarto, e o conseguem de
alguma forma, porque envergonham ou forçam a criança a fazer o que desejam. No entanto, esse argumento não é na
verdade efetivo, porque não consegue convencer a criança de sua integridade ou senso de justiça, embora a insistência
paterna possa induzi-la a obedecer, O argumento não é convincente, mesmo se o poder do pai de forçar sua vontade
produz resultados, porque desde cedo a criança sabe que um dos principais aspectos de possuir um bem é o de se poder
fazer com esse bem o que se quer, respeitada a única exceção de que ele não pode ser usado para prejudicar terceiros. Esse
conceito ultrapassa a razão quando um pai insiste em que o quarto desarrumado do filho coloca em perigo o bem-estar da
família. Assim, a declaração de que a criança é responsável pelo estado de seu quarto, e de que deve mantê-lo de forma a
conformar-se à visão paterna de ordem e limpeza, contradiz a essência de sua propriedade, porque é seu quarto. Dizer a
uma criança o que ela tem que fazer com seu quarto nega que ele seja realmente seu, porque, se fosse, ela poderia fazer
com ele o que quisesse. Embora a criança possa não conscientemente saber que o argu. mento do pai é falho, ela sente que
ele o é, e isso diminui sua confiança no senso de justiça do pai, um sentimento que provavelmente pouco fará com que a
criança assuma suas responsabilidades.
Se, por outro lado, o pai deixa claro ao filho que toda a casa é da família, incluindo o quarto que ele usa como seu, então
os pais, como cabeças da família, são responsáveis pela maneira como os quartos são usados e arrumados. Contudo,
quando todos os quartos são quartos da família, não há razão para ser responsabilidade do filho cuidar de algum quarto em
especial; cuidar de todos os quartos torna-se então uma tarefa com que toda a família deve se preocupar, não apenas uma
criança com um quarto específico. Se esse quarto necessita de alguma limpeza ou arrumação, então não é apenas
responsabilidade do filho, mas também dos pais; e, uma vez que são eles que sentem de maneira mais incisiva que alguma
coisa deve ser feita nesse quarto, torna-se sua obrigação executar a maior parte do trabalho necessário. É óbvio que
parece razoável que a criança deve participar da tarefa, uma vez que provavelmente foi ela que fez com que se tomasse
necessária; assim, pode-se esperar que ela dê uma mão. Na minha experiência, isso parece bastante razoável para uma
criança que tem uma boa relação com os pais; e, uma vez que o pai toma a frente, a criança geralmente quer ajudar e
muitas vezes genuinamente desfruta disso, em especial se se pede sua opinião sobre como fazer o traba
274
lho. Nesse caso, ela geralmente ajuda e fica feliz, quando suas idéias são seguidas. Embora essa providência coloque o
quarto em ordem, não ensina a ter responsabilidade, mas tampouco permite que cuidar do quarto se torne um foco de
dissenção entre pai e filho.
Dado o estilo de vida da famiia moderna de classe média, dificilitiente haverá algum trabalho regular que seja
intrinsecamente significativo para a criança, a ponto de fazer com que ela o sinta como sua obrigação e adquira respeito
próprio ao fazê-lo, a não ser em situações excepcionais como emergências —por exemplo, quando um pai está
incapacitado por doença, ou quando uni filho mais velho se sente responsável pelo bem-estar de um mais novo. Mas, no
geral, essas situações são raras e normalmente de curta duração. Assim, quase tudo o que um pai pode fazer é estar
consciente do quanto se tornou mais difícil para nossos filhos desenvolver a segurança interior que vem do sentimento de
que se é necessário e de que se está dando urna contribuição significativa ao bem-estar da família. Esses sentimentos
agora têm que ser conquistados a partir de experiências muito menos tangíveis, incluindo com bastantc peso aí o
sentimento de obrigação decorrente da convicção de que uma tarefa é tão importante que deve ser desempenhada, e
desempenhada pela criança porque ninguém mais pode fazê-la ou fazê-la tão bem.
Em tempos passados, não apenas a criança, ainda muito cedo, se sentia necessária e achava, por isso, que tinha um lugar
legítimo na família — e com isso sentia que verdadeiramente pertencia a ela — mas, por ter que trabalhar com outros todos
os dias, ano após ano, nunca estava só. A solidão, o sentimento de que não se tem raízes — eis a maldição do homem
moderno, enquanto sangue, suor, lágrimas e uma vida curta e bruta e trabalho pesado eram as dificuldades que nossos
ancestrais e seus filhos suportaram. Mas nossos ancestrais não tiveram que enfrentar essas dificuldades sem o apoio das
pessoas mais chegadas a eles. Via de regra, a família moderna desfruta do fato de estar junta apenas em torno da mesa de
jantar ou durante a noite, nos fins de semana, ou nas férias, longe das atividades essenciais para sua subsistência.
Consideremos, por exemplo, quanto tempo os habitantes do subúrbio gastam em seu carro e como as crianças são forçadas
a permanecer passivas durante a viagem. Mesmo quando o objetivo da viagem é levar a criança aonde ela quer ir, o fato de
que um adulto deve levá-la até lá significa que o pai é quem decide se e quando é possível à criança fazer o que ela quer.
Ela depende da boa vontade do pai, e durante a viagem de carro deve ficar quieta; pode apenas observar o pai executando
o importante trabalho de dirigir, sem o qual sua própria atividade não se poderia concretizar. Pai e filho, quando dentro de
um carro, estão fisicamente confinados a um espaço estreito que dificilmente, ou apenas raramente, lhes permite desfrutar
integralmente do sentimento de proximidade. Ao contrário, viagens longas provocam, com freqüência, sentimentos de
marginalização ou tensão e também de tédio para a criança, enquanto o pai que dirige está em geral completamente
ocupado.
Tudo pode ser bastante agradável, uma vez que se chegou ao destino, mas os as-
275
pectos agradáveis da atividade de lazer não compensam sua falta de importância, quando comparados a fazer
alguma coisa necessária à sobrevivência. Como disseram alguns estudiosos da família, através de toda a
história a coerência da família era baseada em produzir coisas que asseguravam seu bem-estar, mas agora as
principais atividades da família moderna consistem em consumir juntos. Mas é preciso muito mais do que isso
para criar um sentimento de pertencer; apesar da importância do consumo, ele não nos convence de que temos
um lugar legítimo na ordem das coisas. Todos sabemos que podemos viver tranqüilamente quando as coisas
vão bem. Então, não precisamos que nossa família seja capaz de gostar de nós. Até mesmo estranhos dividem
os bons tempos; existem muitos amigos de horas boas. Mas o que necessitamos para nossa segurança é de
sentir e saber que alguém permanecerá ao nosso lado e trabalhará conosco ou para nós e dividirá nossas
tristezas e dificuldades quando as coisas não estiverem caminhando bem. Não é provável que se experimente
tudo isso durante um período de férias.
Através da história, e até o começo deste século, um filho podia ver que os pais trabalhavam muito para
ganhar o sustento da família, podendo, portanto, e efetivamente isso acontecia, respeitá-los por seu trabalho
árduo e sua habilidade. Nenhuma criança podia deixar de sentir-se comovida ao observar a mãe trazer um
filho ao mundo e cuidar e tomar conta dele. As crianças não podiam ser insensíveis à maneira pela qual ela
cuidava da casa e da família e freqüentemente também de várias outras pessoas, como empregados ou
aprendizes. Tudo isso requeria grande habilidade e muito trabalho antes da chegada das máquinas que
poupam nosso trabalho, das roupas prontas e da comida preparada em fábricas. Além disso, a mãe
normalmente prestava uma grande variedade de outros serviços à família; cuidava dos doentes, ajudava no
parto dos animais, trabalhava no pátio da fazenda e na horta e ajudava muito nos trabalhos da lavoura. Em
geral, era ela que ia à cidade para vender os produtos no mercado e era ela que trazia para casa o dinheiro
ganho com essa venda. Tudo isso deixava a criança muito impressionada com a contribuição da mãe.
Desde muito cedo, a criança não podia deixar de admirar como o pai era capaz de prender uma parelha de
bois fortes e arar um sulco em linha reta; logo, ela passava a admirar as outras habilidades do pai, como
consertar a casa e as ferramentas da fazenda. Os filhos de um ferreiro olhavam com espanto como seu pai
pegava um pedaço de ferro, aquecia-o no fogo em chamas, e o martelava até tomar a forma de um utensílio.
Quanto aos artesãos, como carpinteiros ou sapateiros, deixavam os filhos maravilhados com sua maneira de
dar forma aos objetos mais complexos, a partir de matérias-primas que pareciam não oferecer qualquer
possibilidade. Essas crianças raramente precisavam do mandamento bíblico para honrar pai e mãe; fazê-lo era
o resultado lógico e quase inevitável de observar os pais no cumprimento das rotinas diárias de trabalho, que
serviam tão claramente ao bem-estar da família.
Sempre me impressionou que, em contraste com a família moderna que tenta confiar no amor como o
cimento para uni-la segura e firmemente, o único mandamento que se refere diretamente a pais e filhos nos
mande honrar nossos pais. Não nos mandam amar nossos pais. Obviamente, honrar os pais era considerado
suficiente para o estabelecimento das relações corretas dentro da família; nada mais parecia ser necessário.
276
Na maioria dos casos, honrar uma pessoa é um sentimento ambivalente, sobre. tudo quando comparado à normal
ambivalência da emoção do amor, que quase sempre éxige tanto, quando não é inconstante — para não mencionar que onde
existe amor também existe, muitas vezes, ciúme. E, como mostrou Freud, o amor por um pai gera amiúde ciúme no outro,
o que não acontece quando se honra um pai. Quando os pais vivem bem um com o outro, apóiam-se e complementam-se
no trabalho que sustenta a famiia, então é praticamente impossível honrar um pai sem também honrar o outro.
Mas não era apenas a admiração pela habilidade e conhecimento dos pais na medida em que eles proporcionavam o
sustento da família, que fazia com que um filho os honrasse. Vivendo e trabalhando tão junto deles, formavam uma
opinião sobre eles como pessoas. Também muito importante era o fato de que os pais eram os primeiros educadores do
filho até que a escola pública os substituísse nessa função, como ocorreu em época relativamente recente. Antes dessa
época, mesmo quando os filhos freqüentavam a escola durante alguns anos, a educação formal desempenhava apenas um
papel menor na vida da grande maioria das crianças. Trabalhar com os pais tinha precedência sobre a escola; percebe.se
isso pelo fato de que até o período de férias mais longo ainda é a estação em que as crianças eram necessárias para
ajudarem no plantio e na colheita, embora hoje muito poucas crianças façam isso.
O que os pais ensinavam aos filhos, na medida em que trabalhavam lado a lado, estabelecia um elo forte entre eles; esse
ensinamento e essa aprendizagem eram importantes em uma época em que a expectativa tácita era de que os filhos, em
sua maioria, seguissem os passos dos pais. Todos nós gostamos quando alguém aprecia aquilo que estamos fazendo bem e,
quanto mais importante essa pessoa é para nós, maior é o valor que damos a esse apreço. Para a maioria dos pais, os fflhos
são de grande importância, assim como a maneira como eles se sentem a seu respeito. Portanto quando uma criança
admira o pai pelo que ele faz — e freqüentemente, com base nisso, também como pessoa —, isso traz ao pai grande
satisfação. Falando tecnicamente, todos nós precisamos daquilo que chamamos “suprimentos de narcisismo” para
sustentar nosso bem- estar emocional; o fato de outros pensarem bem de nós faz não apenas com que pensemos bem de
nós mesmos, mas também com que nos sintamos bem. Quanto mais importante uma pessoa é para nós, mais encoraj
adores são os suprimentos de narcisismo que recebemos dela, e mais nos esforçaremos para continuar recebendo esses
suprimentos. Assim, a admiração de um filho pelo pai torna o trabalho pelo qual ele é admirado ainda mais importante;
compensa muitas dificuldades. Quer percebamos isso ou não, somos gratos por esses suprimentos emocionais de que tanto
precisamos. Assim, o pai sente-se devedor do filho que lhe proporciona o sentimento de que é admirado — que, nas
palavras da Bíblia, o honra. Isso torna mais fácil e compensador para o pai oferecer-se ao filho, ensinando-lhe; e o filho,
por sua vez, sente-se mais seguro, importante e amado quando o pai se dedica a ensinar-lhe alguma coisa que é muito
importante para ele, pai. Assim, o pai que é admirado, que é “honrado” pelo filho, não pode fazer outra coisa a não ser
amar esse filho, e o fará, a menos que exista alguma coisa errada com ele. Acredito que seja por isso que as Escrituras nos
dizem que tudo de que precisamos para o bem-estar da famiia é que os filhos honrem os pais; o amor dos pais pelos filhos
é o resultado natural disso.
277
Mas a relação pai-filho era ainda mais rica na época em que a maioria dos filhos seguia os passos dos pais. Quando um
filho herdava a fazenda ou loja do pai ou quando o pai esperava que o fizesse, o pai sentia que o filho continuaria a partir
do ponto em que ele tivesse que parar. Dessa forma, seu trabalho seria continuado; não terminaria com sua morte. Não lhe
era prometida a continuidade da vida, mas a de seu trabalho; e, assim, não teria trabalhado em vão. Os sentimentos da mãe
eram os mesmos; ela esperava que a filha trouxesse fflhos ao mundo e os criasse, como ela havia feito. O filho era grato
ao pai por lhe ensinar como ganhar seu sustento, e o pai era grato ao filho, acreditando que o trabalho dele daria
continuidade a sua vida. Dessa forma, sentiam uma reciprocidade satisfatória em suas vidas e em suas relações.
Hoje, quando as vidas e as ocupações dos filhos são tão diferentes das dos pais, raramente existe o sentimento de que eles
continuarão nossas atividades de maneira que o fruto do nosso trabalho continue a caber a nossas famiias. Nosso trabalho
perdeu muito de seu signfficado pessoal, pois raramente nos parece que o resultado dele se estenderá além de nossa vida,
estendendo assim, de alguma forma, nossa vida além do túmulo.
Não tendo a oportunidade de nos observar em nosso trabalho diário, não entendendo seu significado a partir de suas
próprias observações, os filhos modernos acham muito mais dificil honrar-nos por ele. Uma vez que não somos honrados
por eles da mesma forma que no passado, é muito mais difícil para nós amar nossos filhos com a profundidade que vinha
fácil e naturalmente, quando sua admiração pelo que fazíamos nos dava uma dignidade ímpar a seus olhos e, com isso, aos
nossos próprios.
A criança moderna de classe média dificilmente tem uma oportunidade de observar seus pais no trabalho ou, dada a
complexidade de muitas ocupações modernas, de entender porque o trabalho do pai é importante em si mesmo, assim
como para a sobrevivência e o bem-estar da família. A criança que no passado via o pai trazendo a colheita não podia ter
dúvidas sobre o fato de que ele trabalhava diretamente para o bem- estar da família, o mesmo acontecendo com aquela
que via a mãe preparando as refeições, costurando as roupas da família e cuidando da horta. Isso ainda é válido hoje para
algumas crianças, como aquelas que crescem em uma fazenda da família. Mas a quantidade é cada vez menor. Por outro
lado, escolher roupas em um loja de departamento, apanhar latas e caixas no supermercado e ver os pais dirigindo de ida e
volta ao trabalho não sugere à criança que eles trabalham duro para seu bem-estar. Ela apenas os ouve dizer que é assim e
essas declarações têm pouco peso quando comparadas com o que a criança vê o dia inteiro. A maior parte do tempo a
criança moderna de classe média observa os pais quando estão engajados em atividades de lazer ou consumindo, de forma
conspícua ou não. Isso dffidilmente a deixa impressionada com a importância do que os pais estão fazendo. Mesmo
quando um pai limpa a casa ou lava a roupa — trabalho necessário que beneficia a família —, muitas crianças não se
impressionam com o valor desse trabalho, porque, em sua cabeça ela está muito diretamente ligada às críticas que os pais
lhe fazem: não mantém o quarto suficientemente arrumado; deixa suas coisas jogadas e dificulta a limpeza; não anda
limpa ou com roupas limpas. Seu ressentimento em relação a essas observações faz com que seja difícil para ela ver muito
mérito no trabalho doméstico.
O efeito é outro quando a criança vê opai consertando objetos pela casa ou, de
278
qualquer outra forma, melhorando-a. Isso faz todo o sentido para ela, que fica impressionada com a habilidade
dele. Normalmente fica encantada quando a deixam ajudar e orgulha-se de sua contribuição, desde que o pai
também se sinta satisfeito com ela. Assim, é a convicção da própria criança a respeito do valor da atividade
paterna que a faz admirar e respeitar o pai ou a maneira como conduz sua vida. Muitas vezes, ela encontra
dificuldades em avaliar essa última parte corretamente, quando vê os pais apenas em momentos de lazer. Mas
somente o respeito torna fácil para o filho levar a sério o que o pai diz; sem isso, os pedidos do pai têm pouco
peso.
A sociedade rica separou as atividades da vida do filho das dos pais; além disso, separou-os muito,
fisicamente. O pior aspecto disso é que muitas famílias modernas de classe média consistem em pessoas que,
à medida que crescem, não aprendem o que é necessário para viverem juntas de modo satisfatório. Os pais
que não aprenderam pessoalmente a adquirir a capacidade de se dar bem com outras pessoas em épocas
difíceis, e em contato estreito, a enfrentar bem os problemas e dificuldades criados por essa situação, não
podem ensinar isso aos filhos. Nesse caso, todos sofrem por viverem distanciados emocionalmente um do
outro. Assim, em épocas que para que a família faça sentido, precisamos estar intimameíjte ligados pela
emoção, porque o que une a família agora são apenas os laços emocionais formados dentro dela; muitos
perderam a arte de viver bem com os outros em estreito contato fisico. Mas não pode haver proximidade
emocional quando se deseja a distância física. Embora o ditado “longe dos olhos, longe do coração” não seja
necessariamente verdade, aplica-se mais às crianças do que aos adultos. É claro que a proximidade física não
cria imediatamente a intimidade emocional; muitos de nossos jovens aprenderam isso para seu
desapontamento, na medida em que permanecem solitários dentro de si mesmos, muito embora vivam em
conjunto em comunidades ou pernoitem juntos. A despeito de tudo isso, sem um período de proximidade
física, a intimidade é muitas vezes impossível.
A capacidade de estabelecer relações humanas estreitas tem que ser adquirida cedo, quando aquilo que nos vai
manter pela vida afora acontece intuitivamente. O bebê aprende isso quando se aninha no colo da mãe. O
calor que o corpo dela irradia para ele nunca lhe poderá ser dado por seu cobertor quente. Seu corpo ficará
aquecido debaixo dos cobertores, mas sem o calor humano não existe calor emocional dentro da criança, que
é o que faz com que ela se sinta bem consigo mesma.
Um antigo ditado alemão diz que a maior lição que se tem que aprender na vida é “esticar-se de acordo com o
cobertor”. Esse provérbio remonta ao tempo em que não apenas as crianças, mas a família inteira, dormiam
debaixo de um só cobertor em uma cama. Naqueles dias, as crianças de fato aprendiam desde cedo a
acostumar-se a viver em estreita proximidade com outros. Se uma criança puxava demais o cobertor para seu
lado, seu irmão acordava-a para retomar seu pedaço. Se uma dava pontapé, a outra protestava por estar sendo
privada do descanso da noite. Se uma tinha um pesadelo, a outra ajudava-a a adormecer novamente, se é que
desejava que a paz voltasse à cama, sem gritos de ansiedade ou confusões. Dessa forma, se queriam dormir
em paz sem
279
interrupção, as crianças aprendiam cedo e quase intuitivamente o dar e receber além dos ajustes mútuos que são tão
necessários para se viver bem hoje como o eram então.
O filósofo Schopenhauer comparou o dilema humano ao de dois porcos-espinhos que tentavam sobreviver a um inverno
gelado. Para evitar congelar até morrer, hibernam em uma caverna. Como está muito frio até mesmo na caverna, eles
procuram calor e conforto, aproximando-se. Mas, quanto mais perto chegam, mais se furam com seus espinhos.
Machucados e irritados, vão para bem longe um do outro, para evitarem espetar-se. Os pobres coitados perdem todo o
conforto e o calor que podem se dar e voltam a ficar ameaçados de morrer de frio. Então, mais uma vez se aproximam.
Eventualmente, enquanto se movimentam para frente e para trás, aprendem a viver um com o outro, de maneira a que
nenhum deles seja picado seriamente, mas ainda assim permaneçam suficientemente juntos para viverem com razoável
conforto. Isso sugere que devemos aprender a viver juntos sem nos colocarmos sob a pele do outro. Se deixamos de
aprender isso, ou nos colocamos perto demais para ter conforto ou nos congelamos emocionalmente no isolamento.
A vida do homem costumava ser ligada pela tradição, porque a necessidade não lhe permitia nenhum desvio para dispor
de sua vida como quisesse. Com a mudança das condições de vida através dos séculos, o homem aprendeu as distâncias
ideais para evitar ser escravizado ou ficar isolado demais dos outros. Muitos acertos tradicionais foram estabelecidos
dessa forma, e obedecidos sem questionamento — inclusive aqucles que regiam as relações entre marido e mulher, seus
papéis na sociedade, as relações entre pais e filhos, as relações entre classes sociais e todas aquelas outras relações quc
durante tanto tempo foram consideradas vontade de Deus. Todas eram resultantes de séculos de tentativas e erros para
descobrirem a distância humana certa em qualquer condição determinada de vida. Freqüentemente a experiência
terminava em um compromisso desconfortável, restritivo, mas ainda assim digno de ser vivido, entre liberdade individual
(que, da manéira como é concebida hoje, existia muito pouco) e dependência social, junto com uma compreensão de que
cada um deve manter-se no seu lugar (sentimos que se insistia muito nessa questão naquela época).
A sociedade afluente mudou muito. Na caverna dos porcos-espinhos agora existe aquecimento central. Em reação aos
nossos sofrimentos passados de espetadelas quando tentamos escapar de congelar até à morte, tendemos agora, em nossas
cavernas bem equipadas, a ficar bem longe uns dos Outros, cm nossos cantos particulares. Ali. vivemos sozinhos, dc
maneira a já não espetarmos os outros, ou sermos espetados. Esse é o nosso vôo impetuoso em direção à separação
emocional, um vôo decorrente de antigas ansiedades relacionadas a termos imposto ou sofrido imposições. Mas isso levou
muitas pessoas a uma incapacidade de viver bem com outras, por não terem aprendido isso na infância, o que os empurra
a um isolamento social que quase sempre eventualmente leva ao desespero existencial. Não é que essas pessoas tenham
perdido e sim que nunca aprenderam a doação mútua de calor do tipo imposto aos porcos-espinhos que não tinham
aquecimento central. Elas tremem não de frio, mas de solidão, em suas cavernas grandes e superaquecidas e não entendem
por quê.
Não é dc se admirar que as pessoas criadas em solidão emocional, e cujas condições de vida jamais as forçaram a aprender
a esticar-se de acordo com o cobertor, achem muito difícil estabelecer relações duradouras. Elas procuram o que lhes faz
falta,
280
mas são incapazes de achar, porque não aprenderam a enfrentar as dificuldades que o fato de viver junto muitas vezes
impõe. Tendo tido pouca ou nenhuma experiência com a intimidade enquanto cresceram, são incapazes de estabelecê-la
com outros, quando adultos. Daí, os muitos casamentos desfeitos, casamentos que fizeram esperando encontrar neles a
proximidade íntima que não tiveram na infância. Infelizmente, nuitos desses casamentos tornam-se decepções, porque as
partes são incapazes de dar ao outro a intimidade que tanto desejam.
Os filhos de casamentos desfeitos muitas vezes têm medo de estabelecer relações íntimas, porque a que estabeleceram
com um dos pais terminou em dolorosa decepção. Temerosos de que a experiência se repita, não ousam comprometer-se
profundamente com outra pessoa e, assim, também seus casamentos fracassam. Os filhos que tiveram são incapazes de
desenvolver um sentimento de pertencer, porque lhes roubaram o lugar “legítimo” e permanente que esperavam ter não
apenas na vida de um, mas na de ambos os pais.
A instabilidade na vida da criança faz com que seja muito difícil, senão impossível, que ela desenvolva um sentimento de
pertencer. Essa instabilidade não é sempre necessariamente resultante de casamentos desfeitos. Muitas mudanças de um
lugar para outro, rompendo os laços com amigos, podem ter o mesmo resultado; até a mudança de escola com demasiada
freqüência pode ter uma influência perniciosa sobre a capacidade de uma criança de desenvolver um sentimento forte de
pertencer. Isso tudo é tão óbvio que dificilmente precisaria ser discutido com mais profundidade.
Também nesse sentido as coisas costumavam ser diferentes. Em tempos passados, muitas vezes era muito difícil ficar
amarrado pela vida todi ao lugar onde se tinha nascido. Mas a expectativa de que se passaria toda a vida lá e qu o mesmo
provavelmente aconteceria com nossos filhos ajudava a criar um sentimento forte de pertencer a um lugar especifico,
senão também a um pequeno grupo de pessoas que passavam ainda a vida inteira no mesmo lugar.
Em relação a isso, é esclarecedor visitar as construções das cidades em que nossos ancestrais viviam antes da Revolução
Industrial. Essas cidades eram freqüentemente pequenas, e todos os habitantes moravam perto uns dos outros. Como se
não bastasse, mesmo nas casas dos muito ricos, os espaços fisicos eram muito estreitos. A casa de um cidadão
proeminente em Sturbridge Village, Massachusetts, por exemplo, era formada por um andar térreo com uma cozinha
pequena, sala de jantar e sala de visitas. Cada peça era talvez um quarto do que hoje consideraríamos um quarto de bom
tamanho para seus objetivos. Os forros eram baixos — só assim os quartos mantinham- se quentes no inverno — e isso lhes
dava uma sensação de aconchego. O andar superior era essencialmente um sótão dividido em dois quartos: o quarto de
dormir dos pais e o das crianças. Esses dois quartos eram separados por uma divisória de madeira fina através da qual as
crianças podiam facilmente ouvir o que se passava no quarto de dormir dos pais e os pais o que acontecia no quarto das
crianças. Não havia necessidade de um sistema de comunicação interna.
Cada quarto de dormir era grande o suficiente apenas para duas camas è alguns móveis. As crianças dormiam em camas
de rodinhas que podiam ser guardadas sob outras e, tanto quanto se pode imaginar, pelo menos quatro crianças de ambõs
os sexos viviam juntas em um quarto. Era bastante interessante que essas condições de vida não
281
levassem a qualquer manifestação sexual, o mesmo que acontece hoje nos kibutzim de Israel, onde quatro
crianças que não são parentes sangüíneos, nõrmalmente dois meninos e duas meninas, dividem um quarto de
dormir pequeno até a idade de 18 anos. Ao contrário, os costumes sexuais eram então, como o são agora nos
kibutzim. muito mais rigorosos do que o são hoje entre nossos jovens de classe média, que dormerfi cada um
em seu próprio quarto.
É mais importante ainda ressaltar que duas ou mais crianças muitas vezes dividiam uma cama. Conforme
mencionamos, dormir junto dessa maneira ensinava-lhes, ainda quando eram muito pequenas, a encontrar
calor, segurança e companheirismo uma na outra, sem perturbar seu sono e, mais ainda, a confortar-se
mutuamente quando uma acordava no meio da noite por conta de um sonho cheio de ansiedade. As crianças
ainda se consolam assim hoje, por exemplo, nos kibutzim de Israel, onde uma criança dirá que é o protetor de
um companheiro de quarto quando ele fica ansioso durante a noite.
No quarto das crianças em Sturbridge Village, talvez se pudesse encontrar um cavalinho de balanço, um berço
de boneca e uma boneca. Esses eram os únicos brinquedos. Havia provavelmente muito poucas discussões a
respeito de guardar brinquedos, porque não havia nenhum espalhado para guardar. Não havia brigas sobre o
que usar, porque havia apenas um conjunto de roupas para todos os dias e um para o domingo. Como não
havia qualquer coisa quebrável por perto, eram poucas as ocasiões para o “não ponha a mão”. E, uma vez que
a água tinha que ser apanhada do poço da cidade, pouco se insistia provavelmente para que as crianças
lavassem as mãos várias vezes por dia, antes de comer e depois de ir ao banheiro, porque buscar água era
simplesmente uma tarefa difícil e onerosa demais. Um único alpendre servia bem à família inteira.
O historiador americano Daniel Boorstin fez uma observação das mais perceptivas sobre a Williamsburg reconstruída —
que ela tornou-se aceitável apenas quando os encanamentos internos foram instalados nas acomodações dos turistas. Se as
valas abertas de esgoto e os alpendres da Williamsburg colonial também tivessem sido reconstruídos para serem usados,
seu mau cheiro teria expulsado o visitante moderno. Mas esses odores eram, em sentido amplo, parte das condições de
vida das pessoas há algumas gerações. Não havia rechaço dos odores do corpo então, nenhuma alienação em relação a
nosso próprio corpo, em decorrência de uma aprendizagem de asseio por demais rígida. Na realidade, as próprias fezes
não eram motivo de desgosto e eram cuidadosamente recolhidas para serem usadas como fertilizante, assim como o
“esterco noturno” é ainda usado na China hoje e pelos nômades como combustível. A aprendizagem de asseio naqueles
dias não poderia jamais levar à mesma repugnância em relação ao corpo, como éo caso freqüentemente hoje, porque o que
sobrava do corpo era valioso e tratado com respeito.
Essa proximidade natural das funções de nosso corpo, assim como das dos corpos dc outras pessoas, também
costumava valer para as questões sexuais. Conceitos modernos como sexualidade infantil não poderiam nem
mesmo ter sido “descobertos” muito antes de Freud; historicamente, o distanciamento do adulto da vida
sexual da criança (o que então resultava na alienação da criança cm relação a sua própria sexuali
282
dade) aconteceu lçntamente. Esse distanciamento alcançou seu ponto maximo há pouco tempo, na época
vitoriana.
As tendências modernas em nossa sociedade afluente não são resultantes de um planejamento cuidadoso para
uma boa vida familiar, mas uma reação às condições limitadas de vida entre espaços estreitos, típicos até não
muito tempo atrás. O espaço privado não costumava estar disponível para a maioria das pessoas; hoje, em
reação a isso, aspiramos dar a cada filho seu próprio quarto de dormir e, se possível, seu próprio banheiro,
para que não precisemos nunca nos encontrar quando estivermos cuidando de nosso corpo, não sendo assim
forçados a aprender a dividir nossos atos íntimos uns com os outros. É uma vida de conforto considerável,
mas também de relativo isolamento um do outro, virtualmente desde o nascimento, uma vez que a maioria dos
bebês não dorme mais na cama dos pais, ou a seus pés, como se fazia antes.
Em geral, a intimidade paterna é cuidadosamente escondida do filho hoje. Nem por um momento pretendo
sugerir que nossos filhos estariam melhores se pudessem observar os pais em sua intimidade sexual. Mas
tornamos quase impossível para eles tomar intimidade com seu próprio corpo, ou com o de outros, a partir da
infância; nem tampouco aprendem isso em um processo passo a passo, à medida que crescem. E isso, numa
épõca em que as condições sociais e econômicas nos forçaram a tentar construir a coesão da família com base
apenas na intimidade emocional.
Nossos adolescentes reconhecem esse isolamento físico como uma deficiência, e reagem a ele.
Diferentemente de seus pais vitorianos e pós-vitorianos, sempre que têm oportunidades não realizam suas
festas em salas enormes e bem iluminadas com espaços amplos o suficiente para manterem os grupos
separados. Os adolescentes hoje gostam de acotovelar-se em discotecas escuras, apertados uns contra os
outros, com pouco espaço para se movimentarem. Reconstroem, com atraso, a forma de viver estreitamente
juntos dos tempos coloniais. Mas na adolescência já é tarde demais para se começar a adquirir intimidade e,
normalmente, tudo que eles conseguem com seu esforço é uma proximidade física, mas não emocional.
283
— PROVÉRBIO SÉRVIO
NENHUM ORGANISMO SOCIAL exige maior coesão do que a família, se se tem em mente proporcionar o
bem-estar de todos os seus membros. Isso é particularmente difícil de conseguir nos tempos modernos, e é
ainda agravado pelo nosso compromisso com a individualidade de cada membro da famiia. Os pais desejam
ter filhos e sentem que eles enriquecerão suas vidas, mas muitos hoje também temem que a parternidade os
prive de sua liberdade individual; essa ambivalência freqüentemente se estabelece mesmo antes da concepção
de um filho. Um casal jovem explicou- me isso sucintamente quando me disse por que estavam planejando
uma viagem ao estrangeiro: “Essa é a nossa última oportunidade de sermos seres humanos. Quando
voltarmos, seremos pais.” Eles tinham muito claro que queriam filhos, mas também sabiam que isso exigiria
que abrissem mão de coisas que eram muito importantes para eles.
Enquanto os papéis e as atividades de cada pessoa foram unidos pela tradição ou seja, à medida que a
—
individualização não era considerada possível, desejável ou importante era relativamente fácil manter a
—,
solidariedade da família Embora impusesse restrições consideráveis sobre a liberdade de cada indivíduo, isso
era considerado absolutamente necessário e tido como certo dentro da ordem natural das coisas. Mas, uma vez
que se aceitou que cada indivíduo tinha não apenas o direito, mas a obrigação de ser verdadeiramente ele
mesmo, de desenvolver sua personalidade como quisesse
— procurando a concretízação de seus objetivos na vida como uma pessoa, e não como parte de uma família,
uma tribo ou uma casta as tensões entre os membros de uma famiia aumentaram e, em casos extremos,
—,
vivem juntas, cada uma lutando por sua autonomia. Ainda assim, sentimos necessidade de sermos assistidos
na nossa luta para nos tornarmos singularmente nós mesmos, e nos ressentimos quando não o somos. À
medida que a solidariedade social prevalece dentro de uma família, seus membros sentem-se felizes por
viverem juntos, não porque não encontram problemas e dificuldades, mas porque, ao invés de imputar a culpa
de seus problemas ao outro ou a si mesmos, eles enfrentam-na como um grupo unido. A prática da psiquiatria
tem principalmente o objetivo de aliviar a angústia daqueles que sofrem por não terem experimen
284
tado essa solidariedade social dentro de suas famílias. Eis aí, então, o paradoxo: embora apenas a solidariedade da família
torne a individualização emocionalmente segura, a singularidade individual tende a definir-se em oposição aos outros —
principalmente em oposição àqueles que conhecemos melhor — e isso destrói a harmonia social.
Há apenas um antídoto, unia cura, para isso: segurança. Na exata medida em que nos sentimos importantes para aqueles
que são significativos em nossas vidas, sentimonos verdadeiramente seguros; e na mesma medida as pressões do ciúme
são diminuídas. Uma família sente-se feliz vivendo junta, se quando alguma coisa dá errado para um de seus membros, ele
é apoiado por todos os outros, que fazem de seu infortúnio uma preocupação comum. Uma família feliz não é aquela na
qual nada dá errado alguma vez; é aquela em que, quando alguma coisa realmente dá errado, o causador do problema ou o
que está passando por ele não é culpado, mas apoiado em sua angústia. Porque, se alguém na família se sente deprimido e
não é soerguido, como pode sentir que sua família é seu porto seguro?
Nesse caso, o que deve fazer uma família moderna de classe média? Não podemos e não devemos procurar as ameaças
externas para nos unir. A mera luta pela sobrevivência fisica não mais leva todos a trabalhar juntos durante longas e duras
horas a fim de que a família tenha o suficiente para comer. Deixei implícito antes que o amor e a afeição são a cobertura
do bolo da necessidade — elos adicionais enxertados com base na necessidade absoluta. Agora, .tornaram-se o elo essencial
que une a família. Uma vez que a segurança física não é mais o principal serviço que a família presta a todos os seus
membros, a segurança emocional deve ocupar o seu lugar. Apesar de todas as experiências, a sociedade humana jamais
encontrou um modo melhor de criar os seus jovens do que dentro da família, nem qualquer arranjo melhor para nos
proporcionar bem-estar emocional ou uma moldura melhor dentro da qual a criança possa tornar-se verdadeiramente
íntima de seus pais — uma relação que lhe dará segurança interior pelo resto de sua vida.
A segurança dada pela sociedade é excelente, mas não pode nos dar segurança interior — nem calor emocional e bem-estar,
nem respeito próprio, nem um sentimento de que as coisas valem a pena. Somente os pais podem dar tudo isso ao filho e o
farão muito melhor se o derem também um ao outro. E se deixamos de conseguir isso de nossos pais, é extremamente
difícil adquirir esses sentimentos mais tarde na vida; eles serão instáveis, na melhor das hipóteses. Assim, tudo depende de
a família moderna poder proporcionar essa segurança emocional com base na intimidade pessoal e no amor e no respeito
mútuo de todos os seus membros.
Consideremos um exemplo típico do que acontece quando a criança de classe média necessita desesperadamente da
segurança emocional que deveria e pode encontrar apenas dentro da família. Uma criança de uma família de classe média
chega em casa abatida porque obteve notas que a reprovaram; ela sente que não tem valor, que a vida não lhe oferece
nenhuma esperança, que foi maltratada pelo professor e talvez também pelo mundo. Deve o pai então observar o preceito
bíblico de soergueros oprimidos ou desencorajar ainda mais o filho, que já se sente incapaz de levantar a cabeça,
culpando-o por seu fracasso? Esse é o momento em que a criança mais necessita sentir o apoio da família, saber que
ficarão a seu lado quando sofre as aflições da juventude. Quantos pais são solidários com sua infelicidade e encorajam-na
a não se sentir
285
286
Quando insistimos em que ele vá à escola, mostramos com nossas atitudes que desejamos que leve a sério apenas seus
laços emocionais conosco, na qualidade de pais, mas não com outras pessoas. Mas as emoções não podem ser tão
esquizofrenicamente divididas em “importantes”, as que se referem à família, e “não-importantes”, aquelas que se dirigem
a um amigo. Ou os laços íntimos são importantes ou não são — e a criança avalia aquilo em que acreditamos com base em
nossa reação a suas emoções. Se não respondemos adequadamente aos sentimentos de nosso filho — não apenas com
palavras gentis, mas também com atitudes —‘ ele pode decidir guardar seus sentimentos para si mesmo no futuro,
impedindo, assim, que o ajudemos.
Uma criança tiniia-se apegado profundamente a seu primeiro professor, que de repente morreu de um ataque cardíaco
durante os meses de inverno. A criança chorou o dia inteiro e recusou-se a ir à escola no próximo. Mas os pais insistiram
em que ela fosse, para que não perdesse aulas ou ficasse atrasada em relação ao resto da turma. Assim, forçada a agir
contra seus sentimentos, a criança odiou o novo professor e todos os outros que vieram depois, permanecendo fiel ao seu
primeiro professor-amigo. Como conseqüência, não conseguiu progredir em sua aprendizagem. E verdade que esse é um
caso pouco comum, mas, se essa criança tivesse podido trabalhar sua perda, o que teria exigido toda a sua energia
emocional durante pelo menos alguns dias de luto, provavelmente teria aceitado a substituição do professor e continuado a
aprender. E,o que é mais importante, embora seus pais quisessem que ela os amasse, mesmo já adulta jamais foi capaz de
perdoá-los por terem mostrado tão pouco respeito por seu desesperado sentimento de perda. Tudo isso porque não lhe
permitiram nem um dia de folga, em respeito a seus sentimentos de dor. A dor de uma criança deve ser levada a sério.
Quando conversei com pais a respeito de sua má vontade em considerarem a dor de seus filhos, tive vontade de lembrar-
lhes as palavras de Shakespeare: “Qualquer pessoa pode dominar uma tristeza, exceto aquela que a sente.”
Quando respondem ou deixam de responder à dor ou às tristezas de seu filho, muitos pais agem como se, porque a criança
é pequena e imatura, suas aflições fossem também pequenas e imaturas. Se parassem para pensar nisso, e observassem os
filhos em sua infelicidade, saberiam que não é assim. Mas normalmente não é a intensidade que faz as pessoas
desconsiderarem as tristezas das crianças, ou pensarem em como elas as suplantariam facilmente. Muito mais
freqüentemente o pai tem um desejo profundo de que seu filho fosse poupado desses sentimentos de infelicidade. É
compreensível que queira que ele seja feliz, para não sofrer com tão pouca idade as dores que a vida inflige a todos nós.
Esses desejos induzem os pais, sem o saber, a acreditar no falso e vazio clichê da infância feliz. Também por conta da
idéia amplamente difundida de que é obrigação do pai tornar feliz a infância de seu filho, temos dificuldade de aceitar que
nosso filho possa algumas vezes ser muito infeliz; isso parece refletir-se cm nós como pais e, assim, queremos acreditar
que a dor de nosso filho é um problema relativamente pequeno que pode ser facilmente superado. Mas qualquer
observação que façamos das crianças nos levará a constatar que suas vidas têm medidas plenas de dores e tristezas como
acontece com o homem em qualquer outra idade. Não aceitar esse fato e comportar-se de acordo com ele significa
depreciar a criança.
Mesmo aqueles que desejam que seus filhos sejam sérios a respeito de assuntos sérios muitas vezes não agem de maneira
diferente, porque, na maioria dos casos, isso
287
se aplica apenas a assuntos que o pai leva muito a sério. Raramente se estende a assuntos que a criança considera sérios,
mas o pai não, como a perda de um amigo ou um professor nos exemplos que acabamos de mencionar. Essa atitude é
prontamente ilustrada pelos pais que se preocupam com os perigos da guerra atômica, mas que também trazem ao filho
essas preocupações adultas. Esses pais podem ficar satisfeitos quando ele partilha suas preocupações, quanlo leva tão a
sério assuntos que seus pais consideram da maior seriedade. Mas essa ansiedade sobre uma guerra destrutiva interfere
claramente na felicidade que esses mesmos pais querem que seu filho desfrute. As crianças ?bviamente nada podem fazer
para evitar uma guerra nuclear.
E desastroso quando os pais pensam que podem decidir que assuntos uma criança deve levar a sério e quais os que não
deve. Os pais que projetam suas próprias incertezas ou ansiedades em seus filhos não estão normalmente querendo dar
crédito à profundidade dos sentimentos da criança, e são incapazes de avaliar o quanto ela sofre quando acreditam que ela
tem pouca ou nenhuma razão para isso. Mas, independentemente de idade, as decisões de terceiros (mesmo de nossos
pais) sobre o que devemos e não devemos sentir profundamente são experimentadas por nós como uma demonstração de
como nos conhecem pouco e de como se importam pouco com nossos sentimentos.
Como conseqüência dessas atitudes, os pais muitas vezes tentam animar uma criança muito triste e tirá-la de sua
infelicidade, e muitas vezes o conseguem, porque ela está numa posição débil paf a resistir e porque o desejo deles de
fazê-la feliz é uma indicação muito importante para ela da importância que tem para os pais. Da mesma forma, os
sentimentos de uma criança são mais voláteis do que os da maioria dos adultos; ela pode, com relativa facilidade, passar,
ou deixar que a passem, da depressão ao bom humor. Mas isso não significa que ela sente menos profundamente do que os
adultos, e seus sentimentos profundos a respeito, por exemplo, da perda de um amigo continuam a ter efeito sobre ela,
mesmo que pareça tê-los esquecido momentaneamente. A dor logo volta, e a criança então sente-se até pior por ter
conseguido por um momento esquecer seus sentimentos mais profundos. O pai, por outro lado, que teve êxito em animar,
por um instante, seu filho atingido pela dor decide, com base nisso, que os sentimentos da criança não são muio profundos
e transformará em prática o fato de tentar tirar o filho de um estado depressivo, não o levando a sério. Mas, mesmo que
sua infelicidade seja aliviada temporariamente, ao refletir a criança sente-se muito magoada por pensar que seus
sentimentos foram considerados tão superficiais que ela poderia facilffiente abandoná-los, desde que alguém a
estimulasse.
Se realmente levamos a sério os sentimentos de nosso filho, não tentaremos animá-lo quando estiver infeliz, lamentando
uma perda. Quando choramos a perda de alguém querido, acharíamos falta de sensibilidade se um amigo nosso tentasse
encorajar- nos a sair de nosso luto. Esperamos de um amigo verdadeiro que respeite nosso sentimento de perda, que chore
conosco, ajudando-nos dessa maneira a enfrentá-lo. Ficaríamos assustados se ele nos tentasse alegrar-nos para nos tirar de
nossa angústia, e o mesmo acontece com nossos filhos quando tentamos essas manobras com eles. Contudo eles não nos
podem dizer o quanto se ressentem quando consideramos sua perda leve demais para chorarmos com eles; não nos
conseguem dizer o quanto estão feridos por sermos capazes de menosprezar isso. Se tentarmos de fato tirá-los de sua
infelici
288
dade dessa forma, sentem um ressentimento tão profundo em relação a nosso comportamento como
sentiríamos caso nossos amigos tentassem nos distrair de nossa infelicidade.
A perda de um amigo é apenas uma das muitas situações que podem tornar uma criança infeliz.
Independentemente de seu comportamento explícito, sua reação interior ao nosso esforço para animá-lo, ao
invés de tentarmos nos juntar a ela em seus sentimentos, é encarada como uma demonstração de que estamos
preocupados apenas com nossospróprios sentimentos, ou seja, nosso desejo de que ela não seja infeliz, e de
forma alguma com seus sentimentos, que no momento são de profunda aflição.
Se desejamos construir uma base firme para a vida em família a partir dos laços emocionais que seus
membros estabelecem entre si, devemos levar muito a sério os sentimentos, em especial os de infelicidade. A
razão para isso é que, como mencionamos antes, quando estamos de bom humor quase todo mundo gosta de
nossa companhia. Por isso, é muito importante que prestemos a maior atenção e mostremos a maior simpatia
por nossos filhos quando estão infelizes; que lhes mostremos que não os consideramos tão sem cabeça a ponto
de não serem capazes de suplantar essa infelicidade profunda em pouco tempo. Precisamos também enfatizar
desde o início a importância dos laços emocionais em nossas vidas, e alimentá-los tão assiduamente quanto
possível. Devemos nos preocupar com eles tanto quanto nossos ancestrais se preocupavam com a busca da
salvação e da sobrevivência. Devemos despender tanto tempo e esforço com eles como os pais em tempos
anteriores gastavam trabalhando junto com seus filhos para manterem economicamente a família. Esses eram
então aspectos essenciais que mantinham a família junta, e quando a família conseguia vencer na vida, cada
um de seus membros sentia-se feliz por pertencer a ela e sentia-se seguro. Hoje são os laços emocionais que
têm que fazer tudo isso. Quanto mais fortes forem esses laços, mais provável será que nossos filhos se
transformem em pessoas fortes e seguras.
A LEALDADE FAMILIAR
Trabalhar em conjunto para ganhar o sustento da fatiiília era uma questão séria. A vida em si era sempre dura, e muitas
vezes muito difícil, embora as pessoas tentassem esquecer e compensar isso nos dias de festa. A verdadeira família
apoiava cada membro nas pequenas e nas grandes dificuldades da vida. Ninguém esperava que pudesse haver felicidade
em outra situação que não fosse como parte dessa família, nem que a vida pudesse ser outra coisa senão difícil.
Muitos dos problemas mais irritantes da vida cotidiana da família moderna derivam de uma expectativa de que a vida
deveria ser, senão feliz, pelo menos suave, e de que dificuldades sérias não deveriam macular a vida da família. Assim, o
que no passado era a pedra de toque do mérito da família — que quando alguma coisa saísse errado, a família verdadeira se
juntava para sobreviver —, apenas em época relativamente recente tornou-se o rochedo em que muitas famílias afundaram.
Isso se deve à crença errônea de que, quando dificuldades sérias aparecem em uma família, deve haver aIguma coisa
errada com a família em si e que, então, devemos descobrir quem ou o que culpar.
289
A família moderna de classe média perdeu muito da crença nela mesma como unidade coerente para a sobrevivência; além
disso, sofre muito com a tendência de seus membros de culpar-se ou a outros membros da família quando passam por
dificuldades, muito embora seja essa precisamente a época em que cada um precisa do apoio do outro, para o bem-estar de
todos É claro que existem razões psicológicas válidas para essa tendência dos membros da família de se acusar quando as
coisas dão errado. Uma delas é a idéia comumente aceita de que, se uma criança se mete em alguma dificuldade séria,
deve ser devido à maneira pela qual foi criada. Contra essa crítica abertamente expressa ou silenciosamente implícita, a
família se defende dizendo que apenas o culpado, e não ela, está em falta. Ser considerada culpada por seus atos faz a
família irritar-se com ela. E a criança em dificuldade não tem onde procurar alívio, enquanto no passado um apoio
reconfortante viria prontamentede dentro da família.
A maioria dos pais, em tempos mais antigos, concentrava-se tão inteiramente em vencer as dificuldades inerentes a
assegurar a seus filhos a sobrevivência e o bem-estar físico que davam pouca importância a seu impacto sobre seu
desenvolvimento psicológico. Eles sabiam simplesmente que tinham que dar um bom exemplo para seu filho, e ensiná-lo
a distinguir o certo do errado. Devido ao trabalho duro que era necessário à sobrevivência, uma vez que tivessem tido
êxito em prover as necessidades fisicas, não temiam que seu filho — ou alguém mais — pudesse criticá-los por não cuidarem
dele adequadamente. Assim, podiam lidar com muitos problemas psicológicos — que naturalmente de fato ocorriam, como
ocorrem em todas as relações íntimas — com uma equanimidade baseada em sua própria segurança interior; e isso
reforçava os sentimentos de segurança da criança.
Essas condições existentes em épocas passadas ainda prevalecem em boa parte do mundo; mas em nossas famílias tornou-
se difícil e complexo para pai e filho sentirem-se seguros um em relação ao outro. Uma das razões para isso é que os pais
consideram como sua tarefa e obrigação mais importante criar em seu filho as condições interiores para seu bem-estar
psicológico e emocilmal — e isso não apenas para o momento, mas para todo o futuro! A complexidade desses fenômenos
psicológicos e a incerteza sobre como esses objetivos ilusórios podem ser mais bem alcançados tendem a fazer o pai
desconfiado do que está realizando; naturalmente, essa insegurança aumenta a da criança. Assim, o pai é apanhado em
uma armadilha, uma vez que proporcionar segurança interior à criança é visto agora como um dos principais requisitos
para ser um bom pai.
Todas as crianças são profundamente afetadas pelas inseguranças dos pais, mas, para piorar as coisas, elas têm suas
próprias inseguranças que decorrem de sua compreensão limitada do mundo, suas dúvidas sobre sua capacidade de
enfrentar os problemas da vida e, acima de tudo, suas dúvidas sobre sua capacidade de serem amadas. Elas conseguem
controlar essas inseguranças somente até o ponto em que são impulsionadas pela crença que os pais têm nelas e em sua
capacidade de dirigir a vida com sucesso, se não agora, quando forem adultos. Essas são as únicas diretrizes que têm e nas
quais podem confiar, porque sabem que seus pais conhecem muito mais o mundo e seus problemas. Mas quando esses
pais são dúbios a respeito de como seu filho se sai ou se sairá no futuro, então ele está duplamente em perigo; ameaçado
por suas próprias inseguranças e, ao mesmo tempo, pela falta de tranqüilidade dos pais. Uma vez que seus pais
290
são tão mais competentes do que ele para avaliar a realidade, suas preocupações com ele e seu futuro
parecem-lhe ser baseadas no fato de terem descoberto falhas das quais não tem consciência. Pior ainda, ele
não sabe que problemas podem ser esses ou que remédios pode ter disponíveis. Nenhuma insegurança é mais
aflitiva e perturbadora do que aquela cujas origens permanecem desconhecidas; por assim dizer, aquela cuja
natureza sabemos permanecer circunscrita. Assim, o pai que se preocupa muito com seu filho e seu futuro cria
exatamente aquilo com que ele mais se preocupa: um filho profundamente inseguro. Em contraste, o pai que
se sente confiante sobre sua paternidade, pelo fato em si, combate a insegurança do filho e ajuda-o a sentir-se
mais seguro.
Naturalmente, todos os pais preocupam-se com muitas coisas que afetam seu filho; essas preocupações são
inseparáveis do fato de ser um pai interessado. Como acontece em relação a tantas questões relativas à criação
de filhos, tudo depende do equilíbrio certo entre preocupação e confiança: preocupação conosco, na qualidade
de pai, e com nosso filho, confiantes, já que o filho é, nosso, de que ele é e será sempre uma boa pessoa, capaz
de enfrentar os desafios da vida. A convicção interior de que estamos nos desempenhando tão bem quanto
podemos no papel de pai resulta naturalmente na convicção correlata de que, por causa disso, nosso filho
desempenhar-se-á bem, independentemente de falhas menores ou temporárias que possa mostrar às vezes.
Uma vez que o futuro é sempre incerto, não podemos saber que problemas específicos nosso filho encontrará
na vida; por isso, o melhor que podemos lhe dar ao se preparar para a vida é nossa confiança nele e um
sentido de seu grande valor próprio.
Um pequeno exemplo pode ilustrar. Quando ainda era um menino em Viena, um dos meus primos perdeu o
rumo na vida. Naturalmente, isso foi visto como uma terrível infelicidade, mas naqueles tempos ninguém
culpou seus pais. Ao contrário, todos lhes disseram o quanto era injusto que semelhante fato acontecesse a
pessoas tão boas. Então, para enfrentar a emergência, nosso grande clã de aproximadamente 12 famílias
juntou-se para ajudar e consolar os mais imediatamente angustiados; coletou-se dinheiro para mandar o jovem
para o estrangeiro, permitindo-lhe recomeçar no novo mundo. Se ele foi criticado de alguma forma, isso
aconteceu tácita, mas não abertamente; ele partiu, deixando todos de coração pesado, mas apoiado por sua boa
vontade e melhores votos de felicidade.
Dados os meios para começar uma nova vida em um novo país, longe dos pais, cuja pressão importuna e
discordância conjugal tinham pesado tanto sobre ele, e encorajado pelo apoio inesperado que tinha recebido
de tantos parentes, meu primo animou-se e logo teve êxito onde havia flilhado antes. Porque seus pais
também tinham recebido apoio emocional dos membros mais afastados da família quando mais tinham
precisado dele, era mais fácil para eles mandar o filho para longe com bênçãos, ao invés de com
recriminações. Aquele apoio, e sua necessidade de providenciar a partida do filho, levou os pais a cooperarem
mais estreitamente, ao invés de brigarem, o que fez com que seu casamento melhorasse, pelo menos por
algum tempo. Apoiados pelos parentes e não responsabilizados pela família em geral, os pais não tinham
razão para ficarem irritados consigo mesmos ou com seu filho, e conseguiram não ser vencidos pela dor
inevitável que advém do fato de ter um filho em dificuldade. Assim, a estrutura da famiia provou ser de
grande valor para um especificamente e para todos em geral.
Tudo funcionou tão bem por causa da convicção da família de que nenhum de
291
seus membros podia ser realmente mau. Eles estavam tão certos do caráter essencial- mente bom de todos que pertenciam
a nossa família que essa crença conseguiu desfazer a dúvida dos pais do menino, assim como a do próprio menino. A
excelente opinião que a família tinha de todos os seus membros foi de enorme importância para o resul tado favorável
desse episódio. Naquele tempo, o antigo provérbio sérvio de que uma grande família equivale à ajuda rápida ainda era
válido.
Aproximadamente 20 anos mais tarde, isso não se aplicava tanto. Outro parente meu falhou em casa e foi mandado para o
estrangeiro, mas infelizmente a estrutura familiar tinha enfraquecido e faltava boa vontade. Esse segundo menino não
tinha sido um delinqüente, como meu primo, mas não conseguia manter-se em um emprego e gastava mais dinheiro do
que podia; sem fazer nada de tão grave, ele parecia incapaz de ter sucesso na vida. Naquela época, muitos fatores da vida
moderna tinham-se combinado para afrouxarem a coesão fámiliar, e ninguêm fora do núcleo familiar soube de suas
dificuldades. Embora o clã estivesse disposto a ajudar, como há duas décadas antes, os pais do menino temeram — não sem
razão —que os membros mais distantes da família o criticassem muito e também a eles, seus pais; 4sim, guardaram os
problemas para si mesmos. Esse jovem também foi mandado para o estrangeiro, desta vez não para a América do Norte,
mas para a do Sul, a fim de procurar seu destino lá. Como carecia do apoio e dos bons votos dos membros mais distantes
da família, a opinião pobre que esse menino tinha de si mesmo não foi suaviada; além disso, ele sentiu as dúvidas de seus
pais, que também se ressentiam porque se envergonhavam dele. Sem a crença da família, não conseguiu desempenhar-se
melhor no novo mundo do que no antigo.
Pode-se facilmente objetar que os dois mëk!iiiios envolvidos nessas estórias eram diferentes, assim como o eram todos os
outtos detalhes, e que isso pode explicar o resultado diferente. Isso pode muito bem ser verdade, mas também era verdade
que naquele tempo, em muitas outras situações pequehas e grandes, os membros mais distantes da família já não
apoiavam seus parentes tão pontamente em temposde angústia ou dificuldades. A atitude de “minha família, certa ou
errada” pode ser objetivamente questionável, mas subjetivamente costumava proporcionar um escudo contra as piores
conseqüências, qüando as coisas não davam certo, e um alívio que ajudava muito na recuperação.
Em casos semelhantes, hoje, os pais muitas vezes não recebem o apoio que desesperadamente necessitam dos membros
mais distantes e sofrem, além disso, da culpa e do opróbrio daqueles que no passado eram a fonte de seu consolo. Isso, em
troca, deixa-os irritados com o membro da família que provocou o problema, o que apenas agrava a questão. Assim, uma
das principais causas das dificuldades da família moderna é a grande mudança na perspectiva a partir da qual suas
dificuldades são vistas e atendidas.
Essa mudança de perspectiva é, em grande parte, conseqüêilcia de termos reconhecido a importância da psicologia
individual: que os fenômenos que decorrem de nossa personalidade e das nossas relações íntimas provocam nossas
dificuldades mais sérias para enfrentarmos a vida e vivermos um com o outro. O que não é tão prontamente aceito é que
apenas a riqúeza tornou possível essa ênfase na psicologia. Os in sights psicológicos e as condições econômicas e sociais
são tão intimamente relacionados que é urna distorção considerar os primeiros isoladamente. Enquanto fomos incapazes
de sobreviver fisicamente sem o apoio de outros membros da família, tínhamos
292
uma razão para atribuir todos os nossos problemas a forças externas, de maneira a podermos continuar vivendo bem um
com o outro e assegurarmos a sobrevivência mútua. Hoje, podemos reconhecer as dificuldades pelas quais passamos como
psicológicas por natureza, e talvez causadas por membros da família — algo que não podíamos nos dar ao luxo de ver
antes.
Há boas razões para presumir que são as falhas dos pais, ou sua maneira de agir como pais, que causam muitos dos
problemas do filho. Mas aceitar essa visão beneficia filho e pai apenas se os induz a se modificarem; de outra forma,
pode acrescentar uma grande dose de infelicidade. Por exemplo, a criança que, por motivos inconscientes, consegue
colocar-se em dificuldade — fracassa na escola, deixa os estudos e delinqüe
— normalmente age dessa maneira a fim de punir os pais, sabendo que eles se sentirão magoados e culpados e serão
responsabilizados pelos seus delitos. Os pais, por outro lado, ressentem-se com razão da idéia de que seu filho pode provar
que eles são maus pais. Ansiosos em relação a isso, tendem a reagir exageradamente a suas inadaptações normais e outras
falhas, porque os vê como sinais agourentos de coisas piores por vir. A criança, então, tem que enfrentar não só suas
próprias ansiedades em relação a sua inadaptação, o que é bastante difícil, mas também as ansiedades dos pais, o que é
uma carga injustificada e, portanto, da qual se ressente com razão. Já é bastante difícil para ela afirmar-se; a idéia de que,
além disso, deve provar o mérito da paternidade que recebeu é uma coisa de que se ressente com razão. Como era mais
fácil decidir as disputas entre pai e filho, quando as dificuldades podiam ser atribuídas à ignorância que uma pessoa jovem
tinha do mundo, que o desviava de seu caminho, ou a um golpe de má sorte, que devemos aceitar como parte de nossa
herança humana.
Quando prevêem atitudes hostis e de rejeição em seu filho, os pais sentem-se inseguros, com medo e muitas vezes
irritados antes que ele lhes dê alguma razão para isso. No passado, quando uma criança em sua cadeira alta entornava leite
ou mingau de aveia por todo o chão, não ocorria à mãe que aquilo podia ser uma manifestação de sua irritação com ela ou
uma insatisfação com o mundo ou um presságio de sua futura incapacidade de enfrentar a vida. Estava certa de que tinha
acontecido porque ela era imatura e desajeitada; para muitas mães esses incidentes pareciam demonstrar a grande
necessidade da criança de que a ajudasse a comer, e isso fazia com que se sentisse ainda mais importante para ela.
(Obviamente, já que outrora o prato no qual a criança comia era feito de madeira ou de estanho, não se quebrava quando
era jogado no chão; além disso, o chão era normalmente áspero e não importava que alguma coisa fosse derramada nele,
enquanto um tapete caro ou um carpete elegante estragam facilmente quando alguém entorna comida neles.) Aqui, como
em muitas outras situações, a riqueza é uma bênção confusa para a criança, e muitas vezës torna difícil para o pai aceitar
seus gestos com bom humor ou, pelo menos, com indiferença tolerante. Hoje, quando suspeitamos que o incidente pode
ser um ato deliberado de irritação ou desafio, toda a boa vontade criada pelo sentimento de que somos importantes para
nosso filho é maculada pela possibilidade de que ele nos tenha rejeitado ou menosprezado o alimento que preparamos com
tanto cuidado para ele. Sentindo-nos rejeitados dessa forma, podemos, em troca, reagir ao fato de ele derramar, deixar cair
ou quebrar coisas com irritação ou raiva, ao invés de aceitar tais atitudes como exemplos da falta de destreza infantil.
293
Apesar de a ignorância nunca ter sido ou ser uma bênção, o conhecimento reduzido pode ser uma coisa perigosa, como
sabiam os Talmudistas. Antes que se compreendesse que as crianças não apenas amam mas também rejeitam os pais,
sabendo que sem a ajuda dos pais os fflhos morr&iam, jamais ocorreu às pessoas que podia ser assim, uma vez que a vida
de uma criança dependia da boa vontade de seus pais. Assim, não atribuíam as atitudes de uma criança à rejeição. Hoje
sabemos que os filhos tanto amam quanto rejeitam seus pais, e, a partir daí, estamos prontos a atribuir o que vemos como
seu comportamento negativo à sua rejeição aos pais. Isso pode ocorrer, mas é muito mais raro do que muitos pais
preocúpados acreditam, e esse é o conhecimento reduzido que pode tornar-se perigoso. Um conhecimento mais completo
pode esclarecer- nos que muitas coisas que parecem rejeição ao pai são apenas a frustração da criança com sua própria
inabilidade. No exemplo em que entornou a comida, ela o faz muito mais em decorrência de frustração consigo mesma
porque não consegue ser mais capaz de alimentar-se ou de fazer sua própria escolha em relação ao tipo ou ao horário de
sua refeição. Assim, muito do que o pai moderno pode tomar como rejeição é apenas o resultado da profunda decepção da
criança consigo mesma. Muitas vezes o pai ingêfluo que atribuiu tudo à falta de jeito da criança estava mais perto da
verdade do que o pai moderno que fica ansioso para saber se é um pai suficientemente bom e que, por conta dessa
ansiedade, está, com freqüência, pronto para ver atitudes negativas, senão rejeição a ele próprio, na postura do filho. Ser
um pai suficientemente bom exige, por isso mesmo, que nós mesmos estejamôs convencidos de que é isso que somos.
É essa segurança interior em relação a nós mesmos e ao nosso amor por nosso filho que deve hoje nos proteger contra o
fato de nos sentirmos rejeitados por ele quando está apenas ou principalmente frustrado consigo mesmo e com as
limitações que sua inabilidade lhe impõe. Onde o pai do passado viu apenas a falta de jeito da criança, o conhecimento
mais amplo deveria nos permitir ver também a profundidade da frustração da criança por causa disso, e perceber que esse
é freqüentemente o motivo principal de sua atitude. Isso é um exemplo da verdade contida na declaração de Graciano de
que o conhecimento sem a sabedoria é duplamente loucura. Sabedoria em relação a nós mesmos: apesar de não sermos
perfeitos, somos de fato pais suficientemente bons se na maior parte do tempo amamos nossos filhos e fazemos todo o
possível para proporcionar-lhes o que é melhor para eles. Essa sabedoria, ou verdade, pode proteger-nos contra a loucura
de pensar que tudo que uma criança faz reflete-se apenas sobre nós. Boa parte tem a ver principalmente com ela própria e
apenas indiretamente ou perifericamente conosco e com o que fazemos. A sabedoria em relação a nós mesmos e em
relação a nosso filho nos permitirá compreender que aquilo que parece hostiidade dirigida contra nós — coisa que, quando
vemos como tal, não pode deixar de provocar nosso ressentimento e, por isso, de nosso lado, uma reação negativa — é na
verdade freqüentemente devido à infelicidade da criança consigo mesma. Q u a n do reconhecermos isso, nosso coração
ficará solidário com ela e faremos todo o possível para ajudá-la em sua angústia. Se assim fizermos, nos sentiremos bem a
respeito de nossa capacidade de ajudá-la em suas necessidades, ela saberá o quanto é bom fazer parte de uma famiia que
ajuda aqueles que estão em apuros e, então, tudo estará bem em nossa famiia.
294
Dias Mágicos
Jovens e velhos saem para brincarem num feriado de sol.
— MILTON, “L’Allegro”
EMUITO ESTIMULANTE sentir que somos o motivo especial de uma celebração, assim como uma criança pode sentir
no dia do seu aniversário. Esses momentos particularmente significativos devem ser tratados com real carinho, uma vez
que nos dão grande felicidade no instante em que ocorrem e também sustentam nossa esperança no futuro. Quanto mais
insignificantes e inseguros nos sentimos a respeito de nosso lugar no mundo, mais precisamos da confirmação da nossa
importância — se possível por parte de todo o universo ou, pelo menos, daquelas pessoas que mais significam para nós.
As crianças, mais do que ninguém, precisam dessa experiência, como reconhecemos ao celebrar festas infantis, tanto as
individuais, como os aniversários, quanto as outras, em que todas as crianças são levadas a se sentir especiais, como o
Natal. Nessas ocasiões, as crianças colocam-se como o centro de atenção afetuosa e são levadas a se sentir importantes; os
presentes que recebem provam-lhe que são amadas e também que são pessoas de valor. Se essas ocasiões são celebradas
com verdadeiro entusiasmo, o brilho desses dias pode espalhar-se por toda a vida. A repetição regular desses eventos é a
garantia que a criança tem de que continua sendo importante; os feriados pontuam o ano da criança e com ele a sua vida;
eles são os pontos altos do ano para ela, o que demonstra que é mais fácil organizar nossa vida em torno de eventos
felizes.
Não sabemos com exatidão o que simbolicamente expressavam os primeiros feriados, mas há pouca dúvida de que foram
celebrações da vida e daquilo que a sustenta; assim, a refeição abundante e festiva ainda é o centro de qualquer feriado e,
com freqüência, simboliza o seu espírito. Deve-se fazer aqui uma distinção entre feriados religiosos como dias de
abstinência e contrição — que para os fiéis são práticas espirituais importantes — e as ocasiões mais seculares vividas como
feriados pelas crianças e quase sempre por toda a comunidade, festivais universais, quando mesmo uma pessoa
profundamente religiosa como Milton sentiu que seria apropriado, tanto para os jovens quanto para os mais velhos, “sair
para brincar”.
Os primeiros feriados organizados e celebrados regularmente eram evocações
rituais para garantirem a fertilidade e, com ela, o nascimento e o renascimento das plan
295
tas, dos animais e do homem. Outros eram ritos de passagem para assegurarem, solenizarem e glorificarem os estágios de
maturação do homem ou das estações do ano. Na antiga tradição judaico-cristã, os festivais religiosos eram manifestações
de alegria pública. Na realidade, a palavra hebraica para feriado ou festival, cbag, deriva do radical cbug, que significa
dançar em círculo, e esta é a maneira como o judeu hasídico celebra ainda as festa religiosa; a palavra hebraica para
Páscoa significa literalmente “a festa dos pulos”. Hoje em dia, os nossos feriados mais importantes, sejam eles religiosos
ou patrióticos, solenizam e celebram o nascimento: o do Cristo menino, a Ressurreição — o renascimento — do Senhor; e o
nascimento das nações, tal como o aniversário da criança celebra o seu próprio nascimento. (A decisão da igreja cristã de
comemorar a data desconhecida do nascimento de Cristo no período do solstício de inverno indica a relação simbólica e
muito próxima entre o nascimento do Salvador e o reinício do ciclo de vida anual da natureza no mundo ocidental.) A
Páscoa também celebra não apenas a liberdade da escravidão, mas também o nascimento da nação judaica. Levou à
criação dos Dez Mandamentos, base da lei judaica. A Última Ceia, que foi a refeição de Páscoa, deu início à seqüência de
eventos que levou à Redenção e à Ressurreição no Domingo de Páscoa, dando oportunidade para uma “nova vida”.
Todas essas festas são eventos mágicos, pois o que poderia ser mais mágico do que o nascimento de uma criança ou
renascimento do mundo? O que contém maior magia para a humanidade do que a promessa de uma oportunidade para
recomeçar? Originalmente, a celebração desses feriados incluía vestir-se com roupas de significado ritual ou mágico; a
nova decoração da Páscoa e os chapéus engraçacados que as pessoas colocam sobre suas cabeças nas festas de aniversário
ou de Ano Nvo são os últimos vestígios dessa prática. Os presentes que uma criança recebe no Natal e no seu aniversário
são símbolos dos presentes dados pelos três reis magos; e os fogos de artifício são símbolos de um novo sol que trará a luz
e a alegria da liberdade e uma nova vida, uma esperança que as luzes da árvore de Natal também refletem.
Muito antes de as luzes da árvore de Natal terem se tornado parte da celebração desse feriado no norte da Europa,
fogueiras enormes eram acesas nos templos pagãos, nos topos das montanhas, no dia do solstício de inverno, para
simbólica ou magica- mente estimularem o sol a aumentar a duração dos dias e de novo aquecer a terra, O ato de trazer a
acha de Natal e acendê-la é um vestígio desse costume, reduzido a um único grande pedaço de lenha. Ainda mais antigo
do que o hábito de acender a árvore de Natal é o costume judeu de acender velas durante as festas de Hannukkab, que
celebram um acontecimento mágico: o fato de que a lâmpada no Templo de Jerusalém continuou a queimar, embora o seu
óleo tivesse terminado. E, assim, como freqüentemente acontece, o ritual mágico (consistindo nesse caso em acender
árvores e velas) continua, enquanto que, com a passagem do tempo, diferentes significados são a ele incorporados.
Qualquer que tenha sido no passado o significado dos rituais que vieram a compor a nossa celebração do Natal, eles
simbolizam hoje em dia o maravilhoso nascimento de uma criança que criou uma nova era — a nossa própria — e deu novo
significado a toda a vida humana.
Os feriados infantis têm uma característica singular: as distinções entre papéis e autoridades são obliteradas ou revertidas.
Uma criança é rei no seu aniversário; ela pode exigir coisas dos adultos ou mesmo fazê-los sentir medo dela no Dia das
Bruxas; e
296
pode fazê-los de bobos no Primeiro de Abril. Essas reversões de status e conotações mágicas são razões importantes
para que os feriados sejam especialmente significativos e prazerosos para as crianças. Uma criança é profundamente
prejudicada, se não pode desfrutar por completo dos feriados especiais ou beneficiar-se com aquilo que simbolizam; esses
significados simbólicos são permanentemente construídos em nossa experiência inconsciente do mundo. Assim, embora
os feriados estejam aí para serem festejados por todos nós, a maneira como foram celebrados quando éramos crianças
pode ter, e de fato têm, conseqüências mais duradouras ao longo de nossas vidas.
“Os feriados são os aniversários secretos do coração”, lembra-nos o poeta Longfellow falando como um adulto para
adultos. E, quando somos jovens, esses dias anualmente recorrentes eram feliz e ansiosamente esperados, os seus prazeres
festivos pressentidos por muitas semanas, senão por meses, ou até mesmo pelo ano inteiro. Os feriados pontuavam as
nossas vidas da maneira mais agradável e davam um significado posi’ tivo aos dias subseqüentes. Como adultos já
maduros, freqüentemente tomamos a decisão de que já não devemos ceder a essa visão infantil do que faz a vida digna de
ser vivida e muitos de nós passamos a esconder nossos sentimentos sobre os feriados, não só das outras pessoas, mas de
nós mesmos também. O seu significado, no entanto, permanece profundamente ancorado em nosso inconsciente, razão
pela qual Longfellow chamou-os de aniversários secretos do coração. Nossos sentimentos a respeito desses dias especiais
internalizam-se, assim, como parte da nossa oculta vida interior.
A maneira de celebrarmos muitos feriados mudou bastante. Por exemplo, o Natal, de uma festa essencialmente religiosa,
com oferta de presentes apenas para as crianças, transformou-se durante o último século em uma festa cada vez mais
familiar, em que todas as pessoas participam igualmente — hoje em dia todos dão presentes a todos. Certamente não há
nada de errado com qualquer tipo de festa familiar; na realidade, seria mais benéfico se as famílias celebrassem esses
feriados com mais freqüência. As gerações mais velhas ainda se lembram de que, durante a sua infância, quase todos os
domingos era um feriado familiar — uma ocasião para reunir o clã; isso podia significar umas 20 ou mais pessoas de uma
vez, já que as famílias costumavam ser mais numerosas naquela época e, também, porque os parentes outrora viviam
fisica, emocional e social- mente mais próximos uns dos Outros. Mesmo as eventuais discussões acrescentavam excitação
ao divertimento e eram, em pouco tempo, amigavelmente resolvidas, à medida que todos se divertiam muito em torno de
uma .farta refeição. Os adultos entretinham-se uns com os outros, as crianças brincavam juntas e os problemas familiares
podiam ser discutidos e resolvidos.
Entre as lembranças mais felizes da minha infância estão as ocasiões em que eu e os primos da mesma idade — éramos
chamados de “os pequenos” — brincávamos debaixo da enorme mesa ao redor da qual se reuniam 12 ou mais membros
adultos da família, freqüentemente se esquecendo de que nós estávamos literalmente sob seus pés. Brincávamos juntos no
escurinho aconchegante, escondidos pela enorme toalha que pendia quase até o chão; enquanto brincávamos, ouvíamos a
fala e as discussões daquelesa quem chamávamos “os grandes”. Nós e eles, cada grupo no seu nível, passávamos assim
ótimos momentos todos os domingos.
297
O mais próximo que muitos de nossos filhos e nossas famílias podem chegar desse tipo de experiência é o Dia de Ação de
Graças. Para a criança pequena, esse dia significa, antes de mais nada e principalmente, o jantar com peru e todos os seus
acompanhamentos e, em segundo lugar, a reunião da família para desfrutar de uma ocasião muito especial. Os professores
e os pais podem explicar a história do feriado, mas o que ressalta na cabeça da criança — e na dos adultos também — é a
refeição generosa e o espírito das boas amizades. A nível consciente, esses feriados são importantes para a criança
principalmente pelos sentimentos calorosos evocados nela por toda a festividade e essa sensação pode mais tarde refletir
um brilho prazeroso nas idéias mais abstratas relacionadas com essa celebração. No entanto, a nível subconsciente,
alguma coisa do que o dia simboliza continuará a exercer a sua influência.
O medo da perda física e emocional são-as duas grandes ansiedades do homem. A fome e a inanição são as duas formas
básicas da primeira; a deserção — da qual a morte é apenas a última e extrema forma — a da segunda. A criança pequena não
entende a morte e, em conseqüência, não teme a sua própria, enquanto que a dos seus pais é temida sob a forma de
deserção permanente. Embora em nossa sociedade as crianças, na realidade, não morram de fome, todas experimentam,
mais ou menos, severas pontadas de fome uma vez ou outra; e todas as crianças sofrem de deserção temporária, quando
seus pais não se encontram disponíveis. Essas duas formas das primeiras privações reais vividas pela maioria das crianças
amplia-se enormemente no inconsciente, onde chegam a substituir e são símbolos de toda a ansiedade. (Mesmo o medõ de
animais perigosos, tão freqüente nos pesadelos de uma criança, são experimentados por elas como casos especiais de
medo de deserção, porque esses animais ferozes só são perigosos por causa da ausência dos pais, que de outra forma
poderiam persegui-los e mandá-los emboras, protegendo, assim, completamente a criança.)
As festas familiares celebradas em torno de uma mesa arrumada com uma refeição farta e festiva combatem as ansiedades
das crianças, tanto em termos de uma experiência real, quanto, o que é ainda mais importante, a nível simbólico. A
“reunião do clã” renova a confiança da criança, à medida que percebe que para sua segurança contra a deserção ela não
precisa apoiar-se exclusivamente nos pais; que muitos outros parentes estariam disponíveis em um momento de crise e a
protegeriam da deserção. A refeição farta, similarmente, oferece segurança contra a ansiedade da fome, tanto ao nível real
como, mais importante ainda, simbolicamente. Dessa forma, esses feriados familiares são, tanto enquanto uma experiência
consciente quanto a nível inconsciente, uma das experiências mais gratificantes que a criança pode ter no que concerne às
suas ansiedades mais intensas. Elas colocam-se entre as experiências mais construtivas que podemos oferecer-lhe para
fortalecer sua segurança.
Assim, com boa razão, a história do Dia de Ação de Graças enfatiza que uma boa safra impediu que os peregrinos
morressem de fome e passassem pelas mesmas privações que tinham sofrido no inverno anterior. Nesse sentido, o feriado
simboliza a salvação e o início de uma vida melhor e mais segura, um renascimento simbólico num plano melhor.
Basicamente, todas as nossas importantes celebrações — Natal, Páscoa, 4 de julho, aniversários — comemoram nascimentos
e renascimentos. A esperança inerente a esse significado simbólico continua a reverberar em nós, quer saibamos disso ou
não.
Por toda a história da humanidade, as próprias cerimônias e os sentimentos feli
298
zes a elas relacionados têm durado além do evento ou da idéia especffica que originalmente deu início ao feriado; como
foi visto antes, estas idéias mudam com o tempo. Por exemplo, o Natal era inicialmente um ritual pagão que celebrava o
renascimento do sol e da natureza, muito antes que a idéia do nascimento de Cristo se relacionasse a ele. De maneira
semelhante, os rituais mais antigos, aqueles que levavam em si um signfficado inconsciente e emocional mais profundo,
têm uma forma diferente de reaparecer, algumas vezes depois de um intervalo de séculos de duração. Assim, as fogueiras
armadas nos topos das montanhas no solstício de inverno para estimularem o sol a permanecer mais tempo no céu depois
de séculos reaparecem como luzes nas árvores de Natal. Tais celebrações são demasiado importantes para serem
abandonadas, porque servem a necessidades profundas e inconscientes. Como a forma dessas celebrações tradicionais têm
mudado com o passar do tempo, e novas idéias têm-se incorporado a elas, também nós, como indivíduos, alteramos a
maneira pela qual celebramos os feriados ao longo de nossas vidas. Partindo de nossa própria experiência, sabemos como
as idéias que relacionamos com o Natal mudaram à medida que amadurecemos, do Papai Noel e suas renas ao espírito de
doação, do prazer de receber presentes ao prazer de dá-los a outras pessoas.
Dessa forma, os rituais e celebrações tangíveis são permanentes e grandiosos; as idéias abstratas sobre as quais se centram
atualmente podem mudar, mas quase todas elas tiveram precursores concretos, sem os quais pareceriam conchas vazias.
Por exemplo, de acordo com a Bíblia, Deus proibiu os judeus de fazerem uma representarão dele, simplesmente porque o
desejo que tinham de imaginá-lo de maneira concreta, como um velho de barba — para não fazer referência ao bezerro de
ouro — era tão avassaladora; não visualizá-lo de uma forma definida é muito difícil. No entanto, quase nenhuma criança
moderna pensa em Deus em qualquer outra forma que não seja a de uma pessoa idosa, imortal e grandiosamente digna. À
medida que vamos amadurecendo, esta imagem é substituída pela idéia abstrata de um ser supremo ou essência, ou causa
primeira, sem forma, de acordo com o caso. No entanto continuamos a admirar a maneira como ele foi apresentado sob a
forma humana por grandes artistas, tal como o fez Michelangelo na sua percepção da criação de Adão no teto da Capela
Sistina. E em alguma forma semelhante a esse Deus aparece em nossos sonhos, o que sugere que, embora estejamos muito
distantes da nossa imaginação de crianças, Ele continua em nosso inconsciente como o visualizamos e imaginamos
naquela época.
Por que nos preocuparmos, então, com o fato de nossos filhos visualizarem o Natal sob a forma de Papai Noel? Mesmo
que não façamos nada enquanto pais, à medida em que nossos filhos amadurecem, liberam as suas idéias sobre o Natal
dessas imagens concretas. Mas, durante os seis primeiros anos de suas vidas, a maioria das crianças modernas acredita
firmemente nas suas visões mágicas, tais como o Papai Noel e o Coelhinho da Páscoa, não importa o que se sintam
obrigadas a conceder, da boca para fora, à visão dos seus sobre o assunto. Então, durante um ou dois anos elas sentem-se
inseguras, embora ainda preferissem dar crédito às suas antigas convicções. Daí em diante, tudo se transforma num jogo
de faz-de-conta de que gostam imensamente; e ressentem-se quando os pais tentam desiludi-las a esse respeito. Se os pais
lhes dizem o que consideram ser a “verdade”, do ponto de vista das crianças essa atitude é considerada uma inveja do seu
divertimento. Esse divertimento depende da capacidade de a criança
299
fingir que acredita nessas figuras imaginárias, enquanto sentem, ao mesmo tempo, que são mais espertas do que seus pais
pensam que são. Elas gostam de enganar os pais, fazendo-os pensar que ainda acreditam inteiramente na veracidade
dessas figuras imaginárias. quando na verdade não o fazem. Nesse jogo de imaginação, o sentimento original sobre a
magia relacionada a essas figuras continua a evocar emoções e experiências felizes, unindo pais e filhos das formas mais
agradáveis.
Um estudo recentemente desenvolvido nos Estados Unidos demonstra como a crença em figuras imaginárias está
diretamente relacionada com as necessidades da criança. Este estudo também mostra que, embora praticamente todas as
crianças de quatro anos de idade acr’editem em Papai Noel e no Coelhinho da Páscoa, apenas 20% delas acreditam na
Fada do Dente. A razão para essa discrepância reside no fato de que, aos quatro anos, poucas crianças tinham perdido ou
estavam em vias de perder seu primeiro dente. Aos seis anos, aproximadamente, apenas dois terços do grupo estudado
ainda acreditavam em Papai Noel e no Coelhinho da Páscoa. Mas, tendo já nessa altura começado a perder os dentes de
leite, o mesmo número de crianças que acreditava nas duas primeiras figuras mágicas também acreditava agora na Fada
do Dente. Dois anos mais tarde, quando as crianças já estavam com Oito anos, o número das que ainda acreditavam nas
duas primeiras figuras caiu para apenas um terço do grupo, enquanto dois terços delas ainda acreditavam na Fada do
Dente. Como as crianças continuaram a perder o seu primeiro dente nessa idade, elas continuaram a acreditar na Fada do
Dente. Existe, portanto, uma relação direta entre a experiência algo assustadora de se perder um dente e a crença na magia
compensadora.
A necessidade, ou mais corretamente o desejd, de as crianças fingirem acreditar nessas e em outras figuras mágicas —
talvez para se certificarem de que seus pais continuarão a oferecer-lhes presentes, mas mais provavelmente para se
divertirem com a simulação acima mencionada — é sugerida pelo fato de que, embora aos oito anos de idade apenas um
terço das crianças admitisse continuar acreditando em Papai Noel, três quartos desse grupo ainda deixavam comida,
bebida ou algum outro tipo de lembrança, como um desenho feito por elas, para que Papai Noel se alegrasse ao
encontrálos quando saísse da chaminé, e fiel e cuidadosamente penduravam as suas meias na lareira para que ele as
enchesse com presentes.
A necessidade de agarrar-se a idéias abstratas através de imagens concretas não se limita de maneira alguma à primeira
infância; mantém-se igualmente verdadeira para a maioria dos adultos. Poucos de nós somos capazes de obter uma
imagem real de beleza, a menos que consigamos pensar em algum objeto cuja perfeição dá um sentido emocional à idéia
abstrata. Somente se uma criança chegou a amar objetos que ela considera bonitos — não importa aqui o conceito que os
adultos possam ter sobre o seu mérito —, poderá mais tarde entender a idéia de beleza no abstrato, e chegar a amá-li. Se
disputarmos, com base nos nossos padrões refinados e educados, próprios dos adultos, o encanto de um objeto que
personifica a idéia de beleza da criança, ela poderá ser desviada para sempre da alegria da belezã, só porque a fizemos
desconfiar da sua própria capacidade de julgar o que é bonito. Ela poderá, ainda assim, ter um alto conceito da beleza
enquanto abstração, porém não mais será capaz de amá-la quando com ela se deparar, por ter sido prematuramente forçada
a separar seus juízos de valor-das emoções, único elemento capaz de tornar a beleza proftindamente satisfatória. Falar a
uma
300
criança sobre isso de maneira abstrata não a ajuda a aprender o que a beleza pode fazer por ela e para ela. Embora possa
aprender a falar inteligentemente sobre a beleza, esta não mais aquecerá a sua alma como o faria gostar de um
determinado objeto que lhe parece bonito.
Assim, deve-se permitir à criança pequena acreditar em Papai Noel, no Coelhinho da Páscoa e na Fada do Dente, uma vez
que são precursores que continuam a dar fervor emocional a importantes conceitos que ela vai desenvolver à medida que
sua mente se tornar mais madura. Para a criança pequena, a Fada do Dente, que lhe traz uma moeda quando perde um
dente, é ao mesmo tempo a garantia de justiça e sua personificação; simboliza também a boa vontade de um mundo que
não quer que uma criança perca qualquer coisa sem que haja um esforço para compensá-la.
Em contraposição, a realidade de um pai dando ao filho uma moeda por um dente perdido compensa pouco, pois a criança
já sabe que seus pais podem dar e retirar. A criança tem medo de perder alguma parte do corpo; o fato de seus pais lhe
darem um presente para compensá-la disso é uma prova de delicadeza — mas será que pode confiar nisso e que será sempre
assim? Será que o pai pode fazer com que um novo dente nasça para substituir o perdido? Mas se o sobrenatural entra sob
a forma da Fada do Dente, então pode sentir-se mais segura de que existe uma ordem maior no mundo, que garante que
sua perda não deixará de ser aliviada. É a partir dessas experiências que seu senso de justiça e retidão será desenvolvido.
A grandeza da justiça verdadeira não pode ser instilada na mente de alguém, em qualquer idade, sem que esteja baseada
nas crenças infantis que continuam a carregar uma convicção emocional profunda muito depois de as idéias imaturas e
cheias de fantasia das quais partiram terem sido esquecidas e sepultadas ho seu inconsciente. Se nossa convicção for
apenas conseqüência da razão fria, o fervor moral será fraco, uma vez que a racionalidade desenvolve-se muito mais tarde
na criança em crescimento.
O que é maravilhoso em relação à mágica positiva da alegria dos feriados é que pode proporcionar segurança durante todo
o ano, quando mais se necessita dela, mesmo sob as piores circunstâncias de vida. As crianças sabem disso e, quando têm
oportunidade, usam a segurança simbólica que o espírito festivo oferece para proporcionar a si mesmas apoio moral
quando mais desesperadamente necessitam dele. Uma história contada pela psicanalista sueca Stefi Pedersen pode ilustrar
isso.
Quando os nazistas ocuparam a Noruega, Pedersen serviu de guia a um grupo de refugiados, incluindo diversas crianças,
que fugiram atravessando, em pleno inverno, as altas montanhas até a Suécia. Ninguém podia levar nada além do que
pudesse carregar nas costas, porque a subida era difícil e andar depressa era essencial. Para a maioria do grupo, essa não
era a sua primeira fuga dos nazistas, uma vez que alguns anos antes tinham fugido da Alemanha ou da Áustria para a
Noruega. Assim, esses refugiados tinham experimentado o que significa ter que abandonar quase tudo o que se tem,
levando apenas o imprescindível, O grupo só tirou seu primeiro e desesperadamente necessitado descanso após ter
alcançado segurança dentro da fronteira sueca. Depois de comer a pequena quantidade de comida que tinham levado,
muito pouco restava nas pequenas mochilas das crianças. Pedersen olhou por acaso para dentro da sacola de uma delas e
encontrou entre os pobres e poucos objetos uma pequena estrela de prata, do tipo das que penduramos nas árvores de
Natal. Ela a apanhou, surpresa, mas então
301
sentiu que a criança olhava-a confusa,. como se ela tivesse descoberto um segredo muito precioso. Sem dizer nada,
Pedersen colocou a estrela cuidadosamente de volta na sacola.
Uma vez que seria responsável pelas crianças quando chegassem a seu destino na Suécia, e já que, como analista de
crianças, estava profundamente interessada no que poderia lhes proporcionar segurança psicológica naquele lugar,
Pedersen decidiu explorar que outros objetos as crianças tinham escolhido como seus bens mais valiosos para trazerem na
sua fuga de casa. Assim, examinou outras sacolas, e mais uma vez encontrou peças baratas de decoração de árvores de
Natal — estrelas e sinos feitos de papelão, cobertos com brilho prateado. Isso era o que essas crianças — a maioria delas de
origem judaica, mas criadas em famílias assimiladas que celebravam o Natal como uma família e principalmente como
um feriado infantil, embora não como um evento religioso — tinham escolhido para levar com elas da Noruega, preferindo-
os a quaisquer outros ojetos. Quanto ao mais, não tinham coisa alguma, a não ser as roupas que usavam. Pedersen
concluiu que elas tinham trazido esses símbolos de um passado feliz porque só eles poderiam lançar uma aura de
segurança sobre a angústia que sentiram ao embarcarem em uma viagem para o terrível desconhecido. Nessa viagem para
o nada, os pequenos enfeites vistosos — símbolos de uma felicidade que um dia conheceram em suas casas e com suas
famílias — suavizavam seus sentimentos de solidão e impotência e ofereciam uma promessa de esperança.
Na mesma noite, quando chegaram a um lugarejo na fronteira da Suécia, uma jovem norueguesa juntou-se a eles. Ela
fizera uma fuga espetacular para salvar a vida, sem sequer dispor de pelo menos meia hora para empacotar o que lhe era
essencial. Sua fuga tinha exigido vários dias de viagem através de regiões ermas, de modo que não podia carregar uma
mochila pesada. Agora, pela primeira vez, tinha tempo para tirar suas coisas da mala. Além de um mínimo de roupas, tudo
que tinha levado com ela era uma caixa de música de metal. Sua explicação apologética foi: “Bem, eu tinha que trazer
alguma coisa bonita, já que estava partindo para sempre.”
O ator dinamarquês Texiere contou uma vez que a única coisa que conseguira levar consigo em sua fuga para a Suécia
tinha sido uma pequena caixa de rapé que pertencera a Hans Christian Andersen. Embora de pequeno valor, essa caixa era
um símbolo da vida abundante que ele tinha que deixar para trás. E uma mulher levou, entre umas poucas roupas
esportivas alegres, apropriadas a uma caminhada pelas montanhas, um par de sapatos dourados, de salto alto. Muitas
vezes, entre os pertences esparsos que esses refugiados levaram quando deixaram suas casas para sempre havia coisas
que, vistas objetivamente, teriam parecido escolhas peculiares, completamente inadequadas se considerarmos as
necessidades maiores de um refugiado. Nenhum desses objetos relacionava-se de alguma forma racional à situação desses
refugiados. Mas eram objetos que tinham vindo para representar simbolicamente o que tinha sido melhor em suas vidas, e,
nessa qualidade, eram, ao mesmo tempo, os últimos remanescentes de uma época boa e a promessa de co1tinuação de
uma outra que teria seus momentos felizes.
Qualquer um que tenha tido experiência com pessoas em situações de desespero similares poderia facilmente contar outras
tantas histórias, O que é mais extraordinário nesse caso é a diferença entre os objetos em que os adultos e as crianças
confiavam para
302
sustentá-los na adversidade extrema. Os adultos tipicamente levavam consigo algo que simbolizasse experiências de
felicidade com pessoas verdadeiras. A pesada caixa de música, acabou-se sabendo, tinha sido dada à senhora por alguém
que a tinha amado e que ela também amara. A mulher que levou os sapatos dourados os usara no dia mais feliz de sua
vida, quando se sentira particularmente bonita e feliz. Por outro lado, as crianças procuravam e encontravam consolo em
alguma coisa que lhes lembrasse um acontecimento alegre que tinham partilhado com os pais, mas que ao mesmo tempo
simbolizasse poderes até maiores do que os de seus pais. Acima de tudo, suas lembranças representavam a expectativa da
volta de dias especialmente felizes para as crianças. Por mais que fosse desesperadora sua situação no momento, esses
enfeites de Natal pareciam assegurar-lhes que no futuro a felicidade lhes pertenceria novamente.
Esse, então, é provavelmente o significado mais profundo e mais tranqüilizador do Natal para uma criança: uma
lembrança que a sustenta em situações de adversidade, como aconteceu com os jovens refugiados em sua angústia
extrema. A promessa simbólica contida nos pequenos enfeites de Natal significava esperança para essas crianças, quando
tudo parecia desesperadamente sem esperança. As crianças sentem isso no subconsciente; eis por que se agarram à ficção
de Papai Noel, que traz com ela um significado simbólico muito especial.
O poeta em seu insight sobre “os aniversários secretos do coração” previu o que os psicanalistas tiveram que se
esmerar para descobrirem: esses fenômenos moldam nossa visão da vida, tanto positiva quanto negativamente. A força
destrutiva de reações negativas talvez ressalta a importância dos feriados de maneira mais impressionante do que o fazem
as influências positivas benignas. Embora essas últimas sejam desfrutadas em sua totalidade, os adultos freqüentemente
não levam a sério seus efeitos, reprimindo em seu subconsciente o que consideram reações infantis.
O estudo de tipos de comportamento altamente patológicos mostrou que eles são muitas vezes cíclicos, acontecendo nos
aniversários de acontecimentos significativos, normalmente, mas nem sempre, sem que a pessoa saiba por que é assim.
Nos textos de psicologia, esses fatos são conhecidos como reações de aniversário e têm sempre um significado pessoal
peculiar; são dias — ou épocas do ano — em que ocorreu algum acontecimento infeliz, como a morte de um dos pais, ou a de
um filho . Algumas vezes, essas reações ficam especialmente marcadas quando acontecem perto dos feriados, sobretudo
do Natal. Os suicídios são freqüentemente associados a essas reações de aniversário, estejam ele.s centrados em torno de
um feriado ou de uma desgraça pessoal, mostrando que, subconscientemente, nos lembramos muito bem do que nos
aconteceu em determinado dia ou em certa época do ano. Os efeitos posteriores aos acontecimentos felizes são igualmente
fortes, mas, uma vez que não há razão para eliminá-los enquanto recordações dolorosas demais para serem
conscientemente lembradas, nossas reações positivas de aniversário são muito menos dramáticas e, assim, muito menos
facilmente observadas. Por exemplo, pessoas que, quando crianças, tiveram experiências infelizes com o Natal, tendem a
sofrer, por causa disso, de graves depressões de aniversário durante toda sua vida na época do Natal, enquanto aquelas
que, quando
303
crianças, tiveram Natais felizes não ficam deprimidas mais tarde nessa época, mesmo que sua vida tenha se tornado
solitária ou cheia de privações. As lembranças de feriados felizes continuam a ajudá-las a suportar bem as dificuldades
atuais.
Conheci uma mulher bem-sucedida na vida que. apesar disso, ficava profundamente deprimida todos os anos mais ou
menos no Dia de Ação de Graças. Sentia-se terrivelmente solitária e carente, em reação ao feriado, embora estivesse muito
consciente de que suas condições atuais não lhe davam razões para sentir-se dessa maneira. Mas, ela era perseguida pelas
recordações de infância quando — pelo menos era o de que se lembrava — nunca podia ter certeza de que o Dia de Ação de
Graças seria comemorado em sua casa, já que nunca saiba se seu pai voltaria a tempo para a festa, se traria o peru ou se,
de todo, viria juntar-se à família. Embora seu pai em geral chegasse, de fato, no último momento, e quase sempre trazendo
o peru, sua ansiedade antecipada continuava a estragãr o feriado completamente. A ansiedade que se sente antes da hora,
da mesma forma que o prazer, tem, assim, enorme conseqüência psicológica na forma como vivenciamos os aniversários
mais tarde. Infelizmente, como sugere esse exemplo, essa ansiedade não é desfeita quando se percebe que era
injustificada, e o prazer antecipado pode ser completamente destruído quando o acontecimento vai contra a expectativa.
Em seus dias especiais, uma criança sente-se mais viva e mais ela mesma do que na maior parte das outras ocasiões, uma
experiência que beneficia todo mundo. Os aniversários das crianças são dias de comemoração muito especiais para elas,
assegurando-lhes que sua chegada a esse mundo, o ter-se agregado a sua família foi de fato um acontecimento feliz para
seus pais. Não é de admirar que necessitem sentir-se muito especiais nesse dia. Sempre que não se torna motivo de uma
festa, a criança sofre. Menciono sucintamente apenas dois exemplos. Um menino nascido no dia 21 de dezembro
ressentiu-se durante toda a sua vida de que seus pais, para evitarem duas comemorações muito próximas, juntassem as
duas no dia de Natal. Outro menino nascido no dia de Natal podia ter-se sentido muito privilegiado com isso, mas, ao
contrário, sentiu-se agudamente deprimido porque, ao invés de ter duas comemorações especiais, vivendo duas vezes no
ano o fato de ser importante para seus pais, tinha apenas uma. No primeiro caso, teria sido muito fácil comemorar o
aniversário do menino no dia 21 de dezembro e o fato de isso causar tantos problemas para seus pais era interpretado
corretamente por ele como indicativo de que parecia não valer a pena colocar-se à disposição dele duas vezes num espaço
de poucos dias. As coisas eram mais difíceis para a criança nascida no dia de, Natal, mas, com alguma engenhosidade,
eles também poderiam ter encontrado uma solução.
Poderiam ter comemorado o dia de seu nome, por exemplo, um dia que tem enorme valor em algumas outras culturas.
Nesse caso, também, temos o exemplo do aniversário do rei ou da rainha da Inglaterra; que é oficialmente comemorado
em um ‘dia diferente daquele em que ele óu ela nasceram. Assim, teria sido possível designar algum dia em que, se não o
aniversário da criança, a criança propriamente dita fosse uma ocasião especial. As crianças gostam muito quando, apenas
para se divertir, transfotma-se um outro dia em um feriado substituto ou um feriado a mais. Assim, por exemplo, um
“Natal em julho” lembra àquelas crianças cujos pais fazem dele uma festa os tempos felizes que tinham no Natal; também
ficam impressionadas com o fato de seus
304
pais abandonarem seus afazeres para lhes proporcionarem um acontecimento feliz, quando outros pais não o fazem.
A amargura em relação a feriados estragados ou dos quais fomos de todo privados em alguns casos não fica restrita a uma
época específica do ano, mas pode lançar uma sombra profunda sobre toda uma vida. A irmã mais nova de uma menina
nasceu poucos dias antes do aniversário dela. Assim, para simplificar as coisas, os pais decidiram que ambos os
aniversários seriam comemorados no mesmo dia, ao invés de em dois, com um espaço de apenas uma semana. Os pais
concluíram também que seria melhor para as crianças receberem os presentes mais cedo do que mais tarde e, assim,
acertou-se que os dois aniversários seriam comemorados no dia da criança mais nova. A criança mais velha sentiu-se
terrivelmente enganada porque, conforme disse, estava sendo “roubada” de seu próprio aniversário, e tinha que convidar
seus amigos “no dia do aniversário de minha irmã, para a festa de aniversário dela”. Ela ressentira-se desde o início, da
chegada dessa irmã mais nova, que a tinha privado de ser a única criança na família e agora se vingava dela, odiando-a, já
que tinha que dividir seu aniversário com ela. Sua impressão é que não tinha um aniversário verdadeiro. Para ela, isso era
prova de que seus pais só se preocupavam com sua irmã. Em conseqüência. não conseguia desfrutar de seus presentes,
embora fosse racional o suficiente para perceber que eram tão bons quanto os que a irmã recebia.
Quando se tornou um pouco mais velha, ela recusava-se a convidar qualquer pessoa para a comemoração do que, para ela,
não era seu aniversário, mas o de sua irmã. Não sei como a menina mais nova reagiu a ter que dividir seu aniversário e sua
festa com sua irmã mais velha, mas a mais velha jamais perdoou seus pais por ter sido privada de sua data em nome da
conveniência deles. Com raiva e deprimida, observou: “Ganhei meus presentes no aniversário da minha irmã.” Mesmo
depois de completamente adulta, essa mulher não conseguia superar seu ressentimento em relação à irmã, embora
soubesse que ela não era responsável por essa combinação de aniversários. Mas o acontecimento, para ela, era uma
demonstração de que seus pais não a reconheciam como uma pessoa com seus próprios direitos. Atribuía a isso seus
sentimentos sempre presentes de inferioridade e carência que só começaram a melhorar, em alguma medida, quando ela
pôde providenciar lindas festas de aniversários para seus próprios filhos.
Esse último caso, é um exemplo das conseqüéncias positivas que comemorar o mesmo acontecimento com nossos filhos
pode ter para as reações de aniversário. A mulher que entrava em depressão todo Dia de Ação de Graças conseguiu voltar
a se sentir animada quando começou a preparar um Dia de Ação de Graças especialmente bonito para seus filhos. Conheci
muitas crianças judias que sofriam de depressão por volta do Natal porque não o celebravam, mas que melhoraram muito
quando começaram a fazer belas festas de Natal para seus filhos. Isso as ajudava, embora não as tivesse ajudado na
infância que seus pais comemorassem o Hanukkah. Parte da razão disso é que, apesar de ambos serem feriados religiosos
em que as crianças recebem presentes, o Natal simbolicamente comemora o nascimento dc uma criança e, assim, exalta o
nascimento e, em conseqüência, a infância, enquanto o Hanukkah não. A outra parte é que o Natal é comemorado em
todo o mundo e seu espírito festivo permeia toda a vida. Assim, tornar a vivenciar com nossos filhos um acontecimento
infeliz de nossa infância
30S
pode corrigir e melhorar consideravelmente os efeitos posteriores das experiências infantis desagradáveis.
Infelizmente, essas experiências emocionais corretivas nem sempre são possíveis. A literatura nos oferece vários exemplos
& pessoas que tinham reações de aniversário muito graves perto da época do ano em que tinham perdido um dos pais na
infância. Quando seu próprio filho — ou o filho preferido ou o do mesmo sexo — chegou à idade em que elas tinham perdido
o próprio pai, o adulto infeliz, lembrou-se dele próprio quando tinha a mesma idade, e a partir do comportamento e do
estado de espírito do filho, caiu em depressão profunda, quase suicida, ou sofreu uma ruptura esquizofrênica. Nos casos
desses pais, reexperimentar, por tabela, através de seu filho, o que se passou com eles quando tinham essa idade reativou
um trauma psicológico que nao foram capazes de enfrentar na ocasião em que aconteceu. Perceber isso agora aumentou,
de modo extremamente prejudicial, a gravidade da reação de aniversário. Assim, as reações de aniversário podem ser
exacerbadas, mitigadas ou inteiramente suplantadas. Tudo depende de como o acontecimento que provocou a angústia é
revivido. Infelizmente, rei’iver algumas vezes por tabeLa, através de nossos filhos, experiências que foram assoladoras
para o pai pode aumentar seu impacto destrutivo.
Tudo isso é apenas um exemplo a mais de como as crianças, por sua simples existência e por viver em proximidade
emocional com os pais, podem exercer uma influência de grande alcance tanto positiva quanto negativa sobre eles, e de
como os pais invariavelmente têm um impacto até mesmo maior sobre as vidas de seus filhos, para o bem e para o mal.
Seríamos sensatos, então, se providenciássemos bons dias especiais para nossos filhos e também desfrutássemos deles ao
máximo, uma vez que, conforme foi sugerido, esses acontecimentos felizes podem cmpensar, em grau acentuado as
privações que sofremos no passado.
306
AS CRIANÇAS SOFREM MUITO se são privadas dos poucos dias especiais que lhes são dedicados e
perdem muito da sua alegria de viver se esses dias têm sua importância reduzida. Para a maioria das crianças,
na nossa cultura, além das cerimônias de formatura e religiosas, tais como a crisma, apenas os aniversários e o
Natal permanecem sendQ os dias do ano genuinamente dedicados a elas. Embora o nascimento de Cristo
tenha um profundo significado religioso para aqueles que acreditam no Cristianismo, somente Papai Noel
atende às crianças de um modo que nenhum outro “espírito de doação” amorfo poderia fazê-lo. A troca de
presentes como um símbolo ou prova de amor e boa vontade pode ocorrer a qualquer tempo e lugar, e é, com
toda ceteza, parte do Natal. Mas nenhuma criança acredita que Papai Noel traga presentes para seus pais, e a
maioria delas os acharia tolos se colocassem as suas meias na lareira para que Papai Notel as enchesse. De
maneira análoga, o Natal como o dia em que o Salvador do mundo nasceu é um dia de abstinência a ser
celebrado por todos, menos por um gordo e alegre Papai Noel que traz presentes para as crianças, descendo
pela chaminé, e os coloca na árvore. Eis a razão pela qual as crianças que podem acreditar em Papai Noel e
desfrutar dessa crença à vontade sentem o Natal como um momento de grande alegria pessoal, muito mais do
que aqueles para quem se tratava principalmente de uma prática religiosa; e são capazes mais tarde, como
pais, de fazer um Natal feliz para os seus filhos, pelo fato de que o calor de sentimentos antigos ainda está
presente.
Todas as festas adquirem o seu significado mais profundo através das conotações mágicas. Se tiramos da festa
a mágica que tem para a criança, ela perde muito do seu significado simbólico e inconsciente; com essa perda,
a festa também se despe dos efeitos tranqüilizadores e benéficos que poderia exercer pelo resto da vida de
uma criança.
307
Além disso, despir a festa de sua magia não representa nenhuma proteção contra as conseqüências devastadoras das
lembranças infelizes que o dia possa ter deixado. A racionalidade prematura, como todas as outras experiências do gênero,
deixa-nos pobremente equipados para lidar com as excentricidades e vicissitudes da vida posterior.
Os pais de um inteligente menino de seis anos de idade decidiram que já era tempo de contar-lhe que Papai Noel era
apenas uma ficção. Assim, no momento adequado durante a celebração do Natal, quando Papai Noel fez a sua esperada
aparição, deixou-se claro para a criança que Papai Noel era uma pessoa que ele conhecia bem. Diante disto, a criança
começou a gritar amargamente: “Por que o verdadeiro Papai Noel não vem a mim?” Os pais, em sua racionalidade,
ficaram pasmos. Eles não perceberam que seu filho, estando ainda em uma idade em que as crianças precisam apoiars na
fantasia para poderem enfrentar a vida, não conseguia acreditar nas suas explicaçõe’s racionais, tendo-se sentido muito
impotente ao ver que justamente ele, de todas as crianças, não tinha recebido a visita da “verdadeira” figura mágica.
Nenhuma garantia de que outras criança não tinham sido visitadas pelo “verdadeiro” Papai Noel foi capaz de demovê-lo
de suta convicção de que só ele tinha sido escolhido para ser rejeitado por Papai Noel. Quando lhe disseram que o Papai
Noel que visitou Outras crianças era ‘um Papai Noel igual ao seu tio João, o menino logicamente respondeu: “O tio João
não pode visitar todas as crianças!” — um reflexo da inteligência e, para a sua idade, sólido raciocínio lógico do menino.
Isso refletiu, também, o seu deséjo de querer continuar a acreditar emPapai Noel, independentemente do que seus pais lhe
dissessem, mesmo sabendo muito bem que Papai Noel era o tio vestido com uma roupa vermelha. Quando disseram então
ao menino que os seus próprios tios e amigos da família visitavam as outras crianças, ele ainda insistiu: “Mas paralgumas
crianças o verdadeiro Papai Noel aparece!”.
Para que não se pense que este menino era particularmente teimoso, é ‘preciso que se saiba que ele estava sempre disposto
a ouvir a razão, a não ser quando estava muito envolvido emocionalmente com a questão. Nesse aspecto, no era muito
diferente do restante das pessoas. Como era muito inteligente e sensível, ao lhe darem liberdade para falar abertamente ele
o fez. Muitas crianças pensam como ele, mas não se atrevem a falar dos desejos secretos do seu coração, pois estão
convehcidas de que seus pais não terão consideração com elas. Muitas crianças sofrem absurdamente porque o
“verdadeiro” Papai Noel não aparece para elas, mis guardam essa dor, culpando secretamente seus pais. Elas pensam que,
por alguma razão, as coisas boas da vida, como o “verdadeiro” Papai Noel, estão passando ao largo e temem que seja essa
a sua sorte na vida.
Uma criança de cinco anos tentou, de maneira diferente, manter a figura mágica viva em sua mente, apesar do esforço
envidado por seus pais no sentido de fazê-la aceitar uma visão prematura e racional do que é de fato o Natal. Na verdade,
esses pais queriam que o seu filho de cinco anos celebrasse o Natal com a mesma visão que eles tinham — como se os
sentimentos de uma criança dessa idade e dos seus pais a respeito de festas pudessem ser idênticos.
A mãe dessa criança decidiu contar-lhe que Papai Noel não existia porque julgou que ele devia saber a “verdade”. Ela
disse-lhe que Papai Noel não era real, apenas uma história que as pessoas contam às crianças. Prosseguiu. então, falando
sobre o “espírito
308
de doação”, que afirmou ser simbolizado pela figura de Papai Noel. O menino pareceu aceitar essa
explicação. Mas pouco tempo depois, perguntou: “O que aconteceria se o fogo da lareira estivesse aceso
quando Papai Noel descesse pela chaminé?” Isso não fez sentido algum para sua mãe, porque a casa sequer
tinha uma chaminé. Ela respondeu dizendo-lhe que não se preocupasse porque tudo não passava de uma
história. Mas à noite o menino acordou e perguntou com tristeza na voz: “Papai Noel existe?” A essa altura, a
mãe já não sabia em que seu filho acreditava: se Papai Noel era real, como sugeria a sua pergunta no meio da
noite, ou se se tratava apenas de uma história, o que ele parecia ter aceitado durante o dia quando ela lhe
contou.
O fato de o menino acordar e perguntar se Papai Noel existia demonstrou que ele não tinha sido capaz de
aceitar a explicação racional que a mãe lhe dera de que não havia nenhum Papai Noel, o mesmo acontecendo
com a sua preocupação sobre o que aconteceria se a lareira estivesse acesa quando Papai Noel descesse. A
mãe ficou confusa com o fato de seu filho estar preocupado com o fogo de uma lareira que não existia, porque
ela não era capaz de ver o mundo como ele o via. Achou que a preocupação do filho com fogos e lareiras não
fazia o menor sentido, mas para ele fazia todo o sentido do mundo, porque o menino acreditava em Papai
Noel e sabia que ele desce pela chaminé. A mãe, ao ver o filho assim tão confuso, começou a questionar-se se
de fato havia agido certo ao contar-lhe que Papai Noel não existia.
Ela estava disposta a aceitar as fantasias do filho, mas lamentavelmente para ambos só até um certo ponto.
Hesitava se devia acompanhá-lo na sua crença em Papai Noel, mas definitivamente não se sentia capaz de
aceitar sua convicção de que ele desceria por uma chaminé que não existia. Como Papai Noel era real para
seu filho e como ele desce pela chaminé, a lógica da criança concluiu que ele viria pela chaminé, existisse ela
ou não na casa.
Afinal de contas, por que é que espíritos mágicosseriam detidos por um obstáculo fisico interposto em seu
caminho? A partir do momento em que acreditamos que a realidade pode limitar o espírito, não acreditamos
mais neste último. Se uma criança acredita em Papai Noel, deve acreditar que ele desce pela chaminé, mesmo
que não haja nenhuma. Entender essa lógica é difícil se nós a abordamos com a nossa mente racional adulta,
mas para a criança ela faz todo o sentido; e fez para nós quando éramos crianças, embora tenhamos acabado
por esquecê-la devido ao nosso desejo adulto de nos vermos de forma mais racional do que somos
verdadeiramente.
É difícil imaginar como se pode pretender que uma criança de cinco anos de idade acredite na realidade do
“espírito de doação”, mas não em Papai Noel, que é um espírito muito mais visível e tangível! Por motivos
próprios, esta mãe queria que seu filho entendesse o Natal da mesma forma que ela. Mas, que sentido tem
éelebrar uma festa infantil se as crianças têm que percebê-la a partir do nosso ponto de vista de adultos? Por
que, então, devemos nos preocupar em ter festas infantis? O dilema dessa mãe era o de querer que seu filho
aceitasse o seu conceito de realidade; a dificuldade dele era a relutância da mãe em aceitar a validade da sua
visão da realidade.
A mãe admitiu que tudo o que ela queria era que seu filho fosse feliz. Ela contoulhe que Papai Noel não
existia porque não queria mentir-lhe e porque temia que as outras crianças achassem que ele era um bebê por
acreditar ainda na existência de Papai Noel. Mas, na verdade, ela desejava que ele fosse mais maduro
intelectual e emocio
309
nalmente do que ele podia ser, uma vez que queria que ele substituísse Papai Noel por um espírito de doação.
Renunciando assim a um símbolo infantil por uma idéia abstrata.
Essas sínteses mentais não podem jamais tomar o lugar das satisfações emocionais trazidas pela crença em uma figura
mágica que traz presentes para todas as crianças. O que essa mãe queria dizer com “espírito de doação” e o que o seu filho
queria dizer com Papai Noel não eram, nem de longe, a mesma coisa. Ela queria que ele substituísse sua crença em Papai
Noel por uma apreciação do espírito de doação; gostaria que ele entendesse o Natal na forma madura do trocar presentes e
votos de felicidades. Mas uma festa que celebra o espírito de doação requer que todos participem do ato de doar; a
criança, também, teria que tornar-se uma pessoa dadivosa. Talvez Papai Noel, ou quem o inventou, entendesse melhor a
natureza das necessidades infantis. De acordo com a história, Papai Noel trabalha o ano inteiro no Pólo Norte a fim de
preparar os presentes para as crianças. Ele é um duende generoso que não quer receber nada em troca, razão pela qual vem
no meio da noite e permanece invisível, embora o visualizemos tão bem. Nós, assim como nossos filhos, sabemos que há
uma grande diferença entre receber presentes de algum espírito que não quer qualquer retribuição pelos seus esforços e
receber presentes de amigos e parentes, que esperam, no mínimo, gratidão.
A prematura desilusão em relação a Papai Noel pode fazer com que uma pessoa veja o Natal de uma forma racional por
toda a vida, sem aquelas sugestões emocionais que apenas as antigas lembranças de experiências de infância podem dar
aos nossos objetivos de adultos, O Natal que esse pai pode então preparar para seus próprios filhos pode falar apenas à
mente deles, tanto quanto a doação é motivada apenas pela sua. Isso deixa as necessidades irracionais do coração de uma
criança não só insatisfeitas, mas adormecidas; nenhum “espírito de doação” abstrato pode igualar-se à imagem de Papai
Noel descendo pela chaminé, que as crianças, de qualquer modo, vêem estampada à sua volta durante as festas de final de
ano.
As crianças pequenas só conseguem compreender conceitos abstratos sob formas concretas; para elas, Papai Noel é o
espírito de doação. Piaget deu um exemplo revelador de como se desenvolve o conceito de realidade da criança e do
quanto elu é diferente do dos adultos. Caminhando com seu filho pequeno no jardim atrás dâ casa, Piaget perguntou-lhe:
“Onde está o papai?” Diante disso, o filho apontou parâ a janela do estúdio de Piaget e disse: “Lá em cima.” Ele estava
numa idade em que sua segurança dependia de “saber” que seu pai residia em seu estúdio. Tivesse Piaget tentado
convencer seu filho, nesse estágio de seu desenvolvimento mental, de que seu pai não podia estar em dois lugares ao
mesmo tempo, não teria aumentado o entendimento da criança sobre a realidade, mas o teria levado a ficar confuso e
inseguro a respeito dela. Saber que seu pai morava no estúdio dava ao menino segurança no mundo, enquanto que dizer-
lhe que seu pai não podia estar no estúdio naquele momento, uma vez que estava lá no jardim, teria chocado o menino a
ponto de ele acreditar que não sabia nada ao certo.
A história de Piaget ilustra como, na realidade das crianças pequenas, o pai fisicamente e o espírito do pai podem ter
existência independente; e como, longe de prejudicar uma à Outra, SãO mutuamente enriquecedoras. Para a criança
pequena, as figuras
310
importantes existem em muitos lugares ao mesmo tempo, não só sob a forma tisica como espiritual. Essa é a
razão pela qual os pais acham difícil entender por que uma criança não é perturbada pelas muitas figuras de
Papai Noel que aparecem em todos os lugares no Natal e que ela adora, não importa quão vulgares possam
nos parecer. A razão é que a criança começou embora ainda não tenha completado seu desenvolvimento a
— —
separar as idéias abstratas de seu invólucro físico, como o filho de Piaget separou a idéia do pai que está
trabalhando sério no estúdio daquele que está brincando com ele no jardim. Para os adultos, o Papai Noel de
rua pode destruir toda a beleza e mistério do Natal. Para as crianças, são uma afirmação da realidade e da
onipresença do mistério. A observação de Piaget mostra também como uma criança pequena pode acreditar
que um único Papai Noel seja capaz de trazer presentes para todas as crianças, em todo o mundo, na mesma
hora.
Mesmo as experiências drásticas não conseguem sacudir o desejo ou a necessidade de uma criança de
acreditar em Papai Noel, se ela ainda não estiver pronta a trocar sua imagem amistosa pela realidade fria. Isso
foi ilustrado pela experiência de uma mãe judia com seu filho de cinco anos. Uma vez que a família era judia,
não havia conversa sobre Papai Noel ou sobre Natal em casa, mas o menino tinha sido exposto a essas
situações na escola e através da televisão. Enquanto sua mãe estava ocupada com as compras em um
shopping center, o menino sentiu-se entediado. Ela então lhe disse que fosse dar uma olhada nas coisas e que
voltasse para encontrá-la em um determinado lugar, quando estivesse pronto. Para sua surpresa, o menino
voltou pouco depois e disse: “Fui ver Papai NoeL” A mãe perguntou-lhe o que tinha dito a Papai Noel.
“Perguntei a Papai Noel corno é que ele sabe quais as crianças que são judias e quais as que são cristãs e que
tipo de presente ele ia trazer para as crianças cristãs.” E acrescentou depois: “Sabe, mamãe, Papai Noel ficou
todo confuso.” Embora sua família não comemorasse o Natal, esse menino ainda assim tinha certeza de que
havia um Papai Noel, que aparecia apenas para as crianças cristãs. Felizmente, essa mãe não teve coragem de
dizer-lhe qualquer coisa diferente.
Existe uma razão para o mito de Papai Noel ter sido tão prontamente aceito quando se tornou ligado ao Natal,
que era a princípio um feriado religioso universal, e não um feriado infantil especial. Apenas com Papai Noel,
o Natal tornou-se verdadeiramente um feriado infantil, uma vez que acreditar nele é a única maneira que
algumas crianças encontram para se permitirem apreciar seus presentes. Há muitas crianças que acham que
não merecem receber presentes de seus pais, por conta da forma como se comportaram ou de pensamentos
negativos que tiveram a seu respeito. Existem muitas outras crianças que sentem que ganhar presentes dos
pais ou parentes as faz devedoras dessas pessoas, como se lhe tivessem que ser gratas, mesmo que não
tivessem vontade. Mas as crianças sabem que não abrigaram quaisquer pensamentosnegativos em relação a
Papai Noel e que ele não espera gratidão; assim, podem aceitar presentes dele sem ambivalência.
Os presentes recebidos dos pais são maculados por sentimentos relacionados a eles. Eis por que as crianças
podem ter sentimentos ambivalentes sobre tais presentes,
311
e são incapazes de desfrutar deles completamente, ou sentem-se culpadas quando brincam com eles. Algumas
crianças chegam a rejeitar os presentes que os pais lhes dão e. se não for o presente certo, acreditam que isso
demonstra que seus pais não se empenham o bastante para informar-se melhor. Mas nenhuma criança rejeita
os presentes de Papai Noel ou sente-se mbivalente a respeito dele. Mesmo que um presente trazko por Papai
Noel não seja exatamente o esperado, o fato de Papai Noel ter cometido un erro e de que não estivesse mais
bem informado não se refletirá sobre os pais.
Talvez fazer o Natal para nossos filhos e divertir-nos com sua crença em Papai Noel fosse mais fácil quando a
festa não era tão produzida. O comércio insistente ele vou as expectativas das crianças a tal pónto que a
realidade muitas vezes deixa de concretizar suas esperanças e isso frustra igualmente o pai e o filho. A
ostentação do Natal seduz os pais a fazer mais por seus filhos do que efetivamente podem, tanto psicológica
quanto economicamente. Além disso, uma vez que os pais tentam fazer do Natal um acontecimento cada vez
mais maravilhoso para as crianças, tornou-se cada vez mais difícil para eles renunciar a receber o
reconhecimento dbs filhos por seus esforços. Quando os presentes eram modestos, era fácil para os pais
fingirem que eles vinham de Papai Noel; mas, quando se gasta tanto dinheiro e esforço, os pais, a despeito de
suas ótimas intenções, desejam o reconhecimento e a gratidão do filho. Esse desejo incõnsciente da parte dos
pais de reconhecimento e possivelmente também de gratidão só colabora para que a criança tenha cada vez
mais vontade de acreditar em Papai Noel, o que faz então com que os pais e filhos tenham objetivos opostos.
É claro que todas as crianças sabem que os pais têm uma participação importante nos preparativos do Natal,
já que vêem toda a comida e os assados sendo feitos e outros preparativos para a festa acontecendo em suas
casas. O que pode transformar o Natal em uma festividade tão encantadora é exatamente essa mistura de
ficção e realidade, que acrescenta a ambas. Se a criançavai ou não viver isso dessa maneira depende
inteiramente do espírito com que os pais se preparam para a realidade da festa e seu significado mágico. Para
que a festa seja totalmente significativa para a criança, tanto a fantasia quanto a realidade devem estar
presentes.
As crianças estão tão perspicazmente afinadas com o significado mais profundo do Natal que, quanto mais
nós, adultos, nos envolvemos nessa realidade, mais a fantasia da criança será provocada e satisfeita. O mais
significativo é a árvore; qualquer pai que tenha trazido a árvore de Natal para casa junto com os filhos pôde
observar essa transformação realmente mágica (porque baseada nas crenças mágicas da criança) de um
pinheiro verdadeiro na realização de um sonho cheio de desejos, quando a criança pela primeira vez observa a
árvore decorada em todo o seu esplendor de brilho e luz. Essa é a razão pela qual a árvore de Natal é tão
inquestionavelmente aceita como o símbolo adequado: é obviamente uma árvore verdadeira e, no entanto, é
tão claramente aquilo que nenhuma árvore verdadeira jamais poderá ser. Os pais transformaram a realidade
cotidiana dos filhos em um pais de maravilhas. Como mencionamos anteriormente, o presente que o pai faz
com suas próprias mãos também é algo muito especial. Não há boneca comprada em loja que se compare a
uma costurada para a criança. Blocos de madeira feitos em casa são transformados em um objeto de fantasia;
esses blocos formam o próprio castelo da criança; a boneca feita em casa torna-se o próprio bebê da criança.
312
A verdadeira maravilha do Natal, além de seu significado religioso, é o milagre que acontece na mente da criança, que lhe
permite transformar o tênue disfarce que esconde seu pai atrás da imagem de Papai Noel em uma promessa de um mundo
benigno e gratificante. Para a criança, além de todos os outros significados simbólicos, Papai Noel representa não só a
generosidade de seus pais, mas a boa vontade do mundo inteiro. Essa boa vontade não pode ser garantida por um certo
número de preséntes ou por sua natureza esmerada, mas é indicada pela disponibilidade dos pais de criar para seu filho,
uma vez por ano, um mundo que está de acordo com seu pensamento mágico e cheio de desejos. A presença de Papai
Noel, esse símbolo de boa vontade e devoção à felicidade das crianças, dá maior segurança a uma criança do que qualquer
quantidade de presentes que os pais possam dar usando sua própria identidade.
Em nossa sociedade, Papai Noel representa, de muitas maneiras, o último resíduo de uma crença antiga em uma época de
ouro quando tudo nos era doado, sem que fosse esperado que fizéssemos qualquer coisa para merecer tanto ou que
déssemos alguma coisa em troca. Esse mito, obviamente, é uma projeção do mundo do bebê. A barriga grande de Papai
Noel parece grávida de todas as coisas que ele vai distribuir e, nesse sentido, simboliza a existência uterina feliz: A
despeito de nos transformarmos em adultos racionais, é espantoso constatar a que nível continuamos cativados por essa
antiga imagem de uma existência abençoada — uma época de ouro que a realidade se encarrega de destroçar quando
percebemos que não somos presenteados infinitamente, mas apenas pelos pais cuja capacidade nesse sentido é bastante
limitada.
As crianças estão muito agudamente conscientes das limitações dos pais e da realidade a cada dia do ano. Assim, têm
todas as razões para quererem acreditar que pelo menos uma vez no ano o reino das fadas — ou o paraíso da vida infantil —
pode ser reconquistado, pelo menos no faz-de-conta, por algumas horas. Essas experiências são muito tranqüilizadoras
para a criança, porque demonstram que a época de ouro não está perdida para sempre. Isso lhes dá forças para continuar,
apesar das dificuldades do presente, e mantém sua esperança no futuro. A insistência paterna de que esse sonho não tem
base real, nem mesmo sob a forma de uma volta de Papai Noel uma vez por ano, transforma o mundo em um lugar
bastante inamistoso.
Uma criança de 10 anos disse, quando se discutia sobre Papai Noel: “Eu sei que não existe nem Papai Noel e nem a Fada
que coloca uma moeda debaixo do meu travesseiro.” E então sucumbiu, soluçando: “Eu odeio a realidade.” Sua raiva da
realidade era conseqüência de ser forçada muito cedo a desistir de suas fantasias cheias de desejos. Longe de trazê-la mais
perto de uma compreensão sadia da realidade, como pretendiam seus pais, suas explicações racionais alienaram-na dela,
porque, sem o alívio de alguma fantasia, certos acontecimentos ou rituais especialmente satisfatórios, a realidade não
suavizada torna-se simplesmente insuportável demais para os jovens — e para muitos não tão jovens. A crença na magia e o
uso do pensamento mágico para conter a ansiedade (como a crença em um anjo da guarda ou em fadas bondosas) e
também para reacender e manter a esperança na chegada de boas coisas (crença em Papai Noel e no Coelho da Páscoa)
são necessários ao jovem para ajudá-lo a dominar o restante da realidade. Normalmente, a necessidade de mágica desse
tipo é maior durante seis anos — em geral entre as idades de quato a 10 anos, mais ou menos — exatamente a época em
313
que a criança tem que aprender a enfrentar o mundo real. O pensamento mágico eventualmente entra em
declínio, mas em um desenvolvimento normal isso não deve acontecer antes do primeiro grau. Quando a
racionalidade precoce é forçada, a necessidade de pensai de forma mágica pode ser reprimida. Ela não
desapareceu, contudo; apenas fica enclausurada, com força total, no inconsciente. Quando é reprimido dessa
forma, o pensamento mágico deixa de passar pelo processo normal de desintegração lenta sob o impacto cada
vez mais forte do pensamento racional. Pode, então, afirmar-se com plenos poderes na adolescência, quando a
criança se livra do domínio paterno. As crianças que foram informadas muito cedo de que não havia Papai
Noel, que foram criadas não com contos de fada, mas com histórias realistas, muitas vezes chegam à
universidade acreditando em astrologia, confiando no! Cbing para fornecer respostas aos problemas da vida,
ou estudando o baralho de tarô para predizer o futuro. O adolescente que se engaja dessa forma no
pensamento mágico tenta compensar o que o forçaram a perder com tão pouca idade.
Via de regra, o pensamento mágico é gradualmente abandonado à medida que a ampliação da experiência da
criança com a realidade predomina e ela torna-se mais apta a competir. Chega um tempo em que a criança não
acreditará na realidade de Papai Noel, independentemente do que o pai diga, embora Papai Noel possa, então,
transformar-se em um agradável jogo de faz-de-conta não só para os pais como para os filhos, no qual eles
recriam temporariamente um mundo infantil de fantasia de que ambos gostam, cada um no seu nível. Mas
essa alegria profunda com a fantasia de Papai Noel só é possível se Papai Noel tiver sido um dia de fato uma
realidade para a criança e se ela não foi levada a aceitar prematuramente a opinião de um adulto a respeito
dessas fantasias.
Assim, se quisermos ajudar nossos filhos a ter uma compreensão sadia da realidade e capacidade para
enfrentá-la, devemos não só lhes proporcionar a oportunidade de manter suas fantasias por algum tempo, mas
transformar essas fantasias em realidade para eles em momentos significativos. Essa é a função importante
que as festas têm para a organização psíquica das crianças: fortalecê-las para as tarefas da vida.
314
29
O “Verdadeiro” Papai Noel, o CoelHinho
da Páscoa e o Diabo
Acima de qualquer coisa; ele odiava o sermão,
O “siogan” e apropaganda..
...A árvore de Natal,
O ovo de Páscoa o batismo, observou
— KARLJAY SHAPIRO.
UNS POUCOS PRESENTES podem, na realidade, ser mais satisfatórios que uma superabundância isto é, —
caso o comércio em torno do Natal e a ubiqüidade das propagandas de televisão não tenham elevado a
expectativa da criança acima de qualquer medida. Dar alguns presentes elimina a ainbivalência que qualquer
criança pode sentir a respeito de dar e receber (conforme discutido anteriormente). Essa questão é evidenciada
no feriado infantil celebrado em muitos países europeus, inclusive a Holanda, de onde foi trazido para Nova
Amsterdã e daí para o Novo Mundo:
o Dia de São Nicolau. Nesse dia, 6 de dezembro, as crianças recebem poucos presentes e de pequeno valor, de
maneira a permitir que até o pai mais pobre possa também participar do espírito e da comemoração do
feriado, e nenhuma criança precise sentir-se culpada ao receber, mesmo que ela acredite ter sido má e não
merecedora.
Embora esse feriado não seja celebrado nos Estados Unidos, discuti-lo aqui pode ajudar a compreender
melhor a imagem de Papai Noel e o que ela representa para o subconsciente de uma criança. Papai Noel fala
diretamente a algumas das nossas emoções mais importantes e é através dessa imagem que podemos ter um
acesso melhor à totalidade do significado que o Natal tem hoje para as crianças
Por um longo tempo, bem antes de celebrarmos o Natal como o fazemos hoje, São Nicolau era o mais
venerado e celebrado, o santo mais popular não só na igreja ocidental como na oriental. Durante os muitos
séculos em que o Natal permaneceu uma festa estritamente religiosa, o Dia de São Nicolau era,
provavelmente, o feriado secular mais conhecido.
No que concerne especfficamente ao santo, os registros indicam a provável existência de dois bispos sagrados
com esse nome em Mira, uma antiga cidade da Lycia, na Asia Menor, O primeiro supõe-se ter vivido no
século III ou IV; atribui-se a ele a realização de diversos milagres, mas nada se sabe de concreto, nem mesmo
se existiu verdadeiramente. A evidência sugere mais fortemente que um outro bispo dâ.Mira, chamado
315
Nicolau, viveu no Século VI, mas sobre ele, também, pouco se sabe com certeza. Os dois fundiram-se em um único São
Nicolau de Mira, e muitos e variados milagres lhe são atribuídos. O santo ficou sendo tão venerado que, já no Século XI,
expedições eram enviadas a Mira — que nessa época já havia sido destruída — para protegerem as suas relíquias; uma igreja
em Bari, na Itália, foi fundada em 1087 para receber algumas delas; sua importância é evidenciada pelo fato de ter-se
tornado uma das quatro igrejas palatinas da Apúlia. Desde então, muitas igrejas grandes e pequenas têm sido dedicadas a
esse santo pela Europa inteira, sendo o seu dia de festa ampla e largamente celebrado.
Alguns dos diversos feitos milagrosos atribuídos a São Nicolau são pertinentes a nossa discussão. Ele salvou muitas
crianças de perigos mortais, ressuscitou outras, e assim tomou-se o seu santo padroeiro. Tendo herdado grande fortuna,
distribuiu-a em uma ocasião a três virtuosas jovens solteiras, que não podiam casar-se por falta de dotes. Conta a lenda
que ele deixou cair três sacos de ouro, um para cada uma das jovens, enquanto elas dormiam, de maneira que não
soubessem a origem desses presentes. Este aspecto da história desse santo — o de ter escolhido permanecer anônimo ao
depositaros seus presentes no meio da noite enquanto todos dormiam — tornou-se um importante elemento no papel
desempenhado por Papai Noel.
São Nicolau era o santo padroeiro não apenas das crianças, a quem ele protegia e salvava, mas também da paternidade e
da fertilidade humana. Este aspecto remonta provavelmente a cultos pagãos mais antigos sobre a fertilidade, alguns traços
dos quais são atribuídos a esse santo. Enquanto padroeiro da família e da fertilidade, São Nicolau era invocado por casais
que desejavam ter filhos, em particular pelas mulheres que queriam muito ser mães. Da mesma forma, as virgens que
precisavam de dotes dedicavam-lhe as suas preces. Sua propensão a ajudar mulheres a engravidar era tão conhecida que,
nas regiões alpinas, dizer que uma mulher tinha rezado para São Nicolau equivalia a dizer que estava esperando uma
criança. Mencionar que Santo Klos — que é o nome de São Nicolau em alguns dialetos e que pode perfeitamente ter sido a
origem da sua popularidade como Santa Claus — tinha visitado uma família significava que naquela família havia nascido
um.i criança.
Em algumas partes da Suíça, não se dizia que a cegonha trazia as crianças e sim Smichlaus, o que em outro dialeto
significa São Nicolau. Na Bretanha, as mulheres que queriam ter filhos iam visitar uma capela dedicada ao santo, onde
havia uma imagem dele que pendia do teto susteitada por uma corda. Supostamente, quando esfregavam essa estatueta
contra o corpo e rezavam para São Nicolau, elas engravidavam; este é um exemplo de como os costumes pagãos sobre
fertilidade entraram nos rituais centrados nesse santo. Assim, desde o Século XI, o culto a São Nicolau relacionava-se
diretamente à gravidez e à fertilidade, ao aparecimento de crianças e de presentes no meio da noite. Em alguns locais,
dizia-se que, no seu dia, o santo montava o seu cavalo branco (ou cinza malhado) e andava pelo meio da noite, sobre os
telhados das casas, deixando cair, dependendo do caso, bebés recém-nascidos ou presentes para as crianças. Eis aqui uma
origem para a lenda de Papai Noel, dirigindo o seu trenó puxado por renas, por cima dos telhados. Nos cortejos que
celebravam o Dia de São Nicolau, a pessoa que o repre. sentava podia usar uma vestimenta de bispo, já que ele o era, ou
em algumas ocasiões o traje de um cardeal; talvez seja esta a origem da roupa vermelha usada por Papai Noel.
Quais são os traços de Papai Noel que podem atrair a atenção do inconsciente de
316
uma criança, sobretudo quando ligados a outros aspectos da celebração do Natal? Muitos elementos evocam respostas
subconscientes, tanto em sua combinação e totalidade, quanto em seus aspectos individuais. Por exemplo, toda criança
gostaria de saber o que a sua chegada significou para os seus pais, e muitos se questionam se foram ou não bem-vindos.
Portanto qualquer celebração que festeje a chegada de uma criança é tranqüilizadora, e é este evento que o Natal
obviameite celebra. A alegria com que o Cristo menino foi recebido neste mundo, não apenas pelos seus pais, mas também
pelos pastores e os três reis magos, é tomada pela criança como um sinal de que o seu nascimento foi um acontecimento
igualmente feliz para os seus pais e ainda para a comunidade maior que a cerca, uma vez que todo mundo celebra o Natal.
O período que antecede o Natal é um momento de feliz expectativa, como o é aquele que antecede a chegada de uma
criança. Todos esperam o feliz momento acontecer. Quando nos preparamos para um nascimento, a casa é rearrumada,
como normalmente acontece antes do Natal. A vinda de Papai Noel no meio da noite é bastante misteriosa assim como o
nascimento de uma criança, que, na maioria das vezes, ocorre também à noite. Papai Noel desce pela chaminé e entra pela
lareira, o que reveste a casa de um carinho revigorador, e a sua enorme barriga assemelha-se à de uma mulher nos últimos
meses de gravidez. Assim como o bebê ao nascer desce através de um canal estreito e escuro e daí emerge para a luz do
mundo, o mesmo acontece com Papai Noel. Uma antiga lenda conta que a cegonha traz os bebês recém-nascidos e os
deixa cair pela chaminé — outra analogia entre Papai Noel e a lenda de São Nicolau. Por último, e nem por isso menos
importante, os pais conhecem a verdade sobre a concepção e o nascimento, mas, como as crianças não devem abê-la,
outra história lhes é contada; da mesma forma, os pais conhecem a verdade sobre Papai Noel, mas contam aos seus filhos
uma outra coisa. Finalmente, tanto o Dia de São Nicolau quanto o Natal, cada um à sua maneira, celebram o renascimento
do ano e a fertilidade. Embora o Dia de São Nicolau não seja vivamente festejado nos Estados Unidos, somente uma
criança muito insensível não responderia, pelo menos em algum nível do seu subconsciente, a todas essas analogias entre
a chegada de Papai Noel e o nascimento de crianças. A combinação desses signfficados simbólicos faz do Natal,
provavelmente, o acontecimento mais importante e feliz na vida de uma criança.
Quando eu era menino, na Áustria, o Dia de São Nicolau era celebrado ali, como em muitos países, praticamente da
mesma maneira pela qual o tinha sido durante muitos séculos, como o é ainda hoje. Nesse dia, dois homens visitam as
casas das crianças. Um veste-se como bispo, fazendo o papel de São Nicolau; o Outro é o seu ajudante e empregado, ou
seu companheiro — uma figura que se veste e se denomina de diversas formas, dependendo dos costumes do lugar. Ele é
freqüentemente chamado de Ruprecht, quando é simplesmente o empregado que carrega uma bolsa cheia de presentes,
mas é mais comum chamá-lo de Black Peter, Krampus ou Grampus, quando traz a cara pintada de preto e representa o
diabo. Nessa ocasião, ele usa uma máscara com chifres, um rabo e até garras, veste-se de preto e carrega um saco ou
algum outro tipo de bolsa. No entanto o saco que o Black Peter carrega não contém presentes — ele está ali para levar as
crianças más. Quase sempre traz consigo correntes que sacode ruidosamente, ameaçando amarrar essas crianças. Embora
essa figura nefasta se comporte e pareça feroz, ela está sob o poder do bondoso bispo São Nicolau que, como sempre,
317
O Natal não é a única festa infantil que celebra simbolicamente o nascimento da criança, a
fertilidade e o renascimento da natureza. O Primeiro de Maio, que quase não é mais
festejado nos Estados Unidos, com a sua dança em volta de um mastro, era também uma
ocasião para celebrações que agradavam particularmente crianças e adolescentes,
318
embora contassem com a participação ativa de toda a comunidade. Era verdadeiramente um dia em que “jovens e adultos
saíam para brincar”. (Hoje o Primeiro de Maio é ainda celebrado pelos socialistas, no sentido antigo da anunciação de um
novo começo.) A outra grande festa que celebra um novo começo é a Páscoa, o dia da Ressurreição, uma festa que celebra
o renascimento. Sem ela, a história do Cristo terminaria com a sua morte na cruz, mas com a Páscoa vem o começo de
uma nova vida, de uma nova era, de nova esperança. Assim como o Natal, a Páscoa era antes uma festa eminentemente
religiosa, mas tornou-se hoje uma importante festa infantil.
Como mostram o seu antigo nome e muitos dos rituais a ela relacionados, a Páscoa também tem profundos significados
simbólicos ligados ao nascimento, renascimento e fecundidade, O nome Páscoa (em inglês easter) deriva do nome da
deusa alemã Ostara, que era a deusa da primavera e da fecundidade, O seu símbolo era o ovo e o seu mensageiro a lebre;
esta foi a origem do ovo e da lebre ou coelhinho da Páscoa. O ovo aparece proeminentemente em mitos sobre a criação,
em todo o mundo, para representar o nascimento, e já no século IV, os ovos estavam ligados ás cerimônias da Páscoa. No
século XII, a Igreja Católica Romana legitimou esta ligação ao introduzir o Benedictio Ovarum, autorizando o uso
excepcional de ovos nos feriados santos da Páscoa. A partir de então, o ovo tem desempenhado um importante papel nos
festejos da Páscoa, desde a competição tradicional de rolar os ovos até a caça dos ovos de Páscoa pelas crianças e o
oferecimento de ovos decorados como presentes especiais. A lebre, e mais adiante. o coelhinho, tornaram-se símbolos
naturais de fertilidade, tendo em vista a rapidez e a abundância com que eles se reproduzem. A primeira referência feita
pelos alemães à lebre e à sua relação com o ovo de Páscoa apareceu em 1572, mas já então era um costume antigo.
Muitos rituais, assim como o senso comum, atestam a relação entre o ovo e o nascimento. Por exemplo, para os ciganos
húngaros, quando uma mulher estava em doloroso trabalho de parto, os amigos vinham visitá-la e um deles derramava um
ovo sobre ela enquanto todos cantavam: “O ovo, o ovo é redondo! e a barriga é redonda/vem criança, com boa
saúde/Deus, Deus te chama!”
Assim, todos os grandes feriados infantis — aniversários (em algumas partes do mundo, o dia que leva o nome da criança),
o Natal, a Páscoa — são dias que comemoram e celebram o nascimento e, dessa forma, garantem à criança que a sua
chegada a esta terra foi um momento feliz, ansiosamente desejado pelos seus pais e pelo mundo. Quanto mais celebrarmos
esta ocasião, mais certeza terá a criança de que ela é amada.
Para conquistar sua segurança emocional, uma criança não precisa apenas ser amada e afagada, mas também sentir que
seus aspectos mais obscuros podem ser aceitos. O ritual do Dia de São Nicolau reconhece o fato de que a criança não pode
ser boa o tempo todo, assim como acontece com alguns costumes,em torno da Páscoa, quando a criança tem espaço para
mostrar as suas tendências egoístas. Em Oxfordshire, Inglaterra, por exemplo, antigamente, durante a semana que precede
a Páscoa, grupos de crianças, meninos e meninas, costumavam ir de casa em casa, extorquindo presentes. Quando, depois
de terem cantado alguma cantiga de Páscoa, não aparecia nenhum presente, elas gritavam: “Eis aqui uma mulher
perversa/que o diabo leve a sua vida/amarrea a uma cadeira/e a mande para o inferno.” As crianças então partiam a
corrente da porta, obstruíam a fechadura com sujeira ou deixavam alguma lembrancinha do seu desagrado em frente à
porta.
319
Um Outro dia que costumava dar lugar à manifestação do lado negativo da ambivalência das crianças era o Primeiro de
Abril, que tinha sido durante algum tempo um feriado dos mais alegres do calendário infantil. Todos os tipos de trapaças
eram aplicadas nos adultos, que deveriam aceitá-las com bom humor. Além disso, havia outros dias semelhantes a este,
dependendo dos costumes locais, tais como o Ano Novo, o Dia dos Namorados, bem como a terça-feira véspera da quarta-
feira de cinzas, que era a ocasião em que se realizavam as brigas de galo, algazarras e rebeliões. Mas o Dia de São Nicolau
era um momento particularmente popular para os jovens liberarem suas atitudes negativas, O Black Peter ou Grampus era
a expressão do sentimento negativo dos adultos com relação às crianças, mas terminada a visita de São Nicolau — ou a
procissão, conlórme o costume —, mais tarde e durante a mesma noite, bandos de meninos e meninas de cara pintada de
preto andavam pelas ruas fazendo barulho, perseguindo quem encontravam, pichando paredes e janelas, numa grande
brincadeira devastadora. Esse comportamento, que devia ser aceito pelos adultos de bom grado, era amplamente
conhecido na Holanda.
Embora nos Estados Unidos nós não tenhamos nenhum feriado infantil centrado na ambivalência de maneira tão clara e
encantadora, costumávamos festejar um, cujos rituais celebravam e descarregavam o componente negativo da
ambivalência da criança quanto ao mundo dos adultos: o Dia das Bruxas. A origem deste feriado remonta a um festival
celta ocorrido no final do verão, relacionado com o retorno do gado vindo das pastagens e a reativação das lareiras nas
casas.
tm tempos mais modernos, no Dia das Bruxas, as crianças podiam expressar o seu ressentimento para com os adultos que
durante o tempo inteiro esperavam de sua parte um comportamento mais civilizado do que o que elas queriam ou podiam
ter. As crianças sentem que os adultos estão sempre querendo que elas se comportem melhor, sejam mais limpas e
arrumadas do que gostam de estar. O Dia das Bruxas era o dia em que elas podiam ameaçar os adultos, da mesma forma
como elas se sentem ameaçadas o ano inteiro, e assustá-los como eles as assustam. Era a única noite em que elas podiam
lambuzar janelas e portas à vontade, dar vazão à raiva de terem tido que se submeter a uma aprendizagem de asseio por
demais rigorosa, revirando os banheiros externos e arrancando cercas, fazendo assim alguma coisa para reagir ao
sentimento de se sentirem presas. Em suma, nessa noite podiam unir-se contra ?o mundo dos adultos, que elas sentiam
estarem unidos o ano inteiro nas suas exigências comuns em relação às crianças.
É evidente que o que fez do Dia das Bruxas uma experiência tão significativa para as crianças é o fato de que os adultos
entravam no espírito da ocasião ao fingirem medo, ao comprarem as ameaças das crianças, ao lhes darem balas e doces
em resposta às suas demandas de “truque ou trato”. Nessa única noite, os adultos tinham que aceitar a necessidade da
criança ser “má” ou “selvagem”; tinham que concordar com suas exigências e comportar-se como se sentissem ameaçados
por elas — uma reversão da vida normal. Essa reversão foi o que fez o Dia das Bruxas ficar tão agradável para as èríanças:
essa grande aceitação por parte do mundo dos adultos de que as crianças também têm o direito de se compensar — um
direito de expressar os seus sentimentos negativos. Qualquer um que não entrasse no espírito da festa e não se engajasse
nas travessuras
320
das crianças era um desmancha-prazeres igual àqueles que desmentiam a existêtFicia de Papai Noel para a criança que
queria acreditar nele.
Os laços positivos e essenciais permanentes na relação pais-filhos eram reforçados no Dia das Bruxas — afinal de contas,
os adultos permitiam e encorajavam essa explosão de desobediência, mal escondendo o seu contentamento atrás da
simulação de estar com medo. Esse feriado dizia às crianças que, lá no fundo, apesar das exigências para torná-la sociável,
seus pais não rejeitavam inteiramente o lado negativo dos seus sentimentos em relação a eles. Sabiam que esse lado existia
e que em uma única noite do ano as crianças tinham o direito de mostrá-lo, pelo menos simbolicamente. Tendo- se livrado
dos seus sentimentos. hostis no Dia das Bruxas, as crianças poderiam então concentrar-se inteiramente no período do
Natal, algumas semanas depois, nos sentimentos positivos com relação aos pais.
O Dia das Bruxas, assim como o Natal, foi durante uma determinada época um feriado religioso e, assim como o Natal,
uma antiga tradição pagã na qual foram enxertados significados cristãos. Como acontece com o Natal, os ritos do Dia das
Bruxas estão enraizados nas camadas mais profundas do inconsciente, onde nossas emoções fluem mais fortes. Papai
Noel, como mencionado, representa fantasias infantis sobre o pai benevolente na idade de ouro, quando todos os nossos
desejos eram imediatamente atendidos; assim sendo, até certo ponto, ele é a reencarnação da grande mãe que deu à luz à
criança. O Dia das Bruxas, por outro lado, representa o aspecto exatamente oposto da nossa ambivalência básica. O Natal
simboliza a satisfação de todas as nossas esperanças, mas o Dia das Bruxas simboliza as nossas ansiedades persecutórias.
A bruxa, em sua vassoura, um símbolo tão central desse dia, é a reencarnação da mãe perversa, hostil e destruidora. O
diabo, uma figura que, sob qualquer ângulo, simboliza a agressão fálica (as garras, o rabo, os chifres), representa o pai
mau. O Dia das Bruxas costuma apresentar-se como oportunidade ímpar para que os meninos e as meninas, na faixa etária
de três anos à adolescência, pudessem expressar alguns dos seus desejos agressivos e, ao fazê-lo, não apenas passassem a
conhecê-los mas, até certo ponto, dominá-los.
Antes do Dia das Bruxas ser expurgado pelos livros, as crianças podiam ter poder por uma única noite. Poder vestir-se e
agir como uma bruxa, um diabo ou um fantasma significa partilhar à distância o poder secreto dessas figuras. Amedrontar
os adultos não era feitó apenas de brincadeira; não era apenas a mera expressão de um desejo de virar a mesa no mundo
dos adultos. Chegava a níveis muito mais profundos do inconsciente e satisfazia uma necessidade primitiva de
identificação com esses poderes primordiais. Mas, de maneira a exorcizar essas camadas extremamente primitivas da
personalidade, as crianças deveriam estar livres para poderem ser selvagens durante algumas horas, e os adultos deveriam
certificar-se de que elas poderiam fazê-lo de maneira segura.
O que há apenas uma geração era uma experiência orgiástica e, portanto, profundamente catártica, deixou de ser um
acontecimento povoado de fantasmas para se transformar em uma festa elegante. A verdadeira função do Dia das Bruxas
foi negada e abandonada. O que era anteriormente uma representação simbólica dos impulsos mais destrutivos e ansiosos
do homem, quebrando a repressão, tornou-se completamente desmistificado e civilizado. Hoje em dia, para as famílias
educadas da classe média, o reaparecimento ritualístico de diabos e bruxas — todos os poderes ocultos do homem — diluiu-
se em uma gentil extorsão de dinheiro para as melhores causas, tais como
321
levantar fundos para o UNICEF. Se tentamos, assim, civilizar nossos filhos, negando tudo o que é poderoso e selvagem
neles, não é de admirar que alguns cresçam e se transformem em jovens adultos que odeiam a civilização que lhes roubou
até a única noite do ano em que podiam liberar um importante aspecto de sua natureza.
Recentemente, em algumas partes dos Estados Unidos, tais como a Califórnia e a cidade de Nova lorque, os adultos
também deram para se fantasiar de fantasmas e bruxas nesse dia, privando as crianças de sua festa exclusiva, ao
participarem eles mesmos da brincadeira. Nessa noite, as crianças não tentam mais assustar os adultos; quando estes se
comportam da mesma maneira que elas, as crianças são privadas da única oportunidade que têm no ano de reivindicar os
seus direitos de poder. As crianças interpretam isso corretamente como um ciúme dos adultos de seu divertimento,
mudando. assim, o seu significado. Os adultos que se comportam dessa maneira foram provavelmente privados de
divertimentos quando crianças, talvez forçados a coletar dinheiro para causas válidas em vez de divertir-se e assustar os
adultos, dando voz, uma vez por ano, às suas tendências anti-sociais e expressando-as para livrar-se delas. Dessa forma,
como adultos, tentam compensar-se do que perderam quando crianças. Mas, ao fazê-lo, impossibilitam seus próprios
filhos de virar a mesa contra os seus pais e todos os Outros adultos pelo menos uma vez por ano.
O mesmo processo de destruir o significado emocional mais profundo de uma festa tem agido na modificação da maneira
como celebramos o 4 de julho. Sempre foi um evento patriótico familiar, não apenas um feriado infantil; como celebrava
uma revolução, costumava ser uma ocasião caótica e barulhenta. Na noite anterior, dia 3 de julho, soltavam-se fogos.
Depois, no próprio dia, os oradores das festividades comunitárias podiam concentrar-se com sucesso na conquista positiva
da Revolução Americana — a criação de uma nova forma de viver. Mas, agora que os aspectos mais ásperos da celebração
foram abandonados, restou também pouco fervor patriótico. Como sempre na vida, quando abandonamos o aspecto
negativo da ambivalência humana, o aspecto positivo também perde a sua força emocional.
Nosso esforço para retirar a ambivalência — nosso reconhecimento tanto do lado claro como do lado escuro do ser humano
— das nossas celebrações, ao tentar fazê-las bonitas e civilizadas, dissociou-as das fontes mais profundas da nossa
existência, tornando-as acontecimentos completamente vazios de sentido. Como sabia Aristóteles, só podemos libertar-nos
para a concretização de nossos objetivos mais elevados se nos purgarmos das forças escuras que existem dentro de nós.
Essa catarse tem acontecido tradicionalmente através da nossa participação emocional no desempenho tanto de uma
tragédia clássica enlevante e uma Sátira OU comédia ruidosa quanto de um feriado dionisíaco celebrando o caos. Tendo
negado às nossas forças obscuras o direito de se manifestar no Dia das Bruxas, fazemos agora com que as nossas forças
redentoras pareçam desnecessárias. Ao criarmos festas amenas para nossos filhos, proporcionamo-lhes um mundo
insípido, um mundo que não reconhece os seus e os nossos medos mais profundos e desejos mais satisfatórios. O que é
igualmente desastroso é que ao tornarmos o mundo insípido para eles, estamos também contribuindo para tornar o
sentimento deles por nós também insípido; algo que, tanto a eles como a nós, nos faz sofrer da mesma forma. Se, por
outro lado, pudéssemos devolver a magia ao seu mundo ela
322
também seria devolvida a nossas relações, que se enriqueceriam enormemente com isso.
O objetivo deste livro é incentivar os pais a refletir sobre alguns aspectos da educação dos filhos, na esperança de que
estes exemplos os ajudem a encontrar soluções para quaisquer problemas com que possam deparar-se ao educar um filho.
Os esforços que dispenderão para fazê-lo os tornarão pais bastante bons para o seu próprio beneficio e para o de seus
filhos. Opai bastante bom terá sempre presente que conceber uma criança, gerá-la e trazê-la a este mundo são os
acontecimentos mais extraordinários na vida dos pais. Nascer é o acontecimento mais extraordinário na vida de um filho.
Quanto mais eles puderem desfrutar juntos, cada um à sua maneira, o que decorre disso — os pais criando o filho, o filho
sendo criado pelos pais —, mais felizes serão as suas vidas.
Se este livro, de alguma forma, ainda que pequena, contribuir para que essa felicidade potencial se torne realidade, ele terá
conseguido, sem dúvida, o seu objetivo.
323