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34º Encontro Anual da

Anpocs

ST13: GRUPOS DIRIGENTES E


ESTRUTURAS DE PODER

Contribuições de Bourdieu e Weber


para a compreensão da trajetória
de um intelectual católico leigo no
Brasil: Alceu Amoroso Lima
(anos 1920-1940)

Guilherme Ramalho Arduini


RESUMO
A partir de uma análise detalhada sobre duas obras capitais da literatura sociológica – As
Regras da Arte, de Pierre Bourdieu e Ética Protestante e Espírito do Capitalismo, de
Max Weber, desenvolve-se uma reflexão sobre a contribuição que a sociologia da cultura
pode trazer à compreensão da trajetória de Alceu Amoroso Lima entre as décadas de
1920 e 1940 e de sua inserção nas relações de força nos campos político, intelectual e
eclesial no Brasil dessa época.

Palavras-chave: sociologia da cultura, Alceu Amoroso Lima, Brasil anos 1930, Pierre
Bourdieu, Max Weber.

RÉSUMÉ
Partant d’une analyse détaillé de deux oeuvres capitales de la littérature sociologique –
Les Règles de l’Art, de Pierre Bourdieu et Éthique Protestant et Esprit du Capitalisme, de
Max Weber -- on mène une réflexion sur la contribution que la sociologia de la culture
peut apporter à la compréhension de la trajectoire de Alceu Amoroso Lima entre les
décennies de 1920 et 1940 et de son insertion dans les relations de force aux champs
politique, intellectuel et ecclésial au Brésil de cette époque.

Mots-clés : sociologie de la culture, Alceu Amoroso Lima, Brésil années 1930, Pierre
Bourdieu, Max Weber.

INTRODUÇÃO
Esse texto visa esboçar algumas possibilidades para o estudo de um intelectual
brasileiro dos anos 1930 chamado Alceu Amoroso Lima. Acredita-se que o estudo de sua
trajetória abre a possibilidade de compreensão do complexo nó de questões para as quais
estão imbricadas posições políticas, planos de organização econômica para a sociedade
brasileira dessa época e aspectos culturais. Para tanto, far-se-á uma breve apresentação de
nosso objeto de pesquisa, seguido de algumas considerações sobre quais autores dentro
da sociologia poderiam auxiliar nessa empreitada. Nosso eixo será a obra magna de
Pierre Bourdieu, As Regras da Arte, introduzida por algumas questões de cunho mais
teórico trazidas por Max Weber. Através disso, pretende-se definir um esboço do que
pretende ser essa pesquisa de doutorado.
Em mestrado recentemente defendido junto ao Departamento de História da
Unicamp, dediquei-me ao pensamento e à ação de Alceu Amoroso Lima1. Nascido a 11

1
A dissertação chama-se “Em busca da Idade Nova : Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de
organização social (1928-1945)” e está disponível para download em:
http://libdigi.unicamp.br/document/?code=000436248
1
de dezembro de 1893 da união de Manuel José de Amoroso Lima e de Camila da Silva
Amoroso Lima, sua família se dedicava à fabricação e comércio de produtos têxteis.
Entre 1909 e 1911, Amoroso Lima freqüentou a Faculdade de Ciências Jurídicas e
Sociais do Rio de Janeiro. Já no início da década de 1920 seu nome tinha fama nos meios
literários, graças principalmente a dois méritos. O primeiro deles foi o de ter
compreendido e incentivado o movimento modernista desde seu princípio; o segundo,
sua maneira renovadoramente impressionista de escrever resenhas das obras literárias. O
ano de 1924 registra duas mudanças importantes na sua vida: casa-se com uma mulher de
formação católica e passa a trocar correspondências com Jackson de Figueiredo. A morte
inesperada deste, em 1928, marcará profundamente a vida de Amoroso Lima. Recém
converso, ele decide continuar a obra de seu mentor intelectual e passa a assumir
inúmeras atividades, entre as quais a direção do Centro D. Vital, sobre o qual se
discorrerá logo abaixo.
Na dissertação, iniciou-se o estudo a partir deste momento de reconversão de
Amoroso Lima. Pretendo cobrir neste doutorado toda a década de 1920, com atenção
especial a partir de 1922. Neste ano, ao tornar-se um defensor de primeira hora do
movimento modernista, Amoroso Lima cresceu em importância no cenário intelectual
brasileiro e passou a tratar mais intensamente de questões como a da identidade nacional
e da cultura “genuinamente brasileira”, ou do papel que essa “cultura autêntica” poderia
desempenhar no cenário internacional. A partir de 1928, ao assumir publicamente a fé
católica e tornar-se o presidente de diversas agremiações católicas, ele torna-se uma
figura ímpar na história da cultura nacional, pois conta com um trânsito considerável nos
meios eclesiástico, intelectual e político, mas ao mesmo tempo não se identifica com
nenhum deles.
No primeiro deles, é considerada uma figura muito próxima do Cardeal Sebastião
Leme, mas não é um clérigo e, portanto, não tem o peso de declarar a posição oficial da
Igreja. Entre os intelectuais, possui um reconhecimento acumulado ao longo de seu
período como crítico literário, mas diminuiu em importância quando se assumiu como
católico e passou a atuar junto à uma autoridade religiosa, diante de uma geração que
enxergava nessa organização certas permanências indesejáveis do passado. Por fim,
especialmente ao longo da década de 1930, Amoroso Lima presidiu diversas
organizações explicitamente comprometidas com a defesa dos interesses da Igreja na
reorganização legal que se seguiu ao Outubro de 1930. Ele procurou refletir e justificar-
2
se sobre tal posicionamento em sua prolífica produção na imprensa carioca. Por tudo
isso seus escritos, espalhados por artigos publicados nos jornais de maior tiragem e no
periódico católico A Ordem2 , encontraram um grupo grande e heterogêneo de leitores.
Pelo que foi exposto acima, acredita-se que conhecer melhor Amoroso Lima
permite compreender também alguns dos mecanismos que configuraram grupos
importantes na cena social do Brasil dos anos 1930. Como membro dos grupos dirigentes
de diversas instituições, notadamente a Igreja e o Estado em sua esfera federal, estudá-lo
implica em conhecer melhor as estruturas de poder de nosso país dentro desse período.
Para atingir esse objetivo, entretanto, é necessário antes munir-se de certo
instrumental analítico, o que implica em (re)conhecer a contribuição que pesquisas
anteriores podem trazer ao presente estudo. Entre os diversos nomes que poderiam ser
lembrados, preferiu-se deter em dois deles: Max Weber e Pierre Bourdieu, pois acredita-
se que eles podem formar o cerne do embasamento teórico que permitirá à pesquisa
enriquecer-se com a tradição sociológica.

2
Do qual ele era editor-chefe e principal articulista.
3
DESENVOLVIMENTO
1.1 Max Weber3
Isso faz parte da natureza mesma da “formação de conceitos históricos”, a saber: tendo em vista
seus objetivos metodológicos, não tentar enfiar a realidade em conceitos genéricos abstratos, mas
antes procurar articulá-la em conexões [genéticas] concretas, sempre e inevitavelmente de
colorido especificamente individual. 4

Em seu arquiconhecido Ética protestante e espírito do Capitalismo, Max Weber


permite repensar o capitalismo não como um mero sistema de relações de produção, mas
como o resultado de uma dada cultura que permite a existência de tal sistema. Isso
significa que é necessário historicizar tal conceito, limitando seu uso ao estabelecer um
tempo e um lugar, mais ou menos preciso, a partir do qual ganhou seu contorno atual.
Trata-se ainda de definir como essa configuração foi possível, levando-se em conta que o
processo de formação do espírito capitalista não está explícito nas correntes religiosas da
qual se origina desde o início, nem tampouco como uma necessidade oriunda de uma
lógica histórica inexorável. De fato, Weber não reúne elementos para entender os
interesses econômicos dos atores sociais ou a ligação entre sua origem social e seu modo
de pensar, mas de entender como um conjunto de doutrinas teológicas pôde desembocar,
através da ação de sujeitos mais ou menos conscientes das implicações de tais doutrinas,
em uma nova configuração social.
Analisando o conjunto de sua obra de um ponto de vista da teoria de ciências
sociais produzida, é possível dizer que Weber modificou a base pela qual se dava o
conhecimento do mundo social ao afirmar que as razões últimas da ação humana eram
irracionais e, portanto, incompreensíveis do ponto de vista da filosofia. Desse modo,
destronou-a do posto de rainha das ciências humanas que ela tinha naquele momento e,
além disso, levantava outros sérios problemas epistemológicos: como definir então a
validade do conhecimento da sociologia e da história? Qual o seu objeto de pesquisa: o
“espírito”, a “cultura” ou o “social”? Weber formula a resposta a tais questões a partir de
seu diálogo com as questões filosóficas de seu tempo, especialmente com a obra de
Hegel.

3
Algumas das questões trabalhadas nessa parte sobre Weber são melhor trabalhadas pelo livro de
Catherine Colliot-Thélène, Max Weber e a História. São Paulo: Brasiliense, 1995.
4
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. (edição de Antônio Flávio Pierucci).
São Paulo: Cia das Letras, 2004, p. 42.
4
A filosofia hegeliana é confundida hoje com um evolucionismo barato que surgiu
com uma forma de interpretar o positivismo. Não era essa a maneira como ele era
entendido no século XIX, o que não significa que ele estivesse imune a críticas; pelo
contrário, os jovens hegelianos eram a exceção alijada dos meios acadêmicos e
intelectuais. Entre os principais críticos do hegelianismo estava a escola histórica alemã,
cujo nome mais lembrado hoje é o de Ranke. Weber escreve contra Ranke não para
defender Hegel, mas por acreditar que a crítica à noção de “sentido da história” é feita em
nome da preservação de uma “zona nebulosa” das ciências humanas que permitiria
acreditar em uma transcendência. É como se Ranke criticasse em Hegel o fato de ele
querer definir o sentido da evolução humana, mas não deixasse de acreditar que existe de
fato um sentido. Para Weber, não há sentido nenhum; a única sociologia possível é
aquela que leva em conta apenas o empírico para a partir dele construir suas categorias.
Outro nome alemão importante desse período, com o qual seria impossível não
manter um diálogo – mesmo que implícito – é o de Karl Marx. Weber e Marx têm mais
em comum do que se imagina: em primeiro lugar, o interesse pela compreensão da
formação do capitalismo. No caso de Max Weber, mesmo o passeio pelas religiões
orientais não deixam de ser caminhos trilhados para compreender o que ele considera ser
“o espírito do capitalismo”. A expressão guarda um sentido evidentemente distinto
daquele que Marx emprega para definir o sistema econômico: é, antes de tudo, uma
forma de relacionar-se com o tempo e a sociedade, um sentido à vida diferente.
Outra semelhança entre Marx e Weber é a certeza de ambos de que o fundamento
das ciências sociais está nos aspectos empíricos, visíveis e circunstancialmente
configurados – portanto, historicamente singulares. Não há “sentido último da história” –
esse é um traço em que Marx, Nietzsche e Weber estão de acordo, e que apenas
interpretações posteriores, como a de Lênin, iriam contestar. A isso se opõem o
hegelianismo e seus sucessores – a filosofia hermenêutica, atualmente – que vêem nas
manifestações históricas singulares matérias para explicações transcendentes. Por esse
motivo, os hermenêuticos tendem a preferir a história das idéias e das manifestações
artísticas, na qual existe sempre uma reinterpretação da tradição que a ressignifica. Seria
possível, a partir dessa definição, dizer que Regras da Arte foi escrita como resposta à
filosofia hermenêutica?
Também é fato que Weber recusou a idéia de materialismo histórico se ele for
compreendido como um monismo explicativo, ou seja, como a “única maneira” ou
5
“maneira final” de explicar mesmo um evento da esfera da cultura. Por sua, a
racionalização, mesmo sendo um processo que atinge todas as esferas da vida em
sociedade, exige a formação de lógicas separadas de funcionamento para cada esfera, o
que não as impede de ser mutuamente influenciáveis entre si.
Portanto, a história não é o resultado de nenhum determinismo de qualquer
espécie, mas da ação humana cujo limite à compreensão é o limite daquilo que se
apresenta ao cientista, ao qual não cabe conhecer, a não ser em parte, o sentido que o
próprio ator social aplica à sua ação. Não cabe ao cientista social tentar entender as
intenções últimas ou tentar determinar os interesses escondidos que se escondem por trás
de uma visão de mundo, mas investir no âmbito do sentido da ação humana na medida
em que ele auxiliar na compreensão da própria ação, na medida em que determina sua
prática. Todo ator social cria uma racionalidade para justificar sua ação e essa, por sua
vez, também determina a prática. O sociólogo, tão inserido nesse processo como
qualquer outro ator social, também possui uma racionalidade própria para justificar sua
função.
De fato, no Ocidente contemporâneo, toda ação depende de uma racionalidade na
qual está inscrita: várias são possíveis, mas apenas uma delas é que torna possível a
existência da sociologia e da história tal como a concebemos hoje. Para Weber, existem
quatro sentidos possíveis para a ação: afetiva, tradicional, racional com relação a valores
e racional com relação a fins. No limite, apenas as ações desse último tipo seriam
compreensíveis para a sociologia e a história. Existe, portanto, um impasse
epistemológico, segundo o qual as ciências sociais seriam possíveis apenas para um
conjunto muito restrito das ações sociais.
É para resolver tal impasse que Weber formula o conceito de tipo ideal. Seria
possível ao cientista social, a partir dos tipos ideais, estabelecer qual a lógica que deveria
levar à ação tal como ela existe de fato, mesmo que não seja idêntica ao sentido da ação
conferida pelo próprio ator. Nesse caso, cabe ao cientista também constatar quais são os
motivadores reais daquela ação, considerando que os motivos considerados irracionais
não podem ser compreendidos, apenas descritos.
A obra de Weber levou diversos outros cientistas sociais a se interessarem pelas
ligações entre história, sociologia e filosofia, além de procurarem estabelecer melhor os
parâmetros para compreender as relações que a produção cultural mantém com as
relações econômicas nas quais acontece. Pela caráter inovador do ponto de vista da
6
metodologia e pela maneira como ele ilumina meu próprio objeto de pesquisa, considero
essencial dedicar algumas páginas a Pierre Bourdieu.

1.2 Pierre Bourdieu

Il y a beaucoup d’intellectuels qui mettent em question le monde ; il y a très peu d’intellectuels


qui mettent en question le monde intellectuel. 5

A epígrafe foi retirada do original de Esboço de auto-análise, texto em que Pierre


Bourdieu procura compreender e, em certa medida, justificar sua trajetória intelectual e
institucional. Ela é um bom pontapé inicial para tratar de um argumento que reaparece
constantemente em suas obras: a sociologia só pode ser validada cientificamente se
souber tornar explícitas as relações sociais nas quais está inserida e relacioná-las com o
conhecimento que é capaz de produzir. Seria possível abordar o tema em diversos textos
seus, e uma das perspectivas mais promissoras é aquela aberta por As Regras da Arte 6,
onde se apresenta uma tentativa de teorizar o fenômeno da produção de bens culturais a
partir de diversos conceitos-chave, mormente o de campo. Por isso esse texto terá como
sua linha mestra a observação de como esse conceito é formado ao longo do livro,
acrescida de comentários sobre os ganhos que podem advir dele para futuras pesquisas
sociológicas. Logo, é mister traçar em rápidas linhas o croqui desse termo, a ser
redesenhado ao longo do texto.
“Campo” é o “microcosmo”, o “espaço separado e autônomo” 7 dos demais e, ao
mesmo tempo, mantido em estado de coesão graças às crenças comuns (illusio) de seus
membros. É o modo como Bourdieu pretende destronar o estruturalismo e o marxismo
em suas tentativas de reduzir a produção cultural a mera expressão de uma estrutura
anterior e, ao mesmo tempo, afirmar a validade de uma leitura científica da obra de arte
(e de outros produtos culturais) contra aqueles que a consideram como pertencente ao
terreno do inefável e do transcendente. Por isso, boa parte do texto se destina a
estabelecer com mais exatidão as relações entre o poder político, o econômico e o
artístico – às vezes visto em conjunto e outras diferenciadamente, de acordo com o meio

5
BOURDIEU, Pierre. Ésquisse pour une auto-analyse. Paris : Éditions Raisons d’agir, 2004. (1ª edição:
2002), p. 37.
6
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Cia das Letras,
1996 (ed. orig. 1992).
7
BOURDIEU, As regras..., p. 207.
7
de expressão (pintura, escultura, teatro, etc). O próprio processo de diferenciação entre as
expressões artísticas é produto da existência do campo, pois resulta de estratégias
diferenciadas de auto-afirmação intelectual, as quais estão sempre em conformidade com
o mercado consumidor daquele tipo específico de obra. Desse modo, é possível que o
gosto artístico a ser atendido por um escultor seja bastante distinto do escritor de peças
para teatro, resultando na convivência durante o século XIX de estilos diferenciados nas
variadas expressões artísticas. 8
Acredito que Regras da Arte é capital na formação de um cientista social por
basicamente dois motivos. O primeiro deles é que o livro apresenta a proposta de
compreender comparativamente dois fenômenos distantes entre si por quase um século e
que resultaram na formação de duas formas de leitura da realidade: a literatura realista9 e
a sociologia. As duas encontram abrigo na prosa de Flaubert, que propõe uma
socioanálise mais densa do que aquela que um sociólogo poderia fazer, visto que está
construída por uma teia narrativa que condensa e desvela ao mesmo tempo a estrutura
social expressa por ela. E tanto a literatura como a sociologia revelam mecanismos
comuns a todos os campos, como por exemplo, a proporção direta entre o grau de
autonomia atingida e a formação de critérios de consagração específicos a ele. Outro
ponto em comum entre os dois campos da qual se originam é o processo de
envelhecimento social, que não coincide com o biológico. Ele ocorre à medida em que
um integrante do campo assume uma determinada posição dentro do campo, o que
implica em lutar e conquistar um posto e, para tanto, filiar-se a certas tradições e rejeitar
outras. Isso indica uma forma de se medir a temporalidade do processo social bastante
distinta do tempo cronológico. Entender melhor essa idéia consiste em um segundo
motivo pelo qual um estudo mais aprofundado do livro se justifica.
O terceiro motivo é que, do ponto de vista metodológico, a escolha pela análise de
dois momentos históricos separados por cerca de um século permite a Bourdieu capturar
suas respectivas idiossincrasias através da comparação. Com isso evita-se uma teorização
desencarnada das características de tempo e espaço do objeto ao qual se referem. Esse
método era de uso frequente em diversos outros domínios do saber supervalorizados na
tradição francesa, como a filosofia e a antropologia, que Regras da Arte desafia desde

8
As citações das p. 135, pp. 146-7, pp. 157-9 ajudam a entender esse processo.
9
Tal como a Europa do século XIX entende o realismo, evidentemente.
8
sua “Introdução” 10. Nessas páginas, critica-se a tendência em enxergar a arte como algo
inefável, transcendente ao momento no qual foi produzida; por esse motivo, um dos
argumentos centrais do livro é analisar a produção artística dentro da ótica das relações
de produção capitalistas. Por exemplo, para explicar a trajetória de Gustave Flaubert,
utiliza-se uma miríade de fatores que determinaram as possibilidades de ação disponíveis
a esse autor: a extração social familiar privilegiada em contraste com a posição de filho
mais novo11, ou a posição de destaque no interior do grupo de intelectuais do qual fazia
parte em contraste com a inferioridade desse grupo frente ao poderio econômico da
burguesia crescente.
Para atingir seu objetivo, este breve texto se estenderá por dois assuntos
intrinsecamente ligados: a estrutura argumentativa do texto e a documentação com base
na qual ela está amparada. É na observação das escolhas das evidências e na maneira
como são amarradas por Bourdieu em uma teia explicativa que é possível identificar a
característica inovadora de sua pesquisa. E através dela pensar em novos rumos para
nossa própria formação como cientista social.
Na elaboração de As Regras da Arte, foi utilizada documentação de diversos
tipos: da literatura fossilizada sob o rótulo de clássico à correspondência cotidiana de
Gustave Flaubert, da análise qualitativa bastante detalhista de Éducation Sentimentale
(ES) até a análise quantitativa da relação entre os microcosmos das editoras e dos
prêmios de literatura, para ficar em poucos exemplos. Diante da quantidade inebriante de
informações apresentadas durante o livro, cabe a pergunta: o que é possível afirmar
acerca da metodologia utilizada e da escolha das fontes?
A resposta a essa pergunta deve levar em conta as circunstâncias nas quais a
documentação foi produzida, o que explica em grande medida o rol de informações
apresentadas ao longo do texto. Um exemplo disso é que a obra se inicia com uma
análise de Éducation Sentimentale como tradução da estrutura social da qual é, ao mesmo
tempo, o resultado e um dos atores principais na sua construção. Bourdieu ressalta como
a narrativa do romance é resultado das disputas do mundo artístico francês em busca do
reconhecimento financeiro e intelectual. Nesse sentido, o personagem principal de
Éducation, Frédéric, exprime pelo contra-exemplo as escolhas que Flaubert – e todos os
outros literatos de sua geração – tiveram que fazer. O fracasso do personagem da ficção e

10
BOURDIEU, As Regras..., pp. 6-11.
11
E, portanto, com direito à menor parte na divisão da fortuna herdada dos pais.
9
o sucesso do personagem histórico revelam o mesmo fato: a existência de um conjunto
de pessoas que organizam a cena intelectual a partir de Paris, decidindo quem tem direito
a voz e a entrada nos salões e nas editoras mais prestigiadas, as melhores recompensas
financeiras ou qual artista será “recuperado” pelas gerações seguintes, como modelo. É
ele, em resumo, quem confere poder aos seus participantes nas suas mais diferentes
formas simbólicas e materiais. Este conjunto heterogêneo de pessoas e instituições é
chamado de campo artístico, que em alguns casos mais específicos pode ser reduzido ao
subcampo literário. Bourdieu escolhe utilizar Éducation por ser essa a obra cuja estrutura
ajuda mais na expressão do raciocínio do livro.
Outra escolha importante da primeira parte do livro foi acompanhar a trajetória de
Flaubert e contrastá-la com a de Baudelaire. Esse recurso permite reforçar a idéia de
existência do campo a partir da demonstração da crença no poder conferido ao grupo por
seus próprios membros. Se Flaubert procurou congregar um grupo de intelectuais em
torno de si como forma de ganhar projeção dentro do campo literário, Baudelaire ironiza
indiretamente essa pretensão ao lançar sua própria candidatura à Academia francesa, pois
revela como a aceitação de pertença a esse mundo dependia de outros fatores alheios à
qualidade da escrita, como o estilo, a participação nos salões da época ou a capacidade de
formar um bom mercado de consumidores. No caso de Baudelaire, sua opção por
escrever uma poesia difícil, carregada de alegorias e metáforas, contribuiu para isolá-lo
da maioria dos artistas de seu tempo.
É por isso que considero importante chamar a atenção para um dos aspectos
menos vistos nessa obra arquiconhecida de Bourdieu: sua capacidade de utilizar o
material mais indicado para construir seu texto, o que exige ao mesmo tempo erudição e
rigor na leitura da documentação. A opção por acompanhar a emergência de um campo
literário a partir da trajetória de Flaubert deve-se também à abundância de
correspondência deixada por esse autor, em comparação com a documentação consultada
sobre Baudelaire, bem menor que a referente a Flaubert. Acredito que existe uma íntima
relação entre o trabalho de articulação desse autor com vários outros nomes, o volume de
suas correspondências e sua preocupação em preservá-la e que tudo isso é pré-condição
para que Bourdieu pudesse construir As Regras da Arte como fez. Por outro lado, a
relativa ausência de registros sobre a vida de Baudelaire é o que garantiu seu sucesso
posterior, na medida em que lhe permitiu ser reapropriado mais livremente pelos literatos
posteriores.
10
Esse é outro aspecto importante na formação do conceito de campo: sua
capacidade de criar as regras de sua própria superação na fase atual, como ocorre por
exemplo com as gerações de literatos. Bourdieu confere novos sentidos para termos
como “jovem” ou “envelhecido”, como forma de tornar visível a dimensão do tempo na
construção de seu objeto. Ela não corresponde, é claro, ao tempo cronológico: um artista
avançado na idade pode ser ainda “jovem”, se ele estiver adentrando naquele momento o
subcampo literário, possivelmente oriundo de uma posição de poder atingida em outro
campo – o acadêmico ou o político, por exemplo – e portanto com várias possibilidades
de converter seu capital simbólico para esse campo. Bourdieu também fornece evidências
da situação contrária: escritores jovens que se dedicaram desde o início de suas carreiras
à reprodução de um estilo de escrita há muito consagrado podem estar envelhecidos do
ponto de vista do campo.
Esse uso fecundo da idéia de geração proporciona ao cientista social em formação
algumas reflexões. A primeira delas é a de que a temporalidade de cada fenômeno social
deve ser marcada a partir de sua lógica própria de funcionamento, como Bourdieu faz
com o conceito de geração literária12, para a qual não importa a idade biológica de seus
participantes ou o tempo cronológico que ela dura. O que importa é o movimento do
campo no sentido de consagrar ou esquecer determinados autores; pois a geração atual
permanece presente até ser substituída pela geração seguinte, independentemente se isso
ocorre em cinco, dez ou vinte anos. No meio literário, a ascensão de uma nova geração é
resultado de um cruzamento de fatores de origem diversa: a morfologia do mercado
consumidor, a atuação de patrocinadores externos ao campo – Estado e imprensa,
principalmente – mas, sobretudo, ela é expressão do estágio em que se encontra o
instável jogo de posições e disposições dos participantes do campo. Esses dois conceitos
permitem compreender melhor a maneira como Bourdieu entende a agência dos sujeitos
sociais. Na passagem citada logo abaixo, torna-se possível enxergar mais facilmente seu
esforço de encontrar o equilíbrio entre os vários determinantes aos quais a ação está
condicionada e o pequeno raio de ação dos sujeitos:
Por maior que seja o efeito de campo, ele jamais se exerce de maneira
mecânica, e a relação entre as posições e as tomadas de posição,
(especialmente as obras) é sempre mediatizada pelas disposições dos
agentes e pelo espaço dos possíveis que elas constituem como tal

12
Esse concito é desenvolvido por Bourdieu para analisar a produção literária francesa da página 176 em
diante.
11
através da percepção do espaço das tomadas de posição que estruturam.
13

Inicialmente, a definição de um ator social de sua disposição envolve aspectos da


ordem do objetivo, tais como a fortuna financeira e as condições materiais de vida, bem
como do subjetivo, traduzidos pelo conceito de habitus, que é a escolha de qual estratégia
pretende realizar dentro do estoque de possibilidades existentes. Bourdieu utiliza-se da
palavra no latim para evitar um sentido que “hábito” possui: a repetição impensada de
gestos. Pelo contrário, todos os atores sabem exatamente o que pretendem e pautam suas
ações por esses objetivos, mesmo inconscientemente. Portanto, existe uma homologia
14
entre a estrutura mental e a estrutura do campo em que o indivíduo se insere. A
seqüência de habitus adquiridos por um ator social é o que dá origem à sua trajetória,
outro conceito que implode a idéia de uma temporalidade linear. Tanto no caso de uma
pessoa como de uma instituição, por trás da unidade de nomes existe um leque de
disposições, por vezes conciliáveis e por outras contraditórias entre si. Não é possível
descrever uma história – pessoal ou coletiva – sem levar em consideração essa
multiplicidade de papéis.
A disposição é condicionada em um segundo sentido na medida em que ela tem
que se inserir na tradição do campo e implica na reinterpretação de seu estágio atual e,
por isso, os mesmos interesses podem tomar a defesa e o ataque de valores opostos.
Existem, portanto, determinações que atuam em estágios distintos na objetivação da
vontade subjetiva, cuja autonomia é mediada pelas necessidades de condições de
liberdade objetiva e de um projeto intelectual consistente para se traduzir em liberdade
subjetiva. Ou, citando, as palavras do próprio Bourdieu: “Apenas quando se
caracterizaram as diferentes posições é que se pode voltar aos agentes singulares e às
diferentes propriedades pessoais que os predispõem mais ou menos a ocupá-las e a
realizar as potencialidades que aí se acham inscritas.” 15
Exemplo disso é o fato de que aquilo que os críticos literários têm como o traço
mais pessoal de Flaubert, seu estilo, só pode ser entendido em associação com o modo
como ele se insere no campo literário e artístico de seu tempo e à maneira como esse
processo foi traduzido para sua estética. Dessa forma, a inovação formal corresponde à

13
BOURDIEU, As Regras..., p. 290.
14
Esse assunto é mais desenvolvido entre as pp. 264 a 268.
15
BOURDIEU, As Regras..., p. 105.
12
tomada de posição: Flaubert quer diferenciar-se do grupo da arte social desejosa de
transformar a arte em arma de luta de um projeto político e também dos artistas
burgueses, comprometidos com a manutenção dos temas clássicos e de um estilo de
escrita acessível a um público leitor sem grande formação clássica. Aqui é possível
aproximar Bourdieu de Flaubert, pois quando o primeiro escreve sobre Éducation
Sentimentale, está também fornecendo indícios de como o leitor deveria ler As Regras da
Arte, ou seja, como um desafio às diversas correntes de interpretação da cultura e em
particular da obra artística. Um exemplo disso é que se poderia substituir “Flaubert” por
“Bourdieu” na passagem abaixo sem que ela precisasse ser modificada para permanecer
sendo válida:

O trabalho de escrita conduz Flaubert a objetivar não apenas as


posições às quais se opõe no campo e àqueles que as ocupam mas
também, através do sistema das relações que o une às outras posições,
todo o espaço no qual ele próprio está incluído, portanto, sua própria
posição e suas próprias estruturas mentais. 16

O modo como os capítulos de Regras estão divididos é outro indício importante,


que pode ser interpretado como uma cadeia de posicionamentos de seu autor. Já fizemos
referência à “Introdução” e seu tom provocativo na desestabilização das maneiras
tradicionais de se entender o que é uma obra de arte. A primeira parte, toda dedicada à
Flaubert e sua tentativa de fundar uma nova posição no campo, deve ser compreendida
como um ensaio de Bourdieu de atestar a validade de sua forma de produzir ciência
social e, através dela, uma forma de compreender a arte e, por tabela, qualquer outro tipo
de troca simbólica. Uma vez terminado esse trabalho, Bourdieu decide voltar a falar do
presente e das condições de seu trabalho, para galgar a condição de fundador de uma
nova síntese das ciências sociais: a “ciência das obras de arte”. Uma metáfora que
poderia nos auxiliar a traduzir a estrutura do livro é a de espiral: em parte circular, pois
inicia e termina tratando do presente, após ter realizado um mergulho profundo nas águas
do Oitocentos. Contudo, a maneira como a terceira parte do livro aborda as ciências
humanas e o mundo acadêmico é muito mais detalhado e aprofundado que aquilo que foi
feito nas páginas iniciais. Das formas equivocadas de se compreender a obra de arte, tal
como abordadas nas páginas iniciais, passa-se a teorizar sobre a necessidade de

16
BOURDIEU, As Regras..., p. 124. Em certa medida, também seria possível substituir Flaubert por
qualquer outro nome de um produtor cultural, mas o que distingue Flaubert e Bourdieu é o grau de lucidez
do processo no qual estavam imersos.
13
“reflexividade” e de “objetivar o sujeito da objetivação”, para usar os termos do próprio
Bourdieu. E, no entanto, essa terceira parte dedicada à teorização começa
paradoxalmente com uma negação das grandes teorizações, expressa pela passagem
abaixo -- que bem poderia servir como síntese do tipo de pesquisa que Bourdieu pretende
encontrar nos futuros sociólogos:
Deleito-me com essas obras em que a teoria, porque é como ar que se
respira, está por toda parte e em parte alguma, no meandro de uma nota,
no comentário de um texto antigo, na própria estrutura do discurso
interpretativo. Reencontro-me completamente nesses autores que sabem
abarcar as questões mais decisivas em um estudo empírico
minuciosamente conduzido e fazem dos conceitos um uso a um só
tempo mais modesto e mais aristocrático, chegando por vezes a ocultar
sua própria contribuição em uma reinterpretação criativa das teorias
imanentes ao seu objeto. 17

Assim como Flaubert rompeu com diversas associações automáticas dentro do


literatura de seu tempo, Bourdieu pretende romper com pares de conceitos até então
considerados como antônimos, tais quais empiria e teoria. Em outras obras,
especialmente no Esboço de auto-análise, ele refere-se à pecha de “ciência menor”,
porque “pouco teórica”, carregada pela sociologia. Aqui ele reverte essa situação ao
considerar que a teoria e o dado empírico são como duas linhas de carretéis que devem se
entrelaçar de modo a tecer uma pesquisa onde não fosse possível distinguir
completamente quando se trata de um fio ou quando se trata de outro. Ainda comparando
a pesquisa a uma peça de roupa, poder-se-ia dizer que sua originalidade reside no corte,
ou seja, como os outros modelos de roupa (teorias formuladas a partir desse objeto ou
que de algum modo o iluminam) são reinterpretadas não como uma profissão de fé, como
se devessem ser seguidas à risca, mas como uma inspiração para novas interpretações –
desde que condizentes, é claro, com o tipo de tecido (teoria/dado empírico) que está
sendo empregado.
Outro momento em que a ponte entre o século XIX e o XX está presente é no
paralelo que pode ser estabelecido entre Flaubert e Sartre, pois a análise de ambos expõe
a configuração interna dos respectivos campos aos quais pertencem, bem como suas
fronteiras com outros campos. A diferença é que, ao contrário de Flaubert, Sartre guarda
uma imperdoável ingenuidade da sua condição. O trecho em que isso se torna mais

17
BOURDIEU, As Regras..., p. 204.
14
perceptível encontra-se no apêndice dedicado a Sartre18, no qual se afirma que ele cria
nos intelectuais a ilusão de que é possível ser tudo ao mesmo tempo: filósofo e literato,
metafísico e político, elitista e popular. O preço que ele paga por isso é a ingenuidade de
acreditar que sua posição é menos determinada ou mais universal que as demais. É nesse
sentido que se deve compreender as passagens abaixo:
Sartre abole a fronteira entre a filosofia literária e a literatura filosófica,
entre os efeitos de "literariedade" autorizados pela análise
fenomenológica e os efeitos de profundidade assegurados pelas análises
existenciais do romance metafísico. 19
Sartre converte em estrutura ontológica, constitutiva da existência
humana em sua universalidade, a experiência social do intelectual, pária
privilegiado, condenado à maldição (abençoada) da consciência que lhe
proíbe a coincidência beata consigo mesmo. 20

Seria impossível não remeter ao Esboço de auto-análise para compreender que a


leitura de Sartre é, em grande medida, feita à sombra da crítica ao papel opressor
desempenhado pela filosofia e seus representantes oficiais no interior dos departamentos
de ciências humanas na universidade francesa, contra o qual Bourdieu sempre se
revoltou. Mas o que se pretende abordar aqui é o caminho inverso traçado por Sartre em
relação a Flaubert: se esse quis conferir uma singularidade à expressão literária e torná-la
independentemente do gosto burguês, Sartre deseja reconstruir a ponte entre filosofia e
literatura, transformando a última em uma espécie de “estudo de caso” da primeira e,
dessa forma, reaproximar o gosto burguês do que é produzido no campo
literário/filosófico/político – compreendido como um bloco monolítico. Para Bourdieu,
trata-se de uma ilusão que funciona como uma armadilha para Sartre e como exemplo
dos limites aos quais devem se ater os futuros cientistas sociais que desejarem produzir
pesquisas de qualidade. Em outras palavras, o estudo do habitus de um grupo social
exige do pesquisador a capacidade de compreender seu próprio habitus acadêmico,
objetivando as condições dentro das quais produz esse conhecimento.
Vem somar-se à análise de Sartre aquela feita sobre Foucault e sua idéia de que o
cerne de todas as disputas encontra-se na ordem do discurso. Esse é outro meio de
ignorar as condições sociais a partir das quais o conhecimento é produzido, como mostra
a passagem abaixo:

18
“Apêndice: O intelectual total e a ilusão da onipotência do pensamento”, EM: BOURDIEU, As Regras...,
pp. 238-242.
19
BOURDIEU, As Regras..., p. 239.
20
BOURDIEU, As Regras..., p. 242.
15
[Foucault] transfere para o céu das idéias as oposições e os
antagonismos que se enraízam (sem se reduzir a isso) nas relações entre
os produtores, recusando, desse modo, todo relacionamento das obras
com as condições sociais de sua produção (...) não é possível, mesmo
no caso do campo cientifico, tratar a ordem cultural (a episteme) como
totalmente independente dos agentes e das instituições que a atualizam
e a levam à existência, e ignorar as conexões sócio-1ógicas que
acompanham ou sustentam as consecuções 1ógicas; ainda que fosse
apenas porque, assim, impedimo-nos de dar conta das mudanças que
ocorrem nesse universo arbitrariamente separado. 21

É muito comum que essas separações arbitrárias ocorram em estudos de grupos


de intelectuais, geralmente divididos em grupos supostamente homogêneos, a se
considerar apenas o discurso presente em seus textos. Desse modo, acaba se definindo o
resultado da pesquisa antes mesmo que ela se inicie, pois são ignoradas as relações entre
a morfologia do grupo e suas representações presentes em seus textos, ou seja, o
principal foco de interesse em uma boa pesquisa sociológica. Outro binômio de opostos
desconstruído por Bourdieu é o da separação entre o “cultural” e o “social”, como se o
primeiro explicasse por completo o segundo, ou esse fosse totalmente independente.
Nesse momento do texto, espero poder dizer que os benefícios da leitura de
Regras da Arte para a formação de um cientista social tenham sido suficientemente
demonstrados. Muito poderia ainda ser dito a respeito de conceitos importantes como a
illusio e a trajetória social, tratados apenas tangencialmente, mas isso exigiria outro texto
de tamanho igual ou superior a esse, o que certamente seria um abuso da paciência do
leitor... Por isso, seria preferível apresentar uma terceira e última análise de grupos
intelectuais como forma de compreender a existência do campo: os intelectuais de direita.
Além de complementar nosso estudo anterior, esse caso apresenta a vantagem de ser
especialmente relevante para minha pesquisa atual.

21
P. 226.
16
CONCLUSÃO

O rótulo de “conservador” ou “reacionário”, carimbado na figura de um


intelectual, geralmente satisfaz os cientistas sociais, que consideram esses dois termos –
ou seus sinônimos -- como suficientes para explicar qualquer atitude ou escrito do
indivíduo assim descrito. É desse modo que a trajetória de Amoroso Lima entre os anos
1920 e 1940 é descrita, em termos sumários, por boa parte da bibliografia que trata desse
período. Dessa forma, uma última contribuição das Regras da Arte é tratar de encará-los
em um sentido renovado, dentro da perspectiva de campo. É o que Bourdieu procurou
fazer na passagem abaixo:
Toda a produção dos intelectuais conservadores traz a marca de relação
objetiva que os une às outras posições do campo e que se impõe a eles
através da problemática específica, inscrita na própria estrutura do campo,
da qual representam o momento passivo (ou, como diz a física, resistente):
eles jamais tem a iniciativa dos problemas em um mundo sobre o qual não
teriam nada a dizer, nele não encontrando nada a criticar, não fossem as
contestações operadas pelo pensamento crítico que não cessam de criticar. 22

23
Compreender o intelectual “de direita” é uma forma de traçar as linhas
divisoras do campo no qual eles estão inseridos, e do qual representam uma parte
importante. Embora sua atividade se configure em resposta aos outros intelectuais, seu
estudo não pode sucumbir à tentação de considerá-los como expressão “menor” ou mera
defesa de interesses exteriores ao campo dos intelectuais, como da elite política,
econômica ou religiosa. Para serem aceitos como intelectuais, esses personagens devem
se apropriar da illusio como a esse campo e do estágio atual da tradição, ainda que seja
para contrapor-se a eles. Por se tratar muitas vezes de uma trajetória social iniciada em
outros meios e que adentra os meios intelectuais para opor-se ao grupo simbolicamente
dominante nesse meio, o estudo do intelectual de direita permite visualizar melhor a
força de coerção dentro desse campo e sua relação com outros tantos, especialmente
aquele que Bourdieu designa como o “campo de poder”, que seria, em poucos termos, o
espaço de cotação e troca entre os diferentes tipos de capital simbólico e material.
No “campo de poder” é possível que um nome consensual dentro de grupo
específico – a Igreja Católica, por exemplo -- pode buscar converter esse cabedal em
22
BOURDIEU, As Regras..., p. 312.
23
As aspas se justificam porque, no interior do orbe católico, pares de conceitos como
“progressista/regressista”, “direita/esquerda” precisam ser matizados a partir do conceito que eles adquirem
no interior do campo dado.
17
capital político para a obtenção de cargos e influência dentro das esferas estatais, ou em
capital intelectual, para a ocupação de postos dentro da burocracia educacional. Portanto,
estudar alguém com esses caracteres sociais pode ser um bom percurso para compreender
melhor não apenas a visão que os intelectuais têm de si mesmos e quais as disputas a esse
respeito, mas a forma como o capital simbólico aí produzido é valorizado e
compreendido pelo restante da sociedade.

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. Ésquisse pour une auto-analyse. Paris : Éditions Raisons d’agir,
2004. (1ª edição: 2002).

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São


Paulo: Cia das Letras, 1996 (ed. orig. 1992).

COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max Weber e a História. São Paulo: Brasiliense,


1995.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. (edição de Antônio


Flávio Pierucci). São Paulo: Cia das Letras, 2004

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