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COR COMO SÍMBOLO DE CLASSIFICAÇÃO

SOCIAL (*).

VERENA MARTINEZ-ALIER

"Os Europeus e seus descententes nascidos na América não


podem resistir por muito tempo ao calor escaldante dos trópicos.
A morte prematura de tantos jovens que vêm à América somente
para cavar suas sepulturas oferece prova suficiente deste lamen-
tavel fato. Os negros africanos ou nascidos na América são os
únicos que estão aptos a suportar a constante fadiga sob este cli-
ma abrasador que é semelhante ao deles, somente eles, pela espes-
sura de sua pele e por sua tez acostumada às rgiões equinociais
e aos rigores de todas as estações" (Honorato Bernard de Cha-
teausalins, El Vademecum de los Hacendados Cubanos. Havana,
1854).
"... o proletariado branco trata a classe de cor numa situa-
ção de igualdade" . (Declaração de um funcionário do governo
local feito por volta de 1850) .

O ponto básico que desejo focalizar aqui é o de que preconceito


racial e discriminação são fatos determinados não física, mas social-
mente. Peculiaridades físicas são, em si mesmas, neutras. Não im-
plicam, como tais, em desigualdade . Isto é verdade tanto para dife-
renças raciais como sexuais. O que faz o citado apologista da escra-
vidão é apenas exagerar diferenças físicas para fins sociais. Em ou-
tros termos, "raça" não é mais que um símbolo útil, usado para en-
fatizar e legitimar outras divisões na estrutura social.
Cuba e Porto Rico foram ás últimas colônias espanholas na
América. E Cuba foi, juntamente com o BraSil, o último reduto da

(*) . — Tradução do inglês, devidamente autorizada, por Maria Cristina


Godoy Oliveira e José Luiz dos Santos (Nota da Redação).
— 454 —

escravidão. Em razão do declínio econômico das Índias Ocidentais


Britânicas e da revolução haitiana, em fins do século XVIII, Cuba
experimentou um surto econômico que a transformou em poucas dé-
cadas, no primeiro produtor de açúcar para o mercado mundial. A
emergência de uma economia de plantation teve dois efeitos interde-
pendentes: levou a uma demanda sempre crescente de trabalho escra-
vo e, consequentemente à introdução maciça dos mesmos, e a uma
simultânea e perceptível deterioração das relações raciais.

COR REAL E COR LEGAL .


Idealmente, a sociedade cubana do século XIX dividia-se em
dois grandes grupos (1), o de origem européia e o de origem africa-
na, tendo por critério de distinção a aparência física . Mas a imple-
mentação do fenótipo como princípio de clasificação social tinha-se
tornado, até essa época, um tanto complexa . Havia-se dado um alto
grau de miscigenação, que apagara significativamente as fronteiras vi-
síveis dos grupos raciais . Este processo de crescente indefinição dos
atributos raciais derivou um momentum adicional da poderosa e sem-
pre presente aspiração de parte da população de cor a desfazer-se de
seu status social inferior aparentmente determinado pela raça, desfa-
zendo-se de seus atributos físicos típicos .
Um decreto real de 1788 revela uma aguda percepção dos pro-
blemas de segregar a população segundo linhas raciais bem como de
suas causas:
" ... a dificuldade em implementar (a) Pragmática Real sobre
casamento em vista das várias castas de povo ... e da mistura

(1) . — Já em fins do século XVIII uma legislação reduzindo a liberdade


de casamento havia sido aprovada pela Espanha. E em 1805, em resposta a
pressões das colônias, foi promulgada uma lei tornando a licença governamental
um requisito formal para os brancos que desejassem intercasar com pessoas de
cor. Os termos desta lei eram equívocos. Não ficava inteiramente claro se
esta estipulação se aplicava apenas à nobreza ou a todos os brancos indepen-
dentes de seus status sociais. Com efeito, a interpretação e a implementação
da lei variaram através do século, em resposta direta às condições de mudança
rocio-econômica e política da Ilha. José Maria Zamora y Coronado, Biblio-
grafia de Legislação Ultramarina em forma de Dicionário Alfabético. Madrid,
1845. Real Cédula de 15 de outubro de 1805 acerca de los matrimonios que
personas de conocida nobleza pretendan contraer com las de castas de negros y
mulatos; Joaquín Rodriguez San Pedro, Legislácion ultramarina, concordada y
anotada. Madrid, 1868 p. 531, Nota de Rodapé. O volume do material em-
pregado neste artigo foi tomado aos processos surgidos desta legislação, mantidos
no Archivo Nacional de Cuba em Havana. Estes requerimentos por uma li-
cença para intercasamento com pessoas de cor contém tanto as razões dos re-
querentes brancos para desejarem tal casamento, como relatórios de funcioná-
rios, sacerdotes e vizinhos respeitáveis acerca de sua adequação .
---• 455 —

fatal de europeus com os nativos e os negros... resulta o fato de


que os que provém dessas misturas, a fim de ocultar seus defeitos
tentam registrar seus batismos nos livros para espanhóis, e apa-
gam por meios repreensiveis a informação sobre sua origem, justi-
ficando depois facilmente e com a ajuda de testemunhas, que eles
são considerados brancos ... . o que causa aflição àqueles vassa-
los que são verdadeiramente brancos e não podem evitar casamen-
tos entre suas famílias e os que sendo mestiços, pretendem o con-
trário" (2) .

Seguramente, a diferença entre ser "considerado branco" e ser


"verdadeiramente branco" não era a de cor física . Também em Cuba
no século XIX, a aparência física tornou-se bastante enganosa com
relação à origem racial de uma pessoa. Frequentemente era difícil,
senão impossível, perceber qualquer distinção física entre uma pessoa
de origem espanhola e uma de origem parcialmente africana. Pichar-
do, ent seu Dicionário provincial casi razonado de voces y frases cuba-
nas, publicado pela primeira vez em 1836, dá a seguinte definição da
palavra triguefio:
".A pessoa de cor ligeiramente mais escura, ou semelhante à
do trigo, da mesma forma que a pessoa de cor mais clara, leitosa,
com um tom rosado é chamada branca. Num contexto racial, a
palavra branco é usada mesmo se a pessoa é triguerza, a fim de
diferenciá-la do negro ou mulato, embora haja alguns destes últi-
mos que são mais brancos do que muito dos da raça branca" (3) .

. — Richard Konetzke (ed.), Colección de documentos para la his-


toria dela formación social de hispanoamérica, 1493-1810. Madrid, 1953-1962.
A partir de agora (DFS) . III: 2, p. 625. (os itálicos são meus) .
. — Esteban Pichardo, Pichardo Novíssimo o Diccionario Provincial
casi razonado de voces y frases cubanas. O seguinte caso exemplifica bem o
problema da classificação social pela aparência física, numa situação de mis-
cegenação: "Tanto quanto ele pode ver, a resolução deste caso depende de
que Nicolas, pai do suplicante se apresente, a quem V. M. parece desejar ver
pessoalmente, para deduzir de seu semblante se ele é pardo ou não. Material-
mente falando, cor é um acidente, pois, como mostra a experiência, muitos
indivíduos da mais distinta e clara origem assemelham-se e poderiam ser toma-
dos por pardos e, reciprocamente, muitos daqueles cujos pais de um ou de
outro lado vieram no bojo de um navio da costa da Africa parecem, por suas
características, semblantes e pele branca, ser de origem branca. Assim, embora
Nicolas Almanza, pai do referente, tenha cor avermelhada, isto não significa
que a avó do referente, a parda Ana de Ayala, deixe de ser sua mãe, nascida,
batizada e reputada como parda na aldei de.. Gu.lnabacoa... Mesmo que seu
pai tivesse uma pele branca e rosada o cabelo crespo e áspero e o nariz largo
e grosso, aliados a outras circunstâncias, fazem dele um verdadeiro pardo.
Archivo General de lndias (a partir de agora (A. G. I. ), Capitanía General
de la Isla de Cuba. Leg. 1696.
— 456 —

Os processos sobre casamento inter-racial, nos quais se


baseou esta análise, contem numerosas alusões à avaliação e ao
uso da aparência física como um critério de classificação social, e
suas complexidades . Assim, um vizinho, em seu relato sobre um ca-
sal misto sugere a possível ausência de diferenças físicas entre pessoas
de origem racial diversa:
"ela é uma parda criola de Santiago de Cuba que pode passar
por branca fora deste país e que é inclusive de uma cor melhor
que seu pretendente (que é de origem espanhola)" (4).

Este não é, certamente, um caso isolado . De uma outra jovem


disseram que
"embora ela diga que é mulata, ela é de cor clara" (5),

e ainda de outra que,


"embora a noiva dele seja tida como pertencente à classe
parda sua aparência o contradiz" (6).

Finalmente, outra jovem é descrita como sendo


"daquelas pardas que podem nesta aldeia e mesmo em outros
lugares passar por branca" (7),

e a opinião de um funcionário sobre outra parda é de que


"ela não tem má aparência, (sendo) de cor branca" (8).

As dificuldades envolvidas na estratificação social segundo li-


nhas raciais em uma sociedade já miscigenada emergem particular-
mente claras no caso de crianças 'abandonadas. Por decreto real, os
abandonados eram de "sangue puro" . A imposição desta lei nas pos-
sessões ultramarinas colocou muitos problemas

— Archivo Nacional de Cuba, Gobierno Civil (a partir de agora


A. N. C. Gob. Sup. Civ.) Leg. 922/32149.
— A. N. C. Gob. Civ. Leg. 893/30306.
— A. N. C. Gob. Civ. Leg. 895/30522.
— A. N. C. Gob. Civ. Leg. 924/32259.
— A. N. C. Gob. Civ. Leg. 923/3229; também Leg. 924/32284.
. — 457—

"devidos à grande variedade de castas" (10) pois esta prer-


rogativa baseava-se, segundo as palavras de um funcionário de
1786, somente numa "ficção ou suposição privilegiada" (11) .

Consequentemente a solicitação de um abandonado do Orfanato


de Havana para que lhe fosse concedido o privilégio de nobreza foi
rejeitada porque
"sabe-se que ele é um abandonado e, portanto na realidade
de origem incerta" (12).

Quando defrontadas com solicitações desta natureza, as autori-


dades, para estabelecer a "realidade", recorriam à cor da pele . Em
1772, o Conselho das índias sugeriu que as autoridades eclesiásticas
das possessões ultramarinas fossem instruidas a
"não dispensar ou ordenar nenhum abandonado que por sua
aparência e sinais bem conhecidos, denote ser mulato ou de quais-
quer outras castas igualmente indecorosas" (13).

Além dis-o a decisão sobre a petição de um homem branco por


consentimento real para seu casamento com uma abandonada foi co-
locada na dependência da cor da noiva,
"indicando se ela era filha de brancos" (14).

Significativo nos dois casos precedentes é o fato de que cor ou


aparência física são concebidos não como atributos conclusivos em
si próprios, mas como meros "signos" externos de uma condição mais
profunda. A qualidade simbólica da aparência física neste contexto
é fortemente percebida, pela jovem branca que rejeitou seu pretenden-
te após já ter concordado em se casar com ele, porque
"sendo considerado de cor, como se diz, ela desistiu de seu
propósito de esposá-lo, pois se acalentara esta idéia foi pelo fato
de ele ter-lhe assegurado, repetidamente, de que era tão branco
quanto ela mesma, ocultando esta circunstância... (ele estava) ten-
tando enganá-la, sob o pretexto de ser branco".

— CDFS, III: 2, D. 612.


— CDFS, III: 1, p. 392.
— CDFS. 1TT: 2. D. 613.
. — CDFS, III: 2, D. 614. (os itálicos são meus).
. — CDFS, III: 1, P. 392.
. — CDFS, III: 2, p. 787.

— 458

Ele deve ter sido de tez muito clara para ter sido capaz de man-
ter oculto o jogo, até ser descoberto que seu certificado de batismo
estava registrado no livro dos pardos (15) . Consequentemente, sua
cor não poderia ser a verdadeira razão para as objeções da moça. Foi
sua cor legal a decisiva neste caso (16) . Em outro exemplo, o jovem
que deseja se casar com uma parda insiste em que
"como sua mãe é branca, ele foi batizado como branco, mas
infelizmente... sua mãe se uniu a um homem de cor, e desta
união resultou o suplicante, cuja aparência física, cabelo crespo
(apasado) e cor escura provam que pertence à classe de cor" .

O funcionário encarregado do caso, no entanto, rejeita a petição


do jovem sob a alegação de que
"confuso e cego pela idéia de que a lei o separa do objeto de
seu amor, ele não hesita em se apresentar a S. M., desdenhando os
direitos e privilégios que possui como homem branco, ao extremo
de não desejar sê-lo, se deste modo pudesse alcançar seu objetivo.
O certificado de batismo apresentado (por eles) é um documento
irrepreensível, certifica que êle é branco e como tal deve ser con-
siderado" (17).

Novamente, a cor legal prevalece sobre a aparência física. Mas


isto não significa que a aparência física não tinha qualquer relevân-
cia . A situação inversa bem pode ocorrer, a aparência física preva-
lecendo sobre a cor legal . Isto é ilustrado por um relatório, afirman-
do que
"eles dizem que são do interior, sua origem é desconhecida
aqui, mas de acordo com sua aparência, ele parece mulato e é
considerado aqui, por muitos, como tal" (18).

— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 924/32292.


— lbidem.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 934/32748. •
— A. •N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 889/29969. Em outro caso
ele é um abandonado e, assim registrado como "aparentemente branco" . Por
isso, as autoridades concluem: "desde que a certidão de batismo do requerente
não estabelece positivamente que ele é branco; se os seres desafortunados que vi-
vem da caridade pública e protegidos por sua bondade tem uma origem que
será eternamente desconhecida com razão Mais que suficiente esta origem
pode ser atribuida tanto à mais alta como à mais baixa fonte, resultado da
união de dois seres de outra raça que a branca, ou descendentes dela em
grau mais ou menos remoto. Se isto é assim, Antonio Nazario Valdes não
pode ser encarado como branco, mesmo se :parece parece sê-lo, e menos ainda se
• houver a mais leve indicação da mistura clandestina das raças, e se ele pró-
prio afirma que é e deseja ser considerado pardo".
— 459 —

E Bacardi, em suas Crônicas de Santiago de Cuba conta sobre


um homem chamado Vidal cuja brancura foi questionada por outro
homem . Ele levou o caso a julgamento e venceu, o que lhe mereceu
a seguinte sátira (19):
Sefíor Vidal, yo bien sé
que es usted blanco en la Audiencia
pero en Dios y en mi conciencia,
medio mulato es usté.

A cor legal era, portanto, uma maneira alternativa de determi-


nar o status racial de uma pessoa, quando sua aparência física não
era um guia inequívoco . Além de oferecer informação sobre o pró-
prio status de um indivíduo, o registro de batismo indicava também
o status racial de seus pais . Mas a cor legal não era um indicador
mais válido sobre a verdadeira origem racial de uma pessoa do que a
aparência física . Embora os párocos, nas possessões ultramarinas es-
panholas, recebessem repetidas instruções no sentido de dispender to-
do esforço para estabelecer acuradamente a origem racial de uma
criança, antes de proceder ao seu batismo e registro (20), esta era
em muitos casos uma tarefa impossível. Como notou um pardo
requerente de uma licença de casamento, e cuja futura noiva ele acre-
ditava estar erradamente registrada como branca,
"tais enganos podem ser notados a cada momento" (21). E
um pai comentou "que os registros de batismo de seus filhos,
alguns estão no livro para brancos e outros no de pardos, de acor-
do com o julgamento dos diversos sacerdotes que os batizavam"
(22).

Da mesma forma num relatório sobre um casal a cujo casamen-


to se opunha um parente distante que se dizia branco, a prática do
registro falso, devida aos persistentes esforços dos de origem africa-
na para se branquearem, é novamente descrita:
"... as certidões de batismo apresentados... não tem qual-
quer valor por falta de consistência... além disso, neste país é
muito comum alguem que de algum modo pareça branco, usar o
Don... sendo também usual que, se um dos pais é branco, o ba-

— Emilio Bacardi y Moreau. Crónicas de. Santiago de Cuba. San-


tiago de Cuba, 1925, p. 459, Vol. II.
— CDFS, III: 2, p. 626.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 889/29978.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 899/30891.
— 460 —

tismo seja anotado sem maiores investigações, no livro para bran-


cos... (no entanto) só posso afirmar que, segundo a opinião de
pessoas eminentes, todos eles são, na verdade, mulatos, com a di-
ferença de que alguns tentam encobrí-lo, enquanto outros não, mas
são respeitáveis e laboriosos" (23).

Geralmente, uniões inter-raciais eram hipergâmicas quanto à cor.


E muitos pais brancos procuravam conferir suas próprias prerrogati-
vas raciais a seus filhos mestiços, omitindo o nome da mãe, de cor,
no registro. Em vários casos é feita referência a este processo parti-
cular de branqueamento:
"o pretendente não é nem branco, nem de distinção, sendo
filho de uma parda conhecida e de um homem branco de baixa
condição; e embora seu batismo tenha sido anotado num dos livros
para espanhóis, isto se fez ocultando o nome da mãe, circunstância
que indica certa malícia" (24).

Se a aparência física era então considerada como um guia insa-


tisfatório e mesmo enganoso, recorria-se à cor legal, utilizando o re-
gistro de batismo, que fornecia informação sobre a genealogia de
uma pessoa e, assim, sobre a aparência física de seus antepassados .
Tanto a referência à aparência física de uma pessoa, bem como à de
seus ancestrais, eram técnicas para determinar sua origem racial e
social. O pai que afirma categoricamente que a noiva de seu filho
"nunca será capaz de deixar a esfera deste povo humilde, em
razão de sua cor na sociedade desta aldeia, mesmo se sua pele
fosse branca e seu cabelo liso" (25),

indica que seus atributos raciais não eram a causa da discriminação,


mas sim o que representavam sua cor ou a de seus antepassados .
No contexto, cor significa descendência africana, mas na visão
de alguns pais brancos e numerosos funcionários, era também,
"a marca da escravidão a que pertenceram os pais" (26).
A opinião de que o preconceito dos brancos cubanos não é um
preconceito contra pessoas de uma aparência física particular, enquan-
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 910/31527; também Leg.
888/29900.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 898/30781.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 893/30297.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 920/32393.
-- 461 —

to tal, parece ser apoiada também pelo' uso do conceito espanhol de


pureza de sangue, que se desenvolveu originalmente como um resul-
tado do esforço por uma integração nacional, através da integração
religiosa, na Espanha do século XVI. Uma vez que ocorrera uma
quantidade substancial de miscigenação, a pureza de sangue era certa-
mente um critério mais rigoroso de classificação do que a aparência
física. Mas aqueles que se haviam tornado fisicamente indiferencia-
dos, poderiam ainda ser tidos como inaceitáveis, em razão da quali-
dade impura de seu sangue. Isto pode explicar porque o conceito de
pureza de sangue, que se tornara amplamente desacreditado na Es-
panha, nos fins do século XVIII, experimentaria uma revivescência
em Cuba.
O ajustamento e o equilíbrio da ordem social em Cuba no sé-
culo XIX requeria a discriminação por razões funcionais. Particular-
mente na opinião daqueles que tinham importantes interesses investi-
dos na escravidão, casamentos inter-raciais deveriam ser restringidos,
senão proibidos abertamente, pois o "equilíbrio" da sociedade o exi-
gia. Dollard, em sua análise sobre a fricção inter-racial nos Estados
do Sul, embora enfatizando em particular o que ele denominou anta-
gonismo "irracional", assinala também a existência de
"hostilidade racional, isto é, intelegível... nascida em defesa
de um dado status ou ordem econômica" (27).

O antagonismo racial dos brancos cubanos pode em parte ser


explicado nestes termos funcionais. O antagonismo não era dirigido
contra a população de cor em razão de sua cor como tal, mas porque
sua cor indicava sua origem escrava . Os escravos e seus descendentes
precisavam ser segregados, no interesse do sistema escravocrata. Ini-
cialmente houve um relacionamento direto entre atributos físicos e es-
cravidão. Todos os escravos eram de tez escura, cabelo crespo, etc.,
todos os não-escravos eram de cor branca, cabelo liso, etc . Nesse mo-
mento a aparência física era realmente um critério efetivo para distin-
guir os escravos dos livres. Isto é, primeiro houve dois, grupos ocupa-
cionalmente distintos, e somente da subordinação necessária de um
ao outro emergiu o fator da aparência física, e especialmente o da cor
da pele, como pretexto para segregação . Em vista de tal interpre-
tação "racional" do racismo cubano, surge imediatamente a questão
de saber por que a população livre de cor era também frequentemente
discriminada . De fato, repetidos esforços foram feitos para prevenir

(27) . — John Dollard. "Hostility and Pear in Social Life" . Social Forces,
17: Citado por Michael Danton. Race Relations, Londres, 1967. p. 294.
— 462 —

o aumento de uma raça mestiça . Eram precisamente os mulatos li-


vres as pessoas
"que precisam ser vigiadas com o maior cuidado"

presumivelmente porque, por seus atributos conflitantes, cor negra


mas status livre, colocavam em risco a consistência do sistema, isso
sem falar no efeito que se supunha terem os casamentos inter-raciais
sobre os escravos
"minando sua aquiescência em seu status (28) .

Por outro lado, no entanto, a legislação sobre casamento inter-


racial parece ter sido posta em vigor com certo grau de indulgência
no caso dos indivíduos de cor livres, precisamente em razão de seu
maior distanciamento da "cor negra e da escravidão" . Nos pareceres
é evidente uma medida de compensação mútua de status. Atributos ra-
ciais poderiam, dentro de certos limites ser contrabalançados por ou-
tras qualificações .

COMPENSAÇÃO MÚTUA DE STATUS.


Como parte das formalidades em conexão com as petições de
casamentos inter-raciais, deveriam ser apresentados relatórios pelas
autoridades locais e pelo sacerdote local sobre a condição social e mo-
ral dos próprios pretendentes e noiva . O propósito básico destes re-
latórios era a avaliação dos dois candidatos em termos de correspon-
dência de seus respectivos status sociais, econômicos e morais, em
vista de seus divergentes pontos de referência étnicos. Nos pareceres
sobre estes relatórios, o processo de compensação mútua de status
torna-se aparente . O mecanismo de compensação parcial está bem
descrito na seguinte decisão das autoridades:
"A constante tendência de pessoas de cor diferente a realizar
casamento esteve sempre em conflito com o sentimento genuino dos
habitantes destas Antilhas e das muitas possessões espanholas; e
têm sido combatida peremptória e legalmente desde 1805... D.
Jorge Barrera, que solicita a permissão de V. M. para esposar
uma mulher de raça diferente, é como ele diz, de condição plebéia,
mas seu certificado de batismo mostra que ele está livre da mis-
tura de castas..., V. M. pode chegar a uma decisão por meio
dos relatórios anteriores que esta lei aconselha e indica. Esta
seção entende que aqueles relatórios... não podem se referir a

(28) . — A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 919/32011.


— 463 —

nenhum outro aspecto senão à condição social de ambos; e, em


particular, à daquele que pertence à raça branca... Se como afir-
ma o requerente, ele é de status humilde, como simples trabalhador
que é, conceder a permissão... seria certamente de importância
e transcendência menores" (29).

Nestes pareceres aparecem os atributos específicos que compen-


savam defeitos ou equilibravam vantagens, em termos de status étni-
co. Dos pais de uma parda se diz que suas
"boas qualidades de honestidade e cristandade lhes proporcio-
naram a mais alta distinção da parte das principais famílias desta
municipalidade, de modo que só lhes falta a cor, como geralmente
se diz, pois todos a quem perguntei, estavam cheios de elogios
para eles, tanto em vista da boa instrução e educação que M. re-
cebeu como quanto à probidade do mestre carpinteiro, seu pai,
enquanto seu pretendente é qualificado como um "indivíduo sem
qualquer qualificação, empregado como carregador de carvão" (30).

Neste caso, pouco se sabe da moça, além do fato de ser parda. O


status do jovem como homem branco, no entanto, é claramente con-
trabalançado por sua baixa ocupação . Apropriadamente, eles obti-
veram a licença requerida; como nota um funcionário
"a diferença racial não é tão marcada, pois embora o preten-
dente seja branco, ele não se inclui entre aqueles desta sociedade
que são de gradação elevada" (30a).

Coerente com esta avaliação diferenciada do status social é o


parecer das autoridades negando a licença ao jovem cujo pai era um
tenente de polícia
"cuja distinção lhe mereçe a maior estima, enquanto que a
noiva era uma parda em todos os quatro lados" (31) .

Como já foi afirmado, a maioria destes casamentos referidos eram


hipergâmicos quanto à cor. Nos casos, entretanto, em que são hipo-
gâmicos, parece que um cuidado ainda maior é tomado no sentido de
que a mulher branca esteja em circunstâncias de completa miséria
Assim, disseram de uma mulher que
(29). — A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 932/32673.
. — A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 890/30044.
(30a.) . — A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 923/32229 (os itálicos são
meus) .
. — A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 901/30941.
— 464 —

"ela parece ser branca, mas de condição muito humilde; sua


conduta foi extremamente repreensível, em virtude da relação ilí-
cita que vinha mantendo com o moreno Jose Joaquim por um pe-
ríodo de 8 anos, causando escândalo público e perseguição pela
polícia" (32).

Eles obtiveram licença para se casar. Pode-se quase dizer que


que torna uma mulher branca inelegível para casamento dentro de
seu próprio grupo, torna-a elegível para casamento além da barreira
racial. Reciprocamente um peso particular é atribuido à honestidade
respeitabilidade da mulher de cor que deseja se casar com um ho-
mem branco .
Outros atributos, além de sua respeitabilidade sexual, poderiam
compensar o status étnico desvantajoso de uma mulher de cor. Do
mesmo modo que pobreza e ocupação humilde poderiam contraba-
lançar o status de um homem branco, ao ponto de torná-lo elegível
para casamento com uma mulher de cor, a posse de riquezas da parte
da família da mulher de cor poderia, às vezes, melhorar suficiente-
mente seu status. Dessa forma, um jovem ex-soldado, sapateiro por
ocupação, desejava se casar com uma parda nascida livre, que é fi-
lha legítima de um capitão da Milícia parda e além disso, um homem
rico, possuidor de propriedades de valor acima de 10.000 pesos . As
autoridades convenientemente acreditam que o casamento
"não pode causar mal algum" (33).

Como já foi assinalado, a aparência física em termos de cor de


pele, qualidade de cabelo e outros traços faciais como lábios, nariz
etc. não era uma categoria absoluta, que dividisse a sociedade cubana
em dois blocos monolíticos de negros e brancos . Mesmo nos censos
nos registros paroquiais era feita uma distinção entre mulatos e ne-
gros e entre os próprios mulatos, distinguidos por variações de tom,
implicando status diferencial. Assim os pareceres sobre casamento
inter-racial também levavam em conta a proximidade do fenótipo do
parceiro de cor ao modelo branco. Um vizinho relata sobre uma jovem:
"na classe dos de cor, ela é considerada das mais respeitáveis,
em razão de sua distância da cor negra e da escravidão e em razão
da boa conduta de seus ancestrais, que é o que confere distinção
nas classes de cor...". Além disso, "seu pai era um hacendado

— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 889/29969.


= A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 891/30118.
— 465 —

e seu irmão foi condecorado por S. M . . . . por serviços prestados


ao. país, aprisionando escravos fugidos".

Estas qualidades marcantes em termos de status social e clare-


,

za de pele, mesmo sendo ela um parda, parecem tê-la tornado digna,


aos olhos das autoridades, até mesmo de união com um homem bran-
co, que

"pertence à classe de distinção, tanto em virtude de seu nas-


cimento, como de seu status social, pois ele foi Tenente do 2 9 Ba-
talhão do Regimento de Infantaria de Havana" (34).

Haviam, portanto, não um, mas vários critérios de estratificação.


O status social de um indivíduo dependia grandemente de sua ori-
gem, mas também de seu desempenho econômico . O prestígio social
não derivava de cada fator individual separadamente, mas era deter-
minado pela combinação de todos . Desvantagens numa escala de ava-
liação poderiam ser compensadas por vantagens em outra . Mas este
processo de compensação operava apenas dentro de certos limites, i. e.,
um moreno rico dificilmente poderia aspirar a se casar algum dia com
uma mulher branca respeitável, nem um nobre poderia sequer pen-
sar em casamento com uma parda. Um grau de consistência era ne-
cessário entre os fatores que conferiam status. No contexto cubano
eram precisamente os brancos de classe baixa e os pardos na' eidos li-
vres os de maior probabilidade para casamento . Estas uniões eram
toleradas não porque houvesse uma medida de identidade étnica en-
tre estas duas categorias, mas porque

"... o proletariado branco trata a classe de cor numa situação


de completa igualdade" (35).

— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 924/32284: de outra parda foi


dito, em aprovação que "tendo 16 anos de idade ela tem boa conduta e uma
educação que é superior à comum na sua classe. As uniões entre as pardas e
os brancos geralmente encontram, da parte dos que são desta raça privilegiada,
a má vontade que é devida a costume, tradição, ansiedade e desilusões de aban-
donos e frequentes dirupções familiares que elas acarretam à sociedade. Mas
se devido às suas qualidades marcantes, algumas pardas deveriam ser encara-
das como merecedoras de esposar um homem branco, certamente nehuma seria
tão merecedora desta honra quanto Luisa Medina". A. N. C. Gob. Sup.
Civ. Leg. 924/32280.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 924/32257.
— 466 —

CASAMENTO ENTRE CHINESES E BRANCOS .

A classificação social dos chineses contribuiu para elucidar pos-


teriormente a natureza da discriminação racial em Cuba no século
XIX. Tendo início em meados de 1840 e como resultado da crescen-
te escassez de trabalhadores, cerca de 100.000 trabalhadores chineses
de Cantão, contratados, foram introduzidos em Cuba, num período
de dez anos aproximadamente. Isso deu origem a agudas dificulda-
des classificatórias . A cor de sua pele era sem dúvida mais clara que
a de muitos espanhóis . Sua cor legal, no entanto, colocava um pro-
blema maior para as autoridades; pois como afirmou um funcionário,
"embora eles sejam considerados brancos, a opinião pública
e o costume colocam-nos numa condição inferior à dos brancos"
(36).

E a Junta de Agricultura, Industria y Comércio de Matanzas em


1864, relatando sobre as maneiras de se moralizarein escravos e chi-
neses, atribuiu o alto número de assassínios de capatazes cometidos pe-
los últimos ao fato de que
"eles (os capatazes) não se convenceram ainda de que os
chineses são homens livres, mas encaram-nos como se de status
igual ou pior que o dos escravos negros" (37).

Além disso, um parecer do Real acuerdo de 1861, referente à


petição de um jovem chinês para que lhe fosse permitido esposar uma
parda livre, que havia sido objetada pelo Síndico local com base em
que havia
"uma tal variedade de raças povoando a Ilha",

favorece este casamento particular, mas com a cláusula de que


"não é possível estabelecer quaisquer regras gerais para futu-
ros casos desta natureza, pois em cada caso as circunstâncias es-
peciais... devem ser levadas em conta" (38).

— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 923-32226.


— A. N. C. Consejo de Administración, Leg. 7/467.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 923/32226.
— 467 —

E' certamente o status racial e ocupacional conflitantes que im-


pede uma clasificação social dos chineses segundo linhas tradicionais;
como notou um funcionário de Cardenas:
"Estes homens estão colocados entre as raças" (39).

Na questão do casamento acima, pode-se argumentar que o sta-


tus livre da moça poderia torná-la elegível também para casamento
com um branco. Em outro exemplo, no entanto, um chinês deseja es-
posar uma mulher parda escrava e, de fato consegue obter a licença
oficial que o pároco — classificando-o como branco — julgava ne-
cessária. A petição foi preenchida em nome do chinês por um vizi-
nho branco, que mais uma vez assinalou que
"na realidade, para a opinião pública o citado chinês não está
no mesmo nível daqueles que são propriamente brancos" (40).

Mas, em outro exemplo ainda, em que um chinês deseja ca -ar


com uma mulher branca, não são levantadas quaisquer objeções pelas
autoridades, pois,
"de acordo com a certidão ele batismo apresentada, ele per-
tence à classe dos brancos" (41).

Até então parecia que os chineses podiam casar livremente com


pessoas de qualquer cor, de uma escrava parda a uma mulher branca.
Sua cor legal parecia até esse momento, altamente ambígua. Conse-
quentemente, e em vista das numerosas dúvidas relacionadas com a
classificação dos chineses para fins de batismo e casamento, o Con-
sejo de Administración colocou o assunto em discussão em 1864. Re-
ferindo se à Ordenanza de Colonos de 1853 e ao Reglamento de Co-
-

lonos de 1854, o Conselho decidiu que os chineses deveriam ser con-


siderados brancos . Para substanciar melhor seu parecer, o Conselho
alegou que
"os índios aos quais os chineses são usualmente assemelhados
foram declarados iguais aos brancos pelo Decreto Real de 12 de
março de 1697, que declara os caciques e principales nobles índios
(chefes e nobres) semelhantes aos hijosdalgo de Castilha, e os
outros índios iguais àqueles de sangue puro de condição comum
na Espanha" (42).

— A. N. C. Consejo de Administración, Leg. 7/467.


— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 925/32318.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 925/32382.
— A. N. C. Consejo de Administración, Leg. 7/487.
— 468 —

Assim, os chineses, como os índios, eram legalmente branCos .


Poder-se-ia esperar, consequentemente, que os chineses requeririam
uma licença oficial para esposar mulheres de cor, segundo o decreto
de 1805. Evidentemente, o Consejo de Administración estava ciente
das inip'icações legais de declarar os chineses brancos. Para enfren-
tar a questão do casamento, estabeleceu, contrariamente à prática
usual, que os chineses estavam isentos dos requerimentos do decreto
de 1805, argumentando astutamente que não era provável que hou-
ves, e nobres entre os chineses vindos a Cuba como trabalhadores con-
tratados (43) . Com relação ao registro de batismo, desde que nenhum
dos pais fosse de cor, as crianças deveriam ser registradas no livro
para brancos.
Não requerendo dos chineses a obtenção de uma licença de casa-
mento, mesmo se desejassem esposar uma mulher de cor, as autori-
dades admitiam suas profundas dúvidas quanto ao verdadeiro status
racial dos chineses. Em última análise, o parecer do Consejo de Ad-
ministración de que os chineses estavam isentos do requerimento for-
mal de uma licença do casamento, qualquer que fosse a cor de seu
cônjuge, significava ou que eles não possuiam cor legal alguma, ou
que as possuiam todas . Na medida em que o status racial de uma pes-
soa com relação à popu'ação de cor era determinado pelo fato de ele
ter ou não requerido uma licença de casamento o tenente governador
de Colón estava certo ao dizer do casamento entre um chinês e uma
moça branca que
"a raça chinesa é assimilada à raça negra para efeitos do
Decreto Real de 15 de outubro de 1805, e as idéias existentes quan-

(43) . — Faz-se referência aqui à versão menos restritiva do decreto de


1805 sobre casamento inter-racial, segundo qual "aquelas pessoas de conhecida
nobreza e conhecida pureza de sangue que tenham atingido sua maioridade e
pretendam se casar com um membro das citadas castas (negros, mulatos, e
outros) (devem) recorrer aos Vice-Reis, Presidentes, Audiências dos Domínios
que concederão ou negarão a licença correspondente, sem a qual o casamento
de pessoas de conhecida nobreza e pureza de sangue com negros, mulatos, a
as outras castas não podem ser contratados, mesmo se ambos são de idade"
José Maria Zamora y Coronado. Op. cit. Se tomado literalmente, poderia ser
sustentado que "este decreto se aplica exclusivamente aos nobres" . Em 1810,
entretanto, o vice-Rei do México afirmou enfaticamente que "este decreto de-
veria ser interpretado para se aplicar às pessoas de conhecida nobreza ou co-
nhecida pureza de sangue", isto é a todos os brancos quaisquer que fossem
seus status sociais. Joaquin Rodrigues San Pedro, op. cit. Para uma discussão
detalhada das interpretações variáveis do decreto, até sua abrogação em 1881 e
o esclarecimento que isso fornece sobre as condições de mudança socio-econô-
mica e política da Ilha, ver minha tese de doutoramento. Colour, Class and
Marriage in 19th Century Cuba, University of Oxford, Trinity Term 1970.
— 469 —

do este decreto foi promulgado não mudaram totalmente, pois


embora esta nova raça não tenha sido introduzida na Ilha nessa
ocasião, e embora se acredite ser mais pura que a raça , africana,
não deixa de ser encarada com certa aversão pelos brancos. A
grande maioria dos brancos rejeita este tipo de casamento e parece
apenas justo respeitar suas opiniões, e se se quiser suas ansiedades,
fruto da organização social do país" (44).

Não necessitando de uma licença para esposar uma pessoa de


cor, os chineses automaticamente se tornaram uma parte do grupo
de inter-casamento de cor. Presumivelmente, as autoridades estavam
cientes dos perigos implícitos na classificação ambígua dos chineres,
pois a lei de que eles fossem registrados como brancos se justificava
em termos de que
"eles não podem se sentir rebaixados de seu legítimo status
de brancos..." (45).

A natureza problemática do trabalho escravo numa época de rá-


pida expansão e mecanização da indústria do açúcar causou, então,
certa ansiedade. A escolha do trabalhador contratado em preferência ao
trabalho escravo foi certamente influenciada por esta consideração
além da crescente escassez deste último . Era, portanto, uma questão
de sentido político e econômico prevenir uma degradação dos chine-
ses ao nível dos escravos, e assim minar os benefícios esperados de
seu status. Nos cinco casos registrados em que chineses tentaram se
casar com mulheres de cor, as autoridades centrais não levantaram
objeção, à exceção de um funcionário, cuja oposição por razões fun-
cionais foi, entretanto, rejeitada em favor da opinião do sacerdote de
que
"é preferivel que eles vivam unidos pelo sagrado laço do ma-
trimônio, do que • escandalosamente em concubinato e em perma-
nente pecado mortal",

e do argumento dos plantadores de açúcar progressistas de que


"a desvantagem não seria grande, pois, se a grande necessida-
de do país é atrair colonos, este objetivo não pode ser atingido de
modo melhor do que autorizando uniões legítimas" (46) .

— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 930/32587.


— A. N. C. Consejo de Administración, Leg. 7/487.
— A. N. C. Gob. Sup. Civ. Leg. 932/32226.
— 470 —

Em princípio, os trabalhadores chineses contratados tinham duas


escolhas quando do término de seu contrato: ou deixar o país com
seus próprios recursos ou renovar o contrato . Mesmo que acaricias-
sem talvez um desejo de voltar a seu próprio país, sob suas condições
de trabalho eles raramente conseguiam os meios para fazê-lo. Assim,
não era necessário o laço de casamento para evitar que deixassem
Cuba . Presumivelmente, sentia-se que era preferível criar um prole-
tariado misturando chineses e negros, do que misturando negros e
braricos.

CONCLUSÃO.

Por volta do século XIX, tornara-se bem estabelecido que ori-


gem africana implicava escravidão . A economia cubana, movida a
trabalho escravo, perpetuou o preconceito de cor como um ardil con-
vencional para justificar a escravidão . O critério escolhido para clas-
sificar a população hierarquicamente era a aparência física e em par-
ticular a cor da pele, sendo esta, inicialmente, a mais consistente e
também a diferença mais saliente entre os dois grupos . Enquanto es-
tes dois grupos se fecharam inteiramente em si próprios a cor da pele
como princípio de classificação social era inequívoca e portanto mui-
to bem sucedida. Mas com o aparecimento de um grupo de cor livre
e com a progressiva miscigenação, a cor como marca distintiva do
status ocupacional de uma pessoa se tornou cada vez mais equívoca
e incerta. Típicos da natureza ambígua de seus status eram os ne-
gros livres e os mulatos escravos e livres. Como escreve M. Douglas
"... sempre que os limites são precários vemos que idéias de
poluição vêm em seu suporte" (47) .

Com efeito, no caso cubano, logo que os atributos raciais se tor-


naram nebulosos, recorreu-se à noção mais abstrata de "pureza de

(47) . — Mary Douglas, Purity and Danger. An analysis of concepts of


pollution and taboo. Londres, 1966. p. 139. Com relação à escolha de atri-
butos físicos claramente discerníveis como critérios de classificação social, é
interessante notar que, na ausência deles, os judeus da Espanha após a Recon-
quista foram solicitados a usar retalhos amarelos como marca distintiva, assim
como os judeus na Alemanha Nazista. Embora a discriminação fosse, em
ambos os casos, apoiada em termos raciais, em vista da ausência geral de
diferenças raciais objetivas recorreu-se a símbolos adicionais para expressar
a almejada diferença.
— 471 —

sangue", que já havia sido aplicada na Espanha durante três séculos,


ou a seu equivalente, a cor legal (48) .
Se o status dos mulatos era com frequência a fonte de incoerên-
cia mais ainda o era o dos chineses . O mulato era o produto da mis-
tura dos dois grupos e, instituindo o princípio da hipodescendência,
segundo o qual é sempre o pai ou a mãe de status inferior que deter-
mina o da prole de uma união mista, o problema envolvido em sua
classificação estava, ao menos em teoria, resolvido . Os chineses eram,
entretanto, elementos estranhos, para os quais o sistema não havia
estipulado cláusulas . Uma terceira categoria especial poderia ter sido
criada para dar conta dos chineses. Mas tal categoria adicional teria
diminuido a clareza e a viabilidade do sistema em termos da intera-
ção entre as diferentes categorias, devido ao efeito antes integrativo
que segregativo de uma categoria intermediária.
No caso dos índios, dos quais dificilmente haveria re-
manescentes em Cuba pelo século XIX, a política oficial revelava
um grau de incoerência que, no entanto, nunca atingiu o ponto de
uma admitida incapacidade do sistema em acomodar uma categoria de
pessoas, como era o caso com os chineses . Os índios foram Fempre
considerados legalmente brancos . A cor de sua pele, no entanto, era
provavelmente mais próxima a do pardo e seu status social em rela-
ção à renda variava de médio a desesperador, no caso dos poucos
trabalhadores yucatecos contratados, introduzidos em Cuba no início
do século .
Os chineses eram então particularmente, um problema classifi-
catório . Pois enquanto eles aproximavam-se fisicamente dos brancos
— ocupacionalmente eram, em geral como se fossem de origem africa-
na . A cor como símbolo de uma rígida divisão de trabalho tornou-se
disfuncional no caso deles .

(48) . — Em contraste, Van den Berghe sustenta, em relação ao México


que "paradoxalmente, a verdadeira brutalidade com que os espanhóis aniquila-
ram a civilização indígena... a insensibilidade com que exerceram seu droit
de cuissage sobre as mulheres conquistadas. tudo contribuiu para a homoge-
neização cultural e genética da população... (e) levou, a longo prazo, ao
sincretismo relativamente harmonioso do México moderno" . Race and Racism.
A Comparative Perspective. New York, 1967, p. 57. Em Cuba do século
XIX, no entanto, foi precisamente quando a "homogeneização genética" avan-
çara mais longe que a atmosfera do país foi mais segregacionista, na década
de 1860 e no começo da década de 1870. Enquanto o grau de tolerância racial
pode em parte ser influenciada pelas necessidade demográficas de miscigenação,
a ocorrência desta miscigenação e suas consequências genéticas não são necessà-
riamente produtores de tolerância.
— 472 —

Assim, o contexto cubano, pode bem ser tomado como exemplo


para explicar racismo como pretexto para exploração econômica, ain-
da mais que se pode detectar uma conexão entre circunstâncias eco-
nômicas em mudança e intensidade de discriminação . Porém a Cuba
do século XIX não pode ser tratada como um isolado histórico e geo-
gráfico . A tradição cultural da Espanha, que durante três séculos
esposara a "pureza de" sangue" como o requisito essencial de hispa-
nidade, deve também ser levada em consideração . Considerar a es-
cravidão, em seus aspectos econômicos e políticos como a única cau-
sa de racismo seria por demais simples . Além disso, a. persistência
de uma certa consciência racial em Cuba, não apenas após a abolição
da escravatura, mas ainda depois da Revolução de 1959, com sua
doutrina equa1itária, levanta dúvidas sobre tal interpretação mesmo
que se considere um ducompasso de tempo devido à socialização .
Eu antes sugeriria que raça apresenta-se frequentemente como um sím-
bolo para outras divisões — a divisão do trabalho na Cuba do século
XIX, a oposição religiosa na Espanha, do século XV ao século XVIII.
Em outras palavras, a divisão assimétrica da sociedade resultante de
uma variedade de fatores é muitas vezes enfatizada e justificada em
termos de distinções raciais .
Assinalando a natureza simbólica da raça, quero desafiar a vi-
são de tais estudiosos das relações raciais como, Hoetink e G. Freyre,
que tentam, explicar a. diferença entre as duas variantes americanas de
relações raciais em termos das diferenças determinadas culturalmen-
te na "imagem do modelo somático" ou "miscibilidade" dos cidadãos
dos respectivos poderes coloniais . Discordo também daqueles que
tratam raça como um critério distinto de estratificação social e, atri-
buindo-lhe uma falsa permanência, equacionam relações raciais com
relações de casta, ao invés de relações de classe (50) . O princípio da
classificação social tanto no sistema de castas quanto nas sociedades
multi-raciais americanas é o mesmo, ou seja a hereditariedade . O que
os distingue, no entanto, é a noção de "branqueamento" comum em
Cuba, que é análoga à de "passagem" nos Estados Unidos, nascidas
da ausência de consenso sobre a legitimidade do sistema nestes dois
contextos . Como afirma Dumont, raça e casta são conceitos mutua-
mente exclusivos (51).

— E. Hostink, The Two Variants of Caribbean Race Relations.


Oxford, 1967, G. Freyre, The Masters and the Slaves. Nova York, 1946.
— Cf. Pierre L. van den Berghe. Op. cit. Kingsley Davis. "In-
termarriage in Caste-society". American Anthropologist. N9 43, 1941. Classe
é usada aqui em seu sentido mais amplo.
— Louis Dumont, Homo Hierarchicus. Essai sur le système des
castes Paris, 1966, p. 31.

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