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CADERNOS DE

LITERATURA
B R A S I L E I R A

Clarice Lispector
INSTITUTO MOREIRA SALLES
Manuscrito de A hora da estrela, romance lançado em 1977, pouco antes da morte de Clarice; os originais
da obra – que se encontram sob a guarda do IMS – diferem em alguns trechos da versão publicada.
ISSN 1413-652X
CADERNOS DE

LITERATURA
B R A S I L E I R A
CADERNOS DE

LITERATURA
B R A S I L E I R A

Diretor Editorial Antonio Fernando De Franceschi


Editor Executivo Rinaldo Gama
Editora Assistente Ana Weiss
Editora Contribuinte Francesca Angiolillo
Ensaio Fotográfico Edu Simões
Edição de Arte e Finalização Bei Comunicação
Assistentes da Redação Acássia Correia da Silva
Denise Pádua
Circulação Edson Micael de Souza Santos

Colaboraram nesta edição:

Alberto Dines, Berta Waldman, Claudia Emi Izumi, Denise Mota, Eduardo Gonzaga, Leonilda
Pereira Simões, Juan Esteves, Márcia Villaça da Rosa, Maria Eugênia, Vilma Arêas, Volnei
Valentim da Silva, Yudith Rosenbaum (São Paulo); Bruna Roberta Machado Stamato dos Santos,
Ferreira Gullar, Francisca Moreyra de Figueiredo, Lêdo Ivo, Manoela Purcell Daudt d’Oliveira,
Paulo Gurgel Valente, Rogério Reis, Silviano Santiago (Rio de Janeiro); Aparecida Maria Nunes
(Varginha-MG); Benedito Nunes (Belém); Nádia Battella Gotlib (Ribeirão Preto-SP); Olga de Sá
(Lorena-SP); Carlos Mendes de Sousa (Braga, Portugal).

Foto da capa: Alair Gomes (1969)

Edição especial, números 17 e 18 – Dezembro de 2004

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA


Uma publicação semestral do Instituto Moreira Salles.
FOLHA DE ROSTO, 4

MEMÓRIA SELETIVA, 8

CONFLUÊNCIAS, 44

CLARICE POR ELA MESMA, 56

GEOGRAFIA PESSOAL, 96

MANUSCRITOS, 132

ENSAIOS, 140

GUIA, 302
Madalena Schwartz/Instituto Moreira Salles
F O L H A D E R O S TO

Água viva
OU

A hora da estrela
O MAR VASTO, LUMINOSO E INESGOTÁVEL DE APRENDIZAGENS QUE
REPRESENTA A OBRA DE CLARICE LISPECTOR, SITUADA NA FRONTEIRA
ENTRE O REAL IMEDIATO, EXPLÍCITO, E UMA PROFUNDIDADE ÍNTIMA,
SECRETA, DE QUE SÓ É CAPAZ A ESCRITA SEM QUALQUER CONCESSÃO

Ali estava ele, o livro, a mais extraordinária das existências não humanas. E ali esta-
va ela, a menina, o mais admirável dos seres vivos, promessa de felicidade. Ela e o livro. Só
poderia haver um encontro de seus mistérios – existir e ser feliz – se um se entregasse ao
outro: a entrega de dois mundos complementares, a matéria com alma, a alma que habita
a matéria (sob o horizonte futuro de reproduzi-la, carne e espírito).
Sim. Tudo no mundo começou com um sim. Sim, o coração dela batia como lou-
co ao ver aquele livro grosso, um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o e dormin-
do-o: As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Sim, disse ela, eu quero sim.
A dona do volume era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos,
meio arruivados. A menina que o desejava, ao contrário; esguia, cabelos lisos – tão lisos que
a incomodavam (sorte que ao menos no Carnaval podia ondulá-los) –, possuía ainda o que
qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: o dom para criá-las (já tentara, em
vão, publicar algumas no caderno infantil do Diário de Pernambuco).
Bem que a proprietária do livro – mera casualidade: seu pai era dono de uma livra-
ria – buscou torturar a outra, mentindo, com sua boca cheia de balas (como os bolsos da
blusa), gordura e maldade, que As reinações de Narizinho estava com alguém que não o de-
volvera. Até que a mulher do livreiro pôs um basta naquilo, obrigando a filha – que então
lhe causava horror, diante da garota loura, olhos claros, exausta, ao vento das ruas de Reci-
fe, naquele início dos anos 30 – a ceder.
Agora, ali estava ele, o livro, a mais extraordinária das existências não humanas. E
ali estava ela, a menina, o mais admirável dos seres vivos, promessa de felicidade. Fingia que
não o tinha, só para depois levar o susto de o ter. Fingia que esquecera onde o guardara,

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achava-o, lia por alguns instantes. Às vezes sentava-se na rede, balançando-se com o volu-
me aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Um dia, os livros deixariam de ser emprestados, ou mesmo adquiridos – e, sobretu-
do, deixariam de ser de outros autores. E a felicidade clandestina que assaltara aquela meni-
na de origem humilde e estrangeira ao voltar para casa, andando não mais aos saltos, como
de costume, porém devagar, comprimindo contra o peito a obra de Lobato, iria se definir so-
bre o branco da página. E a vida, dura e linda como um diamante, se tornaria sinônimo de
escrever para ela, Clarice Lispector – a mais notável das ficcionistas do idioma, uma espécie
de milagre, uma tal aleluia da literatura brasileira –, tema da presente edição dos CADERNOS.
O retrato de corpo inteiro da autora começa a se desenhar em “Memória seletiva”,
na qual Nádia Battella Gotlib, sua biógrafa, livre-docente pela Universidade São Paulo,
traça, ao lado da equipe do Instituto Moreira Salles, a trajetória de Clarice: o mundo des-
coberto, a descoberta do mundo. A seguir, em “Confluências”, ela ressurge nas lembran-
ças atadas por laços de família e outros laços: os depoimentos do filho mais novo, o eco-
nomista Paulo Gurgel Valente, e dos amigos Lêdo Ivo, escritor; Alberto Dines, jornalista;
e Ferreira Gullar, poeta e crítico de arte.
Embora não quisesse, Clarice Lispector sempre foi um mito. Um halo de inatingível
a cercava, apesar de se pretender apenas uma dona de casa fascinada pela palavra escrita. Aves-
sa a entrevistas, ela reflete-se no espelho de suas próprias palavras – colhidas nas declarações
que deu principalmente à imprensa e nos textos que redigiu sob a pele de cronista – em
“Clarice por ela mesma”, seção a cargo da editora contribuinte dos CADERNOS, Francesca
Angiolillo. As influências, a linguagem, o método (ou antimétodo) de criar, o viver e a mor-
te são alguns dos assuntos que vêm à tona no esforço feito para se captar a dimensão daque-
les instantes-já da autora, de modo a que deixassem de parecer fugidios, não secassem como
as folhas dos periódicos, não murchassem como rosas – de verdade ou de fantasia.
O contraponto a essa seção é o encarte “Clarice jornalista: ofício paralelo”. Prepara-
do também pela editora contribuinte da publicação do IMS, ele se vale parcialmente dos es-
tudos sobre a atividade da ficcionista na imprensa desenvolvidos por Aparecida Maria Nu-
nes, doutorada em literatura brasileira pela USP com tese a respeito do trabalho de Clarice
Lispector, realizado entre os anos 50 e 60, como colunista feminina dos jornais Comício (sob
o pseudônimo de Teresa Quadros), Correio da Manhã (em que assinava Helen Palmer) e Diá-
rio da Noite (onde foi ghost-writer da atriz Ilka Soares). O encarte aborda ainda sua atuação
como repórter – na Agência Nacional e em A Noite, na década dos 40 –, cronista (do Jornal
do Brasil, de 1967 a 1973) – e entrevistadora (das revistas Manchete e Fatos e Fotos Gente,
nos respectivos períodos de 1968-1969 e 1976-1977).
Da mesma forma que a Clarice repórter deixava que o literário se infiltrasse nos tex-
tos jornalísticos, suas obras de ficção sempre se situaram na fronteira entre o real imediato,

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explícito, e uma profundidade íntima, secreta, de que só é capaz a escritura sem qualquer
concessão. Era de se esperar, portanto, que o ensaio fotográfico que compõe a “Geografia
pessoal”, de autoria de Edu Simões, registrasse, a um só tempo, paisagens e pessoas, o ex-
terior e o interior, a vastidão e o detalhe. Centrada em Recife e no Rio de Janeiro, cida-
des nas quais a ficcionista passou a infância e a fase madura, a seção está longe de querer
apenas identificar cenários e personagens. Nela tentou-se “fotografar o perfume” – como
Clarice Lispector chegou a se referir ao ato de escrever.
O Nordeste – representado não pela capital de Pernambuco, mas por Maceió, o pri-
meiro porto, no Brasil, da escritora nascida na Ucrânia – e o Rio de Janeiro estão presen-
tes, como se sabe, em A hora da estrela, o último livro seu que Clarice viu chegar ao públi-
co. Em “Manuscritos”, os CADERNOS mostram pela primeira vez algumas passagens dos
originais das desventuras de Macabéa – confiados à guarda do Instituto Moreira Salles por
Paulo Gurgel Valente. No mais brasileiro de seus trabalhos, que comporta, como todas as
obras-primas, uma variada gama de interpretações, Clarice Lispector estabelece um diálo-
go com ninguém menos do que o maior dos autores nacionais: Machado de Assis. É algo
machadiano o desfecho da novela, em que a ficcionista, inicialmente motivada por sua pró-
pria experiência com a quiromancia, entrega a vida de sua personagem – ela morrerá – nas
mãos de uma cartomante, sucessora da que nomeia o conto do escritor carioca, um clássi-
co do gênero.
Todo o universo ficcional de Clarice, também ele repleto de clássicos, está contempla-
do em “Ensaios”. Nos sete artigos aqui apresentados, os CADERNOS procuram oferecer uma
aprendizagem dos livros da autora. O professor português Carlos Mendes de Sousa, da Univer-
sidade do Minho, faz um painel original e completo da produção clariciana; o ficcionista e crí-
tico literário Silviano Santiago se detém nos textos curtos; Vilma Arêas, da Universidade Esta-
dual de Campinas, dedica-se à literatura infantil; Berta Waldman, igualmente da Unicamp e da
Universidade de São Paulo, investiga a presença judaica na obra de Clarice Lispector; Yudith
Rosenbaum, da USP, debruça-se sobre o problema das pulsões na sua ficção; Olga de Sá, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, analisa o corpo nas narrativas de Clarice, e
Benedito Nunes, da Universidade Federal do Pará, um pioneiro na abordagem filosófica do
trabalho da escritora, empreende como que uma síntese exegética, que fecha a seção.
O número se encerra com o “Guia”, roteiro de referências bibliográficas. É Clarice
Lispector, de novo, confundida com os livros. Ela e os livros. Só poderia haver um encon-
tro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos complemen-
tares, a matéria com alma, a alma que habita a matéria (sob o horizonte futuro de repro-
duzi-la, carne e espírito). Ela e os livros. O que escreveu é vasto, vai durar. Ela e os livros.
O que escreveu continua. Ela e os livros. Um brilho próprio, água viva, estrela. A hora da
estrela. Mas qual terá sido o peso da luz?

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M E M Ó R I A S E L E T I VA

A descoberta do mundo
Nádia Battella Gotlib e Equipe IMS

1920 Nasce, a 10 de dezembro, dos com sucessivas guerras in- mênia, Pinkouss consegue um
em Tchetchelnik, uma aldeia ternas e constante perseguição passaporte – no qual são incluí-
da Ucrânia, então pertencente anti-semita, gerando fome e das a mulher e as filhas – emi-
à Rússia, Haia Lispector, tercei- miséria. Na viagem enfrentam tido pelo consulado da Rússia.
ra filha do comerciante Pin- assaltos e epidemias. A mãe re- Da Romênia, os Lispectors par-
kouss e de Mania Lispector. O quer cuidados especiais porque tem para a Alemanha, onde, no
casal já tinha duas outras meni- sofre de paralisia progressiva. porto de Hamburgo, embar-
nas: Leia, de 9 anos, e Tania, de Durante o trajeto, a caçula dos cam no navio Cuyabá, que os
5. O nascimento ocorre duran- Lispectors ouve os sons de di- levaria ao Brasil.
te viagem de emigração da fa- versos idiomas: iídiche e russo, A família chega a Maceió em
mília em direção à América – os línguas faladas pelos pais, além março desse ano – embora Cla-
pais, judeus, que moraram em daquelas dos países por onde rice tenha declarado em algumas
Savran, onde nasceu a primeira passam e tomam residência ocasiões que os Lispectors ha-
filha, e em Teplik, onde tiveram temporária. viam desembarcado na capital
a segunda, decidem emigrar alagoana quando ela contava
três anos após a Revolução Bol- 1922 No mês de fevereiro, de dois meses de idade. São recebi-
chevique de 1917, desanima- passagem por Bucareste, na Ro- dos por Zina, irmã de Mania, e
seu marido e primo, José Rabin
– comerciante próspero da cida-
Arquivo Nacional

de, que enviara a “carta de cha-


mada”, viabilizando o ingresso
de Pinkouss, Mania e as meni-
nas no Brasil.
Aqui eles adotariam novos no-
mes. À exceção de Tania, todos,
por iniciativa de Pinkouss, mu-
dariam de “identidade”: o pai se
tornaria Pedro; Mania, Marieta;
Leia se transformaria em Elisa; e
Haia – que significa vida, ou cla-
ra –, em Clarice.
Pedro Lispector passa a trabalhar
com Rabin: primeiro, como
Clarice (à frente), então chamada Haia, os pais, Pinkouss e Mania, e as irmãs, Leia mascate, vendendo mercadorias
e Tania, em foto do passaporte tirado para a viagem rumo ao Brasil (1922) que o concunhado financiava, e,

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Misa – Museu da Imagem e Som de Alagoas

Acervo Paulo Gurgel Valente


Ponte de desembarque de Maceió; os Lispectors chegaram em 1922 e lá ficaram até 1925 Tania, Elisa (antes Leia) e Clarice (1927)

mais tarde, na fábrica de sabão 1928 Aos 7 anos, aluna da pri- blicados na coluna que mante-
que o parente criaria contando meira série do curso primário ria, aos sábados, a partir de
com a técnica que o pai de Cla- no Grupo Escolar João Barba- 1967, no Jornal do Brasil.
rice aprendera durante sua via- lho, que funciona na rua For- Nessa época, os Lispectors se
gem de exílio. As duas irmãs mosa, perto da Matriz da Boa mudam para o segundo andar do
mais velhas da futura escritora Vista, Clarice Lispector aprende número 173 da rua Imperatriz
estudam em escola pública. a ler. Entre seus companheiros Thereza Christina – mais conhe-
de escola, destaca-se Leopoldo cida como rua da Imperatriz.
1925 A família muda-se de Ala- Nachbin, futuro matemático,
goas para Pernambuco – Pedro, que também será seu colega no 1930 Matricula-se no Collegio
descontente com os negócios em ginásio e aparecerá futuramente Hebreo-Idisch-Brasileiro, que
Maceió, tenta construir sua in- em “As grandes punições”, con- funciona no próprio bairro da
dependência econômica em Re- to de memória escrito nos anos Boa Vista, e aí termina o tercei-
cife. Os Lispectors vão viver no 70. A família vive de maneira ro ano do curso primário. Além
bairro da Boa Vista, habitado modesta, as meninas almoçan- das disciplinas básicas, estuda
pela comunidade judaica, que do às vezes suco de laranja hebraico, com Moysés Lazar, e
incluía tios e primos do lado ma- aguado e um pedaço de pão. iídiche, com Kalman Burshtein.
terno. Moram em um casarão na Mais tarde, contudo, a autora Assiste a uma peça no teatro
praça Maciel Pinheiro (antiga se recordaria da infância como Santa Isabel e, inspirada, escre-
Conde d’Eu), numa esquina da um período bom, em que rou- ve Pobre menina rica, obra em
travessa do Veras com a rua do bava flores e pitangas e tomava três atos, cujos originais acaba
Aragão. O pai de Clarice traba- banhos de mar em Olinda. E perdendo.
lha vendendo roupa, novamente até, em certo Carnaval, ganha- Morre sua mãe, em 21 de se-
como mascate. A doença de Ma- ria uma fantasia de rosa – epi- tembro, aos 41 anos. O corpo é
rieta se agrava, o que faz com sódios que contará, respectiva- sepultado no Cemitério Israeli-
que Elisa acumule as funções de mente, em “Cem anos de ta do Barro, em Recife. Depois
cuidar da casa, das irmãs e da perdão”, “Banhos de mar” e da perda, Clarice Lispector, que,
mãe, paralítica. “Restos do carnaval”, textos pu- como as irmãs, toma aulas de

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Fundação Joaquim Nabuco

1825 e instalado em edifício à


beira do rio Capibaribe, nele te-
ria professores ilustres, como
Olívio Montenegro, de história
da civilização, e Agamenon Ma-
galhães, de geografia. Na ocasião
da matrícula, seu pai declara que
a filha nascera na Rússia.
Mora perto da escola, na rua da
Imperatriz – agora no número
21, segundo andar. Freqüenta a
livraria Imperatriz, cujo dono era
Jacó Berenstein, divulgador de
cultura e dono também de uma
biblioteca particular. Entre as lei-
turas de Clarice, então, encon-
A livraria Imperatriz, em Recife, a qual a futura escritora freqüentaria; o dono, Jacó tram-se Reinações de Narizinho,
Berenstein, pai de sua colega de escola Reveca, também possuía uma biblioteca particular
de Monteiro Lobato, que pedira
emprestado a Reveca, sua colega
piano, inventa uma música, seu tio-avô Leon Rabin, irmão de escola e filha de Jacó – não
com parte mais suave e outra de sua avó Tania – entre os sem antes ter de insistir muito
mais violenta. quais, Dora, grande amiga de para obter a obra, episódio que
Em 15 de dezembro, seu pai dá Mania, casada com Israel será narrado no conto “Felicida-
o primeiro passo no sentido de Wainstok –, e com os 18 filhos de clandestina”.
adotar a nacionalidade brasilei- de tais primos, que moravam, Vai a Maceió, em trem da Cen-
ra: solicita um documento para quase todos, em Recife. Por tral Western Brazilian Railroad
provar filiação, lugar e data em parte de pai, contava com a – CWBR, com o pai. Em Alagoas,
que nasceu, profissão, estado companhia dos filhos de seus revê os primos maternos, filhos
civil e tempo de residência no tios Salomão e Mina, que ha- dos tios Joel, Zina, Anita e Sara,
país. viam chegado à capital pernam- além dos primos pelo lado do
bucana no final de 1928: Ber- seu tio-avô Leon Rabin.
1931 Pedro Lispector encami- tha, Samuel e Pola, além de
nha, em 17 de junho, por meio Vera, já nascida no Brasil. 1933 Mudam-se para casa pró-
da Secretaria de Justiça, Edu- Envia, sem sucesso, vários con- pria, na avenida Conde da Boa
cação e Interior do Estado de tos para a seção “O ‘Diário’ das Vista, 178, no mesmo bairro.
Pernambuco, pedido de natu- Crianças” do Diário de Pernam-
ralização, registrado no ofício buco; e a razão para os escritos 1934 Tania Lispector, aos 19
de número 1.747. Em 21 de não serem publicados é uma só, anos, formada em comércio,
dezembro, a fim de inscrevê-la conforme afirmará mais tarde: cursa, com a irmã mais nova, a
no Ginásio Pernambucano, de- suas histórias não falavam de terceira série ginasial; Elisa, 23,
posita na escola certidão de “fatos”, mas de “sensações”. trabalha na área comercial e es-
idade de Clarice, traduzida do tá quase naturalizada brasileira.
russo no dia 3 de dezembro, 1932 Aprovada no exame de ad- É então que, em 23 de dezem-
em Recife, por Arthur Gonçal- missão, com sua irmã Tania e bro, Clarice solicita devolução
ves Torres. sua prima Bertha Lispector, in- de documentos depositados no
A menina convive com os sete gressa no tradicional Ginásio arquivo do ginásio, diante da
primos de sua mãe, filhos de Pernambucano; fundado em nova decisão do pai: os Lispec-

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tors deixariam Recife, rumo ao no Ramos, Jorge Amado e Rachel to. Mora, então, na rua Lúcio de
Rio de Janeiro. de Queiroz. Mendonça (atual Albert Sabin),
36-B, casa 3, na Tijuca. Trabalha
1935 Viaja para o Rio com o pai e 1937 Objetivando o ingresso na como secretária, sucessivamente
a irmã Tania, a bordo do vapor in- Faculdade Nacional de Direito da em um escritório de advocacia e
glês Highland Monarch, na tercei- Universidade do Brasil, começa o em um laboratório, além de fa-
ra classe (Elisa, compromissada curso complementar (nome então zer traduções de textos científi-
com o trabalho, iria depois). De- dados aos dois últimos anos do se- cos para revistas.
pois de breve período – pouco cundário) ministrado pela própria Pedro Lispector solicita audiên-
mais de uma semana – em que alu- instituição. No ano seguinte, pas- cia ao promotor de justiça, a fim
garam um quarto na residência, no saria para o complementar do co- de obter justificação de idade da
Flamengo, de Nathan e Frida Ma- légio Andrews, que ficava na praia filha caçula. O documento seria
lamud, casal de judeus russos que de Botafogo, 308. Ao se inscrever necessário quando Clarice preci-
lhes fora recomendado, os Lispec- nessa nova escola, declara-se nasci- sasse comprovar data de nasci-
tors se mudam para uma casa an- da em Pernambuco. mento, filiação e naturalidade,
tiga, perto do campo de São Cris- Paralelamente aos estudos, dá para pleitear a então já desejada
tóvão. Em seguida, ocupam parte aulas particulares de matemática cidadania brasileira. A audiência
da casa de número 341 da rua Ma- e português, aprende datilogra- ocorre em 6 de outubro.
riz e Barros, na Tijuca. Freqüenta o fia e freqüenta a Cultura Inglesa.
quarto ano do curso ginasial no co- 1940 Em 25 de maio, sai no se-
légio Sílvio Leite, na rua de sua ca- 1939 Começa o curso superior manário Pan, dirigido pelo escri-
sa, número 258, mesma escola em na Faculdade Nacional de Direi- tor Tasso da Silveira, o conto
que se inscrevem as irmãs. Lê ro-
mances cor-de-rosa, de M. Delly
Fundação Joaquim Nabuco

(pseudônimo dos irmãos Petitjean


de la Rosière, Frédéric-Henri e
Jeanne-Marie) e Henri Ardel.

1936 Termina o ginasial, então


composto de cinco anos (primei-
ro ciclo do curso secundário).
Nesse período, passa a ler livros
selecionados segundo os títulos,
numa biblioteca de aluguel do seu
bairro – entre eles, O lobo da este-
pe, de Hermann Hesse, que esco-
lheu pensando ser romance de
aventuras e que a impressiona
muito. Inspirada pela obra, escre-
ve um conto cuja história não aca-
ba nunca e que mais tarde ela des-
truiria. Lê também Julien Green e
Dostoiévski, além de autores da
literatura portuguesa, como Júlio
Dinis e Eça de Queiroz, e ficcio-
nistas brasileiros, como Machado Anúncio do navio a vapor inglês Highland Monarch, a bordo do qual, viajando
de Assis, José de Alencar, Gracilia- de terceira classe, Clarice Lispector chegou, de mudança, ao Rio de Janeiro (1935)

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Acervo Alberto Dines

se no Departamento de Impren-
sa e Propaganda – DIP, órgão do
governo Getúlio Vargas criado
em dezembro do ano anterior.
Procura o diretor, Lourival Fon-
tes, que a encaminha para o pos-
to de tradutora. Diante, porém,
da inexistência de vagas para a
função, Clarice Lispector acaba
ganhando o lugar de redatora e
repórter da Agência Nacional.
Começava aí uma carreira para-
lela: o jornalismo. Sua primeira
entrevista publicada seria justa-
mente com o escritor Tasso da
Silveira (na Vamos lêr! de 19 de
Capa e página interna da revista Pan, dirigida por Tasso da Silveira, cuja edição de dezembro).
25 de maio de 1940 publicou o conto “Triunfo”, marcando a estréia da autora Na redação, convive com vetera-
nos – Antonio Callado, José
“Triunfo”. A narrativa traz temas experimenta o desejo de escapar Condé, Octávio Thyrso e Fran-
que serão recorrentes na ficção de uma união conjugal estagna- cisco de Assis Barbosa. E tam-
de Clarice: as dificuldades do re- da; “História interrompida”, so- bém com o mineiro Lúcio Car-
lacionamento amoroso, relatadas bre a relação amorosa como pro- doso, por quem desenvolve
a partir das sensações de uma cesso destrutivo; e “O delírio”, grande amizade, que se conver-
mulher que, abandonada pelo em que um escritor transforma a teria em paixão não correspon-
marido, em sua solidão descobre experiência da doença em “mate- dida: o escritor era homossexual.
a força interior. Pelo que se tem rial poético”. Tanto “Triunfo” Com o primeiro salário de jor-
registro, é a primeira vez que um como “Eu e Jimmy” permane- nalista, adquire um livro de con-
texto ficcional de Clarice Lispec- cem até hoje fora das obras da
tor ganha lugar na imprensa, autora; os outros textos citados
Acervo Otto Lara Resende/IMS

apesar de a autora haver dito, em apareceriam no volume póstumo


reiteradas ocasiões, que um ou- A bela e a fera, de 1979.
tro conto, escrito “aos 14 ou 15 A produção ficcional se dá, em
anos”, ainda sob a influência de grande parte, após a morte de
O lobo da estepe, saíra na Vamos Pedro Lispector, a 26 de agosto
lêr!, revista que pertencia ao gru- – quando ele contava 55 anos de
po A Noite e era editada por idade – , em decorrência de uma
Raymundo Magalhães Júnior. É cirurgia de vesícula malsucedi-
possível que a autora se tivesse da. As três irmãs passam a morar
confundido com outro conto, juntas, na residência de Tania –
este sim, publicado na revista de que se casara em 1938, com
Magalhães Júnior, em 10 de ou- William Kaufmann – , situada à
tubro – “Eu e Jimmy”, centrado rua Silveira Martins, 76, casa 11,
ainda na complexidade das rela- no bairro do Catete.
ções afetivas. Nesse mesmo ano, Insatisfeita com o tipo de traba-
escreveria vários outros contos: lho de escritório que vinha reali- O escritor Lúcio Cardoso; Clarice o
“A fuga”, em que uma mulher zando, Clarice busca empregar- conheceu na Agência Nacional (1940)

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Acervo Paulo Gurgel Valente
tos de Katherine Mansfield, Bliss Com Lúcio Cardoso (de quem
– Felicidade, na tradução de Eri- continua a gostar, como indica
co Verissimo editada pela Livra- carta enviada em julho, de Belo
ria do Globo. Clarice, que não Horizonte), Otávio de Faria e
conhecia o trabalho da ficcionis- Adonias Filho, passa a freqüen-
ta neozelandesa, compra o volu- tar o bar Recreio, na Cinelândia,
me ao perceber, folheando-o, ponto de encontro de autores
uma profunda afinidade com como Vinicius de Moraes, Cor-
Mansfield: “Mas esse livro sou nélio Pena e Rachel de Queiroz.
eu!”, teria pensado diante da co- Apesar de convencida de que
letânea, conforme relembraria não exerceria a profissão, estuda
muitas vezes. com afinco para concluir o cur-
so de direito.
1941 Enquanto cursa o terceiro
ano de direito, continua a publi- 1942 Passa férias de janeiro na
car na imprensa tanto textos jor- fazenda Vila Rica, em Avelar, no
nalísticos como literários. Em Rio de Janeiro, de onde escreve Maury Gurgel Valente, o colega de facul-
19 de janeiro, sai a reportagem dade com quem se casaria em 1943
para Maury Gurgel Valente –
“Onde se ensinará a ser feliz”, no colega da faculdade com quem
Diário do Povo, de Campinas começara a namorar – e para Lú- Lê, com o amigo Francisco de
(SP), sobre inauguração, pela pri- cio Cardoso. Assis Barbosa, textos de Fernan-
meira-dama, Darcy Vargas, de Ganha, em 2 de março, seu pri- do Pessoa, Cecília Meireles, Ma-
um lar para meninas carentes. Em meiro registro profissional, co- nuel Bandeira, Carlos Drum-
agosto, mais duas histórias de sua mo redatora do jornal A Noite, mond de Andrade.
autoria saem em revistas; no dia 9, cujo quadro integrava desde fe- Encaminha, em 2 de março, três
é a vez de “Trecho”, na Vamos lêr! vereiro; o salário mensal anota- meses após completar os necessá-
– nela, se concentra no relato de- do, de 600 mil réis, passaria a rios 21 anos, pedido de naturali-
talhado da expectativa de uma 800 cruzeiros no ano seguinte zação. Ao saber que havia um de-
mulher que espera por seu com- (em novembro de 42, reforma creto assegurando que era possível
panheiro num bar. Já no dia 30, monetária instituiu o cruzeiro obtê-la antes do período, de um
o semanário Dom Casmurro pu- como nova moeda; mil réis pas- ano, previsto por lei, solicita, em
blica “Cartas a Hermengardo”, saram a valer 1 cruzeiro). carta de 3 de junho, dirigida ao
em que a protagonista aconselha
um homem a saber ouvir seus
Arquivo Nacional

sentimentos. Escreve também ou-


tros contos, que serão publicados
apenas em A bela e a fera: “Ger-
trudes pede um conselho” (se-
tembro), “Obsessão” (outubro) e
“Mais dois bêbedos” (dezembro).
Colabora, ainda, com a revista
dos estudantes de sua faculdade,
A Época, escrevendo os artigos
“Observações sobre o funda-
mento do direito de punir”, em
agosto, e “Deve a mulher traba- Início de carta dirigida ao presidente da República, Getúlio Vargas, datada de
lhar?”, em setembro. junho de 1942, na qual a ficcionista fala do seu processo de naturalização

13
Acervo Paulo Gurgel Valente

“método Clarice Lispector” – fa-


lavam do mesmo assunto, então
o romance estava escrito, bastan-
do reuni-las.

1943 Após mais de dez meses de


espera, obtém, em 12 de janeiro,
a naturalização, assinada pelo
presidente Getúlio Vargas e por
Alexandre Marcondes Filho, en-
tão ministro do Trabalho e da
Justiça. No dia 23 de janeiro, em
cerimônia civil, casa-se com
Maury, cônsul de terceira classe
desde concurso prestado em 28
Carteira do 5º ano de Clarice Lispector no curso da Faculdade Nacional de Direito
de agosto de 1940. O casal mo-
ra temporariamente na casa dos
presidente Getúlio Vargas, a dis- que não existia lista de passageiros sogros de Clarice, Mozart e Ma-
pensa de tal prazo. Acompanhan- que chegavam àquela cidade ala- ria José Gurgel Valente, na rua
do sua carta, outra, de André Car- goana antes de 1925, assinada pe- do Russel, 102, apto. 302, no
razzoni: o diretor do jornal A la Delegacia Auxiliar da Polícia da bairro da Glória – mudando-se,
Noite, pedia a um funcionário do Capital, e outra, confirmando o em seguida, para a rua São Cle-
Ministério da Justiça, Andrade desembarque, firmada por seu mente, 403, no Botafogo.
Queiroz, atenção especial ao caso. primo Henrique, filho de Zina e Em 3 de maio, ganha carteira
O silêncio se prolongaria até 19 José, que receberam os Lispectors profissional do Ministério do
de outubro, quando o ministro em Maceió na ocasião. Trabalho, Indústria e Comércio,
interino daquela pasta, Alexandre Para além dos entreveros buro- registrada como redatora da em-
Marcondes Machado, solicita ao cráticos, esse se revelaria um ano presa A Noite.
presidente seu parecer; Vargas res- intelectualmente rico para Clari- No final do ano, termina, com o
ponde secamente, perguntando ce, que, por exemplo, tomou marido, o curso de direito. Não
por que Clarice, residente havia cursos de antropologia brasileira chegam, entretanto, a colar
tantos anos no Brasil, só naquele e psicologia, ambos na Casa do grau: em 7 de dezembro, confor-
momento pedia a naturalização, e Estudante do Brasil, ao mesmo me notícia no Diário Oficial,
com tanta urgência. Ela volta a es- tempo em que freqüentava a fa- Maury Gurgel Valente seria de-
crever ao mandatário, no dia 23, culdade de direito. Mas, acima signado agente de ligação entre
explicando que o fizera assim que de tudo, porque em 1942 ela es- o Ministério das Relações Exte-
lhe fora possível, após sua maiori- creveria seu primeiro romance, riores e as autoridades estrangei-
dade legal. Além disso, é instada a elaborado de março a novem- ras, residentes ou em trânsito,
desfazer incoerência nos dados bro, tendo sido concluído em em Belém do Pará.
declarados na abertura do proces- mês de isolamento numa pensão Antes de mais uma vez fazer as
so – Clarice Lispector retifica, en- da rua Marquês de Abrantes, no malas e depois de duas tentativas
tão, que desembarcara em Ma- Botafogo. O título, Perto do co- fracassadas de edição – junto à
ceió, e não em Recife (como ração selvagem, seria sugerido Amerique Edite e à José Olym-
haviam dito, ela e suas testemu- por Lúcio Cardoso; anterior- pio –, Clarice Lispector conse-
nhas, na primeira audiência, em mente, ele dissera que, se todas gue publicar Perto do coração sel-
10 de abril). Como provas do que as anotações esparsas – acumula- vagem. O livro sai com tiragem
dizia, anexa uma declaração de das no que já se constituía o de mil exemplares pagos pela

14
editora A Noite, que acede ao se manifestar a respeito do livro. a aparecer até o segundo semes-
pedido da jornalista do mesmo Sérgio Milliet escreve uma críti- tre do ano, com destaque para a
grupo – endossado por Francis- ca entusiasmada para sua coluna atenção dada ao livro por Anto-
co de Assis Barbosa e colegas de “Últimos Livros”, do diário O nio Candido na Folha da Manhã:
redação – em troca da renúncia Estado de S. Paulo, em 15 de ja- ele primeiro o cita, ao final de
aos direitos autorais. neiro, relatando desde seu enfa- um artigo (Língua, pensamento,
do diante do “estranho” nome literatura, de 25 de junho), para
1944 Em sua carteira profissio- da autora – que acreditava se tra- dizer que o abordará exclusiva-
nal de jornalista, datada de 11 de tar de pseudônimo – até a sur- mente em próximo texto, como
janeiro, adota o nome de casada: presa que a leitura lhe causara. de fato o faz, em 16 de julho.
Clarice Gurgel Valente. Pouco Muitos outros nomes aplaudi- Clarice é avisada da intenção do
depois, no dia 19, muda-se para riam a estréia de Clarice, entre crítico, entre um e outro artigo,
Belém com o marido, enviado os quais Guilherme Figueiredo por Lêdo Ivo, que lhe escreve em
como vice-cônsul para suas no- (Diário de Notícias, 23 de janei- 5 de julho.
vas funções. Lá permanecem por ro), Roberto Lyra (A Noite, 30 Uma crítica que não lhe cai bem
seis meses. de janeiro), Breno Accioly (O é a de Álvaro Lins – que, tendo
Na capital paraense, a escritora se Jornal, 30 de janeiro), Lauro Es- tido acesso aos originais por in-
impacienta com a falta de ocupa- corel (A Manhã, 2 de fevereiro), dicação de Assis Barbosa, pusera
ção, que ameniza lendo. “Tenho Dinah Silveira de Queiroz (Jor- reparos ao livro mesmo antes de
lido o que me cai nas mãos”, nal de Alagoas, 27 de fevereiro), vê-lo editado. Lins, um dos mais
diria, em carta enviada do Central além dos amigos Lêdo Ivo (Jor- reconhecidos críticos de sua épo-
Hotel, em 6 de fevereiro, ao nal de Alagoas, 25 de fevereiro) e ca, publicara em 11 de fevereiro,
amigo Lúcio Cardoso. Essas lei- Lúcio Cardoso (Diário Carioca, no Correio da Manhã, texto em
turas incluem Flaubert (Madame 12 de março), para citar só al- que, além de qualificar Perto do
Bovary), Rainer Maria Rilke guns. As resenhas continuariam coração selvagem de “experiência
(Cahiers de Malte Laurids Brigge)
e trechos de Proust, por sugestão
Acervo Paulo Gurgel Valente

do professor Francisco Paulo


Mendes, amigo feito em Belém,
a exemplo de Benedito Nunes,
que se tornaria um especialista em
sua obra. Eventualmente, tam-
bém procuraria trabalhar – ten-
tando dar corpo a um novo
romance, ou escrevendo para a
imprensa, como na ocasião em
que, apesar de licenciada das fun-
ções jornalísticas, reportaria para
A Noite a passagem de Eleanor
Roosevelt, primeira-dama dos
Estados Unidos, pela cidade.
Ao mesmo tempo, toma conhe-
cimento em Belém dos ecos da
recepção a seu primeiro roman-
ce. Um mês após a publicação de
Perto do coração selvagem, a im- A escritora ao lado de Maury Gurgel Valente, em Belém, para onde o marido
prensa especializada começava a fora enviado como vice-cônsul; lá permaneceriam por um período de seis meses (1944)

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Corbis/Stockphotos

Acervo Paulo Gurgel Valente

Virginia Woolf, apontada como uma No seu apartamento em Nápoles, cidade que considerava linda, apesar de ter “uma
das mais fortes influências de Clarice cor esmaecida”; a temporada italiana foi de agosto de 1944 a abril de 1946

incompleta”, filiava-o à linha de são recebidos na base norte- rariamente em Casablanca. De


Virginia Woolf e James Joyce, americana de Panamirim. Lá, o lá vai para Argel, sendo hospeda-
dando como certa a influência cônsul, Narbal Costa, Maury e o da, por 12 dias, na Delegação
dos autores britânicos sobre Cla- outro vice-cônsul, Luiz Porto, Brasileira – onde o cunhado,
rice. Em carta à irmã Tania, es- permaneceriam cinco dias, à es- Mozart Gurgel Valente, também
crita a 16 de fevereiro, a escrito- pera de um documento necessá- diplomata, estava em serviço.
ra diria que a crítica de Álvaro rio para prosseguir viagem em Embarca para Roma em 25 de
Lins a “abateu e isso foi bom de avião de linha norte-americana. agosto, acompanhada de Mozart
certo modo”, mas queixa-se da Maury parte no dia 24, enquan- e de Leitão da Cunha, ambos re-
comparação: “o diabo do homem to Clarice esperava, num hotel movidos do consulado em Argel
só faltou me chamar de ‘represen- da capital potiguar, para seguir para a capital italiana. Viaja pri-
tante comercial’ deles” (mais de viagem – pois os líderes da mis- meiro de navio, comboiado por
uma vez diria não ter lido ne- são deviam chegar antes e insta- dois destróieres, até Taranto;
nhum dos dois ficcionistas, sen- lar o consulado. Ela embarca, não larga um instante o salva-vi-
do o título de seu romance de fa- enfim, no dia 30 de julho, com das obrigatório, como relataria a
to tirado de Joyce, mas por destino a Portugal, passando por Lúcio Cardoso: sente o perigo e
influência de Lúcio Cardoso, várias escalas na África (Libéria, os cuidados necessários em tem-
conforme foi mencionado antes). Guiné-Bissau e Senegal). po de Segunda Guerra Mundial.
Após uma curta temporada do Na estada de dez dias em Lisboa, De Taranto a Nápoles, voa em
casal no Rio de Janeiro, no dia 5 onde foi recebida pelo diploma- avião particular do comandante-
de julho Maury foi designado ta Ribeiro Couto, conheceria os em-chefe das forças aliadas no
para servir como vice-cônsul em escritores portugueses João Gas- Mediterrâneo.
Nápoles. No dia 13, o casal jan- par Simões, Natércia Freire e Em Nápoles, todos os membros
ta, a título de despedida, com Maria Archer. da delegação brasileira moram no
nove pessoas no Central Hotel. Em seguida partiria para o Mar- apartamento em que se instalara
Às 6h do dia 19, um avião da Pa- rocos, como correio diplomáti- o consulado – rua Gianbattista
nair levantou vôo dando início à co, levando carta de Ribeiro Pergoless, 1. “Isso aqui é lindo”,
viagem Rio-Nápoles e a um lon- Couto para Vasco Leitão da Cu- diz da cidade, ainda que conside-
go período – quase 16 anos – nha, que naquela oportunidade re que “as pessoas parecem morar
longe do Brasil. atuava como embaixador brasi- provisoriamente” e tudo “tem
Chegam primeiro a Natal, onde leiro em Roma e estava tempo- uma cor esmaecida” – sempre se-

16
gundo missiva a Cardoso, na qual do artigo sobre o livro, em A mente em março. De Manuel
narraria em detalhes sua longa Manhã (29 de outubro). Bandeira, recebe Poesias comple-
viagem. Nela diria também que Conhece Rubem Braga, que tas (provavelmente a 2a. edição,
seu segundo romance, O lustre, chega a Nápoles em outubro, de 1944) e Poemas traduzidos.
iniciado no Rio, em março de acompanhando o 2º. Escalão da Trabalha em hospital america-
1943, estava terminado e pede ao Força Expedicionária Brasileira no, dando assistência a brasilei-
amigo que tentasse publicação – FEB, como correspondente de ros feridos na guerra e, em agos-
pela José Olympio. “Se eles fize- guerra, com a missão de enviar to, recebe ofícios assinados por
rem qualquer tipo de oposição suas crônicas para o Diário Ca- médicos da Força Expedicioná-
[…], então Tania, minha irmã, se rioca e que lá permanece até ria Brasileira que agradecem o
encarregará de arranjar algo mais abril do ano seguinte. serviço prestado.
modesto e possivelmente pago – Relê A porta estreita, de André Enquanto posa para Giorgio De
mas rápido, rápido, porque me Gide; encanta-se com as Cartas Chirico, no estúdio romano do
incomoda um trabalho parado; é de Katherine Mansfield e com pintor, ouvem a notícia do final
como se me impedisse de ir Proust, que lê em francês – ape- da guerra; era o dia 9 de maio, e
adiante.” Essa carta, escrita em sar de a maioria das leituras, por Clarice Lispector estranha a rea-
meados de setembro, seria uma força das circunstâncias, ter de ção de todos, que não manifes-
das primeiras da intensa corres- ser em italiano. tam uma esperada euforia. Ainda
pondência que Clarice Lispector em Roma, conhece o poeta Giu-
manteria com amigos e família. 1945 Intensifica os contatos seppe Ungaretti que, em setem-
Recebe notícia de que ganhara o com os amigos do Brasil, que lhe bro, lhe enviaria carta contendo
prêmio Graça Aranha com Perto enviam livros e notícias. Por traduções de páginas escolhidas
do coração selvagem, considerado meio das cartas do período, sabe- de Perto do coração selvagem, fei-
o melhor romance de 1943, pre- mos que lê Poussière, Santa Tere- tas por ele e por sua filha, a serem
miação que agradece por meio sa de Jesus e Emily Brontë, esta publicadas na revista Prosa.
de telegrama, de 18 de outubro, em tradução, enviada por Elisa, Viaja pela Itália – vai a Florença,
do cônsul Narbal Costa à Secre- de Lúcio Cardoso – que lhe Veneza e de novo a Roma – e
taria de Estado. Pela ocasião, manda a novela Inácio, a qual também visita Córdoba, na Es-
Lauro Escorel escreve um segun- Clarice comentaria entusiastica- panha. Em um passeio por Ná-
Fotos: acervo Paulo Gurgel Valente

Pintada por Giorgio De Chirico; quando A ficcionista e Maury Gurgel Valente em Veneza; durante a fase em que viveram
posava para ele, soube do fim da II Guerra na Itália, ela e o marido visitaram ainda Florença, além da capital, Roma (1945)

17
Acervo Paulo Gurgel Valente

peito dos versos que você me xa o Brasil, de volta à Itália, on-


mostrou. Você interpretou mal as de o marido preparava a viagem
minhas palavras […] faça versos, para a Suíça, que se daria no co-
Clarice, e se lembre de mim.” meço do mês seguinte. A escri-
Após ter obtido notas máximas no tora diz adeus a Dilermando e,
“boletim de merecimento”, seu com o marido, se instala no ho-
marido é promovido, em dezem- tel Bellevue-Palace, antes de se
bro, a cônsul de segunda classe. mudar para a nova residência, na
Também em dezembro, no Bra- rua Ostring, 58.
sil, a Livraria Agir Editora – fun- A posse de Maury como segun-
dada no ano anterior, entre ou- do-secretário aconteceria a 15 de
tros, pelo crítico literário Alceu abril, por mãos do ministro Má-
Amoroso Lima, que acompa- rio Moreira da Silva, chefe da le-
nhava atentamente a produção gação do Brasil na cidade. “É
de Clarice Lispector – publica uma pena eu não ter paciência
O lustre. de gostar de uma vida tão tran-
Em Berna, com a amiga Bluma, mulher qüila como a de Berna. É uma
do jornalista Samuel Wainer (1946)
1946 Enviada como correio di- fazenda”, diria a autora em carta
plomático do Ministério das Re- às irmãs, enviada em maio.
poles, se encanta com um cão vi- lações Exteriores, visita o Rio no Passa alguns dias em Paris, onde
ra-lata e o compra; batizado Di- início do ano, entre janeiro e convive com o casal Wainer, que
lermando, é muito querido por março, aproveitando a oportu- residia na capital francesa; Blu-
Clarice, que lamenta, em carta nidade para divulgar O lustre. O ma, mulher do jornalista Sa-
de setembro endereçada a Tania, livro seria comentado por Sérgio muel, desejando bons auspícios,
quando ele adoece, aparente- Milliet (em fevereiro) e – nova- envia-lhe um cartão com um ur-
mente de maneira incurável. mente com muitas reservas e so, o símbolo de Berna. Segun-
Quando os Gurgel Valentes se chateando a autora – por Álvaro do Bluma, o animal iria “toman-
mudaram da Itália, o cão não Lins (no mês de maio). A obra é do conta das várias Clarices”.
pôde seguir viagem com eles. O um tanto quanto ofuscada pela Além da amizade com a mulher
abandono do estimado animal estréia do diplomata João Gui- de Samuel Wainer, também a
está na raiz de um dos contos da marães Rosa na literatura, com relação com Sabino (que se
escritora, “O crime”, que depois Sagarana, que captava a atenção mudaria nesse ano para Nova
ganharia o título de “O crime do da crítica. York, para trabalhar no escritó-
professor de matemática”. É apresentada por Rubem Braga rio comercial do Brasil) se in-
Em carta de 23 de novembro, a Fernando Sabino. Estabelece tensifica por meio de cartas – a
Manuel Bandeira comenta que rapidamente amizade com o jo- correspondência duraria até ja-
espera ansioso o segundo roman- vem mineiro – já então autor de neiro de 1969, e seu principal
ce e lhe pede alguns poemas, dos um livro de contos, Os grilos não assunto, junto às novidades das
quais tinha conhecimento, para cantam mais (1941), e de uma vidas em países estrangeiros,
publicação numa antologia. So- novela, A marca (1944) –, que, são as respectivas angústias de
bre os textos, hoje desaparecidos, por sua vez, a introduz a Otto autores novatos: trocam textos
Bandeira tecera comentários não Lara Resende, Paulo Mendes e sugestões. Clarice Lispector,
muito elogiosos, que desagrada- Campos e, mais tarde, a Hélio além de contos, escreveria, a
ram a autora e dos quais o poeta Pellegrino. partir desse ano, A cidade sitia-
se dizia arrependido. “Você é Em 8 de março, o Diário Oficial da, seu terceiro romance. Ma-
poeta, Clarice querida. Até hoje publica a remoção de Maury pa- nuel Bandeira e Lúcio Cardoso
tenho remorso do que disse a res- ra Berna. No dia 21, Clarice dei- continuam na lista de seus des-

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tinatários, à qual também se so- A convite de Bluma, os Gurgel tes”, e a preferência pela cena
mam Rubem Braga e Paulo Valentes passam o fim de ano que dá título à novela, “plástica
Mendes Campos, que lhe en- com os Wainer na França. e visível”.
viam notícias da vida política,
social e intelectual do Brasil. 1947 Permanece de férias em 1948 O ano se abre com uma
Recebe notícia, de Lauro Esco- Paris até 4 de fevereiro e lá con- grande novidade: em carta a
rel, a respeito do artigo escrito vive amigavelmente com seu ex- Bluma – que voltara a viver no
por Gilda de Mello e Souza so- professor da faculdade, San Tia- Brasil em meados do ano ante-
bre O lustre e publicado em O go Dantas, o escritor Augusto rior –, a escritora comunica estar
Estado de S. Paulo, a 14 de julho. Frederico Schmidt e sua mu- esperando seu primeiro filho.
Tem dificuldade em se adaptar à lher, Yeda. Enquanto trabalhava para pôr o
vida de Berna e se distrai indo ao Após a volta, em março, passa a ponto final em seu terceiro ro-
cinema quase diariamente; tam- morar no número 48 da Gerech- mance – que lhe custara os últi-
bém lê muito (Henrik Ibsen, tigkeitgass. Em meio ao contí- mos três anos, tendo sido “co-
Theodore Dreiser, Jean Coc- nuo sentimento de inadaptação, piado” pela autora mais de 20
teau, Simone de Beauvoir) e fre- recebe visita de Bluma e, em se- vezes, método que usava ao ela-
qüenta a biblioteca pública; pas- tembro, viaja pela Espanha e por borar um livro –, aumentava
seia pelo Jardim Zoológico, viaja Portugal. também a produção de contos:
a Lausanne, assiste a concertos: Lúcio Cardoso envia, por Irm- escreveria nesse ano “Mistério
mas não consegue escrever, e a gaard, amiga comum de ambos em São Cristóvão” e “Os laços
ansiedade cresce, conforme se que passa alguns dias na Suíça, de família” (além de nova versão
queixaria às suas irmãs e a Fer- carta, acompanhada de seu livro para “O crime”, já rebatizado
nando Sabino. Anfiteatro, lançado no ano ante- como “O crime do professor de
Apesar disso, publica, no suple- rior. Clarice ressalta, em missiva matemática”). Um ponto co-
mento “Letras e Artes” do jornal enviada a Lúcio a 23 de junho, mum a esses escritos, o qual se
carioca A Manhã, os contos “O sua admiração pelas persona- tornaria marca de sua ficção, é
crime” (25 de agosto) e “O jan- gens femininas da obra, “as pe- o fato de personagens serem
tar” (13 de outubro). cadoras mais violentas e inocen- acometidos por um repentino
Fundação Casa de Rui Barbosa
Acervo Paulo Gurgel Valente

A escritora e seu primeiro filho, Pedro, nascido a 10 de setembro de 1948 em Berna, Esquiando na Suíça, país em que vive-
para onde Clarice Lispector havia se mudado com Maury Gurgel Valente dois anos antes ria até 1949, quando voltou para o Rio

19
Acervo Otto Lara Resende/IMS
insight – ou epifania – diante de giário. Clarice Lispector, enfim,
fatos aparentemente banais. concretizaria seu almejado retor-
Concluído o livro, manda então no ao Brasil – apesar de desco-
à irmã Tania o datiloscrito de A nhecer quanto duraria a perma-
cidade sitiada, para que seja en- nência. Na viagem rumo ao Rio,
tregue a Lúcio Cardoso, mas de- a escritora aproveita uma parada
sincumbindo o amigo de arru- em Recife para visitar tios e pri-
mar editora – isso porque a Agir mos e rever lugares de sua infân-
recusara o volume. cia. Os Gurgel Valentes fixam
No Rio, Elisa – que já lançara residência à rua Marquês de
um primeiro romance em Abrantes, 126, apartamento
1945, Além da fronteira – publi- 1.004, no bairro do Flamengo.
ca outro, No exílio; de caráter A cidade sitiada é finalmente
autobiográfico, o livro conta a lançado, encontrando acolhida
história da sua família, com o outra vez na editora A Noite. A
Sabino e Paulo Mendes Campos (1950)
casamento dos pais na Ucrânia, imprensa pouco se manifesta so-
a chegada ao Nordeste, a mu- bre o novo título; embora reafir-
dança para o Rio de Janeiro, masse o talento de Clarice Lis- terra. O grupo parte com certo
culminando com a proclama- pector, Sérgio Milliet nota um atraso, embarcando no dia em
ção do Estado de Israel, que traço de “rococó” que mascarava que se inaugurava o encontro, o
ocorrera em 13 de maio – epi- a estrutura do romance. qual contava com 23 países
sódio político que motiva a ela- contratantes do Gatt (Acordo
boração da obra e do qual nun- 1950 Convive com os amigos, Geral sobre Tarifas Aduaneiras
ca a ficção de Clarice Lispector especialmente Sabino, Lúcio e Comércio).
se ocuparia. Cardoso, Otto Lara Resende e A permanência dos Gurgel Va-
Nasce, em 10 de setembro, seu Paulo Mendes Campos; este a lentes na Inglaterra duraria cer-
primeiro filho, Pedro. Em emo- entrevista para o Diário Carioca, ca de seis meses – primeiro, ins-
cionada carta, datada de 5 de a partir de um encontro na casa talados no hotel Beaufort
novembro, acata os comentários da escritora, resultando o texto – Lodge e, a partir de novembro,
de Tania sobre A cidade sitiada e publicado sem assinatura – no numa casa de família. Assim
agradece a compreensão que já primeiro perfil mais detalhado Clarice define suas impressões
não esperava para o livro – o da autora a sair na imprensa, o do lugar, em carta de 23 de ou-
qual qualificara de “cacete”. qual posteriormente serviria de tubro dirigida a Tania: “Aqui ti-
A nova família se muda, antes do introdução à edição francesa de picamente cidade pequena, tem
fim de ano, para o número 4 da Perto do coração selvagem, lança- cheiro de Berna. Sem ser por
Reiterstrasse. A escritora se divi- da pela Plon. pouco tempo, seria chatíssimo.
dia entre os cuidados com o be- No Rio, a escritora continua a se Todo o mundo é mais ou me-
bê e o aprendizado de tricô e dedicar aos contos: são desse ano nos feio, com chapéus horrí-
modelagem, enquanto ainda “Começos de uma fortuna”, veis, modas horríveis nas vitri-
tentava, em vão, editar seu ter- “Uma galinha” e “Amor”. nas. […] De qualquer modo,
ceiro romance. Quando a convivência com a apesar de Torquay ser tão chati-
cidade já se encontrava restabe- nho, gosto da Inglaterra”. O
1949 Em 17 de março, é publi- lecida, chega novamente a hora tempo passa entre os cuidados
cada no Diário Oficial a remo- de partir: Maury integraria a com o filho, as dificuldades
ção de Maury Gurgel Valente delegação brasileira na Confe- com babás e idas ao cinema.
para a Secretaria de Estado, no rência Geral de Comércios e Também conhece Londres, on-
Rio de Janeiro, onde seria esta- Tarifas em Torquay, na Ingla- de freqüenta teatros. Numa das

20
idas à cidade, entre o fim deste tóvão, teria de ser recolhida, pois inglês, com destino a Nova
ano e o começo do seguinte, se- seu nome saíra grafado com dois York, levando a babá Avani Car-
ria internada: sofrera um abor- “s”; a definitiva apareceria como doso Ferreira dos Santos, de 16
to espontâneo. João Cabral de Alguns contos. Sérgio Milliet, anos. De lá vão para Washing-
Melo Neto, que já se tornara sempre atento às mossas da au- ton, onde o marido de Clarice
um dos correspondentes da es- tora, consideraria que, no gêne- assume o posto de segundo-se-
critora na primeira estada na ro, ela conseguia evitar o precio- cretário, em 24 de setembro, pe-
Europa, e então vice-cônsul na sismo para o qual teria resvalado rante o embaixador Walther
capital inglesa, está a seu lado no terceiro romance; ao mesmo Moreira Salles. Convivem com
no hospital, quando volta a si. tempo, sublinharia que, no es- Lauro Escorel – ele também se-
paço mais curto, Clarice não gundo-secretário – e sua mu-
1951 O dia 24 de março marca conseguia estruturar “solida- lher, Sara, que, como a escrito-
mais um regresso de Clarice Lis- mente” o que queria dizer. ra, estava grávida.
pector ao Brasil. Profissional- Em junho, descobre-se grávida, A última coluna de Clarice Lis-
mente, dedica-se aos contos, re- mas então já sabe que também o pector/Teresa Quadros sai com
cebendo convite para publicar segundo filho nasceria no es- o derradeiro número do breve
uma seleta de seis deles na cole- trangeiro, uma vez que o estágio Comício, em 17 de outubro. Do
ção Cadernos de cultura, edita- de Maury na Secretaria de Esta- outro lado do mundo, a escrito-
da pelo Ministério da Educação do estava prestes a terminar. ra mais uma vez retomava as no-
e Saúde e dirigida por Simeão No dia 3 de julho, a autora e o tas, iniciadas na Inglaterra, para
Leal. A autora escolhe “Mistério marido colam grau na faculdade aquele que seria seu quarto ro-
em São Cristóvão”, “Os laços de de direito – a formalidade fora mance: A veia no pulso, poste-
família”, “Começos de uma for- adiada pelas sucessivas viagens. riormente, A maçã no escuro.
tuna”, “Amor”, “Uma galinha” e E, dois meses depois, embarcam
“O jantar”. para o novo destino, os Estados 1953 Nasce, a 10 de fevereiro,
Nesse ano, Clarice sofreria uma Unidos, iniciando sua mais lon- seu segundo filho, Paulo, em
grande perda: Bluma descobria ga permanência no exterior: se- Washington. Recebe a visita de
um câncer e morreria em pouco te anos, interrompidos apenas Tania, que vai aos EUA conhecer
tempo. A escritora acompanhou a por algumas viagens rápidas ao o novo sobrinho. Com a chega-
amiga – separada de Samuel Wai- Brasil. Viajam no dia 3 de se- da de Erico Verissimo à capital
ner desde a volta ao Brasil, três tembro, a bordo de um navio norte-americana para dirigir o
anos antes – até seus últimos dias.
Acervo Walther Moreira Salles

1952 Durante sua estada no


Rio, Clarice Lispector desenvol-
veria também uma nova ativida-
de: sob o pseudônimo de Teresa
Quadros, assina para o novo se-
manário Comício – do qual Ru-
bem Braga, autor do convite, era
um dos fundadores – uma colu-
na feminina, “Entre mulheres”,
publicada pela primeira vez em
15 de maio.
A primeira impressão do volume
encomendado por Simeão Leal, Embaixador Walther Moreira Salles (de terno escuro), na entrega de suas credenciais
intitulada Mistério em São Cris- em Washington; ele estava no posto quando da chegada de Maury G. Valente (1952)

21
ge Street, em Chevy Chase,
Fundação Casa de Rui Barbosa

localidade vizinha a Washing-


ton-DC e pertencente ao estado
de Maryland.

1954 A tradução de Perto do co-


ração selvagem preocupa a autora,
que recebera uma prova – cuja
forma Erico Verissimo reconhe-
cera como de um estágio defini-
tivo do processo editorial. Em
carta às irmãs, listaria muitos er-
ros da versão feita por Denise-
Teresa Moutonnier, como tradu-
zir “porcaria” por “excrementos”
Junto aos filhos, na capital americana, em 1953; a autora ficaria nos EUA até 1959
ou dizer “a criada preta” onde
Clarice Lispector pusera somen-
Departamento de Assuntos Cul- cas, as quais, porém, não che- te “criada”. Escreve ao editor,
turais da União Pan-Americana, gam a sair na revista. queixando-se, mas Pierre de Les-
ligada à Organização dos Esta- Ao passo que escreve com difi- cure responderia que enviara vá-
dos Americanos (substituindo culdade – alguns contos, além rias cartas e inclusive o texto
Alceu Amoroso Lima), surge das notas para o novo romance –, num estágio anterior: nada disso
uma sólida amizade dos Gurgel segue a rotina da vida diplomá- chegara às mãos da escritora, co-
Valentes com o escritor gaúcho e tica, convivendo com novos mo ela diria em nova missiva.
sua família – Mafalda, Clarissa e funcionários, que chegam de- Clarice, então, decide esquecer
Luis Fernando. pois da saída do embaixador que o livro fora traduzido, já que
Em julho, com o propósito de Walther Moreira Salles, substi- não havia o que fazer a respeito.
ter suas próprias economias, tuído em agosto por João Carlos Em julho, viaja para o Brasil
apresenta a Fernando Sabino o Muniz. Entre as amizades culti- com os meninos, ficando até se-
projeto de escrever uma coluna vadas, estão Lauro e Sara Esco- tembro. Carta de agosto enviada
para a revista Manchete (para on- rel, que entretanto deixam Was- a Mafalda dá conta de que o Rio
de o autor, com outros amigos hington nesse ano, e Maria mudou, mas continua “selva-
de Clarice, migrara após o fim Eugênia, mulher de Lauro Sou- gem”, “inesperado”.
de Comício) e, em agosto, recebe tello Alves – o qual, em dezem- Enquanto se encontra na cida-
sinal positivo à idéia. Depois de bro, ao mesmo tempo em que de, Simeão Leal encomenda-lhe
alguma correspondência a res- Maury se torna primeiro-secre- mais contos para integrar futu-
peito – em que se debate espe- tário, é promovido a segundo- ro livro. Ao voltar aos Estados
cialmente a necessidade que a es- secretário. Unidos, abandona, temporaria-
critora exprime de assinar sob Também para Clarice dezembro mente, a elaboração do roman-
pseudônimo, querendo inclusi- traz uma novidade importante: ce que seria A maçã no escuro
ve “ressuscitar” Teresa Quadros –, Perto do coração selvagem seria (àquela altura ainda sem título,
decide-se que a partir de outu- traduzido para o francês – pela mas já mencionado pela autora
bro ela escreveria semanalmente primeira vez uma obra sua apa- a Sabino, no começo desse ano)
sobre o assunto de sua preferên- recia em outro idioma. e dedica-se à solicitação de Leal,
cia, referente aos Estados Uni- Os Gurgel Valentes compram que lhe dera um adiantamento.
dos ou não. Clarice Lispector uma casa, onde a família passa a Ao longo dos cinco meses se-
mandaria ao menos três crôni- viver, no número 4.421 da Rid- guintes, escreveria sete contos –

22
“Feliz aniversário”, “Devaneio e gunta casualmente sobre Simeão primeiro livro infantil, é redigida
embriaguez de uma rapariga”, Leal – querendo saber da publi- em inglês, para que a empregada
“A imitação da rosa”, “A mensa- cação de seus contos. possa lê-la para o caçula.
gem”, “Os desastres de Sofia”, A produção no gênero, aliás, se Volta ao Brasil, com os filhos,
“Tentação”, “Os obedientes”, incrementa. Havia o já mencio- em viagem de férias, entre junho
além de reelaborar “O crime do nado “O búfalo” – história que e setembro – mês, por sinal, em
professor de matemática”. Tam- diria nascida de uma experiência que os Verissimos regressavam
bém no regresso do Brasil, rece- real de ódio (“Era mais uma ne- ao país, mas não sem que antes
be da Plon Prés du coeur sauva- cessidade de ódio”, na definição Mafalda e Erico aceitassem ser
ge. Envia em dezembro um dada em outra missiva) e que padrinhos de Pedro e Paulo,
exemplar a Elisa; contudo não lê impressiona muito a amiga Ma- com a “condição única” de “con-
a íntegra da tradução de seu pri- falda e Arnaldo Pires, funcioná- tinuarem a gostar deles”, como
meiro livro. rio da União Pan-Americana. E diria Clarice em bilhete enviado
Clarice daria a Fernando Sabino no dia 7 ao casal.
1955 Retoma as notas para o notícia de outros dois textos: um Durante todo o ano, o empenho
novo romance, depois de con- “sobre um pintinho e uma me- para publicar os dois livros re-
cluir o trabalho com os contos – nina” (futuramente “A legião es- cém-concluídos ocuparia Clari-
que entusiasmaram Fernando trangeira”) e outro “sobre ‘a me- ce Lispector. Ainda em setem-
Sabino, a quem haviam sido en- nor mulher do mundo’”. bro, ela receberia carta de
caminhados por intermédio de Paralelamente ao romance e aos Sabino com sugestões para o no-
Tania, para que fossem entre- contos, Clarice Lispector tam- vo romance (que a escritora lhe
gues ao editor. O amigo, em car- bém escreveria, a pedido do filho mandara em julho). Na missiva
ta de 30 de março, os considera Paulo, uma historieta sobre um seguinte, ele diria que, apesar do
“obra de arte”. Escreve mais dois dos coelhos dos meninos, que es- reiterado interesse de Ênio da
contos, “Preciosidade” e “A me- capara da gaiola em que era man- Silveira, “se não desse certo”, po-
nor mulher do mundo”. tido – tal narrativa, que se trans- deriam tentar outra editora (Jo-
formaria mais tarde em seu sé Olympio ou Martins). Frisa
1956 Em 7 de maio, comunica
a Fernando Sabino que dá por
Acervo Paulo Gurgel Valente

terminado o romance que estava


escrevendo (apesar de se dizer
mais interessada no conto “O bú-
falo”): punha fim ao trabalho de-
pois de “umas oito cópias”, como
já havia dito em outra carta, de
17 de março, enviada às irmãs.
Erico Verissimo é um dos primei-
ros leitores do livro, provisoria-
mente chamado A veia no pulso.
Clarice Lispector pede a Sabino
sugestões de editoras a quem o
romance pudesse interessar, avi-
sando que tem “umas 400 pági-
nas” (em junho, ele responderia
que contatara Agir e Civilização
Brasileira). A autora diz também
que lhe enviaria o texto e per- Nos Estados Unidos, com Erico e Mafalda Verissimo, padrinhos de Pedro e Paulo

23
Fundação Casa de Rui Barbosa
também que acha que todas as
suas propostas de mudança são
pouco importantes.
A autora, então, conclui que não
é o caso de alimentar a pressa e
– depois de fase de certo desâni-
mo, achando já o livro “mal es-
crito” – retoma as sugestões do
amigo, acatando quase todas.
Terminaria por enviar de volta a
Fernando Sabino, em carta de
12 de novembro, 204 emendas
feitas e 83 páginas reescritas, po-
rém continuaria hesitante em re-
lação ao título definitivo – tanto
Clarice como Fernando não gos-
tavam de A veia no pulso.
No Brasil, seus amigos – princi-
palmente Sabino e Rubem Bra-
ga – se desdobravam para ver
editados não só o romance mas
Segurando Paulo, junto ao marido, Maury, e o filho mais velho, Pedro, em janeiro de 1957
também o volume de contos.
Decorre do esforço em atender
ao afã da escritora o que parece determinada a publicar o ro- junho de 1957; conhecendo a
ser um mal-entendido. Fernan- mance às suas próprias expensas impaciência de Clarice (que lhe
do pediria a Rubem (que visita- – e a fazer o mesmo, quando pu- dissera, já no primeiro semestre:
ra Clarice em novembro) que desse, com o volume de contos “Não tem que ser bom editor,
contatasse a José Olympio, tal- encomendado por Simeão Leal. tem que ser rápido”), Sabino es-
vez por saber que agradaria à Sobre as histórias, Rubem Braga tima que dificilmente ela pode-
amiga sair pela prestigiosa edi- dissera em sua missiva achar ria vê-lo publicado antes em outra
tora, que nunca aceitara livro “mais normal” que saíssem pri- editora – considerando o prazo
seu. Braga interpreta o pedido meiro na imprensa; a antologia proposto por José Olympio.
como falta de “decisão” da Civi- continuava sem data para ser Assim o ano termina sem que a
lização Brasileira, que antes se editada, apesar de Sabino ter di- edição de nenhum dos dois li-
manifestara favorável a publicar to à amiga, em julho, que o livro vros se resolva: a ficcionista sen-
a obra, e, em dezembro, comu- já entrara em produção. te-se de mãos atadas sobre o des-
nica a Clarice Lispector sua vi- Visando evitar uma atitude pre- tino de seu trabalho, em face da
são dos fatos. Diz também que cipitada de Clarice Lispector, distância. Enquanto isso, au-
a José Olympio queria o livro, Fernando Sabino explica em no- menta sua indisposição para
no entanto só para 1958, pois a va carta o que se passara: Ênio da com o tipo de vida que leva. Co-
programação para o ano seguin- Silveira continuava entusiasma- mo manifestaria às irmãs, os
te estava fechada, ponderando do quanto ao romance, entre- compromissos diplomáticos a
que valia a pena esperar, consi- tanto a Civilização naturalmen- cansavam antes mesmo de te-
derando a qualidade daquela ca- te já não poderia editá-lo no rem acontecido.
sa editorial. mesmo ano. Silveira se compro-
Clarice lhe escreve uma carta, metia a lê-lo em janeiro seguin- 1957 Instada por Fernando Sa-
parte da qual copia para Sabino, te e o programava para maio ou bino e Rubem Braga, autoriza

24
que os amigos encaminhem Publica “Amor” na revista New Maury passava por um momen-
seus contos – que em janeiro já Mexico Quarterly; ao enviar o re- to de tensão.
eram 15, e mais três “mais ou cibo pelos 20 dólares do paga-
menos prontos” – para publi- mento, manda junto a nota bio- 1958 Conhece Maria Bonomi,
cação no “Suplemento Cultu- gráfica feita por Paulo Mendes uma jovem bolsista de artes plás-
ral” de O Estado de S. Paulo. Campos. Faz somente a ressalva ticas na Universidade de Colum-
Em carta a Simeão Leal, dois de que gostaria de ver reforçada bia, em Nova York (NY). Enca-
anos depois, a autora diria que sua condição de brasileira, ape- minhada por Alzira do Amaral
tal contrato foi rompido de- sar de nascida na Ucrânia. A es- Peixoto (então embaixatriz brasi-
pois que um conto, sem sua sa altura, o texto de Mendes leira), a moça, de 22 anos, vai até
autorização nem conhecimen- Campos já havia sido aproveita- a casa da escritora, a fim de con-
to, saíra em um jornal do Rio. do na edição francesa de Perto seguir emprestado um traje para
Sabino também sondara a edi- do coração selvagem, sobre a qual cerimônia na Casa Branca, desti-
tora Agir sobre o interesse em Clarice Lispector nunca se sen- nada a estudantes brasileiros,
editar uma antologia, e Rubem tira totalmente pacificada. É sorteados entre os que expu-
Braga recupera os originais quando retoma a tradução e nham trabalhos na União Pan-
com Simeão Leal, dizendo percebe que suas observações ti- Americana, também em Was-
também que o volume que es- nham sido acolhidas. Escreve hington. A partir do episódio,
te pretendia lançar já estava uma carta pedindo ao editor, nasce uma amizade que duraria
composto. Pierre de Lescure, que transmi- através dos anos subseqüentes.
Na espera de notícias sobre os li- tisse sua gratidão a “mademoiselle Novas possibilidades se abrem pa-
vros, a autora não trabalha em Moutonnier” – a tradutora – te- ra a autora. Antes de o ano acabar,
novos escritos. Fernando Sabino mendo que ela não aceitasse, de- recebe carta do jornalista Nahum
reiteraria o entusiasmo de Ênio pois de todo o mal-estar que de- Sirotsky, que se encontrava em
da Silveira pelo romance, que monstrara em 1954. Washington, solicitando sua cola-
permanecia sem título. Erico Pessoalmente, as coisas não iam boração para a revista Senhor, que
Verissimo manifesta interesse tão bem; o casamento com seria lançada em janeiro seguinte,
em saber da obra que ainda se
chama A veia no pulso (título
Arquivo Agência Estado

aliás defendido de maneira


aguerrida por João Cabral de
Melo Neto, que escreve, tam-
bém curioso, de seu novo posto
em Sevilha). Por sua vez, Clari-
ce manda, em várias missivas,
notícias de Clarissa, filha de Eri-
co e Mafalda, que permanecera
nos EUA – pois se casara em
1956 com o americano David
Jaffe – e estava grávida. Além
disso, envia bilhetes afetuosos
dos filhos ao casal de padrinhos.
No campo literário, contudo, as
novidades não vêm; manda, por
intermédio de Tania, nova carta
a Leal, mas os contos seguem na
gaveta do editor. Maria Bonomi, a quem conheceu em 1958, quando a artista plástica era bolsista em NY

25
Acervo Paulo Gurgel Valente
pela editora Delta. A intenção era dizia que tivera prejuízos pela re-
que Clarice Lispector assinasse tenção de seus escritos e que pre-
um comentário ou crônica men- cisava do dinheiro que pudesse
sal; pouco depois, todavia, recebe conseguir vendendo-os separa-
missiva de Paulo Francis, encarre- damente para jornais e revistas.
gado do departamento de ficção O editor acabaria cedendo, a
da futura revista, no qual reforça contragosto, e em março, quan-
o convite e manifesta seu interes- do, de fato, é lançada Senhor, “A
se de ali publicar contos seus, co- menor mulher do mundo” é pu-
meçando por “A menor mulher blicado, seguido de “O crime do
do mundo”. professor de matemática” (em
Em carta parabenizando Clarice junho), “Feliz aniversário” (em
Lispector pelo aniversário, escri- outubro) e “Uma galinha” (em
ta em 9 de dezembro, Erico Ve- dezembro).
rissimo comenta ter recebido de Recebe, em fevereiro, de Fer-
Enrique Bertaso carta branca nando Sabino, a notícia de que
para editar A veia no pulso – ou A maçã no escuro – o título esta-
como quer que a autora decidis- va definitivamente resolvido,
se chamar o romance – pela com o “aval” do amigo – sairia
Ao lado de Alzira, filha de Vargas (1959)
Globo e que estava esperando pela Civilização Brasileira ainda
da Civilização Brasileira, que naquele ano; no entanto, o lan-
anunciava o livro, um posicio- Roterdã, o navio cujo nome ho- çamento voltaria a ser adiado,
namento a respeito. Dizia ainda menageava seu pai: Presidente para 1960.
que teriam igual interesse nos Getúlio. Passam por Paris ao re- Inicia negociações com a editora
contos, se esses não se encon- gressarem aos EUA; o avião, devi- Agir para publicar os 18 contos
trassem retidos por Simeão do a uma tempestade de neve, que produzira nos anos anterio-
Leal, cujos representantes tam- tem de pousar na Groenlândia, res. Precavida pela experiência
bém estariam sendo cobrados. episódio que Clarice Lispector com Simeão Leal, tenta obter,
Do outro lado do Atlântico, as contaria numa das crônicas pu- pelo contrato, maior controle
notícias não eram tão boas: a fic- blicadas em junho de 1971 no sobre a edição, o que acabaria
cionista recebe da Plon um co- Jornal do Brasil. naufragando a tentativa.
municado de que, por necessida- Na volta a Washington, encon- Enquanto isso, a Civilização
des de espaço, já não poderiam tra as provas do livro de contos Brasileira estipula o novo prazo
manter no estoque os mais de a ser lançado no ano seguinte, para a publicação de A maçã no
1.700 exemplares remanescentes enviadas por Simeão Leal. Mas escuro; o romance deveria sair até
da edição de Près du coeur sauva- Clarice já não tem interesse em, maio do ano seguinte.
ge: mil teriam de ser destruídos. quatro anos depois de concluído Separa-se do marido, depois de
Enquanto isso, o casamento co- o trabalho, ver o volume na co- agravamento da crise conjugal, e,
meçava a ver seu fim. leção do Ministério da Educação em junho, regressa ao Brasil,
e Cultura e pede, em resposta com os dois filhos. Ficam duran-
1959 Começa o ano com uma encaminhada por Eliane, mu- te um mês na casa da irmã Tania,
viagem à Holanda, para onde lher de Mozart Gurgel Valente, mudando-se, em 8 de julho, pa-
parte em 8 de janeiro, acompa- que os direitos lhe sejam devol- ra o Leme; o novo endereço da
nhando a embaixatriz brasileira, vidos, mediante a restituição dos família seria rua General Ribeiro
Alzira do Amaral Peixoto, que “dois ou três mil cruzeiros” que da Costa, 2, apto. 301. Maury
deveria batizar no estaleiro da recebera adiantados na enco- Gurgel Valente ainda tentaria,
Verolme United Shipyards, em menda feita em 1954. A autora em carta de 28 de julho, enviada

26
de Washington, uma reconcilia- “A imitação da rosa” e, no mês guez duma rapariga” e “Preciosi-
ção que, contudo, não acontece. seguinte, “O búfalo”. dade”. A revista, aliás, se revelara
Inicia-se o longo processo de se- Além da coluna que já fazia pa- uma importante plataforma para
paração conjugal. ra o Correio da Manhã, passa a o retorno de Clarice Lispector às
Apesar de Maury enviar mensal- elaborar outra página feminina, livrarias e, além disso, na volta ao
mente 500 dólares à família, co- “Só para mulheres”, a convite Rio, ela passaria a estar mais pró-
locando-se à disposição para au- de Alberto Dines, encarregado xima de seus leitores.
mentar a quantia, se ela se da reforma pela qual o Diário O volume de contos teve tam-
revelasse insuficiente, Clarice da Noite, em busca de mercado, bém um lançamento carioca, que
Lispector objetivava comprar, vinha passando. No novo ta- aconteceria no clube Marimbás,
por contra própria, o aparta- blóide, Clarice seria, na verda- em Copacabana. Massaud Moi-
mento onde viviam – no que era de, a ghost-writer da atriz Ilka sés (em “Clarice Lispector contis-
apoiada pelo ex-marido. Come- Soares. ta”, Correio da Manhã, 12.08.61)
ça, então, a colaborar na im- Em 5 de julho, consegue enfim reafirmaria a opinião que Sérgio
prensa para complementar seus uma editora para seus contos: as- Milliet bancara, quando foi lan-
rendimentos, provenientes de sina com a Francisco Alves, do çado Alguns contos: o romance era
mesada e de parcos direitos au- Rio de Janeiro, que lança, no dia o gênero da autora. Por outro la-
torais. Sob o pseudônimo de 27 do mesmo mês, na sua sede do, entre as críticas favoráveis,
Helen Palmer, inicia, em agosto, paulista, que abrigava também encontra-se artigo de Eduardo
uma coluna no Correio da Ma- uma livraria, Laços de família. A Portella, “A forma expressional
nhã, intitulada “Correio femini- antologia se compunha de 13 his- de Clarice Lispector”, publicada
no – Feira de utilidades”. tórias: os seis textos de Alguns con- no Jornal do Commercio de 25 de
tos, os cinco mencionados ante- setembro, no qual ela é colocada
1960 A Senhor continua a publi- riormente que apareceram em como a grande ficcionista de
car seus contos: em março, sai Senhor, mais “Devaneio e embria- sua geração.
Arquivo Agência Estado

Acervo Paulo Gurgel Valente

A atriz Ilka Soares, de quem Clarice Com Carolina Maria de Jesus, que se consagrou no ano de 1960 ao publicar
foi ghost-writer no Diário da Noite um livro autobiográfico intitulado Quarto de despejo – Diário de uma favelada

27
a coluna “Children’s Corner”, da
Arquivo Nacional

Acervo Paulo Gurgel Valente


seção “Sr. & Cia.”. No novo es-
paço, publicaria tanto contos –
como a “A quinta história” e “Os
desastres de Sofia” – quanto crô-
nicas – caso de “Mineirinho”,
“Brasília: cinco dias” – e frag-
mentos variados. Tais textos se-
riam reunidos em A legião es-
trangeira, lançado dois anos
mais tarde.
Viaja em julho para a Polônia,
com os filhos, em visita ao ex-
marido. Maury ainda nutre es-
perança de reconciliação, o que
não acontece.
Junto a Tom Jobim, no lançamento Ao lado dos filhos Pedro e Paulo, duran- Durante a viagem, recebe convi-
do romance A maçã no escuro (1961) te a viagem que fizeram à Polônia (1962) te para ir até a União Soviética e
assim entrar em contato com
Antes que o ano se encerre, Cla- Em julho, A maçã no escuro é suas origens – no entanto a es-
rice assina novo contrato com a lançado com sessão de autógra- critora recusa a oferta, afirman-
Francisco Alves, desta vez, para fos na abertura do II Festival do do que de lá saíra no colo, re-
A maçã no escuro, que se estima- Escritor Brasileiro, em um cen- cém-nascida, e não poria os pés
va publicar entre 15 de fevereiro tro comercial de Copacabana, naquele chão.
e 15 de abril do ano seguinte, atraindo um grande público, Recebe, em 19 de setembro, o
com tiragem de 2.000 exempla- curioso pelo retorno de Clarice prêmio Carmen Dolores Bar-
res – mesmo número com que Lispector ao romance. Tom Jo- bosa – oferecido pela senhora
saíra Laços de família, o qual, bim, compositor já conhecido, paulistana de mesmo nome –
aliás, diante da boa repercussão, “apadrinhava” o estande da au- por A maçã no escuro, conside-
seria reeditado. tora, apregoando o romance e rado o melhor livro de 1961 se-
Conhece, através da pedagoga impulsionando as vendas – que gundo comissão julgadora
Nélida Helena da Meira Gama – foram bem, apesar do preço do composta por Osmar Pimentel,
leitora de Senhor que conhecera volume, considerado alto para a Mário Donato, José Geraldo
no lançamento de seu livro de época: 9,90 cruzeiros. Vieira, Maria de Lourdes Tei-
contos e de quem se tornara pró- Recebe o prêmio Jabuti, da Câ- xeira, Rolmes Barbosa, Edgar
xima –, a jovem escritora Nélida mara Brasileira do Livro, por La- Braga, Edoardo Rizzarri, Sérgio
Piñon, que seria sua amiga até o ços de família. Milliet e Cassiano Ricardo. O
fim da vida. Lúcio Cardoso, fiel amigo e crí- prêmio – de 20 cruzeiros – é en-
tico sensível, em fragmento da- tregue por Jânio Quadros, no
1961 O conto “A legião estran- tado de agosto de seu Diário, salão literário de Carmen Bar-
geira” é publicado na Senhor de elogiaria o esperado romance, bosa, em São Paulo.
janeiro. Em 10 de fevereiro, en- bem como a obra da escritora, Em dezembro, Lúcio Cardoso
cerra-se a coluna “Feira de utili- em que, diz, “alguma coisa ínti- interrompe seu diário – do qual
dades” do Correio da Manhã. O ma está sempre queimando”. já havia publicado o volume 1,
mesmo ocorre com a página de no ano anterior –, após o pri-
Ilka Soares, que se extingue, com 1962 Após mudanças internas meiro derrame de uma série, que
o Diário da Noite, em março. na revista Senhor, passa a assinar o deixaria parcialmente paralisa-

28
do, sem poder escrever e, mais ta trechos à poeta Marly de ano seguinte) que poria fim ao
tarde, impedido de falar. Oliveira, sua amiga. Com o li- processo de separação.
vro, que entregaria a Fernando Um breve esboço biográfico da
1963 Clarice vai a Austin, nos Sabino e Rubem Braga para escritora é publicado por Renard
Estados Unidos, aceitando con- publicação na Editora do Au- Perez, a partir de longa entrevista
vite para proferir uma confe- tor, de propriedade de ambos, que Clarice Lispector lhe conce-
rência, sobre o tema “Literatu- pôs fim a um período de “ari- dera em 1961 e que, no volume
ra de vanguarda no Brasil”, no dez” que durava desde o térmi- – da série Escritores brasileiros
XI Congresso Bienal do Institu- no de A maçã no escuro, sete contemporâneos, editada pela
to Internacional de Literatura anos antes. Civilização Brasileira – vem
Ibero-Americana, realizado na acompanhado de trechos de A
Universidade do Texas. Lá co- 1964 Publica A paixão segundo maçã no escuro. Tal perfil passa a
nhece Gregory Rabassa, que G.H., um dos seus textos mais ser a principal fonte biográfica
anos depois traduziria A maçã densos. Pela mesma Editora do sobre ela.
no escuro. Autor, lança o volume A legião A partir de entrevista concedida
Compra, em setembro, após a estrangeira, que reúne, numa à revista semanal Manchete, nas-
oficialização da separação conju- primeira parte, contos maiores ce sua amizade com Pedro e Mi-
gal e divisão dos bens do casal, o e, na segunda, intitulada “Fun- riam Bloch.
apartamento 701 de um prédio, do de gaveta”, fragmentos de ta-
que ainda estava sendo construí- manho variado, antes publica- 1965 Muda-se, em maio, para o
do, localizado à rua Gustavo dos na imprensa. apartamento que comprara em
Sampaio, 88, no Leme. Em julho, sai o desquite de Cla- 1963. A partir do aparecimento
Escreve, em alguns meses, o ro- rice e Maury e, a 13 de novem- de A paixão segundo G.H., sua
mance A paixão segundo G.H.; bro, o juiz profere a sentença obra passa a ser examinada com
ao longo do processo, apresen- (confirmada em 2 de abril do maior atenção pela crítica sensí-
vel às questões da filosofia. Nes-
se âmbito, são publicados, por
Arquivo Agência Estado

Acervo Marly de Oliveira

exemplo, ensaios de Benedito


Nunes – “A náusea em Clarice
Lispector” (O Estado de S. Pau-
lo, a 24 de julho) – e José Amé-
rico Motta Pessanha – “Itinerá-
rio da paixão” (revista Cadernos
Brasileiros, n. 29), sobre os ro-
mances publicados até 1964.
É encenado, no teatro Maison de
France, no Rio de Janeiro, o pri-
meiro espetáculo teatral baseado
em textos de Clarice Lispector.
Resultado de uma seleta de tre-
chos de Perto do coração selvagem,
A paixão segundo G.H. e A legião
estrangeira, adaptados por Fauzi
Arap (que também dirigia a peça
e nela atuava), o espetáculo, que
Autografando a segunda edição do seu Manuel Bandeira e CL, padrinhos de levava o nome do primeiro ro-
Perto do coração selvagem, no ano de 1963 casamento de Marly de Oliveira (1964) mance de Clarice, foi produzido

29
Arquivo Nacional

ajuda no período após o incên-


dio e a acompanharia até a mor-
te. Apesar da boa recuperação e
das cirurgias bem-sucedidas, fi-
cam cicatrizes profundas, na
perna e na mão direitas, e Clari-
ce cai em estado depressivo. En-
tre os amigos que manifestam
seu apoio estão Rubem Braga,
Rosa Cass, Nélida Piñon, Pedro
e Míriam Bloch, Alberto Dines,
Autran Dourado, Inês Besou-
chet, Armindo Trevisan e Paulo
Mendes Campos.
Apesar do estado de espírito
abalado, é um ano em que lhe
Com José Wilker (de óculos), Glauce Rocha e Dirce Migliaccio, do elenco de Perto do acontecem duas importantes
coração selvagem, peça dirigida por Fauzi Arap – à esq. –, que nela também atuava (1965)
novidades profissionais. Aten-
dendo a uma proposta feita pe-
por Carlos Kroeber e tinha no outro lado da rua, a fumaça que la José Álvaro Editor, publica
elenco José Wilker, Glauce Ro- saía do apartamento. O quarto seu primeiro livro para crianças,
cha e Dirce Migliaccio. ficou completamente destruído, O mistério do coelho pensante,
e a autora, com graves queima- que, conforme foi mencionado
1966 Luiz Costa Lima publica, duras pelo corpo. Passou três dias anteriormente, escrevera para
em Por que literatura (Vozes), “A sob risco de morte – e dois me- Paulo nos EUA (a tradução do
mística ao revés de Clarice Lis- ses hospitalizada na clínica Pio original em inglês ficou ao seu
pector”, artigo que discute o XII. A mão direita foi a parte mais próprio encargo). Além disso,
imaginário a partir das relações afetada, sofrendo queimadura de recebe e aceita convite de Alber-
peculiares estabelecidas entre terceiro grau e, não fosse por in- to Dines para escrever, a partir
personagem e escritora no ro- tervenção de uma das irmãs de de 19 de agosto, uma coluna se-
mance A paixão segundo G.H. E, Clarice, pedindo que esperassem manal no Jornal do Brasil. As-
em Belém, sai O mundo de Cla- mais um dia, os médicos a teriam sim, durante mais de seis anos,
rice Lispector, de Benedito Nu- amputado. Em lugar disso, rece- envia para a redação daquele
nes; editado pelo Governo do beu enxerto de pele do abdô- diário carioca uma ou várias
Amazonas, a partir de textos an- men, seguido de fisioterapia pa- crônicas objetivando preencher
teriormente publicados no jornal ra recuperar os movimentos, o espaço que lhe fora confiado.
O Estado de S. Paulo, esse é o pri- que, no entanto, ficaram com- Dessa forma, intensificaria o
meiro livro inteiramente dedica- prometidos, dificultando em contato com o público, a ponto
do a fornecer uma abordagem muito a escrita. O tratamento te- de conquistar certa popularida-
crítica sobre a obra da autora. ve lugar na Associação Brasileira de: freqüentemente dá autógra-
Na madrugada de 14 de setem- Beneficente de Recuperação – fos para os leitores, com os quais
bro, um acidente mudaria em ABBR, onde a autora encontrou também troca cartas e conversa,
definitivo a vida de Clarice Lis- Lúcio Cardoso, que ali combatia na rua ou ao telefone.
pector. Adormecera com um ci- as seqüelas de vários derrames. A partir de 7 de dezembro, passa
garro aceso, provocando um in- a integrar o Conselho Consultivo
cêndio, descoberto por uma 1967 Contrata os serviços da do Instituto Nacional do Livro,
vizinha que vira de sua janela, do enfermeira Siléa Marchi, que que selecionava obras a serem

30
editadas por esse órgão do Minis- junho, na chamada “sexta-feira são recebidos por Negrão de Li-
tério de Educação e Cultura. O sangrenta”, agentes do Departa- ma, ocasião em que Pellegrino
conselho contava também com mento Estadual de Ordem Polí- relata as últimas manifestações
outros intelectuais, como Améri- tica e Social – Dops e soldados de violência da polícia, induzin-
co Jacobina Lacombe, Celso Cu- da Polícia Federal matam quatro do o governador a tomar parti-
nha, Eduardo Portella, Assis Bra- e ferem 58 pessoas; cerca de mil do a favor dos estudantes. Qua-
sil e Umberto Peregrino. são presas. À noite, um grupo de tro dias depois, a escritora volta
militantes decide ir ao governa- a sair às ruas, na “Passeata dos
1968 Em 13 de março, O misté- dor, para exigir dele uma toma- Cem Mil”.
rio do coelho pensante é premia- da de posição, e escolhem como Inscreve-se, em 28 de agosto, no
do, como melhor livro infantil porta-voz o psicanalista Hélio Sindicato dos Jornalistas Profis-
do ano anterior, com a Ordem Pellegrino, que – convencido sionais do Estado da Guanabara,
do Calunga, instituída pela pelo cineasta Joaquim Pedro de quando já tinha carteira funcio-
Campanha Nacional da Crian- Andrade, pelo poeta Ferreira nal da Agência JB em que é regis-
ça, que também destacara traba- Gullar e pelo jornalista Jânio de trada como “colaborador”. E em
lhos para o público infantil no Freitas – aceita o encargo. Clari- 7 de outubro seria nomeada as-
cinema e televisão. Acompanha- ce Lispector se encontra entre os sistente de administração do
da de seu editor, João Rui de que, no dia seguinte, participam mesmo estado, vínculo emprega-
Medeiros, a autora comparece à da passeata carioca contra a dita- tício que manteria na sua cartei-
solenidade, na Pequena Obra dura – que tinha entre os mani- ra de trabalho até o fim da vida.
Nossa Senhora Auxiliadora, no festantes cerca de 300 intelec- No dia 24 de setembro, Lúcio
Rio de Janeiro, mas, sob a alega- tuais e artistas, como Carlos Cardoso morre, na clínica Dou-
ção de que não se sentia bem, sai Scliar, Oscar Niemeyer, Glauce tor Eiras, no Rio de Janeiro, ví-
logo depois de receber o troféu. Rocha, Ziraldo e Milton Nasci- tima de novo derrame cerebral.
Publica, a partir de maio, na re- mento. Caminham em direção Pouco depois, no dia 30, Clari-
vista Manchete, seção intitulada ao Palácio da Guanabara, onde ce perde outro amigo; Sérgio
“Diálogos possíveis com Clarice
Lispector”, na qual entrevista
Acervo Paulo Gurgel Valente

personalidades do mundo políti-


co e artístico – em grande parte,
amigos seus. A colaboração dura-
ria até outubro de 1969 e algu-
mas dessas entrevistas saem tam-
bém na coluna do Jornal do Brasil
– cujas crônicas, aliás, passariam
a ser, em parte, republicadas no
Correio do Povo, de Porto Alegre.
A tensão política recrudescia. A
morte, em 28 de março, do es-
tudante secundarista Édson Luís
– alvejado pela Polícia Militar
no restaurante universitário ape-
lidado de Calabouço, no Rio –
causa violenta reação popular, e
a luta contra o regime militar
implementado em março de Participando de uma passeata contra a ditadura, no Rio de Janeiro, junto a Carlos
1964 se intensifica. Em 21 de Scliar, Oscar Niemeyer, Glauce Rocha, Ziraldo e Milton Nascimento (1968)

31
Zélia Gattai
Porto (nome verdadeiro de Sta-
nislaw Ponte Preta) sucumbe a
problemas cardíacos, após so-
frer tentativa de envenenamen-
to durante show teatral. Em sua
coluna no JB, ela expressaria
seu sentimento diante de ambas
as mortes.
Enfrentando, além das seqüelas
que ficaram do incêndio, a
doença do filho Pedro, inicia
sessões de psicanálise com Jacob
David Azulay.
Paralelamente, sua obra ganha
público e tem maior divulgação
nos meios universitários, e Cla-
rice Lispector vai a Belo Hori- Jorge Amado, quando escrevia Tenda dos milagres, na casa do pintor baiano Genaro
de Carvalho; Clarice foi a Salvador entrevistar ambos para a Manchete (1969)
zonte, para palestras na Univer-
sidade Federal de Minas Gerais e
na Livraria do Estudante, acom- após a promulgação do Ato Ins- 1970 Incorporando notas anti-
panhada pela amiga e escritora titucional número 5 e o fecha- gas, começa a trabalhar em um
Eliane Zagury. mento do Congresso, pelo Ato novo romance inicialmente inti-
A paixão segundo G.H. é reedita- Complementar número 38, no tulado Atrás do pensamento: mo-
do pela Sabiá, que Fernando Sa- dia 13 daquele mês. nólogo com a vida. O livro, que
bino e Rubem Braga haviam em fase posterior seria chamado
aberto no ano anterior e que 1969 Seu filho Paulo parte para Objeto gritante, por fim se defi-
também lança seu segundo livro os Estados Unidos, em 25 de ja- niria como Água viva e sairia sob
infantil, A mulher que matou os neiro, onde fica um ano em pro- o amplo gênero “ficção”, diante
peixes. A história, novamente, se grama de intercâmbio cultural. do entendimento da própria au-
baseia em fato que acontecera no Pedro, em tratamento psiquiá- tora de que ultrapassara as clas-
âmbito familiar. Pedro, que via- trico, seria internado durante sificações convencionais da nar-
jaria por um mês, a encarregara um mês, em junho. rativa literária.
de alimentar seus peixes verme- Lança pela editora Sabiá – que Conhece Olga Borelli, que,
lhos; mas, durante três dias, ela publicara a terceira edição de após vê-la em um programa de
se esquece de lhes dar comida e Perto do coração selvagem – Uma televisão, convida a escritora
os animais morrem. Dedica o li- aprendizagem ou O Livro dos pra- para autografar livro infantil na
vro, ilustrado por Carlos Scliar, a zeres. O romance ganha o prê- fundação beneficente Romão
afilhados, entre os quais Cássio, mio Golfinho de Ouro, do Mu- de Matos Duarte. Clarice lhe
que nascera da união entre Ma- seu da Imagem e do Som. escreveria uma carta singular,
ria Bonomi e Antunes Filho; Viaja à Bahia, a fim de entrevis- datada de 11 de dezembro: “Eu
Mônica, filha de Marly de Oli- tar o escritor Jorge Amado e os achei, sim, uma nova amiga.
veira e Lauro Moreira; e Nicole, artistas Mario Cravo e Genaro. Mas você sai perdendo. […]
filha de Márcia e neta de Tania Os textos seriam publicados em Você me quer como amiga mes-
Kaufmann. Programado para o junho e julho, na Manchete. mo assim? Se quer, não me di-
dia 17 de dezembro, no Museu Em 14 de agosto, é aposentada ga que não lhe avisei. […]
de Arte Moderna do Rio de Ja- pelo Instituto Nacional de Pre- Quando eu morrer (modo de
neiro, o lançamento é cancelado vidência Social – INPS. dizer), espero que você esteja

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perto. Você me pareceu uma alterado, ganha o título de Obje- Clarice, é que, sim, o livro esta-
pessoa de enorme sensibilidade, to gritante. José Américo Pessa- va terminado.
mas forte”. Olga aceita pronta- nha, em carta enviada de São A autora publica Água viva, no
mente, criando-se, então, uma Paulo no dia 5 de março, co- final de agosto, depois de três
sólida amizade, que permearia menta o romance, assinalando anos de elaboração, pela Arteno-
os sete últimos anos de vida da um repúdio de Clarice à própria va, que lançaria também A imi-
ficcionista. ficção, na medida em que ela tação da rosa, antologia com 15
tenta se desfazer dos “artifícios contos que já haviam integrado
1971 Lança Felicidade clandesti- da arte”, e detecta um impasse: outras coletâneas.
na, reunião de contos publica- continuará a falar de si mesma, No mês seguinte, viaja com Ol-
dos anteriormente, entre os sem as máscaras das persona- ga Borelli para a Europa. Visita,
quais um conjunto de escritos gens, ou as criará, assim “multi- durante um mês, quatro países:
em que rememora a infância em plicando seu mistério e sua per- Inglaterra (Londres), Suíça (Zu-
Recife. plexidade?”. rique, Lausanne, Berna), França
Termina, em julho, cópia do seu Clarice Lispector busca eliminar (Paris) e Itália (Roma), aprovei-
romance Atrás do pensamento: do livro em processo as alusões tando para rever lugares onde
monólogo com a vida. Entrega ao à sua própria biografia. A prota- havia morado.
professor Alexandrino Severino gonista deixa de ser escritora pa- Affonso Romano de Sant’Anna
– com quem se encontra, em ju- ra se dedicar às artes plásticas. faz, em seu livro Análise estrutural
lho e agosto, encarregando-o de Nélida Piñon e Fauzi Arap tam- de romances brasileiros, uma leitu-
traduzir a obra para o inglês – bém lêem o romance, partici- ra dos contos de Laços de família
uma versão de 280 páginas, ex- pando, com sugestões, de sua e A legião estrangeira, detectando
tensão que se reduziria muito na reelaboração. motivos recorrentes e esquemas
forma definitiva. Insegura quanto ao livro, distrai estruturais de construção narrati-
A Sabiá lança Elenco de cronistas a angústia procurando o amigo va nos textos por ele seleciona-
modernos, que inclui dez textos Carlos Scliar para que pinte um dos. A tese central de sua análise
escolhidos em livros de Clarice prometido retrato seu: a escri- era a presença da epifania – en-
Lispector já publicados. E Tere- tora posa durante o mês de se- tendida como uma revelação nas-
sinha Alves Pereira Martins de- tembro, na casa do artista em
fende, na Universidade de New Cabo Frio.
Acervo Paulo Gurgel Valente

Mexico, pioneira tese de douto-


rado no Departamento de Lín- 1973 Em 20 de julho, recebe
guas Clássicas e Modernas, inti- entusiasmada carta de Alberto
tulada “Julio Cortázar, Clarice Dines, referente ao livro já inti-
Lispector e a nova narrativa lati- tulado Água viva. Diz o amigo:
no-americana”. “Você venceu o enredo. […] A
Elisa reedita No exílio, pela gente vai encontrando a todo
Ebrasa, em convênio com o Ins- instante situações-pensamento.
tituto Nacional do Livro, então […] É menos um livro-carta e,
dirigido por sua amiga Maria muito mais, um livro-música.
Alice Barroso. Acho que você escreveu uma
sinfonia”, continua, identifi-
1972 Auxiliada por Olga, que cando um mecanismo de tema
datilografa as notas, retoma o principal que se desdobra em
trabalho em Atrás do pensamen- variações. O mais importante,
to, com o qual não estava satis- porém, como completa, res-
feita. O livro, profundamente pondendo às inquietudes de Em quadro feito por Carlos Scliar (1972)

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ragem foi recolhida porque erro- tura de vanguarda no Brasil”,
Corbis/Stockphotos

neamente se colocara um ponto que apresentara no Texas, como


de interrogação no título). Em bi- parte de atividades promovidas
lhete de 5 de maio, Carlos Drum- pela Fundação Cultural do Dis-
mond de Andrade comentaria trito Federal. E vai também a
com um pequeno poema essa co- Cali, na Colômbia, convidada a
letânea de escritos variados – com participar do IV Congresso da
contos inéditos, outros publica- Nova Narrativa Hispanoameri-
dos no JB e mesmo fragmentos cana. Encontra-se no evento
do romance Uma aprendizagem. quando Hélio Pólvora se decide
Em maio, Pacheco, ainda, lhe a escrever sobre A via crucis do
faria uma encomenda: um volu- corpo (“Da arte de mexer no li-
me abordando o tema do sexo. xo”, Jornal do Brasil de 13 de
O escritor Oscar Wilde, de quem adap- Daí resultaram os 13 contos de agosto). Na opinião do crítico, a
tou O retrato de Dorian Gray (1974) A via crucis do corpo – livro pou- contundência era um dos méri-
co aceito pela própria autora, tos da escritora e, se algo o preo-
cida de uma experiência banal – que diria, em tom de justificati- cupava, era um eventual desgas-
na escrita de Clarice Lispector. va: “Há hora para tudo. Há tam- te advindo dessas pequenas
Em 6 de dezembro, Alberto Di- bém a hora do lixo”. obras. “Quanto ao mais, quan-
nes é demitido do JB, no que Sofre um novo acidente: seu cão to à sua nova maneira de aceitar
chegou a ser visto como uma on- Ulisses lhe morde o rosto, reque- desafios, não tem por que se pe-
da anti-semita envolvendo a ad- rendo cirurgia plástica, feita pe- nitenciar.”
ministração do periódico. Com lo amigo Ivo Pitanguy – que cui- Publica ainda um outro livro, o
o episódio, também se encerra- da também dos reparos na sua terceiro destinado ao público in-
ria a participação de Clarice, mão, dando continuidade ao fantil, A vida íntima de Laura,
sem direito a indenizações, por tratamento iniciado logo após o que sai pela José Olympio, então
não ser considerada funcionária. incêndio. detentora dos direitos de sua
Vive na companhia de Siléa obra publicada até 1971.
1974 O Jornal do Brasil a dispen- Marchi e da cozinheira Geni,
sa oficialmente de seus serviços, depois que os filhos deixam a ca- 1975 Passa breve período no ho-
em carta datada de 2 de janeiro e sa. Paulo fora morar sozinho – tel Continental, no Rio, para,
acompanhada de envelope com ainda que em apartamento pró- sozinha, poder escrever.
suas crônicas. A partir daí, a fim ximo, permitindo que almoças- Traduz romances, como A rendei-
de complementar os rendimen- se com a mãe – enquanto Pedro ra, de Pascal Lainé (Imago), Luzes
tos, aumentaria sua atividade de se mudara para Montevidéu, vi- acesas, de Bella Chagall (Nova
tradutora – vertendo desde obras vendo com o pai, embaixador Fronteira), além de livros policiais
literárias, como O retrato de Do- do Brasil no Uruguai, e Isabel de Agatha Christie, que também
rian Gray, de Oscar Wilde, adap- Leitão da Cunha, sua mulher saíram pela Nova Fronteira, e
tado para o público juvenil desde 1964. Aproxima-se de no- obras de caráter geral como A yo-
(Ediouro), até títulos de interesse vos afetos, como Andréa Azulay ga do amor, de Jean Herbert (Ar-
geral, caso de A receita natural pa- – filha de seu ex-analista, que se tenova). E, ao longo da década,
ra ser bonita, de Mary Ann Crens- convertera em amigo –, a quem faz também adaptações de obras
haw, para Álvaro Pacheco, da Ar- dá conselhos literários, posto de escritores como Júlio Verne,
tenova – que lhe passaria vários que a menina começava a se ar- Jonathan Swift, Walter Scott, Jack
livros para traduzir. Sempre pela riscar na escrita. London e Edgar Allan Poe. Em
mesma editora, lançaria Onde es- Viaja para Brasília, onde lê a algumas ocasiões, trabalharia com
tivestes de noite (cuja primeira ti- conferência intitulada “Litera- Tati de Moraes, ex-mulher do

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poeta Vinicius, como no caso de 18 quadros em técnica mista – introdutório, redigido à mão,
Hedda Gabler, peça de Ibsen. sendo 15 em óleo sobre madei- declara-se a “maior admirado-
Volta à Colômbia, desta vez com ra, dos quais dois em frente e ra” da jovem ficcionista – a
Olga Borelli, como convidada verso, e um sobre tela –, que fi- quem envia, além do original,
do I Congresso Mundial de Bru- cariam em seu acervo, e outro, cinco cópias.
xaria, realizado em Bogotá, de em vermelho intenso, que dá de
24 a 28 de agosto. No dia 26, presente a Autran Dourado. 1976 Em 7 de abril, na cerimô-
sentindo-se indisposta, em vez Tanto como na escritura, seus nia de casamento de seu filho
de apresentar a fala sobre a ma- quadros buscam fugir do figura- Paulo com Ilana Kauffmann,
gia que havia preparado para in- tivo, rumo à abstração. no Rio de Janeiro, fica saben-
troduzir a leitura de “O ovo e a No dia 28 de novembro, morre do, por uma tia, que sua mãe
galinha”, pede a alguém que leia Erico Verissimo; manifesta-se, mantinha um diário e escrevia
o conto por ela. também em nome de Paulo, que poemas.
Em novembro, vai a Belo Hori- lhe dera a notícia, em bilhete a No mesmo mês, viaja com Olga
zonte, onde recebe muitas home- Mafalda, dizendo que o primei- a Buenos Aires, onde participa
nagens, deixando-a contrariada. ro impulso fora “pegar um avião da Segunda Exposición – Feria
Dias depois, dando entrevista a e ir ver vocês. Mas o choque foi Internacional del Autor al Lec-
Clélia Pisa e Maryvonne Lapou- tão grande que minha pressão tor. Na Argentina, é muito ho-
ge, para o volume Brasileiras – baixou quase a zero e tive de fi- menageada, autografa livros seus
que seria publicado em 1977, na car de cama, sem força para mo- traduzidos para o espanhol –
França –, mostra-se pouco à von- ver sequer as mãos”. acabando por se sentir “como
tade. No fim do ano, faz papel de uma estrela de cinema”.
Publica Visão do esplendor, com “editora”, reunindo escritos de Na volta da viagem, ainda em
crônicas da coluna “Children’s Andréa Azulay, então com 10 abril, recebe um prêmio pelo
Corner”, que publicara em Se- anos, num volume artesanal, conjunto de sua obra, oferecido
nhor, e também textos que saíram “Meus primeiros contos”, ilus- pela Fundação Cultural do Dis-
no Jornal do Brasil. Lança ainda trado por Sérgio Mata (que as- trito Federal, no valor de 70 mil
De corpo inteiro, com algumas das sinava os desenhos de A vida ín- cruzeiros, entregue no Palácio
entrevistas que fizera nos anos an- tima de Laura). Em breve texto do Buriti, em Brasília.
teriores para a imprensa carioca.
O volume Seleta, organizado por
Madalena Schwartz/IMS

Renato Cordeiro Gomes, com


ensaio de Amariles Guimarães
Hill, é editado pela José Olympio
em formato popular, o que cola-
boraria para a divulgação dos tex-
tos da escritora nos anos 70.
Por ter sempre problemas com
direitos autorais, contrata a
agência literária da espanhola
Carmen Balcells para cuidar dos
seus negócios, acatando sugestão
de sua amiga Nélida Piñon.
Como passatempo, dedica-se à
pintura, de março a setembro,
atividade que continuará no ano
seguinte. No total, produziria No I Congresso Mundial de Bruxaria, realizado na capital colombiana, em agosto de 1975

35
Cultura de São Paulo

1977 A Fatos e Fotos de 2 de ja-


neiro traz uma entrevista que
Clarice Lispector realizara com
Mário Soares, primeiro-minis-
tro de Portugal, então em visita
TV

ao Brasil. A partir do mês se-


guinte, também publicaria crô-
nicas semanais no jornal Última
hora – em que reaproveitaria
muito do que saíra no JB.
Comparece, em 1º de fevereiro,
aos estúdios da TV Cultura (ca-
nal 2), em São Paulo, onde é en-
trevistada pelo jornalista Júlio
Lerner para o programa Panora-
ma Especial; esse se tornaria o
Durante entrevista na TV Cultura, gravada em fevereiro de 1977; o programa, a pedi-
do de Clarice Lispector, só iria ao ar no mês de dezembro, após a sua morte único registro audiovisual da au-
tora – que nele se mostra reser-
vada, imprevisível e aparente-
É transferida, em 15 de julho, visita Recife e fica hospedada no mente pouco à vontade.
da rádio Roquette Pinto, no hotel São Domingos, na mesma Ainda em fevereiro, escreve um
Instituto de Comunicação, pa- praça Maciel Pinheiro em que livro para crianças, que seria pu-
ra a Divisão de Apoio Adminis- vivera – revendo, pois, o casarão blicado no ano seguinte, sob o
trativo, junto ao Departamento onde morou e outros lugares que título Quase de verdade. Adap-
Cultural da Secretaria de Esta- marcaram sua infância, além de tando lendas brasileiras, por en-
do de Educação e Cultura, sem- visitar parentes, como a tia Mi- comenda da fábrica de brinque-
pre no posto de assistente de na e os primos. dos Estrela, produz outras 12
administração. O Museu da Ao regressar de uma visita que fi- histórias infantis, para um calen-
Imagem e do Som do Rio a re- zera a Mafalda Verissimo em dário de 1978, intitulado Como
cebe para um depoimento, gra- Porto Alegre, lhe escreve um bi- nasceram as estrelas.
vado em 20 de outubro. O en- lhete, datado de 7 de novembro, Parte, ao lado de Olga Borelli,
contro é conduzido pelo casal em que diz que tentaria seguir em viagem de passeio para a Eu-
de escritores Affonso Romano seu conselho de não tomar tan- ropa. Prevendo ficar um mês na
de Sant’Anna e Marina Cola- tos tranqüilizantes, com os quais França, regressam depois de uma
santi e por João Salgueiro, dire- combatia as constantes insônias. semana, no dia 24 de junho,
tor do MIS. A amiga tinha razão em preocu- com Clarice angustiada e aflita.
Trabalha na redação de A hora par-se: a escritora fora internada Publica A hora da estrela, em vo-
da estrela, contando com a ajuda justamente devido aos remédios, lume editado pela José Olym-
de Olga Borelli, que reúne os e Mafalda a visitara no hospital. pio, que ganha introdução – “O
fragmentos esparsos e datilogra- Na Fatos e Fotos Gente de 6 de grito do silêncio” – assinada pe-
fa os originais da novela. Simul- dezembro, sai entrevista que fez lo crítico Eduardo Portella.
taneamente, toma notas para com a artista Elke Maravilha, Após 27 entrevistas, publica, em
novo romance, Um sopro de vi- iniciando assim seu vínculo de 17 de outubro, sua última colabo-
da, e dois contos: “A bela e a fe- trabalho com a publicação – do ração para a Fatos e Fotos Gente.
ra ou a ferida grande demais” e mesmo grupo da Manchete –, o Sofre com uma súbita obstrução
“Um dia a menos”. qual se estenderia até outubro intestinal, de origem desconhe-
No início do segundo semestre, do ano seguinte. cida, sendo internada na Casa de

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Saúde São Sebastião, no Catete. 1978 Último romance em que psicanalítico. Dessa maneira,
Em 28 de outubro, é submetida trabalhava Clarice, Um sopro de contribui para uma divulgação
a cirurgia, na qual se detecta a vida – Pulsações é editado pela maior da escritora no exterior,
causa do problema: um adeno- Nova Fronteira, a partir de frag- sobretudo para um público de
carcinoma de ovário, irreversí- mentos em parte reunidos por língua francesa.
vel. O câncer deixava a Clarice Olga Borelli. Também se publi- Gilda de Mello e Souza inclui
Lispector poucos meses de vida. cam seu quarto livro infantil, ensaio sobre A maçã no escuro no
No dia 17 de novembro, é trans- Quase de verdade, e, em volume livro Exercícios de leitura (Duas
ferida para o Hospital da Lagoa autônomo – Para não esquecer Cidades). No estudo, intitulado
– onde, apesar de ser público, (Ática) –, os textos que original- “O vertiginoso relance”, a auto-
lhe garantem um quarto indivi- mente compunham a seção ra se vale de Virginia Woolf pa-
dual. Todo o tratamento aplica- “Fundo de gaveta” de A legião es- ra entender a construção da nar-
do era de cunho paliativo: nem trangeira. A hora da estrela é pre- rativa apoiada na apreensão do
quimio nem radioterapia servi- miado com o Jabuti de “Melhor detalhe e do “instante-já”.
riam a Clarice com a doença tão Romance”. Estréia, no teatro Ruth Escobar,
avançada – doença, aliás, que Sai na França, pela Éditions des em São Paulo, Um sopro de vida,
não se revelou à paciente. Os Femmes, de Paris, tradução de A baseado no volume póstumo de
amigos e a família se encarrega- paixão segundo G.H., por Clau- mesmo nome, com adaptação
ram de fazer companhia: Olga, de Farny. A casa editorial france- de Marilena Ansaldi, que atua
Siléa, Elisa e Tania revezavam-se sa inaugura assim um programa no espetáculo, e José Possi Neto,
para que ela não ficasse só; Né- de publicação da obra de Clari- que a dirige.
lida e Rosa Cass a visitavam. ce Lispector que será executado
No mesmo mês, a Ática lança ao longo das décadas seguintes. 1981 A Nova Fronteira edita
uma nova edição de A legião es- Clarice Lispector – Esboço para
trangeira, reunindo apenas os 1979 Sai, pela Nova Fronteira, o um possível retrato, de Olga Bo-
contos mais longos incluídos na volume A bela e a fera, com al- relli, que apresenta sua visão da
versão de 1964. O volume conta guns dos contos de Clarice até escritora, ao retraçar a amizade
com prefácio de Affonso Romano então só aparecidos esparsamen- que as unira, em depoimento al-
de Sant’Anna, intitulado “Clari- te em jornais e revistas – escolhi-
ce: a epifania da escrita”. dos tanto entre os mais antigos
Claudine Petroli/Agência Estado

Morre no dia 9 de dezembro – como entre os últimos.


véspera de seu aniversário – às Olga de Sá lança A escritura de
10h30. É uma sexta-feira e, em Clarice Lispector, em que, após
observância às leis judaicas leitura dos primeiros críticos da
quanto ao shabat, não pode ser obra, dos anos 40 e 50, analisa os
sepultada. O enterro, no Cemi- romances a partir do conceito de
tério Comunal Israelita, no bair- “epifania” e do que considera
ro carioca do Caju, acontece, en- uma “linguagem metafórico-me-
tão, no dia 11, domingo. tafísica”. Hélène Cixous publica
Em 28 de dezembro, às 20h30, “L’approche de Clarice Lispec-
a TV Cultura leva ao ar a entre- tor: se laisser lire (par) Clarice
vista de Clarice Lispector, aten- Lispector” na revista Poétique (n.
dendo solicitação da escritora, 40), seguido do volume Vivre
que, no final daquele encontro, l’orange, edição bilíngüe (francês
pedira ao entrevistador que o e inglês), em leitura crítico/poé-
programa só fosse transmitido tica, mediante intervenções pes- Marilena Ansaldi em Um sopro de vida,
postumamente. soais e comentários de caráter inspirado no livro homônimo (1979)

37
ternado com fragmentos e textos elaborada por Earl Eugene Fitz; ções – da Confederação Inter-
da própria ficcionista. esse trabalho também integra nacional de Cineclubes – Cicae
A coleção paradidática Literatu- (ao lado de outro do mesmo gê- e da Organização Católica In-
ra comentada, da editora Abril, nero, assinado por Olga Espejo ternacional do Cinema e do
publica volume sobre Clarice Beshers) a edição 34 da Intera- Audiovisual – Ocic.
Lispector. Com organização de merican Review of Bibliography, João Carlos Horta dirige o cur-
Samira Youssef Campedelli e de Washington. ta-metragem Perto de Clarice,
Benjamin Abdala Júnior, o vo- produzido pela Embrafilme e
lume reúne informações básicas 1985 Earl Eugene Fitz lança que hoje se encontra no atual
referentes à vida e à obra da es- Clarice Lispector (Boston: G.K. Centro Técnico Audiovisual da
critora, além de trazer antologia Hall), versão ampliada da bi- Secretaria do Audiovisual do
de textos e exercícios de leitura. bliografia que publicara no ano Ministério da Cultura.
anterior. Suzana Amaral dirige A série Lendo, da Atual Edito-
1983 Berta Waldman lança Cla- o longa-metragem A hora da es- ra, lança o volume Clarice Lis-
rice Lispector – A paixão segundo trela, com roteiro de Alfredo pector, em que Roberto Corrêa
C.L.; o livro integra a coleção Oros, tendo no elenco Marcélia dos Santos, seguindo os objeti-
Encanto radical, da editora Bra- Cartaxo, José Dumont, Tamara vos didáticos da coleção – coor-
siliense, composta de breves tex- Taxman e Fernanda Montene- denada por Beth Brait –, alerta
tos sobre vida e obra de persona- gro; no filme, não existe a his- para o caráter mobilizador dessa
lidades de diversas áreas. tória do escritor Rodrigo, mas literatura, ao quebrar preconcei-
apenas a que ele nos conta no tos referentes a noções de tradi-
1984 Sai A descoberta do mundo, romance: a de Macabéa. No ção, influência, evolução, livro,
organizado por Paulo Gurgel ano seguinte, na 36ª edição do autor e obra.
Valente, reunindo, em ordem Festival de Berlim, o Urso de
cronológica, a quase totalidade Prata de “Melhor Atriz” seria 1987 A canadense Claire Varin
das colunas semanais publicadas dado a Marcélia Cartaxo; A ho- publica Clarice Lispector: rencon-
no Jornal do Brasil durante os ra da estrela receberia ainda, no tres brésiliennes (Laval: Trois,
mais de seis anos em que Clari- mesmo evento, duas premia- 1987); com a tradução de 11 en-
ce colaborou com o periódico.
Paralelamente às novas tradu-
Divulgação

ções, a Éditions des Femmes


lança, em sua coleção La Biblio-
tèque des voix, fita cassete com
trechos de La passion selon G.H.,
lidos pela atriz Anouk Aimée.
Ettore Finazzi-Agrò publica,
em Roma, Apocalypsis H.G.
(Bulzoni), em que faz uma “lei-
tura intertextual de A paixão se-
gundo G.H. e de Dissipatio
H.G.” – este, um romance de
Guido Morselli.
Em seu 50º número, a Revista
Iberoamericana, de Pittsburgh,
traz uma “Homenagem a Clari-
ce Lispector”, com ensaios de Cena de A hora da estrela (1985), filme de Suzana Amaral premiado em Berlim com o
vários estudiosos e bibliografia Urso de Prata de “Melhor Atriz” para Marcélia Cartaxo (na foto, com José Dumont)

38
trevistas concedidas pela escrito-

Divulgação
ra para distintos meios, o livro
também trazia reproduções – de
manuscritos, fotos e cartas, entre
outros –, acompanhadas de no-
tas explicativas, reforçando assim
a divulgação da obra clariciana
entre leitores da língua francesa.
Em setembro, é aberto ao públi-
co o conjunto dos documentos
que futuramente viria a constituir
o Arquivo Clarice Lispector do
Museu de Literatura Brasileira da
Fundação Casa de Rui Barbosa –
FCRB (Rio de Janeiro), constituí-
do de dois lotes doados por Pau- Fachada da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, que em 1987 abriu para o
público o conjunto de documentos que constituiria o Arquivo Clarice Lispector
lo Gurgel Valente.
Por ocasião dos dez anos de mor-
te da ficcionista são organizadas sia, veículo do curso de pós-gra- publica suas edições nos idiomas
diversas homenagens em sua me- duação em literatura brasileira da da região por ela coberta, com
mória. No Rio, a Casa de Cultu- Universidade Federal de Santa trabalhos relacionados à obra
ra Laura Alvim e a Oficina Lite- Catarina – UFSC, que em sua edi- em si e ao autor. No caso de Cla-
rária Afrânio Coutinho, com a ção 14, coordenada por Zahidé rice, colaboraram, sob coordena-
colaboração da Fundação Casa L. Muzart, reúne estudos de crí- ção de Benedito Nunes, Affon-
de Rui Barbosa, promovem, a 27 ticos brasileiros, franceses e ame- so Romano de Sant’Anna, Anto-
de novembro, o evento “Perto de ricanos. Também o Suplemento nio Candido, Benjamin Abdala
Clarice”. A vasta programação Literário de Minas Gerais de 19 de Júnior, Nádia Batella Gotlib,
era composta de palestras, exibi- dezembro se voltaria para a escri- Norma Tasca, Olga Borelli, Ol-
ção de filmes e vídeos, mostra de tora. Sob o título “Lembrando ga de Sá e Samira Youssef Cam-
fotos, telas, livros e entrevistas, Clarice”, o n. 1091 do veículo, pedelli. O volume trazia ainda
além de apresentações cênicas: organizado por Nádia Battella um poema de João Cabral de
um espetáculo, dirigido por Íta- Gotlib, trazia ensaios e textos de Melo Neto (“Contam de Clari-
lo Rossi, com Camila Amado in- caráter bibliográfico. ce Lispector”), cartas, uma en-
terpretando textos da autora, e trevista com a escritora, a reedi-
leitura de fragmentos de sua 1988 A revista espanhola El Pa- ção de textos críticos sobre o ro-
obra, por Marieta Severo e Fer- seante, de Madri (n. 11), publi- mance, assinados por José
nanda Montenegro, sob direção ca texto de Olga Borelli sobre Américo Motta Pessanha, Luiz
de Naum Alves de Souza. No Clarice Lispector, com reprodu- Costa Lima e Solange Ribeiro
mesmo evento, são lançados um ção de documentos e fotos. de Oliveira, um fac-símile de
catálogo com depoimentos de A paixão segundo G.H. passa a “A bela e a fera ou a ferida gran-
Clarice Lispector e de amigos ser o 13º texto a ganhar edição de demais” (com transcrição de
seus e, pela primeira vez em li- crítica dentro da coleção “Ar- Benedito Nunes) e uma biblio-
vro, Como nasceram as estrelas – chivos” da Associação Arquivos grafia, estabelecida por Glória
Doze lendas brasileiras. da Literatura Latino-America- Maria Cordovani.
Números especiais de vários pe- na, do Caribe e Africana do Sé-
riódicos também lembram a es- culo XX . A Allca, originada na 1989 Morre no Rio Elisa Lispec-
critora. É o caso da revista Traves- Biblioteca Nacional de Paris, tor, a 6 de janeiro, de câncer.

39
A revista Remate de Males, do De- sidade de Montreal. No Brasil, o produção tinha também no
partamento de Teoria Literária da livro sairia anos mais tarde, como elenco Antonio Fagundes e Car-
Universidade de Campinas – Línguas de fogo – Ensaio sobre la Camurati.
Unicamp, dedica o seu nono nú- Clarice Lispector, em tradução A paixão segundo G.H. é encena-
mero, organizado por Vilma de Lúcia Peixoto Cherem (Li- da na capital francesa – no tea-
Arêas e Berta Waldman, a Clari- miar, 2002). tro Gérard Philippe – em mon-
ce Lispector, reunindo ensaios e tagem de Alain Neddam, com
também fotos e documentos. 1991 A revista carioca Tempo Nelly Borgeaud no papel da
Duas revistas canadenses tam- Brasileiro publica edição especial protagonista.
bém lançam edições (ambas or- (n. 104) sobre Clarice, organiza-
ganizadas por Maria do Carmo do por Vera Queiroz, com 11 1992 Berta Waldman lança, pe-
Campos e Michel Peterson) ten- ensaios. la editora Escuta, uma versão re-
do a escritora por tema: Parole O depoimento dado em 1976 vista e ampliada de Clarice Lis-
métèque (n. 11) e Études Françai- pela escritora ao Museu da Ima- pector: a paixão segundo C.L.
ses (n. 25-1). gem e do Som sai no número 7 De 24 de novembro a 20 de de-
Benedito Nunes publica O dra- da série editada pela instituição. zembro, o Centro Cultural Ban-
ma da linguagem – Uma leitura Dirigido por José Antonio Gar- co do Brasil, no Rio, relembra os
de Clarice Lispector (Ática), que cia, “O corpo”, longa-metragem 15 anos de morte da escritora
traz, revistos, os ensaios elabora- baseado em conto do mesmo tí- com o evento “A paixão segundo
dos em 1972 e incluídos em Lei- tulo de A via crucis..., é conside- Clarice Lispector”, coordenado
tura de Clarice Lispector (Quí- rado o melhor filme no 24º Fes- por suas idealizadoras, Ilse Ro-
ron, 1973) e mais dois artigos tival de Brasília e no 32º Festival drigues e Lícia Manzo; no pro-
escritos entre 1973 e 1982 sobre Internacional de Cartagena grama, palestras, leituras dramá-
os últimos romances da autora. (Colômbia) – além de, no pri- ticas, exibição de filmes e vídeos
E, na França, Hélène Cixous meiro, ter ainda premiadas Ma- e mostra. O catálogo trazia fotos
lança pela Éditions des Femmes rieta Severo e Cláudia Jimenez da escritora, trechos selecionados
L’heure de Clarice Lispector, in- na categoria “Melhor Atriz”. de sua obra, reprodução de ma-
cluindo o livro anterior, Vivre Com roteiro de Alfredo Oros, a nuscritos e de quadros assinados
l’orange, e dois novos textos: “À
la lumière d’une pomme” e
Divulgação

“L’auteur en vérité”, sobre A ho-


ra da estrela.
Marilena Ansaldi volta a adaptar
Clarice – desta vez, A paixão se-
gundo G.H.; o espetáculo, ence-
nado no Museu de Arte Moder-
na de São Paulo, seria dirigido
por Cibele Forjaz.

1990 Tem início a reedição da


obra de Clarice Lispector pela
Francisco Alves, que deteria os
direitos autorais até 1997.
Claire Varin publica Langues de
feu – Essais sur Clarice Lispector
(Laval: Trois), a partir de tese de Cláudia Jimenez, Antonio Fagundes e Marieta Severo em O corpo, longa-metragem
doutorado defendida na Univer- adaptado do conto de mesmo título e dirigido por José Antonio Garcia (1991)

40
Edu Simões/IMS
por Clarice, além da transcrição Sai o livro de entrevistas feitas
de depoimentos de Nélida Pi- por Vera Regina Morganti –
ñon, Lúcio Cardoso, Hélio Confissões do amor e da arte¸ or-
Pellegrino e Caetano Veloso. ganizado por Regina Zilberman
e Maria da Glória Cordovani e
1993 Diane E. Marting publica editado pela Mercado Aberto –
nos Estados Unidos Clarice Lis- trazendo depoimento de Mafal-
pector. A Bio-Bibliography (Wes- da Verissimo intitulado “Tardes
tport: Greenwood Press), registro com Clarice Lispector”.
de dados bibliográficos de e sobre Morre, no dia 28 de dezembro,
a autora. O estudo, elaborado por Maury Gurgel Valente.
vários colaboradores, compila os
dados de bibliografias anteriores e 1995 É lançado o curta-metra- Ana Miranda, que assina uma biografia
ficcional de Clarice, editada em 1996
acrescenta novos, compondo o gem Ruído de passos, inspirado
mais completo documento do gê- no conto homônimo de A via
nero referente à obra de Clarice crucis do corpo, com roteiro e di- Clarice Lispector, com seleção
até hoje publicado. reção de Denise Gonçalves, ten- feita por Walnice Nogueira Gal-
Olga de Sá lança Clarice Lispec- do Renée Gumiel no papel prin- vão, é publicada pela Global.
tor: a travessia do oposto (Anna- cipal (dona Cândida Raposo) e
blume), uma leitura de seus ro- Sylvie Laila como sua filha. 1997 A Rocco adquire os direi-
mances com base na “reversão Nádia Battella Gotlib publica tos da obra de Clarice e inicia o
paródica” que já detectara em seu Clarice – Uma vida que se conta seu relançamento, com texto es-
estudo anterior sobre a escritora. (Ática), em que se alterna a lei- tabelecido por Marlene Gomes
tura de dados biográficos e a de Mendes, tendo por base as pri-
1994 Sai, com o selo da Funda- textos da escritora, numa versão meiras edições de cada livro.
ção Casa de Rui Barbosa, Inven- reduzida do trabalho defendido Valéria Franco Jacintho trans-
tário do arquivo Clarice Lispector, como tese de livre-docência na creve, em Cartas a Clarice Lis-
organizado por Eliane Vascon- Universidade de São Paulo – pector. Correspondência passiva
cellos; o trabalho facilitaria o USP em 1993. da escritora depositada na Fun-
acesso do público à consulta do dação Casa de Rui Barbosa, to-
material depositado na entidade. 1996 Marcelo Gomes e Beto das as missivas recebidas pela es-
Maria José Barbosa publica Spin- Normal realizam o curta Clan- critora e depositadas em seu
ning the webs of passion (New Or- destina felicidade, roteirizado pe- arquivo, naquela instituição; as
leans: University Press of the la dupla de diretores a partir do cartas, de 127 remetentes, vêm
South), a partir de pressupostos conto “Felicidade clandestina” e acompanhadas de notas explica-
da crítica feminista e do pós-es- de outros textos da obra de Cla- tivas de Jacintho.
truturalismo; o livro sairia no rice, privilegiando a infância da A revista Anthropos, de Barcelo-
Brasil, em 2001, com o título de escritora em Recife. na, publica número especial so-
Desfiando as teias da paixão (Edi- Sai Clarice Lispector: O tesouro de bre Clarice, intitulado “La escri-
tora da Pontifícia Universidade minha cidade, biografia ficcional tura del cuerpo y el silencio”, sob
Católica do Rio Grande do Sul). escrita por Ana Miranda para a coordenação de Elena Losada
Márcia Lígia Guidin assina A coleção Perfis do Rio, da editora Soler, Antonio Maura e Wagner
hora da estrela de Clarice Lis- Relume Dumará; trata-se de Novaes; colaboram, além dos
pector (Roteiro de leitura). O li- uma série de instantâneos que organizadores, Vilma Arêas, Ol-
vro sai pela Ática e inclui dados entremeia fatos da vida da escri- ga Borelli, Hélène Cixous, Ná-
biográficos e bibliográficos, tora e seus textos. dia Battella Gotlib, Armando
além de análise de textos. A antologia Os melhores contos de Freitas Filho, Amariles G. Hill,

41
Bella Jozef, Benedito Nunes, Renata Ruth M. Wasserman, Niterói, onde mora com os pais
Marly de Oliveira, Nélida Piñon Berta Waldman, Rejane Pivetta Dora e Israel Wainstok, na épo-
e Solange Ribeiro de Oliveira. de Oliveira e Ana Mariza Ribei- ca em que as primas já estão ins-
ro Filipouski – alguns dos quais taladas no Rio.
1998 Estréia no Rio de Janeiro, haviam sido apresentados, na Em Portugal, Carlos Mendes de
no teatro da Casa da Gávea, mesma cidade, no seminário Sousa publica o estudo Clarice
“Clarice – Coração selvagem”, “Vinte anos sem Clarice”, orga- Lispector: figuras da escrita (Bra-
espetáculo adaptado e dirigido nizado no ano anterior pela ga: Universidade do Minho/
por Maria Lucya Lima, que se Pontifícia Universidade Católi- Centro de Estudos Humanísti-
baseia no depoimento da escrito- ca do Rio Grande do Sul – PUC- cos), em que propõe uma leitu-
ra ao MIS; no elenco, Aracy Bala- RS e pelo Instituto Cultural Ju- ra da obra da autora a partir da
banian, Marcelo Escorel e Laura daico Marc Chagall. detecção, justamente, das “figu-
Antunes. A peça – que também ras” principais que encerrariam
seria encenada no teatro Cultura 1999 Estréia em setembro no diversos sentidos; o volume re-
Artística, em São Paulo – geraria Teatro N.E.X.T., no Rio de Janei- sulta de tese de doutorado de-
o CD A descoberta do mundo ro, o espetáculo Que mistérios fendida no ano anterior.
(2002), com leitura de textos da tem Clarice, adaptado por Luiz
escritora por Balabanian. Arthur Nunes e Mário Piragibe. 2001 Fernando Sabino organiza
Sai Clarice Lispector: a narração O espetáculo – uma compilação e lança, pela editora Record,
do indizível (edição conjunta da de textos diversos da escritora – Cartas perto do coração, conten-
Artes e Ofícios, Editora da Pon- é dirigido por Nunes, com a do a correspondência que man-
tifícia Universidade Católica do atuação de Rita Elmôr. teve com Clarice Lispector de
Rio Grande do Sul e Instituto Teresa Cristina Montero Ferreira 1946 a 1969 e notas importan-
Cultural Judaico Marc Cha- publica Eu sou uma pergunta – tes para a devida compreensão
gall), com ensaios de Regina Uma biografia de Clarice Lispector do contexto em que se dá essa
Zilberman, Nelson Vieira, Be- (Rocco), que cobre desde a vida troca de missivas.
nedito Nunes, Lúcia Helena dos ascendentes da escritora, na A editora Alfaguara compila em
Vianna, Angela Fronchkowiak, Ucrânia, até o dia de sua morte; espanhol os 74 contos de Clari-
o livro se baseia na dissertação de ce Lispector publicados em seis
mestrado defendida na Pontifícia livros. A antologia, Cuentos reu-
Divulgação

Universidade Católica do Rio de nidos, é preparada por Miguel


Janeiro – PUC-RJ, em 1995. Cossío Woodward, com tradu-
Sai pela Companhia das Letras, ção de Cristina Peri Rossi, Juan
a novela Clarice, de Ana Miran- García Gayo, Marcelo Cohen e
da, versão modificada do livro Mario Morales.
lançado em 1996. Lícia Manzo lança Era uma vez:
eu – A não-ficção na obra de Cla-
2000 Davi Wainstok – embora rice Lispector (Editora da Uni-
faça apenas uma menção explíci- versidade Federal de Juiz de Fo-
ta às primas Elisa, Tania e Clari- ra), ensaio que pretende, nas
ce – traça com detalhes em seu palavras da estudiosa, oferecer
livro de memórias Caminhada: uma leitura dos textos da escri-
reminiscências e reflexões (Lida- tora, como uma “autobiografia
dor) o contexto cultural e políti- não planejada”. A editora do ki-
co do Recife de sua infância e butz Hameuchad publica A ho-
Aracy Balabanian, que lê textos da auto- adolescência, quando lá também ra da estrela em hebraico, com
ra no CD A descoberta do mundo (1998) estão os Lispectors, e a vida em tradução de Miriam Tivon.

42
Acervo Embaixador Hélder Martins de Moraes
2002 Sai pela Publifolha, na sé-
rie de livros paradidáticos Fo-
lha explica, texto de Yudith Ro-
senbaum intitulado Clarice
Lispector, que traz dados bio-
gráficos e sucinta análise da
obra da autora.
A Rocco lança o volume Corres-
pondências – Clarice Lispector,
antologia de cartas de e para a
ficcionista, selecionadas por Te-
resa Montero.
Duas peças retomam obras da
escritora. Em São Paulo, estréia
no teatro Imprensa A hora da es- Placa em homenagem a Clarice Lispector inaugurada na Prefeitura de Tchetchelnik (2002)
trela, adaptada e dirigida por
Naum Alves de Souza, com Cé-
lia Borges, Ester Lacava e Edgar cos gravados em russo e em por- tora Rocco publica Aprendendo a
Jordão. No Rio, no teatro do tuguês, que é afixada na entrada viver, seleta de crônicas publicadas
Centro Cultural Banco do Bra- da sede da administração muni- anteriormente em A descoberta do
sil, é encenada a versão de Fau- cipal. mundo (1984).
zi Arap de A paixão segundo 2003 Em março, acontece na Em 9 de dezembro, o Instituto
G.H., dirigida por Enrique Universidade de São Paulo o Moreira Salles lança a edição es-
Diaz e tendo Mariana Lima no “Colóquio Clarice Lispector”, pecial dos CADERNOS DE LITERA-
papel da protagonista. A peça organizado por Regina Pontieri, TURA BRASILEIRA, dedicada à vi-
cumpre temporada carioca de com a exposição de trabalhos de da e à obra da autora.
outubro a dezembro e, a partir vários especialistas do Brasil e
de abril do ano seguinte, estaria exterior, os quais seriam reuni-
em São Paulo, no Sesc-Belenzi- dos, no ano seguinte, no volume Nádia Battella Gotlib é professora
nho, sendo levada até agosto. Leitoras e leituras de Clarice Lis- livre-docente de literatura brasi-
Closer to the wild heart. Essays pector (Hedra). leira na Universidade de São Pau-
on Clarice Lispector é editado O livro de Olga Borelli, esgota- lo. Escreveu, entre outros, Teoria
pela Universidade de Oxford, do em português, é editado em do conto (São Paulo: Ática,
na Inglaterra. O volume tem Paris, pela Éditions Eulina Car- 1985), O estrangeiro definitivo:
organização de Cláudia Pazos valho, com o título de Clarice poesia e crítica em Adolfo Casais
Alonso e Claire Williams, com Lispector. D’une vie à l’oeuvre, em Monteiro (Lisboa: Imprensa Na-
a colaboração de especialistas tradução de Maryvonne Petto- cional-Casa da Moeda, 1985) e
de diversos países. relli e Véronique Basset. Tarsila do Amaral, a modernista
Morre na cidade de São Paulo, (São Paulo: Senac, 1998). No que
em 7 de outubro, Olga Borelli. 2004 Os manuscritos de A hora se refere a Clarice Lispector, cola-
No dia 10 dezembro, data do da estrela e parte dos livros que borou em diversas edições sobre a
aniversário de Clarice, a Embai- pertenciam à biblioteca pessoal autora e publicou a biografia Cla-
xada do Brasil na Ucrânia e a de Clarice Lispector são confia- rice – Uma vida que se conta
Prefeitura de Tchetchelnik se dos por Paulo Gurgel Valente à (São Paulo: Ática, 1995). Prepa-
associam em homenagem à me- guarda do Instituto Moreira Sal- ra, no momento, Clarice Lispec-
mória da escritora, inaugurando les, que os conserva em seu centro tor: fotobiografia, a sair pela
uma placa com dados biográfi- cultural no Rio de Janeiro. A edi- Editora da USP.

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CONFLUÊNCIAS

Laços de família e outros laços


ATADOS PELO FILHO PAULO GURGEL VALENTE E TRÊS AMIGOS SINCEROS
DA AUTORA: LÊDO IVO, ALBERTO DINES E FERREIRA GULLAR

Paulo Gurgel Valente nasceu em Washington a


Acervo Paulo Gurgel Valente

10 de fevereiro de 1953, cinco meses depois da


mudança dos pais, Clarice e Maury Gurgel
Valente, para os Estados Unidos, quando da
transferência do diplomata para a embaixada
brasileira. Formou-se em economia na
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), pela qual também concluiu o curso de
mestrado – desde 1959 vive na capital
fluminense, para onde se mudou com a mãe e
o irmão mais velho, Pedro. É, desde 1992,
sócio da Profit – Projetos e Consultoria. Tem
artigos sobre economia editados no Jornal do
Commercio e em O Globo. Colaborou na
edição de volumes póstumos e antologias de
textos escritos por sua mãe, tais como A
descoberta do mundo (Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984), reunião de colunas
publicadas pelo Jornal do Brasil, A bela e a
fera (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979),
volume de contos, e Correspondências (Rio
de Janeiro: Rocco, 2002), compilação de
cartas organizada por Teresa Montero.

“ Um dia desses acordei ouvindo o barulho do teclado da máquina de escrever de minha mãe. Até
perceber que se tratava da chuva na janela, fui remetido à infância, quando de manhã cedo despertava
ao som daquela batida antes mesmo do nascer do sol. Minha mãe acordava de madrugada e punha-se a
escrever com o primeiro café.

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O ruído vinha sempre do mesmo ponto do apartamento no Rio ou, antes, da nossa casa em
Washington, de onde nos mudamos em meados de 1959. Da cama, eu sabia que ela estava lá, traba-
lhando, trabalhando.
Um pequeno sofá e uma mesa lateral, no canto da sala: este era seu local de trabalho. Ali, a vi escre-
ver, com a máquina apoiada no colo, quase tudo o que fez a partir do momento em que me entendi por gente.
Cresci sempre por perto desse canto e, por isso, sem o sentimento de privação que deve ser co-
mum entre os filhos de gente muito atarefada com a profissão. Clarice nem mesmo considerava seu tra-
balho profissional; sempre se disse amadora.
Minha mãe viveu ocupada não só com o escrever, mas também com o movimento da casa, das
empregadas, dos filhos e dos telefonemas de providências. Também dedicava tempo ao jornalismo, sua
outra frente de trabalho. Depois que viemos dos Estados Unidos para o Brasil, ela passou a dar continui-
dade ao ofício que começara na década de 40, como repórter da Agência Nacional. As crônicas, as colu-
nas femininas e as entrevistas com personalidades foram um complemento importante para o orçamen-
to doméstico, mas representavam um interesse menor em relação aos contos e romances, que eram um
imperativo pessoal, antes de mais nada.
Clarice nunca pareceu incomodada com as muitas interrupções que sofreu a produção de todos
os seus livros escritos durante o período em que tinha os filhos na infância – Pedro e eu, cinco anos mais
novo. Nem depois, com as muitas visitas de estudantes, pesquisadores e admiradores em nossa casa.
Uma das vezes em que me coloquei entre ela e seu ofício foi para pedir que escrevesse uma his-
tória para mim. Naquele período, vivíamos em Washington. É de lá, aliás, a mais remota imagem que
trago de Clarice: ela dirigindo, num dia de muita neve.
Na capital americana – para onde a família se mudara para acompanhar uma etapa da carreira
profissional de meu pai – nasci e aprendi minha primeira língua, o inglês. Em casa, falavam-se os dois
idiomas, o local e o português.
Em outubro de 2004, fiz uma viagem especialmente para rever nossa casa em Washington, na
Ridge Street, em Bethesda, em Chevy Chase. Lá recordei momentos marcantes, os anos dourados de nos-
sa família. A casa, mais de 45 anos depois, permanece quase intacta, as mesmas escadarias, a lareira, o
mesmo quintal, os mesmos degraus na calçada onde vendíamos aos vizinhos a pink lemonade, a mesma
garagem onde ficavam nossos coelhos, depois personagens de histórias de mistério. Os donos atuais da
casa têm netos, que brincam do mesmo jeito e a casa continua viva, com árvores frondosas ao redor. Tra-
ta-se de um ponto turístico para brasileiros que gostam de literatura.
Nesse mesmo cenário, em meados dos anos 50, ela trabalhava em A maçã no escuro. Não podia
imaginar na época que o romance seria um de seus trabalhos mais exaustivos. Suas 500 páginas datilogra-
fadas foram reescritas pelo menos 11 vezes. Isso, sem levar em conta as muitas cópias que fez para enviar
a editoras e aos amigos escritores no Brasil, como Fernando Sabino e meu padrinho, Erico Verissimo.

45
No meio dessa tarefa de Sísifo, Clarice escreveu para mim O mistério do coelho pensante. Fábula
escrita em inglês – com indicações para que Avani, minha babá, ou qualquer outro adulto pudesse ler em
voz alta –, foi publicada dez anos depois no Brasil como seu primeiro livro infantil.
A história conta – na verdade, não conta, mais convida o leitor ou ouvinte a desvendar o enre-
do – o segredo de um coelho de verdade, habitante de uma gaiola na garagem daquela casa, onde vivi até
os seis anos de idade.
Lembro-me da voz dos vizinhos gritando ‘Mrs. Valente, Mrs.Valente!’. Então sabíamos que o
nosso coelho tinha escapado do grande engradado e àquela altura tinha sumido. Clarice sempre adorou
animais, seu último foi o inseparável vira-lata Ulisses. Mas talvez nunca tivesse pensado em escrever uma
fábula infantil até aquele dia.
Dos anos que se passaram depois que viemos morar no Rio de Janeiro, guardo recordações cu-
riosas. Foi quando, por exemplo, cumprimentei o presidente Juscelino Kubitschek, que apertou minhas
mãos aos oito anos de idade. Isso aconteceu durante o lançamento de A maçã no escuro, em 1961. Era
dia da inauguração do festival de escritores, no centro comercial de Copacabana, na rua Siqueira Cam-
pos, evento que viria a ser a Bienal do Livro.
Cada autor tinha direito a um ‘padrinho’ em seu estande. O nosso era Tom Jobim. O composi-
tor, já bastante conhecido, nos ajudou a vender aqueles volumes de estréia.‘Comprem! Comprem!’, di-
zia alto o músico, como um ambulante.
Vendemos a 9,90 cruzeiros cada – era um preço alto, mesmo para um volume de quase 400 pá-
ginas, minha mãe tinha até vergonha. Clarice divertiu-se muito com a ‘publicidade’ do amigo músico,
anunciando o romance como num alto-falante.
Ela costumava conduzir assim, com humor, quase todas as situações que pude testemunhar. Era
dona de uma alegria recolhida, que às vezes tinha de ser adivinhada. Outras vezes não. Podia não ser aber-
tamente alegre, mas nos fazia rir, abertamente.
Reencontrei essa disposição ao rever o material que reunimos, Teresa Montero e eu, para a pu-
blicação de Correspondências, em 2002. Nas cartas, encontrei um humor fino, uma ironia divertida que
talvez só os mais próximos conhecessem. É um lado pessoal de Clarice que está em parte de suas obras,
especialmente as crônicas. Ao convidar, por carta, Mafalda e Erico Verissimo para serem padrinhos meus
e de Pedro, ela escreve: ‘No caso dos senhores não aceitarem, no hard feelings. Mas a verdade é que, por
três anos, vocês têm sido os padrinhos deles, por tácito, espontâneo e comum acordo. Restaria apenas le-
galizar uma situação que aos poucos estava se tornando escandalosa.’
Mafalda e Erico – que aceitaram o convite – eram dois que riam muito com Clarice, assim co-
mo muitas pessoas que nos rodeavam.
Minhas mais antigas lembranças de casa, quase todas trazem imagens leves como essas de amigos, de
momentos em família que começavam cedo, pela manhã, ao som de uma certa máquina de escrever.

46
Alagoano de Maceió, nascido no ano de 1924, Lêdo Ivo é
Rogério Reis/Tyba

poeta e ficcionista; dedica-se ainda ao ensaio, à crônica e à memo-


rialística, o que já resultou em mais de 30 obras publicadas.
Embora tenha se formado na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil – hoje Universidade Federal do Rio de
Janeiro –, jamais exerceu a profissão: sempre trabalhou como jor-
nalista. Foi redator da Tribuna da Imprensa e da revista
Manchete e colaborou com diversos veículos, como os jornais
Correio da Manhã e O Estado de S. Paulo. Estreou literaria-
mente em 1944, com As imaginações, coletânea de poemas. O
primeiro romance, As alianças, surgiria três anos depois. Desde
1986, Lêdo Ivo ocupa a cadeira 10 da Academia Brasileira de
Letras. Entre os diversos prêmios que recebeu estão o Olavo Bilac,
da ABL, por Ode e elegia (poesia, 1945) e o Juca Pato – como
“Intelectual do Ano de 1990” –, outorgado pela seção paulista da
União Brasileira de Escritores e o jornal Folha de S.Paulo. Toda a
sua obra poética está reunida no livro Poesia completa (Rio de
Janeiro: Topbooks, 2004).

“ Foi Maceió, a minha terra natal, o primeiro chão brasileiro pisado pela menina ucraniana que
haveria de se chamar Clarice Lispector. Na capital alagoana transcorreram as operações iniciais de fixa-
ção e assentamento, em solo estrangeiro, de uma pequena e modesta família de imigrantes que, em lon-
ga e talvez patética viagem de fuga, pôde enfim respirar o ar de segurança e esperança numa cidade nor-
destina em breve tornada simples etapa de uma trajetória mais estendida. Mas a mesa da manhã que nasce
está sempre juncada de pequenos mistérios. Em Maceió, nas ruas que cheiravam a açúcar e maresia, e
que declinavam para o mar de navios ancorados, a menina ucraniana foi tocada para sempre pelo que
haveria de ser o emblema do seu destino: a luminosidade solar. Após os dias e meses iniciais de neve e
bruma, e de céus fechados e sombrios, ela conheceu o sol, o mormaço e o vento do mar.
A alagoanidade inicial de Clarice Lispector sempre foi escondida pelos seus biógrafos e intérpre-
tes, que se limitam, às vezes, e condescendentemente, a uma brevíssima menção. Decerto a consideram
irrelevante. Mas uma passagem, na história subterrânea dos espíritos, tem às vezes a importância de uma
longa permanência. Lembre-se que a Macabéa de A hora da estrela é uma alagoana que imigra para o sul
e, transplantada, encontra a desilusão e a morte.
Clarice Lispector não era Clarice Lispector. Na operação transplantadora ela perdeu tudo o que
trazia: a pátria, a língua e o nome. Uma pátria nova se abriu a seus passos e imigração. Uma língua no-
va passou a substituir a língua perdida. E um nome novo substituiu o nome verdadeiro, perdido para
sempre, e para sempre escondido.

47
Clarice Lispector: o nome novo ocultava, ou semi-ocultava, a sua condição de judia. Com a sua
etimologia de claridade e espectro luminoso, parece ter nascido, como uma flor, do próprio chão alagoa-
no, ou das dunas ondulantes junto ao mar. Era um nome de luz e esplendor – e, por toda a vida, ela,
Clarice Lispector, haveria de portá-lo como se ele fora um radioso pseudônimo.
Os críticos e historiadores literários, com o seu eruditismo predatório e a sua visão livresca, têm
o hábito de atravessar a infância dos criadores literários com a cautela ou desenvoltura de quem salta uma
poça d’água. Só se sentem seguros, e confortados, diante das maioridades físicas ou culturais. E foi assim
que muitos abriram a primeira página de Perto do coração selvagem: como se a estréia literária correspon-
desse a uma aparição biológica. Mas nós, os criadores literários – os poetas, romancistas e dramaturgos
– sabemos que a nossa história verdadeira habita o buraco negro de uma infância de sóis cruzados e cons-
telações. É nesse estuário oculto que guardamos os nossos sonhos e segredos. No caso de Clarice Lispec-
tor, a luminosidade radical não se cingiu ao nome novo e misterioso, ao seu nome quase sem pátria, pseu-
dônimo e esconderijo de si mesma, pátria silábica de um esconderijo perpétuo. Essa claridade, essa
claricidade se converteu em linguagem e banha a sua obra inteira; uma obra que é uma contínua fulgu-
ração verbal e sintática, uma ofuscante cintilação regencial.
Não haverá, decerto, uma explicação tangível e aceitável para o mistério da linguagem e do esti-
lo de Clarice Lispector. A estrangeiridade de sua prosa é uma das evidências mais contundentes de nos-
sa história literária e, ainda, da história de nossa língua. Essa prosa fronteiriça, emigratória e imigratória,
não nos remete a nenhum dos nossos antecessores preclaros. Não é a de José de Alencar ou a de Macha-
do de Assis. Não é a de Euclides da Cunha ou José Lins do Rego. Não está nos que vieram antes, embo-
ra fervilhe, como um gracioso contágio epidêmico, nos numerosos epígonos que, alcançados pela sua en-
feitiçante lição magistral, tanto se afervoram em imitar o inimitável, e diluir o indiluível.
Essa dicção translúcida percorre toda a sua obra, desde os romances, como o já mencionado
Perto do coração selvagem, O lustre e A maçã no escuro, até os contos, desde as crônicas às reportagens.
Dir-se-ia que ela, brasileira naturalizada, naturalizou uma língua, convertendo-a num instrumento
pessoal e desligado de qualquer tradição egrégia; um idioma solar, alagoanamente solar, destinado a
narrar as tribulações de pequenas criaturas rodeadas de si mesmas e desaparelhadas para efetuar o tra-
jeto em direção aos outros; uma prosa de escancarada diurnidade mesmo quando ela fala da noite e
relata a escuridão; uma prosa de fulguração e enfeitiçamento; uma prosa ambígua, clareada sempre
por uma auréola poética simultaneamente concreta – e espessa em sua concretitude – e evanescente.
E, em muitos casos, uma prosa que ousa dispensar o enredo e a motivação, para imperar, num isola-
mento radioso, na página em branco.
Clara Clarice – ao lembrá-la agora, é como se um pássaro esvoaçasse no céu azul de Maceió, co-
mo um sinal durável de sua breve e misteriosa alagoanidade. Um pássaro: os erres de sua dicção pareciam
ter algo do grito gutural das gaivotas.

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‘A beleza é uma promessa de felicidade’ – pássaro ferido, Clarice Lispector desmentiu, em sua vi-
da, esse aforismo de Stendhal. Desde o nosso primeiro encontro – marcado por seu grande amigo Lúcio
Cardoso –, em 1944, quando ela surgiu diante de mim como uma aparição deslumbrante, que me fez
lembrar Virginia Woolf, eu entendia que, com a sua beleza que tinha algo de aristocrático, em contraste
com a extrema humildade de suas origens, ela deveria criar a sua obra longe do coração selvagem da vida,
num lugar que lhe permitisse ser e respirar sem os contágios e colisões dos ajuntamentos ou promiscuida-
des borbulhantes. O caminho de sua felicidade reclamava o distanciamento e a viagem. A menina estran-
geira, tornada mulher, precisava de outros chãos estrangeiros para afirmar a sua natividade espiritual.
O seu casamento com um diplomata me pareceu ser um acerto do destino, inclusive porque os
seus primeiros passos, no cenário editorial, antecipavam obstáculos e resistências. Por iniciativa de Lúcio
Cardoso, os originais de Perto do coração selvagem foram encaminhados a Álvaro Lins, visando a uma edi-
ção pela prestigiosa editora José Olympio. O mais poderoso crítico da época desaconselhou a sua publi-
cação. Outro crítico influente, o judeu austríaco naturalizado brasileiro, Otto Maria Carpeaux, também
leu os originais de Clarice, numa espécie de recurso a uma nova instância literária, e o seu julgamento
foi o mesmo do seu preclaro colega. Ambos aconselhavam a jovem romancista a recolher-se à sua con-
cha e voltar mais tarde, querendo. Sem condições de estrear numa editora condigna, Clarice Lispector
foi obrigada a aceitar a proposta de uma editora de parca ressonância cultural – a editora A Noite – a
qual aquiesceu em publicar o livro levando em conta a sua condição de antiga redatora do jornal A Noi-
te, da mesma organização estatal. Nada lhe foi pago. Ela se limitou a receber cem exemplares do livro,
para distribuí-los entre amigos, parentes, críticos literários e jornalistas. O título do romance lhe foi da-
do por Lúcio Cardoso – e a epígrafe de James Joyce, que ela então desconhecia, levou muito crítico da
época a trombetear a sua filiação ao autor de Ulisses. A meu ver, os modelos são Katherine Mansfield,
Rosamond Lehmann e, claro, Virginia Woolf, com as quais ela ostenta nítidas afinidades. Ao comentar
o livro, em um artigo publicado no jornal carioca A Manhã e transcrito pelo Jornal de Alagoas a 25 de fe-
vereiro de 1944, escrevi:

Trata-se de um romance diferente, que nada tem de nebuloso, mas se assenta em uma fa-
bulosa clareza, que se multiplica em um sentido de tempo e de espaço. [...]
[...] Senti-o várias vezes, ao ler seu romance, que Clarice Lispector guarda para o grande
espaço desdobrado no futuro que vai ser a sua vida literária uma impressionante personalidade.
Ela tem muito o que dizer com a sua voz de mulher, essa milagreira dos sofrimentos de Joana, e
poeta admirável do país de Lalande, que ‘é também mar de madrugada, quando nenhum olhar
ainda viu a praia, quando o sol ainda não nasceu’.
Perto do coração selvagem é o maior romance que uma mulher jamais escreveu em língua
portuguesa.

49
A consagração crítica advinda de sua estréia permitiu que o segundo livro de Clarice Lispector, O lus-
tre, fosse aceito pela Agir, uma nova editora que surgia sob a direção literária de outro crítico famoso, Tristão
de Athayde (Alceu Amoroso Lima). A vendagem decepcionante a forçou a procurar um outro editor para o
seu terceiro romance, A cidade sitiada. Nessa época, eu trabalhava precisamente na editora A Noite, então di-
rigida por Adonias Filho, e me coube receber os originais (Clarice estava então em Roma) e cuidar da publi-
cação. O surgimento da Editora do Autor, de Rubem Braga e Fernando Sabino, ampliou a presença de Cla-
rice Lispector no cenário cultural. Mas logo vieram novos dias de recusa e dificuldades. Durante certo tempo,
quando ninguém queria editá-la, o poeta Álvaro Pacheco a acolheu em sua editora, a Artenova.
Autora de pequeno público, de textos – romances, contos, crônicas – que se distinguiam pelo seu
ar requintado, e às vezes por uma sibilinidade que só podia ser vencida ou atravessada pelo caminho da
atenção desdobrada, Clarice Lispector enfrentou, a vida inteira, o desafio das emigrações editorais, percor-
rendo desde as pequenas editoras às mais prestigiadas e aparelhadas para ampliar a sua presença no mer-
cado. No seu caso específico de escritora to the happy few, a morte foi o seu grande e definitivo editor. De-
saparecida, ela foi, finalmente, descoberta e redescoberta, numa iluminação que transpôs as fronteiras
aborígines. Em Paris ou Nova York, costumo encontrar traduções de Clarice Lispector, e me sobem à lem-
brança aqueles tempos em que ninguém queria publicá-la ou o fazia num gesto de largada generosidade.
Separada do marido diplomata, Clarice Lispector voltou a morar no Rio e, num exercício de so-
brevivência e afirmação literária, retornou à antiga profissão de jornalista. Aos desapontamentos edito-
riais, acrescentaram-se as humilhações jornalísticas. Em troca de magras remunerações, espalhava os seus
textos em vários jornais e revistas. Por certo tempo, foi cronista do Jornal do Brasil, que a demitiu sumá-
ria e implacavelmente, sob a alegação de que as suas crônicas não tinham leitores. Na redação da Man-
chete, vi, uma vez, um de seus trabalhos (ela entrevistava personalidades e celebridades locais) ser recusa-
do pelo diretor Justino Martins, o qual, para estimulá-la a ser mais produtiva e competente, a aconselhou
a atualizar a sua agenda sexual. E Clarice, vítima recente de um acidente doméstico, ponderou-lhe, com
a sua voz gutural de gaivota no mormaço, e numa humildade que correspondia a sua penosa rendição à
miséria da vida: ‘Não posso transar com ninguém, Justino. Tenho o corpo todo queimado.’
A outrora bela e deslumbrante Clarice Lispector atravessava o seu inferno astral. Descera do seu
pedestal de princesa de nossas letras para ser uma simples e necessitada passante num mundo cru e im-
piedoso e palco de ironias e humilhações. Vestida em roupas provindas de sua travessia no mundo diplo-
mático, e que lhe conferiam um ar desueto e estrangeiro, de fora da estação, Clarice Lispector vivia o
processo de sua própria destruição e infelicidade.
No seu túmulo, no cemitério judeu do Caju, a lápide menciona apenas o nome e o ano de sua mor-
te (com a sua beleza que era uma stendhaliana promessa de felicidade, ela escondia a idade, e um biógrafo
chegou a matriculá-la na Faculdade Nacional de Direito aos 14 anos). Foi a sua última viagem de emigran-
te. Agora, mudada em pó e glória, ela está, ao mesmo tempo, perto e longe do coração selvagem da vida.

50
Alberto Dines nasceu em 1932, no Rio de Janeiro. Em 52 anos
Juan Esteves

de jornalismo, esteve à frente de importantes veículos da


imprensa. Foi editor-chefe do Jornal do Brasil de 1962 a 1973
e dirigiu a sucursal carioca da Folha de S.Paulo de 1975 a
1980. Em Portugal, lançou a revista Exame, do Grupo Abril,
entre outras. Participou de momentos históricos do jornalismo,
como o anúncio da censura no AI-5 (1968) e instalação da
ditadura militar no Chile (1973), nas páginas vigiadas pela
censura do JB. Atualmente assina coluna semanal de comentários
políticos em diferentes jornais do país e é coordenador e
apresentador do Observatório da Imprensa – site e programa de
TV dedicados a debater o comportamento da mídia. É vencedor
do prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria
“Reportagem e Biografia”, pela participação em Freud, a cultura
judaica e a modernidade (São Paulo: Senac, 2003). Entre
alguns dos livros que escreveu destacam-se Vínculos do fogo –
Antônio José da Silva, o Judeu, e outras histórias da
Inquisição em Portugal e no Brasil (São Paulo: Companhia
das Letras, 1992) e Morte no paraíso – A tragédia de Stefan
Zweig (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981), que, em 2004,
voltou a sair, em versão revista e ampliada, desta vez pela Rocco.

“ Clarice passou duas vezes pela minha vida. Nas duas, veio pelas mãos de Otto Lara Resende –
mais precisamente, por dois telefonemas seus.
Tinha 26 anos no início de 1960 quando fui incumbido de salvar do naufrágio um jornal cuja a
circulação despencara de 200 mil para 8.000 exemplares diários depois da entrada do Úlima Hora e O
Globo no mercado editorial ‘matutino’ do Rio de Janeiro. Decidi, então, transformar o Diário da Noite
em um tablóide vespertino. Recuperaria os leitores estampando nomes de famosos, como os projetados
pela TV Tupi, da mesma empresa do jornal, os Diários Associados de Assis Chateaubriand.
Tínhamos uma equipe talentosa. Começávamos a trabalhar de madrugada para dar conta da ta-
refa hercúlea de reerguer o veículo que lançara Suzana Flag [pseudônimo sob o qual o escritor e drama-
turgo Nelson Rodrigues assinava folhetins em 1944], nos tempos de prestígio que antecederam a deca-
dência dos vespertinos no Rio de Janeiro.
Além de todo o trabalho de editar a parte noticiosa, precisávamos dar conta de fazer os textos das
celebridades – que, claro, contribuíam com seus créditos estelares, mas deixavam o conteúdo por nossa con-
ta. A cantora Maísa, por exemplo, subscrevia uma coluna sentimental que Raul Giudicelli – jornalista da
equipe – fabricava com brilho. Mas não éramos tantos para tanto e um dia Otto me ligou, na redação, con-
tando que Clarice, a quem eu conhecia de livros e de vista, estava precisando de trabalho.

51
O pedido de ajuda veio perfeitamente a calhar. Por aqueles dias tinha decidido apresentar uma
página feminina que seria assinada por Ilka Soares, atriz lindíssima que gozava de grande sucesso na épo-
ca. Mas, para isso, precisava de um ghost-writer. Então, melhor ainda, teria uma escritora fenomenal por
trás de um ícone de geração. ‘Só para mulheres’ deu muito certo. Fiquei, confesso, surpreendido com a
facilidade da ficcionista em se aproximar do público feminino do tablóide popular. A página foi muito
bem recebida pelos leitores.
Sua produção era extraordinária. Ela mandava para a redação as colunas diagramadas e ilustra-
das. Prontas. Montava tudo em casa, com recortes de revistas femininas internacionais, como a Vogue e
a Elle, e nos entregava tudo perfeitamente editado, fechado, sem nada a tirar ou pôr.
Com o tempo – e uma ajuda topográfica – a colunista de fachada e a verdadeira ficaram amigas.
Ambas moravam no Leme e se encontravam para discutir questões a serem abordadas pela página, algo
que, até onde eu sei, nunca fora sugerido pela redação. Esse zelo e toda a dedicação de Clarice ao traba-
lho me fizeram acreditar desde sempre que ela cultivava algum gosto discreto pela colaboração no jornal,
embora se tratasse de uma necessidade. Ela continuou com a página até o fechamento do tablóide, em
março de 1961.
Em 1967, estava desenvolvendo o novo projeto do Jornal do Brasil, quando recebi nova ligação
de Otto. O ‘texto’ era o mesmo: ‘Dines, Clarice está com dificuldades’.
Estávamos então criando o ‘Caderno B’ aos sábados – naquela época, o jornal não circulava às
segundas; a seção de cultura saía de terça a sexta e não havia ainda um cronista para a página 2. A auto-
ra trouxe para o JB um leitor mais exigente, um dos objetivos das mudanças que implementamos.
Nos dois momentos em que trabalhamos juntos, ela teve sempre total autonomia sobre as ativi-
dades que exerceu. A verdade é que nunca editei Clarice Lispector – nenhum colunista era de fato ‘edi-
tado’ no Jornal do Brasil. Uma vez ela mandou para o JB uma crônica sem uma abertura de parágrafo.
Assim foi publicada.
Clarice era reservada. Ia pouco à redação, preferia tratar por telefone. Pensava que era involun-
tariamente discreta por causa do acidente que deformou parte de seu corpo. Era uma pessoa muito bo-
nita. Com o tempo, ela acostumou-se às marcas da queimadura, mas em mim ficou a impressão que
viveu sempre se protegendo daquelas cicatrizes. Nunca consegui saber se o seu modo esquivo em lidar
era anterior ou se nasceu com o incêndio em seu colchão. Enfim, Clarice era tudo menos óbvia. Ela
era secreta.
A autora não permitiu que eu a visitasse quando da sua internação para tratamento do câncer
que a levou. Uma das últimas vezes que a vi, foi por um feliz acaso, em um vôo para o Recife. Eu ia a
um congresso, ela, visitar uma tia. Estava contente feito uma menina. ‘Vou me encher de comida judai-
ca’, gabava-se. Contou-se certa vez que uma das últimas coisas que pediu no hospital foi, aliás, um vidro
de pepino azedo.

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Embora sua primeira obra poética, Um
Edu Simões/IMS

pouco acima do chão, date de 1949,


Ferreira Gullar – nascido José
Ribamar Ferreira, em São Luís, no ano
de 1930 – conquistou notoriedade com seu
segundo livro, A luta corporal, publicado
em 1954, no Rio, onde ele vivia desde
1951. Depois de participar do concretismo e
do movimento neoconcreto, Gullar
abandonou a literatura experimental,
aderindo a uma arte politicamente engajada.
Com o golpe militar, passaria a ser perseguido
– acabou exilado, entre 1971 e 1977. Tema
do sexto número dos CADERNOS, de setembro
de 1998, Ferreira Gullar publicou, entre
tantos trabalhos, Poema sujo (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1976) e Muitas vozes
(Rio de Janeiro: José Olympio, 1999), poesia;
Cultura posta em questão (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965) e Relâmpagos
(São Paulo: Cosac&Naify, 2003), ensaios.

“ Encontrei-me pela primeira vez com Clarice Lispector, certa tarde de sábado, em 1955 tal-
vez, numa reunião de amigos na casa da artista plástica Zélia Salgado, em Ipanema. Cinco anos an-
tes, ainda em São Luís do Maranhão, havia lido o seu romance O lustre, que me deixara bastante im-
pressionado, por sua estranheza e densidade poética. Mais tarde ouvira referências a seu livro de
estréia, Perto do coração selvagem, que ainda não lera. Ao vê-la, levei um choque: os seus olhos amen-
doados e verdes, as maçãs do rosto salientes, ela parecia uma loba – uma loba fascinante. Não tenho
qualquer lembrança do que conversamos naquela ocasião, porém quase nada devo ter eu falado, a não
ser talvez algumas palavras de elogio a sua literatura. Ela era afável e simples mas de pouco falar. Saí
dali meio atordoado, com aquela imagem de loba na cabeça. Imaginei que, se voltasse a vê-la, iria me
apaixonar por ela.
Mas isto não aconteceu. Ela era casada com um diplomata e não morava no Brasil. Eu estava re-
cém-casado e inteiramente entregue a meu impasse poético. Havia publicado, em 1954, A luta corporal,
livro que se encerrou com a implosão da linguagem e me deixou sem caminho. Datam desta época mi-
nhas primeiras experiências de poesia concreta, movimento que encontraria seu porta-voz no ‘Suplemen-
to Dominical’ do Jornal do Brasil, a partir de 1956. Pois foi exatamente ali, na redação do SDJB, que mais
tarde voltaria a encontrar-me com Clarice. Ela estava de férias no Rio e fora ao jornal a convite de Rey-

53
naldo Jardim, diretor do suplemento. O efeito do nosso primeiro encontro não se repetiu mas, em com-
pensação, ela agora estava mais conversadora e expansiva. Fez ainda duas ou três visitas e sumiu de novo
de minha vista, agora por muitos e muitos anos.
No curso desses anos, minha vida mudou muito. Em 1961 dei por encerrada minha experiên-
cia como poeta de vanguarda e me engajei na luta política pela transformação da sociedade brasileira. En-
trei para o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, escrevi poemas de cordel sub-
versivos e, quando adveio o golpe militar de 1964, respondi a um inquérito policial-militar. Com o
agravamento da situação política e a atuação crescente contra a ditadura, fui preso e, pouco depois, ob-
rigado a optar pela clandestinidade e pelo exílio. Voltei ao Brasil em março de 1977, respaldado pela re-
percussão do Poema sujo, escrito em Buenos Aires. Pouco depois de meu regresso recebo um telefonema
de Clarice: queria entrevistar-me para a página que assinava na revista Fatos & Fotos. Aceitei com satisfa-
ção e marcamos para nos encontrarmos em seu apartamento, no Leme.
A esta altura, a mulher de 30 anos que eu conhecera naquela tarde de sábado era agora uma se-
nhora de 52 anos, marcada pelo sofrimento e por um acidente com fogo que quase lhe inutilizara uma
das mãos. Mas continuava encantadora. Ela me recebeu afetuosamente e por um momento falamos do
passado. Foi quando não resisti e confessei-lhe:
– Lembra-se de nosso primeiro encontro na casa da Zélia?
– Claro que me lembro. Você me pareceu selvagem e estranho.
– Então vou lhe contar uma coisa... Levei um impacto quando te vi, quase me apaixonei. Você
era muito linda.
Ela sorriu lisonjeada. Fixou seus olhos nos meus e falou:
– Quer dizer que eu era linda. Não sou mais.
– Nada disso, respondi perturbado, nada disso. Você continua encantadora.
– Acha mesmo? – perguntou ela como que brincando.
– Claro que acho, respondi no mesmo tom.
Rimos e ficamos olhando um para o outro.
– Gosto de teus olhos – disse-me ela. São bondosos...
Neste momento, ela apagou o cigarro num cinzeiro cheio de baganas que estava sobre uma mesi-
nha ao lado da poltrona. Seu cachorro Ulisses aproximou-se e tentou apanhar uma das baganas com a boca.
– Sai, ordenou ela ao cachorro. E voltando-se para mim: ele tem mania de ser gente. (E ao ani-
mal) – Vai, vai ser cachorro!
Terminada a entrevista, ela me deu um exemplar de seu livro Água viva, com uma dedicatória
carinhosa, e nos despedimos. À noite ela telefonou para minha casa, queria esclarecer um detalhe da en-
trevista. No dia seguinte, pela manhã, ligou de novo, só para conversar.
Na semana seguinte, ela ligou outra vez para me dizer que a reportagem havia sido publicada e

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sugeriu que jantássemos juntos. À noite fui buscá-la em casa e a encontrei preocupada com um de seus
filhos. Sentia-se culpada por ser ele tão problemático.
– Ninguém é onipotente – disse-lhe eu. Você decidiu qual seria a cor dos olhos dele?
Ela se sentiu mais confortada, trocou de roupa e fomos jantar no Fiorentina, ali mesmo no Le-
me, perto de sua casa. Estávamos jantando, quando apareceu Glauber Rocha, sentou-se à nossa mesa e
começou com uma conversa maluca, elogiando a ditadura militar. Eu reagi num primeiro momento; de-
pois me controlei e mudei de assunto. Ele, então, decidiu retirar-se, mas reafirmando suas opiniões.
– Tome cuidado com ele, disse-me Clarice. Ele veio aqui para te provocar.
– Não é isso não, Clarice. Glauber anda meio desnorteado.
O próximo encontro foi no apartamento dela, numa tarde de domingo com a presença de al-
guns amigos, entre os quais Rubem Fonseca e Fauzi Arap. Logo depois, ela adoeceu, mas só soube quan-
do li em algum lugar que ela estava internada numa clínica no Jardim Botânico. Não dizia o nome da
clínica. Tentei localizá-la mas, quando consegui, ela já tinha sido transferida para o Hospital da Lagoa.
Telefonei para lá e pedi que ligassem para o seu quarto. Quem atendeu foi Olga Borelli, que lhe servia
de acompanhante. Disse que queria visitá-la e marcamos para a manhã do dia seguinte, no entanto, ao
chegar no jornal aquela tarde, havia um recado para mim: ‘Clarice pede que você não vá visitá-la ama-
nhã. Prefere que vá vê-la quando ela voltar para casa’.
Ela nunca voltou para casa. Dias depois, pela manhã, estou me aprontando para uma viagem a
São Paulo, quando soa o telefone. Atendo: ‘Clarice morreu’, disse a voz. ‘O enterro será hoje mesmo de
manhã’. Fiquei desesperado, não podia adiar a viagem. A caminho do aeroporto só penso nela, comovi-
do. Na manhã linda e iluminada, as árvores balançavam seus ramos naturalmente, como se ela não tives-
se morrido. O mundo não precisa de nós, disse a mim mesmo – e o poema veio pronto:

Enquanto te enterravam no cemitério judeu


de São Francisco Xavier
(e o clarão do teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à beira da Lagoa
na direção de Botafogo
E as pedras e as nuvens e as árvores no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós

Durante muito tempo, guardei comigo a pergunta: por que ela não me deixou ir vê-la no hospital?
– Ela não queria que você a visse feia, explicou-me uma amiga.

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Acervo Paulo Gurgel Valente
CLARICE POR ELA MESMA

Perto do coração selvagem


Não queria, mas era um mito. Ou melhor: tinha a aura do inatingível sempre pairando
ao seu redor, por mais que tentasse convencer os que a idolatravam de que não passava de uma
dona de casa que escrevia livros. Em muitas oportunidades, aceitou o (detestado) embate da en-
trevista movida pelo único intuito de mostrar-se humana. Nunca foi simples. Clarice Lispector,
como anotaria em algum lugar o amigo Otto Lara Resende, não se livrava de si mesma.
O “si mesma” de Clarice, com freqüência classificado de enigmático, é o que se procu-
ra resgatar na presente seção. Um “si mesma” que se impôs nos encontros com repórteres, des-
de que a imprensa, a partir dos anos 40, se aproximou da muito jovem e já originalíssima es-
critora; um “si mesma” que – entre agosto de 1967 e dezembro de 1973 – invadiu suas crônicas
semanais para o Jornal do Brasil, aqui revisitadas a partir da antologia A descoberta do mundo;
um “si mesma” que, na leitura afetuosa de Olga Borelli, a companheira constante do final da
vida, se revelou após a morte noutro volume: Clarice Lispector – Esboço para um possível retra-
to. Diante do quase laconismo em que, comumente, a autora se trancava frente aos jornalis-
tas, os dois livros foram de inestimável utilidade para fazermos Clarice falar de “si mesma”.
No dia-a-dia, ela caminhava sobre o tênue limite entre mostrar e esconder. Não se
queria misteriosa, mas tampouco tinha vontade de se expor. Sutil equilíbrio que repetia em
sua literatura – a paixão segundo a escrita.
Ao mesmo tempo em que tentava, nos depoimentos, desmentir os rótulos que a des-
figuravam – estrangeira, inacessível, hermética –, a ficcionista empreendia uma luta vã pa-
ra, nas colunas do jornal, deixar de se colocar pessoalmente.
O que podia ser visto como fragilidade tornou singulares suas “crônicas” – assim cha-
madas na falta de um nome mais preciso para os artigos que enviava ao periódico do Rio de
Janeiro, respondendo à necessidade de ganhar o pão: às vezes, um só texto longo; noutras,
várias notas curtas, não raro retomadas em obras produzidas em paralelo – caso de Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969) e Água viva (1973).
Recolhidos em meio ao que ela oferecia e ocultava, os fragmentos que compõem as
páginas seguintes pretendem, um pouco que seja, trazer o leitor para mais perto do coração
selvagem de Clarice Lispector.

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Formação e influências – “de” e “para” “Eu lamento [influenciar os novos], viu? Sincera-
mente. Tenho medo de que toda a minha literatura
“Não sei dizer que autores influíram no que eu es- seja um equívoco. Acho que estou em moda. Eu
crevi ou na minha formação. Possivelmente me in- não aprovo o meu tipo de literatura, não sou coni-
fluenciaram mais os motivos dos escritores, mesmo vente comigo.”
que eu nada soubesse deles, do que os seus livros.
Cercando a questão mais de perto, eu poderia dizer (“A literatura, segundo Clarice”. Sem assinatura.
de fora para dentro, concordando com pessoas que Estado de Minas. Belo Horizonte, 28.09.68)
escreveram sobre o meu trabalho, que eu tive in-
fluência de [Marcel] Proust e [James] Joyce, o que
tem como obstáculo material apenas o fato de eu não “Outra coisa que não parece ser entendida pelos
ter lido Proust e Joyce antes de escrever o primeiro outros é quando me chamam de intelectual e eu
livro. Como para mim não tem tido importância digo que não sou. De novo, não se trata de mo-
consciente a questão da influência, é-me difícil sair déstia e sim de uma realidade que nem de longe
dos meus verdadeiros problemas e analisá-la.” me fere. Ser intelectual é também ter cultura, e eu
sou tão má leitora que, agora já sem pudor, digo
(“Clarice Lispector fala de Nápoles”, por Solena Be- que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as
nevides Viana. A Noite. Rio de Janeiro, 02.12.45) obras importantes da humanidade. Além do que
leio pouco: só li muito, e lia avidamente o que me
caísse nas mãos, entre os treze e os quinze anos de
Acervo Paulo Gurgel Valente

idade. Depois passei a ler esporadicamente, sem


ter a orientação de ninguém. Isto sem confessar
que – dessa vez digo-o com alguma vergonha –
durante anos eu só lia romance policial. Hoje em
dia, apesar de ter muitas vezes preguiça de escre-
ver, chego de vez em quando a ter mais preguiça
de ler do que de escrever.”

(Fragmento da crônica “Intelectual? Não.”, publi-


cada em 02.11.68. In A descoberta do mundo*. Rio
de Janeiro: Rocco, 1999, p. 149)

“O Diário da Tarde de Recife tinha uma seção às


quintas-feiras dedicada às crianças. [NOTA DOS
EDITORES: Na verdade, Clarice quis se referir ao
Diário de Pernambuco]. Ali eram publicadas as me-
lhores histórias enviadas pelas leitoras mirins, com
sorteio de vários prêmios. Nunca ganhei nada. De-
pois de muito pensar encontrei o porquê: todas as
histórias vencedoras relatavam fatos verdadeiros.
As minhas somente continham sensações e emo-
ções vividas por personagens fictícios.”

* Em “Clarice por ela mesma”, mantém-se sempre o texto da escritora tal como aparece estabelecido na citada edição de sua mais ampla coletânea de crôni-
cas ou ainda na obra Esboço para um possível retrato, de Olga Borelli. Quando se trata, no entanto, de simplesmente transcrever trechos de entrevista, depoi-
mentos etc. são feitos ajustes de acordo com as normas gramaticais, grafias vigentes e os padrões dos CADERNOS.

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“O meu diploma [de direito] foi conseguido so- todos os personagens mortos, eu pegava. E dizia:
mente por pirraça. Uma amiga, cujo nome não ‘Não estavam bem mortos’. E continuava. Com 7
vou dizer, disse quando estávamos no terceiro anos eu aprendi a ler.”
ano: ‘Você é dessas que começam um monte de
coisas e não terminam nenhuma’. Isso me aborre- “[Publiquei meu primeiro trabalho] Com 15 anos.
ceu e, para provar que ela estava errada, comecei Eu estava com uma influência tremenda do Her-
a estudar das sete da manhã até as 11 da noite, pa- mann Hesse. Escrevi um conto que não acabava
rando apenas meia hora para almoçar e uma ho- nunca e que me torturava horrivelmente. Eu o des-
ra para jantar.” truí. Então eu escrevi outro conto que foi publica-
do [N.E.: Tal conto, que teria saído na revista Vamos
“Depois desse livro [O lobo da estepe, de Hermann lêr!, não figura nas edições da revista corresponden-
Hesse] adquiri consciência daquilo que desejava tes a tal época – ao menos, não com a assinatura de
ser, como queria ser e o que deveria fazer. Nunca Clarice Lispector. A primeira história da escritora
mais pensei em escrever peças teatrais, como a que a aparecer naquele periódico seria ‘Eu e Jimmy’,
fiz aos 9 anos em Recife: uma peça em três atos em em 10.10.40].”
apenas três folhas de papel escolar. Creio que fui a
teatróloga mais concisa que já existiu.”
“Depois, quando eu aprendi a ler, devorava os li-
(“Que mistério tem Clarice Lispector?”. Por Leo vros, e pensava que eles eram como árvores, como
Gilson Ribeiro. O Estado de S. Paulo/Jornal da Tar- bicho, coisa que nasce. Não sabia que havia um au-
de. São Paulo, 05.02.69) tor por trás de tudo. Lá pelas tantas eu descobri que
era assim e disse: ‘Isso eu também quero’.”

“A minha terra não me marcou em nada, a não ser “Quando eu era pequena, era muito reivindica-
pela herança sangüínea. Eu nunca pisei na Rússia.” dora dos direitos da pessoa, então diziam que eu
seria advogada. Isso me ficou na cabeça e, como
eu não tinha orientação de nenhuma espécie so-
(“Clarice, um mistério sem muito mistério”. Sem assi- bre o que estudar, fui estudar advocacia. [...] No
natura. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 02.11.71) terceiro ano eu reparei que nunca lidaria com pa-
péis e que a minha idéia – veja o absurdo da ado-
lescência – era estudar advocacia para reformar as
“San Tiago Dantas uma vez disse que não resistia à penitenciárias. [...] Então eu vi que aquilo já não
curiosidade e perguntou-me o que afinal eu fora fa- me interessava e arranjei um emprego em um jor-
zer num curso de Direito. Respondi-lhe que Direi- nal [A Noite].”
to Penal me interessava. Retrucou: ‘Ah bem, logo
adivinhei. Você se interessou pela parte literária do “A coisa é a seguinte: eu misturei as minhas leitu-
Direito. Quem é jurista mesmo gosta é de Direito ras sem a mínima orientação... Havia uma biblio-
Civil’. A saudade que tenho de San Tiago.” teca popular de aluguel na rua Rodrigo Silva, na ci-
dade, e eu escolhia os livros pelos títulos. Resultado:
(Fragmento da crônica “O grupo”, publicada em misturava Dostoiévski com livro de moça, que ho-
17.02.73. In A descoberta do mundo, p. 451) je não existe mais. [...] Eu lia, e como é que eu pas-
sei para o Perto do coração selvagem depois dessas
leituras? E de repente, quando fui escrever, não ti-
“Antes dos 7 anos eu fabulava. Eu ensinei a uma nha nada a ver com nada do que eu tinha lido. Mas
amiga um modo de contar histórias. Eu contava eu tinha que arriscar.”
uma história e, quando ficava impossível de conti-
nuar, ela começava. Ela então continuava e, quan- “Kafka eu fui ler muito mais tarde, quando já ti-
do chegava em um ponto impossível, por exemplo, nha publicados muitos dos meus livros. Eu sinto

59
uma aproximação muito boa, mas eu já tinha es- “Na adolescência eu não tinha a menor orientação
crito muitos livros antes de ler suas obras...” literária. Pagava uma quantia por mês para uma bi-
blioteca de aluguel e escolhia os livros pelos títulos.
“Todo mundo parece que começa com poesia, não Foi assim que encontrei O lobo da estepe, foi assim
é? Eu andei escrevendo umas folhas, mas jogava fo- que encontrei Crime e castigo. Lendo Dostoiévski ti-
ra, porque não prestavam. [risos]” ve febre, de tanta emoção. Quando recebi o meu pri-
meiro ordenado como jornalista, entrei de cabeça le-
“Sabe como é que eu aprendi francês? Lendo fran- vantada numa livraria para comprar um livro. Tudo
cês. Eu não disse que era uma tímida arrojada? Pe- o que folheava não me agradava. De repente vi o li-
guei um livro em francês e me pus a ler, e pelo sen- vro da editora Globo chamado Felicidade, abri-o e to-
tido, pela semelhança da língua latina, eu ia mei um susto: ‘Isso sou eu!’. Era Katherine Mansfield.
pegando, pegando, até que aprendi. A conversa- Gostei sem saber que ela era famosa. Quando ex-
ção... bem, eu estive três anos na Suíça, e a minha pressava em palavras o meu entusiasmo pela obra,
empregada falava francês comigo. O inglês também todos diziam: ‘Mas é claro que tem de ser bom!’.”
foi assim, eu nunca fiz curso [N.E.: Na realidade,
Clarice teria chegado a estudar inglês, mas diria, em “Acontece que estou sendo muito imitada, sobre-
cartas, que não tinha paciência para as aulas].” tudo nos meus cacoetes. Acho que meus livros vão
perder o valor, porque quem imita já tem uma ba-
(Entrevista da autora ao Museu da Imagem e do se, algo que lhe é anterior e que pode refinar...”
Som do Rio de Janeiro, por Affonso Romano de
Sant’Anna, Marina Colasanti e João Salgueiro. (“Clarice, pela última vez”, por Nevinha Pinheiro.
Gravada em 20.10.76 e publicada no volume de n. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15.12.77)
7 da coleção Depoimentos, editada pela instituição)

A autora e seu contexto: o “ver” e o “ser vista”


“Estou enojada com a mais do que influência que
certos escritores brasileiros recebem de norte-ame- “Alguns dos principais ideais em relação ao desti-
ricanos e latino-americanos. Influência de Gabriel no das pessoas já foram lançados; uns escritores
García Márquez, de [Jorge Luis] Borges... Quando têm como caminho revelar a que distância estamos
eu publiquei o meu primeiro livro, saída da adoles- desses ideais. Fora disso, há a a reinvenção da vida.
cência, eu não tinha cultura alguma. No entanto E há os caminhos imprevisíveis. Estar num impas-
diziam que eu tinha influência de Joyce e Virginia se é um sacrifício mas às vezes pode ser a grande
Woolf. Acontece que eu li Joyce depois de escrever tensão de um prenúncio.”
o meu primeiro livro, cujo título me foi dado por
Lúcio Cardoso. Quando, na França, um jornalista “Não importa o que se escreva, a consciência social
me disse que eu escrevia como santa Teresa d’Ávila está ali – incluída até mesmo inconscientemente
fiquei pasmada, eu nunca li os seus escritos... Quan- no indispensável ‘livre curso ao que der e vier’. Mas
to a Virginia Woolf, simplesmente ignorava haver no não à custa de ‘sejam quais forem os resultados’ –
mundo uma pessoa assim chamada. Acho possível, se os resultados ferirem o meu próprio sentido de
no entanto, que mesmo sem lê-los eu tenha apanha- moral social.”
do alguma coisa no ar... É possível. Por exemplo, eu
adoro D.H. Lawrence e no entanto meus livros na- “A maioria de nós está sem um mito que nos guie.
da têm com os dele. Em Paris, um jornal disse que eu O que não quer dizer que essa espécie de desespero
tinha influência de [Jean-Paul] Sartre. Acontece que não interprete a realidade de muitos. Alguns de nós
só vim a saber da existência de Sartre no meu segun- não crêem sequer no desespero; há muito silêncio,
do livro. Quem me emprestou Sartre, então desco- então. Mas bem pode acontecer alguma coisa ou al-
nhecido para mim, foi o professor Francisco Paulo guma pessoa. E então muitas palavras serão ditas, e
Mendes, de Belém do Pará, onde passei seis meses.” quem as ler sentirá como se as tivesse dito.”

60
“Sobre o leitor suponho que, certa ou errada, [a crí- pessoa, recebi uma carta assinada, mas só darei as ini-
tica] serve de informação-influência. Sobre mim, ciais: ‘Cada vez que me encontro com a beleza de suas
depende da crítica.” contribuições literárias, vejo ainda mais fortalecida
minha intensa capacidade de amar, de me dar aos ou-
(“Encontro com cinco escritores”. Sem assinatura. tros, de existir para meu marido’. Assinada H.M.
Revista Senhor. Rio de Janeiro, n. 29, julho de 1961) Não fiquei contente por você, H.M., falar na bele-
za de minhas contribuições literárias. Primeiro por-
que a palavra beleza soa como enfeite, e nunca me
“Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o senti tão despojada da palavra beleza. A expressão
Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vin- ‘contribuições literárias’ também não adorei, por-
te e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco que exatamente ando numa fase em que a palavra
anos. Mas a impressão-desejo é a de que num fu- literatura me eriça o pêlo como o de um gato. Mas,
turo não muito remoto talvez compreendamos H.M., como você me fez sentir útil ao dizer-me
que os movimentos caóticos atuais já eram os pri- que sua capacidade intensa de amar ainda se forta-
meiros passos afinando-se e orquestrando-se para leceu mais. Então eu dei isso a você? Muito obri-
uma situação econômica mais digna de um ho- gada. Obrigada também pela adolescente que já
mem, de uma mulher, de uma criança. E isso por- fui e que desejava ser útil às pessoas, ao Brasil, à
que o povo já tem dado mostras de ter maior ma- humanidade, e nem se encabulava de usar para si
turidade política do que a grande maioria dos mesma palavras tão imponentes.”
políticos, e é quem um dia terminará liderando os
líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo terá fa- (“Sentir-se útil”, crônica publicada em 24.02.68.
lado muito mais. Ibidem, p. 78)
Mas se não sei prever, posso pelo menos desejar. Pos-
so intensamente desejar que o problema mais urgen-
te se resolva: o da fome. Muitíssimo mais depressa, “Quando fui convidada, com outros sul-americanos,
porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há a dar uma conferência na Universidade do Texas, es-
mais tempo de esperar: milhares de homens, mulhe- crevi-a como pude, explicando antes que eu não fora
res e crianças são verdadeiros moribundos ambulan- a pessoa mais indicada para a tarefa de falar sobre li-
tes que tecnicamente deviam estar internados em teratura: ‘...além do fato de eu não ter tendência pa-
hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se jus- ra a erudição e para o paciente trabalho da análise li-
tificaria ser decretado estado de prontidão, como terária e da observação específica – acontece que, por
diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome circunstâncias sobretudo internas, não posso dizer
é nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do que tenha acompanhado de perto a efervescência dos
corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se movimentos que surgiram e das experiências que se
descrevem as características físicas, morais e mentais tentaram, quer no Brasil como fora do Brasil; nunca
de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão tive, enfim, o que se chama verdadeiramente de vida
descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da intelectual. Pior ainda: embora sem essa vida intelec-
fome. Os líderes que tiverem como meta a solução tual, eu pelo menos poderia ter tido o hábito ou gos-
econômica do problema da comida serão tão aben- to de pensar sobre o fenômeno literário, mas também
çoados por nós como, em comparação, o mundo isso não fez parte de meu caminho. Apesar de ocu-
abençoará os que descobrirem a cura do câncer.” pada com escrever desde que me conheço, infeliz-
mente faltou-me também encarar a literatura de
(“Daqui a vinte e cinco anos”, crônica publicada fora para dentro, isto é, como uma abstração. Lite-
em 16.09.67. In A descoberta do mundo, p. 33) ratura para mim é o modo como os outros chamam
o que nós fazemos’.”

“Exatamente quando eu atravessava uma fase de in- (Fragmento da crônica “De uma conferência no
voluntária meditação sobre a inutilidade de minha Texas”, publicada em 20.07.68. Ibidem, p. 118)

61
“A entrada ou não [para a Academia Brasileira de por Celso Arnaldo Araújo. Revista Manchete. Rio
Letras] é um problema absolutamente pessoal de de Janeiro, 10.05.75)
cada escritor. Há quem seja gregário – eu não sou,
e acho que lá eu me sentiria, assim, meio vigiada,
meio tolhida. Deve ser bobagem minha, mas no “Fiquei contentíssima. Não esperava [o prêmio da
fundo eu tenho é muito medo de parar.” Fundação Cultural do Distrito Federal]. Uma com-
pleta surpresa. Mas logo veio uma depressão muito
(“A literatura, segundo Clarice”. Sem assinatura. forte. Eu, ganhar esse dinheirão, e tantas crianças
Estado de Minas. Belo Horizonte, 28.09.68) que necessitam por aí... [...] Por que não se faz uma
doação a essas crianças? [...] Porque os adultos fica-
riam com o dinheiro. Olhe aqui, eu já tentei refor-
“Sofro se isso acontecer, que alguém leia meus li- mar o mundo. Por isso fui estudar direito. Me inte-
vros apenas no método do vira-depressa-a-página ressava pelo problema das penitenciárias. Mas desde
dinâmico. Escrevi-os com amor, atenção, dor e que recebi a notícia do prêmio não consigo pensar
pesquisa, e queria de volta como mínimo uma senão nisto: crianças morrem de fome, crianças
atenção completa. Uma atenção e um interesse co- mortas de fome. Mas quem sou eu, meu Deus, pa-
mo o seu, Tom. E no entanto o cômico é que eu ra mudar as coisas?”
não tenho mais paciência de ler ficção.”
(“Clarice Lispector – ‘Já tentei reformar o mundo.
(Fragmento da crônica “Conversa meio a sério Mas quem sou eu, meu Deus, para mudar as coi-
com Tom Jobim – I”, publicada em 03.07.71. In sas?’”, por Edilberto Coutinho. O Globo. Rio de Ja-
A descoberta do mundo, pp. 358-359) neiro, 29.04.76)

“Eu admito a literatura claramente participante. “Quando eu estava lá [fora do Brasil], todo mun-
Se não faço isso é porque não é do meu tempera- do me dizia: ‘Por que não manda os livros para
mento. A gente só pode tentar fazer bem as coisas uma editora no estrangeiro, para traduzir?’. Eu di-
que sente realmente. Os meus livros não se preo- zia: ‘Agora não é tempo de traduzir, é tempo de
cupam com os fatos em si, porque para mim o im- trabalhar’. Não me interessa e nunca pedi a nin-
portante não são os fatos em si, mas a repercussão guém para me publicar fora do Brasil.”
dos fatos no indivíduo. Isso é que tem muita im-
portância mesmo para mim. É o que eu faço. Acho “Quando eu não estou trabalhando, eu leio a crí-
que, sob esse ponto de vista, eu também faço li- tica, muito bem e tudo. Quando eu estou traba-
vros comprometidos com o homem e a realidade lhando, uma crítica sobre mim interfere na minha
do homem, porque realidade não é um fenômeno vida íntima, então eu paro de escrever para esque-
puramente externo.” cer a crítica. Inclusive as elogiosas, pois eu cultivo
muito a humildade. De modo que, às vezes, me
(“Clarice, um mistério sem muito mistério”. Sem as- sentia quase agredida com os elogios.”
sinatura. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 02.11.71)
“Não, não sei explicar, mas prêmio é fora da li-
teratura – aliás, literatura é uma palavra detestá-
“Eu não entendo o que eles [os especialistas] falam. vel –, é fora do ato de escrever. Você recebe como
Mas deploro esse falso vanguardismo, cheio de mo- recebe o abraço de um amigo, com determina-
dismos, frio e calculista, pouco humano. A melhor do prazer.”
crítica é aquela que entra em contato com a obra
do autor quase telepaticamente.” (Entrevista da autora ao MIS-RJ. Gravada em
20.10.76 e publicada no volume de n. 7 da cole-
(“Clarice Lispector – Uma escritora no escuro”, ção Depoimentos, editada pela instituição)

62
“Eu não sei te explicar, mas eu sinto que estou iso- é porque já nos consideram aposentados. Mas eu não
lada. Eu não pertenço a nenhum grupo, nenhum me aposentarei. Espero morrer escrevendo. O que eu
grupo me convidou até hoje para fazer parte de- não disse por falta de frieza ficará sempre no limbo.”
le. Realmente não me querem. Mas eu não faço
questão. Que assim seja. Eu não me alimento de (Ibidem, p. 71)
literatura. Meus amigos, eu os escolho em qual-
quer profissão, ou nenhuma profissão, e isso me
garante satisfeita a necessidade gregária que a “O escritor não é um ser passivo que se limita a re-
gente tem.” colher dados da realidade, mas deve estar no mun-
do como presença ativa, em comunicação com o
(“Clarice Lispector, mais um livro. E a mesma que o cerca.
solidão”. Sem assinatura. O Globo. Rio de Janei- Na atividade de escrever o homem deve exercer a
ro, 25.08.77) ação por desnudamento, revelar o mundo, o ho-
mem aos outros homens. E ao fazê-lo deverá
escolher dizê-lo de um modo determinado, pessoal.
“Nunca me senti realizada como escritora, e tenho Ele tem ou não a consciência de seu papel de ‘revela-
a impressão de que será assim até eu morrer.” dor’ das coisas, o meio através do qual elas se manifes-
tam e adquirem significado. Mas, apesar de ser o de-
(Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector – Esboço tector da realidade, a realidade não é seu produto, isto
para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova é, apesar de o escritor ser o revelador do mundo, isso
Fronteira, 1981, p. 69) não é essencial a ele, mas sim torna-se essencial à sua
obra, pois que sua obra não existiria se não fosse ele.
A literatura deve ter objetivos profundos e univer-
“Eu bem que estava precisando desse dinheiro. Sin- salistas: deve fazer refletir e questionar sobre um
to-me um tanto humilde, por não merecer tanto. sentido para a vida e, principalmente, deve inter-
Disseram-me que quando nos conferem um prêmio, rogar sobre o destino do homem na vida.
Acervo Paulo Gurgel Valente

63
Há escritores que por opção e engajamento de- ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como
fendem valores morais, políticos e sociais, ou- profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico
tros cuja literatura é dirigida ou planificada a automaticamente mais pessoal. E sinto-me um
fim de exaltar valores, geralmente impostos por pouco como se estivesse vendendo minha alma. Fa-
poderes políticos, religiosos, etc., muitas vezes lei nisso com um amigo que me respondeu: mas es-
alheios ao escritor. crever é um pouco vender a alma. É verdade. Mes-
Penso que o escritor deve dirigir-se à liberdade de mo quando não é por dinheiro, a gente se expõe
seus leitores, integrados ou não na mesma situação muito. Embora uma amiga médica tenha discorda-
histórica e para quem as realidades descritas sejam do: argumentou que na sua profissão dá sua alma
ou não alheias. E, ao fazê-lo, o escritor deve mobi- toda, e no entanto cobra dinheiro porque também
lizá-los a uma identificação, questionamento ou precisa viver. Vendo, pois, para vocês com o maior
possível resposta.” prazer uma certa parte de minha alma – a parte de
conversa de sábado.”
(Ibidem, pp. 72-3)
(Fragmento da crônica “Amor imorredouro”, publi-
cada em 09.09.67. In A descoberta do mundo, p. 29)
“Para mim o futuro de um escritor de vanguarda é
amanhã não ser lido exatamente por aqueles que
mais se assemelham a ele. O escritor de vanguarda “As outras cartas, desta última safra, são de gen-
terá atingido sua finalidade quando, depois de se dar te muito pura e cheia de confiança em mim. Não
e ser bem usado, desapareça no amanhã. [...] Acho sei selecionar as que mais me comoveram. Todas
que existe uma vanguarda forçada, isto é, o autor se esquentaram meu coração, todas quiseram me
determina a ser ‘original’ e vanguardista. O que pa- dar a mão para me ajudar a subir mais e ver de
ra mim não vale. Só me alegra muito a originalida- algum modo a grande paisagem do mundo, to-
de que venha de dentro para fora e não o contrário. das me fizeram muito bem. Sou uma colunista
Só a verdadeira vanguarda faz com que os vanguar- feliz. Escrevi nove livros que fizeram muitas pes-
distas possam ser chamados de contemporâneos no soas me amar de longe. Mas ser cronista tem um
dia seguinte.” mistério que não entendo: é que os cronistas, pe-
lo menos os do Rio, são muito amados. E escre-
(Ibidem, p. 75) ver a espécie de crônica aos sábados tem me tra-
zido mais amor ainda. Sinto-me tão perto de
quem me lê. E feliz por escrever para os jornais
A escrita como profissão que me infundem respeito. [...] Prometo aos
meus leitores que serei mais feliz e assim eu os fa-
“O comércio editorial na certa ganharia se livro rei, pelo menos por um instante, mais felizes.
não fosse ‘presente de Natal’ e estivesse – por pre- Mas, Deus meu, como é que se é feliz? [...] Sim,
ço e distribuição – ao alcance fácil de todos. Eu não Otávio Bonfim, escrever para um jornal é uma
saberia dizer o que precisa ser feito, mas há muitos grande experiência que agora renovo, e ser jorna-
escritores que sabem e deveriam ser ouvidos, em lista, como fui e como sou hoje, é uma grande
conjunto com os editores.” profissão. O contato com o outro ser através da
palavra escrita é uma glória. Se me fosse tirada a
(“Encontro com cinco escritores”. Sem assinatura. palavra pela qual tanto luto, eu teria que dançar
Revista Senhor. Rio de Janeiro, n. 29, julho de 1961) ou pintar. Alguma forma de comunicação com o
mundo eu daria um jeito de ter. E escrever é um
“Ainda continuo um pouco sem jeito na minha no- divinizador do ser humano.”
va função daquilo que não se pode chamar propria-
mente de crônica. E, além de ser neófita no assun- (Fragmento da crônica “Adeus, vou-me embora!”,
to, também o sou em matéria de escrever para publicada em 20.04.68. Ibidem, pp. 94-5)

64
“Uma vez me ofereceram fazer uma crônica de co- E também sem perceber, à medida que escrevia pa-
mentários sobre acontecimentos, só que essa crô- ra aqui, ia me tornando pessoal demais, correndo
nica seria feita para mulheres e a estas dirigida. Ter- o risco daqui em breve de publicar minha vida
minou dando em nada a proposta, felizmente. passada e presente, o que não pretendo. Outra coi-
[N.E.: Sob pseudônimo, Clarice Lispector respon- sa notei: basta eu saber que estou escrevendo para
deu, entre as décadas de 50 e 60, por três colunas jornal, isto é, para algo aberto facilmente por to-
desse gênero em jornais cariocas]. Digo felizmen- do o mundo, e não para um livro, que só é aber-
te porque desconfio de que a coluna ia era descam- to por quem realmente quer, para que, sem mes-
bar para assuntos estritamente femininos, na ex- mo sentir, o modo de escrever se transforme. Não
tensão em que ‘feminino’ é geralmente tomado é que me desagrade mudar, pelo contrário. Mas
pelos homens e mesmo pelas próprias humildes queria que fossem mudanças mais profundas e in-
mulheres: como se mulher fizesse parte de uma co- teriores que então viessem a se refletir no escrever.
munidade fechada, à parte, e de certo modo segre- Mas mudar só porque isto é uma coluna ou uma
gada. Mas minha desconfiança vinha de lembrar- crônica? Ser mais ‘leve’ só porque o leitor assim o
me do dia em que uma moça veio me entrevistar quer? Divertir? fazer passar uns minutos de leitu-
sobre literatura, e, juro que não sei como, termi- ra? E outra coisa: nos meus livros quero profunda-
namos conversando sobre a melhor marca de de- mente a comunicação profunda comigo e com o
lineador líquido para maquilagem dos olhos. E pa- leitor. Aqui no jornal apenas falo com o leitor e
rece que a culpa foi minha. Maquilagem dos olhos agrada-me que ele fique agradado. Vou dizer a ver-
também é importante, mas eu não pretendia inva- dade: não estou contente. E acho mesmo que vou
dir as seções especializadas, por melhor que seja ter uma conversa com Rubem Braga porque sozi-
conversar sobre modas e sobre a nossa preciosa be- nha não consegui entender.”
leza fugaz.”
(“Ser cronista”, crônica publicada em 22.06.68.
(“Mulher demais”, crônica publicada em 08.06.68. Ibidem, pp. 112-113)
Ibidem, p. 108)

“Noto uma coisa extremamente desagradável. Es-


“Sei que não sou [cronista], mas tenho meditado tas coisas que ando escrevendo aqui não são, creio,
ligeiramente no assunto. Na verdade eu deveria propriamente crônicas, mas agora entendo os nos-
conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o sos melhores cronistas. Porque eles assinam, não
inventor da crônica. Mas quero ver se consigo ta- conseguem escapar de se revelar. Até certo ponto
tear sozinha no assunto e ver se chego a entender. nós os conhecemos intimamente. E quanto a mim,
Crônica é um relato? É uma conversa? é o resumo isto me desagrada. Na literatura de livros permane-
de um estado de espírito? Não sei, pois antes de co- ço anônima e discreta. Nesta coluna estou de al-
meçar a escrever para o Jornal do Brasil, eu só tinha gum modo me dando a conhecer. Perco minha in-
escrito romances e contos. Quando combinei com timidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao
o jornal escrever aqui aos sábados, logo em seguida correr da máquina e, quando vejo, revelei certa par-
morri de medo. Um amigo que tem voz forte, con- te minha. Acho que se escrever sobre o problema
vincente e carinhosa, praticamente intimou-me a da superprodução do café no Brasil terminarei sen-
não ter medo. Disse: escreva qualquer coisa que lhe do pessoal. Daqui em breve serei popular? Isso me
passe pela cabeça, mesmo tolice, porque coisas sé- assusta. Vou ver o que posso fazer, se é que posso.
rias você já escreveu, e todos os seus leitores hão de O que me consola é a frase de Fernando Pessoa,
entender que sua crônica semanal é um modo ho- que li citada: ‘Falar é o modo mais simples de nos
nesto de ganhar dinheiro. No entanto, por uma tornarmos desconhecidos’.”
questão de honestidade para com o jornal, que é
bom, eu não quis escrever tolices. As que escrevi, e (“Fernando Pessoa me ajudando”, crônica publica-
imagino quantas, foi sem perceber. da em 21.09.68. Ibidem, pp. 136-137)

65
Acervo Paulo Gurgel Valente
“[...] no jornal nunca se pode esquecer o leitor, ao
passo que no livro a gente fala com liberdade, sem com-
promisso imediato com ninguém. O leitor de jornal es-
tá predisposto a entender tudo. A minha crônica ‘Esta-
do de graça’, tirada de livro inédito, foi muito apreciada
por todos e foi parar até dentro de missais, imagine.”

(“A literatura, segundo Clarice”. Sem assinatura.


Estado de Minas. Belo Horizonte, 28.09.68)

“As entrevistas são interessantes. Todas as pessoas


têm sempre alguma coisa de bom para contar, das
mais catedráticas às mais fúteis. As crônicas são
uma experiência completamente nova para mim.
Nunca pensei que pudesse fazê-las. Até que Rubem
Braga, meu grande amigo, aconselhou-me a fazer
várias, para não ficar naquela preocupação de ter
alguém esperando pela minha produção literária.”
Guardadíssimas as devidas e significativas propor-
(“Que mistério tem Clarice Lispector?”. Por Leo ções, era isto o que eu ambicionaria para mim tam-
Gilson Ribeiro. O Estado de S. Paulo/Jornal da Tar- bém, se tivesse fôlego.
de. São Paulo, 05.02.69) Mas tenho medo: escrever muito e sempre pode
corromper a palavra. Seria para ela mais protetor
vender ou fabricar sapatos: a palavra ficaria intata.
“É curiosa esta experiência de escrever mais leve e Pena que não sei fazer sapatos.
para muitos, eu que escrevia ‘minhas coisas’ para Outro problema: num jornal nunca se pode esque-
poucos. Está sendo agradável a sensação. Aliás, te- cer o leitor, ao passo que no livro fala-se com maior
nho me convivido muito ultimamente e descobri liberdade, sem compromisso imediato com nin-
com surpresa que sou suportável, às vezes até agra- guém. Ou mesmo sem compromisso nenhum.
dável de ser. Bem. Nem sempre.” [...] a compreensão do leitor depende muito de sua
atitude na abordagem do texto, de sua predisposição,
(“Exercício”, crônica publicada em 15.01.72. In A de sua isenção de idéias preconcebidas. E o leitor de
descoberta do mundo, p. 399) jornal, habituado a ler sem dificuldade o jornal, está
predisposto a entender tudo. E isto simplesmente
porque ‘jornal é para ser entendido’. Não há dúvida,
“Não faço contratos nem escrevo livros por enco- porém, de que eu valorizo muito mais o que escrevo
menda ou prazo fixo. Nada disso. Escrevo uma crô- em livros do que o que escrevo para jornais – isso
nica por semana e assim mesmo acho algumas mui- sem, no entanto, deixar de escrever com gosto para
to fracas. Sou muito exigente comigo mesma...” o leitor de jornal e sem deixar de amá-lo.”

(“Clarice Lispector esconde um objeto gritante”, (Fragmento da crônica “Escrever para jornal e escre-
por Germana de Lamare. Correio da Manhã. Rio ver livro”, publicada em 29.07.72. In A descoberta
de Janeiro, 05-06.03.72) do mundo, p. 421)

“[Ernest] Hemingway e [Albert] Camus foram “No dia 2 de janeiro eu recebi um envelope, e den-
bons jornalistas, sem prejuízo de sua literatura. tro tinha as minhas crônicas. E uma carta seca, sem

66
nem agradecer os serviços prestados durante sete de direitos autorais. Na minha opinião, as editoras de-
anos, dizendo que daí em diante eu estava dispensa- viam ser mais generosas, inclusive para abrigar os novos
da de trabalhar. Então eu movi uma ação. Mas pa- talentos que surgem. É bem verdade que sempre foi di-
rece que eu vou perder. [...] O juiz foi muito simpá- fícil publicar um livro: o editor não se arrisca. Meu pri-
tico, disse que era muito meu admirador, mas deu a meiro livro, Perto do coração selvagem, foi recusado pe-
sentença contra.” la José Olympio e publicado por uma editora pequena,
com o seguinte contrato: eu não pagava nada e, se hou-
(“Clarice”. Entrevista a Sergio Augusto, Ziraldo, vesse lucro, seria para eles. Vivemos, em geral, de tra-
Ivan Lessa, Jaguar, Nélida Piñon e Olga Savary. O duções mal pagas. Eu traduzo do inglês e do francês e
Pasquim. Rio de Janeiro, 09.06.74) esta tem sido a minha solução. Há outros que, para se
sustentarem e à família, são além de escritores, jornalis-
“[Fazer traduções] É o meu sustento. Respeito os au- tas. Os jornalistas são mal pagos e têm que se socorrer
tores que traduzo, é claro, mas procuro me ligar mais com empregos públicos massacrantes da criatividade.”
no sentido do que nas palavras. Estas são bem minhas,
são as que elejo. Não gosto que me empurrem, me bo- “Os contratos prendem o escritor, que, em geral,
tem num canto, exigindo as coisas. Por isto senti um desconhece os seus direitos. Eu mesmo assinava ce-
grande alívio quando me despediram de um jornal, gamente os meus contratos, fui procurada por
recentemente. Agora só escrevo quando quero.” Carmen Balcells, agente literária européia, que, jun-
tamente com Maria Helena Geordani, cuidará dos
(“Clarice Lispector: ‘Já tentei reformar o mundo. meus interesses, já que eu mesma não soube cuidar.
Mas quem sou eu, meu Deus, para mudar as coi- No caso de traduções dos livros em outros países, re-
sas?’”, por Edilberto Coutinho. O Globo. Rio de Ja- cebo apenas um adiantamento e nunca mais ouço
neiro, 29.04.76) falar de como andam as vendas. Há também os ca-
sos de edições fantasmas, o seja, suponhamos que o
contrato fale em 5.000 exemplares, mas, na verdade,
“Eu descobri um modo de não me cacetear [ao fa- a editora imprime o dobro e não paga os direitos au-
zer traduções]... É o seguinte: jamais leio o livro an- torais. E nós não temos meios de controlar.”
tes de traduzir. É frase por frase, porque você é le-
vada pela curiosidade para saber o que vem depois, “Em Porto Alegre houve um encontro de escritores
e o tempo passa. Enquanto que, se você já leu, sa- para uma feira de livros e para irmos às universida-
be tudo, é um dever. Me dá um medo quando eu des participar de debates. Nove escritores foram es-
vejo, assim, 300 páginas na minha frente...” colhidos pela cooperativa de jornalistas profissionais
para gravar uma discussão de horas. Nessa ocasião fui
“Olha, eu faço tradução a qualquer hora. Sou muito muito indagada a respeito do processo que movi con-
desorganizada. Eu traduzo do inglês e do francês. tra um jornal que me despediu após sete anos de tra-
Mas trabalho depressa, intuitivamente. Às vezes con- balho e sem me pagar indenização, sob a alegação de
sulto um dicionário, às vezes não e, dependendo do que eu era apenas colaboradora. Acontece que eu ga-
caso, várias vezes.” nhava mensalmente, recebia o 13º salário e prepara-
va crônicas especiais por ocasião do Natal, Dia das
(Entrevista da autora ao MIS-RJ. Gravada em Mães etc., o que me fazia claramente uma assalaria-
20.10.76 e publicada no volume de n. 7 da cole- da. Não sei por que fui despedida, mas sei que, um
ção Depoimentos, editada pela instituição) dia antes de mim, outro jornalista, com condições de
trabalho exatamente iguais às minhas, ganhou a in-
denização que lhe era devida e que a mim foi nega-
“Alguns escritores tiveram a sorte de encontrar boas da. Perdi para a empresa em todas as instâncias.”
editoras e podem viver de direitos autorais. Era o caso
de Erico Verissimo, é o de Jorge Amado e José Mauro (“Clarice Lispector x editores”. Sem assinatura. Fo-
de Vasconcelos. Mas nós outros não conseguimos viver lha de S.Paulo, 08.11.76)

67
A escrita como missão tante para mim que não saber escrever talvez seja
exatamente o que me salvará da literatura.
“Escrevo porque encontro nisso um prazer que não O que é que se tornou importante para mim? No
sei traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para entanto, o que quer que seja, é através de literatu-
mim, para que eu sinta a minha alma falando e ra que poderá talvez se manifestar.”
cantando, às vezes chorando...
Meus primeiros ensaios literários, a princípio, me (“Ainda sem resposta”, crônica publicada em
intimidavam. Depois, uma resolução imediata. 22.06.68. Ibidem, p. 112)
Publiquei-os.”

(Coluna “Um minuto de palestra...”, por Edgar “Quando comecei a escrever, que desejava eu atin-
Proença. Estado do Pará. Belém, 20.02.44) gir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranqüi-
la e sem modas, alguma coisa como a lembrança de
um alto monumento que parece mais alto porque é
“[A minha obra é] uma tentativa fracassada de atin- lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente
gir o que existe.” tocado no monumento. Sinceramente não sei o que
simbolizava para mim a palavra monumento. E ter-
(“Encontro com cinco escritores”. Sem assinatura. minei escrevendo coisas inteiramente diferentes.”
Revista Senhor. Rio de Janeiro, n. 29, julho de 1961)
(“Mistério”, crônica publicada em 07.09.68. Ibi-
dem, p. 134)
“A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu ti-
ve desde a infância várias vocações que me chama-
vam ardentemente. Uma das vocações era escrever. “Eu disse uma vez que escrever é uma maldição.
E não sei por quê, foi esta que eu segui. Talvez por- Não me lembro por que exatamente eu o disse, e
que para as outras vocações eu precisaria de um com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição,
longo aprendizado, enquanto que para escrever o mas uma maldição que salva.
aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e Não estou me referindo muito a escrever para jor-
ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para es- nal. Mas escrever aquilo que eventualmente pode
crever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei- se transformar num conto ou num romance. É
me desde os sete anos de idade para que um dia eu uma maldição porque obriga e arrasta como um ví-
tivesse a língua em meu poder. E no entanto cada cio penoso do qual é quase impossível se livrar, pois
vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. nada o substitui. E é uma salvação.
Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inú-
capacidade de me renovar toda à medida que o til, salva o dia que se vive e que nunca se entende
tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.” a menos que se escreva. Escrever é procurar enten-
der, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sen-
(Fragmento da crônica “As três experiências”, publi- tir até o último fim o sentimento que permanece-
cada em 11.05.68. In A descoberta do mundo, p. 101) ria apenas vago e sufocador. Escrever é também
abençoar uma vida que não foi abençoada.
Que pena que só sei escrever quando espontanea-
“Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi mui- mente a ‘coisa’ vem. Fico assim à mercê do tempo.
ta coisa no mundo. Uma delas, e não das menos E, entre um verdadeiro escrever e outro, podem-se
dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou passar anos. Lembro-me agora com saudade da dor
talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conse- de escrever livros.”
guirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas
não puderam falar. Não sei mais escrever, porém o (“Escrever”, crônica publicada em 14.09.68. Ibi-
fato literário tornou-se aos poucos tão desimpor- dem, p. 134)

68
“É como se eu fosse manca e dissessem: ‘Como faço tudo para que as horas passem – e escrever, pe-
você consegue mancar?’ – quando todo o esforço lo contrário, aprofunda e alarga o tempo. Se bem
é para não mancar. Escrevo assim porque é o meu que ultimamente, por necessidade grande, aprendi
jeito, e quando digo isso estou me colocando nu- um jeito de me ocupar escrevendo, exatamente pa-
ma posição de observação em relação a mim, e já ra ver se as horas passam.”
é uma posição falsa, porque fica parecendo que
sou diferente. Escrever é um dos meus atos, como (“Aprofundamento das horas”, crônica publicada
falar, comer, andar, e tem forçosamente de ser co- em 16.11.68. Ibidem, p. 152)
mo sou. Escrever é um ato natural, assim como
ter um filho é um ato natural. Mas dói, não é? O
problema não é se vale a pena escrever: tem-se “Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não
que. Um exercício de aprender, uma maneira de sei como se escreve. E se não soasse infantil e falsa a
ser: escrever não é literatura, e nem exige uma pergunta das mais sinceras, eu escolheria um amigo
compensação.” escritor e lhe perguntaria: como é que se escreve?
Por que, realmente, como é que se escreve? que é
(“A literatura, segundo Clarice”. Sem assinatura. que se diz? e como dizer? e como é que se começa?
Estado de Minas. Belo Horizonte, 28.09.68) e que é que se faz com o papel em branco nos de-
frontando tranqüilo?
Sei que a resposta, por mais que intrigue, é a úni-
“Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, ca: escrevendo. Sou a pessoa que mais se surpreen-
resulta mais numa tentativa. O que também é um de de escrever. E ainda não me habituei a que me
prazer. Pois nem em tudo eu quero pegar. Às ve- chamem de escritora. Porque, fora das horas em
zes quero apenas tocar. Depois o que toco às ve- que escrevo, não sei absolutamente escrever. Será
zes floresce e os outros podem pegar com as duas que escrever não é um ofício? Não há aprendiza-
mãos.” gem, então? O que é? Só me considerarei escrito-
ra no dia em que eu disser: sei como se escreve.”
(“Delicadeza”, crônica publicada em 12.10.68. In
A descoberta do mundo, p. 143) (“Como é que se escreve?”, crônica publicada em
30.11.68. Ibidem, pp. 156-157)

“Literata também não sou porque não tornei o fato


de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’. “Uma grande amiga minha se deu ao trabalho de ir
Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, anotando numa folha de papel o que eu lhe dizia
e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora?
O que sou então? Sou uma pessoa que tem um co-
Acervo Paulo Gurgel Valente

ração que por vezes percebe, sou uma pessoa que


pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligí-
vel e um mundo impalpável. Sobretudo uma pes-
soa cujo coração bate de alegria levíssima quando
consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a
vida humana ou animal.”

(Fragmento da crônica “Intelectual? Não.”, publi-


cada em 02.11.68. Ibidem, p. 149)

“Não posso escrever enquanto estou ansiosa ou es-


pero soluções a problemas porque nessas situações

69
numa conversa telefônica. Deu-me depois a folha e crever. E eu quero escrever, algum dia talvez. Em-
eu me estranhei, reconhecendo-me ao mesmo tem- bora sentindo que se voltar a escrever, será de um
po. Estava escrito: ‘Eu às vezes tenho a sensação de modo diferente do meu antigo: diferente em quê?
que estou procurando às cegas uma coisa; eu quero Não me interessa.
continuar, eu me sinto obrigada a continuar. Sinto Minha autocrítica a certas coisas que escrevo, por
até uma certa coragem de fazê-lo. O meu temor é exemplo, não importa no caso se boas ou más: mas
de que seja tudo muito novo para mim, que eu tal- falta a elas chegar àquele ponto em que a dor se
vez possa encontrar o que não quero. Essa coragem mistura à profunda alegria e a alegria chega a ser
eu teria, mas o preço é muito alto, o preço é muito dolorosa – pois esse ponto é o aguilhão da vida. [...]
caro, e eu estou cansada. Sempre paguei e de repen- Não, eu não teria vergonha de dizer tão claramen-
te não quero mais. Sinto que tenho que ir para um te que quero o máximo – e o máximo deve ser atin-
lado ou para outro. Ou para uma desistência: levar gido e dito com a matemática perfeição da música
uma vida mais humilde de espírito, ou então não ouvida e transposta para o profundo arrebatamen-
sei em que ramo a desistência, não sei em que lugar to que sentimos. Não transposta, pois é a mesma
encontrar a tarefa, a doçura, a coisa. Estou viciada coisa. Deve, eu sei que deve, haver um modo em
em viver nessa extrema intensidade. A hora de es- mim de chegar a isso.
crever é o reflexo de uma situação toda minha. É Às vezes sinto que esse modo eu o conseguiria
quando sinto o maior desamparo.’” através simplesmente de meu modo de ver, evo-
luindo. Uma vez senti, no entanto, que seria con-
(“Conversa telefônica”, crônica publicada em seguido através da misericórdia. Não da miseri-
30.11.68. Ibidem, p. 157) córdia transformada em gentileza de alma. Mas
da profunda misericórdia transformada em ação,
mesmo que seja a ação das palavras. E assim co-
“‘Minhas intuições se tornam mais claras ao esfor- mo ‘Deus escreve direito por linhas tortas’, atra-
ço de transpô-las em palavras.’ Isso eu escrevi uma vés de nossos erros correria o grande amor que se-
vez. Mas está errado, pois que, ao escrever, gruda- ria a misericórdia.”
da e colada, está a intuição. É perigoso porque
nunca se sabe o que virá – se se for sincero. Pode (Fragmento da crônica “Autocrítica no entanto be-
vir o aviso de uma destruição, de uma autodes- névola”, publicada em 14.06.69. Ibidem, p. 201)
truição por meio de palavras. Podem vir lembran-
ças que jamais se queria vê-las à tona. O clima po- “Minhas intuições se tornam mais claras ao es-
de se tornar apocalíptico. O coração tem que estar forço de transpô-las em palavras. É neste sentido,
puro para que a intuição venha. E quando, meu pois, que escrever me é uma necessidade. De um
Deus, pode-se dizer que o coração está puro? Por- lado, porque escrever é um modo de não mentir
que é difícil apurar a pureza: às vezes no amor ilí- o sentimento (a transfiguração involuntária da
cito está toda a pureza do corpo e alma, não aben- imaginação é apenas um modo de chegar); de ou-
çoado por um padre, mas abençoado pelo próprio tro lado, escrevo pela incapacidade de entender,
amor. E tudo isso pode-se chegar a ver – e ter vis- sem ser através do processo de escrever. Se tomo
to é irrevogável. Não se brinca com a intuição, não um ar hermético, é que não só o principal é não
se brinca com o escrever: a caça pode ferir mortal- mentir o sentimento como porque tenho incapa-
mente o caçador.” cidade de transpô-lo de um modo claro sem que
o minta – mentir o pensamento seria tirar a úni-
(“A perigosa aventura de escrever”, crônica publica- ca alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo
da em 05.04.69. In A descoberta do mundo, p. 183) um ar involuntariamente hermético, o que acho
bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, eu
poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que
“Tem que ser [uma autocrítica] benévola, porque sou obstinada. E por outro lado, respeito uma
se fosse aguda, isso talvez me fizesse nunca mais es- certa clareza peculiar ao mistério natural, não

70
substituível por clareza outra nenhuma. E tam- sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que
bém porque acredito que a coisa se esclarece sozi- se chama vocação. Vocação é diferente de talento.
nha com o tempo: assim como num copo d’água, Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-
uma vez depositado no fundo o que quer que se- se ser chamado e não saber como ir.”
ja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa,
pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem (Fragmento da crônica “Escrever”, publicada em
maior, como todo o mundo que vive. E se aceito 02.05.70. Ibidem, p. 286)
o risco não é por liberdade arbitrária ou incons-
ciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por
hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profun- “Enquanto escrevo o bom é que não dou mostra da
do senso de aventura, e a palavra profundo está aí grande excitação de que sou às vezes tomada. E por
querendo dizer inerente. Este senso de aventura é mais difícil que seja o trabalho, sinto uma felicidade
o que me dá o que tenho de aproximação mais dolorosa pois, com os nervos todos aguçados, fico
isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, sem a cobertura de um cotidiano banal. E depois de
a escrever.” pronto o livro, de entregue ao editor, posso dizer co-
mo Julio Cortázar: retesa o arco ao máximo enquan-
(“Aventura”, crônica publicada em 04.10.69. Ibi- to escreve e depois o solta de um só golpe e vai be-
dem, p. 236) ber vinho com os amigos. A flecha já anda pelo ar, e
se cravará ou não se cravará no alvo; só os imbecis
podem pretender modificar sua trajetória ou correr
“Às vezes tenho a impressão de que escrevo por atrás dela para dar-lhe empurrões suplementares
simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu com vistas à eternidade e às edições internacionais.”
me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de
escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, (Fragmento da crônica “Perguntas e respostas para
das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia um caderno escolar”, publicada em 29.08.70. Ibi-
que sabia.” dem, p. 309)

(“Sobre escrever”, crônica publicada em 20.12.69.


Ibidem, p. 254) “A grande recompensa? É o fruto do trabalho. É
saber que há gente que procura compreender o
que eu faço. É receber cartas maravilhosas de
“Quando conscientemente, aos 13 anos de idade, crianças, jovens, velhos, como uma que eu rece-
tomei posse da vontade de escrever – eu escrevia bi, outro dia, de um homem simples, que me
quando era criança, mas não tomara posse de um chama de ‘mãe do Brasil’.”
destino – quando tomei posse da vontade de escre-
ver, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo (“Clarice, um mistério sem muito mistério”. Sem as-
não havia quem pudesse me ajudar. sinatura. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 02.11.71)
Eu tinha que eu mesma me erguer de um nada, ti-
nha eu mesma que me entender, eu mesma inven-
tar por assim dizer a minha verdade. Comecei, e “Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca
nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam existiu. Como conseguirei saber do que nem ao
um ao outro – o sentido se contradizia, o desespero menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um
de não poder era um obstáculo a mais para realmen- esforço de ‘memória’, como se eu nunca tivesse nas-
te não poder. [...] E tudo era feito em tal segredo. cido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro,
Eu não contava a ninguém, vivia aquela dor sozi- e a lembrança é em carne viva.”
nha. Uma coisa eu já adivinhava: era preciso tentar
escrever sempre, não esperar por um momento me- (“Lembrar-se do que não existiu”, crônica publica-
lhor porque este simplesmente não vinha. Escrever da em 06.11.71. In A descoberta do mundo, p. 385)

71
“Respondi que eu gostaria mesmo era de poder um “Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode
dia afinal escrever uma história que começasse as- não escrever. Gradualmente, gradualmente até que
sim: ‘Era uma vez...’ Para crianças? Perguntaram. de repente a descoberta tímida: quem sabe, tam-
Não, para adultos mesmo, respondi já distraída, bém eu já poderia não escrever. Como é infinita-
ocupada em me lembrar de minhas primeiras his- mente mais ambicioso. É quase inalcançável.”
tórias aos sete anos, todas começando com ‘era uma
vez’. Eu as enviava para a página infantil das quin- (“Um degrau acima: o silêncio”, crônica publicada
tas-feiras do jornal de Recife, e nenhuma, mas ne- em 22.04.72. In A descoberta do mundo, p. 414)
nhuma mesmo, foi jamais publicada. E mesmo en-
tão era fácil de ver por quê. Nenhuma contava
propriamente uma história com os fatos necessários “Penso que, apesar de não estar na moda ou ultra-
a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e to- passada, ainda não acabei. O fim é a perda de um
das relatavam um acontecimento. Mas se eles eram estilo, o esquecimento do leitor, a pausa imposta,
teimosos, eu também. diferente do descanso de trabalho.”
Desde então, porém, eu havia mudado tanto,
quem sabe agora já estava pronta para o verdadei- “O que eu escrevo de mim é o que sai naturalmen-
ro ‘era uma vez’. Perguntei-me em seguida: e por te. Escrever memórias não faz meu estilo. É levar
que não começo? agora mesmo? Será simples, ao público passagens de uma vida. A minha é mui-
senti eu. to pessoal.”
E comecei. No entanto, ao ter escrito a primeira
frase, vi imediatamente que ainda me era impossí- (“Autocrítica de Clarice Lispector, no momento
vel. Eu havia escrito: ‘Era uma vez um pássaro, exato”, por Telmo Martino. Jornal da Tarde. São
meu Deus’.” Paulo, 22.07.72)

(“Ainda impossível”, crônica publicada em


19.02.72. Ibidem, p. 406) “Não sei classificar a minha obra. Em cada livro
eu renasço. E experimento o gosto do novo. Não,
eu nunca soube que era responsável pela renova-
“Engraçado, eu fiz essa mesma pergunta a [Alain] ção da literatura brasileira, sobretudo no conto. E,
Robbe-Grillet quando ele veio ao Brasil. Me res- se isso aconteceu, foi involuntariamente, sem pro-
pondeu: ‘Eu escrevo para saber por que escrevo’. gramação.”
Minha resposta é diferente. Eu escrevo para enten-
der melhor o mundo. E acho que escrevendo a gen- (“Clarice, arte da solidão e do mistério”, por Bruno
te entende mais um pouquinho do que não escre- Paraíso. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro,
vendo. É uma lucidez meio nebulosa, porque a 09.09.73)
gente não tem direito consciência dela.”

“Eu nunca acho que eu escrevi bem. Nas vezes em “Eu não sei julgar o que eu escrevo. Depois de
que eu me forcei a ler algo meu, tive uma grande muito tempo, nem reconheço o que eu escre-
sensação de imperfeição. Tudo ali era muito sofri- vo. Parece que é de outra pessoa. Nunca releio
do, muito conhecido.” livro meu.”

“Cada vez que escrevo um livro acho que ele vai (“Clarice”. Entrevista a O Pasquim. Rio de Janei-
ser o último. Que eu acabei ali.” ro, 09.06.74)

(“Clarice Lispector esconde um objeto gritante”, “Eu tinha medo de que escrever se tornasse um há-
por Germana de Lamare. Correio da Manhã. Rio de bito, e não uma surpresa. E eu só gosto de escrever
Janeiro, 05-06.03.72) quando me surpreendo. Além disso, eu temia que,

72
se continuasse produzindo livros, adquirisse uma se seu ‘ainda escreve’: pergunto se, com os meus
habilidade detestável. Um pintor célebre – não me escritos duramente humildes estou incomodan-
lembro quem – disse, certa vez: ‘Quando tua mão do a alguém. A quem? Se você sabe de pessoas
direita for hábil, pinte com a esquerda; quando a de quem eu esteja atrapalhando o caminho ‘li-
esquerda tornar-se hábil também, pinte com os terário’, me diga os nomes e eu juro que guarda-
pés’. Eu sigo esse preceito.” rei segredo. Recuso-me a ser importante. O ‘su-
cesso’ jamais me subiu à cabeça. Continuo sendo
(“Escritora mágica”, por Isa Cambará. Revista Veja. uma escrivã paciente. O grande Alceu Amoroso
São Paulo, 30.07.75) Lima, que me deu a honra de escrever sobre mim
desde meu primeiro livro, vaticinou, meu Deus,
há muitos anos, que eu ia estar numa trágica so-
“Eu não poderia viver sem escrever. Mas passei uns lidão nas letras brasileiras. Até um tempo atrás eu
oito anos de aridez. Sofri muito. Pensei que não não o entendi. Mas agora sinto isso na carne.
escreveria mais, nunca mais. Então veio de repen- Olhe, eu escrevo por nenhum motivo especial, e,
te um livro inteiro, que é A paixão segundo G.H.. se existe algum motivo, surgiu quando eu tinha
Aí não parei mais. Trabalho todos os dias. Nada, um pouco menos de 7 anos de idade e comecei a
agora, me impede. Nada me perturba, nem mes- escrever.”
mo uma emoção como essa do prêmio. Hoje mes-
mo trabalhei.” (“Clarice Lispector, mais um livro. E a mesma
solidão”. Sem assinatura. O Globo. Rio de Janei-
(“Clarice Lispector: ‘Já tentei reformar o mundo. ro, 25.08.77)
Mas quem sou eu, meu Deus, para mudar as coi-
sas?’”, por Edilberto Coutinho. O Globo. Rio de Ja-
neiro, 29.04.76) “Eu acho que, quando não escrevo, eu estou mor-
ta. [...] É muito duro o período entre um trabalho
e outro e, ao mesmo tempo, é necessário para ha-
“A sua pergunta – ‘por que ainda escreve?’ – me ver uma espécie de esvaziamento da cabeça para
insulta, apesar de você não querer me insultar. O poder nascer alguma outra coisa. E se nascer... É
que quer dizer ela? Que chega de escrever boba- tudo tão incerto!”
gens? Ou significa que você acha que eu já tenha
dado tudo o que tinha para dar? Por que escre- “Bom, eu, agora, eu morri. Vamos ver se renasço
vo? Pergunto a você: por que você ainda bebe de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou fa-
água? Responda. Estou esperando. Mas me dê lando de meu túmulo.”
uma resposta que seja inspirativa. Já ouvi me di-
zerem, para me agradar: ‘Você não precisa mais (“Clarice Lispector”, por Júlio Lerner. Panorama Espe-
escrever, você já faz parte da literatura brasileira’. cial, programa gravado em 01.02.72 e levado ao ar pe-
Mas que inferno, e eu lá desejo entrar em algu- la TV Cultura. São Paulo, 28.12.77)
ma literatura do mundo? O futuro já é passado,
não me interessa mais. Ou você pensava que eu
escrevia para criar alguma notoriedade? Eu lhe “Escrevo simplesmente. Como quem vive. Por isso
juro que nunca bajulei críticos a fim de ter deles todas as vezes que fui tentada a deixar de escrever,
uma interpretação elogiosa. Minha relação com não consegui. Não tenho vocação para o suicídio.
os críticos é essa: eu não agradeço elogios, para Um jornalista me perguntou: Por que é que você es-
deixá-los livres para falar mal de meus outros li- creve? Então eu lhe perguntei: Por que você bebe água?
vros. E nunca – mas nunca – me defendi por car- A honestidade é muitas vezes uma dor.”
ta ou telefone quando me atacam. A grande
maioria dos que me interpretam, eu não conhe- (Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector – Esboço para
ço nem de nome. Todos estão livres de mim. Es- um possível retrato, p. 24)

73
Acervo Paulo Gurgel Valente

“Por que escrevo: teria antes de ir ao profundo úl- “Quanto ao fato de eu escrever, digo – se interessa a al-
timo de meu ser. guém – que estou desiludida. É que escrever não me
– Não. Eu não sei por que escrevo. trouxe o que eu queria, isto é, paz. Minha literatura,
A gente escreve, como quem ama, ninguém sabe não sendo de forma alguma uma catarse e que me fa-
por que ama, a gente não sabe por que escreve. ria bem, não me serve como meio de libertação. Tal-
Escrever é um ato solitário, solitário de um modo vez de agora em diante eu não mais escreva e apenas
diferente de solidão.” aprofunde em mim a vida. Ou talvez esse aprofunda-
mento de vida me leve de novo a escrever. De nada sei.”
(Ibidem, p. 67)
(Ibidem, pp. 69-70)

“Todas as vezes em que eu acabei de escrever um


livro ou um conto, penso com desespero e com “O bom de escrever é que não sei o que vou escrever
toda a certeza de que nunca mais escreverei nada. na próxima linha. Eu queria saber sobre o que preten-
E me sinto perdida principalmente depois que dem de mim os meus livros. Eu não escrevo para a
acabo um trabalho mais sério. Há um esvazia- posteridade.”
mento que quase se pode chamar sem exagero de
desesperador. Mas para mim é pior: a germiniza- (Ibidem, p. 75)
ção e a gestação para um novo trabalho podem
demorar anos, anos esses em que feneço. Lendo
dias depois o que escrevi, sinto certa desilusão, Linguagem, estilo: a palavra como matéria
insatisfação.”
“Todos me consideram uma escritora hermética.
(Ibidem, p. 69) Mas, se a criança entende minha linguagem, por

74
que o adulto me acha difícil de ler? Mas confesso tural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a ser ultra-
que, se eu não fosse eu, não teria prazer em me ler.” passado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria
apenas dizer. Deus meu, eu mal queria dizer.
(“Clarice conta a história de seu coelho pensan- E o que eu escrevesse seria o destino humano na
te”. Sem assinatura. Diário de Notícias. Rio de Ja- sua pungência mortal. A pungência de se ser es-
neiro, 04.02.68) plendor, miséria e morte. A humilhação e a po-
dridão perdoadas porque fazem parte da carne fa-
tal do homem e de seu modo errado na terra. O
“Esta é uma confissão de amor: amo a língua portu- que eu escrevesse ia ser o prazer dentro da misé-
guesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não ria. É a minha dívida de alegria a um mundo que
foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a não me é fácil.”
sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às ve-
zes com um verdadeiro pontapé contra os que teme- (“Estilo”, crônica publicada em 12.10.68. Ibidem,
rariamente ousam transformá-la numa linguagem de pp. 142-143)
sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portu-
guesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. So-
bretudo para quem escreve tirando das coisas e das “Estou à procura de um livro para ler. É um livro
pessoas a primeira capa de superficialismo. todo especial. Eu o imagino como a um rosto sem
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais traços. Não lhe sei o nome nem o autor. Quem sa-
complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível be, às vezes penso que estou à procura de um livro
de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gos- que eu mesma escreveria. Não sei. Mas faço tantas
tava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas fantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão
rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope. profundamente amado. Uma das fantasias é assim:
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao má- eu o estaria lendo e de súbito, a uma frase lida, com
ximo nas minhas mãos. E este desejo todo os que lágrimas nos olhos diria em êxtase de dor e de en-
escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bas- fim libertação: ‘Mas é que eu não sabia que se po-
taram para nos dar para sempre uma herança de de tudo, meu Deus!’.”
língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos
fazendo do ‘túmulo do pensamento’ alguma coisa (“O livro desconhecido”, crônica publicada em
que lhe dê vida. 20.09.69. Ibidem, p. 233)
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do en-
cantamento de lidar com uma língua que não foi apro-
fundada. O que recebi de herança não me chega. “Em algum ponto deve estar havendo um erro:
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, é que ao escrever, por mais que me expresse, te-
e me perguntassem a que língua eu queria perten- nho a sensação de nunca na verdade ter-me ex-
cer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas co- pressado. A tal ponto isso me desola que me pa-
mo não nasci muda e pude escrever, tornou-se ab- rece, agora, ter passado a me concentrar mais em
solutamente claro para mim que eu queria mesmo querer me expressar do que na expressão ela mes-
era escrever em português. Eu até queria não ter ma. Sei que é uma mania muito passageira. Mas,
aprendido outras línguas: só para que a minha de qualquer forma, tentarei o seguinte: uma es-
abordagem do português fosse virgem e límpida.” pécie de silêncio. Mesmo continuando a escre-
ver, usarei o silêncio. E, se houver o que se cha-
(“Declaração de amor”, crônica publicada em ma de expressão, que se exale do que sou. Não
11.05.68. In A descoberta do mundo, pp. 100-101) vai mais ser: ‘Eu me exprimo, logo sou’. Será: ‘Eu
sou; logo sou’.”

“Como uma forma de depuração, eu sempre quis (“Um momento de desânimo”, crônica publicada
um dia escrever sem nem mesmo o meu estilo na- em 20.12.69. Ibidem, p. 254)

75
“Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteú- Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a
do, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pes-
é bom, mas a forma não, etc. Mas, por Deus, o pro- cou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a pa-
blema é que não há de um lado um conteúdo, e de lavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra,
outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então
através de uma forma o que já existisse livre, o con- é escrever ‘distraidamente’.”
teúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está
no próprio pensamento: o conteúdo luta por se (“Escrever as entrelinhas”, crônica publicada em
formar. Para falar a verdade, não se pode pensar 06.11.71. Ibidem, p. 385)
num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca
na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de
forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente “Sou meio misteriosa, também. Eu escrevo uma
que prescinde de forma enquanto ela própria, an- coisa e anos depois é que vou vivenciar, realmen-
tes de subir à tona, se trabalha.” te, aquela coisa. Aí já está escrito faz muito tem-
po... Não sei explicar por quê... Você me acha
(Fragmento da crônica “Forma e conteúdo”, publi- hermética? Perto do coração selvagem, quando foi
cada em 20.12.69. Ibidem, pp. 254-255) editado, em 44 [N.E.: Na verdade, a primeira
edição do romance inaugural de Clarice é de
1943], foi considerado um livro muito hermé-
“Bem sei o que é o chamado verdadeiro roman- tico. Hoje é texto de escola. Vai ver, acontecerá
ce. No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fa- a mesma coisa com Objeto gritante [N.E.: Futu-
tos e descrições, sinto-me apenas aborrecida. E ramente, Água viva].”
quando escrevo não é o clássico romance. No en-
tanto é romance mesmo. Só que o que me guia (“Clarice Lispector esconde um objeto gritante”,
ao escrevê-lo é sempre um senso de pesquisa e de por Germana de Lamare. Correio da Manhã. Rio
descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em de Janeiro, 05-06.03.72)
si, mas de sintaxe o mais possível se aproximan-
do e me aproximando do que estou pensando na
hora de escrever. Aliás, pensando melhor, nunca “Comunicar é viver. Deram outro sentido à pa-
‘escolhi’ linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir lavra. Como aquela frase: ‘Quem não comunica
me obedecendo.” se trumbica’. É o oposto. Muita gente está se
trumbicando pelo excesso de comunicação. Exis-
(Fragmento da crônica “O ‘verdadeiro’ romance”, te uma medida nas palavras. Permite a explicação
publicada em 22.08.70. Ibidem, p. 306) dos fatos sem o uso de um vocabulário enorme.
Comunicação é um sentido a mais. Uma expres-
são falada. Está presente no homem. Completa
“Acho que o som da música é imprescindível para sua visão geral.”
o ser humano e que o uso da palavra falada e escri-
ta é como a música, duas coisas das mais altas que (“Autocrítica de Clarice Lispector, no momento
nos elevam do reino dos macacos, do reino animal.” exato”, por Telmo Martino. Jornal da Tarde. São
Paulo, 22.07.72)
(Fragmento da crônica “Conversa meio a sério
com Tom Jobim – I”, publicada em 03.07.71. Ibi-
dem, p. 359) “Eu tenho a impressão de que, se gostam de mim,
é porque estou sendo fácil.”

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra (“Clarice”. Entrevista a O Pasquim. Rio de Janei-
como isca: a palavra pescando o que não é palavra. ro, 09.06.74)

76
“Está acontecendo algo que não entendo. Quando “A palavra é o meu meio de comunicação. Eu
eu lançava meus livros as pessoas em geral não os en- só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se
tendiam, agora entendem, e os mesmos livros! O lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é
crítico italiano Enrico Cicogna esteve em minha ca- tão forte que atravessa a barreira do som. Ca-
sa e me contou que, sabendo ler em português, ten- da palavra é uma idéia. Cada palavra materia-
tou ler Perto do coração selvagem e largou porque não liza o espírito. Quantas mais palavras eu co-
entendeu patavina. Alguns anos depois foi veranear nheço, mais sou capaz de pensar o meu senti-
na Sicília e levou um livro para ler, não sabia expli- mento. Devemos modelar nossas palavras até
car por que foi o meu, e, então, não só o entendeu se tornarem o mais fino invólucro dos nossos
como me procurava havia dez anos! Quando acabei pensamentos. Sempre achei que o traço de um
de escrever Perto do coração selvagem, o crítico da escultor é identificável por uma extrema sim-
moda era Álvaro Lins. Telefonei para ele sem conhe- plicidade de linhas. Todas as palavras que di-
cê-lo e enviei o manuscrito, perguntando se valia a go – é por esconderem outras palavras. E qual
pena publicá-lo. Uma semana após, ele me dizia pe- é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a
lo telefone: ‘Olha moça, não entendi nada. Quem ouso? Só não sei porque não ouso dizê-la?
sabe se o Otto Maria Carpeaux entende?’. Não Sinto que existe uma palavra, talvez unica-
mandei os originais ao Carpeaux, publiquei o livro. mente uma, que não pode e não deve ser pro-
Acho que agora estou na moda. Como escrevi crô- nunciada. Parece-me que todo o resto não é
nicas durante sete anos, isso me deu uma estranha proibido. Mas acontece que eu quero é exata-
popularidade, porque a crônica – que eu detesto fa- mente me unir a essa palavra proibida. Ou se-
zer – é mais acessível. De modo que o carteiro dis- rá? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em
se à minha empregada: ‘Ela é famosa, deve ter mui- boca fechada, para mim mesma, senão corro o
to dinheiro e muitos palacetes...’.” risco de virar alma perdida por toda a eterni-
dade. Os que inventaram o Velho Testamento
(“Clarice, pela última vez”, por Nevinha Pinheiro. sabiam que existia uma fruta proibida.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15.12.77) As palavras é que me impedem de dizer a ver-
dade. Simplesmente não há palavras. O que
não sei dizer é mais importante do que o que
“Eu penso e sinto em português, e só esta língua eu digo. Acho que o som da música é impres-
penosa e terrível me satisfaria. cindível para o ser humano e que o uso da pa-
Nossa língua – que ainda borbulha e que para ser lavra falada e escrita são como a música, duas
traduzida precisa de duas ou três palavras que lhe coisas das mais altas que nos elevam do reino
expliquem o seu sentido vivo – que precisa mais do dos macacos, do reino animal, e mineral e ve-
presente do que mesmo de uma tradição, exige que getal também. Sim, mas é a sorte às vezes.
o escritor se trabalhe a si próprio como pessoa a fim Sempre quis atingir através da palavra alguma
de que possa depois trabalhá-la. coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda
A linguagem está descobrindo o nosso pensamen- e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou
to, o nosso pensamento está formando uma língua simplesmente a verdade mais profunda exis-
que se chama de literária e que eu chamo de lin- tente no ser humano e nas coisas. Cada vez
guagem de vida.” mais eu escrevo com menos palavras. Meu li-
vro melhor acontecerá quando eu de todo
(Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector – Esboço pa- não escrever. Eu tenho uma falta de assunto
ra um possível retrato, pp. 67-8) essencial.
Todo homem tem sina obscura de pensamento
que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma
“Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro.” aurora. Simplesmente as palavras do homem.”

(Ibidem, p. 83) (Ibidem, pp. 84-5)

77
O discurso do antimétodo te: só se aproximando com humildade da coisa é que
ela não escapa totalmente. Descobri esse tipo de hu-
“[...] no conto o que era para ser dito fica dito den- mildade, o que não deixa de ser uma forma engraça-
tro de um tamanho de conto.” da de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos tão
grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se
(“Yllen Kerr pergunta: Clarice Lispector responde cai em gulodice. Só que orgulho tem a enorme des-
– ‘Angústia depende do angustiado’”, por Yllen vantagem de ser um erro grave, e, com todo o atraso
Kerr. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18.09.63) que o erro dá à vida, faz perder muito tempo.”

(“Humildade e técnica”, crônica publicada em


“O momento da concepção é muito difícil, mas é 04.10.69. In A descoberta do mundo, p. 237)
aquele momento. Toda a minha dificuldade está
em compreender o que estou querendo. O grande
labor é a própria concepção. Não burilo estilo, “Como se eu procurasse não aproveitar a vida ime-
nunca refaço nada.” diata, mas sim a mais profunda, o que me dá dois mo-
dos de ser: em vida, observo muito, sou ativa nas ob-
“Acho que faço mais bem-feito o conto. Mas me servações, tenho o senso do ridículo, do bom humor,
interessa mais o romance. Só o romance me dá a da ironia, e tomo um partido. Escrevendo, tenho ob-
sensação de saciedade, de esgotamento.” servações por assim dizer passivas, tão interiores que
se escrevem ao mesmo tempo em que são sentidas,
“A coisa vai-se fazendo em mim. Não escolho o quase sem o que se chama de processo. É por isso que
momento, ele é que me escolhe. Inspiração? Não no escrever eu não escolho, não posso me multiplicar
existe. A gente tem é que estar preparada para o em mil, me sinto fatal a despeito de mim.”
momento que colhe a gente. O meu método de
trabalho é estar com a ponta do lápis feita. O res- (“Dois modos”, crônica publicada em 31.10.70.
to é quase orgânico, fora da minha deliberação, da Ibidem, p. 319)
minha alçada. Não sei pôr no papel uma coisa que
já não estou sentindo mais. Quando escrevo, sinto
os personagens até a morte.” “Eu já disse que só trabalho sob inspiração. Não sei
me comandar. Nada em mim é premeditado. Se
(“A literatura, segundo Clarice”. Sem assinatura. houvesse premeditação, eu me desinteressaria pelo
Estado de Minas. Belo Horizonte, 28.09.68) trabalho. Quando penso numa história, eu só te-
nho uma vaga visão do conjunto, mas isso é coisa
de um momento, que, depois, se perde. A dificul-
“Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz dade é recompor tudo. E começar a escrever.”
com que eu, por instinto de... de quê? procure um
modo de falar que me leve mais depressa ao entendi- (“Clarice, um mistério sem muito mistério”. Sem assi-
mento. Esse modo, esse estilo (!), já foi chamado de natura. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 02.11.71)
várias coisas, mas não do que realmente e apenas é:
uma procura humilde. Nunca tive um só problema de
expressão, meu problema é muito mais grave: é o de “Às vezes, vou lhe confessar uma coisa, nem corri-
concepção. Quando falo em humildade, não me refi- jo as provas. Peço a alguém para reler. As coisas uma
ro à humildade no sentido cristão (como ideal a po- vez feitas não me interessam mais. [Objeto gritante],
der ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que por exemplo, não vou nem passar a limpo...”
vem da plena consciência de ser realmente incapaz. E
refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, “[...] eu sempre começo tudo como se fosse pelo
até eu mesma me assustei com minha falta de pudor; meio. Deus me livre de começar a escrever um li-
mas é que não é. Humildade como técnica é o seguin- vro da primeira linha. Eu vou juntando notas. E

78
depois vejo que umas têm conexão com as outras, sentir. O único sintoma são as frases que me vêm
e aí descubro que o livro já está pelo meio.” de repente, já prontas, no táxi, no cinema ou no
meio da noite, revelando que algo está crescendo
“Sou ignorante demais para ser uma intelectual. em mim. Mas, ao contrário do que muitos pen-
Não sou uma literata. Não vivo no meio dos livros, sam, não escrevo em transe e não sinto nenhum
nem tampouco de flores e de aves, como me acu- espírito me insuflando idéias. A inspiração vem
sam às vezes... Sou uma intuitiva, quer dizer, eu dessa longa elaboração inconsciente. Escrever, pa-
sinto mais do que penso...” ra mim, é um aprendizado. Assim como viver é
um aprendizado.”
“Quando eu escrevi A maçã no escuro, nos EUA, eu
só conseguia ter vida social se escrevesse de manhã. (“Escritora mágica”, por Isa Cambará. Revista Veja.
Se não, me dava um mau humor tremendo. Aqui, São Paulo, 30.07.75)
agora, eu também escrevo sempre cedo.”

“Eu acordo às quatro da manhã. Quando estou tra- “Quando trabalho, não penso em mim nem em
balhando é ótimo. Aproveito a madrugada para es- meu leitor. As idéias me vêm puras e, uma vez for-
crever. Mas quando eu não estou fazendo nada me madas, como uma criança que nasce, dou-lhes in-
chateio brutalmente. Não encontro nada para fa- teira liberdade.”
zer. E todo mundo dorme.”
(“Clarice regressa de Buenos Aires”. Sem assinatu-
(“Clarice Lispector esconde um objeto gritante”, ra – fonte: agência UPI. Folha de S.Paulo, 19.04.76)
por Germana de Lamare. Correio da Manhã. Rio
de Janeiro, 05-06.03.72)
“Vou tomando notas. Às vezes acordo no meio da
noite, anoto uma frase e volto para a cama. Sou ca-
“Não se faz uma frase. A frase nasce.” paz de escrever no escuro, num cinema, meu ca-

(Escrever, crônica publicada em 18.11.72. In A des-


coberta do mundo, p. 433)
Arquivo Nacional

“Eu trabalho do modo mais esquisito do mundo.


Eu trabalho sentada numa poltrona com a máqui-
na no colo. Por causa de meus filhos. Quando eles
eram pequenos, eu não queria que eles tivessem
uma mãe fechada num quarto a que não pudessem
ter acesso. Então eu sentava no sofá, com a máqui-
na no colo, e escrevia. Foi assim que meu filho pe-
diu pra eu escrever uma história pra ele. Essa his-
tória eu escrevi em inglês [N.E.: Posteriormente
traduzida e publicada, em 1967, como O mistério
do coelho pensante]. Aos poucos ele ia levando pra
cozinheira ler, voltava, sentava, esperava.”

(“Clarice”. Entrevista a O Pasquim. Rio de Janei-


ro, 09.06.74)

“Às vezes, elaboro um trabalho durante anos, sem

79
derninho sempre na bolsa. Depois eu mesma te- dos pelos deuses e o resto é trabalho humano. Às
nho dificuldade de decifrar minha letra. Mas é as- vezes acordo no meio da noite com uma frase na
sim. Desde o primeiro livro. Eu tinha uma porção cabeça, levanto-me, anoto-a e volto a dormir. Car-
de notas, não sabia direito o que fazer com elas. los Drummond de Andrade me disse uma vez que
Lúcio Cardoso me disse, então: ‘Se todas as notas Manuel Bandeira não sei se escreveu ou disse que
são sobre um mesmo tema, você tem o livro pron- até para atravessar a rua no momento certo era
to’. E assim foi.” preciso inspiração.”

(“Clarice Lispector: ‘Já tentei reformar o mundo. (“Clarice, pela última vez”, por Nevinha Pinheiro.
Mas quem sou eu, meu Deus, para mudar as coi- Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15.12.77)
sas?’”, por Edilberto Coutinho. O Globo. Rio de Ja-
neiro, 29.04.76)
“Descobri que eu preciso não saber o que penso. Se
eu ficar consciente do que penso passo a não poder
“Eu tive que descobrir meu método sozinha. Não mais pensar. Quando digo ‘pensar’ quer dizer so-
tinha conhecidos escritores, não tinha nada. Por nhar palavras. Ou melhor: passo a só me ver pensar.
exemplo, de tarde no trabalho ou na faculdade, Meu pensamento tem que ser um sentir. Penso tão
me ocorriam idéias e eu dizia: ‘Tá bem, amanhã depressa que não sei o que penso. Penso por ima-
de manhã eu escrevo’. Sem perceber ainda que, gens mais rápidas que as palavras do pensamento
em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a pudessem captar. O vazio, e o não pensar, é o me-
frase feita. E assim, enquanto eu deixava ‘para lhor estado mental para que as imagens se façam.”
amanhã’, continuava o desespero toda manhã
diante do papel em branco. E a idéia? Não tinha (Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector – Esboço para
mais. Então eu resolvi tomar nota de tudo o que um possível retrato, 1981, p. 78)
me ocorria. E contei ao Lúcio Cardoso, que en-
tão eu conheci, que eu estava com um montão de
notas assim, separadas, para um romance. Ele “Meu trabalho vem às vezes em nebulosa sem que
disse: ‘Depois faz sentido, uma está ligada a eu possa concretizá-lo de algum modo. Passo dias ou
outra’. Aí eu fiz. Estas folhas ‘soltas’ deram Perto até anos, meu Deus, esperando. E, quando chega, já
do coração selvagem.” vem em forma de inspiração. Eu só trabalho em for-
ma de inspiração. No início de uma história, acho
“Agora eu aprendi a não rasgar nada. Minha em- que tenho um vago plano inconsciente que vai de-
pregada, por exemplo, tem ordem de deixar qual- sabrochando à medida que trabalho. Fundo e forma
quer pedacinho de papel com alguma coisa escrita sempre foram uma coisa só. A frase já vem feita.
lá como está.”
(Ibidem, pp. 81-2)
“Eu nunca sei de antemão o que vou escrever. Tem es-
critores que só se põem a escrever quando têm o livro
todo na cabeça. Eu não. Vou me seguindo e não sei no Sobre livros seus
que vai dar. Depois vou descobrindo o que eu queria.”
“O que me salvou da monotonia de Berna foi vi-
(Entrevista da autora ao MIS-RJ. Gravada em ver na Idade Média, foi esperar que a neve parasse
20.10.76 e publicada no volume de n. 7 da cole- e os gerânios vermelhos de novo se refletissem na
ção Depoimentos, editada pela instituição) água, foi ter um filho que lá nasceu, foi ter escrito
um de meus livros menos gostado, A cidade sitia-
da, no entanto, relendo-o, pessoas passam a gostar
“Eu creio na inspiração e creio no trabalho. Paul dele; minha gratidão a este livro é enorme: o esfor-
Valéry disse que os dois primeiros versos são da- ço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele

80
silêncio aterrador das ruas de Berna, e quando ter- “Não acho que este livro [Água viva] seja mais di-
minei o último capítulo, fui para o hospital dar à fícil do que A cidade sitiada. Considero A cidade
luz o menino.” sitiada como um dos meus melhores trabalhos.
Se todo mundo hoje pode ler e alcançar a men-
(Fragmento da crônica “Lembrança de uma fon- sagem de Água viva, isso é problema que me es-
te, de uma cidade”, publicada em 14.02.70. In A capa. Mas uma coisa é verdade. Isso: em cada li-
descoberta do mundo, p. 270) vro meu, eu conto tremendamente com a parti-
cipação do leitor.”

“Ele [Objeto gritante] já está pronto, sim, mas acho (“Clarice, arte da solidão e do mistério”, por Bru-
que só vou editá-lo no ano que vem. Sabe, eu es- no Paraíso. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro,
tou muito sensível ultimamente. Tudo o que di- 09.09.73)
zem de mim me magoa. O Objeto gritante é um li-
vro que deverá ser muito criticado, ele não é
conto, nem romance, nem biografia, nem tam- “Eu me expus nessas entrevistas [publicadas em De
pouco livro de viagens. E, no momento, não es- corpo inteiro] e consegui assim captar a confiança
tou disposta a ouvir desaforos. Sabe, Objeto gritan- de meus entrevistados a ponto de eles próprios se
te é uma pessoa falando o tempo todo...” exporem. As entrevistas são interessantes porque
revelam o inesperado das personalidades entrevis-
(“Clarice Lispector esconde um objeto gritante”, tadas. Há muita conversa, e não as clássicas per-
por Germana de Lamare. Correio da Manhã. Rio
guntas e respostas.”
de Janeiro, 05-06.03.72)
(“Escritora mágica”, por Isa Cambará. Revista Ve-
ja. São Paulo, 30.07.75)
“O livro [Objeto gritante], não será publicado.
Não atingiu seu objetivo. O escritor sente quando
deve ou não publicar uma coisa sua.”
“Você sabe o que é um furúnculo? Eu nunca tive.
Mas é uma coisa alta e dura, parece. Pois é. O edi-
(“Autocrítica de Clarice Lispector, no momento
exato”, por Telmo Martino. Jornal da Tarde. São tor Álvaro Pacheco me pediu, e eu disse: ‘Não
Paulo, 22.07.72) aceito encomenda’. ‘Mas só você poderia escrever
essas histórias’, ele disse. Aí eu escrevi as histórias
de A via crucis do corpo, mas senti como se uma
“Água viva talvez seja um trabalho novo e por is- agulha tivesse furado o furúnculo.”
so estranho. Acho que foi um salto que eu dei. Há
anos este livro existe em mim, todo vago, todo “Não sei ainda se vai ser conto, novela ou roman-
confuso. E, de repente, senti os trabalhos de par- ce [N.E.: A autora se refere ao livro que seria A ho-
to. A partir daí, comecei a entender melhor o que ra da estrela]. Mas posso dizer que será um livro
queria dizer. Mas foi um livro que me deu muito diferente, na minha obra. Trato de uma moça nor-
trabalho de introspecção.” destina. Eu vi esse moça na feira dos nordestinos,
em São Cristóvão. Olhei para ela e descobri tudo.
“[Água viva] É ficção, sim. Pois não me aconteceu Tudo sobre ela, entende? Bastou um olhar. Eu sou
nada em relação à personagem, além do fato de eu muito intuitiva.”
jamais ter sido pintora. Minha ambição era essa
coisa quase impossível: captar o instante que pas- (“Clarice Lispector: ‘Já tentei reformar o mundo.
sa. Para isso, quase nunca me referi ao passado ou Mas quem sou eu, meu Deus, para mudar as coi-
ao futuro. Tinha que ser um livro, por assim dizer, sas?’”, por Edilberto Coutinho. O Globo. Rio de
do momento sempre atual.” Janeiro, 29.04.76)

81
“Eu estava escrevendo o livro [Água viva] e detes- sabafar. Eu nunca desabafei num livro. Para isso
tava fazer crônicas, então eu aproveitava e publi- servem os amigos. Eu quero a coisa em si.”
cava [trechos do trabalho em andamento]. [...] as
anotações ‘Children’s Corner’ fazem parte do livro “Eu me lembro muito do prazer que eu senti ao es-
A legião estrangeira, que traz uma parte de contos crever A maçã no escuro. Todas as manhãs eu dati-
e outra de textos, que o Otto Lara Resende disse: lografava, chegava às 500 páginas. Eu copiei 11 ve-
‘Bota o título Fundo de gaveta [N.E.: Futuramen- zes para saber o que é que estava querendo dizer,
te publicado em volume individual, batizado de porque eu quero dizer uma coisa e não sei bem ao
Para não esquecer]’. O livro foi inteiramente aba- certo. Copiando eu vou me entendendo [...].”
fado pelo A paixão segundo G.H., que saiu na mes-
ma ocasião.” “Eu fiz [A vida íntima de Laura] porque galinha
sempre me impressionou muito. Quando eu era
“A cidade sitiada foi, inclusive, um dos meus livros pequena, eu olhava muito para uma galinha, por
mais difíceis de escrever, porque exigiu uma exe- muito tempo, e sabia imitar o bicar do milho, imi-
gese que eu não sou capaz de fazer. É um livro den- tar quando ela estava com doença, e isso sempre me
so, fechado. Eu estava perseguindo uma coisa e impressionou tremendamente. Aliás, eu sou muito
não tinha quem dissesse o que era. San Tiago Dan- ligada a bicho, tremendamente. A vida de uma ga-
tas abriu o livro, leu e pensou: ‘Coitada da Clari- linha é oca... uma galinha é oca!”
ce, caiu muito’. Dois meses depois, ele me contou
que, ao ir dormir, quis ler alguma coisa e o pegou. (Entrevista da autora ao MIS-RJ. Gravada em
Então ele me disse: ‘É o seu melhor livro’. [...] É a 20.10.76 e publicada no volume de n. 7 da coleção
formação de uma cidade, a formação de um ser Depoimentos, editada pela instituição)
humano dentro de uma cidade. Um subúrbio cres-
cendo, um subúrbio com cavalos, tudo tão vital...
Construíram uma ponte, construíram tudo, e de “Eu trabalhei três anos em Água viva. Antes ele ti-
modo que já não era subúrbio. Então o persona- nha 280 páginas. E nesses três anos eu fui podan-
gem dá o fora.” do, podando, para que nenhuma palavra fosse va-
zia, para que toda palavra tivesse alguma coisa a
“[A maçã no escuro] Foi o único livro bem estru- dizer. Por isso ele é denso. Foi muito difícil de es-
turado que eu escrevi, eu acho. Se bem que não: crever. Fui reescrevendo, reescrevendo. Então, um
Água viva segue o seu curso.” dia, o Alberto Dines me perguntou pelo livro. Eu
disse: ‘Ainda não está pronto’. Ele respondeu:
“Eu ainda me lembro [bastante de meus textos], ‘Quem sabe se já não está?’. Pediu para ler, leu e
ms eu nunca reli. Eu não releio. Eu enjôo. depois me confirmou: ‘O livro é esse, está pronto’.
Quando é publicado já é como um livro mor- Então vi que estava mesmo e resolvi publicar. Já A
to, não quero mais saber dele. E, quando leio, paixão [segundo G.H.] é uma coisa para ser subli-
eu estranho, acho ruim, por isso não leio. Tam- minarmente entendida. Um professor de literatura
bém não leio as traduções que fazem dos meus do Pedro II [N.E.: Tradicional colégio do Rio de Ja-
livros para não me irritar. [...] Eu nem quero sa- neiro] veio à minha casa e disse: ‘Li quatro vezes
ber [se são boas ou ruins]. Mas sei que não sou A paixão e não sei do que se trata, eu não enten-
eu mesma escrevendo.” do o que você quis dizer’. No dia seguinte, uma
universitária de 16 anos me visitou e disse: ‘Meu
“É curioso, porque eu estava na pior das situações, livro de cabeceira é A paixão’. A menina pegou tu-
tanto sentimental como de família, tudo compli- do, o professor de literatura não pegou nada.”
cado, e escrevi A paixão... [segundo G.H.], que não
tem nada a ver com isso, não reflete [...], em abso- (“Clarice Lispector, mais um livro. E a mesma solidão”.
luto. Porque eu não escrevo como catarse, para de- Sem assinatura. O Globo. Rio de Janeiro, 25.08.77)

82
S. Hassad/Editora Abril

Simples, mas não simplificada, nem simplifico os


outros. Daí a pergunta, daí os equívocos.”

“[Como gato por lebre] A toda hora. Por tolice,


por distração, por ignorância. Por delicadeza: me
oferecem gato e agradeço a lebre, e quando a lebre
mia, finjo que não ouvi. A variedade no assunto
está exigindo uma enciclopédia. Quando o gato se
imagina lebre, por exemplo, já que se trata de ga-
to profundamente insatisfeito, então lido com a le-
bre dele: é direito de gato querer ser lebre. Há ca-
sos em que o gato até que quer ser gato mesmo,
mas lebresse oblige, o que cansa muito. Há também
os que não querem admitir que gostam mesmo é
de gato e nos obrigam a chamar de lebre o gato
que lhes oferecemos, só para poder comer em paz
com tempos e costumes. No tratado sobre o assun-
to, um professor de melancolia diria que já serviu
de lebre a muito gato ordinário. Um professor de
irritação diria o que não se deve dizer. Etc. Tenho
vergonha é quando não aceito lebre pensando que
era gato, é o preço da desconfiança; quando acei-
to gato por lebre, o verdadeiro problema é dos ou-
tros. Você vê, gostei muito da pergunta: é que vá-
rias lebres andaram miando no telhado, e você me
Pulsações deu a oportunidade de miar de volta. Gato tam-
bém é hidrófobo.”
“[Angústia] depende do angustiado. Para alguns
incautos, inclusive é a palavra de que se orgulham “Alegria também faz parte: o que é vivo, por ser
como se com ela subissem de categoria, o que tam- vivo, se descontrai.”
bém é uma forma de angústia. Pode ser não ter es-
perança na esperança; conformar-se sem se resig- “[Autêntico é] Quem imitasse a si mesmo? Mas is-
nar; não se confessar a si próprio; não ser o que to é frase, e também definiria tédio, por exemplo.
realmente se é, e nunca se é; sentir o desamparo Digamos: quem, apesar de procurar o ideal de si
de estar vivo; pode ser não ter coragem de ter an- mesmo, também procura o real de si mesmo? En-
gústia. Angústia faz parte: o que é vivo, por ser vi- fim, é outra frase. A resposta mais autêntica a qua-
vo, se contrai.” se tudo o que você me perguntou seria: ‘Não sei’.”

“É que o mundo de fora também tem o seu ‘den- (“Yllen Kerr pergunta: Clarice Lispector responde
tro’, daí a pergunta, daí os equívocos. O mundo – ‘Angústia depende do angustiado’”, por Yllen
de fora também é íntimo. Quem o trata com ce- Kerr. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18.09.63)
rimônia e não o mistura a si mesmo não o vive,
e é quem realmente o considera ‘estranho’ e ‘de
fora’. A palavra ‘dicotomia’ é uma das mais secas “Mas quantas vezes a insônia é um dom. De re-
do dicionário.” pente acordar no meio da noite e ter essa coisa
rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das on-
“[Eu me considero] Simples. Embora meus vários das do mar batendo na praia. E tomo café com
tipos de simplicidade às vezes se entrechoquem. gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me in-

83
terrompe o nada. É um nada a um tempo vazio sente que é um dom. E se sente que é um dom por-
e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque sú- que se está experimentando, numa fonte direta, a
bito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. dádiva indubitável de existir materialmente. [...] Há
As nuvens se clareando sob um sol às vezes páli- dias que são tão áridos e desérticos que eu daria anos
do como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao de minha vida em troca de uns minutos de graça.”
terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a es-
puma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, (Fragmento da crônica “Estado de graça – Trecho”,
a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por publicada em 06.04.68. Ibidem, pp. 91-3)
tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai
acordando e há o reencontro com meus filhos
sonolentos.” “Não posso infelizmente responder cartas de leito-
res, só uma vez ou outra. Mas houve uma que mis-
(Fragmento da crônica “Insônia infeliz e feliz”, publi- turava agressividade com palavras delicadas, tinha
cada em 20.01.68. In A descoberta do mundo, p. 69) a chamada rude franqueza. Porque em uma de mi-
nhas colunas eu disse que preferiria ser antipática,
ele diz: ‘Não vou cometer a leviandade de dizer que
“Tantos querem a projeção. Sem saber como esta a acho simpática, cheia de altos e baixos, mas sou
limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu bastante vulgar para considerá-la linda’. [...] Você
pudor. Inclusive o que eu queria dizer já não pos- reclama contra o meu desalento. Tem razão, Fran-
so mais. O anonimato é suave como um sonho. Eu cisco, sou um pouco desalentada, preciso demais
estou precisando desse sonho. Aliás eu não queria dos outros para me animar. Meu desalento é igual
mais escrever. Escrevo agora porque estou precisan- ao que sentem milhares de pessoas. Basta, porém,
do de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas receber um telefonema ou lidar com alguém que
que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Es- eu gosto e minha esperança renasce, e fico forte de
sas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio novo. Você na certa deve me ter conhecido num
dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de momento em que eu estava cheia de esperança.
minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é Sabe como eu sei? Porque você diz que sou linda.
mais precioso que tudo: o próprio silêncio.” Ora, não sou linda. Mas quando estou cheia de es-
perança, então de minha pessoa se irradia algo que
(“Anonimato”, crônica publicada em 10.02.68. talvez se possa chamar de beleza. [...] Amém, Fran-
Ibidem, pp. 75-6) cisco, e obrigada: quero tudo o que você tem a me
dar. Há muito tempo não me dão um prato de len-
tilhas para esta fome arcaica que eu tenho. Com
“Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá seu cavalo, Francisco, iremos tão longe! E de lá
o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é nunca voltaremos! Adeus, todo mundo! pois já es-
uma graça especial que tantas vezes acontece aos tou montada no cavalo belo que me levará à luz.
que lidam com arte. Vou-me embora para a minha pasárgada, enfim!”
O estado de graça de que falo não é usado para na-
da. É como se viesse apenas para que se soubesse (Fragmento da crônica “Adeus, vou-me embora!”,
que realmente se existe. Nesse estado, além da tran- publicada em 20.04.68. Ibidem, pp. 93-4)
qüila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há
uma lucidez que só chamo de leve porque na graça
tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não “Há três coisas para as quais eu nasci e para as
adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. quais dou minha vida. Nasci para amar os outros,
Não perguntem o quê, porque só posso responder nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos.
do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até per-
E há uma bem-aventurança física que a nada se dão para mim mesma, com o que sobra. As três
compara. O corpo se transforma num dom. E se coisas são tão importantes que minha vida é cur-

84
ta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo ur- preguiça encontre eco em alguns leitores e leitoras
ge. Não posso perder um minuto do tempo que para que eu não os sinta superiores demais a mim.
faz minha vida. Amar os outros é a única salvação A verdade é que, em matéria de ordem, o que eu
individual que conheço: ninguém estará perdido gostaria é que alguém se incumbisse de me dar um
se der amor e às vezes receber amor em troca. [...] ambiente de ordem. O meu ideal absurdo de luxo
Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi seria ter uma espécie de governanta-secretária que
casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram ge- tomasse conta de toda a minha vida externa, inclu-
rados voluntariamente. Os dois meninos estão sive indo por mim a certas festas. Que ao mesmo
aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me re- tempo me adorasse – mas eu exigiria ainda por ci-
novo neles, eu acompanho seus sofrimentos e an- ma que me adorasse com discrição, é intolerável o
gústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não endeusamento afoito que constrange e tira a espon-
fosse mãe, seria sozinha no mundo. [...] Sempre taneidade, e não nos dá o direito de ter os defeitos
me restará amar. Escrever é alguma coisa extrema- natos e adquiridos nos quais tão ciosamente nos
mente forte mas que pode me trair e me abando- apoiamos – nossos defeitos também servem de mu-
nar: posso um dia sentir que já escrevi o que é o letas, não só as nossas qualidades.”
meu lote neste mundo e que eu devo aprender
também a parar. Em escrever eu não tenho nenhu- (Fragmento da crônica “Ideal burguês”, publicada
ma garantia. em 08.06.68. Ibidem, p. 109)
Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer.
Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à
minha espera. E eu vou ao encontro do que me es- “Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde
pera. [...] O tempo corre, o tempo é curto: preciso o berço a criança sente o ambiente, a criança quer:
me apressar, mas ao mesmo tempo viver como se nela o ser humano no berço mesmo já começou.
esta minha vida fosse eterna. E depois morrer vai Tenho certeza de que no berço a minha primeira
ser o final de alguma coisa fulgurante: morrer será vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui
um dos atos mais importantes da minha vida. Eu não importam, eu de algum modo devia estar sen-
tenho medo de morrer: não sei que nebulosas e tindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nas-
vias-lácteas me esperam. Quero morrer dando ên- ci de graça.
fase à vida e à morte.” Se no berço experimentei essa fome humana, ela
continua a me acompanhar pela vida afora, como
(Fragmento da crônica “As três experiências”, pu- se fosse um destino. A ponto de meu coração se
blicada em 11.05.68. Ibidem, pp. 101-102) contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira:
ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de
“Como é que uma pessoa desordenada se transfor- me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bas-
ma em pessoa ordenada? Meus papéis estão em de- tante arisca: tenho medo de revelar de quanto pre-
sordem, minhas gavetas por arrumar. (Vou ter se- ciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre.
cretária por estar em estafa, segundo o médico.) Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais
Isso não teria importância maior, creio, se eu tives- do que isso. Quem sabe se comecei a escrever tão
se ordem interior. Mas as pessoas que se preocu- cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu
pam demais com a ordem externa é porque inter- pertencia um pouco a mim mesma. O que é um
namente estão em desordem e precisam de um fac-símile triste. [...] Muitas vezes a vontade inten-
contraponto que lhes sirva de segurança. Preciso de sa de pertencer vem em mim de minha própria for-
um ponto de segurança, que seria representado por ça – eu quero pertencer para que minha força não
uma espécie de ordem estrita e rígida nas minhas seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
gavetas. Bom, só em pensar em arrumar gavetas, [...] Quase consigo me visualizar no berço, quase
enchi-me de uma preguiça que passo a classificar consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto
de preguiça de fim de semana. Espero que minha premente sensação de precisar pertencer. Por mo-

85
Acervo Paulo Gurgel Valente

pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver.


Experimentei-o com a sede de quem está no deser-
to e bebe sôfrego os últimos goles de água de um
cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo
que caminho.”

(Fragmento da crônica “Pertencer”, publicada em


15.06.68. Ibidem, pp. 110-111)

“A raiva me tem salvo a vida. Sem ela o que seria


de mim? Como suportaria eu a manchete que saiu
um dia no jornal dizendo que cem crianças mor-
rem no Brasil diariamente de fome? A raiva é a mi-
nha revolta mais profunda de ser gente? Ser gente
me cansa. E tenho raiva de sentir tanto amor. Há
dias que vivo de raiva de viver. Porque a raiva me
envivece toda: nunca me senti tão alerta. Bem sei
que isso vai passar, e que a carência necessária vol-
ta. Então vou querer tudo, tudo! Ah como é bom
precisar e ir tendo. Como é bom o instante de pre-
cisar que antecede o instante de se ter. Mas ter fa-
cilmente, não. Porque essa aparente facilidade can-
sa. Até escrever está sendo fácil? Por que é que eu
escrevia com as entranhas e neste momento estou
escrevendo com a ponta dos dedos? É um pecado,
tivos que nem minha mãe nem meu pai podiam bem sei, querer a carência. Mas a carência de que
controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida. falo é tão mais plenitude do que essa espécie de far-
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um tura. Simplesmente não a quero.”
modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e,
por uma superstição bastante espalhada, acreditava- (Fragmento da crônica “Fartura e carência”, publi-
se que ter um filho curava uma mulher de uma cada em 14.09.68. Ibidem, p. 135)
doença. Então fui deliberadamente criada: com
amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E
sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para “Pessoas que às vezes querem me elogiar cha-
uma missão determinada e eu falhei. Como se con- mam-me de inteligente. E ficam surpreendidas
tassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu quando digo que ser inteligente não é meu pon-
tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram to forte e que sou tão inteligente quanto qualquer
eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande es- pessoa. Pensam, então, inclusive que estou sendo
perança. Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que modesta.
simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer É claro que tenho alguma inteligência: meus estu-
e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido dos o provaram, e várias situações das quais se sai
a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a por meio da inteligência também provaram. Além
alguém essa espécie de solidão de não pertencer por- do que posso, como muitos, ler e entender alguns
que, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que textos considerados difíceis.
por vergonha não podia ser conhecido. Mas muitas vezes a minha chamada inteligência é
A vida me fez de vez em quando pertencer, como tão pouca como se eu tivesse a mente cega. As pes-
se fosse para me dar a medida do que eu perco não soas que falam de minha inteligência estão na ver-

86
dade confundindo inteligência com o que chama- anos de idade, havia muitas vezes nas ruas um
rei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, vá- aglomerado de pessoas diante das quais alguém
rias vezes tive ou tenho. discursava ardorosamente sobre a tragédia social.
E, apesar de admirar a inteligência pura, acho E lembro-me de como eu vibrava e de como eu
mais importante, para viver e entender os outros, me prometia que um dia esta seria a minha tare-
essa sensibilidade inteligente. Inteligentes são fa: a de defender os direitos dos outros.
quase que a maioria das pessoas que conheço. E No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Ter-
sensíveis também, capazes de sentir e de se co- minei sendo uma pessoa que procura o que pro-
mover. O que, suponho, eu uso quando escrevo, fundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
e nas minhas relações com amigos, é esse tipo de É pouco, é muito pouco.”
sensibilidade. Uso-a mesmo em ligeiros contatos
com pessoas, cuja atmosfera tantas vezes capto (“O que eu queria ter sido”, crônica publicada em
imediatamente. 02.11.68. Ibidem, pp. 149-150)
Suponho que este tipo de sensibilidade, uma que
não só se comove como por assim dizer pensa sem
ser com a cabeça, suponho que seja um dom. E, “[...] houve um Natal em que minha amiga que-
como um dom, pode ser abafado pela falta de uso brou a combinação e, sabendo-me não religiosa,
ou aperfeiçoar-se com o uso. Tenho uma amiga, deu-me um missal. Abri-o, e nele ela escrevera: re-
por exemplo, que, além de inteligente, tem o dom ze por mim.
da sensibilidade inteligente, e, por profissão, usa No ano seguinte, em setembro, houve o incêndio
constantemente esse dom. O resultado então é que em meu quarto, incêndio que me atingiu tão gra-
ela tem o que eu chamaria de coração inteligente em vemente que fiquei alguns dias entre vida e morte.
tão alto grau que a guia e guia os outros como um Meu quarto foi inteiramente queimado: o estuque
verdadeiro radar.” das paredes e do teto caiu, os móveis foram redu-
zidos a pó, e os livros também.
(“Sensibilidade inteligente”, crônica publicada em Não tento sequer explicar o que aconteceu: tudo se
02.11.68. Ibidem, pp. 148-149) queimou, mas o missal ficou intato, apenas com
um leve chamuscado na capa.”

“Um nome para o que eu sou, importa muito pou- (Fragmento da crônica “Meu Natal”, publicada em
co. Importa o que eu gostaria de ser. 21.12.68. Ibidem, p. 159)
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Que-
ro dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos ou-
tros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o “Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qual-
destino me levando a escrever o que já escrevi, em quer entender. Entender é sempre limitado. Mas
vez de também desenvolver em mim a qualidade não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou
de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha fa- muito mais completa quando não entendo. Não
mília por brincadeira chamava-me de ‘a proteto- entender, do modo como falo, é um dom. Não en-
ra dos animais’. Porque bastava acusarem uma tender, mas não como um simples de espírito. O
pessoa para eu imediatamente defendê-la. E eu bom é ser inteligente e não entender. É uma bên-
sentia o drama social com tanta intensidade que ção estranha, como ter loucura sem ser doida. É
vivia de coração perplexo diante das grandes in- um desinteresse manso, é uma doçura de burrice.
justiças a que são submetidas as chamadas classes Só que de vez em quando vem a inquietação: que-
menos privilegiadas. Em Recife eu ia aos domin- ro entender um pouco. Não demais: mas pelo me-
gos visitar a casa de nossa empregada nos mo- nos entender que não entendo.”
cambos. E o que eu via me fazia como que me
prometer que eu não deixaria aquilo continuar. (“Não entender”, crônica publicada em 01.02.69.
Eu queria agir. Em Recife, onde morei até doze Ibidem, p. 172)

87
“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como
Acervo Paulo Gurgel Valente

descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou


um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que
me veio, ajo quase que imediatamente. O resulta-
do tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi
sob uma intuição dessas que não falham, às vezes
erro completamente, o que prova que não se trata-
va de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impul-
sos. E até que ponto posso controlá-los. Há um peri-
go: se reflito demais, deixo de agir. E muitas vezes pro-
va-se depois que eu deveria ter agido. [...] Às vezes
restringir o impulso me anula e me deprime; às vezes
restringi-lo dá-me uma sensação de força interna.
Que farei então? [...] Vou pensar no assunto. E
certamente o resultado ainda virá sob a forma de
um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou
nunca serei.”

(Fragmento da crônica “O impulso”, publicada em


29.03.69. In A descoberta do mundo, pp. 181-182)
“Nunca gostei de ficar em casa. Sempre que podia
estava na calçada querendo encontrar alguém para
brincar. Apesar de não ser extrovertida, sinto gran- “Um amigo meu diz que em todos nós existe o
de necessidade de afeto e carinho. Por isso, quan- charlatão. Concordei. Sinto em mim a charlatã
do via um menino ou menina passar na porta de me espreitando. Só não vence, primeiro porque
casa, perguntava: ‘Você quer brincar comigo?’. Os não é realmente verdade, segundo porque minha
não eram muitos, os sim, poucos.” honestidade básica até me enjoa. Há outra coisa
que me espreita e que me faz sorrir: o mau gosto.
Ah, a vontade que tenho de ceder ao mau gosto.
“Sabe, uma das coisas que mais me incomodam é Em quê? Ora, o campo é ilimitado, simplesmen-
o fato de as pessoas acharem que sou um mito. Is- te ilimitado. [...] Não sei descrever, mas saberia
so prejudica muito a aproximação de pessoas que usar um mau gosto perfeito. E em escrever? A ten-
poderiam preencher o vazio da minha vida. Quer tação é grande, pois a linha divisória é quase in-
um exemplo? Daqui a pouco serão sete e meia. Um visível entre o mau gosto e a verdade. E mesmo
pintor de 25 anos vai me telefonar. Há vários me- porque, pior que o mau gosto em matéria de es-
ses esse rapaz me telefona nesse mesmo horário, só crever, é um certo tipo horrível de bom gosto. Às
pra conversar comigo. Não o conheço pessoalmen- vezes, de puro prazer, de pura pesquisa simples,
te e ele tem medo de vir me ver. Acha que sou uma ando sobre linha bamba.
esfinge, que precisa ser adorada à distância. Muitas Como é que eu seria charlatã? Eu fui, e com to-
pessoas acham, mas não sou nenhum bicho-papão. da a sinceridade, pensando que acertava. Sou, por
Mas pareço condenada a viver sozinha – dormir ce- exemplo, formada em direito, e com isso enganei
do, ir ao cinema sem ninguém ao meu lado. É o a mim e aos outros. Não, mais a mim que a to-
preço da fama.” dos. No entanto, como eu era sincera: fui estudar
direito porque desejava reformar as penitenciárias
(“Que mistério tem Clarice Lispector?”. Por Leo no Brasil.
Gilson Ribeiro. O Estado de S. Paulo/Jornal da Tar- O charlatão é um contrabandista de si mesmo. Que
de. São Paulo, 05.02.69) é mesmo o que estou dizendo? Era uma coisa, mas já

88
me escapou. O charlatão se prejudica? Não sei, mas “Refletindo um pouco, cheguei à ligeiramente as-
sei que às vezes a charlatanice dói e muito. Imiscui- sustadora certeza de que os pensamentos são tão
se nos momentos mais graves. Dá uma vontade de sobrenaturais como uma história passada depois da
não ser, exatamente quando se é com toda a força.” morte. Simplesmente descobri de súbito que pen-
sar não é natural. Depois refleti um pouco mais e
(Fragmento da crônica “Charlatões”, publicada em descobri que não tenho um dia-a-dia. É uma vida-
26.04.69. Ibidem, p. 188) a-vida. E que a vida é sobrenatural.”

(“A vida é sobrenatural”, crônica publicada em


“Quando tiraram os pontos de minha mão operada, por 28.06.69. Ibidem, p. 205)
entre os dedos, gritei. Dei gritos de dor, e de cólera, pois
a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas
não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado “Como seriam as coisas e as pessoas antes que lhes ti-
e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus.” véssemos dado o sentido de nossa esperança e visão
humanas? Devia ser terrível. Chovia, as coisas se en-
(“A revolta”, crônica publicada em 10.05.69. Ibi- sopavam sozinhas e secavam, e depois ardiam ao sol
dem, pp. 193-194) e se crestavam em poeira. Sem dar ao mundo o nos-
so sentido humano, como me assusto. Tenho medo
da chuva, quando a separo da cidade e dos guarda-
“Sinto em mim que há tantas coisas sobre o que escre- chuvas abertos, e dos campos se embebendo de água.”
ver. Por que não? O que me impede? A exigüidade do
tema talvez, que faria com que este se esgotasse em (“Sem nosso sentido humano”, crônica publicada
uma palavra, em uma linha. Às vezes é o horror de to- em 28.06.69. Loc. cit.)
car numa palavra que desencadearia milhares de ou-
tras, não desejadas, estas. No entanto, o impulso de es-
crever. O impulso puro – mesmo sem tema. Como se “O que chamo de morte me atrai tanto que só pos-
eu tivesse a tela, os pincéis e as cores – e me faltasse o so chamar de valoroso o modo como, por solida-
grito de libertação, ou a mudez essencial que é neces- riedade com os outros, eu ainda me agarro ao que
sária para que se digam certas coisas. Às vezes a minha chamo de vida. Seria profundamente amoral não
mudez faz com que eu procure pessoas que, sem elas esperar, como os outros esperam, pela hora, seria
saberem, me darão a palavra-chave. Mas quem? quem esperteza demais a minha de avançar no tempo, e
me obriga a escrever? O mistério é esse: ninguém, e no imperdoável ser mais sabida do que os outros. Por
entanto a força me impelindo. [...] E às vezes, por mais isso, apesar da intensa curiosidade, espero.”
absurdo, acho lícito escrever assim: nunca se inventou
nada além de morrer. E me acrescento: deve ser um (“Espera impaciente”, crônica publicada em
gozo natural, o de morrer, pois faz parte essencial da 28.06.69. Loc. cit.)
natureza humana, animal e vegetal, e também as coi-
sas morrem. E, como se houvesse ligação com essa des-
coberta, vem a outra óbvia e espantosa: nunca se in- “Minha alma humana é a única forma possível de
ventou um modo diferente de amor de corpo que é eu não me chocar desastrosamente com a minha
estranho e cego. Cada um vai naturalmente em dire- organização física, tão máquina perfeita esta é. Mi-
ção à reinvenção da cópia, que é absolutamente origi- nha alma humana é, aliás, também o único modo
nal quando realmente se ama. E de novo volta o as- como me é dado aceitar sem desatino a alma geral
sunto morrer. E vem a idéia de que, depois de morrer, do mundo. A engrenagem não pode nem por um
não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso.” segundo falhar.”

(Fragmento da crônica “Temas que morrem”, pu- (“Engrenagem”, crônica publicada em 28.06.69.
blicada em 24.05.69. Ibidem, pp. 196-197) Loc. cit.)

89
“Berna é uma cidade livre, por que então eu me sen- que tenho afinidade com Virginia Woolf (só a li,
tia tão presa, tão segregada? Eu ia ao cinema todas aliás, depois de escrever o meu primeiro livro): é que
as tardes, pouco importava o filme. E lembro-me de não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O
que às vezes, à saída do cinema, via que já começa- horrível dever é ir até o fim. E sem contar com nin-
ra a nevar. Naquela hora do crepúsculo, sozinha na guém. Viver a própria realidade. Descobrir a verda-
cidade medieval, sob os flocos ainda fracos de neve de. E, para sofrer menos, embotar-me um pouco.
– nessa hora eu me sentia pior do que uma mendi- Pois não posso mais carregar as dores do mundo.”
ga porque nem ao menos eu sabia o que pedir.”
(Fragmento da crônica “Ao correr da máquina”,
(Fragmento da crônica “Lembrança de uma fonte, de publicada em 17.04.71. Ibidem, p. 340)
uma cidade”, publicada em 14.02.70. Ibidem, p. 270)

“Eu nunca pretendi assumir atitude de superintelec-


“Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não tual. Eu nunca pretendi assumir atitude nenhuma. Le-
conviveu com um animal falta um certo tipo de in- vo uma vida muito corriqueira. Crio meus filhos. Cui-
tuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de do da casa. Gosto de ver amigos. O resto é mito.”
um bicho está com medo de si próprio.
Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às (“Clarice, um mistério sem muito mistério”. Sem
vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim assinatura. Correio da Manhã. Rio de Janeiro,
quando estou com eles: parece que não sei mais 02.11.71)
quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confun-
do toda, fico ao que parece com medo de encarar
meus próprios instintos abafados que, diante do bi- “Sabe, sou uma mulher simples e complexa ao
cho, sou obrigada a assumir, exigentes como são, mesmo tempo. Como toda mulher, afinal de con-
que se há de fazer, pobre de nós. Conheci uma mu- tas. Minha vida é dirigir a casa, participar da vida dos
lher que humanizava os bichos, conversando com
eles, emprestando-lhes suas próprias característi-
cas. Mas eu não humanizo os bichos, acho que é
Acervo Paulo Gurgel Valente

uma ofensa – há de respeitar-lhes a natura – eu é


que me animalizo. Não é difícil, vem simplesmen-
te, é só não lutar contra, é só entregar-se.
Mas, indo bem mais fundo, chego muito pensati-
va à conclusão de que não existe nada mais difícil
que entregar-se totalmente. Essa dificuldade é uma
das dores humanas.”

(Fragmento da crônica “Bichos – I”, publicada em


13.03.71. Ibidem, p. 334)

“Meu Deus, como o amor impede a morte! Não sei


o que estou querendo dizer com isso: confio na mi-
nha incompreensão, que tem me dado vida instin-
tiva e intuitiva, enquanto que a chamada compreen-
são é tão limitada. Perdi amigos. Não entendo a
morte. Mas não tenho medo de morrer. Vai ser um
descanso: um berço enfim. Não a apressarei, viverei
até a última gota de fel. Não gosto quando dizem

90
meus filhos, o quanto eles me permitem, é claro, necessário: barraca, areia colada por toda a pele.
porque às vezes eles até proíbem participar da vida E mesmo não sei ir ao mar sem molhar os cabe-
de meus amigos. Sabe, é uma besteira dizerem que los. E, chegando em casa, tem-se que tirar o sal.
eu sou uma mulher solitária, têm a mania de escre- Mas um dia vou falar do mar de um modo me-
ver isso a meu respeito. É cretino, mesmo. Eu de- lhor. Aliás, acho que vou começar um pouquinho
testo ficar só, não gosto nem de ir ao cinema sozi- agora. Vou falar do cheiro do mar que às vezes me
nha. [...] Gosto de repartir minhas emoções com deixa tonta. Tenho uma conhecida que mora na
outras pessoas, dividir tudo o que é bom...” Zona Norte, o que não justifica nunca ter entra-
do no mar. Fiquei pasma quando me contou. E
“[...] há algo de que eu tenho medo. Acho que eu prometi que ela viria em casa para entrarmos no
tenho medo do futuro. Sempre tive, realmente.” mar às seis horas da manhã. Por quê? Porque é a
hora da grande solidão do mar. Como explicar
(“Clarice Lispector esconde um objeto gritante”, que o mar é o nosso berço materno mas que seu
por Germana de Lamare. Correio da Manhã. Rio cheiro seja todo masculino; no entanto berço ma-
de Janeiro, 05-06.03.72) terno? Talvez se trate da fusão perfeita do mascu-
lino com o feminino. Às seis horas da manhã as
espumas são mais brancas.”
“O processo de viver é feito de erros – a maioria
essenciais – de coragem e preguiça, desespero e (“O mar de manhã”, crônica publicada em 07.04.73.
esperança de vegetativa atenção, de sentimento Ibidem, p. 458)
constante (não pensamento) que não conduz a
nada, não conduz a nada, e de repente aquilo que
se pensou que era ‘nada’ – era o próprio assusta- “Muitas pessoas pensam que eu falo desta maneira por
dor contato com a tessitura do viver – e esse ins- causa de um sotaque russo. Mas eu tenho a língua pre-
tante de reconhecimento (igual a uma revelação) sa. Há a possibilidade de cortar, mas meu médico fa-
precisa ser recebido com a maior inocência, com lou que dói muito. Tem uma palavra que eu não pos-
a inocência de que se é feito. O processo é difí- so falar, senão todo mundo cai para trás: aurora.”
cil? Mas como seria chamar de difícil o modo ex-
tremamente caprichoso e natural como uma flor “Eu não gosto de entrevista... Parece que me miti-
é feita. (Mamãe, disse o menino, o mar está lin- ficaram. Eu sou uma mulher simples. Não tenho
do, verde e com azul e com ondas! está todo ana- nada de sofisticação. As entrevistas que eu dou são
turezado! todo sem ninguém ter feito ele!) A im- para explicar que não sou um mito. Sou uma pes-
paciência enorme (ficar de pé junto da planta soa como outra qualquer.”
para vê-la crescer e não se vê nada) não é em re-
lação à coisa propriamente dita, mas à paciência “Eu acho que a diferença entre os doidos e os não-
monstruosa que se tem (a planta cresce de noite). doidos é que o não-doido não diz nem faz as coi-
Como se dissesse: ‘não suporto um minuto mais sas que o doido faz. É só essa.”
ser tão paciente’, ‘essa paciência de relojoeiro me
enerva’, etc.: é uma impaciente paciência. Mas o “Muito elogio é como botar água demais na flor.
que mais pesa é a paciência vegetativa, boi servin- Ela apodrece.[...] Morre.”
do ao arado.”
(“Clarice”. Entrevista a O Pasquim. Rio de Janei-
(“Submissão ao processo”, crônica publicada em ro, 09.06.74)
20.01.73. In A descoberta do mundo, pp. 445-446)
“Às vezes me dá um medo danado de morrer. Sei
lá. Não consigo pensar em deixar de existir. Tenho
“O mar. Tenho deixado de ir ao mar por indo- medo também de perder a inspiração de repente.
lência. E também por impaciência com o ritual Já fiquei dez anos sem escrever. Por isso, pinto.”

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(“Uma escritora no escuro – Clarice Lispector”, Ah, veja o lapso, quando morreu Erico, senti co-
por Celso Arnaldo Araújo. Revista Manchete. Rio mo não posso dizer. Eu sou crédula, sim. Mas não
de Janeiro, 10.05.75) sou tola. Duas mocinhas costumam me visitar e
outro dia perguntei a elas se ainda viriam quando
eu fosse bem velhinha e gagá. Elas disseram que
“[...] acho inteiramente mágico o fato de uma es- sim. Não acredito.”
cura e seca semente conter em si uma planta verde
brilhante.” (“Clarice Lispector: ‘Já tentei reformar o mundo.
Mas quem sou eu, meu Deus, para mudar as coi-
(“Escritora mágica”, por Isa Cambará. Revista Veja. sas?’”, por Edilberto Coutinho. O Globo. Rio de Ja-
São Paulo, 30.07.75) neiro, 29.04.76)

“Vou lhe confessar minha vaidade. Não é literária, “Nós éramos bastante pobres. Eu perguntei um dia
não... Não ligo, aliás não gosto de falar em literatu- desses à Elisa, que é a [irmã] mais velha, se nós pas-
ra e nem de badalação como escritora. Mas gosto samos fome, e ela disse que quase. Havia em Reci-
que me achem bonita. Isto, sim... Me faz um bem fe, numa praça, um homem que vendia uma laran-
enorme. Eu tive muitos admiradores. Há homens jada na qual a laranja tinha passado longe. Isso e
que nem em dez anos me esqueceram. Há o poeta um pedaço de pão era o nosso almoço. [...] eu não
americano que ameaçou suicidar-se porque eu não tinha consciência. Eu era tão alegre que escondia de
correspondia... Eu penso muito nessas coisas.” mim a dor de ver minha mãe assim [doente]... Eu
era tão viva!”
“É que sou mística. Não tenho religião, porque não
gosto de liturgia, de ritual. O crítico do Le Monde, “Eu detestava [a vida diplomática], mas eu cum-
de Paris, disse que eu lembro santa Teresa d’Ávila e pria com minhas obrigações para auxiliar meu ex-
san Juan de la Cruz, autores aliás que não li. Alceu marido. Eu dava jantares, fazia todas as coisas que
Amoroso Lima... Uma vez telefonei para ele, pedin- se deve fazer, mas com um enjôo...”
do para vê-lo. Ele disse, eu sei, você quer conversar
sobre Deus. Veja você, matemática para mim é uma (Entrevista da autora ao MIS-RJ. Gravada em
coisa linda. E acho que Deus é matemático.” 20.10.76 e publicada no volume de n. 7 da cole-
ção Depoimentos, editada pela instituição)
“Foi o Hélio Pellegrino quem disse que a preguiça
e a impaciência são os maiores defeitos do homem
[N.E.: Aqui Clarice Lispector se confunde ao citar; “Que esforço eu faço para ser eu mesma. Luto con-
em carta enviada de Berna a suas irmãs, com data tra uma maré de mim.”
de 8 de maio de 1946 e incluída em Esboço para
um possível retrato, ela afirma, corretamente, que tal (Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector – Esboço para
constatação era do escritor checo Franz Kafka]. Eu um possível retrato, p. 12)
sou preguiçosa e impaciente. Sou irrequietíssima.
Mas fui muito paciente com meus filhos. Sou pa-
ciente para escrever e com bichos.” “Não quero a complacência da desordem.
E se sou líquida como é líquido o informe, antes
“Em Londres, eu tive um aborto involuntário, sou gotas de mercúrio do termômetro quebrado –
quase morri. Fui levada desacordada para um hos- líquido metal que se faz círculo cheio de si e igual
pital e quando abri os olhos estava sentado junto a si mesmo no centro e na superfície, prata que
de mim, com cara de santo, o João Cabral de Me- tomba e não derrama, liquidez sem umidade.”
lo Neto. Nunca esqueço. Aliás, não esqueço ne-
nhum amigo. Quando morri, Erico Verissimo... (Ibidem, pp. 12-3)

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“... duas pessoas nunca são permanentemente “Eu não sei resumir minha filosofia de vida em
iguais e isso pode criar, no mesmo par, novos amo- palavras.
res. Fui amada por alguns e conheço a paixão. Os Vida é o desejo de continuar vivendo e viva é
desejos e as paixões morrem quando são satisfeitos. aquela coisa que vai morrer. A vida serve é para se
A vontade é imortal. Eu, que entendo o corpo. E morrer dela.
suas cruéis exigências. Sempre conheci o corpo: es- A extrema felicidade se parece tanto com a infelici-
curidão com súbitas estrelas. Mergulha-se no escu- dade. Ambas são tão dramáticas. Ambas são a vida.
ro – e traz-se uma mancheia escorrente de espelhos Minha salvação está no segredo. E tudo o que eu
líquidos. Faço grande esforço para não ter o pior falo é para dizer nada. No meu núcleo secreto eu
dos sentimentos: o de que nada vale nada. E até o respiro. E minha respiração é só o que eu tenho.
prazer é desimportante. Portanto, me ocupo das Calo-me. Porque não sei qual é o meu segredo.
coisas. Prazer no fundo é o de se coçar.” Conta-me o teu, ensina-me sobre o secreto de ca-
da um de nós. Não é segredo difamante. É apenas
(Ibidem, pp. 13-4) isto: segredo.
E não tem fórmulas.
Viver, afinal de contas, é entre dois nadas: antes do
“Eu me uso como forma de conhecimento. nascimento e depois a morte.
Minha vida começa pelo meio como eu sempre Por que vivo? É porque vivo. Por que vives? É por-
começo pelo meio, aí vai o meio. Depois o prin- que vives. Isso explica tudo? Não, porque o tudo é
cípio aparecerá ou não. [...] No que precede o tudo por ser tudo.
acontecimento – é lá que eu vivo. Espero viver Eu não sabia e ainda não sei viver.
O que me atormenta é que tudo é ‘por enquanto’,
sempre às vésperas. E não no dia. O presente só
nada é ‘sempre’. Era o meu sonho ter várias vidas.
existe quando ele é lembrança e só existe quan-
Numa eu seria só mãe, em outra vida eu só escre-
do vai ser.
veria, em outra eu só amava.
Estive à beira de compreender o tempo, eu senti
Acho que a gente luta tanto para produzir uma
que sim. Mas logo em seguida ao leve vislumbre,
obra de arte só para sobreviver. Por que será que
tive uma espécie de medo de penetrar sem ne-
a gente luta tanto para poder produzir uma obra
nhuma lógica na matéria que me pareceu de sú-
de arte?
bito sagrada: – Acho que é para sobreviver.
Não esquecer: hoje é agora. Ressoam os tambores Eu procuro alcançar alguma coisa que não sei o que
anunciando o sem-começo e o sem-fim. Abrem-se é. Algumas pessoas acham que a procura dura o
as cortinas. Eu sinto que a realidade é tridimensio- tempo de uma vida. O ser humano nunca desco-
nal. Por quê? Não consigo explicar. O que sinto é brirá o mistério.”
no sem-tempo e no sem-espaço. O tempo no fu-
turo já passou. [...] Eu conheço o seguinte: estar (Ibidem, pp. 18-9)
plena do nada. Isso é resultado de uma longa e
penosa aprendizagem. [...] Nada começou e nada
terminará. Inclusive não existe a palavra ‘sempre’ “Eu só rezo porque palavras me sustentam. Eu só
pois ela se refere a ‘tempo’ e ‘tempo’ só existe em rezo porque a palavra me maravilha.
nós referindo-se a uma coisa se transformar em Quem reza, reza para si próprio chamando-se de
outra. (A essa transformação chamamos tempo.) outro nome. [...]
Mas o tempo em si não é. O tempo é o indefiní- É preciso ter muita coragem para ir ao fundo da vi-
vel. Eu me coloco bem depressa no tempo, antes da. Porque no fundo da vida nada acontece ao ho-
de morrer. A vida é muito rápida, quando se vê se mem, ele só contempla. Nem sequer pensa no que
chegou ao fim. E ainda por cima somos obrigados contempla. Quando eu fico sem nenhuma palavra
a amar a Deus.” no pensamento e sem imagem visual interna – eu
chamo isso de meditar. O silêncio é tal que nem o
(Ibidem, pp. 15-8) pensamento pensa.

93
Um modo de cair em êxtase. Se eu leio isso três ve- Eu quero preservar minha humildade. E quero que ao
zes em seguida caio em êxtase. ser humilde eu não tenha a vaidade de ser humilde.”
Deve-se ter contacto com o Desconhecido sem
uma palavra, nem sequer palavra apenas mental, (Ibidem, p. 47)
assim como um mudo ‘fala’ com a intensidade
do olhar.”
“O único modo de se saber que existe vida depois
(Ibidem, p. 35) da morte, é o de acreditar nisso ainda em vida. Eu
queria morrer uma vez e voltar a viver – só para co-
nhecer o sumo da vida que é a morte.
“A arte é a busca de uma realidade sonhada. Ca- Meus dias estão contados sem eu saber. Eu queria
da vida tem sua arte. Então quer dizer que é no morrer agora – já – em plena vida – e depois da
buscar que se repleta o vazio. Mas existe uma ilu- morte me lembrar para o resto da vida.”
são sempre renovada: quando a busca encontra,
nasce outro vazio. (Ibidem, pp. 49-50)
Penso e sei que vou ao encontro do que existe den-
tro de mim, vou a esse encontro nua e descalça e
com mãos vazias, à mercê de mim mesma. Só eu, “Para mim só existe mesmo é a magia. Os fenôme-
que encarno Deus, posso me plenificar. Plenificar nos naturais sobretudo é que são os mais mágicos.
na pobreza de espírito. Não busco o mágico do sobrenatural. Mas eu me
Só a necessidade que eu tenho me justifica. Que se- arrepio toda quando, como aconteceu um dia des-
tes, eu estava angustiada e solitária e sem futuro –
ria de mim se eu não precisasse? Que seria de meu
quando de repente sem aviso prévio, ao entardecer
corpo se não houvesse o aviso da fome? Que seria
do dia, caiu uma chuva que veio descarregar toda a
de mim se não houvesse o futuro? Que seria de
minha energia elétrica e me acalmar me fazendo
mim se eu não precisasse de Deus?”
dormir profundamente aliviada. A chuva e eu tive-
mos um relacionamento mágico. No dia seguinte li
(Ibidem, p. 36)
no jornal, com grande surpresa, que essa chuva que
agiu em mim como magia branca, tivesse funciona-
do como magia negra com outras pessoas: o jornal
“Eu quis um dia fazer voto de pobreza. Mas estava dizia que a chuva fora de granizo, que destelhara ca-
enrascada em tal emaranhado social que vi que não sas, que impedira o vôo de aviões. Considero tam-
poderia. E com vergonha constatei que o que tam- bém mágico o inexplicável sol que aquece minhas
bém queria era viver bem. [...] Há homens cujo pon- entranhas. Mágico também é termos inventado
to fraco é serem ricos. Eles não resistiram à tentação.” Deus e por um milagre termos acertado.”

(Ibidem, p. 46) (Ibidem, pp. 56-7)

“Eu gosto dos humildes. Muitos dizem que preferem “Quando eu procuro demais um ‘sentido’ – é aí que
a vida humilde. Humildade é fácil para quem tem tu- não o encontro. O sentido é tão pouco meu como
do. O difícil é manter-se pobre de alma quando não aquilo que existisse no além. O sentido me vem atra-
se tem nada. Quando não se tem nada, e se consegue vés da respiração, e não em palavras. É um sopro.”
a paz, a humildade é substantiva. Na riqueza de vida,
a humildade é um adjetivo brilhante e bonito. (Ibidem, p. 79)
Mas bendito seja o que tudo abandona em prol de
pelo menos um fac-símile de paz. A humildade de
quem tem tudo é abandonar tudo. É preciso ter tu- “Para me divertir eu poderia inventar muitos fatos
do para poder abandonar tudo. e criar histórias, inventar é fácil e não me falta a ca-
94
pacidade. Mas não quero usar esse dom que eu des- escrevi agora: ‘sou um objeto querido por Deus’ e
prezo, pois ‘sentir’ é mais inalcançável e ao mesmo ele gostou de me ter criado como eu gostei de ter
tempo mais arriscado. Sentindo-se pode-se cair criado a frase. E quanto mais espírito tiver o obje-
num abismo mortal. to humano mais Deus se satisfaz.
O que procuro? Procuro o deslumbramento. O Lírios brancos encostados à nudez do peito. Lí-
deslumbramento que eu só conseguirei através da rios que eu ofereço e ao que está doendo em vo-
abstração total de mim. cê. Pois nós somos seres e carentes. Mesmo por-
Eu quero não a idéia e sim o nervo do sonho que que certas coisas – se não forem dadas – fenecem.
resulta na única realidade onde posso encontrar Por exemplo – junto ao calor de meu corpo as pé-
uma verdade. É como se eu tivesse inventado a vi- talas dos lírios se crestariam. Chamo a brisa leve
da – e – fiat lux. Mas o deslumbramento que eu te- para a minha morte futura. Terei de morrer senão
nho dura o espaço instantâneo de uma visão e eis- minhas pétalas se crestariam. É por isso que me
me de novo no escuro.” dou à morte todos os dias. Morro e renasço.
Inclusive eu já morri a morte dos outros. Mas ago-
(Ibidem, p. 79) ra morro de embriaguez de vida. E bendigo o ca-
lor do corpo vivo que murcha lírios brancos.
O querer, não mais movido pela esperança, aquie-
★ ta-se e nada anseia.
Meu futuro é a noite escura e eterna. Mas vibrando
“Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei. em elétrons, prótons, neutrons, mésons – e para mais
É que você não sabe o quanto pesa uma pessoa que não sei, porém, que é no perdão que eu me acho.
não tem força. Me dê sua mão, porque preciso Eu serei a impalpável substância que nem lembran-
apertá-la para que nada doa tanto. ça de ano anterior substância tem.”
[...]
Sou um objeto querido por Deus. E isso me faz (Apud BORELLI, Olga. Clarice Lispector – Esboço pa-
nascerem flores no peito. Ele me criou igual ao que ra um possível retrato, pp. 61-2)
Olga Borelli/Acervo Gilda Murray

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Recife
G E O G R A F I A P E S S OA L
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M A N U S C R I TO S

Se “tudo no mundo começou com um sim”, conforme assinala Clarice Lispector no


início de A hora da estrela (1977), é possível dizer que, no seu caso, a existência encerrou-se
de modo idêntico. Não porque a derradeira palavra do último trabalho que ela viu publi-
cado seja esta: sim. Para além disso, o livro é um encontro afirmativo de Clarice com a vi-
da, o Brasil – e o seu próprio ofício.
Não terá sido por mera casualidade que, após a constatação colocada no princípio da
obra, a escritora haja escolhido para fechá-la aquelas mesmas três letras. Tampouco que as
desventuras de Macabéa – a mais brasileira das personagens claricianas (nordestina, ingênua,
sonhadora) – venham à tona pelas mãos de um ficcionista imaginário, Rodrigo S. M., que
tenta fazer o que dele se espera: contar uma história.
Há, ainda, uma outra evidência de que A hora da estrela represente a despedida de
Clarice Lispector, em tom positivo, no que se refere ao país que lhe foi dado habitar e ao
destino literário que cultivou. Entre muitos significados, a novela constitui um diálogo com
o maior dos autores nacionais: Machado de Assis. É algo machadiano o seu narrador, que
busca dividir com quem o lê o “fardo” – expressão de Clarice – que significa escrever.
Nada mais próximo a Machado, no entanto, do que o desfecho trágico de Macabéa,
cena que os CADERNOS mostram aqui, pela primeira vez, em sua versão original – os ma-
nuscritos do livro foram entregues à guarda do Instituto Moreira Salles por Paulo Gurgel
Valente, filho de Clarice Lispector –, que sofreria ligeiras modificações, como se pode ave-
riguar, na obra editada.
Para saber o que lhe reservava o futuro, a extraordinária protagonista da novela não re-
corre à quiromancia ou a um centro espírita: é às cartas que se dirige. Não importa se Clarice
usasse, àquela época, o mesmo expediente; o episódio remete ao conto “A cartomante”. Como
no texto de Machado de Assis, a consulta só revela perspectivas tranqüilizadoras. Todavia bas-
ta pôr os pés fora da casa de Madama Carlota para que Macabéa experimente, colhida por um
Mercedes amarelo, o seu brilho único, final, que ilumina, com um “sim” inquebrantável, a au-
tora, os brasileiros – a própria literatura.

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ENSAIOS

A revelação do nome*
Carlos Mendes de Sousa

Começou por ser estranho o aparecimento do nome e falou-se logo da


estranheza dessa aparição – “nome desagradável, certamente um pseudónimo”.1
É sobretudo pelo primeiro livro, Perto do coração selvagem 2, que o nome da au-
tora, inscrito na portada, se irá impor como diferença, pois o pequeno volume
desceu “sobre o Brasil como um meteorito formidável e estranho, radiantemen-
te brilhante, demasiadamente poderoso e luminoso para ser ignorado”.3 O im-
pacto da leitura vai decorrer do estranhamento como condição da existência re-
velada no interior do texto: não só o sobressalto e a noite do outro, mas também
o desconhecimento do próprio eu, que levam às identificações abaladoras e se
projectam no recinto da língua.
Sobre a autora e sua obra perdurará por longo tempo a visão em que o
espanto se misturava à reticência. E, se é hoje absolutamente consensual o lu-
gar de Clarice dentro da literatura brasileira, ver-se-á que, mesmo na década
de 60, quando a sua produção alcançava o momento mais alto, circulava uma
certa imagem feita que atingia o próprio modo de encarar a obra e cujos ecos
podem encontrar-se nestas palavras: “Acusam-na de alienada; escritor ‘estran-
geiro’, que trata motivos e temas estranhos à sua pátria, numa língua que lem-
bra muito os escritores ingleses. Lustre não existe no Brasil, nem aquela ‘cida-
de sitiada’, que ninguém sabe onde fica”. 4 Essa visão reflectia uma
incomodidade face a uma obra diferente cujo impacto, de vasto alcance, era à
data difícil de prever.
Clarice Lispector é a primeira mais radical afirmação de um não-lugar
na literatura brasileira. Isso é tão importante pelo facto de a escritora aparecer

* O presente trabalho sintetiza as reflexões do autor aparecidas originalmente em Clarice Lispector – Figuras da escrita. Braga: Universidade
do Minho/Centro de Estudos Humanísticos, 2000. Conservou-se aqui a grafia adotada em Portugal.

140
num período em que a afirmação se fazia pela via do localismo, o qual, mesmo
quando em articulação dialéctica com o universalismo, fazia supor necessaria-
mente a especificação da região. Só se perceberá o verdadeiro alcance dessa afir-
mação sobre a realidade do não-lugar que é a obra de Clarice, se se tiver pre-
sente a impositiva obsessão pelo território (o influxo do conceito de
territorialidade) num vastíssimo espaço cultural com implicações e razões de ser
de ordem muito diversa, em que a literatura é, maioritariamente e em sentido
forte, uma literatura do lugar.
Se em Clarice não encontramos as fazendas nordestinas e mineiras, os
rios de Pernambuco ou os mares da Bahia, é porque o caminho para a apresen-
tação absoluta do puro sentir e da imanência é simplesmente a fazenda, é o mar
simplesmente, ou seja, um modo radical de apresentar o vasto espaço da escri-
ta. Vemos logo nos primeiros livros como os trânsitos das personagens no espa-
ço esboçam o cenário da abstracção. O mundo da escrita é espacialmente apre-
sentado por meio de figuras-territórios (cidades, mar, quintas, casas, quartos,
montanha, deserto) e, como os lugares figuram a relação tensiva com a língua,
todo o espaço é sujeito a alterações. Assinale-se a alusão a lugares abstractos, to-
pónimos mais ou menos motivados, numa direcção alegórica, como a Granja
Quieta de O lustre 5, terras sem nome (Perto do coração selvagem), espaços inten-
sivamente desérticos em A maçã no escuro 6 que figuram a própria abstracção.
Das vagas alusões a cidades com existência empírica, com uma função lateral,
como acontece nesse romance, passa-se a encontrar as personagens, nos livros
seguintes, movendo-se na cidade do Rio de Janeiro, mas todas elas enfrentan-
do-se a si mesmas e ao mundo num trabalho de despojamento desterritoriali-
zador (G.H. num lugar estranho dentro do seu apartamento, Lóri consuman-
do o acto de entrega adiado na casa do outro, precisamente um espaço nunca
visto, Macabéa perdida de si mesma na cidade dos outros). Se a novidade de
Clarice Lispector advém em grande medida da assunção do seu lugar a partir
de um “despaisamento” territorial, esse despaisamento projectar-se-á na afirma-
ção do território-língua, território devindo escrita. Não se tratará tanto de pro-
por uma rasura das paisagens empiricamente reconhecíveis enquanto propósi-
to marcado por um projecto de anulação dos espaços, mas da magnificação de
princípios que são novos no quadro da literatura brasileira: a subordinação da
narrativa à personagem que devém escrita, e sobretudo a atenção concedida à

141
narração, mais do que ao narrado, em narrativas de impressões e de digressões,
mais do que de acontecimentos. O não-lugar também é a dominância desse
pendor digressivo e impressivo, opondo-se aos acontecimentos localizáveis que
estavam implicados nas visões realistas e neo-realistas.
Numa entrevista que em 1949 concede ao amigo Paulo Mendes Cam-
pos para o Diário Carioca, referindo-se ao modo como foi acolhido o seu pri-
meiro livro, Clarice diz o seguinte: “Eu já programara para mim uma dura vi-
da de escritora, obscura e difícil; a circunstância de falarem no meu livro me
roubou o prazer desse sofrimento profissional”.7 A apurada autoconsciência do
ofício, para quem a incumbência não significa facilidade, vem assinalar a insis-
tência na idéia de que o caminho escolhido não é o da habilidade, mas o de
uma deliberada travessia da paixão: o grau de dificuldade é uma ordem impos-
ta que pede surpresa.
Uma entrega sem limites, a entrada num espaço sem retorno – assim é
encarado o contacto com a escrita desde o primeiro momento. A sobrevivência
só é possível no ensimesmamento insuportável desse mesmo lugar gerador. No
início de maio de 1946, escreve de Berna: “Aqui tudo igual. Eu lutando com o
livro, que é horrível. Como tive coragem de publicar os outros dois? Não sei
nem como me perdoar a inconsciência de escrever. Mas já me baseei toda em
escrever e, se cortar este desejo, não ficará nada. Enfim é isso mesmo”.8 Nesse
“exílio europeu” tornará a falar do processo, em detalhes que dão conta da com-
pulsão: o acordar muito cedo e o ir trabalhar no romance para poder ter vida
social à tarde; tornava-se imperioso cumprir o rito, pois sem a escrita diária so-
brevinha o mau humor. Uma espécie de loucura, um pressentimento tão cedo
aparecido de que se não pode sair – o cumprimento da “incumbência”.
Procurando explicar como o escrever cresce numa solidão radical só de-
saparecida no próprio acto da escrita, Marguerite Duras fala desse lugar: “Quan-
do o ser humano está sozinho, vacila para a loucura. Penso isso: penso que ca-
da pessoa entregue a si própria, apenas, já foi atingida pela loucura, porque nada
lhe pode impedir o delírio pessoal”.9 Em Duras, mas sempre antes, em Rim-
baud ou em Kafka, ou para sempre depois, em Herberto Helder ou em Clari-
ce Lispector, se reencontrará na própria escrita a dolorida e poderosa lembran-
ça dessa compulsão, o que eternamente irá fazer ecoar o inesquecível conselho
rilkiano, em interrogações exemplares lançadas sobre o sopro inicial.10 Em rela-

142
ção à escritora brasileira, tem sido repetidamente assinalada a sua condição de
“escritora que interiorizou o escrever como destino absoluto”.11 Dizer que a es-
crita reflecte a vida ou que a vida inspira a literatura é uma proposição que ra-
sa a banalidade. Também não se poderá dizer que a vida é para essa escritora
um epifenómeno da literatura, como acontece no exemplo conceptualizador da
escrita de Borges. Clarice encontra-se do lado desses autores que vivem a escri-
ta no mergulho que não deixa intervalo e os torna a própria escrita. A literatu-
ra é desencadeada num processo em que a vida é compartícipe geradora de um
território entre territórios. A intensidade da entrega pressupõe a inclusão da fi-
gura do eu (o trabalho sobre si mesmo) no processo de pesquisa que é a escri-
ta. Essa mesma idéia foi veiculada na conferência sobre a literatura de vanguar-
da que Clarice iria repetidamente pronunciar em vários sítios: “É
maravilhosamente difícil escrever em língua que ainda borbulha, que precisa
mais do presente do que mesmo de uma tradição. Em língua que, para ser tra-
balhada, exige que o escritor se trabalhe a si próprio como pessoa”.12
Na leitura apresentada por alguns estudiosos, Clarice Lispector teria feito
uma literatura que daria conta do facto de a escritora ter nascido com outra lín-
gua, ter convivido na infância com outra língua. Grace Paley coloca a interroga-
ção: “Com que idade ela entrou na língua portuguesa? E quanto russo trouxe com
ela? Algum iídiche? Às vezes penso que é sobre isto a sua obra… uma língua ten-
tando fazer-se na casa de uma outra. Às vezes existe hospitalidade, às vezes uma
disputa”.13 Não deixará de se reconhecer alguma empatia (que leva ao transfert) da
parte de quem apresenta essas indagações, na medida em que Grace Paley se re-
conhece numa vivência similar enquanto filha de emigrantes russos. É assim que,
em parte, se deverá entender a interpretação intuitivamente projectada: “Deve ter
sido esse encontro do russo com o português que produziu o tom, os ritmos que,
até mesmo na tradução (provavelmente difícil), são tão surpreendentes e adequa-
dos”.14 Se nesse modo de colocar a questão não reside o essencial do problema,
abre-se aí, no entanto, o espaço de uma reflexão que parece ser decisiva. É a lín-
gua que é hospedeira ou é a autora a hospedeira da língua que trabalha? Há uma
língua para ser esquecida: como se pode esquecer da língua ouvida na casa da in-
fância? O que pode ficar como exemplo, como marca desse recinto da diferença?
Claire Varin, no livro Línguas de fogo 15, concede um destaque particular a
algo que foi para ela uma revelação decisiva quando da sua pesquisa sobre a obra

143
da escritora brasileira: o vir a saber por Elisa Lispector, a irmã mais velha de Cla-
rice, que os pais falavam iídiche em casa e que Clarice compreendia essa língua
apesar de a não falar. Varin irá insistir no facto de o iídiche ter sido falado até a
morte da mãe da escritora.16 Sabe-se também que Clarice freqüentou um colégio
judaico no Recife (o Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro) “onde passou a ter aulas
de iídiche, hebraico e religião”.17 Coloca-se aqui uma questão central: dir-se-á que
é à volta da figura materna que gira a questão da origem da sua literatura. Com a
morte da mãe, a necessidade de adaptação do pai – até pela profissão de comer-
ciante – abre o espaço da aculturação. Digamos que, simbolicamente, a figura pa-
terna surge como a representação da própria assimilação: é assim que vemos o pai
a se afastar do Recife e a se dirigir para o Rio de Janeiro com as três filhas. A leitu-
ra de Claire Varin apóia-se na importância que concede à relação com a língua da
mãe e às conseqüências advindas de tal relação. Terão sido as “experiências auditi-
vas”, a circulação clandestina dessa “língua errante” a mergulhar a futura escritora
“desde a mais tenra infância num estado de desestabilização de uma língua única
‘pura’”.18 O corpo revela essa tensão justamente num dos lugares simbólicos que
permitem sustentar a figura da estrangeira: “Esconde sob a língua presa um con-
flito psíquico convertido em sintoma físico. Já que não assume a língua de sua mãe,
encarrega-se parcialmente de sua paralisia. A língua iídiche semeia a desordem em
sua língua falada mais secretamente, pois o “r” francês nos conduz a uma falsa pis-
ta. A linguagem do corpo materno ressoa na boca da filha”.19 Nas entrevistas des-
construía facilmente a situação referindo-se à razão de ordem física desse sotaque
– a língua presa – sempre para sublinhar sua pertença ao território; mas simulta-
neamente continuará a lançar dados que geram confusão, que vêm baralhar. De
acordo com a opinião do amigo da escritora, o dramaturgo e médico foniatra Pe-
dro Bloch, também nascido na Ucrânia e chegado ao Brasil com três anos, o de-
feito de dicção não se devia à língua presa, mas poderia ter sido causado pelo fato
de Clarice, em pequena, ter imitado a maneira de os seus pais falarem.20 Pedro
Bloch teria mesmo conseguido corrigir a falha, mas “ao reencontrá-la meses depois
o médico notou que ela tinha voltado a usar os ‘erres’. A razão dessa atitude, se-
gundo Clarice, devia-se a seu receio de perder suas características, pois sua manei-
ra de falar era um traço da personalidade”.21
O território da literatura passará a ser para Clarice Lispector um hori-
zonte de busca nascido da tensão entre o efeito desterritorializador e a instau-

144
ração de um espaço nos próprios limites da língua a que deseja, de facto, per-
tencer. Na tensão entre a existência do espaço da confinação geograficamen-
te referencializada e a procura do espaço da potencial amplidão que subsume
toda a energia criadora, é que ela é estrangeira procurando não o ser e sendo-
o, em simultâneo. Esse trânsito nómada origina-se, pois, na zona conflitual-
mente habitável que é a língua – dir-se-á que no próprio trabalho sobre a lín-
gua é que o trânsito se funda. Clarice escreveu um pequeno texto notável com
o título “Declaração de amor”22 no qual dá conta da consciência da tarefa. So-
bre a língua portuguesa, diz que, “como não foi profundamente trabalhada
pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes
com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transfor-
má-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor”.23 Tudo o que
se diz nessa reflexão é acompanhado da função testemunhal – a sua relação
com a língua –, o que leva a que, evidentemente, esse pequeno texto possa ser
lido como uma poética. Daí que a reflexão apresente, nos termos propostos,
um espelhamento do que são as dificuldades essenciais definidoras da busca
clariciana: “A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve.
Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira ca-
pa de superficialismo”.24 Implica-se aqui um devir-outro que pressupõe um
enfrentamento não pacífico – a língua deverá passar a reagir; do confronto
nasce um desejo de aprofundar, um ouvir por dentro, um trabalhar as subti-
lezas seguindo o caminho do pensamento em formação. Estar na língua co-
mo uma estrangeira pressupõe um abalar das genealogias no modo de se ins-
crever num lugar que, ao mesmo tempo, pretende fazer seu também: “O que
recebi de herança não me chega. Se eu fosse muda, e também não pudesse es-
crever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês,
que é preciso e belo. Mas, como não nasci muda e pude escrever, tornou-se
absolutamente claro para mim que eu queria escrever em português. Eu até
queria não ter aprendido outras línguas: só para que minha abordagem do
português fosse virgem e límpida”.25 A proclamação do desejo de um lugar
plano – uma língua como território-chão – não pressupõe um ideal de pure-
za ou de cristalizadora intocabilidade. A estepe clariciana é criada na busca
desse lugar raso, mas também emerge, sobretudo, na medida em que o com-
bate dentro dele possibilite trazer para a arena da língua o modo louco do in-

145
terior. Fazê-lo cantar ou sussurrar na planura de uma exterioridade agressiva-
mente diferenciadora.
Situando-se numa zona de fronteira, a literatura de Clarice implica a ex-
clusão de qualquer tipo de hierarquizações e propõe a instauração de um espa-
ço de errância: não ser de nenhum lugar ou amplamente existir numa gravita-
ção que é todos os lugares.
O impacto da figura da errância (da não-fixação) faz-se sentir profunda-
mente nos domínios essenciais: da situação que biograficamente marca a vivên-
cia da escritora até as mais fundas conseqüências que se manifestam no plano da
escrita. Nasce em trânsito numa terra que encontra na sua voz um nome estra-
nho e mitificado, sem direito a nome no mapa das geografias físicas e políticas.
Chegada ao Brasil criança de colo, vive os primeiros anos no Nordeste,
lugar cuja presença se procurará fazer ouvir na fase final (adoptado como espa-
ço necessário para uma infância reencontrada). Ao Rio de Janeiro da formação
e precoce afirmação artística da voz que se faz ouvir, segue-se, bastante cedo, o
trânsito por países estrangeiros, e o regresso é um retorno ao assumido “exílio
interior”. Nesse estar não estando, o seu mergulho cego é na língua. Não men-
tal, mas anímico. As fronteiras, que servem os territórios, impõem categoriza-
ções, distinções genológicas ou conceptuais. No universo lispectoriano, a hete-
rogeneidade, a descontinuidade e a instabilidade conduzem-nos a um espaço
do “entre”. Genologicamente a obra impõe-se por se situar entre a ficção, o en-
saio e o poema. Digamos que, paradoxalmente, se pode falar de uma imobili-
dade em trânsito. A permanente autognose do lado da imobilidade associa-se
ao ser em fuga, à problematização. A fundação do nome (da literatura) procu-
rar-se-á no espaço da não-diferenciação – entre o exterior e o interior, o neutro.
Eis a singular gravidade que encerra a obra: do lado da imanência está a cida-
de onde o nome há de ser revelado.

Ovação

Quando se fala da recepção do primeiro livro de Clarice Lispector, não


se pode deixar de ter em conta o acontecimento que foi a atribuição a esse ro-
mance de um prémio de mérito para obras de estréia – o Prémio Graça Aranha.

146
A estreante já se encontrava no estrangeiro (em Nápoles) quando lhe foi atri-
buído o prémio relativo ao ano de 1943, o que é, aliás, referido num dos pri-
meiros jornais a dar a notícia (A Manhã, em 13 de outubro de 1944). Mas o
facto de a autora se encontrar longe do país não significou, de modo nenhum,
que tivesse desacompanhado as reacções suscitadas pela publicação do seu tex-
to. Muitos anos mais tarde, quando lhe perguntam se Perto do coração selvagem
causou impacto junto à crítica, ela exclama pernambucanamente: “Virgem Ma-
ria, se causou”, para acrescentar que sua irmã (Tania Kaufman) lhe recortava as
críticas que se acumularam numa espécie de “livro grosso”.26
Compulsando e analisando o modo como na imprensa repercutiram as
notícias da atribuição desse prémio, detenhamo-nos no seu significado e no que
o livro representou do ponto de vista de uma mudança de cenário no panora-
ma da literatura brasileira contemporânea. Importa assinalar, primeiro que tu-
do, a atenção prestada ao acontecimento, pois que deparamos com uma notá-
vel continuidade na freqüência com que as notícias ou comentários vão saindo,
primeiro nos jornais do Rio de Janeiro e depois ecoando em outras cidades e
estados.27 Notem-se seguidamente os termos enfáticos com que essas notícias
são transmitidas. O prémio faz aceder a autora ao processo de canonização que
fica em aberto e que verdadeiramente se efectuará anos depois, na década de 60
(após a publicação de dois volumes excepcionais: um livro de contos, Laços de
família 28, e um romance, A paixão segundo G.H.29). Mais tarde, na década de
80, logo após a morte da autora, consumar-se-á o definitivo processo de entro-
nização, que coincide com uma cada vez maior internacionalização da obra e a
que não será de todo alheio o apoio rendido por um influente domínio da crí-
tica nesses anos: a chamada crítica feminista.
Quanto ao impacto do Prémio Graça Aranha, considerem-se as princi-
pais implicações dessa atribuição e atente-se no que em tais notícias é veicula-
do. Insiste-se na qualidade do prémio, que traz consigo a caução dos nomes an-
teriormente contemplados30, e destaca-se o mérito do galardão pelo acerto em
autores que vêm dando mostras de uma qualidade que não faz desmerecer o no-
me do prémio. E não deixa de ser notado em algumas dessas notícias (ao apon-
tarem-se nomes) um facto que já merecera atenção numa das primeiras críticas
(virá à memória o que escreveu Álvaro Lins): o estar-se perante um romance es-
crito por uma mulher. Por isso se vai deparar com o nome de Clarice ao lado

147
do nome de Rachel de Queiroz, a outra mulher que também fora premiada com
o mesmo galardão (cf. A Manhã de 13 de outubro). Num artigo de informa-
ções gerais e de opinião sobre a actualidade cultural brasileira publicado nesse
outubro de 1944, também em A Manhã, e assinado com as iniciais J.B., ao fa-
zer-se um contraponto relativamente aos acontecimentos ocorridos nas cidades
do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre outras notícias, lê-se a dada altura, em
termos verdadeiramente encomiásticos: “Enquanto isso acontece, a Fundação
Graça Aranha concede o prêmio tão ambicionado à maior estréia feminina de
todos os tempos na literatura brasileira. Clarice Lispector, autora de Perto do co-
ração selvagem, com o seu livro belo, é laureada, e nunca houve tanta justiça na
concessão de um prémio literário”.
Outro vector implicado na atribuição desse prémio é algo inerente às pró-
prias regras seleccionadoras: a modernidade patente no texto vencedor. Em A Ma-
nhã de 15 de outubro retoma-se a notícia do Prémio Graça Aranha, que nos dias
anteriores já tinha vindo a ser destacada pelo jornal. E, tal como nos artigos ante-
riormente publicados nesse veículo, os elogios não são regateados – “Trata-se de
um livro magnífico de estréia”, pode ler-se. Para além de se insistir no aspecto an-
tes referido – a valia que o prémio comportava, um prémio cujo nome traz consi-
go, pelos antecedentes, um forte potencial na realização do auspicioso voto (“To-
dos os que, até hoje, o mereceram se tornaram figuras de relevo nas letras
brasileiras”) –, apontava-se a condição prescrita no próprio regulamento do pré-
mio: as obras vencedoras deveriam evidenciar o “espírito moderno”, “significando
as idéias avançadas em literatura e arte”. Alia-se a essa idéia do “espírito moderno”
o sentido de novidade, de surpresa, que esse texto de Clarice Lispector suscitou:

Chegou uma força nova da nossa ficção – Clarice Lispector. Não


houve melhor estréia em 1943. Foi com um romance rico de substância
humana que nos surpreendeu a escritora creio que então adolescente,
quasi desconhecida então, autora apenas de meia dúzia de contos e arti-
gos divulgados em revistas. Ela nos trouxe qualquer coisa de importan-
te, senão de essencial, às nossas letras de ficção.

Ao apresentarem a autora recém-revelada, pode-se dizer que essas pala-


vras constituem uma brevíssima síntese que, de certo modo, condensa aquilo

148
que nos outros artigos foi dito. Trata-se de um texto assinado por Valdemar Ca-
valcanti, publicado na Folha Carioca de 18 de outubro, texto que, estando pró-
ximo de alguns dos anteriormente referidos (ou sublinhados) nos pontos que
trata, se distingue pela forma como os apresenta. Aponta para a justiça que foi
feita na escolha recaída sobre o nome de Clarice Lispector, tece louvores ao pré-
mio pelo modo correcto como tem sido atribuído e põe igualmente em desta-
que (como o fizeram outros articulistas) alguns dos nomes galardoados. Por fim,
o augúrio: “O prémio de 1943 foi concedido a uma escritora que cedo estará,
ao meu ver, entre as de maior prestígio nos círculos intelectuais do país. Deu-
se todo o relevo a uma obra significativa do nosso momento literário”.
Se outubro foi mês de consagração, pode ver-se como posteriormente à
atribuição do prêmio se impõe a consolidação do nome no campo literário. En-
tre as notícias desse final de ano de 44, merecerá destaque um texto de autoria
de Jorge de Lima com o título “Romances de mulher”, publicado na Gazeta de
Notícias (1º. de novembro de 1944). Há uma afirmação extremamente impor-
tante nesse artigo, que é aquela que diz literalmente que o livro de Clarice veio
“deslocar o centro de gravitação em que […] estava girando por uns 20 anos o
romance brasileiro”. Sublinha-se o estatuto da diferença instaurado com o apa-
recimento do romance de estréia da autora, estatuto esse que, perspectivado em
termos contextuais, implica uma mudança de paradigma e leva simultaneamen-
te a que na afirmação repetida se faça história. Ou melhor, concretiza-se o mo-
do de entrar no cânone da história literária: como ruptura (nitidez, brilho, des-
taque) num horizonte baço, o da configuração igualitária do romance
dominante, do romance que tende a tipificar ou nivelar a partir de ingredien-
tes tipificadores, no caso, a pretensão de demarcar categorias como as da brasi-
lidade em cenários mais ou menos obrigatórios.31 Aos romances do sertão, Jor-
ge de Lima contrapõe uma categoria de romances urbanos também brasileiros.
Na abertura do seu texto o poeta extravasa o entusiasmo relevando algumas das
qualidades (diferenças) do romance estreante, causas que contribuem para o re-
ferido deslocamento: “O seu enorme talento de escritora está no aproveitamen-
to de um acervo imenso de trivialidades domésticas, de realidades banais coti-
dianas de que consegue extrair um livro simples, honesto, vivido…”.
Nas notícias dos jornais continuam a se encontrar no mês seguinte ecos
da atribuição do prémio, mas já se vislumbrando nelas um recorte que acentua

149
a sedimentação. Isso pode ser constatado em notícias que surgem mesmo sem
assinatura. No Dom Casmurro (4 de novembro de 1944), jornal em que Clari-
ce já havia colaborado, facto que não deixa de ser referido na notícia que a apre-
senta como “a jovem e já famosa autora de Perto do coração selvagem”, refere-se
à aceitabilidade na recepção do romance premiado tanto por parte da crítica co-
mo do público mais vasto: o romance “mereceu as mais elogiosas referências da
crítica e o mais franco acolhimento do público ledor do país”. Quase um mês
após ter escrito sobre a autora de Perto do coração selvagem, Valdemar Cavalcan-
ti publica novamente na Folha Carioca (16 de novembro de 1944) outro arti-
go sobre Clarice, incidindo agora na questão das influências. Fala da aparente
facilidade em as classificar e identificar e chama a atenção para os equívocos que
daí podem advir. Tudo vem a propósito de uma indicação aparecida na crítica
que detectava, “com unanimidade, a influência de Joyce”. Valdemar Cavalcan-
ti argumenta a partir das palavras da escritora, que denega essa influência. Tal-
vez assim seja; no entanto, o crítico esquece quão enganosas podem ser as indi-
cações dos autores.
Se a dada altura tudo nos pode parecer absolutamente previsível (do êxi-
to de uma estréia à atribuição de um prémio), mais do que um simples traça-
do descritivo importa lançar sobre o momento um foco que se pretenda inci-
dência clarificadora, de modo a podermos perceber a sua luminosa intensidade
e avaliar em todos os ângulos o impacto (significação e conseqüências) do apa-
recimento desse livro. Aquele que, nas palavras de Antonio Candido, era um li-
vro que faltava. Em 1960 ainda perduram os ecos desse extraordinário êxito que
foi o do primeiro livro; veja-se o que se lê nas palavras de apresentação que an-
tecedem uma entrevista concedida por Clarice Lispector ao Jornal de Letras no
mês de setembro: “Clarice Lispector apareceu à luz de um sucesso barulhento
com seu primeiro livro Perto do coração selvagem (editora A Noite). Não temos
memória de estréia tão sensacional que colocasse em lugar de tanto destaque
um nome, há pouco, completamente desconhecido”.
Uma tendência generalizada que se foi cristalizando através das histórias
literárias continua a prevalecer em muitos estudos sobre Clarice Lispector: a ex-
clusiva referência a alguns poucos nomes da crítica quando se impõe a apresen-
tação de um quadro retrospectivo da revelação da autora. Assim, fica mais ou
menos implícito que o seu aparecimento como escritora é indissociável da cau-

150
ção dada por dois nomes maiores da crítica brasileira à época, Sérgio Milliet e
Álvaro Lins, assim como pela voz do conceituado jovem Antonio Candido. Não
querendo minorar o relevo que efectivamente deve ser concedido ao impacto
decorrente dos juízos propostos por esses críticos, importa assinalar a extraor-
dinária projecção do conjunto de resenhas e notas saídas na imprensa a seguir
à publicação do livro – e não parece que devam ser necessariamente lidas em
função de um prolongamento ou anuição face ao diktat autorizado de um Mil-
liet ou de um Lins. Procure-se, desse modo, mostrar com algum pormenor o
que foi essa extraordinária recepção de Perto do coração selvagem, revelando al-
guns textos pouco conhecidos entre os que foram publicados até o mês de ou-
tubro de 1944. Refira-se que não houve um único mês em que nos jornais bra-
sileiros não tivesse saído algum texto sobre o livro da novel autora.32
Alguns artigos dão conta de um processo (uma evolução) no que diz res-
peito às reacções que neles são explicitadas: é o que acontece com Martins de
Almeida (agosto de 1944), que começa por falar do livro Perto do coração selva-
gem como de algo que lhe é absolutamente desconhecido e enuncia os reflexos
do seu próprio percurso de leitura – da desconfiança à surpresa e à impregna-
ção (total adesão). O primeiro lugar que vemos ser repetido, à saciedade, em
quase todos os textos é o da novidade em si; a novidade, sob diversos ângulos,
constitui o que mais infinitamente marca o contacto com o livro, seja sob a for-
ma de deslumbramento causado pela descoberta (Adonias Filho, dezembro de
1943), seja pela pura manifestação do entusiasmo ou aberta adesão e louvor (Lê-
do Ivo, janeiro de 1944). A novidade estende-se, então, em algumas das linhas
que vão ser escritas, à estranheza que envolve a personalidade e o nome revela-
dos. A propósito, recorde-se a gralha tipográfica que atinge o modo como o pró-
prio nome figura num artigo publicado no Dom Casmurro de 11 de março. É
no texto de Dirceu Quintanilha que vemos, logo no título, o nome escrito com
mais um “n”: “Linspector”. Dinah Silveira de Queiroz (fevereiro de 1944) vai
falar no “caso da estréia” de Lispector e vai afirmar se tratar de uma “contribui-
ção tão original” para a literatura brasileira; na sua leitura a novidade acentua-
se como algo muito forte e perturbador: uma “afirmação tão rara de personali-
dade”. Mais à frente, colocando o romance estreado em confronto com o que
era na época o panorama literário, torna a insistir: “Fica-nos, entretanto, desde
já a sua esquisita personalidade, a mais rara personalidade literária no nosso

151
mundo das letras”. A novidade manifesta leva os articulistas a assinalar com
grande ênfase a distância com que a escritora se demarcava face a tudo o que
existia (Luiz Delgado, abril de 1944). Essa demarcação é evidenciada em diver-
sos planos. Assim, uma escrita que se diferencia na maneira de contar, na ma-
neira de dar a conhecer as personagens, de apresentá-las em mais de uma di-
mensão, novidade que, de acordo com Óscar Mendes (6 de agosto), num artigo
intitulado justamente “Um romance diferente”, se projecta no domínio da ex-
pressão de sentimentos e sensações, alguns dos quais quase inexplicáveis na nos-
sa língua. É notável a atenção concedida aos planos da estruturação, da com-
posição e dos efeitos retórico-estilísticos. Por exemplo, Reinaldo Moura (23 de
março de 1944), que começa por dar conta da surpresa de que foi alvo pelo
inesperado (a partir do mais exterior dos sinais, a capa cor-de-rosa, num roman-
ce que se revelará o mais afastado possível daquilo a que o “cor-de-rosa” reen-
viava, isto é, ao próprio “romance cor-de-rosa”), passa a sinalizar os efeitos da
surpresa também num plano, digamos, propriamente técnico: da perspectiva-
ção, integração e classificação genológica. O crítico vai questionar sobretudo o
facto de o texto se integrar no âmbito do género romanesco. Lúcio Cardoso (12
de março de 1944), fazendo eco do que circula (objecções que tem ouvido, do
lado da doxa) sobre o não-ser “um romance no sentido exato da palavra”, vai
valorizar o ar diferente de “coisa agreste” e estranha, evidenciando a novidade
formal do texto. Veja-se ainda o que relativamente ao plano composicional é di-
to por Martins de Almeida (agosto de 1944); o crítico reporta-se ao que é apre-
sentado “em lugar da forma comum de exposição”. Mais à frente vai dizer que
o romance “apresenta as personagens debruçadas sobre a própria vida interior,
sem o fio de uma narração horizontal, sem a articulação de situações em forma
usual de enredo”. Noutros artigos continua a insistir-se na estranheza do ro-
mance pelo facto de este ir contra o que convencionalmente dominava. E vão-
se disseminando as referências a alguns pontos da técnica romanesca, como
acontece com o que escreve Otávio de Freitas Júnior (maio de 1944); reportan-
do-se ao distanciamento de Perto do coração selvagem face à literatura de feição
social, afirma a sua singularidade ao nível da expressão, com particular desta-
que para a utilização da técnica do monólogo interior.
Importa mostrar como da leitura do conjunto dos textos que na altura
foram publicados se destrinça uma série de recorrências que podem ser agrupa-

152
das em blocos que configuram assinaladas zonas de incidência. Essas zonas de
incidência da parte da primeira crítica, se bem que revelem algum impressio-
nismo, são decisivas no que respeita à radiografia daquelas que virão a ser linhas
fundamentais na escrita clariciana. Por exemplo: o lirismo, o universo femini-
no, o interior e as sensações, o destaque concedido à personagem central, o frag-
mentarismo mas também o equilíbrio na construção.
Afirma Lúcio Cardoso (março de 1944): “Nessa estranha narrativa, on-
de o romance se esfuma para se converter muitas vezes numa rica cavalgada de
sensações, a poesia brota como uma fonte nova e pura”. Lúcio, o amigo que
mais directamente está ligado ao aparecimento do primeiro livro da jovem es-
critora, dá seguidamente conta do testemunho pessoal aludindo à existência
de poemas de Clarice. Esse dado pode, de algum modo, ser condicionante,
pois outro crítico, Ary Andrade (setembro de 1944), alude a uma poesia de
Clarice que lera no início de 40 para deduzir que o romance de agora é, por
conseqüência, também ele poesia (“Voz que marca. Voz que fica. E poesia tam-
bém, poesia que muita gente gostaria de poder assinar”). Releve-se no conjun-
to das primeiras críticas a associação que se estabelece entre o lirismo e a pre-
valência da intuição, da sensibilidade, dos sentidos. Essa indissociabilidade,
apresentada através da imagem dos relâmpagos ou da inundação, pretende as-
sinalar uma força anímica, uma autenticidade de que o livro dá conta. Enfim,
pretende-se vincar a “verdade” de uma expressão lírica que não se situa no es-
trito plano formal do mero jogo de palavras.33
Linha recorrente na primeira crítica é também o reenvio ao universo femi-
nino, referência que encaixa no quadro das estranhezas que se assinalam. É que,
apesar de já haver romances “femininos” na literatura brasileira, esse parecia que-
rer diferenciar-se também quanto a esse aspecto. Naturalmente são feitas aproxi-
mações (e aqui encontramo-nos face a outra zona de incidência que se reporta ao
âmbito das influências): Lêdo Ivo, por exemplo, sublinha a filiação em Virginia
Woolf (e note-se como não é só Álvaro Lins a apresentar esse dado, nem sequer
o primeiro). Lúcio Cardoso (março de 1944), após um enquadramento geracio-
nal, centra-se nos nomes femininos fazendo um paralelo, quanto à importância,
com o nome de Rachel de Queiroz. Claro que se faz uma demarcação relativa-
mente ao âmbito (não a colectividade, mas o individualismo…). Na apresenta-
ção do mundo clariciano apresentado no romance que se estréia, Lúcio Cardoso

153
fala de “um mundo essencialmente feminino”. Devem contudo destacar-se, a es-
se respeito, as palavras decididas de Óscar Mendes em agosto de 1944:

Não se trata de um romancinho de estréia para merecer o nome


de escritora e andar assim com uma auréola de intelectual. É uma expe-
riência estilística muito séria e é, principalmente, uma descida bem pro-
funda nesse mistério da alma feminina que vem dando dor de cabeça a
todos os homens, desde que o mundo é mundo e Adão se viu com uma
companheira ao lado. Cenas como a do diálogo entre Joana e Lídia so-
mente um escritor de dotes excepcionais pode realizá-las. E Clarice Lis-
pector é bem algo de excepcional, no quadro de nossas letras femininas.

Uma paisagem de sensações: assim nos poderíamos referir à obra de Cla-


rice Lispector. É mais ou menos isso o que, à época da saída do primeiro livro,
já vem dizendo Martins de Almeida (agosto de 1944), quando se reporta a uma
“vegetação espessa de sensações” aí encontrada. Segundo o crítico, o método,
que se impõe pela diferença, está nesse livro ao serviço de uma certa forma de
despojamento, de alheamento, que serve, por seu turno, à circulação de sensa-
ções: “Prosa nua e descolorida, sem retratos físicos, quase sem meio ambiente”,
onde numa amálgama de planos se cruzam indistintamente as sensações do pas-
sado e do presente. Praticamente todos os críticos insistem nessa tónica. Ano-
ta-se que a temática central é o homem, “os meandros mais profundos do ser
humano: força surpreendente e introspecção” (Lauro Escorel), e repete-se a do-
minância dos “abismos interiores” (Luiz Delgado) ou a força que vem do “ema-
ranhado do mundo interior” e dos “movimentos subterrâneos” (Reinaldo Mou-
ra). É interessante ver como em alguns desses textos se chama a atenção para
um ponto que se revelará decisivo na unidade profunda que configurará a es-
pecificidade da obra clariciana: a referência ao informe (que constituirá uma das
mais pregnantes figurações da escrita). Martins de Almeida insiste no facto de
ser determinante no romance a captação daquilo que dificilmente é perceptível
(onde, melhor do que em qualquer outro lugar, pensamos que se figurará a cap-
tação daquilo que é afinal o trabalho da escrita). E Óscar Mendes diz que a “ex-
periência mais interessante e mais curiosa do livro de Clarice Lispector (é) seu
esforço de exprimir em nossa língua todo aquele mundo informe de sensações,

154
de sentimentos, de paixões, de leves estados de alma…”, mundo informe que,
como muito bem sublinha, está próximo do inumano.
Sem pretender um levantamento exaustivo de exemplos retirados dessas
grandes zonas de incidência na crítica aparecida na imprensa até outubro de
1944, refira-se ainda ao modo como inevitavelmente os críticos se reportam à
centralidade da personagem Joana. Em concreto, Óscar Mendes, quando fala
das marcas da diferença do romance e quando afirma que nada há no livro de
pitoresco e excepcional que acentue essa diferença, acrescenta que a excepcio-
nalidade se liga à personagem principal: “Ela que vive a seu modo e não ao mo-
do de todo o mundo”. Há nessa leitura um ponto particularmente interessan-
te: como que em mise en abyme, aquilo que viria a ser o impacto do livro – a
sua estranheza – é o que acontece com o modo de ser de Joana face aos outros.
“Por isso faz sofrer. Na maior parte das vezes causa apenas espanto e repulsa
também, porque desvenda certos recantos escusos de seu ser, que a disciplina
social não consente que se mostrem plenamente.”
Se o efeito de centramento na figura da personagem principal é óbvio,
ver-se-á, como não deixa de apontar Martins de Almeida, que esse efeito não
se projecta num unidireccionado ensimesmamento: o que prevalece é uma fo-
cagem estilhaçada. Isso, aliás, articula-se com uma outra característica assina-
lada: o fragmentarismo. Dinah Silveira de Queiroz apresenta uma observação
muito justa ao falar de Perto do coração selvagem, observação que doravante irá
aplicar-se à escrita que está para chegar: “Toda a literatura de Clarice Lispec-
tor pode ser cortada à vontade, em pedacinhos, porque muito mais que o to-
do importa o detalhe”.
Por fim, aponte-se mais um vector consensual em grande parte dos tex-
tos manuseados: o sentido do equilíbrio que dialecticamente interage com o es-
tilhaçamento observado. E mais uma vez comecemos por relevar as palavras de
Lúcio Cardoso que, ao falar do perfeito modo como a escritora consegue cap-
tar o mundo, afirma: “Não há dúvida de que estamos diante de uma singular
personalidade, que sabe captar do mundo exterior e interior, e muitas vezes da
sua fusão, uma visão perfeita”. O sentido do equilíbrio é assinalado em diver-
sos níveis. Insiste-se na articulação entre o plano da inteligência e o da sensibi-
lidade (cf. Lauro Escorel e Martins de Almeida). Luiz Delgado destaca a ade-
quação verificada entre a forma de expressão (“indisciplinada”) e os “conflitos

155
de indagação interior” que com essa forma se pretendem traduzir. O domínio
da expressão é enfatizado: Adonias Filho aponta o equilíbrio da composição, e
Lêdo Ivo refere-se ao “milagre de equilíbrio” e a uma “engenharia perfeita”.

Os gladiadores

O terceiro romance de Clarice, A cidade sitiada 34, impõe-se veemente-


mente como uma diferença face ao resto da obra (no percurso por ela defini-
do), e com isso a própria autora está de acordo quando, bastantes anos depois,
lhe faz algumas alterações de superfície e quando, sobre o livro, escreve em al-
gumas crónicas de jornal. As diferenças manifestam-se sobretudo no plano for-
mal; ver-se-á, contudo, que ao nível da estrutura profunda, tendo presente a
ironia que envolve o livro, está lá, afinal, o essencial do projecto clariciano. A
autora parece estar a responder à crítica quando o escreve – e isso percebe-se no
interior de uma escrita que se encontra, de facto, distanciada relativamente ao
que até ali fora apresentado. Mas o recurso parece não ter surtido o efeito de-
sejado, a crítica não poderia entender (Sérgio Milliet, por exemplo, que encon-
tra as falhas para que advertira – “A preocupação da jóia rara que ameaçava…”);
o efeito é o de uma estranha e ressonante surdez. Nunca a autora exigiu de si
tamanho exercício de decifração. Ou de jogo, ou de mascaramento? Jogo im-
parável: do mesmo modo que a personagem principal, também a autora como
que se vê apanhada pela própria máquina da construção, aprisionada nas ma-
lhas de um destino que faz confundir as teias da ficção e do real:

Caíra de fato em outra cidade – o quê! em outra realidade – ape-


nas mais avançada porque se tratava de grande metrópole onde as coisas
de tal modo já se haviam confundido com os habitantes, ou viviam em
ordem superior a elas, ou eram presos a alguma roda. Ela própria fora
apanhada por uma das rodas do sistema perfeito.
Talvez mal apanhada, com a cabeça para baixo e uma perna sal-
tando fora.
Mas de sua posição, quem sabe mesmo se privilegiada, espiava ain-
da bastante bem. De pé à porta do hotel. Vendo se entrecruzarem os mi-

156
lhares de gladiadores alugados. E enquanto essas estátuas passavam – os ra-
tos, verdadeiros ratos, sem tempo a perder, roíam o que podiam, aprovei-
tando, sacudindo-se em riso. Que fizeste no verão? perguntavam sufocados
de riso, dançavas? Em consciência não se poderia dizer que os gladiadores
dançassem. Pelo contrário, eram extraordinariamente metódicos.35

Como não relacionar com o sistema literário as “rodas do sistema per-


feito” a que no texto se alude? Poder-se-á dizer que a “outra cidade” é a cida-
de da instituição literária, e os gladiadores, “extremamente metódicos”, são os
críticos com suas armaduras. Não dançam os gladiadores. Os gladiadores (co-
mo o marido) são os críticos que os autores (como a mulher) alimentam. “Um
adestramento contínuo. Ele era masculino servil. Servil sem humilhação como
um gladiador que se alugasse. E ela, sendo mulher, o servia”. Os críticos se-
riam esses gladiadores-intermediários (“Mateus Correia por exemplo era: in-
termediário”) alimentando-se do trabalho dos autores. Paradoxalmente os au-
tores (Lucrécia) servem-nos, sentindo “aviltamento” e “fascínio” pela
“minuciosa ordem”, mas um dia ficarão livres (“Esperando que um dia enfim
alguém esmagasse o seu colosso, e com horror, ela ficasse livre”), porque talvez
a função seja a inversa; e talvez só os autores saibam secretamente que esses ho-
mens que eles alimentam são seus escravos (“Usava anéis nos dedos como um
escravo”). A que apelo responde a moça? Nas entrelinhas do seu pensamento
pretende-se fazer passar um modo superior de resistência pacífica – sutil, irô-
nica. Se os gladiadores são um símbolo de força, mais do que fazer-se-lhes fren-
te através da espada erguida, ou da mão em sua ferocidade manifesta, decreta-
se-lhes, em sádico murmúrio, cruel sentença. Torná-los inofensivos, é esse o
modo subtil de os atingir. E de profundamente atingir a escola de gladiadores.
Mostrar-se-ia, assim, como àquilo que eles aparentam (detentores de gládio)
se lhes opõe a sua própria forma (que os mina) de servidão. Na arena-campo
da língua, o leitor poderá entrever a figuração da entrada do autor no campo
literário mais vastamente considerado.
Convém recordar que A cidade sitiada será o único livro com edição re-
vista. O testemunho da autora já chamara a atenção para o facto de ter sido es-
sa a sua primeira obra mais vigiada na oficina literária (três anos para a acabar
e mais de 20 versões redigidas).36 Assinale-se ainda da parte de Clarice a inusual

157
insistência na interpretação, como não acontecerá com nenhum outro texto seu
– observem-se os contínuos reenvios em entrevistas, e vejam-se as crónicas no
Jornal do Brasil. Muitos anos depois de publicado o livro, continuará a querer
explicá-lo, como muitos anos antes, ainda o texto não tinha sido dado à estam-
pa, já as cartas às irmãs o pretendiam decifrar. O terceiro livro como que foi es-
crito por cima de um silêncio, o silêncio que, sem que ela esperasse, terá caído
sobre O lustre, a segunda obra. Em fase de afirmação e de definição de um tri-
lho, após a retumbante recepção do primeiro romance, relativamente a O lus-
tre muito pouco se terá falado, ou muito menos do que se esperaria. No epis-
tolário da escritora, as notícias que lhe chegam à distante Suíça constituem uma
espécie de eco – podemos agora reconstruir esse reflexo que dá conta de “um
silêncio exagerado em torno do livro”.37
As questões que marcam o aparecimento de O lustre, e que se prendem
com o domínio da produção e recepção do texto, conduzem a uma tentativa
da parte da criadora de acompanhar o seu “desenvolvimento” com um zelo des-
medido, como se acompanha um filho difícil, filho que tanto se protegeu e cu-
ja entrada no mundo deixa vir ao de cima uma ansiedade própria dos desve-
los de mãe. Para essa atenção especial que o livro merece, a metáfora é fornecida
em carta não datada, dirigida a Lúcio Cardoso, escrita quando Clarice chegou
à Itália (Nápoles): “Meu livro se chamará O LUSTRE. Está terminado, só que
falta nele o que eu não posso dizer. Tenho também a impressão de que ele já
estava terminado quando saí do Brasil; e que não o considerava completo co-
mo uma mãe que olha para a filha enorme e diz: vê-se que ainda não pode ca-
sar”.38 Antes da publicação, os anseios39 projectam uma imagem que ficará co-
lada ao livro: a sensação de inacabado que, sobretudo ao nível estrutural, recai
sobre um conjunto de prosas. O cerco a que a autora submete o livro e o si-
multâneo desejo de autonomização, de libertação (filha que não está pronta
para casar, mas que é preciso que se case para que a mãe possa, enfim, viver de
passarinhos e de flores, ou simplesmente viver sentindo40), coexistem na intrín-
seca pendularidade da atitude que leva Clarice, em outra carta ao mesmo des-
tinatário, a emitir opinião afim. Nota-se a mesma preocupação, subentenden-
do-se nela uma peculiar sorte de denegatório zelo materno: do filho cujas
qualidades publicamente se apoucam, mas em relação ao qual se sente e se de-
seja e intimamente se pronuncia o contrário. Assim, em relação ao livro ainda

158
não publicado, as contingências que o subestimam são, da parte da criadora,
desvelos de reconhecido merecimento: “Tania fez sérias restrições ao Lustre. In-
clusive quanto ao título. Vai assim mesmo, embora ela tenha razão. Nada ali
presta realmente. Minha dificuldade é que eu só tenho defeitos, de modo que
tirando os defeitos quase que resta Jornal das Moças” (carta a Lúcio Cardoso
datada de Nápoles, 26 de março de 1945).
Em A cidade sitiada os eqüinos, erguendo-se altivos sobre as ruínas, sur-
gem como uma das figuras mais emblemáticas que reaparecerão sempre asso-
ciadas à origem da cidade. É com eles que a cidade ganha um nome. Do pon-
to de vista da história, a nomeação: “este era o primeiro nome claro em S.
Geraldo” (p. 16). Conduz-nos à fábula fundadora onde o primeiro nome se li-
ga a um episódio protagonizado por esses animais que figuram a exaltação da
força originante. Crianças e cavalos na representação do excesso: da energia in-
contida provoca-se o acidente. Como um acto sacrificial que interdita a sua no-
meação da parte das pessoas (os outros/os leitores/os críticos?). Até que tam-
bém, como por acaso, ao ser referido o episódio pela notícia do jornal (crítica?)
a cidade passa a ser nomeada. Dir-se-á que, do mesmo modo, a obra passará a
adquirir uma existência com a entrada na esfera comunicacional:

Sob a necessidade cada vez mais urgente de transporte, levas de


cavalos haviam invadido o subúrbio, e nas crianças ainda agrestes nascia
o secreto desejo de galopar. Um baio novo dera mesmo um coice mor-
tal num menino. E o lugar onde a criança audaciosa morrera era olhado
pelas pessoas numa censura que na verdade não sabiam a quem dirigir.
Com as cestas nos braços elas paravam olhando.
Até que um jornal se inteirara do caso e leu-se com certo orgulho
uma nota – onde não faltava ironia sobre a lentidão com que uma série de
subúrbios se civilizava – com o título de: ‘O crime do cavalo num subúrbio’.

O episódio vai ser isolado (o que confirma a sua dimensão parabólica) e


vai constituir um dos fragmentos do “Seco estudo de cavalos” em Onde estives-
tes de noite 41. O fragmento, que recebe o título de “O cavalo perigoso”, permi-
te avaliar, do ponto de vista do tratamento (reescrita) do próprio texto, a aten-
ção concedida ao livro, uma atenção cujos reflexos nos depoimentos já referidos

159
(entrevistas, cartas, crónicas) comportam um evidente propósito interpretativo:
uma leitura assente nas bases da intrínseca duplicação figurativa e que se pre-
tende decodificadora. Tal como na revisão do texto, quando da 2ª. edição, o fi-
to evidenciado fora a clarificação (que por vezes parece levar à perda do poder
sugestivo) também agora prevalece o sentido da explicação. Deixa de se falar em
subúrbio. Há uma carta em que Clarice responde à irmã; esta havia-lhe coloca-
do a questão do nome do povoado, e a escritora apresenta a seguinte justifica-
ção: “Também o fato de eu chamar S. Geraldo de subúrbio, vou estudar. Você
tem razão, mas creio que vai ser talvez difícil de mudar, porque teria que mu-
dar outras coisas também. Mas vou ver ainda. Mas vejo que você entendeu bem
o que queria pelo fato de na carta ter falado em ‘cidadela’”.42
Em relação ao mostrar-se o permanente jogo entre o que se diz (ou se vê)
e o que se quer dizer (ou se pretende fazer ver), sobre o jogo figurativo entre a
cidade e o texto, muitos exemplos podem ser destacados nesse terceiro romance
da autora. Recortemos, entre outras possíveis, a título exemplificativo, uma pas-
sagem do quarto capítulo: pode aí encontrar-se uma poética implícita da escrita
intencional que é a que preside à elaboração desse romance – talvez não da es-
crita clariciana, mas do modo intencional de erguer esse texto concreto. Há um
primeiro reenvio para a esfera do trabalho manual: do esfregar sapatos à tarefa
artesanal do pedreiro; depois o texto não podia ser mais claro: fala-se do cons-
truir e do demolir. Parece ser bastante evidente que é do próprio texto que se tra-
ta. Assim pode ser entendida a cidade que se parte em mil pedaços a serem pos-
teriormente reunidos. Seguidamente, no mostrar o trabalho de reconstrução
fazem-se equivaler os objectos às palavras – os tijolos são identificados com o tex-
to. Vem então o aperfeiçoamento. Mas é do trabalho do criador artesão que se
trata? Ou é a paródia ao escrever da autora que não é esse, mas que ela faz para
poder mandar o recado, como se quisesse dizer: “Olhem meus senhores que eu
também sei fazer isso, mas não é isso o meu método, porque o que eu faço está
para além do método. No entanto eu posso aprender alguma coisa com esse mé-
todo, sem contudo o assumir” (pp. 76-7). Assim se verá depois o resultado maior
da maturação no livro A maçã no escuro, infinitamente reescrito, e no entanto li-
vro que também se escreve, que continua a ser escrito, no escuro.
Refira-se ainda, a propósito das diferenças de A cidade sitiada, que um
romance assim, naqueles finais de 40, num país marcado pela força do ufanis-

160
mo, em que a literatura confirmava a expressão localista num vasto plano sedi-
mentado pelos padrões ideológicos de teor neo-realista, um romance sobre uma
cidade tão abstractamente fria, distante e tão pouco “realista”, dificilmente po-
deria ter aceitação desejada.
Há nesse livro uma série de referências cultas esparsas, não se tratando de
nenhum conjunto de reenvios sistematizados, mas de alusões a que o domínio das
interpretações figurais vai dar coerência. Configuram-se, desse modo, blocos de
sentido cifrado com base nessas referências textuais disseminadas – assim pensa-
mos que funciona no romance o universo cultural e mitológico da Antigüidade
através da presença dos gladiadores, dos centauros ou das estátuas gregas. Por exem-
plo, uma primeira alusão às estátuas gregas da revista folheada por Lucrécia ocor-
re no quarto capítulo (“A estátua pública”); depois, já noutro capítulo – no seguin-
te precisamente (“No jardim”) – ler-se-á: “Mas agora, no sonho pôde recuar até
encontrar enfim: que era grega”. Parece ser intencional a utilização desses reenvios
esparsos; porque, de facto, a obra de Clarice não se constrói por cima de uma sa-
turação de referências culturais de qualquer espécie. Ver-se-á mais tarde a compo-
nente mítica que aflora também num livro diferente dentro do conjunto da sua
produção: Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres 43; dá, pois, a impressão de que,
quando ela resolve parar e escrever diferentemente, para dar uma resposta ou para
visar um qualquer público ou situação, é que afloram essas alusões de teor cultu-
ral mais explícito. Em A cidade sitiada, na diferença intrínseca do texto, quando
dirigido a leitores especiais (na nossa interpretação, os críticos) é que a mensagem
cifrada se torna legível. Trata-se de uma escrita oblíqua, como se na entrelinha dis-
sesse que também sabe fazer livros “inteligentes”; contudo, na aparente leveza, a
armadura pesa, acaba por se fazer sentir – um lúcido peso frio.
Se é no plano formal que se torna mais visível a diferença de A cidade si-
tiada enquanto afirmação de um registo enunciativo singularmente demarcado
em relação ao que começara por ser e ao que virá a ser a “marca” Lispector, é
claro que esse registo não se pode dissociar do plano do conteúdo que, como
temos vindo a notar, fornece a todo o momento pistas para a leitura figural. A
temática da construção da cidade parece ser das mais óbvias nesse ponto em que
permite ler a cidade como texto. Vejamos como as referidas alusões culturais se
encaixam e atribuem coerência a esse sistema de figuração. A parte central do
quinto capítulo é aquela onde com maior visibilidade aparece a referência ao

161
universo grego. É logo no início do bloco que a personagem vê “que era grega”
e é no sonho que isso acontece. No final desse bloco, sempre entre o sono e o
sonho, vamos encontrar a imagem tópica que ocorre com muita freqüência no
domínio do onírico: o voo.

Então Lucrécia bateu asas.


Com batidas monótonas e regulares voava na escuridão sobre a
cidade.
Dormia com batidas monótonas, regulares.
No meio do sono, ainda num lance de ferocidade, Lucrécia Neves
ergueu-se e percorreu o quarto sobre as quatro patas, farejando a escuridão.
[...] Que quarto! movia a cabeça de um lado para outro com paciência.
Enfim recolheu-se para dormir (p. 102).

Talvez se possa dizer que o voo é o próprio sonho ou o sono; mas a pas-
sagem oferece-nos um quadro imagético onde nos é permitido ver um cavalo
alado: o bater de asas associado às patas que percorrem o quarto. Mesmo antes
falava-se no “peso adormecido de patas” numa cavalariça. Pégaso é nome mito-
lógico que não por acaso deve ser evocado. Numa das versões do mito, o cava-
lo alado nasce da terra fecundada pelo sangue de Medusa após esta ter sido de-
capitada por Perseu. Esse cavalo alado permite-nos unir alguns fios de
interpretação: Perseu está associado ao olhar indirecto, tão significativo na lei-
tura que se vem apresentando (Perseu é justamente o nome de uma persona-
gem em A cidade sitiada); por outro lado, o fim de Medusa (a crítica destruti-
va) e o vencer desse obstáculo levam ao caminho da livre (inspirada) criação,
pois segundo o mito o nome de Pégaso parece estar ligado à fonte. Justamente
ao golpear com os seus cascos o monte Hélicon provocou o nascimento da fon-
te Hipocrene (a fonte do cavalo); ora, quem bebesse dessa fonte que o cavalo
fez brotar no Hélicon tornar-se-ia poeta. Em qualquer leitura que se faça, para
além da linearidade enclausurante dos episódios, sobreleva a celebração da es-
crita epifânica emblematizada na presença dos cavalos que Lucrécia procura mi-
metizar quando se apropria do trotar e assimila as patas, as ferraduras – ela é o
centauro. Sempre que aparece, Lucrécia tem como modelo a muitas vezes sub-
terrânea, mas sempre omnipresente energia dos cavalos.

162
A distância denegadora que em relação à crítica a autora pretendeu afir-
mar decorre de uma série de factores e é facilmente desmentível, dado que to-
do o seu percurso mostra como ela tinha uma aguda consciência desse diálogo
necessário entre a obra e as interpretações que lhe são atribuídas. Clarice Lis-
pector viaja logo após a saída de Perto do coração selvagem (primeiro Belém e lo-
go a seguir o exterior). O facto de bastante cedo se ter pretendido demarcar da
crítica, numa posição de distanciamento assumido, parece ter decorrido sobre-
tudo do silêncio que se fez, após o aplauso e o ruidoso acolhimento ao roman-
ce de estréia. Ver-se-á numa entrevista de setembro de 1960 como Clarice está
atenta e reconhecida por uma crítica generosa a Laços de família. Diz a entre-
vistadora: “Fomos encontrá-la comovida com o artigo que lhe dedicou Nelson
Coelho no Jornal do Brasil”. E acrescenta as seguintes palavras de Clarice: “Emo-
cionei-me porque senti grande sinceridade da parte dele. Gosto de ser explica-
da para mim mesma. Preciso saber de mim alguma coisa…”.44
É importante entender-se o movimento mitificador (de defesa) que a es-
critora ergue em torno da sua produção e da relação que estabelece com a crí-
tica, e é na seqüência desse posicionamento que se pode encarar uma outra ati-
tude que parece ser decorrente ou paralela. Repete vezes sem conta que,
publicado o livro, dele se desliga, e deixando este de lhe pertencer, não mais o
relê. Eis o que afirma na referida entrevista de 1960 no Jornal de Letras, quan-
do interrogada sobre as razões do silêncio que caiu sobre A cidade sitiada:

Eu não sei me explicar… disse lenta e modesta. E depois não me


lembro bem o [sic] livro para comentá-lo. Uma vez publicada a obra,
desliga-se de mim, já não é mais minha. Os críticos que a expliquem, e
eu agradecerei. Quanto a esse livro, senti simplesmente que precisava es-
crevê-lo, passar por essa experiência, e tive a grata surpresa de saber que
algumas pessoas que já haviam lido A cidade sitiada, e que na primeira
leitura não haviam gostado ou entendido, a reler identificaram-se mais
com a obra, apreciando-a.

Pode se observar em outros momentos o facto de, no fundo, Clarice não


se alhear do papel da crítica em relação ao qual se pretende mostrar desligada.
Lembre-se, por exemplo, a preocupação com a saída de “Objeto gritante”. A es-

163
se respeito são fundamentais os depoimentos de José Américo Motta Pessanha
(a carta com que responde a Clarice após a leitura de “Objeto gritante”, “Ar-
quivo de Clarice Lispector”, Fundação Casa de Rui Barbosa) e de Alexandrino
Severino sobre as versões de “Água viva” (artigo publicado na revista Remate de
Males, n. 9, 1989). Clarice situa-se entre aquele conjunto de autores que to-
mam a obra como um meio de pesquisa (veja-se essa identificação na conferên-
cia sobre a vanguarda que ela pronunciou na Universidade do Texas) e para os
quais é fundamental o eco da receptividade dos seus trabalhos para a evolução,
para o delineamento dos caminhos a seguir. Voltando ao que diz sobre o facto
de não ler os seus textos após a publicação, lembremo-nos da prática de reuti-
lização de materiais na última fase da obra. Se essa reutilização tem em conta
sobretudo a matéria escrita em períodos temporalmente próximos, por outro
lado, é alternada com textos mais antigos, como seja o caso de passagens de A
cidade sitiada retomadas 26 anos depois, no texto acima referido (“Seco estudo
de cavalos”).

A literatura, o nome

A questão da origem é tão obsessiva que em torno dela pode dizer-se que
se enreda toda a escrita de Clarice Lispector. Se, nos textos da última fase, a pa-
lavra “escrever” ocorre a todo o momento, nos da primeira fase a reflexão sobre
a criação revela-se igualmente importante. Contudo, na primeira produção, de-
para-se com uma reflexão velada; é através de duplos da escrita (procedimentos
figurais) que no texto se manifesta a obsessão, de tal forma que se sustentam
universos diegéticos coesos onde o escrever passa maioritariamente ao largo. É
inadequado ou lateral o que porventura acontece como escrita. Que, no entan-
to, acontece, mas sempre de viés. Em outras formas, em outras configurações,
em enunciados narrativos particulares como situações descritivas, diálogos ou
quadros monologais etc., é que se figura o acto criador e a dimensão relativa à
escrita propriamente dita.
A autora recorre à fábula originária para explicar como chegou à literatu-
ra, para justificar a densidade de uma escrita que se desenrolaria (ou existiria) nu-
ma inconsutilidade com o tecido do mundo. Como se pretendesse apresentar aos

164
leitores uma narrativa de exemplo que caucionasse a naturalidade da sua escrita.
É nas entrevistas, que melhor asseguram um efeito de real, onde a justificativa, re-
portando-se à fábula, vai mais longe: quando era pequena pensava que os livros
apareciam instantaneamente, que nasciam como os frutos nascem, como as árvo-
res aparecem. Passará então a querer vir um dia a fazer livros: prontos.

Quando eu comecei a ler, eu lia muito livro de histórias. Eu pen-


sava que livro era uma coisa que nasce. Eu não sabia que era coisa que
se escrevia. Quando eu soube que livro tinha autor, eu disse: “Também
quero ser autor”.45

A história dos princípios, contada em entrevista, coloca a fundação da


escrita no plano da fundação do mundo, das coisas naturais do mundo. A in-
cessante interrogação da origem, que é em última instância um interrogar da
escrita, assenta, por conseguinte, num plano fabular. Encontramos, ao nível das
“histórias” contadas, ao nível dos temas tratados, essa manifestação, mais ou me-
nos evidenciada no contar o crescimento de uma cidade, no dizer o nascimen-
to de um homem (herói ou não-herói), no re-dizer a parábola ancestral do enig-
ma que é essa história do ovo e da galinha (onde se concentra o devir-animal,
o não-humano do homem). São efectivas histórias de fundação. Nesse plano
que conta a história, estamos perante um horizonte de actualização de uma fi-
gura num grau primário – construir uma cidade é instaurar um universo, dar
vida a uma criatura é originar um mundo. Num certo sentido, estamos no do-
mínio do figurativo, mas há outra leitura que pode ser feita, e entramos, então,
num segundo grau em que dizer cidade ou dizer homem ou não humano é o
mesmo que dizer letra, texto, escrita… A cidade sitiada ou fundação da cidade
e da obra; A maçã no escuro ou a reescrita da origem da linguagem e do mun-
do da literatura; Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres e a origem do amor
e do texto; A hora da estrela 46: a hora da morte e a criação da obra… Podería-
mos assim enunciar uma síntese que daria a idéia de que houve um propósito
de trabalhar os grandes temas. De facto não é assim; mas, mesmo não tendo
havido essa intencionalidade de um modo tão programado, haverá um trajecto
que se constrói, como que uma lógica de tipo conceptual numa autora que se
procurou e se proclamou imersa na obscuridade da escrita inspirada? Em rela-

165
ção a um ponto não restam dúvidas: o propósito manifesto de apresentar nar-
rativas cosmogónicas – “O que estou escrevendo é música do ar. A formação do
mundo. Pouco a pouco se aproxima o que vai ser”.47
A obra de Clarice foi-se construindo a partir de interrogações fundamen-
tais, tão vastas que levariam necessariamente qualquer pensamento a uma espé-
cie de desagregação no seio desse mesmo continuum indelimitado do universo
onde se projectam as referidas interrogações. Embora se não imponham pelas
vozes narrativas, é indirectamente que o próprio leitor é levado a assinalar esses
destaques emblemáticos, os quais funcionam decerto pela redundância, mas
também por outro tipo de actuação, força que subterraneamente se vai impon-
do. Não sendo relevado na mais visível das exterioridades, o emblematismo que
as figuras comportam não deve, por conseguinte, conduzir à perspectivação da
estaticidade; pelo contrário, deve procurar entrever-se nessas figuras a existên-
cia de fluxos vivos, de campos energéticos – digamos que a própria imagem do
processo da escrita.
Na obra delinear-se-á o percurso que vai ter ao nome. O nome próprio,
que está latente e disseminado, quando começa a emergir e a querer parecer
separar-se da obra, devém escrita. Clarice Lispector pretendeu inscrever o no-
me na escrita – dissolvendo-o para o afirmar, impregnando a escrita, enfim,
com a sua marca.
No curioso relato de um sonho, Fernando Sabino, em carta dirigida a
Clarice (de 17 de setembro de 1946), lembra como esta entra no início do re-
ferido sonho: olhando o mar, parada, “impassível como uma estátua”; o sonho
é sobre a literatura, sobre o nome (nele também entra Otávio de Faria). Sem o
nome há que procurar, continuar a procurar, escrever até encontrar o nome. A
correspondência de Fernando Sabino para a autora de O lustre constitui o mais
volumoso epistolário integrado no Arquivo de Clarice Lispector (Fundação Ca-
sa de Rui Barbosa). Nele se encontram duas missivas de uma extrema impor-
tância pelas declarações que aí aparecem em torno da questão do nome e da as-
sinatura. É em dois pequenos fragmentos que se isolam afirmações essenciais:

Estou meio sem jeito de dizer a eles que você não quer assinar,
por duas razões: primeiro, porque, a despeito da elevada estima e distin-
ta consideração que eles têm pela formosa Teresa Quadros, sei que fazem

166
questão de seu nome – e foi nessa base que se conversou; não sei se vo-
cê sabe que você tem um nome. E segundo, porque acho que você deve
assinar o que escrever. (carta de 10 de setembro de 1953)

E o que interessa é Clarice Lispector, pelo menos uma Clarice Lis-


pector dando notícias – mesmo assinando C.L. (carta de 27 de outubro
de 1953)

Primeiro que tudo, a partir da leitura dos fragmentos, sublinhe-se a


“história” implicada nessas passagens que fazem supor uma articulação; a se-
qüência das datas faz adivinhar um sentido que reenvia para um fundo nar-
rativo, um qualquer episódio justamente em torno do nome. Podemos seguir
em livros sobre a autora48 a devolução desse fundo episódico reconstituído a
partir das cartas de Fernando Sabino do ano de 1953. Em síntese: uma pro-
posta que Sabino lança a Clarice solicitando a colaboração para a revista Man-
chete. O tipo de colaboração destinar-se-ia a ser integrado no quadro de uma
“secção e portanto sem responsabilidade literária” (carta de 8 de agosto). No
entanto, apesar disso, é solicitada a assinatura, e não um pseudónimo, recur-
so esse de que a autora já fizera uso (como Teresa Quadros assinara as “pági-
nas femininas” no jornal Comício) e que parece ser usado, acima de tudo, por
razões de zelo face ao bom-nome literário. O pseudónimo ocasional permiti-
ria a cobertura para textos ocasionais subvalorizados quanto à determinação
do código estético. Agora, no entanto, a proposta de Sabino apresenta uma
situação nova, o sugerido “Bilhete americano” ou “Carta da América” pressu-
põe uma configuração híbrida – que ultrapassaria os estritos limites de uma
escrita extremamente codificada e, até certo ponto, não personalizada, como
acontecera com as “páginas femininas”. Em termos de género, estaríamos pe-
rante o que se poderia designar por crónica – registo que afinal, alguns anos
mais tarde, a autora iria pôr em prática, com a regularidade semanal, nas pá-
ginas de um jornal (no Jornal do Brasil ). Porém tudo o que sobre o “episó-
dio” se possa dizer irá desembocar num desenlace de duas iniciais que procu-
ram a preservação do nome. Contudo as dúvidas sobre esse sentido de
resguardo não vão cessar quando da futura prática regular nas páginas do jor-
nal. Numa das primeiras crónicas, lê-se:

167
Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daqui-
lo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neó-
fita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinhei-
ro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando,
porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como
se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me res-
pondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo
quando não é por dinheiro, a gente se expõe muito. Embora uma amiga
médica tenha discordado: argumentou que na sua profissão dá sua alma
toda e no entanto cobra dinheiro porque também precisa viver. Vendo,
pois, para vocês com o maior prazer uma certa parte de minha alma – a
parte de conversa de sábado. (Jornal do Brasil, 9 de setembro de 1967)49

No livro Um sopro de vida 50, pela voz da personagem Ângela Pralini, de


um modo explícito, faz-se eco de uma questão que se vinha tornando verdadei-
ramente obsessiva nos últimos anos: o problema da apropriação/desapropriação
do nome. Aí se lê:

Fiz uma breve avaliação de posses e cheguei à conclusão espanta-


da de que a única coisa que temos que ainda não nos foi tirada: o pró-
prio nome. Ângela Pralini, nome tão gratuito quanto o teu e que se tor-
nou título de minha trêmula identidade. Essa identidade me leva a algum
caminho? Que faço de mim? Pois nenhum ato me simboliza.51

Num conhecido texto de Clarice sobre Brasília a dada altura deparamos


com uma interrogação acerca da hipótese de um estranho roubo: justamente o da
própria identidade. “Sinto que estão fazendo macumba contra mim: quem quer
roubar a minha pobre identidade?”52 Essa frase-flash é citada por Claire Varin num
breve capítulo de Línguas de fogo 53 intitulado “O lírio”. Seguidamente, a estudio-
sa apresenta a passagem de uma carta de Clarice a Andréa Azulay (no arquivo de
Borelli) que conta um pesadelo. Clarice Lispector tinha sonhado que viajava pa-
ra fora do Brasil e, no regresso, apercebia-se de que muitas pessoas haviam escri-
to coisas e as assinavam com o seu nome. Reclamava negando a autoria de tais
textos, mas as pessoas não acreditavam e riam-se dela. Estranho sonho da despos-

168
sessão; o nome, como puro significante, é sujeito a uma peculiar deslocação: rou-
bam o nome, e a autora presencia o roubo. O que acontece é um procedimento
que está próximo das situações kafkianas – os ladrões da identidade ocultam-se
sob o nome roubado e fazem-no circular. A autora vê-se desapossada por um per-
verso mecanismo de adjunção – no amplificar-se a obra é que se lhe retira o no-
me. Decorre da situação o pânico pela indevida utilização da identidade, como
numa qualquer situação do foro judicial em que alguém contraísse uma dívida
em nosso nome. Toda a gente vê o nome que foi construído, o nome está ali, e
sabe-se que o escritor pode cair. Significará o pesadelo a angústia de não mais con-
seguir escrever? Alguém, então, passaria a “não-escrever” por nós. Essa preocupa-
ção em torno da despossessão do nome expressa-se ainda pela manifesta inquie-
tação perante o epigonismo fácil. Quando, numa das últimas entrevistas,
perguntam a Clarice Lispector se a sua obra ficaria, esta responde que acha que
os seus livros “vão perder o valor” por estar sendo “muito imitada” sobretudo nos
seus “cacoetes” (cf. Jornal do Brasil, 15 de dezembro de 1977).
Na origem de estados que podem ser chamados de epifânicos, como
aqueles que trazem a revelação ou a morte, está, muitas vezes, o pronunciar o
nome impronunciável; lembremo-nos de Laura não só ao olhar para as rosas
mas ao pronunciar-lhes o nome (“A imitação da Rosa”54). O maior perigo vem
de que esse dizer é lá dentro que se diz. Um dizer para dentro onde exista o no-
me, palavra plena. A palavra plena, que dificilmente se atinge no nome falado,
é o “it” clariciano. No texto-rascunho “Objeto gritante”, leia-se na folha 68 um
acrescento à mão sobre o texto dactilografado: “O máximo de inefável está na
natureza do ‘it’”.
No problema da nomeação, um dos maiores que na sua obra se levanta,
coloca-se a questão da impossibilidade de encontrar nomes. A impregnação de
sensações (de aspirações, de estados) em que as personagens ou os narradores se
vêem envolvidos, grande parte das vezes pela insuficiência da descrição dos no-
mes existentes, transvaza os limites da conceptualização que desse estado se pre-
tendesse descritiva.

Martim estava de algum modo humilde, se era ser humilde o mo-


do involuntariamente triunfante como estava montado num cavalo – o
que lhe dava altura e espanto e determinação e visão mais larga. Nessa

169
inesperada humildade ele pareceu reconhecer mais um sinal de que es-
tava emergindo porque só os animais eram orgulhosos, e só um homem
também era humilde. Também a essa coisa indefesa e no entanto auda-
ciosa ele quis dar um nome, mas não existia.55

Os sentidos porventura contraditórios, os manifestos paradoxo e antíte-


se, são-no por via dessa obstinada procura e insofrida incapacidade de encon-
trar um nome. Martim aproximara-se “de alguma coisa a que um homem a pé
chamaria humildemente de desejo de homem, mas a que um homem monta-
do não poderia fugir à tentação de chamar de missão de homem”. A indetermi-
nação aponta para aquilo que vai receber o nome consoante o lugar em que o
homem estiver. O assinalar das posições põe em movimento os planos opostos
(veja-se a carga semântica que pode suscitar uma interpretação ao nível da co-
notação social e vejam-se ainda as implicações dos códigos dos romances de ca-
valaria etc.); o que está em causa é justamente a questão da denominação. A
“coisa” que pode receber diversas denominações consoante o lugar (espacial, so-
cial etc.) do enunciador, essa mesma “alguma coisa” pode ser “desejo de homem,
missão de homem” ou, então, uma figuração da escrita? “Escrita do homem”.
A referência a um novo deus, clara referência a uma criação (“Parecia clamar
por um novo deus que, entendendo, concluísse desse modo a obra do outro
Deus”) e a um renascer (“Emergiu totalmente e como homem”), pode ser lida
como equivalente ao acto de escrever. Está subjacente a questão da metáfora:
como chegar à coisa? Como chegar ao nome da coisa?
Atente-se ao emblematismo entrevisto num pequeno texto intitulado
“Aproximação gradativa”: “Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à
procura da própria coisa”.56 Aqui se contém, como máxima, o princípio que po-
de definir a obra. Na sua indeterminação a coisa é a própria matéria viva. Ou-
tro fragmento do mesmo volume apresenta no título a questionação do nome:
“Como se chama”. Conclui-se com a impossibilidade de encontrar o nome. A
nomeação vem no interior do próprio processo interrogante: “Até hoje só con-
segui nomear com a própria pergunta. Qual é o nome? e este é o nome” (p. 21).
Mais do que em qualquer outro livro, é em A paixão segundo G.H. que se
leva mais longe a aproximação ao discurso místico. Se bem que em Uma apren-
dizagem ou O livro dos prazeres, o livro que se lhe segue, a tematização do divino

170
atinja um elevado grau de explicitação, é em A paixão segundo G.H. que profun-
damente se questiona a linguagem no quadro das impossibilidades nas quais se
funda a mística. No livro protagonizado por G.H. depara-se com a busca inces-
sante em todos os domínios e muito especialmente no domínio da reflexão abs-
tracta (“A esperança – que outro nome dar?”, p. 58; “A dor não é o nome verda-
deiro disso que a gente chama de dor. Ouve: estou tendo a certeza disso”, p. 117).
Conseguir chamar uma coisa sem nome é o máximo conseguimento (“E vejo que
há alguma coisa mais séria e mais fatal e mais núcleo do que tudo o que eu cos-
tumava chamar por nomes”, pp. 87-8). O “it”, o neutro, o insosso equivaleriam
àquilo que está próximo do nome de Deus na tradição mística. É impressionan-
te o número de vezes que, no interior do discurso de A paixão segundo G.H., ocor-
re a explicitação da procura de um nome adequado ou do obsessivo acto de revi-
são das nomeações. Na abertura, a voz narradora quer chamar “desorganização”
a algo que aconteceu, um “isso” que é a própria experiência – sujeito e objecto da
narração; é daqui que se parte, no livro, em direcção a um muito complexo pro-
cesso de questionação do nome. Primeiro que tudo é a personalidade mesma da
protagonista que se autoquestiona entre aspas (“Ajo como o que se chama de pes-
soa realizada”, “quanto à minha chamada vida íntima”, “minha chamada nobre-
za”, “minha chamada sordidez”, pp. 25-6). Progressivamente vai-se fazer sentir o
efeito de despersonalização daquilo a que se chama “eu” (“Um olho vigiava a mi-
nha vida. A esse olho ora provavelmente eu chamava de verdade, ora de moral,
ora de lei humana, ora de Deus, ora de mim”, p. 27), num percurso que encerra
o trajecto de “arrumação” encetado pela personagem. O quarto a arrumar é, na
inesperada arrumação exterior, uma espécie de câmara produtora das revisões
identitárias: “Nu, como preparado para a entrada de uma só pessoa. E quem en-
trasse se transformaria num ‘ela’ ou num ‘ele’. Eu era aquela a quem o quarto cha-
mava de ‘ela’” (p. 60). O choque da experiência dos limites advinda do encontro
com a barata e de um processo de reidentificação (“Eu, corpo neutro de barata”,
p. 65) conduz à zona onde se olha a própria identidade – simultaneamente ori-
gem e dissolução do eu, isto é, o lugar onde as coisas não precisam ter nome (“O
medo que eu sempre tive do silêncio com que a vida se faz. [...] O neutro era a
minha raiz mais profunda e mais viva – eu olhei a barata e sabia. Até o momen-
to de ver a barata eu sempre havia chamado com algum nome o que eu estivesse
vivendo, senão não me salvaria”, p. 92). Em A paixão segundo G.H. (momento al-

171
to da maturação reflexiva), a radicalização da experiência tem o máximo sinal no
ponto em que esse processo atinge o sujeito enunciador. O romance de 1964 é,
pois, um celebrado ponto de chegada.

O nome oculto

Desde o início, as personagens interrogam os seus nomes ou os nomes


do outro. Nessas primeiras interrogações pode querer parecer que pouca impor-
tância é dada ao facto de o nome próprio constituir uma forma específica de
nomeação. Veja-se um exemplo em O lustre: o nome como que é desinvestido
dessa função e passa a ser entrevisto como mera palavra, mas a minusculação
do nome, que no quadro de uma cena onírica devém coisa, é afinal o modo de
o sublinhar:

Tão rápida a viagem que em breve ela desmanchava os lençóis da


cama, abria os lábios dizendo um nome cheio de macieza e escuridão:
vicente. As flores estremeciam vívidas nas trevas. Como se ela se dissol-
vesse e mergulhasse na própria matéria dissolvida e na leitosa e translú-
cida obscuridade ela mesma deslizasse em peixe puro volteando a cauda
serenamente resplandecente. Sim, Vicente.57

No primeiro romance, quando o pai de Joana recebe a visita de um ami-


go que não via há muito, os dois, a dada altura, relembram “só palavras” (não
eram coisas que tivessem acontecido). O anfitrião é uma personagem que não
aparece designada com nenhum nome próprio; o nome que recebe liga-se à
função que a sua existência preenche no texto: “pai”, “papai”. Um pouco mais
à frente, relembra a esposa que já morreu: “Chamava-se… – olhou para Joana
– chamava-se Elza. Me lembro que até lhe disse: Elza é um nome como um
saco vazio”.58 A interrogação sobre os nomes das pessoas é, em Perto do coração
selvagem, correlata de uma interrogação que vamos encontrar desde as primei-
ras páginas na boca de Joana: a atenção concedida à linguagem, que vai ocu-
par justamente um dos núcleos da narrativa. É nas suas brincadeiras que Joa-
na questiona as palavras (p. 13). À medida que se avança no romance, vai

172
confirmar-se a atenção cada vez mais tematizada. O capítulo “O abrigo no ho-
mem” (na 2ª. parte) inicia-se precisamente com a reflexão da personagem sem
nome sobre o nome de Joana: “Joana. Joana, pensava o homem aguardando
sua vinda. Joana, nome nu, santa Joana, tão virgem. [...] Via-lhe os traços in-
fantis, as mãos eloqüentes como as de um cego” (p. 159). Mas, em especial nos
primeiros romances, também vão surgir nomes que não parecem cumprir qual-
quer ligação estreita ou motivada em relação às personagens que os usam. E is-
so sobretudo porque correspondem ao cumprimento de uma função de ordem
abstracta que num determinado livro se impõe, ou configuram uma intenção
mais ou menos programática. É o caso de A cidade sitiada, em que uma sobre-
carga de nomes como que se esvazia na linha, no traço que superficialmente
os desenha; pode falar-se aqui de um zumbido de nomes, de um excesso de su-
perfície que se articula com o facto de estarmos perante um romance construí-
do no talhe de linhas rígidas (livro onde predominam as frases curtas e os ca-
pítulos são relativamente pequenos). Outro exemplo, mais complexo, é o de A
maçã no escuro, onde se impõe a força figural que afecta profundamente toda
a estrutura do romance e as categorias da narrativa; daí que seja permitido fa-
lar de “tempo abstracto”, de “lugares abstractos” ou de “vozes abstractas”. Aliás,
Martim, Vitória, Ermelinda são muitas vezes designados como “o homem”, “a
mulher”, “a moça”, tudo se encaminhando para o apagamento do nome pró-
prio. Mas a complexidade referida advém do facto de o suporte da figuração
não rejeitar, antes parecer suscitar um apelo motivador, e nos nomes de Mar-
tim ou de Vitória não deixamos de ver a força de dois titãs que se vão defron-
tar ao longo da narrativa.
A partir desse romance vai-se configurando um percurso cada vez mais
nítido no sentido da revelação – mesmo quando é o ponto de vista das perso-
nagens a impor a reflexão sobre os próprios nomes ou sobre o nome das outras
personagens. Refiram-se alguns exemplos de dois livros: Uma aprendizagem ou
O livro dos prazeres e A hora da estrela. O primeiro, marcando uma decisiva vi-
ragem, é um bom exemplo da intencionalidade aí reflectida; o segundo, tendo
sido o último publicado em vida, apresenta uma extraordinária coerência de
projecto que desenvolve a intencionalidade entrevista no anterior.
No início de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, a vasta mancha
tipográfica dá conta da chegada de Lóri a casa: sem respiração, as tarefas que

173
executa são acompanhadas (atravessadas) pelo pensamento. Há uma interrup-
ção que foca o nome. Ulisses dissera-lhe uma vez que gostaria que ela, quando
lhe perguntassem o nome, não respondesse “Lóri”, mas eu (“Meu nome é eu”,
p. 10). Um pouco mais à frente (no interior do quadro em que se apresenta o
mundo como um “faz de conta”), depara-se com outra alusão ao nome que é
relacionado com Deus: “Deitada na palma transparente da mão de Deus, não
Lóri, mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir”
(p. 11). O que é esse nome secreto? Não é, codificado, o nome Clarice? Nesse
mesmo “faz de conta” fala-se de uma Lóri lunar. Atente-se ao singular procedi-
mento denegador – diz-se que é e, depois, vai fazer-se de conta que não é: “Faz
de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era
lunar […], faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava
chorando por dentro” (p. 11).
Em A hora da estrela, a nordestina que protagoniza os eventos fala a da-
do momento da estranheza que o seu nome geralmente provoca em quem o es-
cuta: “Até um ano de idade eu não era chamada porque não tinha nome, eu
preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém
tem, mas parece que deu certo” (p. 53). Há uma história que se relaciona com
a atribuição do nome, e é a esse acontecimento que se reporta a alusão ao acer-
to da escolha: trata-se de uma promessa feita a Nossa Senhora da Boa Morte
pela mãe de Macabéa para que esta vingasse. No contexto do livro não se estra-
nhará o facto de a personagem não entender o nome que transporta, e se aí se
pode ler uma forma de denúncia face à situação dos nordestinos (macabeus do
século XX), seres perdidos na grande cidade opressora, também se pode encon-
trar uma mais ampla questionação sobre o ser.
Fazer corresponder o nome à pessoa – dar um sentido ao nome, do
mesmo modo que se faz corresponder o nome às coisas – como que equivale
a um destino que aos seres se impõe cumprir: “Mas que ao escrever – que o
nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a
tem, inventa-se-á. Esse vosso Deus que nos mandou inventar” (p. 23). É so-
bretudo aos nomes próprios que cabe serem preenchidos de significado. Con-
trariamente a Macabéa, Olímpico procurará encontrar o seu nome: “Quanto
a mim, de tanto me chamarem, eu virei eu” (p. 59). Ele é potencialmente um
vencedor – é o que o seu nome parece querer dizer. Mas, se a Olímpico lhe é

174
permitido aceder ao nome, o que acontecerá com Macabéa? Ao que parece,
está-lhe vedada essa forma de acesso. Repete com insistência: “A gente não
precisa entender o nome…” (p. 55), “não sei o que está dentro do meu no-
me” (p. 68). No final, estendida no chão, “parecia se tornar cada vez mais uma
Macabéa, como se chegasse a si mesma” (p. 98). O gesto baptismal chegara
com atraso: há um longo período (um ano) em que a personagem vive sem
ter nome. Essa ausência de nome é por si mesma contraposta à estranheza do
nome que transporta. Só com a morte se encontra um destino para o nome
da personagem.
E o narrador, Rodrigo S.M., encontrará ele uma palavra que, por fim,
signifique a sua vida? No início do romance, a seguinte declaração: “A minha
vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma
só palavra que a signifique” (p. 15). A vida mais verdadeira é como em todas as
experiências mais profundas, como na literatura, o inominável, o informulável.
A tarefa dos narradores será a de se aproximarem o mais possível do que pela
palavra pode ser dito. Se todo o livro revela uma busca de si, uma procura de
identidade – aqui o encontro da personagem consigo mesma adquire na hora
da morte uma força iluminadora. Lemos no final de A hora da estrela: “Enquan-
to isso, Macabéa no chão parecia se tornar cada vez mais uma Macabéa, como
se chegasse a si mesma” (p. 98).
Encontrar o nome seria o objectivo, o fim para que os homens viveriam.
Na própria nomeação se precipitaria o destino? Em A cidade sitiada, quando
Lucrécia sonha que lhe trazem uma notícia, alguém pronuncia o seu nome. Se
bem que aqui ainda não se possa projectar a intencionalidade da convocação
dos nomes, tal como irá surgir noutros textos, o nome pronunciado faz “ressal-
tar um destino”:

Pela primeira vez pronunciavam seu nome ressaltando-lhe o


destino.
Era um nome a ser chamado de longe, depois de mais perto, até
entregarem-lhe ofegante a carta (p. 83).

A esse exemplo, que no romance é uma ocasional referência, irão juntar-


se casos similares de conseqüências maiores nos livros da fase final. Veja-se em

175
relação aos primeiros livros o esforço hermenêutico da crítica e as aporias em
que esta freqüentemente desemboca. Essas questões relativas ao nome encon-
trarão mais fácil solução no que respeita às leituras dos últimos textos, isto é,
passam a permitir uma consensual decodificação dos domínios figurativos.
A tarefa do autor é tentar chegar o mais próximo possível do que a pa-
lavra pode dizer. Em A hora da estrela, no seu recorrente registo metadiscur-
sivo, como que existe um ideário de escrita – “A palavra tem que se parecer
com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo” (p. 25). O no-
me tem que se parecer com o nome – nele simbolicamente se reflectirá o tra-
jecto da autora. A idéia de que na própria nomeação se precipitaria um des-
tino é entrevista, no interior dessa narrativa, a partir do próprio ponto de
vista das personagens. O grau de explicitação com que na fase final surgem
tais reflexões é esclarecedor de uma preocupação que, embora veladamente,
desde sempre existiu: a questão da demarcação de um espaço próprio para a
sua circulação, o que equivale a dizer, a questão da literatura. Está em causa
a proposição de um nome para um rosto público com que se atravesse a ce-
na literária e o movimento de apropriação desse nome como meio de auto-
conhecimento.
Nos livros para crianças, um procedimento explicita a esfera do domí-
nio autobiográfico. Em A mulher que matou os peixes 59, o sujeito que fala é o
mesmo de que se fala: “Essa mulher que matou os peixes infelizmentou sou
eu” (p. 7). A coincidência é enfatizada no diálogo com os interlocutores: “An-
tes de começar, quero que vocês saibam que meu nome é Clarice. E vocês, co-
mo se chamam? Digam baixinho o nome de vocês e o meu coração vai ouvir”
(p. 9). Está aberto um jogo que, atingindo aqui um grau de explicitação maior,
se projecta em outro tipo de derivas, como sejam as coincidências do signifi-
cante e as tendências para fabular ou interpretar essas coincidências. É isso que
se lê no tom ocasional da crónica: “Isto que estou escrevendo parece um labi-
rinto, mas tem largos portões e saída. Inclusive uma criança chamada Clarice
deu-me um quadro muito bonito que era um labirinto verde. E tudo isto é
inefável. Vi um papagaio verde no domingo – um louro – que emitia sons e
estava aprendendo a imitar a fala humana. É inefável o fato de eu ter acabado
de escrever um conto chamado ‘Labirinto’ também. Clarice e Clarice se enten-
dem” (Jornal do Brasil, 21 de agosto de 1971).60 Noutra crónica do mesmo dia

176
escreve acerca de uma criança que parece ser a mesma atrás referida: “Uma tem
meu nome e é engraçado a gente se falar. Parece que se está tendo o diálogo
perfeito. Deu-me dois quadros por ela desenhados e em um deles escreveu: ‘Pa-
ra Clarice de Clarice’”.
Detenhamo-nos agora numa singular forma de aproximação do nome.
Pode dizer-se que na obra de Clarice Lispector há um nome escondido ou que
a obra é construída sobre o nome próprio disseminado e ocultado. Os actan-
tes respondem pelo actor (autor) escondido sob as letras do seu nome. Na no-
meação das personagens: em Lucrécia, G.H., Lóri ou Ângela Pralini, aí mes-
mo, encontraremos o nome da autora; dir-se-á que o nome é sobrevivente nas
próprias nomeações que o ocultam. As letras traçam em torno de si mesmas a
figura que encobrem. Analogias quase imperceptíveis e correlações formais per-
mitem descortinar os jogos de semelhanças nos quais se depara com a identi-
dade escondida.
O nome de Lucrécia deixa entrever um jogo com as letras do nome
“Clarice” que estão lá. Mais elaborado é o jogo que conduz ao aproveitamen-
to das letras que formam o nome da protagonista de Uma aprendizagem ou O
livro dos prazeres. As letras mais repetidas (Lispector/Clarice) levam-nos a LO-
RI. Loreley ou Lóri pode ser lido como um anagrama. Quando a personagem
escreve, aquilo que escreve é o que a autora em outros lugares assinou ou vai
assinar.61 Ao olhar-se ao espelho, Lóri, no início do romance, medita sobre o
gesto e pensa como esse gesto reflecte a banalidade da constatação: “Eu exis-
to”. Lóri é o nome que se olha, o nomen do autor que se quer mostrar; é Ló-
ri a personagem que mais expõe o rosto, que mais o apresenta; ela é assim o
nome de Lispector ao espelho. Num final de capítulo, o momento em que ela
se acha preparada chega tão subitamente que a lança no desalinho revelador
– eis então o rosto nu:

Pegou na bolsa o endereço dele escrito no guardanapo, vestiu a


capa de chuva sobre a camisola curta, e no bolso da capa levou algum di-
nheiro. E sem pintura nenhuma no rosto, com o resto dos cabelos cur-
tos, caindo sobre a testa e a nuca, saiu para tomar um táxi. Fora tudo tão
rápido e intenso que não se lembrara sequer de tirar a camisola, nem de
se pintar (pp. 161-162).

177
A atenção prestada às letras ocorre de formas inusitadas, como acontece,
por exemplo, a propósito da actuação das personagens (uma espécie de destino
condicionador?): “Como as bolhinhas efervescentes da água Caxambu. As sete le-
tras de Pralini davam-lhe força. As seis letras de Ângela tornavam-na anônima”.62
O trabalho sobre a letra (muitas vezes escondida) é profundamente ac-
tuante na escrita de Lispector. Em Um sopro de vida, a atenção concedida aos
jogos de palavras desvenda o trabalho criptonímico que subliminarmente se vai
deixando vislumbrar ao longo da obra. O arrolar de palavras estranhas no livro
póstumo desvela um exercício que passa pela apresentação do anagrama segui-
do da sua decifração: “Me dá vontade de falar errado. Assim: Sued. Isto quer
dizer Deus” (p. 127).
Na “Explicação” que Clarice faz anteceder aos contos publicados em A
via crucis do corpo 63 é referido o desejo de publicar o livro sob pseudónimo. Não
se subtrai, contudo, à dependência do nome: o gesto de assumir a “hora do li-
xo” corresponde a um tirar da máscara e por isso a instância prefacial constitui
também uma justificação do nome. Após a tentativa de se esconder sob a assi-
natura de um homem, que constituiria uma notória forma de preservação da
assinatura, a autora acaba por ceder aos apelos do editor e resolve assumir a di-
ferença do texto. As iniciais com que assina a “Explicação”, C.L., numa espécie
de ricochete acabam por nos devolver ao pseudónimo que afinal estaria para ser
adoptado e que parecia conter cifrada a verdadeira identidade da autora. Ou é
o nome próprio que centrípeta e fatalmente impõe o seu lugar?

Então disse ao editor: só publico sob pseudônimo. Até já tinha es-


colhido um nome bastante simpático: Cláudio Lemos. Mas ele não acei-
tou. Disse que eu devia ter liberdade de escrever o que quisesse. Sucum-
bi. Que podia fazer? senão ser a vítima de mim mesma. Só peço a Deus
que ninguém me encomende mais nada. Porque, ao que parece, sou ca-
paz de revoltadamente obedecer, eu a inliberta.

O nome Cláudio (cujas duas primeiras letras são iguais às duas primei-
ras letras do nome Clarice) vai ainda baptizar uma das personagens de um dos
textos em que a identificação entre o narrador e a autora é muito evidente. Tra-
ta-se do conto “O homem que apareceu”. Aí, logo no início, no primeiro con-

178
fronto, após a pergunta sobre a identidade, o homem (Cláudio Brito) “respon-
deu com um sorriso triste, em inglês: o que importa um nome?”.
Nos últimos textos há, como se tem vindo a observar, uma expressa von-
tade de desvelar os meandros da ficcionalização. No entanto, paradoxalmente,
esse intuito desvelador apóia-se numa estratégia que, muitas vezes, pressupõe a
colocação da máscara. O que se joga nesse gesto é um implacável desígnio da es-
crita de Clarice Lispector: viver é mascarar-se, ser é mascarar-se, por conseguin-
te, só pela máscara se escreve a vida mais verdadeira. A questão do duplo e dos
valores da alteridade que nos desdobramentos intervêm – o fazer coincidir no
outro a própria identidade – leva-nos a uma nova interrogação: por que a insis-
tência na figura do escritor homem, do autor homem? Temos então o caso de A
hora da estrela, onde se encontra uma explicação que tem sido objecto de várias
leituras por parte da crítica, que quase sempre aí vê uma forma de distanciamen-
to e de ironia (“Mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacri-
mejar piegas”, p. 18). Uma das imagens que melhor figurará a intenção lispec-
toriana é aquela em que se projecta a intersecção de Macabéa com Rodrigo S.M.
Ao observar a nordestina, Rodrigo vê o seu próprio rosto sobrepor-se à imagem
da moça reflectida no espelho. A intersecção, várias vezes apontada, parece sus-
pender as oposições masculino/feminino, que são deslocadas para a intensidade
da experiência da escrita.
Outro exemplo é o de Um sopro de vida, onde um narrador homem apre-
senta o monólogo inicial. A sucessão das falas, em aparente configuração dialo-
gante, acaba por nos fazer ver que não há propriamente um contraste de regis-
tos; percebe-se facilmente a fragilidade das oposições entre as falas da figura do
autor e as da personagem por si criada. Ângela também escreve e Ângela é Cla-
rice na mais explícita das reflexões metadiscursivas que no texto aparecem. Diz-
nos a personagem que foi ela que escreveu um livro chamado A cidade sitiada,
descreveu um dia um guarda-roupa, falou em outro lugar de um relógio cha-
mado Sveglia e ainda de um guindaste naquele que foi talvez o mais clariciano
dos textos: “O ovo e a galinha”.64 Na indistinção que torna irreconhecíveis as
vozes parece encontrar-se, num propósito nivelador, o apelo a uma totalidade;
a inquietante coexistência dos seres reverte-os numa espantosa equivalência dia-
lógica. O fluxo enunciativo faz da criatura e do criador um único ser. A idéia
de totalização implícita acaba por reenviar para a figura da escrita.

179
Assinatura

Talvez só se possa reencontrar o nome próprio na contemplação da face de


Deus, isto é, no horizonte de uma impossível totalização. Nessa mesma impossi-
bilidade, em que toda a tradição mística se funda, deparar-se-ia com a devolução
a um campo que estaria para lá do discursivo. Se as tentativas conduzem à ino-
minável presença, no próprio plano discursivo, são persistentes as buscas de su-
peração da intransponibilidade. No discurso clariciano assinalem-se algumas das
tentativas. Por exemplo, através de uma particular forma de tratamento, a da an-
teposição do artigo “o” para se referir à divindade, grande parte das vezes coinci-
dindo com uma zona inalcançável do “eu-mesmo” (“Descobriu que até agora re-
zara para um eu-mesmo, só que poderoso, engrandecido e onipotente,
chamando-o de o Deus e assim como uma criança via o pai como a figura de um
rei”, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, p. 68); ou através de outros pro-
cedimentos, como a transferência de propriedades conducente à divinização de
entidades abstractas, que se manifesta em nível textual na indicação por maiúscu-
las das palavras tocadas: “Esqueci-me do que no sonho escrevi, tudo voltou para
o nada, voltou para a Força do que Existe e se chama às vezes Deus” (Água viva,
p. 114); ou é ainda através de simulacros denominativos (reinvenção despistante
do propósito adâmico de uma nomeação absolutamente a-referencializada) que
se procura atingir esse fim: “Como Deus não tem nome vou dar a ele o nome de
Simptar. Não pertence a língua nenhuma. Eu me dou o nome de Amptala. Que
eu saiba não existe tal nome. Talvez em língua anterior ao sânscrito, língua it. Ou-
ço o tique-taque do relógio: apresso-me então. O tique-taque é it”. (idem, p. 54)
Um dos procedimentos reconhecíveis da gramática do texto lispectoria-
no também vai ser aplicado à entidade divina: um conceito abstracto é chama-
do pelo nome de um outro – “Eu chamo (de) Deus porque não sei o que cha-
mar nem como chamar”.65 No bloco apresentado por Olga Borelli à volta da
questão de Deus, onde é integrada a frase acima citada (solta nos manuscritos),
pode ler-se a figuração da escrita. “Deus” é o texto. Aí se diz: “Deus não é o
princípio e não é o fim. É sempre o meio” (p. 39). Como a criação, também
Deus é uma interrogação. Saber o que é Deus, qual o seu nome, é o equivalen-
te de saber o que é a matéria que se vive e trabalha e não se consegue explicar.
Deus: o que é impossível de se dizer. No final do romance Uma aprendizagem

180
ou O livro dos prazeres, o recurso aos dois pontos que encerram o livro é fulcral
relativamente à concepção do texto e do mundo em Clarice Lispector. Onde se
lê a impossibilidade de dizer o que é Deus, também se há-de ler indicação pa-
ra a impossibilidade de encontrar um fim para o texto:

– Meu amor, você não acredita no Deus porque nós erramos ao


humanizá-Lo. Nós O humanizamos porque não O entendemos, então
não deu certo. Tenho certeza de que Ele não é humano. Mas embora não
sendo humano, no entanto, Ele às vezes nos diviniza. Você pensa que –
– Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafa-
da porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte: [...].

É sempre em nome de algum nome que se assina, que se reforça (se con-
tinua) o que um dia se procurou inventar com o acto assinante. Em toda a obra
que se constrói para dar corpo a um nome um dia inventado, em toda a obra,
de alguma forma, se reflecte o acto primeiro da denominação. Trata-se da pas-
sagem do testemunho (onde ecoa o nome do primeiro criador) e trata-se de o
repetir em nome de Deus. O manifesto desejo de encontrar o nome, dizer o no-
me e encontrar o que é próprio do nome equivalerá ao desejo de dizer e encon-
trar o que é próprio de Deus.
Num texto inédito, coligido por Olga Borelli, destaque-se um fragmen-
to sobre o nome:

Sou um objeto querido por Deus. E isso me faz nascerem flores


no peito. Ele me criou igual ao que escrevi agora: “sou um objeto que-
rido por Deus” e ele gostou de me ter criado como eu gostei de ter cria-
do a frase. E quanto mais espírito tiver o objeto humano mais Deus se
satisfaz.
Lírios brancos encostados à nudez do peito. Lírios que eu ofere-
ço e ao que está doendo em você.66

O desejo de chegar ao nome que em si aguardava o desígnio, a incum-


bência, é isso o que aqui se revela. Tudo retorna à criação e ao obsessivo gesto
que repete a criação. É-se eleito ou nasce-se incumbido; ou, então, simplesmen-

181
te a experiência do choque: a loucura é sempre outro modo de ver a face de
Deus. Como em Bergman (Em busca da verdade) ou em Tennessee Williams
(Bruscamente no verão passado), em Clarice o que torna o texto rasante dessa ex-
periência é o neutro, o “it”, o branco que vem da contemplação para dentro –
a experiência indizível “do Deus”. Ter sido criado como quando é escrita a fra-
se criadora – na repetição postula-se a impossibilidade de reproduzir “Deus”,
figura prototípica da criação.
Mas não será que toda a experiência poética ou toda a experiência lite-
rária em sua essencialidade não diz senão a incessante procura e a impossibili-
dade de contornar essa face?

Eu tinha medo da face do Deus, tinha medo de minha nudez fi-


nal na parede. A beleza, aquela nova ausência de beleza que nada tinha
daquilo que eu antes costumava chamar de beleza, me horrorizava. (A
paixão segundo G.H., p. 97).

A nudez final na parede, a ressurreição, o branco. É preciso morrer para


repetir o gesto, isto é, escrever o nome, a literatura. Por isso, em Clarice sem-
pre se repete: morri, morri.67 E se reescreve, em abismo, a frase criadora: “Ele
me criou igual ao que escrevi agora: ‘sou um objeto querido por Deus’ e ele gos-
tou de me ter criado como eu gostei de ter criado a frase”. Essas palavras lem-
bram a escultura de Rodin A mão de Deus ou a criação; aí é representada uma
mão que contém terra onde se vislumbra um ser humano a ser modelado. A
mão de Deus também emerge da terra, e toda a criação está contida nessa mão,
mas, ao mesmo tempo, no trabalho em formação não podemos deixar de ver o
lugar do escultor como criador da mão divina. É assim em abismo que em Cla-
rice Lispector se precipita a escrita: um infinito repetir do nome que fundamen-
ta a existência da coisa, isto é, a crença na literatura.
No início do ano em que Clarice viria a morrer, na única entrevista con-
cedida à televisão, a autora fala do nome:

É um nome latino, não é? Eu perguntei a meu pai desde quando


havia Lispector na Ucrânia […]. Eu suponho que o nome foi rolando,
rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando uma outra

182
coisa que parece essa coisa… “Lis” e “peito”, em latim. (Entrevista à TV
Cultura de São Paulo)

Tal como Jacques Derrida escreveu sobre Francis Ponge,68 também em


relação a Clarice se poderá dizer que ela faz da assinatura um texto inimitável.
O nome próprio inscrito no interior dos textos devém coisa. Ou ainda como o
filósofo disse acerca de outro nome francês – “En apparence, cédant à la Pas-
sion de l’Écriture, Genet s’est fait une fleur”69 –, de igual modo em Clarice a fi-
gura da planta que floresce no peito faz avultar o grau máximo da indecidibili-
dade. O sujeito ficcional não se distingue mais do sujeito empírico, o nome do
autor faz-se, enfim, corresponder ao nome da obra.
Muito antes, tudo havia sido predito; assim aconteceu: numa passagem de
Perto do coração selvagem uma reflexão sobre a identidade ficava à espera do que se
havia de ler acerca dessa flor no peito, acerca do encontro com o nome próprio.
Pedia-se que Deus brotasse do peito. As flores são evocadas um pouco antes:

Estou pronta. Fechar os olhos. Cheia de flores que se transformam


em rosas à medida que o bicho treme e avança em direção ao sol do mes-
mo modo que a visão é muito mais rápida que a palavra, escolho o nas-
cimento do solo para… Sem sentido. […] Fechar os olhos e sentir como
uma cascata branca rolar a inspiração. De profundis. Deus meu eu vos es-
pero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e
a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras
são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio sobre a parede escura.
Deus vinde a mim e eu não tenho alegria e minha vida é escura como a
noite sem estrelas e Deus porque não existes dentro de mim? (p. 194).

Mais tarde outros sinais anunciadores serão disseminados. Em Uma


aprendizagem ou O livro dos prazeres (p. 65), Lóri deixa-se cair na cama de bru-
ços e lembra-se então como o gesto é antigo: uma vez, deitara-se de bruços en-
costando o peito na terra:

A essa lembrança, que visualizou de novo, pensou que de agora


em diante era só isso o que ela queria do Deus: encostar o peito nele e

183
não dizer uma palavra. Mas se isso era possível, só seria depois de mor-
ta (p. 65).

Em A hora da estrela deparamos com um singular modo de apresenta-


ção do nome próprio: a reprodução da assinatura da autora. Antes de se ini-
ciar a narrativa propriamente dita, que em si mesma manifesta um efeito de
retardamento (no anúncio obsessivo da dificuldade de iniciar), impõe-se uma
paragem, uma atenção retardante, por via de dois recursos paródicos: uma “de-
dicatória do autor” e uma página com títulos. Nessa avulta o código técnico-
formal, no modo como se acumulam e se dispõem os 13 títulos justapostos,
de certa maneira evocando o dispositivo gráfico encontrado nas portadas de
alguns livros antigos; é a intercalar essa enumeração que surge o autógrafo de
Clarice Lispector.
O dispositivo que nesse livro graficamente destaca a assinatura faz com
que o nome adquira uma ressonância reveladora. Se, por um lado, se pode aí
descortinar uma função testemunhal, por outro, supõe-se nessa presença uma
função decifradora que vem corroborar o gesto desmitificador inscrito nos pa-
rênteses da “Dedicatória do autor”. Talvez seja esse o aspecto mais relevante des-
sa colagem. A assinatura aparece como o culminar de um processo de auto-re-
velação que se entrevê ao longo do percurso literário de Clarice Lispector.
Impõe-se nesse propósito o forte pendor metadiscursivo que impregna os seus
últimos textos, e A hora da estrela é uma das narrativas onde mais se faz notar
a atenção concedida ao próprio processo criador.
A reprodução da assinatura, numa página que constitui toda ela um par-
ticular recurso expressivo, também não deixa de estar próxima dos procedimen-
tos de que algumas poéticas modernistas e vanguardistas fizeram uso. O recurso
não poderia passar despercebido, e a crítica anotou tal facto. Hélène Cixous, que
num ensaio sobre esse livro releva a importância da questão da autoria, após su-
blinhar o facto de a assinatura aparecer a seguir ao título “O direito ao grito”,
acrescenta que, “num certo sentido, Clarice é o grito do texto”; a assinatura apa-
rece em vez do “ou” que marca a possibilidade de troca entre equivalentes.70
Contudo a estranheza que poderá causar o aparecimento dessa assinatura
na página cheia de títulos dissolver-se-á depressa quando se prestar alguma aten-
ção aos sinais que, no trajecto da autora, directa ou despercebidamente, vão apon-

184
tando para a revelação do nome. A paixão segundo G.H., que a diversos títulos
constitui um nó, inevitável ponto de chegada e paragem, acusa uma preocupação
nunca levada tão longe no sentido de um caminho que se abre a um autocentra-
mento reflexivo que é simultaneamente ponto máximo na dialéctica oculta-
ção/desvelamento. Caminho que conduz à revelação dos lugares da coincidência
ou do ajustamento dos nomes. Acerca desse livro, Eduardo Prado Coelho faz no-
tar a discrição de uma invisibilidade reveladora: “Um sismo silencioso, que pro-
duz uma radical viagem sem regresso […]. Tudo o que veio depois estava já an-
tes, desde Perto do coração selvagem. Mas esse antes só se tornou visível no pleno
jogo das suas implicações porque um depois o veio re-citar numa voz arriscada-
mente inaudita”.71 Essas implicações vão passar pelos mínimos sinais referidos e
que, por exemplo, no paratexto parecem estar antes da “re-citação”. Os livros de
contos (excetuando A via crucis do corpo), os infantis e ainda o segundo roman-
ce, O lustre, não apresentam nenhuma epígrafe. Todas as outras ficções compor-
tam paratextos epigráficos. Consideremos uma quase excepção que passaremos a
justificar: A hora da estrela. Nesse livro podemos dizer que os recursos atrás men-
cionados – a página com os títulos e a “Dedicatória do autor” – preenchem au-
to-reflexivamente as funções propostas pelas díades (epígrafe/nota explicativa) dos
outros livros. É com A paixão segundo G.H. que pela primeira vez a autora colo-
ca um “aviso” antes da epígrafe: “A possíveis leitores”. Tornaremos a encontrar
uma “Nota” em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, uma “Explicação” em
A via crucis do corpo e ainda, num livro infantil, O mistério do coelho pensante 72,
também uma explicação para os adultos que venham a ler o texto às crianças. Sus-
pendamos aquilo para que a dimensão paratextual dessas notas mais imediata-
mente aponta: o efeito perlocutivo, a seta que pretende atingir o leitor visado. No
circuito comunicacional atente-se no próprio locutor, no modo como se detém a
demarcar-se em sua função autoral e no lugar que lhe é reservado. Aí mesmo in-
teressa sublinhar um traço – a marca do reconhecimento, a marca pela qual o alo-
cutário identifica o enunciador nas duas iniciais de um nome. A regularidade (ou
banalidade) de um procedimento dessa ordem suscitará alguma atenção: levará o
leitor a atentar no modo como na primeira nota em que nos seus livros Clarice
Lispector se dirige “a possíveis leitores” com as iniciais C.L., convoca o exemplo
de uma personagem, produzindo-se um efeito de coincidência de nominação. A
personagem é, também ela, chamada pelas iniciais de um nome, G.H.: “A mim,

185
por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil;
mas chama-se alegria. //C.L.”. Poder-se-ia aventar a hipótese, decerto prematura,
de que uma primeira reversibilidade se desencadearia. Na explicação de G.H. pa-
ra o seu nome escutar-se-ia em eco a explicação, atrás ouvida, para as iniciais ins-
critas na portada:

O resto era o modo como pouco a pouco eu havia me transforma-


do na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome. É sufi-
ciente ver no couro de minhas valises as iniciais G. H., e eis-me (p. 24).

Ettore Finazzi Agrò, a partir do confronto com o romance do italiano


Guido Morselli, Dissipatio H.G., encontra afinidades que lhe permitem en-
trar numa interpretação da provável cifra contida nas iniciais do título do ro-
mance da escritora brasileira. Segundo chave encontrada no interior do pró-
prio romance do italiano, o H.G. estaria por Humani Generis. Daí facilmente
se chegar à hipótese de G.H. como Gênero Humano – o que se sustentaria
pelo marcado “desejo de abstracção do ‘particular’” manifestado pela perso-
nagem G.H. logo no início do romance.73 As iniciais G.H. se, por um lado,
poderiam restituir a insondabilidade da origem, constituiriam igualmente re-
cusa “da (hiper)denominação” e da “identidade clássica consignada no nome
próprio”.74 De certo modo também em Um sopro de vida se poderia encon-
trar uma chave para a interpretação do G.H. do título do outro livro: “Só
uma coisa me liga a Ângela: somos o gênero humano” (p. 100). Mas Finnaz-
zi Agrò vai mais longe ao apresentar um curioso trânsito argumentativo em
que propõe a leitura das iniciais G.H. a partir das iniciais do nome próprio
(C.L.). Pretende-se a redefinição de uma lógica causal que levaria a interpre-
tar as letras de acordo com uma simples derivação unidireccional dos nomes
nelas implicados. O estudioso italiano apresenta então uma proposta bidi-
reccional de leitura: se na personagem G.H. se pode encontrar um produto
de C.L. (Clarice Lispector), também não se poderá negar que esta é um pro-
duto do “Género Humano”.75 Dir-se-á que, se G.H. é Clarice, Clarice é G.H.
A análise “criptográfica” do diagrama confirma, na opinião de Finnazzi Agrò,
“a dupla projecção (do nomen ao genus e vice-versa) nele ocultada”. A nuclea-
ridade das letras contíguas G.H. aparece confirmada pela posição que ocu-

186
pam na ordem do abecedário. É com um salto de três letras que se chega de
C.L. a esse núcleo.
À volta do texto irão colocar-se problemas que, afinal, repetem os movi-
mentos de ocultação/revelação presentes em diversos níveis no interior da obra
e que desembocam na questão da identidade. “A assinatura ganha-se ou perde-
se ao tornar-se coisa?” Derrida coloca a questão a propósito de Ponge falando
daquilo que no nome e na poesia leva à coisa.76 “É preciso que ao mesmo tem-
po a assinatura permaneça e desapareça…” 77

Revelação

As linhas do percurso conduzem ao lugar em que a verdade só existe sob a


forma de ficção, em que a verdade é um testemunho ficcionalizado da experiência
“autobiográfica”. As questões levantadas em torno da identidade – a busca e a re-
velação do nome – implicam um incessante cuidar da imagem de si, um auto-re-
trato que pressupõe uma mediação. Fale-se de um relativismo constitutivo, inaca-
bamento essencial à visão mais aprofundada do eu. Olhando para a obra de Clarice
no seu conjunto, pode observar-se o desenho perspectivístico que se dá a ver: da
ocultação do eu, em movimentos de denegação, que não apontam propriamente
para o anular da instância da subjectivação, à assunção do eu. Do outro ao eu e do
eu ao outro, esses dois movimentos direccionam-se para zonas complementares e
decisivas. De um modo mais ou menos esquemático, dir-se-á que quando, no iní-
cio da sua produção, vem falar do outro, tenta compreender o eu e a escrita e, quan-
do, em fase posterior, fala da própria escrita e do eu, tenta compreender o outro.
Esfíngica, não pára de interrogar. O leitor não deixa jamais de se deparar
com o reflexo da personagem, talvez a mais verdadeira, interferindo na vida da
escritora, devindo a própria escrita. Ou melhor, a autora devindo personagem a
partir da projecção de si na escrita. No romance, lemos: “Teu rosto, Lóri, tem
um mistério de esfinge: decifra-me ou te devoro” (Uma aprendizagem ou O livro
dos prazeres). Nas crónicas, tão próximas relativamente ao resto da obra, o teste-
munho da autora, ela mesma: “Vi a Esfinge. Não a decifrei. Mas ela também
não me decifrou. Encaramo-nos de igual para igual. Ela me aceitou, eu a acei-
tei. Cada uma com o seu mistério”.78 “A Esfinge me intrigou: quero defrontá-la

187
de novo, face a face, em jogo aberto e limpo. Vou ver quem devora quem. Tal-
vez nada aconteça. Porque o ser humano é uma esfinge também e a Esfinge não
sabe decifrá-lo. Nem decifrar a si mesma.”79 Muito se especulou, sobretudo a par-
tir do que a autora não disse, adensando-se o lugar do enigma que alimenta o
próprio enigma, acabando por se dar acolhimento à imagem que preserva a pró-
pria estranheza consentida. Será uma espécie de linha de destino a “incumbên-
cia” que procura aprofundar enquanto escritora: decifrar o enigma por si pró-
prio construído. Drummond falou em “mistério” no poema que escreveu para a
homenagear na sua morte (in Tempo Brasileiro, n. 51, outubro-dezembro de
1977). Essa é uma palavra repetida vezes sem conta quando se fala de Clarice,
palavra que começa por vir colada ao nome e se propaga com o chamar-se her-
mética à escrita, isto é, aquilo que em grande parte vem de os não-leitores só lhe
conhecerem o nome depressa tornado lugar de mito. Mas chegam depois os lei-
tores, e entre eles os críticos, que validam e “perpetuam” o tópico. Se muitas ve-
zes a autora propõe uma afirmação desmistificadora de sabor caeiriano, ao mes-
mo tempo não deixa de alimentar uma curiosa tópica do enigma. Vemos assim
a Clarice Lispector jornalista que aproveita uma ocasião enquanto entrevistado-
ra para esclarecer o que na imprensa fora dito acerca de “sua” prática de escrita
“em transe”: “Lamento muito, mas sou um pouco mais saudável do que inven-
tam. Meu mistério é não ter mistério”.80 Em outra ocasião, enquanto entrevista-
da, deixa que se propague a imagem que circula: “Sou muito exigente comigo
mesmo… Sou meio misteriosa, também. Eu escrevo uma coisa e anos depois é
que vou vivenciar, realmente, aquela coisa. Aí já está escrito faz muito tempo…
Não sei explicar, porque… Você me acha hermética?”.81 Tendo zelosamente cui-
dado a sua imagem, a tentativa de se converter em si própria revela o modo co-
mo nessa imagem se expõe a apuradíssima consciência criadora. Um retrato de
escritora por si forjado estará sempre interferindo na forma como nos aproxima-
mos da sua obra – à literatura também se pode chegar por um arrolar de impres-
sões que encenadamente apresentam a figura.
A pregnância icónica da pose dá guarida a todos os lugares-comuns que
alimentam a possibilidade do indecifrado. Estrangeira de si mesma, ela que se
viu a lançar confusões em torno da própria origem – dissolvendo rastos e crian-
do pistas –, no fim, revela ou oculta? A inclinação do rosto erguido para a som-
bra, a altivez com que cerra os olhos nos retratos enquanto jovem têm a mes-

188
ma força da beleza dramatizada que marca o rosto dos últimos anos. O mesmo
fogo move o rigor da máscara – das máscaras de todas as personagens criadas –,
um arder fundo e escuro, para que algum lugar encontrado dentro de nós o de-
tecte. A travessia da noite torná-la-á parte da própria noite à medida que se iden-
tifica com as atmosferas intervalares em inesperadas descobertas da natureza hu-
mana. Acercamo-nos de um modo de reconhecer, de procurar o
reconhecimento recriando um retrato a partir da fotografia inexistente, naqui-
lo que, como a entrelinha, poderia ser a imagem da sua literatura: entre a noi-
te e o dia, o rosto é o crepúsculo da manhã. No inconcluso livro póstumo, uma
das personagens é chamada pelo nome de “Autor”. Poder-se-ia ver nessa figura
uma presença hipostasiada da criação, mas Um sopro de vida não apresenta ape-
nas um criador em diálogo com a figura criada, também a figura criada apare-
ce enquanto ser potencialmente criador de um livro, um inacabado livro de
fragmentos. Fala o “Autor”: “Escusado dizer que Ângela nunca vai escrever o
romance cujo começo todos os dias ela adia. Não sabe que não tem capacida-
de de lidar com a feitura de um livro. Ela é inconseqüente. Só consegue anotar
frases soltas”.82 Segue-se um anúncio e a tentativa de elaboração do livro por
parte de Ângela. À volta dessa personagem, no diálogo com o seu criador, ex-
primem-se importantes considerações no sentido do movimento que na obra
de Clarice conduz a uma forte afirmação do nome. Não sem que nessas falas se
gere, à superfície, um jogo tensivo que, mesmo quando se proclama um apa-
rente distanciamento despersonalizador, acaba por ser dialecticamente recondu-
zido à referida auto-afirmação. A substantivação do nome próprio (“Nunca dei
certo escrevendo. Os outros são intelectuais e eu mal sei pronunciar meu lindo
nome: Ângela Pralini. Uma Ângela Pralini?”, p. 54) ou a coisificação do ser
(“Me coisificam quando me chamam de escritor. Nunca fui e nunca serei. Re-
cuso-me a ter papel de escriba no mundo”, p. 94) traduzem uma recusa da en-
tidade “escritor” enquanto personalidade que está de fora, enquanto demiurgo
que quer comandar e reescrever o mundo. No entanto, também não é a partir
de um apagamento que se escreve a obra de Clarice Lispector; o autor está do
lado em que amanhece a personagem, isto é, da própria escrita e do “devir-es-
crita”. Apesar de escrever dentro da noite, abrigada pelas forças nocturnas, a in-
quietação que a domina é ímpeto vitalista. Na última página lemos na voz de
Ângela: “– Está amanhecendo: ouço os galos. Eu estou amanhecendo” (p. 162).

189
Carlos Mendes de Sousa é professor de literatura brasileira na Universidade do Minho. Seu livro
Clarice Lispector – Figuras da escrita recebeu, em 2000, o “Grande Prémio de Ensaio Literário”
da Associação Portuguesa de Escritores/Portugal Telecom. Co-diretor da revista de poesia Relâmpa-
go, escreveu também A metáfora em Eugénio de Andrade (Coimbra: Almedina, 1992).

NOTAS

1 Assim se lhe referiu Sérgio Milliet, e é a própria Clarice quem o lembra em entrevista à TV Cultura de São Paulo, realizada em feverei-
ro de 1977 e transmitida em dezembro desse ano.
2 Rio de Janeiro: A Noite, 1943.
3 SEVERINO, Alexandrino E. “Clarice Lispector”. In: SOLÉ, Carlos A. e ABREU, Maria Isabel (ed.). Latin american writers. Nova York: Char-
les Scribner’s Sons, v. 3, 1989, p. 1.304.
4 BRASIL, Assis. Clarice Lispector: ensaio. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1969, p. 58.
5 Rio de Janeiro: Agir, 1946.
6 Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1961.
7 Apud FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Eu sou uma pergunta – Uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 165.
8 In: BORELLI, Olga. Clarice Lispector – Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 119.
9 Escrever. Lisboa: Difel, 1994, p. 39.
10 Cf. RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. Porto Alegre: Glo-
bo, 1953, p. 22.
11 CAMPOS, Haroldo de. “Prefácio”. In: SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis/Lorena: Vozes/Faculdades Integradas Tere-
sa D’Ávila, 3. ed., 2000, p. 17.
12 LISPECTOR, Clarice. “Literatura de vanguarda no Brasil”. In Movimientos literários de vanguardia en Iberoamérica. México: Memoria del
11.º Congreso/Univ. de Texás/Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 1965.
13 PALEY, Grace. “Introduction”. In Soulstorm. Stories by Clarice Lispector. Nova York: New Directions, 1989, p. IX.
14 Ibidem.
15 São Paulo: Limiar, 2002, p. 27.
16 Ibidem, p. 60.
17 FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Op. cit., p. 43.
18 VARIN, Claire. Línguas de fogo. Ensaio sobre Clarice Lispector. São Paulo: Limiar, 2002, p. 27.
19 Ibidem, pp. 57-8.
20 Cf. FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Op. cit., p. 229.
21 Ibidem.
22 Belo Horizonte: Estado de Minas, 11.05.68.
23 In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 134.
24 Ibidem.
25 Ibidem, p. 135.
26 Cf. entrevista gravada para o Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, em 20 de outubro de 1976.
27 Assinale-se o registo de notícias saídas nos seguintes jornais: A Manhã (Rio de Janeiro), 13 de outubro de 1944; A Manhã, 14 de ou-
tubro; Correio da Noite (Rio de Janeiro), 14 de outubro de 1944; A Manhã, 15 de outubro; Jornal do Commercio (Recife), 17 de ou-
tubro; Diário de Pernambuco (Recife), 18 de outubro; Estado da Bahia (Salvador), 18 de outubro; Folha Carioca (Rio de Janeiro), 18
de outubro; O Estado de S. Paulo, 19 de outubro de 1944; Diário (Belo Horizonte), 21 de outubro de 1944.
28 Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960.
29 Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.
30 Cf. A Manhã de 13 e de 15 de outubro e ainda A Folha Carioca de 18 de outubro.
31 Atente-se a esse propósito no que dissera Lêdo Ivo no texto publicado na Folha do Norte (Belém) a 26 de janeiro de 1944: “Dirão que
falta a Clarice Lispector um senso de objetividade e de reportagem que para muitos constitui uma das qualidades básicas do romance.
Mas não é um romance de costumes, não tem boto do Amazonas ou pé de goiaba como personagens principais”.
32 Veja-se uma espécie de mapa das datas de publicação dos textos rastreados, para além dos textos de Sérgio Milliet, de Álvaro Lins e de
Antonio Candido (em relação às leituras feitas por esses críticos ver a excelente síntese apresentada por Olga de Sá. In A escritura de
Clarice Lispector. Petrópolis/Lorena: Vozes/Faculdades Integradas Teresa D’ Ávila, 3. ed., 2000). 1943 – Adonias Filho (“Perto do co-
ração selvagem”, Folha do Norte, 31.12). 1944: janeiro – Lêdo Ivo (“O país de Lalande”, Folha do Norte, 26.01); Guilherme Figueire-
do (“O sentimento da palavra”, Diário de Notícias, 23.01) Breno Accioly (“Um romance selvagem”, O Jornal, 30.01); fevereiro – Di-
nah Silveira de Queiroz (“A verdade na república das letras”, Jornal de Alagoas, 27.02 – Cf. referências na conversa com Edgar Proença:
“Um minuto de palestra…”, Estado do Pará, 20.02); Lauro Escorel (“Perto do coração selvagem”, Diário da Bahia, 9.02); março – Rei-
naldo Moura (“Clarice Lispector”, Correio do Povo, 23.03); Dirceu Quintanilha (“Clarice Linspector [sic] e um monumento do passa-
do”, Dom Casmurro, 11.03); Lúcio Cardoso (“Perto do coração selvagem”, Diário Carioca, 12.03) Eliezer Burlá (“Perto do coração sel-
vagem”, O Jornal, 31.03); abril – Luiz Delgado (“Uma alma diante da vida”, Jornal do Commercio, Recife, 22.04); maio – Otávio de

190
Freitas Júnior (“Perto do coração selvagem”, A Manhã, 13.05); agosto – Martins de Almeida (“Perto do coração selvagem”, O Jornal,
Rio de Janeiro, 06.08); Óscar Mendes (“Um romance diferente”, O Diário, Belo Horizonte, 06.08); setembro – Ary Andrade (set. 44).
33 Cf. textos de Óscar Mendes , “Um romance diferente”, O Diário, Belo Horizonte, 6 de agosto; de Lauro Escorel, “Perto do coração
selvagem”, Diário da Bahia, 9 de fevereiro; Martins de Almeida, “Perto do coração selvagem”, O Jornal, Rio de Janeiro, 6 de agosto.
34 Rio de Janeiro: José Álvaro, Editor, 1964.
35 Ibidem, p. 139.
36 Cf. as declarações em entrevista ao Diário Carioca, no ano de 1950, citadas por Paulo Mendes Campos (Perto de Clarice. Rio de Janei-
ro: Casa de Cultura Laura Alvim/Oficina Literária Afrânio Coutinho, 1987).
37 A esse respeito vejam-se as cartas enviadas por Fernando Sabino a Clarice datadas de 6 de maio de 1946 e de 6 de julho de 1946 (Ar-
quivo Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa).
38 In Arquivo de Clarice Lispector. Fundação Casa de Rui Barbosa.
39 Noutras carta dirigidas a Lúcio Cardoso podem ler-se esses anseios. Veja-se em especial a carta enviada de Nápoles a 7 de fevereiro de 1945.
40 Cf. entrevista concedida ao Correio da Manhã, em 5 e 6 de março de 1972.
41 Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
42 In: BORELLI, Olga. Op. cit., p. 136.
43 Rio de Janeiro: Sabiá, 1969.
44 “Clarice Lispector” - Entrevista concedida a Jurema Finamour e publicada no Jornal de Letras. O artigo de Nelson Coelho referido na
entrevista foi publicado no Jornal do Brasil de 20 de agosto de 1960.
45 Entrevista a O Pasquim, 03.07.74.
46 Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
47 Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973, p. 44.
48 Cf. GOTLIB, Nádia Battella. Clarice – Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995. Ver o subcapítulo com o nome “Clarice quase na
Manchete”, pp. 294-298; ver também NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector “jornalista” (dissertação de mestrado). São Paulo, Fa-
culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1991 (texto policopiado); ver o subcapítulo intitula-
do “A questão do pseudônimo”, pp. 235-240.
49 In A Descoberta do Mundo, p. 20.
50 Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1978.
51 Ibidem, pp. 32-3.
52 In Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 58.
53 São Paulo: Limiar, 2002, p. 68.
54 Conto incluído em Laços de família, pp. 43-62.
55 In A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1961, p. 127.
56 In Para não esquecer, p. 97.
57 Rio de Janeiro: Paz e Terra, 4. ed., 1976, p. 125.
58 In Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Sabiá, 3. ed., 1969, p. 23.
59 Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
60 In A descoberta do mundo, pp. 579-580.
61 As palavras que Lóri escreve sobre a noite, durante a noite, correspondem a um dos primeiros textos da produção jornalística de Cla-
rice, publicado no jornal Letras e Artes de 22.01.50, e que aí recebia o título de “Noite na montanha”.
62 “A partida do trem”. In Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 48.
63 Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
64 In Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 102.
65 Esse fragmento encontra-se nos manuscritos reproduzidos em VARIN, Claire. Clarice Lispector et l’esprit des langues. Montreal: Univer-
sité de Montreal (texto policopiado), 1986; anexos, p. 206; Olga Borelli coligiu-o em Clarice Lispector – Esboço para um possível retra-
to, omitindo a partícula “de”.
66 In Clarice Lispector – Esboço para um possível retrato, p. 61.
67 Cf. O lustre, p. 128; “Brasília”, Para não esquecer, pp. 41-2; “O homem que apareceu”, A via crucis do corpo, p. 51; “O relatório da coi-
sa”. Onde estivestes de noite, p. 86; ver também entrevistas: O Globo, 24 de abril de 1976 e entrevista à TV Cultura de São Paulo.
68 In Signéponge. Paris: Seuil, 1988.
69 DERRIDA, Jacques. Glas. Paris: Denoël/Gonthier, 1981, p. 17.
70 In Reading Clarice Lispector. Minneapolis: University of Minnesota, 1990, p. 146.
71 In A noite do mundo. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p. 210.
72 Rio de Janeiro: José Álvaro, 1967.
73 In Apocalypsis H.G.: Una lettura intertestuale della Paixão segundo G.H. e della Dissipatio H.G. Roma: Bulzoni, 1984, p. 16.
74 Ibidem, p. 21.
75 Ibidem, p. 22.
76 In Signéponge. Paris: Seuil, 1988, p. 27.
77 Ibidem, pp. 48-9.
78 In A descoberta do mundo, p. 549.
79 Ibidem, pp. 645-646.
80 In De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 199.
81 In Correio da Manhã, 05.03.72.
82 Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 99.

191
Bestiário
Silviano Santiago

Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias.
Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso responder
senão ficando desassossegada. É o chamado.

Clarice Lispector, “Bichos”.1

– [...] Deixe ver os olhos, Capitu.


Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana
oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada
sabia, e queria ver se podiam chamar assim.

Machado de Assis, Dom Casmurro.2

Como meio para a conservação do indivíduo, o intelecto desenvolve suas


forças mestras na dissimulação [Verstellung]; pois ela é o meio de que se valem os
indivíduos mais fracos e menos robustos para se conservarem. A eles está vedado
travar uma luta pela existência com chifres ou mandíbulas de presas aguçadas.

Friedrich Nietzsche, “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”.3

No dia 13 de julho de 1941, bem antes de estrear como a extraordiná-


ria escritora que viria a ser, Clarice Lispector envia de Belo Horizonte, aonde
fora em férias escolares, carta a Lúcio Cardoso: “Eu pretendia chorar na viagem,
porque fico sempre com saudade de mim. Mas felizmente sou um bom animal
sadio e dormi muito bem, obrigada”.4 O bem-estar da viajante advém da saudá-
vel condição animal do ser humano. A animalidade imuniza a pessoa contra os
sentimentos melosos e piegas, como o choro e a saudade, enrijecendo-a e levan-
do-a ao repouso na imobilidade da viagem de trem e ao sono reparador do can-

192
saço. Ao entremear o tempo com o sono pela metáfora da experiência animal,
Carlos Drummond de Andrade, no poema “Boitempo”, do livro homônimo5,
conseguiu surpreender a condição humana adormecida: “No gado é que dor-
mimos / e nele que acordamos.”
Pulemos para o parágrafo seguinte da carta. Nele a imagem da assimila-
ção pelo ser humano do ser animal reaparece no instante em que se substitui o
olhar que se volta sobre si (percepção subjetiva) pelo olhar dos habitantes da ci-
dade (percepção objetiva), que passa a ser o responsável pela segunda imagem
do sujeito. A segunda percepção da viajante sobrepõe à imagem do animal sa-
dio, já bem instalado e passeando pela cidade de destino, a máscara de selvagem.
Continuemos a leitura da carta: “As pessoas daqui [de Belo Horizonte] me
olham como se eu tivesse vindo direto do Jardim Zoológico. Concordo intei-
ramente”. O animal sadio que perambula pelas ruas vem do isolamento e da
jaula. A metamorfose do animal sadio em animal selvagem, produto da percep-
ção de outrem, é marca singular da estranheza causada pela estudante de direi-
to entre os bem-avisados. A moça esquisita se destaca na multidão. Tinha vivi-
do sozinha na hospedaria especial que as metrópoles edificam para abrigar os
estranhos e estrangeiros animais selvagens – o jardim zoológico. O estranho ani-
mal da esquina – para aludir ao título de um romance de João Gilberto Noll,
O quieto animal da esquina 6, visivelmente soprado por Clarice – aparenta qual-
quer coisa que o subtrai da condição comunitária e causa espanto público. Ele
guarda algo de tão secreto, que só o silêncio revela. É este que ameaça os popu-
lares e os agride.
O querer ser escritor singulariza o indivíduo como animal humano e a
comunidade se fecha para estigmatizá-lo como animal selvagem. Em viagem de
férias a Minas Gerais, a jovem Clarice concorda.
Nosso interesse é o de mostrar como a dupla metamorfose por que pas-
sa o ser humano na carta vai se tornar uma constante nos textos ficcionais de
Clarice Lispector, em particular nos textos que classificaremos de curtos. Com
o correr dos anos, a metamorfose irá adquirindo tonalidades simbólicas e ale-
góricas, dignas de uma das mais altas literaturas produzidas no Brasil. Compe-
te ao leitor perseguir metamorfoses e tonalidades, explicitá-las, diferenciá-las,
analisá-las e interpretá-las. Antes de avançar nas questões específicas, aclaremos
que a expressão “texto curto” será usada para dar conta do corpus clariciano a

193
ser estudado. Justifiquemo-nos. A partir dos anos 1920, com Mário de Andra-
de (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954), e a partir dos anos 1940,
com Clarice Lispector e Guimarães Rosa (1908-1967), as subdivisões tradicio-
nais do gênero ficcional (romance, novela, conto, crônica) foram contestadas
de maneira radical. Tenhamos como exemplo e referente o célebre dito de Má-
rio, que abre para a anarquia formal a definição de conto: “[...] em verdade,
sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto”.7 Essa é
a razão pela qual será evitada neste trabalho a discussão sobre as rubricas tradi-
cionais. Julgamos conveniente substituí-las pelo conceito de texto curto, que ser-
virá para acolher indistintamente conto, crônica e anotação breve, diferenciando-
os apenas do texto longo, ou seja, do que é qualificado tradicionalmente de
romance ou novela. Acrescentemos que a palavra texto não é modismo. Ela se
impôs a partir do momento em que foram sendo descartadas as configurações
clássicas dos gêneros literários.
Voltemos às duas formas de metamorfose pinçadas na carta. De manei-
ra ainda incipiente, adiantemos que a automodelagem8 do ser humano como
animal (“ter os olhos para dentro”) aponta para (aponta para, e não determina)
o caminho do apaziguamento interior, o sossego do ser no mundo. É sinal de
vida despreocupada e plena, como se lê: “Nada tinha a fazer no mundo. Senão
viver como um gato, como um cachorro”.9 De maneira também incipiente,
adiantemos que a modelagem do ser humano como animal selvagem – monta-
da pela perspectiva do olhar alheio, que transforma o “único num anônimo” –
anuncia a iminência do conflito interpessoal em virtude do constrangimento,
que se ergue como muralha entre pares. É sinal de morte à vista ou de suicídio.
Ao companheiro que quer retirá-la à força do reino animal, onde vive feliz, e
trazê-la para o universo da lucidez racional, confessa a esposa: “Eduardo! Exis-
te um mundo de cavalos e cavalas e vacas, Eduardo, e quando eu era uma me-
nina cavalgava em corrida num cavalo nu, sem sela! Eu estou fugindo do meu
suicídio, Eduardo. Desculpe, Eduardo, mas não quero morrer”.10
Em última instância, a condição animal do ser humano e a sua recípro-
ca (a condição humana do animal) são dois dos pilares de sustentação da viga
mestra do pensamento de Clarice Lispector – a reflexão dramática sobre os per-
calços da vida intensamente vivida e do risco apavorante da morte. No entan-
to vida e morte não são temas literários restritos unicamente à natureza huma-

194
na. Deixam-se recobrir pela variadíssima gama de experiências comuns a todos
os seres vivos. Talvez ajude acrescentar que o universo fabulado por Clarice se-
ja o oposto do “humanitismo”, tal como concebido por Machado de Assis pa-
ra compor o ideário de Quincas Borba: “Humanitas, dizia ele, o princípio das
coisas, não é outro senão o mesmo homem repartido por todos os homens”.11
Outras comparações do texto de Machado com o de Clarice se fariam úteis. Ci-
temos a longa viagem de Brás Cubas, montado num rinoceronte, à origem da
espécie humana, viagem que poderá ser contrastada com as duas crônicas inti-
tuladas “Bichos”, de onde extraímos a epígrafe do presente trabalho. Por en-
quanto, façamos Clarice parodiar Machado e, por ricochete, o pensador fran-
cês Blaise Pascal (1623-1662): não é privilégio do homem, o animal sabe
também que tem fome e que morre.
À semelhança do que foi narrado na carta de 1941, sucedem-se com fre-
qüência no texto ficcional de Clarice os processos de automodelagem do huma-
no como animal doméstico e de modelagem dele como animal selvagem (pelo
olhar alheio ou pelo próprio olhar). Muitas vezes os vários processos se aproxi-
mam e se confundem. A recíproca também acontece. Também se sucedem com
freqüência e se confundem os processos de automodelagem e modelagem do ani-
mal doméstico ou selvagem como humano. Um exemplo da recíproca pode ser
retirado de duas frases consecutivas do conto “A partida do trem”, referentes ao
cão chamado Ulisses: “Se fosse vista a sua cara sob o ponto de vista humano, se-
ria monstruoso e feio [modelagem]. Era lindo sob o ponto de vista de cão [auto-
modelagem]”.12 A ascendência humana é predeterminada pela nossa linhagem
animal, embora não esteja exclusivamente circunscrita por ela. Por sua vez, o ho-
mem redimensiona a vida dos animais a partir dos seus próprios pontos cardeais.
No universo ficcional de Clarice não há como deixar de observar três
constantes dentro do tópico escolhido. Primeira. O “destino” de mão dupla per-
corrido pelas formas de metamorfose do humano em animal e do animal em
humano – os seres caminham em direção ao futuro, remontando ao passado
mais remoto. Segunda. As ambigüidades significativas se passam nas fronteiras
dos reinos biológicos e por isso podem ser comuns a humanos e animais. Ter-
ceira. A instabilidade emocional do ser humano e do ser animal, quando se ba-
nham nessas margens fluidas. A lembrança de leituras de outros autores pode
aguçar a nostalgia primeva e a pertinência do desassossego clariciano no presen-

195
te. Em sua única viagem ao Novo Mundo (1909), ao avistar do convés do na-
vio a silhueta de Nova York ao fundo, Sigmund Freud (1856-1939) definiu tan-
to o saber de que os psicanalistas se serviriam para modelar o ser humano quan-
to o modo como os automodelados seriam encarados pela sociedade
norte-americana. Segundo o biógrafo Ernest Jones, ele teria dito que os norte-
americanos não sabiam que o visitante lhes trazia a peste.
De volta à jovem Clarice. Saltemos dois anos e meio de suas referidas fé-
rias universitárias, estamos nos últimos meses de 1943. Ao propor à autora o tí-
tulo Perto do coração selvagem para o romance de estréia, Lúcio Cardoso estaria
desentranhando-o da sua erudição literária, ou da bela amizade que os unia?
Duas décadas mais tarde, Clarice não lhe teria respondido com a mesma moe-
da ao apelidá-lo de “corcel de fogo”?13 A generosa imaginação de Lúcio Cardo-
so não teria sido preparada e condicionada pelas cartas que recebera de Clarice
e pelo diálogo que com ela mantinha? Ao ler no original o notável romance do
irlandês James Joyce – Retrato do artista quando jovem (1916), cuja tradução só
seria publicada pela prestigiosa Editora Globo em 1945 –, Lúcio não teria su-
blinhado, como muitos de nós fazemos, uma frase e anotado na margem: “É a
cara da Clarice?” A proposta de título não teria sido um truque de marketing
(como se diria hoje)? Pelo sim e pelo não, transcrevamos a frase tomada de em-
préstimo ao romance de Joyce, porque ela ultrapassou o título do livro de es-
tréia de Clarice. Tornou-se epígrafe do mesmo e agora nos serve de porta de
acesso à leitura do texto curto: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto
do coração selvagem da vida”.14
Não passa despercebido na citação o aglomerado de três dos mais salien-
tes temas da ficção de Clarice: a solidão, a liberdade e a felicidade. O todo nos foi
oferecido por Joyce como que envelopado pelo amor feroz à vida. Entre as últi-
mas frases de Retrato do artista quando jovem, lá está: “Sê bem-vinda, ó vida!”
(“Welcome, oh Life! ”)15 A experiência dos três sentimentos fortes – termina por
nos dizer a epígrafe – avizinha o ser humano do coração selvagem da experiência.
Ao sugerir que Lúcio Cardoso tenha retirado de dentro da grafia-de-vi-
da de Clarice a frase de Joyce para título e epígrafe do livro de estréia, uma vez
mais estou tentando mostrar como no comércio a varejo das letras a reviravolta
temporal – estratégia de leitura necessariamente acronológica – desafia tanto a
autoridade do autor quanto a da história da literatura. O duplo desafio tem o

196
fim de criar um amplo e amigável clube fechado, em que melhor se elucidam
e se entendem movimentos que, durante os Oitocentos e nos resquícios do co-
lonialismo europeu, foram fomentados pela avareza dos conceitos de fonte e in-
fluência (ver, de minha autoria, “O entre-lugar do discurso latino-americano” e
“Eça, autor de Madame Bovary”, ensaios incluídos em Uma literatura nos trópi-
cos16). No presente caso, a sugestão ganha força se detectarmos uma insinuação
irônica a James Joyce no já mencionado “A partida do trem”, cujo cenário fer-
roviário, aliás, repete a ambientação que deu origem à carta de 1941.
No conto, o cachorro da jovem viajante Ângela se chama Ulisses e, na
percepção da esposa, o animal é a metáfora da vida e da beleza masculinas, me-
táfora que serve de contraponto balsâmico e nobre ao lúcido e destrutivo Eduar-
do, o companheiro que está sendo abandonado. Por incompatibilidade de gê-
nios, Ângela enjeita Eduardo. Intelectualizado ao extremo, o companheiro
chega ao ponto de ouvir música com o pensamento. Pensa Ângela durante a
viagem de trem: “Viver é ser como o meu cachorro”, e logo acrescenta: “Ulis-
ses [o cachorro] não tem nada a ver com Ulisses [o personagem] de Joyce. Eu
tentei ler Joyce, mas parei porque ele era chato, desculpe, Eduardo”.
Em toda sua plenitude de solidão, liberdade e felicidade, na ficção de
Clarice a vida é animal e humana, pulsa, move-se e é selvagem. Pulsa e quer
continuar pulsando, move-se e quer continuar movendo-se. Do título e da epí-
grafe tomados a Joyce saltemos para as últimas palavras de Perto do coração sel-
vagem. Diz Joana: “[...] de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e be-
la como um cavalo novo”. Pelo advérbio como, a cauda do romance de estréia
tanto redefine a semelhança do humano ao animal (no caso, Joana é igual a “ca-
valo novo”), como leva o leitor a ampliar a força pela beleza (“levantarei forte e
bela”). A beleza dá o arremate final à viga mestra do pensamento de Clarice (vi-
da e morte) e aos temas maiores acima referidos (solidão, liberdade e felicida-
de). Expressa pelo símile do potro, a beleza é afirmação da força humana no
constrangimento (“de qualquer luta”) ou no sossego (“ou descanso”). Simboli-
za a terra desolada da modernidade (a “waste land ” do poeta inglês T.S. Eliot),
na qual solidão, liberdade e felicidade jorram com tal abundância e ímpeto que
se desperdiçam e, no desperdício, as três se irmanam literariamente.
A beleza alicerça a representação mais apurada do coração selvagem da
vida, que nela culmina. A vida fica “à beira do corpo”, e ali permanece baten-

197
do asas entre a busca utópica da condição humana (“nunca atingiremos em nós
o ser humano”) e a busca não menos utópica da condição animal (“desistir de
nossa animalidade é um sacrifício”17).
Na ficção de Clarice Lispector, o parasitismo recíproco – da vida animal
pela vida humana, e vice-versa – serve de belvedere lírico-dramático, de onde nar-
radores e personagens olham, observam a eles e ao(s) outro(s), intuem, fantasiam,
falam e refletem sobre o mundo, os seres e as coisas, sendo por isso difícil, e tal-
vez desnecessário, diferenciá-los. Aparentemente os mil e um pontos de vista que
as vozes dos narradores e as falas dos personagens enunciam (eu me enxergo ani-
mal, eles me enxergam animal, eu enxergo o animal, o animal se enxerga, o ani-
mal me enxerga etc.) expressam situações conflitantes. Todo drama, aliás, é feito
de conflito. No entanto, uma análise mais apurada de material tão efervescente e
inédito na literatura brasileira revelará que, se as tramas não são nem podem ser
coincidentes, os pólos simétricos de oposição se encaixam com certa graça e dra-
maticidade, contribuindo para o encanto da narrativa. Como na obra do argen-
tino Jorge Luis Borges, os caminhos do texto ficcional clariciano se bifurcam. To-
davia, os seus narradores e personagens são unos nos jogos de cumplicidade,
semelhantes ao ser humano que, ao se bifurcar em cima dum cavalo, transforma
a si e a ele em centauro. No Manual de zoología fantástica, Jorge Luis Borges e
Margarita Guerrero refletem sobre o centauro: “[...] o verossímil é conjeturar que
o centauro foi uma imagem deliberada e não uma confusão ignorante”.18
O parasitismo recíproco aparece sob várias roupagens retóricas no texto
clariciano. As mais constantes são a comparação e a metáfora. Do conto “De-
vaneio e embriaguez duma rapariga”19 tome-se o exemplo de comparação: “Sua
carne alva estava doce como a de uma lagosta, as pernas duma lagosta viva a se
mexer devagar no ar”. Do conto “A procura de uma dignidade”20, tome-se o
exemplo de metáfora na passagem em que a mulher se põe de quatro no chão:
“Quem sabe, a Sra. Xavier estivesse cansada de ser um ente humano. Estava sen-
do uma cadela de quatro. Sem nobreza nenhuma. Perdida a altivez última”. Não
é diferente o recurso retórico que fecha o conto de onde foi extraído o exemplo
acima de comparação: “Então a grosseria explodiu-lhe em súbito amor; cadela,
disse a rir” (“Devaneio e embriaguez...”, p. 28).
Há, entretanto, uma comparação e/ou metáfora privilegiada no univer-
so ficcional de Clarice – a do cavalo.21 Dada de empréstimo à moça, vimos que

198
a imagem do potro pespontou as palavras finais de Perto do coração selvagem e,
texto após texto, veremos como irá costurando a escrita da autora. No conto
“O manifesto da cidade”22, onde as alusões ao Recife da infância são óbvias e
também é óbvio o deslocamento geográfico e simbólico da menina para o Rio
de Janeiro, o cavalo é o único ser vivo que é individualizado e, na qualidade de
nome próprio, recebe inicial maiúscula. Os outros seres vivos, humanos, são ci-
tados como pertencentes a uma classe (pedreiros, carpinteiros, engenheiros
etc.). Em nada latente, o cavalo é o manifesto da cidade. Leiamos o curto pará-
grafo em que se esboça com clareza um perfil que se afirma como fatal na lite-
ratura de Clarice: “Mas eis que surge um Cavalo. Eis um cavalo com quatro
pernas e cascos duros de pedra, pescoço potente, e cabeça de Cavalo. Eis um
cavalo” (p. 93).
O vocábulo é ora grafado com inicial maiúscula, ora com inicial minús-
cula. O jogo visual e hierárquico denota a mobilidade semântica do vocábulo e
do personagem cavalo no texto clariciano, ao mesmo tempo em que salienta a
escada rolante em que se move o comparante ao qualificar o comparado. Ora
o cavalo é o animal belo e altivo, em que Clarice “ama disfarçar-se”, para reto-
mar com liberdade o verso de Carlos Drummond de Andrade, no poema “O
elefante”23, cuja leitura paralela e silenciosa seria recomendável neste momento.
Ora é o garanhão – o stallion, como se encontra em textos semelhantes do in-
glês D.H. Lawrence, como na novela St. Mawr (1925; em francês: La femme et
la bête), embora ali a perspectiva seja a da mulher travesti, solar e desinibida,
superior ao macho, em tudo semelhante à ambivalente dona noturna que é des-
crita no poema “Mulher vestida de homem”, de Carlos Drummond: “A (o) es-
quiva Márgara sorri / e de mãos dadas vamos / menino-homem, mulher-ho-
mem, / de noite pelas ruas passeando / o desgosto do mundo malformado”.24
Ao traduzir a escada rolante por que transita o vocábulo cavalo, o jogo
entre as iniciais maiúscula e minúscula atiça o potencial retórico e semântico.
Nele passam a caber pelos menos três significados bem distintos. Primeiro. A
figura feminina atrevida, enérgica e instintiva, indispensável no processo de afir-
mação da própria subjetividade em tempos de “women’s lib” (“nesse lado forte,
eu sou uma vaca, sou uma cavala livre e que pateia no chão, sou mulher da rua,
sou vagabunda – e não uma ‘letrada’”25). Segundo. A imagem da masculinida-
de viçosa e plena, talvez a se perder no mundo moderno, et pour cause! (“Tenho

199
um cavalo dentro de mim que raramente se exprime. Mas quando vejo outro
cavalo então o meu se expressa”). Terceiro. As excelsas qualidades do ser dito
humano (“a forma do cavalo representa o que há de melhor no ser humano”26).
No extraordinário “Seco estudo de cavalos”27, texto quase todo escrito de
forma aforística, onde cada uma das curtas passagens recebe subtítulo, os re-
cheios diferenciados que estofam semanticamente o vocábulo cavalo se combi-
nam e se expressam no fragmento “No mistério da noite”. Nele Clarice recap-
tura o processo de transformação da moça em cavalo. A metamorfose é ouriçada
pela insatisfação e o mal-estar, cuja conseqüência é o desejo de ser outro, de o
eu ser, como anunciou o poeta Arthur Rimbaud, um outro (“je est un autre”).
A consistência do ato de mutação chega ao ponto de operar transformações no
modo de o ser humano enxergar as coisas. Leiamos:

Na inveja do desejo meu rosto adquiria a nobreza inquieta de uma


cabeça de cavalo. Cansada, jubilante, escutando o trote sonâmbulo. Mal
eu saísse do quarto minha forma iria se avolumando e apurando, e, quan-
do chegasse à rua, já estaria a galopar com patas sensíveis, os cascos es-
corregando nos últimos degraus da escada da casa. Da calçada deserta eu
olharia: um canto e outro. E veria as coisas como um cavalo as vê. Essa
era a minha vontade (p. 54).

***

(Antes de avançarmos na análise de outros casos de metamorfose, é im-


portante abrir um parêntese para assinalar que, em outro fragmento de “Seco
estudo de cavalos”, intitulado “Ele e eu”, se insinua uma contradição interna ao
texto. A dúvida do narrador-personagem, da moça, surge como figura domi-
nante no fragmento “Ele e eu”: “O melhor do cavalo o ente humano já tem?
Então abdico de ser um cavalo e com glória passo para a minha humanidade”.
Ao se desviar e se distanciar da magia ficcional e se deixar dominar pela racio-
nalidade cruel do transformista, esse fragmento clariciano não mais consuma a
metamorfose da moça em cavalo, desenvolvida no restante do texto. As figuras
retóricas da ficção se pulverizam na folha de papel, desfazendo o processo de
automodelagem do ser humano em animal, que a grafia-de-vida e a ficção de

200
Clarice vinham tecendo desde a carta datada de 1941, endereçada a Lúcio Car-
doso. Tanto a desconstrução dos recursos retóricos clássicos, se tomada ao pé da
letra, quanto a despoetização do texto literário (moça é moça, cavalo é cavalo,
nada de comum entre eles a não ser a contigüidade no espaço da escrita) pode-
riam transformar em catástrofe a análise que estamos propondo do texto curto
clariciano. Eis aí a razão pela qual estamos resguardando dentro deste parênte-
se a situação excepcional e inusitada do fragmento “Ele e eu”. Tentemos provar
como este parêntese está recobrindo, no interior da audaciosa ficção de Clari-
ce Lispector, uma proposição passageira, acovardada, medrosa e pessimista.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o que estamos entendendo por
proposição medrosa no interior do texto clariciano. O personagem cavalo, a que
a moça tende a procurar como par e a se comparar, não passaria de mero vocá-
bulo numa prosa literária. Pelo uso imaginativo da escritora, vez por outra o vo-
cábulo cavalo aparece como traço de destemperança idealizadora do persona-
gem “moça”, traço que por sua vez serve para reconfortar a nossa condição
humana, demasiadamente humana. Nessa perspectiva, tanto o vocábulo quan-
to o personagem cavalo estariam sendo trabalhados como pura invenção retóri-
ca – é óbvio que carregada de significado – numa escrita humanista: a de Cla-
rice. Ao abdicar da condição de cavalo e passar para a condição humana, ou
seja, pela incredulidade e a dúvida do escritor, o personagem moça é convidado
a entrar no clima do famoso dito: “O rei está nu”. Voltemos à apreciação do
fragmento “Ele e eu”, de “Seco estudo de cavalos”. Ali é que melhor se explici-
ta a revelação dessa como que recaída passageira da audácia retórica e concei-
tual clariciana no reino do medo, re-aparelhando escrita e visão de mundo ao
universo do “humanitismo” de Quincas Borba, a que já nos referimos. Leiamos
a maior parte do fragmento:

[...] se pudesse ter escolhido queria ter nascido cavalo. Mas –


quem sabe – talvez o cavalo ele-mesmo não sinta o grande símbolo da
vida livre que nós sentimos nele. Devo então concluir que o cavalo seria
sobretudo para ser sentido por mim? O cavalo representa a animalidade
bela e solta do ser humano? O melhor do cavalo o ente humano já tem?
Então abdico [grifo nosso] de ser um cavalo e com glória passo para a
minha humanidade [idem]. O cavalo me indica o que sou (pp. 50-1).

201
Renegado o palco fonético em que a retórica se constituiu a fim de poder
criar e fazer atuar no texto o ser humano metamorfoseado em cavalo, devolvidos
ambos – a moça e o cavalo – às respectivas condições empíricas de humano e de
animal, vão pipocar no fragmento citado as contradições lógicas da armação28 re-
tórica clariciana e as desavenças afetivas entre as forças que a inspiraram e nela se
justificaram. O vocábulo cavalo é apenas um desvio eloqüente – uma forma, um
“significante”, para usar a terminologia do genebrino Ferdinand de Saussure, um
“nó de significações”, para caminhar até o francês Jacques Lacan – por onde a in-
veja do desejo humano tem de passar e caminhar para atingir a humanidade ple-
na e utópica, que só se proclama como passível de ser atingida no momento se-
guinte ao em que se afirmou a metamorfose do humano em cavalo. A comparação
entre moça e cavalo existe para ser apagada logo em seguida. A humanidade do
homem – desculpem o pleonasmo, ele é esclarecedor no universo ambivalente de
Clarice29 – torna-se meta final através da metamorfose passageira da moça em ca-
valo. Desse ponto de vista, e apenas dele, a travessia da condição humana à con-
dição animal, e vice-versa, é algo para ser usado e descartado logo em seguida, em
favor de algo que lhe é superior – o humano do homem.
O humano do homem paira no horizonte como uma indicação fugaz,
que é ofertada pela contigüidade das vidas paralelas da moça e do cavalo, pela
apropriação retórica que dela faz a escritora. No espaço ficcional clariciano, a
contigüidade retórica dos significantes moça e cavalo não se deixou recobrir por
laço apaixonado e ontológico, não contaminou a ambos, como fazia crer gran-
de parte de “Seco estudo de cavalos”, de onde também foi retirado o fragmen-
to contraditório. Ao não se deixar recobrir pela comparação ou pela metáfora,
a contigüidade dos dois significantes privilegiados deixa-se recobrir pelo medo
diante do desconhecido e atiça a suspeita da escritora sobre os próprios recursos
ficcionais de que se vale para produzir texto e reflexão filosófica. De um lado,
medo do processo de ficcionalização e, do outro, suspeita sobre o ofício de es-
critor. Medo e suspeita são gêmeos no universo de Clarice).

***

Em vez de bater o martelo e assumir o conteúdo do parêntese como a


verdadeira e última palavra da ficcionista, retomemos aos dois vocábulos que o

202
antecedem – “minha vontade”. Visitemos em seguida as crônicas reunidas no
livro Visão do esplendor. Leiamos:

Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo


aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero [grifo nosso] E porque
eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo que me tomou pela mão e me le-
vou. O medo me leva ao perigo. [idem]. E tudo o que eu amo é arriscado.30

O recuo epistemológico clariciano, de que falou o parêntese acima, pro-


duz proposições medrosas, que vêm a priori na argumentação sobre retórica e
ficção – e não a posteriori, como faria crer uma lógica de vida simplista e huma-
nitária. O medo não dá por fechado a narrativa do todo da experiência de vida;
pelo contrário, ele ressuscita a experiência a partir da raiz que está sendo dada
como morta, revitalizando-a em vontade, numa vontade faminta e sequiosa, que
deseja descortinar mundos novos e, até então, insuspeitos. Qualquer nova expe-
riência de vida, por mínima que seja, é pulsação e impulso, é fluxo. O medo a
desencadeia. O medo é alavanca de engrenagem no motor da vida. É guia da
vontade que, pela sua própria dinâmica, leva ao arriscado. E não o contrário.
Diante das diabruras da imaginação ficcional, o pé atrás empírico e ra-
cional do narrador-personagem (da “moça”), sendo parentético e antificcional,
é também covarde. Ao não ser possível dar voz clara e firme à nostalgia31 de não
ter nascido bicho, ao não poder responder ao chamado dos nossos ancestrais (cf.
epígrafe do presente estudo), a moça se acovarda e cai no dessassosego. Não quer
assumir as conseqüências imprevisíveis e perigosas que a aguardariam, caso ti-
vesse nascido bicho e tivesse dado o sim à origem animal da espécie humana. O
pé atrás na argumentação textual – medroso e acovardado – congela a imagina-
ção criadora no apogeu do seu desvario, imobilizando-a num impasse (obvia-
mente passageiro) que, se tomado como valor de verdade, borraria as mais des-
temidas páginas da prosa de Clarice. Acertemos de novo os ponteiros com a
ajuda das palavras já citadas da escritora: “O medo sempre me guiou para o que
eu quero” e “o medo me leva ao perigo”. Eis a dupla clave de leitura.
O antídoto contra o recuo epistemológico passageiro é produzido por ra-
ciocínio ambivalente: é a vontade de a moça continuar sendo levada pelo me-
do ao que é arriscado e digno de amor. É a vontade de ela continuar escreven-

203
do perigosamente. (Ambas as atitudes são plenamente correspondidas pela von-
tade nossa, de leitores. Continuamos a amar Clarice e a devorar os seus textos.
Continuamos a viver vicária e perigosamente nela e graças a eles.) Alicerce das
novas experiências de vida, o medo é também, e contraditoriamente, alavanca
de engrenagem. A determinação última da vida humana e do texto clariciano é
a ousadia; e talvez a principal delas seja certamente a vontade de o humano se
metamorfosear em (voltar a ser) animal. O vacilo do ficcionista e a marcha à ré
da retórica são sinaleiras transitórias (no sentido etimológico do adjetivo: que
dão passagem) na longa e infinita viagem da vida. Inserem autora e texto num
círculo cognitivo ingênuo, do qual se libera pelo fluxo liberto e sôfrego da vida
e da escrita.
Em termos de texto curto, há um similar de Clarice, em que, no entan-
to, é a covardia que domina: o medo do filho que encerra e dá por terminada
a jornada corajosa do pai. Trata-se do clássico “A terceira margem do rio” con-
to do livro em Primeiras estórias, de Guimarães Rosa.32 Nele se dramatiza a opo-
sição entre o filho, estéril e medroso, e o pai, macho reprodutor e aventuroso.
Em linguagem altamente simbólica, Guimarães Rosa trabalha a oposição entre
o “falimento” do filho, que por conta própria não consegue nem deixar as mar-
gens da veneração filial nem constituir família, e a coragem do pai, infatigável
barqueiro em meio ao rio, eterno construtor duma terceira margem feita à ima-
gem e semelhança da força humana. Por não ter conseguido dar continuidade
à terceira margem do rio inventada pelo pai (a canoagem), por não ter assumi-
do o legado viril, transformando-se por sua vez em pai, o filho rompe pela co-
vardia e o medo a dinâmica aventurosa do sistema patriarcal. Ao final da nar-
rativa, o filho é levado a questionar a própria hombridade. Leiamos a fala final
dele, que é coroada pelo silêncio: “Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que
ninguém mais soube dele [do pai]. Sou homem, depois desse falimento? Sou o
que não foi, o que vai ficar calado”.33 O fim do conto se dá pelo encerramento
do medo do filho na vacância do pai pela morte. Diz o filho: “[...] no artigo da
morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada
[...]”.34 O medo é um sentimento a posteriori do desejo. Em Clarice, repitamos,
o medo é um a priori da vontade.
Por ser o que são, os sentimentos opostos e sucessivos de medo e audá-
cia liberam reflexões dramáticas no texto clariciano que, nas suas pulsações la-

204
tentes, o aproximam das obras canônicas da épica ocidental. Nas boas hipóte-
ses, os delírios da retórica, precedidos pelo pé atrás, fazem parte de um movi-
mento da ficção de Clarice Lispector que se nos afigura como semelhante aos
movimentos, respectivamente, de recuo pusilânime e de avanço brioso que en-
contramos, por exemplo, na viagem narrada por Luís de Camões em Os lusía-
das (1572), inaugural da épica em língua portuguesa. Os marinheiros da esqua-
dra de Vasco da Gama, abatidos e sem coragem para continuar devassando com
intrepidez os mares, inventam o monstro Adamastor para testar a própria for-
ça, então exaurida. O monstro é maquinado no cansaço do meio do caminho;
foi programado pelo redemoinho da viagem. Os marujos têm que vencer a in-
venção-do-medo, a programação-do-meio-do-caminho, para que se lhes abram
as portas dos mares. Como o medo em Clarice Lispector, Adamastor é em si
contraditório. A maquinação amedronta e incita. Aterroriza os inventores do
monstro para reacender neles o valor e a coragem, julgados perdidos. No hor-
ror da experiência fá-los reganhar a beleza da vida.
Em termos de poema épico clássico, as passagens iluminadas do texto cla-
riciano em nada ficam a dever a semelhantes de Os lusíadas (o já citado episódio
de Adamastor, canto V), ou da Divina comédia (c. 1310-1314), do italiano Dan-
te Alighieri – o episódio da morte de Ulisses, “Inferno”, canto XXVI).35 Para Cla-
rice Lispector, escrever é enfrentar os perigos escamoteados e de repente liberados
pelo monstro guardião do cabo das Tormentas – o infortúnio, a desgraça e a mor-
te. Lê-se em Camões: “Que o menor mal de todos seja a morte!” (V, 44). Mas a
ousadia – conseqüência do medo, que alavancou o passo além e o dinamizou com
fervor – não aceita a derrota fácil, que está no recuo para o consabido e o cotidia-
no e está até mesmo na aceitação passageira ou definitiva da morte.36
Por isso, antes de insistir em desconstruir a armação da retórica e da fic-
cionalização claricianas, é preciso examinar a rede em que, no seu universo tex-
tual, foi tecida a inusitada dinâmica imposta ao medo pela vontade (cuja meta,
repitamos, é a ousadia, necessariamente transgressora). Examinar com cuidado
a rede do medo para observar como suas malhas foram consciente ou incons-
cientemente fabricadas por Clarice, atando os cordões dispersos num nó, que
será reapresentado na nossa leitura como enriquecido por outras malhas e ou-
tros nós, de existência concomitante em dois autores, em duas autoridades. Por
ser rede entrelaçada com o nó próprio de Clarice Lispector e também por nós

205
alheios, como explicitaremos a seguir, não se pode desenhar a planta baixa do
medo clariciano sem a mediação de duas grandes obras.
Na cena cultural contemporânea a malha e o nó claricianos foram tam-
bém entrelaçados por Roland Barthes, teórico francês da literatura, e por um
dos filósofos de sua predileção, o inglês Thomas Hobbes (1588-1679). O me-
do na ficção de Clarice, tal como o estamos analisando, está expresso na céle-
bre epígrafe de O prazer do texto (1973): “O medo foi a única paixão da minha
vida”. Por sua vez, a epígrafe se emaranha ao nome de Hobbes, o filósofo a quem
Barthes tomou-a de empréstimo37 e se encontra, ainda, desenvolvida num dos
fragmentos do livro, intitulado “Medo”. Convido-os à leitura do medo clari-
ciano através das malhas (“sous grille”, como dizem os franceses) de Roland Bar-
thes e Thomas Hobbes.
Da perspectiva de Roland Barthes, o medo é uma idéia banal e, por is-
so, esquecida dos filósofos modernos. Por ser um sentimento vulgar e desagra-
dável, o medo tornou-se mediocremente indigno do ser humano. Para melhor
entendê-lo, Barthes vale-se de uma comparação. O medo se assemelha à enco-
menda que o homem rejeita por não corresponder às especificações do pedido
feito. O sujeito requesta alguma coisa e, em lugar de receber o estipulado na so-
licitação, chega-lhe às mãos a coisa equivocada. O medo não gratifica o sujei-
to, já que o deixa de mãos vazias, lamentoso e desconsolado. O medroso fica “à
cata da própria coisa”, que acabou por não lhe chegar. O medo se exprime pe-
la oferta fraudulenta ao solicitante de algo que, acredita, lhe é exterior, embora
a raiz mais poderosa cresça no seu íntimo. O medo é decepcionante e autode-
cepcionante. Tanto na recusa interna em aceitar a coisa errônea quanto no mo-
vimento externo de remessa incorreta da coisa solicitada, o medo acaba por ser
a mais devastadora das experiências de rejeição e de auto-rejeição. Daí o fato de
Roland Barthes ter recolocado o sentimento em circulação e dele nos valermos
para dar continuidade à leitura de Clarice.
Tendo tal configuração, adverte Barthes, não se admira que o medo te-
nha desaparecido e só seja encontrado na escrita de Hobbes, nascido de parto
prematuro e durante o “grande medo” de 1588 na Inglaterra. O dado indivi-
dual se mescla ao dado coletivo para recompor na história a grafia-de-vida do
filósofo. Noventa anos depois do nascimento – nos informa Renato Janine Ri-
beiro, na obra já citada –, Hobbes recordará, como na sua autobiografia: “Mi-

206
nha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”. Não é de todo imprudente aproximar a
mescla do dado familiar ao dado histórico nas circunstâncias do nascimento de
Clarice. Foi concebida em família judia em fuga da Ucrânia, logo depois da Re-
volução russa. O bebê nasceu quando a família caía no oco do mundo, numa
desconhecida e passageira Tchetchelnik, ao meio de longa e dramática viagem
de exílio ao Novo Mundo (meus pais “pararam em Tchetchelnik para eu nas-
cer, e prosseguiram viagem”, diria ela mais tarde 38).
Pela configuração que faz do medo, Barthes aproxima-o do gozo (“jouis-
sance”), e não do prazer. Explica-se. O medo é a negação da transgressão, é

[...] a clandestinidade absoluta, não porque seja ‘inconfessável’


[...], mas porque deixando intacto o sujeito, ao dividi-lo, tem apenas à
sua disposição significantes conformes [grifo de RB]: a linguagem deli-
rante é recusada ao que escuta o medo tomar conta de si.39

Corramos o risco da repetição: a linguagem delirante (e transgressora) é


recusada a Clarice Lispector no momento em que experimenta o medo tomar
conta dela. Ao aproximar o medo do gozo, e não do prazer, Barthes está nos di-
zendo que o sujeito, se não fosse medroso, poderia ter tirado satisfação extrema
da experiência por estar se entregando a algo que os seus cinco sentidos dese-
jam. Medroso, fica imune à paixão e ao prazer. O objeto desejado fica ao ar li-
vre do abandono, já que o sujeito não recebe de volta a gratificação desejada.
No caso do texto de Clarice, o gozo se dá em virtude do fato de que os senti-
mentos fortes que tinham tomado posse do corpo e da mente – e que tinham
impulsionado a retórica e a escrita ficcional – tornaram-se incapazes de dar res-
posta ao desejo, abdicando dessa forma da linguagem do delírio.
Passageiramente (frisemos o advérbio), a escrita de Clarice Lispector re-
chaçou os recursos retóricos e deixou de ser ficcional para ser pedestre. Entre-
gou-se à produção de “significantes conformes”, ou seja, de significantes cuja
forma é conforme ao modelo, está em conformidade com o significado diciona-
rizado. Moça é cavalo, escreve o texto delirante – do prazer. No entanto, “abdi-
co de ser um cavalo e com glória passo para a minha humanidade”, lemos no
fragmento “Ele e eu”. Moça não é cavalo. Moça é moça, cavalo é cavalo, escre-
ve o texto medroso – do gozo.

207
O medo coloca o gozo particular e intransferível ao lado da obediên-
cia lingüística ao estrito dicionarizado. Gozo e obediência se tornam par in-
separável no pé atrás clariciano. Voltemos ao vocábulo cavalo. Na escrita do
medo o significante tem como único referente o animal cavalo. Deixou, por-
tanto, de se referir delirantemente à moça metamorfoseada em cavalo; deixou
de substantivar o potencial semântico da metamorfose do humano em ani-
mal, que o significante tomado pela retórica ficcional carreava na economia
textual clariciana. O medo é o elemento imobilizador do delírio ficcional na
escrita audaciosa. Funciona de maneira semelhante ao borrifo de gás imobi-
lizante, de que se vale o assaltado diante do horror que o assaltante lhe inspi-
ra. O curto-circuito emocional empobrece a ficção e pode chegar a empanar
o brilho da escrita. Por outro lado, encarado pelo viés da modernidade, o me-
do, ensina Barthes, “é uma loucura que deixa o sujeito em total consciência”.
Ele corrói os jogos polissêmicos do texto e apenas enriquece pela lucidez – e
de maneira medíocre – a proposição da escrita como peça da argumentação
racional do texto.
Servida pelas forças imobilizadoras do delírio e pela corrosão dos jogos po-
lissêmicos operada pela lucidez, a escrita medrosa de Clarice é beco sem saída na
sua magnífica prosa. O desbloqueio virá da transgressão e do prazer, que inaugu-
ram novos e inusitados caminhos a partir de cerceamentos e constrangimentos.
Retornemos ao significante cavalo, pois é a partir dele que este ensaio es-
tá sendo e continuará a ser escrito. Leiamos a anotação solta, intitulada “Não
soltar os cavalos”, que está recolhida na coletânea Para não esquecer:

Como em tudo, no escrever também tenho uma espécie de receio


de ir longe demais.40 Que será isso? Por quê? Retenho-me como se reti-
vesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e me levar Deus sabe
onde. Eu me guardo. Por que e para quê? para o que estou eu me pou-
pando? Eu já tive clara consciência disso quando uma vez escrevi: “é pre-
ciso não ter medo de criar”. Por que o medo? Medo de conhecer os li-
mites de minha capacidade? ou medo do aprendiz de feiticeira que não
sabia como parar? Quem sabe, assim como uma mulher que se guarda
intocada para dar-se um dia ao amor, talvez eu queira morrer toda intei-
ra para que Deus me tenha toda.41

208
É preciso soltar os cavalos. Só se ama (só nos apaixona, só nos grati-
fica plenamente) o que assusta. Só o medo leva os passos da vontade em di-
reção ao perigo e ao prazer de viver. Querer é temer. Viver é enfrentar o pe-
rigo.42 Como o viver, com o qual se confunde, o amor é um risco. Tão
arriscado e reconfortante quanto, ultrapassado o perigo, “cair nos braços” de
alguém.
As palavras do parêntese que abrimos serviram para circunscrever o que
a própria escritora batizou de “vergonha de viver”. Em crônica que leva esse tí-
tulo43, afirma primeiro: “Há pessoas que têm vergonha de viver: são os tími-
dos, entre os quais me incluo”, para logo em seguida adentrar-se pelo seu es-
tilo pessoal: “Sempre fui uma tímida muito ousada”. Ao exemplificar a ousadia
da tímida, recorre ao relato da sua primeira experiência de montaria. Poderia
ter sido outra a experiência? Ela tinha ido passar férias no interior. Da estação
telefonou para a fazenda, que “ficava a meia hora dali, num caminho perigo-
síssimo, rude e tosco, de terra batida e estreito, aberto à beira constante de pre-
cipícios”. Perguntaram-lhe o meio de transporte desejado: carro ou cavalo? “Eu
disse logo cavalo. E nunca tinha montado na vida”. Em vibrato lírico e voca-
bulário épico, a descrição das aventuras vividas pela moça e o cavalo, a moça
a cavalo, não se diferenciam do andamento trágico encontrado nas descrições
de grande vigor retórico de responsabilidade de Camões ou Dante, – ou de
Guimarães Rosa. Clarice escreveu:

Foi tudo muito dramático. Caiu uma grande chuva de tempesta-


de furiosa e fez-se subitamente noite fechada. Eu, montada no belo ca-
valo, nada enxergava à minha frente. Mas os relâmpagos revelavam-me
verdadeiros abismos. O cavalo escorregava nos cascos molhados. E eu,
ensopada, morria de medo: sabia que corria risco de vida. Quando final-
mente cheguei à fazenda, não tinha força de desmontar: deixei-me pra-
ticamente cair nos braços do fazendeiro.44

Mais importante do que apontar o animal selvagem – a que a moça se


associa em simbiose – como matriz sorrateira a motivar o medo clariciano, é
acentuar que é dele que brota a “pura sede de vida melhor [já que] estamos
sempre à espera do extraordinário que talvez nos salve de uma vida contida”,

209
como se afirma no curto relato “Morte de uma baleia”, recolhido no livro Vi-
são do esplendor. Dois filhotes inexperientes de baleia, um na praia do Leme e
outro na do Leblon, surgem na arrebentação e, sob o olhar dos populares, so-
brevivem em lenta agonia. Afinal o espetáculo extraordinário acontece e exclui
do balneário carioca o ramerrão cotidiano dos corpos seminus bronzeados e
despreocupados. Como no poema “Os inocentes do Leblon”, de Carlos Drum-
mond45: “há um óleo suave / que eles passam nas costas, e esquecem”. O espe-
táculo da morte das duas baleias explode em boatos que correm pelas ruas da
zona sul e assanham os olhos da espectadora à janela do seu apartamento no
Leme. A simbiose entre moça e baleia explode em exclamações de horror dian-
te do duplo e trágico espetáculo que a deixa estarrecida. As frases de repúdio
se sucedem no texto: “detesto a morte”, “Morte, eu te odeio”. A que morte se
refere a moça à janela?

***

(Apresso-me a adiantar o fundamento das páginas futuras.


Abandonemos o cavalo no morro do pasto de A cidade sitiada e adentre-
mo-nos por outro ciclo dentro da obra de Clarice, onde ou o animal emerge
das águas oceânicas e é feminino – a baleia – ou é masculino e, trancado neces-
sariamente num jardim zoológico, representa os machos predadores – o búfa-
lo. O ciclo da baleia e do búfalo. O feminino e o masculino. A noção de me-
do, de grande importância dramática no andamento dramático do texto
clariciano, ganha gênero [gender, em inglês, que se distingue de genre, gênero li-
terário], assim como ganha gênero a simbiose entre humano e animal, abrindo
em forquilha as duas possibilidades que o medo sempre alavanca: o risco / a Vi-
da, o risco / a Morte. A opção pela escrita ficcional marcada pelo gênero se en-
tremostra através dos sentimentos ambivalentes e contrários que tomam conta
do comportamento feminino, cujo mais curto e contundente exemplo são duas
frases de “O búfalo”, conto incluído em Laços de família:

Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande
crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando
amor ao búfalo.46

210
Na espécie animal, não há uma reciprocidade amorosa simples entre fê-
mea e macho. Na relação predomina um “grande crime impunível”. Daí ser o
jardim zoológico o cenário primaveril e ideal para as novas cenas de amor no
texto curto de Clarice.
A respeito do medo como substantivo genérico e do crime impunível co-
mo delito que apenas recompensa o homem, seria preciso ler com vagar, faltam-
nos tempo e papel, a longa crônica “A favor do medo”, hoje em A descoberta do
mundo 47. Ali se diz que, desde a pré-história, o gênero homem é animal macho
metamorfoseado em predador da espécie fêmea. Daí o pavor que a sua aproxi-
mação sedutora inspira na mulher, despertando-lhe simultaneamente carência,
ódio e amor. Na crônica, a dramaturgia do risco no amor não se resgata pela re-
produção da espécie, não traz o elogio da vida como happy ending, e, sim, como
unhappy ending, já que a inclinação fundamental do homem é para o estupro ou
o assassinato da fêmea. Leiamos apenas as primeiras palavras da crônica, convi-
dando o leitor a entregar-se às demais, solicitando-lhe ainda que faça a leitura do
extraordinário conto “Emma Zunz”, que integra a coletânea O aleph, de Jorge
Luis Borges:48 “Estou certa de que através da idade da pedra fui exatamente mal-
tratada pelo amor de algum homem. Data desse tempo um certo pavor que é se-
creto”. O convite ao “passeíto” (passeiozinho, em espanhol) pela floresta condi-
ciona a cena do estupro. Clarice Lispector remonta ao distante passado para
revelar o pavor diante da doce sedução e da violenta conquista masculina como
o segredo de que a fêmea não se desvencilha nem revela. Num parêntese dentro
deste, anunciemos e calemo-nos por ora: aí pode estar em germe o motivo para
a aceitação descarada da literatura de Clarice pelos escritores e leitores gays.
Tal como está na crônica em Visão do esplendor, a agonia das duas baleias
é referendada por dois discursos: um autobiográfico e o outro nitidamente re-
ligioso. Como pano de fundo, acrescentemos que são elas tão fêmeas quanto o
foi Joana d’Arc. As baleias prefiguram um avatar a mais no mundo cristão mas-
culino e ocidental. Não esquecer – importantíssimo! – o deslocamento semânti-
co que os significantes baleia (fêmea) e búfalo (macho) estão operando na nos-
sa leitura do texto curto clariciano. Estamos sendo levados a avaliar o gênero nas
reflexões sobre a obra de Clarice Lispector.)

***

211
A moça vê a baleia que agoniza. Ela relembra o silêncio humano – que é
o mais grave de todos no reino animal. (Vale a pena colar-se ao texto de Clari-
ce e grifar de novo os adjetivos humano e animal, de função semelhante, dife-
renciados apenas pelo grau de intensidade no registro.) A moça relembra o si-
lêncio que já experimentou e por que passou várias vezes. Na sua vida, o silêncio
ocupa papel duplo. Primeiro. É o invólucro privilegiado do segredo, vale dizer:
da memória afetiva do indivíduo e da memória coletiva da espécie. O silêncio
resguarda com exatidão semântica o segredo arcaico e atual da fêmea, a fim de
liberá-lo pouco a pouco, seguindo as necessidades da confidência e do compa-
nheirismo literário. Segundo. É o prenúncio “da morte que não vinha”, morte
anunciada que, à última hora, arrepia caminho devido à resistência do ser ao
aniquilamento.
Por acobertar essa espécie de segredo, cujo fundo feminino é ancestral e
atualíssimo, o silêncio é o mais nobre dos materiais de que se vale a escritora.
Como antropófaga, ela o destrincha. Como escritora, ela o elabora. Como es-
tilista, ela o tece em vocábulos. Como autora, ela intriga o leitor. O fim explí-
cito do silêncio é o de preservar dela e do leitor/de liberar a ela e ao leitor as
múltiplas mortes da alma e os múltiplos renascimentos do corpo. Assim será até
o dia fatal, em que a mais indesejada das gentes assomará definitivamente à por-
ta de entrada do corpo: “Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em segredo até
que a morte do corpo venha [...]”.49 A morte chega de mansinho (isto é, silen-
ciosa e secretivamente) para as duas baleias e para a moça à janela. Os dois uni-
versos biológicos, o humano e o animal, temperados não só pela origem e re-
produção das espécies, como também pela atualidade, são ambos
predeterminados pelo gênero e se mesclam no texto curto. Aparentemente, a
morte quer tomar conta de imediato do corpo das duas baleias, antes mesmo
que os antropófagos humanos (sic) cortem e recortem a carne para se alimen-
tarem: “Uns diziam que a baleia do Leblon ainda não morrera, mas que sua car-
ne retalhada em vida era vendida por quilos [...]” (p. 145).
Por ser tão secreta quanto a morte, a vida também se constrói em si-
lêncio. Contra a morte há um antídoto poderoso e também silencioso: afir-
mar agônica e valentemente a vida, que é “a maior criação do homem”. Li-
nhas abaixo no texto da crônica, relembra a narradora: “Lembro-me de um
amigo que há poucos dias citou o que um dos apóstolos disse de nós: vós sois

212
deuses” (p. 145). Somos deuses porque inventamos a vida.50 A partir deste
momento a leitura do texto curto de Clarice Lispector adquire um diapasão
insuspeitado, que aproxima o pensamento da autora das reflexões poderosas
e fatais do alemão F. Nietzsche, encontradas em particular na primeira disser-
tação da Genealogia da moral (1887) e no Anti-Cristo (1888). Clarice não fa-
la do céu e do inferno, estes, escreve ela, “nós já os conhecemos”. Ela dá con-
tinuidade à reflexão filosófica sobre um existir humano que desafia a moral
dos preceitos teológicos canônicos.
Ela se dedica a esmiuçar o silêncio e o segredo, a morte e a vida, em vir-
tude do espetáculo das duas baleias em lenta agonia.
Introjetada no olhar da testemunha à janela do apartamento no Leme, a
agonia da baleia aflige os olhos da observadora e, ao reconduzir os mesmos de
volta a ela mesma, associam a experiência do martírio individual tanto à força
de vida quanto ao silêncio. A dor é menos enigmática para a mulher do que pa-
ra o homem. (Menos enigmática não significa que seja menos intensa.) Num se-
gundo momento, a descrição feita pelos olhos em-si-mesmados levam o leitor a
também associar a agonia da baleia ao segredo, à força de vida e ao silêncio, va-
lores estes de que se tem valido a Mulher, e não mais a moça, para se automo-
delar como animal selvagem, em total execração da morte.
Mulher, com maiúscula, representa o gênero humano quando apresen-
tado da perspectiva feminina. Representa, pois, a desconstrução do princípio
que organiza o mundo segundo os valores do Homem, ou seja, Ela (a não ser
confundida com “a moça”, esclareçamos) comparece tardiamente ao texto cla-
riciano, no momento histórico em que rouba do gênero masculino o privilégio
exclusivo da representação universal do humano. Não custa tomar de emprés-
timo um pequeno e esclarecedor exemplo dos antigos manuais de lógica. O Ho-
mem é mortal (nesta afirmativa, o macho representa todos os seres humanos).
A Mulher é mortal (nesta outra afirmativa, a fêmea passa a representar todos os
seres humanos). O extremo da postura desconstrutora, verdadeira teologia às
avessas, se daria na proposição: Deus é Mulher.51
Voltemos ao texto de Clarice: “Porque aquele que mais experimenta
o martírio é dele que se poderá dizer: este, sim, este viveu”. Quem viveu? Ao
descarregar semanticamente o poder da dor na experiência do martírio, ao
neutralizá-lo a fim de melhor combinar a experiência do martírio à força da

213
vida, o texto clariciano recusa-se a submeter-se a reflexões reativas, passivas
e pessimistas, sobre o conhecimento que a Mulher (= o ser humano) tem da
vida. A Mulher não se submete ao império do medo e não é serva da dor, a
não ser passageiramente, ou seja, em movimento para. Ela não pactua o cor-
po dolorido com a corrosão operada pelo sofrimento, que o obriga a dizer
não à vida, em evidente ato suicida. A Mulher se recusa a entregar seu (nos-
so) corpo diferenciado à morte, levando-o a não mais se vangloriar com a
pergunta contratual que, por séculos e séculos, destacou o Homem ociden-
tal dos demais habitantes do planeta terra, traduzida por Alfred de Vigny
(1797-1863) no poema “O Monte das Oliveiras” (1844): “Pai, por que me
abandonaste?” A Mulher não lamenta o abandono do Pai. A Mulher não fa-
la, ela dialoga. Por isso, Ela personifica o silêncio que guarda/libera o segre-
do da vida e da morte. Ela o detém em solidão. Por exemplo: à janela do seu
apartamento no Leme.
Caso o texto clariciano caísse na armadilha das reflexões cristãs, ele de-
sembocaria no célebre raciocínio do “ressentimento” e da “moral dos escravos”,
que Nietzsche vai abominar nos seus escritos sobre a genealogia da moral.52 A
força da vida, o Sim dado à vida, desconstrói o martírio da dor pelo escárnio
(não há como evitar o vocábulo grosseiro em tema tão sublime, pois é inven-
ção de Clarice). Pelo Não diante da morte, pelo escárnio da Mulher, está sen-
do dado um segundo e definitivo Sim à vida. As ambivalências se fazem neces-
sárias e de praxe para que o texto de Clarice desemboque na estrada real do
pleno florescimento do prazer dolorido de viver: “Todos foram recebidos por
mim, gemendo de dor, como numa festa”.53 A argumentação paradoxal se im-
põe e dela não se eximirá o texto clariciano: a vida humana plena é o escárnio,
desdém e sarcasmo, da Mulher diante do martírio. É o escárnio dos ferozes deu-
ses com d minúsculo – ou seja, dos humanos representados pela fêmea frente
ao todo-poderoso Deus, até então representado pelo macho, – diante da mor-
te. Mais a alma sangra pela dor do martírio, mais o corpo floresce. Continue-
mos a ler “Morte de uma baleia”:

E como escárnio, por ser o contrário do martírio em que minha


alma sangrava, era quando o corpo mais florescia. Como se meu corpo
precisasse dar ao mundo uma prova contrária de minha morte interna

214
para esta ser mais secreta ainda. Morri de muitas mortes e mantê-las-ei
em segredo [...] (pp. 143-144).

De responsabilidade da Mulher, o duplo Sim dado à vida recebe de Cla-


rice um nome – é a ferocidade, cujo caroço e nó górdio, na crônica que estamos
lendo, é a fome.54 A fome nos torna “tão ferozes como um animal feroz”. Por
causa dela, “queremos comer daquela montanha de inocência que é uma baleia,
assim como comemos a inocência cantante dum pássaro”. A ferocidade clari-
ciana leva o ser humano (representado pela fêmea) a retornar à questão da vio-
lência como princípio organizador da “luta pela vida” (struggle for life), de que
falou pela primeira vez o inglês Charles Darwin. Naquela época a Mulher (nós)
não se distinguia do animal. A ferocidade da fêmea coloca a raça humana, de
que ela é a representante genérica, como sensível ao Chamado dos primatas; re-
mete os textos curtos mais audaciosos ao aparente sossego com a teoria da evo-
lução das espécies. No entanto permanece uma grande diferença entre o darwi-
nismo e Clarice. É a diferença que desestabiliza a tranqüilidade do texto,
desassossegando-o definitivamente. O desassossego explode no momento em
que a escrita ficcional retira o evolucionismo do círculo fechado dos cientistas
e especialistas na matéria. Como temos demonstrado pela análise crítica das fi-
guras retóricas do parasitismo e da simbiose, a teoria “evolucionista” para Cla-
rice é de mão dupla, contraditoriamente. A Mulher é a loba do Homem e atua-
liza o velho provérbio latino: Homo homini lupus.
Em última instância, o que a escritora questiona é o conceito de evolu-
cionismo (ou de progresso científico na evolução da espécie), tal como represen-
tado pelo Homem. O movimento é duplo em Clarice Lispector – evolução e in-
volução (este vocábulo não tem nenhum sentido pejorativo, aclaremos).
Retorno à origem/volta ao presente, retorno à origem/volta ao presente, ad nau-
seam, espécie de moto perpétuo que respeita e, ao mesmo tempo, coloca em xe-
que a passagem lenta e gradual do simples ao complexo, da força à razão, da
perda das presas carnívoras ao aprendizado das “dissimulações” (Nietzsche) in-
ventadas pelo intelecto, com o fim de deixar o fraco sobreviver, dominar os mais
fortes, preservar-se e conservar-se, valendo-se para tal do uso de apetrechos bé-
licos. O mais fraco transforma-se no mais forte graças aos jogos de dissimula-
ção. Pela mão dupla do evolucionismo (e não só pela evolução linear, insistamos),

215
o humano metamorfoseado em animal e a mulher hegemônica no reino huma-
no dialogam, se imitam, se irritam, hierarquizam posições e valores, abraçam-
se e dão as costas um ao outro.
Ratifiquemos nossas palavras com a ajuda da escritora, numa brilhante
passagem em que a subjetividade feminina desabrocha na sua relação retroce-
dente com os primatas:

Sou uma feroz [grifo nosso] entre os ferozes seres humanos – nós,
os macacos de nós mesmos, nós, os macacos que idealizaram tornarem-
se homens, e esta é também a nossa grandeza. Nunca atingiremos em nós
o ser humano: a busca e o esforço serão permanentes. E quem atinge o
quase impossível estágio de Ser Humano, é justo que seja santificado.
Porque desistir de nossa animalidade é um sacrifício.55

A grandeza da Mulher está em estreita dependência da condição animal


do ser humano e em relação direta com o sacrifício a essa dependência, assumido
desde sempre pelo Homem. A forma quintessencial da grandeza humana será o
amor56 e a do auto-sacrifício, o ódio. A época mais propícia ao ciclo do amor-
ódio-amor é a primavera, a estação que principia, no hemisfério norte, pelo mês
de abril – “o mais cruel dos meses, [que] germina / Lilases da terra morta, mis-
tura / Memória e desejo, aviva / Agônicas raízes com a chuva da primavera”.57
O mencionado conto “O búfalo”, nos fala duma oposta e semelhante primave-
ra – a do hemisfério sul, em que tanto os humanos quanto os animais se en-
contram diferenciados em machos e fêmeos. O ponto de vista narrativo do con-
to é de responsabilidade da Mulher, da mulher vestida de casaco marrom, que
vai ao jardim zoológico “para adoecer”.
Ao assumir o gênero, a mulher de casaco marrom vai atar as primeiras
linhas deste nosso “Bestiário” à sua coda. Depois de décadas de vida, a antiga e
bizarra acadêmica em direito, julgada pelos belo-horizontinos como tendo es-
capado dum jardim zoológico, volta a pôr os pés naquele lugar de exclusão e re-
clusão dos animais selvagens, a fim de perguntar: Onde encontrar o animal ma-
cho que me ensine a ler o meu amor (de fêmea) no ódio (de macho), o meu
ódio (de fêmea) no amor (de macho)? Diante da jaula dos leões, a mulher de
casaco marrom encontra apenas amor e se decepciona: “‘Mas isso é amor, é amor

216
de novo’, revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas
era primavera e os dois leões se tinham amado.”
A motivação do seu passeio ao zoológico, sua busca visa ao conhecimen-
to do amor e ódio fêmeos pelo macho predador na primavera. Para isso vai pas-
sar em revista todos os animais expostos nas jaulas. O zoológico já não é mais
o que era: os animais por detrás das jaulas já estão todos d’homensticados (para
traduzir o jogo de palavras de Jacques Lacan), isto é, desprovidos paradoxalmen-
te da qualidade de predadores. A lista é longa. A girafa é uma “virgem de tran-
ças recém-cortadas”. O macaco velho “tinha um véu branco gelatinoso cobrin-
do as pupilas”. O elefante parecia mero brinquedo de crianças no circo. O
camelo se reduzia à imagem de mandíbulas pacientes. Onde os machos preda-
dores? Em troca da revolta diante do embuste acata a viagem pela montanha
russa: “Foi sozinha ter a sua violência”. Quis ver lá do alto o mundo cá de bai-
xo, o mundo cabisbaixo. Quem sabe se encontraria o que procura? Nada. Vol-
ta a pôr os pés no chão. Depara com o velho amigo quati, um ingênuo e anti-
go freqüentador dos textos curtos.
A mulher do casaco marrom encontraria o que buscava no seu passeio,
atingiria a solidão e a paz interior no ambiente atolado de jaulas e habitado por
animais selvagens? Ali não deveriam estar morando os mais antigos predadores
do gênero fêmeo? Na anotação “Medo do desconhecido”, Clarice Lispector per-
gunta: “Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer
como uma angústia, como um grande silêncio? A quem dou minha felicidade,
que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta?”58 A que macho
doar o corpo de fêmea em ato de amor-ódio-amor?
O búfalo preto a olha. Dá-lhe as costas. A mulher do casaco marrom ten-
ta em vão despertar a atenção do animal, seduzindo-o com a voz. Várias vezes
exclama: “Ah!” Finalmente o búfalo se deixa seduzir pelo chamado e lhe volta
os olhos. Dentro dela “escorria enfim um primeiro fio de sangue negro”, o da
fêmea inocente e ferida, odiada, desprezada e amada desde sempre pelo macho
predador. O animal fêmeo está tão pré-disposto ao ódio, tão pré-disposto ao
amor quanto o macho. Doadora e doador, donatária e donatário extraem do
ódio a ferocidade do amor: “Lá estavam o búfalo e a mulher frente a frente. Ela
não olhou a cara, nem a boca, nem os cornos do animal. Olhou seus olhos”.
Leiamos ainda:

217
Eu odeio, disse implorando amor ao búfalo. [...] Lentamente a
mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tran-
qüilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça incré-
dula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fun-
do dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro
de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa
como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mes-
ma cravara (p. 167).

Ao morrer simbolicamente pelo punhal cravado pela fêmea, o búfalo te-


ria refletido que os olhos da mulher de casaco marrom eram olhos de cigana
oblíqua e dissimulada. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma
força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de
ressaca.

Apêndice

O texto “Seco estudo de cavalos”, re-escreve parte considerável do pri-


meiro capítulo do romance A cidade sitiada 59. Por razões de espaço, estamos re-
produzindo apenas um parágrafo do romance, oferecendo entre colchetes as di-
ferenças que se encontram no texto curto:

Na inveja do desejo o [meu] rosto adquiria a nobreza inquieta de


uma cabeça de cavalo. Cansada, jubilante, escutando o trote sonâmbu-
lo. Mal [eu] saísse do quarto sua [minha] forma iria se avolumando e
apurando-se [apurando], e [,] quando chegasse à rua [,] já estaria a galo-
par com patas sensíveis, os cascos escorregando nos últimos degraus [da
escada da casa]. Da calçada deserta [eu] olharia: um canto e outro. E ve-
ria as coisas como um cavalo [as vê. Essa era a minha vontade.] (p. 20).

Descartemos de maneira radical todo e qualquer pensamento de embus-


te ou mistificação por parte de Clarice. Em crônica datada de 20 de março de
1971 e por nós citada na nota 21, Clarice informava o leitor de que tinha es-
crito muito sobre cavalos, haja vista – exemplificava – o primeiro capítulo do

218
romance A cidade sitiada. A chave da leitura genética do texto curto de 1974 já
está no romance de 1949 e na crônica de 1971.
À semelhança do que acontece no nouveau roman francês dos anos 1960,
em especial nas primeiras obras de Alain Robbe-Grillet,60 a repetição é, no con-
junto dos textos longos e curtos de Clarice Lispector, figura textual importan-
te no processo – ou na psicologia – de composição. Não a repetição ipsis litte-
ris, espécie de plágio dela mesma, mas a repetição em diferença.
Acrescentemos que deixa a desejar a explicação das repetições pela pers-
pectiva da análise marxista, que refuga para o “mundo das essências” o que jul-
ga ser certa imobilidade etérea ou idealista do texto clariciano. Para essa crítica,
o texto de Clarice seria incapaz de dar conta da vida material. Ao contrário do
que pensam os marxistas de vista curta, texto e contexto coabitam o mesmo es-
paço textual clariciano. Para início de conversa, analise-se o parágrafo dado aci-
ma como exemplo. Na transcrição do texto longo, o texto curto foi perdendo o
contexto, trabalhado à exaustão no romance, e o fragmento do conto “Seco es-
tudo de cavalos”, ao final, se alça sob a forma de série de reflexões em forma de
aforismos, completamente dominados pela subjetividade do escrevente.
Examinemos em seguida o contexto de A cidade sitiada. Ali se mostra o
processo histórico e social por que passou a cidade de S. Geraldo para atingir a
condição de metrópole, processo semelhante ao descrito por Oswald de Andra-
de no célebre poema “pobre alimária” (Poesia pau-brasil, 1924). Oswald narrava
a modernidade de São Paulo pelo conflito entre o carroceiro (o Brasil arcaico) e
o motorneiro do bonde (o Brasil moderno).61 No romance de Clarice, o subúr-
bio “misturava ao cheiro de estrebaria algum progresso” e “não se poderia atra-
vessar uma rua sem desviar-se de uma carroça que os cavalos vagarosos puxavam,
enquanto um automóvel impaciente buzinava atrás lançando fumaça” (p. 11).
Ao perder o contexto desenvolvimentista e assumir a escrita do eu, o tar-
dio “Seco estudo de cavalos” perde também certa objetividade que o narrador
do romance exercia sobre o tema da metamorfose do humano em animal, res-
secando-a pela subjetividade brutal. Pela descrição da conversa entre homem e
animal, tal como está num e no outro texto, exemplifiquemos o contraste en-
tre a objetividade narrativa e a subjetividade brutal. No texto curto de Clarice
Lispector se recalcam, por exemplo, “os gritos com que os carroceiros imitavam
os animais para falar com eles [grifo nosso]”, manifesto no romance. Essa obser-

219
vação no texto longo pode ser colocada ao lado de trecho da crônica “Bichos”
(A descoberta do mundo): “Conheci uma mulher que humanizava os bichos, con-
versando com eles [...]. Mas eu não humanizo os bichos, acho que é uma ofensa”
[p. 519, grifo nosso].
Voltando ao exemplo dado acima, digamos que o convite à leitura – em
contraste e diferença – dos textos ditos semelhantes nos mostrará que a maio-
ria dos colchetes (que contêm as diferenças, repitamos) foi preenchida por pro-
nomes pessoais em primeira pessoa, subjetivizando as frases objetivas, que ti-
nham sido tomadas de empréstimo ao romance. No texto curto, desaparecem
o narrador objetivo e o personagem em terceira pessoa – Lucrecia, a “moça”.
Ambos são substituídos pelo narrador-personagem subjetivo, um eu que passa
a representar e a agir como a “moça” Clarice. Esse eu é o novo responsável pe-
la narrativa da experiência com cavalos e também pelas novas observações de
caráter comportamental e filosófico sobre “moça e cavalo”. Releiam esta frase,
que se refere a Lucrecia, com e sem os colchetes: “Na inveja do desejo o [meu]
rosto adquiria a nobreza inquieta de uma cabeça de cavalo” (p. 20).
A in-diferenciação entre ficção e confissão é bastante comum em escri-
tores que repousam sua escrita em processos que o francês Michel Foucault qua-
lificou de “subjetivação”, ou seja, processos em que há um movimento de resse-
mantização do sujeito pelo próprio sujeito. De maneira geral, estamos falando de
escritores que abastecem os escritos ficcionais com os diários íntimos e as car-
tas que escreveram.62 Transformam-se em pastos de predileção para a crítica ge-
nética, que se exercita nos jogos da diferença dentro da repetição. Eis dois exem-
plos de romancistas na literatura francesa, pasto e delícia dos críticos que
contrastam ficção e confissão: Stendhal, em Le rouge et le noir (1830) e Lucien
Leuwen (póstumo, 1855), André Gide, no seu La porte étroite (1909) e nas car-
tas à esposa Madeleine. Na literatura brasileira, cite-se o célebre caso de Graci-
liano Ramos, como o descreve Antonio Candido nestas palavras tomadas de
Ficção e confissão:

Assim, parece que Angústia contém muito de Graciliano Ramos,


tanto no plano consciente (pormenores biográficos) quanto no incons-
ciente (tendências profundas, frustrações), representando a sua projeção
pessoal até aí mais completa no plano da arte. Ele não é Luís da Silva

220
[personagem de Angústia], está claro; mas Luís da Silva é um pouco o re-
sultado do muito que, nele, foi pisado e reprimido. E representa na sua
obra o ponto extremo da ficção; o máximo obtido na conciliação do de-
sejo de desvendar-se com a tendência de reprimir-se, que deixará breve-
mente de lado a fim de se lançar na confissão pura e simples.63

Clarice Lispector pertenceria a essa categoria muito especial de ficcionis-


tas, onde é alta a densidade autobiográfica nos textos propriamente ficcionais.
É alta e pode ser medida e avaliada através de jogos contrastivos de responsabi-
lidade da crítica especializada, ou da crítica genética.
Seria pretensioso afirmar que o estudo sobre o texto curto, que ora apre-
sentamos, pode servir de instrumento na análise dos textos longos?
A pergunta e os demais tópicos levantados neste apêndice são a ponta do
iceberg. Sobram sugestões, faltam pesquisa e análise.

Silviano Santiago, ficcionista, poeta, ensaísta e crítico literário, doutorou-se em literatura france-
sa na Sorbonne – onde foi professor visitante entre 1982 e 1984. Lecionou literatura brasileira
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e na Universidade Federal Fluminense.
Publicou, entre outros, Em liberdade (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, prêmio Jabuti do mes-
mo ano), Stella Manhattan (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985), Uma história de família
(Rio de Janeiro: Rocco, 1992, prêmio Jabuti de 1993) e O falso mentiroso (Rio de Janeiro:
Rocco, 2004), romances; O banquete (Rio de Janeiro: Saga, 1970) e Keith Jarret no Blue No-
te (Rio de Janeiro: Rocco, 1996, prêmio Jabuti de 1997), contos; Carlos Drummond de Andra-
de (Petrópolis: Vozes, 1976), Uma literatura nos trópicos (São Paulo: Perspectiva/Secretaria da
Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978) e Nas malhas da letra (São Paulo:
Companhia das Letras, 1989), ensaios.

NOTAS

1 A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.


2 Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1899.
3 “Introduction théorétique sur la vérité et le menson au sens extra-moral”. Le livre du philosophe (edição bilíngüe). Paris: Aubier-Flamma-
rion, 1969, p. 175. Trata-se de curto texto, de 1873, que por anos permaneceu inédito. O trecho aqui transcrito foi traduzido por mim.
4 A carta que estamos comentando se encontra reproduzida em CARELLI, Mario. Corcel de fogo – Vida e obra de Lúcio Cardoso (1912-
1968). Rio de Janeiro: Guanabara, 1988, pp. 43-4.
5 Poesia completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2001, v. II, p. 905.

221
6 Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
7 Lembre-se, ainda, o início de “Vestida de preto” (Contos novos. São Paulo: Martins, 1956, p. 7), do mesmo autor: “Tanto andam ago-
ra preocupados em definir o conto que não sei bem si o que eu vou contar é conto ou não, sei que é verdade”. A máxima marioandra-
dina sobre o gênero está em O empalhador de passarinho.
8 Estamos traduzindo por automodelagem o termo “self-fashioning”, criado por Stephen Greenblatt (Renaissance self-fashioning – From
more to Shakespeare). Chicago: University of Chicago Press, 1980, e apresentado a nós por Beatriz Jaguaribe. Já modelagem terá o sen-
tido de imagem do sujeito de responsabilidade do olhar alheio.
9 “A partida do trem”. In: LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 34.
10 Ibidem, p. 32.
11 Memórias póstumas de Brás Cubas (In Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1971, v. I, CXVII, “O humanitismo”, pp. 614-617). Leia-
se ainda esta passagem do mesmo romance: “Que diz ele [o filósofo Pascal]? Diz que o homem tem ‘uma grande vantagem sobre o res-
to do universo: sabe que morre, ao passo que o universo ignora-o absolutamente’. Vês? Logo, o homem que disputa o osso a um cão
tem sobre este a grande vantagem de saber que tem fome [...] ” (CXLII, “O pedido secreto”, p. 630).
12 “A partida do trem”. Ibidem, p. 45.
13 “Lúcio, estou com saudades de você, corcel de fogo que você era, sem limite para o seu galope”. Jornal do Brasil, 11 de janeiro de 1969
(“Lúcio Cardoso”, texto incluído em A descoberta do mundo; Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, pp. 243-245).
14 Tradução de Clarice Lispector. In Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 15.
15 Retrato do artista quando jovem. Tradução José Geraldo Vieira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 287.
16 São Paulo: Perspectiva/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.
17 As duas citações encontram-se em: “Morte de uma baleia”. In: LISPECTOR, Clarice. Visão do esplendor. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1975, p. 146.
18 México: Fondo de Cultura Económica,1957, p. 52. Tradução de SS.
19 In Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1990, p. 22.
20 In Onde estiveste de noite. Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 18.
21 Na coletânea de crônicas e anotações intitulada A descoberta do mundo, lemos “Bichos”: “Quanto a cavalos, já escrevi muito sobre ca-
valos soltos no morro do pasto (A cidade sitiada. [Rio de Janeiro: A Noite, 1949]), onde de noite o cavalo branco, rei da natureza, lan-
çava para o ar o seu longo relincho de glória. E já tive perfeitas relações com eles. Lembro-me de mim adolescente, de pé, com a mes-
ma altivez do cavalo, passando a mão pelo seu pêlo aveludado, pela sua crina agreste. Eu me sentia assim: ‘a moça e o cavalo’”.
22 Ibidem, pp. 92-4.
23 In Poesia completa, v. I, pp. 165-168.
24 Ibidem, v. II, pp. 962-963.
25 “A partida do trem”, ibidem, p. 38.
26 As duas últimas citações foram tomadas a “Seco estudo de cavalos”. In Onde estivestes de noite, p. 49.
27 Do livro Onde estivestes de noite. Sobre o conto, ver ainda o “Apêndice”, no final deste ensaio.
28 Segundo o dicionário eletrônico Houaiss (Rio de Janeiro: Objetiva, 2002), “armação” (v. verbete) é: “(1) O conjunto de peças que for-
mam a estrutura ou arcabouço de alguma coisa” e “(2) Aquilo que se planeja ou encena com a finalidade de lograr alguém, de obter
alguma compensação ilícita etc.”
29 Cf.: “O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura; e nela então o
humano do homem se refugia” (“Tempestade de almas”, grifo nosso).
30 “Brasília”. In Visão do esplendor, p. 13.
31 Notar que Clarice na sua relação com o pensamento de origem, manejado pelos nossos principais intelectuais pós-coloniais, rechaça o
vocábulo saudade, luso e ocidentalizante, e adota o neutro nostalgia. Joaquim Nabuco, em capítulo de Minha formação (1898), nos dá
o melhor exemplo do pensamento de origem, cujo epicentro é a Europa ou o ocidente. Afirma: “De um lado do mar, sente-se a au-
sência do mundo; do outro, a ausência do país”. Contraste-se a nostalgia da origem das espécies, experimentada por Clarice.
32 Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974, pp. 51-6.
33 Ibidem, p. 56.
34 Loc. cit.
35 No episódio, diz-se que nada, absolutamente nada “em mim pudera vencer o fervor / que me impelia a conhecer o mundo, e dos ho-
mens os vícios e o valor” (“vincer potero dentro a me l’ardore / ch’i’ebbi a divenir del mondo esperto / e de li vizi umani e del valore”). Tra-
dução de Ítalo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 178.
36 Em atitude despudorada, sugiro a leitura das páginas iniciais do meu romance Viagem ao México (Rio de Janeiro: Rocco, 1995).
37 Nosso especialista em Hobbes, Renato Janine Ribeiro, esclarece em nota do livro Ao leitor sem medo (Belo Horizonte: Editora da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais – UFMG, 1999, p. 254): “A frase que Barthes atribui a Hobbes [...] é quase certamente apócrifa. Não
está nas obras inglesas de Hobbes, nem em seus manuscritos da British Library [...]”. Segundo o estudioso paulista, na obra citada, tu-
do faz crer que se trata de reelaboração pela memória do crítico francês da célebre frase da autobiografia do filósofo: “Minha mãe pa-
riu gêmeos, eu e o medo”.
38 LISPECTOR, Clarice. Seleta. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro – INL, 1975, p. XIV. A frase está no de-
poimento que ela prestou a Renato Cordeiro Gomes.
39 Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973, p. 78. Tradução de SS.
40 Para que se entenda, por contraste, o peso e a força do individualismo de Clarice Lispector, razão deste ensaio, leia-se esta passagem de
óbvio sentido metafórico, retirada do diário de André Gide. Nela, o escritor francês explica porque se retém, se detém, em favor dos
menos hábeis ou mais fracos: “É o caso dessas escaladas de montanha, em que o jovem Gérard surpreendia-se com o meu desejo de

222
que [minha esposa] me acompanhasse. – Você iria tão mais longe, se aceitasse ir sozinho, dizia-me ele, na frente dela. – É claro, sei
muito bem disso; mas o que me interessa não é eu próprio ir longe, mas levar alguém até lá”. (Journal. Paris: Gallimard, 1958, vol. 1,
p. 679. Tradução de SS.
41 Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 78.
42 Segundo Clarice, a expressão “perigo de viver”, usada por ela no conto “Amor”, marca a “alegria de encontro” com Guimarães Rosa:
“Minha vaidade é que Guimarães Rosa, com o seu célebre ‘viver é perigoso’, tenha tido a mesma sensação que eu” (“Viver é perigo-
so”). In Visão do esplendor, p. 38.
43 Visão do esplendor, pp. 75-7.
44 Grande sertão: veredas, p. 76. Na mesma obra, lê-se: “Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos;
que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 370.
45 Poesia completa, v. I, p. 75.
46 Laços de família, p. 167.
47 A descoberta do mundo, p. 42.
48 In Obras completas. Tradução de Flávio José Cardoso. São Paulo: Globo, 1999, v. I, pp. 627-631. Borges nos fala da moça que, ao que-
rer vingar a morte do pai e fazer justiça com as próprias mãos, põe o pretenso culpado contra a parede, acusando-o de estupro. Na rea-
lidade, se entregara propositadamente a um marinheiro escandinavo e a perda da virgindade era álibi para justificar o futuro assassina-
to e fazer a polícia crer na sua inocência. Até aí o engenho ficcional irônico de Borges funciona a pleno vapor. Leitores mais recentes
do conto, como Beatriz Sarlo, autora de La pasión y la excepción (Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2003), têm insistido na força dos se-
dimentos trágicos na trama borgesiana. Levam-nos a atentar para uma frase aparentemente insignificante do conto e altamente revela-
dora. Ao se entregar ao marinheiro, Emma “pensou (não podia deixar de pensar) que seu pai tinha feito a sua mãe a coisa horrível que
lhe faziam agora”. Comenta Beatriz Sarlo: “Emma Zunz, para vingar a morte do pai, inventa um plano que a submete a uma violên-
cia equivalente à que seu pai, vinte anos atrás, exercera sobre sua mãe. Admite, tacitamente, que ela é filha dessa violência e, apesar dis-
so (ou por isso mesmo), segue os passos da vingança” (p. 118; tradução de SS).
49 “Morte de uma baleia”, ibidem, pp. 143-146.
50 Em conversa com os alunos dum curso de criação literária da PUC-RJ, nos anos 1970, Clarice insistiu em dizer que seu maior prazer
era o de trabalhar o barro com as mãos, à semelhança de um oleiro. Na época, adepto da estética de João Cabral de Melo Neto, tomei
as palavras como o elogio do trabalho por assim dizer braçal e diuturno da escrita. Agora, releio algumas anotações da Bíblia sagrada
(Petrópolis: Vozes, 2001) e deparo com esta passagem: “A imagem de Deus como oleiro, que molda o homem do barro, é reforçada
pelo nome dado ao ser humano (Adam) que vem da terra (Adamah).” (p. 25).
51 Reparem a diferença: se for afirmado que Deus é Negro ou que Deus é Índio, não se trata de teologia às avessas, já que o princípio
masculino continua dominante. Nos dois casos temos apenas um processo de desconstrução do etnocentrismo.
52 “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais
é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nas-
ce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ – e este Não é seu ato
criador. Essa inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio
do ressentimento: a moral escrava requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fun-
do reação” (Genealogia da moral, I, 10. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998). De maneira sim-
plificada, acrescentemos que a rebelião fêmea na moral começa quando o próprio medo se torna criador de vida e gera valores, quan-
do o silêncio vela e revela o segredo da morte, minimizando o império do sofrimento.
53 “Morte de uma baleia”, ibidem, p. 144.
54 Da perspectiva do Homem, ou seja, do filósofo Nietzsche, o duplo Sim à vida se encontra na experiência da mulher grávida, ao dar à
luz o filho. Leia-se O crepúsculo dos deuses, em especial o capítulo intitulado “O que eu devo aos antigos”: “Na ciência dos mistérios, a
dor é sagrada: e era o ‘trabalho do parto’ que a tornava sagrada – todo o devir, todo o crescimento, tudo aquilo que nos garante um
futuro exige que haja dor... As ‘dores do parto’ são indispensáveis à alegria eterna da criação, à eterna afirmação da vontade de vida...”
[Grifos do filósofo. Tradução de Maria do Carmo Ravara Cary. Lisboa: Editorial Presença, 1971, p. 146. Aproxime-se da citação o co-
nhecido verso de Mário de Andrade que se encontra nas cartas a Carlos Drummond, Manuel Bandeira e vários poemas: “A própria
dor é uma felicidade”. (In A lição do amigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 42).
55 “Morte de uma baleia”, ibidem, p. 146.
56 A fim de se evitar uma leitura cristã do amor, leia-se esta passagem do conto que estaremos analisando ao final deste ensaio: “O mun-
do de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam [grifo nosso] em patas que arranham mas não dói... oh não
mais esse mundo! Não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em que tudo o que um dia vai morrer como
se fora para dar-se”. (“O búfalo”. In Laços de família, p. 163).
57 ELIOT, T.S. A terra desolada. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 89.
58 A descoberta do mundo, p. 30.
59 A cidade sitiada, pp. 7-22.
60 Ver o romance La jalousie (1957), por exemplo, ou o filme O ano passado em Marienbad (1961), da dupla Alain Resnais/Robbe-Grillet.
61 Para uma leitura do poema, ver “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, de Roberto Schwarz. In Que horas são? São Paulo: Com-
panhia das Letras, pp. 11-28.
62 Espero que a estratégia de leitura de “Bestiário” tenha ficado clara. Tínhamos de abri-lo com um documento de ordem pessoal (carta
a Lúcio Cardoso) e terminá-lo por um outro de caráter ficcional (“O búfalo”); tínhamos de não diferenciar conto, crônica e anotação,
e adotar a classificação de texto curto para todos eles.
63 Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 43.

223
Bichos e flores da adversidade*
Vilma Arêas

Mas por que (Deus) faz ratos? Não sei.

A vida íntima de Laura1


Você já comeu gato por lebre?”
A pergunta foi feita a Clarice Lispector pelo jornalista Yllen Kerr.2 A es-
critora entra imediatamente no jogo, traduzindo com vivacidade situações da
vida adulta nos termos da fábula que subjaz à expressão.

Como gato por lebre a toda hora. Por tolice, por distração, por
ignorância. E até às vezes por delicadeza: me oferecem gato e eu agra-
deço pela falsa lebre, e quando a lebre mia, finjo que não ouvi. [...]
Mas a variedade do assunto está exigindo uma enciclopédia. Por exem-
plo, quando o gato se imagina lebre. Já que se trata de gato profun-
damente insatisfeito [...]. E há casos em que o gato até que quer ser
gato mesmo, mas lebresse oblige, o que cansa muito. (A descoberta do
mundo, p. 692)

A pontuação das situações traduzidas, como vemos, é clara: o disfarce


da ferocidade, a alusão a Machado de Assis na versão de 1963 (“um professor
de melancolia diria que já serviu de lebre a muito gato ordinário”), a auto-re-
ferência (o gato insatisfeito), o jogo social, sempre incômodo, exigindo o le-
bresse oblige etc.

* Este texto retoma passagens do artigo Children’s corner, publicado na Revista da USP, n. 36, dez. 1997/jan.-fev. 1998, pp. 145-155.

224
A resposta ao jornalista não deixa também de ser curiosa por sublinhar
a construção em linhas cruzadas e referências alusivas, obedientes ao jogo ana-
lógico peculiar a muitas páginas da autora e à construção de suas fábulas infan-
tis. Apesar disso o gênero certamente não foi um projeto de Clarice, embora ela
tenha obsessivamente escrito sobre crianças, adolescentes e bichos, além de ter
confessado a aspiração a que um dia chegasse a um fim “a longa gestação da in-
fância e de sua dolorosa imaturidade”. O ato de escrever, entretanto, não exigi-
ria a falta de orgulho e de pudor daquelas pessoas que “a qualquer instante se
confiam a estranhos”? Isso não significaria a nudez da infância? Mas haveria ou-
tro jeito? “Assim antes da morte”, prometeu, “ligar-se-ia à infância pela nudez”.3
Foi após seu retorno ao Brasil, em 1959, que a escritora lançou três li-
vros infantis: O mistério do coelho pensante (uma história policial para crian-
ças), obra escrita em inglês nos anos 50, sem o propósito de publicação, edi-
tada em 1967, e A mulher que matou os peixes (1968), espécie de peça jurídica
algo jocosa para culpar ou inocentar uma personagem que de saída se confes-
sa culpada, e A vida íntima de Laura (1974), adaptada ao teatro por José Cal-
das, em 1981.4 Separada do marido naquele ano em que regressou ao país,
Clarice precisava ganhar a vida escrevendo, fossem crônicas, entrevistas, com-
pilação rebatizada de obras anteriores – e livros infantis. Essa produção obri-
gatória a exasperava porque contradizia visceralmente seu processo criativo e
ela acabou inventando uma estratégia para se vingar dessa situação, como es-
pero demonstrar. Após sua morte, duas obras, ambas publicadas em 1987,
completariam a série de obras dedicadas a crianças: Quase de verdade e Como
nasceram as estrelas, doze lendas brasileiras, este escrito, entretanto, em 1977,
para um calendário patrocinado pela fábrica de brinquedos Estrela.
Esses livros portanto obedecem a sugestões e/ou imposições editoriais, a
exemplo de A via crucis do corpo. Nunca foram muito cuidados nem pela crítica,
nem pela escritora5, que jamais pareceu estar convencida da segregação de textos
por faixa etária.6 Eis o que nos diz em A mulher que matou os peixes:

Eu até já contei a história de um coelho num livro para gente pe-


quena e para gente grande. [...] Gosto muito de escrever histórias para
crianças e gente grande. Fico muito contente quando os grandes e os pe-
quenos gostam do que escrevi (p. 19).

225
Além disso, todos conhecem o desejo da escritora de elaborar uma his-
tória começada por “era uma vez...”, convencida de que o bordão não a limita-
ria ao público infantil; ao contrário seria dirigida “a adultos mesmos”. E todos
sabemos como terminou essa tentativa de “relatar um acontecimento”: “Era
uma vez um pássaro, meu Deus!” (A legião estrangeira, p. 140). Pouco antes de
morrer, na curiosa história Quase de verdade, “latida” por seu cachorro Ulisses,
ela, isto é, o cão-narrador, insiste: “Era uma vez... Era uma vez: eu!”
Haverá entretanto um tom especial? É o que lemos numa crônica-carta
de 21 de agosto de 1971, endereçada a um desconhecido que discordara de crô-
nica anterior. Clarice parece temer desagradar, desculpa-se e de repente muda
de assunto, passando a falar de A vida íntima de Laura, em elaboração:

[...] é o nome de uma galinha – precisarei descansar um pouco e


cortar qualquer brilho excessivo aos olhos e qualquer aspereza. Porque é
preciso mansidão e muita quando se fala com crianças. [...] E falar de-
vagar. Sem pressa contar a minha história da galinha. Nessa história há
alegrias e tristezas e surpresa. Não vê que até já estou mais mansa? (A des-
coberta do mundo, p. 581).

Apesar disso – e voltaremos ao assunto – julgo não haver dúvidas de que


as estratégias textuais utilizadas pela escritora em toda a sua obra são basicamen-
te as mesmas7: textos fragmentados, mesmo quando escritos a fio, e muitas ve-
zes revelando um surpreendente inacabamento ou indiferença a composições
rematadas. “Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo
que desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão”, escreve
ela na “Introdução” a “Fundo de gaveta”8. Além disso, em todos os textos os di-
lemas existenciais, sempre presentes, não são enfrentados categoricamente; há a
mesma dificuldade em fornecer respostas (“não sei” é a entrega maior, afirma)
e em muitas histórias personagens ou cenas são antes únicos do que típicos, o
contrário do que se espera de certa produção infantil e dos contos de fadas. O
deslizamento dos textos de um livro para outro, pela obrigatoriedade também
da produção sistemática, faz com que esses traços de composição se percam às
vezes numa vaga arbitrariedade. A esse respeito tem interesse examinar as his-
tórias do calendário patrocinado pela Estrela, acima citado. O livro é compos-

226
to, como indica seu subtítulo, de 12 histórias, uma para cada mês, colhidas nos
ciclos do folclore aborígene e africano, ou na tradição peninsular – como a nar-
rativa de Malasarte –, passando por soluções encontradas por Monteiro Loba-
to, visíveis na história do Saci, e pelos próprios textos da escritora. Será um bom
exercício comparar a história de dezembro, “Uma lenda verdadeira”, enquanto
variante de “Na manjedoura”, texto original publicado em 1964 em A legião es-
trangeira e republicado no Jornal do Brasil de 24 de dezembro de 1971, intitu-
lado “Hoje nasce um menino”, finalmente re-republicado em 1984 em A des-
coberta do mundo. O primeiro, simples anotação, mas escrito sem injunções, é
de superioridade indiscutível. Por seu turno as variantes pioram pouco a pou-
co com os exageros, trechos intercalados de gosto duvidoso, enfiada de adjeti-
vos etc., substituindo “Uma lenda verdadeira”, não se sabe bem por que, a “pe-
quena família judia” pela “pequena família humilde” – enquanto “espouca no
ar como champanhe o borbulhante Ano Novo”.
O que desejo contudo assinalar é que no texto, elaborado por encomen-
da – logo por ela, que afirmava não ser uma escritora profissional –, Clarice não
disfarça seu desagrado, exibindo de propósito, através da artificialidade de lin-
guagem ou de construção, um descaso cômico e caricato9 (“Neste mês de julho
vou-vos contar”, por exemplo), incongruências raiando o absurdo, que às vezes
funcionam, às vezes não, remates abruptos (“Moral da festa? Bem, não houve.”)
e assim por diante. Podemos interpretar tudo isso, talvez com razão, como uma
espécie de resistência da escritora a imposições em geral, o mal-estar por ceder
ao mercado. Com grande dignidade não se mostra atraente apenas para agra-
dar10, e com desgosto se refere sempre à sua “desgraçada obra literária”.11
Não é também difícil de se perceber que os temas obsessivos da escrito-
ra rondam todos os textos, tecidos segundo uma visão sombria e não idealiza-
da do mundo.12 Sua indiferença à sentimentalidade consoladora toma também
formas variadas. Pode-se, por exemplo, comparar em todas as épocas a infini-
dade de historietas e poemas sobre a abnegação e fidelidade dos cães – os mais
velhos devem se lembrar do famoso “Eu tive um cão. Chamava-se Veludo”, de
Luiz Guimarães, lido no outrora também famoso Tesouro da juventude – com
o episódio envolvendo esses animais em A mulher que matou os peixes. Nesse li-
vro, dois cães, amicíssimos, vivem uma história trágica e impressionante, pois
“a lei dos cachorros é a vingança” e eles “não se perdoam”.

227
A visão da criança do mesmo modo está longe da puerilidade em todos
os textos. Basta-nos pensar no episódio de Ofélia com o pinto, ou no arrepian-
te “O primeiro aluno da classe” de A legião estrangeira.13

Seu segredo é um caracol. O cabelo é bem cortado, os olhos são


delicados e atentos. [...] Seu segredo é um caracol. Do qual não se esque-
ce um instante. Seu segredo é um caracol que o sustenta. Ele o cria nu-
ma caixa de sapato com gentileza e cuidado. Com gentileza diariamen-
te finca-lhe agulha e cordão. Com cuidado adia-lhe atentamente a morte.
Seu segredo é um caracol criado com insônia e precisão (p. 205).

Esse texto, com seu ritmo de fatalidade, vem misturado às líricas anota-
ções infantis de “Fundo de gaveta” (“Fiz hoje na escola uma composição do Dia
da Bandeira tão bonita, mas tão bonita... pois até usei palavras que eu não sei
bem o que querem dizer” (A legião estrangeira, p.151) e imediatamente antes do
extraordinário “Desenhando um menino”. Se argumentarem que o livro citado
não é para crianças, recordo que não será difícil observar o aspecto contraditó-
rio dos sentimentos, das pessoas e dos bichos em qualquer dos cinco livros in-
fantis de Clarice, pois seus temas transitam freqüentemente de uns para outros,
e da crônica jornalística para os volumes. Receitas, por exemplo, para matar ba-
ratas e ratos, “bichos naturais” e não “convidados”, conforme argumenta em A
mulher que matou os peixes, saltam das páginas femininas para contos infantis
(ou não), e para os romances, polvilhados também de humor.14

Até hoje não se sabe se os ratos vivem perto da gente porque so-
mos criaturas simpáticas, ou porque eles nos classificam de “animais
úteis”. [...] quem sabe se somos para os ratos um “mal necessário” – com
o jeito como se assustam conosco é de crer que eles ainda não descobri-
ram um remédio contra pessoas. Nem nós. Isto é, não descobrimos o re-
médio perfeito contra ratos.

Esse é um texto dos anos 60, na seção “Nossa conversa” do Diário da


Noite, assinado com o nome de Ilka Soares, num contrato a quatro mãos, o que
mostra seu intuito de esconder-se pelo embaraço15, repito, diante dessa produ-

228
ção forçada. O tom de ironia um pouco sarcástica não deixa de ser uma respos-
ta a esse constrangimento.
Pois bem, tal desobediência às convenções e aos bons modos literários
faz-se imbatível principalmente nos dois primeiros livros infantis. O mistério
da fuga do coelho pensante, que raciocina franzindo o nariz, não é resolvido
(“Mas aí é que está o mistério: não sei!”), enquanto A mulher que matou os pei-
xes se apresenta como uma colcha de retalhos de episódios velhos e novos amar-
rados frouxamente pelo fio do assassinato dos peixes confiados à narradora. À
semelhança do que faria em A hora da estrela, o assunto aqui custa a começar,
interrompe-se, avança, recua. A primeira linha desfaz qualquer mistério: “Essa
mulher que matou os peixes infelizmente sou eu”. Ela quer o perdão dos leito-
res pelo crime que cometeu sem querer, num tom algo impostado que, diante
das circunstâncias caseiras do entrecho, cria a graça. À semelhança de uma ação
processual, a narradora enfileira histórias de bichos como justificativa de sua
boa vontade para com os animais.
Mas as narrativas não terminam muito bem pelas características pouco
sentimentais de quem as conta, que adora quando uma ratinha de estimação é
devorada por um gato “com a rapidez com que comemos um sanduíche” e que
tem ímpetos de latir em resposta aos cães que ladram num mundo sem harmo-
nia possível: mente-se sem parar, crianças entram em contato com a frustração
quando adultos substituem à socapa a gata da menina por um gato de pano,
provocando uma febre de desgosto que só passa “muito tempo depois” (os lei-
tores adultos entenderão o sentido dessa “febre”); cortar lagartixas com o chi-
nelo “é engraçado” porque cada pedaço solto “começa a se mexer sozinho”, ra-
tos e baratas infestam a casa e são caçados numa “guerra danada” –, e assim por
diante. O enredo é empurrado para diante, saltando de episódio em episódio,
mas sempre embarafusta por um beco sem saída. Então ela “muda de assunto”
até ser encurralada por esgotamento da ficção. “De cavalo não tenho nenhuma
história para contar, e é uma pena etc.” A partir da página 48 há a descrição de
uma ilha “um pouco encantada”. Um cavalo-marinho recebe as pessoas, o fun-
do do mar é azul, com ouriços coloridos e há “pássaros de todas as cores e ta-
manhos”. Mas também “tem muita cobra e muito lagarto. A casa da ilha fica
de portas e janelas fechadas contra mosquitos, lagartos e cobras. Tem também
manadas de antas” (p. 58).

229
Essa espécie de construção oscilante e não edulcorada, que pode desilu-
dir, não deixa de contrariar os procedimentos consensuais de livros supostamen-
te infantis. Do mesmo modo ela não evita o “mau gosto”, que define como “es-
tilo empoeirado”, sempre uma sedução para Clarice, conforme confessa a
Sabino durante a escrita de “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”16:
“Não está pronto e está tão ruim que até fico encabulada. Mas você não ima-
gina o prazer...”17 Não tenho dúvidas de que esse prazer virá da desobediência
às regras e da liberdade de fazer o texto “descarrilhar”, usando “frases-brinque-
do com uma mola escondida”, conforme afirma na mesma carta. Mas às vezes
o leitor não sabe se ela “descarrilha” porque quer, ou porque não pode ou não
se interessa em fazer diferente.
Em Quase de verdade a transformação surge dentro do próprio tema da
história, que didaticamente descreve a exploração do trabalho e a ação revolu-
cionária levada a cabo pela galinha Odissea e pelo galo Ovídio. Os nomes pró-
prios merecem comentário. Neles se inscreve o traço de ironia e rebaixamento
através do conflito de sentidos, também presente na “Macabéa” e no “Olímpi-
co” de A hora da estrela. Por outro lado, acredito que não será absurdo pensar
que eles ecoam de longe o procedimento do inglês Edward Lear (1812-1888)
em seu famoso The book of nonsense, no qual destinos e tramas muitas vezes são
determinados, não pela fatalidade, mas pela rima. Tomando o procedimento
pela outra ponta, em Quase de verdade os nomes são escolhidos pela anáfora, ou
rima inicial, criada pela letra “o”, exigida pela palavra “ovo”. Não terá sido por
acaso que Shelley Slotin compôs “Limericks of the ABSURD” or “The Agony &
the Eggstasy”18, imitando Lear via Clarice. De qualquer modo, a relação esta-
belecida desnuda procedimentos de composição da escritora, aproximando-os
de um certo mundo caótico, da solidão individual etc. do existencialismo, e que
no teatro do absurdo, mas também em Kafka, alude à estrutura social altamen-
te administrada e alienante da modernidade. As convenções dessa tradição que
incorporam atos variados, improvisação, humor e comicidade clownesca não es-
tão ausentes da ficção clariciana, como venho procurando mostrar.
Pois bem, Odissea e Ovídio se rebelam contra uma “figueira ditadora”
(década de 70, anos ditatoriais, não nos esqueçamos), enquanto “os homens
homenzavam, as mulheres mulherizavam, os meninos e meninas meniniza-
vam, os ventos ventavam, a chuva ventava, os ovos ovavam” etc. (aqui a “mo-

230
la” do texto funciona). Ao final, para celebrar a vitória da revolução, os dois
galináceos organizam uma festa para as demais aves, oferecendo-lhes pirulitos.
Quebram-se assim todos os dentes (!) dos amigos. (Passou por aqui, com um
grão de sadismo, a fábula da raposa e da cegonha). A solução alternativa de co-
mer jabuticabas (serão aquelas, deliciosas, do sítio de dona Benta?) deixa des-
ta vez as aves com os caroços no bico. Que fazer? A narradora termina trans-
ferindo o dilema para os leitores: “Até logo, criança! Engole-se ou não se engole
o caroço? Eis a questão”.19
De que forma entender esse desfecho? Como resolver esse “angu de ca-
roço”? Que a vitória não é “para sempre”? Que a escritora quis evitar a “lição
de moral”, que com razão detestava? De qualquer modo, a referência gaiata a
uma grande questão metafísica e dramática, arremate tanto do “to be or not to
be” quanto da historinha latida, desconcerta o leitor, embora ele também pos-
sa conjecturar que “eis a questão” tornou-se frase feita com o correr do tempo.
O principal, no entanto, é que o “final feliz” não surge como solução. “Depois
que se é feliz o que acontece? O que vem depois?”, pergunta à professora a obs-
tinada Joana de Perto do coração selvagem (p. 25).
Claro, podemos também pensar que ela enjoou da história ou dos per-
sonagens, como às vezes confessa, e que terminou “de qualquer jeito”, procedi-
mento aliás recorrente nos autores dramáticos e cômicos – tanto em Shakespea-
re quanto em nosso Martins Pena –, que se desinteressam do desfecho uma vez
resolvido o conflito principal.
Será imprescindível aqui lembrar as palavras de Lispector na “Introdu-
ção” a O mistério do coelho pensante, mas que podemos estender aos outros li-
vros: são histórias para serem contadas, as muitas entrelinhas devem ser preen-
chidas com explicações orais às crianças, sendo importante a contribuição de
quem conta. Isto é, exige-se a cena teatral, com narradores e ouvintes necessa-
riamente em presença.20 A escritora garante que a parte oral é a melhor, e que
o “mistério” significa antes uma conversa íntima do que verdadeiramente uma
história, sendo necessário portanto o “tom especial”. E essa “conversa íntima” é
tecida com o fio solto que assegura o deslizar dos textos. Assim procedendo Cla-
rice nos oferece a própria gestação da escrita e uma espécie de arqueologia de
temas e personagens, em que entram páginas de extração variada. É evidente,
por exemplo, os traços temáticos, embora diluídos, de “A quinta história” na

231
“guerra danada” movida pela narradora de A mulher que matou os peixes. Do
mesmo modo podemos observar, no extraordinário “O crime do professor de
matemática”21, a reconstrução estética de uma experiência pessoal a partir de
suas raízes: o abandono do cão Dilermando, pela impossibilidade de transpor-
tá-lo de Nápoles a Berna, fato angustiadamente relatado em cartas e inúmeros
comentários, além de recontado no livro infantil.
Portanto os textos mais significativos de Clarice vieram em lenta gesta-
ção por narrativas variadas e de pesos diferentes através do tempo, como obra
de alguém que estivera praticando escalas ao piano, à semelhança do que con-
fessou a respeito de “Começos de uma fortuna”.22 É curioso constatar que uma
historinha bem-humorada23 como A vida íntima de Laura também tenha sua
“gravidez de ovo” ao ecoar peças mais exigentes. Do mesmo modo como o per-
feito traçado da progressiva loucura de Laura em “A imitação da rosa”24 já trans-
parece rascunhada na Virgínia de O lustre, também emocionada pelas mesmas
flores antes de um outro jantar.
Não custa repetir que isso não significa que os textos sejam equivalentes
esteticamente. Por exemplo, se o devaneio da Laura, do citado “A imitação da
rosa” (“Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse...” etc., p. 46), é per-
feitamente exigido pela construção da personagem, transforma-se anos depois
no detalhe mais ou menos arbitrário do ser de Saturno que aparece para Miss
Algrave25 e no detalhe caprichoso do ser de Júpiter de A vida íntima de Laura.
“Miss Algrave” é um conto elaborado segundo a melhor convenção cô-
mica envolvendo paródias, idéias fixas e transformações instantâneas por ação
do mágico ser de Saturno chamado Ixtlan, certamente à inspiração do livro Via-
gem a Ixtlan, traduzido entre nós em 1972, do peruano Carlos Castañeda, que
fazia furor no Rio àquela época (A via crucis do corpo é de 1974). O cenário da
trama, uma Londres “onde os fantasmas existem nos becos escuros”, segundo
certa narrativa de segundo time, de algum modo justifica e acolhe Ixtlan na
construção ficcional. Mas na história da galinha Laura, a reviravolta de “burri-
nha” em “prá frente”, encontra apoio frágil na construção e o texto se rompe.
A qualidade patética da galinha – que entende quase nada das coisas, como os
pobres de espírito tão ao gosto de Lispector – cria um halo “um pouco triste”
ao redor da trama, fazendo com que a irrupção jocosa de Xext, gêmeo de Ix-
tlan, não funcione a contento.

232
Vejamos: depois de driblar a morte, disfarçando-se de outra – o resultado
é que a família comeu Zeferina em vez de Laura, “com arroz branco e solto”, re-
gado com molho pardo26, e este seria um final “necessário” segundo o tom clari-
ciano – o texto se interrompe, mas continua, desta vez colado a “Miss Algrave”:

Agora vou contar uma coisa muito bacana. Preciso antes dizer que
Laura era uma galinha prá frente. Tanto que um habitante de Júpiter um
cara que tinha um só olho na testa e era do tamanho de uma galinha –
esse habitante de Júpiter baixou de noite no quintal [...] O habitante-anão
se chamava Xext e foi logo acordar Laura. Laura nem se espantou. [...]
– Olá, bicho. Como é que você se chama?
– Xext, respondeu ele.
– Falou, tá falado, disse Laura (p. 24).

A aposta na oralidade, com descaso do texto escrito, é evidente. Também


não se entende muito bem por que a galinha começa de repente a falar como
os adolescentes do período. Por outro lado, quando o ser de Júpiter assegura a
realização de desejos, o pedido de Laura ecoa a sensualidade cômica de miss Al-
grave, que passara a se sentir “um uivo” após a transformação de santa em pe-
cadora. Aliás, à semelhança do conto “A via crucis do corpo”, “Miss Algrave” é
uma engraçadíssima e grotesca paródia da “Anunciação feita a Maria”.
“Ah, disse Laura, se meu destino for ser comida, eu queria ser comida
por Pelé” (p. 26). Nesse momento Xext, em gesticulação farsesca, repentina-
mente reconduz o conto à infância, ele mesmo um simples menino obediente:

– Mas você nunca vai ser comida e ninguém vai matar você. Por-
que eu não deixo. E agora vou embora, minha mãe está me esperando.
Ela se chama Xexta.
– Tchau, disse Laura.
– Tchauzinho, respondeu Xext e desapareceu (p. 28).

Pouco depois a “cara de ontem” desperta o comentário dúbio da cozi-


nheira, presumivelmente “afiando a faca”. Não é difícil perceber, com tantos sa-
colejos, a impaciência da autora em terminar a história, colando em seu final

233
soluções de outra, escrita no mesmo ano e por necessidade de publicação. Te-
mos de convir que esteticamente a história não termina bem, ilustrando o que
ela, com desalento, afirma em A hora da estrela: “Quanto a escrever, mais vale
um cachorro vivo” (p. 43).
Desse cruzamento de textos, como não poderia deixar de ser, faz parte a
intertextualidade com outros autores. É o que certamente acontece, por exem-
plo, com o livro Les malheurs de Sophie, da Condessa de Ségur 27, título homôni-
mo do conto que abre A legião estrangeira, isto é, “Os desastres de Sofia”. São vi-
síveis na obra de Clarice os traços dessa garota rebelde e desobediente inventada
por aquela autora, ativa no século XIX. A personagem, que rouba sem necessida-
de, mata os peixes do aquário de sua mãe e que por desobediência causa a mor-
te de um pintinho a seus cuidados, deixa pegadas não apenas no conto homô-
nimo de Clarice mas também na Joana de Perto do coração selvagem e em A mulher
que matou os peixes, tocando de leve a sofisticada Ofélia de “A legião estrangei-
ra” no livro homônimo, que escava a temática, dando-lhe outra perspectiva.
As diferenças, contudo, são também flagrantes: apesar da simpatia con-
fessada da Condessa pela desobediente Sofia, batizada com seu próprio nome,
seus livros são romances moralistas, compostos em fragmentos organizados em
pequenas cenas teatrais, inspiradas na vida cotidiana da sociedade aristocráti-
ca do Segundo Império francês, com personagens bastante simplificadas, dis-
tribuindo-se entre o bem e o mal (este, aliás, sempre sai derrotado). É justa-
mente contra essa ordem social congelada, pouco flexível e conservadora, que
se rebela a caprichosa Sofia francesa. Todavia essa rigidez social pode ser apro-
ximada, por outros motivos, à do Brasil, a partir mesmo dos depoimentos de
Lispector. Filha de imigrantes pobres, a pequena Clarice sentia-se “torturada
por uma infância enorme”, mergulhada numa ordem social ingrata para os sem
recursos e reduplicada nas relações escolares desta agora Sofia dos desastres bra-
sileiros. Entretanto a distância maior entre Ségur e Lispector será, ou o total
abandono da moral convencional da história por parte de nossa autora, ou sua
inversão paródica, manobra que empurra o sentido do texto para outro lugar,
como o tesouro que se disfarça em “sujos quintais”, de acordo com a compo-
sição da personagem brasileira.
Essa não-conformidade alinha-se, na poética clariciana, junto a uma
preocupação básica da ficcionista, que já desponta em Perto do coração selva-

234
gem, fechando-se com a “saída discreta pela porta dos fundos” em A hora da
estrela, após atravessar a maioria dos seus textos. Ao mesmo tempo essa angús-
tia sublinha a sintonia da autora com certos dilemas da modernidade. Trata-se
da tentativa de criação da figura do herói, não como mero protagonista, mas
entendida no sentido clássico e mítico, em sua identificação sem mediações
com os valores fundamentais de uma sociedade. Numa só palavra, entendida
em sua necessidade. “O que é que eu faço para ser herói?” – pergunta ela no
conto-título de Onde estivestes de noite. E explica: “[...] porque nos templos só
entram heróis” (p. 65).
Podemos seguir o tema desde seu primeiro livro. Por exemplo, a respei-
to de Joana, afirma seu pai: “Me disse que quando crescer vai ser herói” (p. 22).
No último capítulo, avaliando todas as dificuldades da composição literária, a
protagonista se pergunta: “O que nela se elevava não era a coragem, ela era subs-
tância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer
as coisas?” (p. 196).
A dificuldade da definição do termo faz Virgínia inverter seu sentido em
O lustre: “... errar com essa violência é mais bonito do que acertar, Daniel, é co-
mo ser um herói [...] Você é um herói” (p. 220). Aqui, ao contrário do sentido
clássico, herói é o que não acerta. Numa anotação em A legião estrangeira, Clari-
ce insiste: “Mesmo em Albert Camus – esse amor pelo heroísmo. Então não há
outro modo?” (p. 145). Portanto, o desejo de compor tal personagem, entendida
além disso como o elemento ideal das sínteses elevadas e verdadeiras, como o lu-
gar das formas, atravessa toda a obra da autora. Ela porém esbarra no esgarçamen-
to das vidas comuns, faz-se inalcançável, desequilibrando às vezes o texto.28 Em
suma, Clarice aspira à totalidade, à perfeição dos mundos fechados, circunscritos
na homogeneidade, e não por acaso elege o ovo, símbolo universal, cósmico e au-
to-explanatório como signo particular e superior da perfeição.29 No entanto, obe-
diente ao próprio método, que conjuga pólos antagônicos, como a literatura su-
blime ou barroca30, essa altura se tece também de elementos da matéria viva do
cotidiano, fluindo com a velocidade e os acasos do fluxo de consciência 31, como no
exemplo gritante de “O ovo e a galinha” de A legião estrangeira (pp. 55-66).
O problema da construção do herói, recorrente em grande parte dos fic-
cionistas modernos, como sabemos, é tratado intuitivamente por ela, mas de
forma insistente. Aos poucos toma corpo de maneira talvez brutal, pois ao fra-

235
casso da unidade e à impossibilidade da reintegração é dada uma imagem ím-
par e arrasadora pela banalidade. Tal imagem não possui nem mesmo a estra-
nheza do “inseto monstruoso” em que se vê transformado Gregor Samsa “de-
pois de sonhos intranqüilos”, no clássico A metamorfose, do checo Franz Kafka,
nem é distinguida com a ironia com que os textos do século XX principalmen-
te costumam lidar com a irrecuperável unidade perdida, à semelhança de Joy-
ce.32 Tal imagem é a da galinha.33 Bicho caseiro, oco, sem grandeza, embora abri-
gue em si o incompreensível e perfeito ovo, a galinha é personagem à parte nos
mais diversos textos de nossa autora. Ela já aparece no primeiro poema de Joa-
na, no capítulo de abertura de Perto do coração selvagem, e nos fornece uma das
últimas imagens de Macabéa, tirada pelo molde de “uma galinha de pescoço
mal cortado que corre, espavorida pingando sangue” (p. 97).
Mas é em A vida íntima de Laura que ela recebe seus contornos mais ní-
tidos. Sua não-idealização é absoluta, decalcando em traço grosso o perfil de ou-
tras personagens da escritora. Laura tem “o pescoço mais feio que já vi no mun-
do”, é “bastante burra”, “quase nunca tem sentimentos”, “na maioria das vezes
tem o mesmo sentimento que deve ter uma caixa de sapatos”. O mais curioso
é que Laura “fica toda prosa e boba” só porque não é completamente burra: “Ela
pensa que pensa. Mas em geral não pensa em coisíssima alguma” (p. 10).
Apesar da graça e da comicidade clownesca, Laura, à semelhança de Ma-
cabéa, é descrita com grande simpatia e empatia pela ficcionista, e do mesmo
modo atinge o pathos: ela não confia em ninguém pois o mundo é adverso, e
foge de qualquer um “com grande barulheira, cacarejando feito uma doida. Ela
cacareja assim: não me matem! não me matem! não me matem” (p. 12). Além
desse desempenho tão pouco heróico, ao contrário do que se esperaria dos se-
res eleitos, Laura tem “um cheiro um pouco chato”, que se parece com “cheiro
de roupa suja ou de quando a gente não toma banho todos os dias; embaixo
das asas é aquela morrinha” (p. 19).
A partir daí compreende-se que, apesar da plumagem e da capacidade de
fazer “um ovo certo”, Laura não pode representar a integridade dos heróis.
A esse reino de insignificância pertence uma outra Laura, a de “A imitação
da rosa”, que também faz angustiadamente o que julga “certo”. Todavia o texto
torna impossível e acaba por degradar na loucura uma outra célebre imitação, a
de Cristo34, trabalhada por Lispector desde O lustre. É sintomático que em carta

236
de 5 de outubro de 1953 a Fernando Sabino, a escritora fale de suas leituras va-
riadas, “provavelmente erradas”, sendo “a mais certa a Imitação de Cristo, mas é
muito difícil imitá-LO, e isso é menos óbvio do que parece”.35 Tanto em A vida
íntima de Laura quanto em “A imitação da rosa”, as duas Lauras são meio mar-
rons, a galinha “meio marrom, meio ruiva”, a mulher ao espelho percebendo-se
de “olhos marrons, cabelos marrons [...], castanha, como obscuramente achava
que uma esposa devia ser” (p. 50) e pensando em usar um vestido marrom para
o jantar a que ia com o marido, “alto e magro”. Na ocasião pensa também que
não havia mais, como no hospital, “aquela luz cega das enfermeiras penteadas e
alegres saindo para as folgas depois de tê-la lançado como a uma galinha indefesa
no abismo da insulina” (p. 49, grifos meus). O motivo erra pelos objetos e seres,
quase invisível (artificialmente insiste na golinha muito referida, do vestido mar-
rom), quase branco como o tom das rosas mal desabrochadas.
Também ao espaço da mesma figuração pertence a pobre Macabéa – com
sua idiotia iluminada segundo o melhor Fellini e a melhor Giulieta Massina
(muito admirados pela cinéfila Clarice) –, Macabéa que morre ao fugir em “ca-
carejos apavorados”, apaixonada por Olímpico, “galinho de briga”. Esse proces-
so de degradação do herói encontra portanto em A hora da estrela seu ponto de
chegada, permanecendo ao mesmo tempo fiel à imitação da flor: a música que
soa nas páginas é como uma rosa “que é louca de beleza, mas mortal”. Rodrigo
S.M. descreve sua personagem como “flor murcha”, seu sexo é “um nascido gi-
rassol num túmulo”, a cartomante ex-prostituta a chama de “minha flor”, “mi-
nha florzinha” etc. A própria Macabéa acha “o máximo” flor de plástico e se seu
nome pode aludir à épica dos macabeus, como observou parte da crítica36, o
fundamental da construção da personagem alude violentamente a particulari-
dades de suas referências (a migração interna do país, a escravização dos nor-
destinos pelos sulistas, a alienação popular). Segundo penso, A hora da estrela
pode ser lido como um verdadeiro tratado da alienação, didaticamente discuti-
da em suas origens e em seus efeitos, com seu ponto alto na descoberta fortui-
ta, e de alta ironia dramática, do livro Humilhados e ofendidos [do russo Fiódor
Dostoiévski], pertencente ao patrão da protagonista. Ao ler o título, Macabéa
se pergunta com inocência: “Quem serão?”37
Todo esse conjunto de insignificâncias, muitas vezes patéticas, encontra
seu ponto de máxima degradação nas palavras de Olímpico, que confunde “Ma-

237
cabéa” com “doença de pele”, isto é, “morféia”, perigo que ronda o narrador em
sua identificação problemática com a criação: “Queiram os deuses que eu nun-
ca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra” (p. 48).
Todas essas questões da obra clariciana, que sob certo ponto de vista pa-
recem rodopiar ao redor dos mesmos cruzamentos, e sempre com grande dispo-
sição de “descarrilhar”, são tocadas da ambigüidade de suas várias Lauras, a mes-
ma com que Macabéa é revestida, trágica e infantil como qualquer palhaço,
“grotesca como sempre fora”. A coerência e a excepcionalidade da obra de Lis-
pector localizam-se nesse ponto, o que a permite atravessar e absorver os fios sol-
tos dos textos “da impaciência”, com seus bichos e suas flores da adversidade.
Uma última questão nos levaria a inquirir se esses textos, complexos e in-
termitentes, poderiam colaborar para a formação do homem, ou da criança, se
acharmos, bem entendido, que a literatura é algo mais que simples diversão lu-
crativa. Minha resposta afirmativa justifica-se com as palavras de Antonio Can-
dido, para quem a literatura não corrompe nem edifica, mas age “com o impac-
to indiscriminado da própria vida [...] com altos e baixos, luzes e sombras”.38

Vilma Arêas é titular de literatura brasileira da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.


Publicou Na tapera de Santa Cruz (São Paulo: Martins Fontes, 1987, ensaio), Aos trancos e
relâmpagos (São Paulo: Scipione, 1988, novela, prêmio Jabuti do mesmo ano), A terceira per-
na (São Paulo: Brasiliense, 1992, ficção, prêmio Jabuti de 1993) e Trouxa frouxa (São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, ficção) entre outros livros.

NOTAS
1 As indicações bibliográficas das obras de Clarice Lispector e de outros autores aqui citados aparecem ao final.
2 Jornal do Brasil, 18.09.63 (apud Claire Varin, “Les entretiens métaphysiques”. In: Clarice Lispector, Rencontres brésiliennes, pp. 147-155).
Usei a versão republicada em 25.11.72. In A descoberta do mundo, pp. 692-693.
3 As citações são de “A viagem”, último capítulo de Perto do coração selvagem.
4 Diretor brasileiro radicado em Portugal à época secretário geral da Associação Internacional de Teatro para Público Jovem, com sede
em Paris. A peça arrebatou vários prêmios internacionais. Em outubro de 1986 essa experiência foi retomada pela encenadora Joana
Lopes, num projeto apenso ao Departamento de Assuntos Culturais de Campinas, do qual tive o privilégio de participar.
5 Refiro-me à época da publicação e não aos dias de hoje.
6 A postura de Clarice coincide com nossa melhor tradição literária. Confiram-se, por exemplo, “Opiniões de Robinson”, de Carlos
Drummond de Andrade, em Auto-retrato e outras crônicas, e resenha de Antonio Candido do especialíssimo “Sílvia Pélica na Liberda-
de”, de Alfredo Mesquita, transcrita em Um Brasil para crianças, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman.
7 Alguns apontam essa qualidade sem desenvolvê-la. Earl E. Fitz, por exemplo, em Clarice Lispector: “[...] like Le petit prince, Lispector´s
children´s stories are really as much for adults as for children” (p. 13).
8 Segunda parte de A legião estrangeira, publicada separadamente em edições posteriores.
9 O mesmo procedimento, usado em A hora da estrela, faz-se perfeitamente adequado à artificialidade do modelo circense utilizado no
livro: “História lacrimogênica (sic) de cordel”, escreve o narrador, confessadamente identificado com a falta de recursos e a precarieda-
de da pobreza.

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10 “Ficaria mais atraente se eu o tornasse mais atraente. [...] É perfeitamente lícito tornar atraente, só que há o perigo de um quadro se
tornar quadro porque a moldura o fez quadro”. (“Romance”. In A legião estrangeira, p. 139).
11 “Dia após dia”. In A via crucis do corpo, p. 68.
12 Cf. A metamorfose do mal, em que Yudith Rosenbaum articula tal aspecto à tradição literária brasileira, destaque para Machado de Assis,
em cuja ficção “a perversa e ardilosa estrutura da sociedade brasileira” está interiorizada nos personagens e exposta no estilo e no entrecho.
13 Republicado com muitas variantes a 10 de outubro de 1970, com o título “O pequeno monstro” (A descoberta do mundo, p. 491).
14 Nádia Battella Gotlib tem examinado em vários textos esse trânsito. Veja-se especialmente Clarice – Uma vida que se conta.
15 Cf. Cartas perto do coração, volume organizado por Fernando Sabino, sobre a correspondência entre ele e Clarice. Numa das missivas,
Sabino – diante das tentativas infrutíferas de Clarice de não assinar textos para a revista Manchete – aconselha a escritora a não insis-
tir e colocar seu nome nos trabalhos publicados “como exercício de humildade” (p. 108).
16 A legião estrangeira, p. 179.
17 Cartas perto do coração, p. 66.
18 Os versos foram compostos num curso sobre o conto brasileiro, ministrado por Fábio Lucas na Wisconsin University. Embora tenham
grande interesse estético e crítico, além de muita graça, pois iluminam a obra de nossa escritora com a luz do sem-sentido e do jogo
livre da fantasia, que tanto a encantavam, ainda permanecem inéditos.
19 A mesma questão desliza de Onde estivestes de noite, p. 43.
20 A experiência comprova o acerto de Clarice: Joana Lopes levou crianças de escolas públicas da periferia de Campinas (SP) a participa-
rem da criação do espetáculo, também filmado, sobre A vida íntima de Laura (desenharam as fantasias, acompanharam os ensaios etc.).
Apaixonaram-se pelo livro, ao contrário de crianças que apenas leram a obra e que não raro tiveram dificuldades para vencer o “desco-
sido” da composição, segundo me revelou na época uma professora da Escola da Vila.
21 In Laços de família, pp. 141-150.
22 Ibidem, pp. 123-132.
23 Nem tanto assim: após a cozinheira observar (afiando a faca, segundo Caldas) que Laura estava “com cara de ontem”, lemos as afirma-
ções de que “afinal de contas Laura tem uma vidinha muito gostosa” (mas ela é que é gostosa de comer) e de que Laura “é bem vivi-
nha” (mas será brevemente morta). Ver a esse respeito, e também porque ilumina outros ângulos, um dos capítulos da tese de douto-
ramento do professor português Carlos Mendes de Sousa intitulado “Dos animais” (Clarice Lispector – Figuras da escrita, pp. 231-267).
24 In Laços de família, pp. 41-62.
25 In A via crucis do corpo, pp. 15-25.
26 Esse episódio é repetição de “Uma história de tanto amor”, incluída em Felicidade clandestina, pp. 140-143.
27 A partir de 1896 já circula entre nós a tradução adaptada de uma comédia da Condessa, inserida numa coletânea para crianças, con-
forme afirma sem mais detalhes Bárbara V. de Carvalho in A literatura infantil – Visão histórica e crítica, p. 128. Nascida Sophie Ros-
topchine (Rússia, 1799-França, 1874), Ségur foi obrigada a imigrar em 1817 para a França, por razões políticas envolvendo seu pai.
28 É flagrante esse desequilíbrio desde Perto do coração selvagem, ao se comparar o entrecho do livro com seu fechamento, talvez solene
demais e apoiado no “De Profundis”, externando a narradora sua aspiração à forma aglutinadora e à esperança de um dia alcançá-la.
O problema está lapidarmente tratado por Georg Lukács, teórico que saiu de moda, em A teoria do romance.
29 Vale a pena comparar “O ovo e a galinha” já citado, com “O ovo de galinha” de João Cabral de Melo Neto (“Serial”. In Obra comple-
ta, pp. 302-304).
30 A esse respeito, ver o esclarecedor A barata e a crisálida, de Solange Ribeiro de Oliveira.
31 Para a compreensão dessa técnica, que se desenrola apoiando-se nos níveis à margem da atenção, consulte-se Robert Humphrey, Stream-
of-consciousness in the modern novel.
32 Cf. Anatol Rosenfeld, O mito e o herói no moderno teatro brasileiro.
33 Carlos Mendes de Sousa (op. cit., p. 243) destaca a “imitação da galinha” em Clarice – apoio da lógica da devoração presente nos tex-
tos, associada ao mesmo tempo ao exercício da literatura através da máquina de escrever: “A boca da máquina fechara como uma bo-
ca de velha” (Perto do coração selvagem, p. 13). Por seu turno, “A escritora” (in A legião estrangeira, pp. 239-240), personagem rebaixa-
da grotescamente na dona de casa que rabisca num caderno de despesas, é descrita com os traços da Laura – “galinha indefesa” – de
“A imitação da rosa”, ou seja, sonhadora, castanha e obsessiva.
34 “Quando lhe haviam dado para ler a Imitação de Cristo do alemão Thomas Kempis (c. 1380-1471), com um ardor de burra ela lera
sem entender mas, que Deus a perdoasse, ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido – perdido na luz, mas perigosamente
perdido. Cristo era a pior tentação” (Laços de família, pp. 44-5).
35 Cartas perto do coração, p. 112.
36 Ver “O estrangeiro em Clarice Lispector”. In Entre passos e rastros, de Berta Waldman.
37 Desenvolvi pontualmente o assunto em “Un poco de sangre” (Escritura XIV, n. 28, Caracas, jul-dez. 1989) e em “O sexo dos clowns”
(Tempo brasileiro, n. 104, jan.-mar. 1991).
38 In revista Remate de Males, 1999, pp. 84-5.

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VARIN, Claire. Clarice Lispector. Rencontres brésiliennes. Québec: Trois, 1987.

240
Uma cadeira e duas maçãs:
presença judaica no texto clariciano*

Berta Waldman

Não me posso resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs.
Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me somo.1

I.

Encontro fortuito de objetos distantes, o conjunto composto de uma ca-


deira e duas maçãs, ao mesmo tempo que suspende o antropomorfismo, man-
tém seu traço, justamente para que sua negatividade trabalhe, tornando possí-
vel, assim, identificar uma forma que sugere um corpo de mulher sentada.
O assento sustentado por quatro pés sinaliza a metade inferior do cor-
po, enquanto as duas maçãs (os dois seios) indiciam a superior. Se as maçãs são
o fruto da macieira, na cadeira, a árvore é invisível, transformada que foi pela
mão do homem. Como somar, neste corpo reduzido à condição de matéria pe-
recível e reciclável, natureza e cultura? Imagem caudatária de uma certa litera-
tura de caráter fantástico do século XIX que alavancou a desarticulação da figu-
ra humana no surrealismo2, esse corpo que recusa a unidade pode ser tomado
como emblema da obra de Clarice Lispector, uma poética da fragmentação.

* O estudo que se lerá a seguir reproduz trechos dos ensaios “A retórica do silêncio em Clarice Lispector” e “O estrangeiro em Clarice Lispec-
tor” incluídos no livro Entre passos e rastros: presença judaica na literatura brasileira contemporânea (São Paulo: Perspectiva/Fundação de Ampa-
ro à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp/Associação Universitária de Cultura Judaica, 2003, pp. 3-13 e 15-33, respectivamente).

241
Conduzindo a reflexão para o que interessa a este trabalho relevar, ob-
servo que há uma divisão nítida, na imagem acima, e a tendência será a de agre-
gar traços identitários que se ligarão, por pregnância, a cada uma das partes.
Como pretendo observar marcas do judaísmo no texto da autora, começo por
tentar situar rastros de sua origem judaica, questão em si mesma complexa, pois
até hoje é difícil responder: Quem é judeu? O que é ser judeu? E, por extensão,
é possível distinguir traços judaicos na expressão artística?
O judaísmo de escritores como I.L.Peretz e Scholem Aleichem, por
exemplo, tem a maior relevância para qualquer abordagem séria de empreendi-
mento literário, porque seus mundos ficcionais foram moldados sobre o pano
de fundo da vida judaica do leste europeu.
Entretanto, não é clara a apreensão do judaísmo em um escritor que não
use uma linguagem judaica (ídiche, hebraico, ladino, hakitia), nem descreva um
meio tipicamente judeu, ou se filie a tradições literárias que são reconhecivel-
mente judaicas3.
A dificuldade em apreender traços judaicos em escritores judeus está no
fato de que ser judeu tem significações diferentes para cada sujeito – e, desse mo-
do, a questão não comporta respostas únicas ou definitivas. Por isso é difícil che-
gar ao judaísmo na escrita de Clarice Lispector, tarefa que não elimina, é claro,
a inserção da autora na literatura brasileira, apenas introduz ao repertório de lei-
turas de sua obra um ingrediente a mais: a consideração de seu lado imigrante e
a suposição de que esse fato traga conseqüências no nível da linguagem.
Sabe-se que a incorporação dos imigrantes ao Brasil, principalmente na
virada do século XX, mexeu com a composição geral do país, pondo em pauta
de reavaliação o conceito de nação homogênea com base na mestiçagem forma-
da pela herança ibérica, africana e indígena – imagem que as comemorações dos
500 anos do descobrimento, em 2000, ainda procuraram confirmar. Sabe-se,
ainda, que essa identidade é uma ilusão: o projeto homogêneo de nação não se
sustenta, porque esconde um corpo fragmentado – no qual uns têm mais direi-
tos que outros, e grupos étnicos continuam à margem (é o caso dos índios, por
exemplo) – e maquia as injustiças da reprodução de posições culturais desiguais
resultante da dominação entre grupos.4
Foi graças à noção de etnicidade desenvolvida pela antropologia e à im-
portância alcançada pelos estudos étnicos, particularmente nos Estados Unidos,

242
que começaram a surgir pesquisas sobre o caráter multiétnico do Brasil, país
formado por cerca de 200 grupos, cada qual com sua cultura peculiar. Deste
modo, à medida que o conceito de raça foi perdendo credibilidade, o de etnia
vem sendo aplicado nos estudos literários e culturais, sempre com a perspecti-
va de que o espaço multiétnico põe em contato diálogos antagônicos (dialogia)
e sujeitos cindidos, numa sociedade em constante mutação, cujas fronteiras cul-
turais se transformam permanentemente.
Mas à literatura interessa a escrita que decorre desse processo. A premis-
sa básica é a de que a cena violenta da emigração se transferiria também para a
linguagem, tornando impossível ao escritor deslocado sentir-se “em casa”, lan-
çado que é ao “lugar de alterações itinerantes”, conforme expressão do historia-
dor francês Michel de Certeau5.
Quando se pensa a conjugação do ser judeu e do ser brasileiro, vê-se que
são termos que não caminham juntos. Cada um deles carrega um conjunto de
referentes ligados a realidades históricas, políticas, sociais e afetivas diferentes.
Mas é possível, e a literatura o faz, escavar os entrelugares, o ponto de intersec-
ção de identidades, línguas, culturas, tradições, que evita a polaridade de biná-
rios, forjando uma terceira posição que reconhece as duas outras, mas flui em
trilho próprio6. Isso porque o criador é o depositário de um legado que o trans-
cende e se expõe no nível da linguagem, pedindo, de certo modo, para ser lido,
e assim passar a existir. O sujeitar-se à organização simbólica traduz uma situa-
ção onde não se vive jamais inteiramente no presente, sendo este pressionado
pelo passado.
Sabe-se que a memória do passado foi sempre um componente central
da experiência judaica, e a referência à memória coletiva não é uma metáfora,
mas uma realidade social transmitida e sustentada através de esforços conscien-
tes e de instituições responsáveis pela organização do grupo.
Maurice Halbwachs, em La mémoire collective7, sustenta que a memória
não é questão estritamente individual, pois contém um nível compartilhado,
grupal e coletivo, que nada tem a ver com a história lida e aprendida nos livros.
Para tal autor, a história começa onde termina a tradição, onde morre a memó-
ria coletiva.
Já Pierre Nora8 e K. Pomian9, da École des Annales, sustentam que a memó-
ria e a história mantêm relações radicalmente diferentes com o passado; enquan-

243
to na primeira este continua no presente sob forma reatualizada, a segunda rom-
pe com o passado, reconstituindo-o por meio dos vestígios que dele sobraram.
Regulando o foco para a situação dos judeus, Y.H.Yerushalmi10 acrescen-
ta que a história nunca foi a guardiã da memória judaica, o que se confirma na
escassa produção historiográfica de judeus, iniciada com o movimento da Has-
kalá11 no século XIX, oriundo do iluminismo, que tem seu eixo em farta produ-
ção de obras históricas completamente desvinculadas do padrão de memória.
Na história do judaísmo, o século XIX inaugura uma cisão entre memória e his-
tória. Trata-se aqui da memória que obriga a lembrar. Outra é a memória invo-
luntária. À mercê das coisas do mundo que, à sua maneira, refratam uma gra-
mática da existência, sua organização pode ser pensada em conformidade com
as figuras da linguagem – símile, metáfora, metonímia, sinédoque – de modo
que cada coisa é, na verdade, muitas coisas, dependendo do que está a seu la-
do, do que as contém, ou do lugar de onde foram retiradas. Neste caso, esque-
cer é manter uma figura incompleta, faltando-lhe, por exemplo, o segundo ter-
mo de uma comparação. É graças a esse tipo de memória que o passado
flutuante pede passagem e se deposita de diferentes modos no texto literário. É
graças a ela, ainda, que podemos identificar traços literários que ultrapassam as
intenções do autor.

II.

Nascida em 1920, na Ucrânia, Clarice Lispector chegou com a família ao


Brasil em março de 1922. Instalou-se primeiro em Maceió, depois mudou-se pa-
ra Recife e, em seguida, foi viver no Rio de Janeiro, cidade em que completou
sua formação e se casou. Ao escrever que “a minha primeira língua foi o portu-
guês. Se eu falo russo? Não, não, absolutamente... [...] eu tenho a língua presa”12,
creio que a ficcionista comete uma imprecisão. As primeiras palavras que ouviu
foi o ídiche, pois seus pais não provinham de uma capital européia e sim de um
shtetl,13 onde os judeus falavam esse idioma e não o russo. Tudo indica que a me-
nina tenha sido iniciada em dois sistemas lingüísticos simultaneamente. Um de-
les ela calou. Clarice Lispector não se refere ao ídiche, embora fosse usado em
sua casa. Consta que seu pai lia jornais nessa língua, e ela própria freqüentou a
escola israelita em Recife – o Colégio Hebreu Ídiche Brasileiro –, trajetória co-

244
mum aos filhos de imigrantes judeus no Brasil. Essa língua silenciada (presa?)
aparece de forma encoberta numa referência da escritora a seu pai, na crônica
“Persona”: “[...] Quando elogiavam demais alguém, ele resumia sóbrio e calmo:
é, ele é uma pessoa”.14 A designação “pessoa” como qualificação superlativa é tra-
dução direta do ídiche: Er is a mentsch (em português, ele é uma pessoa)15.
Ser brasileira e fazer parte da literatura brasileira são eleições da ficcio-
nista, repetidas em diferentes contextos. Ironicamente, a “língua presa” assina-
lará sua pronúncia identificada como estrangeira.
Enquanto cursava direito, entre 1939-1943, Clarice Lispector trabalhou
como redatora na Agência Nacional, iniciando uma atividade jornalística que
durará por toda sua vida. É importante lembrar que ela se fixa nesse emprego
durante o Estado Novo, tendo aquele órgão oficial de informação sido criado
em 1934 por Getúlio Vargas, que o subordinou ao Ministério da Justiça e Ne-
gócios Interiores. Ele seria o embrião do futuro Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), subordinado diretamente à Presidência da República. Clari-
ce Lispector trabalhava ali com futuros romancistas de renome (Lúcio Cardo-
so, Antônio Callado, entre eles), num período em que um contingente apreciá-
vel de intelectuais e artistas prestava diversos tipos de colaboração à política
cultural do regime Vargas, além de múltiplas formas de assessoria em assuntos
de sua competência e interesse.16
É importante lembrar que nesse mesmo período o nazi-fascismo recru-
descia na Europa, Hitler já estava no poder, as leis raciais vigiam, os campos de
concentração estavam funcionando, havia um deslocamento geral de massas e
os judeus, em particular, com seus passaportes marcados, trombavam em difi-
culdades para entrar no país, ou porque eram comunistas, ou, simplesmente,
porque eram judeus, embora esses impedimentos também valessem para outras
etnias (japoneses, hindus), assim como para pessoas ou grupos de outras ade-
sões ideológicas, como os anarquistas. Ainda durante essa época, mais exata-
mente em 1943, Lasar Segall faz uma exposição no Rio de Janeiro e sua pintu-
ra é qualificada, à maneira nazista, de “arte degenerada”17, provocando uma
onda anti-semita nos jornais da época.
Esses dados estão sendo evocados para indicar o problema complexo que
era o de ser judeu nesse período, o que se confirma na carta escrita em 1942
por André Carrazonni, diretor da empresa A Noite, onde Clarice Lispector tra-

245
balhava como redatora, a Oswaldo Aranha, então ministro das Relações Exte-
riores. A carta – um esforço para agilizar o processo de naturalização de Clari-
ce Lispector como brasileira, o que ela tentava desde que atingira a maioridade
– ressalta as qualidades de inteligência, de profissional competente e sobretudo
sua perfeita integração aos hábitos brasileiros. Carrazonni reforça, em tom en-
fático, o último atributo: o de sua brasilidade:

Foi com surpresa que a soube estrangeira, tal a sua maneira de ser,
tão nossa que a torna legítima filha do Brasil. Realmente, a nacionalida-
de, nesse caso, constitui um acaso. Clarice veio para o Brasil com meses
de idade. Aqui aprendeu a ler e a escrever. Aqui formou o seu espírito,
como verdadeira brasileira.18

Em entrevista de 1976 dada a Edilberto Coutinho19, Clarice tenta des-


vencilhar-se de seu judaísmo: “Sou judia, você sabe. [...] Eu enfim sou brasilei-
ra, pronto e ponto”.
Retomando o corpo cindido em uma cadeira e duas maçãs, a autora ar-
ticula disjuntivamente o ser brasileira e judia, preterindo esta condição em no-
me daquela, sem conseguir, no entanto, apagá-la.
Contrariamente à sua disposição, uma referência judaica – mais abstra-
ta – inscreve-se em seu texto, conforme me proponho a analisar. Há nele uma
busca reiterada (da coisa? do real? do impalpável? do impronunciável? de Deus?)
que conduz a linguagem a seus limites expressivos, atestando, contra a presun-
ção do entendimento, que há um resto que não é designável, nem representá-
vel. Neste sentido, a escritura, segundo Clarice Lispector, permanece, talvez in-
conscientemente, fiel à interdição bíblica judaica, de delimitar o que não tem
limite, de representar o absoluto. O grande “tema” da obra da escritora é, a meu
ver, o movimento de sua linguagem, análogo àquele próprio da tradição dos co-
mentários exegéticos presos ao Pentateuco, que remetem ao desejo de se ache-
gar à divindade, tarefa de antemão fadada ao fracasso, dada a particularidade
do Deus judaico de ser uma inscrição na linguagem, onde deve ser buscado,
mas não apreendido, obrigando a retornar sempre. A abertura para uma inter-
pretação multiplicadora – eis a herança judaica por excelência, e a ela o texto
de Lispector não fica incólume.

246
O judaísmo, em Clarice Lispector, pode ser identificado tanto nos
movimentos circulares de sua linguagem, quanto na maneira estratégica co-
mo se inscreve o silêncio em sua obra, e, ainda, na presença constante da re-
ferência bíblica, propiciadora de um viés que permite verificar os desdobra-
mentos de uma discussão concernente à lei. Há também algumas obsessões
que fazem eco ao texto bíblico e dizem respeito a uma concepção de mun-
do e de realidade mobilizadora tanto do animal como do vegetal. Os animais
entram em sua obra como ingrediente de estruturação do mundo, e sua nor-
matização em puros e impuros – inventariada em Levítico 11:13 –, permite
à autora pôr à prova a lei, em alguns textos como o romance A paixão segun-
do G.H. (1964) e o conto “A quinta história”, de A legião estrangeira, do mes-
mo ano, além de outros20. Pretendo aqui atravessar esses caminhos, passan-
do também pelo último livro publicado pouco antes da morte da escritora,
A hora da estrela (1977)21.
Na apresentação que faz para O lustre22 segundo romance de Clarice Lis-
pector, Tristão de Ataíde chama a atenção para “a mais completa ausência de
Deus” na obra da autora, querendo expressar que não há nela qualquer valor
absoluto, religioso, moral ou de qualquer outro tipo, pairando nela, ao contrá-
rio, uma interrogação em torno do vazio a que Sartre chamaria de nadificação.
Já o ensaio de Antonio Candido23 sobre o primeiro romance de Clarice
Lispector – Perto do coração selvagem (1943) – menciona a obsessão de Joana, a
protagonista do livro, de atingir o “selvagem coração da vida”, relacionando-a
ao suplício de Tântalo, símbolo do desejo incessante e jamais satisfeito. O alvo
fugidio também estaria na mira da linguagem, ícone do caráter dramático do
entrecho. Essa observação de primeira hora antecipa uma marca que vale para
o conjunto da obra da ficcionista, na qual os textos movem-se por uma espécie
de compulsão que os faz dobrar sobre si mesmos, numa tentativa sempre frus-
trada de capturar algo que ainda não foi dito, gerando a idéia de inconclusão,
na medida em que apontam para a busca de um ponto a que não chegam: “Eu
escrevo por intermédio de palavras que ocultam outras – as verdadeiras. É que
as verdadeiras não podem ser denominadas. Mesmo que eu não saiba quais são
as verdadeiras palavras, eu estou sempre aludindo a elas”.24
Esta zona encoberta que pulsa no texto e que está já na origem da cria-
ção é referida em diferentes momentos da obra de Clarice Lispector, mas de mo-

247
do concentrado em Um sopro de vida, diálogo desarticulado entre um autor e
sua personagem. É esse que afirma:

Há um silêncio total dentro de mim. Assusto-me. Como explicar


que esse silêncio é aquele que chamo de o Desconhecido. Tenho medo
Dele. Não porque pudesse Ele infantilmente me castigar (castigo é coisa
de homens). É um medo que vem do que me ultrapassa. E que é eu tam-
bém. Porque é grande a minha grandeza.25

Aí, o silêncio é identificado com o desconhecido, com aquilo que ultra-


passa aquele que enuncia, havendo uma clara alusão tanto ao inconsciente,
quanto a Deus, ambos amplamente mencionados na obra da autora, este, co-
mo o “inominável” e o “inatingível”, e o inconsciente como “aquele que não
sabe”, como o lugar dos “sonhos que são o modo mais profundo de olhar”.
O silêncio, na obra de Clarice Lispector, é tanto um tema com o qual
seus personagens estão às voltas, como uma atmosfera que marca o espaço in-
terno dessas mesmas personagens, ou como algo que está no horizonte do pro-
cesso de criação da autora, que sinaliza para ele quando, por exemplo, identifi-
ca o romance A hora da estrela como “um silêncio”.
A linguagem carrega em si o silêncio ao lembrar que algo sempre deve
ausentar-se para que ela possa se presentificar. O que fica de lado é o silêncio,
que, no entanto, significa e “marca” o texto com a projeção de sua sombra. Daí
o interesse da autora em preservar as entrelinhas: “Mas já que se há de escrever,
que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”.26
Por outro lado, cria-se um impasse, pois se valorizam os espaços em bran-
co, o não-dito, a pausa, o silêncio, admite-se o fracasso da linguagem, isto é,
seu limite de designação, e o fracasso se agiganta quando se pretende aproximar
da nebulosidade do que não tem nome. A escritura de Clarice Lispector não
nomeia o inominável, não designa o indeterminável como se fosse um objeto
do mundo. Ao contrário, através do esforço e do malogro de sua linguagem, ela
faz sentir que algo escapa e resta não determinado, não apresentado. Assim, ela
inscreve uma ausência.
Em Moises y la religión monoteísta27, Jean-Françoise Lyotard, ao comen-
tar o texto de Freud Moisés e o Monoteísmo, refere-se à idéia de que a lei mosai-

248
ca operou na cultura um retraimento do visível ao legível-audível. O primeiro
deveu-se à interdição de representar a imagem de Deus (segundo mandamen-
to) e é graças a essa interdição que o judaísmo passa a ser a expressão de um
olho que se fecha para que a palavra seja ouvida. Não se vê um texto, lêem-se
as letras, ou, o que dá no mesmo, “ouve-se” a errância das letras que se combi-
nam infinitamente diante do silêncio de Deus.
O texto da ficcionista está concernido a essa tradição que se desenvolve
a partir de um silêncio, de uma ausência, marcada por um Deus peculiar – uma
inscrição na linguagem. É a partir do lugar de Deus, presença inalcançável, que
sua linguagem dispara, provocando deslocamentos. No judaísmo, a leitura e a
interpretação constroem a ponte de aproximação com esse Deus que é letra e
nome impronunciável (YHWH).
Midrash (da raiz “darash” que, no sentido bíblico significa examinar, pes-
quisar) é o nome dado aos comentários da Bíblia que se fazem por meio de for-
mulações que, muitas vezes, beiram o enigma, procurando subverter o conteú-
do manifesto do texto. Essa prática pressupõe uma concepção intuitiva da
linguagem entendida como construção – permitindo, até, que um mesmo tex-
to possa ser interpretado de formas diametralmente opostas. A multiplicidade
das leituras levará em conta as ambigüidades de uma escrita consonantal como
é o hebraico, os anagramas e jogos de palavras que esse tipo de escrita propicia,
a segmentação de textos que não utilizavam a pontuação vocalizadora, criando
impasses interpretativos bastante ricos e interessantes.
Vistas à distância, essas interpretações de interpretações desenham uma
linha que põe em movimento sentidos que não se agrupam nem se fixam nu-
ma “figura” única.
Essa linha em movimento também caracteriza, no plano mais abstrato, a
obra da escritora. Suas personagens deslocam-se no espaço, e também estão sub-
metidas a deslocamentos dentro delas próprias. Há sempre um átimo, um instan-
te, em que elas escapam de sua rotina, de seu papel social e deixam emergir um
lado dissonante submerso. Também fragmentos, com maior ou menor ajuste e
variação, transitam nômades pelas obras da autora. Seus romances ou textos mais
longos estruturam-se por núcleos que se vão organizando e, em alguns casos, vão
se desatando habilmente, num contínuo fluxo e refluxo de estruturação e deses-
truturação. Sem falar no seu trabalho de linguagem, que tem na mira a “coisa”, o

249
“inominável”, o que não pode ser determinado pela palavra, e que funcionam co-
mo dínamo dessa linha em movimento. Esta zona encoberta, às vezes chamada
de “desconhecido”, é o ponto para onde a ficção de Clarice Lispector retorna, re-
gião onde se inscreve, a meu ver, a “verdade” que a escritora busca. E para buscá-
la seu texto opera por desdobramentos através dos quais ela visa a promover a per-
cepção do inominado. Por isso seus escritos guardam certa familiaridade com
outras escrituras afinadas com a procura de uma verdade que vive oculta. Esse
modo de operar por desdobramentos, que tem por base a crença vivida como fi-
delidade inabalável a uma verdade, é próprio dos textos da tradição judaica, ou
melhor, é próprio do modo como esses textos vão construindo uma tradição.

IV.

Outro rastro do judaísmo pode ser observado na presença constante de


referência ou citação bíblica28 na obra de Clarice Lispector. Mas, além da pre-
sença judaica, verificam-se também a cristã, além de crenças populares, o que
sugere o seu empenho de integração no quadro particular das experiências reli-
giosas brasileiras, marcado pelo sincretismo. Todavia, é certo que a Bíblia he-
braica lhe serviu de base e, no que concerne à lei, a recorrência a essa fonte tem
um peso na obra da autora.
Além das citações explícitas, como ocorre, por exemplo, em A via crucis
do corpo29, onde o título remete ao espaço do martírio de Cristo, reforçado por
epígrafes provenientes dos textos fundamentais das religiões judaica e cristã (Sal-
mos, Lamentações de Jeremias etc.), ou em A hora da estrela30, cujo nome da pro-
tagonista remete ao Livro dos macabeus31, há algumas obsessões que fazem eco
ao texto bíblico, e dizem respeito a uma concepção de mundo e de realidade
mobilizadora tanto do vegetal como do animal.
Os animais, por exemplo, entram em sua obra como ingrediente de es-
truturação do mundo, e dividem-se em duas categorias que não se confundem:
aqueles que se identificam com a narradora/autora e aqueles que repelem qual-
quer identificação: “Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o
grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se eu
ou o bicho. E confundo-me toda. Fico ao que parece com medo de encarar ins-
tintos abafados que diante do bicho sou obrigada a assumir”.32

250
Os animais passíveis de identificação são os domesticáveis (cavalo, ca-
chorro), isto é, aqueles que podem ser integrados no sistema de valores do ho-
mem (palavra, trabalho etc.). Já os animais do segundo grupo são selvagens, re-
pe lem a do mes ti ca ção, es tão fo ra da lín gua e for mam um bol são de
agressividade que perturba as relações do homem com o mundo (formigas, be-
souros, percevejos, sapos, barata).
“Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo”.33 Essa passagem do
romance A paixão segundo G.H., aponta para uma proibição que atribui impor-
tância ao que é imundo, podendo arrastar o homem a uma zona de perigo.
A normatização dos animais puros e impuros e as relações possíveis entre
o homem e eles está inventariada em Levítico 11:13, e é certo que a autora a co-
nhecia, uma vez que algumas passagens desse livro aparecem citadas entre aspas,
e, outras vezes, sem elas. Se em “A quinta história”34 há o empenho da narrado-
ra em repelir com todas as armas esse inseto do espaço doméstico, no romance,
a narradora, apesar da repulsão e do horror que ele lhe provoca, identifica-se com
sua miséria de ente vivo e solitário e o põe na boca, à maneira de uma hóstia.
Nesse exato momento de comunhão, ela comete uma dupla transgressão, tanto
em relação à tradição judaica, quanto em relação à tradição cristã.
O animal impuro deve ser repelido, pois não haverá mundo isento de
impureza se o homem renunciar à eliminação dos animais portadores da força
maculante. A lição teológica está contida, exatamente, no movimento de elimi-
nação do animal, já que macular espaços, coisas e homens reduz o lugar da di-
vindade e, portanto, da salvação. Convém lembrar que se a idéia atual de im-
puro está subsumida aos cuidados com a higiene e ao respeito às convenções
que nos são próprias, a impureza é um critério usado por antropólogos para
classificar as religiões em primitivas e modernas. No primeiro caso, as prescri-
ções relativas ao sagrado e à impureza seriam inseparáveis; no segundo, as re-
gras relativas à impureza desaparecem da religião, sendo relegadas à cozinha, ao
chuveiro, aos serviços de saneamento, à medicina etc. A observância dos pre-
ceitos, positivos e negativos, tem a sua eficácia, porque pode trazer a prosperi-
dade ou o perigo, assentando na noção de santidade divina que os homens de-
vem alcançar em sua própria vida.35
O caminho da escritora será o do questionamento dos preceitos e não o
da obediência:

251
Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Por que
foi que a Bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista dos ani-
mais imundos e proibidos? Por que se, como os outros, também eles ha-
viam sido criados? E por que o imundo era proibido? Eu fizera o ato proi-
bido de tocar no imundo.36

É radical, no romance A paixão segundo G.H., a transgressão da autora


porque, além de pôr na boca a barata, um animal impuro, ela deslocará para es-
se inseto ínfimo e impuro a imagem de Deus, fazendo que o pequeno e o fini-
to contenham o infinito, que o impuro possa conter a pureza, e os fios que vin-
culam o pequeno e o grande confluam na comunhão do neutro, matéria comum
a todos os seres, representada na massa pastosa da barata esmagada: “[...] quero
o Deus naquilo que sai do ventre da barata – mesmo que isto, em meus antigos
termos humanos, signifique o pior, e, em termos humanos, o infernal.”37
É transgressivo também o caminho a que a personagem se lança, a par-
tir do momento em que vê na parede o desenho da empregada Janair. Um co-
mando hipnótico a conduz para zonas inusitadas, um inferno sem pecado nem
castigo, que lhe proporciona alegria demoníaca, aliviada da ameaça de perder-
se. A arcaica sede de orgia que ocorre no sabath realiza-se, no romance, no in-
terior de uma forma litúrgica anticristã (missa negra) e antijudaica (ocorre no
Sábado, que é sagrado e deve ser guardado), obedecendo a uma lógica de so-
nho onde o potencial mágico do arrebatamento onírico ganha relevo. Além dis-
so, esse percurso enlaça aspectos vinculados às religiões afro-brasileiras. O cava-
lo que chama a personagem para o festim noturno, ao mesmo tempo que serve
de presença através da qual o humano reconhece em si o lado instintivo, ele re-
presenta também aquele que tem o privilégio de ser “montado” pelo orixá, em
conformidade com o ritual afro brasileiro, tornando-se o veículo que permite à
divindade voltar à terra para cumprir diferentes objetivos.
Diante do arranjo sincrético, qual o papel da Bíblia? Será a inflexão bí-
blica (que soa, às vezes, em falsete) presente no estilo de Lispector uma arma-
dilha, “maneira necessariamente sonsa de se apresentar uma visão profana, des-
sacralizada” da realidade, como quer Américo Pessanha?38 Ou será possível
pensar que, apesar da oposição à escrita legitimada por uma tradição, ainda as-
sim mantém-se um vínculo, que faz eco a essa tradição?

252
O tema da submissão da ordem, deliberada por Deus na Bíblia, é um tó-
pico que se destaca com vigor no judaísmo: num universo ontologicamente bom,
a ordem é primeiramente fundada sobre o respeito à lei e sobre o castigo para o
crime. Assim, Adão e Eva são expulsos do paraíso, Caim é castigado por seu as-
sassinato, o dilúvio pune os crimes da humanidade, e o fogo destrói Sodoma, num
encadeamento que respeita as relações de causalidade. O proibido é a condição
da Lei e da Ordem, mantendo com elas uma relação indissolúvel. Parágrafo úni-
co no primeiro pacto (Gênesis 2: 17), torna-se código em xodo (O Decálogo), em
Levítico e em Deuteronômio. Entretanto, no romance de Clarice Lispector, a in-
terpretação do interdito, da lei, de sua transgressão e punição, é gerido por um
sistema não nomeado, que ninguém consegue formular, nem mesmo G.H., que
é lacônica a esse respeito ao afirmar simplesmente: “vivia num sistema”39.

Eu não poderia mais me escusar alegando que não conhecia a lei


– pois conhecer-se e se conhecer ao mundo é a lei que, mesmo inalcan-
çável, não pode ser infringida, e ninguém pode escusar-se dizendo que
não a conhece. Pior: a barata e eu não estávamos diante de uma lei a que
devíamos obediência: nós éramos a própria lei ignorada a que obedecía-
mos. O pecado renovadamente original é este: tenho que cumprir a mi-
nha lei que ignoro, e se eu não cumprir a minha ignorância, estarei pe-
cando originalmente contra a vida.
No jardim do Paraíso, quem era o monstro e quem não era?40

Segundo o texto, a lei ignorada, a única que deve ser obedecida, é a de


se deixar levar pelo imprevisível. É a obediência constitutiva de Água viva, res-
ponsável pela radicalização de sua diferença em relação aos gêneros literários
onde não se integra mais: “Estou esperando a próxima frase, [...] a próxima
frase me é imprevisível”41, afirma a escritora. Entregue a um trabalho de desa-
propriação, de despojamento, ela está à escuta do enigma da escritura, traba-
lho que não conta senão com a contingência das frases que podem ou não vir,
com a eventualidade do que pode tanto ser como não ser. A atenção voltada
para a obra como ocorrência testemunha singularmente a precipitação do ines-
perado, do que não é (ainda) determinado, a irrupção do evento que desorga-
niza a experiência e as significações estabelecidas. Ora, a função da lei é preci-

253
samente a de conjurar, eliminar a eventualidade do indeterminado, estabele-
cendo uma relação inequívoca entre norma e conduta, transgressão e punição,
visando sempre a uma estabilidade institucional. São os fundamentos dessa es-
tabilidade que a autora discute em um de seus textos prediletos – “Mineiri-
nho”, em que um marginal responsável por delito de assassinato é morto pela
polícia com treze tiros. Aí, a narradora recusa a discussão forense e abstrata,
para buscar respostas em sua própria subjetividade à pergunta: “Por que está
doendo a morte de um facínora?”42 Ora, se a justiça tem de ser a mantenedo-
ra da lei, ao assassinar, ela a transgride. E ela transgride também porque pro-
tege uns e não outros; ricos e não pobres. Recuando para uma nova noção de
justiça, a narradora põe em circulação a justiça prévia, aquela que deve atuar
sobre aquilo que é energia básica em nós, e que ela chama também de neutro,
grão de vida, impedindo que o impulso vital se transforme em violência. As-
sim, Mineirinho torna-se assassino porque foi excluído dessa justiça e inserido
numa estrutura social que abandona alguns.
Esse texto de difícil classificação além de ser um libelo contra a exclusão so-
cial, um questionamento do sentido histórico de justiça, é também um comentá-
rio da lei bíblica expressa no mandamento não matarás. Baseado mais em precei-
tos do que em dogmas, ao judaísmo importa o que se deve fazer mais do que em
que se deve acreditar . As leis morais que regulam as relações humanas devem ser
conduzidas de acordo com a necessidade de justiça, compaixão e paz. O assassina-
to é considerado como particularmente horroroso, porque destrói um ser criado à
imagem e semelhança de Deus (Gn9; Ex20, Dt5, Sanhedrin 4:5). No caso de Mi-
neirinho, falha a justiça prévia e a conduta humana não está mais modelada pelos
atributos divinos, acenando para uma crise nas relações entre os homens.
A matéria viva da barata é anterior à classificação puro/impuro, assim co-
mo o grão de vida de Mineirinho está antes de sua existência social e histórica.
A busca de uma espécie de estágio primeiro da vida, flutua no horizonte do tex-
to, na contramão dos preceitos e da lei.

V.

Com o nome de sua protagonista – Macabéa –, Clarice Lispector trans-


põe para A hora da estrela elementos simbólicos de um registro matricial judai-

254
co. A referência que se faz é ao Livro dos Macabeus, dois volumes não-canôni-
cos da Bíblia, considerados apócrifos pelos judeus. Ambos foram transmitidos
em grego, mas o primeiro foi provavelmente traduzido de um original hebrai-
co, que se perdeu.
Pode-se dizer que o tema dos dois Livros dos Macabeus é a resistência,
pois eles narram o conflito entre os judeus (a família dos Macabeus) e seus
opressores gregos. O nome da protagonista, remete imediatamente ao texto bí-
blico, direcionando o olhar do leitor para dois planos textuais paralelos que, de
algum modo, dialogam, mesclando sinais que se ressignificam.
Como os macabeus, Macabéa é vítima da opressão dos poderosos, uma
pobre nordestina perdida na cidade grande e, como eles, ela resiste.
A relação traçada entre os dois planos não é simples, pois a exclusão da
protagonista das relações de produção, e sua decorrente exclusão sociocultural,
a elevam evidentemente como figura símbolo do exército de excluídos que com-
põe a população brasileira. Mas há uma situação específica em que se insere a
personagem que permite, a meu ver, iluminar na contraface do Livro dos Ma-
cabeus um judaísmo em crise, pois Macabéa é também excluída da linguagem,
ela que é relacionada ao povo, que à falta de território, aglutinou-se em torno
do Livro. É em torno dessa questão que vou me deter, deixando de lado outros
aspectos importantes do romance.
Macabéa é apresentada, no início da narrativa, prestes a ser despedida do
emprego. Quase analfabeta, ela desempenha a duras penas o trabalho de dati-
lógrafa. Fora de lugar, deslocada, copia lentamente letra por letra palavras que
não alcança compreender (designar ou desiguinar?). Seu trajeto no livro será o
de buscar uma entrada na linguagem, enquanto vai sendo contada pelo narra-
dor que enuncia com ironia o malogro de sua personagem, ressaltando justa-
mente o que ela falha ser: “A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nim-
bo, entre céu e inferno, nunca pensara em ‘eu sou eu’”.43
Perdida entre as palavras, querendo, porém, encontrar-se nelas, a prota-
gonista vive uma espécie de alienação, como que lançada para fora do mundo
e de si própria:

– Não sei bem o que sou, me acho um pouco... de quê?...Quer


dizer não sei bem quem eu sou.

255
– Mas você sabe que se chama Macabéa, pelo menos isso?
– É verdade. Mas não sei o que está dentro do meu nome.44

A ignorância com relação à origem bíblica de seu nome e a impossibilidade


de alcançar esse conhecimento, dada a distância entre ela e a informação, deslocam
a protagonista para um lugar à deriva, pois a matriz do nome mantém-se inacessí-
vel, impedindo a personagem de estabelecer algum possível laço de pertença. Ins-
tada pela amiga, Macabéia procura apoio nas palavras da cartomante: “Macabéa fi-
cou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava
mudada. E mudada por palavras – desde Moisés se sabe que a palavra é divina.”45
Mas a vida as desmente. Assim, Macabéa atravessa a rua e é atropelada
por um automóvel. Aí, a palavra humana apresentada ao leitor com o peso da
palavra de Deus mostra-se oca e degradada.
Excluída da cadeia simbólica, a escrita barrada e a linguagem gaga fazem
que a tradição esbarre em Macabéa, que intercepta seu caminho, apontando pa-
ra a desagregação.
É também sob o signo da desagregação que o romance A hora da estrela
se apresenta para o leitor. Tematizando a crise da literatura como representação,
uma outra história corre paralela à história de Macabéa. Nela avulta a figura do
narrador que disputa para si o lugar de protagonista. Quebrando a linearidade
da construção, esse narrador aglutina seus questionamentos em torno da per-
gunta “por que escrevo”?46 Tematizando metaficcionalmente o ato narrativo, ele
fala de si no vácuo deixado pelo esboço da figuração de sua criatura: “É o se-
guinte: ela como uma cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma.
Pois reduzira-se a si. Também eu, de fracasso em fracasso, me reduzi a mim mas
pelo menos quero encontrar o mundo e seu Deus.”47
Na hipótese de Macabéa ser lida como o elo de uma cadeia partida, o ro-
mance que a conta também se mostra desarticulado. Tocados pela feiura e pe-
quenez da protagonista, os grandes temas se amesquinham, embora o contrá-
rio também seja verdadeiro. As perguntas tolas e mal formuladas da personagem
a respeito do que a palavra alcança dizer, por exemplo, são retomadas em outra
instância da narrativa, transformando o pequeno e o grande em escalas relati-
vas e intercambiantes que justificam a sinalização que se faz no livro à Alice no
país das maravilhas, de Lewis Carroll.

256
Se a alienação de Macabéa pode ser entendida também como a metáfo-
ra de um judaísmo em crise, de uma proscrição das Escrituras, é precisamente
o ritual de sua imolação que desencadeia a possibilidade de outra escritura, a
possibilidade de continuar escrevendo. Mas essa possibilidade exercitada põe em
questão o próprio ato de escrever. Aí, como num jogo de espelhos, a alienação
intransponível de Macabéa aponta para a impotência do narrador-datilógrafo
que não consegue puxar o fio da narrativa de começo a fim, que aponta para o
fracasso do outro narrador, na verdade Clarice Lispector, que admite a falência
da forma e o impasse em que se encontra a ficção quando pretende expressar o
que não tem nome.
Assim, sobrepostos em cadeia não ordenada, personagem, narrador e au-
tora trazem para o corpo do texto os sinais de uma impossibilidade de conti-
nuar. O fato de essa ruptura sintonizar e expor um descaminho próprio da mo-
dernidade não elimina a virtualidade de o romance propiciar, pelo avesso, uma
visão do judaísmo problematizada pela escritora.
Está suposta nessa leitura uma trama entre textos, que, como já foi refe-
rido, remete à tradição midráshica dos comentários bíblicos, onde as Escrituras
demarcam um campo significante original, a partir do qual se abre um leque
sem limites no campo do significado. Se puder ampliar ao máximo o sentido
de “impulso midráshico” de modo a fazê-lo integrar os comentários laicos, o ro-
mance A hora da estrela poderia ser considerado um midrash que, na segunda
metade do século XX, põe em pé um cenário do passado, fazendo caminhar com
novo alento os protagonistas de uma história que é vivida agora no Brasil. En-
tretanto, a distância temporal (e tudo que ela carrega) obriga a leitura a circu-
lar por pavimentos cujas pontes precisam ser construídas.
A história recente cria novas posições e contingências para seus protago-
nistas – os Macabeus – sumarizados numa única figura – Macabéa, que se apre-
senta desde o início com a marca do deslocamento, uma vez que migra do nor-
deste para o sudeste do país, de uma sociedade rural e arcaica para uma urbana
e moderna, não cabendo no processo geral de modernização a que, na verdade,
poucos têm acesso. Apresentada como um corpo estranho no Rio de Janeiro
(“Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda desconheço, já que nun-
ca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o senti-
mento de perdição no rosto de uma moça nordestina”48), a estranheza da per-

257
sonagem encorpa, quando a ela se soma sua correlação com a fonte bíblica. Trô-
pega, a trajetória de Macabéa conduz o leitor a um novo epílogo, diverso e opos-
to àquele impresso no Livro dos Macabeus.
Ressalvadas todas as transformações históricas que marcam a distância
de um texto a outro, e não são poucas, há que se ressaltar algo precioso para o
judaísmo que se perde no meio do caminho: a esperança, a crença numa pos-
sível redenção.

VI.

Se a ficção de Clarice Lispector vincula-se ao judaísmo através dos “im-


pulsos midráshicos”, que alavancam o retorno às fontes, ela também se opõe a
ele de diferentes maneiras. Para começar, a escritora justapõe às citações bíblicas
elementos originários de outras tradições. A presença do Novo Testamento, de
traços sincréticos relacionados às práticas religiosas no Brasil, forma um solo hí-
brido que impede reduzir o vínculo a uma única fonte, radicando o texto num
espaço geográfico (o Brasil) e num tempo definido (a modernidade). Por outro
lado, é importante ponderar, no que diz respeito à transgressão dos preceitos bá-
sicos, que em geral se parte da suposição de que tanto o texto bíblico como a
obra de Clarice Lispector caminham na mesma direção, o que não é correto.
Tanto o Pentateuco como o Midrash partem da revelação para a prática
dos preceitos que incluem os papéis, leis e rituais a serem obedecidos. Já a au-
tora parte daquilo que ela percebe como limite e aprisionamento na vida do
dia-a-dia, para perfazer o sentido inverso e atingir o neutro, a pulsão de vida
primária. Assim, ela esbarra na lei, porque é preciso atravessá-la para ir ao en-
contro desse elemento originário da vida. A Bíblia, entretanto, suporta essa via
de mão dupla, pois ao ser a matriz fundante do aprisionamento, já que ao ins-
taurar a lei a existência ganha seus limites, ela é também o lugar da origem, da
palavra revelada, acionando a partir dela um movimento ininterrupto de co-
mentários. Inominável, essa palavra manter-se-á no horizonte da escritura de
Clarice Lispector como a coisa inatingível, a “quarta dimensão da palavra”, si-
nalizando pelo esforço em dizer e pelo malogro da linguagem em não alcançar
dizer, que algo escapa e resta não determinado, transferindo para a letra o limi-
te que é da ordem da lei.

258
Retomando a resposta de Lispector à entrevista já citada – “Sou judia,
você sabe. [...] Eu, enfim, sou brasileira, pronto e ponto”49 –, a autora alude di-
retamente à sua origem, mas imprime um giro tal na frase, que acaba se des-
vencilhando da primeira afirmação. Essa operação sugere que talvez a forma de
Clarice Lispector operar com seu judaísmo é tentando se desenlaçar dele. Cu-
riosamente, seus textos têm a marca dessa mesma operação. Simultaneamente
afirmando e negando o vínculo identitário, faz-se e desfaz-se uma metáfora lá-
bil que assim mesmo dilata múltipla e imprevisível, resistente à unificação, co-
mo uma cadeira e duas maçãs.

Berta Waldman, professora de literatura hebraica, na Universidade de São Paulo, e de teoria literá-
ria e literatura brasileira, na Universidade Estadual de Campinas, escreveu, entre outras obras, Cla-
rice Lispector – A paixão segundo C.L. (2. ed., revista e aumentada, São Paulo: Escuta, 1992).

NOTAS
1 LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973, p. 75.
2 Cf. MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2003.
3 ALTER, Robert. “Jewish dreams and nightmares”. In: NESHER, Hanna Wirth (org.). What is jewish literature? Philadelphia/Jerusalem:
The Jewish Publication Society, 1994, pp. 53-61.
4 A respeito do assunto, porém em ângulo geral, afirma García Canclini: “Si bien el patrimonio sirve para unificar a cada nación, las de-
sigualdades en su formación y apropriación exigen estudiarlo también como espacio de lucha material y simbólica entre las clases, las
etnias y los grupos.” Cf. CANCLINI, Néstor García (em tradução brasileira de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão). Culturas hí-
bridas. São Paulo: Edusp, 1997.
5 Veja-se, a propósito, o ensaio de Rosana Kohl Bines, “Escrita diaspórica (?) na obra de Samuel Rawet”. In Vértices, n. 2, São Paulo: Hu-
manitas/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2000. Neste ensaio, a autora avalia de que
modo a diáspora, incorporada à trama do texto, transforma-se em alegoria da dispersão da identidade, do sentido, de noções de ver-
dade e de origem, sendo a disseminação de significantes textuais a ela vinculados concebida, ainda, como um modelo crítico a contra-
pelo dos discursos nacionalistas, ancorados numa correspondência estreita e tantas vezes explosiva entre língua, pátria e raça.
6 Em The location of culture (London: Routledge, 1994), Homi Bhabha defende o conceito de híbrido como um processo de negociação,
um entrelugar, um interstício, que abre a possibilidade de uma cultura considerar a diferença independente de uma hierarquia imposta.
7 Paris: Presses Universitaires de France, 1968. Edição brasileira: A memória coletiva.Tradução de Laurent León Schaffer. São Paulo: Vér-
tice, 1990.
8 Cf. NORA, Pierre, Les lieux de la mémoire. Paris: Gallimard, 1984.
9 Cf. POMIAN, Krzysztof, “De l’histoire, partie de la mémoire, à la mémoire, objet de l’histoire”. In Révue de métaphysique et de morale:
mémoire, histoire; n. 1, mar. 1998, Paris: PUF.
10 Cf. YERUSHALMI, Yossef Hayim, Zakhor. Jewishh History and jewish memory. Washington: University of Washington Press, 1982. Edi-
ção brasileira: Zakhor – História judaica e memória judaica. Tradução de Lina G. Ferreira. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
11 Iluminismo judaico, liderado por Moses Mendelssohn.
12 Apud Nádia Battella Gotlib. Clarice – Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p. 65.
14 Povoado onde viviam os judeus do leste europeu, falantes do ídiche.
15 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 99.
16 É curioso observar que, embora o vocábulo em ídiche tenha se originado do alemão – der Mensch – o sentido superlativo é próprio da-
quele idioma.
17 A questão dos intelectuais filiados ao regime autoritário que remunerava seus serviços está muito bem apresentada e analisada no livro
de Sérgio Miceli Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945), São Paulo: Difel, 1979. Já a informação da atividade jornalística
da escritora junto à Agência Nacional, futuro DIP, foi extraída do livro citado de Nádia Battella Gotlib.

259
18 Entartete Kunst é o termo utilizado pelos nazistas para designar e denegrir aquela que eles consideravam como anti-arte, arte “impura”,
em relação a outra tida como expressão racial purificada da verdadeira arte alemã. Cf. L.Mauer, “L’art dégénéré, l’eugenisme à l’oeuvre”,
Essaim, n. 11, 2003, pp. 199-226.
19 A referência à carta, sua citação e dados biográficos foram extraídas do citado livro de Nádia Battella Gotlib, Clarice – Uma vida que
se conta, pp. 165-166.
20 ”Uma mulher chamada Clarice Lispector”. In Criaturas de papel – Temas de literatura & sexo & folclore & carnaval & futebol & televi-
são & outros temas da vida. Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/Instituto Nacional do Livro, 1980, pp. 165-170. Segue a ci-
tação completa: “Sou judia, você sabe. Mas não acredito nessa besteira de judeu ser o povo eleito de Deus. Não é coisa nenhuma. Os
alemães é que devem ser, porque fizeram o que fizeram. Que grande eleição foi essa, para os judeus? Eu, enfim, sou brasileira, pronto
e ponto”.
21 Cf. meu livro Entre passos e rastros, citado anteriormente.
22 Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997. Ver, a propósito, A expressão judaica na obra de Clarice Lispector, de Nelson H. Vieira, em Re-
mate de Males, n. 9. Organização de Berta Waldman e Vilma Arêas. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem/Universidade de
Campinas, 1989). No livro Jewish voices in brazilian literature: A prophetic discourse of alterity (Flórida: University Press of Florida,
1995), Vieira estuda o romance A hora da estrela em sua expressão judaica, assim como a obra da autora de modo geral.
23 CANDIDO, Antonio. In Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1970, pp. 125-131.
24 LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida: pulsações. 8. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 72.
25 Ibidem. p. 129.
26 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Edição crítica. Coordenação de Benedito Nunes. Paris/Brasília/São Paulo: Association Ar-
chives de la Littérature Latino-Américaine, des Caraïbes et Africaine du xx Siècle/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico do Brasil – CNPq/Scipione, 1996, p. 295.
27 Buenos Aires: Amarrortu Editores, vol. XVIII, 1939.
28 Cf. alguns textos que tratam das fontes judaicas na obra de Clarice Lispector. De Alfredo Margarido, “A relação Animais-Bíblia na obra
de Clarice Lispector”, revista Colóquio Letras, n. 126-127, jul.-dez. 1992; de Amariles G. Hill, “Referencias cristianas y judaicas en A
maçã no escuro e A paixão segundo G.H.”, e de Antonio Maura, “Resonancias Hebraicas en la obra de Clarice Lispector” (ambos en-
saios integram a revista Anthropos, n. 14, Barcelona: Extra 2, 1997).
29 LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
30 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olypio, 1977.
31 Os livros I e II dos Macabeus são apócrifos, isto é, não fazem parte do cânone dos livros do Antigo Testamento. O cânone judaico foi
fixado aproximadamente no final do século I d.C., sendo incluídos somente livros escritos em hebraico (ou parcialmente em aramai-
co), considerados como datados em tempo não posterior a Esdras (séc. IV a.C.).
32 LISPECTOR, Clarice. Água viva, Rio de Janeiro: Artenova, p. 50.
33 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H., p. 47.
34 LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.
35 Ver, a propósito, o livro da antropóloga Mary Douglas, Pureza e perigo (Purity and danger). Tradução de Sônia Pereira da Silva. Lisboa:
Edições 70, sd (em particular o capítulo III, “As abominações do Levítico”).
36 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Edição crítica. Coordenação de Benedito Nunes. Paris/Brasília/Florianópolis: Association
Archives de la Littérature Latino-Américaine, des Caraïbes et Africaine du XX e Siècle/Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-
fico e Tecnológico do Brasil – CNPq/Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1996, p. 46.
37 Ibidem, p. 55.
38 PESSANHA, José Américo. “Clarice Lispector: o itinerário da paixão”. In Remate de Males, edição citada, p. 195.
39 Ibidem, p. 102.
40 A paixão segundo G.H., p. 113.
41 Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, p. 16.
42 A legião estrangeira, p. 253.
43 A hora da estrela, p. 52, grifo meu.
44 Ibidem, p. 73.
45 Ibidem, p. 98.
46 Cf. a análise de A hora da estrela de autoria de Lúcia Helena, em Nem musa, nem medusa (Itinerários da escrita em Clarice Lispector).
Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1997.
47 A hora da estrela, p. 23.
48 Ibidem, p. 26, grifos meus.
49 Cf. nota 19.

260
No território das pulsões*
Yudith Rosenbaum

Em maio de 1976, o jornalista José Castello realiza uma entrevista com


Clarice Lispector, furando o bloqueio de silêncio a que a autora se impusera nas
suas relações com a imprensa. Ao ouvir uma das perguntas – “Por que você es-
creve?” – a autora franze o rosto em desagrado e responde: “Por que você bebe
água?”. Frente ao desconcerto do entrevistador, Clarice acrescenta com um riso
de irritação: “Quer dizer que você bebe água para não morrer.”1
Que a literatura, para Clarice Lispector – essa escritora ucraniana, judia,
nordestina, carioca, brasileira e estrangeira –, seja uma experiência visceral, uma
questão de vida ou morte, seus textos atestam de forma indiscutível. Talvez por
isso a leitura da obra de Lispector represente uma travessia tão perigosa e fasci-
nante para o leitor, sempre à mercê do paroxismo das sensações mais antagôni-
cas: da vertigem do desamparo ao êxtase das epifanias.
Se é verdade que os escritores não criam apenas seus personagens mas tam-
bém seus leitores, no caso de Clarice a aprendizagem de quem a lê “se faz gra-
dualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo de que se
vai aproximar”, como diz a autora na abertura do romance A paixão segundo G.H.2
Prometendo, ao final, uma “alegria difícil”, Lispector nos seduz a realizar a mes-
ma jornada arrebatadora da protagonista. Somos levados a desaprender nossos
hábitos de leitores convencionais para percorrer labirintos nem sempre apazi-
guadores e construir, como G.H., uma nova consciência sobre nós mesmos. A

* O presente trabalho é uma versão ampliada e modificada dos textos “A paixão segundo G.H. e ‘A quinta história’: inversões e encontros”
e “Um sonho inquietante”, apresentados respectivamente no Colóquio Clarice Lispector (Departamento de Teoria Literária e Literatura
Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em março de 2003) e no III Encontro
Psicanalítico da Teoria dos Campos (Centro de Estudos da Teoria dos Campos – Cetec, em agosto daquele mesmo ano).

261
homologia com o processo de análise é bem clara – e é sobre o pano de fundo
das relações entre psicanálise e literatura que este ensaio pretende transitar.
Escolho, para isso, três textos de três gêneros literários distintos (ainda
que a palavra “gênero” não se aplique bem a nada que Clarice tenha escrito –
com muita habilidade a ficcionista escapa sempre desse conceito). Trata-se do
já mencionado A paixão segundo G.H., do conto “A quinta história”, incluído
no volume A legião estrangeira3 – que, tal como o romance, foi lançado em
1964 – e, por fim, da crônica “A geléia viva como placenta”, que integra o li-
vro A descoberta do mundo, publicado em 1984.4 Mesmo em se tratando de
uma autora que sempre se mostrou avessa a análises – de si e de sua escrita –,
coloco-me o desafio de me debruçar analiticamente sobre os textos e não so-
bre quem os escreveu.
Entendo que haja pelo menos duas atitudes ou direções na abordagem
da literatura em suas confluências com a psicanálise. Ou a literatura ilumina,
ressignifica, exemplifica, ilustra conceitos psicanalíticos, enriquecendo o acervo
conceitual e teórico freudiano, ou – postura que adoto – a psicanálise é convo-
cada a esclarecer e desvendar, por sua vez, camadas obscuras do texto literário,
fazendo ressoar seu pensamento para melhor ampliar o campo de sentidos da
obra estudada. Quero acreditar que o que unifica ambas as direções é a mira-
gem de um ponto de chegada comum: a compreensão do humano, seja por uma
porta ou por outra. Esse é, ao meu ver, o pressuposto que legitima o esforço de
aproximar as duas áreas do saber.
Se o literário provocar o pensamento psicanalítico para além de suas fron-
teiras conhecidas, já terá valido a pena; e se a psicanálise ajudar o texto a falar
do que antes dele não era passível de representação dentro do discurso analíti-
co, melhor ainda. Portanto, convido o leitor para que os textos nos guiem, ten-
tando fazer de nossa escuta o mesmo que Clarice Lispector propunha para a sua
escrita em A legião estrangeira: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não
se esmaguem com palavras as entrelinhas” (p. 137).

II

A psicanalista Neusa Santos Souza, em seu texto “O estrangeiro: nossa


condição”, sintetiza com clareza questões cruciais da psicanálise:

262
O estrangeiro, diz o senso comum, é o outro. Outro que se afir-
ma em muitos sentidos: outro país, outro lugar, outra língua, outro mo-
do de estar na vida, de fruir, de gozar. O estrangeiro é o outro do fami-
liar, o estranho; o outro do conhecido, o desconhecido; o outro do
próximo, o distante, o que não faz parte, o que é de outra parte.
Para a psicanálise, o estrangeiro é o eu. O eu, não tomado como
o quer o senso comum – unitário, coerente, idêntico a si mesmo –, mas
o eu pensado em sua condição paradoxal – dividido, discordante, dife-
rente de si mesmo –, tal como, de uma vez por todas, o poeta nos ensi-
nou: “Eu é um outro.”5

Esta citação nos servirá como via de acesso para duas experiências radi-
cais na obra de Lispector, que caminham para lados opostos de uma mesma es-
trada. Na primeira delas, representada no conto “A quinta história”, a atitude
da personagem/narradora será entendida como defesa contra a invasão de um
mundo pulsional, desconhecido e incontrolável, nos domínios da consciência.
A protagonista se mostra avessa a qualquer contaminação das pulsões6 e proce-
de a uma “purificação” dos conteúdos desagregadores do seu espaço doméstico.
Do lado oposto, temos a viagem de G.H., que avança perigosamente pelo mes-
mo mundo pulsional desregrado, indeterminado, caótico e amoral. Esse é o
contraponto que será analisado a seguir. Já na crônica, último texto a ser co-
mentado na terceira parte deste ensaio, um sonho enigmático é relatado e tudo
leva a crer que ele revela, sob disfarces, a matriz geradora desse universo primá-
rio e virginal, terreno dos ruídos surdos das pulsões.
Nos primeiros textos a serem estudados, o romance e o conto, duas do-
nas-de-casa deparam, cada uma a seu modo, em meio a atividades domésticas
cotidianas e familiares, com a irrupção inesperada do “estrangeiro” de si mes-
mas – figurado numa repulsiva barata –, esse estranho gêmeo que já foi irmão
e tornou-se um outro hostil e assustador.
A mesma dualidade mulher/barata apresenta nos dois textos desdobramen-
tos contrários: a narradora do conto precisa e deseja exterminar o outro/barata,
que invade sua pacata residência, enquanto G.H. busca fundir-se ao inseto, que
faz sua aparição – sedutora e ao mesmo tempo em tom ameaçador – saindo do
fundo do armário do quarto da empregada. Na tentativa de arrumar a casa, é G.H.

263
quem se desordena radicalmente. Já em “A quinta história” de A legião estrangeira,
a narradora protege-se da ameaça do outro ao “desinfectar-se” do que ela chama
de “mal secreto que roía casa tão tranqüila” (pp. 91-2). A metáfora é clara: os con-
teúdos indesejáveis do inconsciente (ou melhor, da região para além dele) se fa-
zem ouvir quando a censura relaxa durante o sonho, perturbando a ordem da
consciência. O conto figura exatamente esse momento: “De minha cama, no si-
lêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de servi-
ço, onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal” (p. 92).
E de que modo essa anônima dona-de-casa procede à purificação do lar?
Após haver se queixado de baratas, aprende uma fórmula de como matá-las,
uma espécie de receituário culinário que faz do próprio conto um gênero híbri-
do entre a crônica e a receita doméstica: “Que misturasse em partes iguais açú-
car, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-
dentro delas. Assim fiz. Morreram” (p. 91). Importa aqui notar a técnica de
dissimulação do horror de uma receita de morte sob a capa ingênua de um sim-
ples receituário. Trata-se de uma moldura inocente para um enredo terrifican-
te. Seria o que, no estilo da autora, já foi considerado como um fingimento fic-
cional.7 O leitor ingere um conteúdo terrível sem se dar conta (penso,
sobretudo, na primeira leitura) e, como as baratas do conto, também é enges-
sado pela narrativa, que o atrai como uma doce sedução. Não será demais di-
zer que a narrativa exerce com o leitor o mesmo sadismo8 que executará com as
baratas, uma vez que nada o protege, pelo menos inicialmente, dos conteúdos
latentes que o revestimento polido e prosaico da narrativa busca esconder.
O ritual do crime se repete ao longo do conto, ora focalizando os requin-
tes do assassinato, ora a criminosa, ora as vítimas, constituindo-se como varia-
ções sobre um mesmo tema, metáfora obsedante do jogo entre o mesmo e o ou-
tro. O conto retoma o ponto de origem para desdobrá-lo e complexificá-lo
numa espiral obsessiva. A cada nova volta, novos sentidos se acrescentam, de-
senhando um condensado redemoinho.

A massa informe

Deixemos por um momento a questão do gesso paralisante, ao que pre-


tendo voltar logo mais.

264
Olhemos agora para o romance A paixão segundo G.H., em que a prota-
gonista é imagem especular e invertida da narradora do conto. Fisgada pela vi-
são da barata, G.H. se deixa capturar pela vertigem de uma verdadeira arqueo-
logia da alma; ela aceita, embora resistente, viver o disforme, a pulsação
ilimitada do desfigurado, do que não comporta representação, padecendo a via-
crúcis do desamparo e da dissolução para reencontrar-se, justamente, com o eu
tornado outro: “[...] era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportá-
vel as raízes de minha identidade” (p. 57). Ou ainda: “Para ter chegado a isso,
eu abandonava a minha organização humana – para entrar nessa coisa mons-
truosa que é a minha neutralidade viva” (p. 98).
Destaco os pronomes possessivos, índices de pessoalidade que indicam,
no caso de G.H., a consciência extrema, ainda que angustiante, de que na alte-
ridade da barata encasula-se algo dela própria: a “matéria primordial”, o “ele-
mento vital que liga as coisas”, o “inexpressivo”, o “neutro”, que no limite per-
tence a todos nós.9 Já a heróica dona-de-casa do conto erige uma total
diferenciação entre ela e as baratas, dizendo que “só em abstrato me havia quei-
xado de baratas, que nem minhas eram” (p. 91). Quando se tornam suas tam-
bém é para exercer sobre elas todo o seu domínio sádico. Processo alienante e
defensivo no conto; processo identificatório e simbiótico, no romance. Simbio-
se que se torna recurso compositivo, ao fechar os capítulos com a mesma frase
que abre os seguintes (expediente conhecido como “leixa-pren” do lirismo ga-
laico-português), cujo efeito aqui é retardar a narrativa e desenhar um enorme
cordão umbilical sem rupturas. Aliás, a idéia de regressão uterina, de retorno às
origens, já está figurada na frase de G.H.: “[...] eu assistia à minha transforma-
ção de crisálida em larva úmida [...]” (p. 75).
Atravessando um corredor escuro que dá acesso à área de serviço e ao
quarto da empregada Janair (que é, como diz Berta Waldman, “o outro de clas-
se social oposta, antecipando a barata, o outro da espécie”),10 G.H. está prestes
a viver a “[...] perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser” (p. 176).
O paradigma desses rituais iniciáticos está, por exemplo, na abertura de A divina
comédia, de Dante Alighieri (1265-1321): “A meio caminho desta vida/Achei-
me a errar por uma selva escura/Longe da boa via, então perdida.”11 Também
G.H. está longe de sua “boa via” burguesa ao adentrar o quarto, espaço margi-
nal da exclusão, mas também espaço mitopoético, onde se dará a narrativa das

265
origens, verdadeira cosmogonia genética. A aventura pessoal de G.H., vale lem-
brar, só pode ocorrer mediada pelo outro socialmente diferente – a empregada
doméstica – mas que também testemunha uma mesma identidade feminina:
duas mulheres em confronto, a proprietária branca de uma cobertura no Rio de
Janeiro e sua empregada mulata, Janair. Tão semelhantes e tão desiguais.
A passagem de G.H. pelo corredor inaugura uma experiência ritualísti-
ca, que tem como primeiro gesto o ato proibido e transgressor de jogar o cigar-
ro aceso para fora do edifício. Mas o grande desafio ainda está por vir. G.H.,
dentro do quarto de Janair, é surpreendida pela emergência lenta da barata e a
esmaga até a morte. Desde o início do relato, o leitor vem sendo chamado a tes-
temunhar uma enorme desestruturação: “O que vi arrebenta a minha vida diá-
ria” (p. 15), diz a protagonista nas primeiras páginas. O romance se torna, en-
tão, a tentativa de dar forma ao inenarrável, esbarrando a todo momento no
limite intransponível das palavras. Tal paradoxo, vale dizer, é o que funda toda
literatura clariciana.
Essa jornada infernal na direção de um magma primário, projetado na
massa branca da barata, vivência afrodisíaca e diabólica, faz do trajeto sacrifi-
cial de G.H. uma espécie de anti-odisséia homérica. Enquanto a viagem épica
de Ulisses simboliza o processo formador da cultura ocidental, constituindo o
sujeito egóico e senhor de si,12 G.H., ao contrário, distancia-se da civilização em
direção à natureza primeva, fazendo o caminho inverso ao de Ulisses, que sa-
crifica seus impulsos em nome do desenvolvimento da racionalidade humana.
As aventuras do herói homérico são afirmações de uma subjetividade em cons-
trução, que teme perder-se na indiscriminação. É assim que podemos entender
o confronto com o perigo da flor de lótus, a deusa Circe, a tentação das sereias...
No extremo oposto, G.H. ingere, sim, a flor de lótus/barata para uma fusão or-
gânica do homem com o mundo primário. Entre o nojo e o maravilhamento,
G.H. se dá conta que há uma fonte anterior à humana que alimenta o huma-
no que somos. É na direção dela que se move G.H., buscando reunificar o su-
jeito às forças míticas da natureza.
Se Ulisses ritualiza a passagem do mythos ao logos, G.H. regride da razão
ao mundo pulsional. Ela despoja-se e anula-se como pessoa constituída para pe-
netrar na massa branca, anônima e impessoal da barata, nivelando-se ao “plasma
seco”, ao grau quase zero da existência, mas que é vivo e beira o insuportável.

266
Nessa inequívoca regressão, a personagem se desfigura, assim como o romance
que perde seus contornos de gênero e suas coordenadas de espaço e tempo.
Pode-se dizer que A paixão segundo G.H. é uma espécie de continuação de
“A quinta história” interrompida no último parágrafo, mostrando o que teria acon-
tecido à nossa bem-sucedida dona-de-casa se ela desistisse de sua empreitada de-
detizadora e se deixasse tocar pelo “de-dentro” do outro/barata, sombra recalcada
dela mesma. Como diz G.H.,“o que nela [barata] é exposto é o que em mim eu
escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso ignorado” (pp. 76-7).
Em ambos os casos, no romance e no conto, a barata pode ser conside-
rada a condensação extrema da matéria indesejável e expulsa da consciência,
mas que retorna gerando angústia e terror. Ao superar o assombro diante da in-
quietante estranheza do inseto,13 G.H. rompe seu próprio invólucro e comun-
ga de seu duplo, de sua mais íntima estrangeira. G.H. espreita, assim, as mar-
gens do mundo pulsional, das águas que banham todas as nossas ações e que
necessitam diques para não naufragarmos nelas.14
E aqui as duas narrativas se espelham por contraste: G.H., ao abrir-se pa-
ra o ilimitado, distancia-se do mundo construído e partilha da lógica dos para-
doxos, que é na verdade o campo do Real (como quer Lacan),15 do impossível
de ser figurado. Ela se aproxima perigosamente da experiência psicótica, que se-
ria a irrupção crua do Real sem a rede simbólica que o sustenta; é habitar uma
terra sem contornos, sem limites, onde a linguagem compartilhada não alcan-
ça: “Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo – traduzir o desconheci-
do para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os
sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não se-
ria linguagem” (p. 19). G.H. se entrega ao sonho do qual a narradora do con-
to “A quinta história” precisa acordar e esquecer.
A escultora G.H., cujo trabalho é dar forma à matéria bruta, perde ela mes-
ma sua forma humana para ser atraída pela brutalidade da matéria. Chamo aten-
ção, ainda, para o fato de que G.H. esculpe, mas quem aplica os moldes de ges-
so é o seu “outro”, seu duplo avesso, a narradora do conto “A quinta história”.
O que traz G.H. de volta de seu mergulho, o que a salva da “aterradora
liberdade” que pode destruí-la, o que a resgata do que seria um surto se não fos-
se literatura, é justamente o esforço de dizer, a própria fatura do romance. É a
palavra, enfim, dita a um outro (ouvinte? amante? analista?), que traz à tona

267
nossa personagem. G.H. precisa relatar esse “sonho” radical a alguém e por is-
so cria seu interlocutor, tentando apaziguar a angústia do informe e lutar con-
tra a desintegração. Diz a personagem:

Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substân-


cia amorfa – a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se
eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes –
então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida hu-
manizada (p. 12).

A escrita, como metáfora da fala numa sessão de análise, é o modo de


destrinchar a carne e sobreviver ao transe do indelimitado, do inapreensível. O
discurso de quem mergulhou no caos trará as marcas dos escombros e se fará
às custas de não poder representar com fidelidade o que foi vivido tão intensa-
mente. Entretanto não narrar é afogar-se num silêncio mortal: “Não tenho uma
palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a
mudez me engolfará para sempre em ondas” (p. 18).
O apelo ao interlocutor atinge uma dramaticidade pungente: “Segura
minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais pri-
mária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua” (p. 60). O lei-
tor/analista empresta sua escuta/corpo para que a protagonista adquira nova-
mente um contorno individual, uma capacidade de estabelecer contato consigo
mesma. Corre-se o risco de ambos intercambiarem lugares numa vivência com-
partilhada ao extremo:

Sei, é ruim segurar minha mão. É ruim ficar sem ar nessa mina
desabada para onde eu te trouxe sem piedade por ti, mas por piedade
por mim. Mas juro que te tirarei ainda vivo daqui – nem que eu minta,
nem que eu minta o que meus olhos viram. Eu te salvarei desse terror
onde, por enquanto, eu te preciso (pp. 98-99).

Não se sabe mais quem tem a força e quem a fragilidade. Na verdade,


há potência na fraqueza de G.H., que se apóia na mão do leitor, mas não o dei-
xa escapar.

268
Rituais do desejo

Voltemos à protagonista de “A quinta história”, que havíamos deixado


de lado. Essa dona-de-casa descobre-se sujeito de um gozo desconhecido, sádi-
co e erótico.16 Excitada com seus meticulosos rituais alquímicos, “[...] só queria
gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe” (p. 92). A inocente do-
na-de-casa se percebe uma assassina de baratas e se vê prisioneira de sua própria
obsessão: “Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? como quem já
não dorme sem a avidez de um rito” (p. 93).
A queixa recorrente, o vício de matar, o eterno retorno das baratas – e
das histórias – levam-nos a pensar em um texto de Freud, datado de 1907, “Atos
obsessivos e práticas religiosas”. Preocupado com as analogias entre os cerimo-
niais neuróticos e os religiosos, ele afirma que

[...] Um cerimonial é um conjunto de condições que devem ser


preenchidas para que seja permitida alguma coisa ainda não de todo proi-
bida, da mesma forma que um cerimonial matrimonial da Igreja signifi-
ca para o crente uma permissão para desfrutar os prazeres sexuais, que de
outra maneira seriam pecaminosos.17

Como todo sintoma, diz Freud, o ato obsessivo se constitui numa “con-
ciliação entre as forças antagônicas da mente. Essas manifestações reproduzem,
assim, uma parcela daquele mesmo prazer que pretendiam evitar, e servem ao
instinto reprimido tanto quanto às instâncias que o estão reprimindo”.18
À luz dessas idéias, voltemos ao conto. Arrisco dizer que, para a nossa nar-
radora, nada melhor do que um álibi como a dedetização de baratas, procedi-
mento higiênico e legitimado, portanto “não de todo proibido”, para desfrutar os
prazeres sádicos e eróticos que de outro modo seriam pecaminosos. Como diz
Freud, o mecanismo principal das neuroses – o deslocamento – acaba por trans-
formar um fato extremamente banal em algo da maior urgência e importância.
Além disso, o ato de engessar as vítimas serve tanto ao instinto reprimi-
do – sadismo erótico que se satisfaz no gesto de envenenar e na visão voyeurís-
tica da criminosa ao contemplar, em gozo estético, as “baratas que haviam en-
durecido de dentro para fora” (p. 92) – quanto ao ato repressor, já que o modo

269
de matar pelo gesso paralisante se abre como metáfora do silenciamento provo-
cado pela repressão. Engessar, petrificar, mumificar, ter a palavra cortada da bo-
ca: “[...] é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para den-
tro de...” (p. 93). Assim o texto representa as instâncias repressivas, que se
voltam contra a própria escrita, ameaçada pelo corte silenciador.19
Se G.H. escolhe deixar-se levar pelo estranho outro de si mesma, ainda
que sob o risco de perder-se no inconsciente das pulsões, a narradora do conto
– feiticeira de noite e comportada dona-de-casa de dia – escolhe eliminar seu
estrangeiro ameaçador e ostentar uma placa de virtude: “[...] Esta casa foi de-
detizada” (p. 94).
Mas a saga das baratas prossegue no último parágrafo do conto e por
mais mil e uma histórias: “A quinta história chama-se ‘Leibnitz e a transcen-
dência do amor na Polinésia’. Começa assim: queixei-me de baratas” (p. 94).
Como a narradora projeta o seu próprio mal nas baratas, ocupando simultanea-
mente o lugar de vítima e algoz (qualquer semelhança com a paranóia não é
mera coincidência), executar o mal para exterminá-las não a salvará de si mes-
ma. Não importa o cenário em que esteja, aqui ou na Polinésia. O paradoxo do
eu e sua alma se reeditará enquanto houver um sujeito dividido, que compor-
ta um outro diferente de si mesmo.
Entre viver radicalmente o estrangeiro ou virar-lhe as costas, transitamos
nós, no equilíbrio instável do cotidiano. Entre ambas as escolhas, só não tem
opção o leitor que se debruça sobre o conto “A quinta história”, ele também en-
gessado nas malhas do texto.

III

Uma última visada do tema proposto nos leva ao texto “A geléia viva como
placenta”, meio crônica, meio conto, quase fragmento de um diário, trazendo to-
do hibridismo da escrita clariciana. Através dele talvez possamos chegar à matriz
conceitual dos textos comentados anteriormente, ou seja, ao momento inaugural
do sujeito humano, antes mesmo de seu nascimento.
A autora, narradora e protagonista de um bizarro sonho, descreve a ex-
periência de um pesadelo – “uma assombração triste” – em que ela, sujeito

270
constituído e narrante, depara com sua “deformação essencial”, uma geléia viva
e silenciosa que reflete como espelho o seu rosto. “Lançada no horror, quis fugir
de minha semelhante – da geléia primária [...]”, diz a sonhadora em seu assom-
bro. Segue-se uma tentativa de suicídio (“[...] pronta a me lançar daquele meu
último andar”), uma parada para pintar os lábios de batom, que também era ge-
léia viva, um confronto com o escuro, que a espiava com os olhos, e que tam-
bém era vivo. Em seguida, a afirmação que conclui a primeira parte do relato:
“Vivo estava tudo. Tudo é vivo, primário, lento, tudo é primariamente imortal.”
Chama a atenção do leitor a insistência do significante vivo, que é cons-
truído no texto como uma enorme ameaça, vivência que se põe na contramão
do que busca a narradora: “Aonde encontraria eu a morte?”, pergunta-se. As re-
versões dos sentidos convencionais são um dos traços mais marcantes de Clarice
Lispector, como se vê, por exemplo, nessa frase do livro Água viva (1973): “[...]
o que é uma janela senão o ar emoldurado por esquadrias?”20. Ou nas palavras
de G.H.: “Ah, estou sendo tão direta que chego a parecer simbólica” (p. 138).
Somos forçados a olhar o mundo pelo seu avesso, pelo lado contrário ao que
nos familiarizamos. O que nos intriga nesse sonho é que ele se faz pesadelo por
trazer não a morte, mas o excesso do que está vivo, invertendo, portanto, a no-
ção do senso comum. Mas ainda é cedo para decifrarmos essa vivência insólita
e estranha.
Também invertidos estão os lugares de sujeito e objeto, já que a so-
nhadora é olhada – ou melhor, espiada – pelo escuro, ente materializado e
vigilante, que a faz objeto de um olhar externo. Há, ainda, outro elemento
a ser destacado: a narradora não está sozinha. Ela nos informa que “ninguém
tinha coragem” de tocar a geléia viva, o que supõe outras presenças no ce-
nário do sonho.
Até aqui temos uma marca de identificação entre a autora e a massa dis-
forme da geléia viva, cuja deformação é assumida como “minha semelhante”. O
encontro, portanto, com o duplo de si mesma, externalizado no formato sinistro
de uma substância mole e sem limites, é a cena angustiante do sonho. Esse outro
de si, que é o eu mesmo tornado estranho (novamente o Unheimlich), mostra-se
no espelho onírico sem nenhuma defesa, sem nenhuma barreira, denunciando o
que todos nós somos, viva e primariamente. No seu ensaio “O estranho”, Freud
afirma que:

271
A qualidade de estranheza só pode advir do fato de o “duplo” ser
uma criação que data de um estádio mental muito primitivo, há mui-
to superado – incidentalmente um estado em que o “duplo” tinha um
aspecto muito amistoso. O “duplo” converteu-se num objeto de terror,
tal como, após o colapso da religião, os deuses se transformam em de-
mônios.21

Advém daí a idéia, já apontada anteriormente, de que o estranho refere-


se ao retorno do que deveria ter ficado oculto, mas vem à luz. O que já nos foi
familiar um dia por força da repressão mantém-se na tocaia, até que um sonho
– no caso do presente texto – põe de novo em movimento o que era primaria-
mente vivo e silencioso.

O vivo e o morto

Tentando fugir de si mesma, a protagonista prossegue a narrativa: “Com


uma dificuldade quase insuperável consegui acordar-me a mim mesma, como
se eu me puxasse pelos cabelos para sair daquele atolado vivo.” Novamente o
duplo se coloca, pois há duas pessoas nesse embate – um eu atolado vivo e um
outro que o arranca dali. A vigília pré-consciente do sonho parece despertar pa-
ra os perigos dessa experiência regressiva, que ameaça a constituição de um su-
jeito de contornos firmes e pacificados. O que se vê nessa imagem onírica é mes-
mo um eu dividido e conflitante, capaz de distanciar-se de si e perceber que
partes suas funcionam autonomamente.
Quando acende a luz, na parte final do relato, a narradora revela a enor-
me oposição entre as polaridades constitutivas do enredo, até então apenas in-
sinuadas. Vale a pena transcrever o último parágrafo do texto:

[...] Eu queria me salvar? Acho que sim, pois acendi a luz da cabe-
ceira para me acordar inteiramente. E vi o quarto de contornos firmes. Ha-
víamos – continuava eu em atmosfera de sonho – havíamos endurecido a
geléia viva em parede, havíamos endurecido a geléia viva em teto; havía-
mos matado tudo o que se podia matar, tentando restaurar a paz da mor-
te em torno de nós, fugindo ao que era pior que a morte: a vida pura, a

272
geléia viva. Fechei a luz. De repente um galo cantou. Num edifício de
apartamentos, um galo? Um galo rouco. No edifício caiado de branco,
um galo vivo. Por fora a casa limpa, e por dentro o grito? assim falava o
Livro. Por fora a morte conseguida, limpa, definitiva – mas por dentro a
geléia elementarmente viva. Disso eu soube, no primário da noite.

Os pólos engendradores do conto seriam, portanto, os seguintes pares de


opostos: de um lado, a geléia viva, de outro, o quarto de contornos firmes; o
galo vivo e o edifício caiado de branco, o grito por dentro e a casa limpa por
fora. Para onde apontam essas forças em confronto? O que pode ser pior que a
morte, afinal?
Talvez uma hipótese possível, pensando agora no conjunto da obra de
Clarice Lispector, seja a de uma alusão ao mundo pulsional, entendido aqui co-
mo sendo mais propriamente as pulsões de morte (“pulsões por excelência”, co-
mo diz Freud),22 na sua condição de avessas à representação, indelimitáveis, não
capturáveis pela linguagem e, portanto, rebeldemente vivas em seu silêncio. O
caos que caracteriza as pulsões de morte em sua desagragação, em sua potência
destrutiva de quaisquer ligações estabelecidas, não permite nenhuma forma de
domesticação. Disso são testemunhas G.H. e a protagonista de “A quinta his-
tória” (ainda que esta acredite ter “dedetizado” o mal para sempre).
A pulsão de morte assusta porque provoca justamente a ruptura da “paz
da morte”, a emergência de novas formas, ao recusar a conservação das uniões
(domínio das pulsões de vida, que tendem a manter e unificar). São forças an-
ticulturais, pois quebram relações já construídas. As pulsões de morte rejeitam
o edifício bem construído, a casa limpa por fora; elas são o grito vivo da geléia
primária, magma informe de onde emergimos para o mundo das formas caia-
das de branco.23 E aqui os três textos comentados se entrelaçam, tramando con-
tra as formas estabelecidas, denunciando um bem-estar instável, ilusório.
Clarice levou até às últimas consequências essa amarga lucidez do que dei-
xamos para trás quando nos aculturamos. Como se viu no romance A paixão se-
gundo G.H., o encontro repulsivo e extasiante de uma dona-de-casa burguesa com
uma barata saída do fundo de um armário do quarto de empregada intensifica a
mesma matriz: a massa branca, que é o “núcleo da vida”, raiz da nossa identida-
de, vivida simultaneamente como paraíso e inferno. A personagem se deixa levar

273
pela atração do impessoal (ou “it”, como é denominado no texto Água viva), do
plasma placentário original, da matéria-prima neutra, anterior a qualquer deter-
minação, numa entrega vertiginosa e enlouquecedora. Nas palavras finais de
G.H.: “Enfim, enfim, quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu
era.” (p. 181). Muito diferente da protagonista do conto “A quinta história”, que
descobre, sob a capa inocente de uma dona-de-casa, uma assassina de baratas ob-
cecada por eliminar compulsivamente cada barata que existe. E ela o faz pensan-
do silenciar a inquietação das pulsões transgressoras. Ou a inquietação da lenta e
pastosa geléia viva – se pensarmos na última narrativa analisada.
Isso que chamo aqui de matriz conceitual dos textos enfocados, essa espé-
cie de leito subterrâneo que alimenta boa parte da obra clariciana, também faz
sua aparição no périplo da personagem Ana, do conto “Amor”.24 A visão de um
cego mascando chiclete no ponto do bonde onde Ana está sentada tem o mesmo
impacto vivencial que as baratas para G.H. e para a dona-de-casa de “A quinta
história”. É da mesma natureza a massa viscosa que escorre das gemas pingando
do saco de compras de Ana, surpreendida por uma visão prosaica que desmonta
sua estrutura pessoal. A escuridão do cego joga Ana em direção à própria sombra
e o que ainda se mantinha em frágil equilíbrio sucumbe: “O mundo se tornara
de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam” (p. 21).
A rede de tricô que continha as compras se rompe, metaforizando a perda da sus-
tentação cultural quando o mundo pulsional escapa ao controle egóico. “Ela [Ana]
apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse”, diz o nar-
rador (p. 22). Mas a escrita de Lispector se empenha em fazer implodir os edifí-
cios comportados da civilização, lançando personagens e leitores na intensidade
da vida, sem mediações que nos defendam dela.
Seguindo ainda mais com o conto “Amor” – para que se fortaleça o elo
que une os textos claricianos – a metáfora insiste: “Não havia como fugir. Os
dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava dian-
te da ostra” (p. 31). A série significante ganha corpo a cada nova narrativa: mas-
sa branca da barata versus apartamento de cobertura, n’A paixão segundo G.H.; o
“de-dentro” da barata versus casa dedetizada, no conto “A quinta história”; geléia
viva como placenta versus a parede e o teto, em “A geléia viva como placenta”;
por dentro o grito versus casa limpa por fora, no mesmo texto; a crosta versus a
ostra, em “Amor”. O externo e o interno num embate insolúvel, a casca dura e

274
o núcleo gelatinoso,25 desde o surgimento do humano. “Disso eu soube no pri-
mário da noite”, diz a narradora de “A geléia viva como placenta”.

Insólito nascimento

De volta à crônica. É como se ainda não tivéssemos escutado quem dá


o grito em meio à escuridão. Tentemos juntar algumas pistas dispersas, distrai-
damente espalhadas pela cena onírica:
1) “Este sonho foi de uma assombração triste. Começa como pelo meio”,
diz a narradora na primeira frase do texto. Algo, portanto, já está em curso, cau-
sando terror. Ou melhor, algo pode estar sendo interrompido pelo meio.
2) “Viva e silenciosa, a geléia arrastava-se com dificuldade pela mesa, des-
cendo, subindo, vagarosa, sem se esparramar.” A geléia se movimenta lentamen-
te com vida, refletindo o rosto da sonhadora. O que ela vê é semelhante a ela
mesma, talvez até um prolongamento seu.
3) “Mas antes de saltar do terraço, eu resolvia pintar os lábios. Pareceu-
me que o batom estava curiosamente mole. Percebi então: o batom também era
de geléia viva.” A menção ao batom, uma frivolidade em meio ao grotesco da
situação, assinala um elemento feminino importante para o contexto do sonho.
O batom também se deforma, perdendo sua característica de ser uma forma de
escrita sobre a pele.
4) “Quando já estava com as pernas para fora do balcão, foi que vi os
olhos do escuro.” Uma parte do corpo está dentro e outra avança para fora,
prestes a se lançar. Algo do corpo se abre para o exterior, numa tentativa de-
sesperada de escapar.
5) O acordar se dá “[...] como se eu me puxasse pelos cabelos para sair
daquele atolado vivo”. A passagem do sonho à vigília parece feita com o esfor-
ço de um fórceps.
6) “Quem pegava nela [a geléia]? Ninguém tinha coragem” “[...] havía-
mos endurecido a geléia viva em parede.” Fica claro que há outras pessoas nes-
se espaço, testemunhas ou agentes ao lado da protagonista. Os demais partici-
pantes ou observadores não ganham voz, mas se fazem presentes pelo reforço
da primeira pessoa do plural (“havíamos”).

275
7) Por fim, há um espaço demarcado: “O quarto estava escuro, mas era
um escuro reconhecível, não o profundo escuro do qual eu me arrancara [...] E
vi o quarto de contornos firmes. Havíamos – continuava eu em atmosfera de
sonho – havíamos endurecido a geléia viva em parede, havíamos endurecido a
geléia viva em teto [...]”. Não poderia ser um quarto de hospital? Embora o tex-
to se refira a um “edifício de apartamentos”, os processos oníricos de desloca-
mento e condensação permitem a sugestão interpretativa, uma vez que, na at-
mosfera do sonho, as demarcações concretas ganham novos contextos e
significações. Além disso, fala-se em salvamento (“Eu queria me salvar?”), o que
corrobora o aspecto médico envolvido. A luz se apaga e um galo rouco anun-
cia o dia e a paz da morte conseguida.
A junção dessas imagens fragmentárias, que fazem do texto um corpo
despedaçado26 de fios narrativos, parece nos remeter a uma figuração bastante
precisa: a cena que acompanhamos é a cena de um aborto. O título, agora, ga-
nha uma força expressiva incontestável: “A geléia viva como placenta”. Somos
espectadores e testemunhas de uma morte anunciada (e conseguida), não se sa-
be se provocada ou não. O fato é que aquele ser sem forma, vivo e primário,
um feto arrancado do escuro, devolve a sonhadora – e todos nós – ao lugar pri-
mevo de onde viemos, ao latejar pulsante de uma vida ainda ilimitada, sem con-
tornos e sem sujeito construído.
A geléia viva, ressignificada dessa maneira, é a vida pura, além ou aquém
de qualquer subjetivação. Ela é o corpo placentário que tudo abarca, mas do qual
é preciso ter distância por ser vivo demais. E nosso ser, resolvido em sólidas pa-
redes, não agüentaria o contato direto com a vida crua. A literatura de Clarice
Lispector, no entanto, torna possível conhecermos esse terreno vital atemorizante.
As metáforas que condensam esse sonho e figuram processos de outro mo-
do inomináveis se prestam a vários planos de análise. Chamo atenção para mais
um deles. Soam familiar as expressões “edifício caiado de branco” e “por fora a ca-
sa limpa, por dentro o grito”. Certamente, são frases tomadas do Evangelho (“as-
sim falava o Livro”, diz a narradora), quando Jesus se dirige aos fariseus compa-
rando-os justamente aos sepulcros caiados de branco, que escondem por dentro
a podridão.27 O aspecto moral presente nessa passagem talvez se esclareça em fun-
ção de um olhar crítico frente ao ato abortivo. A censura, afinal, não deixa de se
pronunciar como uma marca superegóica em meio a um sonho tão regressivo.

276
De todo modo, esse texto chama atenção para uma tentativa de nasci-
mento, mas que se faz como corpo amorfo, deformado, prematuro. A experiên-
cia que parece estar figurada no texto aponta para um sujeito duplicado, que se
defronta com seu aspecto primal abortado. Seja como for, algo foi arrancado da
raiz, desterrado de seu habitat uterino.
A respeito dessa vivência de descolamento de um centro protetor, soa in-
teressante a observação de Antonio Callado sobre a amiga escritora: “Clarice era
estrangeira na terra. Dava a impressão de andar no mundo como quem desem-
barca de noitinha numa cidade desconhecida onde há uma greve geral de trans-
portes.”28 O território por onde a autora circula não parece ser o chão familiar
de todos os dias. Sua chegada ao Brasil, no início de 1922, vinda da Ucrânia,
com pouco mais de um ano de idade – sua família, judia, fugiu dos pogroms em
1920 – marca uma experiência de desenraizamento. Os deslocamentos dentro
do país, de Alagoas para Recife e depois Rio de Janeiro, as moradias em vários
países na companhia do marido diplomata, intensificam um sentimento de exí-
lio e ruptura de laços de pertença.
Diz a autora na crônica “Pertencer”, de 1968: “Tenho certeza de que no
berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não
importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e
a ninguém. Nasci de graça.”29 A frase é provocativa o suficiente para pensarmos
na crônica aqui apresentada como um novo nascimento, mas que se mostra in-
completo, vivido como o aborto de um eu sem corpo e sem lugar.
Seja como for, há na obra clariciana uma busca errante para reencontrar
um lugar inalcançável e só mesmo na literatura a ficcionista parece abraçar o
mundo dos impossíveis, um não-lugar que acolhe o estrangeiro na própria lín-
gua. O estrangeiro – mundo das pulsões sem freios e sem contorno – que para
a psicanálise é o eu.

Yudith Rosenbaum, psicóloga e professora de literatura brasileira na Universidade de São Paulo, pu-
blicou Manuel Bandeira – Uma poesia da ausência (São Paulo/Rio de Janeiro: Editora da Uni-
versidade de São Paulo – Edusp/Imago, 1993), Metamorfoses do mal – Uma leitura de
Clarice Lispector (São Paulo: Edusp/Fundação de Amparo à Pequisa do Estado de São Paulo –
Fapesp, 1999) e Clarice Lispector (São Paulo: Publifolha, 2002).

277
NOTAS
1 CASTELLO, José. Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 24.
2 Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.
3 Rio de Janeiro: Editora do Autor.
4 A crônica saiu originalmente em 1964 com o título “A geléia viva” em Fundo de gaveta (parte II do livro A legião estrangeira, que de-
pois receberia edição independente no volume Para não esquecer, pela editora Ática, em 1978). Mas o texto ganha uma segunda ver-
são, com pequenas e significativas alterações, no Jornal do Brasil de 29.01.72. Aqui será usada a edição de 1999 de A descoberta do mun-
do (Rio de Janeiro: Rocco, pp. 402-403). Uma vez que a crônica ocupa duas páginas, as citações posteriores virão sem a referência do
número.
5 In: KOLTAI, Caterina (org.). O estrangeiro. São Paulo: Escuta/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp, 1998,
p. 155.
6 O conceito de pulsão, fundamental para a presente leitura, ocupa um papel central no campo freudiano. O termo pulsão (Trieb) sur-
ge em 1905 n’Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade e se refere a uma energia ou excitação que impele o organismo à descarga. Di-
ferentemente do instinto (Instinkt), que determina e fixa um comportamento hereditário para todos da mesma espécie, a pulsão teria
sua origem nas fontes somáticas, mas escolheria objetos e alvos variáveis, construindo pessoas únicas a partir de histórias singulares.
Freud sempre foi dualista na sua teoria das pulsões. Inicialmente, concebeu as pulsões sexuais em contraposição às pulsões do ego (ou
de autoconservação), sendo essas últimas responsáveis pelas funções de sobrevivência do indivíduo. Desde o início, a noção de confli-
to é básica, pois as pulsões do ego teriam o encargo de se defender da sexualidade. Em 1920, no ensaio “Além do princípio do prazer”,
o dualismo se modifica e Freud contrapõe as pulsões de vida (Eros) às pulsões de morte (Tânatos), incluindo as sexuais e de autocon-
servação na região de Eros. O conflito psíquico, portanto, se mantém: de um lado forças pulsionais de atração e de outro as de repul-
sa e rejeição. Mas o ponto fundamental da pulsão de morte é que ela “representa a tendência fundamental de todo ser vivo a retornar
ao estado anorgânico”, desintegrando as ligações existentes e levando cada indivíduo a reencontrar uma estabilidade anterior. Se toda
pulsão, segundo Freud, tende para o retorno a um estado anterior, a pulsão de morte – e seu caráter regressivo – seria a pulsão por ex-
celência. Freud veria nela o sinal do “demoníaco” devido à sua independência do princípio do prazer e ao seu aspecto autodestrutivo
(Cf. os verbetes “Pulsão”, “Pulsões de morte” e “Pulsão de vida” In: LAPLANCHE J. e PONTALIS, J.B. Vocabulário da psicanálise. Tradução
de Pedro Tamen. 4. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2001). Nas últimas teorizações de Freud, afirma-se o princípio de coesão de Eros
e a força disruptora de Tânatos: “O objetivo [de Eros] ... é estabelecer unidades cada vez maiores e assim preservá-las – em resumo,
unir; o objetivo [de Tânatos] ..., pelo contrário, é desfazer conexões e, assim, destruir coisas. No caso [de Tânatos], podemos supor que
o objetivo final é levar o que é vivo a um estado inorgânico” (FREUD, Sigmund. “Esboço de psicanálise” (1938). In Obras completas.
Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXIII, p. 161).
7 Cf. GOTLIB, Nádia Battella. Clarice – Uma vida que se conta. 4. ed., São Paulo: Ática, 1995, pp. 278-281, Gotlib mostra como a fic-
cionista se esconde sob a máscara da cronista da coluna “Entre mulheres”, que Clarice manteve sob pseudônimo de Tereza Quadros
no jornal Comício, de 15.05 a 12.09 de 1952. Por trás da naturalidade dos fatos narrados, esconde-se uma realidade mais áspera e con-
tundente, invadindo os leitores desavisados. No conto em questão, o papel de “fingidor” se reedita. Agora é a narradora que finge isen-
ção total na descrição objetiva dos fatos. Obviamente, o fingimento ou disfarce na condição de ficcionista não é exclusividade de nos-
sa autora. Contudo, n’ “A quinta história” a técnica se torna o núcleo da fatura literária, travestindo a narrativa de modo a ludibriar o
leitor e enredá-lo numa trama mordaz.
8 O sadismo, do ponto de vista psicanalítico, seria inicialmente uma “perversão sexual em que a satisfação está ligada ao sofrimento ou
à humilhação infligida a outrem” (Vocabulário da psicanálise, p. 465). O termo, no entanto, acaba se estendendo a manifestações in-
fantis ou mais cotidianas, tornando-se ingrediente fundamental da vida pulsional. Às vezes, Freud concebe o sadismo atrelado à sexua-
lidade (violência exercida para subjugar o outro sexualmente), mas também considera sadismo apenas o ato violento, desligado de qual-
quer satisfação sexual. No texto de Lispector, a narradora joga sadicamente com o leitor, que vira presa da armação ficcional. Somos
violentados em nossa passividade quando acompanhamos um relato aparentemente banal de uma fórmula doméstica de dedetização,
sem poder nos “defender” dos conteúdos avassaladores, que transgridem as receitas de bom comportamento.
9 A narradora chega a se referir à massa branca da barata como sendo o inumano, “[...] o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gen-
te”. A paixão segundo G.H., p. 69.
10 A paixão segundo C.L. 2. ed., revista e ampliada. São Paulo: Escuta, 1992, p. 75.
11 Tradução de Cristiano Martins. 2. ed., Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo - Edusp, 1979, p. 101.
12 Segundo a leitura de T. Adorno e M. Horkheimer em “Conceito de iluminismo”. Textos escolhidos. Organização e tradução de Zelico
Loparic. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975, v. XLVIII, pp. 97-124.
13 Uso aqui o conceito freudiano de Unheimlich, desenvolvido no ensaio “O estranho” (1919). Trata-se do retorno de conteúdos que já
foram familiares mas que, sob efeito da repressão, foram alijados da consciência, reaparecendo de forma sinistra e estranha. As palavras
de Schelling citadas por Freud no referido ensaio, dizem respeito ao que “deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”.
(Ver: Obras completas, edição citada, v. XVII, p. 282).
14 Explicitando o conceito de “pulsão” da teoria freudiana, já comentado (ver nota 6), o filósofo Luiz Alfredo Garcia-Roza, no seu livro
O mal radical em Freud (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 127) afirma: “O conceito de pulsão nos remete a uma região do
campo psicanalítico que está além da ordem. Esse campo poderia ser pensado como sendo composto por duas grandes regiões: uma
compreendendo aquilo que Freud designou de aparelho psíquico (ou ‘aparato anímico’, como ele preferiu posteriormente) e que abar-
ca o inconsciente e o pré-consciente/consciente; e uma outra região, para além do princípio do prazer, que seria o lugar próprio das
pulsões”. Portanto, haveria dois lugares distintos – o lugar da ordem, “formada pela rede de significantes e regida pelo princípio do
prazer e seu sucedâneo, o princípio de realidade”, e o lugar do acaso, que seria o da pulsão, “situada além da ordem e da lei, além do
inconsciente e da rede de significantes, além do princípio de prazer e do princípio da realidade, além da linguagem.” A absoluta dis-
solução ou mesmo a “despersonalização” de G.H. apontaria, ao meu ver, para o caráter regressivo, caótico e turbulento da pulsão.

278
15 A teoria lacaniana concebe três registros fundamentais no psiquismo: o Imaginário, o Simbólico e o Real. O primeiro se estrutura a
partir das imagens apreendidas na relação com o outro. Refere-se ao campo das fantasias e, sobretudo, das identificações, inicialmen-
te narcísicas, que dão contorno ao sujeito; o segundo consiste no conjunto dos significantes que situam o ser falante na linguagem. O
Real, por fim, é o que não é passível de simbolização, o que escapa à tela protetora dos sujeitos em sua relação com o mundo. “O Real
é, portanto, o informe, o que sempre aparece construído precariamente, falsamente: é impossível. O Real, diz Lacan, é sempre sem fen-
das... e não há meio de apreendê-lo a não ser por intermédio do simbólico.” (VALLEJO, Américo e MAGALHÃES, Ligia C. Lacan – Ope-
radores de leitura. 2. ed., São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 116).
16 Várias passagens do conto corroboram a presença crescente do erotismo, entre elas a seguinte: “Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir
da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam” (p. 92; grifos meus).
17 In Obras completas, edição citada, v. IX, p. 115.
18 Loc. cit.
19 Lembremos aqui, em mais uma licença interpretativa, o texto Totem e tabu (1913), de Freud, em que o animal proibido vira totem,
como as baratas espalhadas na forma de estátuas ou monumentos.
20 Rio de Janeiro: Artenova, p. 29-30.
21 FREUD, Sigmund. Obras completas, v. XVII, p. 254.
22 Conforme foi explicado nas notas 6 e 14, trata-se das forças que impelem o ser a um descolamento do que se mantém atrelado, atado
em ligações estáveis, fazendo emergir inquietações criadoras de novas configurações (ver o já referido texto de Freud). “Além do prin-
cípio do prazer” (1920). In Obras completas, edição citada, v. XVIII, pp. 17-75.
23 Volto, aqui, ao ensaio de Garcia-Roza, que se baseia em Lacan para desenvolver a noção das pulsões como forças criadoras: “Freud
aponta a pulsão de morte como obstáculo maior à cultura, na medida em que esta última tende a reunir indivíduos, famílias, nações,
com vistas a uma grande unidade que seria a humanidade. A cultura estaria, portanto, a serviço de Eros. A pulsão de morte, entendi-
da como potência destrutiva, tem como alvo a disjunção dessas unidades, a recusa da permanência. Enquanto a pulsão sexual é con-
servadora, pois além de construir uniões tende a mantê-las, a pulsão de morte é renovadora. Ao colocar em causa tudo o que existe,
ela é potência criadora. Enquanto Eros tende à unificação, à indiferenciação, a pulsão de morte, como princípio disjuntivo, é produ-
tora de diferenças”(op. cit., p. 134).
24 In Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960, p. 25.
25 Sobre essa oposição, ver PONTIERI, Regina. Clarice Lispector – Uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, pp. 94-5.
26 Aliás, as metonímias corporais se espalham por toda a narrativa: rosto, lábios, pernas, olhos, cabelos, braços.
27 “Aí de vós escribas e fariseus hipócritas! pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas
interiormente estão cheios de ossos de mortos e de todas imundícia” (O Evangelho segundo são Mateus, 23, 27. Tradução de Jõao Fer-
reira de Almeida. Os Gideões Internacionais, sd, 1987).
28 Apud GOTLIB, Nádia Battella. Op. cit., p. 52.
29 A descoberta do mundo, p. 110.

279
Uma metafísica da matéria
ou uma poética do corpo
Olga de Sá

Sempre tive desejo de construir um diálogo entre a ficção de Clarice Lis-


pector e a filosofia.
Freou-me o receio de instrumentalizar seus textos, em função de concei-
tos filosóficos, de envolver-me com a crítica de influências, que é impertinen-
te, sobretudo no caso de Clarice.
Todos os críticos sabem o porquê: Clarice Lispector, por seu casamento
com Maury Gurgel Valente, vivia em embaixadas, viajava muito e suas leituras
não eram sistemáticas. Além disso, “atriz” consumada, sempre se negou a ad-
mitir influências e a confessar seus conhecimentos teóricos ou suas leituras.
É impossível vinculá-la a qualquer espécie de existencialismo e a outras
correntes filosóficas ou literárias, da época.
Existe, dicionarizado, o termo “filosofema”, que pode significar “opinião fi-
losófica”. Ou o conteúdo de uma proposição filosófica, sem constituir, a não ser pe-
lo seu conjunto, um sistema filosófico.1 Existem “filosofemas” na ficção de Clarice?
Na trilha de Alfredo Bosi2, continuamos a afirmar que Clarice Lispector,
pelas suas preocupações com a consistência da vida expressas em sua escritura,
situa-se mais no âmbito filosófico do que psicológico, pois afirmava que a psi-
cologia não lhe interessava. Porém, sua abordagem metafísica não é sistemáti-
ca, é empírica. Clarice visa à concretude sensível do ser.
Em Água viva 3, declara: “Mas há perguntas que me fiz em criança e que
não foram respondidas, ficaram ecoando plangentes: o mundo se fez sozinho?
Mas se fez onde? Em que lugar?”.
Clarice confessa sua perplexidade. Duvida que escreva um livro, pois não
se trata de uma história. Não tem certezas, a razão não a auxilia. Seus pensa-

280
mentos parecem não ter palavras. As perguntas mais importantes do mundo,
que a perseguem desde menina, não têm resposta. A realidade nova não tem
pensamento correspondente. É uma sensação atrás do pensamento, como afir-
ma em Água viva: “Será que isto que estou te escrevendo é atrás do pensamen-
to? Raciocínio é que não é. Quem for capaz de parar de raciocinar – o que é
terrivelmente difícil – que me acompanhe”.4
A Edilberto Coutinho, Clarice declarou: “É que sou uma mística”.5
Os limites entre filosofia e mística são conhecidos. A filosofia não pode ul-
trapassar o âmbito racional, e é característica da mística ultrapassá-la e não saber
exprimir o êxtase. Mas, como disse Luiz Costa Lima6, Clarice Lispector era uma
“mística ao revés”, isto é, uma mística ao contrário, uma mística profana, procu-
rando “incorporar o religioso à dimensão humana da práxis, do agir terreno”. A
paixão segundo G.H.7 é um discurso “racional” sobre um percurso em que se che-
ga a um Deus imanente, pela manducação da massa da barata, matéria primor-
dial do mundo, sem transcendência, sem a terceira perna criada pela subjetivação.
A paixão segundo G.H. beira, portanto, uma ontologia, uma metafísica
construída pelo método empírico, cuja finalidade é desvelar o ser. Desvelar o
ser contra a linguagem (fazendo linguagem), contra a razão que o encobre, con-
tra a transcendência, que, segundo a narradora, o ultrapassa.
O animal, para Clarice, está próximo das fontes do ser, do Deus ima-
nente na matéria, pois não criou uma alma, não construiu uma “sentimenta-
ção”, que nos distancia das raízes do ser.
O inefável é o que Clarice Lispector persegue, por meio da linguagem.
Em Água viva, a narradora quer apossar-se do “é da coisa”, “tentando
captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque
agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem
um instante em que ela é.” 8
Assim, também a literatura persegue o conhecimento, mas essa busca
do inefável, do indizível, pela via da linguagem, é, como diz J. Torrano, uma
“experiência do sagrado”.9 O sagrado não se prende pela via lógica, pela via
do raciocínio.
O tema de vida em Água viva é o instante. Parece até um refrão, num
presente finito, que anula o tempo cronológico. Nesse fluxo, ela colhe o devir
incessante da realidade e aspira que sua escritura e a leitura de seu texto coinci-

281
dam com esse presente fecundo, como se fosse uma partitura musical. Lidando
com a matéria-prima, o texto se distancia do cogito, da lógica. A palavra trans-
forma-se em isca e pesca a “não palavra”, nas entrelinhas. Assim nasce sua es-
critura, que se lê como se ouve uma música.
Isso significa que a ficção clariciana tateia, continuamente, as dimensões
do ser e isto também é tarefa da filosofia.
As relações entre filosofia e literatura sempre foram instigantes. Benedi-
to Nunes as tangencia em sua obra Passagem para o poético – Filosofia e poesia
em Heidegger.10
É que os conceitos filosóficos nascem, como a escritura, do direito de
sonhar.
A filosofia tem, certamente, uma dimensão retórica e a literatura, uma
dimensão conceitual. Platão exprimiu todo seu sistema filosófico por meio de
diálogos. Henri Bergson usou figuras de linguagem, entre as quais privilegiou
a metáfora.
Em pelo menos três dos livros de Clarice Lispector há alusões à filosofia:
Otávio, de Perto do coração selvagem11, lê Spinoza e pretende comentá-lo, embo-
ra ironicamente a narradora o apresente como péssimo intérprete. Em “A quin-
ta história”, a das baratas, o conto termina com uma referência a Leibniz. No ro-
mance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres12, Ulisses é professor de filosofia.
A ficção de Clarice situa-se nas dimensões da matéria do mundo e da fi-
nitude da condição humana.
Adere às estruturas básicas do ser, à imanência da matéria, em vez de à
transcendência do espírito. Como ponto de partida. “Transcendência opõe-se à
imanência; e assim como esta significa, em geral, que algo está dentro de certo
âmbito ou círculo da realidade, assim transcendência é, ao contrário, o que se
situa fora e acima do mesmo círculo”.13
A transcendência ultrapassa a experiência. A ficção clariciana se radica
na experiência sensível. Não só G.H. renuncia à linguagem, porque esta é um
produto da subjetivação humana e não adere às fontes do ser, mas também Ló-
ri de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres faz um exercício prévio para o
amor, reativando sua capacidade de sentir, nos mercados, reaprendendo a chei-
rar, a tatear as frutas, enfim uma reeducação dos sentidos para atingir um sen-
timento além deles, de que Lóri parecia incapaz.

282
Não que Clarice Lispector se reduza ao imanentismo, limitando a reali-
dade à experiência. Contudo jamais sujeitou o corpóreo ou a matéria às dimen-
sões da idéia. Sua escritura é compacta, enquanto remete o leitor a uma expe-
riência que fundamenta as reflexões sobre a realidade, a existência humana, para
se perguntar: “Quem sou?”
Joana (protagonista de Perto do coração selvagem), a citada Lóri, Mar-
tim (personagem de A maçã no escuro14), todos eles buscam a própria identi-
dade. A felicidade, às vezes, é uma pedra no meio do caminho. Especialmen-
te a felicidade encontrada nos laços de família, que prende as pessoas,
sobretudo as mulheres.
Talvez uma felicidade clandestina se sustente, como a da menina que,
enfim, consegue o livro negaceado, sadicamente, pela colega adolescente, gor-
da e ruiva, no célebre conto de Clarice que dá título a uma de suas obras.15
Clarice explicita sempre que o homem pode ultrapassar seus limites, de-
linear projetos.
Mesmo o procedimento literário da “epifania”, embora se inicie e se en-
raíze no sensível, pois é sempre uma epifania do olhar, do ouvir ou do tato, is-
to é, da pele, enseja porém, uma mudança de visão do mundo, uma consciên-
cia ampliada das possibilidades do existir, um conhecimento de si mesmo, que
embora quase nunca resultem numa mudança de vida – pois exigiria um rom-
pimento com a rala felicidade alcançada – deixam no leitor a convicção de que
o sujeito da epifania nunca mais será o mesmo.
“Por isso, na expressão heideggeriana, o homem é um ser ‘ex-tático’. A pos-
sibilidade do ‘êx-tase’, isto é, de sair de si em qualquer situação dada, significa,
para o homem, a fuga à finitude, e a busca intérmina de si fora de si, no outro.”16
Em A paixão segundo G.H., Deus é alcançado pela via da imanência e se
atinge pela manducação da matéria da massa da barata. O “êx-tase” daí resul-
tante tem todas as marcas da materialidade:

Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na


minha boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aque-
le gosto de coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me pa-
recia quase adocicado como o de certas pétalas de flor, gosto de mim
mesma [...]. Eu que pensara que a maior prova de transmutação de

283
mim mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E que as-
sim me aproximaria do... divino? Do que é real? O divino para mim
é o real.17

O conto “O búfalo”, de Laços de família 18 também termina num


desmaio, num “êx-tase”. Mais uma vez, um êx-tase com marcas de mate-
rialidade.
A mulher olha os olhos do búfalo, cheios de ódio não de amor e se sen-
te presa àqueles olhos: “Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das
grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu
o céu inteiro e um búfalo”.
Compare-se o texto com algumas observações de Teresa D’Ávila sobre
seus próprios êxtases:

Muitas vezes, eu tinha a impressão de deixar o corpo com tanta rapi-


dez que ficava livre do seu peso, chegando mesmo a um ponto em que mal
sentia tocar o chão com os pés. Quando está enlevado, o corpo parece morto,
sem ação, mantendo-se na posição em que é tomado: se de pé, se sentado,
se com as mãos abertas, se fechadas. É rara a perda dos sentidos. 19

Martim renunciou à linguagem depois de um ato transgressor – um


crime – e a reconstruiu, passo a passo, partindo das pedras – matéria inani-
mada – das plantas, dos animais – as vacas do curral – até chegar a indicar,
do alto do morro, a realidade que desejava nomear. Indicar é um ato de lin-
guagem e nomear, além disso, um ato poético. Nomear o ser é a grande aspi-
ração de poetas e escritores.
Platão debateu esse possível estatuto da linguagem no Crátilo 20, donde se
conclui que é milenar, até adâmico, o debate sobre a nostalgia do nome. Este é
um tema filosófico que se encontra, visceralmente, na ficção clariciana.
Suas grandes indagações sobre o ser situam-se nesses limites impostos pe-
la linguagem.
Parecia-lhe que na pintura exprimia-se com todo o corpo e por isso, ao
usar as palavras, queria também ser “ouvida” com o corpo inteiro do leitor. Co-
mo quando ela própria ouvia música.

284
Vejo que nunca te disse como escuto música – apóio de leve a mão
na eletrola e a mão vibra espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouço
a eletricidade da vibração, substrato último no domínio da realidade, e
o mundo treme nas minhas mãos.21

Vislumbramos na ficção de Clarice Lispector uma poética do corpo, que


se esboça a partir de uma ontologia empírica da matéria.
Usamos o termo “poética”, no sentido apontado por Tzvetan Todorov22,
indicando a escolha feita por um autor, entre todos os possíveis literários (te-
mas, composição, estilo, figuras) de seu caminho próprio, que passa a identifi-
car sua escritura.
Fundamentemos nossa abordagem: nas raízes do cristianismo há
uma valorização do corpo. Embora João Batista fosse um grande peniten-
te, pois só comia gafanhotos e mel selvagem, “o filho do homem” comia
com os pecadores.
Segundo os Evangelhos, Jesus abençoou as bodas de Caná, com seu pri-
meiro milagre, transformando a água em vinho, perdoou a mulher adúltera, li-
vrando-a do apedrejamento, deixou que Madalena o tocasse, o perfumasse e en-
xugasse os pés, com seus longos cabelos.
O cristianismo só entrou numa rígida perspectiva dualística, consideran-
do o corpo “prisão da alma” – por ser matéria – sob a influência do platonis-
mo, do neoplatonismo e das doutrinas estóicas.
Essa perspectiva atingiu duramente o corpo feminino, que foi conside-
rado, sob o domínio da civilização patriarcal, fonte de tentação e pecado.
A concepção de corpo é fruto de uma construção do pensamento huma-
no, filosófico e/ou religioso, ao longo dos séculos.
Desde os tempos míticos, passando pelas religiões orientais, e, filoso-
ficamente, pelos pré-socráticos, as especulações sobre a relação corpo/alma
foram numerosas e profundas, refletindo-se nas concepções sobre a existên-
cia humana.
A tradição filosófica dualista que separa alma e corpo como duas entida-
des substancialmente distintas inicia-se, na tradição ocidental, com Platão, sob
a influência das doutrinas órficas e pitagóricas e a teoria da metempsicose ou
transmigração das almas.

285
Clarice era judia e, seja por educação, seja por conhecimento da cultura
judaica, sabia qual a postura do judaísmo sobre o corpo, e, em particular, sobre
o corpo da mulher.
As escolhas de Clarice Lispector, nesse sentido, marcam uma poética
que se opõe ao que se diz, superficialmente, a respeito da ausência do corpo
em sua ficção, como também se falou da falta de engajamento social em sua
obra.
Quanto a este último tópico, alguns críticos só reconhecem o enfoque
social em A hora da estrela.
Clarice defendeu-se da acusação de alienação social, dizendo que, para
ela, o social era o óbvio. Tendo crescido no Recife, entre “sobrados e mocam-
bos”, a pobreza era seu cenário e sua vivência. Por isso, ao contrário do que se
afirma, o social permeia sua escritura, embora se recusasse a escrever, explicita-
mente, sobre o óbvio.
Quanto ao segundo aspecto, existe em Clarice Lispector, uma “poética
do corpo”, não ostensiva, mas subliminar, tangenciando temas e personagens.
Em Perto do coração selvagem, Joana tem mãos finas apenas esboçadas,
é feita de ar, enquanto Lídia, a noiva prometida de Otávio, é feita de terra:
suas mãos são rosadas, recortadas, bonitas, ela foi toda plasmada para a ma-
ternidade.
Em A via crucis do corpo23, entre as várias epígrafes, aparecem essas duas:

Eu, que entendo o corpo. E suas cruéis exigências. Sempre conhe-


ci o corpo. O seu vórtice estonteante. O corpo grave (Personagem meu
ainda sem nome).
E bendiga toda a carne o seu santo nome para todo o sempre. (Sal-
mo de Davi).

A via crucis do corpo foi taxada como “lixo”.


“Lixo sim”, disse Clarice, lixo que pertence ao “mundo-cão”, no qual so-
brevivemos.
Telma Maria Vieira tomou esse livro como objeto de sua tese de douto-
ramento, sob o título: Erotismo nas “estações” do corpo.24
Afirma a Autora que, em A via crucis do corpo, existe o percurso de cor-

286
pos que desesperadamente procuram nos prazeres carnais respostas para sua
ânsia de ser feliz. Miss Algrave, por exemplo, cuja existência fora toda pauta-
da por uma rigidez anglicana, depois do encontro noturno com Ixtlan, um
habitante de Saturno, descobre o prazer do sexo e da comida e muda o rumo
de suas escolhas.
No livro, Clarice desperta uma “memória corporal, especialmente do
corpo feminino, há muito esquecida e concede-lhe voz.”25
Os contos de uma A via crucis do corpo merecem, neste sentido, desta-
que na obra de Clarice Lispector. Escreveu-os por encomenda do editor Álva-
ro Pacheco, e queria publicá-los sob o pseudônimo de Cláudio Lemos, mas
não lhe foi consentido.
A tese sustentada por Telma Vieira é que a ficcionista tem, como hori-
zonte, as 14 estações da via-sacra de Jesus Cristo.
Como Cristo, somos fadados a passar por “estações” de uma via crucis.
Sendo humanos e não divinos, nossa via crucis é do corpo, que tem “cruéis exi-
gências”, mas também pode nos proporcionar prazeres. Daí o erotismo. São,
portanto, estações profanas.
Se a A via crucis do corpo acolhe tudo o que é autenticamente huma-
no, como bondade, tristeza, compaixão, fome, dor, angústia, crime, sexo e
morte, expressos em histórias (estações), permeadas de grotesco e de lixo, é
porque é condição humana sofrer a paixão de ser homem, em toda a sua pa-
radoxal dimensão.
O corpo nos faz presentes ao mundo e aos outros, ou seja, estar-no-
mundo é estar-no-corpo. Ao contrário dos espiritualismos vazios, que opõem
espírito e matéria, não compreendendo que a psique humana tem uma essen-
cial dimensão corpórea (conforme defende Telma Vieira em sua tese26).
Analisamos, minuciosamente, em A escritura de Clarice Lispector 27, co-
mo os clássicos elementos primordiais que a filosofia pré-socrática elaborou,
como os fundamentos materiais do ser, servem de paradigmas atribuíveis à
ficção clariciana: água, ar, terra, fogo. Mostramos como em Perto do coração
selvagem28, esses quatro elementos constituem eixos privilegiados de uma es-
critura metafórico-metafísica.
Em Perto do coração selvagem, a estrutura narrativa organiza-se no nível
do ser e não do agir ou do fazer. É uma narrativa gnosiológica, sob a espécie

287
de subjetivação, isto é, de percepções, de tomadas de posição interiores sobre
acontecimentos exteriores. Trata-se de buscar o sentido da vida, questionar o es-
tar-no-mundo, equacionar espírito e matéria, pois esses elementos exprimem,
nos albores da filosofia, como se organiza o caos em cosmos.
É uma aventura de gnôsis, de conhecimento, mas um conhecimento ade-
rente à matéria, que procura em cada personagem, seu ser de terra, de água, de
ar ou de fogo.
Joana de Perto do coração selvagem 29 é toda água e ar. Da água, no banho,
ela emerge para sua vida plena de mulher. Cria-se uma linguagem de múltiplas
sensações, em que a menina-moça emerge da banheira como do mar.
Aliás, o mar era para Joana um elemento de pacificação: “[...] a paz que
vinha do corpo deitado do mar, do ventre profundo do mar, do gato endureci-
do sobre a calçada”.
A confusão do mar, gato e Joana, exprime a essência de “tudo é um”.
O ar, a liberdade fluida; contra a montanha-parada e grossa diante dela
– Joana ergue-se em antítese, como pássaros leves e negros que voassem nítidos
no ar puro.
Ao ar ainda, se associa a voz, mas não “a mulher da voz”, mulher apenas
fêmea, em que Joana surpreendeu o segredo de viver. A voz daquela mulher não
pertencia ao domínio da fala, da palavra, que perde o suco da existência; era
uma voz-sensação, instintiva e aderente à sua natureza de mulher. Voz da terra,
voz que não se contaminara com a linguagem.
Joana é a Joana das vozes, Santa Joana como a chamará o amante, Joana
d´Arc que ouvia vozes, uma Joana d´Arc da ficção, atormentada pelas próprias
fantasias, invenções de palavras, de vozes, que foram seu brinquedo desde a in-
fância, criadora de fatos mentirosos, de estórias que desenrola aos ouvidos de
Otávio para perturbá-lo, aos ouvidos do amante para extasiá-lo.
Pode-se delinear, na ficção clariciana, uma metafísica da morte, cujo pa-
radigma talvez seja Virgínia de O lustre 30, que morre no final da narrativa, mas
cuja morte é indiciada, desde o início.
Virgínia e o irmão Daniel surpreendem um chapéu arrastado pelas águas
do rio. Tacitamente admitem que se trata do chapéu de um afogado. Assim, na
infância, o sema da água une-se ao da morte, para engolir a vida de Virgínia pa-
ra sempre.

288
Em A hora da estrela 31, a hora da morte é sua hora maior, o instante de
fogo de Macabéa, sua hora de estrela.

[...] na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de


cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa
se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e
é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.

Portanto, a narradora não vê a morte como um final melancólico. A fi-


nitude da vida, sem dúvida presente em toda a ficção clariciana, marcada por
uma metafísica do mal, insere-se na visão de totalidade e unidade do ser.
Clarice queria escrever como se pinta, dura escritura, em que se pode pe-
gar com a mão a palavra.
Sua linguagem quer ser do corpo, concreta, numa abordagem direta do
criativo, plasticamente próxima das fontes mesmas do ato de escrever. Paisagem
de sons e de sonhos, música e fotografia, tentativa de se exprimir a si mesma.
Ao morrer, Clarice pede que se lhe dê a mão. Em seu túmulo, no cemi-
tério Comunal Israelita, no Rio de Janeiro, está escrito que dar a mão a alguém
é o que se pode esperar da alegria.
Alegria porém, não é felicidade. Numa possível metafísica da felicidade,
não se faz dela um absoluto. “Depois que se é feliz o que acontece? O que vem
depois?”32 Para que serve a felicidade?
Clarice escreve em Um sopro de vida 33:

Quando estou muito alegre de repente penso que se morre”. “Pa-


ra que existo? e a resposta é: a fome me justifica”. “Um dedo sangrento
me aponta. Estremeço. Será o dedo da morte?

Toda atraente e toda bela, a morte chama por ela. “Oh morte por que
não me respondes? eu te chamo todos os dias. Fui feita para morrer”.
A morte é um instante. Sem história discursiva. Clarice dá-lhe a mão,
declarando antes, em toda sua ficção, que não chegou a entender nada da vida.
Mereceu “condecoração por viver cada dia e cada noite trezentos e sessenta e
cinco dias de suplício de tempo”. E sozinha.

289
Mesmo a solidariedade, solução para a vida, contém a palavra só.
Mas ela, Clarice, nasceu incumbida. Incumbida do mundo. E quem se
incumbe do mundo não pode simplesmente morrer. Embora em A hora da es-
trela, a morte seja sua personagem predileta, para ela, Clarice, ainda era tempo
de morangos.
Para sua ficção, será sempre tempo de morangos.

Formada em letras clássicas, na USP, e em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de


São Paulo, Olga de Sá é mestre em teoria literária e doutora em comunicação e semiótica
também pela PUC-SP, onde fez ainda pós-graduação em psicologia clínica. Depois de lecionar
no departamento em que se doutorou, a ensaísta atualmente integra o Programa de Litera-
tura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Publicou, entre
outros trabalhos, A escritura de Clarice Lispector (Petrópolis:Vozes, 2000, Prêmio Nacional
de Brasília), Clarice Lispector: a travessia do oposto (São Paulo: Annablume, 1993, prê-
mio da Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA) e foi autora das notas de rodapé da
edição crítica de A paixão segundo G.H. (Paris/Brasília/Florianópolis: Association Archives
de la Littérature Latino-Américaine, des Caraibes et Africaine du XX e Siècle/Conselho Nacio-
nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq/Unesco/Editora da Universidade Fe-
deral de Santa Catarina, 1988).

NOTAS

1 Cf. Logos – Enciclopédia luso-brasileira de filosofia. Lisboa/São Paulo: Verbo, sd, verbete “Filosofema”, v. 2, p. 575.
2 Ver História concisa da literatura brasileira. 33. ed., São Paulo: Cultrix, pp. 423-426.
3 Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 30.
4 Idem.
5 O Globo. Rio de Janeiro, 29.01.76.
6 “A mística ao revés de Clarice Lispector”. In Por que literatura. Petrópolis: Vozes, 1966, pp. 102-126.
7 Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.
8 Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 9.
9 Ver Estudo de J. Torrano. In: Hesíodo, Teogonia: a origem dos deuses. 2. ed., São Paulo: Iluminuras, 1992, p. 13.
10 NUNES, Benedito. Passagem para o poético. São Paulo: Ática, 1986.
11 Rio de Janeiro: A Noite, 1944.
12 Rio de Janeiro: Sabiá, 1969.
13 Cf. Logos – Enciclopédia luso-brasileira de filosofia, verbete “Transcendência”, v. 5, pp. 266-270.
14 Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1961.
15 Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Sabiá, 1971.
16 Cf. Logos – Enciclopédia luso-brasileira de filosofia. Edição citada, verbete “Transcendência”, v. 5, pp. 266-270.
17 A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
18 Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 135.
19 JESUS, Teresa de. “O livro da vida”. In Obras completas. São Paulo: Loyola, 1995, p. 131.
20 Em português, consultar o volume traduzido pelo padre Dias Palmeira. 2. ed., Lisboa: Livraria Editora Sá da Costa, 1994. Prefácio e
notas também ficaram a cargo do tradutor.

290
21 Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 11.
22 Ver deste autor e de Oswald Ducrot o Dictionnaire encyclopedique des sciences du langage. São Paulo: Cultrix, 1977.
23 Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 7.
24 Programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2002.
25 Op. cit., pp. 189-191 (cópia xerográfica).
26 Ibidem, pp. 193-195.
27 A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 2000.
28 Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
29 Ibidem, pp. 46 e 43.
30 Rio de Janeiro: José Álvaro, 1964.
31 Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 36.
32 Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 29.
33 Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, pp. 149, 153-154.

291
A narração desarvorada*
Benedito Nunes

A ficção de Clarice Lispector passou por três distintas fases de recepção.


A primeira começa com a publicação de seu livro de estréia, o romance Perto
do coração selvagem1 (1943), então apenas conhecido entre críticos e escritores.
Porém numa segunda fase, a partir de 1959, o livro de contos Laços de família 2
conquistou o público universitário e despertou interesse pelos outros romances
da autora, O lustre 3 e A cidade sitiada 4, lançados entre 1946 e 1949 respectiva-
mente, e A maçã no escuro5, de 1961.
Creio que a morte da autora abriu uma terceira fase de recepção à sua
obra, condicionada, depois da impressão desconcertante que produzira A pai-
xão segundo G.H.6, romance de 64, às peculiaridades de dois livros, A hora da
estrela 7, que precedeu de meses o passamento de Clarice Lispector em dezem-
bro de 1977 e Um sopro de vida 8, publicado postumamente. Por uma sorte de
efeito retroativo, ambos permitem desvendar certas articulações da obra inteira
de que fazem parte, dentro de um singular processo criador, centrado na expe-
riência interior, na introspecção, nos estados da consciência individual, que
principiara em Perto do coração selvagem.
Tendo seu título decalcado numa passagem de Retrato do artista quando
jovem – “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da
vida”9 – e afinando com o “realismo psicológico chocante” de James Joyce, e,
mais ainda, com a sondagem introspectiva das novelas de Katherine Mansfield

* Este texto resume as análises da obra clariciana desenvolvidas pelo autor em estudos como “Os destroços da introspecção” (in Clarice
Lispector: a narração do indizível. Porto Alegre: Artes e Ofícios/Edipuc/Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, 1998, pp. 35-48), que
ampliou o artigo “Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção”. (Remate de Males, n. 9, edição organizada por Berta Waldman e
Vilma Arêas; Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas, maio de 1989).

292
e de Virginia Woolf, Perto do coração selvagem aprofunda a experiência interior
de Joana, sua protagonista, em episódios sem enredo na primeira parte da obra,
em que se fundem lembranças, imagens e percepções momentâneas da perso-
nagem. Esse romance, de acentuada linha temporal, alterna, em sua parte ini-
cial sobretudo, o passado com o presente, o que imprime à narrativa um ritmo
entrecortado. É uma linha temporal ondulante, acompanhamento da ordem as-
sociativa e evocativa das vivências que formam entre si, pela “mútua compene-
tração” de seus elementos heterogêneos, a linha melódica da duração (durée)
bergsoniana.10 A tênue intriga da segunda parte – o precário equilíbrio de um
triângulo amoroso – culmina em uma viagem, painel de fundo da inquietação
sempre renovada da personagem: uma peregrinação do desejo insatisfeito, con-
vertido num movimento de errância, numa intérmina busca. Intérmina tam-
bém é a narrativa que fica suspensa à insatisfatória busca interior de Joana: “[...]
sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento,
eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim” (p. 201).11
Vê-se que a protagonista não é apenas um primeiro agente que conduz
a ação. Nela assenta a perspectiva mimétiva da narrativa, que poderíamos cha-
mar de monocêntrica, não só porque a personagem central a direciona, como
também porque nela centraliza-se a posição de quem está narrando. No entan-
to o uso da terceira pessoa, como foco narrativo, põe o narrador a uma certa
distância da personagem. A parcimônia dos diálogos na obra de Clarice Lispec-
tor talvez provenha desse monocentrismo.
Reaparece nos dois personagens de O lustre, Daniel e Vírginia, a errân-
cia de Joana, também manifesta em surtos de evasão ou fuga. Acentua-se o mo-
nocentrismo da narrativa, já aqui a adesão do sujeito narrador à personagem
afetivamente carregada pela empática visão infantil de Virgínia relembrando as
coisas do lugar em que viviam, Granja Quieta:

Ela abria grandes olhos. Lá estava a pedra escorrendo em orvalho.


E depois do jardim, a terra sumindo bruscamente. Toda a casa flutuava,
flutuava em nuvens, desligada do Brejo Alto. [...] Um grito de café fresco
subia da cozinha misturado ao cheiro suave e ofegante de capim molhado.
O coração batia num alvoroço doloroso e úmido como se fosse atravessa-
do por um desejo impossível. E a vida do dia começa perplexa (pp. 15-6).

293
No terceiro romance, A cidade sitiada, intensifica-se o sentido do lugar,
da localização espacial da protagonista, Lucrécia Neves, como ambiente que cir-
cunscreve os seus atos e lhes dá sentido: um certo subúrbio em crescimento,
chamado São Geraldo. A ação se resume num conjunto de quadros estáticos,
com acentuados traços caricaturais da vida suburbana. Não obstante essa mol-
dura satírica, A cidade sitiada não é um romance de costumes. O humor nessa
obra está no distanciamento da narradora em relação à personagem; descom-
prometida com as suas vivências, empresta-lhes algo de maquinal, dando-lhes
uma ênfase cômica. Tanto a protagonista quanto os demais personagens, caso
do namorado, Perseu, são como fantoches, figuras servas da cidade, descritos na
posição espetacular, de exterioridade cênica que ocupam:

Não importava o que tão animados se diziam: eles mesmos eram


para serem vistos como a cidade [...] Por vezes o rapaz parecia andar pa-
ra a frente e a moça ao redor dele dançava: era quando ele sorria divino
e puro, a Lucrécia Neves falava – e assim os outros viam (p. 49).

Seria correto denominar A maçã no escuro como romance da transgres-


são e da renúncia ascética? Parece que sim. Martim foge de casa acreditando ter
matado a sua mulher e durante a fuga esse transgressor, pela renúncia ao papel
social exercido e pelo uso diferente que começa a fazer da palavra, acaba adqui-
rindo uma identidade de poeta ou de profeta. A transgressão corresponde à li-
nha romântica da revolta, travejada por enunciados assertóricos, que traduzem
visão direta e próxima da personagem, e a renúncia corresponde à linha místi-
ca de uma trajetória de reconquista da alma, reclamada por enunciados modais
(hipotéticos e dubitativos), que trazem um estado de não conhecimento ou vis-
lumbre de verdade apenas possível ou provável. Os dois enunciados ocorrem
cumulativamente na descrição da trajetória de Martim, fazendo com que o pon-
to de vista da narradora oscile entre a visão direta e próxima e a visão indireta
e distanciada:

O próprio silêncio se tornara diferente. Embora o homem não


percebesse nenhum som, os passarinhos voavam mais agitados como se
ouvissem o que ele não ouvia [...] Provavelmente aquela coisa para a qual,

294
incerto, o homem caminhava era apenas criada pela sua ânsia. E aquele
modo intenso de querer se aproximar – pois solto no campo de luz, o
que aquele homem parecia apenas querer era obscuramente se aproximar
– na certa seu modo desajeitado de querer se aproximar não passava de
um substituto à sua ausência de linguagem (p. 53).

A oscilação do ponto de vista da narradora denuncia, incidindo numa


temática da linguagem, que é comum às duas linhas de ação antes assinaladas,
o caráter problemático da forma narrativa em A maçã no escuro. Considerando-
se essa temática, o itinerário de Martim pode ser concebido como uma errân-
cia fora da linguagem comum. “Perdi a linguagem dos outros” (p. 32), exclama
o personagem. Depois dessa perda, ele consegue conquistar uma máscara ver-
bal, retórica. Quem se defrontara antes com a palavra crime, é agora empolga-
do pela palavra salvação. Assim, o itinerário do personagem é também um ca-
minho por entre palavras – mas numa peregrinação em círculo, que volta ao
ponto de partida: à linguagem comum, constituída de frases feitas e de clichês
verbais: “A verdade dos outros tinha que ser a sua verdade ou o trabalho de mi-
lhões se perderia. Não seria esse o grande lugar comum a todos?” (pp. 230-231).
Martim está submetido à provocação e à provação da linguagem. As pa-
lavras o formam e deformam. Esse conflito do personagem é um conflito dra-
mático que se estende à própria forma narrativa do romance, sob o perigo da
simulação e do ocultamento, internamente minada por esse drama da lingua-
gem, também patente nas hesitações e interrogações do narrador, dubitativo e
perplexo. O drama da linguagem se incorpora à forma narrativa: os enuncia-
dos modais e as frases interrogativas abundam, marcando as hesitações do nar-
rador, dubitativo e perplexo. Em conseqüência disso, se estabelecem íntimas
relações entre o sujeito-narrador e o personagem. Quem narra não se identifi-
ca com Martim e só pode vê-lo em projeção. Desse modo, o sujeito-narrador
envolve-se no drama da linguagem e de autor torna-se ator por desdobramen-
to dramático: “Oh Deus, Deus: ele estava exausto. Ele não queria nenhuma
apoteose” (p. 45). Com o fracasso pessoal de Martim, também fracassa o di-
zer da narrativa, na qual afluem temas gerais, de ordem filosófica e religiosa –
liberdade e ação, bem e mal, conhecimento e vida, intuição e pensamento,
Deus e a existência.

295
Fracasso da personagem, drama da linguagem narrativa e confluência de
temas gerais se verificam igualmente em A paixão segundo G.H., o quinto ro-
mance de Clarice Lispector e o primeiro por ela escrito em primeira pessoa.
O livro é o relato de longa e sofrida introspecção, a que deu causa a um
incidente trivial: o esmagamento de uma barata doméstica ao fechar a persona-
gem a porta de um guarda-roupa no quarto de fundo, recém-desocupado pela
empregada que o habitara, de seu apartamento de luxo. A introspecção segue o
curso de uma experiência mística, como se em tudo parodiasse a ascese espiri-
tual, sem que nela falte o momento de êxtase, em que a personagem perde o
seu Eu e a narrativa sua identidade literária.
Narradora e personagem são aí inseparáveis; ligam-se entre si pelo inde-
cifrável onomástico G.H., que as deixa no anonimato ao conferir-lhes precária
identidade pública, abalada por um trivial incidente. Ao deambular em seu
apartamento, G.H., ao passar do lado social e familiar ao obscuro e marginal,
qual seja, o quarto de empregada, é presa de violento sentimento de estranhe-
za ao deter-se diante da barata por ela esmagada num acesso frenético.

Foi então que a barata começou a emergir [...] Era parda, era he-
sitante como se fosse enorme de peso. Estava agora toda visível. [...] Uma
rapacidade toda controlada me tomara, e por ser controlada ela era toda
potência [...] Sem nenhum pudor, comovida com minha entrega ao que
é o mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu esta-
va sendo a desconhecida que eu era – só que desconhecer-me não me im-
pedia mais, a verdade já me ultrapassara: levantei a mão como para um
juramento, e num só golpe fechei a porta sobre o corpo meio emergido
da barata [...] (pp. 52-3).

Diante do cadáver do inseto que lhe dá náuseas, e que ingere num ato
de comunhão sacrílega, opera-se a metamorfose interior da narradora, o de-
sapossamento de sua alma. De um lado, o grotesco do animal, de outro a in-
trospecção paroxística, submergindo a personagem em si mesma, no Eu que
sofre a experiência e tenta contá-la cindido num outro, anônimo, impessoal
e neutro como o deserto. “E na minha grande dilatação, eu estava no deser-
to. Como te explicar? Eu estava no deserto como nunca estive. Era um deser-

296
to que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava
sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora” (p. 60). Um fio dialogal
entrançado no leitor, feito interlocutor imaginário, permanece nesse estirado
monólogo: “Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está se-
gurando minha mão” (p. 16).

[...] Segura a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou
de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um
inferno de vida crua. Não me deixes ver porque estou perto de ver o
núcleo da vida [...] Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido
(pp. 60-1).

Loucura, inferno, prazer infernal, vida crua, orgia de Sabath – essas após-
trofes todas, que qualificam a metamorfose de G.H., marcam, também, a me-
tamorfose da narrativa, convertida, à beira do nada, inenarrável, que tolhe o ato
de enunciação, numa possível busca do inexpressivo e do silêncio. Só o expe-
diente do interlocutor de apoio, a quem ela se dirige, assegura a recuperação do
Eu na ficção – o monólogo no diálogo – e a possibilidade de falar do que não
tem nome:

A despersonalização como a grande objetivação de si mesmo.


[...] A deseroização é o grande fracasso de uma vida. Nem todos che-
gam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosa-
mente até enfim atingir a altura de poder cair – só posso alcançar a
despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz
(pp. 176-177).

Entregue ao silêncio, ao não entendimento dos místicos, G.H. defron-


ta-se à matéria neutra, à vida crua de que ela e a barata participam, e a que cha-
ma de o Deus, usando a palavra como substantivo comum, em vez de Deus. De-
pois invocado em Água viva com o pronome inglês it, esse Deus neutro seria o
Outro, o diferente e o estranho, em que se aliena e no qual se encontra, para-
doxalmente uma intimidade exteriorizada, conforme exprime pela torção refle-
xiva dos verbos ser, existir e olhar:

297
O mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro;
neste deserto as coisas sabem as coisas (p. 66). [...] Aquilo que eu cha-
mava de “nada” era no entanto tão colado a mim que me era ... eu? E
portanto se tornava invisível como eu me era invisível, e tornava-se o na-
da (p. 79).

A vida introspectiva, num grau paroxístico que leva ao paradoxo na lin-


guagem, inverte-se, pois, na alienação da consciência de si. Pelo naufrágio na
introspecção, a personagem desce às potências obscuras, perigosas e arriscadas
do inconsciente, que não têm nome. Depois desse mergulho no subsolo esca-
tológico da ficção, nas águas dormidas do imaginário, comuns ao sonho, aos
mitos e às lendas, a voz reconstruída de quem narra só poderá ser uma voz du-
bitativa, entregue à linguagem – aos poderes e à impotência da linguagem, dis-
tante e próxima do real extra-linguístico indizível:

Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço de voz [...] A
realidade antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a ár-
vore [...] Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter
uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo de-
signar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou
buscá-la – e como não acho [...] A linguagem é o meu esforço humano.
Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias.
Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através
do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que
obtenho o que ela não conseguiu (p. 178).

Esse feeling do fracasso da linguagem acompanha como um baixo-con-


tínuo o jogo da identidade da narradora, convertida em personagem, e de sua
narrativa convertida num espaço literário agônico.
Depois de A paixão segundo G.H., uma narrativa monologal, dá-se um
interregno na ficção de Clarice: Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres 12, po-
larizada pelo diálogo e não pelo monólogo, em que, pela primeira vez, ocorre
na obra da autora a tematização da vida social. Mas é aquele mesmo sentimen-
to do fracasso da linguagem, acompanhando a agonia narrativa, que retornaria

298
em A hora da estrela, no qual se travam um embate e um debate. Em Uma apren-
dizagem ou O livro dos prazeres, a meditação apaixonada feita de súbitas ilumi-
nações, se produzem de maneira recíproca, provocando o movimento dubitati-
vo, dramático, de uma escrita errante, autodilacerada, à procura de sua
destinação, impelida pelo vago objeto do desejo, que desce ao limbo da vida
impulsiva para subir a uma forma de improviso intérmino, no qual parece abo-
lir-se a distinção entre prosa e poesia, e que, fluxo verbal contínuo, sucessão de
fragmentos da alma e do mundo, já não pode mais receber a denominação de
conto, romance ou novela – improviso porque desenrolado tal o impromptu mu-
sical, ao leo de múltiplos temas e motivos recorrentes (autoconhecimento, ex-
pressão, existência, liberdade, contemplação, ação, inquietação, morte, desejo
de ser, identidade pessoal, Deus, o olhar, o grotesco e o escatológico).
Um modo esquizóide de escrever, diríamos repetindo o francês Roland
Barthes, à custa da “cisão vertiginosa do sujeito”, do desdobramento da cons-
ciência reflexiva, mas que funda a ficção e, juntamente com ela, o fictício da
identidade do narrador a que se refere O prazer do texto 13 (1973), em confron-
to com a identidade fictícia de seu personagem. O narrador de A hora da estre-
la é Clarice Lispector. Ao contrário de Flaubert, que permaneceu sempre por
trás de seus personagens, Clarice Lispector expõe-se, quase sem disfarce, exibin-
do-se ao lado deles. Também ela persona, na condição patética do escritor cul-
poso (relativamente a Macabéa), que finge ou mente para alcançar uma certa
verdade da condição humana, mas sabendo que mente, como que parodia o di-
to cartesiano, “Eu que penso, sou” – o cogito do filósofo francês René Descar-
tes – com outra interrogação: Eu que narro, quem sou?
Expressão desse cogito filosófico invertido, Um sopro de vida mantém es-
quema triádico de composição quanto aos personagens, semelhantes ao de A
hora da estrela: autor interposto e personagem feminina, desta vez uma escrito-
ra (Angela), ambos como heterônimos da romancista, Clarice Lispector, mais
presente do que ausente.
A cisão do sujeito narrador, o seu desdobramento, transpõe-se aqui, di-
ferentemente do que ocorrera em A hora da estrela, para o próprio plano da obra
de Clarice Lispector, de que aquele livro póstumo é uma recapitulação – pará-
frase e paródia – sob dois focos, o de Angela e o do autor, feminino e masculi-
no em oposição. Ora como parte da linguagem da primeira, ora como parte da

299
linguagem do segundo, encontram-se disseminados e modificados na obra, fra-
ses, conceitos, maneiras de agir e de pensar, locuções e passagens, crônicas e ro-
mances da ficcionista.
“Angela é a minha tentativa de ser dois [...] No entanto, ela me é eu” (pp.
32-3), diz o autor. “Eu sou uma atriz para mim” (p. 37), replica Angela, falan-
do de si para si mesma. Declaradamente criação do autor, essa escritora tem,
contudo, personalidade própria; a conclusão daquele reveza com a desta: dois
monólogos alternados que jamais confluem num diálogo. Não há correspon-
dência entre as duas pautas verbais do mesmo improviso narrativo, e que for-
mam, todavia, uma só escrita errante, empática, hiperbólica, repetitiva, conta-
minando o leitor com a força sorrateira de um entusiasmo maligno, infeccioso
– de um “infectious enthusiasm”, como diria Jane Austen – que se propaga da
presença declarada de Clarice Lispector. Personagem de seus personagens, au-
tora e leitora de seu próprio livro, que nele e através dele se recapitula, Clarice
Lispector, ortônima no meio de seus heterônimos, finalmente se inclui no fe-
cho da obra, escrevendo o antecipado epitáfio por onde começa e acaba o tex-
to de Um sopro de vida:

Já li este livro até o fim e acrescento alguma notícia neste come-


ço. Quer isso dizer que o fim, que não deve ser lido antes, se emenda
num círculo ao começo, cobra que engole o próprio rabo. E, ao ter li-
do o livro, cortei muito mais do que a metade, só deixei o que provo-
ca e inspira para a vida: estrela acesa ao entardecer [...] No entanto eu
já estou no futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um
morto. Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia. Quan-
do fechardes as últimas páginas deste malogrado e afoito e brincalhão
livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos abençoe então e este li-
vro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz esteja entre nós,
entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? Que me perdoem os
fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então des-
cansar (p. 20).

O jogo de identidade que a narradora manteve consigo mesma cessa


quando o texto, pré-meditação da morte, transforma-se em estrela fúnebre.

300
Benedito Nunes formou-se em direito pela Universidade Federal do Pará, de onde foi professor e
fundador do curso de filosofia. Especializou-se nessa área na Sorbonne e no Collège de France.
Coordenador da edição crítica de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector (Paris/Brasí-
lia/Florianópolis: Association Archives de la Littérature Latino-Américaine, des Caraibes et Afri-
caine du XX e Siècle/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq/Unes-
co/Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1988), escreveu O drama da linguagem
– Uma leitura de Clarice Lispector (São Paulo: Ática, 1989), entre outras obras.

NOTAS

1 Rio de Janeiro: A Noite.


2 Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960.
3 Rio de Janeiro: Agir, 1946.
4 Rio de Janeiro: A Noite, 1948.
5 Rio de Janeiro: Francisco Alves.
6 Rio de Janeiro: Editora do Autor.
7 Rio de Janeiro: José Olympio.
8 Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
9 JOYCE, James. “He was alone. He was unheaded, happy and near to the wild of life”. In A portrait of the artist as a yong than. Nova
York: The Modern Library, pp. 198-199.
10 A duração (durée) é a sucessão pura, qualitativa e melódica pela “organização íntima de elementos”. Ver: Bergson. Lês données imme-
diates de la consume. 80 ed., Paris: Presses Universitaires de France – PUF, p. 75.
11 Utilizo neste ensaio a edição da Rocco de 1998.
12 Rio de Janeiro: Sabiá, 1969.
13 Edição brasileira. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977.

301
GUIA

De corpo inteiro

OBRAS DA AUTORA* A paixão segundo G.H. Rio de Um sopro de vida – Pulsações.


Janeiro: Editora do Autor, 1964. Rio de Janeiro: Nova Frontei-
1. Romances NOTA DOS EDITORES: Uma edi- ra, 1978.
ção crítica saiu em 1988 (ver
Perto do coração selvagem. Rio primeira referência da p. 314). 2. Novela
de Janeiro: A Noite, 1943.
A hora da estrela. Rio de Janei-
ro: José Olympio, 1977.

3. Contos**

Alguns contos. Rio de Janeiro:


Ministério da Educação e Saú-
de, 1952.

Uma aprendizagem ou O livro Laços de família. Rio de Janei-


O lustre. Rio de Janeiro: Agir, dos prazeres. Rio de Janeiro: Sa- ro: Francisco Alves, 1960.
1946. biá, 1969.

Água viva. Rio de Janeiro: Ar-


A cidade sitiada. Rio de Janei- tenova, 1973. A legião estrangeira. Rio de Ja-
ro: A Noite, 1949. N.E.: Clarice considerava que neiro: Editora do Autor, 1964.
esse trabalho não tinha um gê- N.E.: Dividido em duas partes,
A maçã no escuro. Rio de Janei- nero definido. Classificava-o sendo a segunda formada por
ro: Francisco Alves, 1961. apenas de “ficção”. crônicas, que em 1978 ganha-

* A partir de 1997, os livros de Clarice Lispector passaram a ser relançados pela Rocco, do Rio de Janeiro, que não informa o número de reimpressões rea-
lizadas. Os dados aqui incluídos se referem somente à primeira edição de cada título.
** Duas narrativas breves publicadas na imprensa pela escritora no início da carreira – “Triunfo” (revista Pan; Rio de Janeiro: 25.05.40) e “Eu e Jimmy” (Va-
mos lêr!; Rio de Janeiro, 10.10.40) – jamais fizeram parte de suas coletâneas.

302
riam um volume separado, Pa- A mulher que matou os peixes. 6. Entrevistas
ra não esquecer. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968.
De corpo inteiro. Rio de Janei-
Felicidade clandestina. Rio de ro: Artenova, 1975.
Janeiro: Sabiá, 1971.

A vida íntima de Laura. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1974.

A imitação da rosa. Rio de Ja- Quase de verdade. Rio de Janei- 7. Antologias


neiro: Artenova, 1973. ro: Rocco, 1978.
Seleta de Clarice Lispector. Or-
Como nasceram as estrelas. Rio
A via crucis do corpo. Rio de Ja- ganização de Renato Cordei-
de Janeiro: Nova Fronteira,
neiro: Artenova, 1974. ro Gomes; estudos e notas de
1987.
Amariles Guimarães Hill. Rio
Onde estivestes de noite. Rio de de Janeiro/Brasília: José Olym-
5. Crônicas
Janeiro: Artenova, 1974. pio/Instituto Nacional do li-
vro – INL, 1975.
Visão do esplendor – Impressões
A bela e a fera. Rio de Janeiro:
leves. Rio de Janeiro: Francisco
Nova Fronteira, 1979. Clarice Lispector. Organização
Alves, 1975.
de Benjamin Abdala Júnior e
Para não esquecer. São Paulo: Samira Youssef Campedelli.
Ática, 1978. Coleção Literatura comentada.
São Paulo: Abril Educação,
1981.

O primeiro beijo & outros con-


tos, de Clarice Lispector. Edita-
do por Fernando Paixão. São
Paulo: Ática, 1991.

Os melhores contos de Clarice


4. Literatura infantil Lispector. Organização de Wal-
nice Nogueira Galvão. São
O mistério do coelho pensante. Rio Paulo: Global, 2001.
de Janeiro: José Álvaro, 1967.
N.E.: Escrito em inglês, tradu- A descoberta do mundo. Rio de Aprendendo a viver. Rio de Ja-
zido pela ficcionista. Janeiro: Nova Fronteira, 1984. neiro: Rocco, 2004.

303
8. Textos incluídos O retrato de Dorian Gray [The de Christiane Schrübbers. Ber-
em coletâneas Picture of Dorian Gray], de Os- lim: Lilith, 1984.
car Wilde. Rio de Janeiro:
“A partida do trem”. In Os me- Ediouro, 1974. Die Sternstunde [A hora da es-
lhores contos brasileiros de 1973. N.E.: Trata-se de uma adaptação. trela]. Tradução de Curt Me-
Porto Alegre: Globo, 1974, pp. yer-Clason. Frankfurt: Suhr-
15-34. Testamento para El Greco, de kamp, 1985.
Nikos Kazantzakis. Rio de Ja-
“Feliz aniversário”. In Os cem neiro: Artenova, 1975. Eine Lehre oder Das Buch der
melhores contos brasileiros do sé- N.E.: O texto original é em Lüste [Uma aprendizagem ou O
culo. Organização de Ítalo Mo- grego. A escritora provavel- livro dos prazeres]. Tradução de
riconi. Rio de Janeiro: Objeti- mente traduziu a obra do Sarita Brandt. Hamburgo: Ro-
va, 2000, pp. 239-248. francês ou do inglês. wohlt, 1988.

“Feliz aniversário e “O corpo”. Entrevista com o vampiro [In- Die Dame un das Ungeheuer [A
In Contos de escritoras brasilei- terview With the Vampire], de bela e a fera]. Tradução de Sa-
ras. Organização de Lúcia He- Anne Rice. Rio de Janeiro: Ar- rita Brandt. Hamburgo: Ro-
lena Vianna e Márcia Lígia tenova, 1976. wohlt, 1990.
Guidin. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, pp. 53-65 e 67- Cai o pano: o último caso de Poi- Die Passion nach G.H. [A pai-
74, respectivamente. rot [Curtain], de Agatha Chris- xão segundo G.H.]. Tradução
de Christiane Schrübbers e Sa-
tie. Rio de Janeiro: Nova Fron-
“Cem anos de perdão” e “Ma- rita Brandt. Frankfurt: Suhr-
teira, sd.
cacos”. In Contos brasileiros 2. kamp, 1990.
Coleção Para gostar de ler, v. 9.
11. No exterior
Editado por Fernando Paixão. Nahe dem Wilden Herzen [Per-
São Paulo: Ática, 1999, pp. 11- to do coração selvagem]. Tradu-
Em alemão
3 e 73-5, respectivamente. ção de Ray-Güde Mertin.
Frankfurt: Suhrkamp, 1981.
Der Apfel im Dunkeln [A maçã
9. Correspondência
no escuro]. Tradução de Curt Von Traum zu Traum [A cidade
Meyer-Clason. Hamburgo: sitiada]. Tradução de Sarita
Cartas perto do coração. Orga-
nização de Fernando Sabino. Claassen, 1964. Brandt. Hamburgo: Rowohlt,
Rio de Janeiro: Record, 2001. 1992.
N.E.: Correspondência do or-
Die Nachahmung der Rose [A
ganizador com Clarice. imitação da rosa]. Tradução de Aqua viva: ein Zwiegespräch
Curt Meyer-Clason. Frank- [Água viva]. Tradução de Sari-
Correspondências – Clarice Lis- furt: Suhrkamp, 1982. ta Brandt. Frankfurt: Suhr-
pector. Organização de Teresa kamp, 1994.
Cristina Montero Ferreira. Rio Eine Lehre oder Das Buch der
de Janeiro: Rocco, 2002. Lüste [Uma aprendizagem ou O Dinamarquês
livro dos prazeres]. Tradução de
10. Traduções Christiane Schrübbers. Berlim: Stjernens time [A hora da estre-
Lilith, 1982. la]. Tradução de Peer Sibast.
A rendeira [La dentelliere], de Arbus: Husets Forlag, 1989.
Pascal Laine. Rio de Janeiro: Die Passion nach G.H. [A pai-
Imago, 1974. xão segundo G.H.]. Tradução Passionen iflge G.H. [A paixão

304
segundo G.H.]. Tradução de La hora de la estrella [A hora da Agua viva [Água viva]. Tra-
Peer Sibast. Arbus: Husets For- estrela]. Tradução de Ana Pol- dução de Regina Helena de
lag, 1995. jak. Madri: Siruela, 2000. Oliveira Machado. Paris: Des
Femmes, 1980.
Espanhol La pasión según G.H. [A paixão
segundo G.H.]. Tradução de Al- Près du coeur sauvage [Perto do co-
Aprendizaje o El libro de los berto Villalba. Barcelona: ração selvagem]. Tradução de Re-
praceres [Uma aprendizagem Aleph, 2000. gina Helena de Oliveira Macha-
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1973. Cossío Wodward. Tradução de sion des corps [A bela e a fera e
Cristina Peri Rossi et al. Madri: A via crucis do corpo]. Tradução
La manzana en la oscuridad [A Alfaguara, 2002. de Claude Farny. Paris: Des
maçã no escuro]. Tradução de Femmes, 1984.
Juan García Gayo. Buenos Ai- La manzana en la oscuridad [A
res: Sudamericana, 1974. maçã no escuro]. Tradução de
Elena Losada. Madri: Siruela,
Cerca del corazón salvaje [Perto 2003.
do coração selvagem]. Tradução
de Basilio Losada. Madri: Alfa-
Francês
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Près du coeur sauvage [Perto do
Felicidad clandestina [Felicida-
coração selvagem]. Tradução de
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Denise Teresa Moutonnier. Pa-
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Le bâtisseur de ruines [A maçã Où étais-tu pendant la nuit
Lazos de família [Laços de famí-
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Rossi. Barcelona: Montesinos, te do Canto. Paris: Gallimard, ção de Geneviève Leibrich e
1988. 1970. Nicole Biros. Paris: Des Fem-
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Aprendizaje o El libro de los pra- La passion selon G.H. [A paixão
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Cristina Sáenz de Tejada e Juan mes, 1978. Wünscher. Paris: Des Femmes,
García Gayo. Madri: Siruela, 1989.
1989.
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Felicidad clandestina. Silencio lia]. Tradução de Jacques e Te-
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Marcelo Cohen e Cristina Peri
Rossi, respectivamente. Barce- La femme qui tuait les poissons
lona: Círculo de Lectores, [A mulher que matou os peixes].
1995. Tradução de Séverine Rosset e

305
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Corps séparés – Contes et nouvelles berta do mundo]. Tradução de
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riot. Paris: Des Femmes, 1993.

La découverte du monde [A des-


coberta do mundo]. Tradução
de Jacques e Teresa Thiériot.
Paris: Des Femmes, 1995.
Family Ties [Laços de família].
Tradução de Giovanni Pontie-
Un souffle de vie [Um sopro de
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An Apprenticeship or the Book of
Hebraico Delights [Uma aprendizagem ou
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Qishre mishpaha [Laços de fa-
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Tivon. Bene Brak: Hakibbutz Carcanet, 1986. piaceri [Uma aprendizagem ou
Hameuchad, 2001. O livro dos prazeres]. Tradução
The Hour of the Star [A hora da de Rita Desti. Turim: La Rosa,
Holandês estrela]. Tradução de Giovanni 1981.
Pontiero. Manchester: Carca-
Het uur van de steer [A hora da net, 1986. La passione secondo G.H. [A

306
paixão segundo G.H.]. Tradu- zuna [A paixão segundo G.H. e Zivá voda [Água viva]. Tradução
ção de Adelina Aletti. Turim: Laços de família]. Tradução de de Pavla Lidmilová. Praga: Au-
La Rosa, 1982. Kunihiko Takahashi e Naoe rora, 2000.
Takei da Silva, respectivamen-
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Munno. Milão: Feltrinelli, 1987. Norueguês G.H.’ nin Çilesi [A paixão segun-
do G.H.]. Tradução de Sevim
Vicino al cuore selvaggio [Perto Lidelseshistorie [A paixão segun- Akten. Istambul: Can Yayinlari,
do coração selvagem]. Tradução do G.H.]. Tradução de Kjell 1996.
de Rita Desti. Milão: Adelphi, Risvik. Oslo: Gyldendal, 1989.
1987.
Kusatilmi § kent [A cidade sitia-
Polonês da]. Tradução de Sevim Akten.
La mela nel buio [A maçã no es-
curo]. Tradução de Renata Cus- Istambul: Can Yayinlari, 1998.
Godzina gwiazdy [A hora da es-
mai Bernardinelli. Milão: Fel-
trinelli, 1988. trela]. Tradução de Anna Her-
manowicz-Palka. Cracóvia: Wy- FORTUNA CRÍTICA
Legami familiari [Laços de fa- dawnictwo Literackie, 1987.
mília]. Tradução de Adelina
Aletti. Milão: Feltrinelli, 1986. Russo

L’ora della stella [A hora da estre- [A cidade sitiada]. Tradução de


la]. Tradução de Adelina Aletti. Inna Tynianova. Moscou: Terra,
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334
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de Janeiro, 24.12.77. tura and Renawal”. Remate de pector”. Correio do Povo. Porto
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SZKLO, Gilda Salem. “‘O búfa- ria Literária da Universidade Antonio Hohlfeldt.
lo’. Clarice Lispector e a heren- de Campinas, n. 9, maio de
ça da mística judaica”. Remate 1989. “Clarice, um mistério sem
de Males. Departamento de muito mistério”. Correio da
Teoria Literária da Universida- VIEIRA, Telma Maria. “Leitor M a n h ã . R i o d e Ja n e i r o ,
de de Campinas, n. 9, maio de clariciano: um leitor de alma já 02.11.71. Sem assinatura.
1989. formada”. Ângulo. Lorena, ja-
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VARIN, Claire. “Clarice, olho objeto gritante”. Correio da
de gato”. Remate de Males. De- VOGT, Carlos. “Velhos temas de Manhã. Rio de Janeiro, 05-

335
06.03.72. Entrevista a Germa- 194-203. Entrevista a Clélia ADAPTAÇÕES
na de Lamare. Pisa e Maryvonne Lapouge.

“Autocrítica de Clarice Lispec- “Clarice, pela última vez”. Jor-


tor, no momento exato”. Jornal nal do Brasil. Rio de Janeiro,
da Tarde. São Paulo, 22.07.72. 15.12.77. Entrevista a Nevi-
Entrevista a Telmo Martino. nha Pinheiro.
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maio de 1974. Sem assinatura. ce Lispector”. TV Cultura. São
A hora da estrela. Direção de
Paulo. Entrevista a Júlio Ler-
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Janeiro, 03-09.06.74. Entre- exibida no dia 28.12.77, às Cartaxo e José Dumont. Brasil,
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Paulo, 30.07.75. Entrevista a Sérgio Fonta, para o Jornal de nio Garcia. Com Antonio Fa-
Isa Cambará. Letras, do Rio de Janeiro, em gundes, Marieta Severo, Cláu-
abril de 1972, traduzida para o dia Jimenez e outros. Brasil,
“Clarice Lispector: já tentei re- francês por Claire Varin. 1991.
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sou eu, meu Deus, para mudar Chamada final (Final Call).
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neiro, 29.04.76. Entrevista a média-metragem, do filme
Edilberto Coutinho. Erotique, obra internacional
cuja história brasileira é inspi-
“Tristes trópicos. Interview rada no conto “A língua do p.”,
with Clarice Lispector”. Crisis. DOCUMENTÁRIO do livro A via crucis do corpo,
Buenos Aires, julho de 1976. de Clarice Lispector. Direção
Entrevista a Maria Ester Gilio. Perto de Clarice. Curta-metra- de Ana Maria Magalhães. Com
gem de João Carlos Horta.
Claudia Ohana, Guilherme
“Clarice Lispector”. Entrevista Brasil, 1982.
Leme e outros. Brasil, Alema-
gravada para o Museu da Ima-
nha, China e EUA, 1994.
gem e do Som do Rio de Janei-
ro em 20.10.76, concedida a TELEVISÃO
Affonso Romano de Sant’Anna Ruído de passos. Curta-metra-
e Marina Colasanti, com a pre- Especial Clarice Lispector. Pro- gem baseado em conto homô-
sença do então diretor do MIS, grama dentro do festival de co- nimo do livro A via crucis do
João Salgueiro. Rio de Janeiro: memoração dos 30 anos da TV corpo. Direção de Denise Tava-
Museu da Imagem e do Som, Cultura de São Paulo. Incluiu res Gonçalves. Brasil, 1995.
1976. Coleção Depoimentos, a entrevista concedida a Júlio
n. 7, 1992. Lerner em 1977, depoimentos Clandestina felicidade. Curta-
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Paris: Des Femmes, 1977, pp. tura, 1999. de Beto Normal e Marcelo Go-

336
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1998. tora Maria Bethânia, com de- Gávea, 1998.
poimentos e interpretações ba-
Macabéia. Direção de Erly Viei- seadas na obra da ficcionista. Quase de verdade. Peça inspirada
ra Jr., Lizandro Nunes e Virgí- Direção, roteiro e concepção de nos livros Quase de verdade, A
nia Jorge. Curta-metragem ba- Naum Alves de Souza. Rio de mulher que matou os peixes e A vi-
seado em A hora da estrela. Bra- Janeiro, Canecão, 1984. da íntima de Laura. Direção de
sil, 2000. Ulisses Cohn. Com a Cia. Delas
A paixão segundo G.H. Dire- de Teatro. São Paulo, auditório
Aeroporto em o embarque. Cur- ção de Cibele Forjaz. Com Lina Bo Bardi, MAM, 2001.
ta-metragem dirigido por Ni- Marilena Ansaldi. São Paulo,
cole Algranti, com elementos MAC/Pavilhão da Bienal,1989. A hora da estrela. Baseado no li-
que lembram o universo de vro de mesmo nome. Direção
Clarice Lispector e sua perso- A pecadora queimada e os anjos de Marcus Vinícius Faustini.
nagem Macabéa. Com Marcé- harmoniosos. Direção de José Com Marcélia Cartaxo e ou-
lia Cartaxo. Brasil, 2002. Antonio Garcia. Com Sérgio tros. Companhia Pequenos
Mamberti e outros. São Paulo, Burgueses. Rio de Janeiro, Tea-
O ovo. Direção de Nicole Al- Festival de Teatro Sesc, 1992. tro do Sesi, 2001.
granti. Roteiro de Luiz Carlos
Lacerda. Curta-metragem ba- A mulher que matou os peixes. A descoberta do mundo. Adapta-
seado no conto “O ovo e a ga- Baseada no livro homônimo. ção do livro homônimo e tam-
linha”, do livro Felicidade clan- Direção de Lúcia Coelho. bém de A paixão segundo G.H.
destina. Brasil, 2003. Com Zezé Polessa. Rio de Ja- Direção de Marco Antonio Ro-
neiro. Centro Cultural Banco drigues. Com a Cia. Delas de
do Brasil, 1994. Teatro. São Paulo, Teatro Esco-
la Célia Helena, 2001.
A mulher que matou os peixes.
Adaptação de Adriane Azenha. A hora da estrela. Direção e
São Paulo, Sesc Itaquera, 1998. adaptação de Naum Alves de
Para o teatro Souza. Com Célia Borges, Es-
A hora da estrela. Direção e ter Lacava e Edgar Jordão. São
Perto do coração selvagem. Peça adaptação de Roberto Vignatti. Paulo, Teatro Imprensa, 2002.
baseada no romance homôni- Com Alexandra Tavares. São
mo. Direção de Fauzi Arap. Paulo, Oficina Cultural Os- A paixão segundo G.H. Monó-
Com Glauce Rocha, José Wil- wald de Andrade, 1998. logo baseado no romance ho-
ker e outros. Rio de Janeiro, mônimo de Clarice Lispector,
Teatro Maison de France, 1965. Que mistérios tem Clarice? Mo- peça adaptada por Fauzi Arap.
nólogo de Rita Elmôr. Direção Direção de Enrique Diaz.
Um sopro de vida. Direção de de Luiz Arthur Nunes. Rio de Com Mariana Lima. Rio de Ja-
José Possi Neto. Adaptação do Janeiro, Teatro do Museu da neiro, Teatro do Centro Cultu-
diretor e de Marilena Ansaldi. República, 1998. ral Banco do Brasil, 2002.
Com Marilena Ansaldi, São
Paulo, Teatro Ruth Escobar, Clarice – Coração selvagem. Di- Água viva. Monólogo baseado
1979. Rio de Janeiro, Teatro reção e texto de Maria Lucya no romance homônimo. Dire-
dos Quatro, 1979. de Lima. Com Aracy Balaba- ção de Maria Pia Scognami-

337
glio. Com Susana Vieira. Rio MÚSICAS E LEITURAS trechos do romance. Leitura da
de Janeiro, Teatro Villa-Lobos, atriz Anouk Aimée. Paris: Des
2003. Clarice. Canção de Caetano Femmes, sd.
Veloso/Capinan. Gravação do
Encontro com Clarice. Monólo- disco Caetano Veloso. Rio de Ja- Liens de famille [Laços de famí-
go baseado em contos da auto- neiro: Philips, 1967. lia]. Gravação dos contos “Pre-
ra. Direção de Ítalo Rossi. Com ciosidade”, “Uma galinha” e “A
Ester Jablonski. Rio de Janeiro, Que o Deus venha. Canção ba- menor mulher do mundo”, do
Teatro do Jockey, 2003. seada em texto do livro Água livro Laços de família. Leitura
viva. Adaptação de Cazuza e da atriz Chiara Mastroianni.
Roberto Frejat para o disco De- Paris: Des Femmes, sd.
clare guerra, do grupo Barão
Vermelho. Rio de Janeiro: Som
Livre, 1986.
INTERNET
Que o Deus venha. Gravação de
Cássia Eller no disco que leva o
nome da cantora. Rio de Janei-
Para a TV ro: Polygram, 1990.

Feliz aniversário. Especial ba- A descoberta do mundo. Sele-


seado no conto homônimo do ção de crônicas da autora, por
livro Laços de família. Direção Teresa Montero, com a inter-
de Paulo José. Roteiro de An- pretação de Aracy Balaba-
www.casaruibarbosa.gov.br
tônio Carlos Fontoura. Com nian. Niterói: Luz da Cidade,
Iracema de Alencar. Rede Glo- coleção Os cronistas, 2002.
www.claricelispector.cjb.net
bo, 1978.
Clarice Lispector – Áudio. Sele-
www.unicamp.br/iel/alunos/
A hora da estrela. Episódio da ção de contos da autora, por
publicacoes/clarice.htm
série Cena aberta. Direção-ge- Paulinho Lima, com a inter-
ral de Jorge Furtado. Com Re- pretação de Aracy Balabanian.
gina Casé, Ana Paula Bouzas e Niterói: Luz da Cidade, cole-
outros. Rede Globo, 2003. ção Poesia falada. 1998.

Doze lendas brasileiras – Clari-


ce Lispector (v. 1). Idealizado e
produzido por Paulinho Lima.
Niterói: Luz da Cidade, 2000.

Clarice Lispector – A mulher


Para o vídeo que matou os peixes (v. 4). Idea-
lizado e produzido por Pauli-
A paixão segundo G.H. Traba- nho Lima. Niterói: Luz da Ci- PRINCIPAIS FONTES
lho de Gilberto Goumá sobre dade, 2000. DESTA EDIÇÃO
espetáculo-solo da atriz Mari- Arquivo do Instituto Moreira Salles, Dedoc –
lena Ansaldi, sob direção de La passion selon G.H. [A paixão Departamento de Documentação da Editora
Abril (SP); Biblioteca Nacional, Fundação
Cibele Forjaz. Brasil, 1989. segundo G.H.]. Gravação de Casa de Rui Barbosa (RJ).

338
AG R A D E C I M E N TO S

Paulo Gurgel Valente, Nádia Battella Gotlib, Fundação Ca-


sa de Rui Barbosa e também:

Alberto Dines, André Luís Gomes, Antonio Candido de


Mello e Souza, Fábio Lucas, Gilda Murray, Jacó Guinsburg,
José Mindlin, Oscar Pilagallo, Ricardo Iannace (São Paulo);
Bella Jozef, Helder Martins de Moraes, Eliane Vasconcellos,
Márcia Algranti, Maristela Provedel, Rafael Cardoso, Rosân-
gela Florido Rangel, Tania Kaufmann (Rio de Janeiro); Ana
Luiza Andrade (Florianópolis); José Eduardo Andrade (Bra-
sília); Lélia Maria Parreira Duarte (Belo Horizonte); Márcio
José Andrade da Silva (Campinas-SP); Tânia Franco Carva-
lhal (Porto Alegre); Yeda Costa Bezerra de Mello (Recife);

Agência Balcells, Biblioteca Infanto-juvenil Clarice Lispec-


tor, Câmara de Comércio da Turquia, Departamento de In-
formação e Documentação Artística – Idart, Instituto de Es-
tudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB (São
Paulo); Centro Cultural Banco do Brasil, Fundação Casa de
Rui Barbosa, Fundação Nacional de Arte – Funarte, Funda-
ção RioZoo, Jardim Botânico, Jornal do Brasil (Rio de Janei-
ro); editora Artes e Ofícios (Porto Alegre); gravadora Luz da
Cidade (Niterói-RJ); Suplemento Literário de Minas Gerais
(Belo Horizonte).

Alicia Rosas/Santillana México (Cidade do México); Artur


Rodina e Viktor Kossakivskiy (Kiev), Bertold Zilly (Ber-
lim); Clélia Pisa (Paris); Otto Stupakoff (Nova York).

339
Bluma Wainer/Acervo Paulo Gurgel Valente

340
INSTITUTO MOREIRA SALLES

Walther Moreira Salles (1912-2001)


Fundador

Diretoria Executiva Conselho Consultivo

Fernando Roberto Moreira Salles João Moreira Salles


Presidente Presidente
João Moreira Salles Augusto Carlos da Silva Telles
Roberto Konder Bornhausen José Luiz Bulhões Pedreira
Vice-Presidentes Lúcia Regina Moreira Salles
Lygia Fagundes Telles
Mauro Agonilha Pérsio Arida
Diretor Tesoureiro Raul Machado Horta
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Diretor Executivo

Conselho de Administração
Casa da Cultura de Poços de Caldas

Conselho Consultivo
João Moreira Salles
Presidente João Moreira Salles
Presidente
Fernando Roberto Moreira Salles
Vice-Presidente Antonio Candido de Mello e Souza
Resk Frayha
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Pedro Moreira Salles
Roberto Konder Bornhausen
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Conselheiros

Administração

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Superintendente Executivo

Edson Micael Souza Santos


Rinaldo Gama
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Belo Horizonte Poços de Caldas (MG)


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Galerias IMS Reserva técnica fotográfica


e
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Curitiba
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CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA


À venda nas principais livrarias do país, nos espaços culturais e no site do Instituto Moreira Salles e em Portugal

Número 1 – João Cabral de Melo Neto (mar. 96) Número 9 – Adélia Prado (jun. 00)
Número 2 – Raduan Nassar (set. 96) Número 10 – Ariano Suassuna (nov. 00)
Número 3 – Jorge Amado (mar. 97) Número 11 – Ignácio de Loyola Brandão (jun. 01)
Número 4 – Rachel de Queiroz (set. 97) Número 12 – Carlos Heitor Cony (dez. 01)
Número 5 – Lygia Fagundes Telles (mar. 98) Números 13 e 14 – Euclides da Cunha (dez. 02)
Número 6 – Ferreira Gullar (set. 98) Número 15 – Millôr Fernandes (jul. 03)
Número 7 – João Ubaldo Ribeiro (mar. 99) Número 16 – Erico Verissimo (nov. 03)
Número 8 – Hilda Hilst (out. 99) Números 17 e 18 – Clarice Lispector (dez. 04)

Jornalista responsável:
Antonio Fernando De Franceschi (MTb: 9.093).
ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA
BEĨ • COMUNICAÇÃO EM GARAMOND E
GILL SANS COM FOTOLITOS E IMPRESSÃO
NA IPSIS GRÁFICA E EDITORA
PARA O INSTITUTO MOREIRA SALLES
EM DEZEMBRO DE 2004.
Clarice jornalista:
o ofício paralelo
Fundação Casa de Rui Barbosa

Reprodução da coluna que Clarice Lispector assinava no jornal


Correio da Manhã, do Rio, sob o pseudônimo Helen Palmer
Manual de redação

“A palavra é o meu domínio sobre o mundo” , diria Clarice Lispector. E, real-


1

mente, a assertiva significa mais do que poderia supor alguém apenas interessado em
sua literatura; ela estende-se, ainda, à primeira profissão da escritora: o jornalismo.2
Clarice estudava na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil,
no Rio de Janeiro, quando, em 1940, bateu à porta da Agência Nacional, órgão do De-
partamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo de Getúlio Vargas, pedindo um
emprego. Diante da atitude direta da moça, o diretor, Lourival Fontes, propôs-lhe ser
tradutora – mas todas as vagas correspondentes a tal cargo estavam ocupadas. Foi assim
que ela se tornou redatora e repórter.
No mesmo ano, Clarice Lispector teria pela primeira vez uma entrevista publica-
da: sua conversa com o escritor Tasso da Silveira saiu na Vamos lêr! de 19 de dezembro.
Em 1941, apareceria, no número de estréia de outra revista, A Época, editada pe-
la faculdade em que ingressara, um artigo seu sobre o direito de punir. Àquela altura a
jovem já se transferira para o jornal A Noite, que, além de lhe dar as funções de tradu-
tora e repórter, eventualmente publicaria contos seus3 e se tornaria, pouco tempo de-
pois, sua primeira casa editora, lançando em 1943 o romance Perto do coração selvagem.
Num momento em que as técnicas jornalísticas desconheciam os manuais de re-
dação – e em que a própria atividade de jornalista não se institucionalizara pelo ensino
superior, já que o primeiro curso dessa natureza só surgiria em São Paulo no ano de
1947, com a fundação da Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero –, os profissionais da
imprensa eram, de modo geral, pessoas que “escreviam bem”. Com freqüência, egressos
dos cursos de direito.
A autora, pois, como muitos de seus colegas, teve de encontrar sua própria ma-
neira de descrever os fatos cuja cobertura lhe era encarregada. Não é de estranhar que,
para a mocinha que escolhera estudar as leis porque lhe interessava o direito penal –

3
diante do que, anos mais tarde, o jurista San Tiago Dantas, seu amigo, observaria que
advogado de verdade gostava de civil, que o criminal, este era para os literatos4 –, o ca-
minho dos textos jornalísticos passasse pela vertente literária.
Há, em especial, dois trabalhos de Clarice Lispector que são citados por seus es-
tudiosos como exemplos desse “caminho”. O primeiro é o já mencionado artigo “Ob-
servações sobre o direito de punir”. Nele, houve quem assinalasse ecos de Dostoiévski,
um dos autores mais marcantes da juventude da futura escritora.5
O segundo exemplo, talvez menos comentado, analisamos a seguir.
Em “Onde se ensinará a ser feliz” (1941), a novata repórter tem diante de si a
incumbência de narrar a inauguração da “cidade das meninas”, um internato para ga-
rotas pobres sem lar. Ora, já sabemos que a Agência Nacional era um órgão do gover-
no – e, portanto, os textos produzidos por seus jornalistas sempre forneciam a visão da
oficialidade a respeito dos acontecimentos. Nesse caso específico, a tarefa trazia um de-
safio adicional, por ser o projeto idéia da primeira-dama, Darcy Vargas.
Vejamos como se saiu Clarice, conforme o texto publicado em 19 de janeiro da-
quele ano em um jornal de Campinas (SP), o Diário do Povo:

E certamente na primeira noite ao abrigo, cinco mil garotas não poderão


adormecer. Na escuridão do quarto, as milhares de cabecinhas, que não soube-
ram indagar a razão de seu abandono anterior, procurarão descobrir a troco de
que se lhes dá uma casa, uma cama e comida.
Quando recebiam caridade, recebiam também um pouco de humilhação
e desprezo. Não deixava de ser bom, porque sentiam-se quites e muito livres. Li-
vres para o ódio. Mas nas casas onde agora se acomodam, casas limpas, com ho-
ra certa de almoço e de jantar, com roupas e livros, são tratadas com naturalida-
de, com bom humor...6

A autora assume um tom que hoje raramente seria permitido a um jornalista –


e, com certeza, não a um iniciante. O que ela opera, no breve trecho acima, não é dife-
rente do que faz qualquer ficcionista ao imaginar um ambiente ou situação. Pois não é
do âmbito da ficção este “entrar no sentimento do outro”, na alma do personagem, no
caso, das 5.000 personagens?
Sim, é. E a situação que cria ao projetar o futuro das meninas no novo abrigo se
acomodaria com naturalidade ao seu exercício ficcional – que outra escritora de seu tem-
po pensaria em garotas “livres para o ódio”? E é já perfeitamente clariciano, também, o
jogo que faria, um pouco mais adiante, fechando o texto:

Mas no momento do adeus à “Cidade” saberão, enfim, que realmente se

4
lhes dava tanto em troca de alguma coisa. O Brasil, a América, o Mundo preci-
sam de criaturas felizes. Elas riem. Crêem. Amam. As jovens mulheres saberão,
então, que delas se espera o cumprimento do grave dever de ser feliz.7

O “grave dever de ser feliz”. Que “jovens mulheres”, se não as protagonistas da


obra de Clarice Lispector, acolheriam em si tal obrigação? Melhor: que outra autora co-
locaria nesses termos o objetivo humano mais perseguido? A ficcionista já estava ali, com
os questionamentos e a voragem de emoções contraditórias que forjariam sua obra.

***

O ano de lançamento do romance de estréia de Clarice é o mesmo de seu casa-


mento com Maury Gurgel Valente, união que, a partir de 1944, levaria a escritora a um
longo périplo internacional, em companhia do marido diplomata, período em que –
apesar das obrigações domésticas e sociais advindas do cargo de Maury – ela se dedicou
de maneira intensa à literatura.
Numa das vindas ao Brasil, entre uma e outra mudança de posto de seu marido –
precisamente, em 1952, depois da Inglaterra e antes dos Estados Unidos –, Clarice Lis-
pector recebeu o convite do escritor e jornalista Rubem Braga, seu amigo, para partici-
par de um novo semanário, Comício. A colaboração, porém, se daria de forma muito
distinta do que nos seus primeiros anos de carreira na imprensa. Três romances e vários
contos depois, ela já não seria a inexperiente repórter que dava um toque literário à co-
bertura dos eventos que presenciava. Em Comício, Clarice inauguraria uma nova face de
sua atividade jornalística: as colunas femininas.
Autora reconhecida, mulher de um representante diplomático do Brasil, talvez
não fosse mesmo o caso de emprestar o nome a um espaço que desse dicas de cuidados
domésticos e truques de beleza. E, assim, Clarice converteu-se em Teresa Quadros.8
E quem é essa nova personagem? De que falaria, e em que tom, às leitoras com
as quais se “encontrava”, a cada semana, em Comício?
Basicamente, Teresa Quadros tratava de assuntos do lar e de moda. Vivia-se o pós-
guerra, e essas áreas sofriam revoluções, com o advento dos eletrodomésticos e de novos
tecidos, por exemplo. “Entre mulheres”, a coluna, era um bate-papo de Teresa com a lei-
tora, em que não faltavam as novidades de possível interesse para as donas de casa.
Luziam em suas páginas as últimas criações de Paris, que buscava se reafirmar,
após ter sido um dos principais palcos do embate internacional, como o centro da alta
costura. Ao lado das grandes fotos de moda que Clarice recolhia de revistas estrangei-
ras, figuravam receitas – de cozinha, mas também de como evitar atrapalhos caseiros,
centímetros indesejados na silhueta e até de que maneira se podiam prevenir abalos no

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casamento (lembrando que convinha manter a harmonia, já que o marido, ao sair para
o trabalho, estava exposto ao canto de sereia de outras mulheres).
Tudo era dito de forma didática, às vezes até maternal. Teresa Quadros é a vizi-
nha sábia, a mãe da mocinha que vive na dona de casa: uma fonte de experiência.
É difícil imaginar o que, de todos aqueles conselhos, Clarice Lispector aprovei-
taria. Do mesmo modo como muito do que se lê na seção pode ter saído diretamente
das páginas de livros e revistas para “Entre mulheres”, algumas idéias talvez hajam feito
escala no lar dos Gurgel Valente. Clarice era vaidosa, gostava de maquiagem e fazia mis-
tério sobre seus perfumes: tinha lá seus segredos para cuidar da aparência, e isso tudo se
evidenciaria em entrevistas e futuras crônicas. Entretanto passar daí à crença de que a
ficcionista testava o que indicaria representa assumir o terreno da especulação.
O que se comprova é que a ficcionista incluiu, no contato semanal com as leito-
ras de Comício, um bocado dos seus gostos literários. Porque, além de falar de roupas e
de outros assuntos considerados fúteis, Teresa Quadros também reproduzia textos e opi-
niões de autores que, esses sim, sua criadora precisava ter “experimentado”. Pelas mãos
da colunista apareceriam, por exemplo, trechos e referências a escritos da Condessa de
Noailles, de Virginia Woolf, de Katherine Mansfield 9 – e de Clarice Lispector. Se, como
repórter, ela imprimira um tom “pouco jornalístico” aos textos, nas páginas femininas (e
em posteriores colaborações para a imprensa) apareceriam traços de futuros livros.
Como Teresa Quadros, Clarice assinou “Um dia cheio”, embrião de “Uma tar-
de plena” – conto que integraria o volume Onde estivestes de noite (1974)10. E também
nas páginas do semanário, disfarçado como fórmula para matar baratas, figuraria um
primeiro esboço para “A quinta história”, esboço esse retomado em outra coluna femi-
nina (a do Diário da Noite, que abordaremos mais adiante), em 1960 – até aparecer
como conto, primeiro na revista Senhor, no ano de 1962, e depois no livro A legião
estrangeira (1964).
A “personagem” Teresa Quadros, contudo, teria vida curta: “Entre mulheres” du-
raria quatro meses de 1952 – de maio a setembro; o próprio periódico circularia pela
última vez em outubro. O caminho, no entanto, estava aberto: anos depois, viria das
páginas femininas o complemento de renda de que a escritora, separada de Gurgel Va-
lente e de volta ao Rio de Janeiro, precisava para garantir sua independência.

***

Clarice Lispector pôs fim ao casamento com Maury em 1959. Apesar de, então,
já haver alcançado certo prestígio – sua obra começava até a ser traduzida – e de ter o quar-
to romance pronto (A maçã no escuro, que sairia em julho de 1961), a autora não podia
se dar ao luxo de viver de literatura. Aliás, essa nunca seria sua única fonte de sustento.

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É nessa ocasião que surge Helen Palmer, sua segunda colunista fictícia. Com tal
pseudônimo, ela assinaria, a partir de agosto de 1959, o espaço “Correio feminino –
Feira de utilidades”, no jornal Correio da Manhã. A colaboração tinha o patrocínio da
indústria de cosméticos Pond’s, que propusera a coluna, determinando inclusive a sua
forma, com o objetivo de passar à leitora mensagens publicitárias subliminares.11 Sem
mencionar a marca, a seção deveria fazer com que o seu público associasse os conselhos
de beleza ali apresentados aos produtos que a empresa anunciaria.
O trabalho de Helen é menos sofisticado que o de Teresa Quadros, dado que seu
enfoque seria em grande parte decorrente das exigências do “patrocinador” do espaço –
que, além de incorporar a “propaganda” encaminhada por meio de press releases, traria
também receitas e dicas domésticas.
As únicas inserções gráficas em meio ao texto eram uma foto ou ilustração de mo-
da e o cartum da personagem Amélia – por sinal, nome da resignada “mulher de verda-
de” da música de Ataulfo Alves e Mário Lago, o que nos dá uma idéia sobre o público a
que visava a coluna: donas de casa zelosas de sua “feminilidade”, do conforto de seus res-
pectivos companheiros, “rainhas do lar”. Helen Palmer orientava sua leitora a ser discreta,
sem “vestido muito justo”, “pintura excessiva”, “saltos muito altos”12, ao mesmo tempo em
que a aconselhava a ser ela mesma, evitando a tentação de copiar estrelas de cinema.
Paralelamente à coluna do Correio da Manhã, que iria até fevereiro de 1961,
Clarice aceitou outro convite para se dirigir às mulheres por meio da imprensa. A pro-
posta veio do Diário da Noite, envolvido em uma drástica reformulação, conduzida por
Alberto Dines, objetivando recuperar mercado. No novo jornal – o primeiro no Rio a
utilizar o formato tablóide, seguindo a linha inglesa13 –, a escritora assumiria uma ou-
tra nuance da adquirida “carreira” de colunista feminina: seria ghost-writer de Ilka Soa-
res, ocupando – com uma periodicidade que chegou a seis dias por semana – o espa-
ço por ela assinado.
Naquele momento, abril de 1960, Ilka já deixara de ser apenas modelo para se
transformar em atriz, a mais bonita do cinema brasileiro, como se dizia freqüentemen-
te. Sua relação com os Diários Associados – grupo de Assis Chateaubriand, que editava
o Diário da Noite – vinha dos contratos com a produtora cinematográfica Atlântida e a
TV Tupi, que também pertenciam a Chatô.
A celebridade e a escritora começaram um “trabalho de equipe”, reunindo-se pa-
ra acertar detalhes de “Só para mulheres” (esse era o nome da seção); conversavam em
especial sobre moda, Clarice Lispector ouvindo Ilka Soares, como se fosse uma repór-
ter, ou observando a atriz, com olhos de ficcionista, para compor sua personagem.
Dines diria que nunca orientou a autora sobre como deveria ser sua coluna e que
Clarice jamais lhe causou qualquer problema. As páginas chegavam praticamente dia-
gramadas à redação, e sempre dentro do prazo.14

7
A voz emprestada à estrela, conforme já deve ter ficado claro, difere das expe-
riências anteriores de Clarice Lispector em páginas femininas. Ilka era uma figura co-
nhecida – a foto da atriz saía no cabeçalho da seção, como que a reforçar o nome –, uma
mulher que, de certa maneira, vivia de sua beleza, e cuja imagem não se associava à de
uma dona de casa. Ainda assim, “Ilka Soares” conversaria com a leitora como se fosse
uma delas, descendo de seu posto no panteão dos artistas para dar dicas, não só do mun-
do glamoroso das passarelas como também relacionadas às preocupações cotidianas da
mulher comum.
No espaço feminino do Diário da Noite, desaparece a vocação professoral das co-
lunas anteriormente conduzidas por Clarice. Ilka é a “amiga” esperta, que conhece o úl-
timo grito da moda, sabe onde encontrar as melhores ofertas e ainda compartilha segre-
dos caseiros.
A participação de Clarice Lispector em “Só para mulheres” terminaria em mar-
ço de 1961, durando o tempo que resistiu o novo Diário. E, com ela, encerra-se a sua
presença nas páginas femininas do país – mas só nestas.

***

No final daquela mesma década, Alberto Dines a procuraria de novo, sabendo-


a necessitada de trabalho. Agosto de 1967: a única atividade extra de Clarice eram as
traduções. Desde A paixão segundo G.H. (escrito em 63 e lançado em 64) não publica-
va nenhum romance. Em 1966 tivera o acidente com o cigarro em seu quarto; o episó-
dio do incêndio deixara diversas seqüelas, que a abateram profundamente. É neste qua-
dro que Dines, agora à frente do Jornal do Brasil, lhe propõe escrever uma coluna
semanal – desta vez, de crônicas.
A crônica, sabe-se, constitui um gênero híbrido, situado entre a literatura e o jor-
nalismo. Quase sempre, um cronista é alguém que já se destacou em um desses dois
campos lindeiros, firmou “nome”. Clarice Lispector encaixava-se à perfeição nesse per-
fil: era conhecidíssima, premiada, traduzida. Só que jamais escrevera nada parecido e é
temerosa que aceita o convite.
Tal temor se expressa de saída. O exercício da ficcionista diante da crônica é
quase sempre levado no plano metalingüístico. Clarice fala de maneira muito direta ao
leitor, expõe suas dúvidas no novo papel, discute o que significa escrever. Não se res-
tringe, obviamente, a esse tema: faz comentários tanto sobre suas empregadas – procu-
rando imprimir aos textos o registro de anedota – quanto a respeito de alguma notícia
(no que parece tentar atingir um certo “modelo” estabelecido nas colunas de jornal,
que é o de o articulista aportar a algum assunto candente sua visão pessoal). No mais
das vezes, porém, escapa dos trilhos que tenta se impor. E fala de si, de seus sentimen-

8
tos – enfim, encontrando, também no novo gênero, o caminho expressivo que passa
pelo coração.
A autora, no mesmo espaço, queixa-se da sua atitude. Diz que a considera pou-
co apropriada, embora, quem sabe, tivesse mesmo pudor de se mostrar tanto e com tan-
ta freqüência.
A contrapartida é uma aproximação maior com o público. Clarice Lispector
encanta-se ao perceber que sair publicada no periódico exerce uma certa magia so-
bre o receptor – como se ele a compreendesse mais, ainda que ela não acreditasse que
houvesse mudado substancialmente seu modo de se comunicar com os leitores. A
cronista usaria seu espaço para agradecer presentes, comentar cartas, mandar recados
a quem lhe dedicava o tempo dos sábados. E sempre, Clarice é ela, presente, ali, nas
linhas do jornal.
Nem todo tempo, contudo, ela exibe paciência para a atividade “forçada”. Em
algumas ocasiões, dirá isso textualmente. Em outras, “burla” as regras do espaço, publi-
cando notas que, mais tarde, se reconheceriam, às vezes com pouquíssimas modifica-
ções, nas obras que vinha produzindo – e em Clarice, sabe-se, “fundo e forma” não se
distinguiam. Seu “método” era justamente este: reunir anotações esparsas, amarrando-
as como um livro. Assim, surgem nas colunas trechos de romances, contos inteiros. Ar-
riscamos dizer que, talvez, a rotina de escrever “obrigada” tenha contribuído para tirá-
la da sensação de esterilidade que a assolava naqueles anos. É também a partir desse
exercício que passa a refletir sistematicamente sobre o ofício do escritor, constatando,
muitas vezes, quão duro podia ser – e, para ela, depois do acidente, cada livro se mos-
traria como prova de resistência vencida.
Durante o período em que foi cronista do JB – colaboração que se prolongaria
por mais de seis anos, encerrando-se em dezembro de 1973 – Clarice Lispector escreveu
dois romances, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969) e Água viva (1973); um
título infantil, A mulher que matou os peixes; e lançou as antologias Felicidade clandestina
(1971) e A imitação da rosa (também de 1973), que reuniam contos já publicados.15

***

Em maio de 1968, nove meses depois de sua estréia na crônica, Clarice aceita-
ria escrever para a Manchete uma seção de entrevistas, “Diálogos possíveis”.
Os convidados que “apresentava” a cada semana seriam, geralmente, pessoas de
sua admiração, ou que vinham de seu círculo de amizade. Muitas vezes, a entrevistado-
ra os receberia em casa. Eram músicos populares (caso de Tom Jobim e Chico Buarque)
ou clássicos (Jacques Klein); pintoras como Djanira e Grauben; atrizes (Bibi Ferreira e
Tônia Carrero) – além de vários escritores, entre os quais Jorge Amado, Pablo Neruda,

9
Erico Verissimo e Fernando Sabino (os dois últimos, amigos de longa data). Vários des-
ses textos – sua participação na revista duraria até outubro de 1969 – sairiam também
na sua coluna do Jornal do Brasil 16.
É Clarice Lispector voltando aos princípios, ao jornalismo em estado puro. Evi-
dentemente, abandonara a antiga forma; se, por um lado, já não tinha “a alegria e o fres-
cor inerente a uma jovem de 20 anos”, como observaria Teresa Cristina Montero Fer-
reira17, por outro, nas entrevistas ela se colocaria “de corpo inteiro”.18
“Fernando, por que é que você escreve? Eu não sei por que eu escrevo, de mo-
do que o que você disser talvez sirva para mim”19, explanaria, por exemplo, a Sabino. E
continua:

Como é que começa em você a criação, por uma palavra, uma idéia? É
sempre deliberado o seu ato criador? Ou você de repente se vê escrevendo? Co-
migo é uma mistura. É claro que tenho o ato deliberador, mas precedido por
uma coisa qualquer que não é de modo algum deliberada.20

Em certas oportunidades, procuraria entrevistados com quem talvez nunca pu-


desse travar qualquer relacionamento mais próximo – movida, quiçá, pelo “dever da no-
tícia” –, em busca de algo escondido. Um exemplo: a “socialite” Tereza Souza Campos,
escolhida não por haver sido eleita a “mulher mais elegante”, e sim porque “não simpa-
tizava com ela”21 (e, desse modo, busca arrancar-lhe o “lado humano” por trás das grifes).
O posicionamento “em primeira pessoa” da autora nessas entrevistas poderia ser
interpretado como um pendor para o new journalism.22 O passado de Clarice na im-
prensa, no entanto, vem negar essa hipótese. O mais provável é que, ao assumir o lugar
de entrevistadora, ela estivesse, mais uma vez, atuando intuitivamente – da mesma for-
ma que o fazia em sua produção literária.
Clarice Lispector, em definitivo, não consta do rol dos “jornalistas e escritores”:
sua verdadeira carreira desenvolveu-se na ficção. Mas é impossível ignorar a freqüência
com que o trabalho na imprensa, ainda que circunstancial, ocupou-a – no fim das con-
tas, sempre a palavra – até cerca de dois meses antes de morrer (sua última colaboração,
também como entrevistadora, foi para Fatos e Fotos Gente, outra revista semanal do gru-
po Bloch, para a qual escreveria, ainda que sem a mesma regularidade, entre dezembro
de 1976 e outubro de 1977). E, acima de tudo, é relevante notar como essas incursões
revelam a autora – às vezes de maneira mais eficiente do que quando ela estava do ou-
tro lado do gravador.

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NOTAS

1 “As três experiências”, crônica publicada no Jornal do Brasil em 11.05.68. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 101-102.
2 Não foi na imprensa que a autora encontrou seu primeiro emprego; nesse campo, no entanto, deu início a uma carreira profissional. An-
tes, havia sido professora particular – de português e matemática –, trabalhara no escritório de um advogado e num laboratório, sempre
por pouco tempo. Já, então, realizava traduções, outra atividade que a acompanharia por toda a vida (Cf. FERREIRA, Teresa Cristina Mon-
tero, Eu sou uma pergunta – Uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 62-3 e 67).
3 Cf. NUNES, Aparecida Maria. “Páginas femininas de Clarice Lispector”, tese de doutorado em literatura brasileira, apresentada junto ao
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em
junho de 1997, sob orientação de Nádia Battella Gotlib, p. 13. Apesar de muitos dos contos da escritora terem aparecido primeiro em jor-
nais e revistas, antes de ganharem a publicação em livro, aqui deixaremos de abordar esse tipo de presença da ficcionista na imprensa, pois
entendemos que ela é fundamentalmente distinta da atividade jornalística em si, exercida em paralelo ao longo de toda sua trajetória lite-
rária. Neste encarte trataremos da atuação de Clarice como repórter/entrevistadora, colunista feminina e autora de crônicas. Pela mesma
razão, escolhemos não mencionar no presente espaço a coluna “Children’s Corner”, que a escritora assinaria na revista Senhor, em 1962, a
qual se compôs sobretudo de textos de caráter ficcional, aparecidos dois anos depois no volume A legião estrangeira. O trabalho acadêmi-
co de Aparecida Maria Nunes centra-se na atuação de Clarice Lispector como autora de colunas femininas – e, desse modo, foi a princi-
pal fonte para tratarmos aqui do tema.
4 A própria Clarice rememoraria tal opinião, tanto em entrevistas como na crônica “O grupo”, publicada no Jornal do Brasil em 17 de fe-
vereiro de 1973 (A descoberta do mundo, p. 451).
5 É Teresa Cristina Montero Ferreira (op. cit., p. 80) quem traça paralelos entre as observações feitas pela autora no referido artigo e posi-
cionamentos de Raskólnikof, protagonista de Crime e castigo. A comparação é pertinente, sobretudo se levarmos em conta que a leitura
desse romance de Dostoiévski, como diria a própria ficcionista, a impressionara a ponto de causar-lhe febre.
6 Apud FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Op. cit., p. 76.
7 Loc. cit.
8 Há divergências sobre a grafia do nome da colunista – nas próprias páginas femininas, por vezes apareceria com “s”, e noutras, com “z”.
9 Da Condessa de Noailles, a colunista traduziu um texto (não titulado) de Le livre de ma vie (O livro de minha vida). De Mansfield, o con-
to “At the Boy”. Nos dois exemplos, os textos saíram com o nome das autoras como título, sendo o crédito incluído em um parêntese no
final do quadro. Já no caso de Woolf, Clarice não traduziu diretamente, mas sim escreveu uma espécie de crônica, retomando uma passa-
gem de Um teto todo seu. Tal livro (muito adotado nos estudos feministas) foi publicado em 1929, a partir de conferências que a escritora
inglesa fizera em instituições de ensino para mulheres. O trecho que inspirou a brasileira é um exercício sobre o que teria acontecido a uma
eventual irmã de William Shakespeare, que fosse tão brilhante como o dramaturgo e poeta, em virtude das limitações sociais impostas às
mulheres. O texto publicado na coluna chamou-se “A irmã de Shakespeare”.
10 Cf. NUNES, Aparecida Maria. Op. cit., pp. 128-129.
11 Aparecida Maria Nunes, em sua tese, apresenta o contrato em que a Pond’s estabelece a estratégia para a página feminina, além de uma
proposta de trabalho elaborada pela escritora para o periódico, de uma coluna semanal, “como foi sugerido”. A empresa cosmética deter-
mina o nome que deverá ter a colunista e até propõe exemplos – quase literalmente aproveitados – de como tal propaganda deveria ocor-
rer. Op. cit., pp. 143-148.
12 Cf. NUNES, Aparecida Maria. Op. cit., p. 160.
13 Ibidem, p. 182.
14 Cf. NUNES, Aparecida Maria. Op. cit., p. 188.
15 Em 1967, a ficcionista lançou, ainda, O mistério do coelho pensante, escrito quando morava nos EUA, em inglês – a pedido de seu filho menor,
Paulo –, e traduzido por ela mesma, atendendo a uma solicitação da José Álvaro Editor, que lhe encomendara um volume para crianças.
16 A qual, por sua vez, a partir de abril de 1969, seria republicada no Correio do Povo, de Porto Alegre. Em 1977, a escritora também assina-
ria crônicas no jornal carioca Última Hora, muitas vezes republicando textos feitos para o JB.
17 Op. cit., p. 239.
18 Talvez não por acaso tenha sido escolhida essa expressão para intitular a coletânea de entrevistas publicadas na Manchete. De corpo inteiro,
o livro, saiu pela primeira vez em 1975 (Rio de Janeiro: Artenova).
19 De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 39.
20 Loc. cit.
21 De corpo inteiro, p. 147.
22 Também conhecido como “jornalismo literário”, o gênero surgiu na imprensa norte-americana nos anos 50, caracterizando-se por privile-
giar o tratamento do texto sobre a objetividade; nele, o jornalista poderia e deveria aparecer. A corrente é representada, entre outros, por
Truman Capote (cuja famosa reportagem sobre uma chacina no Kansas, vertida em livro em 1966 – A sangue frio –, o coroou como es-
critor, daí porque se fala também em romance de não-ficção quando há referência ao new journalism) e teve acolhida sobretudo nas revis-
tas New Yorker e Esquire. Ainda na década de 60, a grande imprensa brasileira explorou o gênero, nas páginas do Jornal da Tarde e da re-
vista Realidade.

11
Encarte da edição especial dos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA,
números 17 e 18 (dez. 04), dedicada a Clarice Lispector.

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