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Resumo
O artigo analisa a construção social do corpo contemporâneo por meio de obras de três
artistas: o australino Stelarc, a francesa Orlan e o anatomista alemão Gunther von
Hagens. Discute como a body art e a bioarte promovem a crescente simbiose entre a
carne e a técnica, o orgânico e o inorgânico. Enfatiza que nas sociedades ocidentais
novas configurações corporais invadem o cenário urbano, evidenciando quão tênue são
as fronteiras entre a natureza e o tecnológico potencializado. As produções destes
artistas estudados nos revelam que somos cada vez mais mutantes, híbridos, cuja
estética inquieta e fascina ao colocar em evidência outras formas de pensar o humano e
o tecnológico em cada um de nós mesmos. Vivemos a era das metamorfoses físicas e
mentais aceleradas por meio das cirurgias, implantações e transplantações de próteses
no humano. Essa parece ser a verdadeira revolução do presente: colonizar e modificar
todo o corpo com as tecnologias médicas e cibernéticas. O resultado é a progressiva
valorização das formas provisórias, da incompletude corporal. Estar sempre aberto a
novas modificações passa a ser a condição para a promoção da beleza, da juventude e da
longevidade perseguidas a todo custo. O artigo conclui, em acordo com esses artistas,
que agora o corpo, vivo ou morto, nada mais é que uma performance e que cada um
deve se aperfeiçoar sempre em cena.
Esse diálogo do homem com a tecnologia não é recente. A história humana se confunde
com a história da técnica. Segundo Izagirre
[...] desde que os primeiros homínidas liberaram suas mãos para poder usá-las como
instrumento, isto é, como ´interface` para comunicar seu pensamento com o processo de
transformação dos objetos, começa o processo tecnológico, processo que juntamente
com o aparelhamento da linguagem transformará todo o pensamento. Passamos da fase
de atuar com a mão como instrumento direto, quer dizer, ´manipulando` o que está ao
nosso redor, à mão cibernética teledirigida e teleprocessada. (IZAGIRRE, 1997, p. 7)
Ao adotar esse fundamento teórico para o seu trabalho revela sua concepção de que o
corpo concebido fora das tecnologias está em desuso, é algo que não funciona mais de
modo adequado às novas exigências performáticas dos tempos atuais. Tornou-se,
portanto, obsoleto! Sterlac defende que o corpo deve irromper e transgredir os seus
limites biológicos, culturais e planetários.
É hora de se perguntar se um corpo bípede, que respira, com visão binocular e um
cérebro de 1.400cm3 é uma forma biológica adequada. Ele não pode dar conta da
quantidade, complexidade e qualidade de informação que acumulou; é ilimitado pela
precisão, velocidade e poder da tecnologia e está biologicamente mal-equipado para se
defrontar com seu novo ambiente extraterrestre. O corpo é uma estrutura nem muito
eficiente, nem muito durável; sua performance é determinada pela idade. É suscetível a
doenças e está fadado a uma morte certa e iminente. Seus parâmetros de sobrevivência
são muito limitados – o corpo pode sobreviver somente semanas sem comida, dias sem
água e minutos sem oxigênio. A ausência de projeto modular do corpo e de seu sistema
imunológico que reage exageradamente dificulta a substituição de órgãos defeituosos.
Considerar o corpo obsoleto em forma e função pode ser o auge da tolice tecnológica,
mas mesmo assim ele pode ser a maior das realizações humanas. (STELARC, 1997, p.
54).
É a presença da máquina que pode agora devolver algum sentido ao corpo, garantir a
sua funcionabilidade. Como a tecnologia é cada vez mais miniaturizada e
biocompatível, ela pousa sobre o corpo, nele é implantada fazendo com que a dinâmica
corporal seja cada vez mais determinada pela presença das máquinas. O artista está
convencido de que a estrutura fisiológica do corpo determina a sua inteligência e as suas
sensações. Razão pela qual faz uso da tecnociência para modificar essa estrutura
criando, assim, uma percepção alterada da realidade corporal. Por meio de sua estética
protética extrapola e busca novas trajetórias corporais. Como um escultor genético,
reestrutura e hipersensibiliza o corpo humano tornando-se mais do que um artista
performático: Sterlac é um arquiteto dos espaços interiores do corpo, um provocador de
mutações, exemplar transformador da paisagem do humano.
Para Stelarc, estamos no fim da filosofia e da fisiologia humanas e o homem não é mais
definido pelo natural nem pelo animal, mas pela tecnologia, onde o pós-humano se
define pela fisiologia biotécnica. Por isso, ele se posiciona em cena como uma parte da
própria máquina. Para estender as capacidades corporais pluga seu corpo nos
computadores, acopla em seu braço um outro braço mecânico, uma mão robótica,
instala seus olhos laser, utiliza sistemas sonoros, e o seu corpo passa a funcionar de
acordo com o ritmo das máquinas. Ele encarna o híbrido homem-máquina no qual
estamos todos nos tornando. O destino ciborgue que progressivamente nos seduz e
acaricia. Segundo o australiano, é para tornarem-se mais compatíveis com as máquinas
que os humanos estão sendo tecnicamente reprojetados. E aqui ele enfatiza o
obsoletismo do modelo “psicocorpo” e a urgência do “cibercorpo”.
O PSICOCORPO não é nem resistente, nem confiável. Seu código genético produz um
corpo que muitas vezes funciona mal e se cansa rapidamente, possibilitando apenas
parâmetros tênues de sobrevivência e limitando sua longevidade. Sua química carbônica
GERA EMOÇÕES SUPERADAS. O psicocorpo é escrizofrênico. O CIBERCORPO
não é um sujeito, mas um objeto – não um objeto de inveja, mas um objeto para a
engenharia. O cibercorpo fica eriçado com eletrodos e antenas, ampliando suas
capacidades e projetando sua presença para locais remotos e para dentro de espaços
virtuais. O cibercorpo torna-se um sistema estendido – não para meramente sustentar
um eu, mas para intensificar operações e iniciar sistemas inteligentes alternados
(STELARC, 1997, p. 59).
Orlan desenvolve sua arte baseada na crença de que o corpo sempre foi mutável, o que
não significa afirmar que se deva esperar que a lentidão da natureza o transforme. As
técnicas médicas, especialmente, as cirurgias estéticas, permitem a aceleração deste
processo onde as mutações corporais podem ser realizadas e visualizadas em tempos
cada menores. Para a artista, a sala cirúrgica é o espaço mais emblemático para retratar
as políticas tecnológicas do corpo contemporâneo: local que atesta nossa incompletude
ao mesmo tempo em que promove sua mutação em prol da beleza, perfeição e
juventude.
É nesse cenário que a obra de Orlan ganha especial destaque. Ao metamorfosear-se,
através do uso de apuradas técnicas cirúrgicas, revela o quanto a sociedade
contemporânea, mediatizada pelos avanços tecnocientíficos, incita os sujeitos a
recriarem constantemente seus corpos recorrendo a intervenções diversas tais como a
lipoaspiração, implante de silicone, cirurgia plástica, acoplagem de próteses, etc.
Para Orlan é importante utilizar a sua matéria orgânica como material principal de suas
intervenções artísticas: “Dei meu corpo para a arte”, ela diz. Cortar, abrir, cutucar,
implantar, fechar, costurar e cicatrizar partes do corpo são atos performáticos. Enquanto
muitos exibem uma nova imagem corporal após uma intervenção cirúrgica, Orlan exibe
a operação como arte. Mais importante que o corpo reconfigurado pelas plásticas é o
momento em que a transformação acontece.
A carnal art – embora inserida no que se denomina de body art – torna-se pertinente
para este tipo de intervenção. Refere-se a um trabalho de auto-retrato em sentido
clássico, mas realizados com os meios tecnológicos característicos do nosso tempo onde
o corpo oscila entre a desfiguração e a reconfiguração. O corpo é entendido, então,
como uma realidade a ser modificada e, ao contrário da body art, a carnal art não deseja
a dor, não é uma forma de purificação nem mesmo de redenção. Ela não se interessa
pelo resultado plástico final, mas pela operação-performance da qual resulta um corpo
modificado, objeto de debate público e, por essa razão, exibido na mídia. Para Orlan,
não faz mais sentido representar o corpo, é necessário mudá-lo.
Orlan
Após as cirurgias o rosto da artista passa a ser uma síntese da história da pintura. Uma
síntese que inclui o sangue, o glamour e a imagem popular excêntrica de Orlan. Tudo
isso inserido num contexto publicitário e midiático. Mas não é apenas isso. Sua pele se
converte numa fronteira entre o passado e o futuro, o privado e o público, o interior e o
exterior, o corpo e a técnica, o pensamento e a ação, a arte e a vida. Em seu corpo, todas
essas referências se confundem. Seu trabalho tem claramente três etapas. Primeira:
desenha seu novo rosto no computador; segunda: materializa-o por meio de cirurgias
plásticas; terceira: transmite as operações diretamente de galerias, museus e hospitais,
via satélite, pela internet.
A artista afirma que não transforma seu rosto e o seu corpo para ficar mais jovem ou
mais bela. O que interessa não é a juventude ou a encarnação efêmera de um
determinado cânone de beleza, mas a mutação física que esses modelos vão lhe
proporcionar. O que deseja é uma mudança completa da imagem do corpo como
potência de atualização. Ela explica por que escolheu essas referências:
Vou escolher esses modelos não pelos cânones de beleza que se supõe que representam
mas por causa das histórias que estão associadas a elas. Escolho Diana porque se recusa
a submeter-se aos deuses ou aos homens, é altiva e agressiva, dirige um grupo; a Mona
Lisa porque é uma luz da História da Arte, um ponto de referência, não porque seja bela
segundo os critérios de beleza contemporâneos, mas porque detrás dessa mulher existe
um homem que hoje sabemos ser o próprio Leonardo Da Vinci, um auto-retrato
escondido na imagem da Mona Lisa (o que nos desperta a questão da identidade). Não
quero parecer-me a Vênus de Botticelli. Não quero parecer-me a Europa de Gustavo
Moreau (não é meu pintor favorito). Escolhi Europa porque é parte de um quadro
inacabado, como é a maioria! Não quero parecer-me a Diana do quadro da Escola de
Fontainebleau. Não quero parecer-me a Mona Lisa... como se disse e se continua
dizendo nos jornais e na televisão apesar dos meus múltiplos desmentidos e furiosas
correções (ORLAN apud LÓPEZ, 1998, pp. 34-35).
Concluído um percurso, realizada uma performance, a artista parte para uma outra.
Assim, é possível ter várias versões de corpo, uma configuração nova para cada
trabalho. Lopéz descreve outra performance de Orlan:
Em 1996 a artista apresentou outra “obra” intitulada Este é o meu corpo, este é o meu
software, onde fez desaparecer o seu corpo. Criou uma cabeça virtual, sem corpo, que
falava com a Orlan real e com o público. Para ela, o corpo real estava obsoleto, por isso
podia desaparecer. Tudo o que resta é o corpo cultural, criada pela arte, ciência e
tecnologia.
Para Orlan, recriar o corpo por meio das tecnologias médicas avançadas é uma maneira
de lutar contra o que é inato, o inexorável, a natureza. Interferir no corpo é blasfemar
contra o que é imposto à humanidade. Seu trabalho realça a condição do corpo como
uma opção do modelo corporal escolhido pelo sujeito. Afinal, as manipulações
genéticas e as cirurgias plásticas estão se tornando comum para um número cada vez
maior de pessoas, ultrapassando a exibição dos corpos espetacularizados pela mídia:
compõem desejos e sonhos de milhares de pessoas que vivem no anonimato das
cidades.
Com isso, o estatuto do corpo passa da exclusão para a completa exibição. Se durante
muitos séculos, sob o domínio de uma determinada tradição filosófica-religiosa o corpo
sofreu todo tipo de exclusão, tinha que ser preservado, inviolado pela ciência e pelas
técnicas; nas últimas décadas passou a ser objeto de culto, reconhecido como espetáculo
magnífico, protagonista de um total e radical exibicionismo, nas ciências, nas artes e,
principalmente, na mídia. O conhecimento do corpo coincide cada vez mais com a
exibição do corpo, ainda que sem vida e a arte de Hagens mostra que o corpo morto
continua performático, cultuado, negociado e, sobretudo, ininterruptamente exibido. Se
o corpo vivo de muitos artistas pôde ser visto como obra de arte, agora o corpo morto
também ganha o mesmo estatuto. Expor cadáveres plastinados pode ser chocante,
indecente ou vil para muitas pessoas; uma estupidez ou uma banalidade. Também pode
ser educativo e mesmo artístico. Na verdade, tudo se tornou possibilidade e, no reino
das possibilidades, tudo poder ser, pode vir-a-ser, pode deixar de ser. O corpo, vivo ou
morto, é performance, mídia, acontecimento.
Não se desenvolve também sem uma minuciosa intervenção técnica e científica cujo
aprimoramento torna possível a exibição desses corpos camaleônicos, protagonistas de
uma forma de fazer arte que se encarrega de mostrá-los em seus diversos processos de
transformação. Na atual circulação sideral de corpos e imagens corporais estas artes
revelam que os corpos vivos ou mortos adentram o mercado da arte: são cuidados,
embelezados, maquiados, reconstruídos, exibidos e comercializados seja sob a forma de
pagamento de ingressos e do consumo direto de imagens reais, seja da venda de
souvenirs, catálogos, postais, camisetas, vídeos e relicários.
Denúncia social, apogeu performático, eliminação das diferenças entre o corpo orgânico
e o corpo artístico, escaneamento e virtualização dos organismos essas experiências
artísiticas nos dizem que é preciso, a todo o momento, reinventar e visibilizar o corpo.
Torna-lo performático e fotogênico, não apenas o seu exterior, mas igualmente no
interno de sua pele. Tudo deve ser mostrado, visto, comercializado e cultuado. Assim, as
fronteiras do corpo são progressivamente vencidas e ultrapassadas tanto na ciência e na
técnica, quanto na arte. O que não quer dizer que os mistérios são completamente
revelados. Sempre que algumas fronteiras são vencidas outras tantas aparecem, novos
mistérios nos seduzem. E o corpo continua fonte de crescentes e incansáveis buscas e
decifrações.
Bibliografia
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VIRILIO, P. Rat de laboratoire. Propôs recueillis par Jean-Yves et Alain Kruger. L´autre Jornal, 27, (1992): 09-
14.