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Vermeer pintou Leitora à janela (ver encarte) mais ou menos na mesma época em
que pintou Oficial e moça sorridente. Vemos a mesma sala no andar de cima, a
mesma mesa, a mesma cadeira, a mesma mulher usando até o mesmo vestido,
novamente a esposa Catharina Bolnes, ou assim creio. Embora a ação dos dois
quadros seja diferente, ambos narram mais ou menos a mesma história: a corte
entre um homem e uma mulher. A história é visível em Oficial e moça sorridente,
no qual vemos a conquista em andamento. Em Leitora à janela, por sua vez,
vemos apenas a mulher. O homem tem sua presença no quadro, mas só in
absentia: na carta que a mulher lê. Ele está longe, talvez a meio mundo de
distância. Ela lê à janela por causa da luz, mas dessa vez a janela não está apenas
entreaberta. Está escancarada. O homem está lá fora, em algum lugar, e só pode
lhe falar por cartas. Sua ausência física induz Vermeer a construir um clima
diferente. O brilho da conversa leve foi substituído pela tensão internalizada,
quando a moça se concentra em palavras que nós, espectadores, não temos
permissão de ler.
Se os dois quadros dividem espaço e tema, diferem nos objetos que mostram.
Leitora à janela não tem elementos em excesso, mas há mais objetos no quadro,
que participam mais da função de criar atividade visual. Para equilibrar a
movimentação desses objetos, Vermeer deixou a parede vazia. Vazia, mas longe de
ser um vácuo; com certeza, essa é uma das paredes vazias mais ricamente
texturizadas da arte ocidental. A análise radiográfica revela que Vermeer
pendurara naquela parede um quadro com um cupido (ele o usou mais tarde em
Senhora diante do virginal), para que o leitor soubesse que ela lê uma carta de
amor, mas depois decidiu-se contra uma dica simbólica tão óbvia e apagou-o.
Para dar à sala a sensação de profundidade e volume, usou a técnica
convencional das cortinas, uma pendendo sobre a janela aberta, a outra puxada
de lado em primeiro plano, como se aberta para revelar o quadro (era prática
costumeira pendurar cortinas sobre os quadros para protegê-los da luz e de
outros danos). A mesa está coberta, desta vez com um tapete turco ricamente
colorido - esses tapetes eram valiosos demais para pôr no chão, como fazemos
hoje -, amontoado de um lado para dar vitalidade à cena. E ali, inclinado sobre o
tapete, no meio da mesa, está um objeto que, como o chapéu do oficial, aponta
para o mundo mais vasto, para onde talvez tenha ido o amante ou marido: um
prato de porcelana sob um monte de frutas.
Nossos olhos vão, primeiro, para a moça, mas o prato competiu pela atenção dos
contemporâneos de Vermeer. Era um prazer admirar fruteiras como essa, mas
elas ainda eram raras e caras, e poucos podiam comprá-las. Uma ou duas
décadas antes, os pratos chineses raramente apareciam em quadros holandeses;
avancemos uma década ou duas e estarão por toda parte. A década de 1650 foi
exatamente o momento em que a porcelana chinesa ocupou seu lugar na arte
holandesa, assim como na vida holandesa. De fato, esses pratos fizeram parte do
surgimento de um gênero de pintura recentemente popular, as naturezas-mortas,
que os artistas holandeses do século XVII transformaram numa forma de arte. O
artista escolhia objetos de tipo parecido (frutas) ou que tivessem o mesmo tema
plausível (o apodrecimento, sinal de vaidade) e arrumava-os na mesa de um jeito
visualmente agradável. Uma grande fruteira chinesa seria exatamente o tipo de
coisa que serviria para unificar objetos menores, como frutas, e juntá-los num
monte dinâmico. O desafio da natureza-morta era tornar a cena tão real que
enganasse os olhos e levasse a pensar que não era um quadro; o artista esperto
talvez pintasse até uma mosca na cena, como se a mosca também tivesse se
enganado. Criar a realidade em trompe l'oeil era exatamente o desafio com que
Vermeer brincou durante toda a sua vida de pintor.
A fruteira na mesa diante de Catharina está ali para deliciar os olhos, mas
Vermeer usa a natureza-morta de frutas esparramadas para transmitir o
derramar de emoções na mente dela ao ler a carta do amante distante - talvez até
nas distantes Índias Orientais holandesas - e esforçar-se para controlar os
pensamentos. Sua postura e seus modos sugerem uma pessoa calma, mas nem
ela consegue manter firmes as ideias. Do mesmo modo, as frutas se derramam da
fruteira diante dela. É claro que é tudo armado e encenado. O amante é fictício, a
folha de papel que a modelo segura podia não ter nada escrito, e o tapete, o prato
e a cortina foram todos habilidosamente posicionados. Mas o mundo é real, e é
atrás disso que estamos. Essa fruteira, muito adequada num quadro pintado na
cidade que criou a cerâmica de Delft, será a porta pela qual sairemos do ateliê de
Vermeer e seguiremos pelo corredor das rotas comerciais que vão de Delft à
China.
Antes que os ingleses ocupassem Santa Helena, a ilha servia de escala para os
navios de todos os países que faziam a longa viagem de volta da Ásia à Europa.
Por estar diretamente no rumo dos ventos alísios de sudeste que levavam os
navios para o norte depois do cabo da Boa Esperança, era um lugar de refúgio,
onde embarcações e tripulações podiam se recuperar das doenças e tempestades
que assolavam as viagens marítimas; um porto seguro para descansar, consertar
avarias e abastecer-se de água doce antes do último trecho até a casa. A
navegação moderna não precisa dessas ilhas e hoje passa ao largo de Santa
Helena, deixando-a, em sua lonjura oceânica, para só turistas visitarem.
Depois de perder um navio inteiro com carga e tripulação, o almirante Lam não
podia se dar ao luxo de arriscar mais nada. Ordenou a retirada dos outros navios.
Tatton conseguiu levar o Pearle até suficientemente perto da margem norte da
baía para, antes de ir embora, recolher 11 homens da tripulação abandonada, que
tinham se reunido ali na esperança do resgate. Os infortúnios dessa viagem só
terminariam no desfecho dos acontecimentos. Quando passou pelo canal de Texel
a caminho do Zuider Zee (hoje Ijsselmeer), o mar interior de Amsterdã, o Bantam
encalhou e se rompeu. Foi péssima sorte para Lam. O número de navios da VOC
que afundaram nesse canal pode ser contado nos dedos de uma só mão, e um dos
dedos foi esse. (A frota portuguesa teve resultado um pouco melhor. O almirante
Almeida conseguiu levar ambos os navios de volta a Lisboa, mas o Carmo ficou
tão avariado que foi retirado de serviço.)
Será que a porcelana fora largada em cima do navio naufragado por outros navios
que aliviaram a carga enquanto ancorados? É possível, mas havia porcelana
demais num lugar só; e, quando as peças foram levadas à superfície, o estilo e as
datas indicavam que tinham sido produzidas durante o reinado do imperador
Wanli, que terminou em 1620. Todos os indícios, exceto o manifesto do navio,
indicam que essa carga era do Leão Branco. O que a explosão destruiu,
paradoxalmente se salvou. Se os fardos de porcelana cuidadosamente embalada
tivessem chegado às docas de Amsterdã, como deveriam, teriam sido vendidos e
revendidos, quebrados e rachados e, finalmente, jogados fora. Esse é o destino
comum de quase toda a porcelana que chegou aos Países Baixos no século XVII.
Há peças espalhadas pelo mundo, em museus e coleções particulares, que
sobrevivem como restos individuais isolados das circunstâncias que os levaram à
Europa, separados dos carregamentos dos quais fizeram parte. Sem querer, a
explosão do Leão Branco salvou desse destino esse carregamento específico. É
verdade que a maioria das peças recuperadas está quebrada, mas o irônico é que
sobreviveram mais do que seria possível nos quatro séculos entre 1613 e o
presente. Podem estar danificadas, mas ainda estão juntas (hoje no Rijksmuseum,
em Amsterdã), e isso significa que podem nos mostrar como era um carregamento
de porcelana no início do século XVII.
O estilo que mais chamou a atenção dos europeus foi o azul e branco: fina
porcelana branca pintada com azul de cobalto e revestida com um esmalte
perfeitamente transparente. Esse estilo, na verdade, foi uma evolução tardia na
história da cerâmica chinesa. Os ceramistas de Jingdezhen, cidade oleira na
província interiorana de Jiangxi, que atendia regularmente às encomendas
imperiais, só desenvolveram a tecnologia necessária para queimar a verdadeira
porcelana no século XIV. A produção de porcelana exige elevar a temperatura do
forno a até 1.300 graus centígrados, suficientemente alta para transformar a
mistura do esmalte numa transparência vítrea e fundi-la ao corpo da peça. Presos
permanentemente entre os dois, ficavam os desenhos e padronagens azuis que
tanto atraíam o olhar. A produção europeia mais próxima era a faiança, cerâmica
queimada à temperatura de 900 graus centígrados e coberta com um fino esmalte
de óxido. A faiança tem a aparência superficial da porcelana, mas faltam-lhe a
finura e a translucidez. Os europeus aprenderam a técnica no século XV com
ceramistas islâmicos, que a desenvolveram para fabricar substitutos mais baratos
das importações que pudessem competir com a louça chinesa. Só em 1708 um
alquimista alemão conseguiu reproduzir a técnica de fabricar a verdadeira
porcelana numa cidade perto de Dresden, chamada Meissen, palavra que logo
também virou sinônimo de porcelana fina.
A porcelana azul e branca surgiu desse longo processo de inovação. Vendia bem
na Pérsia, em parte devido à proibição do Corão de comer em pratos de ouro ou
prata. Os ricos queriam servir os hóspedes com louça cara e, se estavam proibidos
de apresentar a comida em metais preciosos, precisavam de algo igualmente
bonito e caro, mas que não existisse na época do Corão. A porcelana de
Jingdezhen cumpriu a tarefa. Os compradores mongóis e chineses também
ficaram encantados com a aparência dessa porcelana. O que reconhecemos hoje
como "porcelana chinesa" nasceu desse cruzamento intercultural aleatório de
fatores materiais e estéticos, que transformou a produção de cerâmica no mundo
todo. Os ceramistas sírios da corte de Tamerlão, por exemplo, começaram a fazer
seus produtos parecerem chineses no início do século XV. Quando o comércio
global de cerâmica se expandiu para o México, o Oriente Médio e a península
Ibérica, no século XVI, e para a Inglaterra e os Países Baixos, no século XVII, os
ceramistas de todos esses lugares seguiram a mesma trilha. Todos tentaram,
embora durante muito tempo também sem sucesso, imitar a aparência e a
delicadeza do azul e branco chinês. No século XVII, as bancas de cerâmica dos
bazares fora da China estavam cheias de imitações de segunda linha que sequer
se aproximavam do produto original.
A ausência de Estados fortes comparáveis à China no sudeste da Ásia fez com que
fosse uma região mais promissora para os holandeses encontrarem uma base. Os
espanhóis (instalados em Manila, nas Filipinas) e os portugueses eram muito
poucos para dominar os milhares de ilhas da área, de modo que os holandeses
agiram rapidamente e tomaram dos portugueses, em 1605, as chamadas Ilhas das
Especiarias. Quatro anos depois, a VOC criou sua primeira feitoria comercial
permanente em Bantam, na extremidade mais oriental da ilha de Java. Depois de
capturar Jacarta, a leste, a companhia transferiu sua sede para lá e rebatizou a
cidade de Batávia. Agora, a Holanda tinha, do outro lado do globo, uma base para
desafiar o monopólio ibérico do comércio asiático. O novo esquema funcionou bem
para a companhia. O valor das importações holandesas vindas da região cresceu
quase 3% ao ano.
Em 1608, Grócio entregou aos diretores da VOC o que queriam. De jure praedae,
traduzido como Da lei do apresamento, argumentava que o bloqueio naval
espanhol dos Países Baixos, então em vigência, era um ato de guerra. Essa
provocação deu aos holandeses o direito de tratar os navios portugueses e
espanhóis como naus beligerantes. Um desses navios capturado na guerra era
butim legítimo, e não captura ilegal. No ano seguinte, Grócio ampliou Da lei do
apresamento e criou sua obra-prima, Mare liberum, mar aberto, ou, no título
completo, A liberdade dos mares ou o direito que pertence aos holandeses de
participar do comércio das Índias Orientais. Em Mare liberum, Grócio apresenta
vários argumentos novos e ousados. No mais ousado de todos, ninguém pensara
antes: todos os povos têm o direito de comerciar. Pela primeira vez, a liberdade
comercial foi considerada um princípio do direito internacional, como tem sido
desde então. A partir desse princípio fundamental, segue-se que nenhum Estado
tem o direito de impedir os naturais de outro Estado de usar as rotas marítimas
para o comércio. Se o comércio era livre, então os mares em que comerciavam
também eram livres. Portugal e Espanha não tinham base para abolir esse direito
com o monopólio do comércio marítimo na Ásia. Grócio não aceitara o argumento
de que tinham conquistado o monopólio por meio da obra que realizavam ao levar
o cristianismo aos nativos daquelas regiões do mundo onde comerciavam. Além de
não se sobrepor à liberdade comercial, para Grócio o dever de converter os pagãos
infringia o princípio de que todos deviam ser tratados igualmente. "A crença
religiosa não elimina nenhuma lei humana ou natural da qual derive a soberania",
afirmou. O fato de algum povo recusar-se a aceitar o cristianismo "não é causa
suficiente para justificar a guerra contra ele, nem para espoliá-lo de seus bens". E
o custo de convertê-los não podia ser pago impedindo-se que outras nações
comerciassem com eles. Armada com uma interpretação do argumento de Grócio
que a beneficiava, a VOC permitiu que seus comandantes usassem a força sempre
que fossem impedidos de comerciar.
Wen Zhenheng foi um dos principais conhecedores e árbitros do bom gosto de sua
geração (morreu em 1645). Morava na metrópole cultural de Suzhou quando o
Leão Branco explodiu e afundou. Sua cidade produzia e consumia as obras de arte
e objetos culturais mais finos que se podia encontrar na China, assim como os
mais comerciais. Wen estava no lugar perfeito para produzir o seu famoso manual
de bom gosto e consumo cultural, o Tratado das coisas supérfluas. Bisneto do
maior artista do século XVI, ensaísta por mérito próprio e membro de uma das
famílias mais ricas e exclusivas de Suzhou, Wen tinha todas as credenciais
necessárias para fazer as avaliações da sua classe sobre o que era feito ou não na
sociedade bem-educada e sobre o que se devia possuir e evitar; eis o tema do
Tratado das coisas supérfluas. Esse guia do certo e do errado na compra e no uso
de coisas belas era a resposta às orações de leitores que, ao contrário de
cavalheiros finos como Wen, não eram suficientemente instruídos ou bem-
nascidos para conhecer essas coisas desde o berço. Era para os novos-ricos que
ansiavam ser aceitos por seus superiores na sociedade. Por parte de Wen, foi
também um modo esperto de lucrar com a ignorância deles, pois o livro vendeu
bem.
Possuir objetos de alto valor cultural era um negócio traiçoeiro para os que
lutavam para subir a escada do status. Mesmo quem tivesse uma peça de
porcelana que Wen considerasse fina o bastante para ser possuída, ainda
precisaria tomar cuidado para não usá-la da maneira errada nem na hora errada.
Por exemplo, ao arrumar um vaso para os outros verem, o único móvel onde se
poderia colocá-lo seria "uma mesa de estilo japonês", como ele a descreve. O
tamanho dessa mesa depende do tamanho e do estilo do vaso, e isso, por sua vez,
depende do tamanho da sala onde o vaso é exibido. "Na primavera e no inverno, é
adequado usar vasilhas de bronze; no outono e no verão, vasos de cerâmica",
insiste ele. Nada mais é aceitável. "Valorize o bronze e a cerâmica, e considere
baratos o ouro e a prata", ensina. Os objetos feitos de metais preciosos deveriam
ser evitados não para esfriar o pecado do orgulho, como advertia o Corão, mas
para pôr em seu lugar os meramente ricos, sem educação nem bom gosto. "Evite
vasos com anéis", aconselha também, "e nunca os arrume em pares". Era tudo
muito complicado.
Entre as muitas regras, Wen incluía algumas para as flores que se podia pôr no
vaso. Essas advertências terminam com o grave conselho de que "mais de duas
hastes e a sala acabará parecida com uma taberna". A exuberância das exibições
florais com que os europeus enchiam alegremente as suas porcelanas chinesas
recém-adquiridas e que os artistas holandeses adoravam pintar quando não
retratavam cenas de taberna (e, às vezes, nelas também) teria parecido a Wen de
um mau gosto total, irremediavelmente típica da classe baixa. Imaginem o horror
que sentiria com a maneira como os europeus usavam suas xícaras. Wen admitia
como aceitável oferecer frutas e nozes ao tomar chá numa das xícaras do
ceramista Cui, por exemplo, mas nunca laranjas. As laranjas eram perfumadas
demais para serem servidas com o chá, assim como o jasmim e a cássia. Na
guerra que Wen travava contra o mau gosto, os europeus perderiam facilmente.
Os europeus não podiam conhecer nada desses jogos de status. Eram novos
demais na arte de possuir porcelana para se preocupar com algo além de pôr as
mãos nela. Também tinham suas regras, mas o terreno cultural das posses de
luxo, pelo menos nas questões cerâmicas, ainda não fora tão revolvido. As
preciosas peças de porcelana que saíram do porão do Vlissingen e foram leiloadas
em 1613 nos armazéns da VOC eram desejadíssimas, fosse qual fosse o estilo ou
mesmo a qualidade. Os únicos valores culturais que transmitiam era serem raras,
caras e exclusivas. Sem experiência com porcelana, os europeus puderam deixar
que as novas aquisições migrassem para o nicho imaginado pelos compradores.
Os pratos chineses começaram a aparecer à mesa na hora das refeições, já que a
porcelana era facílima de limpar e não passava o gosto da comida de ontem para o
jantar de hoje. Também foram exibidos como curiosidades caras provindas do
outro lado do mundo. Decoravam mesas, cristaleiras, lareiras e até a verga das
portas. (A atenção cuidadosa aos portais das pinturas de interiores holandeses da
segunda metade do século XVII revelará pratos ou vasos pousados neles.) Não
faria sentido restringir a colocação de vasos finos às mesas baixas de estilo
japonês, já que os europeus não faziam ideia do que era isso. Eles os colocavam
onde queriam.
Se Wen Zhenheng tivesse ido às docas do Grande Canal que cortava a cidade para
inspecionar os carregamentos de cerâmica que eram remetidos para os
holandeses, acharia ridículo o que encontraria. A maioria era porcelana de
carraca, feita para exportação. Vista pelos olhos de Wen, a porcelana de carraca
era grossa demais e mal pintada, e os motivos da decoração não tinham nenhuma
delicadeza. Era apenas o tipo de lixo que se pode impingir a estrangeiros
desinformados. Um cavalheiro de Suzhou jamais sonharia em servir petiscos em
travessas malpintadas, com "item de excelente qualidade" escrito no fundo (marca
inscrita em muitas exportações), nem frutas cristalizadas em pratos com pé,
esmalte leitoso com furinhos e datas falsas do século XV na base, nem chá fino
em xícaras feitas no ano anterior. Um guia esnobe de Beijing de 1635 admite que
os ceramistas de Jingdezhen ainda são capazes de produzir, de vez em quando,
uma "peça fina" que não envergonhe o dono, mas observa que o verdadeiro
conhecedor sabe que deve manter distância das peças contemporâneas. Em
dúvida, a porcelana antiga seria geralmente a opção mais segura.
Se, pelos padrões chineses, os europeus eram maus juízes do que saía dos navios
da VOC, pelos seus próprios padrões eram juízes excelentes. Afinal, com que
comparariam a porcelana chinesa senão com os pratos e jarros de cerâmica
grosseira e quebradiça que os ceramistas italianos e flamengos produziam? Esses,
os vasilhames chineses superavam em fineza, durabilidade, estilo, cor e em todas
as outras características da cerâmica. Reproduzi-las estava além da capacidade de
todos os artesãos europeus, e era por isso que, assim que um navio da VOC
chegava à Holanda, aparecia gente de toda parte para comprá-los.
Os chineses não tinham uso para pratos como esses. O problema era a sopa. Ao
contrário da sopa europeia, a sopa chinesa mais parece um caldo que um cozido;
é bebida, e não entrada. A etiqueta, portanto, permitia levar o prato à boca para
tomá-la. É por isso que as vasilhas de sopa chinesas têm as laterais altas e
verticais: para tornar mais fácil beber pela beirada. A etiqueta europeia proíbe
erguer a vasilha, daí a necessidade de uma colher grande projetada especialmente
para esse fim. Mas tente pôr uma colher europeia numa vasilha de sopa chinesa,
e ela vira: os lados são altos demais, e o centro de gravidade não fica
suficientemente baixo para equilibrar o peso do cabo do talher. Vem daí a forma
mais plana do klapmuts, com uma beirada larga na qual o europeu poderia
descansar a colher sem acidentes.
Em meados do século XVII, a casa holandesa era decorada com porcelana. A arte
imitou a vida, e os pintores puseram pratos chineses em cenas domésticas para
dar um toque de classe e uma pátina de realidade. Em Delft, a porcelana chinesa
começou a ficar disponível antes da época de Vermeer. A nau capitânia da
Câmara de Delft da VOC, a Wapen van Delft, foi duas vezes à Ásia e voltou em
1627 e 1629 com um carregamento total de 15 mil peças de porcelana, algumas
das quais ficariam no local. A maior coleção pessoal da cidade pertencia a
NiclaesVerburg, diretor da Câmara de Delft. Verburg podia comprar todos os tipos
de itens que os seus navios levavam a Roterdã e suas balsas transportavam até
Delft, pois ao morrer, em 1670, era o homem mais rico da cidade.
Embora não estivesse no mesmo nível de Verburg, Maria Thins aspirava ter uma
casa que atendesse aos padrões de gosto elegante da época. A se acreditar nas
telas de Vermeer, a casa dos Thins-Vermeer possuía várias peças requintadas. O
klapmuts de Leitora à janela também aparece em Jovem adormecida, logo, é
provável que pertencesse à família. A casa talvez também possuísse um jarro
chinês azul e branco, porque há um deles atrás do alaúde, na mesa de Moça
interrompida em sua música. Entretanto, não poderia ter vindo diretamente da
VOC, já que um artesão europeu resolveu adorná-lo acrescentando uma tampa de
prata. Também há um pote para gengibre no estilo carraca sobre a mesa do lado
esquerdo de Mulher com colar de pérolas. O reflexo recurvado da janela invisível à
esquerda sobre a superfície do vaso mostra por que Vermeer, tão cativado pela
luz, devia gostar de pintar algo tão lustroso como um pote chinês. Na mesma
mesa, bem diante da mulher com o colar, há uma pequena vasilha de bordas altas
- prova de uma quarta peça chinesa na coleção Thins-Vermeer?
Sem provas concretas, ainda podemos imaginar que, como artista que vivia e
trabalhava numa das sedes das câmaras da VOC, Vermeer tenha visto exemplos
de pinturas chinesas. Sabemos que várias pinturas chinesas foram parar na
coleção de NiclaesVerburg, diretor da VOC em Delft, mas é improvável que fossem
mostradas fora de sua casa. Ainda assim, algumas imagens do que os chineses
consideravam belo devem ter sido levadas por marinheiros curiosos e circulado no
âmbito público. John Evelyn conta ter visto gravuras estrangeiras incomuns na
Arca de Noé, em Paris. Haveria entre elas pinturas chinesas? Quando um satirista
de Amsterdã divertiu os leitores imaginando "uma pintura em que 12 mandarins
foram esboçados com um único traço do pincel", supunha que os leitores
conhecessem as pinceladas fluidas e ousadas dos artistas chineses. Se as
pinturas chinesas circulavam nos Países Baixos, com certeza Vermeer teria
conseguido vê-las.
Li gostou da maioria das coisas ofertadas, mas logo percebeu que o mercador Xia
estava errado a respeito dos brincos. Decidiu divertir-se com Xia, fingindo
examiná-los com a devida atenção e depois lhe afirmando que eram feitos de
vidro. Além de não serem antiguidades do século X, os brincos nem eram
chineses. Como Li escreveu depois em seu diário: "Esses itens eram trazidos para
cá em navios estrangeiros vindos do sul - itens de fabricação estrangeira, de fato.
Os objetos de vidro que vemos hoje em dia são todos obra dos estrangeiros do
oceano Ocidental [Atlântico], que os fazem derretendo pedras, e não tesouros
produzidos naturalmente." Li divertiu-se ao levar a melhor sobre o mercador Xia,
mas não por maldade. Sabia que a falsificação fazia parte do jogo de compra e
venda de antiguidades e apreciou bastante o fato de que, dessa vez, o vendedor é
quem foi enganado, não o freguês. O mercador Xia partiu depois de devidamente
repreendido, talvez mais envergonhado por ter pago caro pelos brincos em Nanjing
do que por tentar vendê-los a alguém tão atento quanto Li Rihua.
Esse caso demonstra que os chineses não ficavam curiosos com objetos
estrangeiros? De modo algum. Temos de perceber o que Li fazia ao colecionar.
Para ele, a razão era descobrir objetos que confirmassem a autoridade cultural
dos antigos; era por isso que, para ele, a autenticidade era tão importante. Ele
queria coisas que o ligassem a uma época melhor, sempre no passado. O que o
caso mostra é que os artigos estrangeiros circulavam na China no século XVII. Se
chegavam a Nanjing e depois circulavam nas mãos de mercadores ambulantes até
as cidades próximas, devia haver algum tipo de mercado para eles. Não
circulavam na mesma escala que as manufaturas estrangeiras na Europa, mas
também chegavam à China em volume muito menor. Além disso, ao contrário da
Europa, onde cerca de um século de saques e comércio pelo mundo afora
ensinara os europeus a se tornarem conhecedores de curiosidades estrangeiras, a
demanda desses objetos na China não estava bem desenvolvida. As coisas
estrangeiras não eram recusadas pelos colecionadores chineses. Wen Zhenheng
encoraja os leitores de Tratado das coisas supérfluas a adquirir alguns objetos
estrangeiros. Recomenda pincéis e papel de escrita da Coreia e defende a posse de
uma grande variedade de objetos japoneses, desde leques, réguas de bronze e
tesouras de aço a caixas laqueadas e móveis finos. A origem estrangeira não era
uma barreira para a valorização.
Não se podia dizer o mesmo dos objetos europeus. Li Rihua não era indiferente ao
que havia além do litoral da China; na verdade, o seu diário contém numerosas
observações sobre o que ouvira dizer a respeito dos navios e marinheiros
estrangeiros que perambulavam pelas águas costeiras chinesas. Mas os objetos
que vinham das terras estrangeiras não tinham lugar em seu sistema simbólico.
Não incorporavam valores. Eram apenas curiosidades. Ao contrário, na Europa as
coisas chinesas tiveram impacto maior. Lá, a diferença tornou-se um convite à
compra. Os europeus sentiram-se inclinados a incorporar essas coisas ao espaço
onde viviam e, além disso, até a rever os seus padrões estéticos. A fruteira que
Vermeer pôs no primeiro plano de Leitora à janela é uma coisa estrangeira,
aninhada, por sua vez, no tapete turco, outra coisa estrangeira. Esses objetos não
provocavam desprezo nem ansiedade. Eram bonitos, vinham de lugares onde se
faziam coisas bonitas e podiam ser comprados. Era tudo, e isso bastava para fazer
com que valesse a pena comprá-los.
Se nas salas europeias havia lugar para objetos estrangeiros, esse lugar não
existia nas salas chinesas. Em última análise, não era uma questão de estética
nem de cultura. Era a relação com o mundo mais vasto a que cada uma delas
podia se dar ao luxo. Os mercadores holandeses, com todo o apoio do Estado
holandês, percorriam o planeta e traziam às docas do Kolk indícios maravilhosos
de como deveria ser o outro lado do mundo. O povo de Delft via os pratos chineses
como símbolos de sua boa sorte e exibia-os alegremente em suas casas. É claro
que eram bonitos, e ter prazer com a beleza era o que os chefes de família
holandeses gostavam. Mas os pratos também eram o símbolo de uma relação
positiva com o mundo.
O que Li Rihua vê, ao olhar além das docas de sua Jiaxing natal, além do litoral
infestado de piratas? De onde estava, aquele mundo maior era uma fonte de
ameaça, não uma promessa de riqueza, menos ainda de prazer ou inspiração. Ele
não tinha razões para possuir símbolos dessa ameaça e colocá-los em seu ateliê.
Por outro lado, para os europeus, valia a pena todo o perigo e toda a despesa para
pôr as mãos em mercadorias chinesas. E é por isso que, quatro anos depois do
naufrágio do Leão Branco, o almirante Lam voltou ao mar da China Meridional
para saquear navios ibéricos e capturar embarcações chinesas, na esperança de
obter mais.
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