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Capítulo II
Considerações morais 1

§ 12. Relações teóricas do pensamento e da ação'

Graças às influências conjugadas do marxismo e do prag-


matismo, das correntes existencialistas e cientificistas, que se
pretendem antimetafísicas, a filosofia contemporânea do Oci-
dente, ao examinar as relações teóricas entre o pensamento e a
ação, concede sem hesitar a primazia à ação, tomando-se esta o
critério do valor daquele. Em se tratando de julgar o valor da
teoria pela prática, ou o valor das idéias por suas conseqüên-
cias, em se concedendo a primazia ao concreto sobre o abstrato
e à política sobre a metafísica, ou, enfim, em se reduzindo a
verdade de uma proposição às suas possibilidades de verifica-
ção, é sempre o êxito de uma certa ação que se toma, definiti-
vamente, aquilo que permite realizar o acordo das mentes so-
bre a validade de um pensamento. O pensamento crítico de
nosso tempo não dá muito crédito às idéias; estas têm de pagar
à vista, por meio de efeitos imediatamente observáveis, qual-
quer adesão que se esforçam em colher. Reempregando a ter-
minologia aristotélica, é a primazia do ato sobre a essência,
que chega até a redução da essência aos atos que são a manifes-
tação sua.
Essa tendência atualista, tão difundida em nossa época, é,
há que o dizer, diametralmente oposta à tradição clássica da
metafísica ocidental que, em busca de primeiros princípios e de
verdades necessárias, vê, desde Platão e Aristóteles, no pensa-
o

256 ÉTICA E DIREITO A ÉTICA 257


mento racional o guia de toda ação e o fundamento d
. - cl'ass1ca
. nao
- hes1ta,
. de fato , em afi e toda mana é causa de subjetividade, ou seja, de erro e de imoralida-
sabedoria. A trad1çao
de. o desacordo dos homens, suas variações na história são
superioridade do eterno sobre o temporal , assim com rmar ª
• A • d . , 1 o a da outras tantas provas da imperfeição de seu conhecimento e de
contemplação e da c1encia o Imutave sobre a ação b sua ação. Impõe-se uma ascese prévia para rejeitar tudo que os
,. ' so re a
produção e o saber pratico, sobre o conhecimento do oport afasta da ordem universalmente válida. Cada qual deve libertar-
, d , uno
Observe-se, porem, que, para gran e numero de filosofi · se de suas paixões e de seus preconceitos, do que traz a marca
. _ . as que
d
pertence_m_a essa tra !çao_- menc10ne_mos_ m~is particularmen- de sua personalidade e de seu meio. O método para bem condu-
te o esto1c1smo e o spmoz1smo - , a açao nao e oposta ao zir a nossa razão consiste acima de tudo numa disciplina de
, . _ . , pensa-
mento, mas a pa1xao. 0 essencia1 e o que não é vã agita - purificação, que permitirá apegar-se apenas às idéias claras e
- 1· , 1 . çao,
mas açao 1vre, graças a qua nos sentimos realmente ativ distintas, conhecidas por meio de intuições evidentes que ga-
não um joguete de influências externas, escravos de nossa os, _e rantem a verdade do seu objeto. O conhecimento progredirá de
- E ' A • s pai-
xoes. scapamos a estas, as aparencias sensíveis, ao erro e à certeza em certeza, seguindo a ordem correta que vai do simples
imoralidade, quando o nosso comportamento é determi d ao complexo. Apenas um conhecimento assim elaborado mere-
.d, . d d na o
po_r nos_sas 1 eias a equa as, pela parte racional de nosso ser. A ce o nome de ciência. O saber infalível resultará do uso correto
pnmazia do pensamento se assinala, assim, pelo fato de ser el da razão, que é uma faculdade comum a todos os homens nor-
que permite distinguir a ação da paixão. Apenas o sábio é livree malmente constituídos e perfeita em cada um deles.
pois sua ação é autônoma. Mas que deverá ele fazer em caso d~ A ciência fundamentada em intuições racionais será uma
?ú;'.ida e de hes~ta?ão? Deverá envolver-se sem ser movido por cópia perfeita da realidade por ela descrita. Mas, para justificar
ideias claras e d1stmtas , sem a garantia da evidência? Descartes tal concepção da verdade como correspondência com o real,
reconhece que "como as ações da vida freqüentemente não cumpriria pressupor que a própria realidade, que se manifesta à
suportam nenhum adiamento, é uma verdade muito certa que, intuição, é estruturada em proposições verdadeiras, indepen-
quando não está em nosso poder discernir as opiniões mais dentemente de qualquer linguagem humana. As proposições
verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis". (Discurso do verdadeiras da linguagem científica devem refletir, de uma
método, 3ª parte). É por essa razão também que ele estabelece forma tão transparente quanto possível, sem ambigüidade nem
uma nítida separação entre a teoria e a prática, entre o que con- confusão, as próprias estruturas do real. As noções utilizadas
vém à busca da verdade e o que é recomendável nas ações da deveriam amoldar-se à classificação natural das coisas.
vida. Mas não é compreensível que, nessa perspectiva, o sábio Assim como a proposição verdadeira, a ação virtuosa é
renuncie cada vez mais à ação, cujas condições não lhe pare- conforme a uma ordem estabelecida. A ação livre do sábio
cem seguras, e prefira o gênero de vida contemplativo e místi- seguirá as regras objetivas da moral e do direito natural que sua
co para o qual se preparará, se preciso for, com práticas ascéti- razão lhe revela. A tradição filosófica cristã,- desde Santo
cas e purificadoras. Agostinho até Leibniz, passando por Santo Tomás, Duns Scot
As duas correntes filosóficas , que acabamos de caracteri- e Descartes, encontrará em Deus um fiador para o pensamento
zar esquematicamente, se opõem diametralmente, tanto por humano. Como o espírito divino conhece de antemão a solução
sua teoria do conhecimento quanto por sua teoria da ação. de todos os problemas e como, graças à luz natural e sobrena-
Para a tradição clássica, o conhecimento verdadeiro e a tural, ele nos faz conhecê-las, o otimismo cristão fornece con-
ação livre consistem numa conformidade a uma ordem consti- fiança ao filósofo . O racionalismo cristão sabe que todos os
tuída previamente a qualquer ação humana. A intervenção hu- problemas possuem sua solução desde sempre e que lhe basta,

l
o

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para encontrá-la, exerc~r be~ suas facu!dades naturais. Com- Gostaria de submeter à discussão algumas sugestões que
preende-se que um rac10nahsmo ateu _nao possa vangloriar-se me parecem dever fornecer os elementos de uma solução ao
blema com que nos ocupamos.
da segurança de um Descartes e nao possa demonstrar
0 pro Na filosofia clássica, as teorias do conhecimento focaliza-
mesmo imperialismo intelectual. Ele deverá reduzir O alca
, . .
de suas afirmações apenas ao domm10 C~Ja chave as ciências
nce
ram
º indivíduo sozinho, em face do universo.
•A • d
Que o seu pensa-
to se forme graças a expenencia o rea 1ou que a realidade
exatas parecem fornecer-lhe, declarando macessível à razão men ,
0 • reflexo de um pensamento razoave1, o pensamento ver-
domínio do normativo, o das regras que nos deveriam reger a seJa 0
<ladeiro sempre pare_ce _s~r aquele ~ue coi:respo~de ao real.
ação. O pensamento, capaz de conhecer o real , seria incapaz de
Mas de fato, entre o md1v1duo e o urnverso mterpoe-se o meio
justificar racionalmente a conduta humana. Cumpriria renun- ci~ com suas tradições, sua linguagem e suas técnicas. Cada
ciar a uma ciência dos fins , pois estes são alheios às estrutura so ' fl - l
homem, antes de ter aces~~ a uma re_ ~xao pessoa , p~s~o~ por
do real. Apenas uma ciência descritiva encontra seu fundamen~ ma educação moral, poht1ca ou rehg10sa e por uma 1rnc1ação
to nos fatos. Como o que deve ser é o reflexo do que é, não há ~ qualquer uma da~ inume~ávei~ ~i~ncias _e _técnic~s de seu
verdade no domínio do normativo. Este escapa ao conhecimen- tempo. Todo conhecimento_ e, no m1c10, trad1çao, ensmo e ,co~-
to racional; o ideal de uma razão prática se mostra uma ilusão fonnismo . Não somente a lmguagem, tanto usual quanto tecm-
quando não uma contradição em tennos . ' ca mas também as regras e os métodos, mediante os quais se
Sejam quais forem as dificuldades, que podem parecer ef;tuam a verificação e a prova, elaboram-se numa tradição e
insuperáveis, da tradição clássica, ela apresenta pelo menos a são ensinados numa iniciação, prévias ao trabalho criador. Ao
vantagem de haver edificado teorias coerentes da verdade, da lado das regras e dos métodos críticos, comuns a todo exercício
razão e da liberdade. Quanto às tendências contemporâneas, do pensamento, cada disciplina desenvolve processos e méto-
para as quais nem a verdade, nem a liberdade são conformida- dos específicos que possibilitam fazer a distinção entre o que é
de a uma ordem preestabelecida, que recusam ver na razão relevante e o que não o é em sua própria área de pesquisa. As-
uma faculdade imutável, cujas evidências seriam infalíveis, sim é que cada mente é condicionada pela fonnação e pela edu-
poderão elas fornecer-nos critérios satisfatórios daquilo que cação que recebeu . O saber já pronto, transmitido de geração
são uma tese válida, uma escolha razoável, uma decisão justifi- em geração, parece natural, confonne ao real, e não levanta
cável? Com efeito, é assim que devem ser fonnuladas as ques- muitos problemas, enquanto as regras e os métodos já elabora-
tões relativas à verdade, à liberdade e à razão, em filosofias que dos se aplicam sem dificuldade às novas situações. Mas, sur-
concedem a primazia da ação sobre o pensamento. Não basta gindo uma dificuldade, apresentando-se um problema cuja
dizer que toda afinnação pressupõe uma ação, que considera- solução os métodos conhecidos não permitem encontrar, daí
mos verdadeiras teses nas quais estamos prontos para funda- em diante mostra-se indispensável um esforço criador. Será
mentar nossa conduta e que apenas o êxito desta garante a exa- necessário inventar novos processos ou modificar as antigas
tidão de nossas idéias; cumpre ainda que possamos indicar os técnicas, fonnular uma nova teoria que necessitará da criação
critérios da ação eficaz e da escolha razoável e precisar as con- de uma nova tenninologia, flexibilizar as regras antigas retifi-
dições do erro e do fracasso. Tudo isto exige uma teoria da cando-lhes o campo de aplicação. Num esforço de adaptação
razão prática, tanto mais indispensável porque deverá fornecer, aos novos problemas provocados pela prática ou imaginados
a um só tempo, as regras da ação e do pensamento. Essa teoria pelo espírito inventivo do cientista, o pensamento criador
deverá, aliás, empenhar-se em evitar as dificuldades da filoso- modificará ou contestará o próprio âmbito consoante o qual a
fia clássica. situação foi examinada primitivamente.
r
1
1

r 260 ÉTICA E DJnE
l\ iro A ÉTICA 261
Assim é que toda teoria ou toda prática nova t
. - ' endent é exata, mesmo que a terminologia nos pareça ultrapassada?
obviar a imperfeiçao de um ou de outro elemento do . ea
, ·i- t . . Patrunô Supondo-se q~e- pos~am~s controlar os fe~~menos aos quais se
nio cultural, devera mam1es ar sua supenondade sob -
ela tende a substitmr · · d e mo d o convmcente
· O
para as me re que efere a descnçao, nao drremos que esta e imprecisa, que con-
. . 1· ntes for ~ém detalhes sup~rflu?s e ?~º menciona precisões importantes,
madas pela discip ma a que pertence a novidade p -
, · roposta ue arrasta consigo, imphcitamente, afrrmações falsificadas e
Nesse c~so, tratar-se-a muf ito rar~mdente de demonstração for~ ~ue teríamos pr~ferido uma descri~ã~ numa terminologia me-
mal; sera, antes, uma con rontaçao as vantagens e do .
. . d d , . s incon- nos superada? Duemos que a descnçao atual seria mais verda-
vementes de duas teonas ou e uas praticas. Os argu deira do que a antiga? Mas, se nos servimos da palavra "ver-
•A • , • mentas
apelarão, em ciencia e nas tecmcas, a noções tais como dadeiro" nesse sentido, como uma intuição poderá nos garan-
rência, a simplicidade, a clareza, a fecundidade , 0 rendi ª coe- tir, por sua evidên~ia, a verdade de um enunciado? Se fizer-
.. d d ,. mento
a utih a e: em mora1, em po1itica ou nos debates reli · ' mos abstração da linguagem com que descrevemos essa intui-
_ .b d d . . g1osos
invocar-se-ao a 11 er a e, a Justiça, a pureza, a fidelidade ' ção, poderemos ~inda falar de verd~de ~e~se caso? A_ve~dade
santi.d ade. 'T'10d as essas noçoes - sao- re 1allvamente
. indeterm·ou a não é relativa a signos , e, quando nao ha signo, nem sigmfica-
das, pois são diversas as suas condições de aplicação. Tais ma~ ção, tratar-se-á de outra coisa senão de dados, a respeito dos
.
ções .se. precisam e se_ mo d'fi no
i icam .por ocasião de seu uso , e essa quais não se pode pensar em verdade?
plast1c1~ade quase nao lhes permite~ formalização . Uma argu- Tudo quanto podemos dizer, a propósito disso, parece-me,
mentaçao que recorre a essas noçoes parecerá tanto menos é que considerar indiscutível a verdade de uma proposição é,
convincente de imediato quanto mais revolucionárias forem as de todo modo; pressupor que não convém discutir os termos da
mudanças por ela preconizadas. Quanto menos mudanças uma linguagem que permitiu expressá-la; e, muito amiúde, de fato,
a linguagem não está em causa. Mas se poderá concluir disso -
novidade trouxer a nossos hábitos e aos âmbitos de nosso pen-
sejamos nós realistas ou nominalistas - que as questões da lin-
samento, mais facilmente se poderá pleitear-lhe a causa. As
guagem são alheias à definição da verdade?
mudanças revolucionárias foram raramente admitidas de cho-
Pessoalmente, não creio. Creio que estamos contentes
fre num patrimônio cultural.
com a linguagem utilizada, não porque ela é arbitrária, nem
Esse processo de nossas idéias e de nossas técnicas nos porque é o reflexo de estruturas do real, mas porque ela nos
obriga a repensar, em termos alheios à tradição clássica, os pro- convém, até nova ordem: há um juízo implícito de adesão à lin-
blemas fundamentais do conhecimento e da ação e, mais parti- guagem e, com isso, a uma tradição que a elaborou. Quando
cularmente, as noções de verdade e de liberdade, elaboradas quisermos reformar o uso de um termo, por ele nos parecer re-
consoante esses problemas. pleto de equívoco ou favorecer erros, ou repousar numa classi-
Partamos da teoria clássica da verdade como correspon- ficação imperfeita, não hesitaremos em combater a proposição
dência do que é dito verdadeiro com o objeto da asserção. Que considerada verdadeira até então.
significará essa correspondência, se acreditamos que a lingua- Percebemos a existência de um juízo de valor na reforma
gem é ~ma obra humana, mais ou menos adaptada ao real e às de uma terminologia. Por que recusar a existência de um ju~z_o
necessidades da comunicação com os outros? Dizer que uma de valor no uso de uma terminologia tradicionalmente adrruti-
pro~osição é verdadeira não será, ao mesmo tempo, formular da? O fato de renunciar a servir-se de uma liberdade é, de certa
um Juízo implícito sobre os termos por ela utilizados? Imagine- forma, um uso dessa liberdade.
~os a descrição de uma experiência por um alquimista do Com efeito, a liberdade não é somente adesão a uma or-
seculo XVI na linguagem da época: diremos que sua descrição dem prévia. Ela é escolha de uma linha de conduta. Per-
262 ÉTICA E DJR
E!To A ÉTICA 263
cebemos essa liberdade quando nos afastamos de um
0 rioridade de um âmbito de refe,rê?cia ~obre outro, e compreen-
tismo de uma rotina, de uma linha de conduta g au t rna.
, . era1rne der por que o abandono
adotada. Mas não usaremos da liberdade, mesmo penn nte . . ddeste
. _ultimo ambito e sua substitmçao
•-
pelo novo constitm uma ec1sao razoável.
cendo conformistas? O juiz que segue os precedentes ane-
mete sua integridade tanto quanto aquele que deles cornpro.
b . ºd se afasta
Ele tem, não o stant~, udma s~pe~1fion ade sobre este últirno· ;
que, normalmente, nao eve JUStI 1car sua conduta S '_e
são pelo fato mesmo de ser tradicional, não tem de.s u~ deci-
' • erJustifi1 § 13. Demonstração, verificação, justificação 1

cada. Em contrapartida, aquele que se afasta da norm ·


comprometer mais fortemente sua responsabilidade ª _Par~ce
. ºfi . . . . 1 . , pois deve Acontece com freqüência , por ocasião de palestras filosó-
JUStI 1car sua m1ciat1va para va onzar-lhe a racion lºd
. ºfi - d , h d a I ade ficas , que o orador encarregado de fazer a síntese de um con-
Essa JUst1 1caçao evera gan ar a a esão daqueles a ;
. . ºd d dºfi h 'bº quem e gresso dedique alguns dias de lazer, antes da reunião, a redigir
d mg1 a,,e e quem mo 1 1ca os a. Itos _ de pensamento El
• a se essa síntese, para estar totalmente pronto para essa exposição
amparara em argumentos que vanarao de acordo com O ~ bº
1 de encerramento. Esse modo de agir evita as eventualidades da
to em que se move e que fornecerá o critério de pertin~m . ·
_ . 'fº ncia improvisação, mas não me parece muito instrutivo: é por essa
de1es. Esses argumen tos serao c1ent1 1cos, técnicos J·ur'dº
,. fil 'fi , 1 ICOS razão que, querendo levar em conta, até o derradeiro minuto, as
po11t1cos ou oso 1cos, conforme o âmbito em que se insir~
discussões que se realizaram nestes dias, preferi improvisar,
e a ordem que procurem precisar ou modificar. É nessa
. .d, . d pers- expondo-me a todas as insuficiências desse procedimento.
pectiva
, que a 1 eia e uma~
razão
. dialética se toma compreen-
s1vel. Espero que os senhores tenham a bondade de perdoá-las.
. . As . mudanças
. . no amb1to de referência são devidas a ' 1ru
· ·_
Devemos perguntar-nos, para começar, em que medida os
ciativa md1v1dual de uma mente criadora, mas essa iniciativ
organizadores do simpósio, que propuseram o tema "Demons-
p~a s~r admitida, e para que as proposições dela resultant~
SeJam mtegradas no âmbito que ela modifica, deve encontrar tração, Verificação, Justificação" tiveram suas esperanças mais
razões que pareçam válidas segundo os critérios anteriormen- ou menos realizadas nestes poucos dias. Como se viu, trata-se,
te reconhecidos. de um modo geral, do problema da prova, da justificação de
Definir a verdade e a liberdade apenas como conformida- nossas afirmações, das pretensões de racionalidade de um dis-
de a uma ordem imutável e perfeita significa aderir implicita- curso responsável, seja ele científico ou filosófico. Nossos dois
mente a uma visão teológica que é a da metafísica clássica. Em colegas que o introduziram, quando da sessão inaugural, o Sr.
contrapartida_, quando a ordem é humana e imperfeita, defmir a Klibansky, presidente do Instituto Internacional de Filosofia, e
verdade e a liberdade como conformidade a essa ordem não é o Sr. Devaux, presidente do Centro Belga de Pesquisas de
respeitar o absoluto, e sim a tradição. Pautar por esta o pensa- Lógica, indicaram-nos em que perspectivas se situava esse
ment~ e a ação significa comprometer-se, ainda que esse com- tema.
?ro1:11sso, por ser conformista, pareça normal sem dever ser Foi-nos bem mostrado que a própria noção de demonstra-
Ju st ~ficado. Mas, por se tratar de uma ordem que homens pro- ção, tal como nos é apresentada em Aristóteles, em quem é
duzrram e aperfe1çoaram · e que permanece sempre perfect1vel, , vinculada à evidência das premissas de um discurso apodícti-
as concepções da verdade e da liberdade como conformidade a co, e a noção de demonstração formal , dentro de um sistema
uma ordem se most ram msu · fi1c1entes
· e devem ser completadas hipotético-dedutivo têm filosoficamente um alcance muito
por uma concepção da verdade que permita conceber a supe- diferente. '
264 ÉTICA E DIRE!To A ÉTICA 265

Compreende-se que, na primeira c_o n~epçã~, como a de- empreendimento sério essa forma irracional de filoso-
rar urn nh b
- parte de axiomas ou de pnnc1p10s ? " · era esse , corno os se ores sa em, o parecer de Des-
monstraçao . , . mcontestes , o
ósofo seJ·a apresentar esses pnnc1p1os evidentes far · ' que pretendia que a filosofia, na medida em que não
pape1 do fil A . • • d ,a cartes , • A • • •• _ _

pode tornar-se urna c1encia, emite apenas op1ruoes e nao mere-


. dos quais as cienc1as _podenam
partrr , esenvolver as conse -
cias que tiram deles . Nao e de espantar que, em virtude nos ocupemos dela .
.. A

quen · 'd d . h d ce qu e · , · d
Assim situado, nosso -~im~os10 es~ava centra o no proble-
desse paPel , a filosofia sep cons1 era a a ram a as ciências . s relações entre as C1encias e a Filosofia. Em que medida
Quan do a demonstração se ·desenvolve dentro de um sistema ma d a
hipotético-dedutiv~, o _cient1~ta?~ e 1spensar o fillósofo, e a
d d' , nicas científicas de prova constituem. , .
os umcos proced'1-
as tec , · · d d.
investigação dos pnmelfOS pnn~1p10s. . . rnen to S racionais? Ou , ao contrano, am a que _ o empreen. 1men-
_
losófico não dependa da demonstraçao e da verificaçao,
Enquanto, na demonstraçao, partimos dos prmcípios, as to fi1 . .fi _ Ih ,
operações de verificação exigem a evidênci_a de certos fatos, poderemos encontrar uma JUStl 1caçao que e garanta o carater
que devem verificar ou alterar, confirmar ou mfirmar hipóteses racional? .
ou idéias gerais.
o primeiro relator de nossas Palestras, o Sr. McKeon, uti-
. ando seus profundos conhecimentos históricos. em proveito
1IZ
Em ambos os casos, o do discurso demonstrativo e O do _
discurso de verificação, não se pode dispensar uma forma de de sua dialética, procurou mostrar-nos qu~ as c01sas ~a~ er'"?
tão simples quanto uma mente menos avisada podena imagi-
evidência, que garante a seriedade do discurso científico. É
nar. Na realidade, disse-nos ele, essas três noções- demonstra-
verdade que, na metodologia das ciências atuais , as coisas não
ção, _ verificação e j~stificação, - correspondem às diferentes
são tão simples, mas constatamos, não obstante, que as técni-
concepções de um discurso que estabelece um fundamento,
cas científicas da prova permitem, grosso modo, chegar a um
conforme esse fundamento seja concebido como uma elabora-
acordo que é buscado em vão em filosofia. Os desacordos dos ção a partir de princípios, como um confronto com certo obje-
filósofos , que com freqüência trazem à baila evidências diver- to, ou conforme ponha a ênfase na comunicação entre os
gentes e incompatíveis, levantam infalivelmente o problema da homens . A partir de cada uma dessas concepções de um funda-
racionalidade e mesmo o da seriedade de seus discursos. mento, as noções de demonstração, de verificação e de justifi-
Como é possível que, em filosofia, quase não se chegue ao cação serão diferentemente elaboradas, pois serão adaptadas à
acordo que é efetuado utilizando-se processos de demonstra- concepção que se quer fazer prevalecer. Essas noções são cer-
ção ou de verificação? Em face dessa situação, como bem o cadas de um halo de ambigüidade, de que nos aperceberemos à
assinalaram os senhores Klibansky e Devaux, manifesta-se medida que se for desenvolvendo a discussão a respeito delas.
uma tendência de negar a existência de provas em filosofia. Se queremos discutir em filosofia, não temos de dar a tais
Como disse Gilbert Ryle, por ocasião de outro simpósio, reali- noções um sentido definitivo e rígido; devemos ser sensíveis
zado em Bruxelas, sobre a teoria da prova2 : "Os filósofos não aos matizes que resultam de pontos de vista diferentes, de ati-
fornecem provas, assim como os tenistas não marcam gols. E tudes diferentes, e o proveito que se retirará destes poucos dias
os filósofos não tentam em vão fornecer provas. Os gols são de discussão será o de que cada qual se dará conta da insufi-
alheios ao tênis, assim com as provas à filosofia." ciência, do aspecto unilateral, de seu próprio discurso. Assim
Mas a conclusão que o Sr. Devaux tira disso não deixa de esclarecidos, todos ganharão em compreensão e perderão um
~quietar-nos: "A filosofia seria puramente irracional? Renun- pouco de sua soberba.
ciando às técnicas comprovadas da ciência, em questão de Esse primeiro relatório nos desconcertou um pouco, pois é
prova, não se chegará ao fim da filosofia? Poder-se-á conside- certo que a predição do Sr. McKeon se verificou, e ele próprio

l
266 ÉTICAEDJn
,,E1r0
A ÉTICA 267
não contribui pouco para justificar suas previsões 'D
com isso um excelente exemplo daquilo que O Sr ' Kornec~ndo grado, ao
. problema da indução,
._ esclarece-nos
. _ sobre o tema do
qualificou de justificação ativa. · otarb1nski S
imposIO. Mas, por ocasiao da drscussao ' ficou claro que esse
O Sr. McKeon pôs o dedo num grave proble roblema nos fornece
,, . um excelente _exemplo de uma s1tuaçao
• _
P
a todo usuário de uma linguagem, mas sobretud ma que _surge em que, na ausencia. de demonstraçao ou de verifica - ,
çao, e-se
O
Pois, ao servir-se de uma palavra, tal como de ao filosofo . não obstante, obnga?o a recorrer a certos princípios. o relató~
monstra - rio do Sr. Ayer se atem a mostrar de uma forma muito convin-
' 1 filósofo não pode dizer que a emprega, a um só tem Çao, o
O cente que ~ão é possível demonstrar nem verificar O princípio
1
dos os sentidos que podem ser encontrados nu b p ' _em to-
. p · · m 0 m d1ci 0 , da uniformidade da natureza ou qualquer outro princípio indis-
no. 01s, nesse caso, nmguém lhe compreender· d' na-
1a o iscu pensável às ciências indutivas, quer se raciocine em termos de
Se quero fazer-me compreender quando . rso.
' me s1rvo de verdade, quer de probabilidade. Não obstante, é inegável que
palavra, tenho mesmo de lhe dar um sent'd d uma
. . . 1 o eterm· não se pode evitar de recorrer a tal princípio, mesmo que não se
Devo hm1tar-me a um sentido particular adm't• d Inado.
' I m o apo 'b•. tenha condições de demonstrá-lo, nem de verificá-lo. Poder-se-á
dade de retomar a noção, de corrigi-la de m t SSI ih-
- , os rar que n- pelo menos, justificar o recurso a esse princípio? '
tao clara como se havia exposto no início. ao era
Efetivamente, esse recurso se justifica por sua fecundida-
De tudo isso resulta uma lição de metodol . fi ,
·
Inicrem ogia 1losofi de. Mas em que condições? Para que o princípio metodológico
com noções que tratarão de tomar ta- 1 rca.
, o e aras qua t 0 da uniformidade da natureza se mostre fecundo e válido, é mis-
poss1vel, ma_s, no meio do caminho, mostrem as condi õe n ° ter que todas as categorias, todos os conceitos e todas as classi-
sa clareza. E esse o conselho que nos esforçam ç s de_s-
d . . os em segurr ficações que elaboramos para descrever e explicar os fenôme-
sen o por isso que, na contmuação de meu d' , nos naturais levem em conta esse princípio, sem que seja indi-
fal d rscurso, quando eu
. ar ~ demonstração, compreenderei esse termo na-o cado a priori o que é uniforme na natureza.
tido an stOte-1·ico, mas no sentido atual de p , no sen- _
f ai rova por operaçao Justamente na medida em que nossas teorias, nossos con-
orm '_de prova por cál~ulo, a partir de premissas, no interior ceitos e nossas classificações só são criadas posteriormente, é
~e um sistema fonnal. Foi nesse sentido, aliás, que o compreen- que, posto à prova da experiência e, aliás, constantemente sub-
~r~ todos os que utilizaram este termo na seqüência do sim- metido a experiências e a provas futuras , o princípio da unifor-
po~iod, q~ando se tratou dos problemas das ciências dedutivas midade da natureza manifesta sua fecundidade. Fornece-nos
. '.tanto O sr. Ayer, 0 Sr. Bunge e o Sr. Granger como
ou m utivas ele o exemplo de um princípio que estabelecemos, mas cuja
o Sr. Vuillemm. aplicação é constantemente submetida à prova, graças aos ele-
Em_ contrapartida
. , quando se tratou de verificação . o mentos de indeterminação, portanto de flexibilidade, por ele
termo nao for utiliz ado do mesmo modo unívoco pois se para ' contidos. Se se tratasse de um princípio a priori no sentido
0 Sr. Granger esta é a · ' de um' fato
, penas a sunples constatação clássico, que é admitido por causa de sua evidência, fundamen-
para o Sr. Vuillemin
. .
e1a resu1ta de uma arbitragem entre dife- . ' tada na clareza e na distinção de seus termos, isso não funcio-
rentes
t0 d medidas . ' enq uan to, para o Sr. Bunge, é indissociável de naria de jeito nenhum. A fecundidade do princípio se deve à
0 um conJunto de el , · que permitem confenr .
ementas teoncos sua capacidade de adaptação ao imprevisto, na medida em que
o valor correto aos elementos de ongem . empírica. a indeterminação de alguns de seus termos permite precisá-los
Retomemos um em decorrência da prova da experiência. Assim é que a afirma-
começand ª por u?1a essas diferentes exposições,
o pe1a do Sr: Aye r. A prunelfa
· • vista, . ção de que é preciso tratar da mesma forma situações essen-
guntar-no s em que o mte , .
poderíamos per-
cialmente semelhantes é um princípio a priori, cuja fecundida-
ressante relatono do Sr. Ayer, consa-
e

r
,.
268
de não se deve à sua evidência, mas ao que ele
, - . .d
vago. Ele contem noçoes CUJO senti o só se elabor ,
ÉTICA E D/D

,
contem. d
"Erro

. e
A ÉTICA

0
269
formal , o empírico e o teórico ou filosófico que se consagra-
que se vão realizando a prova científica e a construç~ a Illed1da ram as exposições dos senhores Bunge, Vuillemin e Granger.
. . d , ao das te
nas que precisam o que, em ca a caso, e essencial e
. - 1· , re 1evant
°- Neste último, a ênfa~e é posta ~obretudo na demonstração,
podendo essas prec1soes ser, a ias, modificadas co e, sendo as duas outras noçoes essencialmente consideradas auxi-
gresso científico. m O pro- liares em relação a esta, sendo a noção de demonstração, vin-
É um princípio a que se pode chamar heurístic culada a um sistema puramente formal, apresentada como 0
condiciona o estudo dos fenômenos naturais e cu . o, porque ideal de toda ciência natural.
· , • d '
lem bra o estatuto do pnnc1p10 e não-contradição t 1
. que nao - 1ogramos demonstrar
Jo estatut
' a como o
° Em contrapartida, a atividade científica, segundo O Sr.
Sr. Gonseth sugenu, Vuillemin, consiste numa interação entre a demonstração e a
mos constantemente ocupados em verificar mas qu ' que e_sta- verificação. Com efeito, centrando sua exposição na medição
c · · . ' e constitu1· científica, ele nos mostra que esta não é simplesmente um dado
de 1ato, uma prehmmar que permite definir a exisC . •
mática. encia mate- obtido por meio de um instrumento de medição. Esta só consti-
Estabelecemos que só têm existência matemát' tui a medida aparente , pois a exigência de compatibilidade que
- d' , . H, , ica os seres condiciona a nossa teoria da medição nos obriga a substituir os
na?. contra 1tono_sb. _ _a, a1, u~a condição da existência mate
matica, que poss1 11ita defimr uma área de racionalid d - diversos dados, quando eles são incompatíveis, pelo que se
. , . d a e do poderia qualificar de medida real, que só se pode determinar
mesmo modo que o pnncip10 a uniformidade da nat '
possibilita afinnar a existência de leis naturais d urleza, que com certo coeficiente de erro, pois o estabelecimento da coe-
, . . , e qua queres-
pecie que seJa, estabelece um princípio de racionali'dad . d' rência buscada exige o recurso a várias teorias, tanto físicas
, 1 A e m is- como matemáticas. Foi na importância do recurso a essas teo-
pensave ao estudo dos fenomenos naturais.
~od~ ~ez que é apr~sentada uma objeção contra a validade rias que insistiu o Sr. Mercier ao mostrar, de um modo convin-
do pnnc~p10~dever-se-a encontrar uma réplica flexibilizando- cente, que não há, em física, medições independentes das teo-
lhe a aplic~,?ªº. nesta ou naquela área em que ele parece forjado rias, as únicas que permitem interpretá-las e compreendê-las.
pela expenencia. O que aproxima o Sr. Granger e o Sr. Vuillemin é o fato de
, Per~eb~mos a~s~ º, pap~l, em ciências, de princípios filo- apresentarem a atividade científica como independente dos
sofico~, mdispensaveis as disciplinas científicas seJ·am elas pressupostos filosóficos , que não teriam a menor importância
formais
. .ou expenmentais.
· · Eles sao - a prwri,
. '
mas num sentido nas ciências em que apenas a demonstração e a verificação
r-uito ?if~r~nte daquele dos primeiros princípios aristotélicos. teriam legitimidade. Imagino que o ponto de vista deles é moti-
ª~ pnncipio~ reguladores, normas que utilizamos para cons- vado essencialmente pelo acordo que encontramos geralmente
trurr no~~o umverso científico, trate-se de um universo formal nas ciências, que as distingue tão profundamente da filosofia.
ou empmco. . Poder-se-1·a i.cal ar, a esse respeito,
· de pnncip10s
. , . de Se as ciências tivessem pressupostos filosóficos, deveriam res-
uma ontologia , regional ·
, mas que exigem, para sua aplicação, o sentir-se disso, e as teses defendidas pelos cientistas deveriam
recurso ª metodos formais ou empíricos. E isto nos mostra ter sofrido a repercussão de suas divergências filosóficas. Ora,
como um ponto de vista fil oso' fiico e, previo
, · a, formalização
. quer não é isso que sucede, aparentemente; o que justificaria a eli-
de estruturas abstratas d '
art' d . ' quer e estruturas obtidas por indução a minação das ciências, em especial da física, de qualquer pers-
P Ir ~ pesquisas de ordem empírica. pectiva filosófica.
Foi ao papel da d - A exposição do Sr. Bunge reconhece, em contrapartida, a
cação nas 'A • emonstraçao, da verificação e da justifi-
ciencias ' em espeeia · 1em f'isica,
. foi. as
, relaçoes
_ entre existência de tais pressupostos filosóficos, que intervêm tanto
270
ÉTJc-4. éD
na doutrina prévia como na metodolo . IRerro A ÉTICA 271
. + . g1a das c." 1encias
vanam, e1etivamente, de uma época pa
. ra outra e qu ueles que haviam assimilado as técnicas e os métodos de
Quais são essas preliminares? Dize ·. e aq "d . h . d.
. e· d fr
gia. 1tan o uma ase de Philippe Franck
m respeito '
.ª rnetoct pe
nsamento oci entais aviam per ido suas crenças ances-
. d .,. _ .
- . ' o Sr B1 h o1o. trais. o ponto de vista _ as cienci~s modernas parecia incompa-
que a til 1 oso fi a nao passaria de uma ci· " . · rsc nos ct· tível com o ponto de vista precoruzado pelo hinduísmo.
. enc1a pet -6 12
nessa medida, constitui um obstáculo n Cada e q Menciono estes fatos apenas a título de exemplo. O pro-
.,._ . . S , para os pro ue,
c1enc1a viva. e e verdade que toda ci·" . , gressos d blema importante é destacar essa filosofia subjacente da ciên-
. . enc1a so s d a
reJe1tando certas teses científicas aceita e esenvolv cia moderna, que tomou um impulso tão grande no Ocidente
. . d Ih s, ou pelo e
tnngm o- es o alcance, as teses propri·a
. mente filo , 6
rnenos res. depois do Renascim~n~o: Pois n~~ m_e parece m_uit? que antes
se situam no mesmo plano. A não ser qu so 1cas não do impulso extraordmano das c1encias e das tecmcas depois
. e se confund .,._
fi1losofia, o obJeto e os métodos delas cu a c1encia e dessa época, ou seja, até o fim da Idade Média, nossa civiliza-
. . , mpre reconh
pec1fic1dade do ponto de vista filosófi ecer a es- ção tenha sido, ~o _ponto que nos interes~a, ~uit? diferente das
. .,._ . ico, que reage b civilizações da Asia e, de todo modo, nao e mais avançada do
d l
meto o agia das c1enc1as, mas não se pod so re a
. 'fi e pensar em que elas.
teses c1ent1 1cas, teses filosóficas concorrentes opor, a
Em que medida a revolução do Renascimento é condicio-
O problema da independência das cie"nc· ·
ias com rela ~ , nada filosoficamente? Há, aí, um problema muito interessante
fil
1 oso fi a, que apresenta conseqüências imed· t ~ao a
, . . ia as quanto à ict'· para o qual os trabalhos de Michael Polanyi, em especial a
que se faz do carater obJetlvo e impessoal dos 't d eia
. 'fi me o os e dos notável tese que desenvolveu em Personal Knowledge (Lon-
lt d
resu a os c1ent1 cos , merece certamente ser ob· t d .
~e o e pesqu1 dres, 1958), chamaram a atenção do mundo erudito. Ele defen-
sas apro fundadas. Por que certos povos ou pelo · de a tese de que, contrariamente à opinião corrente, a pesquisa
· ·1· - - , menos certas
ClVl izaçoes, nao logram elaborar uma ciência da natu científica não é impessoal e objetiva, mas se insere numa visão
. reza em
nosso sentido da palavra, e por que outras culturas favorecem do mundo, se desenvolve a partir desta, e de que sua metodolo-
um ~esabrochar de tais ciências? Será simplesmente um desen- gia nela se inspira.
volvimento, ~evido à inteligência de uma raça, ao seu domínio Seja como for, esse problema das relações, da interação
das matematicas e das técnicas de medição? Não o creio. Creio entre a visão do mundo e a pesquisa científica, merece um es-
mesmo que povos com conhecimentos matemáticos muito tudo pormenorizado, que incidiria tanto sobre a história das
desenvolvidos podem ficar atrasados tanto em sua tecnologia ciências como sobre as ciências atuais. E o fato de que nossos
como em suas ciências naturais. três relatores , apesar da seriedade com que praticam a filosofia
. Por ocasião das Palestras que o Instituto Internacional de das ciências, tenham expressado pareceres divergentes sobre a
Filosofia realizou em Mysore, em 1959, e por ocasião dos con- importância do fundo filosófico na pesquisa científica, nos
tatos que _estabelecemos, nessa oportunidade, com vários filó- incita a crer que minuciosas análises nessa área se mostrariam
sofos da lndia, eles nos disseram que vários dirigentes políti- particularmente fecundas.
cos do país estavam muito preocupados com o seguinte fato: O Sr. Kotarbinski consagrou seu interessante relatório, a
tend o enviado grande número de universitários ao Ocidente um só tempo singelo e profundo, à justificação ativa, ou seja,
P_ara pro~seguir seus estudos científicos, esperando que volta- às situações em que, por nossa ação, favorecemos a realização
nam mmto bem formados do ponto de vista científico e tecno- de nossas previsões. Algumas de nossas atividades permitem
1?gico, conservando ao mesmo tempo suas crenças ancestrais, verificar ou justificar nossas afmnações, o que revela a existên-
tiveram de constatar, para seu grande desapontamento, que cia de relações inesperadas entre o pensamento e ação. Mas

l
272 ÉTICA E D!RE
!To
A ÉTICA 273
sua exposição . não procurou
_ , distinguir, uma da outra , a venfi.
.
É essa oposição fundamental , entre a realidade tomada
ão e a ·ustificaçao,
1 e so se baseou em exemplos e
caÇ _ f . m que a evidente pela filosofia e a aparência comumente dada, seja qual
·ustificação de uma afirmaçao se az mediante O recurso
J ~ for a área em que se encontre essa oposição, sejam quais forem
Ven.ficação. A espec
. 'fiicaçao
ifiici'dade da JUStl - nao
- pode p a uma
.
. ~ . ' or isso as justificações que se lhe dêem, que se encontra em todas as
ser posta em eviden~ia. . . '
filosofias . Mesmo o positivismo não lhe escapa, ele que tanto
Em contrapartida, essa especificidade foi salient d
. a a no insistiu sobre os pseudoproblemas, sobre as pseudoproposi-
relatório do Sr. Rotenstre1ch, que nos mostrou por que a t· .
'al . 'fi a iv1- ções, que caracterizam a me;af~sica trad~cional. É verdade que
dade filosófica, em espec1 a que JUSh_1ca um sistema filo so, i-
6 essas distinções entre aparencia e realidade resultam de sua
co, não pode ser nem uma demonstraçao nem uma verifica - concepção da linguagem e do conhecimento, mas, uma vez que
·~ çao,
mas é de natureza d11erente.
suas investigações têm por objeto o conhecimento, e insistem
Isso que sua análise mostrou de forma tão convince t sobre a estrutura de uma linguagem cognitiva, é normal também
tratarei de repeti-lo à minha maneira. n e,
que suas distinções pertençam ao mesmo domínio.
Ele nos disse, em outros termos , que o filósofo é aquele Há, portanto, na atividade do filósofo , não somente o cui-
que consegue mostrar o que aquele que não é filósofo não vê dado de mostrar algo que outros não viram, mas também de
ou não repara. O filósofo nos mostra o que certo modo de co- mostrar a superioridade, a realidade, do que é assim mostrado.
nhecimento não consegue fazer-nos ver, explica aquilo que 0 Ora, e penso que os senhores se dão conta disso, não é por pro-
uso de certos conceitos pode implicar e do que a pessoa que cessos de demonstração, no sentido técnico da lógica formal,
emprega esses conceitos não está consciente, enfim, toma evi- nem por processos de verificação, tais como são praticados nas
dentes os pressupostos de um empreendimento, pressupostos ciências empíricas, que se logrará distinguir a aparência da rea-
que escapam a quem se aplica a ele: a prática deste é tradicio- lidade. Para passar da aparência à realidade, são necessárias
nal, puramente técnica, ele não vê o fundamento deste a supe- outras técnicas de pensamento.
restrutura. Como lograremos distinguir a realidade da aparência,
A função do filósofo é, pois, sempre tomar evidente o que mostrar que a distinção que acabamos de estabelecer pode ser
é invisível, por meio dos instrumentos de conhecimento habi- razoável ou racionalmente defendida? Quais as provas de que
tuais, o que é implícito no uso conceitua! ou pressuposto pela dispomos para defender essa proposição? Como mostrar que a
atividade do não-filósofo. Ele nos conduz daquilo que é imedia- distinção que propomos pode ser justificada? O filósofo é
tamente dado ao que só aparece depois da reflexão filosófica. aquele que reestrutura uma realidade primitivamente dada,
Pessoalmente, acrescentaria inclusive que o filósofo parte buscando mostrar que essa reestruração não é arbitrária, mas
daquilo que é aparente, ou seja, daquilo que nos parece ser tem razões em seu favor. Sua função não é demonstrar a verda-
imediatamente dado, para nos mostrar o real que está por baixo de de um enunciado, mas estabelecer a legitimidade de uma
da aparência. Não se trata, de fato , simplesmente de opor 0 reestruração, e isto mediante técnicas de justificação.
invisível, o implícito e o pressuposto ao que é visível e imedia- Cumpre observar, de passagem, que o irracionalismo em
tamente dado, mas também de mostrar sua superioridade sobre filosofia se explica, essencialmente, pelo desconhecimento da
0 aparente qualificando-o de real. O interesse, a importância da racionalidade do processo de justificação. Com efeito, o indis-
atividade filosófica, resulta justamente da primazia do r~al pensável recurso à justificação não pode deixar de condenar,
sobre a aparência, sendo esta apenas erro ou aspecto superficial aos olhos daqueles que limitam as provas racionais à demons-
das coisas. tração e à verificação, qualquer construção filosófica à irracio-
• 274 ÉTICA E DIREJTo
A ÉTICA 275
'd d Daí resulta que um defensor impenitente da racio recisando-a, às vezes mesmo, aliás, modificando seu
nah a e. . . . b .A • na- vezes P .
. de da filosofia tem de. insistir so re a ex1stencia
. . deJ·usti'fiica- E entre o fato de precisar e o de modificar há
hda ensa mento · ' . . '
- váli'das , defensáveis, numa palavra, de Justificações rac·10-
çoes p t'zes imperceptíveis, de sorte que, com mmta freqüência, é
ma 1 . d d' _
nais. . ossível dizer, dep01s e uma 1scussao, se o pensamento do
imP, ofo foi precisa · do ou modifiicado. Os dois . sao- 1·1gados,
A esse respeito, só podemos deplorar
. ºfi
que se tenha des _
cu fil1 os
d
rado tanto do estudo da noção e JUStl icação, em especial do · d d' - til 'ti
do esse, aliás, o interesse a 1scussao 1 oso 1ca. Em que
papel que ele dese~pe~a em filosofia, a~ ~asso que a sen, que tudo isso esclarece o rac10cm10
. , • til1 oso'tiico.? Ve-se que
A

sera
demonstração e a venficaçao foram, desde Ar~stoteles, objeto bom filósofo é aquele que, apresentando uma tese, procura da
de tantas análises aprofundadas. Em que consiste a racionali- ~elhor maneira possível responder de antemão às ?bjeções, de
dade de uma justificação? Eis aí questões essenciais para odo que ao lê-la se encontre, de um modo antecipado, ares-
compreensão da especificidade do raciocínio filosófico, qu: mosta às críticas que poderiam acudir à mente do leitor. O filó-
mal foram afloradas. ~ofo não se contenta em afirmar, mas justifica seus posiciona-
Tomemos um exemplo em nossos próprio debates. o Sr. mentos respondendo às críticas e às objeções.
Vuillemin veio defender perante nós uma tese filosófica: A me- Essa forma de raciocinar não é uma demonstração nem
dição é uma linguagem. Algum de nós se oporia ao Sr. Vuille- uma verificação, mas uma justificação, uma refutação das
min dizendo-lhe: "Está errado, a medição não é uma lingua- objeções. Muito amiúde, aliás, essa refutação consistirá numa
gem?" Não o creio. Se assim agisse, não se comportaria como crítica do ponto de vista, das preliminares, nas quais se funda-
filósofo. Observe-se que muito poucos filósofos dariam razão menta a objeção. Pois a objeção formulada é sempre apresenta-
ao Sr. Vuillemin, confirmando que, efetivamente, a medição é da em nome de um fato que parece ter sido desprezado, em
uma linguagem. A reação normal será, antes , perguntar-se em nome de uma regra que foi violada, em nome de um valor que
que sentido se pode dizer que a medição é uma linguagem. Em foi ignorado. Que irá responder o filósofo? Tal fato, interpreto-o
que sentido a medição poderá ser separada de outras técnicas desse modo, e então minha tese não se opõe a ele. Tal regra não
científicas, das teorias científicas? Assim é que o Sr. Mercier é obrigatória em todos os casos; seu respeito só se impõe em
nos apresentou, de modo brilhante, a crítica da tese, chegando tais circunstâncias que estavam ausentes. Tal valor não é, de
à conclusão de que não é a medição, mas a física toda que é fato , senão um meio, é subordinado a certo outro valor que, por
uma linguagem, porquanto não há meios de nela separar os sua vez, não foi achincalhado, etc. Muitas vezes se refutará a
diversos elementos uns dos outros, logo, a medição de todas crítica, reinterpretando, reformulando as teses em que está fim-
as teorias que a tomam possível e permitem interpretá-la. A damentada a crítica. A isso o crítico responderá, por sua vez,
essa objeção, nosso colega Paulus veio acrescentar outra críti- ou deixando mais compreensível seu próprio pensamento, ou
ca. Que é a linguagem? Há tantas formas de linguagem, tantos combatendo os pressupostos de seu interlocutor. Esse vaivém é
usos da linguagem. Os senhores decerto entendem por lingua- que caracteriza o diálogo filosófico, na medida em que não é
gem uma concepção muito particular. Precisem a concepção um diálogo de surdos.
da linguagem que lhes permite dizer que a medição é uma lin- Bem se vê que essa dialética, uma vez que a podemos cha-
guagem. mar por esse termo, segundo Aristóteles, difere do raciocínio
É assim, na realidade, que se desenrola a discussão filosó- demonstrativo. É um diálogo, mas um diálogo sem fim. Pois
fica. ~ que responderá o Sr. Vuillemin às objeções que se lhe alguma outra pessoa, dentro de cinco anos, dentro de um sécu-
poderao apresentar? Responderá justificando sua posição, às lo talvez, formulará novas objeções, nas quais o filósofo por

L
T

276 ÉTICA E DIRE!To A ÉTICA 277


certo jamais refletiu , que são suscitadas pela evolução do , ode realizar-se dentro de um sistema fechado, que não leva
,. d . . s cos- so p ,. 'dA . .
tumes, das teorias po l1t1cas ou as teonas científicas e à . conta as cnt1cas, que repousa em ev1 encias mabaláveis
, e - s quais em , . d , ,
os discípulos do filI oso10 procurarao responder por su e se desenvolve numa espec1e e monologo, seja qual for,
. a vez qu • , , •
A •

interpretando o pensamento do mestre, precisando-o ou d ' . ' s, seu interesse mtnnseco,


a11a . e uma c1encia fechada , uma
tando-o. É assim que toda grande filosofia é perpetu ª ªP- colástica. Sabemos hoJe pelo que peca esse modo de reduzir
. . amente
revista, atacada e defendida, reinterpretada e atualizad esfilosofia a uma ciência demonstrativa.
raciocínio filosófico é assim alimentado, a um só tempo a, 0 ª A filosofia racional de hoje já não pode pretender-se uma
crítica e por sua re f - - d e ' pela
. utaçao,. que sao as uas 1onnas do J·u,120 de •Ancia demonstrativa, mas será
c1e . racional. pela
. pertinência e
justificação. Justifico a mmha te~e, a um só tempo, criticando ela amplitude de seu procedimento de Justificação. Isto me
as teses opostas e os pontos de vista que lhes dão, e refut d permite dizer ao Sr. Granger que não convém fazer a justifica-
,.
as cnt1cas d
e meus adversanos.
, . ano
pão passar por uma demonstração. A justificação é indispensá-
A justificação filosófica se apresenta, assim, quer com ~el quando a demonstração é impossível, mas não se deve que-
refutação prévia das eventuais críticas, num sistema que nã~ : rer identificá-la com o que ela não é, não pode ser e não preten-
pura deduçã~, m_as ~~ qual uma grande parte é polêmica; quer, de ser; por isso ela está ao abrigo da crítica de que ela pretende
sendo postenor a cntica, o pensamento filosófico se desenvol- ser O que não é. Sua estrutura é diferente, o tipo de seu discurso
ve e amadurece lentamente, após uma longa experiência de e de sua racionalidade é diferente.
todas as objeções suscitadas por uma intuição que é apresenta- Se as palestras das quais participamos durante estes pou-
da sob forma de tese. E esse aspecto polêmico da filosofia, que cos dias foram tão interessantes, tão animadas e tão enriquece-
a opõe ao aspecto puramente dedutivo de um sistema matemá- doras, e para as quais os senhores contribuíram tanto com seus
tico, que supõe um conhecimento das perspectivas de onde relatórios quanto com suas críticas, se essas palestras me pare-
vêm as objeções, as críticas, e que explica por que os matemá- cem ter sido não só vivas, mas particularmente fecundas, é jus-
ticos alcançam, muito mais depressa do que os filósofos um tamente na medida em que provamos que a nossa tarefa não
pensamento maduro e original. É por essa razão que o apr~ndi- está acabada e que duas áreas, pelo menos, deveriam ser objeto
zado da filosofia é tão mais árduo do que o aprendizado da ma- de estudos posteriores.
temática, pois exige uma familiaridade com todo o horizonte O primeiro desses problemas é o do papel dos pressupostos
filosófico, de onde podem vir as objeções e as críticas. filosóficos nas ciências, na metodologia das ciências e na elabo-
A filosofia se apresenta, assim, efetivamente, como um ração das teorias científicas; o segundo, que não se deve resolver
empreendimento de justificação. O filósofo está constantemen- a priori, mas ao qual convém consagrar estudos empíricos e ana-
te perante juízes. Deve constantemente estar aberto às obje- líticos, consiste num estudo do processo de justificação e, em
ções, estar pronto para justificar-se ou corrigir-se, nunca é ab- especial, em seu papel em filosofia. Se deixássemos estas pales-
solvido, porque, em filosofia, não há juiz supremo, que lhe tras com a idéia de que há aí dois temas fecundos, que merecem
concederá a salvação definitiva, que lhe garantirá que a causa pesquisas posteriores, acho que nossas discussões teriam cum-
está definitivamente ganha, que sua filosofia é a boa, é a derra- prido uma função relevante para o progresso da filosofia.
deira, que já não haverá outra.
Talvez esteja aí a grandeza da filosofia; o interesse que
apr~senta é que o tipo de racionalidade da justificação filosófi-
ca e tal que ela nunca está acabada. Uma racionalidade acabada

L
e ---- 1

ÉTICA E DIRE1ro A ÉTICA 279


278
§ 14. O raciocínio prático• exige a justificação dest~, o raciocínio que concernia à decisão
efetiva se desdobra, assim, num raciocínio teórico, que deve
raciocínio teórico consiste numa inferênci ser completado por um raciocínio prático concernente à legiti-
Enquanto um . . a
. Iusão a partir de prenussas, o raciocínio prá- midade de uma ou de outra premissa.
ue tLTa uma cone .- Fl .
~ , . stifica uma dec1sao. a aremos de raciocínio Assim é que, se a solução de um problema de decisão
ttco e o que JU d d
. d ez que a decisão depen e e quem a toma sem pode ser obti~~ através d~ ~m mer? cál~ulo, a partir de uma
Práuco to a v d · '
teoria matematlca da dec1sao (Braithwaite [15]), observadas
que eIa deco rra de premissas consoantes . a regras _ e mferência
.
mcontes tes , 1·ndependentemente da mtervençao de qualquer certas condições ótimas (estratégia minimax ou maximin)
vontade humana. . , . , . ,. . (Luce e Suppes [16], Churchman [17], Apostei [18]), não é
A distinção entre rac10c1ruo teonco e pratico sena nítida esse cálculo que constitui um raciocínio prático, mas a argu-
se se houvesse definido o raciocínio teórico como aquele que, mentação que justifica a escolha de determinada estratégia, à
partindo de premissas verd.adeiras'. chega.a u~a ~onclusão ver- qual se decide ater-se. O cálculo precisa as conseqüências que
dadeira ou provável; mas isso sena restnngu alem da conta 0 decorrem dessa estratégia num caso particular: nisto nada tem
campo do raciocínio teórico, pois, de um lado, dele se excluiria de prático, não mais do que a adição efetuada por uma caixa
qualquer raciocínio hipotético-dedutivo, em que a verdade das registradora que indica o montante a ser pago pela compra de
premissas não é afinnada, assim como todo raciocínio formal- vários artigos.
mente correto mas que tenha uma premissa falsa ou que se Se procurarmos um exemplo patente de raciocínio prático,
apresente sob a fonna de uma norma. Ora, a meu ver, a lógica nós o encontraremos na sentença ou no aresto de um tribunal,
deôntica é tão teórica quanto a lógica clássica. que indica, além do decisório (o dispositivo), os motivos que
Mas, se não se impusesse condição restritiva atinente à justificam o dispositivo adotado pelo juiz, os considerandos,
natureza das premissas do raciocínio teórico, todo raciocínio que indicam as razões pelas quais o julgado não é ilegal nem
prático poderia ser transformado (Toulmin [1], Hare [2], arbitrário, devendo também descartar as objeções apresentadas
Nielsen [3], Castaõeda [4], Pike [5], Kerner [6] , Watson [7]) contra esta ou aquela premissa do raciocínio (Stone [19]).
num raciocínio teórico, formalmente correto, pela introdução Outro exemplo de raciocínio prático é fornecido por um proje-
de uma premissa a partir da qual, em conjunção com as outras, to de lei precedido de um preâmbulo, pois este não fornece as
a proposição, objeto da decisão no raciocínio prático, poderia premissas a partir das quais ele teria sido inferido, mas sim as
ser d~uzida corno conclusão do raciocínio teórico. razões que militam em favor de sua adoção.
E verdade que, nesse caso, a discussão se deslocaria da Vê-se que o raciocínio prático pode redundar, quer numa
concl~são para a premissa contestada, lançar-se-ia a acusação decisão referente a uma única situação concreta (o caso do
de_ petição. de pnnc1p10,
· , · afiIrmar-se-ia · que a premissa em ques- juiz), quer numa decisão de princípio, que regulamenta grande
tao d~vena ser considerada o resultado de uma decisão que número de situações (caso do legislador). Aliás, é possível que,
devena, por sua vez, ser justificada (Searle [8] Flew [9] Black graças à técnica do precedente, que impõe ou sugere tratar da
[I0],L.J.Cohen[II])
. · Ao trans1ormar,
e . '
pela mtrodução '
de pre- mesma forma situações essencialmente semelhantes (Perel-
missas suplementares · , . man [20]) , a motivação de uma decisão (a ratio decidendi) for-
. , um rac1oc1mo prático em raciocínio teó-
nco, pode-se tentar d. f
norma (Naess [l is ~çar, em proposiçã? verdadeira ou em neça uma regra em que os outros juízes, no âmbito do mesmo
dec' - . .2.' 1~], ÜSlerberg [14), Bra1thwaite [15]) uma sistema jurídico (Kelsen [21]) deverão ou poderão irlspirar-se
isao CUJa leg1t1m1dad - e . . '
e nao 101 Justificada. Vê-se que, se se em suas decisões referentes a situações similares.
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA 281
280
s considerações que o raciocínio prático examiná-lo do ponto de vista de sua conformidade a uma dad
Resulta des Sa ordem, que ele contribui, aliás, para elaborar e para precisar. ª
t Rescher [23], Ross [24], Anscombe [25), Ja.rvis
221 Quando uma Corte de Cassação decide cassar uma sen-
(foo M[ th' ili [27] Gauthier [28), Kenny [29] , Geach [30]
[26] o ers , . ,
' . h [3 l]) apresenta uma estmtura diferente daquela de tença por violação da lei ou rejeitar um recurso não fundamen-
Von Wng t . l d d tado, ela só pode adotar a terceira atitude, pois sua função é
. , • teórico que conclui pe a ver a e ou pela proba-
um rac1oc1mo
. 'dade de uma conclusão ou, ao menos, pelo. fato de esta po- confrontar a sentença com as regras de processo ou de mérito
b11I .
corretamente inferida a partir das premissas: admitir tal que se supõe ter ela violado. Um sociólogo poderia adotar a
der ser d . _ al
conclusão não significa tomar uma :c1sao qu quer, mas sim segunda atitude (Diesing [42]), analisando a sentença num
reconhecer a verdade de uma conclusao ou , pelo menos, a cor- contexto que não seria puramente legal. A primeira atitude, em
reção de uma inferência, ou seja, sua confo~idade às regras. contrapartida, exclui todo ponto de vista normativo, pois, enca-
o fato de a conclusão decorrer das premissas, de um modo rando o raciocínio prático apenas como epifenômeno, só se
por assim dizer impessoal, permite elaborar, na área do raciocí- interessa pela infra-estrutura que explica a decisão como um
nio teórico, uma lógica da demonstração puramente formal , e acontecimento natural.
mesmo utilizar, nessa matéria, máquinas de calcular. O raciocí- O raciocínio prático pressupõe a possibilidade de escolha,
nio prático, em contrapartida, por recorrer a técnicas da argu- de decisões , mas também que estas não são inteiramente arbi-
mentação (Perelman e Olbrechts-Tyteca [32]), implica um trárias , que todas as escolhas e todas as decisões não se equiva-
poder de decisão (F. Cohen [33], Kattsoff [34]), a liberdade de lem. Remete ele a uma dialética da ordem e da liberdade,
quem julga. Sua meta é mostrar, conforme o caso, que a deci- devendo igualmente a decisão livre apresentar-se como confor-
são não é arbitrária, ilegal, imoral ou inoportuna, mas é motiva- me a uma ordem ou a valores que permitem considerá-la opor-
da pelas razões indicadas. tuna, legal, razoável (Ruytinx [43], Gochet [44]). Embora o
Em face do raciocínio prático, tal como acabo de defini- raciocínio prático exclua a evidência ou a necessidade lógica da
lo. são possíveis três atitudes. decisão, ele pressupõe que temos a possibilidade de criticá-la e
. A primeira seria a de um determinista que, negando a de justificá-la com base em valores e em normas reconhecidos.
liberdade de decisão, veria nesse raciocínio apenas um simula- Pode-se apreciar a decisão consoante um bem que se bus-
cro, e no qual o que parece uma decisão não passa de um fenô- ca ou um mal que se evita: julgando-a quanto à sua eficácia,
meno ~aturai explicável pela intervenção de fatores conscien- supõe-se que a finalidade perseguida não está em questão. É
~es 0 ~ 1:°conscientes, de causas psicológicas, sociológicas ou nessa perspectiva que se coloca Aristóteles, quando afirma na
ideologicas, que tomam a decisão tomada inevitável ou extre- Ética a Nicômaco que a deliberação (Kolnai [45]) e a decisão
mamente provável (Perrin [35]). não dizem respeito ao fim, mas aos meios (1112b).
A segunda, que reconhece a existência de decisões funda- Mas também podemos apreciar a decisão confrontando-a
mentadas em razõe ,
_ s, e acompanhada de uma teoria sobre as com uma regra à qual deveria ter-se conformado e que poderia
razoes que apenas elas
todas ' , merecem ser levadas a sério sendo ter violado. Daí resulta que a eficácia e mesmo a oportunidade
as outras razões ale da . . ' _
aparente ga s apenas rac10nahzações, razoes não são os únicos elementos que se devem levar em conta numa
s, nem sequer estand 0 ·
mencionadas . º• mais das vezes, as razões reais deliberação, podendo esta também ter por objeto a regularida-
. no texto (Eichhom [36], Zitta [37] Feuer [38]). de, ou seja, a sua conformidade a uma regra moral ou jurídica.
A tercerra atitude c . ,
tal como é form d onsiSle em tomar o raciocínio prático Poderá o raciocínio prático ter por objeto os fins persegui-
I 0
u ª (Nielsen [39, 40], Perelman [41]), e em dos e as próprias regras (Schilpp [46])? Certamente, contanto
-
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA
282 283
. J'ficado para essa discussão e se disponha d assim como a lógica formal deve seu renascimento à análise d0
se seJa qua i e
q~e, . as (Singer [47) ou valores (Morris [48], Mon- raciocínio matemático (Perelman [62]) .
cntenos - norm · fi
_ em comparação com os quais ms e regras pode- É verdade que, em questão de decisão, à busca da verdade
tefiore [49 )) . d A , •
.
nam ser ap
reci·ados ou remterpreta os. propna natureza do
. característica do raciocínio teórico, corresponde a submissão ~
. , - pra'tico necessita, de fato , do enquadramento da uma autoridade perfeita, a autoridade divina. Nesse caso, a
raciocmi 0
. - num contexto (Baier [50)) de . _ valores .e de normas em melhor justificação de uma decisão será sua conformidade com
decisao
comparação com os quais uma decisao podena ser criticada e os mandamentos da divindade que constituem a ordem perfeita
justificada, censur~da ou aprovada. à qual o indivíduo pio e justo tem de submeter-se. O indivíduo
Passando, assun, de um contexto para um contexto mais não possui então senão uma única possibilidade de ação razoá-
geral ou mais fundament~l (Griffiths [51], Nielsen [52], vel, sendo qualquer outra escolha pecado e licença.
Wadia [53)), não se pode deixar de chegar, no final das contas, O raciocínio prático adquire toda a sua importância filosó-
a um contexto filosófico (Crawshay-Williams [54] , Johnstone fica na ausência de uma verdade ou de uma autoridade perfeita
[55), Passmore [56], Bednarowski [57], Tucker [58]). Se este que forneça o critério indiscutível do valor de nossas decisões.
for criticado por sua vez, ele o será quer em nome de outra É em face de valores e de normas múltiplas, de autoridades
filosofia, quer em nome de noções, de valores , de opiniões imperfeitas, que se manifesta o interesse do raciocínio prático.
que transcendem as filosofias particulares. É nesta última si~ É então, num pluralismo de valores, que assume toda a sua im-
tuação que se faz referência aos "lugares-comuns" elaborados portância a dialética, entendida em seu sentido aristotélico,
pela retórica clássica (Perelman e Olbrechts-Tyteca [32] , A como técnica da discussão, como capacidade de objetar e de
teoria da argumentação [59], Perelman [60] , Natanson e criticar, de refutar e de justificar, no interior de um sistema
Johnstone [61)). aberto, inacabado, suscetível de precisar-se e de completar-se
Quando se trata de chegar a uma decisão, obrigatória para no próprio decorrer da discussão.
um grupo de homens, esta não pode ser apresentada como con- Note-se que o interesse de uma decisão é vinculado à ação
forme a uma verdade intemporal e impessoal, pois , nesse caso, que lhe dá seguimento; ora, como o tempo da ação não é ilimi-
nã~. haveria possibilidade de escolha nem raciocínio prático. tado, o raciocínio prático deve resultar numa decisão num
Vanas eventualidades deverão poder apresentar-se para que se determinado lapso de tempo. Cumpre que, numa dada situa-
possa escolher. Quando, na ausência de uma verdade uma de- ção, uma decisão tomada já não possa ser contestada: a urgên-
cisão única se mostra, não obstante indispensável so:nos mes- cia da ação impõe a técnica da última instância, a autoridade da
moAob~gados a recorrer a uma autoridade, cujo ca~po de com- coisa julgada. Mas isto não significa que o debate permanecerá
petencia pode ser delimitado por técnicas de procedimento. fechado quando se tratar de debater questões análogas às que
Com
. . ,efeito , quand o a dec1sao · - nao
- concerne unicamente
. ao foram julgadas, conquanto a importância do precedente não
md1v1duo e ao seu d d _ , . , deva ser subestimada.
,. po er e açao propno mas e de natureza
po11t1ca ou jud· · , · ' , Assim é que, no raciocínio prático, o fator temporal
.fi iciana, apenas uma autoridade competente e
qualI cada para to , l E - , (Perelman e Olbrechts-Tyteca [63]) não pode ser desprez~do:
. ma- a. ntao e que podem surgir os proble-
mas de proced1ment , · manifesta-se ele pelas categorias de urgência e de oportumd~-
. _ .
Uma trad1çao Jurídº o, prev1os ao exame do mérito da questão.
esses.probl . , ica secular ocupou-se longamente de todos de , sobre um fundo de inércia, resultante do fato de que asco~-
emas e por essa ra - , . . , . sas e as situações , assim como as normas que as regem, conti-
prático pode . ' . zao que a analise do rac10c1mo
na exammar ut1º lme nte o rac1oc1mo
. , . d os Juristas,
. . nuam a ser o que são ou evoluem espontaneamente numa de-

1
284 ÉTICA E D!RE!To A ÉTICA
285 1
terminada direção, a menos que haja uma intervenção e _ H N [4] " On a Proposed Revolution in Logic" (Toul-
o raciocínio. pratico
,. .
. se msere
. numa. ordem
xterna
_ que compona valo-·
CAST·~sEDUA;es ·0 f ·Argument) , Philosophy of Science 27 , 279-292,
mm
res e normas ace11_os , ass1i:n ~orno s1tuafçoes de fato que, por sua
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àqueles que qmserem mo d.fi
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Revzew ' [ll] " Are Moral Arguments Always Liable to Break-
Estas poucas reflexões bastam para indicar a insuficiênc • CoHEN , L. J ., 59
da lógica do raciocínio teórico pa~a a análise_ do raciocínio pr~~ ? " Mind 68 530-532, 19 · .
down. ' ' R [54] Methods and Criteria of Reasomng,
tico e dos problemas por ele suscitados. Felizmente, para essa CRAWSHAY-WILLIAMS, .,
área tão diferente da lógica e da teoria do conhecimento tradi- Londreps,19[1~] Reason in Society : Five Types of Decisions and
cionais, existe uma disciplina, constituída há séculos, cuja aná- DIESING, ., 11) 1962
· l Conditions , Urbana (I · , · .. . .
lise permitiria tomar evidentes as características do raciocínio SoCla W [36] Wie ist Ethik ais Wissenschaft moglzch?, Berlim,
EICHH0RN , .,
prático, a saber: o direito (Perelman [62]), desprezado pelos fi- 1964A
lósofos, tanto empiristas como racionalistas , que não quiseram · [ ] "What is Alienation? The Career of a Concept", New
FEUER, ·• 33
reconhecer senão um modelo de raciocínio digno do interesse . · 1 (3) 116-134, 1962. .
Po l itzcs , . . ' O ht' f m 'Is"' Analys1s 25, 25-
FLEW, A ., [ 9] "On not Denvmg ug ro '
do lógico, o raciocínio teórico ou científico. Mas , se reconhe-
cermos a especificidade do raciocínio prático, admitiremos sem 32, ~~64(221 " Moral Argument", Mind 61, 502-513 , 1958.
dificuldade a insuficiência dos modelos extraídos do raciocínio ~~~~HIE; D. , [281 Practical Reasoning. The Structur_e and Fot~da-
teórico. Situaremos então o raciocínio prático na perspectiva tions oi Prudential and Moral Arguments and their Exemp l;,ca-
que lhe convém, a de um pensamento intimamente vinculado à tion in Discourse , Oxford, 1963. ,, . 26
ação, que visa à coexistência pacífica de uma pluralidade de T [ 30] " Dr. Kenny on Pratical Inference ' Analyszs '
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288
ÉTICA ED
IREJio
§ 15. Juízo moral e princípios morais 1 A ÉTICA 289

acabamos de enunciar, e outros análogos, parecem à primeira


Se partimos da hipótese de que Deus , vista não-equivalentes e talvez sejam até incompatíveis. Exis-
O
cuja vontade é o fundamento de toda normae Ser supremo tirá um meio de escolher entre eles, mostrando oor exemplo,
- · d. . . moral a ,
mora1nao existe como 1sc1plma independent . d ' 611 osofia que tal princípio leva a conseqüências inaceitáveis, que permi-
ramente da teologia. Mas, se nos empenha e. epende intej. tem eliminá-lo como regra suprema?
, . . d d mos em el b
uma etica m epen ente, surge imediatamente a orar Mas, então, não se deveria aderir à tese que L. Lévy-Bruhl
f d , . d o problern
seu un amento, que e am a mais controverfd a de expôs num livro célebre 2, a saber: a ética não deve ser concebi-
O
niões diametralmente opostas se manifestara i pborque opj. da como um sistema dedutivo, mas à maneira de uma ciência
m so re 0
de saber o que deve ser fundamentado e O qu d Ponto indutiva, cujas teorias gerais seriam confirmadas ou infirmadas
. , e eve se ·
fundamento . Cumpnra fundamentar O juízo m rvrr de ao se confrontar com a experiência as conseqüências que dela
. . . , ora1 nos prin , se tiram? Se assim fosse, o juízo moral, tal como se manifesta
pios morais ou cumpnra, ao contrário fundament . ci-
' ar os prm , • em cada caso particular, é que seria mais seguro do que os prin-
no juízo moral? c1p10s
A concepção clássica, perante todo juízo moral f cípios morais, ele é que forneceria a prova da inadequação do
" A? " , orrnula a princípio, e não o inverso. Nesta última perspectiva, o juízo
pergunta por que. e se empenha em respondê-la re
. portando-a moral é o que há de mais seguro e não necessita de nenhum
a uma regra que sena, por sua vez, deduzida de um · , .
· d · 1 , Prmc1p10 fundamento . É isso, aliás, que escreve Lévy-Bruhl: "A moral
am a mais gera , ate que se chegue a um princíp1·0 c ·d
ons1 era- não necessita ser mais fundamentada do que a natureza."3 O
do, por uma ou outra razão, inconteste, o qual fornece ·
. ~~ que constatamos, repete ele, depois de Paul Janet, é que "as
sim, um _fundamento sati~fatório para a moral. Todo juízo morais teóricas divergem, ao passo que as morais práticas
moral sena, nessa perspectiva, demonstrável como um teorema coincidem... Não se pode negar que, numa mesma época e
de geometria deduzido a partir de axiomas bem seguros. Foi numa mesma civ_ilização, as diferenças morais redundam, em
nessa perspectiva que Locke, Spinoza ou Leibniz se propuse- geral, em preceitos tão semelhantes entre si quanto pouco o são
ram, de acordo com o desejo de Descartes, elaborar uma moral as teorias"4. E ele mostra que não é o primeiro dessa opinião:
racional. "Já Schopenhauer havia chamado a atenção sobre esse acordo
Duas objeções, de direito e de fato , foram opostas a esse inevitável: 'É difícil ', escrevia ele, fundamentar a moral: é fácil
procedimento. A primeira é a de que o princípio geral de que é pregá-la." Pois não há duas maneiras de fazê-lo . Suas regras
pendente todo o sistema terá necessariamente a forma de um gerais "Suum cuique tribue. Neminem laede . /mo omnes, quan-
juízo deôntico, afirmativo ou negativo, expressando uma obri- tum potes , }uva" , nada têm de misterioso. São garantidas por
gação de fazer ou de abster-se. Ora, de onde virá o caráter coer- um assentimento unânime. Schopenhauer não se detém um
civo de semelhantes princípios gerais, dos quais eis alguns instante na idéia de que morais práticas diferentes possam opor-
exemplos: "Não se deve causar sofrimento sem necessidade", se umas às outras. Parece-lhe evidente que as mesmas máxi-
mas se encontram em toda parte. John Stuart Mill, por sua vez,
"Deve-se sempre procurar realizar o que é mais útil ao maior
observa que a regra suprema de seu utilitarismo se confunde
número", "Deve-se agir de modo que a máxima de nos~a aç~o
com o preceito do Evangelho "Ama a teu próximo como a ti
sempre possa ser, ao mesmo tempo, a regra de uma leg1sl~ç~o mesmo"5 •
universal"? Nem a experiência sensível, nem uma intm~a_o Lévy-Bruhl fortalece mais sua tese mostrando que aqueles
análoga àquela que nos permite apreender relações ~a~ematl- que praticam a filosofia moral atacam seus adversários mos-
cas não os poderia garantir. Por outro lado, os princ1pios que
290 291
ÉTICA E D!R.E A ÉTICA
!To
trando quais conseqüências moralmente inace ·tá, . dida ao juiz, maior também a flexibilidade da norma,
nam. .
tirar d a d outnna. d e les, enquanto estes se ld eveis se pode- conce . A • • - •

- e, nad a d"isso e que suas teses -e1endem mos- adaptave l , pelo J·uiz , às circunstancias e s1tuaçoes menos
, . _prev1-
tran d o que nao , · E' quando dispõe de um grande poder de aprec1açao que
sao compat'1ve1s . s1ve1s. . os termos d a l e1· d e mod o
" • A •
com a consc1encia mora 1comum " 6 • • · t m condições de mterpretar
o JUIZ e . .
E , efetivamente, é e sse o andamento mais f .. que as conseqüências legais que deles tira concordem com seu
, • . . requente t
do pelas controversias doutnnais em ética É par orna-
. , · a escapar , , senso de eqüidade. . , . _
tica, que mostra que as vezes o ato mais útil ao . , ª cn- Ora, podem-se imaginar pnnc1p10s de mo~al qu~ nao con-
- , l .. . maior numero
nao e um ato mora , que o ut1htansmo clássico se tr am termos vagos e imprecisos, que requeiram mterpreta-
. d . , . ansformou te nh . _ ?
ap 11can o recentemente o cnteno de utilidade , ' ões amiúde controvertidas, em sua ap11caçao.
. . . as regras rn
ra1s, realizando, assim , uma síntese com O kantis D o- ç Quando se afirma que o princípio supremo da moral é não
. , l
d ira e · mo. e fato
e e , e1et1vamente, para agir moralmente dev 0 ' infligir sofrimento sem necessidade - mesmo que se logre pre-
. . , . , pautar-me
pe 1o 1mperat1vo categonco de Kant e agir por res ·t cisar quando há sofrimento e quais são os seres que não se deve
. pe1 o a uma
regra que eu quena ver adotada numa legislaça-0 universal · fazer sofrer - seria preciso uma biblioteca de comentários, em
Mas, quando nos perguntamos quais as características particu~ oeral controversos, para decidir quando há ou não há necessi-
lares . dessa , regra, a resposta será: é a regra que e' ma 1s · ut, il ao dade que justifique os sofrimentos. Poder-se-ão infligir ou tole-
ma10r numero. rar sofrimentos para defender o país ou a ordem social, para se
, . Resultaria, da crític~ de Lévy-Bruhl , que os diversos prin- alimentar de carne ou de peixe, para prevenir o crime ou por
c1p1os de moral , na medida em que escapam à censura de ina- respeito à vida? Cumprirá permitir a eutanásia e vedar a vivis-
dequação, na medida em que suas conseqüê ncias se amoldam à secção? Aplicando o mesmo princípio de moral, cada qual o
"consciência moral comum ", não dife rem e ntre si , sejam quais interpretará de um modo conforme ao seu juízo.
forem as suas aparências. Eles são, segundo Lévy-Bruhl, ape- Dizer que , para agir moralmente , devemos pautar-nos pe-
nas n:eras racionalizações sem alcance 7 . las regras mais úteis ao maior número é convidar-nos a resolver
. E inegável que, se devêssemos ver nos princípios de moral outros problemas. Quais são os seres que se devem levar em
axiomas que fundamentam sistemas tão diferentes como as conta no cálculo da utilidade? Serão somente os homens ou
d_iversas geometrias , as considerações de Lévy-Bruhl teriam também certos animais? Serão os que vivem atualmente, em
sido da maior pertinência. Mas será que teremos de nos voltar certo território, ou também os que nascerão amanhã, ou dentro
para O modelo matemático para nos esclarecer sobre o papel e de um século? Quais são os critérios da utilidade, e em que
0 alcance desses princípios? Parece-m e que só se pode com- medida se deve levar em conta cada um dos elementos que
pr~en_d~r-lhes o significado e o interesse comparando-os com entram em linha de conta? Quem não vê que, ao aplicar essa
pnncip1os fundamentais do direito, taJ como o art. 1.382 do regra, cada qual se pautará pelos hábitos e pelas convicções de
Código Civil atinente à responsabilidade quase delituosa ("To- seu meio?
do fato qualquer do homem, que cause a outrem um dano, obri- Assim também, ao aplicar o imperativo categórico de Kant,
ga este, por cuja culpa ele aconteceu a repará-lo"). cada qual se esforçará, salvo nos casos excepcionais em que
o s Junstas
. . bem sabem que existe ' uma relação mversa
. e semelhante empreitada se mostra impossível, em propor como
comple~entar entre a clareza a precisão das normas e o poder re~as universalizáveis aquelas que ele respeita em seu próprio
de apreciação d os JUizes · , que as devem aplicar. Quanto menos meio. De sorte que o imperativo categórico e isso é geralmente
claros e precis os os termos de uma norma, maior a hber · dade ad · · , , '
ffilhdo , e compatível com variadas regras de moral prática.

292 ÉTICA E DIREITO 293
A ÉTICA

É inevitável que • os. princípios


. de moral, preconizad os sentido da regra de justiça9 que, expressa _nas formulações que
elos mais diversos teoncos, seJam assaz vagos para poder s ·sam diferentemente, conduz tanto a regra de ouro (Ama
P . d er apre Cl N- f • .
interpretados de fo~as _vana _as por aq~eles que se esforçam
a teu Próximo como a ti mesmo. ao aças .a teu proxrmo . o que
•.
em aplicá-los. Mas s1grufica isso que nao tenham interesse e - gostarias que te fizessem.) quanto ao rmperat1vo categon-
que os juízos morais que enunciamos em cada caso particular naoQuando as situações são essencialmente semelhantes? Os
co. . d 1·
sejam a única coisa que conta? Mesmo nas ciências naturais princípios de moral, e as técrucas emprega as par~ ª. sua ap 1-
quando se trata de experiências repetíveis e de alcance univer~
caça-0 , 1+0' rnecem as diretrizes
.
de ordem geral,. que ms1stem
_
nos•
sal, 0 papel do teórico e do intérprete não é nem um pouco des- entos pertinentes e importantes na dehberaçao moral. E
e lem · ·
prezível8. Apenas uma visão do espírito teórico, e contrário à por isso que O papel deles não é em absoldutodrrr~1~vante, pm~.
realidade da pesquisa, afirma que a ciência se constrói a partir bora a sua interpretação deles depen a e Jmzos morais
de dados indiscutíveis, que não são influenciados pelos princí- ::uros, eles são reguladores quando o juízo moral é incerto ou
pios e pelos métodos de sua execução. Será assim, a Jortiori , controverso.
quando se tratar da experiência moral , que não possui nem a Porque os princípios de moral não possuem a unívocidade
estabilidade nem a uniformidade da experiência sensível. dos axiomas matemáticos e os juízos morais não são nem tão
Para dizer o direito, o jurista dispõe de um conjunto de leis seguros nem tão facilmente comunicáveis quanto os juízos de
e de regulamentos facilmente acessíveis e cuja validade não é experiência, as relações que mantêm entre si, que são relações
contestada. Ainda assim, porque se conhecem as variadas in- dialéticas, serão mais bem compreendidas se as aproximarmos,
terpretações de que os textos, mesmo os mais precisos, são não das ciências exatas ou naturais, mas do direito e de sua
passíveis, e porque se dá valor à segurança jurídica e à paz ju- aplicação. O ensinamento tirado do exame das técnicas juris-
diciária, cada Estado organizado tem de designar os juízes prudenciais, da maneira pela qual o juiz concilia o respeito ao
competentes para julgar e para dirimir com suas decisões os formalismo jurídico com a consideração das conseqüências
conflitos que as diversas interpretações da lei podem suscitar. sociais da interpretação dos textos, parece-me essencial para
Mas, em moral, não existem obras que contenham o conjunto esclarecer os respectivos papéis, em moral, da teoria e da expe-
das regras válidas numa dada sociedade e todos parecem quali- riência, de princípios morais e do juízo moral1º.
ficados para emitir um juízo moral sobre qualquer situação
h~mana, com uma autoridade variável segundo as circunstân-
c~as. Não é nada espantoso que os juízos morais referentes às
situaçoes
- part1cu· 1ares nem sempre sejam seguros ou concor-
dantes. § 16. Cepticismo moral e filosofia moral 1
Q~ando nos encontramos diante das controvérsias, em
mE oral, e que O papel dos princípios se mostra mais importante. O artigo bem construído de Léonard G . Miller2 tenta esca-
stes exercem
_ um ete1·to persuasivo,
. . . .
dmgmdo a mente para par ao cepticismo moral, embora reconhecendo que os princí-
preocupaçoes que s d .
. _ e evenam levar em conta na apreciação da pios primordiais nos quais se fundamenta uma moral racional
s1tuaçao. Uma del"b _
fazer d" . _ i eraçao moral, para ser imparcial , não pode não são nem verdadeiros nem falsos, e que nenhuma razão
1stmçao de pess p . . • • .
apreciar . _ _oas. ara que haJa Jmzo moral , e mister pode justificá-los. Com efeito, se pudéssemos justificar um
as situaçoes mse · d
mesma form . _ nn o-as em categorias, tratando d a princípio, tal como "é mau per se infligir sofrimentos não
ª situaçoes essencialmente semelhantes. É esse 0 necessários", esse princípio deixaria de ser considerado pri-
r 294
ÉTICA E DIREJTo
A ÉTICA 295
. t maria primordial o princípio que servisse par os princípios da moralida~:,. tod~ diálogo entre homens e
mo . , 0 o rincípios pnmor
rd1al e se . d'ia1s . da mora1, que são Prin ,a
. stifica-lo. s p , . d . c1- sociedade que aderem a cntenos diferentes de moralidade. A
J~ _ não são suscet1ve1s, segun o Miller, nem d vida moral se reduz a um conformismo - uma adesão irracioci-
P10s de açao, - ,d d
eJ·ustificação, mas nao e esarrazoa o apegar-se
e
nada ao que nos foi inculcado com o leite materno - e nenhum
prova nem d 'd . a
' m eles se está comprometi o, p01s, por seu estatuto raciocínio pode exercer a menor influência sobre as nossas re-
eles ' seco am a qualquer poss1'b'l'd d d . . '
eles escap _ 1 1 a e e Justificação · Da'1 gras de conduta: o que nenhuma razão fundamenta, nenhuma
segundo Miller, que, nao tendo uma pessoa adotado tal razão pode abalar.
resu lta, . d _
princípio, ela não pode, por mei_o .e razoes, s:r 1evada a endos- Essas conclusões paradoxais são as conseqüências inevi-
sá-lo, mas esse fato não constitm, uma razao suficiente para táveis da idéia que Miller se forma dos princípios primordiais
considerar desarrazoada a atitude de quem o adota, pois quan- que forneceriam os critérios de toda moral sistematicamente
do nenhuma razão permite justificar um compromisso, quando elaborada. Cumpre, de fato, que se saiba o que é bom ou mau
um posicionamento é inevitável, não é desarrazoado compro- em si, sem nenhuma justificação, para poder fundamentar no
meter-se sem razão. critério primordial todo juízo formulado sobre as regras morais
A tese de Miller, ao denegar qualquer racionalidade aos derivadas e sobre todo ato particular.
princípios que regem a vida moral, transforma estes em regras Para julgar do valor da tese de Miller, retomemos a nossa
consuetudinárias, de natureza psicossocial, que podem variar confrontação de um sistema moral com um sistema axiomáti-
de sociedade a sociedade, de homem a homem, sem que possa co. Este nos permite comumente demonstrar certo número de
ser fornecida nenhuma razão em favor de umas ou das outras, teoremas, devendo os próprios axiomas ser admitidos sem
na medida em que essas regras constituem princípios primor- demonstração. Mas, assim que se trata de escolher, na prática,
diais. Como, num sistema formal, não se pode pensar em dentre vários sistemas axiomáticos igualmente coerentes,
demostrar axiomas, pois com isso seriam transformados em aquele que utilizaremos em determinada situação, existem nor-
teoremas, dedutíveis de outros axiomas, - e porque não é malmente razões para tal escolha. Essas razões serão, sem dú-
desarrazoado admitir axiomas não-demonstrados - assim vida, alheias ao formalismo , mas não estarão ausentes. A esco-
quando se trata de regras morais, cumpre que se admitam cer~ lha de um sistema axiomático, em circunstâncias particulares,
tos princípios primordiais, sem que haja meios de justificá-los. pode, como toda escolha razoável, ser justificada. Se não nos
Quan~o se _trata de sistemas formais, devemos tomar o cuidado fundamentamos , para aceitar os axiomas, numa evidência que
d~ ~vitar ~ mcoerência; da mesma forma, é preciso que os prin- nos força a reconhecer-lhes a verdade, e por isso nos priva de
c1p1os
. pnmord'iais· simultaneamente
· admitidos para reger a qualquer possibilidade de escolha, as razões que justificam
vida. moral não conduzam a mcompattbihdades.
· • •. Quanto ao uma determinada escolha serão de ordem pragmática.
mais,
, . nenhuma prova po de ser ..
1omec1da . de nenhum desses prin- Quando se trata dos princípios primordiais de um sistema
c1p1os.
moral, a idéia de que possam ser verdadeiros ou falsos, e, afor-
Uma concepçãO d fu tiori, de que sua evidência possa impor-se a todos, é excluída a
com0 os ndamentos da moralidade tal
a apresentada M'll . '
cer inabalavelm por 1 er, permite a cada qual permane- priori por Miller. Ele exclui igualmente - por definição - que
mente um modendte e1? suas posições e continuar indefinida- um critério primordial, que determina o que é bom ou mau em
º e vida um •
qual a invulnerabilidade de ª vez aceito; ela garante a cada si, possa ser justificado por uma razão qualquer sem perder
mesma razão sup . sua torre de marfim. Mas, por essa esse caráter de princípio primordial. Essa dupla exclusão
, nme toda fi11 fi impossibilita qualquer discussão dos princípios primordiais da
oso ia moral, toda reflexão sobre
296 ÉTICA E DIREITO A ÉTICA
297
moralidade, ficando estes tão separados uns dos outros q . uívoca a todos os problemas morais que se apresentam aos
. . f . uanto ineq · d a d e _d ~ si~açoes
. - concr:t~s ..U m es_f or-
os axiomas de diferentes sistemas ormais, sem que ha·a homens na infinita vane
. _ , J um
terreno de discussao em que se possa compara-1os entre si o de interpretação e de exphcitaçao se mostrara mdispensavel
A tese de Miller parece, à primeira vista, logicament · . ç m cada situação um pouco nova.
. d .d e ina-
tacável, mas a reahda~e a vi a moral nos mostrará a insufi- e Na verdade, os diferentes princípios de moral não são
ciência dessa concepçao um tanto quanto esquematizada. ntestados por homens que pertencem a meios de cultura di-
Na prática da moralidade concreta, é bastante raro encon- ca d d.
ferentes , mas são interpretados de mo os 1versos, não sendo
trarmos um desacordo fundamental sobre princípios primor- ·amais definitivas essas tentativas de interpretação.
diais, sendo mais corrente um acordo geral sobre princípio J A discussão, em questão moral, difere completamente da
acompanhado de ~m freqüente de~acordo sobre a aplicaçã~ demonstração formal , pois é constante correlacionamento de
deles em _c as?s. partic_ulares. Raros sao aq~eles que negarão que experiências particulares e de conceitos com conteúdo parcial-
é imoral mfügrr sofnmentos sem necessidade, mas se levanta- mente indeterminado, em constante interação. O problema do
rão divergências tão logo se quiser precisar as circunstâncias moralista não é a justificação dos princípios primordiais, mas
em que é necessário infligir sofrimentos. Dever-se-á manter a sua interpretação num contexto particular. E o papel decisivo,
pena de morte para combater a criminalidade? Os indivíduos e nesse debate, caberá à experiência moral de cada qual, ajudada
os Estados podem matar ou mandar matar em caso de legítima pela regra de justiça que exige o tratamento igual de situações
defesa? Dever-se-á encorajar a eutanásia no caso de doentes essencialmente semelhantes.
portadores de um câncer incurável? Dever-se-á renunciar a Cada situação realmente nova exigirá uma adaptação dos
comer carne para evitar a hecatombe cotidiana de milhares de âmbitos do contexto. Esta é impossível sem uma decisão pon-
animais? Dever-se-á salvar a mãe ou a criança nos casos infeli- derada do agente moral , que deverá justificar, de uma ou de
zes de gravidez em que há risco de perdê-las a ambas? Dever- outra forma , a maneira pela qual interpretará e aplicará as regras
se-á tolerar sacrifícios rituais de seres humanos ou de animais? tradicionais. Quando não se opõem umas às outras regras dife-
O divórcio, o adultério, a pederastia deverão ser estritamente rentes e arbitrárias, mas sim regras comumente admitidas cuja
proibidos ou haverá casos em que, para evitar sofrimentos mui- interpretação e adaptação a situações variadas podem ser feitas
to grandes, deverão ser tolerados? A enumeração destes pou- de formas diferentes , o modelo formal não nos pode esclarecer
cos problemas, entre centenas de outros, nos indica, sem a me- sobre os problemas levantados pela deliberação moral. Esta
nor dúvida, que não se pode pensar em reger nossa vida moral não se apresenta de uma forma impessoal e a resposta não pode
por meio de um único princípio, a não ser que esse princípio ser fornecida por uma máquina de calcular, pois a deliberação
contenha termos de conteúdo indeterminado e cuja determina- compromete inevitavelmente a pessoa de quem decide e lhe
ção exigirá uma elaboração conceituai que implique o conjunto justifica decisão. É por essa razão que o modelo jurídico me
dos problemas morais. Impõem-se as mesmas conclusões se parece mais adequado do que o modelo formal para guiar as
substituímos o princípio de Miller pelo imperativo categórico reflexões do filósofo sobre o estatuto dos princípios morais .
de Kant ou pelo princípio utilitarista que define o ato moral Apenas o modelo formal pode inspirar-nos a idéia de que
c~mo ~ ato mais útil ao maior número. Mesmo que os princí- existe, em moral, princípios primordiais e arbitrários que per-
pios pnmordiais de um sistema de moral devessem ser nume- mitiriam justificar todas as regras derivadas e as atitudes
roso~, _não me parece que seja possível enunciá-los com uma morais. De fato, um princípio de ação jamais é um princípio pri-
prec1sao tal que el es possam fomecer, por si. sos , , uma resposta mordial per se , mas o permanece enquanto não se sente nenhu-
298

ma hesitação em admiti-lo . ÉT!cA E Dt


lo, empenhar-se-á em . Se um Interlocut . RE:rro A ÉTICA 299
.d recorrer a or V1e
senti o de lugares-comuns de ~g~mentos ou a ; a contestá. . a moral enfatiza a intenção, o direito estabelece uma cor-
não uma demonstraça~o stoteles - Par ugares - n nor, d. . b. - l
· , . , mas um · . a lh o relação entre os tre~tos e as~ ~gaçoe~, ~ mora ~re~creve de-
pn1:1c1p10 não é fazê-lo depender a Justificação. Jut Procurar
vere s qu e não dão ongem
. a direitos subJetivos, o d1re1to estabe-
,
mais fundamental é fu de outro Princ' . hficar um tece obrigações sanc10nadas pelo Poder, a moral escapa as san-
. , re tar as ob · - 1p10 con •
sua validade universal 1· . Jeçoes que sen· siderado ões organizadas.
1ando a, experiência moral
, nspirando s
e ,
arn op
- e em outros Prin , . ostas à ç Os juristas, descontentes com uma concepção positivista,
- . a regra de · . c1p108 tadística e formalista do direito, insistem na importância do
çao necessitará com mu ·t fr .. Justiça. Mas , ape.
d . , . l a equência d essa refut e:emento moral no funcionamento do direito, no papel que nele
o p~c1p10 criticado, de uma redefin• - e uma reinterpreta ~- ~esempenham a boa e a má-fé, a intenção maldosa, os bons cos-
mos. As vezes seremos levad ~çao de alguns de s Çao
p · , • os a precisar a li . eus ter- tumes , a eqüidade, e tantas outras noções cujo aspecto ético
-~mc~p10 que lhe opõem, a qualificar de' mitar o alcance do não pode ser desprezado.
nenc1a m?ral_citada pelo interlocutor a out~a maneira a expe- Raros , em contrapartida, são aqueles que recomendam o
re~ra de Justiça. A filosofia moral ~ão matizar a aplicação da estudo do direito como objeto ?e meditação, e às vezes até de
axiomas e de deduções mas m d. se elabora através de inspiração, para o moralista. E, porém, neste último aspecto
, , e iante um ap ·
tmuo das regras que nos podem g . ~ nmoramento con- das relações entre o direito e a moral que eu gostaria de insistir.
. . mar na açao Os prin , .
mord 1ais da vida moral constiºtu · c1p1os pri- Ao lado de princípios constitucionais que variam de um
em uma espéc · d b sistema para outro, ao lado de leis devidas a circunstâncias pas-
reflexão moral enriquece constanteme t ie e es oço que a
E n e. sageiras ou justificadas por considerações de pura oportunida-
. , s~a não _se,~ndamenta em princípios evidentes nem em de, os diversos sistemas de direito ocidentais contêm regras
pnnc1~1os arb1tr~nos , p~is só se poderia qualificá-los assim se que se encontram, com pouca diferença, em cada um deles, que
0
sen~do ~eles tivesse sido fixado previamente de uma forma permanecem obrigatórias durante períodos muito longos. e às
que nao deixasse margem a nenhuma discussão, a nenhuma in- vezes remontam ao direito romano.
~erpretação, a nenhum aprimoramento. Mas, de fato, nunca é Algumas dessas regras foram promovidas à categoria de
1ss~ que ~ucede. A vida moral, como a vida do direito, porém " princípios gerais do direito" e alguns juristas não hesitam em
~UI to mais do que ela, supõe regras e preceitos que a experiên- considerá-las obrigatórias, mesmo na ausência de uma legisla-
cia e uma reflexão sobre a experiência devem constantemente ção que lhes concedesse o estatuto formal de lei positiva, tal
repensar e readaptar às aspirações dos homens defrontados como o princípio que afrrma os direitos da defesa, e que
com os problemas da existência. expressaríamos pelo brocardo audiatur et altera pars. Outras
são enunciadas por diversos artigos dos Códigos Civil, Penal,
ou de Processo, referentes à responsabilidade.a diferentes
espécies de delitos , à admissibilidade dos depoimentos, às
diferentes formas de presunções, e tantas outras matérias co-
§ 17. Direito e moral 1 muns _aos países que possuem uma velha tradição jurídica.
E pensando nessas regras, relativamente permanentes, do
pensamento jurídico que eu gostaria de expor a seguinte tese :
Tradicionalmente, os estudos consagrados às relações ~ntre
d . · e a moral insistem , dentro de um espmto, · kªnttano ' antes de se lançar na elaboração de preceitos muito abstratos -
o rre1to tais como o imperativo categórico ou o princípio utilitarista-,
naquilo que os distingue: o direito rege o comportamento exte-
300

a~s quais se reportariam t d ÉT1cA. E D/R_


301
nao teria interesse e ~ as as regras rn . Efro A ÉTICA
d· • m assinalar orais
1re1to, aquelas que por sua ' no conjunto d, o rnoralist uando se trata de parente_s em -~ ª reta ou do cônjuge de _uma
' perenict d as a
expr~~sam valores que se im õe a ~ e Por sua e regras de q rt s não se podera obnga-los a testemunhar sob Jura-
adm1t1r a presunção qu p m aos Juristas? T\.T~ neralidact das pa e , -
' e me par . l~aoct e, . e essas pessoas são ouvidas sem prestar Juramento,
gras, e os valores que elas ece razoável d everia ele rnento, s fal d 1
não se poderá condená-las por falso testemu~o ou _ sd~ _e~ a-
tabelecem não deixam d protegem, as distinç'o~ e que tais re. - uando testemunharam em favor dos reus ou m 1cia os
do moralista?
' e ser perf
mentes Para
es que 1
e as es. raçao, q c· ºl) O 1eg1s
f art 268 do Código [belga] de Processo iv1 .
. 1a d or
Parece-me que essas º~~ (cd · ·te.que não cabe constranger os sentimentos de afeição que
ento
regras e tud a m1 , .
e existir entre parentes proximos , ob"
ngan d o es t es a
~am , poderiam cumprir, para o m~r . o o que elas nos . se presum .
testemunhar sob juramento contra um pai, um filho ou um
lmgua corrente e sua análise dese ahsta, ? mesmo papel ens1-
~a :scola de Oxford, como John
hçoes que se poderiam tirar de
z.::anam par~ um
, ·. sem considerar qu
fil!:f; esposo, réu ou indiciado. . _
Mas há casos mais flagrantes em que prescnçoes legais
não só não obrigam a dizer a verdade, não punindo a mentira,
.

,1 · uma analise - e as
a u tima palavra da filosofia na~o b . assim constituiriam mas punem aquele que tiver dito a verdade, ei:n cir:unstâ~c~as
- S ' ca ena descart, l
razoes . e o uso corrente da 1· a- as sem bo em que se deve manter sigilo. Com efeito, a v10laçao do s1g1lo
- , mguagem faz c d as
çao, ha uma presunção em favor d . aso e uma distin- profissional pode ser punida pela lei. As p~ofissões, às quais é
- e sua 1mport~ · ,
presunçao que o filósofo na~o d . anc1a filosofica imposto o sigilo profissional, podem vanar no decorrer dos
. evena menospr _ ,
na ter por errônea ou superfic1·a1 ezar e nao deve- séculos, mas a própria existência de semelhante obrigação se
fi sem apresentar a d encontra nos mais diversos sistemas. Dá-se o mesmo em todos
a Irma. O morali sta deveria proceder da t prova o q~e
to das regras jurídicas. É possível evide:;:mmeantorma a respe1- os casos de denúncia ao inimigo. A denúncia às autoridades do
aqu I _ ' e, que esta ou país é às vezes recomendada tanto moral quanto legalmente,
_e ~ regra ou presunçao corresponda à finalidade do ctu · ·t mas , por vezes, mesmo que a lei a prescreva, pode continuar a
e nao a da I e1 o,
, mora ' e que o moralista possa, por essa razão, des- ser moralmente condenável. As variações nessa matéria são
preza-Ia, mas ao m e nos fornecerá as razões pelas quais não as muito instrutivas quanto às relações que existem, em determi-
leva em conta. Vere mos que, efetivamente, em certos casos, é nada sociedade, entre seus membros e as autoridades .
norn:ial que a s regras jurídicas difiram das regras morais, mas Pode-se, mentindo, causar dano à honra e à consideração
tal divergência n ão se presume : é necessário explicá-la. das pessoas; é normal que quem não pode apresentar a prova
. Para fazer-m e melhor compreender, gostaria de lembrar a fundada de suas alegações, que expõem uma pessoa ao despre-
d~scussão que se deu recentemente, no Congresso das So- zo público, seja incriminada de calúnia e condenada por isso.
ciedades de Língua Francesa de Filosofia2, a propósito do uso Mas casos há em que a prova dos fatos alegados não é permiti-
moral e imoral da linguagem. Para alguns, o uso imoral da lin- da e que, mentindo ou dizendo a verdade, a pessoa se vê incri-
guagem se limitava à violação da obrigação de dizer a verdade. minada de difamação. Há mais : será incriminado de divulga-
Mas, se analisamos , a e sse respeito, as legislações modernas, 0 ção maldosa aquele que imputar a outrem fatos dos quais existe
p~oblema do uso moral ou imoral da linguagem se mostra infi- uma prova legal, mas que ele houver aventado com o único
intuito de prejudicar.
mtamente mais complexo. Em direito, a noção central é a de
compromisso : a testemunha que mente é passível de punição . Vimos que a testemunha sob juramento tem a obrigação de
dizer toda a verdade; em contrapartida, em certos casos, é-se
essencialmente porque se comprometeu a dizer a verdade, toda
forçado ao sigilo profissional. Quando essas duas obrigações
ª verdade e nada além da verdade. Mas está estipulado que,

302
ÉTICA E D!R
. E~o A ÉTICA
303
entram em confl1to, e a pessoa obrigada ao si -1
, . . g1 o for ,.,_ l
para testemu nh ar, e l a pod era decidir livrement . ,.. o ada trovérsias . Nesse caso, os métodos e os critérios de interpreta-
,mt1mo,
· l ' b · -
qua e a o ngaçao que pnma na ocorrên • · e, em seu 4'
1oro ção, que permitem aplic?r ~s regras, adquirirão muit~ mais
. _ . d eia.
Mas , d1rao, as 1eis po em obrigar você a e 1 importância do que as propn~s ~egras em sua fonnulaçao ~bs-
mentir. . I sto nao - e, tao
- certo. C asos h á, de fato , em a ar-se ' nun. ca a trata e relativamente vaga. L1m1tando-se apenas ao enunciado
· l d ' ·
eqmva e a uma enuncia e a umca atitude digna , .' · que O slle"n ·
cio dessas regras, o moralista renuncia ao papel essencial atribuí-
mentir. . A que le que, a, pergunta d o mimigo . (se ele, JUstamente, do, em direito, à doutrina e à jurisprudência. Contenta-se com
e escond papel do legisla~or, e ainda_de um legislador qu~ ~ão enunci~
casa certa pessoa procurada) , respondesse com O . .. . e em 0
. d d d"
na e um mo o menos 1gno o que aquele que ne d . s11enc10 ' ag·1- regras muito precisas, depositando confiança no JUIZ quanto a
. d . ·1~ . - d . . gasse men aplicação delas. O exemplo do direito nos convence imediata-
tm o, p01s o s1 encio nao eixana de ser interp t d ' -
- . . . . reaocom
uma confi1rmaçao e , por isso, constituiria uma forrn
, · A · b, a atenuada
° mente da insuficiência desse ponto de vista, pois por que o
moralista renunciaria à tarefa que é essencial para a doutrina
d e d enuncia. ssim tam em, poder-se-ia condenar O .
_ . . , resistente jurídica?
que, nao podendo resistir a tortura e recusando-se a d .
. enunciar Essas reflexões não significam, de modo algum, que o
os camaradas, se refugia na fabulação?
direito não possua uma especificidade, pela qual se afasta dos
Estes poucos exemplos bastam para mostrar que as p . pontos de vista próprios da ética. Com efeito, a importância
_ . 'd. nf . rescn-
çoes JUO icas , que. e atizam o pluralismo das normas e dos especial concedida em direito à segurança jurídica explica o
valores, e os confl1tos a que, em circunstâncias concretas, ele papel específico do legislador e do juiz, tão oposto à autonomia
pode levar, obrigarão o moralista a reconhecer a insuficiência da consciência que caracteriza a moral.
de um formalismo ético estrito. Não basta enunciar alguns prin- Ante a multiplicidade de normas e de valores, o direito,
cípios gerais: é preciso que o moralista se preocupe com proble- querendo garantir a segurança jurídica que fixaria os direitos e
mas criados pela aplicação deles nos mais variados casos. obrigações de cada qual , tem de conceder a alguns , os legisla-
É a propósito disso , para esclarecer a dialética das rela- dores, a autoridade de elaborar as regras que se imporão a
ções entre as regras gerais e os casos particulares, que o mora- todos, e tem de designar aqueles, os juízes, que terão a incum-
lista poderá inspirar-se utilmente no modelo jurídico. bência de aplicá-las e de interpretá-las.
Com efeito , os grandes princípios do direito, tal como o Assim também , para evitar as contestações que questio-
art. 1.382 do Código de Napoleão relativo à responsabilidade nam as situações existentes, o direito reservará um lugar im-
civil (Todo fato do homem que cause um dano a outrem obriga portante a presunções de toda espécie que dispensam de qual-
este, por cuja falta ele ocorreu , a repará-lo) , enunciam regras quer prova aqueles que delas se beneficiam. Ao lado das pre-
que ninguém contesta, mas cuj a aplicação conduziu a inumerá- sunções irrefragáveis que garantem a estabihdade de certas
veis controvérsias, para as quais toda uma biblioteca de eStll- instituições ao impedir qualquer prova contrária (estabilidade
dos jurídicos buscou soluções . das decisões de justiça protegidas pela autoridade da coisa jul-
Não se daria o mesmo em ética? Os princípios funda~en- g~da, estabilidade das fanu1ias, em que a impugnação da pater-
tais da moral , sejam eles deontológicos ou teleológicos, seJam nidade já não é possível depois de prazos muito curtos) , outras
eles formalistas ou utilitaristas, sejam os atos julgados ?ºr s ºª ~resunções juris tantum admitem a prova contrária, mas
conformidade com as regras ou por suas conseqüências, po- •m~õem o ônus da prova a quem quiser derrubá-las (presunção
ele mocência, presunção de propriedade para os possuidores de
dem não ser contestados in abstracto . Mas, tão logo se trata de
bens móveis) . Razões de segurança jurídica imporão limites à
aplicá-los a circunstâncias concretas darão azo a infinitas con-
'
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA 305
304
. . . .d d da prova (certos tipos de prova são admitidos Supondo-se que, do ponto de vista moral, se admita a
adm1ss1b 111 ª e ar a existência dos atos JUn · 'd.1cos e de obnga-
·
apenas para prov . . . eutanásia, não se atribuindo um valor absoluto à vida humana
. tes) instituirão procedimentos especiais, que sejam quais forem as condições miseráveis em que ela se pro~
ões mportan , . , .
ç 1 desenrolar sattsfatono dos processos, tanto em longa, devem-se pôr os textos legais em paralelismo com 0
garantem o . b, .
, . • - quanto penal. Assim tam em, para evitar que as juízo moral? Seria uma solução perigosíssima pois, em direito,
matena c1v11 . f ~ .
a J·uízes que lhes tenam a pre erencia, regras
partes recorram . . . , _ como a dúvida normalmente intervém em favor do acusado
ecisas predetern1mam quais Jutzes serao compe-
de processo Pr ., . , . corre-se o risco de graves abusos promulgando uma legislaçã~
nhecer cada tipo de htigio, que sera qualificado
tentes para Co _ indulgente nessa questão de vida ou de morte. Mas constatou-
de apelação ou de recurso em cassaçao.
em caso . 'd" . se que, quando o caso julgado reclama mais a piedade do que o
A preocupação com a segurança JUfl ica prevme: graças
castigo, o júri não hesita em recorrer a uma ficção, qualifican-
às técnicas e aos procedimentos que ~cabo de menc10nar, 0
nascimento de zonas de penumbra e de mcerteza que caracteri- do os fatos de uma forma contrária à realidade, declarando que
zam tantas situações sociais que escapam às regulamentações o réu não cometeu homicídio, e isto para evitar a aplicação da
do direito. Tal pessoa será honrada, poder-se-á ter confiança lei. Parece-me que esse recurso à ficção , que possibilita em
em sua discrição, em sua coragem, em sua lealdade? A tais per- casos excepcionais evitar a aplicação da lei - procedimento
runtas formuladas em termos puramente morais , podem ser, e inconcebível em moral - , vale mais do que o fato de prever
;ão efetivamente, dadas as mais variadas respostas. Mas, em expressamente, na lei, que a eutanásia constitui um caso de
direito, é-se inocente ou culpado, absolvido ou condenado. escusa ou de justificação.
Conforme os temperamentos e os costumes, julgar-se-á com Vê-se, por esse exemplo particular, que, mesmo quando
maior ou menor severidade determinada falta do passado. Em não se trata de uma violação flagrante, pelo legislador, desta ou
direito, um delito está prescrito ou não está: não é prescrito daquela regra moral, pode haver boas razões para que as regras
pela metade. Pode-se julgar de um modo variável a maturidade morais não sejam inteiramente conformes às regras jurídicas,
de um rapaz, mas a idade da maioridade é determinada por pois estas são sujeitas a condições de segurança, a presunções e
condições precisas, fixadas com a precisão de um dia. a técnicas de prova, com as quais o juízo moral não se embara-
Poderíamos multiplicar os exemplos dos efeitos da segu- ça muito.
rança jurídica. Nada de mais normal que, em muitos casos,
Mas a regra geral, ou pelo menos a presunção, é a confor-
disso resulte um tratamento muito diferente da mesma situa-
midade entre as regras morais e as regras jurídicas. É por essa
ção, conforme seja encarada do ponto de vista moral ou daque-
le do direito. O tratamento da eutanásia fornece , a esse respei- razão que o estudo do direito, ao reconhecer para a moral sua
to, urna excelente ilustração. pertinência costumeira, impedirá o teórico de lançar-se em
As pessoas que admitem, por razões que consideram mo- simplificações exageradas referentes tanto ao conteúdo das
ralmente justificáveis, a eutanásia, o fato de acelerar ou mesmo regras quanto à sua aplicação a situações concretas. Ele verá
de ~rovocar a morte de um ente querido, para lhe abreviar os então que os diversos princípios que os filósofos apresentaram
sofrimen~os causados por uma doença incurável ou para termi- como a norma suprema em ética não são, na realidade, senão
nar ª existência miserável de uma criança monstruosa ficam lugares-comuns , no sentido da retórica clássica, que eles forne-
escan~~~os com o fato de que, do ponto de vista jurídico, a cem razões que convém levar em conta em cada situação con-
eutanasia seJa assimilada, pura e simplesmente, a um homicídio. creta e não axiomas , como os da geometria, cujas conseqüên-

11111
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA
307
306
,. <leriam ser tiradas por meio de simples dedu- aderirem a ideologias diferentes (inclusive certo ce t' ·
. s praticas po l - d · · . , . ) , . ., p 1c1smo
eia . , . prático aplicável em mora , nao eve msp1- 1deologico , e mev1tave 1 que as regras morais em que se lou-
ão
ç · o rac10cm10 , . .
d l matemático inaplicável no caso, e sim na vir-
.
vam , levando em conta o modo como as interpretam e as apli-
rar-se no mo e o ' . - cam , ne1!1 sempre conduzam , na prática, a conclusões concor-
· ada pelo comedimento e pela cons1deraçao de
tude caractenz , . .
. ' - d·versas e de interesses mult1plos , qualificada de dantes . A ordem jurídica, obrigatória em dado Estado, não se
asp1raçoes 1 .
dência) por Aristóteles, e que se manifestou tão pode contrapor uma ordem moral única, mas , quando muito
q>pÓVf\cr\.Ç (p ru . . .
brilhantemente em direito na)lmsprudentza dos romanos . uma base de moralidade comum, acompanhada de numerosa~
divergências . Nas sociedades pluralistas, que dão valor à liber-
dade espiritual, uma ordem legal única coexiste com diversas
concepções morais e religiosas.
2. Ao passo que, em moral, todos podem formar-se uma
1
§ 18. o direito e a moral ante a eutanásia opinião e emitir um juízo, aprovar ou desaprovar um comporta-
mento particular, em direito, apenas o juiz competente é quali-
Um processo, que mexeu com a opinião pública na Bélgica ficado para aplicar a lei e proferir uma sentença. Normalmente,
e no exterior, levantou, de novo, a propósito da eutanásia, o pro- é a juízes togados que será atribuída tal competência; em certas
blema das relações entre o direito e a moral. Deverão as regras matérias, em que se deseja que a opinião pública possa mani-
jurídicas ser a tal ponto diferentes das regras morais que obri- festar-se, tais como as matérias criminais, os delitos políticos e
guem a condenar, como culpadas de homicídio, pessoas de que de imprensa, recorrer-se-á a um júri, incumbido de tomar
a opinião pública tinha sobretudo piedade e cujo comportamen- conhecido o parecer de cidadãos honrados e representantes da
to pareceu, a muita gente, não ser imoral? Antes de responder a massa dos cidadãos; em outras matérias, que dependem do
essa pergunta, no que tange à eutanásia, insistamos em algumas Código Comercial e da legislação do trabalho e do emprego, o
características particulares de nosso direito que o diferenciam tribunal será constituído de representantes dos ramos profissio-
profundamente da moral, tal como é concebida em nossa socie- nais: será esse o caso dos tribunais de comércio e da justiça do
dade; com efeito, para assimilar as regras jurídicas a regras mo- trabalho .
rais, cumpriria que suas condições de aplicação fossem análo- Como o sentido e o alcance de uma lei não podem ser exa-
gas; ora, não é esse, em absoluto, o caso. tamente conhecidos sem que se lhes determine as condições de
Fazendo abstração do conteúdo das regras morais e jurídi- aplicação (pois ambos podem ser transformados pelo modo
cas, constatamos, em suas condições de aplicação, quatro dife- como os fatos são qualificados), importa saber quem pode apli-
renças essenciais que é importante assinalar. car a lei, qualificando os fatos que foram estabelecidos. Não
1. As regras jurídicas são supostamente conhecidas por podemos esquecer que, de fato , graças ao poder de qualifica-
todos; sua observância impõe-se a todos aqueles que estão no ção concedido aos juízes, estes podem introduzir no direito
território do Estado, sob pena de sanções. As regras morais, ao verdadeiras ficções , recusando aplicar aos fatos as qualifica-
con~rário, não são codificadas. É verdade que, numa mesma ções normais, e isto a fim de impedir a aplicação das conse-
sociedade, cujos membros têm um passado comum e tradições qüências previstas pela lei para fatos assim qualificados.
co~u~s, essas regras apresentam um núcleo comum , mas , pelo A moral não conhece ficções, o que obriga a formular as
propno fato de nossa sociedade ser diversificada, de seus mem- regras de uma fomrn que expressaria o sentimento moral tão
bros professarem religiões diferentes , sendo alguns incréus , de exatamente quanto possível.

b
-
308 ÉTICA E DIREITO A ÉTICA 309

3. Ao passo que em moral basta uma suspeita para arra- religioso, nem ao pai de família o direito de vida e de morte
nhar a reputação de uma pessoa, em nosso direito a dúvida sobre outro indivíduo. Em grande número de Estados moder-
aproveita ao réu . Como, quando se trata das questões de fato nos esse respeito chega à supressão da pena de morte, mesmo
juiz da causa deve decidir-se de um modo ou de outro, el~ ~ para os crimes mais hediondos. Ao passo que, em Esparta e em
obrigado a absolver assim que admite que possa subsistir um e Roma, o direito de vida e de morte era reconhecido ao pai de
dúvida razoável a propósito da realidade delas . O juízo mora: família, que podia expor os filhos recém-nascidos, existem
por admitir matizes que o direito ignora, por não estar amarr ~ outras sociedades que protegem a vida de diversas espécies
do de uma maneira rígida a prazos de prescrição e a outras fo:_ animais , embora admitam sacrifícios rituais, muito freqüentes
mas de processo, por colocar a eqüidade em primeiro plan o, nas sociedades primitivas.
sem se preocupar com a segurança que nunca está ausente da Se é incontestável que as religiões e as ideologias que
mente do jurista, pode fundamentar-se em regras cujo enuncia- dominam nas sociedades impregnadas do ideal humanista
do comporta termos vagos , que uma regra jurídica só toleraria impõem o respeito à vida de cada ser humano, essa obrigação,
excepcionalmente. como a maioria dos princípios morais e jurídicos, não pode ser
4. A racionalidade de nossos juízos, tanto em direito como observada de modo absoluto. Em certos casos, em que dois
em moral, se manifesta pela regra de justiça, que exige que se seres humanos estão simultaneamente em perigo de vida, unia
trate da mesma forma situações essencialmente semelhantes. intervenção cirúrgica permite salvar um deles sacrificando o
Mas, ao passo que, em moral, a regra de justiça só concerne ao outro: esse é o cruel dilema que se apresenta às vezes ao gine-
comportamento individual de um agente, às suas próprias deci- cologista, obrigado a escolher entre a mãe e a criança. Nosso
sões e às das pessoas que toma como modelos em sua conduta código não pune o homicídio cometido em estado de legítima
em direito, essa regra, por se aplicar às decisões de justiça tor~ defesa; não se pensa em punir quem participa de uma execução
nadas públicas pela Revista de Jurisprudência , permite com- de condenação à morte, e o fato de matar um combatente ini-
preender a importância do precedente e o papel da jurisprudên- migo em tempo de guerra é considerado uma ação muito hon-
cia na interpretação da lei. A organização do sistema judiciário rosa. Quando se trata de legítima defesa, permite-se à vítima de
dos Estados modernos tende, de fato , à elaboração de uma uma agressão matar o agressor para escapar de seu ataque. Em
jurisprudência uniforme que asseguraria a segurança jurídica outros cas~s, o homicídio é permitido ou incentivado para pro-
dos jurisdicionados. É importante , de fato , que cada qual saiba teger a sociedade contra os criminosos e o Estado contra seus
quais são os direitos e as obrigações garantidos e impostas a inimigos. Em contrapartida, nosso direito não autoriza o homi-
cada sujeito de direito. É apenas com essa condição que a paz cídio para aliviar os sofrimentos de um doente incurável e não
judiciária poderia ser assegurada numa sociedade civilizada. ~e~ite suprimir um monstro cuja sobrevivência só pode cons-
As considerações que precedem bastam, parece-nos, para titu~ um fardo para a farru1ia e para a sociedade. Cumprirá
justificar a inevitável defasagem entre regras morais e regras modificar o Código Penal nesse ponto, porque algumas pes-
judiciárias em questão de eutanásia. soas, que se associaram para provocar a morte de uma criança
. O direito à vida, que implica a obrigação de respeitar a monstruosa, suscitaram uma piedade geral e foram mesmo
vida, a dos outros e às vezes a vida própria, constitui uma regra absolvidas no final das contas? Não o creio.
fundamental tanto de nossa moral quanto de nosso direito. No Quando se trata da eutanásia que visa a abreviar os sofri-
entanto'. ~~enas os seres humanos são assim respeitados em mentos de um doente incurável, ninguém, ao que me parece,
1 te m o d.rreito
· de adotar a solução do desespero e de provocar
nossa civilização, que não reconhece nem ao chefe político ou

L
ÉTICA E DIREITO
310 A ÉTICA 311
te a morte do doente. Mas é muito difícil
der1beradamen oralmente impossive , l
, recusar ao médico
, eu absolvição, a instituição do júri lhe permite manifestar-se. É
diria mesmo m d' . . o essa a sua principal razão de ser, e sua existência constitui a
. . d fazer tudo quanto pode para immuu sofrimento proteção mais eficaz contra a aplicação da lei que iria de en-
direito e f ·i· s
, . para O doente e para seus ami iares , administran contro ao sentimento geral.
intoleraveis f • . -
tes mesmo que estes tenham e eitos nocivos ao or- Cumpre, pois, que o nosso Código Penal continue a prote-
alm
do c an , , - 'd d
. Tudo aqui e questao de medi a, e tato , de dosagem ger a vida dos seres humanos, ainda que seja preciso, em certas
ganismo. . . f d . , ,
, dicos especialistas, de ronta os com mumeras situa- circunstâncias, recorrer a ficções para temperar a severidade da
e os me , . .d .
ções análogas, formaram sua P:ºPAnadi ~o_1og1a, sabendo O que lei. Mas há um aspecto do problema que merece toda a nossa
dem fazer e até onde podem ir. s ecisoes por tomar são em atenção, pois num ponto os nossos serviços sociais deveriam
po , d ' A •

geral penosas, _mas ess: e u,m caso e co_n sciencia e de cons- ser melhorados. Se é indispensável proteger a vida dos seres
ciência profissional. Nao ha nada a modificar a esse respeito humanos, sejam eles quais forem , não se pode, porém, ignorar
em nosso Código Penal , pois é salutar um médico saber que, ao os ônus e os sofrimentos intoleráveis que pode impor &os pais e
administrar uma dose mortal de morfina, corre o risco de ser às crianças da família a obrigação de conservar em seu seio um
processado. Trata-se de uma proteção indispensável do doente ser monstruoso. Muito amiúde, tanto os pais quanto as crianças
e da sociedade contra abusos sempre possíveis e sempre amea- normais da família são sacrificados a esse ser anormal cujos
çadores. cuidados absorvem inteiramente os infelizes pais, obrigados a
O problema se apresenta diferentemente quando se trata de desamparar os filhos normais, esperando que estes se virarão
seres humanos monstruosos que apresentam deformações con- sem sua ajuda. Por respeito pela vida humana, teremos o direi-
gênitas tais que seu desenvolvimento normal não pode ser cogi- to de impor a esse grupo essencial que a família constitui ônus
tado: a sobrevivência desses seres constitui um fardo intolerável exorbitantes, que apresentam o risco de ter para seus membros
para a família e uma carga para a sociedade, mas essas razões as mais deploráveis conseqüências? Se nossa sociedade preza
são nitidamente insuficientes para permitir violar esse princípio esse princípio fundamental de nossa civilização que obriga a
essencial de nossa civilização que obriga o respeito à vida huma- respeitar a vida humana, ela deve aceitar sofrer as conseqüên-
na. Nossa civilização estabelece uma distinção fundamental , cias disso e criar instituições especializadas que se impõem.
tanto em direito como em moral, entre os homens e os outros Mediante um preço de pensão proporcional aos seus meios, os
seres vivos. O indivíduo humano deve ser protegido contra as pais deveriam poder confiar a guarda desses seres monstruosos
reiteradas pretensões da sociedade de tudo julgar consoante os a centros médicos do Estado. Este terá o direito de se desinte-
seus interesses, de considerar moral e legal tudo que lhe é útil, ressar das conseqüências produzidas pelo respeito de princí-
imoral e ilegal tudo que lhe é nocivo. Sabemos a que abusos pios por mais nobres que sejam? É justo que todos os membros
pode conduzir semelhante pretensão e devemos opor-nos a esse da sociedade que proclama certos princípios morais assumam-
processo inevitável em que se começaria por suprimir os mons- lhes as conseqüências penosas: o apego aos princípios se mede
tros, depois os alienados mentais, os esclerosados , os velhos, os pelos sacrifícios que a própria pessoa está disposta a aceitar em
doentes incuráveis, e se acabaria suprimindo os adversários do seu nome, e não por aqueles que se quereria impor aos outros.
poder estabelecido, da religião ou da ideologia dominante.
Cumpre que a lei continue a proteger o direito à vida de
cada ser humano · se h'a, porem , , situações
• extraord.manas
, · em
que, apesar da severidade da lei, a consciência popular desejaª
----- A ÉTICA
ÉTICA E DIREITO 313
312
§ 19_Direito, moral e religião'
numerosos .estudos de culturas
, comparadas é que se podena •
tentar extralf, e sempre a titulo provisório, conclusões filosófi-
Não há melhor exemplo de que as noções fundamentais cas que não fossem arbitrárias.
tratadas pela filosofia sejam noções ~onfu~as do que o próprio Se uma religião, tal como o judaísmo, se dota de um Deus
título desta comunicação. Com efeito, nmguém duvida que legislador, paradigma do justo e do bem, esse Deus será a
grande número de sentidos se ~escl~ conf~samente na com- font~ tant~ d_a m~ral quanto do direito. Mas como, nessa pers-
preensão de cada uma destas _tres noçoes. ~ai resulta que, para pectiva, d1stmgmr o aspecto moral ou jurídico do ponto de
servir-se delas de um modo ngoroso, o filosofo tem de aclará- vista religioso?
las, de defini-las a seu modo, o que levanta imediatamente 0 Veja-se o quarto mandamento do Decálogo que ordena
problema da escolha dos aspectos que ele considera importan- observar o dia de sábado para santificá-lo e impõe a obrigação
tes e daqueles que despreza e descarta. Esse posicionamento de não trabalhar neste dia (Deuteronômio , V, 12-15). A Bíblia
prévio explica e justifica o pluralismo filosófico , pois cada filó- nos assinala (Números , XV, 32) que um homem foi preso por-
sofo precisará as noções comuns de modo que elas se integrem que apanhava lenha no sábado, mas não se sabia qual castigo
melhor em sua perspectiva filosófica. Deus reservara aos que violam o quarto mandamento. Inter-
A última grande obra que Henri Bergson publicou em rogaram-se, e eis a resposta: "Javé disse a Moisés: o homem
vida, Les deux sources de la mora/e et de la religion (Alcan deve ser condenado à morte; toda a comunidade deve apedrejá-
1932), ilustra esse método filosófico . ' lo fora do arraial" (Números , XV, 34).
Nessa obra, ele apresenta primeiro uma moral tribal da Por todo o tempo em que nenhuma sanção humana é pre-
obrigação, a de uma sociedade fechada (p. 27) à qual opõe vista para a violação de um mandamento, por todo o tempo em
outra moral (p. 27), a da aspiração, a moral aberta. Assim tam- que se deixa apenas a Deus o castigo do culpado, diríamos
b~~' ~le opõe à religião estática, a da tribo (cap. II), a religião hoje, não vendo no direito senão uma instituição humana, que
dmarmca representada pelo misticismo (cap. III). Mas, ao o fato incriminado não pertence ao direito, mas fica nos domí-
mesmo tempo que considera essas concepções da moralidade e nios da religião e da moral. Assim que um juiz humano, ainda
da religião como opostas uma à outra, apresenta-as como com- que inspirado por Deus, decide da sanção, o mandamento se
plementares, participando juntas de uma concepção mais rica, transforma em regra de direito, ainda que de origem divina.
em que a moral fechada e a religião estática não passariam de Diremos que estamos no domínio jurídico se existirem proce-
m~~:ntos de uma evolução direcionada a uma moral e uma dimentos que precisem quem é competente para dizer o direito
rehg1~0 depuradas (pp. 66-67 ' 227). e quais sanções humanas devem ser previstas em caso de viola-
E ó~vio que ª mesma multiplicidade de sentidos se encon- ção da regra. Vê-se, por exemplo, como a nossa visão moderna
trabnas diversas concepções do direito, ora ordem de um poder do direito nos permite distinguir o direito da moral e da reli-
so . erano, ora expressão da justiça. Como precisar por conse- gião, mesmo quando é a tradição religiosa a fonte reconhecida
gumte, de uma forma sat. f t , . ' de todas as regras de conduta.
dº . is a ona, as relações , numa cultura do
rreito com a moral e a religião? ' Observe-se, desde já, que na tradição cristã, de Paulo de
Parece-me que p Ob . Tarso a Tomás de Aquino, as coisas se apresentam de forma
ca a úru·ca b d ' ara viar essa dificuldade metodológi-
, ª or agem defensave
histórico de um
, 1 ,
sera notar como, no contexto
muito diferente. Opondo a fé à lei, Paulo precisa que a lei só se
a cu1tura uma certa . - d impõe aos que são circuncidados, ao passo que o que conta,
se combina com u ' visao a moral e da religião para os outros, é unicamente a fé operante pela caridade (Epís-
ma certa concepção do direito. Somente após
314
ÉTICA E DIREJTo A ÉTICA
315
tola aos Gálatas , V, 3-6). A " nova aliança"
. se 1ouva ra da liberdade religiosa, est~ndida no século XVIll à liber-
moral da candade e do amor, e não numa le . _ numa reg de consciência. O p 1ura1·ismo re1·1g1oso ·
. g1s1açao dade ~em como co~se-
concerne aos Judeus. No mesmo espírito ~o , que só
. . . , mas de A . qüência a secularização?º Estado, que prdopoe co~ o fmahda-
distmgmu, entre os mandamentos , aqueles que d' . quino
. d . se tngern de do direito o estabelecimento de uma or em soem1 que asse-
nas ao povo JU aico, por ele qualificados de lei d ' . ape-
. . d 1vma e aq ure aos membros da comunidade política uma coexistência
les que se d mgem a to os , que expressam a 1 • ' Ue-
. e1 eterna ~acífica, sejam quais forem suas concepções religiosas . Numa
mamfestam aos homens sob forma de direito t ' e se
• - d - na ural cuJ· sociedade pluralista, um certo consenso estabelecerá, para ga-
prescnçoes evenam ser observadas por todos . ' as
. . . ' pois enunc. rantir a liberdade de religião, uma tolerância recíproca, que re-
re?r~s ~e uma JUS~l?~ u_~ 1v:rsal. :assando do judaísmo ~am dundará, nos Estados Unidos da América, na completa separa-
cnstianismo, a rehgiao Jª nao esta na origem de um 1 .P
·· d · · . a egislaçao
ª-
0
ção do Estado e da religião.
positiva, mas e uma Justiça umversal , que os prí • Não obstante, mesmo nas sociedades pluralistas, quando
•h nc1pes que
estabe1ecem a 1ei umana, tem de respeitar; quant
A

' . uma religião é nitidamente majoritária, é nela que em geral se ins-


e 1es sao - 1·ivres para mod e l a-la
' a, vontade. E, verdade o ao mais '
. ·
d rreito 1 d · · - . - .
natura , e mspiraçao cnsta mcluía certos p · , .
que esse _º
piram as decisões do legislador. Assim é q~e domingo será p:o-
. . . ' nnc1p1os clamado dia feriado legal nos Estados cnstaos, enquanto sera a
tais como a monogamia e a mdissolubilidade do matri A • '
sexta-feira nos Estados muçulmanos e o sábado no Estado de
. , . d momo
CUJO carater umversa 1po e-se contestar. ' Israel. De fato se estabelecerá, em cada Estado, um ajuste, variável
Desde a conversão de Constantino até o século XVII el conforme as circunstâncias, entre a liberdade de consciência e a pri-
. ·- .d p o
menos , a re 11giao era cons1 erada, na Europa cristã, 0 funda- mazia concedida a esta ou àquela religião. Assim é que, levando em
mento ideológico e institucional do Estado, do qual eram ex- conta a nacionalidade ou a religião, se flexibilizarão as regras nacio-
cluídos aqueles que não professavam a religião estabelecida. nais em favor dos estrangeiros e dos adeptos de outra religião. Mas
Se eram tolerados no Estado, era graças à proteção do Príncipe, cada Estado sempre estabelecerá limites à liberdade religiosa Ir-se-
sem que nada os protegesse contra a arbitrariedade do próprio á tolerar, em nome da religião, a recusa do serviço militar ou da
Príncipe. vacinação preventiva? Ir-se-ão admitir o canibalismo, o assassínio
Em conseqüência das guerras de religião que ensangüen- ritual ou o uso de drogas de todo tipo? Enquanto o pluralismo reli-
taram a Europa, prevalece, no século XVII, a regra cujus regia gioso implica certa tolerância, as exigências da vida em sociedade
ejus religio : o soberano é que tem o direito de decidir da reli- impõem limites a esta, que são variáveis no tempo e no espaço.
gião de seus súditos. Estes podem, eventualmente, deixar o É fácil transpor para as relações do direito com a moral o
país, mas não podem participar da vida pública se não compar- que dissemos das relações do direito com a religião. Uma moral
tilham a religião do Príncipe. Sabe-se que tal compromisso de inspiração religiosa nos ordena obedecer aos mandamentos
pouco durou. Já na segunda metade do século, erguem-se divinos, sejam eles quais forem; é imoral desobedecer-lhes. O
vozes preconizando a tolerância religiosa. Conhecem-se as direito virá em geral punir tal desobediência. Numa sociedade
cartas sobre o governo de Locke, que denega ao Príncipe qual- em que domina uma religião, a moral e mesmo o direito nela se
quer competência em questão de salvação individual. Este não inspiram. Mas, numa sociedade que aceita o pluralismo religio-
é mais qualificado do que qualquer outro para conhecer a ver- so, já não é a verdade religiosa, mas sim o respeito à liberdade
dade em matéria religiosa. É essa a tese que será retomada em questão de religião e de consciência que se toma o valor ftm-
pelos partidários protestantes de um direito natural fundamen- damental. E sta é concebida como a expressão da dignidade e da
autonomia da pessoa.
tado na razão, tais como Pufendorf e Wolff. A razão impõeª
316
ÉTICA E DIREITO
Enquanto numa sociedade d . d A ÉTICA
. , omma a por um . 317
?u _P~r uma ideologia considerada verdadeir a re 1tgião
à existência de um conjunto de "princípios gera·1s do d"1re1to
·
md1v1duo é menosprezado em t d . . a, o pape\ do . ..
dinado ao das instituições 'e da io o ca_sdo dn1t1damente subor- comuns aos povos CIV1hzad~s" . Mas a existência de tal cul-
. . mum a e , com O 1 . tura comum , de uma comunidade organizada que a e
mo , tanto rehg1oso como ideo\o' . _ P urahs- . . d" ncarne,
.
d a d e e de dignidade da pessoa qg1co, sao os valores d . faz surgir 1m~ iatamente o problema do valor que se atribui
t·· f e 11ber-
. . ue imn am tanto e a essa comumdade e da importância que há em defender-lhe
como em due1to . Assim é que dep . d m moral
. . , 01s os excessos d . a independência. Assim , é indispensável temperar O indivi-
na1-socialismo, as constituições de grand , o nac10- dualismo da doutrina dos direitos do homem, tão logo apare-
. 1, e numero de ,
me unam em seu texto artigos que p t . . pa1ses cem as instituições jurídicas que os garantem. Ora, estas
. . ro egem a d1gmdad d
pessoa e vedam d1scnminações de toda , . e ª pressupõem comunidades organizadas sem as quais, na falta
•f _ espec1e A melh
mam estaçao desse novo clima é a Declaração U · . or de um Estado de direito, os direitos do homem se prendem à
Direitos do Homem . mversal dos utopia 2 •
Esta declaração, expressão de certo humanismo un· O rápido esboço das relações entre direito, moral e reli-
lista, manifesta a importância concedida a aspiraço- e d iversa- gião no Ocidente, deveria ser completado, como já assinala-
s e ordem
puramente moral. Mas só pôde estabelecer-se um acordo uni- mos, pelo estudo das mesmas relações na África e na Ásia.
versal sobre tal documento - do qual a maioria dos t Somente depois é que se poderiam arriscar conclusões filosófi-
, . . ermos se cas que não fossem por demais arbitrárias.
prestam as mais variadas interpretações - porque cada Estad
se reservava o direito de interpretá-lo à sua maneira. Um doeu~
mento assim só terá adquirido um alcance jurídico no dia em
que for estabelecido um tribunal competente para interpretá-lo
e para dirimir os litígios suscitados por sua aplicação. É por
§ 20. Moral e livre exame 1
isso que foi dado um passo decisivo em 4 de novembro de
1950, quando foi assinada a Convenção Européia de Salva- Se tentamos caracterizar o conjunto das discussões relati-
guarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamen- vas ao princípio do livre exame, constatamos que este foi anali-
tais, que não se contentou em adotar um texto, mas instituiu, ao sado sobretudo em suas relações com a Ciência, com a busca
mesmo tempo, uma Comissão e sobretudo um Tribunal dos da Verdade. Um argumento impositivo não deve vir opor-se ao
Direitos do Homem, habilitado para dizer o direito em caso de progresso do pensamento, ao progresso dos nossos conheci-
contestação. mentos . É essencial julgar as proposições teóricas consoante
Note-se, a esse respeito, que é fácil obter um acordo uni- provas que podemos apresentar em seu favor e independente-
versal sobre uma declaração puramente moral , que cada qual é mente da autoridade da pessoa que as enuncia; esta pode, de
livre de interpretar à sua maneira; outra coisa é aceitar subme- fato, constituir um obstáculo ao progresso do pensamento na
ter-se às decisões obrigatórias de uma autoridade judiciária busca da Verdade . O princípio do livre exame adquiriu, assim,
competente. A confiança que se lhe concede pressupõe a exis- um sentido muito preciso no campo teórico, mas terá ele tam-
tência de certo consenso sobre os valores fundamentais de uma bém alcance prático? Poderá ele guiar-nos, ser-nos de alguma
comunidade e sobre a primazia que se concede a este ou aquele utilidade, em matéria moral ou política?
Observe-se que, durante séculos, a tradição filosófica _bus-
valor ou aspiração. Uma comunidade ideológica assim remete
cava também a verdade no que tange à conduta. A partir da
a uma história comum , a uma cultura e a uma tradição comuns,

l

ÉTICA E DIREITO A ÉTICA 319


318
enão uma única moral verdadeira, as religiões são tão incapa-
nature Za do universo ' da natureza
. das coisas
. . ou . da natureza do :es de no-la garantir quanto as filosofias. Isso não impede que
hom , em tentava-se defimr a verdadeua
. Justiça, encontrar as
ras corretas, aquelas que senam eternamente válidas . E, se elas sejam apresentadas como capazes de fornecer um funda-
reg 'd f' . , . ento absoluto à moral , e pretendam mesmo ter uma resposta
essa busca pudesse ter s1 o pro 1cua, o pnnc1p10 do livre
exame teria tido inegáveis conseqüências práticas. Infelizmen- : todas as questões e a todas as aspirações éticas. Os manda-
te, as investigações filosóficas não conduziriam a um acordo mentos divinos bastam para fundamentar uma moral do dever;
sobre uma verdade única em matéria moral ou política. E 0
dever é obedecer aos mandamentos divinos , sejam eles quais
debalde Montaigne zombou dos desacordos dos filósofos· forem. Aquele que é tentado, não por uma moral do dever, mas
Pascal falará mesmo da loucura deles , da loucura daqueles que'. por uma moral de aspiração, aquele que aspira a realizar um
segundo Varrão, puderam apresentar duzentos e oitenta e oito ideal, a amoldar-se a um modelo de vida, as diferentes religiões
tipos de Soberano Bem. Pascal vê nisso uma prova da fraqueza têm com que satisfazê-lo: a moral cristã é a imitação de Jesus, a
da razão humana, a prova de que a verdade moral não poderia moral budista é a imitação de Buda. O ideal moral é a imitação
ser encontrada por um esforço filosófico. Deve-se procurá-la do ser divino ou quase divino que a religião nos apresenta. Para
na revelação religiosa. Apenas a religião nos permitirá conhe- quem é motivado mormente por interesses egoístas, as reli-
cer a verdadeira moral, que é a moral revelada. Como sói acon- giões aprimoraram a concepção escatológica de um juízo final,
tecer, Pascal tira partido da fraqueza das luzes naturais para com um paraíso e um inferno, de sorte que aquele que não vê
nos convidar a buscar a salvação em verdades de origem sobre- na nobreza moral uma justificação suficiente de sua conduta
natural. poderá encontrar na busca da salvação uma justificação suple-
A concepção segundo a qual não pode haver moral inde- mentar. O conjunto dessas justificações forma uma doutrina a
pendente da religião, segundo a qual toda moral está ancorada tal ponto impressionante que alguns puderam pensar que, sem
numa visão religiosa, ainda é freqüentemente defendida hoje. elas , a moral desmoronaria. Como proclama uma das persona-
Ela é sobretudo o cavalo de batalha de teólogos protestantes, o gens de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido."
mais das vezes americanos, que consideram que a função prin- Mas, efetivamente, uma mesma religião aceita concep-
cipal da religião é justamente fornecer um fundamento à mo- ções morais muito variadas. Para ficar convencido disso, nada
ral. "Se um agnóstico ou um ateu tentar formular uma moral, como o exame das sociedades cristãs, desde o cristianismo pri-
esta se ressentirá de uma maneira inegável das tradições reli- mitivo, passando pela sociedade feudal da Idade Média, pelo
giosas de seu meio. Por mais que ele pretenda enunciar teses cristianismo do Renascimento e da Contra-Reforma, até o cris-
puramente racionais, o fato de ele viver numa sociedade domi- tianismo contemporâneo. A mesma religião, os mesmos textos
~ad~ pelQ hinduísmo, pelo confucionismo ou pelas tradições sacros aceitam interpretações muito variadas, adaptadas às
Judaico-cristãs, influenciará a tal ponto suas convicções que necessidades de cada sociedade, em determinada época de seu
suas origens religiosas ficarão patentes para qualquer mente de desenvolvimento. A moral seria de origem não religiosa, mas
boa-fé."2 sociológica.
. Não creio poder contestar esta afirmação : há uma nítida Na verdade, dirão, não são as religiões que cada vez fun-
afinidade entre as morais laicas desenvolvidas por filósofos e damentam a moral; a tradição cultural de cada sociedade é que
as conce - re1·1g1osas
. pçoes · de seu meio. Mas o fato de haver tan- lhe permitirá elaborar, a um só tempo, suas concepções morais,
tas_ r~~tgiões quantas filosofias há nos permite voltar contra a jurídicas e religiosas. A moral seria a expressão de uma socie-
religiao O argumento pascaliano contra a filosofia . Se não há dade, em dado momento de sua evolução. É essa a tese da

1
320 ÉTICA E DIREITO
A ÉTICA
321
moral sociológica, defendida por Durkheim e, mais partic 1 ode explicar-se pela razão. São as paixões as _ ,
. , l L, B u ar- P • ' emoçoes e 0
mente, por seu d1sc1pu o evy- ruhl , numa obra de gra d senso moral que pod em motivar-nos a ação· para '
' compreender
repercussão: La mora/e et la science des mceurs. Nela ele ~e~ a moral, há que empreend er estudos de psicologia.
senvolve a tese de que, ,
em
.
cada_
época, em cada meio , O JUlZO
· , o tratado. de Hume, que é um "Ensaio para tromrro m
· d .
moral, que concerne as s1tuaçoes concretas, é muito mais método expenmental nos assuntos morais", elabora um .
. . . , . segu- . . . 'bTd a psico-
ro do que as teonas morais e os pnnc1p1os morais am·, d logia e msiste na imp,?ssi i i ade de uma filosofia moral. Os
muito divergentes, destinados a justificá-lo. Daí re~ulta lU e princípios da ~oral, nao param de repetir depois de Hume, não
- se deve concebera mora1 como uma ciência dedutiva q~
nao podem ser racionalmente fundamentados . E num artigo recen-
que as conseqüências poderiam deduzir-se de princípios g ' ei:n tíssimo6, o professor Leonard G. Miller procurou dissociar esse
'd d' . . . era1s cepticismo c~ncemente ~ moral do ~smo moral a que tal cepti-
ev1 entes, mas como uma 1sc1phna mdutiva cujos dado 101 · •
ciais seriam fornecidos pelos juízos morais particulares . Ms : cismo podena conduzu. Na realidade, diz-nos esse filósofo
· • 3 , • os
tre1 em outro artigo_ o _qu_e ha de ~adequado na assimilação da canadense, não é porque as regras morais não podem ser racio-
moral quer a uma d1sciplma dedutiva, quer a uma ciência ind _ nalmente fundamentadas que não devemos pautar por elas a
tiva. ~ ~P?rtante, para mim, é que numa concepção purame~- nossa ação, pois a razão, não podendo fundamentá-las , é tam-
te so~10l~gica da moral, assim coi:no ,n~ma concepção religio- bém incapaz de combatê-las. Ela não nos pode fornecer razões
sa, nao ha lugar nenhum para o prmcip10 do livre exame. Pois contra uma determinada moral. E conclui afumando que pode-
em ambos os casos, o comportamento moral não passaria d~ mos levar uma vida moral independentemente de seus funda-
obediência e de conformismo. mentos racionais.
Haveria meios de elaborar uma filosofia moral que não Tal conclusão teria sido satisfatória se a moral fosse ape-
f~sse puro conformismo, e a razão poderá nos ser de alguma nas conformismo , se consistisse pura e simplesmente em se-
aJuda nessa questão? As tendências anti-religiosas e antimetafí- guir as regras que nos inculcaram com o leite materno, como
si_cas em filosofia, representadas pelo empirismo e pelo positi- dizia Descartes a propósito da moral provisória. Mas, então,
vismo, se opuseram, há mais de dois séculos, à idéia de uma mais uma vez, não há lugar nem para a reflexão moral, nem
~azão prática. Seu porta-voz mais eloqüente e mais influente é, para a filosofia moral, sem as quais o princípio do livre exame
mcontestavelrnente, o filósofo inglês David Hume que, em seu ficaria totalmente alheio à moral. Cumprirá resignar-se a esta
Tratado da natureza humana, insiste no fato de que : "A razão última conclusão? Não o creio.
serve para descobrir a verdade ou o erro. A verdade e o erro De fato , há meios de apresentar outra concepção da razão
co~sistem no acordo ou no desacordo, seja com as relações reais, e do raciocínio diferente daquela que foi tra~~ionalm~n~e
s:ia ~om a existência real e os fatos reais. Logo, tudo quanto ensinada, tanto pelo racionalismo como pelo empmsmo c~a:s1-
nao e suscetível desse acordo ou desse desacordo não pode ser cos. A razão não é unicamente a faculdade de perceber eviden-
nem verdadeiro nem falso e jamais pode ser um objeto de nossa cias capazes de nos guiar no raciocínio dedutivo e indutivo. Se
4
razão." A razão pode ensinar-nos unicamente o que é, e não o não houvesse senão essas duas formas de raciocinar, ª fi~o~ofi~
que d~v~ ser. "Não é contrário à razão", diz Hume, "preferir a moral seria impossível. O importante, para o nosso ~roposito, e
. timos quan-
destrmçao do mundo inteiro a uma arranhadura de meu dedo. notar que raciocinamos igualmente quando discu ' .
. ,
do deliberamos quando pesamos o pro e O co ntra Quando cn-
Não é contrano' · a' razao - que eu escolha arruinar-me completa- ·
. ' . ·gualmente nossas
mente para prevenir o menor mal-estar de um índio ou de uma hcamos e procuramos justificar, aphcarnos 1 'tica e
pessoa completamente desconhecida minha." 5 A vida moral não faculdades de raciocínio, e podem-se conceber uma cn
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA
322 323
. - ·onais Ora essas atividades são essenciais aceitar as ordens, os mandamentos, as regras e os ideais tal
urna jusuficaçao raci , . . ' como eles nos vêm do exterior, tais como a tradição no-los for-
, ática e em especial, a vida moral. . .
ª pr Que se' deve JU· sti'ficar
. , como se pode JUStlficar,
. quando
. se nece , se podemos confrontá-los uns com os outros, tentando
· t'fi ação? Toda J
·ustificação diz respeito a uma estabelecer uma coerência em nosso pensamento, reformulan-
ede urna JUS i ic . -
P
açao _ a urna esco lha , a uma decisão, a .uma. pretensao. Mas. nem. do e hierarquizando as normas e os valores, nesse momento
' - toda decisão deve ser Justificada. Deve-se Justi- uma filosofia moral se toma possível.
toda açao, nem . 'fi - ••
ficar apenas O que necessita de uma. JUStl .icaçao, , porque cnti- Essa filosofia moral já não será alheia a todo contexto his-
menos criticáveF. Mmto ammde, de fato , a busca tórico e cultural ; ao contrário, ela se situará no interior desse
cado ou Pelo . . s
de uma JU · sti' ficação nos parecena mcongmente.
, . e tenho
_ um . contexto, que fornecerá a própria matéria de nossa reflexão
tro e se cheoo pontualmente a hora combinada, nao virá moral, das razões pró e das razões contra, que deverão ser exa-
encon , e . 'fi _ S f'
, ente de ninguém pedir-me umaJUStl icaçao. e iz uma pro- minadas em nossa deliberação e nos permitirão decidir-nos.
amessa,
rn e cumpro-a ao pé da letra, não tenh o ?ec~ssi'd ade de Jus- .
Com efeito, nem todas as razões se equivalem, e nem todas são
tificar minha conduta. Só se deve, de fato , Justificar uma con- da mesma natureza. Há razões de oportunidade, que se tiram
duta quando pode ser-lhe dirigida uma crítica. ~ue é crit!car? É de determinadas circunstâncias; outras só valem para determi-
mostrar que uma ação se opõe a uma regra aceita, que nao con- nado meio. As razões morais são aquelas que acreditamos
seoue atingir o fim a que visa, que se opõe a um ideal reconhe- serem válidas para todos. Pretender-se-ia que as razões morais
cido. Noutros termos, toda crítica que exige uma justificação pudessem se tomar universais e, com isso, razoáveis. En-
se situa num contexto em que certas regras , certas nonnas, cer- contramos aqui outra concepção da racionalidade. Se há uma
tos valores, certos ideais já são aceitos. Sem isso, a crítica seria razão prática, ela só pode ser concebida em comparação com
impossível. Isto não quer dizer que essas regras, essas normas, valores e com normas que pretendemos poderem ser válidas
esses valores ou esses ideais não poderiam ser criticados por
para todo ser razoável. A filosofia moral se empenha em nos
sua vez, mas seria em comparação com outras regras , com
fornecer essas razões de alcance universal.
outros critérios, com outros valores. Uma crítica é inconcebí-
Mas não nos disseram que há várias filosofias morais,
vel fora de um contexto que pressupõe a adesão a certas regras,
diversas concepções do Soberano Bem, da Felicidade, do
a certos valores, a certos ideais.
Progresso? E não basta opor-lhes o "Reino de Deus na terra",
Se às vezes nos pedem para justificar uma decisão ou uma
pois este também pode ser concebido de muitas maneiras dife-
escolha, sem que tal pedido resulte de uma crítica prévia, e se
rentes, pois as visões religiosas do ideal moral não são menos
refletimos no significado de tal pedido, seu único sentido seria
obrigar-nos a imaginar críticas com o objetivo de refutá-las ou, numerosas do que as visões filosóficas. A multiplicidade des-
pelo menos, de mostrar em que a decisão adotada é menos su- sas concepções bastará para descartá-las a todas, a pretexto de
jeita a críticas do que as soluções que foram desprezadas. Pe- que são numerosas e de que nenhuma delas se impõe com a
dem-nos para ser o advogado do diabo, depois para refutar os evidência da Verdade? Seria esse efetivamente o caso, se a
argu~entos alegados em seu favor. Toda justificação é, pois, idéia de racionalidade devesse necessariamente ser vinculada à
relativa a uma crítica real ou eventual, e consiste na refutação de verdade.
dessa ~rít~c_a, ou numa modificação de atitude que permita es- O que caracteriza a idéia de verdade é que _ela é regida
capar a cntica. pelo princípio de não-contradição, e que a negaçao ?º verda-
_Mas, quando o espírito crítico pode aparecer, o princípio deiro só pode ser o falso. Se o que afirmo é verdadeiro, quem
me contradiz. so, pode estar errado. Mas, q uando se trata de filo-
do hvre exame está em seu lugar. Se não somos obrigados a
324 ÉTICA E DIREITO 325
A ÉTICA
sofia da ação, de filosofia prática, de filosofia dos valore er uma autoridade política foram distinguidas daquelas
várias concepções diferentes podem ser igualmente razoáve ·s, exerc . d , . d . ._ M .
1 exerciam a autonda e em matena e re 11giao. as a vm-
Esse fato explica o pluralismo filosófico e justifica a tolerân ~ · qule ão entre a ordem religiosa e a ordem política subsistiu
" . se so, h ouvesse uma verdade no eia
em filosofia. Com e1e1to,
. . que
cu açt tempo, mesmo no O c1ºdente, que Jean B o d m, º no entanto
tange à conduta, no que tange a va 1
. ores , sena imoral tolera ro °
tan ·derado uma mente 1·b
cons1 1 era1 , Ad 1
" na epoca, po e proc amar _ em
erro no que se refere ao essencial, a saber: nossa conduta République , em 1576: mesmo todos os ateus estao de
nossa vida moral. Mas, na verdade , há várias formas de se: sua , . • nh E
do acerca de que não ha cmsa que mais mante a os s-
razoável, e não é por não estarem de acordo sobre uma decisão acdo\ e as Repúblicas do que a religião, e que esse é o principal
por tomar que duas pessoas não podem ser, ambas , razoáveis. ta odamento do poderio dos monarcas, da execuçao - das 1eis,
. da
Mas a unicidade retoma de outro lado. Pois, vivendo nu- fun A • d . d d
obediência dos súditos, da reverencia os mag1stra os, o te-
ma sociedade em que decisões comuns devem poder ser toma- mor de proceder mal e da amizade mútua para ~om _cada qual;
das, em que certas regras devem ser seguidas, obrigações im- mpre tomar todo cuidado para que uma cmsa tao sagrada
postas a todos , haverá limites ao pluralismo e à tolerância. A cu dº .
não seja desprezada ou posta em d~vi?a ~?r ~spu~as: pms
ordem social exige certa disciplina, a submissão a leis e às deste ponto depende a ruína das Republ~cas. D~1? drre1to do
obrigações por elas impostas. Se a razão não nos fornece regras monarca de zelar pela manutenção da umdade rehg1osa, funda-
que se imporiam a todos por sua evidência e sua verdade, se mento da solidariedade de um Estado.
podemos conceber diversas formas de regulamentar a vida Em conseqüência das discussões que, nos séculos XVII e
pública e de dirigir os negócios públicos, dever-se-á por isso XVIII se seguiram às guerras religiosas, a idéia de que a autori-
tolerar a anarquia que resultaria da impossibilidade que há de dade política emana de Deus foi cada vez mais contestada e ,
chegar a acordos fundamentados numa objetividade que não graças à voga das teorias do contrato social, foi substituída pela
seria contestada por ninguém? Quando a ordem social não idéia de que todos os poderes e toda autoridade política ema-
pode ser fundamentada na unicidade da verdade, ela é obrigada nam da nação . Tomando a origem do poder e da autoridade po-
a suprir a carência disso resultante invocando a autoridade. lítica independente das considerações religiosas, contribuiu-se
A idéia de autoridade desempenha um papel central na para a secularização do Estado. As diversas constituições pu-
filosofia religiosa, política e mesmo moral. Numa sociedade deram, depois da derrubada do Antigo Regime, elaborar proce-
organizada, alguns devem ter o poder de legislar, outros o de dimentos que indicam como a autoridade , em matéria legislati-
julgar, de governar e de administrar. De onde lhes vem a autori- va, judiciária e governamental, é conferida pela nação, fonte de
dade, o que a legitima? A tradição, nesse ponto, faz a autorida- todo poder político. Essa secularização pôde prosseguir, apesar
de depender, acima de tudo, de Deus: toda autoridade emana dos ataques do clericalismo que queria que a autoridade políti-
de Deus, ou de um princípio sobrenatural, eis o que a história ca continuasse a depender, como no passado, de autoridades
nos ensina para começar. Deus será legislador, ele é que decidi- religiosas , que não admitiam a laicização do Estado.
rá quais serão aqueles que terão direito de governar em nome Por séculos a fio , a moral, bem como a política, se inspi-
da autoridade divina. Por todo o tempo em que toda autorida~e rou em considerações religiosas: a moralidade resultava da pie-
emana de Deus, assistimos à confusão de todas as ordens, reli- dade que ordenava a obediência às prescrições divinas e às leis
giosa, jurídica e moral. Nem a política nem a moral têm auto- sagradas da Polis. Porém, muito cedo, a institucionalização da
nomia alguma com relação à ordem religiosa. A separação se autoridade divina, graças aos sacerdotes e aos reis, encontrou
efetua em certo momento, quando as pessoas designadas para um contrapeso, que fazia justiça à autonomia da pessoa, num

L
ÉTICA E DIREITO
327
326 A ÉTICA

fenômeno notável, o nascimento da profecia. Numa sociedade ou a da consciência, trata-se todas as vezes de um recurso a um
em que toda autoridade ver:n de Deus , o profeta, que está e · cípio individual e autônomo de conduta moral.
contato com a divindade cuJ_ª voz escuta, utilizará essa palav:
pnn Embora a autoridade re 1·1g1osa,
· que emana d e D eus, possa l,,i
ditar regras de conduta em matéria religiosa, embora a autori- I'
divina para opor-se às autondades estabelecidas, tanto religio-
sas quanto políticas. dade política, que emana da nação, possa prescrever regras po-
Não é de espantar que, vários séculos mais tarde , os pro- líticas , existe um critério de conduta, que é próprio de cada um
testantes se tenham assenhorea~o da idéia de que a profecia de nós e ao qual nos dirigimos quando se trata de problemas de
continua para combater a autondade da Igreja romana. p consciência. É unicamente na medida em que se reconhece a
. f . b ara existência desse critério pessoal que se toma possível uma
esta, ao contrário, como
. . a pro ecia
. aca ou com os textos sa _
cros , toda palavra d1vma, e sua interpretação , deveria ser co- moral independente, a um só tempo, das autoridades políticas e
municada unicamente Pº:_ intem;é?io ?ªs autoridades religio- religiosas . Mas, por intermédio disso, reencontramos o princípio
sas. O fiel de~e, em questao de_fe , mclmar-se diante do magis- do livre exame, enquanto recusa de considerar um princípio de
tério da lgreJa. Em contrapartida, para os protestantes, 0 fato obediência, obediência a uma autoridade religiosa ou política,
de poder escutar e compreender diretamente a voz de Deus como o princípio primordial em questão de conduta. Compete
dará, a cada fiel , um princípio de autonomia . Essa concepção a nós decidir, em última instância, se convém ou não obedecer.
poderá laicizar-se, e dar origem à idéia de consciência moral Jamais poderemos , se formos um adepto do livre exame, des-
em conseqüência de sua junção com as concepções de orige~ vencilhar-nos de nossa responsabilidade argüindo, mesmo de
filosófica. boa fé , que nos limitamos a amoldar-nos às ordens de uma
O nascimento da filosofia moral na Grécia repousava na autoridade qualquer. Se é verdade que a obediência à autorida-
idéia de que havia normas objetivas no tocante à conduta de será o mais das vezes, como para Sócrates, a atitude reco-
moral, e de que o sábio, graças à sua razão, podia conhecê-las. mendável , cumprirá que seja em virtude de uma decisão de
Quando Sócrates se formula, no Críton , a questão de saber se obedecer que , assim como a de desobedecer, não nos permite
é moral desobedecer à lei, ele se instaura em juiz desta. É ver- eludir nossas responsabilidades morais. Assim é que , segundo
dade que se deixa guiar pela voz do " daimon" e que chega à o princípio do livre exame, à rejeição do argumento impositivo,
conclusão de que é melhor sofrer a injustiça do que desobede- em matéria teórica, se emparelha, em matéria prática, a auto-
cer à lei. No entanto; pelo próprio fato de se perguntar se deve nomia da consciência. Aliás, é unicamente nesta última pers-
desobedecer à lei, Sócrates reconhece implicitamente que está pectiva, quando a nossa consciência é considerada o penhor
de posse de um critério pessoal que lhe permite dizer sim ou ~rimordial de nossos valores, que a rejeição do argumento
não. Se a questão não tivesse sido: " Deverei antes sofrer a in- lll1positivo, em matéria científica, pode ser considerado em seu
justiça do que desobedecer à lei? ", mas " Deverei antes come- ~erdadeiro alcance . Pois , não o devemos esquecer, o respeito
ter uma injustiça do que desobedecer à lei?", sua resposta ª.verdade, o amor à verdade, é a expressão não de um juízo teó-
decerto teria sido diferente. Pois Sócrates mostrou que, peran- nco, mas de uma atitude moral. Mas por que é preciso que o
te semelhante alternativa, ele não hesitara em desafiar as auto- :alor concedido à verdade seja o (mico para o qual o argumento
ridades políticas. impositivo não possa ser a última palavra na questão? Há
. A tradição dos profetas unida à tradição filosófica permi- outros valores, tais como a justiça, a humanidade , a beleza,
tm a elaboração de um princípio independente de conduta: que todos os que consideramos valores absolutos, que deixariam de
se chame a voz de Deus em nós ou a do daimon , a voz da razão desempenhar esse papel para a consciência, se um princípio de

L
1
ÉTICA E DIREITO
328 A ÉTICA 329
• A • d se ser O critério primordial em questão de
bed1enc1a eves ,. 1· .
°conduta. C 15
om
• so a autoridade , pohtica ou re 1g1osa, se torna-
' • • l ·
jassem contestar, por mais precauções que pudessem tomar
contra O seu exercício efetivo."2
. , . valor absoluto, ex1gmdo, em qua quer crrcunstân-
na o uruco . . E .. A •
Na contin~ação de sua exposição, John Stuart Mill não
. bmissão incond1c10nal. ssa consequenc1a nos per-
cia, uma su . . d lb utiliza mais o termo "autoridade", substituindo-o regularmente
m1te. compreender a espec1fic1dade e uma mora aseada no
por "poder", como se esses termos tivessem sido sinônimos.
livre exame. . A • , •
Mas serão permutáveis esses termos? Se falamos dos detento-
É óbvio que a consc1encia de cada qual _tambem fo1 fonna-
res do poder dizendo "as Autoridades", queremos entender
da, que deve ser esclarecida ~ poAde _ser gmada, ma~ ~ a cada
com isso que seu poder é reconhecido, acrescentamos um
pess Oª que cabe , em última mstancia, a responsab1hdade
. . de
matiz de submissão respeitosa ou de lisonja, e, de tanto proce:
decidir-se e de agir. E apenas uma moral que faz Justiça ao livre
der assim , os dois termos vêm a ser considerados sinônimos. E
exame é que se revela apta para salvaguardar nossa autonomia,
isso que nos diz Littré, numa nota à palavra autoridade , onde
nossa liberdade e nossa responsabilidade.
admite que "numa parte de seu emprego essas duas palavr~s
são muito próximas uma da outra", mas acrescenta esta restn-
ção: "como autoridade é o qu~ auto~iza ~ po_der o que pode: h~
sempre na autoridade um matiz de mfluencia moral que nao e
necessariamente implicada por poder".
§ 21. Autoridade, ideologia e violência 1

Na realidade , ainda no século XVIII essas duas noções


eram concebidas como tão opostas quanto o fato e o direito.
As manifestações políticas, as campanhas de desobediên-
Assim é que o bispo e moralista inglês Joseph Butler, em seu
cia civil e a contestação universitária, que se alastraram pelo
segundo sermão, opõe o poder das paixões à autoridade da
mundo durante os últimos anos, foram apresentadas em quase
consciência, o que é seguido por causa de sua ascendência de
toda parte como uma rebelião contra a autoridade, sendo esta
fato ao que deveria ser seguido por causa de sua superioridade
identificada com o poder que, mercê do uso público da força, moraP. A auctoritas, em latim, é o que o tutor acrescenta à
constitui uma ameaça contínua às liberdades individuais. vontade do menor, validando-a; ele transforma uma expressão
É assim, como oposta à liberdade, que a autoridade é apre- da vontade, juridicamente sem efeito, em ato juridicamente
sentada, há mais de um século, por John Stuart Mill, em seu válido.
célebre estudo "On liberty" do qual gostaria de citar a seguinte É a uma oposição do mesmo gênero que se refere Jacques
passagem:
Maritain, no importante relatório intitulado "Démocratie et
"A luta entre a liberdade e a autoridade é o traço saliente Autorité", que ele publica no segundo tomo que o Instituto In-
das épocas históricas que se nos tomam familiares acima de ternacional de Filosofia Política dedicou ao Poder. Aí ele esta-
tudo nas histórias grega, romana e inglesa... Por liberdade, belece duas definições:
entendia-se a proteção contra a tirania dos governantes políti- "Chamaremos de autoridade o direito de dirigir e de
cos ... Antigamente, de um modo geral, o governo era exercido comandar, de ser escutado ou obedecido pelos outros; e de
por u_m homem, ou uma tribo, ou uma casta, que tirava sua 'poder' a força de que se dispõe e com cuja ajuda se pode obri-
autondade do direito de conquista ou de sucessão, que, seja gar os outros a escutar ou a obedecer. O justo privado de todo
co?1o for, não a obtinha do consentimento dos governados e poder e condenado à cicuta não diminui - ele cresce - em auto-
CUJa supremacia os homens não ousavam ou talvez não dese- ridade moral. O gângster ou o tirano exerce um poder sem
' '
-
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA
331
330
autoridade. Há instituições, o Senado da antiga Roma, a Co t Com efeito, aquele que possui o poder, sem a autoridade, pode
Suprema dos Estados Unidos
., , cuja_ autoridade aparece deu ma
re forçar a submissão, mas não o respeito .
forma ainda mais mam1esta por nao exer_cerem funções deter- Na tradição judaico-cristã, a autoridade não é uma noção
minadas na ordem do poder... Toda autondade, desde que toca jurídica, e sim moral: é vi~cul~da ao re~peito. O modelo da au-
à vida social, requer ser completada (de um modo qualq toridade assim compreendida e a do pai sobre os filhos, que ele
. . ,d. ) uer,
que não é necessana~e~te JUfl 1co por um poder, sem O que educa e guia, aos quais indica o que devem fazer e do que
corre O risco de ser va e meficaz entre os homens. Todo pode devem abster-se, que os inicia nas tradições, nos costumes e
que não é a e~pressã? d~ uma autoridade é iníquo. Separar ~ nas regras do meio familiar e social em que vão ser integrados.
poder da autondade s1gmfica separar a força da justiça."4 Uma autoridade derivada da autoridade do pai é a do professor,
Bertrand De Jouvenel, em seus notáveis estudos "Du Pou- que diz às crianças qual é a forma correta de ler e de escrever, o
voir" e "De la Souveraineté" insiste longamente na importân- que devem considerar verdadeiro ou falso . O professor disse ,
cia da autoridade em matéria política: magister dixit, é o exemplo por excelência do argumento impo-
"Chamo de Autoridade a faculdade de angariar o consen- sitivo. Em nenhum caso, nem na relação entre o pai e os filhos
timento de outrem. Ou ainda, e isso equivale ao mesmo, chamo sujeitos à sua autoridade, nem naq-u<:;la do professor com as
de Autoridade a causa eficiente de agrupamentos voluntários. crianças da escola primária, se pode pensar em igualdade. Com
Quando constato um agrupamento voluntário , nele vejo O tra- efeito, cada educação, mesmo cada introdução, em qualquer
balho de uma força, que é a Autoridade . área que seja, começa com um período de iniciação, no qual é
"Sem dúvida, um autor tem o direito de empregar uma pa- absurdo admitir a igualdade entre o iniciador e o iniciado. É
lavra no sentido que escolheu, contanto que disso esteja devi- indispensável conferir alguma autoridade a quem é encarrega-
damente ciente. Todavia, ele se presta a confusão se o sentido do da iniciação, mesmo quando se trata de uma relação entre
'1 dado é muito distante do sentido habitualmente aceito. Parece adultos . Se me dirijo a um professor para que me ensine rudi-
que estou nesse caso, pois que qualificam correntemente de mentos de química ou de chinês, é realmente preciso que, du-
"governo autoritário" aquele que recorre largamente à violên- rante o período de iniciação, eu me conforme com suas indica-
cia, em ato e em ameaça, para se fazer obedecer, governo do ções e com suas instruções. Toda crítica supõe o conhecimento
qual cumpriria dizer, segundo minha definição , que carece de da área em que ela deverá exercer-se. É por essa razão que é
autoridade suficiente para cumprir seus desígnios , de sorte que normal que a instrução primária seja mais dogmática do que a
preenche a margem com a intimidação. secundária, e que a instrução universitária se caracterize pela
"Mas essa corruptela da palavra é recentíssima, e atenho- formação do espírito crítico. Isto não é, aliás, unicamente uma
me a recolocá-la no fio reto de sua acepção tradicional." 5 questão de idade e de nível de instrução , pois, mesmo no ensi-
A mesma deformação, assinalada por De Jouvenel, se no universitário, no tocante às matérias desconhecidas do estu-
encontra naqueles que identificam a autoridade da lei com o dante, tal como o chinês, será inevitável um período de inicia-
temo~ da sanção, mas, de fato , a polícia só deve intervir se o ção, de aprendizado, mas ele se fará sobre uma base já habitua-
res~eito devido à lei não basta, por si só, para impedir sua vio- da ao espírito crítico noutras matérias.
laçao. Descartando toda a contribuição da educação. fazendo
tábula rasa do passado, Descartes foi levado a supor a existên-
. P;- autoridade se apresenta sempre com um aspecto norma-
tivo ' e o qu e deve ser segmdo
. ou obedecido tal como a auton- · cia de idéias inatas na mente de todo ser racional, o que condu-
dade da c · · 1 . ' .~ · ziu Rousseau , em Émile , à teoria aberrante segundo a qual não
oisa JU gada, a autondade da razão ou da expenencia.

1
JI

ÉTICA E DIREITO A ÉTICA 333


332
convém ensinar as ciências à criança: esta deve descobri-las paternalismo que exprimia essa atitude está bem desconsidera-
por seus próprios meios. Mas hoje sabemos que os métodos do hoje.
chamados ativos, necessitam do concurso de um professor mui~ A tradição filosófica do Ocidente, desde Sócrates até os
to mais competente e mais inventivo do que os métodos tradi- nossos dias, sempre foi oposta ao argumento impositivo; e isto
cionais, em que o professor, a rigor, poderia ter sido substituído em nome da verdade. Uma das razões da condenação de Só-
por um manual. crates foi que, em nome da verdade, ele se opunha à autoridade
O papel indispensável da autoridade do pai e do educador paterna. Mais tarde, Bacon opôs às autoridades tradicionais a
em relação às crianças de pouca idade não pode, pois, ser autoridade dos sentidos e da experiência. Descartes, a da razão.
racionalmente contestado. O problema real é saber em que mo- No conflito entre a Igreja e Galileu, este opunha a observação e
ment? e de que m~e~a a relação de autoridade deve ser pro- o método experimental à autoridade da Bíblia e de Aristóteles.
gressivamente substitmda por uma relação de colaboração crí- Os filósofos do Século das Luzes qualificaram de preconceitos
tica. E, sobretudo, qual é o papel da autoridade nas relações todas as afirmações apresentadas em nome de autoridades reli-
entre adultos. giosas ou laicas.
Observe-se que, na área política ou religiosa, apela-se E, efetivamente, toda vez que existem métodos fundamen-
com ~uita freqüência à imagem do pai para expressar O respei- tados na experiência, que permitem provar o valor de uma afir-
to devido a um chefe carismático. O pai da pátria é um chefe mação e controlar-lhe a verdade, nenhuma autoridade lhe pode
político, cuja ação foi, e às vezes continua a ser, criadora e pro- ser oposta: um fato é mais respeitável do que um lord mayor.
tetora. Os Founding fathers , os pais fundadores dos Estados Se, lançando mão, quer da experiência, quer de um cálculo,
Unidos da América, são os ancestrais que elaboraram a consti- cada qual, se não se enganar, chegará ao mesmo resultado, o
tuição americana e contribuem para o respeito de que esta é recurso à autoridade é não só inútil, mas até assaz esquisito.
cercada. O culto dos ancestrais é muito conhecido em numero- Para admitir que dois mais dois são quatro, não tenho necessi-
sos países da Ásia e da África. A tradição judaico-cristã é digna dade de autoridade nenhuma; quando métodos que todos
de nota a esse respeito, pois, para manifestar a Deus o respeito podem aplicar conduzem cada qual ao mesmo resultado, cada
e ~,,amo~ que se lhe deve, ele é qualificado de "nosso pai, nosso qual é igual e a invocação de uma autoridade é simplesmente
rei , no Judaísmo; e, no cristianismo, a prece cotidiana começa ridícula.
pelas palavras bem-conhecidas, "pai-nosso que estais no céu". Ora, durante séculos, a tradição clássica, apoiando-se em
O considerações ora religiosas, ora filosóficas, pôde pretender
d magistério
. , da Igreja se reporta, a um só tempo , à autoridade
0 pai e a do mestre, que conhece as verdades salutares e zela que existe uma resposta verdadeira a todos os problemas hu-
pela salvação dos fiéis. manos claramente expostos. Essa resposta, que Deus conhece
Na tradição hebraica, Deus é o detentor do poder político desde toda a eternidade, é aquela que todo ser dotado de razão
e to?º poder monárquico só pode resultar de uma delegação: o deveria empenhar-se em descobrir.
ungido do Senhor é o vigário de Deus, todo poder político ema- Mas será verdade que a qualquer pergunta que os homens
na de D~u~ e é responsável perante Deus. podem fazer-se razoavelmente existe uma única resposta que
Foi amda essa im agem do pai· que servm . para apresentar seja verdadeira? Poder-se-á admitir que, essa verdade, é possí-
na Idade Média vel encontrá-la, ou, pelo menos, que existem métodos que per-
. , as re açoes do Senhor para com seus rende1-. '
l -
mitem provar toda hipótese que se poderia formular a seu pro-
rdos, e, mais tarde, para tranqüilizar a consciência dos coloniza-
ores em relação aos povos de cor, essas "crianças grandes". O pósito?

L UNIVERSIDADE FEDERAL DE l:JBERlANDIA


S 1 8LIOTECA
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA 335
334
É inegável que, em ~rande número de áreas, quando se A ideologia democrática se opõe à idéia de que existem
regras objetivamente válidas no tocante à conduta, pois não se
trata de co nh ecimento ' o. ideal_ de verdade deva prevalecer so-
ualquer outra cons1deraçao. Mas , quando se trata de agir decide, com maioria, o que é verdadeiro ou falso . Aqueles que,
breq . . b ,
de saber o que é justo ou m~u~t~, o~~ ~u ma~ , ~ que deve ser como Godwin, o discípulo anarquista de Bentham, acreditaram
raJ·ado ou proscrito, ex1st1rao cntenos objetivamente con- que, em questão de conduta, há meios de determinar objetiva-
enco d d b" .
áveis? Poder-se-á falar de ver a d e .o Jet1va no que tange a, mente o que é "mais útil ao maior número" , se opuseram à idéia
tro l .
decisão e à escolha, quando se trata e md1car a conduta prefe- de que é indispensável um legislador para formular as nossas
rível? regras de conduta. E, de fato, em matéria científica não se pode
Se não for esse o caso, poderá a razão guiar-nos na ação? tratar de impor sua autoridade pessoal. Se cada qual possuísse
A idéia de razão prática será, como julgava Hume, uma contra- em seu coração e em sua consciência os critérios objetivos do
dição em termos? justo e do injusto, a idéia de recorrer a um legislador qualquer
Pessoalmente, creio que há um papel da razão prática pareceria não só odiosa, mas pura e simplesmente ridícula.
mas é puramente negativo: permite-nos descartar soluções de~ Se , no entanto, para nós, anarquia significa não só ausên-
sarrazoadas. Mas nada nos garante, em questão prática, a exis- cia de governo, mas também desordem, é porque, quando se
tência de uma única solução razoável: nesse caso, se não há trata de tomar decisões, de elaborar regras ou de escolher pes-
em questão prática, solução única, como a que nos fornece ~ soas para desempenhar certas funções , após ter descartado as
resposta verdadeira em questão teórica, a escolha da solução soluções desarrazoadas, é indispensável confiar a uma pessoa
depende, não mais da razão, mas da vontade. ou a um corpo constituído o poder de tomar uma decisão reco-
É nessa perspectiva que as leis , as regras obrigatórias num nhecida. Apenas o poder legislativo pode formular regras obri-
Estado, foram apresentadas como a expressão da vontade do gatórias nos limites de seu território. E, como tais regras po-
Soberano que, segundo grande número de teóricos, desde o dem muito amiúde ser objeto de interpretações divergentes, é
Trasímaco que Platão nos fez conhecer, até Marx, imporia a indispensável confiar a um poder judiciário a competência de
todos as leis que lhe são mais favoráveis , porque conformes ao dizer o direito.
seu próprio interesse. Os Poderes constituídos , encarregados de dirigir uma
Se, contrariamente aos teóricos do direito natural, segun- comunidade politicamente organizada, seriam bem pouco efi-
do os quais existem regras objetivamente válidas que o legisla- cazes s~ devessem contar apenas com a força para se fazer obe-
dor tem de procurar e de promulgar, as regras obrigatórias são decer. E essencial , para o exercício do poder, que sua legitimi-
a expressão da vontade do legislador, é no1mal que aqueles a dade seja reconhecida, que ele usufrua uma autoridade que
quem elas são impostas exijam participar da sua elaboração, angarie o consentimento geral daqueles que lhe são sujeitos. É
conceder-lhes seu consentimento , diretamente ou por intermé- esse o papel indispensável das ideologias. Sejam elas de natu-
dio de seus representanres. Assim é que, desde a Magna Carta reza religiosa, filosófica ou tradicional, elas visam , para além
?e 1215 , que prometeu aos nobres e aos burgueses que nenhum da verdade, à legitimação do Poder. Muitas vezes a legitimida-
imposto lhes seria impingido sem seu consentimento, vimos de deste resulta de sua legalidade, ou seja, do fato de ter sido
desenvolver-se progressivamente a ideologia democrática se- designado em confomlidade com os procedimentos legais de
gundo a qual os Poderes não emanam de Deus ou de seus re- eleição e de nomeação, mas isso supõe que esses próprios pro-
presentantes na terra, más da nação e dos ocupantes de seus ~edimentos não são contestados, que estão de acordo com uma
cargos eletivos. ideologia reconhecida, explícita ou implícita.
- ÉTICA E DIREITO
A ÉTICA
336 337
-ao procedimentos científicos , visando
f ·to nunca S forçam para impor-se, . a todos em nome da verdade. Mas , na
Com e ei ' d deiro ou O falso ou , pelo menos, o prová-
verdade, essas cnucas que uns opõem aos outros ensejam,
a estabelecer O váer ª que pennitem justificar nossas decisões
·mprov ve1. ' tanto para uns como par~ os outros, um progresso espiritual,
ve\ ou O 1 - es de agir de escolher ou de preferir: os
fornecem raz0 ' pois cada q~al , na medi~ª- em que leva em conta objeções
que nos . 'ti possibilitam estabelecer fatos , mas não os alheias, modifica sua posiçao quando ela lhe parece vulnerá-
cientl 1cos .
méto dos - es de agir ou de prefenr.
0 vel. Após um debate prolongado, e por vezes secular, as posi-
·derar como raz .
con s1 til sofias positivistas ou naturalistas, os únicos ções confrontadas estarão bem diferentes do que foram no
Para certas 1 o
. s ações consistem no prazer que elas propor- começo . t
ouvos de nossa . . f -
~ ofrimento que evitam, na satis açao que nos Mas hoje assistimos, muito amiúde, não a uma luta entre
c1onam ou no s . . .
ennitindo-nos saciar nossos mstmtos, nossas ideologias, mas a uma contestação que, pouco se importando
podem dar, P d · .,... d · ,
'd d nossos interesses de to o tipo . .10 o Jmzo de com qualquer construção teórica ou tomando emprestado aqui
necess1 a es, . · 1· -
· amuflagem de um mteresse, raciona izaçao de um ou ali slogans inconsistentes, muitas vezes contraditórios, mas
valor sena c . ,
• .,... da ideologia não passaria da mascara enganadora de sempre insultuosos, se contenta em opor à ordem estabelecida
deseJ0. 10 . d . f E ,
uma açao - d'sci'plinadora
i ' a serviço o mais orte .. ssa e a tese a violência, negando qualquer autoridade ao Poder existente.
trai dos escritos de um Marx ou de um Nietzsche. Essa atitude pode encontrar sua justificação naqueles que
que se ex , d .d . d .
E efetivamente, a crítica filosofica a i eo1ogia omman- recusamos escutar, aos quais denegamos a qualidade de inter-
a'.ndo põe a descoberto os paralogismos e os sofismas que locutores e que são obrigados a recorrer à violência para se
te, qu 'd d ,
legi ·timam um poder fundamentando-lhe a auton a e, e apre- fazer ouvir. Mas a contestação, assim compreendida, só mere-
. p d , ºd
cursara da ação revolucionária. Assim que o o er e consi e- ce respeito se pode igualmente prevalecer-se de uma ideologia,
rado a mera expressão de uma relação de forças , não se hesita que reclamaria, por exemplo, o respeito à dignidade da pessoa,
em lhe opor uma força revolucionária a serviço de interesses ou a instauração de uma sociedade mais democrática. Apenas
antagonistas. Mas o partidário da revolução não pode conten- uma ideologia permite aos contestadores justificarem sua re-
tar-se em opor uma força revolucionária à força que protege a or- volta contra o apelo à polícia, em caso de desordens nas Uni-
dem estabelecida; deve, ademais, se fazer o apologista da ordem versidades , pois, sem ela, se tudo não passa de relação de for-
nova, que será mais justa, mais humana, que salvará o homem ças, por que se indignar com que os defensores da ordem esta-
de suas diversas alienações, devolvendo-lhe a liberdade perdi- belecida oponham a força à força?
da. Com isso, deverá ser elaborada outra ideologia para mostrar Na verdade, se faz parte da tradição nas Universidades
a superioridade da ordem nova sobre a antiga, da ordem revo- não recorrer a uma força externa para manter a disciplina, é
lucionária sobre a ordem estabelecida. porque, tradicionalmente, as Universidades desconfiam do Po-
Como os métodos científicos só podem, quando muito, der, considerando-o uma ameaça para a liberdade acadêmica.
servir para pôr em discussão os fatos de que se prevalece uma É em nome de um valor, o respeito à liberdade acadêmica, que
ideologia, mas não podem criticar as razões que lhe servem não se gosta de apelar a forças policiais, que poderiam consti-
para justificar suas preferências, é em nome de outra ideologia, tuir um perigo para a livre expressão das opiniões. É porque as
de outro ideal do homem e da sociedade, que a ideologia domi- Universidades são consideradas no Ocidente o santuário tradi-
nante poderá ser criticada. Mas essa nova ideologia também cional da liberdade de pensamento e de expressão, da livre bus-
não poderá escapar à crítica; o debate filosófico se apresenta, ca do verdadeiro e do justo, que devem ser protegidas contra o
assim, como uma luta permanente entre ideologias que se es- uso da violência, venha ela de onde vier. E é apenas em nome
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA 339
338
. e recurso à força pode ser proibido. Mas 0 fim de nossos atos; quando muito se pode pretender que pres-
ideologia qu O - ' supõe um egoísmo conseqüente. Mesmo então, caso o interes-
de uma d as ideologias, como nao passando de racio-
se se recusam to as si·stência se toda a v1·d a po l'1t1ca · e, apresen- se do agente é que deva fornecer, implicitamente, o critério pri-
. -essemcon , - - ,
na1izaço uma relação de forças , entao nao so o direito mordial no que tange à conduta, a prudência não nos diz se é 0
tada apenas como , . .d , . d eu concreto de cada um de nós que será juiz de seu interesse ou
. f , empre O melhor, mas a propna 1 eia e direito
do mais orte e s . 1~ . se é a um eu razoável , que se inspira num ideal de sabedoria e
ceder O lugar à mera vio encia.
desaparece para . . l l' . - de justiça, que se confiará essa missão essencial. No primeiro
· do para que a vida socia e po itica nao se resu-
Conc1um , .
r elação de forças , cumpre reconhecer a existên- caso, sendo a razão subordinada aos sentimentos, às emoções e
ma a uma p Ufa . .
. d Poder legítimo, cuJa autondade se fundamenta numa às paixões, ela ficará inteiramente a serviço das forças irracio-
eia e um ,. .d . ,
· reconhecida. A cntica dessa i eo1ogia so pode ser nais , individuais ou sociais. Unicamente se a razão prática pu-
1.deo1og1a . , . .
•1e1ta
• em nome de outra ideologia, e ,e esse conflito. das ideolo- der apresentar fins para a nossa ação, se puder contribuir para
..
· seJ·am elas quais forem , que elaborar um modelo do sábio ou do justo, se puder fornecer,
gias, . esta na base . _ da vida. espmtual
dos tempos modernos. Impedir a competiçao entre ideologias para julgar do valor dos atos , critérios independentes dos
siQllifica restabelecer o dogmatismo e a ortodoxia, significa su- objetivos, às vezes desarrazoados e amiúde opostos, dos agen-
b;rdinar a vida do pensamento ao Poder político. Denegar todo tes individuais, é que será fiel ao ideal secular da filosofia
valor às ideologias significa resumir a vida política a uma luta ocidental.
armada pelo poder, da qual sairá vencedor incontestavelmente O ideal do sábio, do homem virtuoso - por ter o conheci-
o chefe militar mais influente. mento daquilo que vale realmente , uma concepção racionalista
Permitir às Universidades funcionar sob a salvaguarda da justiça como caridade conforme à sabedoria, que procura
da liberdade acadêmica significa reconhecer a existência de propiciar o bem a todos , "conforme se pode fazê-lo razoavel-
outros valores que não a força, significa admitir que nenhum mente, mas na proporção das necessidades e dos méritos de
deles está ao abrigo da crítica, que nenhuma ideologia deve cada qual" 2 - pressupõe a existência de critérios objetivos de
poder contar com a força bruta para assegurar-lhe a sobrevi- valor que tornam possível uma ciência da moral. Os grandes
vência. filósofos racionalistas, de Platão a Leibniz, passando por Santo
Tomás , Descartes, Spinoza e Locke, propuseram-se todos a
elaboração de uma moral racional, mas se atritaram constante-
mente com os cépticos que alegavam divergências constan-
tes nessa área .
§ 22. Considerações sobre a razão prática 1 Como se sabe, o cepticismo propagou-se no Ocidente no
s~culo XVP, e o sucesso dos Ensaios de Montaigne, em espe-
Terá o ideal da razão prática um alcance filosófico ou cial o décimo segundo capítulo do segundo livro intitulado
deveremos reduzi-lo a um plano puramente técnico, ao do ajus- "Apologia de Raimond Sebond", não permitiu aos filósofos
tamento dos meios tendo em vista um fim? Damos o nome de modernos ignorarem o pirronismo. Uns, tais como Pascal, se-
prudência à virtude que nos guia na escolha dos meios mais guem Montaigne, até reutilizam a maioria de seus argumentos,
e~ca~es e mais rentáveis , que nos ensina a evitar os obstáculos e falam da incapacidade de nossa razão para conhecer a nature-
dific_llmente superáveis e a renunciar a empreendimentos de- za do soberano bem e a verdadeira justiça para chegar à con-
masiado temerários. Mas a prudência não nos permite aquilatar clusão da falência da filosofia nessa área e na obrigação que
340
ÉTICA E DTR 341
. E1r0 A ÉTICA
temos , ., para evitar o cepticismo , de a cei.t ar como , . se tenha tomado o ideal reconhecido dos filósofos racionalis-
matena de conduta a revelação divina , t a1 comoelunico guia em tas. E também que , por uma evolução totalmente natural, o
tou nas Sagradas Escrituras. Outros como D
~ '
ª se tnanifes-
escartes racionalismo, cada vez mais exigente quanto aos seus métodos,
za, creem que , reformando . nossos métod os e conhou.Spin0 _
d perseguidor implacável das intuições não-comunicáveis e dos
fiiand. o, apenas na evidência ' lograr-se-i· a construir . u ecimento , outros meios de provas que não fossem a experiência suscetí-
d ubitavel que comportaria uma ciência do m saber in- vel de repetição e o cálculo conforme às regras , tenha redunda-
. 1M . , . real e uma
raciona • . as o cnteno da evidência só se ap1ica . ao q moral , do no positivismo, no empirismo lógico e , no final das contas ,
d a d erro, e mesmo necessário , e a raz~ao n-ao pode p ue e ver- na eliminação da metafísica e na negação do papel prático da
zer-nos .conhecer
, . regras de conduta que , p or sua vez ' ortanto,
s, fa-
. razão.
ser obngatonas. • Com efeito , dir-nos-á Hu " '
me, a razao ~ podem Sabemos que , entre Descartes e o positivismo, um esforço
para d escob rrr a verdade ou O erro. A verdade e o erro c serve . admirável foi realizado por Kant para salvaguardar o papel da
tem no acordo e no desacordo, quer com as rel - _ ~nSis- razão prática, mesmo levando em conta as críticas de Hume .
.d , · açoes , ears d
i eias , quer com a existência · Logo, tudo
real e os fatos re ais· as Kant reconhece, assim como Hume , que "o dever expri-
- , ,
quanto nao e suscetivel me uma espécie de necessidade e de ligação com princípios,
. desse acordo e desse de sacardO nao _
pode ser nem_verdadeiro nem falso e jamais pode ser u b. que não se apresenta noutra parte em toda a natureza. O enten-
,, D , m o Jeto
dimento só pode conhecer, do dever, o que é,foi ou será . É
d e nossa razao
, . . ai resu _ 1ta que " ações podem ser louvave1s , •
ou censuraveis , mas nao podem ser razoáveis ou desarrazoa- impossível que algo nele deva ser de modo diferente do que é,
das"4. Não é contrário à razão , dirá ainda ele, preferir a destrui- de fato , nestas ou naquelas relações de tempo; de mais a mais,
ção do mundo inteiro a uma arranhadura de meu dedo5 • Não há o dever, quando se tem simplesmente diante dos olhos o curso
da natureza, já não tem o menor significado. É-nos tão impos-
passagem racional do que é para o que deve ser. Nossas con-
sível perguntar o que deve acontecer na natureza quanto per-
cepções morais são determinadas por nossos sentimentos e
guntar qual propriedade um círculo deve ter; mas é-nos possí-
pelos costumes de nosso meio: isto explica as extraordinárias ve~ perguntar o que acontece na natureza e quais são as pro-
divergências que se percebem a esse respeito, e a obrigação priedades do círculo" 1 • Daí resulta que a existência da morali-
que temos de renunciar à razão como guia de nossa conduta. dade nos obriga a reconhecer a intervenção das coisas em si em
Em vez de crer, como Spinoza, que a razão nos permitirá com- ~o~so ~niverso prático: com efeito , a lei moral, cuja existência
bater as paixões e ficar livres de sua escravidão, devemos reco- e megavel, permite afrrmar a existência de uma liberdade
nhecer que a própria razão está a serviço das paixões6, e não c~mo sua ratio essendi8 , sendo a causalidade pela liberdade defi~
pode , portanto, desempenhar, em moral, senão um papel su- mda ~orno a determinação da vontade pela razão pura prática,
bordinado. 'f ou SeJa, uma razão não-condicionada empiricamente9 • Como
Tanto os partidários como os adversários do pape~ ~ra ico se d eve~~, conce b er essa determinação da vontade pela razão
sa das cnucas do pura prat!~a? Como sua determinação por leis práticas objetiva-
da razão puseram-se , desde Descartes, por cau _ como
- da razao
cepticismo de acordo sobre uma concepçao , m~n_te validas . O primeiro capítulo da analítica da razão pura
' d · d b'tável
1 os vmcu- pratica começa com definições referentes aos princípios práti-
faculdade capaz de discernir de um mo o m uão devena . pe111»
...,...j_
cos e sua obiet1 ·v1·dad e.• " Pr'mc1p10s
, · , ·
praticos são proposições
los necessários . Apenas seme1bante concePç.
J
s cép-
. · · smalados pe10 que encerram urna determinação geral da vontade de que de-
tir opor-se ao pluralismo e ao relativismo as
• , · re geometnc• 0 , cuJ·os pende m vanas
, · regras praticas, . . Eles são subjetivos, ou seja,
ticos . Compreende-se que o raciocmio mo _ . d. utíveis,
_ . • t ões sao m isc
axiomas sao evidentes e cuJaS demons raç
ÉTICA E DIREITO
342 A ÉTICA 343
, . do a condição é considerada pelo sujeito como É nessa perspectiva que se compreendem os positivistas e
max1mas , quan - b. ·
,. t para a sua vontade; mas sao o Jetivos ou leis formalistas contemporâneos que, não querendo fazer a lógica e
vabda somen e · bº ·
,- do essa condição é reconhecida como o Jetiva, ou as matemáticas dependerem de fatores irracionais, e porque li-
praticas quan , l"1º A - .
- 'lºd para a vontade de todo ser razoave . racionah- mitavam a racionalidade à necessidade e à eficácia, rejeitando
seJa, va 1 a , _ ., _ d
dade de uma lei pratica Jª nao concerne, esta vez, a uma rela- ao mesmo tempo o critério da evidência, não encontraram, para
- d necessidade ou de verdade, mas ao fato de ela estabele- começar, nada melhor como fundamento dos axiomas dos sis-
çao e . . . 'lºd d
cer um princípio obJetivo, ou seJa, va i o para a vonta e de temas dedutivos do que o princípio da tolerância. -Não admitin-
todo ser razoável. do que a construção de uma língua ou de uma lógica se impo-
Essa extensão do campo de aplicação da razão, da área nha graças a evidências racionais e parecendo-lhes, por isso
teórica à área prática, só é possível com a condição de renun- mesmo, toda elaboração nessa matéria igualmente arbitrária, a
ciar a identificar a razão com a faculdade de enunciar ou de única atitude razoável só poderia ser a tolerância. Mas ultima-
reconhecer juízos necessários , que seriam os únicos evidentes. mente eles parecem ter compreendido, o que o Colóquio de
Definir a racionalidade pela submissão à evidência não apre- Varsóvia pôde atestar, que, se os sistemas dedutivos e em espe-
senta muitos inconvenientes, se o campo da evidência se es- cial seus axiomas não são evidentes, se não se trata nem de
tende não só ao conhecimento do verdadeiro, mas também ao demonstrá-los nem de verificá-los, pode-se, não obstante, pro-
do bem, do justo, do belo e de todos os valores considerados curar justificar as escolhas e as práticas do teórico. Isto marca
absolutos. Subordina-se, então, inteiramente o ponto de vista uma reviravolta em relação ao racionalismo clássico, uma re-
prático ao teórico, sendo a liberdade apenas a adesão à evidên- valorização da razão prática, intimamente associada à noção de
cia, sendo toda escolha, toda deliberação , apenas a expressão justificação. Mas tudo isso só é realizável, como tentaremos
de nossa ignorância. Mas uma filosofia moral , embora empo- mostrá-lo, deixando de identificar o uso correto da razão com a
brecida de alguns de seus elementos essenciais, continua redução de todo problema prático a elementos evidentes que se
mesmo assim concebível. Em contrapartida, se circunscreve- impõem a todo ser racional.
mos o campo da evidência, tudo que lhe é exterior se situa, Note-se, para começar, que a área da evidência é aquela de
nessa perspectiva, fora de qualquer racionalidade: é por isso que estão excluídas decisão e escolha, e deliberação prévia a
que, mormente depois de Hume, mas já um século antes em estas. Temos, de fato , de inclinar-nos diante da evidência: como
Pascal, partidário da identificação do racional com o que o nosso uso da liberdade não admite hesitação nenhuma, a
depende do espírito matemático, a área dos valores dependerá única atitude concebível é a submissão ao evidente. Mas, na
de fatores irracionais, tais como o coração, o sentimento ou a ausência de alternativa na ação, toda consideração de justifica-
revelação. Mas , nesse caso, a reflexão deixa de ser filosófica e ção fica despropositada.
se reduz à avaliação técnica de nossos atos , enquanto meios ou A justificação concerne, de fato , a nossas ações e a nossas
obstáculos que favorecem ou desfavorecem a realização de pretensões, a nossas escolhas e a nossas decisões; não concer-
fins cuja racionalidade nos escapa. Estes dependem de um ne, propriamente, nem a proposições (statements) que pode-
condicionamento psíquico ou social, de nossas inspirações mos demonstrar ou verificar, mas não podemos justificar, nem
religiosas ou ideológicas, que nos determinam os pensamen- a agentes que podemos tomar responsáveis ou não dos atos que
tos e os atos e permitem explicá-los , mas não os justificar. cometeram, mas são esses próprios atos que serão criticáveis
Pode h~v~r, nessa concepção, causas para determinar as nos- ou justificáveis.
sa~ decisoes e as nossas escolhas, mas não razões para guiar e Quando se procura justificar uma proposição, o que_se
onentar a nossa liberdade. justifica efetivamente é o fato de lhe aderir ou de a enunciar:

li
344 345
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA
não se justifica senão o comportamento do só tempo, discutível e discutido. O que vale em si, enquan-
. . agente , most d
que f 01 com Justa razão, porque a proposição , d ~an o ~:valor absoluto, não pode, pois, ser criticado nem justificado,
, 1 - . e ver adeir
provave , que a adesao foi concedida. Justificar a ou tendendo todo esforço nesse sentido a transformá-lo num valor
ºfi . . . um agente .
m ica, seJa Justificar-lhe a conduta seJ·a mostrar _ sig- relativo e subordinado.
, ' que nao ,
ponsavel por ela, mas então se trata antes de escu d e res- A análise que precede nos ensina que qualquer crítica,
justificação. sa O que de bem como qualquer justificação, pressupõe a adesão indiscuti-
Mas , se a justificação sempre se refere a um - da, pelo menos temporariamente, às normas e aos fins em
. • - . .. a açao ou
uma d isposiçao para agrr, admitrr a possibilidade d . .ª nome dos quais a crítica é apresentada. Cumprirá, para que a
-
fiicaçao . 1 . . e uma JUsti
raciona significa admitir ao mesmo tempo u ,- crítica seja pertinente, que tais normas ou tais fins usufruam
. d
t ico - - 1· . m uso pra-
a razao, nao imitando esta à faculdade de d. • um acordo universal e inabalável? Isso não é de modo algum
_ , . iscemir rela-
çoes necessanas , nem sequer relações referentes ao d d . indispensável. Concebe-se perfeitamente a possibilidade de
. . ver a erro
ou ao falso. Isso porque toda Justificação racional - uma crítica relativa, concernente, por exemplo, à ilegalidade de
. . - , supoe que
rac1ocmar um ato, mesmo da parte dos qm; se opõem à lei invocada, seja
. .nao e somente demonstrar e calcular, é tamb,em de1i--
b erar, cnticar e refutar, é apresentar razões pró e contra é qual for a razão de sua atitude. E possível, de outro lado, que a
numa palavra, argumentar. A idéia de justificação racionai ,' confrontação de um comportamento com uma lei que ele trans-
de fato, inseparável da idéia de argumentação racional. e, gride enseje a ocasião de uma crítica desta última, que a subor-
Não nos acudiria à mente justificar cada um de nossos dinemos a regras (de direito natural, por exemplo) de ordem
atos nem cada uma de nossas crenças . Tal empreitada seria superior ou a um fim que essa lei deveria realizar, e que nesse
insensata, pois completamente irrealizável; só poderia levar a caso realiza menos bem do que o ato criticado. É ao querer
uma regressão ao infinito. A empreitada de justificação só po- escapar à precariedade de uma crítica e de uma justificação
de ter sentido se os atos que cabe justificar não possuem as pro- relativas a normas e a fins particulares, limitados no tempo e no
priedades que exigimos dos atos que escapam à crítica e, por- espaço, que o filósofo , contrariamente ao jurista, inicia a busca
tanto, à necessidade de justificá-los. de normas e de fins absolutos, ou seja, indiscutíveis.
Esta análise nos esclarece sobre o fato de que toda justifi- Sua busca terá possibilidades de ser bem sucedida? Pode-
rá ele, partindo do fato inegável de que , em toda realidade e
cação pressupõe a existência, ou a eventualidade, de uma apre-
para toda mente, há comportamentos, normas e modelos indis-
ciação desfavorável referente ao que cabe justificar 11 • Toda jus-
cutidos, que não cabe portanto justificar, passar daí para a afir-
tificação é, de fato , a refutação de uma crítica concernente à
mação da existência de comportamentos, de normas e de mo-
moralidade, à legalidade, à regularidade (no sentido mais lato):
delos indiscutíveis, porque escapam para sempre a qualquer
à utilidade ou à oportunidade de um comportamento. D~i crítica? Como passar da adesão a certas normas e a certos mo-
resulta que a própria possibilidade de uma crítica prévia àju~tI- delos , que constituem apenas um fato, individual ou social, tal-
ficação supõe a adesão a normas ou a fins em nome dos quais ª vez precário, para a afrrmação de seu valor absoluto?
crítica é avançada. Na medida em que uma conduta se amolda O absolutismo pode, efetivamente, apresentar seu absoluto
indiscutivelmente às normas aceitas ou realiza plenamente os como transcendente a toda norma e a todo valor como sendo a
fins reconhecidos , assim como em todos os casos em q~e ela origem e o fundamento de todas as normas e valo~es a que aderi-
não deve amoldar-se às normas e não pretende persegurr fins mos. Mas, então, o problema real com o qual ele se defronta não
, , ,· ao pro- co . ,
determinados , ela escapa, a um so tempo, as cnt_icas e , a ncernrra a esse absoluto que, por definição, escapa a qualquer
cesso de justificação. A justificação só diz respeito ao que e,
346 ÉTICA E D!REtro
A ÉTICA 347
crítica mas aos valores e às normas na medida em que
• . enc _ casos de aplicação imagináveis? Já não é uma única regra geral
tram nesse absoluto seu fundamento mabalável. Se ele 00 _
.. d s sao e vaga, mas toda uma legislação minuciosa que o absolutismo
múltiplos cumpnna estar seguro e que , em nenhuma ci·
' - rcuns- deveria garantir, legislação que não teria necessidade nem de
tância, chegam a opor-se, de que sao sempre compatívei
. . _ . s, se- juízes nem de advogados para a sua aplicação imediata e cujas
J·am quais forem as s1tuaçoes a que se devenam aplicar p
. • arece- diversas regras pretenderiam impor-se absolutamente e para
me que, mesmo nesse ponto, o absolutista poderia justificar a
sempre.
legitimidade de sua tese, apresentando exemplos de nonna d À míngua de satisfazer a essas condições, o absolutismo
.
validade uruversa . como " deve-se fazer o bem e evitar
1, tais s e
0 se resume a uma aspiração ao absoluto, pois os problemas con-
mal", "não se deve fazer nenhum ser sofrer sem necessidade" cretos só são suscitados e resolvidos efetivamente quando se
"é preciso que a máxima de nossa ação possa valer sempre ' toma em consideração normas e valores múltiplos, aos quais
. , ao
mesmo tempo, como regra de uma legislação universal", "de- aderimos de fato com intensidade variável. Essas normas e
ve-se sempre procurar o maior bem do maior número", etc. esses valores fornecerão o contexto inevitável, sem o qual ne-
Embora seja verdade que cada uma dessas regras expressa, à nhuma razão poderia orientar-nos os atos, as decisões e as ati-
sua maneira, normas que podemos qualificar de absolutas, quem tudes, pois nem a crítica nem a justificação podem exercer-se
não vê quantas discussões inumeráveis e sempre renascentes num vácuo espiritual. Toda crítica se exerce em nome de uma
não poderão deixar de surgir quando se tratar de precisá-las norma, de um fim , de um valor, supostamente admitido, com o
perante casos concretos de aplicação 12 ? O absolutista ousará qual é confrontado o que se critica, para mostrar suas insufi-
pretender que as soluções assim fornecidas , em cada caso, ciências.
escaparão para sempre a qualquer crítica, e conservarão o valor O caso mais banal de justificação resulta da prova de que
absoluto concedido à regra geral e indeterminada? Cumpriria, o comportamento criticado é conforme à norma, realiza o valor
de fato , que não só as leis fossem absolutas, mas que fossem ou o fim invocado. Tal justificação pode comportar elementos
acompanhadas de técnicas de interpretação indiscutíveis que de fato e de direito. Provar-se-á que os fatos criticados não
permitissem, a todos aqueles que as devem aplicar, chegar à ocorreram, que ocorreram de modo diferente, ou que não são
mesma solução, tão indiscutível quanto a norma geral. Se não imputáveis a quem é criticado, devendo esta explicação forne-
fosse esse o caso, como o valor absoluto da norma não prejulga cer uma causa de escusa para o agente. A descrição dos fatos
o valor das conseqüências que dela se tiram, o absolutismo teó- poderá, se for o caso, ser acompanhada de outra interpretação
rico se conciliaria perfeitamente com um relativismo prático, da norma, do valor ou do fim , de modo que se chegue a uma
pois as críticas e as justificações têm como objeto as variadas qualificação dos fatos de que resultará a rejeição da crítica.
interpretações suscitadas pelas necessidades da prática. O Quando se tratar de aplicar a lei, haverá juízes para aquila-
absolutismo axiológico se toma uma teoria filosoficamente tar o valor da prova, haverá em geral regras que regulamentam
as técnicas da prova, utilizando todo um jogo de presunções
significativa se os valores e as normas por ele estabelecidas sã_o
diversas; haverá, da mesma forma, juízes para decidir da inter-
não só apresentadas como absolutas, mas também como evi-
pretação das normas, dos valores ou dos fins invocados. Só se
dentes, ou seja, capazes de guiar de um modo unívoco em cad~
pode renunciar ao juiz, competente na matéria, para fazer aca-
caso de aplicação possível. Quem não vê que , para satisfazerª
bar as controvérsias, se a razão de cada qual se inclina diante
última exigência, cumpriria elaborar todo um código, que pre- da evidência dos fatos e das normas. Assim é que os filósofos
visse sem ambigüidade todas as condutas conformes a cada apelam amiúde à evidência, mas a existência permanente de
uma das regras enunciadas mais acima, e isto para todos os
348

contr - · ÉTICA E D!REITo 349


overs1as filosóficas parece . d. A ÉTICA
te de suas provas não se im ~ m icar que o valor convincen- . d a d e sarrazoada ' se não apresentarmos razões sufi-
. . poe a todos da m . ns1dera
que um pos1c1onamento responsável p . es1?~ maneira, e c? · stificar a mudança. Ora, que fazer quando as ra-
em filosofia. arece mevnavel, mesmo c1entes para JU - ,
_ . d s convencerem uns e nao os outros, quem tera o
zoes mvoca a - d d 1
~ Dá-se o mesmo , com mais forte ra - . . . d d isão nessa questão? Nao se conce e a ca a qua
direito e ec · d ·
caçao resulta, não de uma interpret ~ zdao, quando a JUstifi- . • oder de legislar e de impor seu ponto e vista, na
0 direito e o P , . d Q
ou d os valores mas da mod·f· _açao as normas , dos r·ins me d1.d a e m que é controverso,, . _a sociedade
_ . em seu to o. uan-
' 1 1caçao ou mes d . .
deles . Com efeito, desta vez o ind· 'd mo a reJe1ção e os critenos nao sao evidentes, cumpre que o
. . 1v1 uo se apresenta - do as regraS · · h b·1· d
como J~1z, tendo de aplicar normas e critérios aceitos nao ~IB
· 1a~d que impõe seu ponto de vista, esteJa a 1 1ta .
o a
mo legislador, que introduz nonnas novas Se sua aça:om~ co- faze 1o.
A _ o filósofo
1
não pode desempenhar o papel
. _
de legislador
. -
funda · 1 · nao se um·versal sena~0 na medida em que. suas propos1çoes . se 1mpoem
. menta simp esmente no uso da força , mas recorre a ro-
arecem evidentes e supnmem, por isso mesmo, qual-
cedu~:n_tos de ~ersuasão, só se poderão descartar as norr!s e a to dos, P , - d d ·
C ontrovérsia a respeito delas . O filosofo , nao sen o esig-
os <:_ntenos ace~tos mostrando-lhes a insuficiência em compa- quer . l · l '
do por nenhum poder político para Julgar e para eg1s ar, so
raça~ com os fms ou com os valores a serem realizados ou M - M
pode impor-se pela força convincente de suas razoes. as ~s
s~a mcompatibilidade com outras regras , fins ou val~res,
razões , como vimos , pressupõem normas , valores e fms , ~ce1-
?1ferentes daqueles que se criticam, mas que se supõe serem
tos na sociedade à qual se dirigem . Eles é que devem ser mvo-
igualmente reconhecidos por aqueles a quem se dirige O dis-
curso justificativo. cados, é a eles que devem referir-se o juiz justo e o justo legis-
lador. Mas , se assim for, concebe-se que essas noções são rela-
Resulta desta análise que a dúvida universal é quimérica, tivas, e que as razões que valem num meio social e cultural não
pois não se pode duvidar do que é aceito e descartá-lo sem valem noutro .
razão 13. Para duvidar, deve-se acreditar numa razão que justifi- O juiz justo não é o juiz objetivo, que se pauta por uma
que a dúvida. Pois, se se aceitou uma opinião, é razoável ficar realidade exteriormente dada. Não é um espectador desinteres-
com ela e não é razoável abandoná-la sem razão. Esse princí- sado que decide consoante critérios universalmente válidos. É,
pio de inércia, fundamento da estabilidade de nossa vida ~spi- antes, o juiz imparcial, que não deve ter vínculos com nenhum
ritual e da vida social, é que explica, quando se trata de açao, o dos adversários que se apresentam perante ele, mas deve apli-
constante recurso aos precedentes. Dizer que se seguiram _os car, quer regras jurídicas obrigatórias para todos no âmbito de
precedentes é dizer que se adota uma conduta ~ue ~ão precisa sua jurisdição, quer, se é árbitro, regras e costumes com os
de nenhuma justificação, pois ela é apenas a aphcaçao re~a ?ª quais concordam aqueles que lhe apresentam seu litígio. Assim
de justiça que nos ordena tratar da mesma forma situaçoes é que a idéia de imparcialidade é relativa, pois as regras e os
essencialmente semelhantes14_Se se trata ?e um modo c:fo;- valores comuns às partes podem variar em cada caso. A mesma
me aos precedentes uma situação essencialme~te ~:me ã<~nal~ pessoa, considerada um árbitro imparcial num conflito do tra-
às situações anteriores , não se te~ de f?me~r JUSt~~:a mu- balho que opõe industriais e operários de um país, e que será
guma. Pois se terá provado que nao se mtro uz ne normalmente dirimido consoante valores e normas aceitas nes-
se país, pode já não ser nem um pouco imparcial, se se trata de
dança que deva ser ~ustificada. afastar-nos dos preceden- um conflito entre seu país e um país estrangeiro. O árbitro im-
Em contrapartida, se propom_ost dicionais num meio, se- parcial, desta vez, não deverá ser solidário com os interesses de
tes , das regras e do~ 1:1ºd_o s dedagirb;:rariedade, a conduta será nenhum dos adversários , e as regras que deverá aplicar serão as
remos acusados de mJusuça e e ar
p

350
351
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA
do d . · ·
d · rreito
, internacional p ' bl.
u 1co às qua· 1

ois pa1ses se submetem . , is pretensamente os § _Desacordo e racionalidade das decisões


23
Dá-se o mesmo com o legislad .
deverá levar em conta inte or Justo que, em cada caso Em homenagem ao professor Th. Kotarbinski
t 1 resses regras e valo d ,
a vez muito diferentes daquele~ de u , res e seu país, Se duas pessoas, que devem tomar uma de~isão edm ~a~e
qual a legislação não é aplicável. m pais estrangeiro, ao situação (escolha de um candidato, ec1sao
de uma mesm a d ,
Na medida em que o filósofo se - . d. · , ·a por exemplo), decidem diferentemente, po er-se-a
JU 1cian , A • 1m t
tas e julgar de acordo com ela d propo~ form~lar leis jus- ue cada uma delas pode agu razoave en e , ou
pretend er q . , · , 1
sociedades particulares e gru;osedu~ modo impar~ial, não para dever-se-á, ao contrário, afirmar que isso e imposs~ve ~ que
uma delas, pelo menos, deve ter agido d~ uma f~rma irracional,
para toda a humanidade , ele deve ef~::~:esse~~~~~es, mas
~ormas , suas leis e seu~ va~ores de forma que possam ~;s~~~~~ em cons eqüência de um conhecimento . . imperfeito
. dos fatos
. _ ou
· pulsionada por motivos não rac1ona1s , tais como a paixao, o
~dos por todos , que a Justificação que deles se fornece se fun- tm
interesse ou o capricho? E, esta última · 1 ad e, pe1o
eventualºd
ai_nente em valores e em regras que ele possa apresentar como menos quando se trata de decisões judici~,as, que parece_ad-
um~ers_alment~ válidas . Dá-se o mesmo com as provas e com mitida por J. Roland Pennock ao escrever: Quando um tnbu-
as te~mcas de ~nte;Pretação utilizadas para reconhecer os fatos nal é composto por mais de um juiz, é de presumir que cada um
e ~p_hcar as leis. E esse o sentido que poderíamos dar ao uso dos juízes, se houvesse agido de maneira inteiramente racional,
pratico da razão , que fornece regras e critérios que podemos teria chegado, perante o mesmo caso, a julgar da mesma
submeter à adesão de todos. forma." 2 Esta conclusão, que parece conforme ao senso co-
Mas, na medida em que tais regras não são necessárias, mum, deve, porém, ser confrontada com o fato bem conhecido
não se impõem por sua evidência irrefragável, mas são, antes, de que a Corte Suprema dos Estados Unidos, que é cercada de
submetidas , como uma proposição razoável, à aprovação de grande respeito e cujos membros são conhecidos pela compe-
todos , é necessário que todos aqueles a quem são dirigidas, que tência e pela integridade, chega mui raramente a decisões unâ-
constituem a humanidade esclarecida, possam discuti-las, criti- nimes. Ao contrário, a maioria de suas decisões, que fizeram
cá-las e emendá-las. Uma razão prática, que não se pretende época na história do direito americano, foi tomada com a maio-
apodíctica, mas simplesmente razoável, deve, para não parecer ria de 6 contra 3, ou mesmo de 5 contra 4. Cumprirá tirar disso
despótica, abrir-se à discussão e ao diálogo. _Assim como o a conclusão de que, em cada caso, os membros da maioria ou
regime monárquico convém melhor para reahzar as concep- da minoria decidiram de um modo desarrazoado e de que con-
ções de uma razão segura de suas ev~dências, de_spr~z~ndo ~s vém pôr em dúvida a integridade intelectual ou moral da maior
opiniões daqueles que não se beneficia~ dessas mt~1çoes p~- parte dos membros da Corte, pois tanto uns como os outros
vilegiadas , 0 regime democrático da livre express~o de opi- estão, ora do lado da maioria, ora do lado da minoria?
niões , da discu ssão de todas as teses confr~~tada~, e o conco- A vinculação tradicionalmente estabelecida entre desa-
mitante indispensável do uso da razão pratica simplesmente cordo e falta de racionalidade , pelo menos na pessoa de um dos
oponentes, se explica pelo estreito vínculo que parece existir
razoável. entre a idéia de razão e a de verdade. Ora, a unicidade da verda-
de é garantida pelo princípio de não-contradição: é impossível
que dois enunciados contraditórios sejam verdadeiros simulta-
neamente. Daí resulta que, se duas pessoas respondem diferen-
p

352 353
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA

temente às pergunta . " Q , próprios fins , é um conceito de filosofia indefensável, como


s. uem e o melhor candidato?" " ,
culpado de homicídio? " "D , . · , Xe º:ssas escolhas e nossas decisões são feitas , no final das con-
. ' ever-se-a mterpretar desta fo
º?" , " Ta1 po1Itlca
texto da le I. , · deverá ser seguida em ta1·s . nna o ntas, consoante critérios não-racionais , os desacordos nesse
tânc · ?" c1rcuns- onto se explicam não pelo fato de que pelo menos um dos que
d ias· , uma delas, pelo menos, está enganada e estando e
ra a, carece de racionalidade. É esse, de todo modo r- pe opõem é desarrazoado, mas porque a ação de cada um é mo-
de Descart . , o parecer :ivada diferentemente por fatores subjetivos e não-racionais. A
es que se expnme a esse respeito com muita clareza
e~ suas Regulae: _"Todas as vezes que dois homens emitem razão é, por certo, capaz de nos esclarecer sobre as conseqüên-
so . re a ~esma coisa um juízo contrário, é certo que um dos cias de nossos atos, mas não tem condiçõe~ de avaliar essas
d ois esta enganado H , · nen h um deles possui a verdade· conseqüências e , logo, de nos guiar na ação. E realmente essa a
. . . a mais,
pois, se dela tI~e_sse uma visão clara e nítida, ele poderia expô~ conclusão a que chegam Hume e todos os positivistas.
la a s~u ~dversario de tal modo que ela acabaria por forçar-lhe a Ao imperialismo do dogmatismo racionalista se opõe,
convicçao." 3 assim, o niilismo do cepticismo positivista: ou para cada ques-
, . Se?undo_ Descartes, para quem a evidência constitui O cri- tão existe uma solução que é objetivamente a melhor, e a razão
~en? _p nmordial no tocante à verdade, o desacordo é não só 0 tem por tarefa encontrá-la, ou não existe verdade nessa maté-
mdicio de um erro na cabeça de um dos adversários mas tam- ria, pois toda solução depende de fatores subjetivos, e a razão
bém a prova de que nem um nem o outro percebe a v~rdade com não pode constituir um guia para a ação. Somos, assim, remeti-
evidência. Não se pode pensar em decisão em face de uma pro- dos de Caribde a Cila: ao dogmatismo e à intolerância de uns ,
posição evidente. Mas Descartes pretende, ademais, que o desa- só poderíamos opor o cepticismo dos outros.
cordo é sinal de erro, e, portanto, de uma falta de racionalidade. À tradição filosófica do Ocidente, que procurou resolver
A tese da unicidade da verdade, e da falsidade de todo juízo que os problemas práticos assimilando-os a problemas de conheci-
lhe é oposto, parece-lhe um fundamento suficiente para a afir- mento, a problemas científicos e , sobretudo, a problemas mate-
mação de que, de dois homens que emitem sobre a mesma coisa máticos, e que só concebia a própria idéia de razão em função
um juízo contrário, ao menos um está enganado e, por isso, é do conhecimento teórico, opõe-se o pensamento judaico tal-
desarrazoado. Com efeito, partindo da hipótese de que Deus, múdico, nutrido por uma reflexão sobre os problemas suscita-
em sua onisciência, conhece a solução de todos os problemas, dos pela interpretação da Bíblia e pela aplicação da Lei. Co-
tanto teóricos como práticos, chega-se inevitavelmente à con- nhece~-~e os _desacordos e as controvérsias que podem surgir
clusão de que todas as questões comportam uma resposta ver- ª p_roposito disso. As mais célebres, no Talmude, são as que
dadeira, aquela que a razão divina conhece desde toda a eterni- op~em a escola de Hillel à de Chamai, tendendo a primeira
dade e que a razão humana tem por tarefa encontrar. multo am · ' d e , a permitrr
, m · · o que a segunda proibia. Como tal'
É a esta última afirmação que se opõe Hume, quando dis- controversia se eternizava por três anos , como cada uma das
tingue o que é do que deve ser, os juízos concernentes ao que é, duas escolas p re tend"ia que a 1ei• era conforme ao seu ensina-
suscetíveis de verdade e de falsidade , dos juízos de valor e das mento, ? Talmude relata o que disse o Rabino Abba, em nome
normas , que expressam apenas uma reação emotiva e subjeti- do Rabmo Samue l • Dºmgmdo-se · · este ao céu para conhecer a
verdade uma d •
va. Como a razão serve, segundo ele, para descobrir a verd~de , voz e cima respondeu que as duas teses expres-
ou o erro4, e unicamente para isso - o que não a impede de Jul- ~~vam ª palavra do Deus Vivo 5 • As duas teses, mesmo sendo
gar normas e valores - não existe critério racional no que _tange iametralmente opostas, merecem igual respeito pois expres-
sam um parec fl ·d • '
à ação. Como a idéia mesma de razão prática, capaz de Julgar erre eti o e abalizado; nesse sentido, são ambas

1111
ÉTICA E DIREITO A ÉTICA 355
354
razoáveis. Mas, uma vez que, na prática, urge tomar uma deci- nha regra de justiçaJO. Em sua recente obra, Generalization in
são e uma vez que o tribunal rabínico deve poder dizer se tal Ethics , o professor Singer, que cita os dois últimos textos' 1,
conduta é obrigatória, permitida ou proibida, a tradição dará aproxima-os de seu princípio de generalização.
preferência ao ensinamento d~ escola de Hillel, porque seus O ponto de vista de Sidgwick, que Singer adota, acaba de
membros, diz-se6, são conhecidos por sua modéstia, por sua ser objeto de uma crítica interessante num artigo de P. Winch,
humildade e por jamais deixarem de apresentar o parecer de Uni versalizability of Moral Judgments 2, que chega, na área
1

seus adversários . Fosse essa a verdadeira razão, fosse , antes moral, a uma conclusão análoga à do Talmude: dois juízos mo-
que se preferisse uma interpretação menos restritiva, pouc~ rais diametralmente opostos sobre um mesmo problema con-
importa. O que parece notável é que não se tenha invocado, creto podem ser ambos respeitáveis e razoáveis.
para descartar a interpretação da escola de Chamai, sua falsida- O autor fundamenta toda a sua argumentação numa análi-
de ou sua irracionalidade. Entre duas interpretações opostas, se bastante aprofundada do problema moral que se apresenta
que são declaradas igualmente razoáveis , far-se-á a escolha, ao capitão Vere, na novela de Herman Melville Billy Budd13 • O
se preciso for, mas por outras razões que não a falsidade ou a caso se situa imediatamente após o motim de Nore, quando se
irracionalidade de uma delas. temiam outros incidentes análogos a bordo de navios de guerra
A tradição dos moralistas ocidentais, que crê numa verda- britânicos. Billy Budd, marinheiro de caráter angélico, é acusa-
de objetiva em questão de conduta e na importância da razão do injustamente por Claggart, o mestre que o persegue, de inci-
prática, é diametralmente oposta a este último ponto de vista. tar os marinheiros à revolta. Billy Budd, cuja indignação o
Citemos, a esse respeito, algumas passagens características impede de exprimir-se, bate, em seu desespero, em seu acusa-
de Henry Sidgwick: dor, que recebe, ao cair, um golpe mortal na cabeça. A lei mar-
"What I judge ought to be must, unless I am in error, be cial, que o comandante Vere é incumbido de aplicar, pune com
similarly judged by all rational beings who judge truly of the pena de morte o ato de Budd, considerado o mais hediondo de
matter."7 todos os crimes. Mas, por outro lado, fica claro aos olhos de to-
"We cannot judge an action to be right for A and wrong dos que Claggart acusou falsamente um homem inteiramente
for B, unless we can find in the natures or circumstances of the inocente. O problema poderia apresentar-se como um conflito
two some difference which we can regard as a reasonable entre o formalismo do código militar e as exigências da cons-
gr~und for difference in their duties . lf therefore I judge any ciência, pois todos reconhecem que Billy Budd é "inocente aos
action to be right for myself, I implicity judge it to be right for olhos de Deus". Mas Vere expõe o problema no plano pura-
any other person whose nature and circumstances do not differ mente moral: "Podemos moralmente condenar a uma morte
from my own in certain important respects " 8 vergonhosa um homem inocente perante Deus e cuja inocência
"I . . todos nós sentimos?"
. f ª kind of conduct that is right (or wrong) for me is not
nght (or wrong) for someone else it must be on the ground of É ante esse trágico conflito moral que Vere, no final das
some differe be ' con~as, opina pela condenação à morte, enquanto seu imediato
nce tween the two cases other than the fact that
1and he are different persons ."9 ' decide em favor da absolvição.
d Enquanto a primeira ·ta - · · 'd ade
ci çao se reporta a uma obJetivi Vere é descrito minuciosamente como um homem cioso
as regras mora. de seus deveres, plenamente consciente de suas obrigações
racional d is, que parece uma condição do tratamento
1 profissionais , mas , ao mesmo tempo, muito sensível ao aspec-
ou de eq ...~ ª~• as duas outras expressam a máxima de justiça
ui ª e, fu nd ªmental em Sidgwick e semelhante à mi.- to humano da situação; é isso que torna sua decisão ainda mais
► ·r
356 j
ÉTICA E DIREITO 357
A ÉTICA
difícil. Poderemos dizer ue ele . .
ram, nesse caso de umaq f , odu seu imediato, se conduzi- propos1çao • - e devêssemos considerar necessariamente . - Min-
, orma esarrazo d
estava errado e O outro tinha razão? ª él_: q~e um deles uma
. ta uma dec1sao . - diferente relativa à mesma s1tuaçao. as
responsabilidade primordial d · Se Ve~e 1~ª~ tivesse tido a JUS . -1 ão não se impõe em absoluto.
. e manter a d1sc1phna a bordo do essa assimi fa~t quando se trata de uma decisão, ela será con-
navio, num momento muito conturbado da histór1·a d . Com e e1 o , - fi .
nha sua d · ~ · a man- •
•derada Justa se Puder ser justificada por razoes. sud1c1entes, -
, . ecisao _tena, talvez, sido diferente. Para ele, de todo
modo , o imperativo moral que prevaleceu foi O da discipr si
mas que nao - sao - no entanto coercivas, pois a maneira 1d e ava11ar,
ao passo que não era esse o caso para seu auxiliar que ac ind~• as razoes - e os argumentos é vinculada, no fina as contas, a
t 1 · , , re 1- situação e à filosofia de cada qual. . ,
ava mora mente imposs1vel condenar a uma morte vergo h _
S h ... n o 'E umcame· nte a partir de um momsmo filosofico , que
a um oi:n,em mocente perante Deus"; Poder-se-á dizer que . ..
um deles Julgou de uma forma imoral? E a esta última questão ·
exc lui com 0 errônea qualquer outra filosofia, que .sena permiti-
f 1
e descartando ao mesmo tempo o relativismo e o cepticismo do ass1m1 · ·1 ar osJ·ui' zos de decisão ajuízos
. . verdadeuos
. A •
ou a sos.
em moral, que Peter Winch responde pela negativa. Daí tira a Sem 1s · so , seria impertinente assimilar as . d1vergencias d. A
funda-

conclusão, que poderia parecer paradoxal, a saber: Se A diz, mentais em matéria de valores, correlativas de 1vergenc1_as
"X é o que devo fazer para agir moralmente" e se B diz, numa filosóficas , a divergências em matéria científica, em que exi~-
situação essencialmente semelhante, " X não é o que devo fa- tem critérios que permitem distinguir o verdadeiro do falso . A
zer para agir moralmente", é possível que ambos tenham ra- míngua de um acordo sobre os critérios, deve-se, aceitar o plu-
zão14. E , isto , afirma Winch, não porque admite o relativismo ralismo das filosofias e das escalas de valores . E então que se
moral e porque basta que um homem esteja em paz com sua manifesta a fecundidade de um diálogo que permite a expres-
consciência para que se possa pretender que agiu bem, mas são completa de cada um dos pontos de vista opostos, que per-
porque a importância que um homem ~tribui a esta_ou aq~el_a mite igualmente ter esperança na elaboração posterior de um
espécie de consideração pode conduzi-lo, por razoes obJet~- ponto de vista mais global, que levaria em conta teses opostas
vas a uma decisão diferente daquela que outro, que avalia em confronto. Mas nada garante a síntese, nem sua unicidade ,
dif~rentemente , poderia, com toda a honestidade e boa-fé, ser nem sobretudo o fim do processo pelo qual se constituem as
sucessivas filosofias .
levado a adotar. , "bTd d
Essa concepção não se opõe, em absolut~, a pos_si i i a _e Na perspectiva do pluralismo, duas decisões diferentes ,
de um juízo ético imparcial. Com e!eit?•. A sen~ ~a~cial s~ apl~~ sobre o mesmo objeto, podem ser ambas razoáveis , enquanto
casse a si mesmo ou aos amigos pnnc1pios e cntenos de Julgd expressão de um ponto de vista coerente e filosoficamente fun -
. ª. tercerr· os ·. A regra d~m~ntado. A tese segundo a qual não existe senão uma deci-
mento diferentes daqueles que ap1ica . atis-e
. ...d d odenam obter mterrat~ao s em sao J_usta, a que Deus conhece, supõe a existência de uma pers-
J·ustiça ou o princípio de eqm a e p pectiva global e única, que se poderia, com toda razão, consi-
fação se A tratasse da mesma f orma as P essoas que es
lt dai' que se derar a única conforme à verdade.
'
situações .
essencialmente seme lhan tes · Mas resu a • to (tanto '
. , , normalmente JUS . , ~as, se admitimos que, na falta de um acordo sobre os
A decide de maneira razoave1 O que e soa deve cd~itenos, podem ser razoavelmente emitidos juízos de valor
) q ualquer outra pes iferentes sob .
para ele como para os outros ' . - ? Efetivamente, _ re
zoes r, · , •um. mesmo estado de coisas ' quando ' por ra-
aquilatar da mesma f orma essa mesma situaçao •- a' J·ustiça de , P aticas, e mdispensável uma linha de conduta uniforme
· · ,
seria esse o caso se rac1ocmassem os ' com re 1açao
_ , verdade de e compreensível qu · · d , · '
(t· 1 e se imagine to a espec1e de procedimentos
uma decisão , como raciocinamos com relaçao a cl como
O
voto por maioria) que permitam dirimir o conflito

b
358 ÉTICA E DIREITO SEGUNDA PARTE
entre dois posicionamentos
· d d igualmente
d razoáveis · M as isso
. - O direito
significa que a atttu e escarta a por semelhante . nao
to deva ser desqualificada e considerada desarraz 0P:cedunen-
argumentos de ordem. . filosófica podem conduzi r a~ da. Apenas
esqu 1·fi
cação de um posic10namento filosófico. Quand a I i-
.d d l' . . o, numaco
m a ,e_po 1t1ca, ou _pderdante_um tnbunal, é preciso escolh mu-
tre .vanas
- eventua
d 1I a es, igualmente
. razoáv eis
• , o cnt,
. er. en-
ec1sao
d- d po e ser

reconhecido por todos m d .
, e iante co ·d
eno de
çoes e oportunidade,- sem implicar de J·ei·t º~~~ 0nsi era- ,
d esarrazoado da soluçao descartada. carater

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