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Linguagens náufragas, a

spectos narrativos e seu conteúdo temático: uma odysseia.


Ὀδύσσεια

Edno Gonçalves Siqueira

https://gumroad.com/l/rxrdj#

“A voz de Deus não perde o gume” (θέσφατ' οὐκ ἀµβλύνεται,


Se. 844)
ἄνδρα μοι ἔννεπε, μοῦσα, πολύτροπον, ὃς μάλα πολλὰ
πλάγχθη, ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν:
πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω,
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντῳ πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν,
5ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων.1

Na vastidão das narrativas gregas clássicas, sobretudo nos


territórios da épica poética homérica e as tragédias que dela derivam
por empréstimo de formas e conteúdos, todas essas formas
linguísticas oriundas do mesmo acervo cultural de uma ordem
cognitiva própria, o mito, pode-se destacar núcleos semióticos
específicos, sejam eles transparentes ao texto ou opacos à sua
tessitura: o herói, o panteão divino, as cosmogonias, os mitos, as
hierofanias, as marcas da estrutura poder secular das estirpes
protagonistas, as estereotipias de gênero e seus lugares sociais, o
espaço proeminente das linguagens mânticas2 dos textos
supérstites3. Esses são alguns exemplos de eixos temáticos pelos

1
“Tell me, O muse, of that ingenious hero who travelled far and wide after he had
sacked the famous town of Troy. Many cities did he visit, and many were the
nations with whose manners and customs he was acquainted; moreover he suffered
much by sea while trying to save his own life and bring his men safely home”, In:
Homer. The Odyssey. English Translation by A.T. Murray, Cambridge, Harvard
University Press; London, William Heinemann, Ltd. 1919.

2
CORREIRA, Beatriz Cristina de Paoli. A adivinhação na tragédia de Ésquilo.
Tese de Doutorado. USP. São Paulo, 2015. Disponível em:
file:///C:/Users/User/Downloads/2015_BeatrizCristinaDePaoliCorreia_VOrig%20(2).
pdf; acesso em 2 Mai 2016.

3
Desde que o mito é linguagem, que a poesia não se volta apenas à fruição,
nem a tragédia ao fim catártico, nem a intentio operis dos clássicos destina-
se meramente às ações didática e sapiencial da tradição, pode-se
compreendê-los como objetos de inspeção hermenêutica, já que são
essencialmente linguagens, códigos sincrônicos e diacrônicos. Essa
quais se pode investigar e aprender com e sobre o fenômeno literário
grego, seja pelo viés analítico intrínseco, seja pelo aspecto de
significância em seu alcance histórico como elemento simbólico
presente aos matizes fundacionais da cultura ocidental4.

À diferença de outras narrativas míticas épicas, a homérica


divisa o histórico local (Atenas, Ítaca, Mar Egeu, Troia) e a presença
da matéria épica (“o maravilhoso”) circunscrevendo-os como relato
racional e alongado dos fatos da guerra do Peloponeso, situando a
Odisseia como documento histórico e definidor de traços de
identidade cultural (bélica, heroica, bravia, destemida, armamentista,
estrategista). Também tematiza o encontro entre o homem com
categorias tidas como transcendentais como o sobrenatural, o
destino, as forças cósmicas e caóticas, de certa “natureza humana”,
inscrevendo na matéria da fabulação épica o traço, senão da
universalidade daqueles temas, certamente de sua prodigiosa
abstração enquanto, grosso modo, campo de teorização. Por outro
lado, um manual didático para o exercício dos ditames de
sociabilidade da paidéia grega (Platão). Delimitam-se assim, eventos
que se apresentam como históricos, como um relato de guerra e seus
movimentos bélicos, ou como transcendentais5 enquanto
categorização de entidades abstratas, tempo do sagrado, do
sobrenatural, do imemorial, mas tangível pelo epus míticoi. A
linguagem mítica expressa, com primazia, os fenômenos psíquicos

investigação se fundamenta concepção de que a obra literária se constitui


em ‘espaço dialético’ de refração e reflexão das realidades da cultura e do
sujeito, estabelecendo-se como o fenômeno mimésis de transfiguração
descrito por Antonio Candido. “ter a consciência da relação arbitrária e deformante que
o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e
transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese”. CANDIDO, Antonio.
Literatura e sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p.21
Cf. TORRANO, J. A. A. Mito e filosofia: Homologia estrutural. In: Acylene Maria
Cabral Ferreira. (Org.) Leituras do Mundo. Salvador: Quarteto, 2006, v. 1, pp. 187-
198.
4
BOMBASSARO, Luiz Carlos; PAVIANI, Jaime; ZUGNO, Paulo Luiz (Orgs.) As
fontes do humanismo latino: da antiguidade à renascença. Vol. 1. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2003.
5
No sentido kantiano de
relacionados à razão e aos campos perceptivos que lhe escapam,
sobretudo a linguagem mítica dos gregos em relação ao homem
ocidental que cria através da simbologia que veicula. No amálgama
de representações tácitas e explícitas, vai se compondo, no caso do
épico homérico, na materialidade linguística de seus níveis semióticos
(fundamental, narrativo e discursivo), um repertório de matéria para
uma exegese simbólica estrita e para o exercício de uma
hermenêutica ampla e muito própria que lhe sirva de base. A
alquimia (transfiguração mimética) do mito traduzido em narrativa
escrita (nos limites do gênero épico), o maravilhoso mítico que se
transmuta no tão específico logos narrativo grego6 que dará germe à
posterior filosofia, tornam-se as propriedades continentes e
detonadoras dessa exegese simbólica e dessa hermenêutica
discursiva, ofícios distintos, mas que não devem prescindir da relação
recíproca da colaboração elucidativa, sob o ônus da desvalia lógica de
uma teoria da interpretação intrínseca ou extrínseca à narrativa.

Mais longe, porém, à sombra do que o mito vela, nas raízes


desse “iceberg”7 arcaico, por detrás dos véus que a língua ergue
protetora e desafiadoramente, pode-se aprender com as
representações sobre o cosmos, o caos do homem e do mundo. Isso

 6 Refiro-me de forma específica ao carácter ecfrástico enunciado por Erich


Auerbah (ἔκφρασιϛ é o recurso à explicação exaustiva que se destaca pela
tendência de estabelecer o nexo causal quasi-racional entre comportamento
observável e seus determinantes, ou entre os fenômenos culturais,
psíquicos e sobrenaturais e suas causas, traço cognitivo que marcará a
virada filosófica e o eclipse do mito e da poesia épica como fontes de
conhecimento e verdade, sobretudo pelas mãos iconoclastas de um Platão).
Auerbach, Erich. Mimesis: The Representation of Reality in Western
Literature. Fiftieth Anniversary Ed. Trans. Willard Trask. Princeton: Princeton
University Press, 2003.
7
Alusão à teoria de Julio Cortázar em referência à análise estrutural do gênero
Conto, mas, referido aqui ao caráter próprio do hermetismo (opacidade
polissêmica) das figuras simbólicas arquetípicas que compõem a estrutura narrativa
mítica.
é possível quando a compreensão vasculha na ipseidade8 narrativa
aquilo que ela transborda em referenciação, aquilo que se pode
erguer da alteridade que marca o espaço existente entre o
significante e o significado, da suspeita erguida sobre a obviedade
ingênua dos sentidos que arbitram entre o símbolo e o que ele
representa, na voz possível que a metáfora silencia ao dizer na
figuração. É a analogia a lógica subterrânea, trazida à tona pelos
esforços da razão, que organiza os critérios de seleção e combinação
que ocasionam interpretações possíveis, significativas ou não, mas
apenas significantes. A produção dos sentidos é o núcleo duro que
importa à razão interpretante. À diferença dos significados que se
determina num léxico filológico, os sentidos são voláteis porque sua
lógica de surgimento é presidida por relações de seleção e
combinação, e quem as faz, os sujeitos são assujeitados a condições
de possibilidade da compreensão sempre de ordem caleidoscópica. É
a analogia que permite algum resgate entre tecido, fio, fiandeiros e
suas rocas, cada qual uma potência a seu modo. Irresistível referir à
Ariadne e Ícaro: Labirintos da interpretação, fios analógicos
condutores de esclarecimento e asas de cera a se decomporem frente
a um sol que indica senão a impossibilidade da verdade do texto, as
ameaças e precauções para os que detêm a crença nesse alvo
desafiante. A cera é tanto impermeável à ação devastadora das
águas quanto é frágil à investida das variações térmicas. Pode-se
associar as propriedades da cera à qualidade dos instrumentos
analógicos que sustentam os voos hermenêuticos. Implica-se daí que

8
Ipseidade. Do latim ipse, si mesmo. Na filosofia escolástica, designa o fato de um
indivíduo ser ele mesmo, dotado de uma identidade própria e, por conseguinte,
diferente de todos os outros indivíduos. Na filosofia heideggeriana, designa o ser
próprio do homem como existência (Dasein) responsável. JAPIASSÚ, Hilton e
MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 5.ed. Rio de Janeiro: Zahar,
2008. A ipseidade de um texto encontra-se irremediavelmente relacionada ao
tempo, à cultura: autoria e sociedade embrenham-se e invadem a obra numa
dialética intrínseca e desafiadora à interpretação sob uma constante suspeita
hermenêutica.
no trabalho interpretativo não se pode abrir mão de uma pérola do
baú filosófico: da reflexão latina (reflectere), à teoria grega (θεωρία),
a suspeita hiperbólica se volta à qualidade das relações analógicasii.

O fundamento analógico dos modelos interpretativos é de


descendência marcada (sobretudo aristotélica: Poética, Retórica e sua
teoria dos signos e hermenêutica, Da Interpretação, Περὶ
ερμηνειας, De Interpretatione, onde além de estatuir uma teoria dos
signos e símbolos linguísticos, reflete sobre a função referencial entre
esses, os processos cognitivos e as entidades extra-mentais no
contexto da discussão acerca da distinção entre o verdadeiro e o
verossímil)iii. Essa lógica relacional de transferências semióticas
(αναλογία; "proporção") subjaz às sintaxes de codificação e
decodificação das linguagens simbólicas das narrativas herméticas,
movendo os mecanismos linguísticos de sua expressão na
constituição de linguagens metafóricas (a elas atribuindo status de
elemento constitutivo básico da eficácia discursiva), erguidas a partir
da função referencial e dos efeitos virtuais de polissemia, não
apartadas as dimensões histórica e subjetiva desses processos. São
esses conceitos e relações que irão investigar as hermenêuticas
positivas e negativas, desde a Allegoresis homérica até a
contemporânea Hermenêutica Literária.

RUSSELL, J. Stephen. Allegoresis: The Craft of Allegory in Medieval


Literature. Garland Pub., 1988
A tradição da análise da alegoria à remonta Grécia helênica (a
épica homérica e hidíoca, Platão, Aristóteles, os Sofistas, os
tragediógrafos e comediógrafos) e se desenvolve no período medieval
definindo-se como allegoresis. A despeito da riqueza da produção do
período (artes, teologia, literatura), existe a problema da metodologia
da allegoresi dado à ausência de sistematização de sua
fundamentação teórica, de seus conceitos e funções. Outro problema
conexo é a variedade dos objetos investigados: textos bíblicos,
autores pagãos, mitos, correntes filosóficas e seus autores e a
allegoresis literária.
De acordo com a definição clássica, proveniente da Retórica
Latina, a alegoria é uma figura retórica que transforma o significado
denotativo (nível literal, narrativo) de um signo linguístico ou seus
derivados (palavras, expressões, a própria unidade textual, e os
discursos). Essa transformação opera diferenciação entre referente
textual e referente do discurso (para- ou metatextual) e é essa
mudança que produz a alteração dos sentidos e que produz outro
texto. É o que se depreende da representação expressa na
formulação quintiliana: Auti aliud verbis aliud sensu ostendit, aut
etiam interim contrarium (Quintiliano, Institutio Oratoria, VIII, 6, 44).
Apresenta-se um sigo linguístico que delimita um referente textual
diferente do referente não textual que localizamos
terminologicamente como pertencente ao âmbito do campo discursivo
(aqui como aquelas dimensões que podem funcionar como variáveis
intervenientes na produção de sentidos para com o texto: intentio
auctoris, scripturae, operis, lectoris). A Alegoria é um processo (uso
de um signo cuja relação significante-significado-referente é violada,
fraturada; sua arbitrariedade consensual é infringida em prol de outra
organização daqueles elementos cuja lógica se mostrará complexa à
medida que as variáveis acionadas não se encontrarem
explicitamente definidas). Sustenta essa definição provisória a análise
de Quintiliano de um exerto de Horácioiv 9: república (é substituída
por) é representada como um navio, rebelião civil como ondas e
tempestade, paz e concórdia como um portov. Há uma variável que
opera nessas ilações entre signo textual e sentido atribuído que é
arbitrária e que provém ou do autor da interpretação (intentio
lectoris), ou de indicações provindas do próprio texto (intentio
scrpturarae), ou do corpus no qual se insere (intentio operis), ou de
um campo mais amplo porém não menos influente como o ideológico
(como as representações de certo tempo-lugar que se inscrevem nos
signos linguísticos de modos variados). É o próprio Quintiliano que
nos fala fartamente sobre essa didática da preparação para a
interpretação pela via da tradição centrada na atividade prescritiva do
professor que diferencia tropo de figura e prepara o caminho
(methodos) para a adequada interpretação. Um dos objetivos de sua
Institutio Oratoria é esse treinamento pró-interpretativo, uma
verdadeira didática propedêutica à docência.

9
Horati flacci carminvm liber primvs, XIV.
O navis, novi fluctus belli te in mare referent! O quid agis? Unde erit
ullum perfugium?
Oh ship, new waves of war will carry you back onto the sea, oh what are
you doing. from where will there be any refuge
p.203
Essas proposições alcançam tanto o mito quanto a poesia, tanto
a prosa quanto à linguagem filosófica. Referem-se a categorias
epistêmicas de construção semiótica, também chamadas de Percurso
de geração de sentidos (J. A. Greimas) ou “eixos temáticos”. Pode-se
pensá-los como meios do exercício do trabalho analógico de
interpretação. Como numa psicanálise freudiana, que a partir do eixo
edípico, traduz pelos sintomas a linguagem do inconsciente, ou como
numa medicina clássica que traduz, pela semiologia, sintomas na
existência de patologias, as categorias semióticas são linguagens da
linguagem e como tais, decodificáveis, sujeitas à interpretação.

de um lado aclarar o processo atual em que se concretizam o efeito e o significado do


texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir o processo histórico pelo qual o
texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por leitores de tempos diversos.
(JAUSS, 1979, p. 46).

“comparar o efeito atual de uma obra de arte com o desenvolvimento histórico de sua
experiência e formar o juízo estético, com base nas duas inst}ncias de efeito e recepç~o.”
(JAUSS, 1979, p. 46).

A apreensão do texto clássico encontrava-se delimitada pela


orientação cognitiva de sua mensagem como texto litúrgico, gnômico,
de socialização de saberes (sociabilidades, ética, axiologia), de
jurisprudência, tradição (consuetudinário). Vista a experiência estética em
sua natureza libertadora da arte e sabendo que ela é capaz de fundir os papéis transgressor e
comunicativo, pode-se visualizá-la por meio de suas três atividades simultâneas e
complementares, a saber: poiesis, aisthesis e katharsis, denominadas por Jauss (1979, p. 43)
como “as atividades produtiva, receptiva e comunicativa”, respectivamente. A concretização
de tal unidade tríplice depende da principal reação que o leitor pode ter: a identificação. Essa
formulação aparece na segunda tese da Pequena apologia: A libertação pela experiência
estética pode se realizar em três planos: a consciência produtiva, ao criar um mundo como sua
própria obra; a consciência receptiva, ao aproveitar a oportunidade de perceber o mundo de
forma diferente e, finalmente – deste modo a subjetividade abre-se à experiência
intersubjetiva – ao aprovar um julgamento exigido pela obra ou identificar-se com as normas
de ação esboçadas e que posteriormente serão determinadas. (JAUSS, 2002, p. 41, tradução
nossa).11E, em seguida, Jauss (2002, p. 42-43, grifo do autor) esclarece o que cada um dos três
momentos da experiência estética significa: Poiesis, entendida como “capacidade poiética”,
significa a experiência estética fundamental de que o homem, através da produção de arte,
pode satisfazer a sua necessidade universal de encontrar-se no mundo como em casa,
privando o mundo exterior de sua estranheza indescritível, fazendo sua própria obra, e
obtendo nesta atividade um saber que se distingue tanto do conhecimento conceitual da
ciência como da práxis instrumental do ofício mecânico. A aisthesis designa a experiência
estética fundamental de que uma obra de arte pode renovar a percepção das coisas,
embotada pelo hábito, do qual resulta que o conhecimento intuitivo, em virtude da aisthesis,
opõe-se novamente com pleno direito a tradicional primazia do conhecimento conceitual.
Finalmente, a catharsis se refere à experiência estética fundamental de que o espectador, na
recepção da arte, pode ser liberado da parcialidade dos interesses vitais 11 No original: “La
liberación por medio de la experiencia estética puede efectuarse en tres planos: para la
conciencia productiva, al engendrar el mundo como su propia obra; para la conciencia
receptiva, al aprovechar la posibilidad de percibir el mundo de otra manera, y finalmente – y
de este modo la subjetividad se abre a la experiencia intersubjetiva–, al aprobar un juicio
exigido por la obra o en la identificación con las normas de acción trazadas y que
ulteriormente habr| que determinar.” 744 Letrônica, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 735-752,
jul./dez., 2013 práticos mediante a satisfação estética e ser conduzido também a uma
identificação comunicativa ou orientadora da ação.12 [tradução nossa]

O problema do modelo de Riffaterre reside no fato de a recepção dos poemas


pressupor um leitor ideal (superreader), que deve “não apenas estar equipado com a soma do
conhecimento histórico-literário atualmente disponível, mas também deve ser capaz de
registrar conscientemente cada impressão estética e de ancorá-la numa estrutura de efeito do
texto.” (JAUSS, 1983, p. 310).

A interpretação explícita na segunda fase e em todas as leituras seguintes, também


remete ao horizonte de expectativa da primeira leitura perceptual, quando o intérprete
pretende concretizar uma determinada relação significativa do horizonte de significado deste
texto, e não queira por exemplo utilizar a permissividade da alegorese, ao transferir o
significado do texto para um contexto estranho, isto é, dar-lhe um significado que ultrapasse o
horizonte do significado e com isso a intencionalidade do texto. A interpretação de um texto
poético já sempre pressupõe a percepção estética como compreensão prévia; só deve
concretizar significados que parecem ou poderiam parecer possíveis ao intérprete no
horizonte de sua leitura anterior. (JAUSS, 1983, p. 308, grifo nosso).
Gadamer (2008, p. 385): “as partes que se determinam a partir do todo determinam,
por sua vez, a esse todo.”

BRIZOTTO, Bruno; BERTUSSI, Lisana Teresinha. Hans Robert Jauss e a


hermenêutica literária. Letrônica, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 735-752, jul./dez.,
2013.

Um dos eixos do trajeto semiótico denomina-se aqui


“Linguagens náufragas”, tanto uma categoria de semiotização de
representações, como uma possibilidade do exercício analógico de
compreensão dessas representações narrativo-discursivas. Como os
demais polos de semiotização (produção sistemática de sentidos),
esse eixo excede na sua fatura de esclarecimento10 porque ultrapassa
a mera importância de sua presença como elemento constitutivo,
protagonista ou subjacente, nas dimensões narrativa e temática de
fabulações sobre naufrágios e suas vicissitudes. Como um percurso
hermenêutico, apresenta a possibilidade de fortuna de trajetos: (i)
oportuniza a emergência de análises intrínsecas e extrínsecas às
narrativas ocidentais fundantes e seus derivados contemporâneos já
que atravessa a história dos textos fundantes, expandindo-se à
modernidade e à contemporaneidade literária (A Odisseia, A
Teogonia, O Gênesis, As Heroides, A Eneida, Os Lusíadas; Relatos de
naufrágios, Literatura Trágico-Marítima, A tempestade, Gulliver's
Travels, The Adventures of Robson Crusoe, Os limbos do Pacífico);
(ii) permite a expansão da compressão das representações induzidas
e deduzidas nas territorialidades do texto: o naufrágio e o náufrago
têm valor de metáforas e arquétipos, construtos que viabilizam o
acesso ao conhecimento do que se aloja nos entrelugares tácitos; (iii)
atualiza releituras em três tempos hermenêuticos, a saber; as anciãs
tradições herméticas, as posteriores disciplinas exegéticas, as

10
Heidegger.
modernas contribuições da filologia, as contemporâneas culturas de
leituras semióticas e análises discursivas11.

As linguagens náufragas, nos limites de sua apreensão literária,


presentes ao vasto repertório de narrativas clássicas do ocidente,
épicas e trágicas, remetendo à explicitação dos mitos gregos
margeados pelos relatos de naufrágios e seus contextos, indexam a
um possível conteúdo de referência temática desse emaranhado
simbólico de avolumado teor, qual seja: o trajeto de constituição do
homem ocidental e suas instâncias cruciais, figurando o Odisseu
homérico como seu emblema de altivo grau polissêmico.

O campo lexical e os gradientes semânticos

Há duas definições situacionais para o Náufrago; ou ele é


uma pessoa abandonada, à deriva no oceano, ou encontra-se em
abandono em terra firme. À deriva ou firme em solo, o abandono já
sobressai como sintagma comum.

s.m. Ação de deixar uma coisa, uma pessoa, uma função, um


lugar: abandono da família; abandono do posto; abandono do lar.
Esquecimento, renúncia: abandono de si mesmo. Abandono no
universo linguístico grego é eremia, ou paraksoresis para desistência,
ou renúncia e sacrifício para anésis. Já derivar, afastar-se do rumo, é
paratrepomai. A língua grega dá conta no interior sintagmático de
três semânticas distintas: afastamento como efeito de um processo,
afastamento voluntário, e o afastamento sacrificial. Sacrifício é

11
Essas tradições possibilitaram a elaboração de disciplinas hermenêuticas
(inicialmente exegéticas) que no labor analítico e interpretativo, construíram
dispositivos conceituais de categorização e descrição (teoria literária) das
linguagens míticas antigas (as aédicas da tradição helênica), bem como das
alegóricas consentâneas e posteriores (seja nos épicos pós-homéricos, seja nas
derivações sumérias, semíticas, caldeias, egípcias e babilônicas materializadas nas
linguagens judaicas da Tora ou nas cristãs neotestamentárias).
próesis derivado do verbo proeiságo: oferecer em primeiro lugar,
significativa e valorativamente em destaque de prioridade.

Apesar de a situação de naufrágio normalmente ocorrer após


um acidente, nosso naufragar arquetípico implica em outras vezes o
abandono voluntário daquele que desistiu de prosseguir no rumo, ou
o fez voluntária e sacrificialmente. A permanência na situação do
náufrago como o ermitão implica haver indivíduos que buscam a
insulação. Permanece-se em ilhas desertas voluntariamente, ou para
escapar de captores, ou para afastar-se do mundo em geral, o que já
tematiza o distanciamento de paradigmas. Não se ausente a situação
alternativa de isolamento por banimento, exílio, proibição
sentenciatória ou expulsão diaspórica. Essa última implicaria
considerar o caráter sêmico do verbo diaspeiró para dispersão e a
proximidade elucidativa de diaspáo para rasgar, separar com
violência. Antagonizam os (i) naufrágios involuntários por acidente,
(ii) os que são sinonímia do abandono voluntário por desistência e
recusa e consequente afastamento ermítico, (iii) os impingidos
diaspórica ou sancionadoramente, e os (iv) auto impingidos ou
sacrificiais em prol de algo ou outrem. Consensualmente as
semânticas náufragas tendem a recusar a intencionalidade de tonar-
se náufrago em detrimento das possibilidades de naufragar-se. Mas o
domínio da linguagem poética é enlarguecido pelo volume do
espaçamento polissêmico. As investigações que ultrapassam os
limites sígnicos dos níveis superficiais proveem para as semânticas
profundas das linguagens náufragas outras paragens que o nível
narrativo encobre. Nos confins das dimensões discursivas e
fundamentais, estatui-se que para naufragar deve-se conjugar
preposiona e reflexivamente, naufragar-se, dado que a jurisdicidade
linguística dos códigos simbólicos de ordem metafórica o impõe, para
a salvaguarda da função poética e proteção dos alojamentos
arquetípicos nas cercanias umbralinas do signo.
As linguagens náufragas trazem consigo a potência polissêmica
das formas linguísticas míticas de produzir conhecimento de
categorias variadas: narrativas constituídas de arquétipos, símbolos,
signos, de figuras antitéticas, aporísticas e paradoxais, e a
tematicidade explícita, e por vezes velada, a que fazem referência.
Suas metáforas que se organizam cosmologicamente em alegorias,
(en)velam a produção de sentidos, camuflando-se de uma roupagem
linguística própria ao encobrimento hermético, típico das linguagens
conotativas bem exemplificadas no encantamento produzido pelo tido
poético, do vaticínio profético, da polissemia e ambiguidade
enigmáticas das linguagens mânticas, códigos de expressão
adequados à altura dos conflitos psíquicos arcaicos, tidos até como
filogenéticos (teoria junguiana do arquétipo) e que encontram na
linguagem a possibilidade de expressão e escoo. São linguagens que
têm em comum a função de serem portadoras da promessa
empenhada de resolução dos núcleos clássicos de entropia existencial
(desordem do sistema que tende a seu mau funcionamento, à sua
destruição ou inatismo), numa ordenação ontogenética que se
constrói na estruturação de uma narrativa que tende à negentropia
(elementos ou forças que tendem à manutenção ordenada,
permanente, preservativa e cíclica de um sistema, tendendo à
homeostase do sistema, sua resolução).

A projeção no nível narrativo do conflito entrópico se deixa


capturar em sua categorização pela via das dicotomias ou binarismos
simbólicos primais (Bem x Mal, Justo x Injusto, Caos x Cosmos, Dor x
Prazer, Inconcluso x Resolvido, Vida caótica x Paraíso constante,
Transformação x Permanência, Devir x Alteridade, Sensoriedade x
Abstração, Real x Linguístico, Fato x Interpretação, Fenômeno dado x
Lógica hermenêutica, Perder-se x Encontrar-se).

Mais precisamente, no caso das linguagens náufragas, tendo


como referência o Odisseu homérico, destacam-se:
(i) perder a solidez do conhecido – lançar-se ou ser lançado ao
desconhecido;
(ii) saber identitário - perder a identidade;
(iii) rumar – desventurar-se;
(iv) saber e controle técnico – forças imponderáveis da natureza;
(v) refinamento e elaboração cultural – selvageria antropofágica;
(vi) autocontrole e manifestação virtuoso da aretê – perder-se nos
delírios da luxúria;
(vii) previsão racional – recurso ao sobrenatural;
(viii) ardil racional – clamor instintivo irrecusável;
(ix) saber linguístico ‘polissemia/ambiguidade’ – reificação
linguística12;
(x) intransponibilidade de pensar o real – intervenção salvacionista
telúrica/genésica e cultural;
(xi) tabus – consequências sancionadoras/punitivas;
(xii) jurisdição do sagrado – delimitação do agir humano;
(xiii) misericórdia/piedade – modelação exemplar do métron;
(xiv) techné/forças negentrópicas – physis/entropismo;
(xv) cultura como modelizador comportamental – erraticidade social;
(xvi) desconhecimento de si – narrativa de si e verdade do si
mesmo;
(xvii) partida do mesmo – retorno do transformado;
(xviii) tradição – transição geracional;
(xix) perda de poder – reconquista;

12
reificaçãoe-i/substantivo feminino

1. 1.
fil segundo Georg Lukács 1885-1971, alargando e enriquecendo um conceito de Karl Marx
1818-1883, processo histórico inerente às sociedades capitalistas, caracterizado por uma
transformação experimentada pela atividade produtiva, pelas relações sociais e pela própria
subjetividade humana, sujeitadas e identificadas cada vez mais ao caráter inanimado,
quantitativo e automático dos objetos ou mercadorias circulantes no mercado.
2. 2.
p.ext. qualquer processo em que uma realidade social ou subjetiva de natureza dinâmica e
criativa passa a apresentar determinadas características -́ fixidez, automatismo, passividade -́
de um objeto inorgânico, perdendo sua autonomia e autoconsciência.
(xx) injustiça – recuperação da justiça;
(xxi) recusa/perda de identidade – identidade adquirida pelo trajeto
existencial;
(xxii) vida secular – existência épica,
(xxiii) plano histórico – dimensão do maravilhoso.

Nossa opção pela substituição da oposição (‘x’) por um sinal de


conexão (‘–’) dá-se pela intencionalidade de se fazer estabelecer uma
relação de biunivocidade e não de contradição ou contraditoriedade
necessárias. É essa variedade relevante de binarismos primais,
chamados por J. Chosa de experiências ou ‘encruzilhadas
existenciais’, que faz de Odisseu um arquétipo do trajeto existencial
humano como o protagonista náufrago da empreitada metanarrativa
de conhecimento auto-referencial do homem ocidental, arquétipo
homérico de um projeto em execução e de um trajeto em construção
ou tecelagem narrativa que se conta ou semiotiza com um modus
linguístico (narrativa, discurso) que chamamos de linguagens
náufragas.

Nas narrativas míticas das linguagens náuticas e náufragas, o


percurso de sentidos ruma para os espelhamentos, os mimetismos
próprios à recriação desiderativa de um mundo da vida consonante
com o mundo interior erguido no espaço ficcional da narrativa, seja
ao modo aproximado do real, ou dele, afastado, por negação ou por
projeto de transformação, ou para além desses, na casuística
aleatória que a perspectiva descentrada proporciona. Essas
consonância e dissonância apresentam-se como o estado de
elaboração da articulação entre mundos: o real da referência que
indexa a história, a sociedade; o simbólico que se distancia do real e
introduz a subjetividade do indivíduo ou da comunidade humana; o
imaginário e incontinente que transborda as tentativas de controle e
retenção linguística e transbordam nas possibilidades hermenêuticas.
A invariância que sobressai nas linguagens náufragas é a luta
instintiva pulsionada pela linguagem que traduz representações
sociais, fantasmas e delírios em paisagens poéticas, idílios selvagens,
infernos de desumanidades frente às humanidades canônicas, idas e
vindas às travessias do marasmático psiquismo ancestral do homos
symbolicus que é constitucionalmente pluridimensional: (i) ordenado
pelo princípio do prazer (infans), (ii) sujeito cindido pelas
intervenções interditórias da natureza e da sociedade, o civitas, (iii)
o subjectum que é a justaposição entre o infans que perdura ao
civitas que se constrói pela intervenção do simbólico público), (iv) ao
indivíduo (individuus) que elabora essas instâncias anteriores como
objetos ou planos pelos quais a ficção desliza ou se constrói para a
realização da opus magna que tende ao negentropismo ou à
harmonia (homeostase) que, entretanto, não se consegue senão e
somente por aproximação a esse impossível estado gozoso e
perpétuo (se conquistado seria a aniquilação do humano que é
irremediavelmente constituído da falta, do tabu, da interdição, da
língua que o cinde) à custa da confissão admissional de sua
impossibilidade real. A metonímia é a política de desdobramento que
nas linguagens míticas variam “significantemente” as narrativas de
superfície para segredar o que permanece nos alicerces. A ocultação
da lógica é a revelação que enigma evita. Ele é tudo que encobre e
recobre os elementos que constituem os porões da linguagem. É um
caso emblemático de explicação causal para aforismos medievais que
não podem ser resolvidos nas narrativas mítico-poéticas; ex tenebris
ad lucem: as trevas escondem os fundamentos de toda luz e toda
tentativa de exorcismo narrativo é então, a criação de um espaço
esquizofrênico que criará outro discurso – o dogmático, ou o
religioso, ou o totalitário, avessos estruturalmente ao poético.

A escolha pela terminologia físico-termodinâmica declara o


pressuposto epistemológico que fundamenta a análise: a lógica que
estrutura uma narrativa e opera a articulação de suas dimensões
(narrativa: sintaxe, léxico, retórica, prosódica, estilística; discursiva
com seus macrotemas; fundamental e suas lógicas estruturantes,
incluindo todo o não-dito; o percurso semiótico que é a conjunção
delas todas) é a clave de hermenêuticas possíveis de elucidação por
aproximação, por tradução. Hermenêuticas cartesianas tendem à
revelação científica do mito, já que a Lógica dessas hermenêuticas é
a “busca de invariantes ou de elementos invariantes entre diferenças
superficiais” (Lévi-Strauss, 1978, p.12); é determinação de leis e
estruturas que permitem a aderência do significado aos significantes,
e de sua tessitura, a emergência dos sentidos. A compreensão das
etapas e elementos estruturais do percurso dos sentidos é sua
destituição e decomposição, já que sua atribuição analítica assim
implica, da unidade integrativa que constitui característica distinta do
discurso mítico.

A dimensão extra-textual, a ideológico-sociológica que se


inscrevem como possibilidades de interpretação do discurso mítico,
são suportes de compreensão necessários, mas o corte sincrônico
(não histórico, incidental) daquele discurso confere-lhe ampla
autonomia que contrasta com sua permanência temporal de clássico
literário e gênero discursivo. A linguagem é um epifenômeno
complexo, que como a consciência, guarda consigo a misteriosa e
contraditória qualidade de ser fenômeno. Para sua compreensão, a
dos eventos linguísticos, a análise diacrônica (arqueologia das
permanências canônicas e paradigmáticas) é essencial para que se
acompanhe a concatenação dos elementos que constituem sua lógica
significativa própria, local, sincrônica, e nessa modalidade discursiva,
sempre encoberta pelos dispositivos que lhes são propriedade de
tipo, mas estratégias de tradução vivificante: seja pelas narrativas
históricas que encerram metáforas poéticas, seja pelas linguagens
mânticas: presságios, auspícios, augúrios, necromântica, profecia,
cleromancia, cledomancia, enigmas, prenúncios, oráculos, vaticínios,
sonhos. “Podemos dizer que o mito fala de uma verdade impossível
de ser dita de outra maneira que não por esta alusão: como estrutura
simbólica, ele permite vestir o real com o imaginário”vi. Daí o uso das
figuras retóricas propícias e de semióticas enigmáticas, como se vê
nas tragédias gregas cujos elementos temáticos assemelham-se
àqueles presentes às epopeias homéricas. Tome-se Tirésias e Édipo
como caso exemplar. Tome-se o Odisseu homérico como o caso
modelar de arquétipo que organiza o dialeto mítico das linguagens
náufragas e seus constituintes sígnicos que as diferenciam de outras:
signos náuticos, símbolos de travessia e transposição de limites
conhecidos, sinais do descentro, a descoberta da natureza do mundo
e do próprio mundo de naturezas e estranhezas, o distanciamento
que propicia a alteração das perspectivas pelas quais se compõem a
alteridade, o si mesmo e outro, a ausência do outro especular na
emergência da revelação de sua participação protagonista no palco
das vozes que integram o eu monológico, signos de submersão e
emersão, liturgias de renascimentos imersivos, a solidão existencial
na vastidão geográfica, o afastamento expatriado e diaspórico, a
partida sacrificial, a recusa voluntária dos valores socializados, a
intencionalidade de repatriar-se às margens dos limites do pensável,
a cultura de si além das modulações identitárias, a iconoclastia e
reconstrução dos tabus, o alógeno na construção de uma nova
geodésia de si mesmo, o distanciamento como espaço privilegiado do
confronto das ontologias do ser (ipseidade, mesmidade, identidade,
subjetividade, indivíduo, sujeito, pessoa, personalidade, ego), os
continentes líquidos e suas linguagens (potências titânicas, mares
primordiais, marés tattwas, redemoinhos, fossas abissais, lunações,
mundos náuticos, rios e liturgias fluviais, maquias e linguagens
piratas, chãos de erraticidade, bestiários marinhos e fluviais, rios
arquetípicos da memória), as ressignificações das utopias e distopias
das geografias perdidas, novas topografias e retóricas existenciais,
desagregação egóica nos limites da sanidade, intemperes e a
insignificância da espécie, as semânticas da colonização e dominação
(cratofanias), a assimilação ideológica da diferença, a natureza
famélica e a destruição da razão e coisificação do humano, o
canibalismo dos tabus civilizatórios, as antropologias e gastronomias
da sobrevivência, o lugar náufrago do santuário eremitério, as
sintaxes de deixar, deixar-se, evadir, invadir, incluir, repelir,
permanecer, alterar, alterar-se, hierofanias de mortes e renascimento
das águas de afogamentos iniciáticos, memoriais e esquecedouros
que singram delimitativamente o real, o simbólico e o imaginário.

Os elementos constituintes das linguagens náufragas figuram


uma semiótica aberta porque irmana com a metáfora essa sua via
áurea de contar e de cantar como sereias, no deslize sedutor de um
significante fugidio a um significado fluídico, as composições sobre o
que tange ao humano e o não humano. Odisseu e seus vinte e quatro
cantos, desdobram-se em ritmos de gêneros poéticos, míticos,
épicos, trágicos que se elevam como um caminho hermenêutico,
como uma trilha de alguma solidez (a da análise linguística) sobre a
qual se pode caminhar a passos de interpretação. Esse trajeto que
ressurge em meio a marés baixas, sob os lumes da lua cheia que
aponta o caminho de Ishvara. Como nas hierofanias hindus, a Lua
indexa o símbolo do trajeto a percorrer e do rumo para o alcance do
desejado. Mas, Ishvara, a Lua deidade, assim como a deusa Maia e
seus véus, são alusões dévicas à ilusão, fim de todo intento humano
desiderativo, no nossa caso, interpretativo. Mas, a verdade do mito,
do épos, da poesia e da tragédia não é nem a mirada quantitativa,
verificável, descritiva e reprodutível da ciência moderna, nem aquela
aletheia filosófica e metafísica, nem a versão logocêntrica cartesiana;
verdades que afogam a palavra mítica sem possibilidade de
recuperação. Sua verdade, a mítico-poética, assim como o caminho
que se constrói no caminhar a despeito da parada derradeira, é a
própria alusão à ilusão (do grego phantasía) que a língua causa
quando conta, aqui vertida em metalinguagem: narrativa sobre a
narrativa. Esse lume a que se recorre é da ordem da conotativa
semântica da iluminação grega, ou paideío (iluminar) e de seu efeito
figurativo psíquico, o iluminado, o ilustrado, aqui na versão figurativa
daquele que é visionário (enthousiastés). E como, por vez de
contiguidade léxica, entusiasmo equivale ao grego inspiração, o conto
sobre o conto é auspício de folego para “mergulhos” profundos,
possíveis encontros, achamentos e descobertas guiados pelas mãos
cegas e poéticas do barqueiro homérico cuja cobrança são os óbulos
da interpretação. O destino não é o carôntico Hades, senão o
universo fantástico das linguagens náufragas odisseicas e seu herói
par excellence. "o sagrado é uma estrutura da consciência humana" (1969 i; 1978, xiii)

i
“Expressions like sacred time (illud tempus), ab origine, repetition and
regeneration of time, center and sacred space are to be found in many books and
articles that altogether compose a complex picture of Eliade’s temporal and spatial
concepts. The most central ideas are assembled in The Myth of the Eternal Return:
Cosmos and History, which Eliade (2005 [1949], xxix) himself deemed his most
important book offering a comprehensive summary of his ideas about man in time,
and The Sacred and the Profane: The Nature of Religion (Eliade 1961 [1957]),
which elaborates on the sacred-profane-dichotomy in general but focuses on its
spatial dimension. In mutual complementation these works provide access to
Eliade’s existential research questions regarding his main topic: man and his
understanding of the world and the meaning of his own existence”. BARTH,
Christiane: In illo tempore, at the center of the world: Mircea Eliade and
religious studies' concepts of sacred time and space. In: Historical Social
Research 38 (2013), 3, pp. 59-75. URN: http://nbn-resolving.de/urn:nbn:de:0168-
ssoar-379787
ii
θεωρώ, εξετάζω, λαμβάνω υπ' όψιν,... { consider }
συλλογίζομαι, ενθυμούμαι, βάζω στο μυαλό... { bethink }
μηρυκάζω, μηρυκώμαι, αναμασώ,... { ruminate }
σκέπτομαι, συλλογίζομαι, μελετώ { meditate }
κατοπτρίζω { mirror }
κατοπτρίζω, ανακάμπτω, συλλογίζομαι,... { reflect }
σκέπτομαι, θεωρώ, διαλογίζομαι,... { speculate }
φρονώ, σκέπτομαι, νομίζω, κρίνω,... { think }
ξανασκέφτομαι { think over }

iii
Em primeiro lugar cumpre definir o nome e o verbo, depois, a negação e a
afirmação, a proposição e o juízo. As palavras faladas são símbolos das afeições da
alma, e as palavras escritas símbolos das palavras faladas. E como a escrita não é
igual em toda a parte, também as palavras faladas não são as mesmas em toda a
parte, ainda que as afeições da alma de que as palavras são signos primeiros,
sejam idênticas, tal como são idênticas às coisas de que as afeições referidas são
imagens (De Int., 16a1–8). ARISTÓTELES. Órganon. Tradução do grego, textos
adicionais e notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2005. pp. 81-110.
iv O ship, fresh waves will carry you back into the sea!
O nauis, referent in mare te noui fluctus

O what are you doing?


O quid agis?

Boldly seize the harbour


Fortiter occupa portum

Surely you see how your hull is stripped of its oars, and how the mast is
wounded by the gale from Africa, and how your sail-yards groan, and
how without ropes ships are scarcely able to endure the too
domineering sea?
Nonne udies ut nudum remigio latus, et malus celeri saucius Africo
antemnaque gemant ac sine funibusuix durare carinae possint
imperiosius aequor?

Your sails are not in one piece, and you do not have any gods on whom
you can call when you are hard pressed with danger again.
Non tibi sunt integra lintea, non di, quos iterum pressa uoces malo.

Although you are a pine-tree from Pontus and the daughter of noble
wood, although you boast both of your pedigree and your worthless
name,
Quamis Pontica pinus , siluae filia nobilis, iactes et genus et nomen
inutile:
a fearless sailor will not trust an ornate ship.
nil pictis timidus nauita puppibus fidit

You, if it is not your destiny to be a play thing of the wind, beware


Tu, nisi uentis debes ludibrium, caue

You, who were recently a burden causing me anxiety now you are an
object of love and a not light care, avoid the sparkling seas flowing
between the Cyclades.
Nuper sollicitum quae mihi taeium, nunc desiderium curaque non leuis,
interfusa nitentis uites aequora Cycladas
v

vi CARREIRA, Alessandra Fernandes. O mito individual como estrutura


subjetiva básica. Psicol. cienc. prof. [online]. 2001, vol.21, n.3 [cited 2016-05-
13], pp.58-69. Available from:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932001000300008&lng=en&nrm=iso>.

http://www.vedabase.com/en/synonyms-index?original_op=starts&original=tattva

GARAGALZA, Luis. La interpretación de los símbolos: hermenéutica y lenguaje en la filosofía


actual. Barcelona: Anthropos, 1990.
------------ . Filosofia e historia en la Escuela de Eranos. Anthropos Revista Científica, nº 153,
Barcelona, 1994.

VARGAS, Antonio. O conceito de símbolo no estudo da hierofania estética. Revista on-line


Periscope Magazine, ano 1, Nº 1, Abril 2001. ISSN1519-6100 - endereço eletrônico
http://www.casthalia.com.br/casthaliamagazine/casthaliamagazine.htm

------------. Antropologia simbólica: hermenêutica do mito do artista nas artes plásticas. In


BULHÕES, Mª. A. & KERN, Mª. L. (org). As questões do sagrado na arte contemporânea da
América Latina. Porto alegre: UFRGS, 1997.

VERJAT, Alain (org). El retorno de Hermes: hermenéutica y ciencias humanas. Barcelona:


Anthropos, 1989.

«Pro captu lectoris habent sua fata libelli»* (208)

*«Os livros têm o seu destino de acordo com o poder de compreensão do leitor»

Terentianus Maurus (séc II/III d.C.)

Habent sua fata libelli


Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

A expressão latina Habent sua fata libelli é parte do verso 1286 de De litteris syllabis
pedibus et metris,[1] obra do escritor romano Terenciano Mauro (floruit século II), conhecido
como gramático e teórico da métrica. O verso é Pro captu lectoris habent sua fata
libelli (literalmente, "os escritos têm seu destino de acordo com a capacidade do
leitor" [2] [3] ), no entanto, é geralmente citado apenas em parte (...habent sua fata libelli) e
traduzido (com sentido diverso do original) como "os livros têm seu próprio destino", o que
tem servido a "interpretações" como: "cada livro é predestinado a ter maior ou menor sorte,
independentemente do seu mérito intrínseco" ou "todo livro é, mais cedo ou mais tarde,
fadado ao esquecimento".

Referências
1. Ir para cima↑ Terentianus Maurus ; Lachmann, Karl. De litteris syllabis et metris
liber Reimer: Berlim, 1836, p. 44. Bayerischen Staatsbibliothek digital.
2. Ir para cima↑ Treccani Enciclopedia Italiana. Habent Sua Fata Libelli
3. Ir para cima↑ Libelli é o plural of libellus, que, por sua vez, o diminutivo de liber ('livro').
Neste caso porém, não se trata propriamente de 'livrinhos' mas de folhetos, panfletos etc.
p.284

http://www.online-literature.com/homer/odyssey/1/

W. Walter Merry, James Riddell, D. B. Monro, Commentary on the Odyssey


(1886)

Homer. The Odyssey. English Translation by A.T. Murray, Cambridge, Harvard


University Press; London, William Heinemann, Ltd. 1919.
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atex
t%3A1999.01.0135%3Abook%3D1%3Acard%3D1

Twists and Turns: The Character of Odysseus


Sing to me of the man, Muse,
the man of twists and turns,
driven time and again off course.
--The Odyssey by Homer, translation by Robert Fagles (1996)

***

In the opening of Homer's The Odyssey, the main character Odysseus is referred to as
an anthropos polytropos (a phrase translated above as "man of twists and turns"). You
might be able to guess the basic meaning of the phrase if you think of similar words
such as anthropology and anthropomorphic, polygon and polygamous, and tropical and
troposphere.

In these very first lines of The Iliad, Homer points to two major themes that will be
central to his epic--the rage of Achilles and the glory promised by heroic death in
war. In The Odyssey, we turn to a story of what happens after war--that is, the story of
peace. Today I want to talk about some of the themes of the Odyssey highlighted by
Homer's use of the word polytropos in these crucial first lines.

First, the central drive of The Odyssey is Odysseus's efforts to return home to his wife
and child on Ithaca. This turning--or ratherreturning--is the specific story of an
individual, but clearly Homer is comparing the return Odysseus makes to the
homecomings of other war heroes. From other literature and mythology, we know what
became of other leaders from the long years at Troy. By the time The Odyssey begins,
however, all of the other warriors are either home or dead (or both, as we'll see soon
when I read Aeschylus). Only Odysseus has not yet returned home.

The former warrior's homecoming is threatened and delayed constantly by the vagaries
of fortune, the vengeance of gods, and the missteps of his crew. That is, Odysseus's
attempts to return home are thwarted by the twists and turns, leading him from one
danger to another and from delay to further delay.

A final meaning of polytropos is the twists and turns of his own mind. Odysseus was
praised in The Iliad for being one of the Greek's best warriors, not because of this
physical strength but because of his intelligence. Perhaps "intelligence" is the wrong
word. Instead we might call Odysseus crafty, conniving, or tricky. In a future post, I
want to talk more about this aspect of Odysseus, how his cleverness is echoed in other
characters, and what Homer might have meant by it.

***

The Greek word polytropos, weighted with these various meanings, creates both a
complication and an opportunity for translators. Here are a few of their various attempts
at conveying the polytropic nature of Odysseus:

1. Allen Mandelbaum (1990)

Muse, tell me of the man of many wiles,


the man who wandered many paths of exile

2. Richard Lattimore (1965)

Tell me, Muse, of the man of many ways, who was driven
far journeys

3. Robert Fitzgerald (1961)

Sing in me, Muse, and through me tell the story


of that man skilled in all ways of contending,
the wanderer, harried for years on end

4. Rieu and Rieu (Originally translated in the mid-1940s and recently revised by the
translator's son)

Tell me, Muse, the story of that very resourceful man


who was driven to wander far and wide

5. Samuel Butler (1900)

Tell me, O muse, of that ingenious hero who traveled far and wide

6. Alexander Pope (1725)

The man for wisdom's various arts renown'd,


Long exercised in woes, O Muse! resound

* * *

Depending on which translator we read, Odysseus might be wily or ingenious, cunning


or resourceful. Clearly some of these words are more negative than others. But even
when we use the most positive words, it is very hard to conceive of the hero of The
Odysseyas a man trying to live by his moral compass.

* * *

When I think of the meanings of the word turning, my thoughts always have a Pete
Seeger soundtrack featuring "Turn! Turn! Turn!" and its lyrics straight from the King
James translation of Ecclesiastes:

To every thing there is a season, and a time to every purpose under the heaven
A time to be born, and a time to die; a time to plant, a time to reap that which is
planted;
A time to kill, and a time to heal; a time to break down, and a time to build up;
A time to weep, and a time to laugh; a time to mourn, and a time to dance;
A time to cast away stones, and a time to gather stones together;
a time to embrace, and a time to refrain from embracing;
A time to get, and a time to lose; a time to keep, and a time to cast away;
A time to rend, and a time to sew; a time to keep silence, and a time to speak;
A time to love, and a time to hate; a time of war, and a time of peace.

In The Odyssey, Homer takes the turn mentioned at the end of this passage--from "a
time of war" to "a time of peace." Other than that, the words of the Bible and the words
of Homer are radically different. Homer is not engaging with the complex message of
the acceptance of change that seems to be coming out of Ecclesiastes. Instead we
have a story --albeit with a a somewhat convoluted and twisting narrative structure--of
a journey with a clear beginning and a foreordained end. (More about the narrative
structure later.) In other words, the turning stops when the book stops.

Religious ideas about turning also appear in the Jewish concept of t'shuvah, one of the
central conceits of Yom Kippur. The literal meaning of t'shuvah actually is "turning"--
but the Hebrew word carries the idea of repentance as well. T'shuvah only comes
when we turn away from lives of dishonesty or injustice, and turn towards a
commitment to a changed self. T'shuvah requires that we acknowledge our limits and
our weaknesses and take responsibility for our past actions.

It is this kind of turning that is furthest from what we see in The Odyssey. Odysseus
uses lies and deceit to trick monsters, gods, and good people alike. He brags about
his strengths and tries to erase any perceived cases of weakness or fault. He blames
the men of his crew for many of their setbacks. He even lies and cheats his way into
his palace at Ithaca.

And yet Homer makes sure his listeners and readers are cheering for Odysseus all the
way to the end. This lack of change or thought makes Odysseus seem like a cartoon
figure, a character with no depth and no change. Although I am stunned to say it, The
Iliadresonates for me as a modern reader far more than The Odyssey does. Achilles
struggles through such intense personal growth that the book feels like a very modern
and meaningful book. The Odyssey feels more like a superhero adventure story,
entertaining but not necessarily transformative. Did any of you have a similar
reaction? I would love to hear any ideas you have.

(The post of a part of the Book Beginnings meme hosted by Katy of the blog A Few
More Pages.)

Hannah at Tuesday, February 22, 2011

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