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Maria de Fátima Dias

Um estudo sobre a teoria winnicottiana da sexualidade

Doutorado em Psicologia Clínica

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

SÃO PAULO

2005
2

Maria de Fátima Dias

Um estudo sobre a teoria winnicottiana da sexualidade

Doutorado em Psicologia Clínica

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,


como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Psicologia Clínica sob a
orientação do Prof. Doutor Zeljko Loparic.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo

2005
3

Maria de Fátima Dias

Um estudo sobre a teoria winnicottiana da sexualidade

Doutorado em Psicologia Clínica

__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
__________________________________________________________
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


São Paulo
2005
4

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos


e científicos a reprodução total ou parcial desta
tese por processos de fotocopiadoras ou
eletrônicos, desde que citadas as fontes.
5

Ao meu filho Bráulio Dias Lopes de Almeida


Ao meu marido Ênio Brito Pinto
6

Agradecimentos

Ao Prof. Dr. Zeljko Loparic, com quem pude contar sempre, pela orientação deste trabalho. A ele
expresso minha admiração e respeito.

Aos doutores membros da Banca Examinadora, que me honraram com a leitura desta tese.

À Dra Elsa Oliveira Dias, pelo cuidado e generosidade que a caracterizam.

À Dra Marília Ancona-Lopez, pelo estímulo constante.

Ao Dr. Leopoldo Fulgencio, pela cuidadosa orientação nos textos de Freud.

Ao CNPQ, que possibilitou este estudo.

Aos colegas do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas, do Programa de


Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, pelo convívio gratificante durante
todos esses anos.

À Vera de Souza da Costa Brito (em memória), pela presença iluminadora.

À minha família, pelas alegrias e crescimento compartilhados.

Aos amigos Ariadne Alvarenga de Moraes, Conceição Serralha de Araújo, Maria Inês Aubert,
Maria José Ribeiro, Cláudia Fulgencio, Roseana Moraes Garcia, Flávio Del Matto Faria, Vilma
Aparecida de Souza Gomes, Walter Gustavo Moure, Hélio Salles Gentil, toda a minha gratidão.

Ao Dr. Rubens Kara José e ao Dr. Rômulo de Mello Silva.

Aos meus pacientes.


7

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi realizar um estudo sobre a teoria winnicottiana da sexualidade. A
partir de uma prospecção na obra de Winnicott, buscou-se apresentar a teoria do amadurecimento
humano, enfatizando a importância dos cuidados ambientais na constituição da sexualidade
humana, notadamente nos primórdios da vida do ser humano. Apontou-se a constituição da
sexualidade como decorrência do processo de amadurecimento pessoal. O trabalho aborda a
constituição da sexualidade no interior do processo de amadurecimento pessoal, apontando os
aspectos presentes nos estágios de dependência absoluta e dependência relativa, até a fase de
independência relativa.

O ponto de partida deste estudo foi o da teoria da sexualidade de Freud. A partir dos elementos da
teoria freudiana da sexualidade, foram destacados os elementos que compõem a teoria
winnicottiana da sexualidade, delimitando as diferenças teóricas entre os dois autores.

Este estudo aponta as críticas de Winnicott à teoria freudiana da sexualidade, salientando o


desacordo desse autor em relação ao pensamento freudiano. Também aponta as críticas de alguns
outros autores sobre os componentes da teoria freudiana da sexualidade.

Esta pesquisa mostrou que Winnicott construiu uma teoria da sexualidade totalmente diferente da
teoria proposta por Freud, o que indica uma nova perspectiva para o estudo da sexualidade
humana: a impossibilidade de se compreender a sexualidade a partir de elementos especulativos.
Além disso, este estudo indica que o processo de amadurecimento humano não é conduzido pela
sexualidade: Winnicott abandona uma perspectiva libidinal em favor de uma abordagem
desenvolvimental, a qual inclui elementos sexuais e não-sexuais.

Finalmente, a partir de uma reflexão sobre o pensamento winnicottiano acerca da teoria da


sexualidade, foram apontados alguns aspectos a serem considerados nas questões da sexualidade
humana, especialmente na forma como surgem na clínica.
8

ABSTRACT

The purpose of this research was to perform a study about Winnicott´s sexuality theory.
From a deeper view of Winnicott´s work, a human maturity theory is presented, stressing
the importance of environmental cares to the development of human sexuality, specially in
the first years of the human being. The development of sexuality is stressed as a result of
the personal maturity process. This paper addresses the development of sexuality from the
inside of the personal maturity process, stressing the aspects presents in the stages of
absolute dependency and relative dependency, until the relative independence stage.

The starting point of this research was Freud´s sexuality theory. With Freud´s sexuality
theory elements, it is hereby stressed the elements that compose Winnicott´s sexuality
theory, setting boundaries on the theorical differences between the two authors.

This paper reveals Winnicott´s criticism to Freud´s sexuality theory, stressing the
disagreement of this author with regards to Freud´s thought. It also discloses the criticism
of some other authors with regards to Freud´s sexuality theory components.

This research discloses that Winnicott organized a sexuality theory completely different
from the theory proposed by Freud, which reveals a new perspective for the study of human
sexuality: the impossibility of understanding sexuality from theorical elements. Besides,
this research shows that human maturity process is not conducted by sexuality: Winnicott
abandons the libido perspective in favor of a development approach, which includes both
sexual and non-sexual elements.

Finally, considering Winnicott´s thought regarding the sexuality theory, some aspects were
stressed to be considered in the human sexuality framework, specially in the form how they
appear at the clinical practice.
9

SUMÁRIO
Introdução 01
1. Tema deste estudo 01
2. A escolha do tema 03
3. Objetivos 07
4. O método de pesquisa 08
5. Apresentação dos capítulos 09
6. Conclusão 11
Capítulo I: A teoria freudiana da sexualidade 12
Introdução 12
1. O conceito freudiano de sexualidade 12
2. A sexualidade e a teoria do apoio 21
3. A teoria do desenvolvimento da sexualidade pensada em termos do tipo
de objeto
22
4. A teoria do desenvolvimento pensada em termos do tipo de relação com o
objeto
26
5. Princípios e conceitos gerais utilizados por Freud para a elaboração da
teoria da sexualidade
43
a) Elementos empíricos 47
b) Elementos especulativos 51
6. A noção de masculino e feminino em Freud e a constituição da
sexualidade
65
Capítulo II: Críticas de Winnicott à teoria freudiana da sexualidade 81
Introdução 81
1. Crítica ao pensamento freudiano 85
2. Crítica à idéia de zona erógena 88
3. Crítica às relações objetais 91
4. Crítica ao complexo de Édipo 100
5. Crítica ao conceito de princípio do prazer 103
6. Crítica à metapsicologia 113
Capítulo III: Críticas de outros autores à teoria freudiana da
sexualidade, a partir da obra de Winnicott 133
Introdução 133
10

1. Crítica à idéia de sexualidade infantil como um fenômeno normal 133


2. Crítica à idéia de relação objetal 136
3. Critica ao complexo de Édipo 139
4. Crítica à metapsicologia 143
5. Outras críticas à psicanálise tradicional 163
Capítulo IV: O processo maturacional e os elementos essenciais à
constituição da sexualidade 172
Introdução 172
I. O processo de amadurecimento humano 176
1.1. A necessidade de ser e o estado de ser 183
1.2. A instintualidade 187
1.3. Elaboração imaginativa 197
1.4. Agressividade (ou agressão) 202
1.5. A integração psico-somática 229
1.6. EU SOU 236
Capítulo V: a reformulação winnicottiana da teoria da sexualidade 238
Introdução 238
1. O modo de teorização de Winnicott 239
2. A raiz instintual – a teoria dos instintos 241
2.1. A redescrição das fases 244
3. A raiz identitária da sexualidade: os elementos femininos puros e os
elementos masculinos puros em homens e mulheres
263
3.1. Considerações adicionais feitas por Winnicott 265
3.2. O elemento feminino puro 266
3.3. Relações objetais que caracterizam o elemento masculino puro 271
3.4. Caso clínico 273
4. A oposição entre ser e fazer: dois modos de existir 276
5. Nota sobre a clínica winnicottiana e a sexualidade 280
Conclusão 287
Bibliografia 292
Livros de D. W. Winnicott publicados em Português 292
Outras referências bibliográficas 294
11

Anexo A: quadro de correspondência entre as siglas de Harry Karnac e


o padrão de citação de Knud Hjulmand 302
INTRODUÇÃO

1. Tema deste estudo

O objetivo inicial deste estudo é o de analisar a teoria da sexualidade em Winnicott,


em seus vários componentes, visando ampliar e aprofundar a compreensão dessa teoria no
interior da Teoria do Amadurecimento Pessoal, em contraposição ao pensamento da
psicanálise tradicional,1 para a qual teoria da sexualidade constitui um dos pilares. Assim se
em Freud (1856-1939) a teoria da sexualidade é um componente fundamental, veremos nesse
estudo qual é o lugar que ela ocupa na estrutura do pensamento winnicottiano e de que modo
ela se apresenta.

Este estudo fundamenta sua importância no crescente interesse que as idéias de


Donald Woods Winnicott (1896-1971) têm despertado em psicólogos e psicanalistas, os quais
têm se mostrado atraídos pela singularidade de suas idéias. Winnicott tem sido apontado
como um autor revolucionário2 do pensamento psicanalítico. Sua importância no cenário
psicanalítico tem sido destacada nos últimos dez anos por meio das inúmeras pesquisas
fundamentadas em suas teorias.

Ao longo de sua trajetória profissional, em especial em sua clínica pediátrica,


Winnicott observou que não poderia ratificar muitos dos postulados da psicanálise tradicional.
Um dos postulados que Winnicott não ratifica é aquele que afirma que desde o início da vida
o bebê já estabelece relações de objeto com propósitos caracterizáveis como eróticos ou
sexuais. Ao recusar essa idéia, por considerar a sexualidade como uma conquista decorrente
do processo de amadurecimento do indivíduo, Winnicott provoca uma grande mudança no
cenário da psicanálise.

1 Utilizo a expressão “Psicanálise Tradicional” por sugestão de Zeljko Loparic, considerando que esta
foi a expressão utilizada por Winnicott em O Brincar e a realidade, p. 93 (edição inglesa) ou p. 130 (edição
brasileira) e Explorações psicanalíticas p. 252 (edição inglesa) ou p. 196 (edição brasileira), p.226 (edição
inglesa) ou p. 176 (edição brasileira), com o intuito de diferenciar suas idéias das de outros autores pós-
freudianos. O termo designa a adesão ao Complexo de Édipo como a problemática central do ser humano.
Doravante, utilizarei esta expressão ao me referir à psicanálise freudiana.

2 Zeljko Loparic apontou esse aspecto em vários de seus artigos: cf. p. ex. Loparic 1995 e Loparic
1997a. Elsa Oliveira Dias também aponta esse caráter inovador em 2003. Leopoldo Fulgencio aborda a
possibilidade de uma psicanálise sem as especulações metapsicológicas em 2003.
2

A afirmação feita pelo próprio Freud de que a sexualidade constitui um dos


eixos da Psicanálise fornece subsídios para a sustentação da tese de que a Psicanálise
Tradicional tem um de seus eixos na Teoria da Sexualidade. Em 1923, Freud afirma que,
entre outros aspectos, a aceitação da sexualidade e do complexo de Édipo são essenciais para
quem quiser figurar entre os psicanalistas (1923b p. 2699).

A teoria da sexualidade desenvolvida por Freud deriva da atividade profissional


desenvolvida por ele durante toda sua vida, além de ser resultado de uma pesquisa que teve
origem tanto empírica quanto metapsicológica. A idéia de que a sexualidade é o motor do
psiquismo humano tem sido amplamente aceita e tem conduzido a teoria e a clínica
psicanalítica, desde então.3

Segundo Winnicott, o ser humano não tem na sexualidade o seu ponto de partida para
o desenvolvimento. Enquanto a psicanálise tradicional tem um de seus pilares na vida
pulsional do ser humano, a teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal apóia-se na teoria
do desenvolvimento do ego.

Para Freud, o elemento que surge inicialmente na formação psíquica do indivíduo é o


id e este constitui a matriz das outras instâncias psíquicas. O próprio Freud afirma que “o
indivíduo é agora para nós um id psíquico, desconhecido e inconsciente, em cuja superfície
repousa o ego” (Freud 1923b, p. 2707). Em Winnicott, a primeira estrutura organizada a
surgir é o ego e para que isso se efetive é necessário o suporte do ego da mãe para que o bebê
possa organizar seu próprio ego. Para Winnicott, podemos usar “a palavra ego para descrever
a parte da personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se integrar numa unidade”
(1965n [1962], p. 56). Os aspectos instintuais serão criados e organizados pelo bebê graças à
presença da mãe que lhe provê os cuidados necessários à sua constituição. É apenas a partir da
integração dos instintos que a questão sexual passa a adquirir sentido para o bebê. Nas
palavras de Elsa Oliveira Dias: “[...] para Winnicott, é preciso haver um indivíduo para que
algo como uma sexualidade humana possa acontecer” (2003 p. 302).

Na psicanálise winnicottiana, o desenvolvimento da sexualidade não pode sofrer mais


destaque que qualquer outro aspecto do processo de amadurecimento. A sexualidade, embora
importante, não conduz o processo maturacional como um todo. Ela é um dos componentes
da identidade do indivíduo e seu desenvolvimento é tão importante quanto o desenvolvimento

3 Psicanalistas como Melanie Klein, Bion e Lacan também são autores que têm no complexo de Édipo
um dos alicerces de sua teoria. No entanto, este estudo não enfocará as idéias desses autores.
3

do intelecto ou da psique. Em Winnicott, a sexualidade é uma conquista e não ponto


de partida.

2. A escolha do tema

As idéias de Winnicott têm possibilitado um novo olhar sobre a teoria e a clínica


psicanalítica. Dos estudos das idéias de Freud à supervisão com Melanie Klein, passando por
uma clínica médica pediátrica, Winnicott chegou a uma nova compreensão da constituição do
desenvolvimento da personalidade. Por meio de sua teoria do amadurecimento pessoal, ele
nos mostra a forma como o ser humano se desenvolve desde a vida intra-uterina, passando
pelo nascimento, e como gradativamente integra suas potencialidades, em contínua interação
com o meio ambiente.

Através de sua obra, Winnicott mostra que seu interesse primordial não é o
desenvolvimento sexual que ocorreria por meio de uma sucessão de fases ligadas às zonas
erógenas, da maneira propugnada pela psicanálise tradicional. A proposição winnicottiana é a
de que, por meio de sucessivos estágios de integração, o indivíduo que amadurece atingirá um
status de unidade, se tudo correr bem durante seu processo de amadurecimento. Sua teoria do
amadurecimento pessoal nos apresenta as condições para a instauração da saúde. Uma das
conquistas desse processo desenvolvimental será exatamente a integração da sexualidade.
Segundo Winnicott, a partir da constituição de pessoas saudáveis poderemos formar famílias
também saudáveis, que, finalmente, possibilitarão o surgimento de uma sociedade livre e
democrática.

Como médico e cientista da natureza humana, Winnicott não desconsiderou os


aspectos da biologia. No entanto, sua singularidade teórica está na proposição de que, ao
nascer, o bebê tem que se haver com sua única herança, que é a tendência inata para o
crescimento. A necessidade do bebê é a de se sentir real. Isto o leva à necessidade de manter a
continuidade do ser, presente em todo o existir humano e reveladora da fragilidade humana,
constantemente exposta às contingências da vida. Essa concepção sui generis sobre o
desenvolvimento do ser humano nos orienta na busca dos fundamentos do existir humano,
levando-nos a concepções totalmente diferentes das de Freud.

Nesses últimos dez anos, Loparic tem se dedicado intensamente ao estudo da obra de
Winnicott e tem nos mostrado como Winnicott se distanciou da posição freudiana sobre a
constituição do ser humano. Loparic mostrou em vários estudos que Winnicott inaugura uma
nova psicanálise ao rejeitar o complexo de Édipo como elemento central da condução do
4

desenvolvimento humano. Desta forma, temos uma verdadeira revolução no interior


da psicanálise. Loparic demonstra que Winnicott introduz na psicanálise um novo objeto de
estudo, o processo de amadurecimento humano. Com esse novo elemento, ele provoca um
novo arranjo do campo de problemas, tanto em termos conceituais como nas práticas
psicoterápicas. Não é mais a teoria da sexualidade o elemento-guia do processo
desenvolvimental, e sim a teoria do amadurecimento pessoal. Segundo Loparic, também
teremos, em Winnicott, outro problema exemplar, uma nova heurística, um novo modelo
ontológico e também outros valores. Para Loparic, Winnicott modificou o cenário
psicanalítico.

A teoria da sexualidade reserva um lugar especial para o complexo de Édipo, elemento


que permitiu a Freud estruturar seu arcabouço teórico. De fato, o mito edipiano4 fundamentou
a visão de Freud sobre as questões mais importantes da psicanálise clássica, desde a
sexualidade infantil até o tratamento psicanalítico.

Ao mostrar que o complexo de Édipo não é o exemplar da psicanálise winnicottiana,


Loparic desloca a questão do desenvolvimento humano para os primórdios da vida, tal como
Winnicott apontou em inúmeros textos. Segundo Winnicott, “tem-se que notar que uma certa
proporção de pessoas no mundo não alcançam o complexo edipiano. Elas nunca avançam tão
longe em seu desenvolvimento emocional [...]” (1989xa [1969], p. 241). Somente se o bebê
tiver um desenvolvimento saudável ele poderá desfrutar dos relacionamentos interpessoais
próprios da fase edípica.

Freud tem como ponto de partida a idéia de um dualismo pulsional associado com sua
teoria do aparelho psíquico. Movido pelas pulsões o bebê busca o prazer. Para Freud, desde o
início da vida, o bebê já estabelece relações objetais que têm um caráter sexualizado e são
essas relações que serão as responsáveis pela constituição do psiquismo do bebê. Embora
Freud tenha negado a caracterização de que suas idéias tenham um caráter de pan-sexualismo,
não podemos deixar de considerar que a sexualidade ocupa um lugar importante em seu
sistema teórico. Se fizermos um cotejamento com outras concepções sobre o ser humano,
constataremos que há uma predominância de elementos sexuais na teoria freudiana em
relação às outras teorias.

Muitos estudiosos da obra de Freud têm apontado a ênfase dada à sexualidade.


Laplanche e Pontalis, ao discutirem essa questão, afirmam: “Pois “pansexualismo” não quer

4 Embora o conceito tenha sido elaborado apenas em 1910, ele foi central nas descobertas de Freud.
5

necessariamente dizer que a sexualidade seja “tudo”, mas que em “tudo” haja, talvez,
sexualidade [...] tudo pode engendrar sexualidade, o que implica que tudo pode também
conduzir a ela em nossa experiência clínica” (1985, p. 33).

Rudolf Allers também aponta essa característica da psicanálise freudiana. Num estudo
sobre a psicanálise, Allers sustenta que a teoria da sexualidade é um dos elementos vitais das
idéias freudianas, ao mesmo tempo em que faz objeções a essa concepção. Allers lembra que
os elementos da sexualidade infantil se tornam provas empíricas apenas e tão somente se “a
prioridade da sexualidade estiver já assente como princípio primordial”. (1970, p. 158). Para
Allers, “a interpretação de Freud é uma dedução da teoria” (1970, p. 158), ou seja, é circular.
Allers, numa frase de cunho winnicottiano, pergunta: “em toda a discussão sobre a teoria de
Freud a respeito da sexualidade há um ponto capital: é a questão do lugar e do papel que lhe é
atribuído dentro da totalidade da natureza humana” (Allers 1970, p. 169). Ele conclui de
forma categórica:

a posição da psicanálise podia ser descrita como afirmando que a personalidade


depende da sexualidade e é formada por ela. A espécie de pessoa que um indivíduo é
depende da natureza da sexualidade que essa pessoa possui e das influências a que tal
sexualidade tem estado submetida. Mas parece mais verdade dizer que a espécie de
sexualidade que uma pessoa possui, e tem desenvolvido, depende muitíssimo da
espécie de personalidade que ela é.

Temos que considerar a existência de mútuas inter-relações. É um erro ver na


sexualidade apenas um modo peculiar como a personalidade se expressa. Mas é um
erro muito maior manter rigidamente o ponto de vista oposto. E esse último ponto de
vida é o que a psicanálise adota ao olhar para estas coisas. A psicanálise deixa de olhar
aspectos essenciais da vida humana e, conseqüentemente, tem uma noção errada de
muitas coisas. (Allers 1970, p. 175)

Esta crítica de Allers à psicanálise tradicional e à sua visão de homem nos conduz ao
modelo ontológico winnicottiano. Diferentemente da psicanálise tradicional, que centra seus
estudos no psiquismo como o elemento responsável pela constituição do ser humano,
Winnicott enfatiza a relação mãe-bebê como o caminho pelo qual o indivíduo pode se tornar
um ser humano inteiro. Temos então uma nova situação: o abandono do conceito de pulsão e
do principio do prazer e a introdução de dois conceitos inovadores, o de necessidade (need) e
o de instinto (instinct). Esses novos aspectos obrigam à discussão sobre a presença dos
6

elementos empíricos e especulativos na teoria da sexualidade, mostrando a função


destes elementos no arcabouço teórico da psicanálise tradicional.

Fulgencio aponta que na obra de Freud há uma prevalência do aspecto dinâmico sobre
os demais componentes da metapsicologia freudiana. Em seu estudo, ele mostra a presença
dos elementos empíricos e dos elementos especulativos no pensamento freudiano e a função
que estes elementos nela ocupam. Segundo Fulgencio, a psicanálise deve ser considerada a
partir de seus elementos empíricos, nos quais os fatos observáveis constituem os fundamentos
empíricos dessa ciência, assim como os elementos especulativos, posto que, para Freud,
apenas os dados descritivos não eram suficientes para oferecer uma explicação satisfatória
sobre o psiquismo humano. De acordo com Fulgencio, um exemplo de um componente
metapsicológico pode ser encontrado no conceito de libido (Fulgencio 2001, 2002 e 2003).

Também precisamos destacar a obra de Elsa Oliveira Dias, que tem realizado um
estudo minucioso da obra winnicottiana. Elsa Oliveira Dias apontou as fases do processo de
amadurecimento humano tal como foi descrito por Winnicott, mostrando as dificuldades e
conquistas próprias de cada estágio experimentado pelo indivíduo que amadurece (1995,
1998, 2003). Salienta ainda que o quadro das psicoses é o elemento na teoria winnicottiana. A
autora destaca a abordagem inédita realizada por Winnicott a respeito das questões humanas,
tanto nos aspectos filosóficos-conceituais, quanto nos clínicos, notadamente na rejeição das
questões metapsicológicas.

No cenário internacional, alguns estudiosos também têm mostrado o caráter genuíno


presente na obra winnicottiana. Dentre eles, além do já citado Allers, podemos apontar Peter
Rudnystky. Esse autor comenta que Winnicott, mesmo permanecendo fiel a alguns princípios
fundamentais de Freud, aponta para uma esperançosa versão da psicanálise, com a
apresentação de uma nova dinâmica de tratamento aos pacientes (Rudnystky 1991, pp. 96-
114).

Se, com o deslocamento da sexualidade e do complexo de Édipo como pilares centrais


do pensamento freudiano, há um caráter revolucionário na obra de Winnicott, é necessário
perguntar se na obra winnicottiana também encontramos alguma modificação da teoria
freudiana com relação à constituição da sexualidade masculina e feminina.

Em Freud, a matriz da constituição da identidade sexual é o falocentrismo, tanto para


os meninos quanto para as meninas. Para a psicanálise tradicional, a questão central do
masculino e do feminino vincula-se ao medo da castração e a mulher é vista como um macho
castrado. A referência primordial é o órgão sexual masculino e, necessariamente, toda mulher
7

sente inveja do homem porque ele tem um pênis. Na psicanálise winnicottiana, a


constituição da feminilidade e a oposição entre o masculino e o feminino estão vinculadas à
constituição de uma identidade pessoal que passa por uma elaboração imaginativa das funções
corpóreas, o que necessariamente inclui os órgãos sexuais. Juntamente com essa elaboração
imaginativa, há que se considerar a linha identificatória. A constituição da identidade
feminina não mais se remete aos órgãos sexuais masculinos, mas à própria natureza dos
órgãos sexuais femininos. Nesse contexto, a possibilidade da vivência da maternidade
constitui um elemento fundamental na constituição da feminilidade.

3. Objetivos

O primeiro objetivo que tenho ao realizar este estudo é o de fazer um aprofundamento


da obra de Winnicott em seus parâmetros gerais. Além disso, o estudo do papel da
sexualidade na teoria do amadurecimento se apresenta de forma diferente da de Freud, de
modo que esses dois aspectos podem ser compreendidos em seu imbricamento. De posse
desses componentes, será possível obter uma compreensão mais acurada da constituição da
natureza humana. Pretendo ratificar o caráter original da teoria winnicottiana, compreendendo
a lógica interna de suas proposições teóricas. Paralelamente a isso, pretendo alcançar uma
compreensão do lugar que sua obra ocupa no mundo da psicanálise.

Uma compreensão winnicottiana da instauração da sexualidade revela a necessidade


de se considerar cada estágio do processo de amadurecimento humano, numa busca da
fundamentação da constituição da sexualidade. Diferentemente da psicanálise tradicional, a
sexualidade não está dada desde o início da vida: como todas as outras tarefas a ser
desempenhada pelo bebê, a sexualidade é uma conquista.

Winnicott, em sua obra, enfatiza o modo como se dá o processo de amadurecimento, o


que inclui a constituição da sexualidade, que, para ele, é uma das conquistas essenciais da
integração. Ele afirma que o ser humano tem necessidade de ter experiências sexuais
satisfatórias e que alcançar e poder vivenciar essas experiências é sinal de saúde (Winnicott
1947a, 1958j, 1965vf [1960] e 1960c).

Considero de fundamental importância discutir de que modo os aspectos da


sexualidade são vistos na natureza humana. Assim, este estudo tem por objetivo analisar os
aspectos referentes à sexualidade a partir da obra de Winnicott, considerando a Teoria do
Amadurecimento Pessoal como referencial teórico. Com base num estudo rigoroso das idéias
de Winnicott, esta pesquisa objetiva analisar os aspectos da sexualidade no bojo e ao longo do
8

processo de amadurecimento do ser humano, considerando seus momentos iniciais


até a consumação de uma identidade sexual, haja vista o caráter essencial que esta
consumação ocupa na existência humana. Para realizar esta proposta, este estudo apresentará
as diferenças teóricas entre a abordagem de Freud e a abordagem de Winnicott no tocante às
questões referentes à sexualidade. Para que esse estudo seja consumado, considera-se que a
teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott é sua contribuição essencial à psicanálise,
pois Winnicott oferece uma nova compreensão do desenvolvimento humano, além de
fornecer uma articulação interna totalmente original dos conceitos psicanalíticos, o que traz
novas possibilidades para a prática clínica.

4. O método de leitura

Em 1998, quando realizei minha dissertação de mestrado, fiz uma leitura extensa da
obra de Winnicott, com o objetivo de compreender algumas questões referentes à
homossexualidade. Uma compreensão do modo de ser das pessoas homossexuais me remeteu
ao processo de desenvolvimento experimentado pelo indivíduo que amadurece. Isso me
permitiu contextualizar algumas questões referentes à sexualidade. Os estudos de então me
levaram à conclusão de que:

a idéia básica de Winnicott quanto ao sexo consiste em que a criança necessita de um


meio ambiente saudável e constante, de maneira a que ela própria possa descobrir, de
seu jeito pessoal, o irrompimento do sexo em si mesma. Desta forma, ela pode
descobrir o sexo como o elemento que inicia as relações humanas e provoca
envolvimentos entre as pessoas, seja perturbando ou enriquecendo o convívio entre
elas. (F. Dias 1998, p. 86)

Outro aspecto considerado foi o de que:

a pessoa humana em sua forma de funcionamento não é determinada pelos órgãos


sexuais, embora o bom funcionamento destes seja importante para a totalidade
individual. A vivência da sexualidade e o funcionamento dos órgãos sexuais têm que
ser considerados no interior deste amadurecimento. A conquista da identidade sexual e
da vivência sexual de cada ser humano é decorrência de um processo mais abrangente,
que é o processo maturacional. Isso significa que, tanto quanto outro aspecto da
9

identidade do indivíduo, a identidade sexual também tem que ser


conquistada, embora não se constitua no elemento fundante da pessoa humana. (F.
Dias 1998, p. 89)

O estudo realizado então demandou uma leitura sistemática da obra winnicottiana em


sua totalidade. Dessa forma, foi possível uma assimilação dos pressupostos das idéias
winnicottianas.

Para este estudo em desenvolvimento, uma nova leitura dos textos de Winnicott se fez
necessária. Um levantamento de frases e artigos foi destacado, para que fosse possível
acompanhar a seqüência do raciocínio de Winnicott, de modo a alcançar a coerência de suas
idéias. Longe de significar o pinçamento de citações isoladas, este recurso possibilita analisá-
las à luz da teoria do amadurecimento pessoal elaborada por Winnicott. Esta não é uma tarefa
fácil, já que a obra winnicottiana não apresenta uma linearidade, pois suas palestras e textos
foram construídos pensando em um público heterogêneo. O levantamento cronológico das
idéias winnicottianas possibilita uma reconstrução do seu pensamento.

Outro passo dado na elaboração deste estudo foi uma leitura da obra de Freud,
destacando principalmente os textos nos quais ele abordou as questões da sexualidade, tanto
em seus aspectos gerais como no tocante ao desenvolvimento da sexualidade feminina.

Esclareço que é objetivo deste estudo apenas e tão somente a busca de diferentes
referenciais que possibilitem compreender as contribuições de Winnicott para a história da
psicanálise no tocante ao tema da teoria da sexualidade, constituição da sexualidade e do lugar
ocupado pela sexualidade no arcabouço winnicottiano. Não tenho o objetivo primordial de
confrontar teorias.

O objetivo do capítulo I será o de apresentar a concepção de Freud sobre a teoria da


sexualidade. Freud concebeu uma teoria baseada em componentes empíricos e
metapsicológicos. Ao longo de uma trajetória teórico-clínica, Freud concebeu uma teoria
baseada no estudo das perversões, do desenvolvimento da sexualidade infantil e da
sexualidade na adolescência e na vida adulta. Esta teoria sofreu vários acréscimos teóricos no
decorrer do trabalho clínico de Freud.

Será feita uma descrição dos elementos empíricos assim como a apresentação dos
elementos metapsicológicos, tais como pulsão, libido, princípio do prazer e aparelho psíquico,
dentre outros aspectos.
10

É importante salientar que não tenho por objetivo realizar um vasto estudo
bibliográfico de Freud. O objetivo foi o de procurar os pontos de partida das idéias freudianas
que possivelmente estimularam Winnicott a desenvolver seu próprio pensamento, destacando-
o do pensamento freudiano. Será enfatizado o grande ponto de divergência de Winnicott em
relação a Freud: a metapsicologia.

No capítulo II tenho por objetivo apresentar algumas críticas de Winnicott à teoria da


sexualidade proposta pela psicanálise tradicional e aos elementos que a compõem. Em
oposição a um modelo naturalista do ser humano, Winnicott parte de outras premissas. Para
ele, o ser humano não é uma maquina que pensa e deseja.

Embora Winnicott confirme sua herança psicanalítica, inúmeras vezes ele afirmou seu
abandono de alguns pressupostos psicanalíticos. A psicanálise tradicional parte do
pressuposto básico de que o complexo de Édipo é o elemento central, núcleo possibilitador do
psiquismo humano e ponto de partida de quadros nosológicos e métodos de tratamento. O
complexo de Édipo é visto como o elemento fundante da cultura e da moral. Winnicott
rejeitou o Édipo como componente central da natureza humana. Apontou a impossibilidade de
se estender o complexo edípico para todas as fases da vida do ser humano, pois acreditava que
este conceito não abarcava as questões precoces da vida do bebê.

Winnicott rejeitou não só a teoria da sexualidade como o elemento condutor do


processo desenvolvimental, substituindo-a pela teoria do amadurecimento humano; rejeitou
também o modelo ontológico proposto por Freud. Essa rejeição ensejou críticas e abandono
de conceitos tais como o de aparelho psíquico, pulsão, libido, dentre outros. As críticas de
Winnicott têm como ponto de partida sua concepção sobre o processo de amadurecimento
humano.

No capítulo III, apresento as críticas de vários comentadores da obra de Winnicott, no


tocante à teoria da sexualidade proposta por Freud. Tenho por objetivo mostrar as objeções
desses autores ao pensamento freudiano, em especial as que substituem as construções
metapsicológicas. Estas críticas se apóiam na constatação de que Winnicott, a partir de sua
teoria do amadurecimento pessoal, contribuiu para uma evolução no campo da psicanálise.

No capítulo IV, faço uma descrição do processo de amadurecimento humano e das


condições essenciais para o estabelecimento da conquista da sexualidade. Serão abordados os
conceitos essenciais para que se compreenda como a sexualidade se constitui, tais como os de
instintos, elaboração imaginativa das funções corpóreas, dentre outros conceitos essenciais.
Pretendo mostrar que a imaturidade inicial do bebê impede que ele tenha relações de objeto
11

tal como as propostas por Freud. Para Winnicott, o bebê tem que experienciar vários
estágios e realizar muitas tarefas, de modo a se constituir como ser humano homem ou ser
humano mulher. Serão também abordadas as concepções de Winnicott sobre a constituição da
sexualidade masculina e feminina.

No capítulo V, pretendo apresentar uma redescrição da teoria da sexualidade


masculina e feminina, tendo como referência básica a teoria do amadurecimento proposta por
Winnicott.

Winnicott, ao recusar a teoria da sexualidade proposta pela psicanálise tradicional,


apresenta uma teoria completamente diferente, baseada em outros elementos. Winnicott
abandona o conceito freudiano de pulsões e libido e, em seu lugar, coloca um conceito
empírico, o de instinto. Além do mais, ele inclui um elemento totalmente novo, um elemento
não sexual.

Também pretendo apontar como estes aspectos estão vinculados com a prática clínica
psicanalítica.

Conclusão

Como conclusão, pretendo retomar os aspectos discutidos no decorrer desse estudo e


expor os resultados alcançados.
12

Capítulo I: A teoria freudiana da sexualidade

Introdução

Embora os estudos de Freud tenham inicialmente se apoiado em vários conceitos da


Sexologia, gradualmente ele se afastou desta ciência. Ao longo do desenvolvimento de suas
atividades profissionais, numa incessante pesquisa empírico-metodológica, Freud criou sua
teoria da sexualidade, na qual os aspectos mais relevantes são o problema das perversões e a
diferença entre a sexualidade infantil e a sexualidade adulta. Estes elementos foram
apresentados por Freud em seu texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o qual, ao
longo dos anos, sofreu acréscimos advindos da pesquisa clínica realizada por Freud.

Outra contribuição de Freud pode ser encontrada na caracterização dos tipos libidinais
(1931 pp. 3074-6). Este estudo teve início com o texto Caráter e erotismo anal (1909 pp
1354-7) e em Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916 pp 2412-
30). Estes textos foram alvo de comentários e acréscimos de Karl Abraham. No texto de 1931,
Tipos libidinais, Freud descreveu os tipos libidinais, erótico, obsessivo e narcísico.

Neste capítulo que ora inicio, tenho por objetivo apresentar a forma como Freud
concebe a Teoria da Sexualidade. Inicialmente, apresentarei a concepção de Freud sobre a
sexualidade, salientando seu significado ampliado, próprio da psicanálise. Em seguida,
apresentarei os aspectos da sexualidade pensados em termos de tipo de objeto e tipo de apoio.
Também farei uma exposição dos conceitos empíricos e especulativos sobre os quais a Teoria
da Sexualidade se assenta. Para finalizar, farei uma exposição sobre a forma como Freud
concebe a noção de masculino e feminino e os elementos presentes em sua constituição.

Esta apresentação é importante para traçar a linha diferencial em relação ao


pensamento de Winnicott sobre este tema.

1. O conceito freudiano de sexualidade

a) As manifestações da sexualidade no bebê e a natureza sexual dos atos infantis

Freud usou uma descrição empírica dos fatos observados na clínica para estruturar seu
arcabouço teórico, em especial nas descrições relacionadas à sexualidade infantil. Porém, a
descrição empírica não foi o único recurso utilizado por ele: para elucidar suas idéias sobre a
forma como concebe a sexualidade nas crianças, Freud afirmou que é necessário lançar mão
13

do recurso da interpretação, de maneira a poder entender melhor o que se passa na


vida das crianças. Ele sustenta que “[...] a interpretação tem que ter uma influência muito forte
no que se relaciona à atividade sexual da criança de colo” (1917 [1916-1917], p. 2317). Freud
chegou a essas interpretações através dos sintomas observados nas patologias de seus
pacientes.

Por meio da interpretação e de uma descrição pormenorizada do que ocorre com o


bebê, Freud chegou nas manifestações da sexualidade que ele afirma estarem presentes desde
o início da vida infantil. Freud apóia sua tese no ato de sucção que é executado pelo bebê e
que está focado na alimentação. Isto significa que, para Freud, o ato de sugar é sexual (1905,
p. 163). O prazer sexual de sugar e o prazer originado pelo aplacamento da fome estão
associados no início da vida do bebê, mas posteriormente eles virão a se separar. Segundo
Freud, a atividade sexual se sustenta na função que tem o objetivo de preservar a vida, mas,
no decorrer do crescimento do bebê, esta função sexual se tornará independente.

No início da vida do bebê um dos momentos vitais concentra-se na ingestão de


alimentos, uma vez que esta situação é necessária à manutenção de sua vida. E é à
alimentação que Freud vai vincular as primeiras manifestações sexuais nos bebês. Freud
aponta que, após serem alimentados, os bebês manifestam uma expressão de satisfação. Esta
expressão de satisfação é a mesma que surgirá posteriormente, quando já adulto, após a
experiência do orgasmo sexual.

Ao receber os alimentos, o bebê experimenta uma situação de bem-estar e,


posteriormente, vai procurar repetir esta experiência. Freud esclarece seu ponto de vista:

quem vê um bebê saciado no peito materno, com suas bochechas coradas e com um
sorriso feliz adormecer, não pode deixar de considerar que este quadro persistirá como
o protótipo da expressão de satisfação sexual na vida posterior. A necessidade de
repetir a satisfação sexual desvincula-se agora da necessidade de nutrir-se – uma
separação que se torna inevitável quando surgem os dentes e o alimento não é mais
ingerido apenas pela sucção, mas também é mastigado.(1905, p. 164, itálicos meus)

O bebê procurará repetir o ato porque a natureza possibilitou que esta experiência
prazerosa não seja deixada sob responsabilidade apenas do acaso. Por já ter sido submetida a
ela e pelo fato de que ela lhe proporcionou prazer, o bebê vai buscá-la novamente.

Diz Freud:
14

o objetivo sexual do instinto infantil consiste em obter satisfação através de um


estímulo apropriado da zona erógena que foi, de algum modo ou outro, escolhido. Para
que se crie a necessidade de repeti-la, esta satisfação tem que ter sido vivenciada
antes, e é legítimo pensar que a natureza terá tomado seguras medidas para que esta
vivência não fique deixada ao acaso (Freud, 1905, p. 167).

Para Freud, a prova contundente de que há uma manifestação sexual nesse ato está no
fato de que mesmo sem sentir fome o bebê solicita mais alimento. O ato de uma sucção
sensual, ou de ‘chupar’ o seio materno, provoca o sono no bebê e isso, por si só, produz
satisfação. Esta experiência é forte a ponto de alguns bebês não conseguirem adormecer sem
antes executar o ato de sugar algo (1917 [1916-1917], p. 2318). Para Freud, o que leva o bebê
a sugar é a necessidade que ele tem de sentir prazer.

Freud resume essa idéia ao afirmar que:

verificamos que os bebês realizam atos que servem apenas para experimentar esse
prazer e acreditamos que eles tenham começado a experimentar esse prazer na ocasião
da ingestão de alimentos, mas que depois tenham aprendido a separá-lo desta situação.
Localizamos essa sensação de prazer na zona buco-labial e a esta região demos o
nome de zona erógena, e descrevemos como sexual o prazer derivado da sucção.
(1917 [1916-1917], p. 2318).

Através da sucção o bebê realiza de uma única vez as duas necessidades vitais para
ele, quais sejam, alimentar-se e sexualizar-se. Ao sugar o seio materno o bebê executa o ponto
de partida de toda a vida sexual. O ato de sugar faz do seio materno o primeiro objeto da
pulsão sexual. Neste ato, tem-se o modelo da satisfação sexual posterior, posto que na fantasia
o bebê retornará a esse ato quando assim o necessitar. Quando se observa o bebê a chupar o
polegar, com uma expressão sonhadora, conclui-se que, em termos psicanalíticos, ele está
experimentando um prazer sexual. O dedo, um objeto real, será usado posteriormente como
objeto a ser fantasiado. Desta forma, o objeto real, o polegar sugado, é um objeto fantasiado
que ele acaricia.

No decorrer do crescimento do bebê, haverá o desligamento da atividade sexual das


funções digestivas, ou seja, como o bebê já sabe o que lhe proporciona satisfação, ele já sabe
15

como buscá-la e que isso não se fará juntamente com a alimentação. Ao buscar a
satisfação, o prazer, o bebê consegue restaurar a felicidade perdida (Freud 1905, p. 203).

Na teoria freudiana, o modelo de uma função biológica, tal como esse que explica a
vinculação entre a ingestão de alimentos e obtenção de prazer também será utilizado para
explicar o que ocorre em outras fases da vida infantil, ou seja, será o modelo para explicar o
que ocorre com o bebê na excreção das fezes, na descoberta do órgão sexual masculino, na
fase fálica e, finalmente, na fase genital que corresponde à organização sexual definitiva.

b) Sexualidade: do sentido estrito ao sentido ampliado

O afastamento de Freud da Sexologia propicia a inauguração de um novo contexto no


qual o conceito de sexualidade se distancia de fundamentos biológicos e anatômicos e adquire
um significado específico. Isso porque Freud ampliou a importância dada às questões sexuais:
o conceito de sexualidade foi estendido à idéia de uma disposição psíquica universal.

Essa alteração no cenário do campo da psicanálise deve-se à capacidade observadora


de Freud. Em sua atividade profissional, após observar e analisar os fatos clínicos trazidos por
seus pacientes, Freud identificou e estruturou um quadro nosográfico diferente dos aceitos e
praticados pela psiquiatria do século XIX. As idéias que envolvem a sexualidade e a
importância dada a ela na estruturação do psiquismo provocaram uma reestruturação na
psiquiatria. Um divisor de águas se instalou quando: Freud inaugurou um campo diferenciado
em termos teóricos e clínicos. É no novo sentido outorgado à sexualidade que se encontra o
aspecto central de uma concepção específica que se iniciou no campo das ciências da mente.

Essa concepção diferenciada tem origem com as idéias que envolvem a descoberta da
existência da sexualidade infantil, e foram desenvolvidas por Freud em 1905, com a
publicação de seu estudo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905, p. 156).

À guisa de esclarecimento, ele diz:

faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual a afirmação de que ela não está
presente na infância e somente desperta no período da puberdade. Isto não é um erro
qualquer: tem graves conseqüências, pois é a esta idéia que devemos a principal
responsabilidade sobre nosso desconhecimento sobre as bases da vida sexual. Um
estudo profundo das manifestações sexuais da infância nos revelaria os traços
essenciais da pulsão sexual, o seu desenvolvimento e a maneira pela qual ela se
compõe por diversas fontes. (1905, p. 157)
16

Segundo Freud, no trabalho com os pacientes, “a investigação psicanalítica se viu


obrigada a direcionar sua atenção sobre a vida sexual infantil, pois as recordações e
associações que surgiram nos enfermos durante a análise de seus sintomas remetiam-se
regularmente aos primeiros anos de sua infância” (1917 [1916-1917], p. 316). Isso significa
que as raízes das patologias têm que ser buscadas na infância do paciente, pois as crianças já
possuem tudo o que se considera uma vida sexual e quando entram na puberdade elas
adquirem a capacidade reprodutora, nada mais. Com esse novo enfoque, Freud explicita que
sexualidade e reprodução não coincidem, pois as patologias observadas nos pacientes negam
que a reprodução possa ser o objetivo na vida sexual destes.

As observações de Freud sobre a sexualidade infantil respaldaram-se nas idéias de


Lindner que, em 1879, teceu considerações inovadoras sobre o hábito de sucção dos bebês.
Segundo Lindner, há um caráter de prazer nos bebês quando sugam, mesmo nas situações não
direcionadas à satisfação da fome. Esta excitação leva o bebê a um tipo de orgasmo do qual o
adormecimento seria o resultado. Lindner também apontou que o ato de agarrar que é
associado à sucção deve ser identificado como uma transição para a masturbação (1905, p.
163).

Para descrever essa nova conceituação, Freud se baseia na idéia de zona erógena, ou
seja, uma parte do corpo que é investida libidinalmente em fases diferentes –oral, anal, fálica,
latência e genital -, e que geram um modelo específico de relação de objeto a cada fase
experimentada. Freud observa que, conduzido pelo princípio do prazer, o bebê mantém com
os objetos com os quais entra em contato, um tipo de relação na qual o objeto serve para
atingir o prazer. A partir desse protótipo, que é apresentado juntamente com a forma pela qual
o bebê é alimentado, Freud apresenta o que considera como o modelo normal de constituição
do psiquismo, no qual as noções de sujeito-objeto e eu-mundo são constituídas.

Ao estender suas idéias sobre o conceito de sexualidade, Freud afirma que estabelecer
uma nova conceituação não é fácil. Estas explicações não podem se fundamentar em idéias
tais como a distinção entre os dois sexos e nem tomar o ato sexual como ponto central. Freud
amplia o conceito de sexualidade, antes restrito apenas a acepções coloquiais tais como “a
oposição entre os sexos, a busca do prazer, a função reprodutora e ao caráter de algo
impróprio que deve ser mantido em segredo” (1917 [1916-1917], p. 2311).

Para a Psicanálise, com a ampliação desse conceito, a sexualidade humana não pode
ser redutível ao contato dos órgãos genitais entre dois sujeitos, nem às sensações genitais.
17

Para os psicanalistas, o conceito de sexualidade recebe uma acepção ampliada em


comparação ao conceito de sexualidade genital. Freud remete esse conceito ao contexto da
ciência, apontando que a questão sexual deve ser compreendida a partir das investigações da
vida sexual de diferentes grupos, incluindo as crianças e os pervertidos. São dois os aspectos
que devem ser considerados nessa conceituação: a observação de grupos patológicos e a
descoberta da existência de uma sexualidade infantil.

A nova definição proposta por Freud abarca um conjunto conceitual específico, o qual
será explicitado no item 6 deste estudo. Por ora, é necessário mostrar o vínculo da sexualidade
com o princípio do prazer.

c) Sexualidade associada ao princípio do prazer

Foi pela observação de pacientes que apresentavam um quadro de perversão que Freud
pôde constatar que há pessoas que têm seu objeto sexual modificado, além de também
conferirem uma outra finalidade aos seus propósitos sexuais. Portanto, foi por meio da
observação da patologia na área da sexualidade que Freud pôde chegar à sexualidade normal.
Ao investigar a vida destes pacientes, Freud chegou à infância deles, o que lhe permitiu
constatar que a sexualidade existente no adulto já estaria presente na criança de tenra idade.

A afirmação da existência de uma sexualidade infantil é possível porque Freud


concebe que, já no início de sua vida, o bebê possui forças que influenciam seu
comportamento. São estas forças que estão na base dos desejos sexuais dos adultos. Esta força
é de natureza psíquica, ainda que tenha sua fonte no corpo. Além de afirmar que esta força
tem uma natureza psíquica, Freud também sustenta que esta força tem uma natureza sexual.

Estas forças, ou pulsões são compostas por quatro elementos: fonte, de onde emerge a
necessidade, que pode ser de uma parte do corpo ou dele todo; uma finalidade, que é a de
reduzir a necessidade até o ponto em que nenhuma ação seja necessária por fornecer ao
organismo a satisfação desejada no momento certo; uma pressão, que é a quantidade de força
usada para gratificar a pulsão; e, finalmente, um objeto, que é o elemento pelo qual a pulsão
busca a satisfação do objetivo original. O elemento energético presente na pulsão e que,
segundo Freud, é sua representante, é a libido, que é a energia específica para a pulsão sexual.
A libido é o substrato que se desloca de uma zona erógena para outra no organismo humano.5

5 Este tema será abordado de forma mais detalhada no item 5 deste capítulo.
18

Uma vez que seja deflagrada, esta força gera um estado de tensão. Como
conseqüência da ação dessa tensão, o bebê, a fim de interromper esse estado tensional, busca
a eliminação da tensão. A tendência para eliminar tensões internas Freud nomeou de
“principio do prazer”, seja quando esta eliminação signifique diretamente a aquisição do
prazer ou quando esta aquisição signifique a eliminação de desconforto ou da dor. O elemento
que proporcionará a satisfação do objetivo original do bebê – a satisfação – é o princípio do
prazer. O princípio do prazer estabelece que toda criança, mesmo as mais novas, tem uma
tendência a buscar sensações prazerosas por meio de uma gratificação que tem que ser
imediata, ao mesmo tempo em que procura evitar o desprazer e dor. Presentes na vida do bebê
desde o início da vida deste, as sensações prazerosas são responsáveis pelo funcionamento do
psiquismo humano. E se elas movem o psiquismo e são de natureza sexual, elas estão
vinculadas ao princípio do prazer. O princípio do prazer, que é inato, é um dos processos
primários mais antigos do nosso psiquismo.

Uma das características do princípio do prazer é a sua imperiosidade, além de uma


necessidade de não protelação. O bebê tem uma necessidade imediata de satisfação, ele não
pode esperar e o que busca é o equilíbrio energético por meio de uma redução de tensão.
Segundo esse princípio, o comportamento humano pode ser compreendido a partir da idéia de
que o sujeito busca o equilíbrio energético por meio de uma redução de tensão.

d) Diferença entre sexualidade e libido

Ao afirmar a existência de uma sexualidade infantil, Freud se sustentou numa


descrição rigorosa dos fenômenos observados em sua clínica, à qual ele chegou após uma
análise do relato de seus pacientes. Se o conceito que envolve a sexualidade refere-se a uma
dimensão empírica, o mesmo não se pode dizer em relação ao conceito de libido. 6

Embora estejam vinculadas entre si, libido e sexualidade não são termos que guardam
o mesmo significado. Ao abordar os fatos relacionados à sexualidade, Freud tem como
sustentação dados que podem ser comprovados empiricamente, pois se baseia nas diferentes
excitações corporais, cuja ênfase pode ser reconhecida no desenvolvimento da sexualidade
nas fases oral, anal, fálica e genital. Aqui, Freud lida com o aspecto descritivo da teoria da
sexualidade subdividida em fases e que constitui uma explicação para os comportamentos
claramente observáveis. Já o conceito de libido somente pode ser compreendido num contexto

6 Este tema foi abordado por Fulgencio 2002.


19

especulativo-teórico, cujo valor é o de ser um conceito auxiliar para a observação e


necessidade de oferecer uma explicação para os fenômenos observados na clínica. Não há
uma referência empírica quando se fala em libido, considerando que o termo se refere a uma
energia psíquica que se vincula às pulsões. Segundo Freud,

estabelecemos o conceito de libido como uma força susceptível de variações


quantitativas que podem servir de medida do processo e das transformações que
ocorrem no âmbito da excitação sexual. Com relação à sua particular origem, nós a
diferenciamos da energia que se supõe que esteja na base dos processos anímicos em
geral, e lhe conferimos um caráter também qualitativo. Ao separar a energia libidinal
de outras e de outras classes de energia psíquica, expressamos a premissa de que os
processos sexuais do organismo se diferenciam dos processos da nutrição por uma
química particular. A análise das perversões e das neuroses há muito nos permitiu
compreender que esta excitação sexual não é originária apenas das partes chamadas
sexuais, mas de todos os órgãos do corpo. Chegamos, assim, a uma representação de
um quantum de libido cuja representação psíquica chamamos de libido do ego cuja
produção, aumento ou diminuição, distribuição e deslocamento estão destinados a nos
oferecer a possibilidade de explicar os fenômenos psicossexuais observados. (1905, p.
198)

Para explicar a natureza dos fenômenos psíquicos, Freud postula que estes se
constituem por pulsões ou forças psíquicas. Freud opta por um ponto de vista dinâmico para
compreender o psiquismo. Em função desta pressuposição, estas forças não são passíveis de
uma descrição empírica, ou seja, elas não serão de fato encontradas no psiquismo humano.
Essas forças, as pulsões, constituem uma convenção que cumpre plenamente com seu papel
de auxiliar na explicação sobre o funcionamento dos fenômenos psíquicos. O próprio Freud
sabia que estava lidando com um princípio meramente ficcional e que este ponto de vista
tinha uma natureza convencional, e não empírica.

Para dar uma dimensão quantitativa a essa idéia abstrata, de caráter convencional,
Freud postulou a existência de um elemento responsável por essa dimensão econômica: a
libido. Se o conceito de pulsão constitui uma mitologia, se ele tem um caráter especulativo,
este mesmo caráter é atribuído à libido.

O conceito de libido já havia sido utilizado por Moll no contexto das doutrinas das
pulsões; Freud o tomou de empréstimo para caracterizar o aspecto econômico da sexualidade,
20

isto é, tomou-o como o elemento operador cuja função é a de oferecer uma


compreensão dos investimentos afetivos. O que Freud tem em mente é que está atuando no
campo das ciências da natureza e que, nessa área, não se pode ter a mesma convicção que se
tem no campo da filosofia e das ciências do espírito. Conceitos claros e precisos são possíveis
apenas na área da filosofia, ao contrário da área da ciência.7

Para resolver seus problemas, inevitavelmente o cientista precisará completar suas


pesquisas empíricas em que haja uma descrição dos fatos, além de lançar mão de
especulações metapsicológicas, ou seja, conceitos especulativos. Freud está ciente de que está
fazendo uma opção por um conceito especulativo ao propor as noções de pulsão, libido e
aparelho psíquico. Isto não significa abandonar fundamentos empíricos, mas acrescentar um
instrumento que fornecerá uma melhor compreensão do fenômeno observado. Em suma,
Freud tem consciência do uso heurístico deste recurso. Isto significa que, quando as
descrições dos fatos observados não são suficientes para explicá-los, o uso de construções
auxiliares é justificável por fornecer uma hipótese mais profícua para a explicação do
problema em questão, possibilitando o fechamento de lacunas presentes no conhecimento.

Um aspecto específico da função heurística dos elementos metapsicológicos está no


fato de que eles podem ser abandonados quando não são mais úteis para a explicação do
fenômeno estudado. Isto foi legitimado pelo próprio Freud (1924, p. 2776).

Portanto, embora o conceito freudiano de sexualidade traga em seu bojo um elemento


especulativo, a libido, não se pode afirmar que libido seja a sexualidade. Libido é um
conceito, uma idéia, uma construção auxiliar e não a sexualidade enquanto um fenômeno vivo
para o ser humano. Citando Fulgencio, “a sexualidade não é a libido” (2002, p. 102)

2. A sexualidade e a teoria do apoio

No seu texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, para explicar o


desenvolvimento da sexualidade, Freud recorre à noção de apoio (anlehnung). É com este

7 Para Winnicott, o cientista deve ser capaz de suportar as lacunas do conhecimento. Segundo ele: “eu
diria, a respeito dos cientistas, que, quando surge um vazio no conhecimento, o cientista não se desvia para uma
explicação sobrenatural. Isso poderia sugerir pânico, medo do desconhecido, uma atitude não científica. Para o
cientista, todo vazio no entendimento oferece um desafio excitante. Assume-se a ignorância e se delineia um
programa de pesquisa. A existência do vazio é o estímulo para o trabalho. O cientista pode se permitir uma
espera e se permitir ser ignorante.” (1986k [1961] p. 14)
21

conceito que ele esclarece que as relações de objeto, que, de início, é auto-erótica,
até chegar ao caminho da escolha de objeto propriamente dito – objeto dado externamente -8,
se apóia em algumas funções corporais para poder se manifestar (1905, p. 179).

A primeira função corporal que servirá de apoio é encontrada na atividade oral do


bebê. Conforme já foi destacado no item 1 deste capítulo, nos primeiros tempos da vida do
bebê sua energia concentra-se e apóia-se nas situações que envolvem a alimentação. A libido
se apóia no ato de sucção do seio materno para transformar a boca do bebê em zona erógena e
desta forma obter prazer. Este é um momento singular na vida do bebê, uma vez que apoiada
na atividade corporal, a necessidade pulsional se instaura. O bebê buscará a repetição do ato
prazeroso, o que revela que a necessidade primeira passa a ser da ordem da pulsionalidade e
não mais da ordem da nutrição.

A segunda função corporal tomada como modelo na organização da sexualidade pode


ser encontrada na situação em que o bebê adquire o controle das funções esfincterianas. A
libido buscará apoio na zona anal e as atividades do bebê envolverão o controle das fezes. Por
meio do ato de expulsar, controlar e reter (as fezes) o bebê expressará suas necessidades.
Deste modo, surgem as pulsões parciais.

Na fase em que os órgãos genitais ganham prevalência, o elemento que assume o lugar
de importância, tanto para o menino quanto para a menina, é o pênis. A situação marcante está
no fato de se possuir ou não o membro sexual masculino, e a constatação da falta deste gera o
temor da castração, juntamente com o desprezo para com os que não possuem o pênis, assim
como também a inveja provocada em quem não o tem.

Finalmente, surgirá uma organização sexual definitiva. Isso corresponde à fase da


puberdade, ao momento em que o órgão sexual feminino adquire o reconhecimento que é
atribuído ao órgão sexual masculino. Neste momento do desenvolvimento psicossexual, o
sujeito já pôde fazer sua escolha de objeto e sua libido já está heterossexualmente dirigida
(Freud 1905, p. 189).

8 Toda essa trajetória será explicitada no item 4 deste capítulo.


22

3. A teoria do desenvolvimento da sexualidade pensada em termos do


tipo de objeto

A busca do bebê pelo prazer promoverá o direcionamento para um objeto específico,


de modo que este prazer possa se consumar. Isso será obtido através do deslocamento do
investimento libidinal pelas zonas erógenas do bebê, constituindo-as como objetos. Neste
momento, o modelo inicial do auto-erotismo é o da boca que beija a si própria. (Freud 1905,
p. 165) No início da vida, as pulsões ainda não estão organizadas e o quadro é o de um estado
fragmentário em que cada uma dela se satisfaz por si mesma, sem recorrer a nenhum objeto
específico.

Freud apontou quatro tipos de objeto aos quais a libido se direcionará, que definem
modos específicos de investimento. Inicialmente a busca do prazer se concentra no corpo do
próprio bebê; gradativamente, este prazer chega até um objeto que não seja o próprio bebê.
Posteriormente, com o desenvolvimento, o objeto passa a ser não mais parcial e sim um
objeto que é o bebê ele mesmo. Esta é a fase do narcisismo ou do objeto narcísico. No
decorrer deste desenvolvimento, o objeto é homossexual, até que, no final do processo, ele é
heterossexual. Neste contexto, compreende-se que, até se alcançar uma organização sexual
definitiva, não há caminhos pré-determinados que conduzam (o sujeito) a um objeto
específico.

O percurso empreendido pela libido, do auto-erotismo até um objeto heterossexual


será apresentado a seguir.

3.1. Escolha de objeto auto-erótico

Para Freud, todo sujeito tem como meta primordial a busca do prazer. Em suas
experiências desta natureza, no início da vida o sujeito já experimentou o prazer ao sugar o
seio da mãe. Gradativamente, o ato de sugar e o prazer em si são dissociados, mas o bebê não
quer perder esta experiência de gratificação. Para retomar esta experiência prazerosa, o bebê
passa a sugar um pano ou alguma parte de seu corpo. A expressão ‘narcisismo’ foi
celebrizada por Freud, que a tomou de Paul Näcke, autor que, segundo Freud, “dá este nome a
uma perversão na qual o indivíduo demonstra para com seu próprio corpo a ternura que
normalmente reservamos para um objeto exterior” (1915-1917 [1916-1917], p. 2381).

Em sua definição do auto-erotismo, Freud concede ao termo uma acepção diferente da


de Havelock Ellis: Freud enfoca a pulsão em seu movimento ao objeto. Freud orienta-se pelos
elementos que estabeleceu como os constituidores da pulsão, ou seja, toda pulsão se origina
23

de uma fonte, exerce uma pressão, tem uma meta específica em direção a um
objeto. Para Freud, o auto-erotismo é a manifestação de uma sexualidade de tipo infantil, uma
vez que a criança não recorre a qualquer objeto externo para obter o prazer. Segundo ele, “a
característica mais nítida dessa atividade sexual é que a pulsão não é dirigida para outras
pessoas. Ele [o bebê] encontra satisfação em seu próprio corpo [...]” (1905, p. 164). Isso
significa que a libido instala-se no próprio corpo do bebê. O ato de sugar é o protótipo do
auto-erotismo.

Outra característica do auto-erotismo é que é nesta situação que a sexualidade se


separa de seu objeto natural. È nesta situação de clivagem que a pulsão sexual aparta-se das
funções não sexuais nas quais estava apoiada. Segundo Freud,

a atividade sexual se apóia primeiramente em uma das funções que atendem à


finalidade de auto-preservação da vida, mas logo se torna independente dela. [...] A
criança não usa um corpo estranho para a sucção, preferindo uma parte de seu próprio
corpo, tanto porque é mais cômodo quanto porque, deste modo, ela se torna
independente do mundo exterior, que ela não pode dominar ainda e porque, desta
forma, ela cria uma segunda zona erógena, ainda que de menor valor. A inferioridade
desta segunda região está entre os motivos para, posteriormente, ela buscar a parte
correspondente - os lábios de outra pessoa. (‘É uma pena que eu não possa me beijar –
parece estar dizendo’.) (1905, p. 165)

Na passagem do auto-erotismo para o narcisismo, as pulsões que até este momento


atuavam de modo isolado, passam a ter como sustentação o próprio ego.

3.2. Escolha de objeto narcísico

Ao desenvolver o conceito de narcisismo, Freud postulou um estado em que os


investimentos libidinais estão auto-dirigidos, ou seja, num momento do desenvolvimento
infantil em que a criança ainda não pode distinguir-se dos objetos do mundo no qual está
inserida. No estado de narcisismo primário, a criança faz um investimento libidinal em si
própria. Na teoria freudiana, o termo narcisismo sofreu uma transformação ao longo dos anos,
sob influência das diferentes situações clínicas com as quais Freud se deparava.

Freud se refere pela primeira vez ao narcisismo ao tratar dos homossexuais, os quais,
na época, ele denominava invertidos. Numa nota de rodapé, acrescentada em 1910 ao seu
24

texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, ao tratar da origem da inversão,


ele afirma que:

em todos os casos investigados descobrimos que os invertidos passam os primeiros


anos de sua infância por uma breve fase de intensa fixação em uma mulher (em geral
sua mãe) e depois desta fase heterossexual se identificam com a mulher e se
consideram eles próprios seu objeto sexual, isto é, buscam, partindo de uma posição
narcisista, homens jovens e semelhantes a si mesmos e a quem eles possam amar
como eram amados por sua mãe. (Freud 1905, p. 132)

Um ano mais tarde, ele desvincula o narcisismo da perversão ao considerá-lo como


num estádio normal do desenvolvimento sexual. Ao analisar o caso Schreber, Freud comenta:

investigações recentes têm atraído nossa atenção sobre um estádio intermediário entre
o auto-erotismo e o amor objetal. Tal estádio foi denominado de narcisismo e consiste
em que o indivíduo, em sua evolução, chega a um estádio em que ele reúne seus
instintos sexuais que até agora se caracterizavam por atividades auto-eróticas, tomam
seu próprio corpo como objeto amoroso até que possam eleger uma pessoa como eles
próprios, como objeto. (1911, pp. 1516-17)

Foi somente em 1914 que o termo narcisismo foi mais bem desenvolvido, ocupando
um lugar privilegiado na teoria do desenvolvimento sexual. Ao comentar as pesquisas
psicanalíticas, Freud aponta a necessidade de se considerar as questões relativas ao narcisismo
normal nos casos de psicoses. Freud observa que, nos delírios de grandeza, o sujeito retira os
investimentos libidinais do mundo externo e os reverte para si próprio, ou seja, “a libido
afastada do mundo externo é direcionada para o ego, surgindo aí um estado ao qual
denominamos de narcisismo” (Freud, 1914b, p. 2018). Isto somente é possível porque há um
estado anterior denominado de narcisismo primário, situação em que a criança, numa fase
precoce de seu desenvolvimento, quando ainda não procura os objetos externos, escolhe sua
própria pessoa como objeto de amor. A diferença do narcisismo em relação ao auto-erotismo
se assenta no conceito de ego, ou seja, a criança ama a si própria como ego. Posteriormente,
ela buscará alguém que se assemelhe a ela.
25

Em 1915, no texto As pulsões e seus destinos, Freud afirma que o traço


característico do narcisismo é o de “amar-se a si próprio” (1915a, p. 2048).

A idéia fundamental sobre o tema é a existência de uma oposição entre a libido do eu e


a libido do objeto, ambas coexistindo simultaneamente, regidas por uma espécie de princípio
de conservação. Isso significa que, enquanto uma libido aumenta, a outra se reduz, ou seja,
“quanto maior é a primeira, mais pobre é a segunda” (Freud, 1914b, p. 2018). Nestes
primeiros anos da teoria freudiana, o conceito de narcisismo primário é apresentado como o
resultado de uma atitude de transposição para o eu da criança dos investimentos libidinais que
antes eram direcionados aos objetos do mundo externo.

Na segunda tópica (1920), Freud altera sua concepção por constatar, na clínica, que a
retirada do investimento libidinal poderá ser feita apenas em outro momento da vida da
criança. O conceito de auto-erotismo parece desaparecer, dando lugar a um narcisismo
primário. Freud concebe um estado, o de um narcisismo primário, em que a criança não
mantém nenhum tipo de relação com o meio, um estado no qual ego e id coincidem
inteiramente, ou seja, há uma total indiferenciação entre as duas instâncias do aparelho
psíquico. Nesta fase, a criança apresenta uma total incapacidade de se direcionar para os
objetos externos. Freud postula um estado em que a criança toma a si própria como objeto de
amor, num momento que antecede sua capacidade de buscar os objetos externos. Já o
narcisismo secundário se caracteriza por uma retirada total da libido dos objetos externos,
situações características das psicoses. Porém, o próprio Freud abandona o uso da expressão
narcisismo secundário.

3.3. Escolha de objeto homossexual

Freud também postulou um estado de desenvolvimento infantil em que a criança faz


um investimento libidinal em um objeto de amor que tem o mesmo sexo que o dela. Para
Freud, esta é uma fase normal no desenvolvimento da criança. Esta fase se caracteriza pelo
fato de que o objeto de amor privilegiado é homossexual.

Vejamos agora outro modo da libido se relacionar com o objeto.

3.4. Escolha de objeto heterossexual

Outra forma de investimento da libido se dá na situação em que ela pode também se


direcionar para objetos de amor de sexo diferente ao do próprio sujeito: se o sujeito é do sexo
26

masculino, a libido procura direcioná-lo para uma pessoa do sexo feminino e se o


sujeito é do sexo feminino, há um investimento da libido numa pessoa do sexo masculino.

Esta situação é resultado de um processo de desenvolvimento no qual, após intensas


vivências de amor e ódio por seus genitores, a criança experienciou as identificações com suas
figuras parentais.

Este quadro transcorre em meio ao cenário do complexo de Édipo. Nesta situação, a


criança experiencia as identificações com o pai e com a mãe, num intenso jogo.

Para Freud, é no complexo de Édipo que a criança experimenta as diferentes escolhas


de objeto homossexual e heterossexual. Após a resolução do complexo de Édipo, a criança
poderá fazer o investimento libidinal em seu objeto de amor de forma definitiva, que resultará
na escolha de objeto heterossexual. Esse é o desenvolvimento da libido ao qual Freud atribuiu
a característica de normalidade (1905, p. 189).

4. A teoria do desenvolvimento da sexualidade pensada em termos do tipo de


relação com o objeto

No processo de desenvolvimento da sexualidade, os modos de funcionamento


corporais investidos libidinalmente constituem o modelo para Freud pensar o
desenvolvimento dos modos de relação com os objetos. Para que a busca do prazer se
concretize, há a necessidade de que determinadas regiões do corpo, ou zonas corpóreas, sejam
excitadas. A idéia geral é a de que a cada fase uma região corpórea é privilegiada,
caracterizando, então, um tipo específico de relação que o bebê estabelece com o mundo
externo. Desta forma, define-se um modelo de relação objetal.

Ao descrever a trajetória empreendida pela libido nas zonas erógenas do bebê, Freud
mostra a maneira pela qual concebe a organização da sexualidade.9 Essa descrição revela que
cada fase de desenvolvimento do sujeito reveste-se de características diferenciadas entre si e é
resultado de uma observação criteriosa do desenvolvimento das funções sexuais. Freud
esclarece que o desenvolvimento da sexualidade não se faz de forma abrupta e completa e que
é decorrente de um processo que se inicia já no nascimento do bebê. Diz Freud:

9 Em seu estudo História de uma neurose infantil (1918 [1914) Freud faz um estudo clínico do caso de
Hans, no qual ele apresenta as fases da organização sexual da libido.
27

[...] a vida sexual, ou conforme nosso ponto de vista, a função libidinal,


longe de aparecer de uma vez e longe de desenvolver-se de uma forma única, passa
por uma série de fases sucessivas diferentes entre si, apresentando, portanto, um
desenvolvimento que se repete várias vezes, tal como o da lagarta numa borboleta. O
ponto máximo deste desenvolvimento está no fato de haver uma subordinação de
todas as tendências sexuais parciais à genitalidade e à função reprodutiva. A princípio,
a vida sexual apresenta uma total incoerência, sendo composta por um grande número
de tendências parciais que exercem sua atividade independente uma da outra,
buscando o prazer do órgão. Essa anarquia é mitigada pelas predisposições das
organizações pré-genitais que vêm de uma fase sádico-anal, que é precedida por uma
fase oral, que é a mais primitiva. Existem processos ainda não totalmente conhecidos,
que levam a uma organização posterior, mais elevada. (1917 [1916-1917], p. 2327)

De acordo com o que já foi mencionado anteriormente, a descrição de cada fase do


desenvolvimento da função sexual assenta-se no conceito de zona erógena, ou seja, de regiões
do corpo do bebê que constituem a sede das excitações sexuais, regiões que são usadas pelo
ego do bebê para uma busca de objetos para contato, definindo modos de relacionamentos
com os outros. Freud chega a afirmar que “há zonas erógenas predestinadas”, tal como a boca.
(1905, p. 166) A importância da zona erógena vai mais além: todo o crescimento psíquico e
emocional da criança sustenta-se nas interações sociais e gratificações produzidas nessas
regiões. Em 1915, Freud acrescenta que qualquer órgão pode funcionar como uma zona
erógena (1905, p. 213). Para Freud, todo o corpo humano é uma zona erógena, mas há
algumas regiões cuja função primordial parece ser a de revestir-se de característica erógena e
“o caráter da erogeneidade vincula-se a algumas partes do corpo de forma particularmente
marcante” (1905, p. 166).

Ao desenvolvimento das funções sexuais, Freud denominou de organizações pré-


genitais da libido, posto que estes estágios não apresentam uma grande importância em
termos de predominância dos órgãos genitais. Nestas fases, o prazer sexual é do tipo infantil
polimorfo, embora não perca o caráter de sexual na medida em que há estimulação das zonas
erógenas, redução da tensão e prazer.

Freud retrata o desenvolvimento por meio do que ele chamou de fases psicossexuais,
ou seja, na medida em que um bebê se transforma numa criança, esta se transforma em um
adolescente e finalmente num adulto, mudanças significativas ocorrem durante este trajeto. As
transformações nos modos de se obter gratificação e o que ocorre nas regiões físicas que
propiciam esta gratificação constituem os elementos centrais na descrição deste
28

desenvolvimento. Essas idéias foram resumidas por Freud em seu texto Ansiedade e
vida instintual, no qual ele afirma:

os senhores já sabem também que nesta evolução prolongada podemos reconhecer


várias fases de uma organização primitiva, e da mesma forma como essa história da
função sexual explica suas aberrações e atrofias: a primeira dessas fases ‘pré-genitais’
é segundo nossa terminologia, conhecida como fase oral, porque, de conformidade
com a maneira como um lactente é alimentado, a zona erógena da boca domina o que
se pode denominar de atividade sexual desse período da vida. Num segundo estádio,
passam a primeiro plano os impulsos sádicos e anais, sem dúvida em conexão com o
aparecimento dos dentes, o fortalecimento do aparelho muscular e o controle das
funções esfincterianas. [...] Em terceiro lugar, aparece a fase fálica na qual, para
ambos os sexos o órgão masculino (e o que corresponde a este na menina) assume
uma importância. Por último, reservamos o nome de fase genital para a organização
sexual definitiva que se constitui após a puberdade e na qual o órgão genital feminino,
pela primeira vez, encontra o reconhecimento que o órgão masculino havia adquirido
muito tempo antes. (1933 [1932], p. 3156)

Para uma melhor compreensão do que foi afirmado acima por Freud, é necessário
fazer uma descrição do que ocorre em cada fase, tendo como referência a idéia de que cada
uma delas revela um protótipo da relação objetal na medida em que uma zona erógena tem
prerrogativa sobre outra. Por meio de etapas, o bebê sai de uma condição de narcisismo e se
dirige para uma busca de amor objetal, quando finalmente homens e mulheres alcançam
maturidade sexual. Todos estes aspectos da organização sexual foram confirmados por Freud
nos seus últimos textos Esboço de Psicanálise (1940 [1938]).

É por meio do estudo da organização sexual da libido que também se compreende a


formação do caráter do sujeito, tema amplamente abordado por Freud e Karl Abraham (1933
[1932], p. 3157). Estes aspectos serão descritos a seguir.

4.1. Fase oral

Quando Freud inicia a descrição do desenvolvimento sexualidade, ele o faz pelo mais
básico, isto é, pelos fatos que ocorrem com o bebê desde os momentos iniciais de sua vida.
Desde o nascimento e durante os primeiros meses de vida do bebê, em especial nos primeiros
dezoito meses, as gratificações infantis são da ordem da oralidade. Pelo vínculo às questões
29

da oralidade, esta fase também é conhecida como canibalesca. Freud a chamou de


organização pré-genital canibal (1905, p. 180).

No aspecto biológico, as gratificações orais estão vinculadas à autopreservação; no


aspecto psicológico, estão vinculadas à busca do prazer. Nesta fase, boca, lábios e língua
terminam por constituir os órgãos sexuais do bebê (Freud, 1940 [1938], p.3385).

Segundo Freud, “aqui, a atividade sexual ainda não se separou da ingestão de


alimentos [...]. O objeto de ambas as atividades é o mesmo: o objetivo sexual consiste na
incorporação do objeto – o modelo de um processo que mais tarde, na qualidade de
identificação, desempenhará um papel psíquico importante” (1905, p. 180) Nesta fase, a ação
preponderante na vida do bebê vincula-se à alimentação, e o protótipo da relação está na
incorporação, a qual se dá nos atos de comer, chupar, chupar os dedos, morder, segurar,
cuspir, fechar a boca, etc. e em outros movimentos bucais típicos das crianças.

Freud distingue dois subestádios na fase oral: no “primeiro subestádio, o que está em
questão é somente a incorporação oral, não há absolutamente ambivalência em relação ao
objeto – o seio materno. O segundo estádio, caracterizado pelo surgimento da atividade de
morder, pode ser descrito como ‘oral-sádico’ [...]” (1933 [1932], p. 3156).

Nos primeiros períodos da fase oral, o bebê é passivo e receptivo, isto é, tem uma
postura de receptividade em relação ao que recebe do mundo externo, em especial em relação
à alimentação. Posteriormente, por volta dos seis meses, com o surgimento dos dentes, pode
haver uma fusão dos prazeres sexuais com os agressivos. Desta forma, o bebê poderá
apresentar uma certa agressividade, o que promoverá o surgimento de impulsos sádicos. Isso
se expressa no ato do bebê de morder o seio da mãe, o que fará com que ela se retraia e
expresse seu descontentamento.

A conexão entre as neuroses e as fases mais primitivas das organizações da libido foi
10
abordada por Karl Abraham por meio de um vasto material empírico.

Abraham, em 1924, introduz algumas subdivisões à fase oral. Abraham traça uma
linha delimitadora entre o que ele denominou de fase precoce de sucção, pré-ambivalente, e a
fase oral-sádica que surge no momento em que o bebê adquire a capacidade de morder,
quando há o surgimento dos dentes. Na fase oral-sádica, a incorporação assume o sentido de
destruição do objeto quando o bebê pode exercitar as atividades de morder e devorar o objeto.

10 Este matéria se encontra nos textos O primeiro estágio genital da libido e Breve estudo do
desenvolvimento da libido, visto à luz das perturbações mentais, in Teoria psicanalítica da libido.
30

Nesta situação, a agressividade e a libido são direcionadas ao objeto numa atitude


de ambivalência para com este último. Nas palavras de Abraham: na infância, o indivíduo tem
um intenso prazer no ato de sugar e já nos familiarizamos com o ponto de vista de que esse
prazer não deve ser creditado inteiramente ao processo de ingerir alimento, mas sim que se
acha em alto grau condicionado pela significação da boca como zona erógena. (1970, p. 164)

Esta forma primitiva de obtenção de prazer nunca é completamente abandonada pelo


indivíduo, mas persiste sob todas as espécies de disfarces durante sua vida inteira e até mesmo
experimenta um reforço em certas ocasiões e em circunstâncias especiais. Não obstante, à
medida que cresce, tanto física quanto mentalmente, a criança efetua uma renúncia de grande
alcance ao seu prazer original de chupar. Ora, a observação mostra que toda renúncia de
prazer somente se efetua à base de uma troca. É este processo de renúncia e o curso que ele
segue sob diferentes condições que merecem nossa atenção.

Antes de mais nada, há o processo de irrupção dos dentes, que, como é bem sabido,
faz com que uma parte considerável do prazer seja substituída pelo prazer de morder.
Basta-nos lembrar como, durante esta fase de desenvolvimento, a criança leva à boca
todo objeto que pode e tenta, com toda sua força, despedaçá-lo, mordendo-o. (1970, p.
163)

Freud e Abraham demonstraram que a partir do estudo do desenvolvimento do


investimento libidinal da sexualidade pode-se compreender a formação do caráter do sujeito.
Segundo eles, a origem da formação do caráter pode ser encontrada, em parte na disposição
herdada, assim como nos efeitos do ambiente (Abraham, 1970, p. 161). Há uma
transformação na libido, parte é sublimada e parte é transformada de modo a formar o caráter.
Situações em que a libido sofre alguma vicissitude podem gerar uma estrutura de caráter em
que é possível perceber um extremo apego aos seus bens, ou uma dificuldade em ganhar
dinheiro, fazendo com que esses sujeitos apresentem dificuldades na vida prática. Outra
característica pode ser encontrada numa postura de persistência e perseverança. Outros
aspectos típicos de fixação oral mostram-se em sujeitos que se tornam excessivamente
otimistas e bondosos, sujeitos voltados para a vida acadêmico-intelectual, e também em
pessoas extremamente exigentes da presença alheia. Nas situações em que se nota uma
regressão ao estágio sádico-oral para o da sucção alguns sujeitos apresentam comportamentos
semelhantes aos de vampiros (Abraham, 1970, pp. 166-71).
31

Abraham também salienta que, nesta fase, o desmame pode influenciar na


elaboração da trajetória da libido. Algumas mães com posturas de condescendência para com
os filhos na hora do desmame podem provocar dificuldade na elaboração dessa fase (1970,
pp. 165-66).

4.2. Fase anal

De dois a três anos de idade, momento em que o bebê passa a ter, vagamente, controle
sobre os esfíncteres, momento do treinamento higiênico, há um deslocamento da libido da
região oral para a anal. Nas palavras de Freud:

a segunda fase pré-genital é a organização sádico-anal. Aqui há a divisão em opostos


que atravessa a vida sexual, mas ainda não se pode chamar de masculino e feminino,
elas são ativas e passivas. A atividade é produzida pela pulsão de domínio, por meio
da musculatura do corpo e o órgão que representa o objetivo sexual passivo é a
mucosa erógena do ânus, ainda que os objetos destas duas correntes não coincidam.
Juntamente com isto, há outros instintos parciais atuando de maneira auto-erótica.
Nesta fase, portanto, já são observadas as polaridades sexuais e um objeto estranho.
Faltam, todavia, a organização e a subordinação à função reprodutora. (1905, p.180)

Neste momento de sua vida a criança começa a adquirir o controle das funções
esfincterianas – controla evacuação e micção -, a excitação sexual se transfere para a área do
ânus. Com o controle dos esfíncteres, as fezes fazem a intermediação da criança com o
mundo. Há o início do treinamento higiênico e a criança obtém prazer com o controle que tem
do esfíncter anal e com a possibilidade de reter e expulsar as fezes. O resultado é alívio de
tensão e prazer, na medida em que as membranas mucosas da região anal são estimuladas.

A especificidade desta fase foi descrita por Freud quando ele afirma que, “Abraham
mostrou, em 1924, que se pode distinguir dois estádios na fase sádico-anal. O primeiro desses
estádios é dominado pelas tendências destrutivas de destruir e de perder, e o segundo estádio,
por tendências afetuosas para com os objetos – tendências de manter e de possuir” (Freud,
1933 [1932], p. 3156).

Nesta fase, o protótipo de relação se dá pelos atos de expulsar, reter, destruir,


controlar, a doação de parte de si como presente, através das fezes. Essas fezes são “partes do
32

corpo do bebê” (Freud, 1905, p.169) e doá-las significa presentear a realidade


externa com parte dele, isto é, “[...] as fezes foram a primeira dádiva que a criança pôde dar,
algo que ela pôde dar por amor a quem estivesse cuidando dela” (Freud, 1933 [1932], p.
3157). Por isso, é fato comum observar a criança chamar a mãe para ver suas fezes, como se
estivesse a presenteá-la ou a resgatar o contato perdido com o fim da amamentação. O contato
com a realidade externa, com as pessoas que cuidam da criança, promove relações do tipo
eliminar-reter, descarregar e controlar, e finalmente, descarregar e adiar.

A criança se concentra na micção e na evacuação e o treinamento higiênico propicia


um interesse natural para a autodescoberta. Ao obter o controle fisiológico, a criança descobre
uma nova fonte de prazer. Além do controle fisiológico, a criança aufere outro tipo de ganho:
elogios e atenção por parte dos pais. Pode ocorrer outra situação: o interesse dos pais no
treinamento higiênico pode permitir à criança regular a atenção dos mesmos tanto por meio de
um controle bem sucedido dos esfíncteres quanto pela falta deste mesmo controle. A fase anal
traz em si dificuldades típicas de contradição entre o elogio e o reconhecimento, além da idéia
de que o banheiro é ‘algo sujo’ e de que o que ocorre ali deve ser guardado em segredo. A
área corporal do treinamento higiênico se caracteriza por proibições e tabus.

Os prazeres advindos da estimulação dessa zona erógena geram três tipos de conflito.
O primeiro é o conflito pulsional entre a eliminação e a retenção; o segundo é entre o prazer
pulsional em descarga e as tentativas de controle do ego; finalmente, no terceiro, há o conflito
entre o desejo pelo prazer da evacuação e as exigências do mundo externo para o adiamento.
Nesta última situação, há o primeiro conflito entre o sujeito e a sociedade, em que o ambiente
exige que a criança escolha entre violar o princípio do prazer ou ser punida. É nesta fase que o
processo de socialização se apresenta de forma contundente. Neste conflito, a criança pode
vingar-se evacuando intencionalmente, associar os movimentos intestinais com uma perda
importante que leva à depressão, ou, ainda, associar os movimentos intestinais com o ato de
presentear que a levaria ao prazer de ser uma pessoa caridosa.

Em 1908, em seu texto O caráter e o erotismo anal, ao fazer sua primeira descrição do
caráter anal, Freud explicita três características dessas pessoas, ou seja:

[...] são organizadas, parcimoniosas e obstinadas. Cada uma destas palavras sintetiza,
na realidade, um pequeno grupo de traços característicos e interligados entre si. A
qualidade de ‘organizado’ compreende tanto o esmero individual como o escrúpulo no
cumprimento dos deveres corriqueiros e a fidelidade; o contrário de organizado seria
‘descuidado’ ou desorganizado. A parcimônia pode surgir de forma exagerada como
33

avareza e a tenacidade transforma-se em obstinação, associando-se a ela a


cólera e os ímpetos vingativos. Estas duas últimas características, a parcimônia e a
obstinação, aparecem entrelaçadas entre si mais do que a primeira, a organização. Elas
também são o elemento mais constante deste complexo. Parece-me, sem dúvida, que
as três características estão entrelaçadas entre si, sem sombra de dúvida. (1908, p.
1354)

Abraham, tanto quanto Freud, também associa o caráter anal a uma dificuldade em
lidar com o dinheiro, à posse material, enfim. Há outro aspecto importante a ser considerado:
a atividade masculina. De acordo com Abraham:

falando de um modo geral, pode-se dizer que quanto mais a atividade masculina e a
produtividade se acham obstaculizadas nos neuróticos, mais pronunciado se torna o
seu interesse na posse e isto de uma maneira que se afasta amplamente do normal. Em
casos acentuados de formação de caráter anal, quase todas as relações da vida são
colocadas na categoria de ter (aferrar-se) e dar, isto é, de propriedade. (1970, [1921],
p. 185)

Ao apontar a relação entre libido e caráter, Abraham afirma que rabugice, distância e
postura de reserva são características próprias dos sujeitos fixados na fase anal. Estas pessoas
tendem a uma postura de hesitação e procrastinação. Também são típicos alguns
comportamentos, tais como o conservadorismo, “atitude que certamente impede o abandono
rápido daquilo que mostrou ser bom” (Abraham, 1970, [1921], pp. 166-71).

Avareza, organização obsessiva e tendência a fazer as coisas de acordo com seu


próprio sistema, dentre outras características, são apontadas por Abraham como atitudes
típicas de indivíduos de caráter anal (1970, [1921], pp. 176-79)

4.3. Fase fálica ou genital infantil

Este é um dos estágios mais importantes na estrutura do pensamento freudiano. No


terceiro estágio do desenvolvimento sexual, de quatro a cinco anos, a excitação sexual se
concentra nos órgãos genitais. Nesta fase, as crianças manifestam as curiosidades ligadas à
diferença entre os sexos e à sexualidade de um modo geral.
34

É neste momento que a diferenciação entre os gêneros masculino e feminino


torna-se um fator primordial na constituição do psiquismo. Freud acreditava que as meninas,
nesta fase, ainda não sabem da existência da vagina, mas já sabem que o clitóris é um órgão
de prazer (1933 [1032], p.3167). Tanto para o menino quanto para a menina, o órgão sexual
masculino assume uma valoração diferenciada, tornando-se o objeto de interesse de ambos os
sexos. No início desta fase, meninos e meninas acreditam que todos os seres humanos
possuem um pênis. Quando meninos e meninas descobrem a diferença sexual entre homens e
mulheres, esta diferença é compreendida em termos de oposição entre aquele que possui o
pênis e aquele que é privado do pênis, o qual é um ser humano castrado.

Freud investigou o que ocorre com as crianças quando elas vivenciam a excitação
sexual, ou seja, o prazer a partir da estimulação de suas áreas genitais. A excitação, na mente
da criança, vincula-se à presença física de seus pais. Há um incremento do desejo de um
contato mais íntimo com eles e a criança deseja para si própria a intimidade que os pais
compartilham entre si. Há um desejo intenso de ir para a cama dos pais, e surge um ciúme
pela atenção que os pais proporcionam um ao outro, e que faz com que a criança fique um
pouco apartada deles. Tanto o menino quanto a menina experimentam uma situação de querer
compartilhar mais da intimidade com os progenitores, mas temer ambos os pais.

Para os objetivos deste estudo, é necessário analisar separadamente o que Freud


denominou de Complexo de Édipo e complexo de castração.

4.4. Complexo de Édipo

A temática edipiana é uma das mais importantes no arcabouço psicanalítico. Ao longo


de seu trabalho, Freud considerou que as relações objetais envolvidas no complexo edipiano
são fundamentais para o desenvolvimento infantil, tanto em termos de normalidade quanto na
patologia.

Este tema pode ser encontrado em vários textos da obra freudiana. Os primeiros
indícios deste conceito surgem numa carta de Freud a Fliess, em 1897, quando, ao falar das
descobertas acerca de si, afirma:

descobri, também em meu próprio caso, [o fenômeno] de me apaixonar por mamãe e


ter ciúme de papai, e agora o considero um acontecimento universal [...] a lenda grega
capta uma compulsão que todos reconhecem, pois cada um pressente sua existência
em si mesmo. Cada pessoa na platéia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia, e
35

cada uma recua, horrorizada, diante da realização de sonho ali transplantada


para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do
estado atual. (Freud/Fliess 1986, 15/10/1897, p. 273)

A apresentação teórica desta situação vivida por todos os seres humanos foi feita em
1910, quando Freud apresentou a escolha amorosa de alguns tipos de pacientes e da
vinculação desta escolha com o que vivenciou com os próprios pais: “tal investigação nos
conduz ao período em que o menino chega a um certo conhecimento da natureza das relações
sexuais dos adultos, período que localizamos nos anos imediatamente anteriores à puberdade”
(1910, p. 1628).

Numa analogia com a tragédia grega, Freud formulou a idéia de que todo menino
revive um drama similar ao do mito grego na fase dos três aos cinco anos aproximadamente:
ele deseja possuir a mãe e matar seu pai, tal como Édipo, personagem mítico que ouviu e
cumpriu a profecia de que ele se apaixonaria por sua mãe e mataria seu pai. Assim, nos
meninos, o amor já experimentado pela mãe é complicado pelo desenvolvimento da excitação
peniana e pela percepção de que há um relacionamento genital-amoroso entre o pai e a mãe.
Há uma intensificação de ereções e as excitações nesta área o levam a se interessar mais pelos
órgãos sexuais, tanto os masculinos quanto os femininos. Esse interesse o leva à descoberta de
que a menina não possui um pênis, e a se perguntar o porquê disso. A percepção de que a
menina não tem pênis provoca o temor de perder o pênis e sofrer a castração. Estes fatores o
levam ao complexo de Édipo e a experimentar a ansiedade de castração. O menino vê o pai
como um rival pelo afeto da mãe, e o medo de retaliação por parte do pai é acentuado nesta
fase. Aqui, a figura do pai exerce um papel preponderante na determinação da identidade
sexual da pessoa no futuro.

Segundo Freud,

já se afirmou adequadamente que o complexo de Édipo é o complexo nuclear das


neuroses, o elemento essencial de seu conteúdo. Nele culmina a sexualidade infantil,
que, por suas conseqüências, influi decisivamente sobre a sexualidade do adulto. Todo
ser humano que nasce tem a tarefa de dominar o complexo de Édipo; aquele que não
consegue resolvê-lo sucumbirá à neurose. O progresso do trabalho psicanalítico tem
destacados com traços cada vez mais nítidos a importância do complexo de Édipo [...]
(1905, p. 206, nota acrescentada em 1920)
36

A resolução do complexo de Édipo se dá na medida em que o menino


mantém a mãe como objeto de amor, mas o acesso a ela se dá através da identificação com o
pai. Ao identificar-se com o pai, o menino assume para si muito dos valores e moral
preconizados por seu pai. A resolução do complexo de Édipo ocorre devido aos
desapontamentos provocados pela mãe, pelo temor ao pai e pelos lucros que o menino terá ao
se identificar com seu progenitor.

A menina vive um conflito semelhante ao do menino, embora a resolução se dê de


forma diferente para ela. Ao constatar que não possui o pênis, a menina atribui a
responsabilidade deste fato à mãe. Por não possuir o pênis, a menina experimenta o
sentimento de inveja e a maneira de resolver o problema gerado por esta falta é escolher o pai
como objeto de amor e imaginar que o órgão perdido lhe será devolvido ao ter um filho com o
pai. O obstáculo é, naturalmente, a mãe, que é a sua maior rival. O conflito é resolvido ao
manter o pai como objeto de amor, ao mesmo tempo em que consegue tê-lo ao se identificar
com a mãe. O conflito é menos intenso na menina porque ela já se vê como um macho
castrado, isto é, ela já perdeu o pênis. O afeto envolvido no Édipo feminino não é a angústia
da castração, mas a inveja que surge porque a menina descobre que não possui um órgão
equivalente ao do menino. O sentimento de inveja pode fazer com que ela despreze a vida
sexual por algum tempo, além de desconhecer seus próprios órgãos sexuais. (Freud, 1940
[1938], p.3385)

A preocupação em explicar como se forma o complexo pode ser vista em outros


textos11 e por meio deles constatamos que é na idéia do conflito psíquico que ele se sustenta.
A relação do complexo de Édipo com a neurose pode ser vista num texto em que Freud
esclarece que

pode-se afirmar que o complexo de Édipo é o complexo nuclear das neuroses e


constitui o elemento essencial do conteúdo desta enfermidade. Todo ser humano tem
diante de si a tarefa de dominar o complexo de Édipo e se não o consegue, sucumbirá
à neurose. A psicanálise tem fixado decisivamente a importância do complexo de
Édipo e sua aceitação ou recusa é o que mais define seus partidários ou adversários.
(1920a, p.1227n)

11 Entre eles podemos citar O Homem dos Lobos; Além do Princípio do Prazer; O Ego e o Id.
37

No texto Esboço de Psicanálise verifica-se um coroamento da importância


do complexo de Édipo com a afirmativa freudiana de que: “atrevo-me a declarar que se a
Psicanálise não tivesse o mérito de nenhuma outra realização além da descoberta do complexo
de Édipo reprimido, só essa idéia já lhe bastaria para ser incluída entre as conquistas mais
valiosas feitas à Humanidade” (Freud, 1940 [1938], p. 3409).

4.5. Complexo de castração

Segundo Freud, no processo de desenvolvimento normal há uma fase em que meninos


e meninas imaginam que todos os seres humanos possuem um mesmo órgão sexual e que este
tem a forma masculina. A importância outorgada ao órgão sexual masculino é de tal monta
que Freud destaca que “a suposição de que todos os seres humanos têm a mesma forma
masculina de órgão genital é a primeira de muitas teorias sexuais notáveis das crianças”
(1905, p 177).

A idéia central é a de que quem não tem um órgão sexual masculino é castrado.
Assim, quando as crianças constatam que há uma diferença anatômica entre os órgãos sexuais
masculinos e femininos, um temor se instala: o temor da castração.

Freud esclarece que há, no que se refere aos meninos e às meninas, formas diferentes
de experimentar o complexo de castração. Os meninos experimentam este temor porque já
vivenciaram o complexo de Édipo. O amor experimentado pela mãe e a disputa por ela com o
pai gera no menino o receio de que o pai possa castrá-lo, numa atitude de retaliação pelos
desejos infantis. (Freud, 1933 [1932], pp. 3149-150) Desta forma, o pai promove no filho a
interdição da figura materna. Uma conseqüência importante para o menino é que o complexo
de castração possibilita a sua saída do complexo de Édipo. (1924, p. 2750)

O sentimento experimentado pelas meninas, quando descobrem que não possuem um


órgão sexual como o dos meninos, as levam a responsabilizar a mãe por essa falta e pela
conseqüente situação de desvantagem (1933 [1932], pp. 3149-150). As meninas desenvolvem
o sentimento da inveja do pênis e escolhem o pai como objeto amoroso, na expectativa de que
o órgão seja recuperado ao ter um filho do pai. A resolução virá por uma identificação com a
mãe, que é a forma de poder ter o pai na medida em que o mantém como objeto de amor.

Enquanto os meninos resolvem o complexo de Édipo por meio da castração, as


meninas são introduzidas numa situação similar à edípica, ou seja, enquanto o complexo de
Édipo é dissolvido por meio do complexo de castração, o da menina é possibilitado e
introduzido pelo complexo de castração (Freud, 1924, p. 2750). Com esta situação, a menina
38

finalmente se afasta de sua mãe e além de se dirigir para o pai, em termos futuros,
se encaminha para a heterossexualidade.

4.6. Período de latência

Com o desenvolvimento infantil, que inclui o aspecto biológico, a criança entra no


período de latência. Neste período, há um arrefecimento dos impulsos libidinais, mas as
questões sexuais não são interrompidas, de maneira que o que ocorre é a produção de uma
reserva de energia que será utilizada em situações sociais (Freud, 1905, p. 160). Isto significa
que “é neste período de latência total ou parcial que se edificam as forças psíquicas – a
repugnância, os sentimentos de vergonha e as exigências dos ideais estéticos e morais - que
mais tarde se apresentarão como inibidores da pulsão sexual e, como diques, impedirão seu
fluxo” (1905, p. 160).

Para Freud, não há neste momento uma nova organização sexual, embora a
sexualidade esteja presente. O que ocorre é que há um processo de desaceleração das
demandas sexuais infantis em que o modo de relação com o mundo se fará em bases menos
sexualizadas, o que não faz esse período menos importante para a criança, antes pelo
contrário, pois este momento é tão importante que Freud chega a afirmar que nele “parece
estar contida uma das condições da aptidão do homem para o desenvolvimento de uma cultura
superior, mas também de sua tendência para a neurose” (1905, p. 214). Em termos de
identificação com os progenitores, a criança tenderá a se identificar com o progenitor do
mesmo sexo, o que é essencial para uma maior diferenciação entre os papéis de gênero.

Por meio de processos como repressão, formação reativa e sublimação, as demandas


sexuais desse período são reorientadas para situações socialmente aceitáveis. Em outros
termos, é neste período que outros propósitos humanos serão alcançados.

Em termos de atitudes infantis, entre os cinco e os treze anos, as crianças se voltam


para as atividades e relacionamentos com os companheiros, escolarização e esportes, dentre
outras atividades infantis importantes. Nesta fase, as brincadeiras com outras crianças do
mesmo sexo constituem um elemento auxiliar no fortalecimento dos papéis sexuais por meio
das identificações. De um modo geral, este é um período de relativa calma na relação entre a
criança e seus progenitores, embora em nível consciente ainda haja alguns elementos de
desejo sexual e agressão para com eles.
39

4.7. Fase genital adulta

Quando a pessoa chega na fase genital, há o que Freud denominou de organização


sexual definitiva. O percurso empreendido é sintetizado por ele:

até agora destacamos as seguintes características da vida sexual infantil: ela é


essencialmente auto-erótica (isto é, encontra seu objetivo no corpo do próprio bebê) e
estarem seus instintos parciais individuais em geral desligados e independentes um do
outro na sua busca do prazer. O resultado final do desenvolvimento sexual está no que
se conhece como vida sexual normal do adulto, em que a busca do prazer fica sob a
influência da função reprodutora e em que os instintos parciais, sob o primado de uma
única zona erógena, constituem uma firme organização dirigida para um objetivo
sexual ligado a algum objeto estranho. (1905, p. 179)

Será nesta fase, enfim, que o sujeito estabelecerá de forma mais definitiva o padrão de
desejo com seu objeto. As grandes transformações pelas quais ele passou durante seu
desenvolvimento psicossexual encontrarão sua forma definitiva. A fase final do
desenvolvimento biológico e psicológico ocorre com o início da puberdade e o retorno da
pulsão para os órgãos sexuais. Essas transformações ficarão evidentes com a entrada na
puberdade e adolescência.

4.8. Puberdade e adolescência e a organização sexual definitiva

Com o início da puberdade e da adolescência, surge um novo despertar da sexualidade


genital. Neste momento, homens e mulheres estão ambos mais conscientes do que são a
excitação e a atração sexual, e empreendem uma busca de formas de satisfazer suas
necessidades eróticas.

De acordo com Freud,

durante os processo da puberdade estabelecem assim a primazia das zonas genitais; e,


no homem, o pênis que se tornou capaz de ereção pressiona insistentemente no sentido
do novo objetivo sexual: a penetração numa cavidade do corpo que excita sua zona
genital. Simultaneamente, no aspecto psíquico, completa-se o processo de encontrar
um objeto, processo para o que foram feitas preparações desde a primeira infância.
(1905, p. 202)
40

É nesta fase que o conceito psicanalítico de prazer sexual se aproxima do significado


mais comumente aceito do termo, embora, na visão freudiana, o prazer sexual da fase genital
represente mais que um desenvolvimento posterior da pulsão sexual presente na vida do
sujeito desde seu nascimento.

Em 1905, ao descrever o final do processo de desenvolvimento da sexualidade, Freud


diz que, com a chegada da puberdade, a pulsão finalmente encontra um objeto sexual. Nesta
fase, aparece um novo objetivo sexual e as zonas erógenas ficam subordinadas à zona genital.
Esse novo objetivo sexual atribui funções sexuais diferentes para homens e mulheres. Diz
Freud:

o [desenvolvimento] dos homens é o mais direto e o mais acessível à nossa


compreensão, ao passo que o das mulheres entra numa espécie de involução. A
normalidade da vida sexual é garantida unicamente por uma exata coincidência das
duas correntes direcionadas ao objeto: a corrente afetiva e a corrente sensual. A
primeira delas reúne em si o que resta do florescimento infantil da sexualidade. É
como a conclusão de um túnel escavado através da montanha, a partir de seus dois
extremos. (1905, p. 189)

O novo objetivo sexual dos homens consiste na descarga dos produtos sexuais. O
objetivo anterior, a realização do prazer, não lhe é mais estranho, ao contrário, o mais alto
grau de prazer está ligado a este ato final do processo sexual. A pulsão sexual agora está
subordinada à função reprodutora, ela se torna altruísta. Para que esta transformação tenha
êxito, é preciso contar com as disposições originárias e todas as peculiaridades das pulsões.
(1905, p. 189)

Um dos aspectos essenciais da puberdade está na retomada mais intensa dos impulsos
sexuais e no crescimento dos órgãos genitais externos. É nesta fase que o sujeito se torna
maduro para a procriação e para a obtenção do prazer que ocorrerá por meio da relação
sexual. Há o crescimento manifesto dos órgãos genitais externos, assim como o
desenvolvimento dos órgãos sexuais internos já está maduro o suficiente para que os produtos
sexuais possam ser descarregados ou, conforme o caso, provocar a formação de um novo ser
vivo (Freud, 1905, p. 190). Esta fase se prolongará até o final da vida do sujeito.
41

Na puberdade se estabelece, também no aspecto psíquico, a diferença entre


homens e mulheres:

como se sabe, é somente na puberdade que se estabelece a distinção nítida entre os


caracteres masculinos e femininos, um contraste que dessa época em diante tem uma
influência mais decisiva do que qualquer outro na formação da vida humana. É certo
que as disposições masculina e feminina já são facilmente reconhecíveis na infância:
há um desenvolvimento das inibições da sexualidade (vergonha, repugnância, piedade
etc) que se verifica nas menininhas mais cedo e em virtude de menor resistência do
que nos meninos; a tendência à repressão sexual parece em geral ser maior; e quando
os instintos parciais da sexualidade aparecem, eles preferem a forma passiva. Porém, a
atividade auto-erótica das zonas erógenas é a mesma em ambos os sexos e, devido a
esta uniformidade, não há possibilidade de distinção entre os dois sexos como a que
ocorre após a puberdade. No que se refere às manifestações auto-eróticas e
masturbatórias da sexualidade, poderíamos estabelecer que a sexualidade das
mocinhas é de caráter inteiramente masculino. Na verdade, se pudéssemos dar uma
conotação mais definida aos conceitos de ‘masculino’ e ‘feminino’, seria até mesmo
possível sustentar que a libido é invariável e necessariamente de natureza masculina,
ocorra ela em homens e em mulheres e independentemente de ser seu objeto um
homem ou uma mulher. (Freud, 1905, p. 200)

Essas idéias se sustentam na tese de Freud de que o pênis12 é o órgão sexual que deve
ser tomado como referência na constituição da identidade feminina. Mesmo quando Freud
aponta o clitóris como o órgão sexual feminino por excelência, esta apresentação se dá em
termos de equivalência e não pelo órgão em si mesmo (1905, p. 201).

Em 1923, em seu estudo A organização genital infantil (acréscimo à teoria da


sexualidade), Freud corrobora as idéias estabelecidas em 1905 e faz um adendo: na
genitalidade, não há uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do pênis (1923b, p.
2699). O pênis é o órgão mais importante na determinação da sexualidade, mesmo na
sexualidade feminina adulta. Nos trabalhos posteriores de Freud, a superioridade do pênis é
apresentada como um fato irrefutável.

12 Em Freud, os termos falo e pênis têm conotações diferentes. O termo pênis designa o membro real,
enquanto que falo se refere ao órgão em seu sentido mais simbólico. É possível observar que o termo falo é
pouco empregado por Freud.
42

Abraham, em 1925, em seu texto A formação do caráter no nível genital do


desenvolvimento da libido, afirma que “[...] o indivíduo só é capaz de ocupar seu lugar e
exercer seus poderes plena e satisfatoriamente em seu ambiente social se sua libido atingiu o
estágio genital” (1970 [1925], p. 196). A chegada a esta fase fecha o desenvolvimento
iniciado na fase oral.

Nas palavras de Abraham:

[...] a chegada a este estágio de desenvolvimento coincide com outro importante


evento, ou seja, a consecução do nível mais alto da organização libidinal – o nível
genital, como é chamado. Acreditando, como o fazemos, que os traços
caracteriológicos dos homens e das mulheres têm sua origem em fontes instintivas
definidas, deveríamos naturalmente esperar que o desenvolvimento do caráter de uma
pessoa só se completasse ao ter sua libido atingido seu mais alto estágio de
organização e alcançado a capacidade para o amor objetal. E, na realidade, o ponto de
vista de Freud de que a atitude sexual de uma pessoa se reflete em toda a tendência de
sua atitude mental geral encontra uma confirmação completa em todos os fatos
observados também neste campo. (1970 [1925], p. 196)

Neste estágio final se encontram os traços dos estágios anteriores e cada qual
contribuiu para a formação de caráter do sujeito. Segundo Abraham,

da primitiva fase oral [o sujeito] tira a iniciativa e a energia; da anal, a resistência, a


perseverança e diversas outras características; das fontes sádicas, a força necessária
para prosseguir a luta pela existência. [...] E uma parte considerável de seus instintos
sádicos não é mais empregada para fins destrutivos, mas sim para propósitos
construtivos. (1970, [1925], p. 203)

O sujeito consegue, então, superar sua ambivalência e seu narcisismo e se pode


entender que neste momento as tendências egoístas já foram abandonadas e o sujeito já está
pronto para ocupar seu lugar na sociedade, é capaz de amar e trabalhar de forma eficaz. Isso
indica que ele superou as demandas pulsionais das fases anteriores sem fixações em alguma
fase de desenvolvimento psicossexual.

A descrição da trajetória dos investimentos libidinais no decorrer do desenvolvimento


do sujeito assumirá importância na constituição de sua vida psíquica. A cada mudança de
43

fase, os antigos objetos e os modos de gratificação que são próprios de cada fase
anterior são abandonados, embora não haja um abandono total da libido naquela zona
específica. A libido não pode ficar retida numa zona erógena específica, ela tem que circular
de uma zona a outra, ou seja, ela catexiza essas zonas em cada fase de vida do sujeito.

5. Princípios e conceitos gerais utilizados por Freud para a elaboração da teoria


da sexualidade

Meu objetivo neste item não é o de fazer uma análise crítica da obra de Freud, uma
exegese, tarefa árdua e já realizada por especialistas abalizados, cuja extensão ultrapassaria o
campo de estudo deste estudo. Esclareço ainda que não tenho por objetivo promover um
confronto entre conceitos e idéias, posto que isto poderia exigir a comparação de idéias
incomensuráveis.13

Pretendo examinar, exclusivamente, de que forma os elementos especulativos e


empíricos estão presentes na teoria da sexualidade. A justificativa para essa apresentação está
no fato de que se faz necessário compreender de que forma Freud articula tais conceitos em
sua teoria psicanalítica, para posteriormente investigar se eles também estão presentes na
psicanálise winnicottiana. Esta é uma tarefa difícil, porém necessária, posto que as questões
que envolvem a sexualidade constituem o elemento central da psicanálise freudiana.14

Como método de trabalho, fiz uma leitura dos principais textos de Freud nos quais os
pilares da psicanálise tradicional podem ser encontrados, tais como A interpretação dos
sonhos (1900), Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental (1911), História de uma neurose infantil (1918 [1914]),
História do movimento psicanalítico (1914), As pulsões e seus destinos (1915), Lições

13 Segundo Thomas Kuhn, quando há uma mudança paradigmática, os significados de todos os termos
teóricos utilizados podem se alterar e resultar numa espécie de intraduzibilidade entre eles. Diz Kuhn: “dado que
os novos paradigmas nascem dos antigos, incorporam comumente grande parte do vocabulário e dos aparatos,
tanto conceituais como de manipulação, que o paradigma tradicional já empregara. Mas raramente utilizam esses
elementos emprestados de uma maneira tradicional. Dentro do novo paradigma, termos, conceitos e experiências
antigos estabelecem novas relações entre si. O resultado inevitável é o que devemos chamar, embora o termo não
seja bem preciso, de um mal estar entre as duas escolas competidoras.” ( 1970, pp. 188-9)

14 Busquei ajuda na obra de comentadores e escritores sobre Freud, tais como David Rapaport,
Elisabeth Roudinesco, Jean Laplanche, Jean-Bertrand Pontalis, Marthe Robert e Paul-Laurent Assoun. Entre os
autores brasileiros baseei-me em Leopoldo Fulgencio e Zeljko Loparic.
44

Introdutórias sobre Psicanálise (1917 [1916-1917]), Esboço de Psicanálise,O id e o


ego (1923), A feminilidade (1931), Novas lições introdutórias de Psicanálise (1933 [1932]),
entre outros. Esses textos de Freud permitem observar a primazia dos elementos especulativos
na teoria da sexualidade e a maneira pela qual ele concebe a constituição da sexualidade.
Observei também que a sexualidade feminina é concebida pelo viés masculino, no qual o
órgão sexual masculino é privilegiado. Ressalto que essa leitura mostrou a dificuldade de
examinar idéias freudianas de uma forma isolada, mas em nenhum momento deixei de
considerar a perspectiva temporal, além do ambiente e do espírito da época nos quais foram
escritas. Penso que, para se alcançar uma melhor compreensão das idéias freudianas, é
profícuo analisá-las a partir de uma linha cronológica de evolução do pensamento do autor.
Isso foi o que fiz: as idéias freudianas foram estudadas numa perspectiva que leva em conta os
aspectos cronológicos. Ressalto que, de modo a contemplar o tema estudado na obra
freudiana, foi necessário efetuar um recorte da mesma, dando ênfase aos temas referentes à
sexualidade.

Em texto de 1915, As pulsões e seus destinos, Freud comenta em que condições as


ciências se fundamentam; observa que mesmo que uma ciência pretenda estruturar-se em
conceitos básicos claros e bem definidos, não é isso o que ocorre, mesmo quando se trata da
ciência que se pretende a mais exata. Para ele, “o verdadeiro início da atividade científica
consiste na descrição dos fenômenos, sendo que estes são agrupados, ordenados e
relacionados entre si” (1915a, p. 2039). Portanto, uma descrição precisa dos fenômenos é o
ponto de partida do cientista. Porém, essa descrição dependerá de certas idéias abstratas que
orientarão a observação e organização dos fatos descritos.

A busca de prover uma fundamentação sólida à estrutura psicanalítica se deve à forma


como Freud concebe sua teoria, pois, para ele, a psicanálise é uma ciência natural que tem
como objetivo resolver problemas empíricos específicos, ou seja, os clínicos por excelência. É
nessa situação que verificamos a trajetória empreendida por Freud na construção da
psicanálise: esta também se estruturou inicialmente a partir da descrição de fenômenos.
Posteriormente, uma teorização se acrescentou aos fenômenos observados. A importância que
Freud dava à observação, aos fatos empíricos e à experiência clínica propriamente dita pode
ser encontrada no prefácio, de 1914, da terceira edição de seu texto Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, quando ele diz que “[...] devo enfatizar, que a exposição feita nas
páginas seguintes parte sempre da experiência médica cotidiana [...]” (1905, p. 112). Em
1920, ele acrescenta que “se o ser humano soubesse como aprender através da observação
direta das crianças, estes três ensaios não precisariam ter sido escritos” (Freud, 1905, p. 120).
45

Os estudos empreendidos sobre a estrutura psicanalítica apontam que ela se


compõe de um conjunto de teorias oriundas dos fatos clínicos e também por um conjunto de
conceitos especulativos, denominados por Freud como superestrutura especulativa da
psicanálise, cujos componentes são a pulsão, a libido e o aparelho psíquico, ou seja, a
15
Metapsicologia. Os elementos empíricos e os especulativos estão presentes na estrutura
psicanalítica como um todo. O próprio Freud, em 1914, estabeleceu a distinção entre os
elementos empíricos e os especulativos ao afirmar que há diferença entre uma teoria
especulativa e uma teoria criada a partir de uma interpretação empírica (1914a, p. 2019).
Segundo Fulgencio, a distinção entre esses dois aspectos

poderá esclarecer em que sentido a psicanálise não é uma pura ficção, um conto de
fadas científico tal como julgara Krafft-Ebing, nem uma falsa ciência empírica, que
teria lançado hipóteses especulativas que um dia seriam provadas como tendo
referentes objetivos no mundo fenomênico ou, ainda, uma doutrina científica mal
fundada, contraditória ou inadequada nos seus fundamentos epistemológicos e
metodológicos.(2001, p. 346)

Esses dois elementos – os empíricos e os especulativos - também podem ser


encontrados no tratamento dado às questões da sexualidade. Freud acrescenta os elementos
especulativos aos empíricos de modo a completar os dados clínicos descritivos que ele
encontra nos seus pacientes. Conceitos como o de pulsão de morte foram acrescidos às
descrições clínicas e essa foi a forma encontrada por ele para oferecer uma maior
compreensão de seu trabalho clínico e de conferir a este um caráter de legitimidade. Freud
pôde, então, articular os elementos empíricos, ou clínico-descritivos, e os especulativos, de
modo a construir o arcabouço teórico psicanalítico. Esse arcabouço é composto por elementos
tais como transferência, resistência, teoria da sexualidade, pelas noções de
consciente/inconsciente, metapsicologia, aparelho psíquico, entre outros.

Para oferecer uma compreensão de como os elementos empíricos e os especulativos se


articulam na teoria da sexualidade, neste estudo usarei o termo psicologia ou psicologia
clínica, ao me referir aos aspectos descritivos que o método psicanalítico abarca; e o termo
metapsicologia ao me referir ao arcabouço especulativo deste método, segundo as distinções

15 Na carta datada de 13/02/1896 Freud usa o termo metapsicologia – ‘tenho me ocupado


continuamente com a psicologia – na verdade com a metapsicologia [...]” (Freud/Fliess, 1986, p.173)
46

feitas por Rapaport, Assoun, Fulgencio e Loparic, entre outros. Estarei também
atenta no sentido de identificar nos conceitos fundamentais da psicanálise o que neles é
puramente descritivo daquilo que lhes foi introduzido ao se juntar o ponto de vista dinâmico.
A assunção desse posicionamento é importante para entender como esses dois elementos – os
empíricos e os especulativos, a psicologia e a metapsicologia – se imbricam na teoria
freudiana da sexualidade e também para traçar a linha diferencial em relação ao pensamento
winnicottiano.

Vejamos agora como se dá a composição dos elementos empíricos e especulativos na


Teoria da Sexualidade.

a) Empíricos

Foi com base numa observação criteriosa dos fenômenos expostos nos fatos clínicos
que Freud construiu sua teoria da sexualidade. Ele próprio afirmou que sua obra é resultado
de uma grande capacidade de organizar e classificar as experiências observadas em sua
clínica. Um exemplo da importância que Freud dava à experiência e observação dos fatos
pode ser encontrado numa situação, relatada por Freud, e vivida com Breuer, na qual ambos
têm uma divergência acerca do mecanismo psíquico mais apurado da histeria. Breuer
mostrava preferência por uma teoria fisiológica, enquanto Freud defendia uma explicação que
mais tarde ele denominou de “repressão”. A convicção de Freud fundamentava-se em
situações concretas, pois segundo ele, “[...] a experiência me mostrava sempre uma única e
mesma coisa [...]” (1914a, p. 1897). Em toda a obra de Freud deparamo-nos com observações
que revelam a importância que ele atribuía à observação empírica, tal como no exemplo
mostrado acima (1919, p. 2480).

Para Freud, a elaboração teórica vem a posteriori e de forma a fornecer o nexo entre
os fatos. O que deve prevalecer é uma grande e apurada perspicácia para organizar os dados
dispersos de forma a identificar os quadros nosográficos em estudo.

A minuciosa descrição de Freud sobre a vida sexual dos seres humanos constitui prova
inegável da importância dada às observações e descrições concretas de uma das situações
sobre as quais a Psicanálise se sustentou. Através da descrição do desenvolvimento
psicossexual, Freud aponta o comportamento infantil com base na relação que o sujeito
estabelece com o mundo e com os objetos com os quais se depara desde seu nascimento.
47

a.1. Relação de objeto

No tocante à constituição e à importância da sexualidade, devemos buscar nas relações


de objeto o fundamento para a organização do aparelho psíquico. Esse tema foi bordado por
Freud em vários textos, em especial no Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade.

Já assinalei a importância que Freud outorgava à observação de seus pacientes de


forma que pudesse ter uma explicação plausível sobre o modo de funcionamento de seus
aparelhos psíquicos. Foi por meio de uma observação sistemática em seus pacientes, que
Freud apontou que o psiquismo se estrutura através das relações de objeto16, ou seja, o sujeito
se constitui a partir das relações estabelecidas com outras pessoas. Freud instaurou o uso do
termo objeto na psicanálise em 1905, quando introduziu o que ele chama de termos técnicos.
Ao apontar a catexia pulsional entre os sujeitos envolvidos nas questões da sexualidade, Freud
diz que “chamaremos a pessoa de quem procede a atração sexual de objeto sexual” (1905, p.
123).

O que caracteriza de fato as relações de objeto? Para entendermos como elas se dão,
precisamos considerar que o sujeito, ao buscar um objeto para obter satisfação, o fará movido
por uma pulsão. O sujeito já tem em mente o alvo para o qual dirigirá sua pulsão, ao mesmo
tempo em que já sabe qual é a fonte de onde essa pulsão parte. Por um lado, há um tipo de
atividade, um modo pelo qual se concretiza o ato pulsional e, por outro lado, haverá um
determinado tipo de objeto que receberá essa ação. Para a compreensão de como uma ação se
efetiva há a necessidade de introduzirmos um componente não empírico, um componente que
se expresse através de uma força, isto é: juntamente com o elemento empírico necessitamos
de um especulativo, ou seja, a idéia de libido.

No início de sua vida, o sujeito humano dirige sua libido para si próprio e só
posteriormente a libido será direcionada para as pessoas com as quais vier a conviver. Os
primeiros objetos com os quais o bebê convive são os objetos parciais. Como exemplo,
podemos citar o seio materno. Somente mais tarde o bebê vai se relacionar com a mãe inteira.

16 Embora a expressão relações de objeto não tenha sido cunhada por Freud, ela se tornou fundamental
na teoria psicanalítica por fornecer uma forma de compreensão das relações que os sujeitos estabelecem com o
mundo externo. Essa expressão foi introduzida na psicanálise pelos sucessores de Freud, em especial Melanie
Klein e Jacques Lacan.
48

Freud apresentou o estabelecimento das relações objetais por meio das fases
psicossexuais, que vão da oralidade à genitalidade.

As relações mantidas com os pais – ou com quem os substituir em sua ausência – terão
uma importância essencial na formação do psiquismo da criança. Ou seja, as primeiras
pessoas com as quais o bebê se relaciona no início de sua vida são as responsáveis pela
articulação de seu aparelho psíquico, determinando toda a formação de sua personalidade.
Aqui nos referimos à hipótese estrutural do aparelho psíquico. A idéia presente é a de que o
bebê, e, depois, a criança, ao buscar a gratificação, movido pela pulsão, estabelecerá contato
com os sujeitos presentes em sua vida e isso definirá toda a sua constituição. A relevância
dada às relações de objeto está no fato de que todo o desenvolvimento posterior desse bebê
será pautado pela forma como pais e filhos estabeleceram os vínculos entre si, a forma como o
envolvimento afetivo permeou essas relações. É por meio das relações estabelecidas com os
pais que os sujeitos buscam gratificações e efetivam, enfim, todo o contato com o mundo,
constituindo-se como seres humanos por meio da pulsão e da libido.

a.2. O princípio do prazer

Conforme vimos no início deste estudo, há uma estreita relação entre sexualidade e
princípio do prazer, uma vez que este último é responsável pelo funcionamento do psiquismo.
A assertiva de Freud de que o comportamento do bebê é guiado pelo princípio do prazer
constitui um aspecto empírico da teoria da sexualidade.

Pode-se afirmar que o princípio do prazer também tenha um caráter especulativo, na


medida em que Freud diz que ele é uma ficção. Numa nota de rodapé de seu texto sobre o
funcionamento da vida mental, ele disse que o uso de uma ficção deste gênero é justificável
quando se observa que o bebê, juntamente com os cuidados maternos, está próximo de
realizar tal sistema psíquico. O bebê alucina a realização de suas necessidades internas, o que
indica a presença do desprazer, e vive a satisfação alucinatória. Posteriormente, a criança
aprende a usar intencionalmente estas descargas com outros meio mais significativos. Como
os cuidados com o bebê são o modelo do modo de se ocupar posteriormente das crianças, o
império do princípio do prazer terminará com o desligamento em relação aos pais. (Freud,
1911, p. 1639) Este aspecto especulativo consiste na idéia de que o princípio do prazer é o
motor básico da existência humana, motor com o qual o aparelho psíquico tem que lidar como
seu motor universal. Num de seus textos da fase final de sua vida, Freud reitera: “como já
dissemos, quem define o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer,
49

princípio que rege as operações do aparelho psíquico desde mesmo sua origem, de
cuja adequação e eficiência não se pode duvidar [...]” (Freud, 91930 [1929], p. 3025)

Freud descreverá em, sua obra, de que forma o sujeito concretiza a busca pela
eliminação das tensões e pela gratificação, e como ela pode ser observada no comportamento
infantil. Na medida em que realiza suas atividades clínicas, Freud gradativamente chega à
elaboração de uma teoria geral sobre o funcionamento mental. Essa elaboração é importante
para que ele possa compreender os processos mentais normais. A compreensão deste
fenômeno, ele expõe em seu estudo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento
mental. Freud parte da idéia de que o psiquismo humano tem duas tendências básicas a
conduzir seu funcionamento: o princípio do prazer e o princípio da realidade. Estes dois
princípios entrarão em conflito nas situações psicopatológicas.

O princípio do prazer é o processo responsável pelo fato de que o psiquismo afasta-se


de qualquer situação que possa provocar a sensação de desprazer (Freud, 1910-1911 (1911),
p. 1638).

Ao afirmar que no início da vida o bebê busca gratificações, Freud se fundamenta no


aspecto econômico de seu arcabouço teórico, que postula que o funcionamento mental é
regido por um processo inato, um dos processos primários mais antigos do nosso psiquismo e
que tende a buscar o prazer, além de fazer com que a atividade psíquica se retire das situações
que possam provocar o desprazer. Segundo esse princípio, todo comportamento humano
pode ser compreendido a partir da idéia de que o sujeito busca o equilíbrio energético por
meio de uma redução de tensão. Diz Freud:

na psicologia baseada na psicanálise estamos acostumados a tomar como ponto de


partida os processos anímicos inconscientes, cujas particularidades nos têm sido
reveladas pela análise, e nos quais vemos os processos primários, resíduos de uma fase
evolutiva em que eram únicos. Não é difícil reconhecer a tendência a que estes
processos primários obedecem, tendência à qual damos o nome de princípio de prazer.
Estes processos esforçam-se por alcançar prazer; a atividade psíquica afasta-se de
qualquer evento que possa despertar desprazer. (1910-1911 (1911), p. 1638)

A idéia é a de que o sujeito busca situações em que, simultaneamente, além de viver


situações prazerosas, ele também possa evitar as que possam lhe produzir desprazer e
desconforto. O psiquismo infantil terá como meta manter-se sempre nas situações que se
50

caracterizem pela eliminação de qualquer tipo de desprazer, evitando situações em


que a realidade possa interferir neste contexto. Haverá uma evitação das situações em que
uma tensão desagradável possa se instaurar. Isto indica que o psiquismo necessita de um
mecanismo de regulação de modo a manter suas representações atuais em equilíbrio. O
princípio de realidade entra como o elemento regulador das situações em que se faz
necessário protelar o prazer, indicando com isso um amadurecimento psíquico (Freud, 1910-
1911 [1911], p. 1640).

b) Especulativos

b.1) Metapsicologia

Para Freud, além de fazer uma descrição dos fatos clínicos, o cientista precisa lançar
mão de um conjunto de idéias, mesmo que não comprováveis empiricamente, mas que
possibilitem o fechamento das lacunas que impeçam uma compreensão dos mesmos fatos
clínicos. Isso permite constatar que, se a psicologia não era suficiente para explicar suas idéias
sobre a sexualidade, Freud recorreu à metapsicologia, termo criado por ele em 1896, que
terminou por constituir um dos componentes importantes de seu arcabouço teórico. Freud
acrescentou aos dados empíricos sobre a sexualidade a idéia de forças e energias que têm uma
natureza psíquica. Com isso, a metapsicologia se tornou a “super-estrutura especulativa” de
Freud (1924, p. 2776).

Por não terem um caráter empírico, os elementos da metapsicologia são convenções,


que têm a função de dirigir a pesquisa empírica. O caráter heurístico da metapsicologia
possibilita uma organização da pesquisa empírica da clínica psicanalítica. Como surgiu a
metapsicologia?

Em sua busca de uma explicação para o funcionamento do psiquismo, Freud o


descreveu como um aparelho, localizado espacialmente, pelo qual circula a libido, que seria
uma energia psíquica de natureza sexual. Esse psiquismo funciona por meio de três processos:
dinâmico, tópico e econômico. O ponto de vista dinâmico se refere à existência de uma força
originária, ou seja, às pulsões, que estão sempre em conflito; o enfoque econômico ou
quantitativo vincula-se à libido que se dirige aos objetos de desejo do sujeito mobilizado;
finalmente, o ponto de vista tópico vincula-se à idéia de um aparelho passível de ser
localizado espacialmente.

Por que Freud escolheu este tipo de explicação? Por que prevaleceu o ponto de vista
dinâmico, apesar da metapsicologia ainda ter os pontos de vista tópico e econômico como
51

outros pilares que a constituem? Fulgencio relata que Freud sabia que, em termos
teóricos, havia mais de um tipo de metapsicologia, uma metapsicologia mecânica na qual se
sustentavam autores como Charcot e Janet, e ele precisava definir qual seria o tipo mais
adequado para fazer parte de seu arcabouço teórico. Segundo Fulgencio, Freud não
compartilhava da hipótese fisiológica atribuída à doença, calcada num ponto de vista
mecanicista, e, por isso, optou por um ponto de vista dinâmico. Isso ocorreu porque

Freud foi formado noutra linha de pesquisa, da qual participavam Fechner, Helmholtz
e Brücke, e cuja perspectiva de explicação é diferente da mecânica. Para esses
pensadores, o ponto de vista mais adequado para servir como guia na busca de
explicações sobre os fenômenos e suas causas é o dinâmico: este supõe a interação de
forças em conflito como um quadro no qual as explicações são procuradas. Nessa
perspectiva, os fatos observados devem ser estruturados e relacionados não em função
de supostas falhas mecânicas, mas sim de supostas forças em conflito. (2003, p. 140)

Temos aqui o ponto de partida da escolha de Freud por um ponto de vista dinâmico,
ou seja: ao invés de uma descrição, ele supõe uma interação de forças psíquicas. Na medida
em que realizava seu trabalho clínico, Freud constatava que os dados descritivos eram
insuficientes para oferecer uma explicação eficiente sobre os fenômenos e processos
psíquicos. Para suprir essa lacuna empírica, ele criou construções auxiliares, um conjunto de
teorias especulativas que oferecem as explicações necessárias. Por meio desse recurso, Freud
encontrou o componente do qual necessitava. Ao tratar de seu trabalho com os histéricos, ele
define sua posição:

recordarei, finalmente, com poucas palavras, a idéia auxiliar que tenho utilizado para
esta descrição das neuroses de defesa. Tal idéia é a de que nas funções psíquicas deve
distinguir-se algo (um montante de afeto, soma de excitação), que tem todas as
propriedades de uma quantidade – ainda que não tenhamos um modo de mensurá-la;
algo suscetível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga e que se estende
pelas marcas mnêmicas das representações como faria uma carga elétrica pela
superfície dos corpos. (1894, p. 177)

Com a introdução desse componente, Freud encontra o recurso para completar suas
explicações sobre os mecanismos da histeria. Isso permitiu a criação do arcabouço
52

metapsicológico. Com a metapsicologia, ou seja, com o uso de especulações


adicionadas aos fatos clínicos, a psicanálise pôde avançar em seu projeto de cura das doenças
mentais. Esse recurso surgiu muito cedo na obra freudiana e foi tema de sua correspondência
com Fliess: “a propósito, vou perguntar-lhe a sério se posso usar o nome de metapsicologia
para minha psicologia que se estende para além da consciência” (Freud/Fliess, 1986,
10/03/1898, p. 302)

De acordo com Fulgencio, a função da metapsicologia

[...] é a de auxiliar a organização dos fatos, tornando possível estruturá-los e relacioná-


los; ela é um constructo para conectar as descrições e uma orientação-guia para
procurar (observar) novos dados. As especulações metapsicológicas não são nem
fornecem explicações, mas estabelecem um quadro e uma direção para a busca de
explicações factuais (empíricas) sobre os fenômenos psíquicos. (Fulgencio, 2003, p.
157)

Dada essa função da metapsicologia e considerando que ela está presente também na
teoria da sexualidade, chegou o momento de verificar como esses os aspectos empíricos e os
especulativos imbricam-se. Freud utiliza os elementos especulativos para afirmar que o
desenvolvimento sexual se dá através das relações de objeto. Vejamos agora um conceito que
está na base da teoria da sexualidade freudiana.

1. Pulsão (Trieb)17

Dentre as muitas questões que envolvem o trabalho de Freud, uma que se destaca é a
necessidade de assentar a Psicanálise em bases científicas, erigidas de acordo com modelos
vigentes nas outras ciências da natureza. Como conseqüência, Freud se viu obrigado a
desenvolver um modelo teórico que fosse aceito pelos cânones da época, tais como os da
física, modelo citado por ele como exemplar de uma ciência. Para resolver essa questão, ele
elaborou os modelos propostos na Primeira e Segunda Tópica, em que presumia a existência

17 Problemas na tradução do termo Trieb geraram alguns equívocos quanto ao seu uso, uma vez que ele
pode abarcar vários significados. Freud usou o termo Trieb para especificar o elemento responsável pelo
funcionamento do psiquismo humano, reservando o termo Instinkt para o contexto do comportamento dos
animais. Para uma melhor compreensão do termo, consultar Loparic 1999.
53

de um aparelho psíquico. Esse aparelho é composto por partes dotadas de


determinadas funções e possui uma localização espacial específica. A idéia de aparelho
permite que Freud possa definir o funcionamento do psiquismo nos mesmos moldes de um
objeto natural, pensado em termos de uma máquina. Se nas explicações oferecidas pelas
ciências naturalistas o que move uma máquina é a força, Freud se deparou com a necessidade
de encontrar um componente análogo para explicar o que produzia o movimento do
psiquismo humano. Ele encontra a solução ao instituir o conceito de pulsão (Trieb). Este
conceito foi elaborado ao longo de sua obra e tornou-se o recurso para explicar os fenômenos
psicopatológicos observados em seus pacientes neuróticos. Freud chegou a afirmar que o
conceito de pulsão é a ferramenta mais importante para fundamentar a psicologia.

A característica fundamental da pulsão é ela constituir a causa originária do


movimento do psiquismo humano; a pulsão é totalmente independente de qualquer outro tipo
de força. Esse conceito de uma energia psíquica é uma hipótese, cujo objetivo é o de fornecer
uma compreensão do funcionamento da vida mental, conforme foi admitido pelo próprio
Freud.

Em seu trabalho com as pacientes histéricas, após o abandono da teoria da sedução,


Freud busca outra explicação para a histeria. Isso o conduz à tese da existência de uma força
psíquica represada, que entra em conflito com o eu da paciente. Essas forças em conflito,
mesmo não sendo idênticas às excitações corporais, representam as necessidades do
organismo, ou seja, são as representantes de uma excitação somática. E como são inúmeras as
excitações somáticas, surge, para Freud, a necessidade de identificar os diferentes tipos de
excitação que movem o organismo. Essas excitações que movem qualquer parte do corpo
constituem a força primeira que promovem o funcionamento psíquico. Embora seja uma única
força agindo em diferentes partes do corpo, as pulsões são diferentes entre si, pois suas fontes
somáticas e seus objetivos são igualmente diferentes, cada qual com representações
adequadas às suas metas. Essas observações levam Freud a pressupor que o psiquismo
humano compõe-se de muitas pulsões, cada uma com sua representação correspondente, em
luta constante entre si. Para explicar o funcionamento deste sistema, Freud mantém uma
explicação baseada na idéia de que haveria duas forças fundamentais que promoveriam a
existência dos fenômenos psíquicos. Freud busca na biologia a explicação para esses conflitos
com a idéia de uma pulsão sexual. Propõe, analogamente, uma pulsão de alimentação, ou seja,
a fome.

O uso do conceito de pulsão é fundamental no pensamento freudiano porque permite o


uso de explicações dinâmicas para os fenômenos que Freud observava na clínica. Além disso,
54

há que se assinalar o caráter metodológico do uso da pulsão, pois Freud afirma que,
além de descrever e classificar os fenômenos, ele também quer concebê-los como os
indicadores de que constituem um jogo de forças na nossa psique (1916 [1917], p. 2123).

O conceito de pulsão tem um caráter especulativo, não traz em si nenhuma referência


no campo empírico. O próprio Freud aponta que esse conceito foi estabelecido como um
acordo prévio para entendimento, e que “assim, rigorosamente falando, elas [pulsões] são da
natureza das convenções [...]” (1915a, p. 2039). Segundo ele, “são forças que presumimos
existir [...]” (19938 [1940], p. 3381)

Porém, há que se perguntar: o que é a pulsão? Qual sua origem? Ela é uma energia que
está em estado de excitação no corpo do sujeito e leva o sujeito a buscar o prazer e, ao mesmo
tempo, a se esquivar da dor. Freud usou o termo pela primeira vez em 1905, depois fez vários
acréscimos à sua definição no decorrer dos anos, e desde suas primeiras considerações ele
salientou que ela também tem um caráter sexual. O aspecto diferencial de seu conceito em
relação às idéias vigentes era o de que a pulsão sexual vai além das atividades sexuais
puramente biológicas, e que a pulsão é o impulso por meio do qual a libido (da qual
trataremos no próximo item) constitui a energia. Neste texto, Freud assinala que a pulsão é
uma expressão do instinto sexual.

Freud destaca, em 1915, em seu texto As pulsões e seus destinos, que as pulsões se
originam do interior do organismo, e, portanto, não podem ser removidas. Elas exercem uma
pressão constante sobre a mente do sujeito. Para Freud,

[...] a pulsão é um conceito limite entre o psíquico e o somático, é como um


representante psíquico dos estímulos procedentes do interior do corpo, que alcançam a
mente, como medida da exigência de trabalho que a mente impõe como uma
conseqüência de sua conexão com o corpo (1915a, p. 2041)

A grande importância que Freud atribuía às pulsões o levou a acrescentar que

podemos, portanto, concluir que as pulsões, e não estímulos externos, são os


verdadeiros motores dos progressos que têm conduzido o sistema nervoso, com sua
capacidade ilimitada, ao seu alto nível de desenvolvimento atual. Nada se opõe à
suposição de que as pulsões são, pelo menos em parte, resíduos dos efeitos da
55

estimulação externa, que no decorrer da filogênese, provocaram


modificações na substância viva. (1915a, p. 2041)

Na mente do sujeito, a pulsão é representada pelos afetos e se atrela a representações


de objetos desses mesmos afetos. A concepção inicial de Freud sobre o tema é a de que a
pulsão tem uma fonte e percorre uma trajetória até o objeto almejado. Nesta trajetória, se
sofrer uma repressão, ela pode recuar. Posteriormente, Freud afirma que a pulsão é circular e
tem como protótipo a pulsão de morte, que é pré-definida como tendo um caráter regressivo.
Uma das características da pulsão é a de que ela vive em conflito. Outra característica é a de
que ela não é da mesma natureza das necessidades corporais, haja vista que Freud a define
como um limite entre o psíquico e o somático. É da característica de que elas estão em
conflito entre si que Freud afirma que existem duas pulsões básicas, ou seja, podemos
discernir dois grupos destas pulsões primitivas: a dos instintos do ego, ou pulsão de
conservação, e a dos instintos sexuais (1915a, p. 2043).

Freud postulou inicialmente que o sujeito humano possui instintos do ego, que estão
relacionados às tendências de auto-preservação; postulou também que também existem os
impulsos sexuais, que se relacionam às tendências de preservação da espécie. Posteriormente,
ele afirmou que o sujeito possui a pulsão de vida, o qual inclui tanto a pulsão do ego como a
pulsão sexual originais, assim como também possui a pulsão de morte, que tende a fazer com
que o organismo retorne ao estado inorgânico. A energia da pulsão de vida recebeu a
denominação de libido. No entanto, Freud não outorgou uma denominação à energia da
pulsão de morte. Segundo Freud, as pulsões libidinais estão em conflito com as de
preservação individual (1915a, p. 2043).

As quatro características fundamentais das pulsões são:

a) têm uma fonte (Quelle) de onde provém a sua quantidade de excitação, localizada
num órgão ou parte do corpo;

b) têm também uma meta, uma finalidade (Ziel) que lhes permite a eliminação da
excitação, ou seja, a busca da satisfação que será obtida por meio da eliminação do
estado de estimulação na fonte da pulsão;

c) têm um objeto (Objekt), ou seja, a pulsão busca um objeto, ela dirige- se a um objeto
pelo qual a excitação se descarrega, de forma a alcançar sua finalidade, mesmo que
esse objeto seja uma parte do próprio corpo do sujeito;
56

d) têm uma pressão (Drang), a qual constitui o motor da própria pulsão, ou


seja, a quantidade de força exercida ( 1915a, p. 2042) .

A idéia essencial é a de que as pulsões agem como forças constantes no organismo e


que se dirigem aos objetos (1915a, p. 2042). Ao especificar como a pulsão funciona, Freud
também assinala que uma de suas características fundamentais é a de que ela se dirige a um
objeto, tem uma meta a alcançar. Essas metas estão submetidas a princípios causais. Já em
1920, Freud sustenta que as pulsões libidinais e as de auto-conservação se opõem às pulsões
agressivas. (1920b, p. 2509)

À época em que Freud desenvolveu suas teorias, ele concebeu a pulsão como tendo
um caráter diferente das idéias vigentes no campo das ciências biológicas. A pulsão,
diferentemente dos instintos, tem seu objeto na representação mental ou na fantasia. Em suas
diferentes reformulações sobre o tema, Freud aponta, em 1915, que as pulsões visam uma
diminuição da quantidade de excitação. Em 1924, um novo elemento se agrega à idéia
anterior: a noção de que o incremento da excitação também produz prazer, além de evitar o
desprazer.

Freud propõe a existência de dois grandes grupos: um vinculado à excitação sexual e


outro que se opõe a essas excitações, ou seja, as pulsões de auto-conservação. Na medida em
que define o conflito psíquico – o eu e a sexualidade – Freud se depara com a necessidade de
apontar uma energia que move esses dois componentes, além de acrescentar a existência de
uma energia específica que move os impulsos amorosos que se dirigem aos objetos. Essa
energia é a das pulsões sexuais. Essa questão é resolvida com a introdução do conceito de
libido, nosso tema a seguir.

Em 1933, em uma de suas últimas afirmações sobre o tema, ele diz que “a teoria das
pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia” (1933 [1932], p. 3154). 18

Freud confirma que a teoria das pulsões mantém o caráter de convenção e que isto é
suficiente para fundamentar seu trabalho. Freud confirma que a teoria das pulsões mantém o
caráter de convenção e que isto é suficiente para fundamentar seu trabalho. (1915a, p. 2039)

18 Para um aprofundamento do tema, remeto o leitor a Fulgencio 2001.


57

2. Libido

O caráter especulativo de libido foi apontado pelo próprio Freud: “[...] uma
pressuposição da teoria da libido somente é possível, temporariamente, por via especulativa”
(1905 [1920], p. 199).

A utilização do termo libido é mais um dos empréstimos que Freud fez de outras áreas
de conhecimento vigentes sobre o ser humano, empréstimo que o ajudou na construção de seu
arcabouço teórico. Este conceito, cuja origem remete à área da Sexologia, possibilitou a Freud
fazer uma correlação de libido com a pulsão de vida.

Segundo Freud,

estabelecemos o conceito de libido como uma força susceptível a variações


quantitativas, que poderia servir de medida do processo e das transformações que
ocorrem no campo da excitação sexual. Com relação à sua particular origem, supomos
que ela subjaz aos processos mentais em geral, e, assim, também atribuímos a ela um
caráter qualitativo. (1905, p. 198)

Apesar de correlacionar a libido com o funcionamento químico da excitação sexual,


Freud não a considera análoga às energias da área da fisiologia. A libido é psíquica e é por
meio dela que o aparelho psíquico ganha movimento. Mesmo tendo características
qualitativas e quantitativas, a libido não pode ser identificada empiricamente. Sua função é a
de possibilitar o dinamismo psíquico, ao mesmo tempo em que constitui uma especulação
necessária ao esquema teórico freudiano. Sua existência somente pode ser postulada nas
situações em que a doença se estabelece, gerando sintomas neuróticos quando o eu não pôde
administrar a quantidade de excitação pela qual foi acossado (1905, p. 199).

Uma característica primordial da libido é que ela é a energia da pulsão que se dirige
para o objeto, ou seja, ela é um componente da sexualidade. “Com esta palavra [libido]
designamos aquela força em que se manifesta o instinto sexual, tal como no homem se
manifesta o instinto da absorção dos alimentos” (Freud, 1917 [1916-1917], p. 317). Ela não
tem origem biológica, tem uma dimensão psíquica, ou seja, ela é uma energia sexual psíquica.
Freud afirma que a libido está presente desde o início na vida do bebê, determinando seu
comportamento e exigindo gratificação. Além disso, é por meio da libido que o aparelho
psíquico ganha movimento.
58

Ela constitui a fonte do conflito psíquico, isto é, do conflito entre as pulsões


do eu e as do objeto. A libido demarca a oposição entre ambas e distingue um tipo
diferenciado de energia. Essa energia, que é uma dimensão da pulsão, tem uma característica
essencialmente sexual. Freud afirma que a libido está presente desde o início na vida do bebê,
determinando seu comportamento e exigindo gratificação. Em fases posteriores do
desenvolvimento do sujeito, a libido será responsável pela produção dos desejos sexuais na
vida adulta, com todas as suas nuances de êxtase e de dor.

Freud mantém a idéia de uma energia específica que anima os impulsos amorosos que
se dirigem aos objetos. Em 1930, ele afirma:

a fome pode ser considerada como representante das pulsões que querem conservar o
indivíduo, o amor tende para os objetos, sua função principal, favorecida de todas as
maneiras pela Natureza, é a conservação da espécie. É assim que, primeiramente, se
confrontam, umas com as outras, as pulsões do eu e as do objeto. Para designar a
energia destas últimas, e exclusivamente para elas, eu introduzi o nome de libido, é
assim que se estabelece a oposição entre as pulsões do eu e as pulsões libidinais.
(1930, p. 3049)

É ao nomear o que seria a libido, que Freud pode justificar sua hipótese de que haveria
um caráter eminentemente sexual em alguns aspectos de sua teoria. Isso é percebido quando
ele afirma que

as representações auxiliares que temos formado com o objetivo de dominar as


exteriorizações psíquicas da vida sexual correspondem muito bem com as conjecturas
anteriores de uma base química da excitação sexual. Estabelecemos o conceito de
libido como uma força sujeita a variações quantitativas que permitem mensurar os
processos e as transformações que ocorrem no domínio da excitação sexual. Com
relação à sua particular origem, nós a distinguimos da origem que se supõem na base
dos processos anímicos em geral e lhe conferimos um caráter também qualitativo.
(1905, p. 198)

Freud caracterizou a libido como uma energia que pode se deslocar, transformar seus
objetivos e também mudar o objeto no qual se investe.
59

a libido do ego só é convenientemente acessível ao estudo analítico quando for usada


para dotar os objetos sexuais de energia libidinal, isto é, quando se tornar libido de
objeto. Podemos ver a libido concentrando-se sobre os objetos, fixando-se neles ou
abandonando-os, passando de um objeto para outro e, destas situações, conduzindo a
atividade sexual do paciente, levando-o à satisfação, isto é, à extinção parcial e
temporária da libido. (1917 [1916-17], p. 2317)

Desta maneira, a libido pode ser sublimada e investida em objetos socialmente


valorizados, tais como arte e a literatura, entre outros. O sujeito precisa ‘domar’ a libido, de
forma a desviá-la para fins de construção da civilização. Essa tarefa, a de dominar os instintos
da sexualidade, não é fácil, mas é essencial porque:

a base sobre a qual a sociedade repousa é em última análise de natureza econômica,


como não possui meios suficientes de subsistência para permitir que seus membros
vivam sem trabalhar, a sociedade se vê obrigada a limitar o número de seus membros
e desviar as energias sexuais para o trabalho. Estamos aqui diante das necessidades da
vida, que surgiram juntamente com o homem e que persistem até os dias de hoje.
(1917 [1916-17], p. 2317)

É por meio do termo libido que Freud pôde operacionalizar a forma como as
transformações psicossexuais ocorrem no sujeito. Isso somente foi possível com outro
conceito, o de zonas erógenas.

3. Zonas erógenas

Libido e zona erógena são dois conceitos especulativos intrinsecamente ligados na


psicanálise freudiana. A descrição de cada fase do desenvolvimento da função sexual assenta-
se no conceito de zona erógena.

As zonas erógenas constituem fontes originárias das pulsões. Freud parte do princípio
de que há regiões do corpo do bebê que constituem a sede das excitações sexuais, regiões que
são usadas pelo ego do bebê para uma busca de objetos para contato, definindo modos de
relacionamento com os outros; ou seja, um órgão ou uma parte do corpo ou o corpo em sua
60

totalidade podem constituir-se em fonte e finalidade das pulsões sexuais. Esta


última possibilidade pode ser observada nas situações de masturbação (1905, p.168).

A teoria de Freud é a de que há um desenvolvimento pré-determinado, em que haverá


uma mudança da libido de uma região para outra do corpo do sujeito. É desta forma que o
sujeito se desenvolve, ou seja, todo o crescimento psíquico e emocional da criança sustenta-se
nas interações sociais e gratificações produzidas nessas regiões. Freud chega a afirmar que
“há zonas erógenas predestinadas”, tal como a boca. (1905, p. 166).

Para Freud, qualquer parte do o corpo humano pode ser uma zona erógena, mas há
algumas regiões cuja função primordialmente parece ser a de revestir-se de característica
erógena, ou seja, “o caráter da erogeneidade vincula-se a algumas partes do corpo de forma
particularmente marcante” (Freud, 1905, p. 166). Com a chegada na puberdade, haverá uma
supremacia dos órgãos genitais como zonas erógenas por excelência. Segundo Freud,

na infância começa a fazer-se notar a zona erógena dos órgãos genitais, seja porque,
como qualquer outra zona erógena, ela produz satisfação em resposta a estimulação
sensorial apropriada, ou, de uma maneira ainda não bem compreensível, quando a
satisfação é originária de outras fontes, produz-se simultaneamente uma excitação
sexual que tem relação especial com a zona genital. (1905, p. 213)

Em 1915, numa nota de rodapé, Freud acrescenta: “após refletir mais e depois de levar
em conta outras observações, fui levado a atribuir o caráter de erogeneidade a todas as partes
do corpo e a todos os órgãos internos” (1905, p. 167). Esta observação confirma sua posição
de que o deslocamento libidinal transformará todo o corpo do sujeito em zona erógena.

4. Aparelho psíquico

Ao longo de vários anos de estudo, Freud concebeu suas idéias sobre o funcionamento
do psiquismo do sujeito. A idéia central é a de que o psiquismo tem um funcionamento
análogo ao de uma máquina constituída por partes interconectadas. Esse ponto de partida
originou a idéia de um aparelho, isto é, um aparelho psíquico responsável por funções
afetivas, cognitivas e representacionais. Em suas observações sobre a vida psíquica, ele
sustentou que:
61

a primeira delas [das hipóteses] se refere à sua localização: presumimos


que a vida psíquica é função de um aparelho do qual supomos uma extensão espacial e
de ser composto por várias partes, ou seja, que o imaginamos à semelhança de um
telescópio, um microscópio ou algo parecido [...] Os conhecimentos que adquirimos
sobre este aparelho psíquico foram adquiridos pelo estudo individual dos seres
humanos. (Freud, 1938 [1940], p. 3380)

Um exemplo claro de como Freud vê o funcionamento do sujeito, especialmente no


tocante às questões sexuais, pode ser encontrado no caso do Homem dos Lobos, em seu texto
História de uma Neurose Infantil (1914[1918], p. 1941). Quando diz “tentarei esboçar uma
visão sintética do desenvolvimento sexual de meu paciente [...]” (1914[1918], p. 2000), Freud
escreve a forma como a pulsão se desloca no aparelho psíquico de seu paciente, organizando
todos os elementos de seu quadro psicopatológico. O desenvolvimento do paciente é
apresentado de forma a revelar que desde o início de sua vida ele é possuidor de uma estrutura
mental sofisticada que lhe permite apreender todos os fatos que ocorrem à sua volta,
correlacionando-os de forma lógica e coerente. A importância dada às operações mentais se
encontra em sua observação de que, sempre que as vivências do complexo de Édipo não se
adaptam ao esquema hereditário, há uma transformação dessa situação na imaginação, ou
seja, na vida mental do sujeito (1914[1918], p. 2007). Ao encerrar seu artigo, Freud enfatiza
que as pessoas estão propensas a admitir, por meio da psicanálise, a importância dos estudos
da vida mental (1914[1918], p. 2008, grifos meus).

O uso de um elemento metapsicológico se encontra em sua idéia de que o indivíduo


funciona como um aparelho movido pela pulsão. Dentro dessa perspectiva, as pulsões incitam
o sujeito a buscar um objeto que lhe possibilite a gratificação. O elemento operador
responsável pelo desenvolvimento do sujeito é a libido, que atravessa diferentes estágios,
promovendo o que Freud chama de desenvolvimento psicossexual. Tudo se passa no interior
da mente do indivíduo. Para que possamos compreender melhor como Freud chegou a essa
idéia sobre o funcionamento do psiquismo mental, refaremos sua trajetória conceitual, tanto
na Primeira Tópica quanto na Segunda Tópica.

4.1. Primeira Tópica

No texto A interpretação dos sonhos, Freud formula seu primeiro modelo figurativo
metapsicológico para visualizar o funcionamento do aparelho psíquico. Segundo Freud,
62

permaneceremos em campo psicológico e não pensaremos senão em obedecer ao


convite de representarmos o instrumento posto ao serviço das funções mentais como
um microscópio composto, um aparelho fotográfico ou algo semelhante. A localização
psíquica corresponderá então a um lugar situado no interior deste aparelho [...]

Representamos o aparelho psíquico como um instrumento composto por elementos


aos quais damos o nome de instâncias, ou, para esclarecer de forma mais clara, de
sistemas. [...] Na realidade, não precisamos estabelecer a hipótese de uma ordem
verdadeiramente especial dos sistemas psíquicos. Basta-nos que exista uma ordem fixa
de sucessão estabelecida pelo fato de que em determinados processos psíquicos a
excitação recorre aos sistemas conforme uma sucessão temporal determinada. Há uma
possibilidade que queremos assinalar desde logo, a de que esta ordem de sucessão
pode ser modificada em outros processos. Nomearemos os componentes do aparelho,
daqui pra frente, de “sistema ψ”. (1900, p. 672)

A necessidade de encontrar uma compreensão sem lacunas sobre os fenômenos


clínicos leva Freud a comparar o aparelho psíquico a um aparelho ótico, ou seja, um aparelho
que se disponha espacialmente, composto por várias partes, o qual ele supôs como uma
construção auxiliar para estudar o desenvolvimento individual do sujeito humano. Esse
modelo reproduzia o funcionamento de um aparelho dividido em partes, cada uma delas
responsável por uma atividade, desde reação a estímulos, até armazenamento de dados e
reprodução dos mesmos quando solicitados. Cada uma destas partes é excitada por uma
energia. Esse novo modelo constitui a solução para o problema de Freud, no tocante à
explicação dos movimentos psíquicos.

Esse modelo de Freud fornece uma topografia da mente humana, partindo da idéia
principal do quanto somos ou não somos conscientes dos fenômenos. As partes desse
aparelho mental receberam os nomes de consciente, pré-consciente e inconsciente. Ao
consciente relacionam-se os fenômenos dos quais estamos conscientes num determinado
momento; o pré-consciente diz respeito aos fenômenos dos quais nos tornaremos conscientes
no futuro se nos ativermos a eles; e o inconsciente se refere aos fenômenos dos quais não
somos nem temos a possibilidade de nos tornarmos conscientes, a não ser em circunstâncias
especiais (Freud, 1900, pp. 673-680).

Freud, para explicar o funcionamento do aparelho psíquico postula a existência de


duas forças, ou seja, dois grupos de pulsões. O primeiro está ligado à excitação sexual, e o
63

segundo, que se opõe ao primeiro, chama-se pulsão de auto-conservação. Segundo


Freud, a fome pode ser vista como representante das pulsões que têm a função de conservar o
indivíduo, enquanto que o amor seria o representante da pulsão de auto-conservação. (Freud
1929 [1930], 3017-67)

Disse Freud:

a fome pode ser vista como representando as pulsões que visam a preservar o
indivíduo, ao passo que o amor se esforça na busca de objetos e sua principal função,
favorecida de todos os modos pela Natureza, é a preservação da espécie. Assim, de
início, as pulsões do ego e as pulsões objetais se confrontavam mutuamente. Foi para
indicar a energia destes últimos que introduzi o termo “libido”. (1929 [1930], p. 3049)

Com este par de pulsões, Freud pôde dar continuidade ao trabalho com seus pacientes,
até que novas lacunas em seu campo profissional, a observação de tendências masoquistas em
seus pacientes, o levaram ao estabelecimento de um novo modelo topográfico.

4.2. Segunda Tópica

Na medida em que aprofundou seus estudos sobre o inconsciente, Freud constatou que
deveria considerar outros aspectos que impossibilitavam que os conteúdos penetrassem na
consciência. Os problemas clínicos observados por Freud o motivaram, em 1923, a levantar
uma segunda hipótese estrutural para explicar melhor o funcionamento do psiquismo, uma
explicação com base nas diferenças funcionais dos diferentes conteúdos que compõem este
último. Esses componentes receberam o nome de id, ego e superego. O id compreende as
representações psíquicas dos impulsos advindos do estrato biológico do sujeito. Segundo
Freud, “o poder do id expressa o verdadeiro propósito do organismo individual: satisfazer
suas necessidades inatas” (Freud, 1938[1940], p. 3381). O id busca a descarga da excitação
por meio do princípio do prazer. Ao ego corresponde o contato e relações que o sujeito
mantém com o ambiente, o contato com a realidade. Ele tem como função primordial
promover a satisfação do id de um modo que também atenda às necessidades do superego. Ao
superego correspondem os preceitos morais e princípios que norteiam o comportamento
moral do sujeito, de acordo com as normas sociais (Freud, 1923b, pp. 2705-2728). Enquanto
que o id contém conteúdos de natureza inconsciente, o ego e o superego contêm conteúdos
tanto conscientes quanto inconscientes.
64

A maneira encontrada por Freud para representar o psiquismo humano foi a


solução para os problemas da descontinuidade da vida mental mais adequado aos novos
problemas encontrados, tais como hipocondria, sadismo e masoquismo, dentre outros. Ao
considerar o aparelho psíquico dividido em instâncias que estão em permanente conflito,
Freud encontra as explicações que buscava para as representações mentais mobilizadas
energeticamente, gerando os sintomas neuróticos.

Com a descoberta do narcisismo, Freud, na Segunda Tópica, modifica sua primeira


teoria do dualismo pulsional, substituindo o primeiro dualismo pulsional por outro par de
pulsões. Como no narcisismo o objeto sexual externo coincide com o eu, o eu ama a si próprio
como objeto das pulsões. As pulsões de conservação desaparecem e Freud cria outro par de
pulsões: a pulsão de vida e a pulsão de morte. Enquanto que as pulsões de vida tendem a
manter todas as substâncias vivas, ou seja, fazer um elo entre todas as coisas e o psiquismo, a
pulsão de morte tem o objetivo de fazer o desinvestimento libidinal, ou seja, retirar dos
objetos toda a libido, levando-as ao estado inorgânico. (Freud 1920, 2507-41) Ao substituir o
primeiro par de pulsões, Freud disse que: “desde o início, nossas concepções foram dualistas
e são ainda hoje mais dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se
dando, não entre pulsões do ego e pulsões sexuais, mas entre pulsões de vida e pulsões de
morte” (1920, p. 2535).

A posição de Freud é a de que a primeira pulsão, a de vida, em sua descarga, busca o


retorno ao inanimado, o que é possível graças à ação da pulsão de morte. Ou seja, o objetivo
da vida é a busca da morte, de modo a eliminar as tensões.

Este tema assumiu uma grande importância na obra de Freud, apesar de seu caráter
meramente especulativo.

Tanto na Primeira como na Segunda Tópica, o desenvolvimento de suas idéias sobre a


constituição do psiquismo humano revela que Freud concebe o ser humano e seus modos de
funcionamento nos mesmos moldes de uma máquina e, tal como ela, uma máquina regida por
um princípio mecanicista.

5. A noção de masculino e feminino em Freud e a constituição da sexualidade

Um dos temas fundamentais para este estudo refere-se à forma como Freud concebe o
desenvolvimento e a constituição da sexualidade. Os primeiros passos para entender esse
tópico foram dados no item em que descrevemos o desenvolvimento da libido.
65

Em 1905, a posição de Freud é a de que uma única libido seria a responsável


pela definição tanto da sexualidade masculina como da feminina. O protótipo para a
sexualidade em geral advém da idéia de uma forma única, cuja característica principal é ter
uma essência masculina (1905, p. 200). Mesmo esta forma não resolve todos os aspectos da
sexualidade, pois a diferença anatômica também conduz a diferentes organizações psíquicas
por meio do complexo de Édipo e da angústia da castração.

Num de seus últimos textos, ele afirma que o final de processo de desenvolvimento da
sexualidade deve resultar em homens e mulheres com características bem diferenciadas, ou
seja,

para diferenciar entre masculino e feminino, na vida psíquica, recorremos, sem dúvida
alguma, a uma equivalência empírica que é convencional e precária: chamamos de
masculino a tudo que é forte e ativo, a feminino a tudo que é fraco e passivo. O fato de
que a bissexualidade seja psicológica dificulta também nossas investigações, e
dificulta também sua descrição. (1938 [1940], p. 3406)

As primeiras observações de Freud sobre a sexualidade incidem sobre as questões


relativas às perversões, a sadismo e a masoquismo. (1905, pp. 143-147) Segundo Freud, há
uma tendência universal da pulsão para a perversão, sendo que o comportamento sexual que
pode ser considerado normal é conseqüência de alterações orgânicas e inibições psíquicas
decorrentes do processo de desenvolvimento.

A observação de crianças leva Freud a afirmar, em 1905, o seu ponto de partida em


relação à constituição da sexualidade: “podemos afirmar com segurança que o recém-nascido
traz consigo os germes dos instintos sexuais e que eles continuam a desenvolver-se durante
algum tempo [..]” (1905, p.160) Este germe é o que leva a criança a experimentar o prazer
sexual ao se alimentar, é o que a impulsiona a repetir a experiência. Dentro dessa premissa,
também precisamos salientar que Freud credita à hereditariedade esse desenvolvimento, pois
afirma que ele é organicamente determinado (1905, p. 161).

Freud parte do pressuposto de que, a partir do nascimento, a criança já está apta a


experimentar sensações prazerosas. Em 1917 [1916-17] Freud afirma que o bebê busca
sempre o prazer, pois “verificamos que o bebê realiza atos que servem apenas para obter o
prazer” (1917 [1916-17], p. 2318). São os atos voltados para a alimentação que definirão essa
busca de prazer. Para Freud,
66

se um bebê fosse capaz de comunicar suas sensações, declararia desde cedo que o ato
de mamar no seio materno constitui a ação mais importante de sua vida. Nisto o bebê
não se engana, pois por meio da amamentação ele satisfaz duas grandes necessidades
vitais. [...] Sugar o seio materno constitui o ponto de partida de toda a vida sexual, o
modelo ideal de toda satisfação sexual posterior, o ideal a que toda fantasia recorre em
momentos de privação. De certo modo, o seio materno é o primeiro objeto do instinto
sexual e possui uma enorme importância que agirá sobre toda posterior escolha de
objetos e exerce em todas as suas transformações e substituições uma considerável
influência, até mesmo nas mais remotos domínios de nossa vida psíquica. (1917
[1916-17], p. 2318)

Essas sensações prazerosas se transformarão a cada etapa do desenvolvimento da


criança.

A idéia que guia a constituição da sexualidade é a de que há um desenvolvimento da


libido que é determinado biologicamente. A libido tem sua origem em estados de tensão
corporal que se concentram nas zonas erógenas. Apesar de muitas dessas zonas erógenas
poderem exercer pressão de forma simultânea sobre a criança, a principal fonte de excitação e
energia pode se concentrar em uma região erógena particular, exercendo sobre ela uma grande
pressão. Essa pressão muda de percurso no decorrer do desenvolvimento da criança. A libido
sexual tem como meta obter a satisfação e esta precisa ter ocorrido anteriormente de modo a
criar a necessidade de repetição e de poder eliminar a exigência que acossa a criança.

Freud aponta que a bissexualidade é um aspecto presente tanto nos homens quanto nas
mulheres. Tanto homens possuem características femininas, quanto as mulheres possuem
características masculinas.

Freud admite a possibilidade de que as crianças tenham uma tendência, uma


disposição inata, a terem uma natureza perversa polimorfa, ou seja, com tudo o que puder ser
constituído como zona erógena procurando satisfação por si mesma. Isso ocorrerá nas
situações em que o senso moral ainda não foi construído. Quando submetidas a uma situação
de grande sedução, poderá haver o desencadeamento de uma perversão (1905, p. 173).

Outro fator importante na sexualidade infantil está no fato de que tanto meninas
quanto meninos possam ter uma intensa atividade masturbatória. A masturbação pode se dar
na primeira infância, ser interrompida e retomada posteriormente na puberdade (1905, p.
168).
67

De um modo geral, até determinada fase do desenvolvimento a constituição


da sexualidade ocorre de maneira semelhante para meninos e meninas, até que alguns
aspectos diferenciados ocorram. Tanto para o menino quanto para a menina, no início da vida,
a libido se desloca de uma zona corpórea e erógena para outra, até que o desenvolvimento da
sexualidade se complete na vida adulta. Da fase oral, cuja principal área de excitabilidade se
encontra na boca, passando pelas fases anal, fálica e genital, a libido se movimenta
possibilitando o estabelecimento de um quadro que deve resultar na escolha de objeto e a
subordinação de todas as fontes de excitação genital aos órgãos genitais a serviço da
procriação (1905, p. 179).

Na puberdade se consumará uma vida sexual normal. Esta deve se caracterizar por
propiciar uma coincidência das duas correntes dirigidas ao objeto e à meta sexual, ou seja,
devem coincidir a corrente afetiva e a corrente sensual, sendo que a primeira reúne em si o
que resta da sexualidade infantil (Freud, 1905, p. 189).

5.1. A sexualidade masculina

Os aspectos presentes na constituição da sexualidade masculina ocupam um grande


espaço na obra freudiana, uma obra na qual o órgão sexual masculino constitui o elemento
fundamental na constituição da sexualidade.

O momento crucial na definição da sexualidade, em termos de gênero masculino, pode


ser encontrado na fase fálica, entre três e cinco anos aproximadamente, quando a excitação
libidinal se concentra nos genitais. É neste momento que ocorre o complexo de Édipo (1923b,
p. 2712). Nessa fase, algo decisivo acontece com os meninos, cujo amor pela mãe sofre uma
complicação na medida em que provoca excitação em seu pênis e também pelo fato de eles
perceberem que entre os pais há um relacionamento genital. O pai passa a ser visto como um
rival que o impede de ter acesso à mãe e torna-se uma ameaça à criança. Em meio a todos
esses sentimentos, o menino experimenta ereções penianas e gradativamente se interessa
pelos genitais. A descoberta dos genitais masculinos traz uma primeira suposição: a de que
todos os seres humanos possuem a mesma forma de órgão sexual. Isso constitui um momento
importante na vida da criança, em termos de teoria sexual (1905, p. 177).

Posteriormente, o menino descobre que as meninas possuem órgãos sexuais diferentes


dos dele, o que o leva a imaginar que a menina não possua pênis. Essa idéia provoca o temor
de que ele possa vir a perder seu próprio pênis – sentimento que Freud denomina de ansiedade
de castração. A hostilidade que o menino sente pelo pai é no pai projetada, o que provoca no
68

menino o medo de sofrer uma retaliação, ou seja, medo de ser castrado pelo pai por
estar competindo pela mãe, que é esposa do pai. Esse conflito é resolvido quando o menino
mantém a mãe como seu objeto de amor e se identifica com o pai. Esse processo de
identificação permite que a criança desenvolva um senso moral e, conseqüentemente, o
superego. A resolução do complexo de Édipo se dará especialmente por um desapontamento
em relação à mãe (1923b, p. 2712).

A importância que o pênis tem na teoria freudiana é reiterada em um artigo de 1923, A


organização genital infantil, no qual Freud enfatiza que a sexualidade genital infantil se
baseia no pênis19, ou seja, o menino parte do princípio de que todos possuem um pênis. Desde
a infância o pênis se mantém como zona erógena, sendo esta uma das diferenças sexuais entre
homens e mulheres. A idéia de que o pênis é o órgão primordial na definição da sexualidade,
tanto masculina como feminina, sustenta a posição de Freud de que há uma primazia do pênis,
em qualquer situação (1923b, p. 2699).

Todas essas idéias são ratificadas em outro artigo do mesmo ano. Freud confirma que
é o temor à castração pelo pai, possibilidade confirmada quando o menino percebe que as
meninas são castradas, o principal elemento que leva à dissolução do complexo de Édipo.
Freud afirma que

a aceitação da possibilidade de castração e o descobrimento de que as mulheres eram


castradas, punha fim às duas maneiras possíveis de obter satisfação do complexo de
Édipo. Ambas traziam a perda de seu pênis – a masculina como uma punição
resultante e a feminina como premissa. Se a satisfação amorosa baseada no complexo
de Édipo deve custar à criança seu pênis, está fadado a surgir um conflito entre seu
interesse narcísico nessa parte de seu corpo e a catexia libidinal de seus objetos
parentais. Nesse conflito, vence normalmente a primeira dessas forças: o ego da
criança volta as costas ao complexo de Édipo. (1923b, p. 2749)

É na fase fálica que a masculinidade se estabelece e se caracteriza por combinar os


aspectos de atividade e posse do pênis. A questão da identificação tanto pode ser necessária
como pode significar um problema para o menino (1920-1921 [1921], p. 2585). Pelo processo
de identificação o sujeito assimila as qualidades de outra pessoa e as integra em seu próprio
funcionamento psíquico. Um dos problemas dessa fase é a identificação com o progenitor do
mesmo sexo. Posteriormente, esse processo pode provocar problemas na escolha de objeto.

19 Esta afirmação refere-se tanto aos meninos quanto às meninas.


69

Um momento importante para a constituição da sexualidade masculina está


na chegada à puberdade. Se até então o único objetivo era a busca do prazer, agora os homens
almejam a descarga dos produtos sexuais de forma a assegurar a função reprodutora. Segundo
Freud:

o novo objetivo sexual dos homens consiste na descarga dos produtos sexuais. O
anterior, a obtenção do prazer, não lhe é de forma alguma estranho; ao contrário, o
mais alto grau de prazer está vinculado a este ato final do processo sexual. A pulsão
sexual está agora subordinada à função reprodutora; tornou; por assim dizer,
altruísta.(1905, pp. 189-190)

A essa função reprodutora vincula-se a questão da escolha de objeto e como essa


situação se instaura na vida do sujeito. Para Freud, a escolha de objeto se dá em dois
momentos (haverá uma interrupção na fase da latência (1905, pp. 181), o primeiro entre os
dois e cinco anos. Nesse período, a escolha de objeto que é consumada será transmitida para a
fase seguinte, que constitui o segundo momento que é retomado na puberdade, quando se
define a vida sexual normal. Porém, como houve um processo de repressão entre as duas
fases, há um recrudescimento dos objetivos sexuais e o sujeito reinicia sua busca de objeto
com base em uma ‘corrente afetiva’. Na puberdade, o sujeito tem que abandonar os objetos da
infância e trocar essa corrente afetiva por uma corrente sensual, gerando o que já foi descrito
anteriormente como uma vida sexual normal, em que há convergência desses dois aspectos,
sensual e afetivo, num mesmo objeto (1905, pp. 181-2). Uma das condições presentes para a
definição da escolha de objeto está no fato de que é necessário criar uma barreira contra o
incesto, de modo a evitar que parentes consangüíneos figurem entre os objetos de escolha
sexual. Esse é um processo delicado, principalmente se considerarmos que as figuras
parentais são as eleitas como objetos sexuais, processo que se dá inicialmente “no mundo da
representação” (1905, p. 206). É necessário que o jovem se desligue da figura materna, se
vincule a outra figura feminina de modo a contribuir para o progresso da civilização. De
qualquer modo, a escolha de objeto de um menino sempre se dará na linha de escolher uma
jovem que corresponda à representação que o jovem fez de sua mãe (1905, p. 208). Os fatores
que impedem que a escolha de objeto se faça de forma adequada podem ser encontrados em
situações nas quais os pais tinham um casamento infeliz. Nessas condições, haverá uma
predisposição para distúrbios na vida sexual do jovem. Freud salienta, ainda, que o afeto
70

infantil, embora não seja o único elemento, é o mais marcante na escolha do objeto,
e que posteriormente será revivido na puberdade.

Outro elemento presente na escolha de objeto está na lembrança do afeto que ao jovem
foi mostrado em sua infância pelas pessoas do sexo feminino, em especial sua mãe.
Ao mesmo tempo, é fundamental que o jovem tenha sido convencido a não se envolver em
situações de competição. Dessa maneira, evita-se que o jovem eleja pessoas de sexo igual ao
seu como seu objeto amoroso. Freud também acredita que os rapazes não devem ser educados
por pessoas do sexo masculino (1918 [1914], p. 1941). Seus atendimentos mostraram que a
perda de um dos genitores e uma superproteção por parte do genitor remanescente podem
propiciar uma situação a qual ele denomina de inversão (ou homossexualidade) (1905, p.
209).

5.2. A sexualidade feminina

As idéias de Freud sobre o desenvolvimento da sexualidade feminina sofreram


modificações ao longo dos anos de sua atividade profissional. Neste item, apresentarei esta
trajetória, enfocando suas idéias sobre o tema. Os aspectos mais importantes foram
desenvolvidos entre 1920 e 1930, embora as primeiras considerações já tenham sido feitas no
início do século.

No tocante à constituição da sexualidade feminina, o modelo masculino permanece.


As meninas, em termos gerais, tanto quanto os meninos, também têm sua sexualidade
definida em dois momentos, na infância e na puberdade (1905, pp. 181-82).

Em 1900, ao enfocar os sonhos com pessoas queridas, Freud diz que

ao submetermos estes enfermos à psicanálise, descobrimos que os desejos sexuais


infantis – até o ponto em que se falando deste estado embrionário eles podem receber
este nome – despertam muito cedo e a primeira afeição da menina é para com seu pai e
do menino é para com sua mãe. (1900, p. 504)

Sua idéia de que a sexualidade masculina, ao contrário da sexualidade feminina, é


mais acessível ao estudo é apontada em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
quando ele disse:
71

a importância do fator de supervalorização sexual pode ser mais bem


estudada nos homens, cuja vida sexual se tornou acessível a investigação, posto que a
das mulheres permanece envolta em uma obscuridade impenetrável , em parte pela
atrofia cultural e em parte também pela discrição convencional e pela sua
insinceridade. (Freud, 1905, p. 137)

Talvez o aspecto mais importante para a definição da sexualidade feminina esteja na


idéia de que todas as considerações sobre sexualidade, sejam elas para o sexo masculino ou
para o sexo feminino, se baseiam na premissa de que o pênis é o órgão mais importante. Em
Freud, a sexualidade feminina é considerada a partir do órgão que a mulher não possui. Para
Freud, a descoberta de que as meninas têm um órgão sexual diferente do órgão masculino e de
que o clitóris pode ser um membro que possa crescer até tornar-se do tamanho do pênis
levaria o menino a considerar que ‘é pequenino [o pênis/clitóris], porém ele crescerá e se
tornará maior” (1908, pp. 1265-1266).

Em 1923, em seu texto A organização genital infantil, Freud diz que ainda não se
conhece com detalhes o que ocorre na mulher quando se consideram os aspectos equivalentes
ao processo masculino relacionados à primazia do pênis. (1923b, p. 2699) Neste mesmo ano,
ele define a feminilidade a partir da combinação dos aspectos objeto e passividade, aspectos
que serão consumados na puberdade. Diz Freud que “o feminino integra o objeto e a
passividade. A vagina é reconhecida como o abrigo para o pênis, e herda o útero materno”
(1923b, p. 2700).

Da mesma forma que ocorre com os meninos, um dos momentos cruciais na


constituição da sexualidade feminina pode ser encontrada no complexo de Édipo. A menina
entra no complexo de Édipo ao constatar que não tem um pênis, o que provoca o sentimento
de inveja (1925, p. 2899). Ela atribui à sua mãe o fato de não possuir o objeto tão desejado.
Isso faz com que ela deseje se tornar menino, pois apenas dessa forma ela poderá ter o pênis.

Ao sentir inveja do pênis, a menina escolhe o pai como seu objeto de amor e imagina
que poderá recuperar o órgão perdido se tiver um filho com ele. A resolução do conflito
edípico na menina virá na medida em que mantiver o pai como objeto de amor, ao mesmo
tempo em que o ganha por identificar-se com a mãe. A resolução do complexo edípico nas
meninas se dá de uma forma peculiar. De certa forma, é como se elas tivessem menos temor
nessa situação, pois como elas pensam que perderam o pênis e já são castradas, não há mais o
que perder. E como elas não mais temem a perda do órgão sexual, tendem a desenvolver um
superego mais fraco (1925, p. 2902).
72

Em 1905, Freud afirma que, embora a grande diferença entre homens e


mulheres se estabeleça apenas na puberdade, já na infância os componentes masculinos e
femininos são perceptíveis. Para Freud, o desenvolvimento das inibições sexuais tais como
vergonha e repugnância se mostram mais cedo na vida das meninas em virtude de sua menor
resistência. Os instintos parciais da sexualidade apresentam-se de forma passiva nas mulheres.
Já a atividade auto-erótica das zonas erógenas das meninas ocorre da mesma forma que nos
homens. A distinção entre homens e mulheres, nesse aspecto, virá apenas na puberdade. As
manifestações auto-eróticas e masturbatórias das mulheres têm um caráter masculino. Isso se
deve ao fato de que, Freud afirma, a libido é de natureza masculina (1905, pp. 200-1). Em
1915, numa nota de rodapé, Freud distingue os diferentes usos do conceito de masculino e
feminino. Para a psicanálise, o uso mais profícuo é no sentido psicológico, ou seja, o de
atividade e passividade. Freud confirma a conotação de que um instinto é sempre ativo, pois a
pulsão é sempre ativa, mesmo que tenha em mira um objeto passivo (1905, p. 200).

Um dos elementos que definem a sexualidade feminina consiste, na idéia de Freud, no


fato de que a principal zona erógena das mulheres localiza-se no clitóris, que é análogo ao
órgão sexual masculino. Ele considera que por muitos anos a vagina é tida como inexistente
pela menina. No processo de transformação de moça em mulher, a menina sofre uma
repressão que afeta principalmente seu clitóris. Para Freud, quanto mais reprimida é uma
mulher, mais ela excitará os homens. A mulher tem que manter o recato, de forma a
proporcionar uma supervalorização sexual. O clitóris ainda tem a função de transmitir a
excitabilidade aos órgãos sexuais adjacentes quando o ato sexual é permitido. Antes disso,
porém, deve haver um período em que a mulher fica anestesiada. As determinantes psíquicas
também são estabelecidas no processo de anestesia decorrente da repressão. Ao término dessa
fase de anestesiamento, o clitóris transfere o estímulo para a vagina e a masculinidade infantil
típica dessa fase nas meninas é abandonada (1905, pp. 201-2). A importância do clitóris está
presente na idéia de que “a transformação da menina em mulher se caracteriza pela
necessidade do deslocamento do prazer do clitóris para a vagina. Nos casos conhecidos de
anestesia sexual das mulheres, o clitóris reteve sua sensibilidade” (1917 [1916-17], p. 2320).

Outro componente importante na sexualidade feminina está na necessidade de evitar


um relacionamento incestuoso com os familiares. Deve ocorrer uma não fixação na libido
infantil. As meninas que tiverem dificuldade na assunção das situações concretas da vida
sexual e que apresentem uma necessidade excessiva de afeição apresentarão problemas na
área da sexualidade, podendo cair numa situação de vivência de um amor assexuado, ou
permanecerem vinculadas afetivamente a irmãos ou irmãs (1905, p. 206).
73

Até 1910, Freud afirmava que a rivalidade com a mãe era um fator que
impedia a menina de ter nas mulheres a escolha de objeto amoroso. Em 1915, ele sustenta
algo parecido: uma relação hostil com pessoas do próprio sexo pode ajudar a mulher a
encaminhar-se para uma ‘direção normal’ da sexualidade (1905, p. 209).

Em 1926, Freud ainda afirma que pouco sabe sobre a vida sexual das meninas.
Salienta que isso não é motivo de vergonha para o pesquisador, pois, “afinal de contas, a vida
sexual das mulheres adultas constitui um continente negro [dark continent] para a Psicologia”
(Freud, 1926, p. 2928).

Para Freud, o estabelecimento da sexualidade feminina não é um processo simples.


Em 1931, em seu estudo Sobre a sexualidade feminina, ele apresenta um aspecto
extremamente importante a ser considerado: a maneira como a menina se desvincula de sua
mãe, pois tanto quanto para o menino, a mãe constitui o seu primeiro objeto de amor. As
meninas devem se desvincular de sua mãe e se direcionarem para o pai. Freud reconhece que
a fase pré-edipiana adquire uma importância capital no desenvolvimento da menina. Essa
questão é tão importante para Freud, que ele afirma: “nosso reconhecimento de que esta fase
primitiva, pré-edípica, no desenvolvimento da menininha é para nós uma surpresa, surpresa
análoga como a que em outro campo representou o descobrimento da cultura mino-micênica
por detrás da civilização da cultura grega” (Freud, 1931, p. 3078).

Freud aponta que a vida sexual das meninas divide-se em duas fases, sendo que a
primeira tem um caráter masculino e somente a segunda fase assume caracteres femininos.
Essa característica de passagem de uma fase para outra é de natureza essencialmente
feminina. Na segunda fase da sexualidade, quando a vagina tem primazia sobre o clitóris, este
órgão continuará a funcionar por ter um caráter viril. Isto se torna um elemento complicador,
o que levou Freud a afirmar que:

outra complicação se origina do fato de que a característica de virilidade do clitóris se


manterá durante a vida sexual posterior da mulher, de uma forma muito variável, que
por certo ainda não é totalmente compreendida. Não sabemos quais são os
fundamentos biológicos destas características da mulher e menos ainda podemos lhe
atribuir qualquer propósito teleológico. (1931, p. 3079).
74

Ainda neste estudo Freud se rende: “há muito tempo, afinal de contas, já
abandonamos qualquer expectativa quanto a um paralelismo claro entre o desenvolvimento
sexual masculino e feminino” (1931, p. 3087).

No tocante ao encontro com o objeto, embora as condições primárias para a escolha de


objeto sejam as mesmas tanto para o homem quanto para a mulher, esta se encontra numa
situação especial. Ao final de seu desenvolvimento sexual, o pai dela deveria se tornar seu
novo objeto amoroso, ou seja, à mudança em seu próprio sexo deve corresponder uma
mudança no sexo de seu objeto.

Na fase edípica, quando se descobre como um ser castrado e, conseqüentemente,


inferiorizado, a mulher tem três alternativas para seu desenvolvimento: “(a) o que leva à
suspensão de toda a sua vida sexual; (b) o que leva a uma desafiante superenfatização de sua
masculinidade; (c) os primeiros passos em direção a uma feminilidade definitiva” (1931, p.
3081). A menina passa a depreciar sua mãe quando descobre que ela também é desprovida de
pênis.

No final da primeira fase de ligação com a mãe, a menina tende a se afastar dela
porque ela não lhe deu o pênis, o único órgão sexual completo, entre outros motivos. Talvez o
motivo mais real para justificar essa hostilidade esteja no fato de que a ligação com a mãe é
tão intensa porque é a primeira afeição que a menina experimenta (Freud, 1931, p. 3083).

Freud pensa que a ambivalência é característica predominante das fases iniciais da


vida do sujeito humano. A diferença, nessa situação de ambivalência entre meninos e meninas
está no fato de que os meninos podem direcionar sua hostilidade para o pai, enquanto que as
meninas não podem fazer isso (1931, p. 3084). Freud admite que esse assunto ainda é
desconhecido para a psicanálise. Durante essa fase de intensa ligação com a mãe, a menina
tem objetivos sexuais tanto ativos quanto passivos. As primeiras experiências sexuais da
criança com sua mãe têm um caráter passivo, pois ela apenas recebe os cuidados
(alimentação, banho, etc) da mãe. Os cuidados que a mãe provê à menina na fase fálica farão
com que esta acredite estar sofrendo um processo de sedução da parte de sua progenitora.
Isso ocorre, segundo Freud, porque foi a mãe quem provocou sensações genitais na menina ao
dispensar-lhe cuidados relacionados à higiene corporal Quando a filha se afasta da mãe, esta
transmite ao pai a função de iniciá-la na vida sexual. Finalmente, durante a fase fálica,
impulsos intensos e ativos são direcionados à mãe e a atividade sexual desse período é uma
intensa masturbação clitoriana.
75

Para Freud, o afastamento da mãe é importante no desenvolvimento sexual


da menina, não só por ser uma mudança de objeto, mas também por apresentar um acentuado
rebaixamento dos impulsos sexuais ativos e uma ascensão dos impulsos passivos. “A
transição para o objeto paterno realiza-se com o auxílio de tendências passivas [...]” (1931, p.
3086), após a superação dos fortes vínculos da fase pré-edípica.

As idéias defendidas por Freud em seus artigos de 1905, 1917, 1925, 193120, dentre
outros, são confirmadas em 1933 [1932], no texto Novas Lições Introdutórias à Psicanálise,
na conferência Feminilidade. Este estudo se refere a uma palestra que Freud proferiu a um
público constituído por psicanalistas, sendo que uma parte desse público era composta por
mulheres. Nesse texto, ele tece muitas considerações relativas ao tema da feminilidade, um
assunto importante, pois “através da história as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma
da natureza da feminilidade” (1933, p.3164). Inicialmente, ele adverte que a anatomia não
pode dar conta do que seria a feminilidade, uma vez que há, tanto nos homens quanto nas
mulheres, elementos de ambos os sexos, mesmo que de forma atrofiada. Esta concepção já
havia sido assumida em 1905.

A primeira observação de Freud recai sobre as diferenças anatômicas e para o fato de


que elas não seriam suficientes para explicar as questões do masculino e do feminino, uma
vez que é possível encontrar partes do aparelho masculino no feminino e vice-versa. Este
aspecto pode nos levar a pensar em bissexualidade. Portanto, masculinidade e feminilidade
não podem ser compreendidas apenas pelo vértice da anatomia (1933 [1932], p.3165).

Outra possibilidade de compreensão estaria no aspecto psicológico, mas Freud conclui


que a Psicologia é “incapaz de solucionar o enigma da feminilidade”, pois, entre outros
aspectos, não se pode relacionar masculinidade à atividade e feminilidade à passividade (1933
[1932], p.3166). Freud não deixa de apresentar a mulher como passiva, uma vez que
socialmente ela é induzida a ter esse comportamento em várias áreas de sua vida, inclusive na
relação sexual.

No que se refere ao masoquismo, Freud pensa que este aspecto também não
caracterizaria a feminilidade, pois muitos homens também apresentam este componente em
seu psiquismo (1933 [1932], p. 3166).

20 Três ensaios sobre a teoria da sexualidade; A organização genital infantil; Algumas conseqüências
psíquicas sobre as diferenças anatômicas; A vida sexual dos seres humanos; A sexualidade feminina. Nestes
textos são encontradas suas idéias sobre a vida sexual infantil e a forma como ela se desenvolve.
76

Freud mantém até o final de sua vida a crença na inveja do pênis como o
elemento definidor do psiquismo das mulheres. Para ele, as meninas são mais inteligentes que
os meninos da mesma idade. Para ele, os meninos buscam estabelecer uma catexia maior com
os objetos. As meninas também seriam mais dóceis que os meninos (1925, 1931 e 1933a).

A constatação é a de que a psicologia também não consegue resolver o mistério da


feminilidade. Esta compreensão virá de outras fontes, quando for possível compreender como
os organismos, em suas transformações, diferenciaram-se em dois sexos. A psicanálise tenta
compreender como a mulher se desenvolve (1933 [1932], p.3166). Freud se rende à idéia de
que algumas questões puderam ser resolvidas a partir do trabalho das mulheres analistas, uma
vez que estas não trariam concepções preconceituosas sobre o tema.

No tocante ao desenvolvimento libidinal, ambos os sexos passam pela mesma


trajetória, embora a menina precise resolver especialmente duas tarefas. Uma delas é a
transferência da sensibilidade clitoriana para a vagina, pois na fase fálica o clitóris exerce
papel primordial; a outra tarefa é colocar o pai no local de objeto de amor, que antes fora
ocupado pela mãe. Esta é a tarefa das meninas na fase edípica e tem uma natureza complexa,
pois envolve troca de zona erógena e troca de objeto. Haveria uma relação libidinal entre a
menina e a mãe, uma relação iniciada nos primórdios do contato entre ambas. A menina tem
como objetivo primordial ter um bebê, e sua evolução libidinal se dá por fases instintivas com
características ativas e passivas. Freud sinaliza que é nesta fase que se podem encontrar
sintomas paranóides tais como temor de envenenamento e fantasias de sedução. É a mãe
quem desperta as primeiras sensações genitais prazerosas na menina, ao realizar o ato da
higiene corporal (1933 [1932], pp. 3168-9). Esta é a vinculação pré-edipiana da menina com a
mãe.

Antes de efetuar a troca de objeto, a menina sente ódio pela mãe. A menina se queixa
da falta de amor, pois a mãe não a amamentou devidamente. Outras queixas podem surgir
quando a mãe se dedica aos novos filhos que nascem posteriormente e também nas situações
em que ela impede a menina de buscar o prazer na masturbação (1933 [1932], pp. 3170-1).

A desvinculação da menina de sua mãe virá com o complexo de castração, quando a


mãe é responsabilizada pelo fato da menina não ter um pênis, o que acarreta uma situação de
desvantagem. A conseqüência, já sabemos, é a inveja do pênis, sentimento que incita as
mulheres a uma superação desta desvantagem nas situações de sucesso profissional.
Conforme já foi apresentado anteriormente, a castração traz à menina três possibilidades:
neurose (perda do prazer), masculinização (identificação com o pai, que poderá restaurá-la ao
lhe dar um pênis) ou a feminilidade normal (que se obtém tendo um filho homem) (1933
77

[1932], p.3172). É desta forma que ela entra no complexo edipiano. As mulheres
seriam dadas à inveja e aos ciúmes, ou seja, teriam um caráter moral mais frágil em função de
não temerem a castração (1933 [1032], p.3174). A todos estes aspectos Freud denominou de
‘pré-história da mulher’ (1933 [1032], p.3175). Freud cita algumas analistas que se
aprofundaram neste tema. Uma delas, Dra Ruth Mack Brunswick, foi a primeira a descrever
um caso clínico em que uma fixação na fase pré-edipiana impediu que a paciente atingisse a
situação edípica. Já a Dra Jeanne Lampl-de Groot constatou que os atos eróticos de mulheres
homossexuais reproduzem as relações entre a mãe e o bebê (1933 [1932], p.3175).

Neste ponto de sua conferência, Freud diz que não é sua intenção apresentar o
comportamento da feminilidade na puberdade e maturidade, pois seu conhecimento é
insuficiente. Porém, ele apresenta outros esclarecimentos tendo a pré-história como ponto de
partida. Para ele, a feminilidade estaria exposta a perturbações advindas dos fenômenos
residuais do período masculino inicial. Poderiam ocorrer fixações nas fases pré-edipianas e,
no decorrer da vida de algumas mulheres, a repetida alternância entre períodos possibilitaria o
predomínio ora da masculinidade ora da feminilidade. Essa bissexualidade seria a responsável
pelo enigma da mulher (1933[1932], p.3175).

Se em 1905 Freud afirma que uma única libido seria responsável pela constituição
tanto da masculinidade quanto da feminilidade, em 1933 sua idéia se altera. Ele diz que “[...]
não nos surpreenderíamos se cada sexualidade tivesse a sua libido, o que acarretaria uma
situação em que um tipo de libido seria a responsável pela finalidade de uma vida sexual
feminina” (1933 [1932], pp. 3175-76). Logo em seguida, ele faz uma observação que descarta
a assertiva anterior ao sustentar que a libido não tem sexo. A fundamentação freudiana na
biologia é retomada quando ele afirma que a maior dificuldade no estabelecimento da
sexualidade feminina pode ser compreendida através do fato de que a Natureza teria sido mais
generosa com os homens ao lhes confiar a realização do objetivo biológico, por meio de uma
agressividade maior (1933 [1932], pp. 3175-77).

Freud também aponta uma frigidez sexual nas mulheres, fenômeno que, embora ainda
não bem compreendido, poderia ser explicado por causas anatômicas, psicogênicas, e também
por fatores constitucionais.

Freud acrescenta algumas considerações sobre a personalidade feminina e suas


peculiaridades psíquicas maduras no que se refere ao papel que as mulheres ocupam na
sociedade. Salienta que o narcisismo nas mulheres se expressa em sua vaidade extrema, se
comparada com a pouca vaidade dos homens. Isso indica uma tentativa de valorizar seus
encantos de forma a compensar sua “inferioridade sexual original” (1933 [1932], p. 3176). A
78

vergonha, que ele considera característica totalmente feminina, tem a finalidade de


ocultar a deficiência genital feminina que gera a inveja do pênis. Esta vergonha também se
vincula às poucas contribuições das mulheres à civilização. A única técnica que as mulheres
podem ter inventado – trançar e tecer – pode ser oriunda de seus pêlos pubianos que são
emaranhados (1933 [1932], p. 3176). A supremacia masculina, tal como concebida por ele, é
confirmada em sua observação de que somente tendo um filho do sexo masculino a mulher
pode se realizar:

a mãe somente obtém satisfação sem limite com seu filho menino; este é, sem
exceção, o mais perfeito, essa relação é a mais livre de ambivalência de todos os
relacionamentos humanos. A mãe pode transferir para o filho a ambição que ela teve
que reprimir e esperar: a satisfação do complexo masculino que falta a ela. (Freud,
1933 [1932], p. 3177)

Para Freud, o nascimento de uma filha e o desagrado que isto provoca na mãe revela a
inveja do pênis. (1933 [1932], p. 3176)

Quanto às escolhas objetais, estas derivam do ideal narcisista do homem que a menina
um dia quis ter – seu pai. Se a menina vinculou-se ao pai e se hostilizou com a mãe, sua
escolha objetal se dará de acordo com o modelo paterno e seu casamento poderá ser feliz.
Quando a mulher se torna mãe, ela poderá reviver sua relação com sua própria mãe, contra a
qual ela estava lutando até agora, de modo que poderá repetir o casamento infeliz dos pais
(1933 [1932], p. 3176).

Para Freud, a identificação de uma mulher com a mãe se constitui em dois momentos:
o primeiro é o pré-edipiano, que se sustenta no vínculo afetuoso com a mãe, e o segundo vem
do complexo de Édipo, quando a menina quer eliminar a mãe para poder ficar com o pai. Os
resíduos deste momento podem surgir no futuro, sem uma resolução definitiva. Porém, o
aspecto mais importante pode ser encontrado na ligação pré-edipiana, pois ela é responsável
pela formação das características que futuramente se vincularão ao papel na função sexual e
preparação para as tarefas sociais. É pela identificação que a menina adquire os atrativos para
o homem que converte a vinculação edípica pela sua mãe em paixão (1933 [1932], p. 3177).

Neste mesmo estudo Freud diz que outra característica feminina é de ser dotada de
pouco senso de justiça. Isso advém do fato de que em sua vida mental há o predomínio da
inveja, pois “a exigência de justiça é uma fixação da inveja e procura a condição através da
79

qual a pessoa pode colocar essa inveja de lado. Pensamos também que têm menos
interesses sociais que os homens e sua capacidade de sublimação dos instintos é menor que a
dos homens” (1933 [1932], p. 3177). Para ele, as mulheres são mais rígidas que os homens.
Freud conclui esse artigo reconhecendo que essas observações não são agradáveis, e que
também são incompletas. Diz ainda “não se esqueçam que descrevi as mulheres enquanto ser
que é determinado por sua função sexual. Essa influência advém de muito longe, não
desprezamos o fato de que a mulher também faz parte do gênero humano” (1933 [1932], p.
3178).

Freud encerra a conferência afirmando que já havia dito tudo o que sabia até então e
que maiores dados deveriam ser perguntados “aos poetas, ou esperar até que a ciência possa
dar informações mais profundas e mais coerentes” (1933 [1932], p. 3178).

Em 1940, em seu texto Esboço de psicanálise, Freud confirma as idéias apresentadas


anteriormente sobre a resolução de complexo de Édipo na menina. Esta, ao assumir uma nova
relação com o pai, passa a desejar ter um filho dele, de forma a ter o pênis dele à sua
disposição. A menina, por não ter um pênis, vive o complexo edipiano de uma maneira tal
que, mesmo que permaneça nele, terá pouco prejuízo. Ou seja, ela escolherá um marido com
as mesmas características de seu pai, reconhecendo nele sua autoridade de portador do pênis.
A situação se resolverá quando ela estender seu amor ao portador do órgão sexual, da mesma
maneira como estendeu à mãe o amor sentido anteriormente pelo seio materno (1940, p.
3410).

Em suma, Freud iniciou sua teoria da sexualidade por meio dos quadros de perversão.
No decorrer de uma intensa atividade clínico-empírica, construiu uma teoria dinâmico-
energética, baseada na idéia de supostas forças e energias, ou seja, conceitos especulativos,
que conduzem o ser humano. Freud concebe o homem como um sujeito que comporta um
aparelho psíquico, um aparelho cuja causalidade é, em última instância, mecânica. Este
sujeito é movido pelo princípio do prazer e da realidade, e tem que resolver as agruras do
complexo de Édipo, administrando os instintos sexuais nas relações a três.
80

Capítulo II: Críticas de Winnicott à teoria freudiana da sexualidade

Introdução

Alguns comentadores, ao estudarem a obra de Winnicott, têm afirmado que ele se


caracteriza por ser mais um dos seguidores da psicanálise tradicional21. Sob alguns aspectos,
isso é verdade. Sua admiração pela descoberta da psicanálise pode ser constatada na carta
enviada a sua irmã, Violet, na qual Winnicott esboça um resumo das idéias de Freud
(Winnicott, 1987b, p. 1). Winnicott jamais rejeitou sua herança psicanalítica e inúmeras vezes
declarou sua posição: “o leitor deve saber que sou um produto da escola psicanalítica ou
freudiana” (1965t [1950] p. 21). De fato, durante muitos anos ele foi um seguidor das idéias
de Freud e isso pode ser constatado em seus textos da década de 1930 e nos primeiros anos da
década de 1940 (1996h [1931], 1934c, 1958e [1936], 1941a, 1942ª e 1944a). No entanto,
gradativamente, a partir do trabalho em sua clínica pediátrica, suas idéias se alteram; ele
próprio especifica isto ao afirmar que ser um seguidor de Freud “não significa que eu tome
por correto tudo o que Freud disse ou escreveu [...]. Na verdade, há certas coisas em que
Freud veio a acreditar que nos parecem, a mim e a muitos outros analistas, não serem de
modo algum corretas [...]” (1965t [1950], p. 21). Esta, dentre outras observações de Winnicott
revela que, embora ele se sustente inicialmente na teoria freudiana, pode-se afirmar com
segurança que ele desenvolveu um trabalho com características peculiares, cujo resultado
revela a criação de uma nova psicanálise.

Uma análise dos textos de Winnicott revela a estrutura de seu pensamento. Os textos
de Winnicott da década de 1930 ainda carregam sua herança de médico pediatra, mas já
revelam seu viés de psicanalista. Winnicott aborda a importância da psicanálise para o médico
pediatra (1930b, 1996e [1931], 1996h [1931], 1931p, 1938b). Nestes textos, Winnicott ainda
usa os jargões da psicanálise tradicional, tais como ‘prazeres orais’, ‘prazeres genitais’
(1934c). Os termos kleinianos ‘realidade interna (inner word) e externa’, ’objetos bons e
objetos maus’ (1958k [1935]) estão presentes de modo regular. Não há aqui uma crítica aos
elementos da psicanálise tradicional. Winnicott enfatiza os aspectos relacionados com sua
atividade pediátrica e termos como pulsão e zonas erógenas ainda são encontrados. Os textos
de Winnicott do início dos anos 1940 ainda expressam um compromisso com a psicanálise

21 Roberto Barberena Graña, por exemplo, na apresentação à edição brasileira do livro Pensando sobre
crianças, refere-se a Winnicott como um pensador freudiano.
81

tradicional. Ainda encontramos termos da psicanálise freudiana, tal como inveja do


pênis (1942a), e termos kleinianos como incorporação, mundo interno/mundo externo, avidez
(1946c). No entanto, no decorrer de sua trajetória profissional, na medida em que elabora suas
próprias concepções sobre a psicanálise, Winnicott aponta sua discordância em relação a
alguns aspectos apresentados por essa teoria. De fato, uma leitura minuciosa da obra
winnicottiana revela esta postura crítica.

É importante considerar que as críticas de Winnicott somente podem ser


compreendidas tendo como referência a própria teoria criada por ele, a teoria do
amadurecimento humano.

Em meados da década de 1940, a partir de 1945, mais especificamente, a linguagem


utilizada em seus artigos começa a se alterar. Um texto que delimita esta mudança é O
desenvolvimento emocional primitivo, no qual ele apresenta os processos envolvidos na tarefa
da integração, promovida pelos cuidados dispensados ao bebê e as experiências instintuais
(1945d, p.150). Uma das tarefas é a da personalização, que envolve o alojamento da psique no
corpo e a firme sensação de que se está dentro do próprio corpo, seja ele masculino ou
feminino. O aspecto instintual e as inúmeras experiências de cuidado corporal promoverão
uma personalização adequada (1945d, p.151). Estes aspectos indicam que, para Winnicott, a
existência de um corpo integrado não é passível de ser aventada no início da vida do
indivíduo. Em 1948 ele descreve os processos de integração, apontando as tarefas iniciais
(1996o [1948], 1948b). Nos anos 1950, ele se afastou dos pressupostos metapsicológicos
freudianos (1996q [1950], 1987b). Foi nessa fase que ele formulou boa parte de seus próprios
conceitos, caracterizando-os de forma diferente das concepções freudianas. (1965t [1950],
1953a [1952], 1958n [1956], 1958j, 1965h [1959]) Seus textos da década de 1960 expressam
a consolidação de seu pensamento: o ser humano tem seu desenvolvimento promovido pelo
processo de amadurecimento humano pessoal (1960c, 1965m [1960], 1965vf [1960], 1965r
[1963], 1989vp [1959/63] e 1969i [1968]).

As objeções feitas a Freud se fundamentaram em suas experiências como pediatra e


psicanalista. Sobre esse assunto, afirma Winnicott:

o fato é que Freud começou uma abordagem científica do problema do


desenvolvimento humano [...] ele nos deu um método a ser usado e desenvolvido,
através do qual poderemos checar as observações dos outros e contribuir com as
nossas próprias observações. (1965t [1950], p. 21, itálicos meus)
82

Fundamentando-me nas idéias de Winnicott, neste capítulo tenho por objetivo


apresentar as críticas de Winnicott às concepções freudianas no tocante aos aspectos que
envolvem a teoria da sexualidade. Criticar Freud implica na delimitação de alguns aspectos.
No que tange ao propósito deste estudo, é necessário considerar os elementos presentes na
metapsicologia e que não têm como ser alocados na teoria winnicottiana. Outro aspecto está
na forma como a psicanálise considerou os primórdios da vida do sujeito. O próprio Winnicott
afirmou, em 1956, que a psicanálise tradicional não priorizou o início da vida do bebê e que
os psicanalistas tradicionais “parecem não considerar, em seus pronunciamentos a
imaturidade do ego” (1987b, p. 109). Finalmente, é necessário considerar a forma como
Winnicott concebe o ser humano e sua constituição, que é diferente do modelo concebido por
Freud.

Para uma melhor compreensão das críticas de Winnicott a Freud, o percurso


apresentado seguirá uma ordem cronológica. Ao seguir esta ordem, fundamento-me no
próprio Winnicott, o qual afirmava que esta é a melhor forma de se apresentar o
desenvolvimento de um estudo, porque permite que se vislumbre o amadurecimento de um
pensamento (1988, p. 37).

Outro fator importante a ser considerado é a forma como Winnicott concebe a


condição do bebê no início da vida e a trajetória do processo desenvolvimental; farei uma
exposição destas idéias. Essa apresentação será feita de forma esquemática, sem um
detalhamento mais minucioso do que ocorre em cada etapa da vida do indivíduo que
amadurece, visto que foge ao objetivo deste estudo estudar o processo maturacional em sua
totalidade. Meu objetivo é apenas o de apresentar os aspectos que me permitam sustentar as
críticas de Winnicott dirigidas a Freud.

Para Winnicott, o processo de amadurecimento vai de um estado de não vida até ao


outro estado de não vida, quando a morte interrompe e completa o processo de
amadurecimento de cada ser humano. Durante o intervalo entre dois estados de não vida, o
indivíduo pode atingir todo o crescimento possível de modo a poder se constituir e construir
sua existência. A cada estágio alcançado, a cada nova conquista, a integração vai se
efetivando e é dessa forma que a pessoa saudável se constitui. A vivência de cada fase não é
estanque e o indivíduo que amadurece está o tempo todo em todos os estágios, embora um
destes predomine a cada fase (Winnicott, 1988, p. 34). Cada estágio alcançado e vivenciado
implica na realização de tarefas específicas. Cada estágio tem características tão peculiares
que os termos que permitem descrever um momento desenvolvimental não são adequados
83

para descrever outro. Nem a linguagem já consagrada da psicologia e da psicanálise


tradicional é adequada para descrever as delicadezas e singularidades do que ocorre com o
indivíduo a cada fase vivenciada. Por isso, Winnicott, para descrever esses estágios, usou o
que ele próprio denominou de “a minha própria linguagem”.

É fundamental destacar: para a psicanálise winnicottiana, o indivíduo não nasce pronto


e tampouco já em condições de estabelecer relações com a realidade externa e com as pessoas
que aqui estão. Se, do ponto de vista do observador, um bebê vem ao mundo, do ponto de
vista do bebê, ele próprio não existe e nem saberá disso a não ser que alguém se encarregue de
cuidar dele e atender às suas necessidades (1958a, p. 99, 1970b [1969] p.253). Na situação
descrita por Winnicott, o bebê depende de alguém, mas não sabe dessa dependência. Não
existe ali um ser humano que saiba de si, que esteja integrado no tempo e que saiba do espaço
no qual está inserido. A única posse do bebê – e a qual ele não sabe possuir – é o processo de
amadurecimento que ele herda e que ainda é externo a ele. Para que a sua humanidade possa
ser constituída, o bebê necessitará de um ambiente que se encarregue da efetivação de seu
potencial humano. Para Winnicott, um bebê existe na medida em que existe uma
mãe/ambiente que cuide dele.

Como as tramas do existir humano são tecidas? Quando surge o ser humano, em que
momento ele pode ser considerado parte constituinte da humanidade? Em que momento
começa a vida humana? Como médico, Winnicott não deixou de valorizar o potencial
genético do ser humano, mas sua posição era a de que os genes não são suficientes (1987d,
[1967], p. 94). O processo de amadurecimento será sustentado pela mãe que se adapta ao bebê
e promove o seu crescimento. Como diz Winnicott, é difícil precisar quando tem início o
processo de desenvolvimento humano, de modo que a única data definida com rigor é a do
nascimento. Mas, até o nascimento, muita coisa já aconteceu com o bebê e, curiosamente, o
próprio nascimento não basta, pois após o nascimento biológico surge a necessidade da
eclosão do nascimento psicológico, o qual advém da integração das experiências dessa fase e
das posteriores.

A princípio há uma vitalidade proveniente de um estado de estar vivo, desse estado


que permite embrião, na vida intra-uterina, movimentar-se e encontrar algo. Essa capacidade
originária inata para desenvolver-se, essa vitalidade, constitui a matriz que possibilitará o
gesto de busca e criação do mundo. Sustentado pela mãe, o bebê inicia uma rotina que lhe
possibilitará acumular experiências e memórias que tecerão sua identidade e personalidade.
No início, não há um ser humano, há apenas a possibilidade de uma humanidade se constituir,
caso haja um ambiente que possibilite isso. Aqui poderíamos ser tentados a equiparar a
84

motilidade com a força que impulsiona o sujeito, uma força que, na metapsicologia,
é chamada de pulsão de vida. Essa comparação não cabe, uma vez que a pulsão de vida age
por si mesma e tem o objetivo de buscar o prazer, enquanto que a motilidade própria do bebê
humano advém simplesmente do estar vivo e da necessidade de continuar a existir. Se isso
ocorrer, a descoberta do prazer virá mais tarde.

Tornar-se um ser humano é uma empreitada delicada, difícil e longa. Vencer a


fragilidade inicial da vida, atravessar a dupla dependência e chegar à independência relativa,
exige um ambiente que acolha e possibilite a instauração de uma individualidade. Ser
concebido, ser sustentado por todos os lados na vida intra-uterina, ser sustentado no colo,
localizar-se no tempo e no espaço, alojar-se em seu próprio corpo, descer do colo e ensaiar os
primeiros passos, atravessar os umbrais da casa paterna e gradativamente chegar ao mundo
não é fácil. Por meio dos cuidados rotineiros da mãe, surge um indivíduo autônomo, uma
pessoa que finalmente pode descobrir o outro e com ele se relacionar, a ele se vincular. E,
dentre as inúmeras possibilidades de relacionamento, surge a de poder desejar e amar alguém
que está na realidade externa. Nos primeiros momentos da vida do bebê, ainda não há uma
pessoa inteira, não há um ego que possa dar conta dos sentimentos, dos instintos e que possa
desejar. No início não há o desejo, há a possibilidade de vir a desejar alguém.

1. Crítica à Teoria da Sexualidade e redescrição da Teoria da Sexualidade

Winnicott, no início de suas atividades profissionais, mostra-se fiel à teoria e às


técnicas freudianas. Porém, as constatações advindas de sua atividade pediátrica mostraram
que a teoria da sexualidade não era um instrumento eficaz para embasar suas descobertas a
respeito do desenvolvimento infantil. Isto se deu porque Winnicott verificou que os aspectos
da sexualidade não estão presentes nos primórdios da vida de criança, invalidando, assim, o
uso da teoria da sexualidade como referência teórica. Como conseqüência, Winnicott se vê
obrigado a promover a substituição da Teoria da Sexualidade pela Teoria do Amadurecimento
Pessoal. A substituição se dá pelo fato de que o processo de amadurecimento que leva à
constituição de um indivíduo saudável não pode ser compreendido a partir do
desenvolvimento do id. Segundo Winnicott:

a avaliação da saúde em termos das posições do id fica insatisfatória pela ausência da


psicologia do ego. Um exame do ego nos leva direto aos estágios pré-genitais e pré-
verbais do desenvolvimento individual e à provisão ambiental: a adaptação atrelada às
85

necessidades primitivas que são características da primeira infância. (1971f


[1967], p. 27)

A primeira declaração sobre a descoberta de um novo enfoque teórico surge em seu


estudo Desenvolvimento Emocional Primitivo, no qual mostra o resultado de suas observações
e descobertas: “como resultado deste trabalho, tenho muito a comunicar e a acrescentar a
teorias correntes e talvez este trabalho possa ser considerado como um início” (1945d, p.
145).

Estas comunicações foram claras: uma teoria baseada na progressão da libido nas
zonas erógenas não se mostrava eficaz, uma vez que não são os aspectos instintuais que
devem ser enfocados, dado que no início da vida os instintos não estão integrados, nem o
complexo edípico está presente. A integração instintual e o complexo edípico serão possíveis
numa etapa posterior do desenvolvimento da criança.

Ao observar o modo como o desenvolvimento infantil se dá, Winnicott constata a


inadequação da teoria do desenvolvimento das funções sexuais, pois o amadurecimento
ocorre no indivíduo e não é a libido que progride em termos de fases vinculadas a zonas
erógenas. Segundo Winnicott:

não há certeza de que a fantasia da atividade oral é predominantemente erótica, (ou


seja, sem sadismo, ou pré-ambivalente) e só então sádica, destrutiva e por assim dizer,
ambivalente. É mais correto dizermos que é o bebê que se transforma, sendo ruthless
(implacável) no início, e tornando-se mais tarde capaz de concern (preocupado). A
ambivalência está mais relacionada com mudanças no Ego do bebê do que com o
desenvolvimento do Id (ou dos instintos). (1988, p. 42)

Muita coisa deverá ocorrer com o bebê desde esta etapa de incompadecimento até que
ele se torne concernido e responsável pelos atos de sua impulsividade instintual.

Outro aspecto deve ser considerado – para Winnicott, o início da vida remete à
psicose. Não faz sentido pensar no quadro de neurose como a doença emblemática do ser
humano, posto que esse quadro surge em fase tardia na vida da criança. Assim, no início da
vida, a psicose é que deve ser considerada:

o termo psicose é usado para o indivíduo que, quando bebê, não foi capaz de atingir
um grau de saúde pessoal que faça sentido em termos de complexo de Édipo, ou dito
86

de outra forma, que tem uma organização da personalidade cujas fraquezas


se revelam quando a tensão máxima do complexo de Édipo tem de ser suportada.
(1965h [1959], p. 131)

Ao longo dos anos, em inúmeros artigos, Winnicott comunica a inadequação da teoria


proposta por Freud e esclarece que o quadro psicopatológico emblemático do pensamento
winnicottiano é a psicose e não a neurose. Se a Teoria da Sexualidade em Freud remete à
neurose, em Winnicott encontramos a psicose como o novo elemento central, um quadro que
exige um novo instrumental de compreensão. Diz Winnicott:

a fim de examinar a teoria da esquizofrenia é preciso que tenhamos uma eficiente


teoria do crescimento emocional da personalidade. [...] O que preciso fazer é assumir a
teoria geral da continuidade, de uma tendência inata em direção ao crescimento e
evolução pessoal, e a teoria da doença mental como uma interrupção do
desenvolvimento. [...] Também posso dizer que o enunciado do desenvolvimento da
primeira infância e da infância em termos de uma progressão de zonas erógenas, que
nos serviu tão bem em nosso tratamento dos neuróticos, não é tão útil no contexto da
esquizofrenia como o é a idéia de uma progressão da dependência (de início quase
absoluta) para a independência [..] (1968c [1967], p. 194)

Winnicott confirma essa posição anos mais tarde:

para fazer progresso no sentido de uma teoria operável da psicose, os analistas devem
abandonar toda a idéia da esquizofrenia e da paranóia tal como vistas em termos de
regressão ao complexo edipiano. A etiologia destes transtornos leva-nos
inevitavelmente a estágios que precedem o relacionamento de três corpos. (1989xa
[1969], p. 246)

Ao longo dos anos de sua atividade profissional, Winnicott apontou que somente uma
teoria que mostrasse o processo de desenvolvimento humano poderia oferecer a chave para a
compreensão do modo pelo qual o homem amadurece.

A confirmação e sustentação da importância da teoria do amadurecimento pessoal são


encontradas num dos últimos artigos:
87

a única companhia que tenho ao explorar o território desconhecido de um novo caso é


a teoria que trago comigo e que tem se tornado parte de mim e em relação à qual
sequer tenho que pensar de forma deliberada. Esta é a teoria do desenvolvimento
emocional do indivíduo, que inclui, para mim, a história total do relacionamento
individual da criança até seu meio ambiente específico. Não se pode evitar que
ocorram mudanças nas bases teóricas de meu trabalho com o passar do tempo e no
interesse da experiência. (Winnicott, 1971vc, p.6)

Com esta declaração, não restam dúvidas quanto à assunção, por Winnicott, de um
modelo teórico mais adequado ao estudo da natureza humana, ou seja, mais adequado para a
compreensão do que ocorre com o ser humano em cada fase de sua vida. Um modelo que
mostra como se dá o desenvolvimento saudável desde os primórdios da vida do indivíduo, a
passagem pelos diferentes estágios da infância, a chegada na adolescência, a vivência da
maturidade até a chegada da morte, última etapa, ou último selo da saúde (Winnicott, 1988, p.
12).

2. Críticas à metapsicologia

A discussão que envolve a metapsicologia é de grande importância para este estudo.


Conforme vimos no capítulo I, Freud, ao introduzir a metapsicologia, pôde completar os
dados observados em sua clínica. Freud introduziu os elementos especulativos na expectativa
de que eles oferecessem uma melhor explicação dos mecanismos envolvidos no processo de
histeria. Estudiosos desse fenômeno, tais como Charcot e Breuer, ofereciam algumas
explicações de cunho fisiológico, assinalando o caráter inconsciente do trauma sofrido pela
paciente histérica. Porém, essas explicações não ofereciam uma compreensão sobre os
mecanismos psíquicos presentes no trauma e nem da gênese dos aspectos inconscientes. Para
resolver essas questões, Freud busca uma explicação numa perspectiva dinâmica, ou seja,
todo fenômeno deve ser compreendido a partir da idéia de que os fenômenos são regidos por
um jogo de forças em conflito, ao qual o sujeito está submetido. A descrição do que ocorre
com o sujeito não é suficiente, de modo que a introdução da metapsicologia adquire uma
função importante na psicanálise freudiana. Assim, a metapsicologia freudiana fundamenta-se
em três grandes eixos: o dinâmico, com a noção de pulsão; o econômico, com o conceito de
libido; e o tópico, com o estabelecimento das instâncias de um aparelho psíquico no qual
88

circulam os dois elementos citados. Será que estes eixos metapsicológicos são
encontrados em Winnicott? A resposta é: não.

Um dos aspectos que indicam o caráter diferenciado da psicanálise winnicottiana está


no fato de que Winnicott não aceita a metapsicologia, tal como ela é estabelecida pela
psicanálise tradicional22. Dentre outros aspectos, a metapsicologia freudiana se caracteriza por
ser uma estrutura teórica na qual se verificam os postulados da filosofia moderna e o modelo
das ciências naturais23.

Se na psicanálise freudiana o enfoque está na estrutura psíquica do sujeito, na


psicanálise winnicottiana tem-se uma inovação com a proposta de se estudar a natureza
humana. Winnicott preconiza um novo modelo ontológico: a natureza humana. Isso implica
na busca de um modelo de compreensão sobre o ser humano que tenha um fundamento
diferenciado dos enunciados metapsicológicos deterministas e naturalistas usados por Freud.
É necessário buscar uma nova linguagem, novos conceitos, enfim, uma outra maneira de
abarcar o que seja essa natureza humana. A linguagem própria da metapsicologia não cabe
mais. É o próprio Winnicott quem nos esclarece: “um escritor da natureza humana precisa ser
levado constantemente em direção a uma linguagem simples, longe do jargão do psicólogo,
mesmo que tal jargão possa contribuir para revistas científicas” (1957o, p. 127).

Winnicott recusa os conceitos metapsicológicos, ou seja, recusa um modelo


explicativo no qual não caiba uma ontologia experiencial. Nesse novo modelo, não há espaço
para uma ontologia baseada na idéia de que forças internas é que são responsáveis pelo ser
humano. Uma nova concepção de natureza humana implica em incluir o papel do ambiente na
instauração da saúde psíquica, assim como o abandono de premissas instintuais na
constituição do ego. Com Winnicott, uma nova psicanálise se estabelece:

é um alivio que a psicanálise tenha atravessado a fase, que durou meio século, na qual,
quando os analistas se referiam aos bebês, só podiam falar em termos de pulsões

22 Em alguns textos, Winnicott se refere à metapsicologia como um aspecto teórico. Um exemplo pode
ser encontrado na seguinte frase, referente à sua própria estrutura de pensamento: “É a mãe que cria o bebê ou o
bebê que cria a mãe? Na metapsicologia da psicanálise, sustento que o bebê cria o seio, a mãe e o mundo.”
(Winnicott 1989xf [1962], p. 457)

23 Loparic se dedicou a esse assunto em vários artigos, em especial 2001a, Além do inconsciente, sobre
a desconstrução heideggeriana da psicanálise. Embora seja importante, este tema não será abordado neste
estudo.
89

eróticas e agressivas. Tudo era questão de instinto pré-genital, de erotismo


anal e reações a frustrações, com alguns acréscimos bastante bravios, feitos em termos
de comportamento natural agressivo e idéias destrutivas, agressivité. O trabalho deste
tipo teve seu valor e ainda o tem, mas hoje é necessário para os analistas que se
referem à natureza do bebê vejam o que mais se encontra lá para ser visto. O analista
ortodoxo, se ele examinar melhor, verá que há alguns choques a sua espera. (1970b
[1969], p. 252)

O que há lá para ser visto é um novo modelo ontológico, um modelo que não se
baseia numa ciência objetivante24.

Se a metapsicologia ocupa um papel importante na psicologia de Freud, no


pensamento winnicottiano o quadro se altera substancialmente. Winnicott recusou o uso da
metapsicologia em seu trabalho clínico. A crítica que ele fazia à metapsicologia pode ser
encontrada, por exemplo, numa carta que ele escreve a Anna Freud; nesta carta, ele comenta
sobre termos usados por ele e por Ernest Kris e Heinz Hartmann25:

[...] estamos tentando expressar as mesmas coisas, só que eu tenho um modo irritante
de dizer as coisas em minha própria linguagem, em vez de aprender a usar os termos
da metapsicologia psicanalítica.

Estou tentando descobrir porque é que tenho uma suspeita tão profunda para com
esses termos. Será que é porque eles podem fornecer uma aparência de compreensão
onde tal compreensão não existe? Ou será que é por causa de algo dentro de mim?
Pode ser, é claro, que sejam as duas coisas. (1987b, p.58)

Em Winnicott, no lugar de elementos metapsicológicos que impulsionariam o sujeito


humano, encontramos elementos da experiência do bebê em relação ao que lhe ocorre. De
acordo com o pensamento freudiano, as pulsões é que induzem o sujeito a se estruturar

24 Zeljko Loparic tem realizado estudos no sentido de conceber uma ciência em moldes mais
pertinentes às peculiaridades do existir humano, não emoldurada por um caráter naturo-cientificistas. Essas
idéias podem ser encontradas nos textos 1995a, 1995b,1996, 1997a,1997b, 1999a, 1999b, 1999c, nos quais ele
faz uma leitura do pensamento de Winnicott a partir da filosofia de Martin Heidegger.

25 Segundo o editor do livro Gesto espontâneo, Kris e Hartmann são dois pioneiros estudiosos da
psicologia do ego.
90

psiquicamente; segundo Winnicott, as explicações freudianas não podem mais


fundamentar o estudo da constituição do ser humano, pois o indivíduo se estrutura, se integra,
através da experiência pessoal, isto é, ele tem que se apropriar de todos os eventos que lhe
acontecem, em todos os momentos de sua vida. O aspecto que caracteriza a experiência é o de
que o bebê sabe que o que lhe ocorre lhe diz respeito, refere-se à sua pessoa. Winnicott
estabelece a diferença quando afirma que “é possível induzir um bebê a alimentar-se e a
desempenhar todos os processos corporais, mas ele não sente essas coisas como uma
experiência [...]” (1987e [1966], p. 12). Nesse processo de apropriação, o bebê descobre que
os fatos mais corriqueiros fazem parte de seu cabedal de vivências e que isso lhe confere o
firme sentimento de ser alguém, de estar consolidando sua identidade pessoal.

Em uma de suas correspondências, Winnicott diz: “acho que eu preferiria estabelecer a


diferença entre idéias e experiência” (1987b, p. 40). Para Winnicott, o bebê vai adquirir a
possibilidade de experienciar através da atitude da mãe de sustentar a ilusão de onipotência de
que foi ele quem criou o mundo. Portanto, paradoxalmente,

a experiência é um trafegar constante na ilusão, uma repetida procura da interação


entre a criatividade e aquilo que o mundo tem a oferecer. A experiência é uma
conquista da maturidade do ego, para a qual o ambiente fornece um ingrediente. Não
é, de modo algum, alcançada sempre. (Winnicott 1987b, p. 43)

O que encontramos em Winnicott é uma descrição do que ocorre na relação entre os


seres humanos, na relação mãe-bebê. No trabalho clínico, este mesmo modelo é aplicado na
relação paciente-psicanalista. Não há especulação sobre o que ocorre, não há pré-suposições,
e sim uma observação e constatação do que ocorre concretamente entre os seres humanos.

Essa característica do trabalho de Winnicott – descrever os fenômenos – é apontada


por Khan: “ele havia sido criado na tradição de seu povo [empirismo], os ingleses. Para ele, os
fatos eram a realidade, e as teorias – o titubear humano buscando apreender os fatos. [...] Cada
qual deveria buscar e definir a sua própria verdade. O que havia de estabelecido era a
dimensão [spectrum] da experiência” (Khan 1958a, p. XI).

Numa carta a Money-Kyrle, Winnicott explicita sua recusa aos termos


metapsicológicos e ratifica sua posição de que é no conceito de experiência concreta que ele
sustenta seu trabalho. Como ele observou:
91

[...] além da capacidade de relações interpessoais e da elaboração de


fantasias a elas relativas, além do mundo pessoal interno da realidade psíquica, existe
uma terceira coisa, igualmente importante, que é a experiência. A experiência é um
trafegar constante na ilusão, é uma repetida procura da interação entre a criatividade e
aquilo que o mundo tem a oferecer. A experiência é uma conquista da maturidade do
ego, à qual o ambiente fornece um ingrediente essencial. (1987b, pp. 34-8)

Winnicott, em um de seus últimos artigos, esclarece que entende qual a trajetória


empreendida pela psicanálise até chegar à idéia preconizada por ele próprio – a de que a
experiência entre mãe e bebê é que deve ser considerada no estudo da natureza humana:
“embora seja geralmente conhecido existir uma sutileza quase infinita no manejo da mãe para
com seu bebê, a teoria psicanalítica precisou de um longo tempo para chegar a esta área da
experiência viva” (1970b [1969], p. 251, itálicos meus). Em suma, em Winnicott, é a
experiência concreta que interessa. É por meio da experiência, dos atos concretos da mãe para
com seu bebê que a integração deste último é alcançada. A integração é resultado de
mutualidade experiencial, não de forças agindo intrapsiquicamente.

A importância que este caráter experiencial e concreto adquire na obra de Winnicott é


destacado por ele próprio em 1947. Ao desvincular as questões da sexualidade de aspectos
morais, Winnicott diz que “atualmente, o que é preciso [nas questões da sexualidade] é uma
descrição meticulosa” (1947a, p.147). O aspecto experiencial é um dos elementos
diferenciadores da obra de Winnicott em relação a de Freud.

A seguir, apresentarei algumas das críticas de Winnicott em relação a algumas idéias


de Freud. Começarei pelo conceito de aparelho psíquico.

a) Crítica à idéia de aparelho psíquico

No modelo ontológico proposto por Freud, o qual concebe o homem como um


aparelho psíquico dividido em instâncias, a explicação sobre o funcionamento do homem se
assenta numa ciência naturalista. Em Freud, o sujeito é movido por pulsões e pelos princípios
do prazer e da realidade.

Para Winnicott, o ser humano não é uma máquina movida por forças, ele é uma pessoa
que está viva: “na saúde o lactante (teoricamente) começa seu desenvolvimento
(psicologicamente) sem vida e a saúde é adquirida pelo fato de que ele simplesmente está
92

vivo” (1965b, p. 192). Esse “estar vivo é a comunicação inicial do lactante com a
figura materna, e desse estado o lactante não tem consciência” (1965b, p. 192).

A impossibilidade de se considerar o ser humano como um aparelho está diretamente


relacionada com a forma como Winnicott concebe a natureza humana. Para Winnicott, “a
natureza humana é tudo o que possuímos e o ser humano é uma amostra temporal desta
natureza humana” (1988, p.11). Para Winnicott, a tendência do indivíduo para o
amadurecimento está na base da natureza humana, e é durante o intervalo entre dois estados
de não-ser que o indivíduo pode constituir sua identidade (1988, p. 132).

Os textos de Winnicott revelam que ali não há lugar para o conceito de aparelho
psíquico. O uso de um termo como esse não se aplica ao ser humano, uma vez que a maneira
de Winnicott conceber a natureza humana se distancia de metáforas mais adequadas ao
mundo das máquinas e de uma condição que distingue radicalmente o homem das coisas da
natureza.

Com Winnicott, saímos do domínio das máquinas e dos aparelhos e passamos para o
campo da humanidade. Humanidade frágil, sujeita à facticidade, às intempéries da vida, mas
nem por isso menos grandiosa que todo o aparato tecnológico da modernidade quer nos fazer
crer que é maior que essa condição humana. Em Winnicott, a mãe é apresenta como uma
“pessoa viva. O seu bebê deve estar apto a sentir o calor de sua pele e alento, a provar e a ver.
[...] Deve existir completo acesso ao corpo vivo da mãe” (1947b, p. 89). Estas definições não
são passíveis de compreensão no campo das engrenagens mecânicas.

De fato, não encontramos em Winnicott os termos da metapsicologia tais como


‘máquina’, ‘aparelho’, etc, quando ele se refere ao ser humano. O termos encontrados são
‘indivíduo’, ‘ser humano’, ‘pessoa’, mesmo a palavra ‘sujeito’ raramente é utilizada e, em
geral, quando isso ocorre, ela é contextualizada no esquema da psicanálise freudiana.

Para Winnicott, o ser humano não é dividido em instâncias, tal como é concebido na
psicanálise tradicional. Para Winnicott, individuo que tende à integração não se divide em
partes, ele torna-se uma totalidade, uma pessoa total (whole person).

Termos como id, ego e superego, que correspondem a figurações espaciais de um


aparelho que existe ficticiamente, adquirem outro significado na psicanálise winnicottiana. A
pessoa humana não se equivale a esses termos. Ao apresentar suas objeções ao pensamento
freudiano quanto à natureza das instâncias psíquicas, Winnicott diz:
93

Freud aí lida com a natureza humana em termos de economia, e


deliberadamente simplifica o problema com o propósito de estabelecer uma
formulação teórica. Existe um determinismo implícito em todo esse trabalho,
presume-se que a natureza humana pode ser examinada objetivamente e que podem
ser aplicadas a ela as leis que são atribuídas à física. (1958a, p. 16)

No campo da constituição da humanidade, as leis que prevalecem são as do cuidado


materno que levam o potencial de amadurecimento a se transformar de fato numa pessoa que
precisa saber de si, adquirir a dimensão temporal e também localizar-se no mundo.

As primeiras referências de Winnicott ao bebê como uma pessoa podem ser


encontradas em um estudo de 1947. No texto Mais idéias sobre o bebê como pessoa
Winnicott diz que “a história do ser humano não começa aos cinco anos ou aos dois, ou aos
seis meses, mas começa no nascimento – antes até do nascimento se você assim o quiser; e
cada bebê é desde o começo uma pessoa e necessita ser reconhecida como alguém.” (1947b,
p. 86) Em 1948, ele sustenta que, para a mãe, seu bebê é um ser humano desde o início e que
por isso ela tolera sua falta de integração (1948b, p. 161). Em 1949, Winnicott afirma que
desde os primeiros meses o bebê é uma pessoa que busca contato com o que encontra no
mundo e que isto é possível apenas porque ele é um ser humano (1949c, pp. 75-9). A idéia de
que o bebê é um ser humano desde o início é tão evidente para Winnicott que ele diz que na
psicologia que a pediatria assimilou, “não é necessário que, aqui, eu chame a atenção para o
fato de que os bebês são humanos” (1964c, p. 39).

Em 1966, ao descrever as características de um ambiente facilitador, Winnicott


sustenta que ele deve ser humano e pessoal e que o bebê somente se tornará um ser humano
“juntamente com outro ser humano [...]” (1987e [1966], pp. 3-14).

Em 1969, ao destacar o ambiente humano e os cuidados iniciais da mãe de modo a


transformar o bebê numa pessoa total, Winnicott diz que “estas coisas não podem ser
aprendidas e tampouco podem ser feitas por máquinas. Elas dependem inteiramente do
cuidado e da compreensão humanas e descritas por meio da palavra ‘amor’” (1969g, p. 565).
Comentando sobre o trabalho do fisioterapeuta, Winnicott diz que ele é importante porque “o
que se faz é sempre importante porque aqueles que o fazem são humanos e não máquinas”
(1969g, p. 567).

Quando se fala em pessoa total, fala-se de um corpo vivo que se constitui


gradualmente através das elaborações imaginativas das funções corporais pela psique. Para
Winnicott, a existência é psicossomática porque corpo e psique se integram de modo a
constituir a pessoa total (1945d, p. 148).
94

b) Crítica ao conceito de pulsão

Conforme já foi destacado neste estudo, o próprio Winnicott afirmou seu desacordo
para com a metapsicologia anunciando o abandono do termo pulsão, dentre outros aspectos
desta estrutura especulativa. Um exemplo claro da renúncia à teoria pulsional se verifica, por
exemplo, quando ele escreveu o livro Natureza humana. O título com o qual ele batiza a parte
IV, Da Teoria do instinto à teoria do ego, já indica a rejeição da idéia propalada pela
psicanálise tradicional de que o sujeito humano é movido pela pulsão26.

A recusa de Winnicott à noção de pulsão de vida e de morte já pode ser encontrada em


52, numa carta a Money-Kyrle, cujo tema era agressividade. Winnicott afirma: “lamento que
tenha introduzido aqui a pulsão de morte, porque ela confunde tudo e, segundo meu ponto de
vista, é um conceito que Freud introduziu porque não tinha qualquer noção do instinto
primitivo do amor” (1987b, p. 40). Para Winnicott, o conceito de pulsão de vida e de morte
“evita o rico campo de investigação da vida inicial do bebê” (1987b, p. 42).

Em 55, em seu livro Natureza humana, ao abordar os estados iniciais do ser humano, e
ao discutir a visão de Freud sobre esse assunto – pulsões de vida e de morte – Winnicott
sustenta que não pode concordar com o ponto de vista freudiano:

Freud falou sobre o estado inorgânico do qual se origina cada indivíduo e ao qual todo
indivíduo retorna, e com base nisto formulou seus conceitos de pulsão de Vida e de
Morte. Ao propor este fato óbvio sugerindo que ali estava uma verdade, Freud nos deu
uma amostra de seu gênio. No entanto, nem o uso que Freud fez desse fato nem o
desenvolvimento da teoria das pulsões de Vida e de Morte a partir do mesmo foram
capazes de me convencer [...] (1988, pp. 132-3)

Essa recusa a esses conceitos ainda pode ser vista em 56. Ao escrever para Barbara
Lantos, Winnicott sustenta que dá pouco valor à idéia de pulsão de morte e que o ataque do
bebê ao seio da mãe “[...] não depende de nada que se relacione com uma aceitação da pulsão
de morte, e pessoalmente vejo pouco valor nesse aspecto da teoria freudiana” (1987b, p. 109).

26 Winnicott rejeitou cabalmente as noções de pulsão de vida e de morte. Vide Winnicott 1988 pp. 132-
3, 1987b pp. 40, 42,109, 154, 159, 1965j [1963], 1989a p. 242)
95

A idéia de que o conceito de a pulsão de morte não é aceita por Winnicott


surge também num texto de 62, quando ele diz que “[...] não acha válida sua idéia [de Freud]
de pulsão de morte” (1965va [1952], p. 177).

Em 66, de forma contundente e bem humorada, ao comentar um estudo de Hans


Thorner, Winnicott comenta seu incômodo com relação ao uso de certos termos de forma
unânime pelos membros da Sociedade. Diz Winnicott:

Tenho certeza de que você sabe exatamente o que tem em mente quando diz: “partes
perigosas .... derivadas da pulsão de morte ... devem ser expulsas”, etc. etc. Eu mesmo não sei
o que você quer dizer, e pelo menos metade da Sociedade deve sentir que você está dizendo
“pulsão de morte”, em vez de usar as palavras “agressividade” e “ódio”. Talvez você pense
que isto não tem importância, e não tem mesmo, no contexto de seu ensaio, mas seria
realmente muito útil para a Sociedade se conseguíssemos descobrir uma linguagem comum.
Qualquer hora dessas, quando você não tiver nada para fazer, que tal reescrever aquela frase
sem usar as palavras “pulsão de morte”, só por minha causa? (1987b, p. 159).

A substituição do conceito de pulsão de morte pela idéia de uma agressividade como


parte da vida se encontra em um de seus textos de 59, quando ele diz que “o conceito de
pulsão de morte parece desaparecer simplesmente por não ser mais necessário. A agressão é
vista como evidência de vida” (1965h [1959], p. 127).

Dois anos antes de sua morte, Winnicott reitera sua posição de não aceitação da idéia
da pulsão de morte e afirma que de bom grado aliviaria Freud de carregar esta idéia em seus
ombros de Atlas (1989xa [1969], pp.241-2).

A rejeição ao conceito de pulsão e a assunção do conceito de instinto como o elemento


definidor de sua teoria da sexualidade é apontado cabalmente por Winnicott em seu livro
Natureza Humana. De forma diferente de Freud, Winnicott anuncia que não há necessidade
de classificar os instintos nem especificar quantos existiriam, assim como também não há
diferença com relação à instintualidade animal:

nesta exposição não há muita diferença entre os diversos tipos de demanda instintiva,
e tampouco há muita diferença entre seres humanos e animais. Não é necessário, aqui,
entrar em discussão quanto à classificação dos instintos, nem decidir se há um único
96

instinto ou se eles são dois, ou se existem às dúzias. Tudo isto, no momento


é irrelevante. (1988, pp. 39-0)

Esta crítica se relaciona especificamente à dualidade pulsional postulada por Freud,


conceito que foi mantido por Freud ao longo de sua vida, assim como à idéia de que a libido
seria uma pulsão específica do ser humano.

O percurso intelectual de Winnicott revela a construção gradativa de suas críticas ao


arcabouço metapsicológico freudiano. É possível observar que, além de abandonar a teoria
das pulsões, Winnicott introduz outros elementos nos quais passa a fundamentar sua atividade
clínica e sua teoria do amadurecimento pessoal. Um destes elementos, o conceito de
integração, enunciado em meados dos anos 1940, é o precedente para indicar que o conceito
de pulsão não pode ser alocado no referencial winnicottiano.

Em seu texto O desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott apresenta suas


primeiras divergências com relação ao pensamento freudiano. Sua atividade clínica com
bebês, e o conseqüente interesse pelos primórdios da vida deles, o levaram a constatar que o
conceito de pulsão não oferecia uma compreensão de inúmeros aspectos que ele observava
cotidianamente (1945d, p. 149). Todo o processo de integração não poderia ser abarcado pela
idéia de uma suposta força a conduzir o processo experimentado pelo bebê.

Em 1960, em seu texto Teoria do relacionamento paterno-infantil, Winnicott afirma


que sua posição é a de adotar uma teoria do desenvolvimento do ego e não do id. Ele sustenta
de forma clara que:

a teoria psicanalítica originou uma hipótese inicial que se relacionava com o id e os


mecanismos de defesa do ego. Compreendia-se que o id entrava em cena muito cedo,
e a descoberta e descrição de Freud da sexualidade pré-genital, baseada em sua
observação dos elementos regressivos encontrados na fantasia genital em sonhos,
eram os aspectos principais da psicologia clínica. [...] Na parte principal deste artigo,
este estado de coisas não pode mais ser presumido. A discussão se centra em torno do
estabelecimento deste tipo de coisas, isto é, a estruturação do ego que gera a ansiedade
da tensão instintiva ou da perda do objeto. (1960c, p. 41)

Aqui, Winnicott anuncia sua recusa à idéia de que o id é o primeiro elemento a se


constituir. O que ocorre, segundo ele, é que o id é decorrente da integração do ego. A idéia
97

dessa tendência integrativa é essencial no arcabouço winnicottiano. É essa tendência


à integração que sustenta todo o processo de desenvolvimento. Numa carta a Khan, Winnicott
esclarece que “a palavra integração descreve a tendência de desenvolvimento e a conquista,
no indivíduo saudável, em que ele ou ela se torna um todo” (1987b, p. 132). Esse estado de
integração se origina do estado inicial de não-integração que é típica do estado inicial do
bebê.

O processo de integração levará à constituição do ego e permitirá que o indivíduo


integre sua personalidade de modo a adquirir o status de unidade, ou seja, “o termo ego pode
ser usado para descrever a parte da personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se
integrar em uma unidade” (1965n [1962], p.56). Somente após a constituição do ego a
instintualidade em si poderá ser parte constituinte da criança. Ao contrário de Freud, não é a
instintualidade que constitui o ego, é o ego que abarcará a instintualidade e a sexualidade.

Para Winnicott, o verdadeiro existir do ser humano tem início com a constituição do
ego do bebê, e isto será possível por meio dos cuidados maternos. O ego infantil constitui-se
através das experiências de onipotência, ou seja, a mãe sustenta a ilusão de que o bebê
encontra o que necessita, mas permite que ele não tenha conhecimento do estado de
dependência em que se encontra. A mãe empresta seu ego ao bebê para que ele possa
construir o dele. Aqui encontramos a grande diferença com relação ao pensamento freudiano,
isto é, o ego conduzirá o indivíduo até o id, e não o oposto. Quando o ego do bebê se
constitui, ele pode experimentar os instintos como parte dele, ou seja, “para que a vida
instintiva possa existir, tem que haver uma conexão com o funcionamento do ego. Este não
pode ser ignorado porque a criança ainda não é uma entidade que possa ter experiências”
(1965n [1962], p.56). Ao contrário de Freud, que preconiza que o id vem em primeiro lugar,
Winnicott afirma claramente que “não há id antes do ego” (1965n [1962], p. 56). Assim,
inicialmente é necessário que o ego do bebê se constitua para que o id possa adquirir um
significado e ocupar seu lugar na constituição do si-mesmo27 do indivíduo. Em Winnicott, o
ego é condição prévia para que o id possa se constituir, ego é totalidade, não é parte, ou
instância psíquica. Ego é uma tendência à integração, e constituição total da personalidade do
indivíduo (1965n [1962], p.56).

27 Adoto a expressão si-mesmo em substituição a self verdadeiro por sugestão de Zeljko Loparic, com
o objetivo de não entificar o termo, e de não confundir o termo self tal como ele é utilizado como instância da
metapsicologia. Nas frases em que o sentido do termo se vincula à relação do individuo consigo próprio, uso a
expressão “si próprio”.
98

Segundo Winnicott, o bebê busca a integração não por ser impulsionado por
forças ou por ter desejo, mas porque tem necessidades (needs). Esse termo ‘necessidade’, é
um dos indicadores de que a psicanálise winnicottiana não mais se localiza no âmbito da
pulsionalidade. O próprio Winnicott endossa essa idéia em um de seus últimos artigos, em
1969, quando escreve em uma nota de rodapé: “a palavra “necessidade” tem importância aqui
tal como “pulsão” tem na área da satisfação do instinto” (1970b [1969], p. 256). Isso indica
que ele promoveu uma recusa ao termo pulsão e o substituiu.

Um exemplo cabal da importância desse novo termo – necessidade - está em sua


afirmação de que uma das necessidades do bebê é a de criar o mundo e isso ele o fará não por
exigências pulsionais, mas porque “o motivo é a necessidade pessoal” (1988, p. 102). Neste
mesmo ano, ao comentar que “a psicanálise iria aprender que muita coisa acontece nos bebês
que está associada com a necessidade, e separada do desejo e dos representantes (pré-genitais)
do id clamando por satisfação” (1989 xa [1969], p. 242, itálicos meus), Winnicott também
esclarece que a satisfação, pela mãe, das necessidades do bebê não são da mesma ordem da
pulsionalidade defendida por Freud. Ao se referir a essas necessidades, ele frisa: “não se deve
deixar que isto [as necessidades] se perca dentro do conceito da satisfação, pela mãe, das
pulsões instintuais do bebê” (1989xa [1969], p. 242).

A discordância de Winnicott em relação ao pensamento de Freud pode ser constatada


quando ele diz que “na metapsicologia freudiana, o conceito do ego tem sua própria evolução.
A idéia inicial do ego como sendo uma parte do id não resistiu ao teste do tempo” (Winnicott,
1964h, p. 490). Ego é um todo e não uma parte. Ego se constrói, não é dado. E somente a
partir de um ego constituído é que a vida instintual pode adquirir significado para a criança.

Nos estágios mais precoces do desenvolvimento da criança, portanto, o funcionamento


do ego precisa ser considerado como um conceito inseparável daquele da existência da
criança como uma pessoa. Para que a vida instintiva possa existir, sua ligação com o
funcionamento do ego não pode ser ignorada porque a criança ainda não é uma
entidade que tenha experiências. (Winnicott 1965n [1962], p. 56)

Na teoria do amadurecimento humano, não mais poderemos aceitar a prevalência do id


sobre o ego porque “é mais fácil descrever os processos desenvolvimentais em relação à
função do id do que em termos do ego e sua complexa evolução, mas mesmo assim o segundo
método não pode ser evitado. Temos que tentar fazê-lo” (1971f [1967], p. 26).
99

Uma força que impulsionasse o indivíduo desde o nascimento, como


concebe Freud, não pode estar presente em um bebê que está em seus primeiros contatos com
o mundo, que não sabe de si nem de que existe um mundo. No início ainda não há um ser
humano, há a possibilidade de que o bebê possa se tornar um ser humano para se integrar no
mundo. Há um ser humano em constituição, um ser que tem apenas a motilidade e o gesto. Se
em Freud no início o sujeito é um conjunto de forças desconhecidas e difíceis de controlar, em
Winnicott essas forças serão experienciadas como tais apenas numa fase posterior do
desenvolvimento da criança. Para Winnicott, é necessário uma nova abordagem de
compreensão da natureza humana: “[...] hoje em dia não nos sentimos satisfeitos com uma
avaliação da saúde em termos da posição do id” (1971f [1967], p. 21).

Se não é o aspecto instintual que vem antes no desenvolvimento infantil, resta


perguntar: qual é o elemento que antecede o instinto e que se vincula às necessidades do
bebê? A resposta é: o estado de ser. A idéia de um estado de ser é uma das novidades da
psicanálise winnicottiana e é de difícil compreensão exatamente por constituir a mais simples
de todas as experiências, a experiência de um estado em que mãe e bebê coincidem, em que
ambos são um só. Segundo Winnicott,

no crescimento do bebê humano, na medida em que o ego começa a se organizar, isto


que estou chamando de relacionamento objetal do elemento feminino puro estabelece
o que talvez seja a mais simples de todas as experiências, a experiência de ser. Aqui
encontramos a verdadeira continuidade de gerações, sendo esta o que é passado de
uma geração para a outra, através do elemento feminino de homens e mulheres e dos
bebês do sexo masculino e feminino. (1989vp [1959/63], p. 177)

Em Winnicott, “no início, antes que cada indivíduo crie o mundo novamente, existe
um simples estado de ser [...]” (1988, p. 135). Este estado pertence ao bebê e não pode ser
apreendido pelo observador. O estado de ser não é instintual, não é sexualizado. É a partir do
estado de ser que a identidade será constituída, o que inclui a identidade sexual a ser definida
posteriormente. Uma vez que adquire o estado de ser através do processo de integração, o
bebê busca assegurar sua continuidade de ser. Isso significa que todo seu desenvolvimento
deve se dar a partir de sua própria procura e não por meio de uma intrusão ambiental (1988,
pp. 126-130). Continuar a ser significa conquistar o crescimento pessoal e a saúde. Esta
situação não se funda em suposições metapsicológicas. Este estado de continuidade de ser é
assegurado pelos cuidados maternos e é pré-determinado por forças.
100

A natureza humana, em Winnicott, não mais se pauta na idéia de redução


de tensões e na busca de prazer. A idéia, na psicanálise tradicional, de que o sujeito é movido
por forças que o levem a buscar o prazer e abster-se do desprazer também não encontra
respaldo na psicanálise winnicottiana. Para Winnicott, o ser humano não pode ser visto como
um fantoche à mercê de forças que o levem a buscar o prazer, considerando o princípio de
realidade. O bebê deverá ter muitas experiências até descobrir o que significa prazer. A busca
mais importante para o ser humano é a de poder realizar-se, dar um sentido à sua existência.

Segundo Winnicott, o homem não quer reduzir tensões, o homem quer se realizar
como ser humano. Para ele, não é a satisfação instintual que está na base da existência. ‘Saber
sobre o que versa a vida’ torna-se a questão mais importante na vida do ser humano. A isto se
incluem as possibilidades de tomar contato com as experiências culturais, um aspecto
importante na vida do indivíduo. Esse é um aspecto novo que a psicanálise winnicottiana
aborda. Para Winnicott,

Isto quer dizer que ainda temos de enfrentar a questão de saber sobre o que é a vida.
Nossos pacientes psicóticos nos forçam a dar atenção a esse problema básico.
Percebemos agora que não é a satisfação instintual que faz um bebê começar a ser,
sentir que a vida é real, achar que a vida é digna de ser vivida. De fato, as gratificações
instintuais começam como funções parciais e se tornam seduções, a menos que se
baseiem numa capacidade bem estabelecida na pessoa individualmente, para a
experiência total, e para a experiência na área dos fenômenos transicionais. É o si-
mesmo (self) que precisa preceder o uso do instinto pelo si-mesmo (self; o cavaleiro
deve dirigir o cavalo e não se deixar levar por ele). Eu poderia usar a frase de Buffon:
“Le style est l’homme même”’. Quando se fala de um homem, fala-se dele juntamente
com a soma de suas experiências culturais. O todo forma a unidade. (1967b, pp. 98-9)

O sentido para a vida e a busca de um lugar no mundo se tornam os aspectos mais


importantes para o bebê porque foi este que o criou. Isto foi possível porque ele teve uma mãe
que se adaptou às suas necessidades. A necessidade de criar o mundo, o gesto inicial é dado
pelo bebê e a mãe o acompanhará na emissão desse gesto, acolhendo-o. O mundo já estava
ali, mas a mãe do bebê deve se conduzir de forma que o bebê acredite que foi ele que criou o
mundo. A mãe deve sustentar uma ilusão de onipotência por parte do bebê. Esses cuidados
101

maternos possibilitam que o bebê, apoiado por uma tensão instintual28, faça um
movimento em busca de algo. Atenta ao bebê, a mãe lhe oferece o seio, atendendo ao gesto
dele de procura. A tarefa dela é manter o bebê na ilusão de que o mundo foi criado por ele. A
recepção ao gesto do bebê ocorrerá num sincronismo tão perfeito que ele não saberá do apoio
recebido, mesmo porque ele ainda não é uma pessoa com um aparato psicológico que lhe
possibilite ter uma percepção do que ocorre à sua volta. A relação entre ambos se
fundamentará numa comunicação em que a confiabilidade se torna o elemento essencial. Para
Winnicott,

este tipo de comunicação é silencioso. O bebê não ouve ou registra a comunicação,


mas apenas os efeitos da confiabilidade, que são registrados no decorrer do
desenvolvimento. O bebê não sabe da comunicação, exceto pelos efeitos provocados
pela falta de confiabilidade. É aqui que há a diferença entre perfeição mecânica e amor
humano. Os seres humanos cometem muitos erros, e durante o tempo em que a mãe
cuida do seu bebê ela continuamente corrige essas falhas. Essas falhas relativas, às
quais se dá uma solução imediata, terminam por serem comunicadas e é dessa forma
que o bebê acaba tomando conhecimento do sucesso. A adaptação bem sucedida dá
uma sensação de segurança e um sentimento de ter sido amado. [...] São as inúmeras
falhas, seguidas pelo tipo de cuidados que as corrigem, que terminam por constituir a
comunicação do amor, sustentada sobre o fato de ali haver um ser humano que se
preocupa. (1987d [1967], p. 98)

Somente criando seu próprio mundo, “através da apercepção criativa, mais do que
qualquer outra coisa que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida” (1971g, p. 65).

Ao falar sobre a comunicação entre o bebê sua mãe e sobre o ponto de partida de seu
trabalho, Winnicott disse que compreendia os motivos pelos quais a psicanálise tradicional
havia demorado para chegar à área da experiência viva do bebê com sua mãe, posto que ela (a
psicanálise tradicional] tivera necessidade de enfatizar a relação entre as pessoas totais e os
conflitos do mundo interno. Porém, segundo Winnicott, os progressos da psicanálise
avançaram e,

28 Nesse início de vida os instintos ainda não estão integrados e por isso o bebê ainda não os sente
como próprios. Isso ocorrerá apenas na fase do concernimento, que será abordada no capítulo IV.
102

gradualmente, o inevitável aconteceu e os psicanalistas, conduzindo


consigo sua crença exclusiva na importância dos detalhes, eles tiveram de começar a
examinar a dependência, isto é, os estágios iniciais do desenvolvimento da criança
humana, quando a dependência é tão grande que o comportamento daqueles que
representam o meio ambiente não podia ser mais ignorado.

Achamo-nos agora exatamente no estudo dessas influências mútuas muito iniciais.


Temos de esperar encontrar resistências ao trabalho que fazemos, desta vez não por
causa do funcionamento da repressão e da ansiedade naqueles que confrontam nosso
trabalho, mas uma resistência que se relaciona com o sentimento de que uma área
sagrada está sendo invadida. (1970b [1969], p. 251)

Todas as atitudes da mãe não podem ser mensuradas, objetificadas, essa “comunicação
é uma questão de reciprocidade na experiência física” (1968d [1967], p.100) Essas
experiências ocorridas entre mãe e bebê são totalmente diferentes das considerações da
psicanálise tradicional acerca das pulsões, ou seja, “é possível ingressar nas águas profundas
da mutualidade que não estão diretamente relacionadas com as pulsões ou com a tensão
instintual” (1970b [1969], p. 257).

Aqui se verifica o abandono de um modelo baseado na idéia de forças motoras e sua


substituição pela idéia de um elemento, que Winnicott caracteriza como universal, que conduz
o processo de amadurecimento humano. Sobre esse elemento universal, ele disse: “sinto que
Freud daria as boas vindas a um trabalho novo [...] um universal no desenvolvimento
emocional do indivíduo, ou seja, a tendência integradora que pode conduzi-lo a um status de
unidade” (1989xa [1969], p. 244). É esse elemento que leva o indivíduo a se desenvolver, não
um jogo de forças. Esse novo elemento de caráter universal, mas não pulsional sustenta a
ontologia winnicottiana.

Para Winnicott, não é a pulsão que move o indivíduo, é sua criatividade originária.
Aqui encontramos uma das novidades do pensamento winnicottiano. O conceito de
criatividade originária não tem precedente na psicanálise tradicional, a qual concebe a
formação do psiquismo com base na idéia de mecanismos mentais de projeção (termo
desenvolvido por Freud e que já admite a idéia de interno/externo) e introjeção (criado por
Ferenczi, adotado por Melanie Klein). Winnicott pergunta: “[..] o ser humano é capaz apenas
de projetar aquilo que foi previamente introjetado, ou, em outra linguagem, de excretar o que
foi ingerido?” (1988, p. 110). A criatividade originária está presente desde os primórdios da
103

vida do bebê. Ela é o início, o primeiro passo para que a criação do si-mesmo seja
possível, assim como a posterior inserção do indivíduo no mundo.

O nascimento não assegura que o bebê se integre ao mundo. Para Winnicott, ao nascer
o bebê ainda não é um ser humano inteiro e ainda não chegou à realidade externa. Para que
ele chegue até ela é necessário criá-la. É preciso que ele crie o mundo para nele se instalar.
Mas antes disso ele precisa se tornar uma pessoa inteira para poder chegar ao mundo externo.
Do ponto de vista do observador externo, o mundo já estava lá antes do bebê nascer, mas ele
não sabe disso, pois está começando a ter suas primeiras experiências. É como se nada
existisse. Segundo Winnicott,

o mundo é criado de novo por cada ser humano e começa sua tarefa no mínimo tão
cedo quanto o momento de seu nascimento e a primeira mamada teórica. O que o bebê
cria depende em grande parte do que foi apresentado no momento da criatividade, pela
mãe que se adapta ativamente às necessidades do bebê. (1988, p. 110)

A vida é maior que a instintualidade, é o que nos mostra Winnicott, mas deve incluí-la.
O aspecto diferencial na psicanálise winnicottiana é o de que a instintualidade somente estará
presente e será apreendida como um elemento mobilizador na vida do indivíduo no estágio
em que ele tiver maturidade para experienciá-la como tal. No início da existência do bebê, ele
ainda não sabe o que é prazer, desprazer, bom, mau. Essas qualidades serão adquiridas em
estágio posterior.

Assim, podemos concluir que a noção de força que mobiliza o sujeito não pode ser a
coluna mestra a sustentar a psicanálise winnicottiana. A retirada desse pilar e a inserção, em
seu lugar, da necessidade que o bebê tem de se sentir real e integrado no ambiente, nos
revelam que não é a trajetória e fixação da libido que proporciona o desdobramento da
natureza humana. A transformação de um bebê em ser humano está pautada numa luta para
alcançar a vida e assegurar a cada momento o seu sentido.

c) Crítica ao conceito de libido

Ao introduzir o conceito de pulsão, Freud necessita de um elemento que possa


quantificá-la. Freud resolve essa questão elegendo o conceito de libido que designa o aspecto
104

dinâmico da sexualidade. O empréstimo deste termo da Sexologia, que já lhe


concedia um sentido dinâmico, resolve a necessidade que Freud tem de apresentar um
elemento que cumpra com uma função metodológica, pois o conceito de libido se torna útil
para explicar o movimento do psiquismo. Como força psíquica, as pulsões movimentam o
organismo e o levam a descarregar o montante de excitação que o pressiona. As pulsões e a
libido têm um caráter de fluidez, de mobilidade.

Em 1933, quando afirma que a teoria das pulsões constitui sua mitologia,
conseqüentemente a teoria da libido também, Freud já destitui de qualquer referência empírica
esta teoria. Freud sabe que está se movimentando no campo das pressuposições, mas isso não
o incomoda. O que interessa a Freud não é a falta de evidência empírica no dualismo
pulsional, ele está interessado em encontrar explicações para as situações de investimento
libidinal.

Ao lançar mão do conceito de uma força que impulsiona o ser humano, Freud encontra
uma ferramenta eficaz: ela lhe permite conceber que o ser humano é dotado de um sistema
energético, submetido às mesmas leis que regem o funcionamento de quaisquer outros
sistemas movidos a energia, mesmo que este sistema não opere em termos humanos. Assim,
na teoria psicanalítica, a energia se desenvolve, é bloqueada ou se transforma de alguma
forma, movendo o sujeito.

Todas estas características especulativas da libido indicam que, tal como a pulsão, ela
não pode ocupar um papel na teoria winnicottiana. Afinal, se Winnicott rejeitou a teoria das
pulsões, conseqüentemente também rejeitou o conceito de libido.

Conforme foi apresentado no capítulo I, para Freud, a libido é a representante psíquica


das pulsões corpóreas, o que significa que ela tem um caráter não experienciável, meramente
representacional. O próprio Freud reconheceu que a pulsão se refere a uma idéia abstrata,
necessária a uma compreensão do funcionamento psíquico, apesar de ter um caráter de
obscuridade. O conceito especulativo de libido não cabe na psicanálise winnicottiana, a qual
prioriza a experiência que ocorre de fato com o indivíduo que amadurece. Essa experiência
somente pode ser apreendida através de uma situação concreta, de uma situação que mobilize
o indivíduo de forma que ele saiba que aquilo que ocorre com ele tem uma natureza da ordem
da realidade corporal e não mental ou intra-psíquica. Em Winnicott, o conceito que expressa a
vivência corpórea é o de instinto, que, juntamente com a elaboração imaginativa de cada
órgão corporal, permitirá que o corpo seja experienciado como um corpo vivo.
105

Enquanto que em Freud temos um componente representacional, em


Winnicott o que prevalece é a experiência real que se dá num corpo vivo. Esse caráter
especulativo das pulsões as distancia do referencial winnicottiano. Assim, enquanto que em
Freud temos uma teoria do desenvolvimento emocional que privilegia o deslocamento de
supostas forças que movimentam todo o psiquismo, forças que se deslocam nas diferentes
regiões corpóreas, em Winnicott não há lugar para um conceito à parte de uma corporeidade
que precisa ser conquistada através de elaborações psico-somáticas, e não apenas mentais. O
modelo freudiano sustenta-se em um protótipo energético, ao passo que o de Winnicott
sustenta-se em um modelo de comunicação efetiva que parte de uma criatividade originária.

A não aceitação aos termos especulativos da metapsicologia pode ser observada


quando Winnicott promove a substituição do termo especulativo libido pelo termo instinto, os
drives puramente biológicos que têm um caráter empírico. Para Winnicott, o uso do termo
instinto se coaduna com sua concepção de natureza humana, é o termo pelo qual se
denominam “forças biológicas poderosas que vêm e voltam na vida do bebê ou da criança, e
que exigem ação” (1988, p. 39).

Para Winnicott, a natureza humana “não é uma questão de corpo e mente – e sim uma
questão de psique e soma inter-relacionados, que em seu ponto culminante apresentam a
mente como ornamento” (Winnicott,1988, p. 26). Corpo, mente, soma, sensações, excitações,
um corpo vivo cujas funções estejam organicamente ativas, serão elaborados
imaginativamente pelo indivíduo que amadurece de modo que ele possa se apropriar deles.

Ao utilizar o termo instinto, Winnicott demonstra o modo pelo qual a instintualidade


promove os relacionamentos, ou seja, pela elaboração imaginativa das funções corporais
(1988, p. 19). Aqui não mais estamos no campo representacional, das operações mentais,
estamos no campo da existência psicossomática. Ou seja, a elaboração imaginativa dos
instintos possibilita que os aspectos meramente biológicos sejam humanizados. Ao descrever
o processo da elaboração imaginativa das funções corporais, Winnicott escapa dos conceitos
metapsicológicos que remetem o ser humano a um funcionamento meramente automatizado,
um funcionamento impulsionado por forças estrangeiras ao homem. Ao recusar a
metapsicologia, Winnicott revela que concebe o ser humano de uma forma radicalmente
diferente da psicanálise tradicional. Essa diferença e a crítica às idéias da psicanálise
freudiana podem ser encontradas nas seguintes palavras de Winnicott:
106

a antiga psicologia acadêmica morreu de morte natural. [...] Atualmente


psicologia é uma questão de sentimentos, de pessoas vivas, de emoções e instintos, e
ela também lida com o inconsciente e com os conflitos inconscientes que causam os
sintomas por não estarem disponíveis para a consciência. (1996q, pp.13-4)

O campo instintual refere-se tanto às excitações locais quanto às gerais e mobilizam o


individuo para a ação. Enquanto que na psicanálise tradicional a libido é uma convenção, na
teoria winnicottiana os instintos não são idéias abstratas. Os instintos não constituem um
limite entre o psíquico e o somático, tal como em Freud. A ação exigida pelos instintos deverá
ser compatível com o grau de amadurecimento do indivíduo.

No que se refere ao corpo, também encontramos uma das grandes críticas que
Winnicott fez à psicanálise tradicional. Para Freud, o corpo é representável e as questões da
sexualidade ocorrerão também pela via da representação mental. Em Winnicott, a questão
corpórea, a transformação de partes de um corpo em um corpo vivo é um processo complexo.
Não se pode conceber um ser humano saudável a não ser pela via de uma existência
psicossomática, pela integração de um processo que se inicia muito cedo na vida do bebê.
Desde que inicia sua vida, o bebê, quando bem sustentado por sua mãe, gradativamente reúne
todas as suas partes corpóreas de um modo que ele sinta que habita o corpo que herdou. Parte
deste processo consiste na integração dos órgãos sexuais, de modo que a sexualidade também
seja integrada. O ser humano se constitui firmemente alojado em seu próprio corpo. Somente
dessa forma sua humanidade é constituída.

3. Críticas ao conceito de princípio do prazer

Há dois tipos de críticas que se pode fazer ao conceito de princípio de prazer: uma
dirigida ao seu aspecto especulativo e outra em relação ao seu aspecto empírico. Porém, antes
de apresentar essas críticas, vejamos o que Winnicott pensa sobre esse conceito freudiano.
Essa idéia se encontra numa resenha do livro A study of three pairs of identical twins, de
Dorothy Burlingham, de 1953. Winnicott comenta:

como crítica, diria que algumas das conclusões da Sra Burlingham são prejudicadas
pelo emprego de termos que têm um público limitado. Exemplificando (pág. 16):
“Com base no princípio do prazer, todos os bebês reagem ao que quer que lhes dê
sensações de prazer (...)” O termo “Princípio do Prazer” é pertinente a uma construção
107

mental teórica de Freud, e os que se acham familiarizados com o


crescimento da teoria psicanalítica entenderão o que significa. Mas a expressão não
acrescenta nada e torna o significado que a Sra Burlingham quer dizer sujeito a um
mau entendimento, especialmente porque o parágrafo termina pela frase “o desejo de
agradar à deux, em que “prazer” é utilizado da maneira comum e não como um termo
técnico com conotação específica. Como termo técnico, ele pertence a um período da
teorização em que o elemento que busca objetos na experiência erótica inicial estava
sendo negligenciado nos textos psicanalíticos, ainda que (acredito eu) não na prática.
(1953e, pp. 410-11, itálicos meus)

Essa afirmação de Winnicott é fundamental para entender que ele abandonou esse
conceito freudiano, conceito que ele vê como uma ‘construção teórica mental’, construção
que ele não utiliza em sua teoria porque opta por um ponto de vista descritivo-empírico.

Em 1923, Freud mantém sua concepção metapsicológica, formulada em 1911, de que


o funcionamento mental é regido pelo princípio do prazer, o que para ele significa a mais
completa descrição que se pode conceber sobre o psiquismo (Freud, 1923, p. 2501). Ele
mantém a concepção de que o sujeito funciona como uma máquina movida por um princípio
energético, que tem a busca de satisfação como a principal forma a evitar o desprazer. O
psiquismo é obrigado a postergar o usufruto do prazer. Como conseqüência, há um
amadurecimento psíquico com a introdução do princípio da realidade, o qual introduz o que é
‘real’ na vida do sujeito.

Esse princípio dinâmico não se sustenta em Winnicott, já que o ser humano não é
regido pelo conflito de forças entre o princípio do prazer e o de realidade. Em primeiro lugar,
o que deve ser considerado é que, para Winnicott, o que rege o funcionamento humano não é
um princípio mental, é o processo de amadurecimento humano que o bebê herda ao nascer.
Esta teoria se tornou a sua referência para compreender o modo como o ser humano se
constitui. Segundo ele:

a única companhia que tenho ao explorar o território desconhecido de um novo caso é


a teoria que trago comigo e que tem se tornado parte de mim e em relação à qual
sequer tenho que pensar de forma deliberada. Esta é a teoria do desenvolvimento
emocional do indivíduo, que inclui, para mim, a história total do relacionamento
individual da criança até seu meio ambiente específico. Não se pode evitar que
108

ocorram mudanças nas bases teóricas de meu trabalho com o passar do


tempo e no interesse da experiência. (1958a, p.6)

Tendo a teoria do amadurecimento pessoal como referência, Winnicott mostra que nos
primórdios de sua vida o ser humano não é movido por forças que visem o prazer: “o bebê
tem um ímpeto para a vida” (1949b, p.27). Para Winnicott, “na saúde o lactante
(teoricamente) começa seu desenvolvimento (psicologicamente) sem vida e adquire esta
simplesmente por estar, de fato, vivo” (1965b, p. 192).

O fato de estar vivo leva o bebê a precisar se relacionar com os outros (embora ainda
não tenha maturidade para saber da existência deles) de modo a poder continuar a existir. Para
Winnicott, a premissa é: nos primórdios de sua vida, o bebê humano relaciona-se com as
outras pessoas não para ter suas tensões instintuais satisfeitas, mas porque precisa delas para
continuar existindo. O bebê precisa continuar a ser.

Para não ter sua continuidade de ser ameaçada, o bebê necessita de uma mãe que
cuide dele, de uma pessoa totalmente devotada às suas necessidades. Com um cuidado
materno adequado ao bebê, este manterá sua continuidade de ser e a força de seu ego. Isto é,

com o “cuidado que ele recebe de sua mãe”, cada bebê é capaz de ter uma existência
pessoal, e assim começa a construir o que pode ser chamado de continuidade do ser.
Na base dessa continuidade do ser o potencial herdado se desenvolve gradualmente no
indivíduo lactente. Se o cuidado materno não é suficientemente bom, então o bebê
realmente não vem a existir, uma vez que não há a continuidade do ser; ao invés, a
personalidade começa a se construir baseada em reações a irritações do meio.
(Winnicott, 1960c, p. 54)

O cuidado materno adequado afasta a ameaça de aniquilamento, ou seja, a


possibilidade de perder a existência, de perder a possibilidade de ser real e de construir uma
vida significativa a partir de sua necessidade mais pessoal.

A presença da mãe promove confiabilidade, não prazer, por mais que ela também
atenda as necessidades corporais do bebê, tais como as de alimentação, banho, etc. “Quando a
confiabilidade domina a cena, pode-se dizer que o lactente se comunica simplesmente por
continuar a existir” (1960c, p. 183). O bebê precisa acreditar que o ambiente continuará a lhe
oferecer os cuidados necessários para que ele possa ter a garantia de que sua continuidade de
109

ser está assegurada, de modo que ele possa se tornar real e possa habitar num
mundo real. O bebê “passa a acreditar na confiabilidade dos processos internos que levam à
integração em uma unidade” (1986d [1966], p. 97). Integrar-se numa unidade significa que a
continuidade de ser foi mantida e isto é importante porque para Winnicott,

a continuidade do ser significa saúde. Se tomarmos como analogia uma bolha,


podemos dizer que quando a pressão externa está adaptada à pressão interna, a bolha
pode seguir existindo. Se estivéssemos falando de um bebê humano, diríamos
“sendo”. Se, por outro lado, a pressão no exterior da bolha for maior ou menor do que
aquela em seu interior, a bolha passará a reagir à intrusão. Ela se modifica como
reação a uma mudança no ambiente, e não a partir de um impulso próprio. Em termos
do animal humano, isto significa uma interrupção no ser, e o lugar do ser é substituído
pela reação à intrusão. (1988, p. 127)

Ante essas observações, resta perguntar: há alguma relação entre continuidade de ser e
sexualidade? A resposta é positiva, pois se o bebê não puder ter sua continuidade de ser
assegurada, seu desenvolvimento será prejudicado e, dessa forma, ele não poderá integrar a
instintualidade. Nesse caso, ao não integrar a instintualidade, as tarefas referentes à aquisição
da sexualidade não se concretizarão. Todas as conquistas das fases de dependência absoluta e
da dependência relativa deverão estar asseguradas de modo que o indivíduo possa conquistar
sua identidade sexual. Com a continuidade de ser assegurada, os órgãos sexuais podem ser
elaborados imaginativamente pela psique, de modo que a criança integre os órgãos sexuais
biológicos que herdou. Isto significa que, segundo Winnicott, ao se observar o
desenvolvimento instintual, “você poderá observar todo o corpo da criança e imaginar os
diferentes meios como a excitação acaba por localizar-se. Não podemos, certamente, ignorar
as regiões sexuais” (1957l, p. 99).

O pensamento winnicottiano, que congrega a idéia de desenvolvimento maturacional


com os cuidados ambientais, permite compreender que a melhor descoberta da sexualidade se
faz num ambiente confiável. Para Winnicott, “[as crianças] precisam de um meio ambiente
emocionalmente sólido e constante, em que elas próprias possam descobrir, cada uma à sua
maneira, o surto do sexo em si próprias e o modo como isto altera, enriquece, complica e
inicia relações humanas” (1949j, p. 216).

Estas descobertas têm que ocorrer na exata medida da maturidade da criança, pois nos
primeiros anos da vida ainda não há maturidade para entender determinados aspectos. É a
110

imaturidade da criança um dos motivos que levam Winnicott a escrever uma carta
a Marjorie Stone, uma fabricante de brinquedos, em 14/02/49, em protesto contra o fato de
que ela está fazendo bonecas com órgãos sexuais. Ele sustenta que “embora reconheça que
existem certas crianças, que em certas épocas poderiam obter algo de bonecas com órgãos
sexuais, tenho muito mais certeza de que para a vasta maioria das crianças seria extremamente
perturbador serem presenteadas com bonecas que tivessem tais características” (1987b, p. 14,
itálicos meus).

Os aspectos da imaturidade instintiva serão resolvidos na posição depressiva, quando o


bebê consegue integrar os instintos. As primeiras observações de Winnicott a este respeito
foram apresentadas em seu texto Crescimento e desenvolvimento na fase imatura, no qual ele
aponta que no início a criança está entregue a uma situação de desferir ataques implacáveis à
mãe, mas com seu crescente amadurecimento ela conquista uma preocupação para com esta
(1965t [1950], p.26).

Estas idéias se consolidam em 1955, quando Winnicott apresenta a consolidação da


fase do concernimento. Sem a conquista do concernimento, o bebê não pode discernir o que é
prazer e o que não é prazer, pois não tem maturidade para saber o que isto significa ou o que o
impede de buscá-lo (1955c, 1958o [1956], 1993d [1961], 1963b [1962]).

Quando há uma integração da instintualidade, o bebê pode se alojar em seu próprio


corpo. Sem um corpo sentido como próprio, plenamente integrado em si mesmo, não há
possibilidades de se integrar a sexualidade. É isto o que leva Winnicott a afirmar, em 1945,
que “tão importante quanto a integração é o desenvolvimento do sentimento de que se está
dentro do próprio corpo. Novamente é a experiência instintual e as repetidas e tranqüilas
experiências de cuidado corporal que gradativamente constroem o que se pode chamar de
personalização satisfatória” (1945d, pp. 150-51). A importância da personalização é destacada
em um dos últimos textos de Winnicott, no qual ele sustenta que esta conquista significa a
firme morada no corpo, o que indica a perfeita integração psicossomática (1971d [1970], p.
261).

Portanto, tornar-se um eu firmemente estabelecido numa interação psico-somática é


pré-condição para finalmente chegar à realidade objetivamente compartilhada. É no mundo
das coisas objetivas e das pessoas inteiras que se encontra o outro com o qual o individuo
pode se relacionar, inclusive sexualmente. Porém, a chegada ao mundo externo não pode
ocorrer de forma abrupta, pois, ao bebê, como um ser imaturo que é, o mundo tem que ser
apresentado de forma gradual, em consonância com suas possibilidades maturacionais. No
111

final da década de 1940, Winnicott afirma que o mundo tem que ser apresentado
em pequenas doses:

as mães com bebês estão enfrentando uma situação evolutiva e em constante


transformação; o bebê começa nada sabendo acerca do mundo, e na época em que as
mães terminaram sua tarefa o bebê já se converteu em alguém que conhece o mundo,
que pode descobrir um caminho para viver nele e até tomar parte na forma como ele se
conduz. Que tremenda evolução! (1949m, p.69)

A apresentação do mundo coincide com a necessidade que o bebê tem de criá-lo para
nele se instalar. As atitudes da mãe serão as de apresentar o mundo na justa medida da
necessidade dele de modo que ele possa criá-lo (1988, pp. 100-05). A criação do mundo e a
chegada à realidade objetivamente compartilhada não serão decorrência do princípio do
prazer e sim da necessidade do bebê em criar um mundo para nele se realizar como pessoa
(1988, p. 101). Somente a partir da crescente maturidade do bebê, sustentada pelas atitudes
maternas, ele poderá iniciar suas primeiras incursões às relações objetais, o que, segundo
Winnicott, não é fácil:

o início das relações objetais é complexo. Ele não pode ocorrer se o ambiente não
propiciar a apresentação de um objeto, feito de um modo que seja o bebê quem crie o
objeto. O padrão é o seguinte: o bebê desenvolve uma vaga expectativa que tem
origem em uma necessidade não claramente formulada. A mãe, em se adaptando,
apresenta um objeto ou uma manipulação que satisfaz as necessidades do bebê, de
modo que ele começa a necessitar exatamente do que a mãe lhe apresenta. Desta
forma, o bebê começa a se sentir confiante em ser capaz de criar objetos e criar o
mundo real. (1965n [1962], p. 62)

Ao criar o que necessita, ao criar o mundo, este pode se tornar real para o bebê e será
no mundo real que ele encontrará as pessoas com as quais poderá se relacionar. A realidade se
tornará real porque foi uma criação e não uma imposição ou impostura (1965j [1963], p. 181).
A esta realidade o bebê chegará movido por sua própria necessidade e não para evitar o
desprazer ou sentir prazer. Para ele, necessidade e desejo não são equivalentes e o avanço da
psicanálise mostra isso: “a psicanálise iria aprender que muita coisa acontece nos bebês que se
112

acha associada com a necessidade, e separada do desejo e dos representantes (pré-


genitais) do id a clamarem por satisfação” (1989xa [1969], p. 242).

A idéia freudiana de que a frustração é o elemento que introduz o sujeito no princípio


da realidade é contestada por Winnicott. Em Winnicott a destruição do objeto29 que conduz à
realidade não se associa ao princípio do prazer/realidade:

Esta premência

provocativa

destrutiva

agressiva

invejosa (Klein)

não é um fenômeno do princípio do prazer-sofrimento. Nada tem a ver com a raiva


pelas inevitáveis frustrações associadas ao princípio da realidade. (1989xa [1969], p.
246)

Quanto ao aspecto empírico presente no princípio do prazer, que apresenta os modos


de relação, oral, anal, fálico e genital, Winnicott apresenta sua objeção: a relação mãe-bebê
não é instintual. É necessário esclarecer: o aspecto instintual está presente e o bebê precisa
destas gratificações, mas não será a instintualidade que conduzirá o desenvolvimento infantil,
isto é,

os bebês se alimentam, e isto pode significar muito para a mãe, e a ingestão de


alimento pode dar ao bebê gratificação em termos de satisfações instintuais. Outra
coisa, contudo, é a comunicação entre o bebê e a mãe, algo que é uma questão de
experiência e que depende da mutualidade que resulta das identificações cruzadas.
(1970b [1969], p. 255)

Esta idéia já está presente, de forma incipiente, nos textos de Winnicott desde os anos
194030. Para Winnicott, a comunicação entre o bebê e sua mãe é uma relação de identificação

29 Este item será tratado no capítulo IV, item 4.6.

30 Estas idéias estão nos textos: 1989vr [1943],1945b [1944],1945d,1947b,1949f [1947], 1948b, 1996k
[1948], 1996o [1948]
113

primária, própria dos primeiros meses de vida. Esta identificação é condição para a
chegada à realidade objetivamente percebida, trajetória sustentada pelo contato da mãe que
atende a necessidade do bebê de se tornar uma pessoa real, em um mundo real. Como a mãe
está em estado de identificação com seu bebê, ela lhe fornecerá os cuidados de forma
totalmente adaptada às necessidades dele.

Nos anos 1950, Winnicott reitera que o contato entre mãe e bebê tem um caráter
único:

não devemos deixar de notar que o relacionamento que existe entre o bebê e sua mãe
aqui é de vital importância e, no entanto, não deriva da experiência instintual, nem da
relação objetal que surge a partir da experiência instintual. É anterior à experiência
instintual, ocorrendo, simultaneamente, paralelamente a ela e misturando-se a ela.
(Winnicott, 1958a, p. 98)

Este contato, esta relação, é do caráter da concretude, ocorre na esfera da relação


mútua que não é pulsional, é relacional. Esta singularidade deste relacionamento, constatada
ao longo de anos de contato com bebês e pacientes, torna-se o elemento responsável pela
afirmação de Winnicott de que esta “[...] comunicação é não-verbal; é como música das
esferas, absolutamente pessoal” (1965j [1963], p. 192).

Essa forma de contato totalmente baseada nas necessidades infantis leva Winnicott a
fazer objeções ao pensamento freudiano: “é possível agora ingressar nas águas profundas da
mutualidade que não se relacionam diretamente com as pulsões ou com a tensão instintual”
(1970b [1969], p. 257). Esta é a situação na qual Winnicott mostra que as questões instintuais
não estão envolvidas, uma vez que o bebê ainda é imaturo e que “a coisa principal é uma
comunicação entre o bebê e a mãe em termos de anatomia e da fisiologia de corpos vivos”
(1970b [1969], p. 258). Anatomia e fisiologia de corpos vivos envolvem contato, envolvem
um estar junto que não cabe em categorias especulativas ou atravessadas por referências de
uma sexualidade que ainda não se desenvolveu.

Há um outro tipo de crítica que Winnicott faz ao princípio do prazer: de que a


sublimação do prazer seria o elemento responsável pela introdução do indivíduo na cultura.
Para a psicanálise tradicional, o sujeito renuncia ao prazer ao se deparar com o princípio da
realidade. Dessa forma, ocorre um processo sublimatório e como conseqüência o sujeito
busca a cultura. Ou seja, pra que uma atividade cultural possa surgir, tem que haver da parte
114

do sujeito o abandono de uma gratificação interna. Winnicott apresentou suas


objeções quanto a essa situação:

nos trabalhos psicanalíticos e na vasta literatura especializada, influenciada por Freud,


pode-se perceber a tendência a demorar-se quer na vida de uma pessoa, enquanto em
relação de objeto, quer na vida interna do indivíduo. Na vida de uma pessoa, enquanto
em relação de objeto, presume-se como já estando postulado um estado de tensão que
se dirige no sentido da satisfação do instinto, ou, então, num comprazer-se na
gratificação do lazer. Uma exposição completa incluiria o conceito de deslocamento e
todos os mecanismos de sublimação. Onde a excitação não conduziu à satisfação, a
pessoa vê-se vítima dos desconfortos gerados pela frustração [...]

Isto constitui uma revisão sucinta, muito simplificada, e na verdade deformada, de


uma extensa literatura; mas não estou tentando fazer uma exposição abrangente: antes
quero apontar que a literatura psicanalítica, naquilo que expressa, não nos parece
abranger tudo o que desejamos conhecer. Por exemplo, o que estamos fazendo
enquanto ouvimos uma sinfonia de Beethoven, ao visitar uma galeria de pintura, lendo
Troilo e Cressida na cama, ou jogando tênis. O que está fazendo uma criança quando
fica sentada no chão e brinca sob a guarda de sua mãe? Que está fazendo um grupo de
adolescentes, enquanto participa de uma reunião de música popular? (1971g, pp. 105-
6)

Se em Freud os fenômenos da cultura estão vinculados ao Édipo e à instintualidade,


em Winnicott precisamos nos remeter à vivência do bebê no mundo subjetivo e à resolução
das tarefas dessa fase, ou seja, o bebê precisa ter estabelecido o sentido da realidade subjetiva
de forma a poder apreender um novo sentido da realidade externa. É esse novo sentido que
possibilitará a emergência do lugar apontado no texto acima referido (1971g, pp. 105-6) de
Winnicott. Entre os momentos do mundo subjetivo e a chegada ao mundo objetivamente
percebido dá-se o fenômeno da transicionalidade, fenômeno responsável pela inserção do
bebê na terceira área da experiência, a das artes e cultura em geral.

Segundo Winnicott:

os objetos transicionais e os fenômenos transicionais pertencem ao domínio da ilusão


que está na base do início da experiência. Esse primeiro estádio do desenvolvimento é
tornado possível pela capacidade especial da mãe de efetivar adaptações às
115

necessidades de seu bebê, permitindo-lhe assim a ilusão de que aquilo que


ele cria existe de fato. (1953c, p. 14)

Os fenômenos transicionais surgem logo após o nascimento do bebê, mais


especificamente, quando ele começa a chupar dedos ou punhos, murmurar algum som até
finalmente adotar algum objeto como uma fralda ou bichinho de pelúcia. Diferentemente da
psicanálise tradicional, que vê esses fenômenos como auto-eróticos, em Winnicott eles
constituem a passagem para a realidade objetivamente percebida. Ocorre uma mudança no
bebê, pois da experiência de ser o objeto ele passa possuir o objeto. Esse objeto passará
gradativamente a fazer parte da realidade objetiva, pois o bebê percebe que o controle mágico
que tinha sobre ele desaparece aos poucos.

O estado fusional mantido com a mãe vai desaparecendo na medida em que o bebê a
substitui pelos objetos transicionais. Surge um espaço que separa mãe e filho, o espaço
potencial, espaço que possibilitará relacionamentos que serão de um caráter diferente dos
experimentados no mundo subjetivo. O bebê cria outros espaços, outros campos onde pode
passar a atuar efetivamente. Esse espaço no qual o bebê pode colocar os objetos transicionais
propicia o surgimento da capacidade de simbolização. Os objetos transicionais possibilitarão
o surgimento do brincar e constituem os antecedentes da capacidade adulta de se inserir no
campo da experiência cultural, das artes e religião. Sobre esse assunto Winnicott escreve o
seguinte:

empreguei o termo ‘experiência cultural’ como uma ampliação da idéia dos


fenômenos transicionais e da brincadeira, sem estar certo de poder definir a palavra
‘cultura’. A ênfase, na verdade, recai na experiência. Usando a palavra ‘cultura’, estou
pensando na tradição herdada. Estou pensando em algo que pertence ao fundo comum
da humanidade, para o qual indivíduos e grupos podem contribuir, e do qual todos nós
podemos fruir, se tivermos um lugar para guardar o que encontrarmos. (Winnicott,
1967b, p.99)

O espaço potencial é o lugar para guardar toda a experiência cultural que o indivíduo
encontrará à sua disposição quando chegar à realidade objetivamente compartilhada, isto é,
“as artes, os mitos da história, a lenta marcha do pensamento filosófico e os mistérios da
matemática, da administração de grupos e da religião [...] aparece também na forma de toda a
116

cultura acumulada nos últimos cinco ou dez mil anos [...] essa área inteiramente
humana é subproduto da saúde” (Winnicott, 1971f [1967], p.36).

A grande importância da fase da transicionalidade está no fato de que ela possibilita a


criação de um novo mundo para o bebê. Mais que transitar de um objeto para outro, o bebê
cria a possibilidade de transitar de um mundo para outro, circular entre mundos nos quais os
mais diferentes objetos podem se fazer acessíveis a ele. A criação desse novo mundo significa
o estabelecimento de um lugar no qual poderemos viver se conquistarmos a saúde. Uma vez
que essa conquista se instaure em nosso mundo pessoal, poderemos desfrutar de todo o acervo
cultural que a humanidade colocou à nossa disposição.

4. Crítica às relações objetais

Um dos pilares da psicanálise tradicional é o conceito de ‘relação de objeto’. Esse


conceito pressupõe que o sujeito que se relaciona com outro sujeito já está constituído, é uma
pessoa inteira, que sabe de sua existência e do mundo no qual está inserido. Pressupõe,
também, que ele esteja em condições de estabelecer vínculos com pessoas também já
constituídas, que já seja capaz de se inter-relacionar. O conceito relação objetal traz em si
todo o revestimento da psicanálise tradicional de que a pulsão busca um objeto para atingir
uma satisfação através de diferentes modalidades de relação do deslocamento da libido pelas
zonas erógenas.

As idéias freudianas sobre o desenvolvimento infantil e sobre a capacidade de


estabelecimento de relações de objeto têm origem em observações quanto à regressão às fases
do desenvolvimento sexual. De certa forma, pode-se afirmar que Freud parte do princípio de
que o ser humano já nasce com todas as estruturas psíquicas em condição de estabelecer
contato com outros seres humanos e com a realidade externa. Este contato será feito por meio
do desenvolvimento das funções sexuais transcorridas da fase oral à genital, no qual a criança
mantém uma relação com o mundo e com as pessoas que nele estão. Na fase oral, o contato
com o mundo é feito através dos atos de incorporação; na fase anal, o protótipo se dá via atos
de expulsar, de controlar; na fálica, a ênfase está no temor da castração nos meninos e, nas
meninas, temos a inveja do pênis. Finalmente, na fase genital, o modelo relacional se dá por
uma equivalência entre os órgãos sexuais masculinos e femininos, ou seja, o órgão sexual
feminino adquire o mesmo status que o concedido ao órgão masculino. Isto revela que a
criança alcançou, na vida adulta, uma organização sexual definitiva. Revela, também, que o
117

menino resolveu o complexo de castração. Na medida em que descreve o


desenvolvimento do psiquismo através das fases de investimento libidinal, Freud nos oferece
elementos para constatar que o bebê, desde o início de sua vida, já tem capacidade de se
relacionar com outros seres humanos. Isso significa que ele também já é um ser humano
completo, plenamente constituído, relacionando-se com o mundo real e que já apresenta
capacidade de estabelecer trocas com o meio ambiente externo, trocas de caráter prazeroso
que o impelem a buscar novamente o contato para buscar gratificação, como se o bebê já
tivesse um aparato mnemônico em funcionamento.

Na psicanálise winnicottiana, o conceito de relações de objeto não pode ser aplicado


aos primórdios da vida do bebê. De acordo com Winnicott, no início de sua vida o bebê está
em estado de não integração, não sabe de si, porque ainda não há um si-mesmo do qual se
possa ter consciência, um Eu que possa interagir com outras pessoas. Para Winnicott, no
início de sua vida o bebê não tem condições maturacionais para se relacionar com as pessoas.
Para conseguir se relacionar com as pessoas, o bebê precisa realizar as tarefas de alcançar o
status de unidade, instalar-se no mundo e, finalmente, entrar em contato com os outros seres
humanos e com as coisas que estão no mundo. Segundo Winnicott, em seus primeiros meses
de vida o bebê ainda não está integrado, ou seja, ele ainda não tem um “eu” constituído, ainda
não chegou à realidade externa onde estão os objetos. Portanto, o bebê não tem objetos e
como tal não pode ter metas ou intencionalidade definidas, o que está implícito nas idéias
concebidas pela psicanálise tradicional.

Conforme já foi salientado, a trajetória que o bebê tem que empreender até poder se
relacionar com os objetos não é simples. Para Winnicott, “relações com os objetos são um
fenômeno complexo, e o desenvolvimento de uma capacidade para se relacionar com os
objetos de forma alguma é um ponto simples no processo de amadurecimento” (1965va
[1962] p. 177).

Porque o bebê ainda não pode se relacionar com outras pessoas? Em que condições,
em que mundo está o bebê? Para Winnicott, no início de sua vida, o bebê habita um mundo
subjetivo. Nesse mundo subjetivo, mundo que é assegurado pela mãe-ambiente, o que
prevalece é o estado de ser, estado proporcionado pela mãe suficientemente boa. Neste mundo
subjetivo, mãe e bebê estão em tal estado de confluência que não há uma separação entre eles.
Enquanto objeto subjetivo, a mãe se adapta ao bebê e
118

o bebê se torna capaz de se relacionar com um objeto e de unir a idéia do


objeto com a percepção da pessoa total da mãe. Esta capacidade de se relacionar com
um objeto se desenvolve como um resultado de uma adaptação materna que seja
suficientemente boa [...] Esta capacidade não pode se desenvolver somente pelo
processo de amadurecimento; a adaptação suficientemente boa da mãe é essencial e
deve durar por um período suficientemente longo, ou a capacidade para se relacionar
com objetos pode ser perdida, total ou parcialmente. De início o relacionamento é com
um objeto subjetivo, e é uma longa jornada daqui até o desenvolvimento e
estabelecimento da capacidade de se relacionar com um objeto que é percebido
objetivamente e que tem a possibilidade de ter uma existência separada, uma
existência fora do controle onipotente do indivíduo. (1963c, p. 224)

Segundo Winnicott, para entender como o bebê humano chega à ‘capacidade de


objetivar’ “o teórico precisa ser capaz de abandonar alguns princípios dos quais esteve
orgulhoso em todos os anos desde que Freud forneceu o conceito de complexo edipiano, a
idéia da sexualidade infantil e a técnica psicanalítica de investigação [...] (1970b [1969], p.
253) O estudioso precisa aceitar a idéia de que “a comunicação tem uma importância maior
do que habitualmente é chamado de “relacionamento objetal” ”(1970b [1969], p. 253). A
comunicação entre mãe e bebê é a matriz geradora das possibilidades futuras de
relacionamento com as pessoas que estão na realidade objetivamente percebida.

O bebê não tem condições de manter um relacionamento com os objetos que estão no
mundo porque no inicio de sua vida ele está no mundo subjetivo, mundo no qual não se tem
condições de manter relações com. Em primeiro lugar, é preciso tornar-se um EU. Nas
palavras de Winnicott:

surge a idéia de uma membrana limitadora, e em seguida surge a idéia de um interior e


um exterior. Em seguida desenvolve-se a idéia de um EU e de um não-EU. Existem
agora conteúdos do EU que dependem em parte de experiências instintivas.
Desenvolve-se a possibilidade de um sentimento de responsabilidade pela experiência
instintiva e pelos conteúdos do EU, e um sentimento de independência em relação ao
que está fora. Surge um sentido para o termo “relacionamento”, indicando algo que
ocorre entre pessoas, o EU e os objetos. O resultado é o reconhecimento de que há
algo equivalente ao EU na mãe, o que implica em senti-la como uma pessoa [...]
(1988, p. 68)
119

A partir do reconhecimento de que há um EU que está no mundo externo


juntamente com outros EU, pessoas inteiras tais como o bebê, é possível o estabelecimento de
contato com o que está na realidade objetivamente percebida.

O bebê precisa, a partir da experiência de onipotência, adquirir uma identidade e poder


relacionar-se com o que é externo a si próprio. É necessário que o bebê conquiste a
capacidade de chegar à realidade objetivamente percebida e se relacionar com as pessoas e
objetos que lá encontrar. Para Winnicott:

quando a externalidade foi estabelecida na classificação que o bebê faz do caos


potencial da vida, está pronto o caminho para um enriquecimento pessoal que não
possui limites, baseado na experiência pessoal e fazendo uso dos mecanismos mentais
que são usualmente chamados de projeção e introjeção. Juntamente com o crescimento
da vida imaginativa mental, isto faz a criança partir para uma vida de inter-
relacionamento que é feita desde a base real de uma experiência pessoal. (1970b
[1969], pp. 287-8)

Para se relacionar com os objetos, é necessário que eles estejam no mundo externo,
fora do mundo subjetivo. Isso nos leva à necessidade de considerar que para o bebê há
diferentes tipos de realidade. Se no início de sua vida o bebê está vivendo no mundo subjetivo
possibilitado por sua mãe, a entrada no mundo objeto não é automática. O bebê precisará criar
o real para nele se instalar. Aqui temos mais uma objeção à psicanálise tradicional, para a qual
a realidade já é dada ao sujeito. O único caminho para essa construção é através da realidade
do mundo subjetivo.

Em 1947, Winnicott faz uma de suas primeiras menções à mãe subjetiva, quando
afirma que a base da saúde mental é assentada na primeira infância, no relacionamento entre o
bebê e a mãe e de “uma maneira mais primitiva, entre o bebê e a sua mãe subjetiva” (1947c,
p. 536). Em 1949, ao abordar o tema do roubo feito pelas crianças, Winnicott diz que elas
estão à procura de sua mãe porque “o que a mãe dava de si própria ao bebê tinha de ser
concebido como tal, tinha de ser subjetivo para ele, antes da objetividade começar a ter algum
sentido” (1957r [1949], p. 163).

Em 1952, ao associar a psicose aos cuidados maternos, Winnicott esclarece que


120

inicialmente, o indivíduo não é a unidade. Da forma como é percebida


externamente, a unidade é uma organização meio ambiente-indivíduo. A pessoa que
está do lado de fora sabe que a psique individual só pode ter início dentro de um
determinado setting. Neste setting, o indivíduo pode gradualmente vir a criar um meio
ambiente pessoal. (1953a [1952], pp. 221-2)

As características deste mundo subjetivo são apresentadas no início dos anos 1960,
quando Winnicott diz que as crianças vivem numa estranha realidade, isto é, uma “[...]
realidade em que nada ainda distinguiu-se com não-eu, de modo que ainda não existe um EU
(1965vf [1960], p.17). Numa carta a Balint, em 1960, ao esclarecer suas idéias sobre o estado
inicial do bebê, Winnicott disse que“o bebê não estabeleceu ainda a capacidade de fazer
relações, e, na verdade, não está lá para se relacionar, exceto de modo não integrado” (1987b,
p.128). Em 1961, ele fornece mais detalhes sobre este modo não integrado, ao apresentar as
condições da criança na vivência do mundo subjetivo:

no início, o real e o imaginário são uma única coisa, pois a criança não apreende o
mundo de modo objetivo, mas vive num estado subjetivo, em que é a criadora de todas
as coisas. Gradualmente, a criança saudável torna-se capaz de perceber o mundo do
não-eu. Para alcançar este estado precisa ser cuidada de modo satisfatório durante a
época da dependência absoluta. (1986k [1961], p. 16)

Em 1962 e em 1963, ele esclarece que o bebê, nesta fase, se relaciona com os “objetos
subjetivos” (1965n [1962], 1965j [1963]). Ainda em 1963, ele fornece mais dados sobre como
se dá este relacionamento:

no princípio, o relacionamento é com um objeto subjetivo, e é uma longa jornada


daqui até o desenvolvimento e estabelecimento de se relacionar a um objeto, que é
percebido objetivamente e que tem a possibilidade de ter uma existência separada,
uma existência exterior ao controle onipotente do indivíduo. (1963c, p. 224)

Diz Winnicott que “parece impossível falar a respeito do indivíduo sem falar sobre sua
mãe, porque penso que a mãe ou a pessoa que está no lugar dela é um objeto subjetivo – em
outras palavras não foi objetivamente percebida – e, portanto, o modo como a mãe se
121

comporta faz realmente parte do bebê” (Winnicott, 1989a, p. 580). Estas idéias são
confirmadas um ano antes de sua morte, quando ele afirma que “o bebê a princípio vive em
um mundo subjetivo. Ele existe precariamente e na dependência da figura materna humana
[...]” e que “[no mundo subjetivo, próprio dos primórdios da vida do bebê], “o mundo da
realidade externa não incide” (1970b [1969], pp. 285-86).

A capacidade do bebê para estabelecer relações objetais será adquirida na medida em


que o bebê experiencia a fase da transicionalidade, que lhe possibilitará um novo sentido à
realidade. Isto será possível se o bebê tiver experienciado o mundo subjetivo de forma
consistente. A vivência da transicionalidade tem seu suporte na vivência da primeira mamada
teórica, por meio da qual a mãe confirma ao bebê que o mundo foi criado por ele (1988, pp.
100-05). Desta forma, ele entra em contato com a realidade através de sua criatividade, de seu
modo pessoal. Na transicionalidade, o bebê sai de uma realidade subjetivamente concebida
até chegar à realidade objetiva. As primeiras idéias de Winnicott sobre o objeto transicional
foram esboçadas em 1945, quando ele afirma que atos como sugar os dedos constituem
tentativa de localizar o objeto e colocá-lo no meio do caminho entre o dentro e o fora (1945d,
p. 156). Aos poucos, o bebê passa por um desilusionamento, por meio do qual ele tem um
gradativo acesso às coisas do mundo objetivo (1947b, p. 91). O ato de sugar dedos, punho e
de eleger algum objeto tal como um pedaço de tecido ou ursinho de pelúcia tornam-se os
objetos transicionais e o espaço no qual eles estão recebe de Winnicott a denominação de
espaço potencial. Indispensáveis pelo bebê, eles gradativamente o conduzirão à realidade
objetivamente compartilhada. A definição dos objetos transicionais é feita em 1951:

introduzi os termos ‘objetos transicionais’ e ‘fenômenos transicionais’ para designar a


área intermediária de experiência entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a
verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já
foi introjetado, entre o desconhecimento primário de dívida e o reconhecimento desta
[...] (1953c, p. 2).

Ao atravessar a fase da transicionalidade, o bebê dá um grande passo em sua


maturidade, mas para chegar à realidade objetiva ele precisa perceber esta realidade como
externa a ele, com objetos com os quais ele pode se relacionar de modo concreto, e não mais
no mundo subjetivo. Para isso, o bebê precisará colocar o objeto para fora de seu controle
onipotente, o que significa que este objeto precisará fazer parte da realidade compartilhada. O
bebê mudará sua maneira de se relacionar com o objeto, própria do mundo subjetivo, para o
122

uso do objeto, própria do mundo objetivo. O processo pelo qual isto ocorre será a
aquisição do uso do objeto, no qual o objeto passa a existir por si mesmo e adquire o caráter
de externo. O bebê precisa destruir o objeto subjetivo e este precisa sobreviver. De que forma
isto ocorre? Segundo Winnicott, o bebê, nesta fase, passa a ter atitudes tais como chutar a
mãe, morder seu seio. Desta forma, ele coloca a mãe, que ainda é objeto subjetivo, para fora
de sua área onipotente. A mãe precisa sobreviver, ou seja, não retaliar, e com esta atitude ela
se coloca como objeto da realidade objetivamente compartilhada e o bebê poderá constatar
seu caráter externo. Para Winnicott, neste processo, “o bebê diz ao objeto: ‘destruí você’ e o
objeto acha-se lá para receber a comunicação. A partir daí, o sujeito diz: ‘alô, objeto!’ ‘destruí
você’, ‘amo você’. ‘Você tem valor pra mim por sobreviver à minha destruição de você’”
(1969i [1968], p. 222). Com a sobrevivência do objeto, o bebê pode agora localizá-lo na
realidade externa, ou seja, ele sabe que há um mundo externo no qual ele pode transitar e no
qual os objetos podem ser usados.

É desta forma que o bebê adquire a capacidade de se relacionar com os objetos, ou


seja, com as pessoas que estão na realidade. Isto significa que ele agora é uma pessoa inteira,
o que é possível depois de uma longa trajetória. As primeiras idéias sobre esta conquista já
estão presentes em alguns textos da década de 1940, quando, ao apresentar suas idéias sobre o
desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott afirma que um bebê pode levar um objeto à
boca quando tem em torno de cinco meses, ou seja, “não poderia tê-lo feito antes”. (1945d, p.
148) Nessa fase, o bebê ainda é muito imaturo e a possibilidade de relacionamento é possível
após este período, isto é, “no caso de muitos bebês, há um relacionamento de pessoa total aos
seis meses. Então, quando um ser humano sente que é uma pessoa que se relaciona com
outras, ele já andou um longo caminho no seu desenvolvimento primitivo” (1945d, p. 148).

Se um bebê ainda não é uma pessoa inteira, ele não tem condições de ter contato com
a realidade externa. Winnicott, em seu trabalho com pacientes psicóticos, compreendeu que
não se pode postular que o contato com a realidade externa possa ser dado como certo, uma
vez que ‘nunca é dado e estabelecido de vez’ e que à externalidade o bebê chegará através da
experiência da mãe e do bebê que, no início, são um só. A mãe apresentará o mundo ao bebê,
“é ela quem produz uma situação que, com sorte, pode resultar no primeiro laço feito pelo
bebê com um objeto externo, um objeto que é externo ao self do ponto de vista do bebê”
(1945d, p. 152).

Ao sustentar a ilusão do bebê de que ele criou o mundo, a mãe permite que
gradativamente ele chegue à realidade externa (1947b, p. 90). Estas mesmas idéias estão
123

presentes em textos de 1948, nos quais Winnicott afirma que o contato com o
mundo externo somente é possível após a integração (1960 [1948],1996k [1948]).

Na década de 1950, suas idéias sobre o estabelecimento com a realidade externa


seguem a mesma linha apresentada anteriormente: “a criança de um ano por vezes é uma
pessoa total que se relaciona com outras pessoas totais” (1958j, p. 10). Neste texto, ao falar
em ‘concepções modernas sobre o desenvolvimento emocional’, Winnicott deixa implícito
seu afastamento da concepção freudiana. Nos anos 1960 suas idéias estão consolidadas e ele
sustenta que “o ego inicia as relações objetais”, a partir dos bons cuidados maternos (1965n
[1960], pp. 59-0) e que, ao sair da dependência relativa, “[a criança] gradativamente se torna
capaz de abranger quase que qualquer evento exterior [...]”(1965r [1963], p. 91). Para
Winnicott, o início das relações objetais está no padrão estabelecido pela amamentação. Em
uma de suas palestras ele esclarece:

estou chamando a atenção de vocês para o fato de que, quando a mãe e o bebê chegam
a um acordo na situação de alimentação, estão lançadas as bases de um
relacionamento humano. É a partir daí que se estabelece o padrão da capacidade da
criança de relacionar-se com os objetos e com o mundo. (1968f [1967], pp. 63-4)

Não é possível, então, postular que desde o início de sua vida o bebê tem condições de
estabelecer relações. Sob o ponto de vista da teoria do amadurecimento humano, ao nascer o
bebê tem apenas um aparato biológico e o processo de amadurecimento humano que lhe
permitirão o desenvolvimento posterior (1960c, p. 43). A partir das experiências
proporcionadas pelo cuidado materno, o bebê poderá desenvolver a capacidade de memorizar,
dar significado a uma experiência, e, ao assimilá-la como gratificante, procurar re-
experienciá-la. Há um outro elemento prioritário: o bebê precisará adquirir a capacidade de
criar um objeto, e isso somente será possível por meio da primeira mamada teórica. O
processo pelo qual isso se efetiva é explicado por Winnicott:

a primeira mamada teórica é representada na vida real pela soma das experiências
iniciais de muitas mamadas. Após a primeira mamada teórica, o bebê começa a ter
material com o qual criar. É após dizer que aos poucos o bebê se torna capaz de
alucinar o mamilo no momento em que a mãe está pronta para oferecê-lo. As
memórias são construídas a partir de inúmeras impressões sensoriais, associadas à
atividade da amamentação e ao encontro do objeto. No decorrer do tempo surge um
124

estado no qual o bebê sente confiança em que o objeto do desejo pode ser
encontrado, e isto significa que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência do
objeto. Desta forma, inicia-se no bebê a concepção da realidade externa, um lugar de
onde os objetos aparecem e no qual eles desaparecem. (1988, p. 106)

O estabelecimento por uma pessoa da capacidade de se relacionar passa pela inserção


em e saída de um mundo subjetivo, passa por sentir-se vivo e real, por descobrir o mundo e os
outros que estão no mundo. Significa depender de alguém que possa sustentá-lo enquanto se
descobre tudo isso; significa descobrir e dar sentido à temporalidade para poder conduzir o
próprio fio de sua história por meio do passado, do presente e da ânsia por um futuro. Passa
também pela necessidade de habitar o próprio corpo, configurar-se no espaço do mundo
objetivo, envolver-se com as pessoas e objetos que estão na realidade e saber que, como tem
um lugar no mundo e está nesse mundo, pode contribuir para o crescimento do mundo e da
humanidade.

5. Crítica à idéia de zona erógena

O conceito de zona erógena é fundamental na psicanálise freudiana, por significar a


região corporal que, progressivamente, é libidinizada, de modo a constituir as fases da
sexualidade. Se na psicanálise tradicional o desenvolvimento da função sexual está assentado
no conceito de zona erógena, o mesmo não se pode dizer na psicanálise winnicottiana, uma
vez que os conceitos básicos aqui envolvidos, tais como os de libido e pulsão foram
abandonados por Winnicott.

Enquanto que na psicanálise tradicional as zonas erógenas constituem o local de onde


as pulsões emergem, na psicanálise winnicottiana os locais excitados não podem ser
chamados de erógenos, no sentido convencional freudiano, pois Winnicott não aceita que as
regiões corporais sejam excitadas por meio de um conceito hipotético especulativo. Se não há
pulsão, o corpo não constitui a fonte de onde provém uma energia e sim o local que será
mobilizado pelos instintos. Corpo é fonte de instinto e não de pulsão. Corpo mobilizado por
instinto permite o gradativo contato e assunção de uma corporeidade que levará à integração e
constituição da personalidade.

A primeira recusa a um conceito especulativo e a assunção de um conceito empírico –


instinto – pode ser encontrado em 1945, quando Winnicott afirma que a
125

[...] tendência a integrar é ajudada por dois conjuntos de experiência: a técnica de


cuidado infantil através da qual a temperatura do bebê é mantida, ele é manipulado,
banhado, embalado e nomeado e, também, pelas experiências instintuais agudas que
tendem a aglutinar a personalidade a partir do interior. (1945d, p. 150)

Em Winnicott, as experiências instintuais permitem ao bebê estabelecer uma


intimidade com seu corpo. Nas situações em que a instintualidade é da ordem da sexualidade,
o caráter erógeno é concreto e não especulativo-pulsional. Se em Freud as pulsões originadas
do corpo devem ser recalcadas, sublimadas ou alocadas na fantasia, em Winnicott os instintos
devem ser integrados gradativamente pelo ego, durante todo o desenvolvimento do indivíduo.

Em 1955, quando elabora suas idéias sobre a natureza humana, aceitando que o
desenvolvimento infantil passa por uma progressão dos instintos, Winnicott apresenta o
elemento que estabelece a diferença de seu pensamento em relação ao de Freud: a elaboração
imaginativa. “No bebê e na criança há uma ELABORAÇÃO IMAGINATIVA de todas as
funções corporais [..]” (1988, p. 40). Na medida em que a criança se desenvolve, por meio
das experiências instintuais corporais, ela elabora imaginativamente o funcionamento de cada
um de seus órgãos corporais, de modo a se apropriar deles. Esta é uma experiência que se dá
de modo concreto, por meio da excitação em cada parte de seu corpo. O elemento que
proporciona esta conquista à criança não é a libido. Portanto, a criança, tem seu corpo tomado
por instintos, mas não basta aceitar que os instintos atuem sobre o corpo, mas que “[...] toda
função corporal tem sua elaboração imaginativa [...]” (1965vf [1960], p. 25). Corpo é
elaborado imaginativamente porque é mobilizado pelos instintos e não pela pulsão.

Na psicanálise tradicional, Freud vincula o desenvolvimento do sujeito à atuação da


libido nas zonas erógenas, ou seja, ao serem excitadas, estas regiões promoveriam o
crescimento psíquico e emocional do sujeito. Na psicanálise winnicottiana, é outro o elemento
condutor responsável pelo processo maturacional: a teoria do amadurecimento pessoal, que
depende dos bons cuidados ambientais para levar a termo o desenvolvimento emocional da
pessoa humana. O significado das gratificações produzidas pelas zonas erógenas também tem
outro viés: “a excitação pode ser local ou geral, e a excitação generalizada tanto pode
contribuir para que o bebê se sinta um ser total, quanto ser uma resultante do estágio de
integração alcançado no percurso do desenvolvimento” (1988, p. 40).
126

A afirmação de Freud de que há zonas erógenas predestinadas, tal como a


boca, também é passível de objeção. Se o bebê em amadurecimento sofrer algum revés e
interferir na elaboração imaginativa deste órgão, muito provavelmente o bebê não poderá
apropriar-se dele. Isto significa que esta predestinação está submetida ao bom andamento do
processo maturacional.

Este mesmo argumento se aplica quanto à assertiva de Freud de que todo o corpo é
erógeno. Em Winnicott, o processo de amadurecimento bem conduzido leva o indivíduo a se
tornar uma pessoa inteira, e isso inclui a integração das zonas genitais. Integrar as zonas
genitais não significa que todo o corpo se tornará erógeno. Significa que as funções
relacionadas com a sexualidade podem responder de forma adequada às situações em que o
envolvimento sexual-amoroso estiver presente na vida do indivíduo. Em Winnicott, o uso do
corpo não se destina prioritariamente às demandas sexuais.

A experiência de que o corpo pode ser erógeno somente encontrará respaldo na teoria
do amadurecimento humano se houver de fato um processo de amadurecimento que
possibilite ao indivíduo sua integração psico-somática, ou seja, um processo de
personalização que lhe permita integrar-se corporeamente. No início de sua vida, o bebê é
constituído por partes que deverão ser integrados de forma a constituir-se numa unidade. O
bebê está como que ‘espalhado’, corpo (body), mente e psique ainda não se integraram. A
mãe, por meio do handling, facilita a integração dessas partes, ou seja, “grande parte do
cuidado físico dedicado à criança, segurá-la, manipulá-la fisicamente, banhá-la, alimentá-la, e
assim por diante, destina-se a facilitar a obtenção, pela criança, de um psique-soma que viva e
trabalhe em harmonia consigo mesmo” (1971f [1967], p. 29). Gradativamente, corpo e psique
se integrarão de tal forma que o resultado será a percepção de que “dentro daquele corpo
existe um indivíduo” (1988, p. 280). No tocante à percepção de que uma parte do corpo pode
ser prazerosa, somente através da conquista da integração psico-somática, pode-se afirmar que
“na saúde, o uso do corpo e de todas as suas funções é uma das coisas prazerosas da vida [...]”
(Winnicott, 1971f [1967], p. 29). Uma parte do corpo destinada a se tornar erótica somente
alcançará essa condição se ela for elaborada imaginativamente como tal (1988, p. 40).

Se a psicanálise tradicional afirma que as zonas erógenas constituem as fontes


originárias das pulsões, na psicanálise winnicottiana elas se vinculam aos instintos, que são
forças físicas (1988, p. 39) e não idéias especulativas. Portanto, a idéia de uma região
corporal libidinizada, movida pela libido, não se coaduna com a psicanálise winnicottiana. O
que se tem é uma região corporal que sofre a ação de uma ação biológica (drives) (1988, p.
39).
127

Em 1967, em seu texto O conceito de individuo saudável, no item zonas


erógenas, Winnicott esclarece que até certo ponto, as idéias de Freud ainda têm vigência, mas
que o desenvolvimento do indivíduo não tem origem numa região excitada libidinalmente.
Por meio do desenvolvimento do ego, os aspectos instintuais são integrados. Note-se que
Winnicott fala em instintos e não em pulsões advindas de uma zona corporal que é excitada.
Disse Winnicott:

Na primeira metade do século de Freud, toda a avaliação da saúde precisava ser feita
em termos do estágio em que se encontrava o id, de acordo com as predominâncias
sucessivas das zonas erógenas. [....] Se prosseguirmos, começaremos a utilizar uma
linguagem diferente. Esta seção se iniciou em termos de impulsos do id e termina se
referindo à psicologia do ego. [...] Púberes não se enganam com a idéia de que os
impulsos instintivos sejam tudo, e de fato eles estão essencialmente preocupados com
o ser, com o estar em algum lugar, com se sentirem reais e em adquirir algum grau de
constância objetal. Eles precisam ser capazes de ‘cavalgar os instintos, em vez de
serem esmigalhados por eles. (1971f [1967], p. 25)

Com esta assertiva, Winnicott assinala que o conceito de zona erógena e o lugar que
este ocupa no arcabouço freudiano não terão equivalência em sua própria teoria.

6. Crítica ao complexo de Édipo

As críticas de Winnicott quanto ao complexo de Édipo podem ser alocadas em várias


categorias: a primeira se refere à localização desta situação no processo maturacional e a
segunda quanto ao significado que ele ocupa na vida da criança, pois Winnicott jamais deixou
de reconhecer sua existência, apenas alterou seu significado. Comecemos pela localização do
momento do complexo de Édipo no processo maturacional.

Como herdeiro do pensamento freudiano, Winnicott não questionou a existência do


complexo edípico, apenas chamou a atenção para o fato de que este evento não pode estar
presente no início da vida do bebê, que ele é uma conquista e que, como tal, pode não se
efetivar se as condições ambientais não forem favoráveis. O ponto de partida para este
questionamento foi o fato de Winnicott ter constatado que bebês podem ficar doentes muito
cedo e que o complexo de Édipo não pode ser usado para explicar este quadro, uma vez que
no início da vida a relação interpessoal existente ocorre entre duas pessoas e não entre três.
128

Nos primórdios da existência, bebê e sua mãe constituem uma só pessoa.


Conforme vimos no item 3 deste estudo, sobre as relações objetais, no início de sua vida o
bebê está vivendo uma relação subjetiva com sua mãe e neste estado fusional não tem
maturidade para estabelecer uma distinção eu/não-eu. Ou seja, a mãe é um objeto subjetivo.

Os primeiros indícios, apontados por Winnicott, de que o complexo de Édipo não pode
ocorrer no início da vida da criança está em seu texto de 1947, A criança e o sexo, no qual ele
diz que: “muitas meninas, porém, não vão tão longe em seu desenvolvimento emocional [...]”
(1947a, p. 150). Para alcançar o complexo de Édipo a criança tem que passar pelas fases da
dependência absoluta e relativa com sucesso, de modo a viver as situações da relação entre
três pessoas.

Nos anos 1950, isto é acentuado em seus textos sobre o desenvolvimento emocional
infantil. Em 1955, em Natureza Humana, ele sustenta:

acredito que alguma coisa se perde quando o termo “Complexo de Édipo” é aplicado
às etapas anteriores, em que só estão envolvidas duas pessoas, e a terceira pessoa ou o
objeto parcial está internalizado, é um fenômeno da realidade interna. Não posso ver
nenhum valor na utilização do termo “Complexo de Édipo” quando um ou mais de um
dos três que formam o triângulo é um objeto parcial. No Complexo de Édipo, ao
menos do meu ponto de vista, cada um dos componentes do triângulo é uma pessoa
total, não apenas para o observador, mas especialmente para a própria criança. (1988,
p. 49)

Em 1958, ele localiza o momento em que as relações triangulares surgem para a


criança: “o relacionamento triangular, com sua riqueza e complicações específicas, vai
aparecendo como fator novo na vida da criança por volta da época de seu primeiro
aniversário, mas só atinge sua plena extensão quando a criança já começou a andar [...]”
(1958j, p.10).

Nos anos 1960, sua posição de que a psicanálise tradicional não poderia ser o
parâmetro para explicar a condição inicial do bebê é clara: a psicanálise é uma teoria
deficiente para explicar a vida da criança (1965va [1962], p. 172). Se os bebês adoecem
emocionalmente no início da vida e se o complexo de Édipo não aconteceu ainda, “algo
estava errado em algum lugar” (1965va [1962], p. 172). O próprio Winnicott lembra que nos
anos 1930 já havia percebido que algumas patologias não poderiam ser explicadas via
129

complexo de Édipo e que “meu ponto de vista era, assim, um tanto original, e
bastante perturbador para aqueles analistas que enxergavam apenas angústias de castração e
conflitos de Édipo”. (1961 [1936], p. 34n)

A aceitação do complexo edípico e sua alocação na fase adequada da criança pode ser
constatada na seguinte observação de Winnicott:

o importante para mim era que enquanto nada do impacto do complexo de Édipo se
perdia, o trabalho se fazia agora na base de ansiedades relacionadas com impulsos pré-
genitais. Podia-se ver que no caso neurótico mais ou menos puro o material pré-genital
era regressivo e a dinâmica pertencia ao período dos quatro anos, mas por outro lado,
em muitos casos, havia doença e uma organização de defesas pertencentes a períodos
anteriores da vida da criança e muitos lactentes na verdade nunca chegaram a uma
coisa tão saudável como o complexo de Édipo na meninice. (1965va [1962], p. 175)

A localização do complexo edípico de acordo com processo maturacional também


surge em seu texto “O uso de um objeto no contexto de Moisés e o Monoteísmo”, no qual, ao
se referir a Freud e suas idéias sobre repressão, Winnicott afirma:

não é que Freud esteja errado a respeito do pai e do laço libidinal que se torna
reprimido, mas tem-se que notar que uma certa proporção de pessoas no mundo não
chegam ao complexo edipiano. Elas nunca avançam tão longe em seu
desenvolvimento emocional e, portanto, para elas, a repressão da figura libidinizada
tem apenas pouco relevância. (1989xa [1969], p. 241)

A conquista da relação a três será possível quando a criança já tiver conquistado


maturidade para perceber o pai como o terceiro elemento da relação.31 No início, o pai é um
aspecto da figura materna e não pode ser percebido como uma pessoa total. Quando o bebê
alcança uma certa maturidade, o pai torna-se uma baliza que auxilia o bebê em seu processo
de integração e “dessa maneira, pode-se ver que o pai pode ser o primeiro vislumbre que a
criança tem da integração e da totalidade pessoal” (1989a, p. 43.).

31 Isso acontecerá apenas no estágio do concernimento.


130

Como salienta Winnicott,

Rickman nos deixou o legado de pensarmos os relacionamento em termos de duas


pessoas (dois-corpos ou bipessoais) e de três pessoas (três-corpos ou tripessoais).
Freqüentemente nos referimos ao complexo de Édipo como um estágio no qual as
relações a três-corpos dominam o campo da experiência. Qualquer tentativa de
descrever o complexo de Édipo em termos de duas pessoas deve fracassar. Contudo,
as relações diádicas existem, e pertencem a estágios primitivos da vida do indivíduo.
A relação original entre dois-corpos é aquela entre a criança e a mãe ou mãe
substituta, antes que qualquer característica da mãe tenha se diferenciado e
transformado na idéia de um pai. (1958g [1957], pp. 29-30)

A idéia do pai como um objeto parcial é uma conquista que o processo de


amadurecimento possibilitará ao bebê, quando tudo corre bem. No início, o pai não existe, tal
como a mãe também não existe para o bebê. O princípio é constituído por duas pessoas que
são uma e não por três pessoas. Portanto, a conquista do Édipo e o fato de que se dá numa
relação a três é fundamental na teoria do amadurecimento pessoal.

Quanto ao significado que o Édipo adquire no pensamento winnicottiano, por ora é


importante salientar que ele não seria o responsável pela inserção do sujeito na cultura e pelo
temor da castração. Para Winnicott, o complexo de Édipo significa um alívio para as agruras
do relacionamento a três e a possibilidade do crescimento emocional (1988, pp. 55-8).32

32 Este tema será desenvolvido no capítulo V.


131

Capítulo III: Críticas de outros autores à teoria freudiana da


sexualidade a partir da obra de Winnicott

Nos últimos anos a obra de Winnicott tem sido alvo de estudos aprofundados, os quais
têm oferecido uma compreensão mais acurada do pensamento winnicottiano e de sua inserção
no campo da psicanálise. A partir, então, deste referencial winnicottiano, surgem críticas à
psicanálise tradicional, ou seja, com esta nova referência teórica, alguns comentadores têm
tecido críticas à psicanálise tradicional. Estas críticas se fundamentam na constatação de que
Winnicott, de fato, construiu uma psicanálise com referências que não as da psicanálise
tradicional. Para efeito deste estudo que faço, selecionei algumas dessas críticas,
especialmente as que se referem à teoria da sexualidade, de modo a traçar a linha delimitadora
e identificatória entre os elementos que compõem esses aspectos tanto na psicanálise
tradicional quanto na winnicottiana. Neste capítulo, apresentarei e comentarei algumas dessas
críticas.

1) Críticas à Metapsicologia

Atualmente, Winnicott é considerado um autor que modificou o campo da psicanálise,


tanto nos aspectos teóricos, quanto nos clínicos. Uma das inovações apresentadas por ele foi o
abandono da metapsicologia especulativa, em prol de uma observação assentada em conceitos
empíricos oriundos de sua clínica pediátrica e psicanalítica.

No Brasil, vários autores têm se dedicado a apresentar a obra de Winnicott, em geral


apontando também a diferença entre a psicanálise tradicional e a winnicottiana. Dentre eles
pode-se destacar Zeljko Loparic. Loparic aponta que a metapsicologia constitui uma
convenção necessária para Freud e que um exemplo disso pode ser encontrado no conceito de
pulsão (Trieb). Para Loparic, “mesmo não sendo nem precisando ser verdadeiras, as
especulações metapsicológicas são indispensáveis, devido ao seu valor heurístico enquanto
guias para a pesquisa empírica, e enquanto um meio para organizar os resultados arquivados”
(2001, p. 29). No caso da teoria da sexualidade, os conceitos de pulsão e libido constituem os
elementos hipoteticamente responsáveis para explicar o desenvolvimento psicossexual do
sujeito. Como convenções, não se tornam adequadas para uso na clínica, uma vez que não dão
conta de descrever o que ocorre de fato com o sujeito.

A metapsicologia de Freud é um vasto e sofisticado edifício de enunciados


especulativos, segundo os quais existiria uma cena inconsciente na vida mental, habitada por
132

entidades análogas a entidades mentais conscientes, tais como representações,


impulsos e desejos. Os processos mentais que governam essas entidades, embora não
obedeçam às mesmas leis que aqueles que governam os processos mentais conscientes, são
concebidos como resultando de forças psíquicas que agem de acordo com o princípio do
determinismo universal. Dessa forma, Freud transferiu para o domínio do inconsciente as
propriedades gerais tanto empíricas quanto metafísicas dos estados conscientes (Loparic,
2001c, p. 29).

Ao apontar a origem destes elementos especulativos, Loparic revela que toda a


conceituação utilizada tem origem na Filosofia e que Freud não foi o primeiro a fazer uso
deste conceito. Ao analisar o papel da metapsicologia no arcabouço freudiano, Loparic
afirma:

[...] grande parte desses elementos [metapsicológicos], bem conhecidos pela


psicologia empírica de sua época, é uma herança kantiana da subjetividade, a qual,
como bem sabem os filósofos, tinha como base uma concepção dinâmica da natureza,
que incluía as duas forças básicas de atração e de repulsão, e uma certa concepção da
estrutura psíquica. Nessa perspectiva, o dualismo dinâmico de Freud nada mais é que
uma adaptação do dualismo metafísico kantiano, enquanto os elementos principais de
aparelho psíquico correspondem às faculdades anímicas kantianas, só que re-descritas
como “agências” ou “instâncias”, de acordo com os propósitos da pesquisa
psicanalítica. Influenciado por seus estudos médicos, Freud naturalizou os elementos
da teoria da subjetividade da filosofia moderna e tentou inclusive montar
especulativamente uma máquina capaz de produzir todos os efeitos psíquicos que são
observados na clínica ou na vida comum. (2001c, p. 30)

O uso destes conceitos permite a Freud colocar a psicologia no rol das ciências
naturais. O que importa para Freud é encontrar um instrumento equivalente aos conceitos
usados pelas ciências naturalistas. A especulação metapsicológica assume tanta importância
na psicanálise, que, já no final de sua vida, o próprio Freud afirma: “sem especular nem
teorizar – por pouco eu ia dizer “fantasiar” – metapsicologicamente, não daremos um passo
adiante” (1937, p. 3345). Com o uso das especulações metapsicológicas, Freud pôde
preencher as lacunas com as quais se deparava em sua clínica.

Esse recurso de Freud, ou seja, o uso de conceitos metapsicológicos, tem um caráter


de ‘meras convenções’, o que significa que elas não podem ser observadas como um fato que
133

ocorra em caráter irrevogável, elas são pré-supostas. Nesta condição de elemento


auxiliar da atividade clínica, mas sem relação com a vivência concreta, seu uso em termos
clínicos se invalida. Isto é o que leva Loparic a afirmar que “não é, portanto, legítimo usar a
metapsicologia como fundamento para a psicologia clínica, sendo a experiência clínica
propriamente dita a única fundamentação utilizável para esse tipo de conhecimento” (2001c,
p. 29).

Loparic, ao endossar e tomar como referência as críticas de Martin Heidegger ao


pensamento freudiano33, no sentido de uma não aceitação de uma psicanálise fundamentada,
em parte, numa metapsicologia, afirma que a psicanálise winnicottiana se apresenta como
expressão de uma clínica não especulativa.

Os principais pontos desconstrutivos que Heidegger e Winnicott têm em comum são a


recusa da concepção do distúrbio patológico humano, não meramente físico, como
lacuna na consciência, recusa acompanhada da redefinição do conceito de inconsciente
e da rejeição do modo de teorização especulativo. Dessa maneira, abre-se a
perspectiva de uma síntese entre a redescrição winnicottiana da psicanálise como uma
“psicologia dinâmica”, [...] Nesse aspecto construtivo, tanto Heidegger como
Winnicott propõem a substituição do método especulativo pelo descritivo, em dois
níveis, ontológico e ôntico (fatual), de forma que a linguagem descritiva do paradigma
winnicottiano pode, proveitosamente, ser aproximada da linguagem experiencial
inspirada em Ser e Tempo. O paralelo entre a transposição heideggeriana da psicologia
psicanalítica de Freud e os resultados da redescrição winnicottiana da mesma abre
campo para articulações futuras de um novo paradigma para a psicanálise, livre da
tutela da metafísica da subjetividade objetificada. Além de ser filosoficamente mais
genuíno, esse paradigma pós-metafísico, proposto nos escritos do filósofo alemão e do
psicanalista inglês, parece, conforme indicam as pesquisas de Winnicott e de seus
seguidores, ser também mais eficiente do que o paradigma ottocentista de Freud na
resolução de problemas clínicos. ( 2001a, p. 137)

Fulgencio é da mesma opinião que Loparic. Para esse estudioso da obra freudiana, o
uso que Freud faz de fantasias, convenções, ficções, analogias, mitos, metáforas, etc, tem
como objetivo trazer esclarecimentos do que ocorre nas atividades clínicas. Com esse

33 Estas críticas estão em Loparic, 2001a.


134

procedimento, ao ultrapassar a psicologia e criar a metapsicologia, Freud revela


que para ele a psicologia não basta, é necessário criar algo que seja útil. Segundo Fulgencio,

a metapsicologia não é a psicologia. [...] A psicologia não basta, é preciso algo meta,
fornecido pelas especulações que, aplicadas aos dados empíricos, mostram-se úteis
para atingir esse entendimento geral. A metapsicologia é, portanto, o conjunto de
especulações heurísticas aplicadas por Freud aos dados da sua psicologia clínica.
(2001, p. 383)

Fulgencio afirma que, longe de ser fruto de casualidade ou de estilo de escrita, o uso
de especulações tem em Freud um objetivo bem definido: o de constituir um instrumento que
possibilite compreender fenômenos psíquicos. Com esse instrumento, Freud pode organizar
um grande número de dados. Os conceitos metapsicológicos são operatórios. Mas isso tem
uma conseqüência: ironicamente, ao invés de esclarecer mais o que ocorre na clínica, com
esse procedimento Freud se afasta das experiências próprias à clínica. Com esse afastamento,
as questões humanas ficam distorcidas e soterradas. As experiências possíveis ao bebê e ao
ser humano não são totalmente abarcadas pelas especulações metapsicológicas de Freud, as
quais não incluem as experiências que o bebê obtém no contato com sua mãe.

Para Fulgencio, uma nova perspectiva de estudo se abre na medida em que Winnicott
aponta um outro horizonte ao sustentar uma psicanálise sem metapsicologia: “de uma maneira
mais ou menos explícita, ele fez críticas aos conceitos fundamentais da teoria
metapsicológica, seja no que se refere aos fundamentos que constituem a metapsicologia – o
dinâmico e as pulsões, o econômico e a libido, o tópico e as instâncias de um aparelho
psíquico – seja julgando-a como um todo” (2003, p. 166).

Ainda segundo Fulgencio,

a referência a Heidegger e Winnicott indica uma nova perspectiva para pensar a


psicanálise sem as especulações metapsicológicas, o que não significa a sua destruição
ou abandono, ao contrário, trata-se de desenvolvê-la apoiada noutras bases,
afirmando-a como uma ciência não naturalista do homem. Um extenso campo de
pesquisa se abre nessa perspectiva, pois trata-se de perguntar que tipo de ciência seria
essa não edificada sobre o solo da metafísica da natureza, que tipo de mudanças no
método de cura psicanalítico deveriam advir de uma psicanálise reformulada por
princípios fundamentais que recolocam o homem na sua especificidade existencial,
135

como algo diferente de um “objeto como qualquer outro estrangeiro ao


homem”. (2001, p. 527)

Se a metapsicologia freudiana não é mais a sustentação da clínica, obrigatoriamente


temos, na psicanálise winnicottiana, o abandono do termo pulsão. Podemos buscar a
justificativa para o abandono desse arcabouço teórico nas próprias idéias de Freud, quando ele
diz que, na metapsicologia: “estas e outras idéias análogas pertencem a uma superestrutura
especulativa da psicanálise, e cada um de seus fragmentos pode ser sacrificado ou trocado por
outro, sem prejuízo nem sentimento algum, quando se tornam insuficientes” (1924, p. 2776).
Se o próprio Freud admite que um conceito pode ser abandonado quando outro se torna mais
profícuo, o uso da pulsão, na psicanálise winnicottiana deve ser reconsiderado. Vejamos
outras críticas de estudiosos sobre o uso e a legitimidade desse conceito na psicanálise.

a) O conceito de pulsão

Num de seus primeiros estudos sobre a singularidade do pensamento winnicottiano,


Winnicott, uma psicanálise não-edipiana, Loparic aponta que o pensador inglês alterou o
panorama da psicanálise. Loparic apontou que a mãe objeto-pulsional para a qual o bebê se
dirigia é substituída pela mãe-ambiente (1997a, p. 385). Com esta assertiva, Loparic anuncia
que Winnicott abandona o conceito especulativo de pulsão, elemento primordial no
pensamento freudiano. Dois anos mais tarde, com seu texto O conceito de Trieb na
psicanálise e na filosofia, Loparic mostra a origem do uso do conceito trieb por Freud e os
motivos pelos quais ele é adotado como um dos elementos centrais da estrutura especulativa
psicanalítica. No início de seu texto, Loparic faz uma observação que orienta seu estudo:
“para facilitar a comunicação, usarei “pulsão” como tradução portuguesa provisória do termo
‘Trieb’ ”(1999a, p. 97). Esta observação é muito importante tendo em vista o vasto
significado que o termo assume na língua alemã e os problemas gerados com sua tradução em
diferentes países.

Loparic nos conta que o conceito de pulsão foi introduzido na metafísica ocidental no
século XVII por Leibniz. Autores como Kant, Schopenhauer e Nietzsche utilizaram este
conceito em suas obras, no sentido de força (do latim vis e do alemão Kraft). A importância
deste fato consiste em que estes autores são apontados por Freud como os precursores de seu
pensamento, de onde se deduz o significado e a origem do termo. Para Freud, o uso do
136

conceito de pulsão lhe permite explicar o funcionamento psíquico em bases


naturalistas. Além destes autores, Freud também se valeu das idéias de Platão, Empédocles,
Helmholz, Descartes, dentre outros, sempre numa tentativa de encontrar um modelo mais
preciso do funcionamento mental.

Segundo Loparic, embora não se refira claramente a Leibniz, Freud utilizou muito das
idéias deste filósofo em sua teoria.

Em vários sentidos as pulsões freudianas são próximas do conceito do apetite


representante de Leibniz. A pulsão freudiana ou é uma força motora ou uma moção,
um movimento causado por esse tipo de força. [...] Quando se fala de representante
representacional da pulsão e de suas cargas, Freud, no essencial, não faz outra coisa do
que retomar o conceito leibniziano de apetite representante, desenvolvido na tradição
do subjetivismo cartesiano. A sua teoria das pulsões pertence, portanto, à tradição
metafísica ocidental que se iniciou com a teoria cartesiana da substancialidade como
representidade por um sujeito e que se firmou com a tese de Leibniz de que a essência
de cada ente é determinada pelo apetite (força motora) e pela representação
controladora. (1999a, p. 114-5)

Para Loparic, esses modelos naturalista-cientificistas não são os mais adequados para
explicar o modo de ser do ser humano, dado que, numa perspectiva não metafísica, o ser
humano é um acontecimento. Este é o aspecto que aproxima o pensamento winnicottiano de
uma perspectiva não objetivante. Assim, para Loparic, com as idéias de Winnicott “[...] a
psicanálise buscou cada vez mais se distanciar das metáforas mecânicas e dinâmicas
introduzidas por Freud na sua metafísica das pulsões e, mais genericamente, do naturalismo
freudiano” (1999a, p. 133). Esse afastamento se deu porque a vida humana, em seus
primórdios, não pode ser explicada em termos de pulsões. O bebê, ao chegar ao mundo, não
sabe o que é desejo ou pulsão. Ele precisa apenas de um ambiente que assegure que a sua vida
será mantida e que ele continuará existindo. Ele tem necessidades e urgências.

Existem nos bebês e nos seres humanos em geral necessidades (needs) e as urgências
(urges) básicas que não podem, em princípio, ser vistas como decorrências das
exigências instintuais biológicas ou libidinal-pulsionais. As precisões do eu imaturo
ficam “perdidas” se descritas em termos de satisfação de pulsões instintuais
(instinctual drives). O “motivo” inicial do ser humano é a “necessidade pessoal”. É só
137

o tempo e com a ajuda do ambiente que essa se transformam em desejo. À


luz das suas observações dos bebês e da experiência clínica com pacientes psicóticos
muito regredidos, Winnicott constatou que a doutrina freudiana da teoria dos instintos
de vida e de morte e, com esta, o dualismo pulsional não podia continuar a ser usada
como quadro teórico de compreensão e de tratamento das urgências da vida humana
em geral. (1999a, p. 134)

Elsa Oliveira Dias concorda com Loparic quanto à questão de que, na estrutura
freudiana, as pulsões se vinculam à idéia de força, e têm uma função específica, que é a de
vincular os aspectos corpóreos com os do psiquismo:

a difícil e complexa articulação entre corpo e o psiquismo foi resolvida por Freud por
meio do conceito de pulsões, entendidas como representantes psíquicos de forças
físicas, sendo o dualismo das forças pulsionais o que põe em marcha o psiquismo. Pela
própria definição de pulsão, pode-se afirmar que a psicanálise freudiana permanece
atada ao modelo físico do psiquismo, cujo conceito central é o de força. (2003, p. 77)

Isto nos mostra que, na teoria winnicottiana, temos uma mudança no cenário da
psicanálise também no que se refere a uma concepção sobre o existir humano. Se, em
Winnicott, o que prevalece é a tendência à integração e não mais a pulsão, temos então uma
nova compreensão da existência humana, um novo enfoque que é apresentado em moldes
menos determinantes e mecanicistas. Uma visão menos mecanicista e que contempla aspectos
do acaso34, elemento importante no pensamento winnicottiano, confirma que esta forma de
ver o ser humano constitui uma nova referência, uma referência que contempla uma visão de
homem distanciada de uma metafísica das forças. Desta maneira, a questão pulsional é
deslocada do lugar de centralidade que ocupava anteriormente. Se o tema das pulsões não é
mais essencial na teoria de Winnicott, somos convidados a verificar qual é o lugar que agora a
noção de pulsão passa a ocupar. Reconsiderar a aplicação e o uso desse conceito não é uma
tarefa fácil, pois

34 O elemento ‘acaso’ é fundamental no pensamento winnicottiano. Em A liberdade, por exemplo, ele


diz: “Não foi nada além da sorte o que lhes deu a oportunidade de serem saudáveis.” (1984e [1969], p.238)
138

em geral, os psicanalistas que comentam Winnicott, tanto os tradicionais


quanto os de vanguarda, mesmo aqueles que comemoram a originalidade de sua obra e
valorizam a fecundidade de seu pensamento, custam a admitir o caráter não pulsional
afirmado por ele, de vários fenômenos afetivos e da existência em geral. (Dias, 1995,
p. 54)

Para Winnicott, o existir humano está vinculado à idéia de saúde, às conquistas


essenciais e necessárias para que os indivíduos tornem-se pessoas inteiras. Isto explica o fato
de as questões pulsionais serem abandonadas por Winnicott: ele substitui as pulsões
(representação das funções corpóreas) pelo conceito de instinto, que é concreto e não
representável. De acordo com Elsa Oliveira Dias,

na teoria clássica, as pulsões são pressupostos teóricos fundamentais, concebidos a


partir das desordens emocionais das neuroses. Ou seja, referem-se a pessoas inteiras
(whole persons) no sentido de que, tendo alcançado a integração, habitam num mundo
cheio de significados onde usam objetos, deixam-se afetar pelos acontecimentos e
padecem dos inevitáveis conflitos relativos aos vínculos interpessoais. [...] Apenas a
partir da integração num self, que inclui o reconhecimento da existência separada do
não-eu e correlativamente do eu (self), é que a vida pulsional pode acontecer e ser
significada. (1995, p. 53)

Elsa Oliveira Dias discorda da idéia freudiana de que as pulsões conduzem o início e o
desenvolvimento humano. Ela concorda com Winnicott, para quem o processo condutor do
desenvolvimento humano é a tendência à integração proporcionada pelo amadurecimento
pessoal sustentado por um ambiente satisfatório. Isto significa que não é o dualismo pulsional
que conduz o amadurecimento humano. Segundo Elsa Oliveira Dias, “[...] antes do começo,
há uma fase de não-integração em que o bebê não tem eu, nem não-eu; não tem objetos, metas
ou intencionalidade. O contrário, portanto daquilo que define as pulsões [...]” (1995, pp. 53-
4).

Em Winnicott, “no início, antes que cada indivíduo crie o mundo novamente, existe
um simples estado de ser [...]” (1988, p. 135). Este estado pertence ao bebê e não pode ser
apreendido pelo observador. O estado de ser não é instintual, não é sexualizado. É a partir do
estado de ser que a identidade – a qual inclui a identidade sexual a ser definida
posteriormente – será constituída. Essa situação não se funda em suposições metapsicológicas
especulativas, e sim na constatação de qual é a real condição do bebê ao nascer: alguém
139

totalmente à mercê do ambiente que o acolhe quando ele vem ao mundo e nada
sabe do mundo. A idéia de um estado de ser é uma das novidades da psicanálise winnicottiana
e é um conceito de difícil compreensão. Interpretando o pensamento de Winnicott, Elsa
Oliveira Dias diz que “ser é a mais simples de todas as experiências e talvez por isso a mais
difícil de ser concebida na reflexão. Além de ser a mais simples, ela é também a mais
importante de todas as experiências, a base para todas as que lhe são subseqüentes, incluindo
as experiências posteriores de identificação” (2003, p. 219). Note-se que Elsa Oliveira Dias
fala em ‘experiência’ de uma situação que ocorre na relação entre o bebê e sua mãe. O bebê,
ao se encontrar com o seio, torna-se esse seio, ou seja, ele realiza uma experiência de
identificação primária com o objeto-seio. Esse encontro possibilita que o bebê encontre seu si-
mesmo. Winnicott denomina essa experiência de ‘elemento feminino puro’35. Ao mamar, o
bebê é o seio e à mãe cabe apenas permitir isso, sem nenhuma ação, sem nenhuma atitude de
interferência. Aqui ainda não há instintualidade, e, segundo Winnicott, “o princípio básico é o
de que a adaptação ativa às necessidades mais simples (o instinto ainda não tomou posse de
seu lugar central) permite ao indivíduo SER sem precisar tomar conhecimento do ambiente”
(1988. p.130). Esse estado de ser é o que possibilitará a constituição da identidade; além
disso, nessa situação “[...] de o bebê tornar-se (o seio ou mãe), no sentido de que o objeto é o
sujeito. Não consigo ver pulsão instintual nisso” (1989vp, p. 177).

Uma vez que adquire o estado de ser, através do processo de integração, o bebê busca
assegurar sua continuidade de ser. Isso significa que todo seu desenvolvimento deve se dar a
partir de sua própria procura e não por meio de uma intrusão ambiental. (1988, pp. 126-0)
Continuar a ser significa conquistar o crescimento pessoal e a saúde. Desta forma, “o ponto de
partida do crescimento do ser humano não é, portanto, uma constelação de pulsões num
36
aparelho psíquico ainda imaturo” (Loparic, 1999a, p. 44).

Para Loparic, todos estes aspectos revelam que as questões pulsionais não estão no
cerne da natureza humana, a qual é concebida de maneira diferente em Winnicott, em se
comparando com a visão freudiana. Loparic diz que, para Winnicott, a tendência à integração
não é resultado nem de forças, nem da combinação de diferentes tipos de mecanismos
movidos por forças. O ser humano tem urgências, urgência de constituir o seu si-mesmo, em

35 Este tema será discutido com mais detalhes no capítulo IV.

36 Em seu artigo Além do inconsciente: sobre a desconstrução heideggeriana da psicanálise, Loparic


cita Heidegger “O que pressiona é o Dasein. O que pressiona é o próprio ser-no mundo.” (Loparic, 2001a, p.127)
140

chegar ao mundo e em conviver com seres humanos. Em função disso, pulsões e


aparelhos não definem o ser humano.

A vida humana não resulta de uma constelação inicial de pulsões localizadas numa
máquina humana e submetidas ao princípio de causalidade universal (chamado de
princípio de prazer ou de nirvana), mas da urgência primordial de se constituir
(“criar”, diz Winnicott) a si-mesmo e ao mundo como uma unidade e de ir ao encontro
de outros e de coisas acessíveis nesse tipo de abertura. (Loparic,1999a, p. 137)

Segundo Loparic, o ser humano e seu destino pessoal, a partir de Winnicott, fogem das
amarras propugnadas por Freud. Longe de ser um jogo de forças que exigem um processo de
domesticação, a construção do ser humano vincula-se a uma facilitação do ambiente de modo
que uma tendência ao crescimento se concretize.

Para Loparic, o abandono de uma teoria das pulsões seria extremamente benéfico no
campo clínico, pois longe de significar o fim da psicanálise, significa uma evolução
psicanalítica.

A fim de se manter como uma disciplina criativa que era na época de Freud e poder
progredir, a psicanálise terá que se distanciar da herança da metafísica moderna que,
desde Leibniz, transforma todos os entes em autômatos, seja espirituais, vontades
determinadas por representações, seja físicos, determinados pelos inputs químicos,
máquinas ou aparelhos susceptíveis de serem manipulados ou pelos cálculos ou pelos
psicofármacos.

Caso esse distanciamento ocorra, será avistado e possivelmente desfeito o lugar


mesmo de que se originam as pulsões: a concepção moderna da entitude do ente como
apetite que representa. Todo o resto da problemática freudiana das pulsões também
ficará datado. O destino do homem não poderá mais ser pensado como produto gerado
no caminho de certas forças motoras.

Feita a desconstrução, abrem-se perspectivas de uma psicanálise não mais centrada


nos destinos das pulsões, mas nos destinos pessoais dos seres humanos. A
compreensão da questão humana fica remetida ao domínio das urgências constitutivas
da identidade pessoal do homem e não mais à relação pulsional sujeito-objeto,
dilacerada entre prazer e desprazer. (1999a, pp. 153-4)
141

Com Winnicott, a clínica ganha um enfoque mais adequado à problemática


humana, mais adequada ao ser humano entregue à circunstancialidade da vida.

Se Winnicott rejeitou a teoria das pulsões, conseqüentemente tem que se acrescentar


que o conceito de libido também não pode ser aceito por ele. Este conceito não pode ser
alocado na psicanálise winnicottiana por ter caráter eminentemente especulativo.

Ao lançar mão do conceito de uma força que impulsiona o ser humano, Freud encontra
uma ferramenta eficaz: ela lhe permite conceber que o ser humano é dotado de um sistema
energético, submetido às mesmas leis que regem o funcionamento de quaisquer outros
sistemas movidos a energia, mesmo que este sistema não opere em termos humanos. Assim,
na teoria psicanalítica, a energia se desenvolve, é bloqueada ou se transforma de alguma
forma, ou seja, ela é responsável pelo movimento do sujeito. Para Freud, a libido é a
representante psíquica das pulsões, portanto ela tem um caráter não experienciável, da ordem
do representacional. Esse caráter especulativo da libido a distancia do referencial
winnicottiano, pois para Winnicott, o que prevalece é a experiência real que se dá num corpo
vivo.

Segundo Fulgencio,

quando Freud se refere aos fenômenos observáveis relativos à vida sexual (seja no seu
sentido estrito, seja no expandido, mais adequado à psicanálise), ele está apoiado em
dados passíveis de comprovação empírica. Mas, ao dizer libido, Freud associa esse
mesmo conjunto de fatos empíricos a uma suposta energia psíquica: a energia das
pulsões sexuais. (2002, p. 102)

O próprio Freud reconheceu que a pulsão se refere a uma idéia abstrata, necessária,
segundo ele, a uma compreensão do funcionamento psíquico, mesmo que corresponda a um
conceito metapsicológico e que tenha um caráter de obscuridade. Quando introduz o conceito
de pulsão, Freud necessita de um elemento que possa quantificá-la, mesmo que este elemento
não seja passível de mensuração. Freud resolve essa questão elegendo o conceito de libido
porque ela designa o aspecto dinâmico da sexualidade. Assim, na visão freudiana, como
forças psíquicas, as pulsões movimentam o organismo e o levam a descarregar o montante de
excitação que o pressiona. Dessa maneira, as pulsões e a libido têm um caráter de fluidez, de
mobilidade.
142

Em 1933, quando afirma que a teoria das pulsões (conseqüentemente a


teoria da libido também) constitui sua mitologia, Freud já destitui de qualquer referência
empírica esta teoria. Freud sabe que está se movimentando no campo das pressuposições, mas
isso não o incomoda. O que interessa a Freud não é a falta de evidência empírica no dualismo
pulsional, ele está interessado em encontrar explicações para as situações de investimento
libidinal.

Fulgencio acredita que Freud sabe que está atuando no campo da especulação
científica, e que, ao propor o uso de construções auxiliares, Freud visa a resolução de certos
problemas empíricos. A especulação científica “tem um valor heurístico, ela é útil para
explicar aquilo que a observação (descrição) dos fatos não pode oferecer” (2002, p. 107).
Fulgencio acrescenta: “ [...] a teoria do desenvolvimento da libido corresponde à parte
especulativa da teoria do desenvolvimento da sexualidade que [...] explica uma série de
comportamentos observáveis [...]” (2002, p. 109).

Assim, enquanto que em Freud há uma teoria do desenvolvimento emocional que


privilegia o deslocamento de uma suposta força que movimenta todo o psiquismo, força que
se deslocam nas diferentes regiões corpóreas, em Winnicott não há lugar para um conceito à
parte de uma corporeidade que precisa ser conquistada através de elaborações psico-
somáticas, e não apenas mentais. O modelo freudiano sustenta-se em um protótipo energético,
ao passo que o de Winnicott sustenta-se em um modelo de comunicação efetiva que parte de
uma criatividade originária.

Elsa Oliveira Dias, comentando a obra de Winnicott, aponta que o modelo libidinal
para descrever o desenvolvimento humano descrito por Freud não se encontra na psicanálise
winnicottiana, e sustenta que

[...] o impulso para viver, manter-se vivo e amadurecer não é descrito em termos de
forças: não é a libido que passa por diferentes fases ou fixações objetais; é a natureza
humana que se temporaliza, em virtude de sua tendência inata ao crescimento,
gerando, gradualmente, um si-mesmo integrado, internamente e com o ambiente.
(2003, p. 97)

A não aceitação, por Winnicott, de uma psicanálise feita em termos especulativos da


metapsicologia pode ser encontrada na substituição do termo especulativo libido pelo termo
instinto, os drives puramente biológicos, os quais têm um caráter empírico. Ao optar pelo
143

termo instinto para descrever as forças biológicas poderosas que vêm e voltam na
vida do bebê ou da criança, e que exigem ação” (Winnicott, 1988, p. 39), Winnicott revela
também como concebe a natureza humana: o ser humano é um ser vivo, concreto, tomado por
forças físicas de fato, e não por forças previamente supostas. Winnicott, com o termo instinto,
mostra-nos o modo pelo qual para ele a instintualidade está presente nos relacionamentos,
juntamente com a elaboração imaginativa dos órgãos corporais. Ou seja, a elaboração
imaginativa dos instintos possibilita que os aspectos meramente biológicos sejam
humanizados. Aqui, não mais estamos no campo representacional, das operações mentais,
estamos no campo da integração psico-somática. Dessa forma, Winnicott escapa dos
conceitos metapsicológicos que remetem o ser humano a um funcionamento meramente
automatizado, um funcionamento impulsionado por forças estrangeiras ao homem. Em
Winnicott, o instinto está presente no indivíduo, ela age no organismo dele. Este campo
instintual refere-se tanto às excitações locais quanto às gerais e mobilizam o individuo para a
ação. Enquanto que na psicanálise tradicional a libido é uma convenção, na teoria
winnicottiana os instintos não são idéias abstratas, não constituem um limite entre o psíquico
e o somático, não são representantes. A ação exigida pelos instintos deverá ser compatível
com o grau de amadurecimento do indivíduo. Segundo Elsa Oliveira Dias,

por isso, ao referir-se à instintualidade na fase mais primitiva, Winnicott não fala
propriamente em instintos, mas em tensões ou excitações instintuais. Ele reserva o
termo “instinto”, ou “vida instintual”, para quando a instintualidade for integrada e
significada pelo indivíduo como algo que lhe concerne, vivida como uma experiência
pessoal, com todas as suas conseqüências; esta conquista só se dará mais tarde, no
estágio do concernimento. (2003, p. 176) 37

Em Freud não encontramos a idéia apontada acima por Elsa Oliveira Dias. Para ele, a
pulsão permanece com as mesmas características e agem sobre o indivíduo da mesma forma,
em qualquer fase de sua vida. Outra diferença no que se refere ao conceito de pulsão está no
fato de que os instintos vão e voltam, “não constituem a vida do bebê” (Dias 2003, p. 175). Os
instintos exigem ação e clímax. A grande diferença está no fato de que ambos, Freud e
Winnicott, falam de coisas totalmente diferentes: em Winnicott estamos no campo dos
instintos e não no campo das pulsões.

37 Este aspecto está intimamente relacionado com a sexualidade e será desenvolvido no capítulo IV.
144

Para Loparic, Winnicott não concorda com a posição freudiana de que o


deslocamento da libido é responsável pela identidade sexual. Ele aponta que em Winnicott o
elemento não tem este caráter especulativo, e que a elaboração imaginativa destes elementos
corporais constituem o aspecto diferencial em relação à teoria freudiana. Segundo Loparic,

a sexualidade, em particular, resulta de uma “elaboração imaginativa” das “funções


corporais” específicas que levam a sua satisfação. É só em relação a esse momento
acional que o prazer começa a desempenhar um papel importante quando o instinto é
satisfeito pela ação apropriada, então há “recompensa do prazer” e, fato não menos
importante, o “alívio temporário do instinto”. (1999a, p. 139)

Nessa questão corporal também se encontra outra grande crítica à psicanálise


tradicional: para Freud, o corpo é representável e as questões da sexualidade ocorrerão
também pela via da representação mental. Em Winnicott, o corpo tem que ser integrado para
que os órgãos sexuais e a sexualidade também o sejam. Para Winnicott, a natureza humana
“não é uma questão de corpo e mente – e sim uma questão de psique e soma inter-
relacionados, que em seu ponto culminante apresentam a mente como ornamento” (1988, p.
26). Corpo, mente, soma, sensações, excitações, um corpo vivo cujas funções, se
organicamente ativas, serão elaborados imaginativamente pelo indivíduo que amadurece, de
modo que ele possa se apropriar delas. Enfim, como diz Loparic,

a tentativa winnicottiana de humanização do corpo, [...] vai de encontro à tendência


generalizada na psicanálise de negligenciar, e mesmo expurgar o corpo. Freud não
estava preocupado com a existência psicossomática, mas com as lacunas na
consciência, isto é, no psiquismo. A fim de poder tapar essas lacunas, ele inventou um
inconsciente também psíquico e o tratou como se fosse consciente, embora
obedecendo a leis em parte próprias (as dos processos primários). O corpo entrava no
máximo como fonte física das pulsões, que eram vistas como seus representantes
psíquicos. (2000, p. 393)

Em suma, para Winnicott, não são as pulsões e seus representantes que conduzem o
ser humano, mas as experiências pessoais que o levarão à constituição de seu si-mesmo
firmemente assentado num corpo pulsante, vivo. Sem a metapsicologia, “abrem-se
145

perspectivas de uma psicanálise não mais centrada nos destinos das pulsões, mas
nos destinos pessoais dos seres humanos” (1999a, p. 154).

b) O conceito de aparelho psíquico

O conceito de aparelho psíquico não é encontrado na obra de Winnicott. O uso de um


termo como esse não se aplica ao ser humano, uma vez que a maneira de Winnicott conceber
a natureza humana se distancia de metáforas mais adequadas ao mundo das máquinas. Ao se
referir à linguagem utilizada por Winnicott, Elsa Oliveira Dias diz:

Winnicott sabe que seus presumíveis leitores são, na sua grande maioria, os
psicanalistas, e eles estão habituados a uma linguagem destinada à descrição de
distúrbios pulsionais. Sobretudo no que se refere à metapsicologia, são afeitos a uma
linguagem concernente não a uma “pessoa”, mas a um “aparelho psíquico”, composto
de forças, intensidades de forças e mecanismos mentais.” (1998, p. 100)

É possível entender melhor o porquê de um termo como aparelho não caber na


psicanálise winnicottiana quando localizamos historicamente o momento em que homem e
máquina passaram a ter uma certa equivalência. Loparic nos conta que o conceito de
‘aparelho’ remonta à Grécia antiga, mas sedimentou-se na Idade Média, quando a idéia de
maquinismo foi introduzida para representar o corpo e a mente. Se na Grécia a pergunta era ‘o
que é e como existe o homem’ agora a pergunta é ‘o que o homem pode fazer’. A pergunta foi
respondida pelo místico catalão Lúlio, do século XIII que afirmou que há no homem um
ingenium mental capaz de resolver todos os problemas da teologia e filosofia. Essa idéia foi
retomada por Descartes que apresentou o homem como uma máquina mental e corpórea. A
essa idéia, Leibniz acrescentou a noção de vis ou força mecânica. Com Kant, surgiu a teoria
que preconiza a identidade entre as condições de possibilidade de experiência e as condições
de possibilidade dos objetos da experiência deles mesmos. Com Nietzsche, a realidade é vista
como forças que buscam o controle como vontade de poder. Carnot e Meyer, na área da
psicodinâmica, incluíram as fontes de energia térmica aos mecanismos de controle e de
realização de trabalho (1997b, pp. 100-101). Segundo Loparic, “é nesse quadro que convém
ler os textos de Freud sobre o aparelho psíquico” (1997b, pp. 100-1). Isso conduz a
psicanálise tradicional no interior da teoria da subjetividade, de herança metafísica, que
146

concebe o homem e o mundo de uma forma mecanicista. A mente é concebida


como “uma substância que pode calcular porque pode representar” (Loparic, 1997b, p. 102).

De acordo com Loparic, no capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, Freud apresenta
o aparelho psíquico concebido como uma teoria do como se, na qual a mente é vista como se
fosse uma máquina. “Não se pergunta o que é o sujeito, mas o que deveria ser para que possa
realizar esta ou aquela performance” (1997b, p. 104).

Para Loparic, precisamos recorrer a Heidegger para afastar o homem de uma


concepção metafísica, tal como a situada pela psicanálise tradicional. Segundo Loparic,

trabalhada heideggerianamente, ela [a questão sobre o homem] nos leva a afirmar que
o homem não é nem a mente, nem o corpo, nem uma união qualquer de mente e corpo,
nem mesmo um processo natural. O homem não é coisa alguma, ele apenas acontece.
Em vez de pesquisar a estrutura da mente, cabe indagar sobre a estrutura da
acontecência do existir humano, para descobrir que essa não é outra do que a estrutura
desse acontecer. Em Heidegger, o homem não é uma máquina a produzir
performances, ele é o próprio tempo, o “tempo-ser” (Zeit-Sein). (1997b, p. 111)

Uma formulação clínica e teórica que possa ser uma alternativa à psicanálise
tradicional é a que encontramos em Winnicott, especialmente na forma como ele concebe o
ser humano. De fato, não se encontra em Winnicott termos da metapsicologia tais como
‘máquina’, ‘aparelho’, etc, quando ele se refere ao ser humano. O termos encontrados são
‘indivíduo’, ‘ser humano’, ‘pessoa’, mesmo a palavra ‘sujeito’ raramente é utilizada e em
geral, quando isso ocorre, ela é contextualizada no esquema da psicanálise tradicional. Para
Winnicott, o ser humano não é dividido em instâncias, tal como é concebido na psicanálise
tradicional. Termos como id, ego e superego, que correspondem a figurações espaciais de um
aparelho que existe ficticiamente, adquirem outro significado na psicanálise winnicottiana. A
pessoa humana não se equivale a esses termos, ela não pode ser vista como um caldeirão de
energia que transita em seu organismo.

Em seu texto O “animal humano”, Loparic resgata o conceito de animalidade que, na


obra winnicottiana, tenta “ultrapassar o dualismo cartesiano, reavaliando o sentido da
‘encarnação’ do ser humano e recuperando um conceito pré-mecaniscista da natureza
humana.” (2000, p. 363) Loparic nos mostra que Winnicott, ao tentar unificar um estudo
sobre a natureza humana, oferece um modo de teorização que não aceita uma mecanização e
esfacelamento do ser humano. Este modo de teorizar de Winnicott integra o ser humano e o
reconduz à sua condição única, que é a de poder constituir sua humanidade com a ajuda de
147

outro ser humano. A animalidade do ser humano será humanizada por meio de um
ambiente humano. Corpo e mente se integram e a psique tem a tarefa de elaborar um corpo
vivo e transformá-lo em um ser humano saudável, plenamente integrado em si próprio, capaz
de encontrar seu lugar no mundo e de construir sua existência de forma pessoal.

Se na psicanálise tradicional o ser humano é uma falante, na psicanálise winnicottiana


o enfoque é outro:

a obra de Winnicott oferece uma clara resistência tanto à redução do homem a um


dispositivo representante ou falante, tal como preconizado pelo mentalismo e pelo
lungüisticismo da psicanálise tradicional, quanto a um mecanismo físico-químico,
como quer o fisicalismo da psiquiatria médica. Não sendo o homem nem um
“aparelho psíquico” nem um “aparelho fisiológico”, mas uma pessoa, a etiologia da
doença humana não precisa ser atribuída a uma fantasia fora do controle ou a um
corpo desembestado, nem a saúde e a cura a mecanismos recondicionáveis ou
recondicionados. Com Winnicott surge uma imagem do homem não mais baseada no
dualismo cartesiano de mente e corpo – dualismo inteligível e por isso, fonte
permanente de tentativas reducionistas, quer de cunho idealista, quer materialista, em
busca de um monismo improvável - , mas na idéia de uma “existência psico-
somática”, existência hifenizada, o hífen sendo constituído pela e na existência ela
própria. (Loparic, 2000, p. 394)

Esta forma específica de focar o se humano vai de encontro ao pensamento freudiano,


pois o fato de Freud estar compromissado com uma tradição filosófica explica sua forma de
conceber o ser humano: de acordo com Elsa Oliveira Dias, por ser um “[...] tributário da
tradição filosófica alemã do século XIX e do desenvolvimento da neurofisiologia, Freud foi
levado a construir um modelo de funcionamento mental nos moldes de uma máquina” (2003,
p. 78). Em Winnicott, o homem não é máquina e nem seu psiquismo se equivale a um
mecanismo que é próprio do mundo das coisas e objetos e não do domínio de uma natureza
eminentemente humana.

Loparic também critica a idéia de aparelho psíquico e afirma que

[...] a concepção do aparelho psíquico não pode ser tomada como genuína, visto que o
homem não é nem uma máquina, nem um psiquismo, mas um ser-no-mundo,
caracterizado por uma temporalidade originária extática, não redutível ao espaço
148

externo matemático-fisico, e por uma acontecência, não submetida ao


princípio de causalidade. (2001 a, p. 124)

Para Loparic38, quando se refere ao ser humano com formulações metapsicológicas


que o compara a um aparelho dividido em instâncias,

[...] Freud coisifica a subjetividade humana, o que significa que ele aceita, por um
lado, o pressuposto da psicologia do seu tempo, herdado da teoria metafísica da
subjetividade, de que o ser humano realiza atos de representação afetivamente
carregados e, por outro, a suposição, herdada da teoria metafísica da natureza, de que
o homem é uma entidade situada no espaço e no tempo objetivos, externos, em suma,
uma máquina movida a forças que obedecem ao principio de causalidade. (2001a, p.
101)

Essa máquina é movida por uma pulsão, ou seja, uma carga energética que se encontra
na origem da atividade motora do organismo humano. Isso significa que “a ontologia
freudiana inclui um certo número de suposições ou, mais precisamente, de especulações,
sobre forças e energias psíquicas e sobre a constituição inata do aparelho mental” (2001c, p.
27). O sujeito humano é comparado a um sistema de energia e seu funcionamento guarda uma
certa semelhança com o de um sistema hidráulico, em que a energia transita, flui, desvia-se ou
é represada, ou seja, ele possui um quantum limitado de energia disponível que deverá ser
liberada de forma equilibrada. De certo modo, o comportamento humano é redutível a formas
comuns de energia e tem a busca do prazer como meta primordial. Isso significa que ele tem
como objetivo uma redução de tensão ou a descarga de energia.

Para Winnicott, a natureza humana é quase tudo o que o ser humano possui; além
disso, este ser humano é uma amostra temporal da natureza humana (Winnicott,1988, p.11).
Essa natureza somente se consumará se houver um ambiente que facilite seu desdobramento,
ou seja, sua efetivação não é automática. Mesmo ao nascer, ele ainda não é uma pessoa total;
somente se tudo transcorrer bem durante seu crescimento, ele se tornará um ser humano
completo. Portanto, aqui não há nem determinismo nem causalidade, aqui temos relações
humanas sujeitas aos cuidados e ao acaso. Em especial, cuidados que venham de uma pessoa
viva. Para Winnicott, “[...] a mãe é necessária como pessoa viva. O seu bebê deve estar apto a

38 Em Loparic 2001a, Loparic aborda as objeções de Heidegger à metapsicologia de Freud.


149

sentir o calor de sua pele e respiração, a provar e a ver. Isso é vitalmente


importante. Deve existir completo acesso ao corpo vivo da mãe” (1947b, p.89). Essas
situações não são próprias de máquinas ou aparelhos e não podem ser apreendidas em
enunciados metapsicológicos, representacionais. Cuidados corpóreos são elaborados
imaginativamente por um corpo que tem vivacidade, que responde aos cuidados que recebe,
cuidados que não são representáveis, são da ordem da concretude.

O ser humano freudiano, visto como aparelho biofisiológico da primeira tópica e o ser
humano representado, na segunda tópica, como aparelho psicológico, em Winnicott cede
lugar ao ser humano ‘humanizado’, é visto como ‘pessoa’, como um ‘ser frágil’. Uma vez
assentado em si mesmo, numa existência psico-somática, este ser humano pode se tornar a
pessoa descrita por Loparic:

o homem winnicottiano, poder-se-ia dizer, existe como uma múltipla hifenização:


[psique-soma] entre o passado, o presente e o futuro, entre as partes do corpo, entre o
indivíduo e o ambiente, entre a vida e a morte, entre o ser e o não. O homem-hifen,
homem-ponte, homem-relação, interpelado por essas diferenças e, por isso,
responsável por elas, tendo a sua unidade na articulação dos diferentes “sins” e “nãos”
de que é feito. (2000, pp.394-5)

Com Winnicott, saímos do domínio das máquinas e dos aparelhos e passamos para o
campo da humanidade. Humanidade frágil, sujeita à facticidade, mas nem por isso menos
grandiosa. Nem todo o aparato da modernidade é maior que essa condição humana.

c) Crítica ao conceito de princípio do prazer

Sabemos que, na psicanálise tradicional, esse conceito é fundamental, pois


preconiza que é o elemento que conduz o funcionamento do psiquismo humano,
impulsionando o sujeito a buscar o prazer. O próprio Winnicott rejeitou este conceito e o
substituiu em sua teoria pelo conceito de necessidade. O ser humano, no início de sua vida,
não busca o prazer e nem é impulsionado por forças.

Para Winnicott, o ser humano não pode ser visto como um fantoche à mercê de forças
que o levem a buscar o prazer, considerando o princípio de realidade. O bebê deverá ter
150

muitas experiências até descobrir o que significa prazer. A busca mais importante
para o ser humano é a de poder realizar-se, dar um sentido à sua existência. Segundo a
interpretação de Loparic,

os problemas centrais da vida humana não dizem respeito a objetos de desejo, em


particular, à mãe, e sim a formas da unidade, à unidade também com a mãe e não à
satisfação. Em oposição a Freud, Winnicott vai insistir em dizer que o ser humano não
busca obter prazer e evitar desprazer, mas procura tornar-se alguém capaz de viver
uma vida que valha a pena. (1999d, p. 22)

Em 2004, em outro artigo, sobre este mesmo assunto, Loparic diz que, no início da
vida, a necessidade maior do bebê não é procurar o prazer.

Ao rejeitar a teoria freudiana das pulsões, Winnicott abandona, ao mesmo tempo, o


princípio do prazer como o princípio básico que determina as urgências (urges) da
vida humana. Winnicott não ignora que os indivíduos também buscam prazer, mas
nega que isso ocorre em virtude de um princípio do aparelho psíquico, no sentido de
Freud. Nas fases iniciais, o bebê humano relaciona-se com outras pessoas seja por
precisar da presença e da confiabilidade delas, seja por necessitar que sejam satisfeitas
as suas tensões instintuais e não por buscar o prazer. No presente contexto,
“satisfazer” significa em primeiro lugar, aplacar ou acalmar, o termo “acalmar” sendo
tomado no sentido descritivo e não no sentido metapsicológico de diminuição de
pressão pulsional, e o prazer entendido como recompensa decorrente da satisfação
obtida no paroxismo da tensão. (Loparic, 2004, pp 03-4)

Loparic explicita, com essa observação, que a necessidade maior do ser humano está
em assegurar a sua existência no início de sua vida. A necessidade maior é a de poder confiar
e não de busca de prazer.

Elsa Oliveira Dias aponta que “as necessidades do bebê não são ditadas pelo princípio
do prazer, mas pela necessidade de ser, que inclui buscar e criar um objeto” (Dias, 2003, p.
180) A capacidade de buscar e criar um objeto é o que permitirá a concretude das relações
com seres humanos.
151

II) Crítica à idéia de relação objetal

Um dos pilares da psicanálise tradicional é o conceito de ‘relação de objeto’. 39 Postula


que o bebê, no início da vida, já está em condições de se relacionar com objetos parciais, os
quais posteriormente se tornam objetos totais. Esse conceito pressupõe que o sujeito que se
relaciona com outro sujeito já está constituído, é uma pessoa inteira, que sabe de sua
existência e do mundo no qual está inserida. Pressupõe, também, que ele esteja em condições
de estabelecer vínculos com pessoas também já constituídas, que já seja capaz de se inter-
relacionar. O conceito relação objetal traz em si a idéia da psicanálise tradicional de que a
pulsão busca um objeto para atingir uma satisfação através de diferentes modalidades de
relação do deslocamento da libido pelas zonas erógenas. Essa idéia não tem equivalente na
psicanálise winnicottiana.

Conforme foi demonstrado no item 3 do capítulo I, no início de sua vida o bebê não
tem condições de estabelecer contato com um objeto porque está em um mundo subjetivo. Se
tudo correr bem, ele chegará à realidade externa e com ela se relacionará como tal. Portanto,
como observa Elsa Oliveira Dias,

[...] a relação primária com a mãe-ambiente não é, de início, objetal. O bebê ainda não
é um eu unitário, que já tenha um mundo interno, no interior do qual estaria ocorrendo
o conflito entre objetos bons e maus; ele tampouco sabe da existência de um mundo
externo ou de objetos externos. Bem no início, a “relação” com a mãe não é nem
mesmo dual, tendo de ser descrita como uma unidade bebê-mãe, de dois-em-um. É no
interior dessa relação sui generis, cuja realidade é subjetiva, que se dá o início do
contato com a realidade externa. Não sendo nem mesmo dual, a relação é muito menos
triangular. (2003, p. 303)

39 Em Melanie Klein se encontra o auge da idéia de relação de objeto. Quando aborda as fases
primitivas do desenvolvimento da criança, Klein tem como ponto de partida a idéia de que as relações de objeto,
que são constitucionais, estão presentes desde o início da vida da criança. Desde suas fases mais primitivas o
bebê já tem condição de fazer uma distinção entre os objetos, classificando-os como bons e maus. As relações se
dão em termos de projeção do que é mau e introjeção do que é bom. Mecanismos mentais são os responsáveis
pela instauração dessa capacidade de atribuição de juízo. Se o bebê já é capaz de projetar e introjetar, isso
significa que ele já sabe da existência de uma espacialidade que pode ser apreendida como um dentro e um fora,
ou seja, desde o início de sua vida, o bebê já está integrado espacialmente no mundo. Significa que ele é uma
pessoa inteira, uma pessoa capaz de atribuir sentido ao que encontra no mundo.
152

Esta relação do bebê com a mãe é pautada na confiança que o bebê tem
com sua mãe e da capacidade que ela tem de comunicar-se com ele, em compreender sua
necessidade de criar o mundo. Esta relação também não é erótica, porque o bebê não é regido
pelo princípio do prazer, mas pela necessidade de sentir-se real.

Nesse mundo subjetivo, mundo que é assegurado pela mãe-ambiente, o que prevalece
é a relação subjetiva, não a relação entre pessoas totais. Nem é mesmo possível a relação com
um objeto parcial, apenas a relação com um objeto subjetivo. Nesta relação subjetiva, a mãe
não pode ser ‘objeto’ para o bebê, embora ela esteja presente. Esta idéia é esclarecida por Elsa
Oliveira Dias:

a mãe é, portanto, o primeiro “objeto” do bebê, com a seguinte ressalva: no presente


contexto, o termo “objeto”, assim como a expressão “relação objetal”, tem uma
condição toda peculiar, não deve ser entendido no sentido em que é usado tanto pela
psicanálise tradicional quanto pela compreensão comum, que supõem haver, desde o
início, a percepção de algo externo ao bebê, capacidade que, segundo Winnicott, não
pode ser admitida nesse momento. (2003, p. 166)

O tipo de contato que o bebê estabelece com a mãe não se caracteriza como uma
relação objetal, devido à imaturidade do bebê, pois ele ainda não chegou na realidade externa.

Para se relacionar com os objetos, é necessário que eles estejam no mundo externo,
fora do mundo subjetivo. Isso nos leva à necessidade de considerar que para o bebê há
diferentes tipos de realidade. Se, no início de sua vida, o bebê está vivendo no mundo
subjetivo possibilitado por sua mãe, a entrada no mundo objetivo não é automática. O bebê
precisará criar o real para nele se instalar. Aqui temos mais uma objeção à psicanálise
tradicional, para a qual a realidade já é dada ao sujeito. Para a psicanálise freudiana, homem e
mundo já estão no mundo objetivo, “o sentido da realidade do real é um só, o de presença
constante representável” (Loparic 1995, p. 51). A representação, por meio do pensamento e
percepção, garante a inserção no princípio da realidade. Para a psicanálise winnicottiana, o
bebê tem que construir, juntamente com sua mãe-ambiente, a trilha que o levará à realidade,
ou seja, a ponte para o real tem que ser construída. Uma mãe que atenda as necessidades do
bebê estabelece uma rotina ao longo do tempo que permite ao bebê acumular experiências e
memórias que constituirão o acesso à realidade. Os vários sentidos da realidade serão
construídos no decorrer do processo de amadurecimento (Loparic 1995, p. 55). Mais
importante que a satisfação do instinto é a possibilidade de ser introduzido na mundo com a
153

proteção da mãe que filtra a realidade de forma a que o bebê possa suportá-la. O
único caminho para essa construção é através da realidade do mundo subjetivo.

Uma das dificuldades em aceitar as relações de objeto tal como Freud as apregoa é
apontada por Loparic, para quem as relações de objeto “são ou dinâmico-energéticas (as
biológicas e as sexuais) ou mentais. As biológicas são primárias. Isso significa que o
funcionamento do aparelho corpóreo determina todos os outros de relacionamento com o
objeto, a natureza e a escolha dos objetos, as metas e a evolução do relacionamento” (1997 a,
p. 377). Em Winnicott, as relações humanas ocorrem entre pessoas vivas, entre pessoas que
estão sujeitas ao acaso, à fragilidade da vida, às dificuldades próprias do existir. Essas
relações não se dão em termos de um quantum de energia, nem em termos de um jogo de
forças que precisam ser domesticadas. Elas se fundamentam na necessidade do indivíduo de
constituir o seu si-mesmo de forma a poder se realizar como ser humano, construir sua
existência.

O estabelecimento, por uma pessoa, da capacidade de se relacionar passa pela inserção


e saída de um mundo subjetivo, sentir-se vivo e real, descobrir o mundo, os outros que estão
no mundo. Significa depender de alguém que possa sustentá-lo enquanto se descobre tudo
isso, significa descobrir e dar sentido à temporalidade para poder conduzir o próprio fio de
sua história por meio do passado, do presente e ansiar por um futuro. Passa também pela
necessidade de habitar o próprio corpo, configurar-se no espaço do mundo objetivo, envolver-
se com as pessoas e objetos que estão na realidade e saber que, como tem um lugar no mundo
e está nesse mundo, pode contribuir para o crescimento do mundo e da humanidade.

Loparic aponta que embora Winnicott use expressões como ‘relação de objeto’, ele
terminou por substituí-las por pessoa ou relação pessoal. Para Loparic, o termo objeto é

[...] perigosamente ambíguo, pois, embora designe, na psicanálise, primariamente


seres humanos, ele também é comumente empregado para falar de objetos não-
humanos. Essa ambigüidade reforça a tendência para a objetificação, fortemente
presente tanto nas relações inter-humanas como na teorização sobre os seres humanos,
embora inaceitável tanto do ponto de vista teórico (filosófico) quanto moral . Na
psicanálise, a tendência para a objetificação gerou impasses teóricos insanáveis, que
inviabilizaram epistemologicamente o modo de teorização adotado por Freud, isto é,
tanto a metapsicologia freudiana, como também, em certa medida, a teoria clínica
freudiana, fato que não escapou a Winnicott, que soube, conforme disse
anteriormente, extrair daí as conseqüências necessárias. A estes somam-se os impasses
154

técnicos, aqueles que impedem, para muitos psicanalistas ortodoxos,


aceitar e valorizar positivamente “a contribuição pessoa” dos pacientes na relação
clínica definida por “condições especiais e controladas” – esse caráter impessoal da
clínica tradicional também foi objeto de constantes críticas de Winnicott (1988a, p.
61). Por isso, quando se discute a psicanálise em geral e, em particular, ao se analisar a
obra de Winnicott, creio ser oportuno evitar ou mesmo deixar de falar em relações de
objeto nos contextos em que se está dizendo algo sobre relacionamentos entre pessoas
ou sobre as relações a coisas, tais como coisas de uso cotidiano ou obras de arte, que
não são meros ‘objetos objetivamente percebidos’.” (2004, pp 06-7)

Em suma, Winnicott nos remete ao óbvio que no correr do tempo nos esquecemos:
pessoas não são nem coisas e nem objetos.

III) Crítica à idéia de sexualidade infantil como um fenômeno normal

Para Freud, desde os primeiros anos de vida a criança já tem a possibilidade de


envolver-se com outros sujeitos de forma sexualizada, apresentando inclusive as pulsões de
escopofilia, exibicionismo e crueldade, que se manifestam independentemente das atividades
sexuais erógenas (1905, p. 174).

Assim, um dos pilares da psicanálise tradicional, ou seja, a descoberta de que há uma


sexualidade infantil, é um dos conceitos mantidos por Freud durante toda a sua vida.
Precisamos verificar como essa temática pode ser compreendida pela psicanálise
winnicottiana. Winnicott concedia grande valor às idéias freudianas. Nos aspectos referentes à
idéia da sexualidade infantil ele sustentou que “[...] foi importante Freud ter ido até o fim na
busca das origens da sexualidade genital madura ou adulta, chegando até a sexualidade genital
infantil e mostrando as raízes pré-genitais da genitalidade infantil” (1988, p. 58). Porém, ao
observar que o conceito utilizado por Freud não se sustentava empiricamente, ele não se
furtou em recusá-las. Winnicott, então, aponta que o conceito de ‘sexualidade infantil’ não
pode ser aplicado ao início da vida do bebê. Qual seria então o conceito de ‘sexualidade
infantil’ que Winnicott aceita, se ele rejeitou a aplicação do complexo de Édipo às fases
primitivas? O próprio Winnicott responde: as “[...] experiências instintivas pré-genitais
constituem a sexualidade infantil” (1988, p. 58). Portanto, é à instintualidade40 que o conceito

40 A teoria winnicottiana da instintualidade será desenvolvida no capítulo IV.


155

de “sexualidade infantil’ deve ser remetido e não mais ao complexo de Édipo,


tendo em vista que este surge na vida da criança a partir dos três anos de idade.

Portanto, até certo ponto, podemos admitir que a sexualidade seja um fenômeno
presente na vida da criança. Winnicott também concordaria com a idéia de que a sexualidade
pode ser observada empiricamente na medida em que a criança cresce. Porém, essa
sexualidade existirá de fato e será considerada normal, e aqui encontramos a divergência com
Freud, se a criança tiver um desenvolvimento maturacional adequado desde os primórdios de
sua vida, “presumindo-se um desenvolvimento inicial saudável” (1988, p. 37). O próprio
Winnicott reconhece a importância do trabalho realizado por Freud, mas ressalta que há
necessidade de se circunscrever as idéias do precursor da psicanálise:

quase todos os aspectos do relacionamento entre pessoas totais foram abordados pelo
próprio Freud, e de fato é muito difícil atualmente dar a isto qualquer contribuição, a
não ser que se consiga fazer uma exposição original daquilo que já é aceito. Freud fez
por nós toda a parte desagradável do trabalho [...]

O problema do desenvolvimento infantil domina – com justiça – o campo da


psicologia da criança, e a idéia do desenvolvimento emocional está interligada à do
crescimento emocional. (1988, pp. 36-37)

Nesse mesmo texto, Winnicott mostra sua discordância com relação ao pensamento
freudiano: “a presente exposição da psicologia infantil toma por base um desenvolvimento
anterior saudável, até o ponto em que se pode dizer: esta criança é agora um ser humano
completo, relacionando-se com seres humanos completos” (1988, p. 37). Com esse
comentário, Winnicott mostra que para chegar a este estágio a criança passou por vários
estágios que agora lhe possibilitam viver as situações próprias das relações interpessoais.
Para alcançar o estágio em que as questões sexuais adquiram sentido propriamente sexual, a
criança deverá ter passado pelo processo de integração.

A aceitação de que a sexualidade infantil é um fato normal e presente na vida infantil


também deve ser remetida às realizações das tarefas da integração. Winnicott nos mostra que
no início de sua vida, o bebê está entregue às tarefas que lhe permitirão chegar ao triângulo
edipiano:
156

durante o primeiro ano de vida as experiências instintivas são as


portadoras da crescente capacidade que a criança tem de relacionar-se com objetos,
capacidade que culmina num relacionamento amoroso entre duas pessoas inteiras, o
bebê e sua mãe. O relacionamento triangular, com sua riqueza e complicações
específicas, surge como fator novo na vida da criança por volta da época de seu
primeiro aniversário, mas só atinge sua plena extensão quando a criança já começou a
andar, e quando o aspecto genital adquire predominância sobre as diversas
modalidades de funcionamento alimentar instintivo e de fantasias.

O leitor reconhecerá facilmente nesta exposição a teoria freudiana da sexualidade


infantil, que foi a primeira contribuição da psicanálise ao entendimento da vida
emocional das crianças. A idéia mesma da existência de uma vida instintiva na
infância provocou fortes reações no ânimo público; hoje, porém, reconhece-se
claramente que esta teoria é tema central da psicologia da infância normal, bem como
do estudo das raízes da psiconeurose. (1965a, p. 10)

Uma vez que estas tarefas tenham se realizado, pode-se falar que haja uma sexualidade
infantil à maneira freudiana, ou seja, a da fase edípica.

Na linguagem da seção atual, o ápice do desenvolvimento emocional é alcançado


entre os 3 e 4 anos de idade. A criança já está, então, estruturada numa unidade capaz
de ver os que estão em volta como pessoas totais. Nessa situação, a criança é capaz de
ter experiências sexuais genitais, exceto pelo fato de a procriação física da criança
humana estar sujeita a um adiamento até a puberdade. Como conseqüência deste
fenômeno endocrinológico de adiamento, o assim chamado período de latência, a
criança deve extrair o máximo proveito da identificação com os pais e adultos, e deve
utilizar as possibilidades de experimentação no decorrer dos sonhos e das brincadeiras,
das fantasias com ou sem a inclusão do corpo e dos prazeres corporais obtidos sem a
ajuda de outras pessoas. A criança deve empregar os tipos de experiência pré-genital e
genital imatura que estão ao seu alcance, e deve valer-se ao máximo do fato de que a
passagem do tempo, algumas horas ou por vezes alguns minutos, traz alívio para
praticamente tudo, por intolerável que pareça, desde que alguém familiar e
compreensivo esteja presente, mantendo a calma quando o ódio, a raiva, a ira, o
desespero ou a mágoa parecem ocupar o universo inteiro.

A sexualidade infantil é bem real, ela pode estar madura ou imatura à época em que as
transformações da latência aparecem trazendo alívio. Se a sexualidade de uma criança
é imatura, perturbada ou inibida ao final deste primeiro período de relacionamentos
157

interpessoais, assim ela ressurgirá imatura, perturbada ou inibida na


puberdade. (1988, pp 57-8)

Portanto, a sexualidade infantil somente será um fato normal quando a criança chegar
à fase da situação edipiana. Antes disso, ela não tem maturidade para saber da presença do
outro em sua vida.

IV) Crítica ao Complexo de Édipo

Nos últimos anos, Loparic tem realizado vários estudos demonstrando a diferença
entre a psicanálise tradicional e a winnicottiana. Em seu artigo “Uma psicanálise não
edipiana”, ao discorrer sobre a importância do complexo de Édipo na psicanálise tradicional,
Loparic afirma que “com o Édipo, Freud descobriu, ao mesmo tempo, a sexualidade infantil,
o inconsciente reprimido, o conflito que causa as neuroses e o método de seu tratamento”
(Loparic 1997a, p. 376).

Para demonstrar a importância que o complexo de Édipo ocupa na psicanálise


tradicional, Loparic usa os referenciais kuhnianos. Para Kuhn, uma disciplina que se pretende
científica caracteriza-se por dois tipos de paradigma. O primeiro tipo define-se por “toda a
constelação de crenças, valores, técnicas, etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade
determinada” (Kuhn 2000, p. 218), já o segundo tipo é tomado “como um conjunto de
soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem
substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência
normal” (Kuhn, 2000, p. 218).

No decorrer de sua atividade clínica, Freud parte de um problema empírico definido,


para o qual obtém uma solução. Posteriormente, Freud apresenta o complexo de Édipo como
um fato irrevogável. A “descoberta” do complexo edípico possibilitou a Freud o
desenvolvimento do arcabouço da psicanálise. O modelo edípico perpassa a teoria freudiana
do início até o final de sua obra, mesmo quando Freud apresenta uma nova tópica para o
aparelho psíquico. A partir da resolução desse problema, todas as patologias psíquicas se
enquadram nesse modelo. O complexo de Édipo é o elemento originário da ordem cultural e
define religião, moral, definindo, enfim, tudo o que estabelece as normas para a conduta da
humanidade em geral (Loparic, 1997b, 1998b, 1999c e 2001c).

Para Loparic, o complexo de Édipo em Freud


158

(...) é o fenômeno principal da vida sexual, por isso elemento essencial da explicação
da vida sexual. Toda a teoria da função sexual é concebida como preparação ou como
decorrência da situação edipiana. Em segundo lugar, a estrutura do sujeito é concebida
em termos de antecedentes ou de derivações do complexo. Em terceiro lugar, o
complexo de Édipo é o complexo nuclear das neuroses e, de modo geral, das doenças
psíquicas. Em quarto lugar, o complexo de Édipo está na origem da ordem cultural,
isto é, da religião, da moral, da sociabilidade, da historicidade, da arte, da ordem
humana em geral.

Por esse motivo, a teoria da situação edípica e dos seus efeitos pode ser chamada de
paradigma, no seguinte sentido: o problema do Édipo e o problema central e a
solução exemplar desse problema, a parte principal da psicanálise tradicional, um
paradigma teórico, tanto para a análise individual como para o desenvolvimento e
para institucionalização da teoria psicanalítica. (1997 a, p. 377)

A confirmação da importância do complexo de Édipo para a psicanálise é encontrada


numa nota de rodapé, acrescentada na 4ª edição de Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, em 1920, na qual Freud diz:

pode-se afirmar que o complexo de Édipo é o complexo nuclear das neuroses e


constitui o elemento essencial do conteúdo desta enfermidade. Ele é o ponto
culminante da sexualidade infantil, e através de seus efeitos subseqüentes, exerce uma
decisiva influência sobre a sexualidade do adulto. Todo ser humano tem que dominar
o complexo de Édipo e se não o consegue, sucumbirá à neurose. [...] Com o progresso
dos estudos psicanalíticos, a importância do complexo de Édipo tornou-se mais
claramente evidente, seu reconhecimento tornou-se o shiboleth que distingue os
adeptos da psicanálise de seus oponentes. (1920a, p. 1227)

Para Loparic, isso significa que encontramos aqui o elemento que será objeto de
estudo dos psicanalistas. Isto gera a necessidade incondicional da aceitação deste conceito, de
modo a propiciar a constituição de um conhecimento que fosse compartilhado por todo um
grupo.
159

Tornando o Complexo de Édipo num shiboleth, isto é, num signo


identificatório, Freud especificava o que Kuhn chamaria de exemplar, o qual serviria
para instituir a comunidade dos psicanalistas. O critério de identidade determinado por
Freud para a psicanálise é uma situação-problema, que em sua opinião havia sido
resolvida de maneira exemplar pela constelação de comprometimentos teóricos da
psicanálise, quer dizer, pela teoria psicanalítica da sexualidade ajudada pela
metapsicologia. Freud começou muito rapidamente a usar o Complexo de Édipo
também como uma regra ‘disciplinar’ com a qual era possível expelir pensadores
dissidentes do grupo. (2001c, p. 26)

Para Loparic, uma das grandes diferenças entre Freud e Winnicott está no modelo
metafísico ou modelo ontológico. No paradigma winnicottiano, há uma nova concepção de ser
humano, e, se na psicanálise freudiana o enfoque está na estrutura psíquica do sujeito, na
psicanálise winnicottiana tem-se uma inovação com a proposta de se estudar a natureza
humana.

No modelo ontológico proposto por Freud, o homem é concebido como um aparelho


psíquico dividido em instâncias, cujo funcionamento pode ser entendido com base numa
ciência naturalista. Em Freud, o sujeito é movido por pulsões e pelos princípios do prazer e da
realidade; para Winnicott, o ser humano não é movido por forças: “na saúde o lactante
(teoricamente) começa seu desenvolvimento (psicologicamente) sem vida e adquire esta
simplesmente por estar, de fato, vivo” (1965j [1963], p. 192). E esse “estar vivo é a
comunicação inicial do lactante com a figura materna, e desse estado o lactante não tem
consciência” (Winnicott 1965b, p. 192).

Em Winnicott, a idéia de que o complexo de Édipo é elemento que introduz o sujeito


no mundo não tem como ser aceita. A criatividade originária é a responsável por essa inserção
e ela depende do encontro entre o bebê e a mãe, sendo que a busca se origina no bebê (1988,
p. 110).

Juntamente com a criatividade originária que leva ao desenvolvimento, Winnicott


introduz outro elemento inovador: o ser humano não tem necessidade de buscar o
prazer e sim constituir o seu ser. O estado de ser constitui o ponto de partida de
constituição de uma personalidade integrada, uma identidade. (Winnicott 1989vp
[1959/63], p. 178)
160

Esses outros fundamentos do ser humano constituem o novo referencial


para a existência, que é a não-existência, o que distancia a psicanálise winnicottiana da
psicanálise tradicional. Mais uma vez, é Loparic quem esclarece:

a condição inicial do homem não é a de ser um Édipo em potencial, mas a de um ser


humano frágil, insuperavelmente finito, que precisa de um outro ser humano para
continuar existindo [...]. O motor do bebê é o próprio fato de ele estar vivo. [...] Ele
quer a presença segura da mãe que lhe inspire a fé em si e no mundo. [...] É da
condição de dependência de outrem que surgem, para o bebê, as suas necessidades e
problemas fundamentais, como a de nascer, de se sentir real, de ter contato com a
realidade, de assegurar a sua integração do ser no tempo e no espaço (isto é, num
mundo), a de criar a distinção entre a realidade interna e externa, a de criar a
capacidade de uso das coisas e a de ser si mesmo. (1996, p. 46)

Podemos criticar a idéia da psicanálise tradicional de que a inserção do indivíduo na


cultura é feita através da sublimação da instintualidade; além disso, para Winnicott é à
criatividade originária, à ilusão da criação do mundo, fenômeno propiciado pela mãe, que se
deve creditar o estabelecimento da transicionalidade, caminho essencial a ser trilhado para se
chegar à cultura. Inicialmente, o bebê precisa criar os objetos transicionais e os fenômenos
transicionais, tal como já foi comentado no capítulo II.

Além destes aspectos, há ainda outra crítica a ser feita ao significado que o complexo
de Édipo assume na psicanálise freudiana: a idéia do complexo de castração está intimamente
ligada ao complexo de Édipo. Freud aponta que, ao perceber a diferença entre os sexos o
menino tem receio de perder o pênis. A criança também sente que constantemente é alvo das
idéias de castração por parte dos adultos. A importância atribuída ao complexo de Édipo
também orienta Freud a explicar o fenômeno nas meninas, mas isso não é tão simples
considerando que, segundo o que ele próprio afirma, elas já seriam castradas. Essa dificuldade
se resolve com a idéia de que nas meninas a explicação para o fenômeno se dá pelo fato de
que elas sentem inveja do pênis. As meninas notam o pênis do irmão ou companheiro de
brinquedo e verificam que o membro sexual masculino é visível e de grandes proporções, o
que, por contraste, evidencia o quanto o órgão sexual feminino é insignificante.
161

A importância atribuída a esse tema está presente num dos textos de Freud
41
, no qual ele sustenta que nas meninas ocorre o contrário do que se passa com os meninos. O
complexo de castração as prepara para o complexo de Édipo, ao invés de destruí-lo. Elas são
obrigadas a abandonar a ligação com sua mãe por meio de sua inveja do pênis e a entrada na
situação edipiana significa um refúgio. Com o desaparecimento do temor da castração,
desaparece também o motivo principal que leva as meninas a superar o complexo de Édipo.
As meninas permanecem no complexo de Édipo por um tempo indeterminado, e o
ultrapassam tardiamente, embora de forma incompleta (Freud, 1932[1933], p. 3174).

Na psicanálise winnicottiana, longe de significar o temor à castração, o Édipo é


possibilidade de crescimento para o menino. Este aspecto será abordado no capítulo V.

V) Outras críticas à psicanálise tradicional

a) Crítica à linguagem da psicanálise tradicional

Em sua correspondência, Winnicott reiteradas vezes apontou sua necessidade de usar


uma linguagem, a sua própria linguagem, para descrever os fenômenos observados em sua
clínica. Um exemplo está em uma das cartas a Rapaport, em 1953: “sou daquelas pessoas que
se sentem compelidas a trabalhar em minha própria linguagem [...]” (1987b, p.53). Sua
correspondência registra que era grande sua necessidade de usar sua própria linguagem, pois
isto é destacado inúmeras vezes (1987b, pp. 53, 58, 87, 133). O mesmo surge em seus textos,
pois toda vez que quer apresentar seu ponto de vista, ele afirma: “farei isto em minha própria
linguagem” (1965n [1962], 1967b, p. 95, 1988, p. 100). Ao destacar a importância da
linguagem usada em suas palestras ministradas pelo rádio para as mães, ele disse que “um
escritor da natureza humana precisa ser constantemente levado na direção da linguagem
simples, longe do jargão do psicólogo, mesmo que tal jargão possa ser valioso em
contribuições para revistas científicas” (1957o, p. 127). São considerações como estas que
levam Elsa Oliveira Dias a afirmar que o uso da linguagem winnicottiana não é aleatório, tem
o objetivo específico de revelar a maneira de Winnicott conceber sua teoria; além disso,

41 Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise.


162

[...] a linguagem disponível no âmbito da psicanálise tradicional não é


capaz de abordar, sem distorcer, a natureza específica dos fenômenos que pretendia
descrever. [...] Tratando de questões relativas à experiência humana, e não a um
aparelho psíquico, descrevendo relações entre pessoas, e não entre instâncias
psíquicas, apontando para os detalhes da relação bebê-mãe, na “magia da intimidade”
que aí reina, Winnicott tinha de criar uma outra linguagem. Não se trata apenas de sua
idiossincrasia, nem de descurar do rigor descritivo. Trata-se de uma questão de
extrema importância, a de saber se a linguagem metapsicológica é adequada para
descrever a natureza da experiência humana. (2003, p. 43)

Se Winnicott usa uma linguagem própria, singular, isso incidirá diretamente em suas
considerações teóricas e revelará uma nova forma de enfocar o ser humano. Winnicott retrata
o processo de amadurecimento em suas diferentes etapas e para caracterizar cada uma delas é
necessário que se use uma linguagem específica e não padronizada. Assim, se se descreve o
mundo subjetivo, é impossível usar a linguagem que descreve o mundo dos objetos e pessoas
objetivamente percebidos. A linguagem objetificante não é adequada para descrever a
condição do bebê em seu início de vida. A linguagem da teoria dos instintos também não
expressa toda a sutileza da vida do bebê e dos pacientes regredidos.

Um levantamento do tipo de terminologia utilizada pela psicanálise tradicional indica


que sua nomenclatura nos remete a relações objetificantes, embora Freud diga, nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, que o termo ‘objeto’ (1905, p. 123) se refere à pessoa
para quem procede a atração sexual. “O termo objeto é, portanto, perigosamente ambíguo,
pois, embora designe na psicanálise, primariamente seres humanos, ele também é comumente
empregado para falar de objetos não-humanos” (Loparic 2004, pp. 6-7).

Em Winnicott, temos um novo tipo de nomenclatura. Apesar de ele usar os termos


‘objeto’(1965j) e ‘relação de objeto’ (1965j, 1960c), sua terminologia inclui termos como
‘pessoa’(1958j, 1965n), ‘relações interpessoais’ (1988), dentre outros. Podemos entender isso
como uma recusa em reduzir o estudo da natureza humana a conceitos mais apropriados à
linguagem das máquinas, dos aparelhos, enfim às idéias que remetam a projeções mentais de
feixes de projeções ou introjeções. Sobre a inadequação do uso de algumas expressões
Loparic afirma que

[..] quando se discute a psicanálise em geral e, em particular, ao se analisar a obra de


Winnicott, creio ser oportuno evitar ou mesmo deixar de falar em relações de objeto
163

nos contextos em que está se dizendo algo sobre relacionamento entre


pessoas ou sobre relações a coisas [...] (2004, p. 7)

O termo ‘sujeito’, típico da psicanálise tradicional, também raramente é encontrado


nos textos em que Winnicott trata dos processos de amadurecimento. É mais comum
encontrarmos termos como ‘indivíduo’, ‘pessoa humana’ e ‘ser humano’. Segundo Loparic,

o bebê humano não é um sujeito, pois nem ao menos existe como algo independente.
Ele precisa chegar a existir, antes e independentemente de poder executar qualquer
operação mental elaborada (representar, pensar, desejar etc.), antes, portanto, de criar
capacidades que são tradicionalmente, na filosofia e, por influência desta, na
psicanálise, tomadas como definitórias da subjetividade humana. Mesmo adultos
escapam cotidianamente da condição de sujeito, pois, no mais das vezes, cuidam dos
problemas das suas vidas apoiados em suas identidades pessoais, adquiridas durante o
processo de amadurecimento em virtude de relações inter-humanas efetivas que só em
parte são mentais e, nesse sentido, subjetivas. Tal como o conceito de objeto, o de
sujeito usado na psicanálise é ambíguo e fonte de confusões teóricas graves. (2004, pp.
7-8)

Winnicott opta por termos que reflitam mais a condição da natureza humana, a
condição de seres que, a cada momento de suas vidas, apresentam um estado, uma situação
específica, na qual o uso de um termo aplicável a uma outra fase específica traz problemas de
compreensão e se revela incoerente e fora de contexto.

b) Crítica à idéia de germe da sexualidade e hereditariedade

Em 1905, Freud disse que:

não parece haver dúvida de que os germes dos impulsos sexuais já estão presentes no
recém-nascido e de que eles continuam a desenvolver-se durante algum tempo, sendo
então dominados por um progressivo processo de supressão; este, por sua vez, é
interrompido por avanços periódicos no desenvolvimento sexual ou pode ser
sustentado por características individuais (1905, p. 160)
164

A idéia de que o recém-nascido traz em si, ao nascer, o germe dos instintos sexuais
que o levam a repetir a busca do prazer, nos indica o grande valor que Freud outorgava às
questões biológicas, além de afirmar que o bebê é conduzido pelo princípio do prazer. Ou
seja, o bebê já nasce sexualizado e com potencial inquestionável de realização sexual. São
esses germes que fazem o vínculo entre alimentação e sexualidade, além de fazerem com que
o bebê volte a buscar o alimento, movido pela necessidade de reexperienciar o prazer sexual.
Freud afirma que o desenvolvimento sexual é determinado hereditariamente.

A partir da teoria do amadurecimento humano de Winnicott, algumas objeções podem


ser levantadas em oposição a estas idéias freudianas.

A primeira é que, segundo Winnicott, no início de sua vida, tudo o que bebê herda é o
potencial para o amadurecimento, ou seja, a tendência à integração e sua estrutura biológica.
Esse potencial inclui a possibilidade de desenvolver a sexualidade, mas a instauração desta
não é automática, ela depende de um meio ambiente facilitador. Ao nascer, para se tornar
uma pessoa inteira, o bebê precisa realizar as tarefas da integração: integrar-se no tempo e no
espaço, alojar-se em seu próprio corpo, o que inclui a integração da sexualidade e, finalmente,
relacionar-se com a realidade objetivamente compartilhada. Não é o germe da sexualidade
que faz o bebê se desenvolver, e sim o seu potencial para o amadurecimento: “o indivíduo
herda um processo de amadurecimento que o leva a se desenvolver na medida em que haja
um meio ambiente facilitador e somente na medida em que este exista” (1989, p. 89). A tarefa
do indivíduo é transformar-se numa unidade a partir do potencial herdado e desenvolvido com
o auxílio de uma mãe suficientemente boa. Essa idéia foi sustentada por Winnicott por mais
de três décadas.

Outra objeção está no fato de que na psicanálise winnicottiana não se encontra a idéia
de que um automatismo deflagre determinados processos desenvolvimentais. Todo o
desenvolvimento do indivíduo, nos seus mais variados aspectos, depende do processo de
integração. Nas questões sexuais também há uma pré-condição:

pode-se afirmar que a capacidade de excitação sexual, em ambos os sexos, está


presente desde o nascimento, mas a capacidade primária de partes do corpo para a
excitação tem um significado limitado enquanto a personalidade da criança não tiver
sido integrada, podendo-se dizer que só a criança como pessoa integral é excitada
desse modo específico. (1957a, p.154)
165

Também não há vínculo entre alimentação e sexualidade, pois o bebê no início de sua
vida ainda não integrou sua vida instintual e, portanto, as questões alimentares são externas a
ele. Mesmo após a integração, não haverá vínculo entre esses dois aspectos. A integração
instintual virá apenas após a fase do concernimento. (1958a, p.262)

c) Vida intra-uterina e dois primeiros anos de vida do bebê

Quando lemos os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, algo nos chama a
atenção: Freud não considera os estágios iniciais do processo de desenvolvimento. De um
modo geral, Freud descreve o desenvolvimento infantil a partir dos dois anos e o que ocorre
anteriormente com o bebê não é considerado, a não ser o fato de que ele é movido pela
pulsão. Freud não faz considerações sobre a vida intra-uterina e sobre a vida do bebê até os
dois anos. De um modo geral, os aspectos que envolvem a vida intra-uterina são fundamentais
porque envolvem questões sobre quando de fato o bebê começa a existir e quais são as
condições apresentadas por ele durante esta fase. Freud faz somente algumas poucas
observações, essencialmente sobre os aspectos biológicos.

Já em Winnicott, a vida intra-uterina adquire grande importância. Winnicott afirma


que a única data que se pode estabelecer com precisão sobre o início da vida do bebê é a da
concepção. Mesmo se podendo afirmar que a vida humana começa a partir da concepção, a
vida intra-uterina e os dois primeiros anos de vida são essenciais. (1988, p. 29). Nessa época,
o bebê está na fase da dependência absoluta e da dependência relativa, que são momentos
cruciais do desenvolvimento infantil. A importância desses estágios é enorme, pois eles
constituem os momentos que fundamentam a constituição do ser humano, momentos sem os
quais as questões sexuais não poderão ser constituídas.

Sobre o início da vida humana, Winnicott afirmou: “a história de um ser humano não
começa aos cinco anos, nem aos dois, nem aos seis meses, mas ao nascer – e antes de nascer,
se assim o preferir; e cada bebê é desde o começo uma pessoa, necessitando ser conhecida por
alguém.” (1947b, p. 86)

Inúmeras vezes Winnicott reiterou que a existência não tinha início apenas com a
concepção ou o nascimento. Num de seus últimos artigos, ele afirmou que “o início das
crianças se dá quando elas são concebidas mentalmente” (1987c [1966], pp 51-2). Após
serem concebidas mentalmente, ao terem sua existência iniciada, na vida intra-uterina, elas já
podem se apropriar do que lhes ocorre nesta fase. Esta idéia se sustenta na posição de
166

Winnicott de que o bebê possui uma capacidade inata para ter experiência. É esta
idéia que dá suporte para a seguinte afirmação:

[...] em que idade o ser humano começa a ter experiências? Devemos presumir que
antes do parto o bebê já seja capaz de reter memórias corporais, pois existe uma certa
quantidade de evidências de que a partir de uma data anterior ao nascimento, nada
daquilo que um ser humano vivencia é perdido. Sabemos que, no útero, os bebês
realizam certos movimentos que, a princípio, parecem-me mais com os movimentos
natatórios de um peixe. As mães dão imenso valor à atividade de seus bebês, e
esperam por ela a partir do sexto mês, é possível presumir que as sensações começam
por volta da mesma época; de um modo ou de outro, é possível – e até provável – a
existência aí de uma organização central que seja normalmente capaz de perceber
essas experiências. (1988, pp. 126-7)

Independentemente de qual seja a possibilidade de experiência do bebê na vida intra-


uterina, num certo momento o bebê experimenta um primeiro despertar que lhe permite
vivenciar um estado de ser.42 Os movimentos intra-uterinos que o bebê pode experimentar
fazem parte da continuidade de ser do bebê e relacionam-se com a espontaneidade
experimentada neste momento de vida. Segundo Winnicott,

com o desenvolvimento do cérebro enquanto órgão em funcionamento, inicia-se a


estocagem de experiências; as memórias corporais, que são pessoais, começam a
juntar-se para formar um novo ser humano. Existem boas evidências de que os
movimentos do corpo na vida intra-uterina são significativos, e é plausível que, de um
modo silencioso, a quietude vivenciada naquele período também o seja. (1988, p. 21)

Para Winnicott, o bebê já é um ser humano desde sua vida intra-uterina, dado que ele
já pode fazer as experiências próprias dessa fase: ficar entregue à motilidade, viver uma fase

42 Para Winnicott, o estado de ser consiste numa condição adquirida após o “primeiro despertar”. Diz
ele: “no início, antes que cada indivíduo crie o mundo novamente, existe um simples estado de ser, e uma
consciência incipiente da continuidade do ser e da continuidade do existir no tempo” (1988, p. 135). Este estado
de ser pertence ao bebê e não a quem observa o bebê. Este item será desenvolvido de forma mais detalhada no
capítulo IV.
167

sem a experiência da gravidade, ouvir as batidas do coração da mãe, entre outras.


Outra experiência importante é a de se ocupar com a sua necessidade de manter a
continuidade de seu ser. Já na vida intra-uterina o bebê vai armazenando suas experiências e
construindo sua história.

Elsa Oliveira Dias endossa a idéia de que o bebê já é um ser humano em sua vida
intra-uterina: “[...] segundo a concepção winnicottiana, o bebê já é um ser humano desde a
vida intra-uterina, e isto se define pela sua capacidade inata de fazer experiências” (2003, p.
124).

d) Sexualidade e patologia

Outra situação que é relevante quando se toma contato com os Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade está no fato de que Freud inicia sua discussão pela patologia na área da
sexualidade. Freud faz um estudo das aberrações sexuais, o que inclui a inversão e as
perversões. Conforme foi mostrado no capítulo I, em Novas Conferências Introdutórias à
Psicanálise ele afirma que para se chegar à normalidade deve-se partir do anormal (1917
[1916-17], p. 2313).

Esta posição é radicalmente contrária às idéias de Winnicott, pois toda vez que ele
inicia uma discussão sobre um conceito, seu ponto de partida é o da saúde. A partir do que
considera uma condição saudável, ele aponta em quais situações a saúde não se estabelece.
Winnicott parte do princípio de que o estudo da natureza humana deve se assentar no
desenvolvimento sadio, apesar dos médicos estarem acostumados a escrever sobre a doença:

mas, a noção médica de que a saúde é uma relativa ausência de doenças não é
suficientemente boa. A palavra saúde possui seu próprio significado positivo, fazendo
com que a ausência de doenças não seja mais do que o ponto de partida para uma vida
saudável. (1988, p. 1)

Isso revela um aspecto importante e original do pensamento winnicottiano: sua


preocupação em apresentar o ser humano em seus aspectos saudáveis, isto é, a natureza
humana não deve ser olhada pelo viés de um quadro nosológico. Revela também a
abrangência de sua concepção de saúde, a qual inclui o indivíduo amadurecido de tal forma
que possa contribuir para o crescimento social (1971f [1967], p. 27).
168

No que se refere especificamente aos aspectos sexuais, Winnicott


apresenta, aqui também, sua singularidade, ao circunscrever as questões sexuais ao processo
de amadurecimento, de modo que o indivíduo seja compreendido na totalidade de sua
personalidade. Na psicanálise tradicional, por exemplo, a homossexualidade é vista como uma
perversão, mas em Winnicott ela pode ser vista sob outra ótica. Sobre esse tema, ele afirmou:

[..] estamos preocupados com a riqueza do indivíduo não em termos de dinheiro mas
de realidade psíquica interna. Na verdade, freqüentemente perdoamos um homem ou
uma mulher por doença mental ou outro tipo de imaturidade porque esta pessoa tem
uma personalidade tão rica que a sociedade tem muito a ganhar da contribuição
excepcional que ela pode fazer. Permito-me afirmar que a contribuição de
Shakespeare foi tal que não importaria se descobríssemos que era imaturo, ou
homossexual ou anti-social em algum aspecto. (1965vc [1962], p.65)

Embora não negue as questões patológicas, antes pelo contrário, o que Winnicott
pretende ao apresentar sua teoria do amadurecimento pessoal, é oferecer um modo de se
prevenir a instalação da doença – para alcançar a saúde precisamos compreender mais o SER.
Para ele, vida e saúde não estão apartadas entre si:

[...] gostaria de enfocar a vida que uma pessoa saudável é capaz de viver. O que é a
vida? Não preciso saber a resposta, mas podemos chegar a um acordo: ela está mais
próxima do SER do que do sexo. Disse Lorelei: “Beijar é muito bom, mas uma
pulseira de diamantes dura para sempre”. Ser e se sentir real vinculam-se
essencialmente à saúde, e só se garantirmos o ser é que poderemos partir para coisas
mais objetivas. Sustento que isso não é apenas um julgamento de valor, mas que há
um vínculo entre a saúde emocional individual e o sentimento de se sentir real. Não há
dúvida de que a grande maioria das pessoas tem a certeza de que se sentem reais, mas
a que preço? Em que medida estarão elas negando um fato, isto é, que poderia haver o
perigo de elas se sentirem irreais, possuídas, ou de não serem elas mesmas, de
sucumbirem para sempre, de perderem a orientação, de serem desligadas do próprio
corpo, de se sentirem aniquiladas, de não serem nada e não estar em lugar nenhum? A
saúde não está associada à negação de coisa alguma. (1971f [1967] p. 35) 43

43 O tema do SER e a relação com a sexualidade será desenvolvido no capítulo IV.


169

Ou, seja, essencial é a conquista de se sentir real, de ter um lugar no


mundo, sentindo que isto é verdadeiro. As dificuldades na área da sexualidade constituem não
o ponto de partida, mas conseqüência de conquistas não realizadas.
170

Capítulo IV: Condições para o estabelecimento da sexualidade: o


processo maturacional e os elementos essenciais à constituição da sexualidade

Introdução

Diferentemente da psicanálise tradicional, que postula que o desenvolvimento do


sujeito ocorre por meio de uma progressão das zonas erógenas, em Winnicott o
amadurecimento se dá por meio de uma integração progressiva. O elemento condutor do
crescimento do indivíduo tem que ser procurado no processo de amadurecimento humano.
Uma vez que este processo desenvolvimental seja deflagrado, sua concretização não pode ser
dada como certa pelo fato de que ele constitui uma tendência e não uma determinação. Esta
tendência está submetida à existência de um ambiente facilitador.

Esta integração progressiva permitirá, se tudo correr bem, que a identidade sexual seja
constituída. Portanto, a constituição da identidade sexual é secundária, no sentido de ser
decorrente de um processo maior. Porém, ela também é fundamental, por ser mais um
elemento de saúde a ser conquistada pelo indivíduo. As questões da sexualidade têm que ser
compreendidas na chave de dois aspectos: o desenvolvimento do ego e o desenvolvimento do
id. Para Winnicott, a identidade sexual, com sua correspondente diferença sexual, pode ser
compreendia na teoria da sexualidade que se insere numa teoria da instintualidade. Esta teoria
da instintualidade é parte do processo maturacional do ser humano. Estes dois aspectos
caminham em paralelo e não se pode falar na instauração de uma sexualidade saudável se
estes dois elementos não forem vistos como integrados entre si.

A conquista da saúde significa que o indivíduo que amadurece precisa tornar-se uma
unidade e esta unidade precisa estar firmemente assentada em um corpo, seja ele com
características sexuais masculinas ou características sexuais femininas. A saúde significa que
houve uma apropriação do corpo, que houve o estabelecimento de uma parceria psico-
somática entre corpo, mente e psique. Para Winnicott, em termos filogenéticos, a base
somática, o soma, é o primeiro elemento da pessoa a se constituir (1988, p. 19). Este soma se
transforma, embora não haja prevalência de um órgão sobre outro. Os inúmeros órgãos que
compõem a pessoa humana constituem uma totalidade harmoniosa em que cada órgão cumpre
com sua função. Na saúde, a pessoa humana se desenvolve harmoniosamente, sem privilégio
de um ou outro órgão. O resultado é uma pessoa que não tem um corpo, ela é um corpo – e é
sobre a base somática que a identidade pessoal é constituída (1971d [1970], p. 270).
171

Este enfoque integrador do ser humano mostra que as questões sexuais têm
a mesma importância de outros órgãos e sistemas corporais: após o bebê alojar-se em seu
corpo, os órgãos sexuais, como os demais órgãos corporais, são elaborados imaginativamente.
A excitação sexual só será experimentada com o devido significado genital quando a
personalidade infantil estiver plenamente integrada, o que será possível quando a pessoa
chegar na fase fálica.

A importância da conquista de uma identidade sexual é expressa no texto de Winnicott


O conceito de indivíduo saudável. Saudável é o indivíduo que consegue realizar todas as
tarefas de seu desenvolvimento primitivo e se define sexualmente:

maturidade ou saúde em termos da aquisição da genitalidade plena, assume uma forma


especial quando o adolescente se transforma no adulto que pode se tornar pai. É
conveniente que um rapaz que gostaria de ser igual a seu pai sonhe
heterossexualmente e que desempenhe sua capacidade genital em sua plenitude, e
também que uma moça que deseja ser igual à mãe seja capaz de sonhar
heterossexualmente e experimentar o orgasmo genital na relação sexual. (1971f
[1967], pp 25-6)

Para Winnicott, a descoberta da sexualidade tem que ser considerada como algo
decorrente do processo de amadurecimento humano, ela não está definida no início da vida,
não pode ser imposta e nem ensinada (1949j, p. 217). O contato da criança com as questões da
sexualidade deve se dar a partir de suas próprias explorações sexuais. Conseqüentemente, ela
terá uma infância mais rica, pois as fantasias sexuais e as brincadeiras que as acompanham
transformam as crianças em pessoas ativas e alegres.

Para Winnicott, na vida adulta, se tudo correu bem durante o processo maturacional do
indivíduo, ele pode viver plena e saudavelmente sua vida sexual:

o sexo não é apenas uma questão de satisfação física. Gostaria de dar ênfase sobretudo
ao fato de as satisfações sexuais serem uma conquista do crescimento emocional da
pessoa; quando tais satisfações advêm de relacionamentos saudáveis tanto para a
pessoa quanto para a sociedade, elas representam um dos pontos culminantes da saúde
mental. (1961b [1957], p. 41)
172

O desenvolvimento da pessoa humana não é determinado pela trajetória da


libido pelos órgãos sexuais. A conquista e vivência da sexualidade têm que ser considerados
no interior do processo de amadurecimento. A conquista da identidade sexual e da vivência
sexual de cada ser humano é decorrência de um processo maior, o que significa que, tanto
quanto outro aspecto da identidade do indivíduo, a identidade sexual também tem que ser
conquistada, embora não se constitua como elemento fundante da pessoa humana.

Todas essas idéias de Winnicott sobre o desenvolvimento da sexualidade estão


vinculadas à sua maneira de conceber a teoria da sexualidade. Winnicott sustenta sua teoria
nos instintos e nos modos de manejo dos instintos. Estes instintos se apresentam de forma
predominante, de acordo com as diferentes fases do processo maturacional. Embora os
instintos também estejam presentes nos animais, o aspecto diferencial com relação aos seres
humanos está no fato de que este faz uma elaboração imaginativa das excitações sexuais e das
funções corpóreas. Os animais não têm possibilidade de fazer esta elaboração imaginativa,
pois esta é uma atividade da psique humana, que permite organizar, preparar a satisfação e
controlar os instintos. Todos estes aspectos se vinculam ao pensamento de Winnicott de que
“na saúde, ocorre uma fusão dos impulsos libidinais e agressivos” (1989vu [1968], p. 239).

Loparic resume qual é o novo objeto da teoria da sexualidade de Winnicott:

[...] trata da elaboração imaginativa (predominantemente na fantasia e nos sonhos) de


organizações de excitações dominantes em diferentes fases da vida humana, visando
garantir ações adequadas para sua satisfação e manutenção no contexto de primeiras
relações interpessoais triangulares. Sendo assim, essa teoria pode corretamente ser
caracterizada como uma da partes centrais de uma teoria geral do amadurecimento
psicossomático do ser humano. Ela é proposta como uma doutrina empírica,
formulada sem recurso da metapsicologia do tipo freudiano, em particular sem as
idéias do aparelho psíquico e as pulsões psíquicas e sem outras tantas fórmulas
especulativas da psicanálise tradicional, emprestadas à filosofia naturalizada da
subjetividade. Embora trate da sexualidade com base biológica ou instintual, a teoria
de Winnicott não é biologizante, pois a base biológica é levada em conta tão somente
na medida em que as excitações ditas instintuais e as partes do corpo são organizadas
pela imaginação, que é uma atividade da psique. (2004, pp 12-3)

A partir deste novo enfoque da teoria da sexualidade, não se pode aceitar que a
sexualidade já esteja definida no início da vida do bebê, ao mesmo tempo em que se faz
173

necessário fazer uma apresentação das condições necessárias para que a


sexualidade se constitua e se instaure. Estas condições ou fundamentos precisam ser
remetidos ao processo de amadurecimento humano. É através desse processo que o indivíduo
obtém as conquistas que precisam ser realizadas. Em termos de sexualidade, Winnicott disse
que:

numa descrição teórica do desenvolvimento da capacidade sexual, não é suficiente


falar-se apenas em termos de progressão do instinto dominante, já que a esperança na
possibilidade de recuperar-se da culpa causada pelas idéias destrutivas é um elemento
de importância vital no que diz respeito à potência. (1988, p. 74)

Aqui, ao se referir à conquista do concernimento, Winnicott chama nossa atenção para


a necessidade de se considerar todos os aspectos presentes no processo maturacional, de modo
a facilitar a concretização de uma potência.

Para efeitos de fundamentação deste estudo, a discussão dos elementos fundantes do


pensamento winnicottiano no tocante à sexualidade, será feita em dois momentos. No
primeiro momento, farei uma apresentação geral sobre como transcorre o processo de
amadurecimento humano; no segundo momento, apresentarei alguns aspectos específicos,
sem os quais o estabelecimento de uma sexualidade saudável não será possível. Na verdade,
em termos de processo maturacional, todas as conquistas do início da vida do bebê, as típicas
das fases de dependência absoluta e dependência relativas, são essenciais para o
desenvolvimento da sexualidade.

Pode-se afirmar que nenhum aspecto do processo de amadurecimento pode ser


desconsiderado na constituição da sexualidade. Os itens abordados de forma mais específica
se vinculam à sexualidade de inúmeras maneiras. A conquista do estado de ser é fundamental
por ser o ponto de partida para uma existência autêntica, o que inclui a integração do
indivíduo com os órgãos sexuais que herdou ao nascer. Os instintos, por serem biológicos e
agirem em todos os órgãos do corpo humano, permitem que o bebê se dê conta de que possui
este órgão com as características que lhe conferem a singularidade da sexualidade. Estes
instintos devem ser apropriados pelo indivíduo, que os identifica como seus. Isto permite ao
indivíduo se apossar e usufruir a sexualidade. A elaboração imaginativa das funções
corpóreas, possibilita ao bebê se apropriar do funcionamento de seus órgãos sexuais, com o
auxílio dos instintos. A agressividade constitui fonte de energia para o indivíduo e o
174

impulsiona em direção a outro ser humano, de modo que possa com ele se
relacionar no modo excitado, nas situações identificadas como sexuais. No tocante à
integração psico-somática, pode-se supor que se não houver harmonia e integração entre soma
e psique, o indivíduo não se apossou da única base de onde ele pode se desenvolver
saudavelmente: seu corpo. Finalmente, a conquista do status unitário do EU SOU proporciona
ao bebê a consciência de que ele habita em seu corpo, que há um limite entre ele e o mundo,
que ele tem um interior rico em fantasias e um exterior. A conquista da unidade permite que o
masculino e o feminino possam ser identificados, pois quem não sabe de si, não pode
descobrir que possui uma identidade sexual.

Enfim, uma sexualidade somente se desenvolve de forma saudável na medida em que


um desenvolvimento mais amplo ocorre de forma integrada.

I. O processo de amadurecimento humano

Para Winnicott, o processo de crescimento e amadurecimento da pessoa humana deve


ser considerado a partir de um ponto de vista desenvolvimental, em que uma seqüência de
estágios deve ocorrer de forma simultânea, embora não linear, de forma a resultar na
constituição de uma pessoa saudável. Uma das características do processo desenvolvimental é
que, a despeito dessa não linearidade, algumas conquistas somente serão possíveis se as
etapas anteriores tiverem corrido de forma saudável. De fato, algumas conquistas constituem
uma condição de possibilidade para que outras possam se concretizar. Se, por acaso, houver
um fracasso na resolução das etapas anteriores, o indivíduo, numa condição em que lhe falta
maturidade para dar conta das novas tarefas, enfrentará dificuldades e não poderá desenvolver
essas novas vivências de forma autêntica e pessoal.

A cada estágio, o indivíduo apresenta uma organização de ego específica, o que lhe
possibilita desempenhar as tarefas próprias de cada um desses estágios. Ele se comportará, a
cada momento de sua vida, de acordo com uma maturidade proporcional ao estado
apresentado por seu ego. Cada etapa implica na resolução de inúmeras tarefas. A cada etapa
desse processo verificamos o humano se desdobrando e se revelando, numa sucessão de
estados cuja data de início é difícil precisar, mas que ocorrerá durante toda a sua vida
(1947b,1949c, 1987b, 1987c [1966]).

Por meio de estágios que se constituem com a experiência cumulativa que o bebê
vivencia gradativamente, há a concretização do potencial de amadurecimento. Estes estágios
175

não ocorrem de forma linear e nem são estanques entre si. Há entre eles um
entrelaçamento que termina por constituir um processo integrado, pois cada estágio deve ser
integrado a outro, numa sucessão necessária para que o bebê possa executar certas tarefas. Há
um processo de integração progressiva ocorrendo com este bebê que é atravessado pelo
encontro humano. Qualquer separação entre esses estágios só tem sentido em termos
didáticos, o que possibilita uma melhor compreensão de sua totalidade, ou seja, “deve-se
lembrar que uma divisão de uma fase para outra é artificial, e simples questão de
conveniência, adotada com o propósito de esclarecer definições”(1960c, p. 44).

Winnicott alerta para o fato de não se fazer uma dissecação das etapas
desenvolvimentais, posto que a criança está o tempo todo em todos os estágios, apesar de
haver um estágio dominante (Winnicott, 1988, p. 34). Na verdade, para Winnicott, o
indivíduo que amadurece está o tempo todo em todos os estágios. Os estágios apresentam
características completamente diferentes entre si, indicando as necessidades específicas do
indivíduo no momento em que vivencia o estágio em questão. Não há a segurança de uma
conquista definitiva em qualquer estágio, pois “qualquer estágio no desenvolvimento é
alcançado e perdido, alcançado e perdido de novo, e mais uma vez: a superação dos estágios
no desenvolvimento só se transforma em fato muito gradualmente, e mesmo assim apenas sob
determinadas condições” (1988, p. 37). Esse processo é vulnerável e depende totalmente das
condições ambientais, o que inclui também os aspectos da imprevisibilidade.

A descrição de cada estágio implica no uso de uma terminologia que especifique o que
o indivíduo está experienciando a cada momento. Em função disso, os termos já consagrados
pela psicanálise tradicional não são adequados para a descrição das idéias expostas por
Winnicott (1988, p. 34).

Segundo Winnicott, a instauração da condição humana não acontece de forma


definitiva. Ao nascer, o ser humano não está constituído, ele não é um indivíduo autônomo e a
sua condição de humanidade não está assegurada. Ele tem apenas uma tendência inata para o
amadurecimento, uma tendência para integrar as experiências usufruídas ao longo de seu
existir. A conquista de sua condição humana dependerá primordialmente de um ambiente que,
se satisfatório, permita a emergência da saúde; se este ambiente não for satisfatório,
dificultará a concretização desta conquista.

Para que se possa compreender o processo de constituição da pessoa humana é


necessário considerar-se as condições em que ele ocorre. Uma delas refere-se ao estado de
dependência absoluta do bebê, pois nos primórdios de sua vida o ambiente é parte do recém-
nascido, não há separação entre externo e interno. Na medida em que o bebê amadurece, ele
176

vive uma dependência relativa em relação ao ambiente, para finalmente conquistar


uma independência relativa (1965r [1963], p.83). Dado o seu estado de imaturidade, o bebê
sente os efeitos desse ambiente, apesar de não saber ainda desse ambiente. Dentro de suas
possibilidades de apreensão deste ambiente, as possíveis falhas serão registradas em seu
incipiente aparato neuro-fisiológico. Se as falhas ultrapassarem sua capacidade de
assimilação, uma cisão será instaurada, provocando uma alteração em seu processo
desenvolvimental.

Devido ao seu estado de absoluta dependência em relação ao ambiente, o bebê, no


início de vida, não tem condições sequer de saber dos cuidados que recebe de sua mãe. Por
estar submetido ao ambiente, seu potencial de amadurecimento dependerá dos cuidados de
uma mãe-ambiente. São os cuidados dela que assegurarão o seu pleno desenvolvimento,
garantindo também a concretização de seu processo de amadurecimento, fase a fase. Ao
nascer, o bebê traz em si um vir-a-ser potencializado, mas que depende do ambiente
essencialmente humano para realizar-se. Para Winnicott, “o ambiente não faz o bebê crescer,
nem determina o sentido do seu crescimento. O ambiente, quando suficientemente bom,
facilita o processo de amadurecimento” (1963c, p. 223). É pelos cuidados de uma mãe
suficientemente boa que o bebê se constitui e

a mãe suficientemente boa (não necessariamente a própria mãe do bebê) é aquela que
efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui
gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em assimilar o fracasso da
adaptação e em tolerar os resultados da frustração. Naturalmente, a própria mãe do
bebê tem mais probabilidade de ser suficientemente boa do que qualquer outra pessoa,
já que essa adaptação ativa exige uma preocupação fácil e sem ressentimentos com
determinado bebê; na verdade, o êxito no cuidado infantil depende da devoção, e não
de ‘jeito’ ou esclarecimento intelectual. (..) à medida em que o tempo passa, a mãe
adapta-se cada vez menos completamente, de modo gradativo, segundo a crescente
capacidade do bebê em lidar com o fracasso dela”. (1953c [1951], p. 10)

No início de seu existir, o feto é sustentado por um holding uterino proporcionado pela
mãe. Isto é possível porque ela entra no estado de preocupação materna primária, o qual lhe
possibilita entrar em sintonia com seu filho, de modo que todas as suas atitudes expressam seu
estado de devoção para com ele. Nessas condições, ela consegue adaptar-se às necessidades
de seu filho, ao mesmo tempo em que conserva a sua capacidade adulta de cuidar dele. Ela se
177

mantém nesse estado o tempo necessário para que ele possa se tornar
independente. Esse holding faz parte de um estado de regressão necessário para que ela possa
se colocar em total identificação com seu bebê. Sua própria história como bebê pode ajudá-la
a se identificar com seu bebê. Ela também já foi um bebê um dia e tem memórias corporais
deste período. Segundo Winnicott,

é claro que a mãe já foi um bebê. Esta é uma experiência que está em alguma parte de
si mesma, uma experiência em que ela saiu da dependência e conquistou a autonomia.
Além do mais, ela brincou de ser um bebê, assim como brincou de pai e mãe; ela
regrediu a um comportamento de bebê nas ocasiões em que ficou doente; e talvez
tenha observado sua mãe cuidando de seus irmãos mais novos. Ela pode ter aprendido
a cuidar de bebês, talvez tenha lido livros sobre o assunto, e formou suas próprias
idéias sobre a forma certa ou errada de manejar os bebês. Ela, naturalmente, é afetada
pelos hábitos locais, podendo rejeitá-los ou aceitá-los, ou buscar o seu próprio
caminho, como uma pessoa independente ou uma pioneira. (1987d [1967], p. 94)

Nessa identificação com o bebê, encontramos a primeira condição necessária para que
o bebê possa iniciar a construção de seu potencial sexual, embora, paradoxalmente, esse
momento não se relacione especificamente com a questão sexual. Esse momento está
vinculado a uma conquista da identidade, identidade que futuramente permitirá o
estabelecimento de uma identidade sexual. Ao cuidar do bebê da forma que ele necessita, a
mãe possibilita ao seu filho criar as bases para o surgimento do si-mesmo.

Nessa identificação, a mãe se encontra atenta às necessidades do bebê, revelando um


ajuste completo ao ritmo da criança. Porque está totalmente devotada ao seu filho, a mãe se
afasta de todas as atividades que não se relacionam com o cuidado do bebê, ficando à total
disposição dele. Para Winnicott,

[...] o importante é que a mãe, através de sua identificação com seu bebê, saiba como
ele se sente, de forma que é capaz de prover quase exatamente o que ele necessita em
termos de provisão ambiental em geral. Sem tal identificação creio que ela não seria
capaz de prover o que o bebê necessita no começo, que é uma adaptação viva às
necessidades do bebê. O aspecto principal é o holding físico e esta é a base de todos os
complexos aspectos adicionais do holding, e da provisão ambiental em geral. (1960c,
p. 54)
178

Ao adaptar-se ao bebê, a mãe permite que ele comece a construir-se como pessoa e o
cuidado que o bebê recebe de sua mãe é a condição necessária para que haja um crescimento
em direção à autonomia.

Nesta unidade mãe-bebê durante o processo de regressão, também é necessário


considerar a presença do pai da criança. Sua função como marido é oferecer à mulher grávida
o cuidado de que ela necessita durante a gestação do filho de ambos. Ela precisa desta
proteção para se desvincular dos afazeres corriqueiros. Neste primeiro momento de vida do
bebê, o pai entra como um aspecto da mãe, oferecendo a presença necessária de modo que ela
não se desvie de seu papel materno (1965h [1959], p. 131).

Amparada pelo pai do bebê, a mãe se torna o ambiente facilitador para que o bebê
experimente uma condição de onipotência que permitirá a criação do mundo, pois este está à
espera do bebê para ser criado. Por meio de uma ilusão sustentada pela mãe, o bebê poderá
criar o mundo que os adultos sabem que já existe, mas do qual o bebê nada sabe. Afinal, ele
acabou de nascer. A mãe sustentará o paradoxo do bebê criar o mundo sem saber que ele já
estava lá à sua espera para ser criado.

Isto é possível porque o bebê está vivo, porque ele possui uma motilidade presente
desde a vida intra-uterina. Amparado por uma herança genética e pelo processo maturacional,
o bebê tende para o processo de integração.

Esta vitalidade está vinculada à criatividade originária que possibilita ao bebê emitir o
gesto criativo e assim, criar o mundo, na medida de sua necessidade. Na verdade, o bebê
precisa criar o mundo para nele se instalar. Cabe ao ambiente, ou seja, à mãe, assegurar que o
bebê possa realizar seu gesto, sem que haja nenhum tipo de interferência. A postura da mãe
permitirá que a continuidade do ser do bebê esteja assegurada e que ele possa continuar se
desenvolvendo em seu próprio ritmo, sem invasões ambientais (1988, p. 127). Esta
continuidade de ser permite ao indivíduo que se constitua em todas as fases de sua vida.

Pela rotina materna, o bebê também pode integrar-se no tempo, pode datar-se, e,
gradativamente, acumular experiências que lhe permitirão saber que existe um passado, um
pressente e um futuro. Pelo acúmulo de todo tipo de experiências, o bebê se integra
corporeamente. O início se dá pelas experiências corporais, por meio de uma elaboração
imaginativa, a qual permite a constituição de uma integração psico-somática (Winnicott,
1988, p. 40). Esta integração será conseqüência de uma trajetória que se inicia com o soma,
que é o primeiro a surgir, na evolução da espécie e do indivíduo. A ele se vincula o corpo e a
179

elaboração imaginativa das funções corpóreas. Depois vem a psique, que se


tornará o conjunto de memórias e experiências que são guardadas pelo bebê. Por fim, surgem
a mente e suas funções intelectuais, tais como a organização e catalogação e associação de
experiências pelas quais o bebê passa.

Outra conquista essencial para o indivíduo é a de fazer o alojamento da psique em seu


próprio corpo – personalização. O bebê precisa que a mãe estabeleça uma série de cuidados
que possibilitem que os ataques instintuais que ele esteja sofrendo sejam integrados e que
todas as suas sensações corpóreas possam ser assimiladas como a sua totalidade corporal. A
personalização será facilitada pelo cuidado materno, pelo manejo adequado (handling) da mãe
para com seu filho e este manejo é um dos momentos que fazem parte do segurar total
(holding) que a mãe realiza. Ele significa especificamente um bom cuidado físico (1971d
[1970], p. 261).

A construção do si-mesmo é possível porque o bebê pôde chegar ao mundo no


momento exato em que estava preparado para encontrá-lo. Neste momento, a mãe oferece ao
bebê o mundo, experiência nomeada por Winnicott de primeira mamada teórica, que
constitui o somatório das vezes em que a mãe ofereceu o seio ao bebê, quando este dele
necessitava. O contato da mãe com seu filho, sustentado por uma trama harmoniosa, permite
que o bebê seja introduzido no mundo, na medida de sua maturidade, na medida de sua
necessidade. A sensibilidade materna permite que o bebê, em seus estados excitados procure o
mundo, mas que também repouse nos momentos tranqüilos.

Ao contrário do que preconiza a psicanálise tradicional, para Winnicott no início não


há o id. A condição para o surgimento do id é a constituição do ego. No início, “[...] os
instintos são tão externos para o bebê quanto o troar de um trovão” (1965m [1960], p. 141).
Esta constituição será consumada a partir da experiência que se temporaliza e ela ocorrerá em
termos individuais. Para Winnicott, “a característica do processo de amadurecimento é o
impulso em direção à integração, que vem a significar algo cada vez mais complexo, na
medida em que o bebê cresce” (1965vd [1963], p. 239). Não se trata de satisfação de instintos,
embora esta satisfação instintual ocorra na medida em que o bebê é atendido em suas
necessidades corpóreas.

Até atingir o amadurecimento necessário para integrar os instintos, o bebê está num
mundo subjetivo, num mundo em que há uma relação de dois-em-um, no qual mãe e bebê
estão numa tal sintonia em que o bebê não sabe ainda de sua mãe. Entregue ao mundo
sustentado por ela, o bebê mantém sua onipotência criadora.
180

Neste mundo que se caracteriza por ser um dois-em-um, o bebê busca a


vida. Ele tem uma voracidade impiedosa, a qual ele procurará saciar. Aqui não se trata de
buscar satisfação impulsionado pelo princípio do prazer, tal como na psicanálise tradicional.
O bebê ataca uma mãe-objeto sem saber que ele também está atacando a mãe-ambiente, a mãe
que dele cuida: a mãe que recebe os ataques instintuais é a mesma que cuida e o resguarda.
Mas ele não sabe disso. O bebê, neste momento, apenas está entregue à sua vitalidade.

Ao descobrir isso, o bebê procurará consertar o que tem feito, procurará reparar o dano
causado à mãe, embora saiba que repetirá este gesto todas as vezes em que for acossado por
seus instintos. Neste momento ele se responsabiliza por seus atos, ou seja, ele adquire a
capacidade de ser concernido por suas atitudes.

Gradativamente, na medida em que amadurece, o bebê sai do estado de dependência


absoluta e entra no estado de dependência relativa. Isso coincide com o retorno da mãe aos
seus afazeres corriqueiros. Ela começa a cometer pequenas falhas, falhas que precisam ser
cometidas para que o bebê prossiga em seu processo maturacional. Com esse afastamento,
outras experiências serão vividas pelo bebê, permitindo-lhe tomar contato com elementos
próprios da cultura humana, tais como a filosofia, a arte e a religião, dentre outros.

O bebê se constitui gradativamente e a rotina materna permitirá que um si-mesmo se


forme até o momento em que um ser primitivo possa saber de si, possa dizer “EU SOU”.
Quando sabe de si, o bebê também sabe que possui um mundo interno e que há um mundo
fora dele. Neste mundo que existe independentemente do bebê, ele encontrará pessoas e
coisas com as quais poderá se relacionar e as quais poderá usar.

Nesse momento aquele que já foi um bebê e que agora pode caminhar, pode enfrentar
as relações interpessoais, pode viver as riquezas e dificuldades do triângulo edípico, pode
aprender as mazelas dos envolvimentos entre pessoas que são inteiras, completas e
autônomas.

O processo de amadurecimento não termina aqui; aqui apenas se inaugura uma outra
fase, como tantas outras pelas quais o indivíduo terá que passar enquanto viver. Chegar à
adolescência, viver as turbulências da luta para se sentir real e alojar-se no mundo,
experienciar as tarefas da fase adulta, e, finalmente, terminar o processo de amadurecimento
com a integração da morte ainda são tarefas a serem cumpridas.

Após essas considerações gerais a respeito do processo de amadurecimento humano,


vamos agora destacar algumas condições essenciais para que o indivíduo possa construir a sua
identidade primeira e, posteriormente, constituir a sexualidade. Esses aspectos mostram a
181

diferença entre a teoria da sexualidade proposta por Freud e uma teoria da


sexualidade pensada a partir do pensamento winnicottiano.

II. Fundamentos: condições e princípios para a constituição da sexualidade,


segundo Winnicott

As críticas de Winnicott à teoria da sexualidade, apresentadas no capítulo II, revelam a


necessidade do autor de buscar novos referenciais para cuidar dos aspectos que se referem à
compreensão da sexualidade humana. Enquanto Freud se ateve ao campo especulativo das
pulsões que impelem o desenvolvimento do sujeito, em Winnicott o elemento condutor do ser
humano deve ser buscado na necessidade (need) de continuar sendo e de ser si-mesmo. É por
este elemento que vamos iniciar a apresentação dos fundamentos presentes na constituição da
sexualidade.

1. A necessidade de ser e o estado de ser

Winnicott apontou inúmeras vezes que a psicanálise tradicional não abordou as


condições apresentadas pelo bebê em seus primeiros meses de vida. De fato, Freud não se
pergunta quando o ser humano inicia sua existência e a partir de que momento ele pode ser
considerado uma pessoa. De um modo geral, a partir do nascimento o sujeito é visto como
autônomo e já em condições de satisfazer suas necessidades, movido pelo princípio do prazer
e da realidade. A sua existência e inserção no mundo já são dadas como certas. Porém, em
Winnicott, nada está assegurado.

Como tudo começa? O que precisa acontecer para que o bebê possa se tornar uma
pessoa real, uma pessoa que saiba de seu próprio existir, que se responsabilize por si e por seu
estar no mundo? Em função destas indagações, o pensamento winnicottiano sempre nos
obriga a perguntar: qual o estado do indivíduo agora e o que ocorreu antes para que ele
chegasse a esta condição? Em que condições estava o bebê antes dessa fase que estamos
considerando? Para entender esses aspectos, é preciso ter como referência o modo como
Winnicott considera o processo de transformação do ser humano.

Winnicott parte do princípio de que o ser humano é “uma amostra, no tempo, da


natureza humana” (1988, p. 11). Ele é uma amostra da natureza humana que se temporaliza
por meio de um intervalo entre dois estados de não-existência: “a vida de um indivíduo é um
intervalo entre dois estados de não-estar-vivo” (1988, p. 132). Assim, do ponto de vista do
bebê que é observado, antes do existir houve um não existir que indicava que ele não estava
182

ali. A posição de Winnicott é clara: “no desenvolvimento do lactente, viver se


origina e se estabelece a partir de não-viver e existir se torna um fato que substitui o não-ser
[...]” (1965j [1963], p. 191). Portanto, o ponto de partida da existência humana é o não-ser,
uma condição que marca o ponto inicial. Ou seja, de início há um estado de não ser; após o
primeiro despertar, o bebê adquire o estado de ser que vai caracterizar sua condição de poder
continuar a existir. Este modo de ser se apresenta sob duas formas.

Para Winnicott, o bebê, no início de sua vida, se alterna em dois estados, os estados
excitados e os estados tranqüilos. Estes estados estão vinculados à espontaneidade que gera
um movimento a partir da própria necessidade do bebê e à reatividade (reação à intrusão). Os
estados tranqüilos estão vinculados às tarefas de integração no tempo e espaço; já os estados
excitados relacionam-se ao início da busca de contato com a realidade. A alternância entre os
estados excitados e tranqüilos proporcionará a integração gradativa ao bebê. Este processo de
integração, resultado de inúmeras tarefas interdependentes, inclui o estado de ser, encontrado
no elemento feminino puro. Ao nascer, o bebê não sabe de si, não sabe do mundo e se alguém
se encarregar de seus cuidados, ele não poderá não se constituir como pessoa humana. Uma
existência se perderá. É nesta condição sui generis, nunca antes considerada pela psicanálise
tradicional, que se sustenta todo o desenvolvimento de qualquer bebê que nasce. Neste início
de vida, o bebê tem apenas a necessidade de ser, a necessidade de se constituir como pessoa,
embora, ele não saiba de si. Esta necessidade de ser se origina de um estado anterior, o estado
de não ser. O ser humano emerge do não-ser, de um estado de uma solidão essencial e ao
final de sua existência ele retornará para o estado de não-ser (1988, p. 132).

Em Winnicott, o elemento inicial da concretização da natureza humana tem que ser


localizado na necessidade de ser. Ser é o início de tudo, mas está sujeitado a determinadas
condições. O modo em que se encontra o bebê no início da vida constitui a condição primeira
para que todas as questões relativas à constituição do ser humano possam ser instauradas, o
que naturalmente, inclui o estabelecimento da sexualidade. Em primeiro lugar é preciso ser
para que depois possa haver uma sexualidade. Winnicott esclarece como é este estado de ser:

gostaria de postular um estado de ser que é um fato no bebê normal, antes do


nascimento e logo depois. Esse estado de ser pertence ao bebê e não ao observador. A
continuidade de ser significa saúde. Se tomarmos como analogia uma bolha, podemos
dizer que quando a pressão externa está adaptada à pressão interna, a bolha pode
seguir existindo. Se estivéssemos falando de um bebê humano, diríamos ‘sendo’
[being]. Se por outro lado, a pressão no exterior da bolha for maior ou menos que
183

aquela em seu interior, a bolha passará a reagir à intrusão [reaction to


impingement]. Ela se modifica como reação a uma mudança no ambiente, e não a
partir de um impulso próprio. Em termos do animal humano, isto significa uma
interrupção no ser [interruption of being], substituída pela reação à intrusão. (1988, p.
127)

Ao apontar que no início da vida o bebê possui este estado de ser e que também há a
possibilidade de que esse estado possa ser interrompido, Winnicott esclarece que o bebê,
imerso no mundo subjetivo propiciado por uma mãe entregue à preocupação materna
primária, precisa ser deixado nessa condição, de modo a se desenvolver em seu próprio ritmo
e não por reação à invasão ambiental, pois, “ao reagir, o bebê não está ‘sendo’” (1958f
[1949], p. 185). A preocupação materna primária oferece a condição necessária para o
desenvolvimento do bebê. Esta condição é que leva Winnicott a dizer que: “os lactentes
humanos não podem começar a ser, exceto sob certas condições” (1960c, p. 43). As condições
para o desenvolvimento são sustentadas pela mãe, pela adaptação dela às necessidades do
bebê. Segundo Loparic:

a semântica da palavra ‘ser’ depende do amadurecimento dos modos de ser do bebê. É


na temporalização do ser do bebê que se decide a significação da palavra ‘ser’. [...]
Aqui o ser do bebê significa continuidade do ser do bebê, primeira manifestação
humana no tempo. Qualquer coisa que o ambiente facilitador faça ou deixe de fazer ao
bebê pressupõe que o bebê continue sendo. Isto, por seu turno, significa que antes de
fazer qualquer coisa para ou ao bebê, a mãe tem que deixar que este seja, que constitua
uma ‘quantidade do simples ser’ e que continue sendo, isto é, que aconteça. Essa e
nenhuma outra é a primeira tarefa da mãe winnicottiana que, por essa razão, pode ser
chamada de ‘acontecencial’. (1995b, p. 49)

Os fundamentos da constituição do indivíduo estão condicionados a uma maternagem


suficientemente boa. É por meio desta que o ser do bebê é assegurado. Para Loparic:

O existir do lactante humano não é algo dado, desde o nascimento, mas algo que
precisa ser integrado, com o espaço-tempo. Para tanto, faz-se necessária uma
ambiência favorável, sem a qual o lactante nunca poderá sair do não-ser (not-being).
O ser do lactante torna-se ‘fato’ que toma o lugar (replaces) do não-ser, assim como a
comunicação se origina do silêncio. Paralelo decisivo: em Winnicott, o ser humano
184

não emerge do inorgânico, mas do vazio; ele não é um fato biológico, mas
um existir comunicacional. Esse modo de acontecer do lactante não elimina, apenas
afasta o não-ser. Atrás das múltiplas defesas e astúcias de que se constitui o existir do
adulto, tanto dos sãos como dos doentes, jaz, à distância, a memória do seu não-
existir, memória não explícita, nem mesmo explicitável, mas nem por isso menos
‘constitutiva’.(1995a, p. 58)

A importância da adaptação materna às necessidade do bebê, é, segundo Winnicott:

o princípio básico é o de que a adaptação ativa às necessidades mais simples (o


instinto ainda não tomou posse de seu lugar central) permite ao indivíduo SER sem ter
que tomar conhecimento do ambiente. Além disso, as falhas na adaptação
interrompem a continuidade do ser, acarretando reações à intrusão ambiental e um
estado de coisa que não pode ser produtivo. O narcisismo primário44, ou o estado
anterior à aceitação de que existe um ambiente, é o único estado a partir do qual o
ambiente pode ser criado. (1988, p. 130, grifos meus)

Esse estado de ser constitui o ponto de partida de um processo e condição para que a
existência do bebê possa se concretizar. Uma vez que o estado de ser é conquistado, a mãe
deve cuidar para que haja uma continuidade de ser.

Nenhum bebê, nenhuma criança, pode vir a tornar-se uma pessoa real, a não ser sob
os cuidados de um ambiente que dá sustentação e facilita o processo de
amadurecimento. [...] Desde o absoluto início, a necessidade fundamental do ser
humano consiste em ser e em continuar a ser. (Dias, 2003, p. 96)

Se o bebê não puder experienciar o ser, todo o fazer ocorrerá de forma artificial,
interferindo na constituição de sua personalidade, afetando inclusive a constituição de sua

44 Segundo Winnicott, “[...] o estágio do narcisismo primário, [é] o estado no qual o que percebemos
como sendo o ambiente do bebê e o que percebemos como sendo o bebê, constituem, de fato, uma unidade. Aqui
pode ser utilizada a desajeitada expressão “conjunto ambiente-indivíduo”. O ambiente, tal como o percebemos,
não precisa ser mencionado, porque o indivíduo não tem meios de percebê-lo, e na verdade o indivíduo ainda
não se encontra ali, ainda não está separado do aspecto ambiental da unidade total”. (1988, p. 158) Este conceito
é totalmente diferente do conceito de narcisismo primário em Freud.
185

identidade sexual. A importância da conquista do estado de ser está no fato de que


se o bebê não puder experienciar a vivência de ser, ele não terá condições de construir a base
para que sua identidade posterior possa ser constituída.

Portanto, uma das condições para a instauração de uma identidade sexual tem que ser
buscada na criação de uma condição de ser que permitirá que um fazer adquira sentido para o
indivíduo. A presença harmoniosa destes dois aspectos na personalidade e identidade de cada
pessoa está descrita na afirmação de Winnicott de que “após ser - fazer e ser-lhe feito. Mas
primeiro, ser” (1989vp [1959/63], p. 182). Apenas a partir da conquista do ser, o bebê pode
dar sentido a instintualidade.

2. A instintualidade45

Quando os fundamentos de uma personalidade saudável são abordados, não se pode


deixar de citar a instintualidade. Isto foi afirmado pelo próprio Winnicott: “um dos objetivos
na construção da personalidade é tornar o indivíduo capaz de drenar cada vez mais a
instintualidade” (1957d [1939], p. 92). Esta drenagem envolve, dentre outros aspectos, a
satisfação e a apropriação das tensões instintuais experienciadas pelo indivíduo que
amadurece. Segundo Winnicott:

periodicamente, os bebês têm diversas espécies de orgias (não só orgias alimentares),


as quais são não só naturais, mas muito importante para eles. Os processos excretórios
são particularmente excitantes e as partes sexuais do corpo ainda o são mais, em
momentos apropriados, à medida que as crianças crescem. (1957l [1950], p. 100)

Estas experiências instintuais serão elaboradas na relação com a mãe, de modo que são
transformadas em experiências, experiências das quais o bebê se apropria. Tudo isto é muito
importante para o desenvolvimento do bebê. Segundo Winnicott, instintualidade e
agressividade estão vinculadas entre si e estes dois aspectos terão que ser integrados pelo bebê
ao seu si-mesmo.

45 O tema dos instintos também será abordado no capitulo V.


186

Para entender como as questões da instintualidade foram abordadas por


Winnicott, assim como a sua diferença em relação ao pensamento freudiano, faz-se necessário
retomar o modo como ele desenvolveu sua teoria instintual. Enquanto que em Freud as forças
especulativas da libido, por serem parte constitutiva do psiquismo humano, estão presentes
desde o início da vida, em Winnicott, os instintos serão integrados e vistos como internos
apenas na fase do concernimento e início da fase de uso de objeto.

Ao elaborar sua teoria instintual, Winnicott esclarece que seu ponto de partida são as
idéias freudianas:

quase todos os aspectos do relacionamento entre pessoas totais foram abordados pelo
próprio Freud, e de fato é muito difícil atualmente dar a isto qualquer contribuição, a
não ser que se consiga fazer uma exposição original do que já é aceito. Freud fez por
nós toda a parte desagradável do trabalho apontando para a realidade e a força do
inconsciente, chegando à dor, à angústia e ao conflito que invariavelmente se
encontram na raiz dos sintomas, anunciando publicamente, de modo arrogante se
necessário, a importância dos instintos e o caráter significativo da sexualidade infantil.
Qualquer teoria que negue ou ignore estas questões é inútil. (1988, p. 36)

Para elaborar sua própria teoria instintual da sexualidade, Winnicott não mais se
sustenta na teoria do desenvolvimento do id, ou das funções sexuais, mas na teoria do
amadurecimento pessoal. O elemento a ser investigado está nas relações que o bebê
estabeleceu com as pessoas de seu ambiente, juntamente com uma elaboração imaginativa dos
instintos e das funções corporais dominantes.

Estes elementos foram descritos por Winnicott em seu texto O desenvolvimento


emocional primitivo, do livro Natureza Humana, no qual ele mostra o modo como o
desenvolvimento humano é efetivado e o papel dos instintos nesse desenvolvimento. Porém,
as raízes de suas idéias podem ser buscadas já nos anos 1940. Em 1945, Winnicott diz que “as
experiências instintuais agudas tendem a tornar a personalidade unificada a partir do interior”,
ou seja, as experiências da instintualidade, uma vez que sejam integradas pelo bebê, permitem
que o processo de integração se concretize. Estas experiências instintuais são de dois tipos:
local ou geral. A excitação generalizada tem dois significados: ser conseqüência de uma
integração do amadurecimento como também ser um dos elementos que contribui para este
processo integrador. A excitação local envolve uma função corporal. Ao experimentar a
187

instintualidade, o bebê vive uma grande excitação que o deixa agitado e que o
incita a buscar satisfação para o alívio dessa excitação.

Para compreender como os instintos agem sobre o indivíduo, é necessário considerar


os dois estados do bebê, os estados excitados e os estados tranqüilos. Esta compreensão é
importante para entender porque é no campo instintual que encontraremos um dos elementos
basilares para a conquista da sexualidade. Esse campo constitui o elemento no qual a
sexualidade se apoiará para se desenvolver. Isto significa que a raiz da sexualidade se
encontra na instintualidade. Vejamos, agora, como se caracterizam os estados tranqüilos e os
estados excitados.

2.1. Estados tranqüilos e excitados

No estado tranqüilo, o bebê se caracteriza por estar em repouso, na medida em que


tem suas tensões instintivas satisfeitas. Isto é decorrente do fato de que, no período em que ele
esteve acossado pelos instintos, todo o seu organismo foi demasiadamente exigido,
provocando situações de não integração que o desgastaram e o depauperaram. Para se
recompor, o bebê recolhe-se ao estado tranqüilo, para uma situação de isolamento, numa
condição de impossibilidade de entrar em contato com o ambiente. Ele necessita desse
repouso para o seu desenvolvimento.

O bebê só pode se recolher ao estado tranqüilo porque sua mãe permanece atenta às
suas necessidades, no papel de guardiã, prestes a atender às suas demandas assim que ele
necessitar de sua presença. Quando a mãe atende ao que o bebê solicita, ele tem sua
experiência de onipotência assegurada, o que o faz ser remetido a si próprio, aprendendo a ter
confiança em si. Sustentado pela mãe, o bebê pode voltar ao estado de não integração, sem
contato com o ambiente, descansado das demandas instintuais. Aqui, encontramos a matriz da
situação de ficar sozinho na presença de outra pessoa: as origens da capacidade de ficar só
estão na experiência do bebê de ficar sozinho na presença da mãe. Este paradoxo é possível
porque a relação que o bebê mantém com a mãe é especial, pois esta se coloca no papel de
assegurar a instauração de um ambiente benigno, acolhedor (1958g [1957], p. 29-36). O bebê
que vivencia o estado tranqüilo desenvolve-se de uma forma tal que ele possa ser, possa
tornar-se uma individualidade, vivendo a alternância entre as demandas instintuais e o estado
tranqüilo como uma experiência pessoal.

Vejamos agora como se caracteriza o estado excitado.


188

A base para a instintualidade tem que ser buscada nos estados excitados. A
vivência dos estados excitados tem uma origem na vida intra-uterina do bebê. No útero, a
motilidade46 do bebê permite-lhe mover seus membros corporais, experimentar o ambiente no
qual seu corpo está contido, o líquido no qual seu corpo se movimenta. Desse modo, ele
experimenta a vivência de um erotismo muscular. Nesses movimentos, o feto se depara com o
obstáculo constituído pelas paredes do útero, e estas lhe fornecem a resistência necessária
para que ele possa entrar em contato com um ambiente diferente daquele em que está imerso,
e naturalmente constatar a diferença entre ambos.

Após o nascimento, o bebê adquire uma condição maior de aumentar suas


experiências corpóreas. Em seu estado anterior, o experienciado na vida intra-uterina, suas
possibilidades se restringiam às condições que envolviam o estar imerso em líquido amniótico
e em receber os estímulos ambientais que chegam por meio do corpo de sua mãe. Ao nascer,
seu cabedal de experiências se amplia. Sua condição de estar vivo libera seu gesto
espontâneo, fazendo com que ele busque algo em algum lugar. Os movimentos do bebê, seus
impulsos, têm origem em sua vitalidade, na condição de ‘estar vivo’ e é essa condição que
produzirá tanto uma motilidade quanto a instintualidade (1989vu [1968], p.239). O papel da
motilidade no campo instintual é muito importante. Ela está presente no feto desde a vida
intra-uterina e é a responsável pelos movimentos corporais do bebê, movimentos de braços e
pernas que lhe permitem descobrir o meio ambiente, embora ele ainda não saiba de sua
externalidade. Para Winnicott,

quando há saúde, os movimentos do feto provocam a descoberta do meio ambiente,


este último sendo a oposição que o movimento encontra e que é sentida durante o
movimento. O resultado neste caso é um reconhecimento inicial de um mundo não-eu
e um estabelecimento inicial do eu. (Deve-se entender que na prática estas coisas se
desenvolvem gradualmente, indo e vindo repetidamente, sendo conquistadas e
perdidas.) (1958b [1950], p. 216)

A repetição dessas experiências estabelecerá o padrão necessário para que,


47
gradativamente, a motilidade possa se tornar real. Estes movimentos agressivos , na medida

46 O tema ‘motilidade’ será desenvolvido, com mais detalhes, no item 4.2.

47 Aqui ‘agressivo’ é sinônimo de espontâneo. Este tema será tratado no item 4 deste capítulo.
189

em que encontram oposição, podem se tornar reais e, deste modo, serem


incorporados à instintualidade.

Como o bebê experimenta uma alternância entre os estados excitados e tranqüilos, em


algum momento, quando o bebê está entregue ao estado tranqüilo, por exemplo, num
momento de repouso, este estado é alterado com o surgimento de um impulso que surge
apoiado numa tensão instintual. Então, temos uma crescente tensão instintual que aumenta e
faz com que o bebê realize uma ação. Lançado num estado de expectativa, uma expectativa
que não pode ser assimilada por ele, posto que nesse seu estágio de vida ele não pode integrar
as demandas instintuais, o bebê procura uma maneira de resolver esta expectativa. É
necessário que haja um clímax, de modo que o bebê sinta-se gratificado e não perca a
experiência instintual.

O indivíduo que amadurece é tomado por estes ataques instintuais em todos os


momentos de sua existência. Porém, dada sua imaturidade, no início de sua vida ele ainda não
sabe que os instintos que dele tomam conta advêm dele próprio e nessa fase eles ainda são
externos ao bebê. A apropriação destes instintos ocorrerá na fase do concernimento.

O bebê, nesta fase, está em condição de incompadecimento, ou seja, ao atacar sua mãe,
não tem consciência de suas atitudes, não está concernido quanto às conseqüências de seu
amor instintual e do que ele gera na mãe-ambiente que o provê. O bebê incorporou o setting
criado pela mãe com tudo o que lhe é peculiar: seu cheiro, suas falas e silêncios, enfim o
modo como ela o trata. A mãe é amada por tudo que a constitui, pois ela já foi criada
anteriormente pelo bebê. A rotina do bebê permite-lhe que entre em contato com sua vida
instintual. Após ser alimentado, após devorar o seio que o nutre, o bebê precisa entrar em
repouso, de forma a aguardar a digestão. O bebê entra em estado de contemplação e, através
da elaboração imaginativa das funções corporais, vai se familiarizando com o que ocorre em
seu corpo.

Entregue aos ataques que empreende contra a mãe, o bebê descobre, paulatinamente,
que ela tem duas funções. Winnicott diz que,

é importante postular a existência para a criança imatura de duas mães – deverei


chamar-lhes a mãe-objeto e a mãe-ambiente? Não desejo inventar nomes que se fixem
e acabem por se tornar rígidos e obstrutores, mas parece possível usar essas palavras,
‘mãe-objeto’, e ‘mãe-ambiente’, no presente contexto, para descrever a grande
diferença que existe para o bebê entre dois aspectos dos cuidados com a criança: a mãe
como objeto, ou detentora do objeto parcial que pode satisfazer as necessidades
190

urgentes do bebê, e a mãe como pessoa que afasta o imprevisível e cuida


ativamente da criança. O que a criança faz no auge da tensão do id e o uso assim feito
do objeto parece-me muito diferente do uso que ela faz da mãe como parte do
ambiente total. (1963b [1962], p. 102)

Pelo contato estabelecido com sua mãe, o bebê descobre que, na verdade, ele não tem
duas mães, que a mãe do estado tranqüilo é a que ele ataca nas fases de tensão instintual, sua
mãe é mãe-ambiente e mãe-objeto. O papel que a mãe exerce é o de sustentar a situação no
tempo, e com esse ato ela possibilita ao bebê experimentar as relações excitadas, vivendo
também suas conseqüências. O bebê pode deixar-se levar por suas tensões instintuais em
todas as suas formas e descobrir os dois usos que pode fazer dela (1955c, p. 263).
Simultaneamente, o bebê percebe a identidade dos dois objetos, ou seja, a mãe tranqüila e a
mãe excitada; assim como também descobre a existência das idéias, das fantasias, do papel da
elaboração imaginativa das funções e da distinção entre fato e fantasia. O bebê descobre que a
fantasia se relaciona ao fato e que ambos não podem ser confundidos.

A mãe-ambiente precisa sobreviver, pois dessa forma o bebê obterá material mnêmico
necessário para a construção gradativa de seu mundo interno. Ao sobreviver, ela permite que
o bebê perceba que ela sobrevive aos seus constantes ataques instintuais. É necessário que o
bebê execute estes ataques muitas vezes, de modo que adquira o discernimento entre realidade
interna e realidade objetivamente compartilhada.

Em função destas experiências intensas, o bebê sofre dois tipos de ansiedade. A


primeira ansiedade se vincula ao que ele sente em relação ao objeto de amor instintual, pois o
bebê sente que “há um buraco onde anteriormente havia um corpo cheio de riquezas” (1955c
p. 268). A segunda ansiedade se relaciona ao que acontece no interior do bebê. Ele já viveu
várias experiências e pode discernir seus sentimentos. Ao incorporar a alimentação oferecida
pela mãe, o bebê pode recebê-la como boa ou má e esta incorporação será boa se ocorrer
durante uma experiência instintual satisfatória ou será má se ocorrer durante uma experiência
instintual insatisfatória.

O bebê se angustia por imaginar o estrago que fez no corpo da mãe e o buraco que foi
deixado no lugar das riquezas que foram devoradas. Após se alimentar, a primeira luta se
trava no interior de seu si-mesmo: o bebê sente que há uma luta entre algo bom que mantém o
si-mesmo e algo que é mau, persecutório. Ao bebê resta esperar e aguardar o resultado do que
ocorre no processo de digestão. Finalmente haverá um equilíbrio entre os elementos
mantenedores e persecutórios. Neste processo imaginativo e equivalente ao que ocorre
191

organicamente, haverá alguma eliminação, o que permitirá ao bebê algum controle


sobre a situação. No processo físico elimina-se o material orgânico inútil, mas no processo
imaginativo esta eliminação tem potencial tanto bom quanto mau.

A atitude da mãe é a de manter a situação, o que permite que o bebê elabore seu
trabalho a cada alimentação. Haverá uma elaboração corporal simultânea à que ocorre na
psique. Ao bebê resta esperar o resultado e ao final de seu dia de trabalho interno e externo
terá coisas a oferecer a sua mãe, que é capaz de discernir entre o que é bom e o que é mau. O
bebê pode oferecer desde um gesto, um sorriso ou um produto de excreção, e o que doa à mãe
inicia o ciclo do dar e do receber. Este gesto reparador, que é aceito pela mãe, apaziguará os
instintos excitados do bebê, permitindo que seus instintos possam ser elaborados.

O gesto de reparação permite ao bebê remendar o buraco que fez em sua mãe, pois ele
já sabe que ela sobrevive aos seus ataques. O resultado deste gesto reparador é um círculo
benigno que ensina o bebê a lidar com os buracos provocados em sua mãe. Quando o bebê
une as duas mães, a do amor tranqüilo e a do amor excitado, surge nele um sentimento de
culpa, e ao integrá-las em uma só, descobre o que seus ataques incompadecidos podem
provocar na pessoa amada. O bebê passa a ficar compadecido, responsável pelo seu objeto do
amor excitado e quanto às conseqüências no si mesmo da experiência excitada. A
conseqüência é importante para seu amadurecimento porque, ao perceber que se torna capaz
de desenvolver um si-mesmo estruturado, cheio de grandes riquezas, descobre também que o
objeto amado passou a ser visto como uma coisa valiosa. Descobre o que é o valor, uma
descoberta que desempenhará em sua vida um papel de extrema importância. Igualmente
importante é que, ao unir as duas mães, o bebê amadurece.

Nesta relação com a mãe, o bebê vai construindo as recordações das situações que
sentiu como boas e isto lhe permite estruturar o seu si-mesmo. Ele adquire a capacidade de
juntar as três vertentes do tempo: passado, presente e futuro.

Paulatinamente, a mãe vai se tornando menos necessária, ao mesmo tempo em que um


ambiente interno vai sendo constituído. Esta fase propicia, de fato, o surgimento da vida
psíquica, do mundo interno do bebê, que passa a senti-lo e assumi-lo como próprio. Portanto,
é por meio da fase do concernimento que o bebê pode criar seu próprio mundo interno. Ao ser
alimentado, o bebê experimentará as experiências instintuais e os objetos bons e maus
originarão os sentimentos bons e maus. Através da elaboração imaginativa das funções, o
bebê passará a discernir os seus conteúdos internos de maneira que os instintos não mais serão
vistos como vindos de fora de si. Haverá o discernimento entre interior e exterior, entre o que
o bebê experimenta pessoalmente e o que sua mãe produz. O bebê descobre seu mundo
192

interno e também que pode reparar o buraco provocado no corpo da mãe, o que lhe
traz um alívio imenso. Também descobre que pode atacar seu objeto amoroso, pois ele
sobreviverá e poderá ser reparado. Sente que pode aguardar os próximos ataques instintuais
com menos receio. Ele torna-se mais audacioso e se permite envolver em novas experiências
instintuais. Já está seguro de que sua mãe manterá os cuidados ambientais, o que aumentará
sua capacidade de reparação. Há uma liberação da vida instintiva. Estabelece-se um ciclo
benigno entre mãe e filho.

A fase do concernimento ensina o bebê a suportar fazer o que ele tem que fazer. A
culpa que ele sente é natural e lhe possibilita enxergar o efeito do que provoca no outro, mas
traz também a possibilidade de reparação, e essa tarefa o acompanhará durante toda a sua
vida. Ao perceber que era incompadecido, ele entra na fase de um pré-remorso e,
posteriormente, passará a sentir remorso. Ao perceber o que pode provocar no outro, ele
confirma o modo como usa os objetos de seu mundo, qual a melhor maneira de usá-los,
descobre que tem em si uma imensa e saudável fonte de relacionamentos. O surgimento do
sentido pessoal de moralidade surge nessa fase, uma moralidade que pautará os
relacionamentos deste indivíduo que está amadurecendo.

Ao conquistar o concernimento, o bebê aprende a amar instintivamente, o que lhe dá


uma base para que futuramente possa tornar-se um adulto pleno. O próprio bebê é fonte
saudável de sentimento de culpa e ele desenvolve um código moral na relação com sua mãe.

A confiança no ciclo benigno estabelecido entre mãe e filho traz o sentimento de culpa
e este sentimento, ao se relacionar com os instintos do id, se modifica, trazendo o
concernimento. O bebê se torna capaz de ficar compadecido e de se responsabilizar por seus
próprios instintos. A culpa, que se inicia com a junção das duas mães e se instala naturalmente
na relação, não vem de fora, ela advém da própria relação, que surgiu naturalmente entre
ambos. Um código de conduta se encontra presente desde que o bebê aprendeu a usar os
objetos da realidade externa.

Quando o concernimento foi conquistado, a reação à perda será a dor ou a tristeza.


Surgem introjeções das substâncias percebidas como boas, as recordações das experiências
boas e o bebê tende a continuar a viver, mesmo sem o apoio ambiental. Haverá diminuição do
ódio pela perda do objeto amado quando o bebê introjeta o amor pela representação de um
objeto. Nesse estágio, o bebê adquire a habilidade de dominar a perda.

Ao alcançar essa fase, o bebê descobre que pode ter um relacionamento saudável com
as outras pessoas e que pode, igualmente, desenvolver uma situação de intimidade. Afinal, ele
193

já conhece sua própria capacidade de amar. O amor primitivo pode se desdobrar e


aumentar suas possibilidades de expressão. O bebê torna-se responsável pelo outro, pelo que
provocar no outro, e sabe que sempre poderá promover a reparação de suas atitudes. Surge o
cuidar, a descoberta de que existe um outro e a compreensão e aceitação das individualidades.
Ele pode sair do mundo subjetivo, oferecer-se e receber o outro que agora pode ser descoberto
e compartilhado. Isto traz enriquecimento para o bebê. No ciclo do dar e do receber, a
capacidade de se afeiçoar se estabelece, a possibilidade de experimentar todo tipo de
sentimento traz ao bebê a condição necessária para que ele possa se relacionar de forma
especialmente significativa com os outros seres humanos.

A grande conquista desse estágio é que o bebê, ao integrar seus ataques instintuais,
descobre que pode administrar os instintos que são sentidos como bons e maus. O bebê retém
os conteúdos maus por algum tempo, usando-os posteriormente nos momentos em que
precisar de raiva ou de ira. Os conteúdos bons são retidos de forma a também contribuir para
seu crescimento, para fazer reparações na situação em que o bebê sentiu que fez um mal. Ao
perceber-se concernido pelos atos que pratica, o bebê descobre quais as coisas que lhe dizem
respeito, descobre o que é de sua total responsabilidade e que ele precisa se haver com as
conseqüências de sua instintualidade. Ele descobre que ser um ser humano implica em se
apropriar de seus instintos, inclusive das demandas sexuais, e que isso lhe diz respeito. Tudo
isso é possível porque o bebê já é um ser humano inteiro. Como ser humano inteiro, pode
localizar as demandas instintuais e onde elas se localizam. Todos esses aspectos presentes na
conquista da instintualidade capacitam a criança a entrar na situação edípica (1955c, p.277).

Durante esse processo, ao ser tomado pelos instintos e pelo modo como eles se
manifestam em cada região corporal, o bebê pode elaborar o modo de funcionamento das
partes de seu corpo, que de início, ainda não é visto como dele. A experiência proporcionada
pela alternância entre os estados excitados e tranqüilos permitirá, entre outros aspectos, que o
bebê se familiarize com todo o seu corpo, inclusive com os órgãos sexuais.

2.2.1. Estados excitados e clímax

Conforme já afirmamos, uma das maneiras pelas quais o indivíduo entra em contato
consigo próprio se vincula aos momentos em que é tomado pelas tensões instintuais, próprias
das fases de excitação. Nessas situações, há uma alteração na fisiologia do corpo que tem
associada em si algum tipo de idéia excitante. Estes estados permitem ao indivíduo uma
194

familiaridade com o que ocorre em seu corpo. Independentemente de qual seja a


natureza desta excitação, seja por uma demanda interna ou por um estímulo que tenha origem
externa, o corpo tem a necessidade de chegar a um clímax. Em termos de excitação sexual, o
clímax seria o orgasmo genital.

Diz Winnicott:

nos estágios iniciais de uma excitação – isto é, de uma mudança na fisiologia do corpo
que tem associada a si algum tipo de idéia excitante – é comparativamente fácil para o
indivíduo administrar a vida até que a excitação e seus efeitos tenham se dissipado.
Entender-se-á prontamente, contudo, que quanto mais longe a excitação avançar, mais
difícil será para o indivíduo acomodar a fase de clímax fracassado. (1969g, p.562)

Em condições de saúde, a criança experimenta excitações que podem enriquecer seu


mundo pessoal. Ela não pode ficar submetida por um tempo excessivo a um estado de grande
tensão instintual. Segundo Winnicott, “a excitação requer um clímax. A solução obvia para a
criança é a brincadeira com clímax, na qual a excitação conduz a alguma coisa,“um carrasco
para lhe decapitar”, uma punição, um prêmio, alguém é agarrado ou morto, alguém ganhou
etc”. (1947a, p. 152)

Esta gratificação é essencial:

se a satisfação é encontrada no momento culminante da exigência, surge a recompensa


do prazer e também o alívio temporário do instinto. A satisfação incompleta ou mal
sincronizada acarreta alívio incompleto, desconforto e a ausência de um período de
descanso que é necessário entre duas ondas de exigência. (Winnicott, 1988 p. 39)

A gratificação facilita o processo de integração psicossomática, permitindo ao bebê a


certeza de que ele está alojado em seu corpo. Segundo Winnicott, “quando a experiência
instintiva é deflagrada em vão, o vínculo entre a psique e o corpo pode vir a se afrouxar ou até
mesmo a perder-se”. (1988, p. 124)

No adulto, também é necessária uma gratificação, seja através do sono ou numa


situação em que o clímax seja obtido pela associação com um sonho.
195

3. Elaboração imaginativa

A apresentação deste conceito é fundamental para se compreender a constituição da


sexualidade porque, ao elaborar cada função corpórea, o bebê também tem que elaborar
imaginativamente seus órgãos sexuais, o que contribuirá para a construção da identidade
sexual.

Dentre as inúmeras contribuições de Winnicott à psicanálise, pode-se apontar seu


conceito de elaboração imaginativa. A elaboração imaginativa não se restringe à elaboração
da função corporal. Winnicott apresenta quais são as tarefas da elaboração imaginativa,
ressaltando que se trata de uma classificação ainda artificial. Diz Winnicott:

a fantasia é típica da criança e pode ser definida como uma elaboração imaginativa das
funções físicas. [...]:

1. Simples elaboração da função.

2. Distinção entre: antecipação, experiência e memória.

3. Experiência em termos da memória da experiência.

4. Localização da fantasia dentro ou fora do si-mesmo, com intercâmbios e constante


enriquecimento entre ambos.

5. Construção de um mundo interno, ou pessoal, com um sentido de responsabilidade


pelo que existe e ocorre lá dentro.

6. Separação entre consciência e inconsciente. O inconsciente inclui aspectos da


psique que, de tão primitivos, nunca se tornam conscientes, e também certos aspectos
da psique ou do funcionamento mental que se tornam inacessíveis à consciência a
título de defesa contra a ansiedade (o que se chama o inconsciente reprimido). (1958j,
p. 8)

O processo de elaboração imaginativa ocorre nos primórdios da vida do ser humano,


pois já no útero o bebê revela sua condição de estar vivo:

com o desenvolvimento do cérebro enquanto órgão em funcionamento, tem início a


estocagem de experiências; as memórias corporais, que são pessoais, começam a se
juntar para formar um novo ser humano. Existem boas evidências de que os
196

movimentos do corpo na vida intra-uterina são significativos, e é plausível


que, de um modo silencioso, a quietude vivenciada naquele período também o seja.
(1988, p. 21)

Este processo de elaboração é extremamente importante para a integração psico-


somática. Ela constitui o ponto de partida para que o indivíduo que amadurece possa se
apropriar de seu corpo em sua totalidade, o que inclui os órgãos sexuais. Aqui estamos
falando da primeira tarefa da elaboração psíquica, que é a simples elaboração da função
corpórea. É disso que trataremos a seguir.

3.1. A elaboração imaginativa da função corpórea

A elaboração imaginativa é um fenômeno presente em todas as etapas do processo de


amadurecimento do indivíduo (1949a [1949], pp. 244-5). Ela tem um papel fundamental no
processo de construção do si-mesmo do bebê, organizando as experiências motoras e
instintuais infantis. Deste modo, todas as funções corpóreas do bebê serão organizadas,
permitindo, então, a organização do ego da criança. O ego tem a tarefa de, através da
elaboração imaginativa, permitir que o bebê estabeleça um relacionamento com todo o seu
corpo, possibilitando que venha a conhecê-lo. Todo este processo organizado pelo ego
permite que os aspectos instintuais sejam integrados e experienciados.

O contato gradativo com as partes de um corpo que vão se aglutinando resulta na


conquista da personalização. A personalização é resultado de um processo em que o bebê
descobre que ele é um corpo e que este corpo o constitui como ser humano, ou, seja, haverá o
alojamento da psique em seu próprio corpo. Isso ocorrerá através dos cuidados maternos
(handling) que possibilitarão que os ataques instintuais sentidos pelo bebê sejam integrados.
O resultado será uma assimilação de sua totalidade corporal. Esse manejo é parte do modo da
mãe cuidar de seu filho (holding) e consiste num bom cuidado físico.

Esse bom cuidado da mãe para com o filho

facilita a formação de uma parceria psicossomática na criança. Isso contribui para a


formação do sentido do ‘real’, por oposição a ‘irreal’. O manejo deficiente trabalha
contra o desenvolvimento do tônus muscular e da chamada ‘coordenação’, e também
197

contra a capacidade de a criança usufruir a experiência do funcionamento


corporal e de SER. (1965vf [1960] pp. 18-9)

O manejo materno adequado permitirá ao bebê entrar em contato com o seu corpo,
transformando-o em sua própria morada. A rotina, as experiências entre mãe e filho
permitirão a este último criar intimidade com um corpo que no início é externo a ele.

O início deste processo é pré-representacional, pois ele se inicia muito cedo na vida do
bebê. Aos poucos, o bebê toma conhecimento de si próprio na medida em que se familiariza
com as experiências corpóreas, sejam elas motoras, sensoriais ou instintuais.

Ao iniciar sua vida, ainda no útero, o bebê não sabe de si. Ao nascer, se tudo correr
bem, o bebê possui um corpo vivo composto por partes anatômicas que precisam ser
agrupadas num corpo pessoalizado. O processo de elaboração continua e a cada momento o
bebê vai se integrando numa unidade.

O ponto de partida é o de que o bebê nada sabe de si, ele está chegando ao mundo e,
para se constituir, precisa se apropriar de todas as experiências pelas quais está passando. Ele
possui um corpo que se move, que sente cheiros, que sente calor ou frio, que sofre a ação da
gravidade, mas do qual ele ainda não tem conhecimento. Nesta fase, o corpo do bebê é um
corpo solto, distribuído em partes que ainda não foram reunidas numa unidade. Cada órgão,
cada aparelho fisiológico, embora se mantenha em funcionamento, ainda não é reconhecido
pelo bebê como dele. É tarefa do ego fazer a integração dessas partes corporais, ou seja, do
corpo do bebê e da sua vitalidade física (Winnicott, 1988, p. 40). A psique possibilita ao bebê
fazer a elaboração imaginativa das funções corpóreas, dando um sentido pessoal ao que é
experienciado. Gradativamente, haverá uma integração dessas partes corporais, da vitalidade
física do bebê. Por meio do processo de integração, ou seja, das experiências instintuais e de
um manejo suficientemente bom, o resultado será um bebê integrado em si mesmo,
pessoalizado. Haverá uma transformação: de início, “o bebê é uma barriga unida a um dorso,
tem membros soltos e, particularmente, uma cabeça solta: [posteriormente] todas estas partes
são reunidas pela mãe que segura a criança e, em suas mãos, elas se tornam uma” (1969g, p.
568).

Nessa fase, o bebê está em condição de incompadecimento, e é tomado por todo tipo
de experiência, tais como a de ser amamentado, ser acalentado, ser tocado, ser movimentado
em todas as direções, etc, ou seja, todo tipo de contato que recebe de sua mãe terá que ser
elaborado imaginativamente em sua psique que começa a se constituir. A repetição das
198

experiências permitirá que ele se aproprie de seu corpo. Gradativamente, o bebê


pode elaborar o funcionamento desses órgãos, pois ele já tem material mnemônico para
alucinar. O bebê fica excitado ao entrar em contato com suas tensões instintuais e descobre
que tem que, simultaneamente, controlar e satisfazer suas exigências instintuais. Como
conseqüência, o bebê fará uma conquista importante: por possuir material para alucinar, ele
também já tem como fazer a interligação das experiências que lhe ocorreram anteriormente
com o que ele experimenta em seu momento presente: ele pode, então, criar expectativas para
o futuro e interligar passado, presente e futuro. Ou seja, o bebê descobre que ao sofrer uma
nova tensão instintual, sua satisfação ocorrerá dentro de algum tempo específico. Isso o
ajudará a tolerar pequenas frustrações e adiamentos da satisfação instintual. Isso contribui
para que o bebê saiba que sua organização interna será perturbada a cada experiência
instintual, mas, ao invés de ser prejudicial ao bebê, essa experiência trará um enriquecimento
da sua potencialidade para a fantasia e o conseqüente fortalecimento do sentimento da
realidade da experiência realizada.

A elaboração imaginativa das funções corporais contribui para que o bebê se aloje em
seu próprio corpo, e que, gradualmente, alcance a consciência de que tem em si uma
membrana limitadora que lhe permite saber que é um ser apartado do ambiente externo (1988,
p. 40). O bebê pode integrar o corpo e a psique. Ao ser tocado, o bebê tem os limites corporais
definidos. Este manejo (holding) realizado pela mãe promove o entrelaçamento e o
fortalecimento da coexistência entre a psique e o corpo. Isso revela que a constituição do
corpo é atravessada pela presença humana da mãe, num processo bom em que um corpo
biológico é humanizado.

Entregue a um corpo cheio de vitalidade, o bebê precisa elaborar as sensações e


excitações que fazem parte dele. Seu corpo é tomado pelas sensações e excitações instintuais
que estão mais do que nunca vívidas e nele transitando. Na medida em que vai crescendo, o
bebê vai se apossando dessas sensações, pois a cada momento uma parte de seu corpo se torna
mais excitada, isto é,

ao estudarmos a excitação instintiva, é bom levar em conta a função corporal mais


intensamente envolvida. A parte excitada pode ser a boca, o ânus, o trato urinário, a
pele, uma ou mais partes do aparelho genital masculino ou feminino, a mucosa nasal,
o aparelho respiratório, a musculatura em geral, ou as axilas e virilhas, suscetíveis a
cócegas.
199

A excitação pode ser local ou geral, e a excitação generalizada tanto pode


contribuir para que o bebê se sinta um ser total, quanto ser uma resultante do estágio
de integração alcançado no percurso do desenvolvimento.

Uma espécie de clímax pode ser obtida em qualquer lugar, mas em geral ele ocorre em
regiões específicas.

Algumas estruturas de excitação revelam-se dominantes e a elaboração imaginativa de


qualquer excitação tende a ocorrer nos termos do instinto dominante. Um fato óbvio:
no bebê, é dominante o aparelho responsável pela ingestão, de modo que o erotismo
oral colorido por idéias de natureza oral é amplamente aceito como característico da
primeira fase do desenvolvimento instintivo. (1988, p. 40)

Todas estas tensões instintuais propiciarão ao bebê uma familiarização com todas as
partes de seu corpo.

O fato de a elaboração imaginativa ocorrer em todas as etapas do desenvolvimento da


pessoa humana é extremamente importante para ambos os sexos, em especial as de sexo
feminino. Elas vivem a situação de experimentarem uma transformação de seus órgãos
sexuais em cada fase da vida. Em cada momento, elas têm que elaborar um órgão que
inicialmente é oculto. Posteriormente, o surgimento dos seios também reforça o fato de que os
órgãos sexuais femininos são totalmente distintos dos masculinos. Os seios devem ser
elaborados de acordo com sua peculiaridade, que é a de serem visíveis. Esta característica não
se alterará durante toda a vida do indivíduo do sexo masculino.

No processo de construção do si-mesmo, é de se esperar que o bebê humano se


desenvolva de acordo com os órgãos sexuais que herdou ao nascer. Devemos considerar que,
ao nascer, o bebê não sabe de si, não se alojou em seu próprio corpo. Nestes momentos
iniciais, do ponto de vista do bebê, ainda não há conhecimento sobre o que significa ser um
indivíduo do sexo masculino ou feminino. Este conhecimento será resultado de uma
conquista, se tudo ocorrer bem no desenvolvimento do bebê. É isso que leva Winnicott a
afirmar que “realmente (caso vocês saibam o que quero dizer com ‘realmente’), homens e
mulheres têm suas formas próprias. É muito conveniente quando um rapaz queira ser, no
conjunto, um homem, e uma moça, no conjunto queira ser uma mulher” (1968g [1964], p.
184). A consumação desse processo é resultado de uma longa tarefa. Em termos de
elaboração imaginativa, isso significa que o indivíduo que amadurece, seja ele homem ou
mulher, conseguiu fazer uma transposição do funcionamento corporal em comportamento
humano adequado ao seu sexo biológico.
200

Todo este processo se dará após as inúmeras elaborações relativas a cada


órgão, o que permite uma localização cada vez mais específica de cada parte de seu corpo. A
descoberta de cada órgão permitirá ao bebê uma familiaridade com seu corpo. Deste modo,
ele pode estabelecer uma intimidade com a totalidade de um corpo que permite que ele seja
uma pessoa.

O processo de elaboração dos instintos é longo e atravessa vários estágios. As


demandas instintivas evoluem da fase pré-genital até a genital, variando de acordo com as
funções envolvidas, assim como de acordo com as fantasias que ocorrem e que o bebê pode
elaborar. Os aspectos primordiais dessa elaboração imaginativa referem-se às suas
características anatômicas, e segundo afirmou o próprio Winnicott, “preciso ter alguma base
para elaborar uma descrição das semelhanças e das diferenças existentes entre os sexos”
(1986g [1964], p. 183).

À medida que se integra em seu corpo, que é o de um macho ou de uma fêmea, haverá
o encontro da criança consigo própria, em todos os aspectos de sua identidade corpórea. Ela
se reconhece sexualmente como ser humano do sexo masculino ou do sexo feminino. Para
conquistar essa identidade, o trajeto se inicia com uma elaboração imaginativa dos órgãos
relacionados com as funções digestivas, para finalmente chegar aos órgãos sexuais, num
processo que possibilita ao bebê sentir-se inteiro. O bebê de sexo masculino elaborará
imaginativamente um órgão sexual que é anatomicamente visível e proeminente, pronto para
ser exibido, mesmo que involuntariamente. Some-se a isto a característica de o pênis sofrer
ereções, tornando-se ainda mais visível (1986g [1964], p. 186). Por contraste, o bebê de sexo
feminino precisa elaborar um órgão sexual que se caracteriza por ser oculto. Este órgão, que
permanece resguardado, possui também a característica de ser oco. A menina deve elaborar
imaginativamente um órgão que poderá acolher, proteger e possibilitar o surgimento de um
novo ser humano. Ao aceitar os mistérios de seu órgão secreto, a menina poderá engravidar,
levar a gravidez a termo, ter filhos, tornar-se atraente aos meninos, desenvolver-se
corporeamente, envolta em atraentes mistérios para o mundo masculino (Winnicott, 1988, p.
43).

O final do processo de elaboração imaginativa dos órgãos sexuais deverá resultar, na


saúde, em seres humanos plenamente integrados em si, pessoas que se reconhecem ou como
homens ou como mulheres. É importante ressaltar que todo este processo se dará em
diferentes estágios do processo de amadurecimento.
201

4. Agressividade (ou agressão)

Quando os fundamentos da sexualidade são abordados, não se pode deixar de


considerar a agressividade, pois, “[...] ela é uma das muitas fontes de energia de um
indivíduo” (1957d [1939], p. 92). Outro aspecto importante se relaciona ao fato de que a
agressividade tem um importante papel na criação do sentido do real. Porém, o estudo da
agressividade somente faz sentido, em Winnicott, quando inserido em uma teoria do
amadurecimento pessoal que considere a história do impulso agressivo do indivíduo
juntamente com a provisão ambiental.

Para entender o papel da agressividade na natureza humana, é necessário compreender


como ela se manifesta no decorrer do processo maturacional, desde os estágios de
dependência absoluta até a independência relativa. Winnicott localiza as raízes da
agressividade no estágio da dependência absoluta, quando o bebê é a mãe. Sua opção pelo
termo raízes não é casual, posto que nesta etapa do processo de amadurecimento o indivíduo
não é agressivo, na acepção coloquial da palavra – ele é espontâneo simplesmente pelo fato de
estar vivo. Suas manifestações de agressividade não têm o objetivo de provocar uma situação
de machucar ou ferir.

No estágio da dependência relativa, quando a mãe é suficientemente boa, ela começa a


falhar no atendimento às necessidades do bebê, propiciando um processo de desilusão. Neste
estágio, a agressividade está vinculada à criação da externalidade, a um processo de
diferenciação do eu do não-eu, ao uso do objeto, assim como à conquista do EU SOU e à
capacidade de se concernir.

Finalmente, no estágio da independência relativa, faz-se necessário estudar a


agressividade nos estágios edípico, adolescência e vida adulta.

Quando Winnicott afirma que seu objeto de estudo é a natureza humana, isso implica
no desenvolvimento do tema da agressividade, uma vez que ela é intrínseca à natureza do ser
humano. Isso não significa que a apropriação da agressividade pelo indivíduo seja automática,
pois ela está diretamente ligada à forma como o ambiente a recebe. Atitudes como as de
aceitação ou rechaço influenciarão na assimilação da agressividade pelo indivíduo. As
condições de integração da agressividade estão diretamente ligadas à necessidade de que o
ambiente ofereça as condições para que ela seja integrada pelo indivíduo à sua personalidade
total e que possa ser experimentada por ele. Uma vez integrada, ela se torna um dos elementos
que possibilitam ao indivíduo buscar o contato com outros seres humanos, se encontrar com o
202

mundo e com o que faz parte deste. A conquista dessa capacidade permite ao
indivíduo chegar à realidade externa por meio de uma destrutividade intrínseca à natureza
humana, assim como permite ao indivíduo amar e odiar pessoas que estejam nessa realidade.

O tema da agressividade constitui uma das fronteiras que separa os pensamentos de


Winnicott e o de Freud, assinalando a diferença na forma como ambos concebem o ser
humano. Enquanto que em Freud a agressividade se vincula a frustrações do contato com o
principio de realidade, em Winnicott ela se refere ao estar vivo do bebê e à sua necessidade de
se movimentar e de buscar objetos. Winnicott refutou a teoria de Freud da agressividade:

[...] e uma teoria da agressividade que também se revela falsa, porque deixa de lado
duas fontes vitalmente importantes da agressão: aquela inerente aos impulsos do amor
primitivo (no estágio anterior ao concern, independente das reações à frustração), e
aquela pertencente à interrupção da continuidade do ser pela intrusão que obriga a
reagir. (1988, p. 133)

Esse rompimento com o pensamento freudiano já foi anunciado no final dos anos
1940, quando ele sustenta que há “uma voracidade teórica ou um amor-apetite primário que
pode ser cruel, doloroso e perigoso, mas só o é por acaso. O objetivo do bebê é a satisfação, a
paz de corpo e de espírito” (1957d [1939], p. 88). Este ‘amor-apetite’ ao qual Winnicott se
refere pode ser observado nas manifestações dos bebês ao mamar, quando eles se mostram
vorazes. Essa manifestação do bebê revela a fusão de amor e agressão. Quando ataca
vorazmente o que encontra no mundo, o bebê manifesta seu amor por ele. Estes aspectos estão
vinculados à sexualidade, pois esta implica que, impulsionado pela instintualidade, o bebê
busque objetos, embora neste início de sua vida o bebê não tenha consciência do que isso
signifique.

Winnicott esclareceu aos seus leitores que muitas vezes as pessoas usam o termo
‘agressivo’ quando deveriam usar ‘espontâneo’ (1958b [1950], p. 217). Outro esclarecimento
feito por ele foi o de que a agressividade possui diferentes significados e formas de
manifestação e que uma compreensão mais acurada do tema deve ser remetido ao estudo de
suas raízes.

No tocante à sexualidade, é necessário considerar como a agressão se manifesta nos


diferentes estágios do processo maturacional. A integração deste componente agressivo em
qualquer estádio é fundamental para a conquista da capacidade de o indivíduo desenvolver
sua potência sexual. Caso o indivíduo não integre sua agressividade, ele não poderá adquirir a
203

capacidade de usar os objetos48, que são elementos presentes no mundo externo,


de modo que esses objetos não poderão ser utilizados na genitalidade.

Winnicott aponta que o estudo da agressividade deve ser considerado em seus estágios
inicial, intermediário e na personalidade total. A perda da agressividade no estádio inicial
empobrecerá a capacidade do indivíduo de buscar os objetos e “se a agressão é perdida nesse
estádio do desenvolvimento emocional, haverá também algum grau de perda da capacidade de
amor, isto é, de relacionar-se com os objetos” (1958b [1950], p. 206).

4. 1. A agressividade no estágio da dependência absoluta

Para compreender o papel da agressividade na natureza humana, precisamos


considerar como ela se manifesta em cada estágio do processo maturacional, em especial no
que se refere às suas raízes, pois “importantes fontes de agressão datam dos estágios iniciais
do desenvolvimento do ser humano [...]” (1958b [1950], p. 210). Nesse trecho, Winnicott está
se referindo ao estágio de dependência absoluta, no qual o bebê vive no mundo subjetivo, sem
contato com a realidade objetivamente percebida e em que a psique ainda não se alojou em
seu corpo. Nesta fase inicial ainda não se pode falar de agressividade, pois o bebê ainda não
tem intencionalidade

porque o impulso amoroso primitivo é operativo num estágio em que o crescimento do


ego está apenas começando, quando a integração, por exemplo, ainda não se tornou
um fato. Há um amor primitivo que é operativo quando ainda não há uma capacidade
para assumir responsabilidades. Nesta fase, não há nem mesmo a ausência de
concernimento; é uma era pré-remorso; e se a destruição fizer parte do objetivo do
impulso do id, então esta destruição é apenas fortuita à satisfação do id. (1958b
[1950], p. 210)

Isso indica que o bebê ainda não tem maturidade para ser agressivo, e que isso será
possível apenas no estágio do concernimento. Conforme foi apresentado no item ‘2.2. estado
excitado’, o bebê é tomado por impulsos gerados pelo seu estado de estar vivo. É nessa
vitalidade que se encontra a raiz da agressividade.

Nesse estágio inicial, o bebê está entregue à vitalidade que o impulsiona aos
movimentos. O bebê é acossado por dois tipos de impulsos, um que deriva da tensão

48 Esta capacidade de usar os objetos será apresentada posteriormente.


204

instintual e outro que deriva da motilidade. A motilidade e a tensão instintual


constituem a agressividade experimentada pelo bebê na fase da dependência absoluta.

Nesta fase, duas coisas acontecem com o bebê: ele está entregue às tensões instintuais
e ele tem a necessidade de emitir um gesto em direção ao mundo. Então, a necessidade do
bebê de buscar algo em algum lugar pega carona na tensão instintual. Esse gesto do bebê tem
um caráter de urgencialidade. Se esse gesto for compreendido e aceito por sua mãe, sua
continuidade de ser não será interrompida. (1988, p. 100) A motilidade está presente nos
movimentos realizados pelo bebê quando ele está no útero materno. O bebê movimenta
braços e pernas e isso provoca o encontro com as paredes uterinas, que oferecem oposição.
Desse modo, ele descobre o ambiente e essa descoberta se estenderá após o nascimento, com
a manifestação desses movimentos (1958b [1950], p. 216). O bebê não tem um motivo para se
movimentar e “o que existe em toda criança é uma tendência para movimentar-se e obter
alguma espécie de prazer muscular no movimento, lucrando com a experiência de mover-se e
dar de encontro com alguma coisa” (1964d, p. 233).

Para entender o papel da agressividade na vida do ser humano, é necessário apresentar


as raízes da agressividade, ou seja, a motilidade, o incompadecimento e a reação do bebê às
invasões ambientais.

4.2. A motilidade

É na motilidade que Winnicott encontra uma das raízes da agressividade. “A


motilidade é precursora da agressão [...]” (1958j, p. 12). Ela é manifestada pelo bebê na vida
intra-uterina, com os movimentos do bebê imerso no líquido amniótico. Após o nascimento o
bebê continua a fazer estes movimentos e quando ele encontra os obstáculos presentes no
mundo externo, este é descoberto e apropriado pelo bebê de acordo com a maturidade que ele
apresenta nessa fase. O bebê não sabe da existência do ambiente externo nem do si-mesmo.
Na medida em que há uma repetição dos encontros do bebê com o mundo externo (parede do
útero), há uma construção dos rudimentos da externalidade e o princípio do sentido do real.

O bebê saudável precisa

[...] ser capaz de gastar o máximo possível de motilidade nas experiências do id. [...]
No padrão da experiência do id de qualquer bebê, existe x por cento de motilidade
205

primitiva incluída na experiência do id. Resta, portanto, (100 – x) por


cento para ser utilizado de outras maneiras – e aqui realmente está uma razão para a
grande diferença na maneira com que vários indivíduos experimentam sua
agressividade. (Winnicott, (1958b [1950], p. 212)

O bebê, quando saudável, gasta parte de sua motilidade nas experiências instintivas. O
excesso de motilidade será gasto na medida em que o bebê encontrar a oposição advinda do
mundo externo, ou seja, ao encontrar resistência do mundo externo. Nos movimentos
corporais em que encontra o que é externo a ele, o bebê pode ter uma experiência real. Essa
oposição é condição essencial para dar realidade ao movimento do bebê. É papel do ambiente
facilitar o gesto do bebê, pois o potencial agressivo pessoal depende da quantidade de
oposição que ele encontra. Se a oposição encontrada for adequada, haverá a fusão da
motilidade com a tensão instintual. Como conseqüência, isto facilitará a elaboração
imaginativa das funções corpóreas, o fortalecimento psico-somático e a integração do si-
mesmo do bebê. Mas, se a oposição encontrada for excessiva, o impulso do bebê é inibido,
prejudicando a fusão da motilidade com a experiência instintual.

Winnicott apresenta três modos pelos quais a motilidade é experienciada pelo bebê.
No modo saudável, o ambiente é descoberto e redescoberto pelo bebê a cada incursão
empreendida por ele, isto é, “o indivíduo se desenvolve a partir do centro e o contato com o
meio ambiente é uma experiência do indivíduo” (1958b [1950], p. 211). Isso é possível
porque o bebê está sendo bem cuidado por uma mãe suficientemente boa que se adapta às
necessidades do bebê. Nesse padrão, o indivíduo passa a existir de modo saudável, o que lhe
permitirá dar sentido às demandas instintuais. Temos aqui o início da distinção entre o eu e
não- eu.

Assim, segundo Winnicott:

quando há saúde, os impulsos do feto provocam a descoberta do meio ambiente, este


último sendo a oposição que o movimento encontra e que é sentida durante o
movimento. O resultado neste caso é um reconhecimento inicial de um mundo Não-Eu
e um estabelecimento inicial do Eu. (1958b [1950], p. 216)

O estabelecimento da saúde não será possível no segundo e terceiro modo. No


segundo modo, é o meio ambiente que invade o bebê e em vez de uma série de experiências
206

individuais, “o que há é uma série de reações a invasões. Neste caso, se


desenvolve uma retirada para o descanso, para um isolamento, a única coisa que permite a
existência individual. A motilidade, neste caso, é apenas experimentada como uma reação à
invasão” (1958b [1950], pp 211-2).

O terceiro modo é o mais grave, pois ao bebê nem resta a possibilidade do descanso,
tamanha é a invasão ambiental. Não existe sequer a possibilidade de um isolamento. O bebê
somente poderá se desenvolver a partir da casca e não do cerne. O resultado é a criação de um
falso si-mesmo patológico (1958b [1950], p. 212).

Nestes dois últimos padrões, a doença já está instalada, pois a motilidade decorrerá de
uma invasão. (1958b [1950], p. 212). O bebê existe porque é invadido não porque quer existir
por si próprio.

Nesses dois casos,

quando não há saúde neste estágio inicial, é o meio ambiente que invade e a força vital
é absorvida pelas reações à invasão, ocorrendo um resultado oposto ao firme
estabelecimento inicial do eu. No caso extremo [no terceiro], quase não se
experimentam impulsos, a não ser como reações e o eu não é estabelecido. Em vez de
seu estabelecimento, encontramos um desenvolvimento baseado na experiência da
reação à invasão e surge um indivíduo que chamamos falso porque não há
impulsividade pessoal. Neste caso, não há fusão dos componentes agressivo e erótico,
já que o eu não está estabelecido quando as experiências eróticas ocorrem. O bebê
vive porque foi atraído pela experiência erótica, porém, além da vida erótica, que
nunca parece real, há uma vida puramente reativa e agressiva e que dependente da
experiência de oposição. (Winnicott, 1958b [1950], pp 216-7)

No tocante à sexualidade, quando o bebê não se desenvolve a partir de sua própria


necessidade ele não constitui a agressividade necessária para buscar o objeto, além de não
entrar em contato com seu próprio corpo. Quando o indivíduo não se desenvolve pelo padrão
da saúde, teremos também uma situação em que ele precisa erotizar os impulsos agressivos.
Ele se sente real apenas quando é destrutivo, tentando reproduzir relações por meio do
interjogo com outro indivíduo, achando um componente erótico para fundir com a agressão,
que não é mais que a pura motilidade.
207

Winnicott distingue dois tipos de masoquismo. Um tem origem em um


sadismo que é erotização de um impulso de motilidade bruto; outro é uma erotização direta da
parte passiva da motilidade ativa. Nos casos de perversão, a escolha de um ou outro tipo
dependerá do primeiro tipo de parceria estabelecida: ou sádica ou masoquista. Winnicott
também aponta que também é possível que o masoquismo seja primário em relação ao
sadismo. (1958b [1950], pp 216-80

4.3. Tensões instintuais (ou incompadecimento)

Ao observar as condições do bebê em seu início de vida, Winnicott apontou que ele, o
bebê, ainda não sabe de si, ainda não tem um eu constituído, portanto, não pode ser
responsabilizado pelas suas ações, ou seja, pelos ataques desferidos contra sua mãe. O bebê
está entregue às tensões instintuais, próprias dos estados excitados, experienciando o que
Winnicott denominou de ‘voracidade teórica’ – amor apetite primário (1957d [1939], p. 88).
Para Winnicott, no início da vida do bebê a agressividade é uma parte do apetite do bebê e
estará presente no ato de comer.

No início de sua vida, o bebê emite um movimento em busca de algo, um objeto.


Quando a mãe atende à busca do bebê, o resultado é uma ilusão de onipotência que permite a
ele acreditar que ele criou o que encontrou. O encontro do bebê com esse objeto pode ser
destrutivo, mas ele ainda não se preocupa com o resultado de seu amor excitado, pois ainda
não integrou os instintos. Assim, a agressividade desse momento inicial é parte do impulso
amoroso primitivo.

Como é extremamente imaturo, o bebê ainda não sabe que a mãe que ele ataca nos
momentos em que é tomado pelos ataques instintuais é a mãe que cuida dele nos momentos
em que ele experimenta o estado tranqüilo. O bebê ataca a mãe movido por um impulso
amoroso primitivo: ele não tem a intenção de magoá-la ou destruí-la. Como ainda é imaturo,
ele não sabe bem de onde vêm essas tensões e precisa se haver com elas. Afinal, “as
exigências instintivas podem ser ferozes e assustadoras e, a princípio, podem parecer à criança
como ameaças à existência” (1949k, pp. 80-1). Quando se tornar mais amadurecido, ele
perceberá suas ações e procurará um modo de repará-las.

O bebê, por seu lado, tem necessidade de desferir estes ataques, afinal ele está vivo,
tem impulsos instintuais e precisa realizar uma ação de modo a encontrar gratificação. Do
lado da mãe, a forma como ela recebe estes ataques será fundamental para a integração dessa
208

agressividade à personalidade do bebê. Atitudes como acolhimento são necessárias


à apropriação da instintualidade. Por outro lado, repúdio ou atitude moralizadora prejudicarão
o bebê, impedindo-o de entrar em contato com um aspecto vital para a formação de sua
personalidade total. Neste caso, o bebê tende a inibir seus impulsos, ou então ocultá-los, posto
que ele percebe que eles não são aceitos. Outra possibilidade é a dissociação, o que fará com
que os instintos fiquem dissociados. O próprio Winnicott fornece um exemplo com o caso que
49
foi denominado por Loparic como o caso FM.

Neste estágio de incompadecimento, o bebê pode também apresentar um quadro de


avidez e “se estudarmos a avidez encontraremos o complexo de privação. Em outras palavras,
se um bebê é ávido, existe um certo grau de privação e alguma compulsão para buscar uma
terapia para esta privação através do meio ambiente” (1958c [1956], pp 126-7). Essa situação
indica que uma situação de tendência anti-social será instaurada.50

4.4. A reação do bebê às invasões ambientais

O bebê tem a necessidade de manter a continuidade de ser assegurada, de modo a


manter a sua existência. Com o cuidado recebido pela mãe,

cada bebê é capaz de ter uma existência pessoal, e assim começa a construir o que
pode ser chamado de continuidade do ser. Na base dessa continuidade do ser o
potencial herdado se desenvolve gradualmente no bebê. Se o cuidado materno não é
suficientemente bom então o bebê realmente não vem a existir, uma vez que não há a
continuidade do ser; ao contrário, a personalidade começa a se construir baseada em
reações a irritações do meio. (1960c, p.54)

A falha na manutenção dessa continuidade, isto é, no caso de a mãe não proporcionar


um ambiente seguro para a continuidade do processo maturacional, provocando no bebê
inúmeras interferências, o resultado é uma quebra da continuidade do existir. O bebê

49 Este caso foi apresentado por Winnicott no capítulo 28 do livro Explorações psicanalíticas.

50 Apesar de haver vínculos entre tendência anti-social e comportamento sexual compulsivo, esse tema
não será desenvolvido, visto que não constitui o foco deste estudo.
209

experimentará repetidos sobressaltos, como que à espera de novas falhas


ambientais, num estado de alerta. Sua agressividade, uma vez que não tem livre manifestação,
será transformada em raiva, a qual se manterá incrustada e não apropriada pelo bebê, uma vez
que ele é imaturo para compreender a natureza desse sentimento.

4. 5. A agressividade na fase da dependência relativa

Ao sair da dependência absoluta, o bebê apresenta uma condição de maturidade


diferente, o que permitirá outro tipo de manifestação de agressividade e com outro grau de
importância para seu desenvolvimento maturacional. Como o bebê já está mais amadurecido,
ele descobre que a agressividade é um dos modos de se relacionar com os objetos, seja na
situação de alimentação ou no encontro com outros objetos e de diferentes modos. A
coordenação motora do bebê, mais sofisticada, revela a gradativa conquista do processo de
personalização e com isso o bebê tem posse de si, o que lhe permite explorar mais o ambiente,
agarrar objetos, mordê-los e exercer sobre eles um controle maior. Prestes a sair do mundo
subjetivo, o bebê pode iniciar um contato exploratório com o mundo externo.

A característica dessa fase está na desilusão que o bebê sofre, que é conseqüência da
desadaptação da mãe às necessidades infantis. Ao perceber que a mãe não está mais à sua
total disposição, a mãe pode ser atacada e deve suportar esta situação. Essa desadaptação ao
bebê é necessária porque, em condições de saúde, a mãe se volta para outros interesses que
não o seu filho. Isto vai gerar algumas falhas da parte dela, embora estas já possam ser
suportadas pelo bebê.

A gradual passagem do mundo subjetivo para a transicionalidade e a posse do objeto


transicional ajudará o bebê a suportar a ausência da mãe. O objeto transicional também o
ajudará a abandonar o controle mágico que ele exercia sobre os objetos do mundo subjetivo e,
simultaneamente, lhe permite um controle de outra natureza. Isso significa que o bebê passa a
ter a possibilidade de manipulação do objeto transicional, o qual pode ser usado com vigor
muscular e com agressividade.

As falhas da mãe promoverão a desilusão do bebê quanto à sua ilusão de onipotência,


e uma das necessidades desse momento é o desmame, que ajudará na chegada para a realidade
objetivamente compartilhada. A partir dos nove meses, aproximadamente, o bebê já apresenta
condições de ser desmamado, posto que está pronto para se desfazer de algumas coisas que
fazem parte de seu mundo. Isso o ajudará a suportar a perda do seio materno (1949k, p. 80).
210

A mãe deve preparar o bebê para esse desmame, introduzindo alimentos


sólidos e criando um ambiente que auxilie o bebê nessa passagem. Através da introdução
dessa nova alimentação, o bebê é apresentado a um novo tipo de mundo, o que exige dele um
novo tipo de relacionamento com as novas experiências que estão ocorrendo.

Se tudo correr bem, o bebê sentirá este novo momento como uma ampliação de seu
campo experiencial, aumentando seu contato com o mundo. O próprio bebê inicia o auto-
desmame, acompanhado pela mãe. É possível que haja alguma dificuldade, pois o bebê
percebe que está perdendo algo bom. A mãe deve ser corajosa para suportar possíveis reações
de desagrado e as idéias que acompanham essa situação, pois, de fato, a mãe não é mais uma
pessoa que atenda a todas as necessidades infantis. Nessa passagem pelo desmame, o bebê
perde as ilusões e prossegue em seu processo de amadurecimento. Afinal, desde há muito
tempo ele vem sofrendo traumas saudáveis através das falhas de sua mãe. O bebê já descobriu
que o meio ambiente do qual faz parte não é parte de si, pois ele está saindo do estágio
subjetivo. Sua mãe lhe revelou que sua onipotência era uma experiência temporária e, ao
ajudá-lo no processo de desmame, ela mais uma vez produziu nele um trauma necessário
(1989d [1965] p. 146). Mas o bebê pode ter dificuldades no auto-desmame, pode não
apresentar a agressividade necessária, e é a mãe que precisa provocar o desmame, o que gera
muita raiva no bebê. Ele atacará esta mãe e ela precisa tolerar os ataques do bebê, vendo-os
como manifestação natural de quem está perdendo algo bom.

Outra característica fundamental nessa fase de dependência relativa está numa maior
sofisticação do funcionamento mental. As falhas nos cuidados maternais farão com que a
mente seja ativada e ajude o bebê a lidar com falta de adaptação da mãe. Desse modo, como o
bebê já está mais amadurecido, ele já pode contar com seu intelecto para poder lidar melhor
com as falhas ambientais, assim como na ampliação de seu campo de interesses (1988, p.
139).

Todas estas situações constituem a oportunidade para o bebê se zangar e manifestar


seu descontentamento. Isso é essencial em termos de manifestação da agressividade, porque
permite ao bebê passar por todas essas experiências sem precisar sentir algum tipo de
arrependimento pelo que está experimentando em relação a pessoas importantes para ele.
Outro aspecto importante se vincula ao fato de que essas experiências lhe permitem
experimentar a inteireza de um corpo tomado por emoções tão intensas. O papel do ambiente
é o de sustentar todas as manifestações do bebê de modo que ele possa manifestar sua
agressividade e prosseguir em seu processo maturacional, o que implica na criação do mundo
externo e do uso do objeto.
211

4.6. A agressividade na criação da externalidade e o uso do objeto

Esse é um dos conceitos mais difíceis da obra de Winnicott. Ele próprio sabia disso e
desenvolveu esse conceito numa fase tardia de sua atividade profissional, em 1968. Winnicott
afirma que foi possível chegar a esse conceito após muitas décadas de trabalho e que tal
conceito somente pode ser compreendido se for considerado no interior de seu próprio
pensamento, ou seja, a teoria do amadurecimento humano (1969i [1968], p. 219). O ponto de
partida é o de que de início o bebê vive em um mundo subjetivo no qual a realidade objetiva
não incide, o que revela que o bebê não sabe desta realidade e nem do que ela se compõe.

Para que o bebê possa usar os objetos, é necessário que a mãe tenha apresentado ao
filho o mundo, de forma gradativa, promovendo o estado em que o bebê é esse seio ao qual
ele é apresentado. Se no início o bebê é o seio, isso se transforma na medida em que pequenas
falhas maternas passam a acontecer. Essas falhas maternas promovem uma desadaptação
gradativa. O resultado é que o bebê transita entre uma realidade subjetiva e quase objetiva,
mas como ele não pode permanecer nesta situação indefinida, o processo maturacional vai na
direção de fazer com que o bebê descubra a existência de uma realidade independente de seu
mundo subjetivo. Ele tem maturidade suficiente para se deparar com este mundo objetivo,
pois já passou por muitas experiências que lhe possibilitam que nesse momento ele esteja
pronto a aprender a usar o que encontra na realidade objetiva.

A passagem da transicionalidade para a realidade externa não ocorre automaticamente,


e muita coisa deverá ocorrer para que haja a constituição da externalidade. Como sempre, há
muitas tarefas a serem realizadas pelo bebê, em cujo mundo subjetivo estão ocorrendo
transformações complexas. O bebê se relaciona com os objetos de seu mundo subjetivo e
esses objetos se tornam cada vez mais significativos para ele. Porém, os objetos com os quais
o bebê se relaciona só estão presentes em sua realidade subjetiva, fazendo parte de seu mundo
psíquico. Isso lhe dá a característica do controle onipotente sobre eles. O bebê se encontra em
estado de isolamento, visto que a relação com os objetos51 não ocorre numa realidade
compartilhada. Os objetos com os quais o bebê está se relacionando não são reais e não são
vistos como parte de uma realidade externa. Surge, então, a necessidade de transformar o
envolvimento para com esse objeto, provocando uma mudança de relacionamento de objeto

51 Elsa Oliveira Dias afirma que “até chegar a este ponto, estamos ainda no campo do que se chama
“relação de objeto”, embora, nesta fase, a expressão seja imprecisa, dado que, com os objetos subjetivos, não há
propriamente relação por ainda não haver dois entes’ (Dias, 2003, p. 244).
212

para uso do objeto. Há uma mudança na natureza do objeto, revelando o


surgimento de um novo sentido de realidade para o bebê, pois até então a comunicação com
os objetos subjetivos era feita via ilusão de onipotência. Segundo Winnicott,

aspecto importante no crescimento é a mudança do relacionamento com objetos


subjetivos para um reconhecimento de objetos que se acham fora da área da
onipotência, isto é, que são objetivamente percebidos, mas não explicados com base
na projeção. Nesta área de mudança encontra-se a oportunidade máxima para o
indivíduo compreender o sentido dos componentes agressivos. Compreender o sentido
desses componentes conduz à experiência que o bebê tem da raiva (relacionada ao
conceito kleiniano da inveja do seio bom) e, no caso favorável à fusão dos
componentes agressivos e eróticos que resultam no comer. Na saúde, quando da época
em que comer estabeleceu-se como parte do relacionamento com objetos, tornou-se
organizada também uma existência de fantasia que é paralela ao viver real e conduz
consigo seu próprio senso do real. (1989m [1964], p. 101)

Como o mundo do bebê está complexo, com os instintos atuando intensamente e


exigindo ação, ele se encontra em condições de encontrar os objetos e alterar seu
envolvimento com esses objetos. Estes precisam deixar de significar um feixe de projeções e
identificações e devem assumir outras características. Winnicott esclarece:

quando falo do uso de um objeto, entretanto, tomo a relação de objeto como evidente e
acrescento novas características que envolvam a natureza e o comportamento do
objeto. Por exemplo: o objeto, se é que tem de ser usado, deve ser necessariamente
real, no sentido de fazer parte da realidade compartilhada e não um feixe de projeções.
(1969i [1968], p.88)

A principal característica é que eles precisam deixar de figurar no mundo subjetivo e


passar a serem percebidos objetivamente, existindo na realidade compartilhada. Essa mudança
deverá ocorrer na medida em que o bebê coloca esses objetos para fora de seu mundo
subjetivo. Isto fará com que os objetos criem o caráter de externalidade e passem a figurar na
área da realidade externa compartilhada e podendo ser usados, pois eles passam realmente a
existir.
213

Essa mudança está se tornando uma necessidade provocada pelo próprio


processo de amadurecimento do bebê. Para que o bebê possa usar o objeto, ele tem que
desenvolver essa capacidade, pois até então ele sabia apenas relacionar-se com o objeto. Para
ser usado, um objeto tem que existir por si mesmo e tem que estar presente no ambiente
independentemente do próprio bebê. Isso ocorrerá na medida em que o bebê retirar do objeto
seu caráter de subjetividade e conceder-lhe o de externalidade. Winnicott ressalta que essa
tarefa é extremamente difícil e sintetiza como ocorre esta conquista:

de acordo com um desenvolvimento seqüencial, pode-se dizer que há relação de


objeto, em primeiro lugar; depois ao final, há o uso de objeto; entre esse intervalo,
temos a coisa mais difícil, talvez, do desenvolvimento humano; ou um dos mais
cansativos entre todos os fracassos que nos chegam para fazer reparos posteriores.
Entre o relacionamento e o uso existe a colocação, pelo sujeito, do objeto como
fenômeno, não como uma entidade projetiva; na verdade, o reconhecimento do objeto
por seu próprio direito. (1969i [1968], p. 89)

O bebê realizará essa tarefa na medida em que destruir a mãe-objeto, o que permitirá
entrar em contato com a realidade objetivamente compartilhada. Não se pode esquecer que o
bebê está às voltas com os ataques instintuais que ele desfere contra a mãe-objeto, ainda sem
saber que ela é a mãe-ambiente. A mãe é destruída pelo bebê inúmeras vezes, pois ele se
relaciona com ela como se ela fosse um objeto subjetivo. O termo destruição é utilizado por
Winnicott para designar o ato do bebê de expulsar o objeto de seu mundo subjetivo, o que
resulta na destruição desse objeto que é subjetivo. Mas essa é uma destruição sem raiva (no
anger) O bebê destrói o objeto não porque sente raiva, mas porque precisa destruí-lo para
chegar à realidade. Diz Winnicott:

o destino desta unidade de impulso não pode ser enunciado sem referência ao meio
ambiente. O impulso é potencialmente “destrutivo”, mas ele ser destrutivo ou não
dependente de como é o objeto; o objeto sobrevive, isto é, mantém o seu caráter ou
reage?

No primeiro caso, então não há destruição, ou não muita, pelo menos, e há um


momento seguinte em que o bebê pode se tornar e gradualmente se torna cônscio de
um objeto psicoenergizado, mais a fantasia de ter destruído, machucado, danificado
ou provocado o objeto. O bebê, neste extremo de provisão ambiental, continua em um
214

padrão de desenvolvimento da agressividade pessoal que proporciona o


pano de fundo de uma fantasia contínua de destruição. Aqui podemos utilizar o
conceito kleiniano de reparação, que vincula o brinquedo e o trabalho construtivos
com este pano de fundo de fantasia (inconsciente) de destruição ou provocação (talvez
a palavra certa ainda não tenha sido encontrada). Mas a destruição de um objeto que
sobrevive, que não reagiu nem desapareceu, conduz ao uso.

No outro extremo, o bebê que encontra um padrão de reação ou retaliação ambiental


progride de maneira inteiramente diferente. Este bebê acha que a reação vinda do meio
ambiente e a realidade do que deveria ser o seu próprio impulso provocativo (ou
agressivo, ou destrutivo). Este tipo de bebê nunca pode experienciar, possuir ou ser
movido por esta raiz pessoa para a agressão ou a fantasia destrutiva, e, portanto, não
pode convertê-la na destruição de fantasia inconsciente do objeto libidinizado.
(1989xa [1969], pp 245-6)

Esse processo, embora apoiado na instintualidade, não é um processo instintual. O que


interessa é a crescente maturidade do bebê que o leva a necessitar viver a experiência de
destruir o objeto. O bebê não pode permanecer indefinidamente no mundo subjetivo. Ele
precisa destruir este mundo-mãe subjetivo para chegar ao mundo objetivo. Como a mãe
sobrevive aos ataques do bebê, surge um novo aspecto na relação entre ambos, pois ele
descobre a objetividade e o valor do objeto. É como se o bebê se perguntasse: como ela
sobrevive se eu a destruo inúmeras vezes? Ao final de muitas experiências de destruição desse
objeto, e com a sobrevivência dele, o bebê constata que ele não está em seu mundo subjetivo,
à total mercê de suas ações, mas na realidade externa. Com a descoberta de que esse objeto é
externo a ele, o objeto, ou seja, a mãe, passa a existir por seu próprio direito. O bebê
compreende que pode amar essa mãe porque ela sobrevive aos seus ataques instintuais, assim
como também descobre a importância dela para si. Ele pode também por meio dessa
destruição começar a se preocupar com o objeto amado, ele pode começar a amar essa mãe
pelo valor que descobre nela. Essa situação pode ser expressa da seguinte forma:

o sujeito diz ao objeto: ‘eu te destruí’, e o objeto está ali, para receber a comunicação.
De agora em diante, o sujeito diz: ‘eu te destruí. Eu te amo. Você tem valor para mim
porque você sobreviveu quando eu te destruí’. Enquanto eu estou te amando, estou o
tempo todo te destruindo na fantasia’ (inconsciente).” (Winnicott, 1969i [1968], p. 90)
215

O papel da mãe é muito importante nesse momento: ela deve sobreviver


aos ataques do bebê e sobreviver é permanecer a mesma, não retaliar, mas suportar os
ataques. A sobrevivência da mãe permite que o bebê possa, futuramente, destruir os objetos
na fantasia inconsciente, o que significa um alívio para ele. Essa conquista será possível
porque é somente neste momento que a possibilidade de fantasiar, ou seja, a fantasia, se inicia
para o bebê (1969i [1968], p. 222). Isso é possível porque neste momento o bebê pode fazer a
separação entre o que é um fato, que é a sobrevivência do objeto-mãe e a fantasia, que é a
destruição do objeto na fantasia inconsciente. A conquista para o bebê é a possibilidade do
objeto subjetivo ser destruído na fantasia inconsciente. A fantasia desempenha um importante
papel na vida sexual do indivíduo. (1969c [1968] p. 164)

Assim, quando o objeto sobrevive, ou seja, quando a mãe sobrevive, o bebê vai
encontrar a realidade que será percebida objetivamente. Desse encontro há uma frustração
porque a experiência de onipotência não pode mais se sustentar. É exatamente essa frustração
que ajuda o bebê a descobrir a externalidade. A realidade objetivamente compartilhada surge
em contraposição ao mundo subjetivo do bebê. Quando isso ocorre, temos um
desenvolvimento emocional saudável. Essas experiências se tornam reais e se fundem com as
experiências eróticas musculares gerando no bebê a necessidade de encontrar um objeto
externo e não apenas um objeto que o satisfaça. Nesse aspecto encontramos a grande
diferença entre o pensamento de Winnicott e o pensamento freudiano no tocante à chegada a
realidade objetiva, ou, no jargão psicanalítico, ao princípio de realidade. Winnicott esclarece
que:

entende-se geralmente que o princípio da realidade envolve o indivíduo em raiva e


destruição reativa, mas a minha tese é que a destruição desempenha o seu papel na
construção da realidade, situando o objeto fora do si-mesmo. [...] Na teoria ortodoxa
encontra-se sempre o pressuposto de que a agressão é reativa ao encontro com o
princípio de realidade, enquanto que aqui é o impulso destrutivo que cria a qualidade
da externalidade. Isto é central à estrutura de meus argumentos. (1969i [1968], p. 226)

Quando há criatividade primária, o gesto instintivo se lança para fora e se torna


agressivo. Esses componentes agressivos têm um valor positivo para o bebê, pois eles
possibilitam que o bebê chegue ao mundo da realidade objetivamente compartilhada, podendo
tirar dela grandes vantagens para si, embora isso implique na perda da crença do mundo e do
objeto subjetivos. Ou seja, o bebê perde o objeto subjetivo, mas ganha um objeto
216

objetivamente percebido, o qual pode ser usado de forma concreta. Quando a mãe
sobrevive, ela permite que seu filho troque a experiência da subjetividade pela possibilidade
concreta de transitar e usufruir os objetos reais que estão na realidade externa. Desta forma, o
mundo que ele criou onipotentemente passa a ser real, numa fusão e coincidência de suas
fronteiras.

A grande conquista realizada pelo bebê lhe possibilita traçar as fronteiras entre ele e o
mundo externo. O bebê alcançou uma individualidade e sabe que há um limite entre ele
próprio e o mundo, que há um EU e um NÃO-EU, que ele pode se responsabilizar pelo que
faz à pessoa, que agora é vista como uma pessoa inteira (1988, p. 68).

As implicações dessas conquistas para a constituição da identidade e de uma vida


sexual saudável posterior estão no fato de que, quando a mãe sobrevive, o bebê adquire a
crença nos vínculos, a possibilidade de envolver-se afetivamente, podendo chegar ao pleno
envolvimento com outro ser total.

A aquisição da capacidade de usar objetos proporciona ao indivíduo a capacidade para


o amor. Essa capacidade será manifesta no amor dirigido a uma pessoa que está na realidade
objetiva. Essa capacidade para o amor estará presente na vida adulta, na idéia preconizada por
Winnicott de que, na vida adulta de pessoas amadurecidas, é necessário que haja a inclusão do
amor nas relações sexuais (1971f [1967], p. 26). Isso revela a necessidade de se auferir das
conquistas dessa fase como uma pré-condição para a instauração da saúde. Sobre isso, Elsa
Oliveira Dias afirmou:

o pré-requisito para este amor é o mesmo que para o exercício da genitalidade que se
quer madura, e que não é apenas um exercício solitário; também nesta é preciso que o
objeto seja percebido como externo e separado do indivíduo. Ou seja, também o amor
é constituído no interior do processo de amadurecimento. (2003, p. 251)

Outro aspecto a ser destacado é o fato de que a vida sexual se refere ao pleno
envolvimento entre pessoas inteiras que têm que estar na realidade concreta, objetiva. Na fase
de uso do objeto a conquista promove uma mudança no sentido de realidade de objeto, há
uma mudança de uma realidade subjetiva para uma realidade objetiva. É na realidade objetiva
que estão pessoas e objetos que podem ser usados. Pessoas inteiras podem usar o que
encontram na realidade compartilhada e esse uso se dá também na modalidade sexual. Sem
217

essa possibilidade, os seres humanos apenas se relacionam subjetivamente, o que


impossibilita o verdadeiro encontro entre eles.

A conquista da possibilidade de desenvolver vínculos com outro ser humano


fundamentará a confiança na entrega e estreitamento de laços afetivos. Com esse estofo
fundamentando os relacionamentos, o ser humano pode relacionar-se melhor, desenvolver a
intimidade, o que facilita na busca e consecução de uma vida sexual saudável.

Uma das novidades do pensamento winnicottiano está no fato de que ele aponta a
relação da destruição do objeto com a capacidade para o amor e a vida sexual. Isso se
encontra na idéia de que: “no curso do crescimento do indivíduo, torna-se possível à
destruição ter representação adequada na fantasia (inconsciente), que é uma elaboração do
funcionamento corporal e experiências instintuais de todos os tipos” (1989a [1965], p.231).

Para Winnicott, a destruição do objeto implica em criatividade, ou seja: “a destruição


que se acha na raiz do relacionamento com objetos e que, (na saúde), se canaliza para a
destruição que se dá no inconsciente, na realidade psíquica interna do indivíduo, em sua vida
onírica e suas atividades lúdicas, e na expressão criativa” (1989a [1965], p.231). Essa
criatividade não precisa ser controlada, e sim sustentada por um ambiente que lhe permita
amadurecer. A provisão ambiental que permite que o indivíduo amadureça possibilita que a
vida sexual se paute pela criatividade. Esta abarcará a destrutividade que é própria dos
relacionamentos e que é diferente da destrutividade que advém da imaturidade do indivíduo.
Sobre o comportamento heterossexual compulsivo, Winnicott disse:

[...] o comportamento heterossexual compulsivo possui uma etiologia complexa e se


acha muito afastado da capacidade que um homem e uma mulher têm de se amarem
de maneira sexual, quando decidiram estabelecer juntos um lar para possíveis filhos.
No primeiro caso, acha-se incluído o elemento do estrago do que é perfeito ou de ser
estragado, e não mais perfeito, em um esforço para diminuir a ansiedade. No último
caso, pessoas relativamente maduras lidaram com a destruição, com a preocupação e
com o senso de culpa dentro de si e ficaram livres para planejar o sexo de modo
construtivo, sem negar os elementos rudes que existem na fantasia sexual total.

É algo surpreendente descobrir-se quão pouco o amante romântico e quão muito


pouco o adolescente heterossexual sabem a respeito da fantasia sexual total,
consciente e inconsciente, com sua competitividade, sua crueldade, seus elementos
pré-genitais de destruição grosseira e os seus perigos. (1989a [1965], p.231)
218

Com esta afirmação, Winnicott nos mostra que uma sexualidade madura
está vinculada à destruição do objeto e o quanto a fantasia sexual total abarca idéias
destrutivas. Pode-se afirmar, então, que a sexualidade madura tem que passar pelas conquistas
da fase do uso do objeto.

4.7. O uso do objeto no modo excitado

No tocante à sexualidade, o estabelecimento da capacidade de usar objetos se relaciona


com o contato e uso do indivíduo com as pessoas que estão na realidade externa. Somente
pode ser usada a pessoa que estiver na realidade externa, independentemente do modo como
esse uso será feito. Para a instauração da capacidade de envolvimento sexual, há a
necessidade de que o bebê possa usar o objeto de modo excitado. Porém, para que isso seja
possível, é necessário entender como o bebê adquire a capacidade de usar objetos, o que
pressupõe que essa capacidade não existia antes. Isso é um fato, porque o bebê até então vive
num mundo subjetivo, em que o atendimento materno assegura a onipotência do bebê e a
realidade objetivamente compartilhada não incide.

Podemos pensar que a origem do uso de objeto no modo excitado encontra-se nos
primórdios, posto que ela é tomada por tensões instintuais já no início de sua existência.
Segundo Winnicott, este é o modo mais evidente pelo qual o indivíduo toma contato com seu
corpo. De tempos em tempos a pessoa é tomada pelos instintos. Uma vez excitado há um
ritmo que levará ao clímax, seja na ingestão do alimento, na liberação do material excretório,
ou na excitação sexual que leva ao orgasmo genital ( 1969g, pp 561-2).

Ao ser tomada pela excitação, a criança experiencia um dos modos de habitar seu
corpo. Ao experimentarem tais excitações na presença de outras pessoas, as crianças têm a
possibilidade de se apropriarem dessas experiências como algo integrador, que pode
contribuir para o conhecimento e enriquecimento dela própria, criança.

Como é que um bebê se entende com seu próprio corpo? Em parte, experimentando
excitação. Mas os meninos que experimentam ereções e as meninas que têm
contrações vaginais quando se relacionam com certas pessoas, com o amor, ou com o
funcionamento do corpo, estão numa posição diferente daquela de meninos e meninas
que não vivenciam tais experiências integrativas. Muito vai depender da atitude dos
pais em relação a todos esses fenômenos naturais. Alguns fracassam em espelhar
219

aquilo que existe; outros estimulam aquilo que existe apenas de forma
embrionária. (1986g [1964], pp 185-6)

Assim, quando o bebê se apossa da experiência de modo excitado, ele pode retomar as
lembranças das vivências corporais um dia já experimentadas e que o ajudarão agora a buscar
outro ser humano e com ele poder se relacionar sexualmente.

Para tanto, é essencial que o indivíduo saiba de si, saiba discernir o tipo de excitação
que o acomete e que no caso de excitação sexual, o levará a buscar outra pessoa de modo a
obter o prazer na relação.

4.8. A agressividade na fase do concernimento

Em termos de processo maturacional, o bebê, antes da fase do concernimento, o bebê


não pode ser responsabilizado por suas manifestações agressivas. Ele agride porque está vivo
e também porque, um pouco mais amadurecido, constata que o ambiente não atende mais suas
necessidades. É um protesto necessário ao seu amadurecimento. Todos esses movimentos
foram necessários e agora o ajudarão no processo de apropriar-se de sua agressividade. Até
esse momento, a agressividade do bebê não pode ser vista como intencional. Mas, a partir de
agora a agressividade pode ser vista como tal, pois o bebê já tem maturidade para se dar conta
de seus atos e já pode integrar a agressividade à sua personalidade.

A mudança ocorre porque o bebê se dá conta do que ocorre consigo próprio, ou seja,
ele descobre que há um eu separado de todo um não-eu que está na realidade externa. Isso lhe
possibilita descobrir que o eu dos estados tranqüilos é o mesmo eu dos estados excitados e
que a mãe com a qual ele se relaciona no estado tranqüilo é a mesma mãe que ele ataca
quando é acossado pelos instintos.

A criança sente culpa quando constata que ataca a pessoa que lhe oferece um mundo
de riquezas. Ela descobre que é destrutiva com quem é bom para ela e o resultado é uma
enorme dificuldade para aceitar isto. Paradoxalmente, é uma agressão movida pelo amor. Diz
Winnicott:

de passagem, gostaria de acrescentar que me parece relativamente fácil chegar à


destrutividade que existe em nós quando ela está ligada à raiva perante a frustração ou
220

o ódio em relação a algo que desaprovamos, ou quando é uma reação ao


medo. A dificuldade é cada indivíduo assumir plena responsabilidade pela
destrutividade que é pessoal e inerente a uma relação com um objeto sentido como
bom – em outras palavras, que está relacionado ao amor. (1984c [1960], p. 137)

Para resolver essa situação, a criança emite pequenos gestos de reparação, gestos que
constituirão um ato de atacar e remendar os estragos feitos. Esses gestos incluem pequenos
presentes à mãe, tais como suas fezes, um olhar carinhoso, um sorriso num momento
específico. À mãe cabe aceitar estes gestos reparadores, mostrando à criança que a
agressividade e destrutividade liberadas são acolhidas. Esta atitude da mãe permite à criança
tornar-se consciente de sua destrutividade, de uma destrutividade advinda de um amor
primitivo.

Um elemento importante para a liberação dessa instintualidade agressiva da criança


para com a mãe é a intervenção paterna. A entrada do pai no relacionamento da criança com a
mãe fornece, simultaneamente, os limites e a permissão para a liberação dos ataques. O pai
fornece a proteção para que a mãe possa suportar os ataques infantis.

A assunção desta agressividade pelo bebê lhe permitirá entrar em contato com todos
os aspectos presentes em si próprio simplesmente pelo fato de que ele está vivo e, por isso,
pode experimentar todo tipo de atitude. Isso significa que seu corpo está sempre prestes a
passar por diferentes tipos de sentimentos e idéias, inclusive as destrutivas.

Outra função importante da figura paterna está no fato de que ele “[...] como indivíduo
do sexo masculino, torna-se um fator significativo” (1969c [1968], p. 141). O pai precisa
entrar na vida do bebê de inúmeros modos. Se no início ele é uma parte da função materna,
quando ele entra como o terceiro, como pessoa total, ele contribui de muitas maneiras para o
crescimento infantil (1989xa [1969]). Até então o bebê estava acostumado com um colo
materno, e um colo paterno é percebido pela criança de acordo com as características que lhe
são próprias. É diferente, para o bebê, a experiência de ficar no colo de quem tem um corpo
cujas formas físicas são femininas. Quando o pai pega um filho no colo, este tem
possibilidade de elaborar imaginativamente o seu próprio corpo em contato com alguém que
tem formas maiores, mais músculos, enfim, tudo o que constitui o corpo paterno.
221

4.9. Agressividade no estágio edípico

Quando chega o momento de experienciar o complexo de Édipo, a criança, se teve um


desenvolvimento maturacional saudável, se verá às voltas com situações que lhe obrigam a
despender uma grande agressividade. Como disse Winnicott, é no triângulo edípico que se
encontra toda a riqueza dos relacionamentos humanos. E relacionamento implica em
movimento e agressividade.

A criança tem que administrar a luta entre os aspectos construtivos e destrutivos de sua
personalidade, uma luta que está ocorrendo em seu mundo interno. Neste estágio, a criança
entra numa relação triangular, ou seja, ela pode viver o estágio das relações interpessoais.
(1988, p. 54) Ela pode se relacionar com outro ser humano como uma pessoa inteira; outra
característica desse estágio é a possibilidade de poder lidar com os conflitos internos
provenientes dos vínculos objetais. Como um ser humano inteiro, a criança tem um mundo
interno rico, ela experimenta muitos relacionamentos interpessoais e, na brincadeira e através
da imaginação, pode experimentar sentimentos intensos.

A agressividade se manifestará nos constantes ataques de seus instintos, contra os


quais ela precisa organizar defesas contra a ansiedade. Ela tem que integrar em seu
desenvolvimento os ataques de seu id que a levam a fantasiar situações com a figura parental
que se torna o alvo de seus desejos. Estas fantasias encontram-se no inconsciente reprimido da
criança e influenciam seu comportamento.

A criança tem que lidar com a agressividade necessária para solucionar o conflito de
lealdade ao qual é submetida (1986d [1966] p. 137). Ela vive um conflito de lealdade em
relação à mãe, um conflito inevitável e inerente ao desenvolvimento infantil, mas que é
desgastante. Como está descobrindo o pai, ela busca um relacionamento com ele, e termina
por estabelecer com seu genitor uma atitude que corresponde ao relacionamento vivido
anteriormente com a mãe. A criança desenvolve uma atitude amorosa com o pai, uma atitude
que termina por envolver temor e ódio em relação à mãe. Cabe à mãe compreender os
conflitos de seu filho e permitir que ele os experiencie, sem esperar que ele lhe seja fiel.

Para Winnicott,

numa família, gradativamente, pode-se conhecer todas essas possibilidades e


experimentá-las, e uma criança pode se reconciliar com os medos associados a todas
elas. Além disso, a criança pode chegar a apreciar as excitações referentes a esses
conflitos, desde que elas possam ser contidas e, nos jogos, as crianças de uma família
222

introduzem todas as tensões e os estresses que pertencem a esse tipo de


experimentação com deslealdades, incluindo mesmo tensões e ciúmes que percebem
existir nos adultos daquele ambiente. (1986d, p. 138)

Poder ver o mundo em consonância com o ponto de vista paterno não significa que a
criança esteja sendo desleal para com sua mãe, significa apenas que ela pode acrescentar uma
outra visão ao seu próprio mundo, o que é uma expansão. Mas, até conseguir resolver este
conflito, a criança é muito ameaçada em seu mundo.

A criança também está experimentando todo o jogo delicado de identificação com as


figuras parentais, situação de muito desgaste emocional. Nessa fase, a criança vive o clímax
de seu desenvolvimento instintual. Seus ataques instintuais evoluíram da fase pré-genital até a
fase genital. Esses ataques instintuais se refletirão sobre as relações interpessoais com as
quais a criança está envolvida, criando novas modalidades de sentimentos. Na situação
edípica, ou seja, na fase das relações interpessoais, meninos e meninas passam por situações
semelhantes em fantasias e idéias que envolvem incesto, assassinato e o receio de sofrer
retaliações.

O menino apaixona-se por sua mãe e utiliza seu pai como uma forma de controlar seus
instintos. Mas, como estes são muito poderosos, o menino precisa criar outros recursos para
lidar com essa situação de ansiedade. Através de uma identificação com o pai, o menino
obtém uma potência por procuração, e posteriormente, na puberdade, a própria potência será
recuperada.

Como se coloca na situação de rival do pai, o menino se defronta com a idéia da morte
deste, além de se defrontar com a idéia de sua própria morte. Também tem que enfrentar o
temor da castração. Como seu envolvimento com a mãe é intenso, coloca-se como totalmente
responsável por ela, disposto a satisfazê-la em todas as suas necessidades.

Na fase genital, o menino pode ter a fantasia da penetração no corpo feminino, mas
esse ato não pode ocorrer efetivamente. Há um desencontro entre fantasia e realidade, pois ele
precisará esperar até a adolescência para realizar essa penetração. Essa impossibilidade
provoca a impotência no menino, o sentimento de que ele não consegue ser como ele deve
ser. O pai deve tolerar a rivalidade que surge entre ambos.

As meninas passam por ansiedades semelhantes às dos meninos. A menina, por ter a
possibilidade de uma identificação com a figura feminina como ela mesma, entra em conflito
com a mãe, pois a imagem desta está associada a carinhos e satisfações. Todos esses
223

sentimentos e conflitos provocam insegurança na menina, pois ela entra em


conflito com a pessoa que foi seu primeiro amor da forma mais primitiva que se pode
experienciar.

Neste momento de vida da criança, é importante que a relação triangular repouse numa
estrutura familiar saudável, pois a solução para a ansiedade infantil será através da distinção
entre a realidade e a fantasia. Como os pais permanecem juntos, a criança pode suportar os
sonhos que envolvam as idéias de separação e morte de um deles. É essencial que os pais
possam distinguir entre fato e fantasia, o que ajudará a criança a atravessar este momento
difícil.

O tempo todo, durante todos os estágios anteriores, é a família, em especial a mãe, que
sustenta a situação propiciando um ambiente suficientemente bom para que a criança
amadureça. É necessário que a família se mantenha estruturada e dando o suporte para que a
criança consiga organizar suas demandas. No triângulo familiar harmonioso, a experiência
humana se constrói, num jogo de construção que envolve a destruição inerente à natureza
humana.

4.10. Agressividade no estágio da adolescência

Ao entrar na adolescência, o indivíduo que amadurece realiza uma reedição das


relações efetuadas com seus pais nos mesmos termos em que elas ocorreram na primeira
infância (1970b [1969], p. 285). O adolescente é tomado por uma intensa agressividade e para
enfrentar esse momento conturbado, ele necessita novamente de uma boa provisão ambiental.
É importante que seus pais mantenham as condições que assegurem a continuidade da
existência do filho, mantendo o interesse por ele. A manutenção da família original permite
que o adolescente amplie gradualmente seu grupo social, sem perder a identidade. A
sobrevivência da família também permitirá que o adolescente possa se rebelar contra ela, e
simultaneamente utilizá-la favoravelmente, na medida em que amplia seus círculos sociais. É
um momento difícil para o relacionamento entre pais e filhos.

Diz Winnicott (aos pais):

se você fizer tudo o que possível para promover o crescimento pessoal de seus filhos,
você vi ter de ser capaz de lidar com resultados incríveis. Se seus filhos acabarem se
224

encontrando, não vão se contentar senão em encontrar em sua totalidade, e


isso vai incluir a agressão e os elementos destrutivos em si próprios, assim como os
elementos que podem ser rotulados como amor. Será longa a luta que vocês terão que
enfrentar. (1969c [1968], p.156)

A entrada na puberdade faz com que o corpo da criança passe por inúmeras alterações
biológicas que incidem em seu comportamento, em especial com as demandas instintuais com
as quais ela tem que lidar. A integração psico-somática realizada na primeira infância terá que
ser rearticulada. Ocorre um novo processo de personalização. O adolescente, em algumas
ocasiões, se desconectará de seu corpo, numa situação de perda dos limites corporais.

Tal como o bebê, o adolescente se apresenta como um ser isolado. Ele mantém seu
isolamento pessoal com o intuito de preservar sua identidade, como uma forma de não violar
seu si mesmo. Com a atitude de isolamento ele também preserva sua fragilidade. Ele se isola
para não ser encontrado antes de estar em condições de ser encontrado e de experienciar
situações próprias das relações interpessoais profundas. Uma forma de se defender é viver em
grupos que procuram afinidades e que mantém a identidade dos elementos que o compõem.
Tudo isto é extremamente desgastante para ele.

Na área sexual, o adolescente vivencia conflitos intensos, pois seus instintos sexuais
estão nesse momento investidos num corpo já pronto para incorporá-los, embora sem muitas
condições para isso. As atividades sexuais são permeadas pela característica de isolamento e
pela necessidade de se associarem para manter interesses mútuos. As dúvidas sobre a vida
sexual são muitas. A identidade sexual ainda não se definiu completamente, embora meninos
e meninas tenham que se relacionar com as mudanças provenientes da própria puberdade. Na
retomada de seu crescimento maturacional, na reorganização de seu si-mesmo, este terá que
acomodar a identidade sexual que se completará nesse estágio. Gradativamente, o adolescente
chegará à maturidade sexual, incluindo a fantasia sexual inconsciente. A constituição da
identidade sexual se concretizará apenas no final da adolescência, quando o jovem terminar
de reorganizar seu desenvolvimento emocional. Em meio aos inúmeros conflitos que tem que
resolver, a questão da escolha objetal consiste em mais uma das situações com as quais ele
tem que lidar, pois muitos anos são necessários para que a escolha objetal amorosa seja
resolvida com tranqüilidade (1962a [1961], p. 157).

O radicalismo adolescente se relaciona com a necessidade de se sentir real (1962a


[1961], p. 151). A postura radical ajuda o adolescente a estabelecer uma identidade pessoal e
a travar um embate para viver autenticamente sem uma submissão a um papel
225

preestabelecido. Ele ainda não sabe no que se transformará, o que traz para ele
uma sensação de irrealidade. As atitudes e soluções radicais constituem uma forma de lidar
com essa irrealidade.

Uma nova descoberta assusta o adolescente: ele descobre que é capaz de matar. Se na
primeira infância existia a fantasia da morte, agora ele se vê às voltas com a fantasia de
assassinato. O adolescente descobre que o que era possível apenas na fantasia, agora é
passível de realização. Seu processo de amadurecimento implica em descobrir que crescer
significa tomar o lugar dos pais. Na fantasia inconsciente, a agressividade está sempre
presente e é própria do crescimento (1962a [1961], p. 157).

O potencial de construção e destruição é descoberto e, em vista disso, o adolescente


busca situações em que possa expressar uma agressividade, a qual ele já conhece em potência
na fantasia. Ele ainda não está em condições de amadurecimento que lhe permita descobrir
seu potencial reparador. Ainda não conhece o valor do trabalho como algo que possa reparar
sua fantasia inconsciente destrutiva. À medida que amadurece, surge maior responsabilidade e
maior potencial reparador.

Todo este período conturbado só pode ser solucionado com a passagem do tempo.
Resta ao adolescente apenas esperar. Este processo não pode ser nem acelerado nem
postergado. Somente com o passar do tempo o adolescente chega ao estágio adulto.
Gradativamente ele se torna capaz de se identificar com as figuras parentais e com a
sociedade como um todo, sem necessidade de uma adoção de falsos valores ou de uma
submissão a um código valorativo que não corresponda à sua forma de pensar.

Para que isso ocorra, a tarefa dos pais e da sociedade é compreender as contradições
próprias deste estágio. Com uma postura segura permitem que o adolescente encontre seus
instintos, os quais, ao serem integrados, serão assimilados, autocontrolados e finalmente
contribuirão construtivamente para a socialização. A agressividade exercerá um papel
fundamental neste estágio de vida.

4.11. Agressividade na vida adulta

Chegar à vida adulta de modo saudável implica em usar de todo o potencial agressivo
do indivíduo, potencial para a construção e manutenção da saúde. Como qualquer outro
estágio do processo maturacional, não é suficiente chegar à vida adulta. O indivíduo deve
226

tomar todos os cuidados necessários para que possa manter sua vida, sabendo que
agora ele já não está mais submetido ao ambiente, embora ainda dependa dele e das outras
pessoas que nele estão.

Embora alguns aspectos da agressividade na vida adulta não se refiram


especificamente a genitalidade, eles são essenciais por estarem na base de uma vida saudável.
Um destes aspectos pode ser encontrado na preservação da criatividade originária, do gesto
criador do mundo. O indivíduo adulto necessita se envolver e ser atingido pela vida e
continuar a se surpreender. Isto se vincula aos contatos, pois é necessário manter uma
identificação com a sociedade e com os outros seres humanos, mas sem perder a
espontaneidade e agressividade pessoais. Como disse Winnicott,

digamos que um homem ou uma mulher saudáveis sejam capazes de alcançar uma
certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos individuais ou
pessoais. É claro que deve existir alguma perda no sentido de controlar o impulso, mas
uma identificação extremada com a sociedade acompanhada de perda do si-mesmo, e
da importância do si-mesmo, não é normal de modo algum. (1971f [1967], p. 27)

O uso adequado da agressividade é que possibilitará ao indivíduo manter esta


identificação com a sociedade e com as pessoas, de modo a atender suas necessidades.

A agressividade também exerce um papel relevante na parceria psico-somática. Ao


relatar o caso de uma paciente que não manifestou raiva nem gritou numa determinada
situação, Winnicott aponta que esta atitude enfraquece a integração psico-somática. Ou seja,

[...] o não acontecimento do não gritar é, em si próprio, uma negação ou expulsão de


uma das coisas muito importantes que ligam a psique e o soma, quais sejam, chorar,
gritar, berrar, protestar iradamente. Já é possível dizer que esta paciente, ao tornar-se
capaz de gritar, terá um fortalecimento imenso do inter-relacionamento
psicossomático e uma diminuição da necessidade de empregar a experiência um tanto
artificial da interação psico-somática, tal como descrita acima. (1989vm [1969], p.
117)

No tocante aos aspectos que se referem a genitalidade, é necessário que o indivíduo


mantenha sua capacidade de buscar os objetos na realidade externa e com eles manter uma
227

relação genital plena. Isso implica em fazer uso da fantasia total e da


destrutividade necessária na manutenção das relações entre seres humanos inteiros.

Se tudo correu bem, o indivíduo poderá finalmente experienciar os aspectos próprios


da vida sexual, que vão além da reprodução, pois também constitui um fator prazeroso em sua
vida. O ser humano é o único ser vivo que não tem sua vida sexual regida por um controle
apenas fisiológico. O sexo, para os seres humanos, pode se transformar em erotismo e
possibilitar uma vivência sensual, lasciva, em que imaginação e sentidos resultam em prazer.
Mais abrangente que a questão procriativa, os rituais eróticos constituem um fim em si
mesmos, revelando a transformação de um gesto regulado fisiologicamente em inúmeras
manifestações da sensualidade humana. O erotismo possibilita uma transformação do ato
sexual em um ritual mediado pela imaginação e vontade do ser humano. Desse modo, a
sexualidade da pessoa adulta pode ser vivida como um jogo criativo. A instintualidade e
agressividade podem ser ingredientes saudáveis. Os jogos do amor podem ser enriquecidos
com as experiências que surgem nos sonhos e fantasias. Tanto o homem como a mulher já
podem desfrutar de sua própria identidade sexual, aceitando as diferenças que os gêneros
masculino e feminino estabelecem. O homem pode desenvolver uma vida feminina em
experiência imaginativa, identificando-se com as mulheres e o mesmo pode acontecer com
estas, que podem ter uma identificação com o mundo masculino. As diferenças sexuais
podem ser exploradas ao máximo. Afinal, agressividade e sexualidade seguem lado a lado.

5. A integração psico-somática

Para Winnicott, a base para a psico-somática deve ser buscada na anatomia do que é
vivo, em um corpo que gradualmente é integrado se tudo transcorrer bem no desenvolvimento
do indivíduo.

Pode parecer irrelevante dizer que há uma integração psico-somática no ser humano e
que seria desnecessário apontá-la como um dos fundamentos da teoria winnicottiana da
sexualidade, posto que todo ser humano tem um corpo. Porém, ter um corpo não significa que
o indivíduo tenha posse dele, que ele se sinta firmemente alojado nele. Winnicott adverte que
no campo psico-somático pode-se deparar com casos em que a relação entre psique e soma foi
enfraquecida ou não se constituiu (1988, p. 27).

A conquista psico-somática se dará pelos cuidados maternos. Segundo Winnicott:


228

O manuseio da pele no cuidado do bebê é um fator importante no estímulo a uma vida


saudável dentro do corpo, da mesma forma como os modos de segurar a criança
auxiliam no processo de integração. Se o uso de processos intelectuais cria obstáculos
para a coexistência entre psique e soma, a experiência de funções e sensações da pele
e do erotismo muscular facilitam essa coexistência. Poderíamos dizer sobre todos os
seres humanos que nos momentos em que uma frustração instintiva provoca um
sentimento de desesperança ou futilidade, a fixação da psique no corpo enfraquece,
sendo então necessário tolerar um período de não relação entre a psique e o soma.
Esse fenômeno pode ser exacerbado em todos os graus possíveis de doença. A idéia de
um fantasma, de um espírito desencarnado, advém desta não vinculação necessária
entre psique e soma. Estas histórias têm valor pelo fato de elas chamarem a atenção
para a precariedade da coexistência. (1988, p. 122).

A psicanálise winnicottiana se baseia na idéia de que “a natureza humana não é uma


questão de corpo e mente – e sim uma questão de psique e soma inter-relacionados, que em
seu ponto culminante apresentam um ornamento: a mente” (1988, p. 26). O corpo humano se
constitui a partir do inter-relacionamento entre a parte somática, a parte psíquica e a mente,
que é decorrente do funcionamento do soma e psiquismo. Em 1945, ao descrever os processos
iniciais do desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott já apontava a necessidade de se
considerar o processo de integração como o responsável pela constituição do indivíduo;
apontava também que o bebê precisa ter o “desenvolvimento do sentimento de que se está
dentro do próprio corpo” (1945d, pp 150-1).

5.1. A psique

Winnicott apresentou dois significados relativos à psique: ela é resultado da


elaboração imaginativa das funções corpóreas e também da elaboração imaginativa do
funcionamento físico. Ao afirmar que “a base da psique é o soma”, Winnicott nos leva a crer
que tudo o que não é soma e que pode ser chamado de psique opera no bebê desde o início de
sua vida (1988, p. 19). Ela se forma por meio do material fornecido pela elaboração
imaginativa das funções corpóreas. Os cuidados que o bebê recebe de sua mãe são
transformados em experiências, experiências que serão responsáveis pela constituição da
psique.
229

De qualquer modo, as idéias de Winnicott somente serão compreendidas a


partir do momento em que se considera o desenvolvimento do indivíduo desde seus
primórdios:

aqui temos um corpo, não se devendo distinguir entre a psique e o soma, exceto de
acordo com a direção a partir da qual se está observando. Pode-se observar o corpo em
desenvolvimento ou a psique em desenvolvimento. Suponho que a palavra psique aqui
signifique a elaboração imaginativa das partes, sentimentos e funções somáticas, isto
é, do estar vivo físico. (1954a [1949], p. 244)

Um bebê em desenvolvimento está submetido tanto aos cuidados corporais que recebe
quanto à sua herança fisiológica, em especial de seu funcionamento cerebral e esses aspectos
estão presentes na constituição da psique. Segundo Winnicott, “esta elaboração imaginativa
depende da existência e do funcionamento saudável do cérebro, especialmente de algumas de
suas partes” (1954a [1949] , p. 244).

A importância da psique está no fato de que ela se tornará o elemento responsável pelo
relacionamento do indivíduo consigo mesmo. Ela conferirá ao indivíduo a possibilidade de
instauração de sua história pessoal, por constituir gradativamente a temporalidade humana.

Emergindo do que se poderia chamar de elaboração imaginativa das funções corporais


de todos os tipos e do acúmulo de memórias, a psique (especialmente dependente do
funcionamento cerebral) liga o passado já vivenciado, o presente e o anseio futuro uns
aos outros, dá sentido ao sentimento do si-mesmo, e justifica nossa percepção de que
dentro daquele corpo existe um indivíduo. (Winnicott, 1988, p. 28)

A relação da pessoa com a realidade externa e a construção de uma maturidade


também estão vinculadas à psique, a qual,

[...] desenvolvendo-se desta maneira, torna-se possuidora de uma posição a partir da


qual é possível relacionar-se com a realidade externa, torna-se algo que é capaz de
criar e de perceber a realidade externa, torna-se um ser qualitativamente enriquecido,
em condições de ir além daquilo que se pode explicar por influências ambientais, e
capaz de não apenas de se adaptar, mas também de se recusar a se adaptar, e de se
230

transformar numa criatura com algo que parece ser capaz de fazer
escolhas. (Winnicott, 1988, pp 28-29)

Para Loparic, a psique “não é uma substância ou uma instância, e sim um modo de
operar da natureza humana” (2000, p. 362).

5.2. O soma

Quando afirma que a base para a psico-somática é a anatomia do que é vivo, Winnicott
revela que o ponto de partida de seu pensamento é que o indivíduo tem um corpo cheio de
vitalidade e que se transforma a cada fase de sua existência. O soma é o corpo vivo. Essa
anatomia viva é a base da vida, ou seja, “ a base para a psico-somática é a anatomia do que é
vivo, que chamamos de fisiologia. Os tecidos estão vivos e fazem parte do animal como um
todo, e são afetados pelos estados variáveis da psique daquele animal” (1988, p. 26).

Toda a existência humana é firmemente assentada nesse corpo. Isso se deve ao fato
inegável de que “[...] em termos de evolução, o soma foi o primeiro a chegar” (1988, p. 19).

Ao nascer, o ser humano herda um aparato fisiológico que tem uma autonomia e
temporalidade próprias que se revelam no desenvolvimento corpóreo. O corpo de um bebê é
diferente do de uma criança de três anos, que é diferente de um adolescente de quinze, e assim
sucessivamente. Gradativamente, o bebê se apropria de seu corpo quando o elabora
imaginativamente.

Este corpo vivo está entregue às tensões instintuais, tensões que posteriormente se
transformarão em instintos, quando integrados. Entregue às experiências corporais, o bebê
tem sua vida enriquecida e seu corpo se torna “[...]algo em que dá gosto viver” (1949l, p. 44).

A cada fase da vida humana, o corpo deve ser elaborado imaginativamente,


expressando as conquistas e alterações de cada uma dessas fases. Por exemplo, a criança tem
todo seu corpo envolvido nas brincadeiras corporais, mas ainda não pode engravidar, mas a
jovem pode receber em seu útero uma nova vida.

Este corpo vivo também é frágil e seu resguardo e cuidado é necessário durante toda a
vida do indivíduo. Este corpo é que torna possível ao sujeito emitir o gesto em direção ao
mundo e nele se alojar. Seus aspectos de animalidade: andar, comer, evacuar, respirar, etc.,
são tributários de um estar vivo que confere sentido a um corpo cheio de possibilidades.
231

Existir e construir uma existência é possível se for firmemente assentado


sobre um soma vivo e animado.

5.3. A inter-relação psique-soma

Quando fala em ser humano inteiro (whole person), Winnicott está se referindo à sua
idéia de que o ser humano é constituído pelo soma e pela psique, que o ser humano é psique-
soma.

Ao abordar a questão psico-somática, Winnicott nos mostra que o existir humano


somente pode ser considerado a partir de uma parceria entre psique e soma. Para Winnicott, a
existência é psicossomática e expressa o estabelecimento de um padrão pessoal, um indivíduo
que se personalizou e se constituiu como pessoa unitária (1960c, p. 44).

O elemento responsável pela conexão corpo e psique é a fantasia. A fantasia, para


Winnicott, permite ao bebê esquematizar o funcionamento do que seu corpo faz. Entretanto,
o que seria esse esquema corporal? A resposta pode ser encontrada em seu texto de 1949,
quando ele esclarece que: “o esquema corporal, com seus aspectos temporal e espacial,
fornece uma exposição valiosa do diagrama que o indivíduo tem de si próprio e acredito que
dentro dele não haja um lugar óbvio para a mente” (1954a [1949] p. 243).

Quando elabora seu esquema corporal, o indivíduo entra em contato com a totalidade
de seu corpo. Estar vivo implica em se apropriar do corpo, mas isto não é suficiente. Há um
processo gradativo em que o bebê faz uma elaboração imaginativa das funções corpóreas em
seu funcionamento quase fisiológico. Posteriormente, o bebê fará uma elaboração mais
complexa e o termo fantasia é o mais adequado para denominá-lo. Essa nova etapa na vida do
bebê revela o funcionamento total da vida psíquica. São dois momentos diferentes na vida do
bebê.

Pode-se dizer com segurança que a fantasia mais próxima do funcionamento corporal
depende da função daquela parte do cérebro que, em termos evolutivos, é a menos
atual, enquanto que a consciência-de-si depende do funcionamento do que é mais atual
na evolução do animal humano. A psique, portanto, está fundamentalmente unida ao
corpo através do entrelaçamento que se estabelece entre ela e o corpo graças a novos
relacionamentos produzidos pela fantasia e pela mente do indivíduo, consciente ou
inconscientemente. (Winnicott, 1988, p. 52)
232

Este tema foi desenvolvido em outro texto no qual Winnicott sustenta que

a elaboração imaginativa da função deve ser considerada existente em todos os níveis


de proximidade do funcionamento físico propriamente dito, e em todos os graus de
distância do orgasmo físico. A palavra inconsciente, de acordo com um de seus
sentidos, se refere à fantasia quase-física, aquela que está menos ao alcance da
consciência. No outro extremo da escala se encontra a consciência-de-si (awareness of
the self) e da capacidade pessoal de ter uma experiência funcional ou orgiástica. (1988,
p. 51)

Portanto, o termo fantasia se refere à totalidade da vida psíquica do indivíduo, o que


abarca tudo o que ocorreu com o indivíduo nas fases iniciais de sua existência, em que
representação e verbalização ainda não eram possíveis. É Winnicott quem melhor esclarece o
que concebe como fantasia. Ele afirma que quando pensa neste conceito, está:

[...] pensando na totalidade da realidade psíquica ou pessoal da criança, certa parte


dela consciente, mas, a maior parte, inconsciente, e, ainda incluindo aquilo que não é
verbalizado, afigurado ou ouvido de maneira estruturada, por ser primitivo e próximo
das raízes quase fisiológicas das quais brota. (1989vl [1961], p. 69n)

Psique e soma são interligados pelo processo de integração e o resultado é uma pessoa
que não pode ser dividida, fragmentada. O processo de integração mostra a necessidade de
interligar dois aspectos da natureza humana.

Não existe uma identidade inerente entre corpo e psique. Da forma como nós, os
observadores, o vemos, o corpo é essencial para a psique, que depende do
funcionamento cerebral, e que surge como uma organização da elaboração imaginativa
do funcionamento corporal. Do ponto de vista do indivíduo em desenvolvimento, no
entanto, o si-mesmo e o corpo não são inerentemente superpostos, embora para haver
saúde seja necessário que esta superposição se torne um fato, para que o individuo
venha a poder se identificar com aquilo que, estritamente falando, não é o si-mesmo.
Gradualmente, a psique chega a um acordo com o corpo, de tal modo que na saúde
exista finalmente um estado no qual as fronteiras do corpo são também as fronteiras da
psique. (Winnicott, 1988, p. 123)
233

A existência da parceria psico-somática indica saúde, indica que o


indivíduo se alojou em seu próprio coro, que este é a morada de seu si-mesmo.52

5.4. A mente ou intelecto

Se há uma integração psico-somática, onde se localiza a mente? Este tema foi


abordado por Winnicott em 1949, quando disse que:

para estudar o conceito de mente, deve-se sempre estudar um indivíduo, um indivíduo


total, incluindo o desenvolvimento desde os primórdios de sua existência psico-
somática. Caso se aceite esta disciplina então se pode estudar a mente de um indivíduo
à medida que ela se especializa a partir da parte psíquica do psique-soma.

Quando o psique-soma ou esquema corporal do indivíduo atravessa satisfatoriamente


os estágios mais antigos do desenvolvimento, a mente não existe como uma entidade
no esquema de coisas deste indivíduo, não sendo mais que um caso especial do
funcionamento do psique-soma. (1954a [1949], pp 243-4)

Isso significa que tem sentido falar em mente quando se pensa que ela é um modo de
operar. Seu surgimento se dá quando inicia o processo de desadaptação da mãe às
necessidades do bebê, e como essa adaptação total não é mais necessária, a mente surge com
o objetivo de ajudar o bebê neste novo momento de vida. Para lidar com as falhas provocadas
pela mãe, o intelecto do bebê o ajuda quando desenvolve funções como pensar, catalogar,
fazer previsões, correlacionar, etc.

Em Natureza humana, Winnicott diz que “no início há o soma, e então a psique, que
na saúde vai gradualmente se ancorando ao soma. Cedo ou tarde aparece um terceiro
fenômeno, chamado intelecto ou mente” (1988, p. 139).

A mente, tal como a psique, também depende da qualidade do cérebro, ela depende
dos atributos do tecido cerebral. A mente não pode ficar doente, ela tem a característica de

52 Em 1964, Winnicott disse; “O termo “morada” é aqui utilizado para descrever a residência da psique
no soma pessoal, ou vice-versa.” (1966d [1964], p. 113)
234

permitir que o indivíduo seja mais inteligente ou menos inteligente. Por meio da
função mental,

as experiências são catalogadas, classificadas e relacionadas a um fator tempo. Muito


antes de o pensamento se transformar numa característica, possivelmente necessitando
de palavras para se realizar, o intelecto já tem uma tarefa a cumprir. A função
intelectual varia enormemente de um bebê a outro, visto que o trabalho a ser realizado
pela mente depende não de fatores inerentes ao ser ou do crescimento em si mesmo,
mas do comportamento do ambiente, ou seja, da mãe que cuida do bebê. (Winnicott,
1988, p. 139)

Na saúde, a mente tem a função de ajudar o bebê a dar prosseguimento ao seu


processo de amadurecimento em direção à independência relativa. Isto será possível porque,
através de uma integração psicossomática, é possível encontrar um ser humano firmemente
assentado em seu próprio corpo, em que mente, psique e soma se encontram plenamente
integrados. O indivíduo se reconhece naquela unidade psicossomática e há uma harmonia
entre a forma como ele se sente e tal como ele é fisicamente.

Em temos de identidade sexual, é possível afirmar que um ser humano com uma
provisão biológica masculina se sente como um homem e que uma pessoa com uma provisão
biológica feminina se sente como uma mulher. Não há um transbordamento das fronteiras
corporais e, firmemente alojado em si próprio, o indivíduo pode dizer que ele é dono do
castelo e que tomou posse do que é seu. 53

6. EU SOU

A conquista do estágio que Winnicott denomina de EU SOU é muito importante para


compreender os aspectos vinculados à sexualidade. Quando o indivíduo em amadurecimento
se dá conta de que ele é alguém, isso inclui as questões sexuais.

53 Em vários textos Winnicott usa o jogo “Eu sou o Rei do Castelo”, jogo que para ele indica o
crescimento emocional individual. (1969a, p. 144).
235

De início, o bebê está não-integrado e a partir dos vários níveis desta não-
integração, paulatinamente, ele se integra no tempo e no espaço, ele faz a integração
psicossomática e constitui as realidades interna e externa. Ele já é uma pessoa que pode
representar, pode simbolizar, e sua memória lhe confere uma constância histórica pessoal,
pois ele já tem passado, presente e se tudo continuar transcorrendo bem, ele terá um futuro.

Tudo isto indica que a integração está transcorrendo de modo favorável. Porém,
exatamente porque muitas conquistas já foram feitas, e nada está assegurado, o bebê sabe que
pode perdê-las e se sente sempre na expectativa de sofrer um ataque. Segundo Winnicott, o
indivíduo que atinge este estágio já tem em si a certeza da morte (1984h [1968], p. 61). É uma
ousadia dizer “EU SOU”, é uma afronta ao mundo externo. Num momento anterior, para se
constituir, ele rejeitou tudo o que não fosse subjetivo para poder se constituir. Agora é o
momento de mostrar que ele se tornou integrado. Em função desta situação delicada a criança
procurará se preservar, e alguns traços paranóides podem surgir.

Para que esta integração se confirme, o bebê ainda precisa de um ambiente que
propicie cuidados, mas ele já tem maturidade suficiente para assumir responsabilidade pessoal
sobre seus instintos, já tem memórias pessoais e integrou-se no tempo e espaço. Em suma, ele
já conquistou uma condição pessoal de unidade.
236

Capítulo V: A redescrição da teoria da sexualidade a partir da obra de


Winnicott: o novo objeto da teoria da sexualidade

Introdução

Este capítulo tem dois objetivos. O primeiro é o de apresentar a concepção


winnicottiana da teoria da sexualidade. Para desenvolver este estudo, usarei os textos de
Winnicott e de Loparic, de modo a apresentar a redescrição winnicottiana Ao redescrever a
sexualidade, Winnicott reescreve a teoria psicanalítica deste fenômeno. O segundo objetivo é
o de tecer considerações a respeito de questões que surgem na clínica em decorrência de
falhas no processo de amadurecimento que repercutem na área da sexualidade.

A teoria da sexualidade elaborada por Freud tem sido alvo de estudos por vários
autores, dada a importância que ela tem na constituição da psicanálise. Desenvolvida por
Freud durante várias décadas, essa teoria é resultado de um amplo estudo empírico e
especulativo. Inicialmente calcada no estudo das perversões, ela evoluiu para uma
apresentação da sexualidade infantil e adulta. Ao enfocar a trajetória da libido nas zonas
erógenas, ela se tornou o ponto de partida da organização do arcabouço teórico freudiano.

Winnicott, ao apresentar uma nova compreensão sobre o desenvolvimento do ser


humano, também apresentou uma nova teoria da sexualidade, uma teoria não calcada
exclusivamente no desenvolvimento da organização sexual da libido. Enquanto que a teoria
da sexualidade proposta por Freud tem que ser compreendida no contexto da formação do id,
a teoria da sexualidade de Winnicott tem que ser compreendida no quadro de uma teoria do
ego, ou seja, da tendência à integração que leva o indivíduo a uma parceria psicossomática e
ao encontro com outro ser humano. Este tema, dentre outros, tem sido estudado por Loparic
(1997a, 1999d e 2004).

Tanto quanto Freud, Winnicott também concebe a psicanálise como uma ciência
empírica (1945h, 1986k [1961]). A divergência com o pensamento freudiano se inicia com o
abandono dos elementos especulativos, posto que Winnicott rejeita a metapsicologia como
um dos elementos fundamentais para a clínica e sua concepção de ser humano. Há, porém, um
aspecto a ser destacado: o fato de que Winnicott se mantenha um empirista não significa que
ele tenha mantido a descrição empírica dos elementos da sexualidade, tal como foi proposto
por Freud. Ele propõe uma nova descrição, além de introduzir novos elementos na
composição da teoria da sexualidade. O resultado é uma teoria da sexualidade bastante
diferente da proposta por Freud.
237

Winnicott abandona o conceito freudiano de libido e, em seu lugar, coloca


um conceito empírico, o de instinto. Além do mais, ele inclui um elemento totalmente novo,
paradoxalmente, um elemento não sexual, ou seja, as identificações (desde as primárias até as
sexuais cruzadas). Assim, a teoria da sexualidade proposta por Winnicott se sustenta em dois
fundamentos, um de caráter instintual sexual e outro de caráter não sexual (identitário).
Winnicott conta que descobriu a existência deste elemento de caráter não sexual - os
elementos masculinos e femininos puros - na análise de um paciente do sexo masculino.54

Vejamos como se apresentam estes dois elementos na teoria da sexualidade proposta


por Winnicott.

I. Concepção winnicottiana da teoria da sexualidade

1. Uma nova teorização

As teorizações freudianas foram úteis às atividades teóricas e clínicas de Winnicott


durante algum tempo. Foi isto que o levou a afirmar que “quase todos os aspectos do
relacionamento entre pessoais inteiras foram abordados por Freud [...]” (1988, p. 36). Porém,
assim que surgiram os primeiros problemas que não puderam ser solucionados pela teoria
freudiana, Winnicott se viu obrigado a criar outro enfoque que pudesse lhe dar sustentação na
clínica. Este enfoque se baseia em sua idéia, já anunciada em 1947, no texto A criança e o
sexo, de que, na questão da sexualidade, o fundamental é uma descrição (1947a, p.147).

Conforme já foi apresentado anteriormente, Winnicott substituiu a teoria da


sexualidade pela teoria do amadurecimento pessoal. Essa substituição impede que a teoria da
sexualidade proposta por Freud possa ser aceita em seus aspectos gerais, porque ela foi
desenvolvida com base na situação edípica, uma das etapas do processo maturacional. Em
termos de teoria do amadurecimento pessoal, a fase edípica corresponde à fase em que a
criança está vivenciando a dependência relativa, o que, se tomado como advoga Freud,
desconsidera tudo o que foi vivido por ela na fase da dependência absoluta.

Para o pensamento winnicottiano, a fase da dependência absoluta é essencial para o


desenvolvimento do ser humano. É neste estágio que as bases da saúde do indivíduo são
sedimentadas e tudo o que ocorrer com o bebê neste período pode tanto impedir como facilitar

54 O próprio Winnicott diz que este estudo também poderia ser feito com uma paciente do sexo
feminino.
238

o seu processo de desenvolvimento. Todas as conquistas são importantes, cada


etapa é fundamental para que uma potencialidade se efetive.

O bom andamento do processo de amadurecimento leva o indivíduo a constituir sua


natureza humana. Segundo Winnicott, o homem é uma amostra-no-tempo da natureza humana
e todos os fenômenos próprios ao homem significam o desdobramento desta natureza. Em
termos de sexualidade, uma das tarefas do indivíduo é constituir sua identidade sexual, é
reconhecer-se ou como homem ou como mulher.

Também é importante lembrar que masculino e feminino são aspectos constituintes da


natureza humana. Questões de gênero podem sofrer influência de cultura, época e lugar, mas
independentemente destes aspectos, há um aspecto masculino e um feminino que não se
alteram. É importante ressaltar que as diferenças sexuais são atemporais: em qualquer tempo e
em qualquer lugar, quando qualquer ser humano nasce, ou ele possui órgãos sexuais
masculinos ou possui órgãos sexuais femininos. A natureza humana comporta em si dois
sexos: o sexo masculino, a que pertence o homem, e o sexo feminino, a que pertence a
mulher. Esta diferença sexual é biológica. Através da elaboração imaginativa dos órgãos
sexuais, o que é biológico em termos masculinos significa que o macho - aquele que tem
órgãos sexuais masculinos - transforma-se em pessoa humana masculina, transforma-se em
um homem, e que a fêmea - aquela que tem órgãos sexuais femininos - torna-se uma pessoa
humana mulher. Esta transformação é resultado do processo de amadurecimento.

Para Winnicott, o estudo da saúde física tem que envolver tanto a hereditariedade
(nature) quanto a criação, o cultivo (nurture). Durante o processo de crescimento do bebê
humano “[...] gradualmente a criança se transforma no homem ou na mulher, nem cedo
demais, nem tarde demais” (1988, p. 12). Portanto, a tendência ao amadurecimento, que é um
‘elemento universal’, necessariamente deve levar o indivíduo a desenvolver sua personalidade
de acordo com os órgãos sexuais que herda ao nascer, sejam eles identificados como os
pertencentes ao macho ou à fêmea.

Se a teoria da sexualidade apresentada por Freud não enfocava os estágios iniciais da


existência humana, Winnicott se viu obrigado a reformular o pensamento freudiano. Uma das
teses reformuladas por Winnicott foi a teoria dos instintos. Se Freud apresentou o
desenvolvimento da libido nas zonas erógenas, Winnicott apresenta o desenvolvimento dos
instintos das funções sexuais.
239

1.1. A raiz instintual - a teoria dos instintos55

Conforme já foi apresentado no capítulo IV, a instintualidade é um dos elementos que


fundamentam a teoria da sexualidade proposta por Winnicott. Isto se deve ao fato de que ela
deve ser compreendida como uma teoria empírica cujos conceitos-chave, conforme observa
Loparic, “referem-se a instintos e aos modos de manejo dos instintos” (Loparic, 2004, p. 10).

Por ter um caráter de impulso biológico, os instintos não podem receber o mesmo
significado que a pulsão recebe em Freud, ou seja, as pulsões têm uma dimensão especulativa,
por se caracterizarem como forças psíquicas e entidades fronteiriças entre o psíquico e o
físico.

De acordo com o que apresentado no capítulo IV, no início de sua vida o bebê está
entregue às tensões instintuais, experimentando tensões e excitações e nesse momento não se
pode falar que ele esteja entregue aos instintos porque ele ainda não os integrou como parte de
si. Nesse momento, o bebê está entregue às tensões instintuais biológicas e ainda
experienciadas como externas a ele (1988, p. 40). O bebê não realizou o processo de
personalização e sua anatomia corporal ainda não é vista como parte dele. Na medida que
amadurece, quando o bebê integra a instintualidade e a sente como algo que lhe é próprio, na
fase do concernimento, já se pode falar em vida instintual (1955c, p. 262, 1963b [1962], p.
73). Esta integração ocorrerá na fase do concernimento, quando, finalmente, ele se torna
responsável pelos ataques deferidos contra sua mãe. Somente a partir deste momento que as
tensões instintuais se transformam em instintos.

Para Winnicott, os instintos constituem o elemento que produz excitações no ser


humano, sejam elas locais ou gerais. Os instintos produzem no bebê uma necessidade urgente
de alívio. Para Winnicott, eles são

[...] poderosos impulsos biológicos que vêm e voltam na vida do bebê ou criança, e
que exigem ação. A excitação do instinto leva a criança, assim como qualquer animal,
a preparar-se para a satisfação quando o mesmo alcança seu estágio de máxima
exigência. Se a satisfação ocorre no momento culminante da exigência, então há a
recompensa do prazer e também o alívio temporário do instinto. A satisfação

55 Segundo Loparic: “há quem sustente que o termo “instinct” de Winnicott é emprestado da tradução
inglesa do termo “Trieb” de Freud, comumente traduzido em português por “pulsão”. Essa interpretação é um
sério engano, como se pode concluir facilmente da comparação das teses de winnicott sobre os instintos com a
doutrina das pulsões de Freud.” (2004, p. 10)
240

incompleta ou mal sincronizada acarreta alívio incompleto, desconforto, e


a ausência de um período de descanso necessário entre duas ondas de exigências.
(1988, p. 39)

Na vivência da instintualidade, o bebê está entregue a todas as excitações que seu


corpo pode experimentar, seja uma excitação do tipo local, em que uma parte do corpo, tal
como a boca, está envolvida, seja uma excitação generalizada, sendo que a “excitação
generalizada tanto pode contribuir para que o bebê se sinta um ser total quanto ser uma
resultante do estágio de integração alcançado no decurso do desenvolvimento” (1988, p. 40).
Estas experiências instintuais possibilitam ao bebê conhecer o seu corpo, assimilar suas
características.

Não se pode esquecer que o bebê está chegando ao mundo. Ele nada sabe de si e todos
os aspectos que lhe dizem respeito, inclusive tomar contado com os órgãos sexuais, devem
acontecer de forma gradativa. Cada parte do corpo será integrada ao si-mesmo do bebê, de
modo que, ao final de seu processo de integração, ele saiba, de fato, quais as características
desse corpo. A apropriação dos instintos é uma tarefa importante na totalidade desse processo.

Para Winnicott, os instintos desempenham um papel importante no desenvolvimento


humano:

o fato é que qualquer parte do corpo pode ser excitada numa ou outra ocasião. A pele,
por exemplo. Você já viu crianças coçando o rosto, ou a pele de outras partes do
corpo, ficando a própria pele irritada e provocando uma espécie de erupção cutânea. E
há certas partes da pele mais sensíveis do que outras, especialmente em certas épocas.
Você poderá observar todo o corpo da criança e imaginar os diversos meios como a
excitação acaba por se localizar. Não podemos, certamente, ignorar as regiões sexuais.
Tudo isso é muito importante para a criança e constitui o momento decisivo para o
despertar da vida da infância. (1957l [1950], p. 99)

O fato de que os instintos provocam uma intensa transformação no bebê leva


Winnicott a afirmar que

periodicamente, os bebês têm diferentes tipos de orgias (não só as orgias alimentares),


as quais são não só naturais, mas muito importantes para eles. Os processos
241

excretórios são particularmente excitantes e as partes sexuais do corpo da


criança ainda o são mais, em momentos apropriados, à medida que as crianças
crescem. É fácil observar as ereções do menino e é difícil saber o que a menininha
sente sexualmente. (1957l [1950], p. 100)

Conforme vimos no capítulo anterior, em alguns aspectos o ser humano mantém as


mesmas características dos animais posto que não há muita diferença entre os diferentes tipos
de demanda instintual. Ou seja:

[...] não há muita diferença entre os diversos tipos de demanda instintiva, e tampouco
há muita diferença entre seres humanos e animais. Não é necessário, aqui, entrar em
discussão quanto à classificação dos instintos, nem decidir se há um único instinto ou
se eles são dois, ou se existem às dúzias. (1988, pp 39-0)

Com esta afirmação, Winnicott se afasta da psicanálise tradicional, a qual postula a


existência de uma dualidade pulsional, duramente criticada por Winnicott.

O elemento que estabelece a diferença entre os animais e o ser humano está no fato de
que este faz uma elaboração imaginativa do modo como os instintos agem em seu corpo, cujo
resultado é a integração destes instintos. Conforme foi descrito no capítulo IV, a tarefa de
elaborar imaginativamente as excitações é realizada pela psique.

A gradativa construção da sexualidade ocorrerá, dentre outros aspectos, na apropriação


dos órgãos sexuais. Quando os instintos atuam sobre uma área específica do corpo, isto
permite ao bebê se apropriar da mesma, tornando-se consciente de que ela é parte de si. É aqui
que encontramos a excitação relacionada a uma função corporal específica, pois a região
excitada pode ser a boca, o ânus ou uma ou mais partes do aparelho genital masculino ou
feminino. É aqui que a instintualidade se conecta com a sexualidade, pois envolve os órgãos
sexuais e a elaboração imaginativa dos mesmos, conforme já vimos no capítulo IV. Algumas
estruturas de excitação são dominantes e a elaboração imaginativa de qualquer excitação
corporal tende a se dar em termos do instinto dominante.

As excitações instintuais agem no organismo durante toda a vida do indivíduo, mas em


determinadas épocas há a predominância de uma delas. Esta predominância foi descrita por
Winnicott da seguinte forma:
242

há uma progressão natural no desenvolvimento daqueles impulsos


instintivos que, com sua força, quase dilaceram a criança. Num primeiro momento,
naturalmente, são a boca e todos os demais mecanismos da absorção, incluindo o
agarrar com as mãos, que formam a base daquela fantasia que constitui o auge da
excitação. Mais tarde, são os fenômenos da excreção e o funcionamento interno do
corpo que fornecem material para a fantasia de excitação. Com o tempo aparece uma
modalidade genital de excitação que domina toda a vida do menino ou da menina de
dois a cinco anos de idade. (1965t [1950], p. 26)

Embora Winnicott tenha se fundamentado em Freud para fazer a descrição desta


dominância instintual, que foi apresentada por Freud por meio das fases oral, anal, fálica e
genital, Winnicott não deixou de fazer uma redescrição das mesmas, gerando um novo
enfoque para esta questão. Esta redescrição tem sido apresentada por Loparic como um novo
momento na história da psicanálise, no qual Winnicott promove uma revolução
paradigmática; assim, “sob a pena de ser factualmente incorreta, a descrição inicial das fases
da instintualidade sexual precisa ser reformulada no quadro da “teoria do ego” – em termos de
Winnicott, no interior da teoria do amadurecimento pessoal” (Loparic 2004, p. 14).

Vejamos o resultado desta redescrição.

2. A redescrição das fases

Quando Freud elaborou sua descrição da trajetória da libido nas zonas erógenas, ele o
fez tendo como referência a teoria do id, o qual, segundo ele, vem em primeiro lugar.
Winnicott parte de outro referencial: somente após a constituição do ego o id pode se
constituir. Pouco a pouco, com a ajuda da mãe, o bebê constitui seu ego, que, no início, é
fraco (1965n [1962], p. 56).

Quando faz a redescrição das fases, Winnicott parte do princípio de que há um bebê se
constituindo e que as excitações que experimenta gradualmente serão incorporadas e
integradas ao seu si-mesmo. Este processo a fortalecerá. Isto é,

na área que estou examinando os instintos ainda não estão claramente definidos como
internos ao bebê. Os instintos podem ser tão externos como o troar de um trovão ou
uma pancada. O ego do lactente está criando força e, como conseqüência, está a
243

caminho de um estado em que as exigências do id serão sentidas como


parte do si-mesmo e não como ambientais. (1965m [1960], p. 141)

Com o amadurecimento paulatino do bebê, ele se integra em si próprio. Esta


integração será feita com o necessário processo de integração da instintualidade, cujas
estruturas instintuais dominantes seguem o padrão das funções corpóreas que estão
intensamente envolvidas neste processo, juntamente com as fantasias. Qualquer parte corporal
torna-se excitada, seja ela boca, pele, ou qualquer outra região. Em Winnicott, as estruturas
instintuais dominantes são pré-genitais, fálicas e genitais. Nas estruturas pré-genitais, o bebê
experimenta todo tipo de excitação, mesmo as genitais localizadas, mas como ele ainda é
imaturo, ainda não há a fantasia de natureza genital. Isto significa que a excitação genital não
é relevante no primeiro ano de vida (1958j, p. 9, 1988, p. 43). Portanto, aqui não há distinção
entre masculino e feminino.

Na estrutura de dominância fálica se encontra, para Winnicott, a fase mais importante


no que se refere à sexualidade: “este estágio marca o divisor de águas entre o bebê do sexo
masculino e o do sexo feminino”. Neste estágio, os órgãos genitais masculinos ocupam um
lugar central, em função de suas ereções periódicas (1988, p.41). Para Winnicott, duas fases
são importantes para o desenvolvimento do bebê, a fase oral e a fálica, respectivamente.

Nesta fase, o menino tem uma performance (o exibir-se) compatível com o seu
desempenho, embora ele tenha que esperar até a puberdade para realizar o sonho da relação
sexual. O menino tem na ereção um elemento importante, pois a perda dela seria motivo de
grande sofrimento. Na menina, diferentemente do menino, não há uma visualização da
sensibilização experimentada em seus órgãos genitais. O que a menina experimenta provoca
algum tipo de registro corpóreo, uma vez que todo o corpo e suas excitações são elaboradas
imaginativamente.

Finalmente, na estrutura de dominância genital, já se encontra a fantasia enriquecida


com os atos masculinos e femininos, tais como penetrar, ser penetrado, fecundar e ser
fecundado, que surgirão também na vida adolescente e adulta. Isto indica que na experiência
genital madura a menina apela ao pré-genital de um modo que o menino não precisa fazer.
Isto significa que tudo o que ocorreu em seu desenvolvimento antes de ela atingir a
genitalidade é de fundamental importância para o seu desenvolvimento.
244

Com a descrição das fases que considera as adequadas à compreensão da


progressão instintual, Winnicott confirma que não aceitou a descrição feita por Freud, nem os
acréscimos de Abraham e diz que:

foi feita uma tentativa de subdividir os estágios ainda mais (Abraham). Seria muito
pouco inteligente jogar fora todo esse trabalho teórico sobre a vida instintiva infantil.
No entanto, é necessário considerar agora o trabalho mais recente que se refere a esta
parte da teoria, apesar de, por enquanto, eu optar deliberadamente pela exclusão de
outros modos de exposição. (1988, pp 41-2)

Passemos, agora, a uma descrição mais acurada das fases, tal como descritas por
Winnicott.

Para Winnicott, nos primórdios da vida do bebê, a única região de excitação pré-
genital dominante é a oral: “[...] no bebê, é dominante o aparelho responsável pela ingestão,
de modo que o erotismo oral colorido por idéias de natureza oral é amplamente aceito como
característico da primeira fase do desenvolvimento instintivo” (1988, p. 40).

Para Winnicott, nesta primeira fase o bebê ainda não tem que se preocupar com as
diferenças sexuais. Nessa fase inicial, a única zona de excitação predominante é a oral. O
bebê se encontra entregue aos ataques instintuais, experienciando todos os tipos de excitação
e, como é imaturo, não tem como discerni-las. O bebê experimenta excitações genitais
localizadas, mas ele está impossibilitado de diferenciá-las porque ainda não pode ter uma
fantasia de natureza genital. Como característica primordial desta fase, o bebê é tomado pelas
exigências instintuais relacionadas com a fome e com a posterior excreção do leite, o que
envolve a região anal.

A psicanálise tradicional considera que o bebê, nesta fase, tem uma fantasia erótica
que posteriormente se torna sádica. Winnicott não concorda com isso. Sua objeção é a de que
não se pode ter certeza de que a fantasia da atividade oral é erótica. Não se pode ter certeza de
que as elaborações imaginativas desta fase são eróticas, assim como não podem ser vistas
como fantasia porque o bebê ainda não se personalizou, ele ainda não integrou seu corpo à sua
personalidade total. Para Winnicott, o bebê sofre uma transformação, passando de ruthless
(incompadecido) para concern (compadecido), ou seja, o bebê amadurece paulatinamente.
Para Winnicott, a ambivalência relaciona-se mais com as mudanças egóicas que o bebê sofre
do que com o desenvolvimento dos instintos (1988, p. 42).
245

É importante que o bebê possa experimentar sua potência agressiva em


comportamentos tais como o morder, comer, etc. Isto lhe permitirá experimentar sua força,
sua agressividade, seus movimentos em direção ao que encontra no mundo, mesmo sem saber
que este existe por si só. Para o bebê que está se conhecendo, a alimentação significa uma
orgia, uma oportunidade de experimentar seu corpo que se entrega ao leite, ao alimento que
lhe permite esta festa.

Winnicott discutiu a questão do sadismo oral em um estudo sobre a inveja, quando faz
uma franca oposição à teoria de Melanie Klein:

eu, pessoalmente acho-me completamente em desacordo com a Sra. Klein, quando ela
leva o assunto de volta à própria primeira infância, tal quando diz: “considero que a
inveja é uma expressão oral-sádica e anal-sádica de impulsos destrutivos, a operarem
desde o início da vida, e que ela possui uma base constitucional” (1959b, p. 443)

Winnicott não concorda com Klein porque, segundo sua visão, nesta fase o bebê, ainda
no mundo subjetivo, ainda não sabe de si, não sabe do outro e, portanto, não possui
sentimentos que surgirão numa fase posterior de seu crescimento pessoal. O bebê não pode
sentir inveja senão quando puder conhecer o outro como alguém detentor de certas
qualidades.

Ele conclui:

em minha opinião, a palavra “inveja” na expressão “inveja sádica oral” enfraquece o


conceito de sadismo oral. Este conceito sempre teve uma importância tremenda na
grande área do pensamento e da prática psicanalítica que foi explorada por Melanie
Klein. O sadismo oral é valioso como conceito por juntar-se ao conceito biológico de
fome, um impulso a relacionamentos objetais que provém de fontes primitivas e que
tem influência pelo menos desde a ocasião do nascimento. (1959b, p. 446)

O que Winnicott compreende por “experiências sádicas orais” está diretamente


vinculado ao seu conceito de voracidade, no qual o bebê, movido pelo impulso primitivo
amoroso, no início de sua vida, ataca o objeto-seio, ou seja, “em questão de poucos meses
após seu nascimento, o bebê está obviamente capacitado a ter experiências sádicas orais, isto
é, ele pode experienciar um amor primitivo em que os impulsos motores fundem-se com as
246

satisfações de zona erógena e o bebê chega ao comer o objeto, e ser comido, ser
amado” (1959b, p. 453).

Todos estes apontamentos de Winnicott foram feitos a guisa de esclarecimento de seu


ponto de vista, o qual tem dois aspectos básicos,: a) no início da vida o bebê é imaturo e
apenas com sua crescente maturidade ele pode experimentar certos sentimentos; b) os
intensos sentimentos do início da vida têm de ser compreendidos na chave do impulso
amoroso.

Winnicott está em desacordo com Freud, pois não crê que se possa conceder ao
estágio anal a mesma importância dada às fases oral e genital. Winnicott pensa que o estágio
anal deve ser remetido ao pré-genital. Segundo ele:

a experiência anal, assim como a uretral, é dominada pela excreção de alguma “coisa”.
Essa “coisa” tem uma pré-história. Ela já esteve dentro, e era originalmente um
subproduto da experiência oral. Por isso, as experiências anal e uretral implicam em
muito mais que apenas um estágio no crescimento do Id, e tanto é assim que não é
possível classificá-las e datá-las com precisão. Apesar disso, é verdade que no interior
do que se chama de etapa pré-genital no crescimento do id, o aspecto denominado oral
precede os vários aspectos denominados anais (e uretrais). (1988, p. 42)

Para esclarecer melhor a forma como Winnicott concebe este estágio, é necessário
acompanhar como suas idéias foram desenvolvidas ao longo do tempo. Em 1947, Winnicott
postulou que o erotismo anal seria uma raiz primordial do sexo, e que estaria no mesmo
patamar que o erotismo oral, uretral, muscular e cutâneo. Mais adiante, como vimos, ele refez
seu pensamento.

Para Winnicott, a fase anal é variável, o que impede que ela seja localizada e datada
com o mesmo rigor que as fases oral e pré-genital. Ela se relaciona mais a um estágio de
crescimento do id. A fase anal se apresenta de formas diferentes, podendo ser associada tanto
à excitação advinda dos ataques instintuais, quanto à exigência de quem se encarrega de seus
cuidados no que se refere ao controle imposto em relação às fezes expelidas pelo bebê. Como
ela, a fase anal, está vinculada ao pré-genital, deve ser associada a algo que já esteve dentro
do bebê e que originalmente é um subproduto da experiência oral.
247

Este produto, que já esteve dentro do bebê, pode ser usado por ele, na fase
do concernimento, como um presente56 que ele oferece à mãe quando descobre que ela é alvo
de seus ataques incompadecidos. Isto lhe concede um caráter diferenciado do pensamento
freudiano, no qual se postula que há um deslocamento do erotismo oral para a experiência
anal. O que vem do interior do bebê é muito mais rico que o produto de uma área que sofreu
manipulação muscular.

Desde a fase pré-genital, o bebê experimenta todo tipo de excitação. Essas


experiências instintivas têm papel importante na integração do corpo pelo bebê, porque
contribuem para o processo de personalização. Paulatinamente, o bebê se transforma em
criança e essa criança se apossa do que ocorre em seu corpo. Uma dessas situações se vincula
às excitações que se tornam mais focadas e, em termos de órgãos sexuais, permitem que as
crianças se tornem mais conscientes deles. Como conseqüência, com a apropriação destes
órgãos, haverá um desenvolvimento das diferenças sexuais. Até este momento tanto o menino
quanto as meninas estavam à mercê das excitações penianas e clitorianas, mas elas não eram
sentidas como um elemento que diferenciasse o macho da fêmea. Como disse Winnicott: “a
excitação genital não tem grande importância no primeiro ano de vida. Não obstante, os
meninos podem apresentar ereções e as meninas atividades vaginais, ocorrendo ambos
sobretudo em associação com a alimentação excitada ou com a idéia de alimentação. As
atividades vaginais podem ser estimuladas pela manipulação anal.” (1958j, p. 9) Winnicott
pensa que, embora a excitação esteja presente desde as fases pré-genitais, por ser muito
pequenino, o bebê não tem a maturidade necessária para fazer a elaboração imaginativa da
função genital.

Na fase fálica, surge a distinção, em termos de identidade de gênero, entre meninos e


meninas, sendo que ambos já estão maduros o suficiente para terem consciência desta
diferença. Nesta fase, os meninos estão completos. (1988, p. 45n) Eles são tomados pelas
ereções penianas, caracterizando o que Winnicott chamou de fase exibicionista. Ambos se
darão conta de que possuem órgãos sexuais diferentes. O menino constata que seu órgão
sexual é anatomicamente visível e proeminente, pronto para ser exibido, mesmo que
involuntariamente. Some-se a isto a característica de o pênis sofrer ereções, o que o tornará
ainda mais visível (1986g [1964] p. 186).

56 Este tema foi abordado no item 4.8, Agressividade na fase do concernimento, no capítulo IV.
248

A ereção fálica começa a adquirir uma importância própria no primeiro


ano de vida, o mesmo ocorrendo com a estimulação do clitóris. Mas não é comum
que, à época do primeiro aniversário, a menina já tenha começado a apresentar inveja
do órgão genital do menino, (órgão este que, comparado com o clitóris ou a vulva), é
bastante evidente quando adormecido e ainda mais quando estimulado. (1958j, p. 9)

Já a menina percebe que seu órgão sexual é oculto, o que Winnicott denominou de
“fenômeno negativo”. O órgão sexual feminino possui a qualidade de ser oculto. Esse órgão,
que permanece resguardado, possui também a característica de ser oco. Gradativamente, a
menina deve elaborar imaginativamente um órgão que poderá acolher e proteger um ser
humano. Ao aceitar a singularidade e os mistérios de seu órgão secreto, mais tarde ela poderá
engravidar, ter filhos, tornar-se atraente aos meninos, desenvolvendo-se corporeamente e
envolta em muitos encantos para o mundo masculino (1988, p. 43). Esta percepção é
extremamente importante para ela e constitui “a diferença” (1988, p. 41).

Winnicott dividiu a fase fálica em dois momentos:

na primeira fase, a ereção é o elemento mais importante. A idéia é de que aí está algo
muito importante, cuja perda seria terrível para o menino. A ereção e a sensibilização
[do clitóris] surgem ou em relação direta com uma pessoa ativamente amada, ou por
meio de idéias de rivalidade, que tem a pessoa amada como pano de fundo. Na
segunda fase fálica, há um objeto mais acentuado de penetrar e engravidar, e aqui uma
pessoa real é o mais provável objeto de amor. (1988, pp 43-4)

A criança, ao mesmo tempo em que percebe que há uma identidade de gênero, ou seja,
que meninos são diferentes de meninas, e vice-versa, percebe também que há uma
bissexualidade, existe uma menina dentro de um menino e um menino dentro de uma menina.
A percepção desta diferença de gênero ajudará na constituição dessa identidade. Aqui,
Winnicott está se referindo ao “lado feminino” que há em cada homem e do “lado masculino”
que existe em cada mulher. Este aspecto terá que ser considerado na elaboração imaginativa
dos órgãos sexuais (1988, p. 43). Este ‘lado feminino’, e o ‘lado masculino’, não estão
necessariamente ligados ao que define o que é um ‘homem’ ou o que define uma ‘mulher’. A
sociedade pode tolerar um homem mais feminino assim como pode tolerar uma mulher mais
masculina, isto é,
249

uma forte identificação do menino com a mãe, e até mesmo um comportamento


afeminado, podem ter valor quando o desenvolvimento do caráter é satisfatório em
outros aspectos. Uma certa masculinidade não só é tolerada nas meninas, como é
esperada e até valorizada. (Winnicott, 1988, p. 48)

Nessa situação a menina percebe que é diferente do menino, que ele tem um órgão
sexual vistoso e provoca nela o sentimento de inveja. A experiência de invejar o pênis é muito
forte para a menina (1988, p. 45, 1958j, p. 9). Afinal, ela descobre que os meninos possuem
um órgão que é visivelmente mais proeminente que o dela, que lhes permite situações
diferentes das quais ela está acostumada, tais como urinar de um outro modo. Porém, o
sentimento de inveja do pênis não tem que ser necessariamente traumático e as meninas não
precisam se ver como seres mutilados ou castrados. A menina resolverá isto um pouco mais
tarde, ao alcançar a genitalidade.57 O aspecto que definirá isto será a atitude dos pais e a forma
como concebem a mulher. Enquanto que em Winnicott a inveja do pênis é verdadeira apenas
numa fase da vida da menina, Freud defendeu que ela existe até o final da vida da mulher
(Freud, 1925, 1931, 1933a).

Todas estas demandas, que se iniciam como instintuais e que depois de tornam inter-
relacionais, indicam que o bebê já se tornou uma criança que já pode lidar com a fase edípica,
a qual Winnicott descreveu como a fase em que se iniciam as dificuldades inerentes aos
relacionamentos interpessoais, ou entre pessoas inteiras (whole person). Essas dificuldades
originam-se dos conflitos entre amor e ódio que estão vinculados às figuras parentais. A
criança já está suficientemente amadurecida para experienciar o conflito edípico, o que
significa que ela já se tornou uma pessoa inteira (afinal, ela já passou pelo concernimento e
integrou seus instintos). Como pessoa inteira, ela já tem a maturidade necessária para
administrar os instintos no interior das relações triangulares.

Aqui, Winnicott também se mostrou um inovador, pois nos ofereceu um outro


significado ao que o menino experimenta nesta fase.

57 Esta resolução será apresentada na fase genital.


250

d) A redescrição do complexo de Édipo

A abordagem de Winnicott sobre o complexo de Édipo segue duas linhas. A primeira


indica que Winnicott mantém a descrição da constituição da situação edípica – relação do
filho com as figuras parentais -, mas a segunda linha indica que ele introduziu algumas
alterações que permitem um novo olhar sobre este fenômeno.

A primeira alteração se refere ao fato de que o complexo edípico só pode ser


compreendido como uma manifestação possível na vida do indivíduo quando ele já é uma
pessoa inteira. Portanto, ele não pode ser usado como instrumento de compreensão das
condições da pessoa humana quando bebê e por isso não se pode falar em complexo edípico
no início da vida.

Acredito que alguma coisa se perde quando o termo “Complexo de Édipo” é aplicado
às etapas anteriores, em que só estão envolvidas duas pessoas, e a terceira pessoa ou o
objeto parcial está internalizado, é um fenômeno da realidade interna. Não posso ver
nenhum valor na utilização do termo “Complexo de Édipo” quando um ou mais de um
dos três que formam o triângulo não é uma pessoa total, não apenas para o observador,
mas especialmente para a própria criança. (1988, p. 49)

Na idade em que o complexo de Édipo se instaura, a criança experimentará muita


angústia. Ela é imatura, sem defesas e necessita da presença dos pais. Segundo Winnicott,

na relação triangular entre pessoas, que neste momento estudamos, a criança é


surpreendida pelo instinto e pelo amor. Este amor envolve mudanças no corpo e na
fantasia e é violento. Um amor que leva ao ódio. A criança odeia a terceira pessoa. Por
ter sido um bebê, a criança já conhece o amor e a agressão, e também a ambivalência e
o medo de que aquilo que é amado seja destruído. Agora, finalmente, na relação
triangular, o ódio aparece livremente, pois o que ó odiado é uma pessoa que pode se
defender, e que na verdade já é amada; no caso do menino, trata-se do pai, do genitor,
do marido da mãe. O amor pela mãe é liberado, nos casos mais simples, porque o pai
se transforma no objeto do ódio, aquele capaz de sobreviver, e castigar e perdoar.
(1988, p. 54)
251

Cabe aos pais manterem o lar intacto, de modo que a criança perceba que,
mesmo estando em conflito com eles, ela não será abandonada nem que seus sentimentos
provocam a destruição do lar.

Além de não concordar que o Édipo possa ser aplicado a situações em que um dos
envolvidos não seja uma pessoa inteira, outro ponto de discordância se refere à função do
complexo de Édipo na vida da criança. Nesta fase, a criança, em condições de saúde, está
atraída pelo genitor de sexo oposto ao dela, ao mesmo tempo em que entra em desarmonia
com relação ao genitor do mesmo sexo que ela. Isto é determinado pela profusão de
sentimentos antagônicos, em que amor e ódio tomam conta da criança, gerando impulsos,
fantasias e sonhos de destruição. A criança está às voltas com a identificação com os pais,
vivendo o conflito entre as posições homossexuais e heterossexuais. Como é pequena, imatura
e inexperiente, a criança está experimentando os primeiros sentimentos próprios dos
relacionamentos, inerentes ao existir: convívio, administrar conflitos, manifestar sentimentos,
localizar-se no mundo, etc. Um dos conflitos se refere à fantasia do menino de se realizar
genitalmente com a mulher mais importante para ele no momento: sua mãe. Porém, há um
impedimento para esta consumação, expresso na figura de um pai opositor, um pai que
provoca no filho o medo de ser castrado.

O conflito que se estabelece, segundo Winnicott, não é da ordem da sexualidade


propriamente, mas da ordem da imaturidade física. Na situação edípica, o menino deseja a
mãe, mas como ele ainda é imaturo genitalmente, ele precisará esperar até a puberdade para
poder realizar sua fantasia. Esta situação revela que o menino ainda é impotente. Se para
Freud, o pai entrava na situação com a função de ser o elemento de impedimento, gerando no
filho o temor de ser castrado, para Winnicott, a função do pai é a de propiciar um alívio para o
filho. Ou seja, “o temor à castração pelo genitor rival se torna uma alternativa bem-vinda para
a agonia da impotência” (1988, p. 44). A diferença do significado outorgado à castração é
outro: o pai não intervém porque é um rival poderoso, mas porque precisa propiciar ao filho
um alívio e uma justificativa para a sua impotência deste momento.

A atitude paterna revela duas coisas, a primeira, um fato inegável, é que há uma
imaturidade somática real na criança. Neste momento de sua existência, a criança pode apenas
sonhar e fantasiar com a genitalidade, numa postura de preparação para a vida sexual que virá
com a puberdade. O que a criança precisa neste momento é das brincadeiras que aliviarão as
angústias desta idade, pois, “[...] toda a gama de sexualidade se encontra no âmbito de uma
criança sadia, exceto a existência da limitação física pertinente à imaturidade física. Em forma
simbólica e nos sonhos e brincadeiras, os detalhes das relações sexuais fazem parte da
252

experiência infantil” (1954b, p. 180). O segundo aspecto revelado nesta atitude


paterna, é a do reconhecimento de que há no filho uma potência sexual, mas que esta não
pode ser direcionada para esta mulher; além disso esta atitude paterna reconhece que, no
momento certo, esta potência se expressará.

Tudo isto é possível porque, em condições de saúde, o bom contato entre pais e filho
permite que o conflito seja resolvido entre eles. A resolução virá por meio de um acordo do
filho com seu progenitor.

O menino perde um pouco de sua capacidade potencial instintiva, negando deste modo
uma parte do que ele vinha reivindicando. Até certo ponto, ele desloca o seu objeto de
amor, substituindo a mãe por uma irmã, tia, babá, alguém menos envolvido com o pai.
E mais, até certo ponto o menino estabelece um pacto homossexual com o pai, de
modo que sua própria potência não é mais apenas dele, e sim uma nova expressão da
potência do pai, através da identificação internalizada e aceita. Tudo isto permanece
localizado nos sonhos mais profundos, e não está à disposição do menino para ser
expresso conscientemente; mas na saúde, isto não é absolutamente inviável. Por
identificação com o pai ou com a figura paterna, o menino obtém uma potência por
procuração e uma potência adiada, mas própria, que poderá ser recuperada mais tarde,
na puberdade. (1988, p. 55)

Portanto, o papel do pai é o de reconhecer, legitimar a genitalidade do filho, ainda que


neste momento ele se apresente de forma potencial. O pai, na psicanálise winnicottiana, não é
uma figura castradora, ao contrário, ele mostra ao filho que ele vai crescer e exercer sua
potência genital.

Uma das conseqüências da percepção do triângulo edípico está no fato de que a


criança entra num conflito de lealdade (1986d [1966], p. 137). Nesta situação, a criança, como
está intensamente envolvida com um dos pais, adquire um certo distanciamento do outro
genitor, e fica com temor da reação da pessoa de quem está afastada. Por exemplo, ao
começar a se envolver mais com o pai, a criança tem receio de que a mãe se sinta preterida. O
pai ajudará a criança a ver a mãe sob um novo enfoque, o que a ajudará a se afastar um pouco
dela. Essa nova etapa de encontro com o pai e a sustentação mantida por ele nessa situação
ajuda a criança a lidar com os afetos daí decorrentes. Isto isentará a criança de criar um
autocontrole para lidar com os afetos conturbados da fase edípica.
253

e) Fase genital

Após passar pelas intensas transformações das fases anteriores, nesta fase a criança é
capaz de ter experiências sexuais genitais, excetuando-se a procriação, pois esta terá que ser
postergada até a puberdade. Os ataques instintuais experimentados se refletirão sobre as
relações interpessoais com as quais a criança está envolvida, gerando novas possibilidades de
experimentar sentimentos. A fase genital reúne em si o material pré-genital que a criança já
viveu anteriormente (1988, p. 44).

Nessa fase, meninos e meninas se dão conta da dependência dos relacionamentos


interpessoais e de que no campo da sexualidade há uma interdependência entre eles. Uma das
grandes conquistas dessa fase é a descoberta de que os envolvimentos sexuais constituem
parte de uma gama muito maior dos relacionamentos possíveis entre os seres humanos.

Os meninos já estão completos, mas têm que lidar com sua performance deficiente, ou
seja, para realizar seu sonho genital, devem esperar até a puberdade. O fato de poder tolerar
essa frustração indica que o ego já está muito amadurecido (1988, p. 44). Enquanto que na
fase fálica os meninos estão completos, neste momento eles necessitarão das meninas para se
completar (1988, p. 45n).

Nessa fase, meninos e meninas estão às voltas com as diferenças sexuais e com o
modo como seus órgãos são avaliados. Os meninos percebem que a ereção é parte do
relacionamento que ele pode manter com o sexo diferente do seu e que o resultado do
relacionamento é que ele pode promover mudanças irreversíveis no corpo da pessoa amada,
alvo de suas ereções.

As meninas descobrem que não precisam sentir inveja do órgão sexual masculino, pois
já é possível atrair pessoas do sexo diferente do seu, a começar pelo seu pai, e ela pode
também “ter bebês (por si mesma ou por procuração) e, na puberdade, ter seios e
menstruação, e todos os mistérios são dela” (1986g [1964] p. 186).

Todos estes aspectos indicam o processo de constituição da masculinidade e


feminilidade. Vamos estudar isto de um modo mais detalhado.

e.1. Feminilidade

Em toda a obra de Winnicott, a figura materna é destacada, constituindo um dos temas


mais caros à psicanálise winnicottiana. Winnicott se dedicou a apontar o importante papel da
mãe na constituição do ser humano e da sociedade. Ele disse que esse aspecto aparece em sua
254

própria vida pessoal: “[...] fui levado a descobrir tudo o que pude a respeito do
significado da palavra “devoção”, no sentido de me manter o mais plenamente possível
informado e reconhecido em relação à minha própria mãe” (1957o, p. 126).

Como conseqüência, a figura da mãe também é destacada na constituição da


sexualidade feminina. Uma das primeiras observações de Winnicott sobre as raízes da
sexualidade feminina pode ser encontrada em seu texto de 1947, A criança e o sexo, no qual
ele diz que:

as raízes da sexualidade feminina remontam diretamente aos primeiros sentimentos de


voracidade e avidez em relação à mãe. Existe uma graduação desde o ataque faminto
ao corpo materno até o desejo maduro de ser como a mãe.(1947 a, pp. 154-5)

Ao longo dos anos, Winnicott ressaltou o quanto a mãe, simplesmente por se devotar
ao filho, cria cidadãos comuns que assegurem que a humanidade se perpetue, de forma
significativa. Para isto, basta que ela simplesmente se dedique ao filho que vem ao mundo.
Para que a humanidade se perpetue, é necessário que homens e mulheres sejam constituídos,
homens e mulheres com formas próprias, com tarefas próprias e que possam futuramente
gerar novos homens e mulheres, cuja masculinidade e feminilidade sejam definidas de forma
claramente reconhecível. Onde se inicia esta corrente? De que elos ela se constitui? De um
entrelaçamento de fatores.

Um destes fatores consiste na relevância concedida à figura feminina. Acredito que


este é o primeiro elemento que deve ser considerado na constituição da feminilidade, ou seja,
o modo como é vista a MULHER. É preciso apontar que todas as vezes que Winnicott
abordou este tema, a palavra MULHER foi grafa em letras maiúsculas. Casualidade? Creio
que não, se levarmos em conta, suas idéias sobre este assunto. Winnicott teve como ponto de
partida uma observação rigorosa dos fatos que estão presentes nas condições que envolvem a
maternidade, e fez uma descrição rigorosa do que ocorre com a mulher no momento em que
ela engravida e em vários outros momentos da vida dela.

Em 1957, ao abordar a contribuição da mulher para a sociedade, Winnicott ressalta


que ela, no papel de mãe, contribui fazendo apenas o que lhe compete fazer: cuidar do filho.
Apoiada pelo marido, a mãe cuida do filho de forma devotada e ela faz isso sem esperar
reconhecimento ou gratidão. Winnicott acrescenta que há um não reconhecimento do papel
255

executado por ela e que isto, paradoxalmente, se refere exatamente ao fato de que
esta colaboração é muito significativa:

caso seja aceita essa contribuição, segue-se que todo homem ou mulher sadios, todo
homem ou toda mulher que tem o sentimento de ser uma pessoa no mundo, e para a
qual o mundo significa alguma coisa, toda pessoa feliz tem um débito infinito para
com uma mulher. Simultaneamente, quando essa pessoa foi criança (mulher ou
homem), ela não sabia nada sobre a dependência: havia uma dependência absoluta.
(1957o, p. 125)

Se houver o reconhecimento dessa contribuição da mulher, “o resultado será a


diminuição de um medo”, de um medo que quando não reconhecido, se transforma no medo
da MULHER e “MULHER é a mãe não-reconhecida dos primeiros estágios de vida de todo
homem e de toda mulher” (1969g [1964], p.192).

Este medo à MULHER está vinculado ao temor que o indivíduo tem de ser dominado.
Winnicott localiza a raiz do receio das pessoas de serem dominadas exatamente no fato de que
elas foram totalmente dependentes em um certo estágio de sua vida. Estar dependente é o
avesso de estar dominado.

Esta dependência aparece quando Winnicott descreve o processo de transformação do


embrião em pessoa inteira. Ele nos mostra que há um fato irrevogável: “todo homem e toda
mulher vieram de uma mulher” (1986g [1964], p. 191). A questão central do pensamento
winnicottiano é a de que o ser humano, em algum momento de sua vida, fará a constatação de
que houve um estágio na vida de todos em que não se tinha consciência de uma dependência
de uma figura feminina. No início de sua vida, o bebê está completamente entregue aos
cuidados de uma mulher, sem ter a consciência de seus atributos e do quanto ela é importante
para ele naquele momento.

O bebê é imaturo nesse momento. Ele não sabe de si, do mundo, não sabe que existem
homens e mulheres. Ele precisa apenas ser cuidado, não precisa saber, constatar coisa alguma.
As constatações virão somente num estágio posterior. Enquanto isso não ocorre, o bebê
recebe os cuidados de uma pessoa que gradativamente vai sendo percebida como a mulher
que de fato ela é.

À medida em que amadurece, a pessoa que se constitui entra em contato com a figura
feminina e seus atributos, um contato que implicará em seu modo de ver a mulher. Muitos
256

sentimentos são experimentados. A figura feminina passa a ser vista como a


pessoa que recebeu o sêmen masculino, gerou um ser, aguardou pacientemente sua gestação
e, após o nascimento do bebê, se encarregou de cuidados amorosos para com esse ser
humano. Há um detalhe essencial: esta mulher propicia o crescimento dessa pessoa sem
expectativa de gratidão. Ela o faz simplesmente porque é sensível e, por isso, pode fazer o que
o bebê necessita. Ela tem um poder único: o poder de instaurar um estado de saúde mental
que definirá toda a vida do indivíduo. Para isto, basta que suas ações sejam exatamente no
sentido de atenderem as necessidades do bebê. Por outro lado, ela também tem o poder de não
propiciar esta saúde se falhar no contato com ele. E mais: se isso ocorrer, ela nem sequer pode
ser responsabilizada por isso.

Outro aspecto que revela a grandiosidade da mulher está no fato de que cada parto a
coloca em risco de vida, mesmo que realizado por meio de uma cirurgia cesariana. Ela sabe
disso, mas não se exime de ser mãe. Cada estágio da gravidez significa um risco tanto para a
gestante quanto para o bebê. Neste delicado momento de vida, a gestante tem que se cuidar
adequadamente de forma a assegurar a existência de ambos. Ela sabe que sua
responsabilidade é grande, que se algo nefasto lhe ocorrer, o mesmo ocorrerá com seu filho.

O ser humano entra em contato com uma situação através da qual descobre o que é
estar completamente entregue a uma situação, sem possibilidade de ter controle algum sobre
ela. Pode, finalmente, conjecturar quanto ao fato de que houve um período em que ele nada
podia fazer por estar submetido aos desígnios de uma mulher que teve plenos poderes sobre
sua existência.

Todas estas situações ocorrem num momento de dependência total em relação a essa
mulher. Esta constatação é incômoda, porque revela toda a vulnerabilidade do ser humano. O
ser humano é frágil, mas, simultaneamente, potencialmente forte. Mas essa potencialidade
para o crescimento somente se concretizará através de um amor que se expressa sob a forma
dos cuidados físicos de uma mulher. Quando o ser humano descobre isso, ele confirma toda a
sua fragilidade e toda a força de uma mulher que toma para si a tarefa de possibilitar o pleno
desenvolvimento de um ser que, sem ela, perecerá.

Todos estes aspectos indicam que a mulher termina por ocupar uma posição
diferenciada em relação ao homem. Embora a natureza humana determine a existência de dois
sexos, e determine também que homens e mulheres dependam um do outro, todo homem e
toda mulher se originam de uma mulher, e não de um homem, mesmo que este não possa ser
alijado da concepção deste filho. Toda essa situação concede à mulher um poder diferenciado,
o qual pode despertar um sentimento de inveja em relação a ela por parte dos homens. Estes
257

homens invejam as mulheres porque elas não precisam resolver o problema de


uma relação individual com uma MULHER. Afinal, ela já é uma mulher e não precisa lidar
com esta questão da mesma forma que o homem (1968g [1964], p.193).

Essas questões indicam que esse elemento que estabelece a diferença entre os sexos
realmente coloca a mulher numa situação única, pois ela pode se identificar com a mulher
porque em toda mulher há sempre três mulheres. Em toda mulher há o bebê menina, a mãe e
a mãe da mãe (1968g [1964], p.193).

Este tema surgiu em Winnicott pela primeira vez em 1955, quando ele afirmou que

parece-me que as três mulheres que tantas vezes aparecem em mitos e sonhos não
possuem equivalentes num trio masculino. Na idéia do relacionamento sexual, cada
homem é especificamente ele mesmo naquele momento, enquanto que no caso da
mulher existe, num certo sentido, não uma mulher, mas um trio: uma bebezinha, uma
noiva de véu e grinalda, e uma mulher de idade. (1988, p. 47n)

A mulher tem à sua disposição o aprendizado passado de geração a geração. Quando


cuida de sua filha, a mãe o faz segundo o que recebeu de sua própria mãe, avó da bebezinha.
Esta situação traz em si todo o cuidado das gerações anteriores de mulheres. Cada mulher que
receber este cuidado deve repassá-lo às gerações femininas futuras. São três mulheres, três
momentos, três elos que não podem se quebrar.

As três figuras - bebezinha, mãe e avó - se relacionam entre si de forma harmoniosa,


de modo que em cada momento de sua vida cada uma delas prevaleça, num contínuo processo
de interação. Para que um ser humano se torne uma mulher, é necessário que ela seja um bebê
que experiencie o colo feminino. Esse bebê, com as memórias corporais do já vivido
anteriormente, pode se tornar uma moça atraente que seduzirá um homem para que ele lhe dê
um bebê. Ela se torna mãe e, mais tarde, precisa se tornar avó. Esse é o momento final da
consecução de uma linhagem feminina que deve ser passada de geração em geração. Essa
experiência é própria da mulher, o homem não tem como entrar em identificação com esse
tipo de situação, pois corre o risco de perder sua identidade masculina.

Winnicott, ao descrever o modo como a mulher constitui sua feminilidade, partiu da


condição da própria mulher, a partir da condição dela, sem referência ao homem,
diferentemente do que ocorre na obra de Freud. O ponto de partida é a forma física da mulher,
com sua singularidade, afinal, o homem e a mulher possuem formas próprias (1968g [1964],
258

p.184). A mulher não é um macho castrado e a inveja do pênis masculino é um


fato apenas numa fase específica de sua vida e não é o aspecto mais importante na
constituição de sua identidade feminina.

A identificação feminina, conforme já foi apontada, deve ser feita com uma figura
feminina. Toda a elaboração imaginativa dos órgãos sexuais femininos deve ser voltada para a
questão da maternidade potencial e, por isso,

[...] no que diz respeito a genitalidade, as idéias alcançam sua máxima expressão
através da identificação com a mãe ou com meninas mais velhas, que seriam capazes
de conceber. O brincar da menina, na medida em que ela é verdadeiramente feminina,
é do tipo que mostra uma tendência à maternidade, e o funcionamento genital
feminino propriamente dito não é tão evidente quanto o masculino [...] (1988, p. 46)

Isso implica que a genitalidade feminina deve ser caracterizada a partir de seu órgão
sexual interno, o útero, que é um órgão oco, oculto e resguardado. Este órgão vazio pode
receber e gestar uma nova vida. As fantasias femininas já têm origem em tempos remotos, nos
bebês, e envolvem as situações experienciadas nas quais “a vagina provavelmente se torna
ativa e excitável no momento da amamentação e das experiências anais, mas o verdadeiro
funcionamento genital permanece oculto ou até mesmo secreto” (1988, p. 46). Quanto às
experiências anais, o bebê do sexo feminino tem dificuldade em separar-se de suas fezes e, no
que se relaciona com o aparelho urinário, há uma tendência a reter a urina. Afinal, a mulher
possui órgãos que são ocultos e que possuem a qualidade de guardar seres humanos.

Isto aparece nas brincadeiras do tipo “sabe guardar um segredo?” que expressam essa
condição feminina. A menina que não sabe guardar um segredo não pode ficar grávida. A
mulher gera um ser humano e permite que ele exista, além de manter a sua existência. Esta
condição indica que outra característica da genitalidade feminina é a de estar intrinsecamente
vinculada a um caráter futural expressado pela maternidade.

A elaboração imaginativa dos órgãos femininos se faz com base no material pré-
genital, as fantasias vinculadas à genitalidade completa, que envolvem o ato de ser penetrada,
de engravidar e amamentar. Na verdade, a menina, exceto na fantasia e nas atividades lúdicas,
precisará esperar a chegada da adolescência ou da juventude para poder engravidar, ter um
bebê e amamentá-lo ao seio, aspectos primordialmente femininos. Enquanto isso não se
concretiza, a menina se identifica com sua mãe ou com moças mais velhas, para quem estas
259

situações estão iminentes. A mulher precisa levar em conta o interior de seu corpo,
que sua verdadeira genitalidade consiste em ter um órgão a ser oferecido e fecundado. O
aspecto futural que envolve a maternidade exige que seu ego tolere a frustração da espera
necessária para que a gravidez se efetive após a puberdade. Há necessidade da menina fazer
uma identificação com a mãe-fêmea, o que lhe dará os traços vinculados a uma genitalidade
feminina, assim como também é necessário que ela se identifique com uma mãe-mulher, o
que lhe permitirá tornar-se mãe. Todo este material remonta à fase anterior ao concernimento,
sendo desvinculado da questão instintual, ao mesmo tempo em que se sustenta nas relações
interpessoais entre mãe e filha.

Diferentemente de Freud, a menina não constituirá sua feminilidade considerando que


sente inveja do pênis, nem corrigirá seu defeito, tendo um filho. A inveja do pênis é superada
quando ela imagina que vai lhe crescer um pênis. Em seguida ela pensa que já teve um, mas
por castigo pela excitação o perdeu. Se ela não tem um pênis, ela pode usar um por
procuração (‘vou deixar o macho me usar’). Assim, seu defeito será corrigido, porém, ela tem
que reconhecer que precisa do macho para ser uma pessoa genitalmente completa. Deste
modo ela descobre seu genital verdadeiro, ou seja, ao descobrir o genital do outro, ela
descobre o próprio genital. Isto significa a resolução da situação através do reconhecimento
da dependência da figura masculina. Há uma dependência da figura masculina, não uma
condição de inferioridade. Ser diferente do homem não é ser inferior ao homem.

Em termos gerais, a sexualidade feminina precisa considerar uma descrição da fantasia


que a menina desenvolve a respeito do funcionamento de seu próprio corpo e do corpo da
mãe, mas, de qualquer forma, esta descrição será menos completa que a da sexualidade
masculina.

Por fim, o elemento principal que determina o modo pelo qual a criança crescerá é o
sexo da pessoa por quem ela está apaixonada na idade entre o desmame e o período de
latência (1988, p. 48).

e. 2. Masculinidade

Winnicott não se deteve especificamente no estudo da constituição da masculinidade.


O essencial advém de Freud, mas a principal diferença se encontra no significado dado ao
complexo de Édipo, tal como já foi apresentado. Alguns aspectos são parecidos aos da
constituição da feminilidade, tal como o enfoque sobre os estágios. Vejamos as considerações
260

de Winnicott sobre a situação experienciada pelos meninos. A constituição da


masculinidade leva mais em conta o momento fálico, com suas ereções.

O bebê macho precisa elaborar imaginativamente um órgão que se caracteriza por ser
ativo, por necessariamente ter que criar situações em que o agir se torna primordial. Há uma
performance que precisa ser desempenhada, uma necessidade de buscar o que está oculto e
que precisa ser descoberto. As fantasias se relacionam com a luta, com o desbravamento em
busca de algo, o que implica em enveredar por sendas escondidas, com possibilidade de
machucar-se nas trilhas criadas para essa empreitada. Implica em passar por túneis que
conduzem ao local onde o que é almejado finalmente é encontrado e fecundado. Segundo
Winnicott, “o menino que não sabe lutar ou enfiar um trenzinho no túnel não pode
deliberadamente engravidar uma mulher” (1988, p. 46).

Outro aspecto a ser considerado está no fato de que o órgão sexual masculino é, em
geral, mais valorizado nas culturas ocidentais, que tendem a associá-lo a um padrão de
superioridade, a partir do fato de ser visível e pronto para ser exibido.

As concepções do menino sobre o órgão genital feminino também são importantes. O


menino, mesmo não tendo em si a abertura vaginal, tem uma memória de um material pré-
genital, pois em estágios vividos anteriormente houve um momento, nos primórdios do
desenvolvimento, em que não havia uma diferença anatômica entre ele e as meninas. As
idéias que ele faz da vagina são influenciadas quer por seus próprios desejos orais e anais,
quer pelas sensações um dia já experimentadas no estágio pré-genital. O menino sofrerá a
influência dos padrões de identificação com os órgãos femininos, que em dadas culturas cria
modos de identificação e, em outras, não estimula a criação desses padrões. Tanto quanto na
menina, a definição sexual também considera “o sexo da pessoa por quem ele está apaixonado
entre o desmame e a fase de latência” (1988, p. 48).

É Winnicott, enfim, quem resume o processo de constituição masculina e feminina:

sendo saudável, portanto, a mulher pode encontrar uma vida masculina em


experiências imaginativas, identificando-se com homens. Na forma mais grosseira de
identificação, a mulher pode usar um homem, e assim ganhar o bônus de transferir sua
masculinidade e experimentar aquilo que tem em sua experiência enquanto mulher.
Pode-se dizer o mesmo em termos do uso que um homem faz de uma mulher. (1986g
[1964], p. 189)
261

Em suma, a diferença entre ambos pode significar riqueza e não perda.

3. A raiz identitária da sexualidade: os elementos masculinos puros e os


elementos femininos puros em homens e mulheres

Nos anos 1950, Winnicott confirma a tese da psicanálise tradicional de que há uma
bissexualidade no ser humano, há um lado feminino e um lado masculino na natureza
humana. Note-se que ele fala em “lado feminino” e em “lado masculino”. Suas considerações
sobre este tema podem ser encontrados no texto Natureza Humana. Anos mais tarde, ele
voltará a abordar o tema da bissexualidade, sob um novo enfoque. A complexidade deste tema
é de tal ordem que foi desenvolvido por ele já no final de sua vida, após mais de quarenta
anos de atividade profissional. Isto acontece em 1966, em um de seus últimos artigos,
intitulado Sobre os elementos masculinos e femininos cindidos [split-off], quando Winnicott
apresenta uma teoria totalmente nova na psicanálise: haveria uma bissexualidade na natureza
humana, um elemento masculino e um elemento feminino puros, incontaminados, ou seja, não
vinculados a instintualidade, nem relacionados ao gênero biológico do ser humano. Esses
elementos fazem parte do si-mesmo total de todo ser humano, fazem parte da natureza
humana, ou seja, há “[...] uma bissexualidade que é uma qualidade do si-mesmo total ou
unitário” (1989vp [1959/63], p. 173). Quando o elemento feminino puro e o elemento
masculino puro surgem na vida do bebê, e uma vez que eles sejam integrados, eles farão parte
do si-mesmo total da pessoa humana. Esses dois elementos não são opostos entre si. Eles
também não podem ser alvo de repressão, em função da peculiaridade de sua natureza.

Como mostrou Loparic, Winnicott descobriu a existência de caracteres sexuais sem


base instintual, totalmente assentados nas relações de identificação com a mãe e o ambiente.
Winnicott reconhece que a descoberta de uma raiz não instintual, que Loparic denomina
“identitária”, da sexualidade, o coloca em dificuldades:

esta linha de argumentação me envolve em grandes dificuldades, e, contudo, parece


como se um enunciado dos estágios iniciais do desenvolvimento emocional do
indivíduo seja necessário para separar, não os meninos das meninas, mas o elemento
incontaminado menino do elemento incontaminado menina. (1989vp [1959/63],
p.180)
262

Para facilitar o entendimento desse tema, a teoria de Winnicott deve ser compreendida
no contexto do relacionamento objetal, que tem características que não podem ser sustentadas
e expressas por uma linguagem da psicanálise tradicional, que se sustenta numa terminologia
voltada para a instintualidade. Portanto, neste contexto apresentado por Winnicott, a
linguagem utilizada deve ser remetida a modos de relacionamento que não se sustentam em
pulsões e sim no acolhimento a uma vida que se inicia.

Segundo Winnicott, na constituição da pessoa humana, há uma situação,


simultaneamente sofisticada e simples, que o bebê precisa experimentar para que ele tenha a
sua identidade e individualidade constituída. Essa situação é sofisticada porque constitui a
matriz dos relacionamentos humanos saudáveis e amadurecidos. Primeiro o individuo precisa
criar a possibilidade de se encontrar com outras pessoas, para depois se encontrar com elas de
uma ou de outra forma, inclusive a sexual. Por outro lado, a simplicidade da situação está na
postura da mãe em realmente possibilitar que seu filho seja. É preciso perguntar: que situação
é essa? Essa situação se dará no encontro do bebê com o seio. Nesse encontro, o que a mãe
assegura é a identidade e quando a mãe deixa o bebê ser, ela permite que ele exista.

Para Winnicott, os elementos femininos e os elementos masculinos puros constituem


partes da totalidade de cada ser humano. Isto significa que eles estão presentes em todo
homem e em toda mulher, constituindo uma bissexualidade em termos de si-mesmo total.
Essa bissexualidade, porém, não se vincula com a questão uma bissexualidade no sentido
sexual. Winnicott os define como estados puros, paradigmáticos do ser humano e que devem
ser relacionados ao ser e fazer. Estes estados são tão importantes que constituem as
fundações sobre as quais se erguem determinados aspectos da personalidade (1989vp
[1959/63], p. 182).

Winnicott esclarece que não se deve entender a distinção entre ser e fazer a partir das
idéias de ativo e passivo. Em primeiro lugar surge o ser, que se relaciona com a identidade,
depois vem o fazer e este elemento é que deve ser pensado em termos de ativo e passivo.
Winnicott também chama a atenção para a idéia de que o ser se transmite de uma geração
para outra através do elemento feminino puro que está presente em homens e mulheres.

Loparic afirma que, com esta teoria, “[...] Winnicott estava tentando formular os
aspectos essenciais de uma segunda raiz da sexualidade, mediante o estudo das propriedades
de dois diferentes modos de relacionamento com outras pessoas, a identificação e a
objetificação” (Loparic, 2004, pp. 18-9). Estes dois modos de relacionamento são
263

considerados normais e necessários para a constituição da identidade, desde que


ocorram no momento certo.

Também é importante lembrar que quando Winnicott diz elementos puros,


incontaminados, amalgamados, ele está se referindo à condição desses elementos antes de
eles se misturarem, o que ocorrerá numa etapa posterior da vida do bebê. De início, quando
surgem, eles estão nesta condição de puros.

3.1. Considerações adicionais feitas por Winnicott

A importância do início da vida na constituição do ser humano, o que inclui a


necessidade da mãe em se identificar com o bebê, foi apontada por Winnicott em muitos de
seus textos. Ele manteve essa posição até o final de sua vida e seus últimos textos constituem
prova disso.

Em 1968, Winnicott voltou a falar das identificações cruzadas, embora não sexuais,
em seu livro O brincar e a realidade. Ao abordar o caso clínico de uma adolescente, ele fala
de sua esperança de que possa, por meio de fenômenos transferenciais, “ampliar o campo de
ação do paciente com respeito a identificações cruzadas”, através de experiências com o
paciente e não de interpretações (1971l, p. 119).

Winnicott chama a atenção para a necessidade de uma compreensão de um fenômeno


que deve ser estabelecido no início da vida do bebê, “expressa na identificação primária, que
ocorre antes do estabelecimento, no indivíduo, dos mecanismos que formam o sentido da
teoria psicanalítica clássica” (1971l, p. 120).

Ele confirma que sua forma de pensar está assentada na idéia de que, em primeiro
lugar, o bebê tem a necessidade de “[...] chegar ao ser antes do fazer, que o ‘eu sou’ tem que
preceder ‘eu faço’, porque, de outro modos, ‘eu faço’ torna-se desprovido de significado para
o indivíduo” (1971l, p. 130).

O caso de uma mulher de quarenta anos de idade, solteira, também ilustra sua teoria, e,
neste caso específico, aborda uma dissociação entre os elementos masculinos e femininos.
Esta mulher tinha a tendência a ver as mulheres como pessoas de ‘terceira classe’ e “[...] os
homens representavam seu elemento masculino dissociado e expelido (split off), de modo que
não podia permitir que eles ingressassem em sua vida de maneira prática” (1971l, p. 132).
Winnicott esclarece que esta paciente travava uma luta entre seu eu feminino e o elemento
masculino dissociado e expelido.
264

A paciente conseguiu promover mudanças em sua vida graças à plena


adaptação de Winnicott às necessidades dela. Esta situação foi assim definida por Winnicott:

[...] descobri que a paciente necessitava de fases de regressão à dependência na


transferência, com a conseqüente experiência do pleno efeito da adaptação à
necessidade que, de fato, se baseia na capacidade do analista (mãe) em identificar-se
com o paciente (bebê). No decurso desse tipo de experiência, há uma quantidade
suficiente de fusão com o analista (mãe) para permitir ao paciente viver e relacionar-se
sem necessidade de mecanismos identificatórios projetivos e introjetivos. (1971l, p.
137)

Este caso clínico confirma a posição de Winnicott de que o desenvolvimento saudável


somente pode se dar a partir de uma adaptação perfeita da mãe para com o bebê quando este
inicia seu processo desenvolvimental e que “a partir do ser vem o fazer, mas não pode haver o
fazer antes do ser [...]” (1971f [1967], p. 25).

Vejamos como Winnicott desenvolve essa teoria, que se compõe de elementos puros
que são explicitados em termos de dois tipos de relações objetais, as de identificação e as de
objetificação.

3.2. O elemento feminino puro

Um dos modos de relacionamento que a criança pode estabelecer com sua mãe é por
meio da identificação, que pode ser encontrada numa situação pautada no elemento feminino
puro.

Para compreender como o elemento feminino puro se relaciona a ‘objetos’ e seu papel
na constituição da identidade da pessoa humana, primeiramente é necessário considerar a
forma como a existência humana se inicia. Em termos de uma presença que deve ser
constituída, inicialmente há um estado de não vida, de não existência. O bebê sai de um
estado de solidão essencial – o qual se caracteriza por uma total dependência do ambiente –
pois ele não pode permanecer neste estado indefinidamente. O bebê precisa abrir-se para o
mundo e buscar o seu processo de integração, e esta integração vai lhe possibilitar chegar ao
mundo, à realidade que existe fora do mundo subjetivo no qual ele está imenso. Para chegar
até a realidade objetivamente compartilhada, o bebê tem que criá-la. Para que essa criação se
concretize ele precisa fazer uma passagem entre a sua solidão essencial e o mundo.
265

O bebê, nesse estágio, está imerso no mundo subjetivo, em estado de fusão


com sua mãe e constitui com ela uma unidade indissociável. Como a mãe se encontra em
estado de preocupação materna primária, ela se identifica com seu filho e adapta-se
completamente ao que ele necessita, em estado de total harmonia. Esta harmonia permite que
ela esteja atenta aos gestos que seu filho realiza, suas manifestações espontâneas que indicam
a busca de uma comunicação. Esta comunicação tem características únicas, tais como a de ser
silenciosa e intensa.

Atenta ao filho, a mãe percebe que ele emitiu um gesto. Este gesto, ao ser recebido,
permite o encontro entre ambos. Este encontro revela que o bebê se encontrou consigo
mesmo. A resposta da mãe será oferecer o seio no momento exato da necessidade do bebê de
criar algo. O bebê tem a “necessidade pessoal” de criar o objeto (Winnicott, 1988, p. 102). Ao
receber o seio, o bebê tem a possibilidade de criá-lo, pois antes este objeto não existia para
ele. A mãe sustentará junto ao filho a ilusão de que criou o seio, que neste momento se torna o
mundo para ele. Diz Winnicott:

a adaptação da mãe às necessidades do bebê, quando suficientemente boa, dá a ele a


ilusão de que existe uma realidade externa que corresponde à sua própria capacidade
de criar. Em outras palavras, ocorre uma sobreposição entre o que a mãe supre e o que
a criança poderia conceber. (1953c, p. 12)

No encontro entre o bebê e o seio instaura-se a condição para que ele possa ser. Como
está em total confluência com sua mãe, como não há separação entre mãe e bebê, isso permite
que o modo de ser da mãe seja vivido como seu próprio modo de ser. Ocorre uma situação
que é descrita por Winnicott da seguinte maneira: “o bebê recebe um seio que faz parte dele e
a mãe dá leite a um bebê que é parte dela mesma” (1953c, p. 12).

Ao viver a condição de ser o seio que recebe da mãe, o bebê vive e recebe o elemento
feminino puro. Esta condição sui generis é esclarecida por Winnicott:

o estudo do elemento feminino puro, destilado e incontaminado, leva-nos ao SER, e


isto forma a única base para a autodescoberta e o senso de existir (e, depois, a
capacidade de desenvolver uma parte interna, ser um continente, ter uma capacidade
de utilizar os mecanismos de projeção e introjeção e relacionar-se com o mundo em
termos de introjeção e projeção). (1989vp [1959/63], p. 180)
266

O que ocorre é que, nesse momento de sua vida, o bebê está imerso no ambiente, sem
poder fazer uma separação entre o EU e o NÃO-EU . Ele vive a dependência absoluta em
relação a tudo que recebe do ambiente. O bebê se transforma nos cuidados que recebe. Isso
significa que

o estado de dependência absoluta ou quase absoluta tem a ver com o estado no


começo, do bebê que ainda não separou um NÃO-EU do que é EU, do bebê que ainda
não se acha aparelhado para desempenhar essa tarefa. Em outras palavras, o objeto é
um objeto subjetivo, não objetivamente percebido. Mesmo que seja repudiado, posto
longe, o objeto ainda é um aspecto do bebê. (1970b [1969], pp. 253-4)

Vivendo nessa realidade subjetiva, sendo a identidade com a mãe, o bebê tem lançadas
as bases para a construção de sua identidade:

a expressão objeto subjetivo tem sido usada na descrição do primeiro objeto, o objeto
ainda não repudiado como sendo um fenômeno não-eu. Aqui neste relacionamento é
de elemento feminino puro com o “seio”, temos uma aplicação prática da idéia do
objeto subjetivo, e a experiência disto prepara o caminho para o sujeito objetivo, isto
é, a idéia de um si-mesmo, e o sentimento de um real que surge do senso de se ter uma
identidade.

Por complexa que a psicologia do senso do si-mesmo e do estabelecimento de uma


identidade acabe por se tornar, à medida que um bebê cresce, não surge qualquer
sentido de si-mesmo, exceto com base neste relacionamento no sentido de SER. Esse
senso de ser é algo que antecede a idéia de ser-um-só-com, porque ainda não existiu
nada mais, exceto a identidade. Duas pessoas separadas podem sentir-se em união,
mas aqui, no local que estou examinando, o bebê e o objeto são um só. A expressão
“identificação primária” talvez tenha sido usada para designar exatamente isto que
estou descrevendo, e estou tentando demonstrar quão vitalmente importante é esta
primeira experiência para o início de todas as experiências subseqüentes de
identificação. (1989vp [1959/63], p. 177)

Nesse momento de sua vida, o bebê ainda não tem um ego nem identidade, nem se
tornou ainda uma unidade. As estruturas intelectuais também não foram constituídas. É um
267

momento em que se prescinde da mente. O bebê é tudo o que recebe desse


ambiente, e ao receber o seio ele se torna o seio. Para Winnicott, “o elemento feminino puro
relaciona-se com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornar-se o seio (ou a mãe), no
sentido de que o objeto é o sujeito” (1989vp [1959/63], p. 177).

Isso somente é possível pela atitude da mãe de deixar que o bebê seja, de permitir que
ele esteja no centro da situação. A mãe se entrega ao que o bebê necessita e sua própria pessoa
desaparece – tudo o que ela faz é colocar-se à disposição de seu filho, tudo o que ela precisa
fazer é ser suficientemente boa e, paradoxalmente, nada fazer, apenas permitir que o filho seja
o seio-mundo que ela lhe oferece. A mãe que é suficientemente boa é uma boa fornecedora do
elemento feminino puro (1989vp [1959/63], p.179). A mãe que é suficientemente boa não faz.

O que acontece entre mãe e filho baseia-se apenas no que a mãe sente que o bebê
necessita naquele momento e ela sente que ele precisa ser o seio para poder ser. Essa relação
é sustentada apenas nas necessidades do bebê. É o ego materno que fornecerá o estofo para a
construção do ego infantil.

Dizemos que o apoio do ego materno facilita a organização do ego do bebê. Com o
tempo, o bebê torna-se capaz de afirmar sua própria individualidade, e até mesmo de
experimentar um sentimento de identidade pessoal. Tudo parece muito simples
quando vai bem e a base de tudo isso é encontrado nos primórdios do relacionamento,
quando a mãe e o bebê estão em harmonia. Não há nada de místico nisto. A mãe tem
um tipo de identificação extremamente sofisticada com o bebê, na qual ela se sente
muito identificada com ele, embora, naturalmente, permaneça adulta. O bebê, por
outro lado, identifica-se com a mãe nos momentos calmos de contato, que é menos
uma realização do bebê que um resultado do relacionamento que a mãe possibilita. Do
ponto de vista do bebê, nada existe além dele próprio, e, portanto, a mãe é,
inicialmente, parte dele. Em outras palavras, há algo, aqui, que as pessoas chamam de
identificação primária. Isto é o começo de tudo, e confere significado a palavras muito
simples, como ser.(1987e [1966], p. 11)

Quando a mãe permite-se ser um seio que é, o bebê pode fazer uma experiência
originária de ser. Essa situação tem que ser repetida inúmeras vezes, ou seja, o bebê tem que
criar sua primeira identidade com o seio, de forma que ele possa adquirir o sentimento de ser
(sense of being). Gradativamente, a repetição da sensação de unidade que é vivida
268

transitoriamente assegura ao bebê o sentimento de ser, e ele pode se apropriar


desta sensação, ou seja, o que era sentido esporadicamente torna-se uma sensação constante.

Nessa atitude da mãe encontramos a base para a saúde do bebê. A cada experiência de
ser o seio, ele adquire a base para o senso de ser real. A sutileza da mãe em conduzir a
situação é de tal harmonia com o seu filho que este não se dá conta da atitude dela e é
exatamente disso que o bebê precisa: que a atitude de sua mãe seja sinônimo de nada fazer, de
apenas deixar ser. Segundo Winnicott,

ou a mãe tem um seio que é, de forma que o bebê possa ser, quando o bebê e a mãe
ainda não estão separados na mente rudimentar do bebê, ou então a mãe é incapaz de
realizar esta contribuição, e neste caso o bebê tem que se desenvolver sem a
capacidade de ser ou com uma capacidade prejudicada de ser. (1989vp [1959/63], p.
179)

A grande conquista que essa situação possibilita é que o bebê ganha sua primeira
identidade, a base para todas as outras identidades que virão. É essa identidade primeira que
possibilitará que uma identidade saudável possa ser assentada. Cada vez que o bebê necessita
do seio e o recebe na medida de sua necessidade, ele se torna esse objeto subjetivo. Sua mãe-
ambiente sustenta essa crença, realizando a necessidade de seu filho, possibilitando que seu
si-mesmo verdadeiro seja constituído.

Assim, a característica singular do elemento feminino puro levou Winnicott a afirmar


que chegou “[...] a uma posição em que digo que o relacionamento objetal, em termos deste
elemento feminino puro não está relacionado com a pulsão (ou instinto)” (1989vp [1959/63],
p.180).

O surgimento dessa situação precede a qualquer ataque instintual. Ela ocorre num
momento em que os instintos ainda não estão agindo sobre o bebê. Segundo Winnicott, “[...] o
elemento feminino puro se relaciona com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornar-
se o seio ou (ou a mãe), no sentido de que o objeto é o sujeito. Não consigo ver pulsão
instintual nisso” (1989vp [1959/63], p. 177). Essa situação é anterior à situação presente na
idéia ser-com-algo ou alguém, é anterior à relação objetal propriamente dita, em que duas
pessoas inteiras podem se relacionar.

O elemento feminino puro que possibilita a experiência de ser constitui “[...] a


verdadeira continuidade de gerações, sendo que ele é transmitido de uma geração para a outra,
269

por via do elemento feminino de homens e mulheres e dos bebês do sexo


masculino e feminino” (1989vp [1959/63], pp 177-8).

Segundo Winnicott, esse tema não foi objeto de estudo da psicanálise tradicional, que
“[...] foi negligente com a identidade sujeito-objeto para a qual estou aqui chamando a atenção
e que se encontra na capacidade de ser” (1989vp [1959/63], pp 178).

Em termos de desenvolvimento infantil, depois de adquirir o estado de ser, o bebê


recebe o fazer.

3.3. Relações objetais que caracterizam o elemento masculino puro

Segundo Winnicott, o outro modo de relacionamento da criança com sua mãe ocorre
por meio da objetificação e se vincula ao fazer.

Enquanto que o elemento feminino puro prescinde da idéia de separação e de


instintualidade, o elemento masculino puro pressupõe que o desenvolvimento infantil já esteja
mais adiantado, ou seja, que este bebê esteja mais integrado. Isto indica que já se pode
pressupor a idéia da separação, da distinção entre EU e NÃO-EU. O bebê já está mais
maduro, revelando um estágio posterior de seu desenvolvimento. Essa separação estará
presente quando se considera o elemento masculino puro do bebê.

Para Winnicott, “[...] o elemento que estou chamando de ‘masculino’ circula em


termos de relacionamento ativo ou de um passivo deixar-se com ele relacionar, com cada uma
das atitudes sendo respaldada pelo instinto”(1989vp [1959/63], p.176). Embora seja apoiado
pelo instinto, o elemento masculino puro não tem uma natureza propriamente sexual.58

Somente a partir deste elemento masculino puro é que há sentido em falar do impulso
instintual que existe na relação do bebê com o seio e com a amamentação e, posteriormente,
com todas as experiências vinculadas à área das gratificações sexuais (1989vp [1959/63],
p.177). É o elemento masculino puro que possibilita que a psicanálise tradicional possa
abordar erotismo oral, uso de objetos, situações próprias de um elemento que faz, que possui
diferentes modos de fazer.

58 É preciso lembrar que a sexualidade pode ser percebida como tal quando a criança está mais
amadurecida e já elaborou imaginativamente seus órgãos genitais, tal como foi apresentado no capítulo IV.
270

O elemento masculino puro surge num momento em que o bebê está mais
amadurecido, momento em que o bebê já não se encontra numa relação subjetiva com sua
mãe, em que a idéia de separação faz sentido nessa situação. Diz Winnicott:

assim que a organização do ego se acha disponível, o bebê concede ao objeto a


qualidade de ser não-eu e separado, e experiencia satisfações do id que incluem a raiva
e a frustração. A satisfação pulsional realça a separação existente entre o objeto e o
bebê, e conduz a objetificação do objeto. (1989vp [1959/63], p.178)

Ao se constituir a partir de suas próprias necessidades, o bebê adquire um sentido


pessoal e seu sentimento de ser real se fortalece. Conseqüentemente, ele já pode se apropriar
dos ataques instintuais que sofre. Esses ataques instintuais estão vinculados ao fazer, ou ao
elemento masculino puro. No início de sua vida, na medida em que sofre os ataques
instintuais, o leite que o bebê recebe é secundário, pois a necessidade premente é a de
encontrar algo em algum lugar. O bebê encontra o seio-mundo, e, após repetidas experiências
que permitem a integração, a maturidade alcançada fará com que o bebê passe a desejar o
leite. Esse leite que agora se transformou de necessidade em desejo é solicitado. Após
vivenciar esta situação inúmeras vezes, a cada demanda do bebê, gradativamente, o leite pode
agora ser visto como algo que está fora dele. O bebê faz duas descobertas: que a fome está
nele e que o leite está fora dele. Assim, ao sentir fome, ele busca o leite. Essa busca pressupõe
uma separação, um estado de NÃO-EU, que é procurado pelo bebê. Essa situação implicará
também num fazer, que é característica do elemento masculino puro, que surge nesse
momento, quando os instintos começam a agir. O leite desejado passa a ter a qualidade de
NÃO-EU. Esta qualidade influirá na construção dos mecanismos mentais que vão delimitando
mais ainda a separação entre as áreas EU e NÃO-EU.

Por parte do bebê, surge um fazer que lhe permitirá perceber os ataques instintuais que
vão definindo mais ainda as fronteiras entre ele e o mundo. O fato de que o bebê já possa
perceber os ataques instintuais indica que seu ego já está mais organizado. Esse
amadurecimento indica que o bebê já tem condição de fazer a identificação por meio de
complexos mecanismos mentais, tais como simbolizar (verbal e imaginativamente) e fazer a
identificação projetiva e introjetiva.

Para Winnicott, o elemento masculino puro se vincula à idéia de passividade e


atividade. Isto significa que o fazer de cada pessoa, independentemente de seu gênero sexual,
271

é mais ou menos intenso. Cada ser humano é mais ativo ou menos ativo, de acordo
com sua característica pessoal.

Loparic descreve a situação em que se encontra o bebê: “[...] o ser humano fazedor
conta com os seus instintos já integrados, busca agir e, para tanto, objetifica os outros e todas
as coisas, e se separa deles, distanciando-se da sua identidade originária com o ambiente,
com os outros e as coisas” (2004, pp 23-4).

A mãe que cria uma situação em que o bebê se desenvolva somente a partir do fazer,
não é uma mãe suficientemente boa, pois ela cria uma situação em que o bebê tem sua
capacidade de ser prejudicada.

3.3. Caso clínico

Este tema significou uma descoberta tão importante para Winnicott, que o levou a
dizer que embora seja o paciente que esteja o tempo todo ensinando ao analista, este precisa
de um conhecimento teórico para que possa atender às novas demandas de sua clientela.
Curiosamente, Winnicott formulou a teoria dos elementos masculinos e femininos puros ao
atender um paciente.

Winnicott conta que seu paciente era um homem casado, de meia idade, e um
profissional de sucesso. Esse paciente vinha de uma longa análise, que, apesar de bem
sucedida, ele considerava que ainda não alcançara alguns pontos de sua personalidade. Sua
questão era que, apesar de se ver como um homem com uma identidade masculina bem
definida, sentia-se como uma mulher. Numa das sessões apresentou um material que podia ser
identificado como inveja do pênis. Winnicott lhe disse que, embora soubesse que estava
falando com um homem, ele entendia que o paciente falava de inveja do pênis. Ressaltou que
o louco era ele e não o paciente. Este compreendeu que isto o remetia à sua compreensão de
que sentia como uma menina e que, ao fazer esta observação, Winnicott falou para ambas as
partes dele (1989vp [1959/63], p. 171).

Winnicott conta que a análise apontava para situações em que a mãe desse paciente o
viu como menina, antes de vê-lo como o menino que ele era. Havia ainda indicações que a
mãe teve para com ele o manejo que seria indicado para uma menina. Essa menina presente
no paciente, segundo Winnicott, fez várias tentativas para não deixar que o lado homem se
liberasse. Isso surgiu quando se comentava sobre uma gripe, depois de um final de semana
272

em que o paciente tivera uma relação sexual satisfatória com a mulher. Apesar do
estado gripal, o paciente dizia sentir-se melhor.

Winnicott entendeu essa situação como sendo uma manifestação da menina existente
nesse homem, a qual pedia o reconhecimento de sua existência e lhe mostrava que esse
paciente “sempre foi uma garota” (1989vp [1959/63], p. 172).

Após a intervenção de Winnicott, o processo psicanálise ganhou um novo impulso e a


compreensão advinda da existência de um elemento puro, dissociado de sua personalidade,
“proporcionou ao homem um sentimento de haver começado a viver” (1989vp [1959/63], p.
174).

O paciente foi levado a essa situação em função do modo como foi tratado por sua
mãe. Ela apresentava o desejo inconsciente de ter uma filha mulher, mas como o bebê que
nasceu era do sexo masculino, para atender às suas próprias necessidades, ela lhe impingiu
um tratamento que normalmente seria concedido às meninas. As evidências clínicas
apontavam situações em que a mãe, ao cuidar do filho, colocou-lhe os cueiros de um modo
inadequado às provisões biológicas do filho, comprimindo-lhe demasiadamente os órgãos
sexuais. O filho, ainda um bebê, não pôde se rebelar contra esta situação, dada a sua
imaturidade. Não se pode esquecer que, no início de sua vida, o bebê está totalmente
dependente do ambiente, sem saber que dele depende e que dele necessita para poder se tornar
real.

O resultado foi que, como o paciente era do sexo masculino, o elemento sexual oposto
ao dele ficou totalmente cindido, ou seja, dissociado de sua personalidade. Este paciente foi
obrigado a se tornar, a se sentir uma menina, apesar de ter adquirido uma identidade
masculina inicial fundada nos instintos, para poder manter a mãe junto de si. Ao invés de
crescer em sintonia com seus órgãos sexuais, ele procurou explorar todas as partículas em si
do ser feminino que havia nele, de modo agradar a mãe. Como um bebê desamparado, o que
de fato ele era, ele teve que optar em se desenvolver de acordo com seus órgãos sexuais e
perder a mãe, ou se desenvolver de acordo com as expectativas dela, em desacordo com seus
genitais, mas manter o amor materno. Sendo imaturo e necessitando dos cuidados maternos, o
paciente FM59 não teve alternativa e optou por sua mãe. Diante do dilema imposto por sua
mãe e para o qual sua imaturidade não comportava resolução, ele se tornou o que a mãe

59 Este caso apresentado por Winnicott tem sido alvo de estudos por Loparic, que denominou este
paciente de FM. De modo a unificar a comunicação, de agora em diante, toda vez que eu me referir a este
paciente vou usar a mesma terminologia de Loparic.
273

queria, pois não tinha como fugir das ações concretas dela, de seu fazer real. O
paciente desenvolveu uma identificação sexual forçada, em que manifestava comportamentos
e sentimentos desarticulados de sua identidade física. Em suma, ele desenvolveu uma
identidade falsa, postiça, mas que lhe possibilitava não perder a mãe, figura essencial neste
momento de vida.

Esse caso pode ser entendido à luz da idéia central do pensamento winnicottiano, ou
seja, a idéia de que, na saúde, os elementos masculinos e femininos puros estão em harmonia.
No entanto, nas situações em que o ambiente não possibilita que o bebê possa experienciar o
ser, ele se desenvolve a partir de um fazer que é colocado no lugar do primeiro, numa situação
decorrente do fato de que o bebê foi confrontado com o seio-mundo que lhe é apresentado.
Segundo Winnicott, “em nossa teoria, é necessário aceitar-se a existência de um elemento
masculino e um elemento feminino, tanto em meninos e homens, como em meninas e
mulheres. Estes elementos podem estar mutuamente cindidos em alto grau” (1989vp
[1959/63], p. 176).

Nas situações em que há esta dissociação, a repercussão clínica é a de que: “[...]


precisa-se lidar com o caso de um bebê que tem de se entender com uma identidade com um
seio que é ativo, que é um seio de elemento masculino, mas não é satisfatório para a
identidade inicial que precisa de um seio que é, não de um seio que faz” (1989vp [1959/63], p.
179).

Este caso revela uma dissociação em que as características sexuais femininas, o


elemento feminino puro, presente em todo homem, se acham dissociadas da personalidade
total do paciente. Esta dissociação tem origem na “capacidade variável” que algumas mães
têm de passar aos filhos os elementos masculinos e femininos puros. Em função disso, “pode-
se perceber que alguns meninos e meninas estão condenados a crescer com uma
bissexualidade desequilibrada, carregada no lado errado de sua provisão biológica” (1989vp
[1959/63], p. 181).

Para entender este caso,

o que se precisa, no entanto, é de uma enumeração dos outros mecanismos


empregados quando um paciente manifesta características sexuais que são diferentes
daquelas que o seu sexo biológico justifica. Há toda a gama que vai de um alto grau de
sofisticação até os fenômenos básicos, inclusive o manejo muito inicial e, além disso,
a hereditariedade. (Winnicott, 1972c [1968-69], p. 190)
274

A novidade desse caso estava no fato de que ele teria que ser formulado e
compreendido não à luz da teoria da sexualidade da psicanálise tradicional, nem da própria
teoria da sexualidade formulada por Winnicott, baseada na necessidade de se fazer uma
elaboração imaginativa dos instintos.

Esse caso levou Winnicott a formular que o ser humano tem mais de uma identidade
sexual: uma que é instintual, sustentada nas funções corpóreas, e outra que é relacional,
advinda do relacionamento que ele teve com as pessoas que cuidaram dele nos primórdios de
sua vida.

O paciente FM foi exposto a uma situação de identificação sexual cruzada forçada


com sua mãe. Nas palavras de Winnicott, esse caso o levou a perceber a existência de um
recurso utilizado pelo paciente quando bebê, um recurso que se revelou muito sofisticado:

entre os mecanismos sofisticados devemos encontrar uma identificação cruzada que


pode ser, quase inteiramente, uma organização de defesa. Por outro lado,
identificações cruzadas podem, elas próprias, ser determinadas por expectativas que
provêm do meio ambiente. Para contribuir para a situação familiar, um menino ou
uma menina podem explorar características sexuais outras que as não biológicas.
(1972c [1968-69], p. 190)

O caso expressa que a necessidade maior do indivíduo que inicia sua vida é a de
assegurar a presença de alguém para que ele possa continuar vivo, mesmo que isto resulte em
perdas, em não desenvolver determinados aspectos de sua potencialidade. Afinal, como já
disse Winnicott: “estar vivo é tudo (to be alive is all)” (1965j [1963], p. 192).

1.5. Ser e fazer: dois modos de existir

Winnicott apresentou o texto Os elementos masculinos e femininos cindidos


encontrados em homens e mulheres a um grupo de psicanalistas, que lhe dirigiram
comentários sobre o tema. Loparic mostra que, na resposta a esses comentários, Winnicott
abandona a escada usada até aquele momento. Esta escada consiste nos elementos masculinos
e femininos, que não são constituídos a partir da elaboração imaginativa das funções corporais
e sim pelas expectativas sexuais cruzadas da mãe do paciente. Winnicott mostrou que ser e
fazer são mais importantes que os elementos masculinos e femininos puros. Aqui Winnicott
abandona a teorização utilizada até então.
275

Os elementos masculinos e femininos puros serviram como ponto de


partida para que ele pudesse chegar a uma nova visão sobre o tema. Para resolver isso, ele se
pôs a “comparar ser com fazer” (1972c [1968-69], p. 191).

Winnicott conta que a partir do estudo dos elementos masculino e feminino puro ele
pôde chegar a um novo aporte teórico. Que novo aporte seria esse? Winnicott descobriu que o
estudo dos elementos masculinos e femininos puros lhe revelara algo além da diferença entre
os dois tipos de relacionamento objetal. Ou seja, há um conflito essencial relacionado ao
momento da passagem do relacionamento no sentido de ser para o relacionamento no sentido
de fazer. Ele voltou a se perguntar sobre o movimento do bebê na saída do mundo subjetivo
para uma entrada no mundo objetivo (1972c [1968-69], p. 191).

Ele descobriu, através da comparação entre ser e fazer, que:

no extremo dessa comparação, eu me vi examinando um conflito essencial dos seres


humanos, um conflito que já deve ser operante muito cedo, o conflito entre ser o
objeto que tem também a propriedade de ser e, por contraste, uma confrontação com o
objeto que envolve uma atividade e um relacionamento objetal respaldados pelo
instinto ou impulso. (1972c [1968-69], p. 190)

Aqui, Winnicott retorna a uma questão já abordada anteriormente, sobre a passagem


do objeto subjetivo para o objeto objetivamente percebido, na qual o bebê vive o conflito
entre ser o objeto e passar a confrontar-se com o objeto. Nessa situação, há que se perguntar
qual é o elemento que promove o crescimento e a pergunta deve ser: de que modo o bebê
cresce? Ou: o crescimento do bebê se dá a partir de quê? Estas perguntas se referem à
transição que o bebê deve fazer para chegar à realidade objetivamente percebida. Não se pode
esquecer que, para sair do mundo subjetivo e chegar à externalidade, o bebê usa a
instintualidade, destruindo os objetos subjetivos, até que eles, por sobreviverem, sejam
percebidos como externos e separados dele próprio. Winnicott confirma que à época em que
estas considerações foram feitas, não se considerou esta indagação.

Com essas considerações Winnicott retoma os efeitos que as atitudes da mãe exercem
sobre o bebê, na fase em que ele não está constituído Por causa da importância do
comportamento da mãe, ele afirma que o conceito de narcisismo não é o mais adequado para
focar esta situação. Já que não se pode mais usar o conceito de narcisismo como ferramenta
276

de compreensão, ele diz que não lhe resta senão fazer uma tentativa de enunciar de
forma extrema o contraste entre o ser e o fazer.

Para fazer isso, Winnicott abandonou toda a idéia de meninos e meninas e de homens
e mulheres, a idéia de dois princípios básicos, aos quais ele denominou de elementos
masculinos e femininos. O objetivo de Winnicott é chegar ao componente que está por trás
das defesas apresentadas por seu paciente. Ele esclarece:

quero chegar atrás de todas as sofisticações de sexo cruzado, identificações cruzadas e


até mesmo expectativas cruzadas (pelas quais um bebê ou criança só pode contribuir
para um dos pais em termos do sexo que não é biológico) e quero ir até onde me
encontro ao mesmo tempo arrastado e impulsionado. (1972c [1968-69], p. 191)

Ele diz que ao chegar a este ponto, ele chega ao dilema básico do relacionamento do
ser humano com o mundo, do encontro do homem com o mundo, momento em que o bebê
cria o seio-mundo.

a) o bebê é o seio (ou objeto, ou mãe, etc); o seio é o bebê. Isto se encontra na
extremidade última da falta inicial de contato do bebê com o não-eu, no lugar em que
o objeto é totalmente subjetivo, em que (se a mãe se adapta suficientemente bem, e
não de outro modo) o bebê experiencia a onipotência.

b) O bebê é confrontado com o objeto (seio, etc) e precisa chegar a um acordo com
ele, com poderes limitados (imaturos) do tipo que se baseia nos mecanismos mentais
das identificações projetiva e introjetiva. Aqui precisamos notar que, mais uma vez, a
experiência de cada criança depende do fator ambiental (atitude, comportamento da
mãe, etc.) (1972c [1968-69], p. 191)

Na primeira situação, o bebê, ao ter uma mãe plenamente adaptada às suas


necessidades, pode viver a experiência de onipotência de criar o mundo. É a situação definida
por Winnicott como identificação. Na segunda situação, é a objetificação que é encontrada.
Estas duas possibilidades revelam que ao vir ao mundo, o bebê traz em si dois aspectos que
coexistem na natureza humana: a identificação e a objetificação.

Este dois aspectos indicam a existência de uma questão que Winnicott chama de
dilema básico que constitui um problema humano universal que se refere às duas
277

possibilidades do ser humano: ou ele se integra, se constitui pela identificação, ou


ele se desintegra pela objetificação. O problema maior do ser humano, sua dor maior, é perder
sua experiência de contato inicial com o mundo. Não há saída, o ser humano tem que viver
esse conflito. O ser humano tem essas duas possibilidades. Segundo Winnicott, “no arcabouço
deste conceito que lida com um problema humano universal, pode-se ver que bebê = seio é
uma questão de ser, não de fazer, enquanto que, em termos de confrontação, o encontro do
bebê e do seio envolve o fazer” (1972c [1968-69], p. 192).

Esse conflito entre ser e fazer não pode ser compreendido como sexual, por mais que
ele esteja na base de elementos sexuais sofisticados, tais como as encontradas no caso do
paciente FM, identificações sexuais cruzadas, elementos masculinos e femininos puros. Esse
conflito revela que por trás destas defesas há algo mais profundo ainda, algo que se revela na
oposição entre ser o objeto ou então fazer algo sobre o objeto, ou seja, receber algo que é
feito.

Ao nascer, o bebê tem uma natureza humana a ser desdobrada, uma natureza a ser
revelada num movimento em que se combinam a hereditariedade e o ambiente. Se este for
favorável ao bebê, ele se integra, mas se o ambiente não for suficientemente bom, podem
surgir patologias que revelam que ele foi confrontado com um seio-mundo num momento em
que ele não tinha maturidade para recebê-lo.

Curiosamente, Winnicott aponta para um caminho que indica que para o indivíduo
constituir sua sexualidade, ele precisa de um elemento não sexual, um elemento que se remete
à identificação e à objetificação.

Winnicott mostra que, por trás da instintualidade e dos modos de relacionamento, o


que existe é a necessidade do bebê de criar o mundo e nele se instalar por meio de sua própria
necessidade, apoiado pelo acolhimento materno.

Loparic esclarece o dilema do indivíduo:

não há como evitar a conclusão que a teoria do dilema básico do relacionamento do


indivíduo humano com o mundo, ainda pouco estudada na literatura secundária, ocupa
uma posição-chave no interior do paradigma winnicottiano. Mas ela também é
importante por revelar, de maneira exemplar, o contraste entre Winnicott e Freud: ao
refazer a teoria da sexualidade com fundamento entre o ser e o fazer, Winnicott inverte
a ordem das razões da psicanálise tradicional, abandonando a perspectiva de
fundamentar a teoria da personalidade humana, da doença e da clínica, da ordem
278

social e da moral em termos de episódios libidinais em favor de uma


abordagem centrada em problemas do ser humano entendido como amostra temporal
das dificuldades internas à natureza humana. (2004, p. 28)

Curiosamente, o ser humano inicia sua vida porque a genitalidade de seus pais assim o
permitiu, mas não é pelos elementos sexuais que ele se torna real e se instala no mundo. Para
chegar ao mundo o bebê tem que perder a identificação

II. Nota sobre a clínica winnicottiana e a sexualidade

Quando ingressei no mestrado, descobri nos trabalhos de Elsa Oliveira Dias e do


Grupo FPP, a obra de D. W. Winnicott. Descobri, então, uma ferramenta de trabalho eficaz: a
teoria do amadurecimento humano. Foi com base na teoria do amadurecimento humano que
desenvolvi minha dissertação de mestrado. Desde então, Winnicott se tornou meu autor de
referência na reflexão, condução e busca de resolução para os problemas clínicos com os
quais tenho me deparado em meu consultório. O estudo das idéias winnicottianas tem
proporcionado uma nova dinâmica em meu trabalho, gerando crescimento em minhas
atividades profissionais, iluminando minha compreensão sobre o processo de constituição da
natureza humana. Conseqüentemente, ao serem iluminadas por outro prisma, as questões da
sexualidade também são vistas sob esse novo enfoque.

O pensamento winnicottiano me conduziu na direção de uma questão maior, a questão


sobre o que é a vida, qual o seu sentido e seu valor, de que modo estamos nesse mundo
construindo nossa história. Este novo enfoque não implica no abandono das questões sexuais,
ao contrário, acentua a necessidade de um desenvolvimento saudável nessa área, ao mesmo
tempo em que aponta os caminhos para alocar essa questão no devido lugar do processo de
amadurecimento humano. A ênfase não está mais na sexualidade e sua imperiosidade, mas na
sexualidade no interior do processo maturacional. Ou seja, é possível ir muito além do aspecto
meramente sexual. Este novo enfoque necessariamente nos leva a uma compreensão das fases
anteriores ao estabelecimento do complexo de Édipo.

Uma compreensão do paciente tendo como fundamento a teoria do amadurecimento,


ao invés da teoria da sexualidade, nos conduz a uma investigação da constituição dos
diferentes aspectos maturacionais, dos quais a sexualidade é um dos elementos. Se é um dos
elementos, ele tem a mesma importância que deve ser concedida à conquista, por exemplo,
279

das funções mentais. A necessidade maior é a de compreender como a integração


de todos os aspectos da natureza é alcançada.

Com a teoria do amadurecimento pessoal, Winnicott fornece elementos para uma


compreensão dos diferentes aspectos da natureza humana, dentre eles a conquista da
genitalidade. Segundo ele próprio afirmou:

Em termos da conquista da genitalidade plena, a maturidade, ou a saúde, assume uma


forma especial quando o adolescente se transforma no adulto que pode se tornar pai. É
conveniente que um rapaz que gostaria de ser igual a seu pai sonhe
heterossexualmente e que desempenhe sua capacidade genital em sua plenitude; e
também que uma moça que deseja ser como sua mãe seja capaz de sonhar
heterossexualmente e experimentar orgasmo genital na relação sexual. (1971f [1967],
pp. 25-6)

Winnicott mostra a importância da conquista da sexualidade. Em seu arcabouço


teórico esta conquista revela que a saúde se estabeleceu e que as questões edípicas foram
solucionadas.

Assim, se o Édipo é uma conquista dentre muitas outras no processo maturacional, ele
não pode mais ser nossa baliza para uma compreensão da constituição da natureza humana. Se
a tendência à integração não se consumar, alguns pacientes podem não chegar ao Édipo, o que
pode significar uma fratura em seu processo maturacional. Portanto, como partir de questões
sexuais, se alguns pacientes não puderam desenvolver adequadamente a sexualidade? Como
partir de sexo se alguns pacientes nem corpo têm? Como disse Winnicott: “em pessoas
saudáveis, o uso do corpo e de suas funções é uma das coisas prazerosas da vida [...]” (1971f
[1967], p. 13)

No mundo ocidental, as questões da sexualidade têm ocupado um lugar relevante, o


que é compreensível, dada a função importante que ela ocupa na natureza humana. Depois de
Freud, acostumamo-nos com a idéia de que o indivíduo começa a viver por meio da satisfação
instintual, e que tudo o que o homem quer é buscar o prazer e libertar-se do desprazer.

Ao longo das últimas décadas, a sexualidade tornou-se um dos temas essenciais para o
ser humano, que buscou formas de entendê-la, seja para explicar sua presença ou os
problemas nesta área.
280

Dentre as grandes mudanças sociais, uma luta pela igualdade entre os sexos
mudou o lugar da mulher na sociedade. A mulher, até então oprimida e reprimida em muitos
de seus direitos, conquistou o direito ao prazer e à igualdade no trabalho. Nos anos sessenta,
feministas queimaram, em praça pública, o símbolo da feminilidade, o soutien, em nome de
uma libertação do jugo masculino.

O século XX prometeu uma libertação das repressões sexuais, a medicina conseguiu


eliminar algumas doenças sexualmente transmissíveis, mas outras surgiram, gerando novos
desafios. A revolução sexual promovida pelo advento dos anticoncepcionais prometeu o
prazer desmesurado e o controle sobre o próprio corpo. Medicamentos eliminaram a
impotência, mas o prazer se esvaziou, perdeu o sentido e as tão propaladas promessas não se
concretizaram. Os problemas identificados como sexuais continuam a conduzir pacientes aos
consultórios. Se antes não havia o prazer, agora ele tem que ser obtido a todo custo. Mais uma
vez este prazer não se concretizou e as questões sexuais não se resolveram.

Curiosamente, as sintomatologias voltadas para a sexualidade estão mais presentes que


nunca nos consultórios. Surgem queixas como a impotência, impossibilidade de sentir prazer,
desconexão total entre corpo e psique, mulheres apresentam dificuldades para engravidar, na
mesma proporção em que a ciência propicia a possibilidade de uma reprodução assistida. Ao
mesmo tempo, o novo paradigma no qual o pensamento winnicottiano se insere permite um
realocamento das questões sexuais. Questões como histeria, perversão e homossexualidade60
adquirem um novo significado. Mesmo a questão das neuroses pede que novos estudos sejam
elaborados.

Com freqüência, aumentam as terminologias designando as transformações sexuais:


gays, lésbicas, travestis, trans-sexuais e trans-gêneros indicam que os dois sexos existentes na
natureza humana, o masculino e o feminino, geraram inúmeros outros. O desencontro do ser
humano com seu corpo se tornou de tal complexidade que cirurgias para mudança de sexo
têm sido realizadas com uma freqüência preocupante. Como compreender este quadro?

Como orientar casos de produção independente, em que mulheres optam por ter filhos
por meio de inseminação artificial, prescindindo da figura paterna? Como lidar com os novos
quadros familiares, em que casais homossexuais masculinos podem alugar barrigas para
terem o filho desejado? E os casais homossexuais femininos, que também não têm

60 Sobre este tema, remeto o leitor à minha dissertação de mestrado, A homossexualidade em Winnicott.
Um estudo da homossexualidade à luz da teoria do amadurecimento humano.
281

impedimento na concepção, pois a inseminação artificial resolve a falta do parceiro


do sexo masculino.

Se a problemática fundamental do ser humano não é da ordem da sexualidade, como


tratar dos problemas que na clínica se apresentam por meio de uma sintomatologia sexual?

Com a psicanálise tradicional, os problemas clínicos eram remetidos ao complexo de


Édipo e à forma como ele foi elaborado pelo sujeito. Com a psicanálise winnicottiana, o olhar
clínico se direciona para as condições iniciais da vida do indivíduo, para os momentos
cruciais que definem a instauração de sua condição humana. Assim, o que deve ser
considerado é o que pode ter havido com o paciente em seu processo maturacional e o que o
teria impedido de ter uma personalidade integrada que lhe permita ser uma pessoa em
harmonia consigo mesma, o que inclui sua sexualidade. Deste modo, uma vida sexual
saudável será uma conseqüência natural.

O processo de amadurecimento humano apresentado por Winnicott nos permite


compreender o modo pelo qual o ser humano se constitui, o que inclui as conquistas e as
falhas.

Dentre as conquistas, é essencial que o indivíduo que amadurece consiga constituir sua
masculinidade ou feminilidade, de acordo com a provisão fisiológica sexual herdada. Isto
significa um encontro consigo mesmo e que ele sinta que está alojado em si próprio,
convivendo harmoniosamente com seu soma e psiquismo. O indivíduo se vê ou como homem
ou como mulher e pode obter as benesses de sua condição. Constituir-se como masculino ou
como feminino é fundamental, porém, mais importante ainda, é compreender o que deve se
constituir inicialmente e que permitirá que este masculino ou este feminino se tornem uma
possibilidade do ser humano. Possibilidades que somente podem ser compreendidas no
contexto das diferenças entre os seres humanos, pois como disse Winnicott: “[...] para avaliar
de modo pleno o que significa ser uma mulher, a pessoa tem que ser um homem e para avaliar
plenamente o que é ser um homem é necessário ser mulher” (1986g [1964], p. 189). Definir
estas questões é um caminho essencial para o psicanalista. Somente com pontos de partida
bem seguros uma clínica pode ser sustentada.

Segundo o referencial winnicottiano, as questões clínicas devem sempre ser remetidas


à integração, pois:

se se concebe uma pessoa totalmente integrada, então tal pessoa assume plena
responsabilidade por todos os sentimentos e idéias que pertencem ao “estar vivo”. Em
282

contraposição, ocorre um fracasso de integração quando precisamos


encontrar fora de nós as coisas que desaprovamos. Paga-se um preço por isso – a
perda da destrutividade que na verdade nos pertence. (1984c [1960], p. 82)

Quando o processo maturacional não é facilitado, deparamo-nos com pacientes que


têm dificuldades de se sentirem reais, de se sentirem inteiros e integrados em si próprios. A
vivência adequada de cada fase de vida implica em conquistas essenciais à totalidade da
personalidade humana e alguma falha nesse processo gera lacunas.

O papel do ambiente é o de total acolhimento das manifestações desse indivíduo em


amadurecimento. Mães que não permitem que seus filhos expressem livremente sua
vivacidade, sua motilidade e instintualidade impossibilitam a constituição de um sentido de
inteireza. Pacientes que passaram por tais situações queixam-se do fato de se sentirem
desarticulados, em desarmonia com seu próprio corpo. Pessoas desalojadas de si próprias, que
não se sentem reais.

Falhas no acolhimento ao gesto inaugural do bebê, impingem a ele a sensação de


aniquilamento, aniquilamento que impede agressividade. Sem agressividade, não há encontro
com o outro, não há vigor para a sexualidade.

As dificuldades na fase da destruição do objeto subjetivo para a chegada à realidade


objetiva impedem que os encontros pessoais realmente significativos aconteçam. Se uma
pessoa não existe por si só, presente e inteira na realidade objetiva, não há possibilidade de
nenhum tipo de encontro, muito menos encontros verdadeiros na área da sexualidade.

Tornar-se uma pessoa inteira não é fácil. Tornar-se mulher não é igualmente fácil.
Aceitar-se como se é, com seios, limitações físicas e menstruação é fundamental para poder
engravidar. Como disse Winnicott: mulheres muito masculinas não engravidam. Mulheres
que não aceitam sua condição de mulher não poderão se relacionar com homens.

As questões que envolvem o crescente papel que as mulheres têm ocupado na


sociedade têm sido freqüentes nos consultórios. O século XX apregoou a necessidade das
mulheres se realizarem profissionalmente e isto tem ficado em primeiro plano. Papéis
masculinos e femininos têm se confundido e um traço masculino muito acentuado tem sido
freqüente nas mulheres, gerando confusão quanto à definição de uma feminilidade.
Atualmente, a figura de uma mulher frágil, submissa, tal como a mulher de antigamente, é
vista com desdém. Não há mais lugar para a mulher tal como era a mulher à época de Freud.
283

Por seu lado, os homens também têm sido submetidos a grandes


transformações que exigem que um lado mais feminino seja acrescentado à sua
masculinidade. Do machão clássico, chegou-se ao metrossexual.

As mulheres têm ido para o mercado de trabalho e homens têm assumido o cuidado
dos bebês. Papéis se alteram e dificuldades são freqüentes. Homens são deslocados de funções
que até então ocupavam e se sentem descartados. Como não experimentar essa sensação se até
para o ato de engravidar eles não são mais necessários?

O modo como se vê a figura feminina e como se relaciona com ela surge de forma
contundente na clínica, tanto em homens como em mulheres. Isso pode ser compreendido
quando Winnicott fala da MULHER (1950a, 1986g [1964]). Nas mulheres, o temor à
MULHER surge em mulheres que por se sentirem muito frágeis, não conseguem ver o grande
poder que lhes é próprio porque podem gerar a vida a outro ser humano. Nos homens, isso
pode ser percebido em queixas de homens que se vêem como homossexuais, crendo que se
sentem atraídos por homens, quando na verdade têm é receio desta MULHER que têm em seu
inconsciente.

Inúmeras outras questões vinculadas à sexualidade poderiam ser elencadas. Quando


nos sustentamos em Winnicott, o caminho para a compreensão deste fenômeno não pode ser
circunscrito à fase edípica. É necessário verificar qual a natureza dessas problemáticas, se se
referem ao Édipo propriamente dito, ou se as dificuldades começaram antes, no início da vida
do bebê, quando as relações triangulares ainda não eram possíveis.

Vilete relata o caso de um paciente adolescente que, à luz da psicanálise tradicional,


estaria revivendo o medo da castração, dado que se sentia impossibilitado de manter relações
sexuais com mulheres. Este paciente apresentava dificuldades na ereção e, em função disso,
fugia das mulheres. Porém, segundo Vilete, sob o viés da psicanálise winnicottiana, ela pôde
ter um outro tipo de compreensão do que ocorria com ele. Aos poucos, o paciente entra em
processo transferencial com a analista, mas num período proveitoso da análise, ele abandona o
processo e viaja, sem data pra voltar. Segundo Vilete: “sua atitude era de fuga, seu desejo o de
liberdade e, como nos ensina Winnicott, o medo à dependência, principalmente nos homens,
toma a forma do medo à mulher, ou o medo de uma mulher que, acredito, naquele contexto
transferencial eu representava” (1996, p. 907). O paciente retorna tempos depois à análise e
volta a trabalhar seus sentimentos em relação à figura feminina. Enamora-se de uma menina
e, gradativamente, atraído pela namorada e pela analista, consegue experimentar a situação
analítica como encontro criador. Torna-se uma pessoa com mais autonomia e consegue
usufruir a sexualidade.
284

Vilete aponta que “ao se separar da mãe interna, o homem se identifica com
ela e pode assim, sem conflitos, aceitar e admitir sua parte feminina, promovendo a integração
do seu ego.” (1996, p. 913)

Assim, com Winnicott, duas grandes alterações são promovidas. A primeira se refere à
necessidade de trocar a teoria da sexualidade pela teoria do amadurecimento para que se possa
compreender o ser humano. A segunda indica que, mesmo que ume fenômeno seja da ordem
da sexualidade, uma nova teoria da sexualidade está ao nosso alcance como ferramenta eficaz,
uma teoria da sexualidade que, curiosamente, não é sexual.

O referencial winnicottiano na clínica torna-se o instrumento que nos permitirá ajudar


nossos pacientes a resgatar seu potencial criativo, de modo que eles possam sentir que vale a
pena viver. Winnicott, num de seus últimos textos observou que:

para ser criativa, uma pessoa tem que existir, e ter um sentimento de existência, não
sob a forma de uma percepção consciente, mas como uma posição básica a partir da
qual operar.

Criatividade é, então, o fazer que, gerado a partir do ser, indica que aquele que é está
vivo. Pode ser que o impulso esteja em repouso; mas, quando a palavra “fazer” pode
ser usada com propriedade, já existe criatividade. (1986h [1970], p. 39)

Com a teoria do amadurecimento humano como instrumento, o analista fornece ao


paciente a possibilidade de um reencontro consigo mesmo e isto resgata também a
possibilidade deste último ter um encontro genuíno com outros seres humanos. Esta
possibilidade não se sustenta na sexualidade, mas na matriz do encontro genuíno entre um ser
que nada sabe de si e de outro ser humano que, generosamente, acolhe a busca por um lugar
onde se possa ser e viver de forma significativa.
285

CONCLUSÃO

O objetivo deste estudo foi o de apresentar a teoria winnicottiana da sexualidade, em


contraste com a teoria da sexualidade de Freud. Os motivos que me levaram a desenvolver
este estudo remetem à minha dissertação de mestrado, cujo tema, a homossexualidade, me
obrigou a aprofundar o estudo da sexualidade no interior do processo de amadurecimento
humano.

As idéias de Winnicott indicaram a possibilidade de um estudo sobre a teoria da


sexualidade, tomada a partir do vértice de um processo desenvolvimental e não mais focada
numa teoria das funções sexuais. A psicanálise tradicional fundamentou-se na teoria do
desenvolvimento da sexualidade, enfocando a trajetória da libido pelas zonas erógenas. Para
Freud, desde o início de sua vida, o sujeito busca relações objetais guiado pelo princípio do
prazer. O desenvolvimento do ser humano adulto acontece a partir da resolução do complexo
de Édipo e das questões da sexualidade.

A justificativa de Winnicott para o abandono de uma teoria das funções sexuais está
no fato de que a teoria das funções sexuais, descrita em termos da trajetória da libido pelas
zonas erógenas, não contempla a condição do bebê no início da vida: a de um bebê imaturo,
totalmente entregue aos cuidados de um ambiente que pode ou não facilitar o seu processo de
crescimento pessoal. A psicanálise tradicional parte do princípio de que no início da vida o
sujeito já tem sua personalidade constituída e já tem condições de se relacionar com a
realidade externa, buscando o prazer.

Winnicott não nega que o indivíduo humano busque o prazer, mas aponta as condições
prévias para que esse prazer possa ser buscado e obtido, o que está vinculado ao
desenvolvimento do indivíduo de forma integrada. Para Winnicott, a sexualidade é conquista,
e não ponto de partida do processo desenvolvimental.

Diferentemente de Freud, que fundamenta o desenvolvimento humano numa teoria do


id, Winnicott se pauta na teoria do desenvolvimento do ego. Na medida em que amadurece, o
bebê tem seu ego fortalecido, de modo que ele possa integrar a instintualidade e dela se
apropriar.

Este estudo demonstrou que Freud e Winnicott apresentam divergências significativas


quanto aos componentes da teoria da sexualidade.

Num primeiro momento, o estudo de alguns textos de Freud mostram que a teoria da
sexualidade proposta pela psicanálise tradicional assenta-se em componentes empíricos, com
a descrição da sexualidade por meio das fases psicossexuais. Porém, o elemento condutor
286

desse desenvolvimento se assenta em componentes metapsicológicos, conceitos


estabelecidos por Freud de modo a completar as lacunas do que ele observava na clínica.
Freud concebe o ser humano como um aparelho, uma máquina movida por um sistema
energético que armazena, represa e descarrega energias, um ser humano movido por um
componente hipotético, as pulsões, em busca de evitar o desprazer e obter prazer.

Freud assenta sua clínica em componentes metapsicológicos, uma mitologia. Este


componente metapsicológico, a dualidade pulsional, por ser uma construção auxiliar, pode,
segundo o próprio Freud, ser substituída, quando não mais se mostra profícua.

É exatamente o que faz Winnicott. Ele abandona os componentes especulativos e em


seu lugar coloca componentes empíricos que mostram a experiência pela qual está passando o
indivíduo que amadurece.

Num segundo momento desse estudo, mostrei o descontentamento de Winnicott com o


modelo ontológico de Freud, assim como com sua teoria da sexualidade. Winnicott questiona
a psicanálise tradicional e mostra que ela não pode mais ser sua referência para compreensão
do processo de desenvolvimento do ser humano. O ser humano tem que ser compreendido no
interior de um processo que se desdobra entre dois momentos de não-vida. No decorrer deste
processo, a sexualidade do ser humano tem que ser constituída, ao contrário do que afirma a
psicanálise tradicional, para a qual o ser humano se constitui pela sexualidade. Em Winnicott,
o indivíduo conquista a sexualidade, se o ambiente humano lhe for favorável.

Essas idéias de Winnicott têm sido objeto de estudo de psicanalistas e filósofos da


ciência, confirmando que Winnicott é um pensador original, um pensador que rompe com os
modelos de uma ciência natural mecanicista, uma ciência tributária de um pensamento
fundamentado na idéia de que o ser é uma máquina cindida entre corpo e mente. Um modelo
calcado em estruturas mecanicistas que não abarcam a peculiaridade da existência humana,
submetida ao acaso e circunstancialidade.

Este estudo também revelou que uma teoria da sexualidade fundamentada no processo
de amadurecimento humano não pode se sustentar em conceitos metapsicológicos.

Outro aspecto observado é o de que, ao contrário de Freud, que privilegia a figura


masculina, Winnicott aponta que a figura central no processo de amadurecimento humano é a
mãe, em função dos cuidados que dispensa ao bebê durante uma fase única de seu processo de
amadurecimento humano. Winnicott resgata a importância da mulher para o crescimento e
desenvolvimento humanos. A figura do pai também tem uma importância única para o
desenvolvimento do bebê.
287

Winnicott fornece os elementos para o surgimento de uma nova teoria da


sexualidade, uma teoria que se apresenta radicalmente diferente da elaborada por Freud. Em
primeiro lugar, ele retira o conceito de libido e o substitui pelo conceito biológico de instinto.
Assim, a sexualidade não é mais definida por um conceito especulativo. Ela se define por uma
componente que mobiliza organicamente o ser humano, que faz com que seus órgãos,
inclusive os sexuais, passem por uma elaboração imaginativa de seu funcionamento. Em
Winnicott, a integração da sexualidade revela que há, nesse indivíduo, uma organização
psicossomática bem estabelecida, um organismo que funciona de forma integrada. Revela que
o indivíduo está firmemente assentado em seu corpo e que não há desencontro entre ele e os
órgãos sexuais biológicos que herdou ao nascer.

Mesmo o aspecto empírico não se apresenta da mesma forma que em Freud.


Winnicott, redescreve o modo como os instintos agem no organismo humano, contribuindo
para a constituição de uma masculinidade e de uma feminilidade. Em suma, a teoria da
sexualidade proposta é empírica e nada metapsicológica.

Este estudo também demonstrou que a teoria da sexualidade proposta por Winnicott
tem um componente instintual sexual e um componente não sexual. Winnicott mostra que a
sexualidade se constitui através dos elementos instintuais, juntamente com as identificações
cruzadas, identificações que o bebê estabelece com sua mãe.

Este componente não sexual, expresso pelos elementos masculinos e femininos puros,
levou Winnicott a conceber uma teoria da sexualidade que mostra a necessidade de ter como
ponto de partida a relação inicial do bebê com o mundo, expressa no contato que o bebê
estabelece com a mãe.

O trabalho de Winnicott mostra que Loparic tem razão: “Winnicott, tal como Freud, é
um pensador radical. A sua obra exige leitores igualmente decididos, dispostos a romper,
quando necessário, com usos estabelecidos, disposição particularmente necessária quando se
trata de considerar a reformulação winnicottiana da teoria psicanalítica da sexualidade” (2004,
p. 8)

Essa reformulação nos conduz à conclusão de que a teoria winnicottiana da


sexualidade não é uma teoria sexual. Elementos masculinos e femininos puros que serviram
para Winnicott entender as identificações sexuais cruzadas, não podem ser entendidas como
sexuais, exatamente porque ele a considera como não misturados, não contaminados com os
elementos sexuais.
288

Winnicott nos mostra que o que conduz o crescimento humano não é a


teoria da sexualidade; mostra, além disso, que a sexualidade, curiosamente, tem em um de
seus componentes um elemento não sexual. Isso pode ser percebido no conflito expresso entre
ser e fazer. Para poder se desenvolver, o indivíduo, após conquistar o estado de ser, precisa se
lançar para o mundo para poder se constituir e construir sua história pessoal. Ele precisa se
apartar da mãe e perder a identificação primária. Se tudo correu bem, o indivíduo pode dar
prosseguimento ao seu processo de desenvolvimento. Mas se o início não for favorável, sua
existência pode ser truncada em muitos aspectos, inclusive no sexual.

Assim, a teoria da sexualidade de Winnicott nos conduz a uma problemática muito


maior, uma problemática que não é da ordem da sexualidade. É da ordem da necessidade de
um bom ambiente no início da vida, um ambiente que propicie crescimento. Segundo
Winnicott:

sem alguém especificamente orientado para as suas necessidades, a criança não pode
encontrar uma relação operacional com a realidade externa. Sem alguém que lhe
proporcione satisfações instintivas razoáveis, a criança não pode descobrir seu corpo
nem desenvolver uma personalidade integrada. Sem uma pessoa a quem possa amar e
odiar, a criança não pode chegar a saber amar e odiar a mesma pessoa, e assim não
pode descobrir seu sentimento de culpa nem o seu desejo de restaurar e recuperar.
Sem um ambiente humano e físico limitado que ela possa conhecer, a criança não
pode descobrir até que ponto suas idéias agressivas não conseguem realmente destruir
e, por conseguinte, não pode discernir a diferença entre fantasia e fato. Sem um pai e
uma mãe que estejam juntos e assumam juntos a responsabilidade por ela, a criança
não pode encontrar e expressar seu impulso para separá-los nem sentir alívio por não
conseguir fazê-lo. O desenvolvimento emocional dos primeiros anos é complexo e não
pode ser omitido. E toda criança necessita absolutamente de um certo grau de
ambiente favorável se quiser transpor os primeiros e essenciais estágios desse
desenvolvimento. (1947e, pp 57-8)

Este estudo mostrou que os problemas da área da sexualidade não podem ser
remetidos apenas a uma fase do processo maturacional, que o indivíduo tem que ser olhado
em sua totalidade. Assim, a clínica da sexualidade não pode ser apenas calcada nos
componentes edípicos, posto que representações e repressões não dão conta dos primeiros
momentos de vida do indivíduo.
289

As conclusões desse estudo mostram que novas pesquisas podem ter


continuidade. Os dados confirmam uma evolução no campo psicanalítico, um campo que
acena com novas perspectivas para o estudo na área da sexualidade, a partir da proposta de
Winnicott. Uma proposta que indica que a clínica da sexualidade está longe de tratar apenas
da sexualidade.
290

Livros de D. W. Winnicott publicados em Português

1958a: Collected Papers: Through Paediatrics to Psycho-Analysis. London, Karnac Books


and the Intitute of Psyco-Analysis, 1992. lrad.: Da pediatria a psicanálise. Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1978 (W6)
1964a: The Child, the Family and the Outside World. USA. A Melody Lawrence Book.
1987. Trad.: A criança e o mundo. Rio de Janeiro, Guanabara Koogans, 1982. (W7)
1965a: Family and Individual Development, London, Tavistock Publications, 1965. Trad.:
A família e o desenvolvimento individual. São Paulo, Martins Fontes, 1993. (W8)
1965b: The Maturational Processes and the Facilitating Environment. London, Karnac
Books, 1990. Trad.: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Artes
Médicas, 1983. (W9)
197la: Playing and Reality. London, Tavistock Publications, 1996. Trad.: O brincar e a
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Anexo A - Quadro completo de correspondência entre as siglas de Harry


Kamac e o padrão de citação de Knud Hjulmand

Kamac Título Hjulmand


W1 Clinical Notes on Childhood 1931a
W2 Getting to Know Your Baby 1945a
W3 The Ordinary Devoted Mother and Her Baby 1949a
W4 The Child and the Family 1957a
W5 The Child and the Outside World 1957b
W6 Collected Papers: Through Paediatrícs to Psycho-Analysis 1958a
Da Pediatria à Psicanálise
W7 The Child, the Family, and the Outside World 1964a
A críança e seu mundo
W8 The Famíly and Individual Development 1965a
A família e o desenvolvimento individual
W9 The Maturational Processes and the Facílitating Environment
O ambiente e os processos de maturação 1965b
W1O Playing and Reality 1971a
O brincar e a realidade
W11 Therapeutic Consultations in Child Psychiatry 1971b
Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil
W12 The Piggle: An Account of the Psycho- Analytic 1977
Treatment of a Little Girl
The Piggle: o relato do tratamento psicanalítico de
uma menina
W13 Deprivation and Delinquency 1984a
Privação e delinqüência
W14 Home is Where We Start From 1986b
Tudo come a em casa
W1 5 Holding and Interpretation: 1986a
Fragments ofan Analysis
Holding e interpretação
W16 Babies and Their Mothers 1987a
Os bebês e suas mães
W1 7 The Spontaneous Gesture, Selected Letters 1987b
O gesto espontâneo
W1 8 Human Nature 1988
Natureza Humana
W19 Psycho-Analytic Explorations 1989a
Explorações psicanalíticas
W20 Talking to Parents 1993a
Conversando sobre crianças
W21 Thinking About Children 1996a
Pensando sobre crianças

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