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Palavras-chave: sociologia da cultura, Alceu Amoroso Lima, Brasil anos 1930, Pierre
Bourdieu, Max Weber.
RÉSUMÉ
Partant d’une analyse détaillé de deux oeuvres capitales de la littérature sociologique –
Les Règles de l’Art, de Pierre Bourdieu et Éthique Protestant et Esprit du Capitalisme, de
Max Weber -- on mène une réflexion sur la contribution que la sociologia de la culture
peut apporter à la compréhension de la trajectoire de Alceu Amoroso Lima entre les
décennies de 1920 et 1940 et de son insertion dans les relations de force aux champs
politique, intellectuel et ecclésial au Brésil de cette époque.
Mots-clés : sociologie de la culture, Alceu Amoroso Lima, Brésil années 1930, Pierre
Bourdieu, Max Weber.
INTRODUÇÃO
Esse texto visa esboçar algumas possibilidades para o estudo de um intelectual
brasileiro dos anos 1930 chamado Alceu Amoroso Lima. Acredita-se que o estudo de sua
trajetória abre a possibilidade de compreensão do complexo nó de questões para as quais
estão imbricadas posições políticas, planos de organização econômica para a sociedade
brasileira dessa época e aspectos culturais. Para tanto, far-se-á uma breve apresentação de
nosso objeto de pesquisa, seguido de algumas considerações sobre quais autores dentro
da sociologia poderiam auxiliar nessa empreitada. Nosso eixo será a obra magna de
Pierre Bourdieu, As Regras da Arte, introduzida por algumas questões de cunho mais
teórico trazidas por Max Weber. Através disso, pretende-se definir um esboço do que
pretende ser essa pesquisa de doutorado.
Em mestrado recentemente defendido junto ao Departamento de História da
Unicamp, dediquei-me ao pensamento e à ação de Alceu Amoroso Lima1. Nascido a 11
1
A dissertação chama-se “Em busca da Idade Nova : Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de
organização social (1928-1945)” e está disponível para download em:
http://libdigi.unicamp.br/document/?code=000436248
1
de dezembro de 1893 da união de Manuel José de Amoroso Lima e de Camila da Silva
Amoroso Lima, sua família se dedicava à fabricação e comércio de produtos têxteis.
Entre 1909 e 1911, Amoroso Lima freqüentou a Faculdade de Ciências Jurídicas e
Sociais do Rio de Janeiro. Já no início da década de 1920 seu nome tinha fama nos meios
literários, graças principalmente a dois méritos. O primeiro deles foi o de ter
compreendido e incentivado o movimento modernista desde seu princípio; o segundo,
sua maneira renovadoramente impressionista de escrever resenhas das obras literárias. O
ano de 1924 registra duas mudanças importantes na sua vida: casa-se com uma mulher de
formação católica e passa a trocar correspondências com Jackson de Figueiredo. A morte
inesperada deste, em 1928, marcará profundamente a vida de Amoroso Lima. Recém
converso, ele decide continuar a obra de seu mentor intelectual e passa a assumir
inúmeras atividades, entre as quais a direção do Centro D. Vital, sobre o qual se
discorrerá logo abaixo.
Na dissertação, iniciou-se o estudo a partir deste momento de reconversão de
Amoroso Lima. Pretendo cobrir neste doutorado toda a década de 1920, com atenção
especial a partir de 1922. Neste ano, ao tornar-se um defensor de primeira hora do
movimento modernista, Amoroso Lima cresceu em importância no cenário intelectual
brasileiro e passou a tratar mais intensamente de questões como a da identidade nacional
e da cultura “genuinamente brasileira”, ou do papel que essa “cultura autêntica” poderia
desempenhar no cenário internacional. A partir de 1928, ao assumir publicamente a fé
católica e tornar-se o presidente de diversas agremiações católicas, ele torna-se uma
figura ímpar na história da cultura nacional, pois conta com um trânsito considerável nos
meios eclesiástico, intelectual e político, mas ao mesmo tempo não se identifica com
nenhum deles.
No primeiro deles, é considerada uma figura muito próxima do Cardeal Sebastião
Leme, mas não é um clérigo e, portanto, não tem o peso de declarar a posição oficial da
Igreja. Entre os intelectuais, possui um reconhecimento acumulado ao longo de seu
período como crítico literário, mas diminuiu em importância quando se assumiu como
católico e passou a atuar junto à uma autoridade religiosa, diante de uma geração que
enxergava nessa organização certas permanências indesejáveis do passado. Por fim,
especialmente ao longo da década de 1930, Amoroso Lima presidiu diversas
organizações explicitamente comprometidas com a defesa dos interesses da Igreja na
reorganização legal que se seguiu ao Outubro de 1930. Ele procurou refletir e justificar-
2
se sobre tal posicionamento em sua prolífica produção na imprensa carioca. Por tudo
isso seus escritos, espalhados por artigos publicados nos jornais de maior tiragem e no
periódico católico A Ordem2 , encontraram um grupo grande e heterogêneo de leitores.
Pelo que foi exposto acima, acredita-se que conhecer melhor Amoroso Lima
permite compreender também alguns dos mecanismos que configuraram grupos
importantes na cena social do Brasil dos anos 1930. Como membro dos grupos dirigentes
de diversas instituições, notadamente a Igreja e o Estado em sua esfera federal, estudá-lo
implica em conhecer melhor as estruturas de poder de nosso país dentro desse período.
Para atingir esse objetivo, entretanto, é necessário antes munir-se de certo
instrumental analítico, o que implica em (re)conhecer a contribuição que pesquisas
anteriores podem trazer ao presente estudo. Entre os diversos nomes que poderiam ser
lembrados, preferiu-se deter em dois deles: Max Weber e Pierre Bourdieu, pois acredita-
se que eles podem formar o cerne do embasamento teórico que permitirá à pesquisa
enriquecer-se com a tradição sociológica.
2
Do qual ele era editor-chefe e principal articulista.
3
DESENVOLVIMENTO
1.1 Max Weber3
Isso faz parte da natureza mesma da “formação de conceitos históricos”, a saber: tendo em vista
seus objetivos metodológicos, não tentar enfiar a realidade em conceitos genéricos abstratos, mas
antes procurar articulá-la em conexões [genéticas] concretas, sempre e inevitavelmente de
colorido especificamente individual. 4
3
Algumas das questões trabalhadas nessa parte sobre Weber são melhor trabalhadas pelo livro de
Catherine Colliot-Thélène, Max Weber e a História. São Paulo: Brasiliense, 1995.
4
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. (edição de Antônio Flávio Pierucci).
São Paulo: Cia das Letras, 2004, p. 42.
4
A filosofia hegeliana é confundida hoje com um evolucionismo barato que surgiu
com uma forma de interpretar o positivismo. Não era essa a maneira como ele era
entendido no século XIX, o que não significa que ele estivesse imune a críticas; pelo
contrário, os jovens hegelianos eram a exceção alijada dos meios acadêmicos e
intelectuais. Entre os principais críticos do hegelianismo estava a escola histórica alemã,
cujo nome mais lembrado hoje é o de Ranke. Weber escreve contra Ranke não para
defender Hegel, mas por acreditar que a crítica à noção de “sentido da história” é feita em
nome da preservação de uma “zona nebulosa” das ciências humanas que permitiria
acreditar em uma transcendência. É como se Ranke criticasse em Hegel o fato de ele
querer definir o sentido da evolução humana, mas não deixasse de acreditar que existe de
fato um sentido. Para Weber, não há sentido nenhum; a única sociologia possível é
aquela que leva em conta apenas o empírico para a partir dele construir suas categorias.
Outro nome alemão importante desse período, com o qual seria impossível não
manter um diálogo – mesmo que implícito – é o de Karl Marx. Weber e Marx têm mais
em comum do que se imagina: em primeiro lugar, o interesse pela compreensão da
formação do capitalismo. No caso de Max Weber, mesmo o passeio pelas religiões
orientais não deixam de ser caminhos trilhados para compreender o que ele considera ser
“o espírito do capitalismo”. A expressão guarda um sentido evidentemente distinto
daquele que Marx emprega para definir o sistema econômico: é, antes de tudo, uma
forma de relacionar-se com o tempo e a sociedade, um sentido à vida diferente.
Outra semelhança entre Marx e Weber é a certeza de ambos de que o fundamento
das ciências sociais está nos aspectos empíricos, visíveis e circunstancialmente
configurados – portanto, historicamente singulares. Não há “sentido último da história” –
esse é um traço em que Marx, Nietzsche e Weber estão de acordo, e que apenas
interpretações posteriores, como a de Lênin, iriam contestar. A isso se opõem o
hegelianismo e seus sucessores – a filosofia hermenêutica, atualmente – que vêem nas
manifestações históricas singulares matérias para explicações transcendentes. Por esse
motivo, os hermenêuticos tendem a preferir a história das idéias e das manifestações
artísticas, na qual existe sempre uma reinterpretação da tradição que a ressignifica. Seria
possível, a partir dessa definição, dizer que Regras da Arte foi escrita como resposta à
filosofia hermenêutica?
Também é fato que Weber recusou a idéia de materialismo histórico se ele for
compreendido como um monismo explicativo, ou seja, como a “única maneira” ou
5
“maneira final” de explicar mesmo um evento da esfera da cultura. Por sua, a
racionalização, mesmo sendo um processo que atinge todas as esferas da vida em
sociedade, exige a formação de lógicas separadas de funcionamento para cada esfera, o
que não as impede de ser mutuamente influenciáveis entre si.
Portanto, a história não é o resultado de nenhum determinismo de qualquer
espécie, mas da ação humana cujo limite à compreensão é o limite daquilo que se
apresenta ao cientista, ao qual não cabe conhecer, a não ser em parte, o sentido que o
próprio ator social aplica à sua ação. Não cabe ao cientista social tentar entender as
intenções últimas ou tentar determinar os interesses escondidos que se escondem por trás
de uma visão de mundo, mas investir no âmbito do sentido da ação humana na medida
em que ele auxiliar na compreensão da própria ação, na medida em que determina sua
prática. Todo ator social cria uma racionalidade para justificar sua ação e essa, por sua
vez, também determina a prática. O sociólogo, tão inserido nesse processo como
qualquer outro ator social, também possui uma racionalidade própria para justificar sua
função.
De fato, no Ocidente contemporâneo, toda ação depende de uma racionalidade na
qual está inscrita: várias são possíveis, mas apenas uma delas é que torna possível a
existência da sociologia e da história tal como a concebemos hoje. Para Weber, existem
quatro sentidos possíveis para a ação: afetiva, tradicional, racional com relação a valores
e racional com relação a fins. No limite, apenas as ações desse último tipo seriam
compreensíveis para a sociologia e a história. Existe, portanto, um impasse
epistemológico, segundo o qual as ciências sociais seriam possíveis apenas para um
conjunto muito restrito das ações sociais.
É para resolver tal impasse que Weber formula o conceito de tipo ideal. Seria
possível ao cientista social, a partir dos tipos ideais, estabelecer qual a lógica que deveria
levar à ação tal como ela existe de fato, mesmo que não seja idêntica ao sentido da ação
conferida pelo próprio ator. Nesse caso, cabe ao cientista também constatar quais são os
motivadores reais daquela ação, considerando que os motivos considerados irracionais
não podem ser compreendidos, apenas descritos.
A obra de Weber levou diversos outros cientistas sociais a se interessarem pelas
ligações entre história, sociologia e filosofia, além de procurarem estabelecer melhor os
parâmetros para compreender as relações que a produção cultural mantém com as
relações econômicas nas quais acontece. Pela caráter inovador do ponto de vista da
6
metodologia e pela maneira como ele ilumina meu próprio objeto de pesquisa, considero
essencial dedicar algumas páginas a Pierre Bourdieu.
5
BOURDIEU, Pierre. Ésquisse pour une auto-analyse. Paris : Éditions Raisons d’agir, 2004. (1ª edição:
2002), p. 37.
6
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Cia das Letras,
1996 (ed. orig. 1992).
7
BOURDIEU, As regras..., p. 207.
7
de expressão (pintura, escultura, teatro, etc). O próprio processo de diferenciação entre as
expressões artísticas é produto da existência do campo, pois resulta de estratégias
diferenciadas de auto-afirmação intelectual, as quais estão sempre em conformidade com
o mercado consumidor daquele tipo específico de obra. Desse modo, é possível que o
gosto artístico a ser atendido por um escultor seja bastante distinto do escritor de peças
para teatro, resultando na convivência durante o século XIX de estilos diferenciados nas
variadas expressões artísticas. 8
Acredito que Regras da Arte é capital na formação de um cientista social por
basicamente dois motivos. O primeiro deles é que o livro apresenta a proposta de
compreender comparativamente dois fenômenos distantes entre si por quase um século e
que resultaram na formação de duas formas de leitura da realidade: a literatura realista9 e
a sociologia. As duas encontram abrigo na prosa de Flaubert, que propõe uma
socioanálise mais densa do que aquela que um sociólogo poderia fazer, visto que está
construída por uma teia narrativa que condensa e desvela ao mesmo tempo a estrutura
social expressa por ela. E tanto a literatura como a sociologia revelam mecanismos
comuns a todos os campos, como por exemplo, a proporção direta entre o grau de
autonomia atingida e a formação de critérios de consagração específicos a ele. Outro
ponto em comum entre os dois campos da qual se originam é o processo de
envelhecimento social, que não coincide com o biológico. Ele ocorre à medida em que
um integrante do campo assume uma determinada posição dentro do campo, o que
implica em lutar e conquistar um posto e, para tanto, filiar-se a certas tradições e rejeitar
outras. Isso indica uma forma de se medir a temporalidade do processo social bastante
distinta do tempo cronológico. Entender melhor essa idéia consiste em um segundo
motivo pelo qual um estudo mais aprofundado do livro se justifica.
O terceiro motivo é que, do ponto de vista metodológico, a escolha pela análise de
dois momentos históricos separados por cerca de um século permite a Bourdieu capturar
suas respectivas idiossincrasias através da comparação. Com isso evita-se uma teorização
desencarnada das características de tempo e espaço do objeto ao qual se referem. Esse
método era de uso frequente em diversos outros domínios do saber supervalorizados na
tradição francesa, como a filosofia e a antropologia, que Regras da Arte desafia desde
8
As citações das p. 135, pp. 146-7, pp. 157-9 ajudam a entender esse processo.
9
Tal como a Europa do século XIX entende o realismo, evidentemente.
8
sua “Introdução” 10. Nessas páginas, critica-se a tendência em enxergar a arte como algo
inefável, transcendente ao momento no qual foi produzida; por esse motivo, um dos
argumentos centrais do livro é analisar a produção artística dentro da ótica das relações
de produção capitalistas. Por exemplo, para explicar a trajetória de Gustave Flaubert,
utiliza-se uma miríade de fatores que determinaram as possibilidades de ação disponíveis
a esse autor: a extração social familiar privilegiada em contraste com a posição de filho
mais novo11, ou a posição de destaque no interior do grupo de intelectuais do qual fazia
parte em contraste com a inferioridade desse grupo frente ao poderio econômico da
burguesia crescente.
Para atingir seu objetivo, este breve texto se estenderá por dois assuntos
intrinsecamente ligados: a estrutura argumentativa do texto e a documentação com base
na qual ela está amparada. É na observação das escolhas das evidências e na maneira
como são amarradas por Bourdieu em uma teia explicativa que é possível identificar a
característica inovadora de sua pesquisa. E através dela pensar em novos rumos para
nossa própria formação como cientista social.
Na elaboração de As Regras da Arte, foi utilizada documentação de diversos
tipos: da literatura fossilizada sob o rótulo de clássico à correspondência cotidiana de
Gustave Flaubert, da análise qualitativa bastante detalhista de Éducation Sentimentale
(ES) até a análise quantitativa da relação entre os microcosmos das editoras e dos
prêmios de literatura, para ficar em poucos exemplos. Diante da quantidade inebriante de
informações apresentadas durante o livro, cabe a pergunta: o que é possível afirmar
acerca da metodologia utilizada e da escolha das fontes?
A resposta a essa pergunta deve levar em conta as circunstâncias nas quais a
documentação foi produzida, o que explica em grande medida o rol de informações
apresentadas ao longo do texto. Um exemplo disso é que a obra se inicia com uma
análise de Éducation Sentimentale como tradução da estrutura social da qual é, ao mesmo
tempo, o resultado e um dos atores principais na sua construção. Bourdieu ressalta como
a narrativa do romance é resultado das disputas do mundo artístico francês em busca do
reconhecimento financeiro e intelectual. Nesse sentido, o personagem principal de
Éducation, Frédéric, exprime pelo contra-exemplo as escolhas que Flaubert – e todos os
outros literatos de sua geração – tiveram que fazer. O fracasso do personagem da ficção e
10
BOURDIEU, As Regras..., pp. 6-11.
11
E, portanto, com direito à menor parte na divisão da fortuna herdada dos pais.
9
o sucesso do personagem histórico revelam o mesmo fato: a existência de um conjunto
de pessoas que organizam a cena intelectual a partir de Paris, decidindo quem tem direito
a voz e a entrada nos salões e nas editoras mais prestigiadas, as melhores recompensas
financeiras ou qual artista será “recuperado” pelas gerações seguintes, como modelo. É
ele, em resumo, quem confere poder aos seus participantes nas suas mais diferentes
formas simbólicas e materiais. Este conjunto heterogêneo de pessoas e instituições é
chamado de campo artístico, que em alguns casos mais específicos pode ser reduzido ao
subcampo literário. Bourdieu escolhe utilizar Éducation por ser essa a obra cuja estrutura
ajuda mais na expressão do raciocínio do livro.
Outra escolha importante da primeira parte do livro foi acompanhar a trajetória de
Flaubert e contrastá-la com a de Baudelaire. Esse recurso permite reforçar a idéia de
existência do campo a partir da demonstração da crença no poder conferido ao grupo por
seus próprios membros. Se Flaubert procurou congregar um grupo de intelectuais em
torno de si como forma de ganhar projeção dentro do campo literário, Baudelaire ironiza
indiretamente essa pretensão ao lançar sua própria candidatura à Academia francesa, pois
revela como a aceitação de pertença a esse mundo dependia de outros fatores alheios à
qualidade da escrita, como o estilo, a participação nos salões da época ou a capacidade de
formar um bom mercado de consumidores. No caso de Baudelaire, sua opção por
escrever uma poesia difícil, carregada de alegorias e metáforas, contribuiu para isolá-lo
da maioria dos artistas de seu tempo.
É por isso que considero importante chamar a atenção para um dos aspectos
menos vistos nessa obra arquiconhecida de Bourdieu: sua capacidade de utilizar o
material mais indicado para construir seu texto, o que exige ao mesmo tempo erudição e
rigor na leitura da documentação. A opção por acompanhar a emergência de um campo
literário a partir da trajetória de Flaubert deve-se também à abundância de
correspondência deixada por esse autor, em comparação com a documentação consultada
sobre Baudelaire, bem menor que a referente a Flaubert. Acredito que existe uma íntima
relação entre o trabalho de articulação desse autor com vários outros nomes, o volume de
suas correspondências e sua preocupação em preservá-la e que tudo isso é pré-condição
para que Bourdieu pudesse construir As Regras da Arte como fez. Por outro lado, a
relativa ausência de registros sobre a vida de Baudelaire é o que garantiu seu sucesso
posterior, na medida em que lhe permitiu ser reapropriado mais livremente pelos literatos
posteriores.
10
Esse é outro aspecto importante na formação do conceito de campo: sua
capacidade de criar as regras de sua própria superação na fase atual, como ocorre por
exemplo com as gerações de literatos. Bourdieu confere novos sentidos para termos
como “jovem” ou “envelhecido”, como forma de tornar visível a dimensão do tempo na
construção de seu objeto. Ela não corresponde, é claro, ao tempo cronológico: um artista
avançado na idade pode ser ainda “jovem”, se ele estiver adentrando naquele momento o
subcampo literário, possivelmente oriundo de uma posição de poder atingida em outro
campo – o acadêmico ou o político, por exemplo – e portanto com várias possibilidades
de converter seu capital simbólico para esse campo. Bourdieu também fornece evidências
da situação contrária: escritores jovens que se dedicaram desde o início de suas carreiras
à reprodução de um estilo de escrita há muito consagrado podem estar envelhecidos do
ponto de vista do campo.
Esse uso fecundo da idéia de geração proporciona ao cientista social em formação
algumas reflexões. A primeira delas é a de que a temporalidade de cada fenômeno social
deve ser marcada a partir de sua lógica própria de funcionamento, como Bourdieu faz
com o conceito de geração literária12, para a qual não importa a idade biológica de seus
participantes ou o tempo cronológico que ela dura. O que importa é o movimento do
campo no sentido de consagrar ou esquecer determinados autores; pois a geração atual
permanece presente até ser substituída pela geração seguinte, independentemente se isso
ocorre em cinco, dez ou vinte anos. No meio literário, a ascensão de uma nova geração é
resultado de um cruzamento de fatores de origem diversa: a morfologia do mercado
consumidor, a atuação de patrocinadores externos ao campo – Estado e imprensa,
principalmente – mas, sobretudo, ela é expressão do estágio em que se encontra o
instável jogo de posições e disposições dos participantes do campo. Esses dois conceitos
permitem compreender melhor a maneira como Bourdieu entende a agência dos sujeitos
sociais. Na passagem citada logo abaixo, torna-se possível enxergar mais facilmente seu
esforço de encontrar o equilíbrio entre os vários determinantes aos quais a ação está
condicionada e o pequeno raio de ação dos sujeitos:
Por maior que seja o efeito de campo, ele jamais se exerce de maneira
mecânica, e a relação entre as posições e as tomadas de posição,
(especialmente as obras) é sempre mediatizada pelas disposições dos
agentes e pelo espaço dos possíveis que elas constituem como tal
12
Esse concito é desenvolvido por Bourdieu para analisar a produção literária francesa da página 176 em
diante.
11
através da percepção do espaço das tomadas de posição que estruturam.
13
13
BOURDIEU, As Regras..., p. 290.
14
Esse assunto é mais desenvolvido entre as pp. 264 a 268.
15
BOURDIEU, As Regras..., p. 105.
12
tomada de posição: Flaubert quer diferenciar-se do grupo da arte social desejosa de
transformar a arte em arma de luta de um projeto político e também dos artistas
burgueses, comprometidos com a manutenção dos temas clássicos e de um estilo de
escrita acessível a um público leitor sem grande formação clássica. Aqui é possível
aproximar Bourdieu de Flaubert, pois quando o primeiro escreve sobre Éducation
Sentimentale, está também fornecendo indícios de como o leitor deveria ler As Regras da
Arte, ou seja, como um desafio às diversas correntes de interpretação da cultura e em
particular da obra artística. Um exemplo disso é que se poderia substituir “Flaubert” por
“Bourdieu” na passagem abaixo sem que ela precisasse ser modificada para permanecer
sendo válida:
16
BOURDIEU, As Regras..., p. 124. Em certa medida, também seria possível substituir Flaubert por
qualquer outro nome de um produtor cultural, mas o que distingue Flaubert e Bourdieu é o grau de lucidez
do processo no qual estavam imersos.
13
“reflexividade” e de “objetivar o sujeito da objetivação”, para usar os termos do próprio
Bourdieu. E, no entanto, essa terceira parte dedicada à teorização começa
paradoxalmente com uma negação das grandes teorizações, expressa pela passagem
abaixo -- que bem poderia servir como síntese do tipo de pesquisa que Bourdieu pretende
encontrar nos futuros sociólogos:
Deleito-me com essas obras em que a teoria, porque é como ar que se
respira, está por toda parte e em parte alguma, no meandro de uma nota,
no comentário de um texto antigo, na própria estrutura do discurso
interpretativo. Reencontro-me completamente nesses autores que sabem
abarcar as questões mais decisivas em um estudo empírico
minuciosamente conduzido e fazem dos conceitos um uso a um só
tempo mais modesto e mais aristocrático, chegando por vezes a ocultar
sua própria contribuição em uma reinterpretação criativa das teorias
imanentes ao seu objeto. 17
17
BOURDIEU, As Regras..., p. 204.
14
perceptível encontra-se no apêndice dedicado a Sartre18, no qual se afirma que ele cria
nos intelectuais a ilusão de que é possível ser tudo ao mesmo tempo: filósofo e literato,
metafísico e político, elitista e popular. O preço que ele paga por isso é a ingenuidade de
acreditar que sua posição é menos determinada ou mais universal que as demais. É nesse
sentido que se deve compreender as passagens abaixo:
Sartre abole a fronteira entre a filosofia literária e a literatura filosófica,
entre os efeitos de "literariedade" autorizados pela análise
fenomenológica e os efeitos de profundidade assegurados pelas análises
existenciais do romance metafísico. 19
Sartre converte em estrutura ontológica, constitutiva da existência
humana em sua universalidade, a experiência social do intelectual, pária
privilegiado, condenado à maldição (abençoada) da consciência que lhe
proíbe a coincidência beata consigo mesmo. 20
18
“Apêndice: O intelectual total e a ilusão da onipotência do pensamento”, EM: BOURDIEU, As Regras...,
pp. 238-242.
19
BOURDIEU, As Regras..., p. 239.
20
BOURDIEU, As Regras..., p. 242.
15
[Foucault] transfere para o céu das idéias as oposições e os
antagonismos que se enraízam (sem se reduzir a isso) nas relações entre
os produtores, recusando, desse modo, todo relacionamento das obras
com as condições sociais de sua produção (...) não é possível, mesmo
no caso do campo cientifico, tratar a ordem cultural (a episteme) como
totalmente independente dos agentes e das instituições que a atualizam
e a levam à existência, e ignorar as conexões sócio-1ógicas que
acompanham ou sustentam as consecuções 1ógicas; ainda que fosse
apenas porque, assim, impedimo-nos de dar conta das mudanças que
ocorrem nesse universo arbitrariamente separado. 21
21
P. 226.
16
CONCLUSÃO
23
Compreender o intelectual “de direita” é uma forma de traçar as linhas
divisoras do campo no qual eles estão inseridos, e do qual representam uma parte
importante. Embora sua atividade se configure em resposta aos outros intelectuais, seu
estudo não pode sucumbir à tentação de considerá-los como expressão “menor” ou mera
defesa de interesses exteriores ao campo dos intelectuais, como da elite política,
econômica ou religiosa. Para serem aceitos como intelectuais, esses personagens devem
se apropriar da illusio como a esse campo e do estágio atual da tradição, ainda que seja
para contrapor-se a eles. Por se tratar muitas vezes de uma trajetória social iniciada em
outros meios e que adentra os meios intelectuais para opor-se ao grupo simbolicamente
dominante nesse meio, o estudo do intelectual de direita permite visualizar melhor a
força de coerção dentro desse campo e sua relação com outros tantos, especialmente
aquele que Bourdieu designa como o “campo de poder”, que seria, em poucos termos, o
espaço de cotação e troca entre os diferentes tipos de capital simbólico e material.
No “campo de poder” é possível que um nome consensual dentro de grupo
específico – a Igreja Católica, por exemplo -- pode buscar converter esse cabedal em
22
BOURDIEU, As Regras..., p. 312.
23
As aspas se justificam porque, no interior do orbe católico, pares de conceitos como
“progressista/regressista”, “direita/esquerda” precisam ser matizados a partir do conceito que eles adquirem
no interior do campo dado.
17
capital político para a obtenção de cargos e influência dentro das esferas estatais, ou em
capital intelectual, para a ocupação de postos dentro da burocracia educacional. Portanto,
estudar alguém com esses caracteres sociais pode ser um bom percurso para compreender
melhor não apenas a visão que os intelectuais têm de si mesmos e quais as disputas a esse
respeito, mas a forma como o capital simbólico aí produzido é valorizado e
compreendido pelo restante da sociedade.
BIBLIOGRAFIA
BOURDIEU, Pierre. Ésquisse pour une auto-analyse. Paris : Éditions Raisons d’agir,
2004. (1ª edição: 2002).
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