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O mundo que os escravos fizeram e a contribuição da obra de

Genovese aos estudos sobrea escravidão atlântica

Igor Tadeu Camilo Rocha


Resenha: GENOVESE, Eugene Dominik. Roll, Jordan, roll: the world the
slaves made. New York: Vintage Books, 1976. 864 p.

Na segunda metade do século XX, algumas questões foram colocadas à


historiografia pelos inúmeros movimentos por direitos civis que surgiram, reivindicando
inúmeras pautas de minorias sociais, dentre outras múltiplas demandas por igualdade e
justiça. Podemos tomar como exemplo a discussão colocada por Carlo Ginzburg (1991 p.
9-20), a respeito da produção histórica que lançava mão da documentação inquisitorial: a
partir dos anos 1960, segundo o autor italiano, as mencionadas demandas sociais
direcionaram olhares distintos do que existiam até então sobre os documentos das
Inquisições da Idade Moderna, passando de um predomínio de análises focadas na
repressão religiosa propriamente dita, ou no desenvolvimento institucional desses
tribunais de fé, para uma preocupação mais pormenorizada nas trajetórias de mulheres,
indivíduos de comportamentos sexuais ou religiosos desviantes da ortodoxia, dentre
outros agentes identificados com demandas contemporâneas por mais amplas liberdades
e direitos civis. De certa forma, isso afetou muitos campos da historiografia, entre eles, o
vasto universo de obras tocantes à escravidão moderna. A participação dos escravos na
formação das culturas nacionais contemporâneas, as razões dos inúmeros conflitos raciais
recentes que permanecem e se acirram nas sociedades que tiveram o escravismo em suas
origens coloniais, as diferenças culturais entre grupos de brancos, negros e mestiços nas
Américas, dentre outras questões, exigiram, de alguma maneira, que a historiografia
revesse concepções a muito cristalizadas a respeito do tema. Já não cabia mais o “escravo-
coisa”, vítima passiva de um sistema de escravização. Se fazia necessário pensar modelos
explicativos que dessem conta da complexidade da inserção dos escravos nas sociedades
coloniais, suas atuações na formação de suas culturas e que, ao mesmo tempo, não
minimizassem a violência inerente do sistema e que problematizasse seus múltiplos
mecanismos de reprodução e acomodação. É dentro desse quadro que podemos analisar
brevemente as múltiplas contribuições de Roll, Jordan, roll, de Eugene Dominik
Genovese, para a historiografia.

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A obra, traduzida parcialmente para o português (Figura 1)em ocasião das várias
celebrações do centenário da abolição da escravidão no Brasil (1988), tem como
importante referencial teórico o trabalho do historiador marxista inglês Edward Palmer
Thompson, que desde a década de 1980 já era também leitura obrigatória para uma
importante geração de autores brasileiros responsáveis pela quebra do paradigma do
“escravo-coisa”, nos dizeres de Sidney Chalhoub (1986; 1990). As discussões a respeito
do paternalismo, que, para o autor, foi o mecanismo essencial de reprodução de uma
ordem escravista no sul dos Estados Unidos, também abordadas por Thompson para a
Inglaterra, foram, sem dúvida a maior contribuição do autor estadunidense para a
discussão sobre a escravidão no Brasil. Entretanto, merece grande destaque para o que,
para muitos, é considerado sua maior contribuição para a historiografia sobre a América
Inglesa e também sobre a formação cultural dos Estados Unidos contemporâneo, que, no
caso, é sua tese a respeito de como os escravos transformaram o cristianismo ao sul do
referido país (PERKINS 1976, p. 56).

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Figura 1 Capa da tradução parcial de Roll, Jordan's Roll, publicada em rede social em página do Museu Afro Brasil.
Disponível em: https://goo.gl/iVi1Y3 acesso em 01mar. 2018.

Na primeira parte do livro, Roll, Jordan, Roll foi centrado na discussão sobre o
paternalismo e sua função dentro da sociedade escravista, sendo a segunda parte utilizada
para entrar no seu argumento da utilização da tradição cristã pelos escravos. O
paternalismo, então, é definido como um sistema de afetividade, proximidade e
cordialidade entre os diversos agentes que existem dentro das propriedades escravistas,
que permeia um campo de relações hierarquicamente bem definidas e que mantém a
ordem social, acomodando os conflitos, muitas vezes violentos, dentro do sistema
escravista. Ele acontece dentro de um universo cujo ethos surge orientado para as relações
com a propriedade rural, e que permeia as sociabilidades, cujas raízes remontam o
medievo, e que formam uma rede de relações orgânicas de dependências recíprocas, em
que o escravo percebe seu lugar como aquele que deve obediência e trabalho, ao passo

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que senhor assume seu papel de tutela moral e provedor de subsistência e proteção
(GENOVESE 1976, p. 4-7). Cumpre ressaltar que esse sistema não poderia, segundo
Genovese, existir juntamente com uma representação do escravo como coisa: pelo
contrário, ele é humanizado na medida em que o paternalismo não somente se consolidou
dentro de um quadro geral melhoria progressiva da vida material dos escravos nas décadas
anteriores à Guerra Civil dos EUA (1861-1865), como que também se deu
processualmente na medida em que essa melhoria significou o reforço dos laços de tutela,
material e moral, estabelecidos entre escravos e os senhores de escravos (GENOVESE
1796, p. 9-25). A tese aqui defendida é que essa aproximação, além de reforçar a
hierarquia senhor x escravo e também uma hegemonia da classe senhorial no contexto
escravista do sul dos EUA, impediu que os cativos desenvolvessem uma “consciência de
classe”, fundamental para que houvesse uma mais ampla resistência dos escravos contra
o sistema escravista, como um todo.
Duas considerações, a respeito de categorias usadas por Genovese para falar do
paternalismo, merecem ser feitas. Como mencionamos, em grande medida a discussão
sobre o paternalismo e sua função de reproduzir relações de dominação são tributárias de
trabalhos de Thompson (1981) e se desenvolveram dentro de um contexto intelectual de
forte renovação do marxismo, que marcou as décadas de 1960 e 1970. Por sua vez, uma
contribuição importante do autor inglês para a historiografia, nesse aspecto, foram as
duras críticas feitas ao marxismo clássico, especialmente a Althusser, questionando-se
fortemente a ideia de “consciência de classe” (THOMPSON 2001, p. 269-281). No
entanto, Genovese consegue desenvolver seu argumento de maneira a não cair em
contradição com suas próprias escolhas teórico-metodológicas e, sobretudo, não incorrer
no mecanicismo e na “desumanização”, criticadas por Thompson, contidas na ideia de
“consciência de classe”. Se para Genovese as relações de raça, bem como os senhores de
escravos e os próprios escravos são por ele referidos dentro da categoria “classe”, em
momento algum o autor as apresenta como possuidoras de alguma condição heurística
estanque, que necessitaria apenas de ser descoberta de alguma maneira para se agir contra
o sistema: a “consciência” a qual ele se refere, é construída dentro de redes extremamente
complexas de relações, as quais consegue mapear com uma vasta gama de documentos,
e é duplamente moldada – pelos senhores de escravos e pelos escravos- construindo-se
mutuamente, de forma a a criarem o que o autor chamou de um ethos sulista
estadunidense, que sobreviveu mesmo à abolição da escravidão (GENOVESE 1976 p.
118-121). Para o autor, é preciso que a avaliação de um regime escravocrata tenha em

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conta a multiplicidade de interações entre as classes da sociedade. A classe dominante,
os senhores de escravos, não se desenvolve simplesmente de acordo com a sua relação
com o meio de produção, no caso, a terra. Ela se desenvolve em relação às classes que
ela domina. Genovese ressalta que os escravos também aderiram ao padrão aristocrático
dos senhores de escravos, que difundiu-se nas sociedades escravistas e incutiu nos
agricultores o hábito muito discutido de mando, além de um padrão psicológico geral
mais complexo, que deve, entretanto, receber a devida atenção. Esse ideal afetou toda
outra classe da sociedade, inclusive os escravos, embora de maneiras diferentes, de acordo
com as condições comuns à situação de escravo e específica de cada classe (CARVALHO
p. 192).
Se na primeira parte do livro Roll, Jordan, Roll o destaque é para a forma como o
paternalismo se formou e também como se deu a percepção dos escravos em relação a
ele, na segunda parte “The rock and de church”, Genovese, enfim, desenvolve aqui que a
obra tem de mais original: o autor coloca em questão o cristianismo no sul Estados Unidos
e seu papel para que os escravos se reconhecessem em contraposição aos senhores. Em
princípio, o autor não deixa de lado o fato de que a religião pode atuar e constantemente
atua como grande força conservadora, inserindo-se na vida de uma sociedade civil e
política. Por outro lado, ela ofereceu elementos aos escravos para ordenar seu mundo e
se construir representações de si dentro dele, a partir das quais a realidade poderia ser
organizada, pensada e mesmo julgada. Assim, segundo Genovese, a religião “ofereceu
aos oprimidos e desprezados”, no caso, os escravos, “a imagem de um Deus crucificado
pelo poder”, mas que, “ao final foi ressuscitado, triunfante e redentor dos fieis”. Assim,
“por mais que o cristianismo tenha ensinado a submissão à escravidão, também difundiu
a mensagem pressaga para a classe dominante e de resistência para os escravos”
(GENOVESE 1976, p. 280-285).
Desde o momento em que chegaram à América e começaram a trabalhar, os
escravos absorveram a religião da classe dos senhores. Mas, progressivamente, os
escravos conseguiram mesclar à sua herança africana e à sua percepção a respeito do
poder dominante com o qual se defrontavam para, assim, moldar uma sensibilidade
religiosa própria e autônoma. Embora o autor ressalte que os negros sulistas não criaram
uma religião, fica claro que eles desenvolveram leituras e sociabilidades próprias em
relação ao cristianismo. Rituais foram resinificados. Os funerais, cuja realização à noite
era vista de forma positiva pelos senhores, por não interromper o trabalho, e pelos
escravos, pela possibilidade maior de interação com escravos de outras fazendas, são um

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bom exemplo. O que Genovese argumenta é que os espaços e a privacidade construída na
interação religiosa entre os escravos possibilitaram o surgimento de algum senso de
comunidade entre os cativos, além da mencionada autonomia e mesmo o surgimento de
lideranças, por exemplo, nos pregadores negros.
Na parte final de Roll, Jordan, Roll o autor defende que os escravos formaram,
antes criado uma “nação negra” do que uma “classe”. As relações sociais criadas, em
grande medida, a partir de uma apropriação pelos negros do cristianismo, bem como uma
contraposição deles à classe senhorial, possibilitaram a eles moldarem uma identidade
autônoma que, ao mesmo tempo, contribuiu para a cultura nacional americana, como um
todo. O racismo estadunidense, segundo Genovese, forçou os escravos a formarem antes
uma nacionalidade do que uma classe. O destino dos escravos, de outra forma, prossegue
o autor, seria similar aos dos escravos antigos caso isso não acontecesse. Se não fosse
assim, estariam condenados ao destino dos escravos do mundo antigo, pois não
conseguiriam qualquer organização e muito menos uma resistência suficiente para que
não fossem relegados aos extratos mais baixos das relações sociais, passivamente. Um
ponto essencial, novamente, para se entender as sociabilidades construídas que
possibilitaram o surgimento dessa “nação negra”, foi a religiosidade. O princípio de
“fraternidade cristã”, fortemente associado ao comunitarismo desenvolvido em torno de
suas práticas religiosas autônomas, permitiram aos escravos se distinguiram dos brancos
e criaram formas de viver e sensibilidades peculiares. Surgiu, dessa maneira, um
sentimento de se constituir um povo à parte, criando assim, inclusive, condições de uma
possível, porém jamais realizada, ação revolucionária dos negros contra os brancos.
Entretanto, a permanência de muitos elementos do paternalismo e princípios
pretensamente universais do cristianismo apareceram como mecanismos para se conter
esse tipo de interpretação das relações sociais, funcionando como amortecimento de
tensões entre brancos e negros, senhores e escravos, mesmo depois do fim do escravismo.
Em conclusão, importa reforçar a grande contribuição dessa obra por se debruçar
sobre a multiplicidade de interações existentes dentro de um universo escravista sem
incorrer em mecanicismos de um marxismo clássico, embora o autor ainda recorra a
categorias cristalizadas dentro desse modelo explicativo. Pelo contrário, a reprodução de
relações de mando e obediência, a conformação de grupos e sujeitos dentro de um
contexto de exploração de uma classe sobre outra e, sobretudo, o papel de elementos
como a religião como amortecedor de tensões e criação de mecanismos autônomos de

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resistência merecem grande atenção, por sua sofisticação e grande contribuição para se
pensar diversos outros contextos marcados pela escravização.

Referências bibliográficas

CARVALHO, Fábio Pereira de. E tomarão lugar à mesa do Reino de Deus: Eugene D.
Genovese e o evangelho nas senzalas. Outros Tempos. Volume 8, número 12, dezembro
de 2011 p. 189-192– Dossiê História Atlântica e da Diáspora Africana.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio
de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
_________. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GENOVESE, Eugene D.; GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os
escravos criaram. Paz e Terra, 1988.
_________________. Roll, Jordan, roll: the world the slaves made. New York: Vintage
Books, 1976.
GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. Revista Brasileira de História, v.
1, n. 21, p. 9-20, 1991.
PERKINS, Eric. Roll, Jordan, roll: a “Marx” for the master class. Radical History
Review, v. 1976, n. 12, p. 41-59, 1976.
THOMPSON, Edward P. A Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros: uma crítica
do pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
_______________. Algumas observações sobre classe e ‘falsa
consciência’. In:___________. As Peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Sergio
Silva e Antonio Luigi Negro (orgs.). São Paulo: Unicamp, 2012. 2ª ed. p.269-281.

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