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As potencialidades da centralidade da(s) cultura(s) para as investigações no


campo do currículo

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Antonio Carlos Rodrigues de Amorim Eurize Caldas Pessanha


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As potencialidades da centralidade da(s) cultura(s)
para as investigações no campo do currículo

Antonio Carlos Amorim


Eurize Pessanha
(Organizadores)

2006
1

Apresentação

É difícil escapar à conclusão de que a palavra “cultura” é ao mesmo


tempo ampla demais e restrita demais para que seja de muita utilidade.
Seu significado antropológico abrange tudo, desde estilos de penteado e
hábito de bebida até como dirigir a palavra ao primo em segundo grau de
seu marido, ao passo que o sentido estético da palavra inclui Igor
Stravinsky mas não a ficção científica. A ficção científica pertence à
cultura popular ou “de massa”, uma categoria que paira ambiguamente
entre o antropológico e o estético. Em contraposição, poder-se-ia
considerar o significado estético nebuloso demais, e o antropológico,
limitado demais. O sentido de cultura de Matthew Arnold – como
perfeição, encanto e luz, o melhor do que já foi concebido e dito, ver o
objeto como ele realmente é etc. – é embaraçosamente impreciso, ao
passo que se cultura significa apenas o modo de vida de fisioterapeutas
turcos então ela parece desconfortavelmente específica (...) Margaret
Archer observa que o conceito de cultura exibiu o mais fraco
desenvolvimento analítico dentre todos os conceitos-chaves da sociologia
e desempenhou o papel mais descontroladamente vacilante na teoria
sociológica. (EAGLETON, Terry. A idéia de cultura (2005) (trad. Sandra
Castello Branco). São Paulo: Editora da Unesp)

Em continuidade ao modo de realização do Trabalho Encomendado do GT


Currículo da ANPEd, instalado no ano de 2005, e seguindo as decisões da reunião de
avaliação do GT na 28ª Reunião Anual, realizaremos para o ano de 2006 a discussão de
uma das temáticas que é pulsante nos trabalhos dos grupos de pesquisa do GT. Escolhemos
para este ano as potencialidades da centralidade da(s) cultura(s) para as investigações
no campo do currículo.
As palavras de Terry Eagleton, que introduzem esta nossa proposta, já contêm
vários questionamentos a esta centralidade. Concordando ou respondendo negativamente às
suas críticas, sempre tenazes, provocamos os/as colegas dos Grupos de Pesquisa que se
vinculam ao GT Currículo a problematizarem as idéias/questões da cultura a partir de
suas pesquisas. A síntese das idéias pode acontecer a partir de referenciais teóricos,
verbetes, resultados de investigação, delineamentos metodológicos, dentre outros.

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim


Eurize Pessanha
Coordenação do GT Currículo (nov. 2005/nov.2006)
2

Sumário

Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo e Pós-modernidade – GEPCPós .................. 03

A(s) cultura(s) no GECC: artefato, objeto de estudo e conceito ........................................ 07

Cultura material, cotidianos e práticas culturais afro-brasileiras em diversos espaços


educativos, dentro e fora da escola: discutindo as cotas e trazendo perguntas .................. 14

Práticas culturais, regulação e emancipação cultural no cotidiano escolar ........................ 21

Cultura na investigação das políticas de currículo ............................................................. 27

OBSERVATÓRIO DE CULTURA ESCOLAR: as potencialidades da centralidade


da(s) cultura(s) para as investigações no campo do currículo ............................................ 33

Cultura Científica, Cultura Escolar, Cultura Juvenil e Cultura Popular no currículo


de Química no Ensino Médio - um coro de vozes: quão afinado, quão desafinado? ...... 39

Interdisciplinaridade e Ciência do Sistema Terra como eixos para o ensino básico............ 43

A dimensão cultural no composto música, educação e currículo ....................................... 52

Sobre cultura(s) e seu lugar nas pesquisas sobre currículo escolar .................................... 59

Uma abordagem cultural do currículo ................................................................................. 66

As potencialidades da centralidade da(s) cultura(s) para as investigações no campo do


currículo: algumas reflexões para o debate – NEC/UFRJ ................................................. 71

Possibilidades discursivas no campo do currículo a partir das narrativas dos


sujeitos praticantes do cotidiano de escolas públicas do primeiro segmento
do Ensino Fundamental ............................................................................................................. 81
3

Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo e Pós-modernidade -


GEPCPós

Alfredo Veiga Neto

Caracterização:

O Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo e Pós-modernidade —


GEPCPós — foi criado em março de 2001 e está sediado em Porto Alegre, RS; reúne um
grupo de pesquisadores e pesquisadoras ligados à Universidade Luterana do Brasil
(ULBRA) e à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sob a coordenação de Alfredo
Veiga-Neto, o GEPCPós promove reuniões de estudo quinzenais, nas quais são
apresentados e discutidos os projetos de pesquisa, propostos ou já em andamento, e que
estão a cargo dos diversos componentes do Grupo. Uma parte dessas pesquisas está
diretamente relacionada aos projetos de mestrado ou doutorado sob a orientação do
coordenador do GEPCPós. Além dessas atividades, outros trabalhos são trazidos e
colocados em discussão pelo Grupo, bem como são organizadas reuniões e palestras com
colegas convidados.

Objetivos:

O GEPCPós tem por objetivo principal estudar e investigar as relações entre o


Currículo —enquanto artefato escolar— e as rápidas, amplas e profundas mudanças sociais
e culturais que estão em curso no mundo de hoje. Entendendo que existe uma relação de
imanência entre o Currículo e a temporalidade e a espacialidade modernas, esse objetivo
principal desdobra-se em vários outros e adquire variados matizes.

Alguns pressupostos:

Compreender o Currículo como um artefato indissociável da educação escolarizada


moderna significa compreendê-lo em dois âmbitos. De um lado, num âmbito mais
individualizante, significa compreender o currículo como um conjunto de dispositivos que
4

colocam em funcionamento o poder disciplinar. Nesse sentido, o currículo foi crucial para
que se constituísse, na Modernidade, um tipo especial de indivíduos (sujeitos
autogovernados) para um tipo especial de sociedade (disciplinar). De outro lado, num
âmbito mais coletivo, significa compreender o currículo como um conjunto de estratégias
que colocam em funcionamento o biopoder. Nesse sentido, o currículo também foi crucial,
na medida em que, organizando de modo muito detalhado a vida escolar, funcionou (e
ainda funciona...) como um facilitador ou canal aberto para as ações biopolíticas do Estado
moderno. Numa perspectiva foucaultiana, esses dois âmbitos não se excluem mas, ao
contrário, se articulam e se reforçam mutuamente.
Assumindo que —para o bem ou para o mal, queiramos ou não...— vive-se hoje o
esgotamento tanto das metanarrativas iluministas (no plano teórico) quanto das “formas de
vida” modernas (no plano existencial), o Grupo procura situar-se numa matriz de
inteligibilidade que combine aportes dos Estudos Foucaultianos com as vertentes teóricas
pós-estruturalistas dos Estudos Culturais. Com isso, estabelecem-se bases epistemológicas
que possibilitam melhor a descrição, a comprensão e a problematização dos fenômenos
educacionais nesse período de agudização das crises modernas e de transições do moderno
para o pós-moderno.

Transições:

Tal transição pode ser bem tematizada, por exemplo, quando se tomam, como foco
de análise, o currículo naquilo que ele promove e nos subjetiva, em termos espaciais e
temporais. Trata-se, assim, de examinar não apenas as novas configurações que o espaço e
o tempo vêm assumindo —no sentido de como ambos são percebidos, significados e
usados por nós—, mas de examinar também as relações entre as novas espacialidades e as
novas temporalidades, no sentido da aceleração nas velocidades da vida cotidiana. Já
conhecidas, porém pouco estudadas, essas novas configurações e novas relações são
imanentes a uma ampla gama de fenômenos, situações e processos em que estamos
inseridos; entre eles, citam-se o colapso espaço-temporal e a conseqüente presentificação,
o capitalismo avançado, o neoliberalismo, a volatilidade e o (conseqüente) descarte, a
fantasmagoria, o declínio dos Estados-nação, o avanço da lógica imperial, o desencaixe
5

etc. O papel do Currículo nessas configurações e relações —ainda como artefato a serviço
da biopolítica— são evidentes, principalmente quando se consideram os imperativos
curriculares que hoje são acriticamente tomados como naturais e desejáveis, como é o caso,
por exemplo, da flexibilização curricular, da transversalização temática e do apagamento
ou transposição das fronteiras disciplinares.
Todos os projetos de pesquisa ligados ao GEPCPós guardam uma maior ou menor
aproximação ao campo dos Estudos Culturais. Desse modo, questões relativas às
pedagogias culturais —aí incluído o entendimento de que (não sem algumas reservas...) se
pode falar em currículos culturais— estão no horizonte das discussões travadas no Grupo.
No mesmo sentido, atualmente estão em discussão os usos talvez um tanto alargados do(s)
conceito(s) de cultura, uma prática cada vez mais comum no campo dos Estudos de
Currículo. Para isso, os aportes trazidos por alguns autores no campo da Cultura e das
Filosofias da Prática e da Diferença, do Relativismo e do Pragmatismo —como é o caso,
por exemplo, de Terry Eagleton, David Harvey, Michel Foucault, Zygmunt Bauman,
Antonio Negri, Michael Hardt e Richard Rorty (para citar apenas os principais)— têm se
mostrado muito produtivos.

As produções:
Estão listados, abaixo, os títulos de alguns projetos de pesquisa já concluídos e
publicados ou em andamento no GEPCPós:
• “Desconstruções edificantes: uma análise da ordenação do espaço como elemento
do currículo”
• “A ordem do discurso ambiental”
• “Produzindo tempos, espaços, sujeitos: seriação escolar e governo dos corpos”
• “Biopolítica e a formação de professores”
• “Infâncias e maquinarias”
• “Dispositivos de disciplinamento dos corpos infantis em shopping centers”
• “Análise dos espaços e da interação como dispositivo educativo em museus”
• “Alteridade, normalização e subjetivação na escola”
• “A família na escola: uma aliança produtiva”
• “Cuidar e curar para governar: as campanhas de saúde na escola”
6

• “Livros de ocorrência: disciplina, normalização e subjetivação”


• “A escola na mídia: nada fora de controle”
• “O dispositivo Programa de Saúde na Família (PSF): disciplinarização,
normalização, biopolítica e controle da população”
• “Dispositivos escolares de disciplinamento e controle: a pedagogia num sistema
prisional”
• Outros tempos, outros espaços: Internet e Educação
• Da infância de direitos no currículo escolar: miradas sobre experiências éticas e
cuidado de si
As pessoas:

Compõem o GEPCPós:
Alfredo Veiga-Neto — coordenador — (alfredoveiganeto@uol.com.br)
Carlos Ernesto Noguera Iolanda Montano dos Santos
Karla Saraiva Karyne Dias Coutinho
Maria Renata Alonso Mota Roberta Acorsi
Roseli Inês Hickmann Sandra de Oliveira
Viviane Klaus
7

A(s) cultura(s) no GECC: artefato, objeto de estudo e conceito


Coordenadora: Marlucy Alves Paraíso: Email: marlucy.paraiso@terra.com.br
Vice-coordenadora: Lucíola L. de C. Paixão Santos. Email: lucíola@fae.ufmg.br

O Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículos e Culturas (GECC), sediado na


Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG), constitui-
se em um espaço de produção, discussão de pesquisas e divulgação de conhecimentos sobre
currículos e culturas. Tem como principais objetivos: produzir conhecimentos sobre
currículos e culturas; estudar e discutir teorias que subsidiam as pesquisas no campo
curricular; integrar pesquisadores/as que trabalham com esses temas; promover encontros e
debates que contribuam para problematizar os currículos das diferentes áreas e para os
diferentes níveis de ensino. Cultura é, certamente, um dos temas aglutinadores dos
membros pesquisadores do grupo. O GECC trabalha reconhecendo, como o faz Stuart Hall,
que: “Cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos – e mais imprevisíveis – da
mudança histórica no novo milênio. Não deve nos surpreender então, que as lutas (...)
sejam, crescentemente (...) discursivas, ao invés de tomar, simplesmente, uma forma física
e compulsiva, e que as próprias políticas assumam progressivamente a feição de uma
política cultural” (1997, p. 20).
Cabe então explicitar que cultura é tanto objeto de estudo de várias investigações
desenvolvidas pelos/as pesquisadores/as vinculados ao GECC como também conceito
utilizado pela maior parte das pesquisas do Grupo. Por isso ela tem recebido atenção
privilegiada nas reuniões e discussões realizadas pelo GECC. Assim, seguindo a
diferenciação adotada por Hall (1997, p.16), é possível dizer que cultura tem sido usada nas
pesquisas do GECC em seus aspectos substantivos (“lugar da cultura na estrutura empírica
real e na organização das atividades, instituições e relações culturais na sociedade”) e em
“seu peso epistemológico” (“posição da cultura em relação às questões de conhecimento e
conceitualização”). De diferentes formas, portanto, cultura possui centralidade nas
investigações curriculares dos/as pesquisadores/as vinculados/as ao GECC.
Como objeto de estudo cabe destacar que os temas já investigados e/ou que se
encontram em processo de investigação pelos membros do grupo e que discutem cultura
8

são vários, a saber: políticas curriculares e o tratamento por elas dados a diferentes culturas;
cultura escolar e suas implicações para os currículos e as aprendizagens; currículos (de
diferentes tipos e nível de ensino) e as culturas neles incluídas/excluídas; currículo e as
culturas rurais; currículo e cultura surda; currículo e cultura cega; currículo e cultura
juvenil; currículo e cultura infantil, currículo e as marcas culturais de gênero e de etnia.
Cabe destacar que muitas vezes cultura é “trabalhada” como uma marca da identidade dos
sujeitos. Isso fica evidente na variedade de palavras que acompanham a palavra cultura para
delimitar os objetos de estudos de nossas pesquisas.
Além disso, um número cada vez mais crescente de investigações do GECC vem
estudando diferentes artefatos tecnológicos e culturais escolares e não escolares, para os
quais cultura é também objeto de estudo importante. Essas pesquisas além de estudarem
livros didáticos, revistas educativas, cadernos escolares, planejamentos de professoras,
projetos de trabalhos das escolas, currículos escolares diversos, focalizam também as
chamadas pedagogias culturais de diferentes artefatos culturais tais como: mídia educativa,
literatura juvenil, cinema, jogos eletrônicos, programas televisivos, revistas em quadrinhos,
orkut etc. Nessas investigações as discussões sobre cultura têm sido absolutamente
necessárias e abundantemente utilizadas nas pesquisas desenvolvidas por membros do
GECC.
No que se refere ao(s) conceito(s) de cultura, seguindo a mesma pluralidade teórica e
conceitual que caracteriza as discussões sobre cultura no Brasil e no mundo, as pesquisas
desenvolvidas pelos membros do GECC têm utilizado diferentes abordagens, diferentes
referenciais teóricos e múltiplos conceitos. O que une os/as pesquisadores/as do Grupo,
certamente, não é o referencial teórico e nem os sentidos de cultura produzidos e ou usados
nas pesquisas por eles/as desenvolvidos/as. O ponto de união/articulação é a preocupação
em problematizar, investigar e compreender os temas currículos e culturas, suas relações,
suas significações e suas produções. As compreensões de cultura adotadas e ou produzidas,
no entanto, nas pesquisas já desenvolvidas e ou em desenvolvimento pelo grupo são
múltiplas. Cultura(s) é(são) compreendida(s) como:

- “um artefato; no sentido de coisa feita, fabricada, produzida”;


9

- “práticas que unificam ou identificam e/ou distinguem grupos, seus interesses,


suas lutas e necessidades”;
- “processos elaboradores de elos entre indivíduos, mas em permanente processo de
mudança devido à ação desses indivíduos nos contextos sociais”;
- “sistemas de significados que os seres humanos utilizam para definir o que
significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta, uns em
relação aos outros”;
- “processos dinâmicos que definem formas como os sujeitos concebem o mundo”;
- “uma prática discursiva envolvida na produção de significados, de regimes de
verdade e de sujeitos de determinados tipos”;
- “campo de luta em que diferentes grupos sociais disputam a imposição de seus
próprios significados a toda a sociedade”
- “práticas que educam, formam e produzem sujeitos”
- “uma construção histórica complexa que envolve luta por representação”
- “práticas que se expressam em comportamentos, valores, costumes, habilidades”
- “práticas que sintetizam modos de vida e conflitos presentes na sociedade”
- “modo de compreender o mundo e de torná-lo inteligível”
- “saberes e maneiras de viver que são epistemológica e antropologicamente
equivalentes mas que são sociologicamente desiguais (em termos de lugares que
ocupam nas relações de poder)”;
- “práticas constitutivas do mundo à medida que nomeiam e dão sentido às coisas”;
- “conjunto de todas as práticas sociais que requeiram um significado para
funcionar (o qual é contingente e historicamente situado)”;
- “práticas de grupos que são sempre produto de conflitos e negociações”;
- “práticas usadas por diferentes grupos sociais para fixar suas representações, seus
conceitos e suas verdades”;
- “processos permanentes de construção/reconstrução de grupos, em que se
manifestam posições, interesses, visões diferenciadas e divergentes sobre como
viver, ser e fazer”;
10

- “tanto uma forma de vida – compreendendo idéias, atitudes, linguagens, práticas,


instituições e estruturas de poder – quanto toda uma gama de práticas culturais:
formas, textos, cânones, arquitetura, mercadorias produzidas em massa”;
- “prática produtora de identidades”;
- “conjunto de práticas de governo de Estado, dos outros e de si”;
- “prática de governo de indivíduos e populações”;
- “formas de gerenciar os sujeitos”;
- “um campo de encontros, experimentações e criações”;

Observando a variedade de conceitos produzidos e/ou utilizados nas pesquisas


realizadas por membros do GECC é possível verificar que os referenciais e os autores que
subsidiam as pesquisas são múltiplos. Os referenciais teóricos utilizados são oriundos das
ciências sociais, das teorias antropológicas, dos estudos culturais, dos estudos
multiculturais, do pós-colonialismo, dos estudos feministas e de gênero, da teoria queer,
dos estudos estruturalistas e pós-estruturalistas. Assim, as pesquisas trabalham com noções
de cultura de diferentes autores/as tais como: Clifford Geertz, Paul Willis, Stuart Hall,
Homi Bhabha, Nestor Garcia Canclini, James Clifford, Michel Agier, Gavin Kendal e Gary
Wickhan etc. Além disso, cabe destacar que algumas dessas pesquisas têm incorporado, nas
noções de culturas com as quais vêem trabalhando, compreensões e conceitos retirados de
diferentes autores/as que trabalham com as chamadas teorias pós-críticas da educação. Têm
incorporado, particularmente, nas noções de cultura com as quais vêm trabalhando,
conceitos dos estudos e trabalhos de Michel Foucault.
O campo do currículo é, sem dúvida, um dos campos da educação que mais tem se
utilizado das produções recentes das mais diferentes áreas: da própria pedagogia, da
sociologia, da filosofia, da antropologia, da teoria literária, dos Estudos culturais, das
teorias feministas e de gênero, das narrativas étnicas e raciais, do pós-estruturalismo, do
pós-modernismo, da filosofia da diferença. Essa utilização possibilitou ao campo, também,
uma multiplicação de sentidos de cultura adotados, que em alguns casos se conciliam e em
outros se divergem. Essa mesma pluralidade que podemos identificar no campo, de um
modo geral, é claramente evidente nas pesquisas realizadas pelos/as pesquisadores/as do
GECC.
11

Em uma pesquisa que se encontra em fase de conclusão no GECC, intitulada


“Cartografia de currículo e culturas1”, que tem como objetivo “mapear as linhas
constituintes dos artigos e trabalhos sobre currículo e cultura divulgados no Brasil nos
últimos quinze anos (de 1990 a 2005)”, estamos mapeando as congruências, divergências e
criações nos estudos de pesquisadores/as brasileiros/as que discutem currículo e cultura. O
que estamos concluindo ao analisar esses trabalhos é que, se é mesmo possível questionar a
centralidade da cultura e suas potencialidades para o campo curricular hoje, é certo que a
introdução das discussões claramente culturais na primeira metade dos anos noventa no
campo do currículo no Brasil foi um acontecimento. Um acontecimento que aqueceu o
pensamento curricular, modificou seus temas de estudo, trouxe outras problematizações e
interrogações para a área, afetou radicalmente a teoria e a pesquisa no campo curricular.
Já em 1995 Tomaz Tadeu da Silva defendia, no espaço do GT Currículo, que
estávamos imersos em “novos mapas culturais” e que, nesse cenário, era importante que
compreendéssemos “as novas configurações culturais e políticas”, por meio de uma “nova
ótica”, que focalizasse “as dinâmicas culturais em jogo na luta por hegemonia e predomínio
político”. A partir desse entendimento poderíamos lutar pela consideração e afirmação de
“discursos, narrativas e saberes que contassem outras histórias” no currículo. Passada mais
de uma década de utilização de aportes culturais no campo curricular brasileiro, o currículo
definitivamente passou a ser visto em sua relação com a cultura: como “espaço de
contestação, conflitos e negociações culturais”; como território em que “as diferentes
culturas existentes são representadas de modo desigual”, como campo em que “os
diferentes grupos culturais constroem suas identidades” (cf. Silva, 1995).
Essas teorias fizeram perturbar certas idéias no campo curricular e possibilitaram o
uso de outras categorias nas análises curriculares. É certo que o campo da teorização e da
pesquisa em currículo é, hoje, um campo muito mais plural do que era há quinze anos. O
estudo das diferentes culturas e a abordagem cultural no campo do currículo nos fez pensar
outras coisas sobre currículo; nos fez ver o currículo de um outro modo, trazendo-nos

1
A pesquisa possui apoio do CNPq, é coordenada por Marlucy Paraíso e conta com a participação de outras
pesquisadoras membros do GECC: Maria Carolina da Silva, Renata Medeiros e Clara Tatiana. Estão sendo
analisados todos os artigos publicados em sete periódicos de educação do país (Cadernos de Pesquisa,
Cadernos de Educação, Educação em Revista, Educação e Pesquisa, Educação e Sociedade, Educação e
Realidade e Revista Brasileira de Educação) nos últimos quinze anos que tenham em seus títulos e/ou
palavras-chave a palavra currículo e/ou cultura e todos os trabalhos apresentados no Grupo de Trabalho (GT)
currículo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) nesse período.
12

também outras categorias de análise para o campo e outros objetos de estudo. Em síntese,
foi uma abordagem que mudou nosso modo de compreender, pesquisar e fazer currículo e
que nos fez vivenciar um tempo de produção intelectual criativo, inventivo e vigoroso, que
estamos precisando retomar...

Referências Bibliográficas:
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso
tempo. Educação e Realidade. v. 22, n. 2. jul./dez. 1997. p. 15-46.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Os novos mapas culturais e o lugar do currículo numa paisagem
pós-moderna. In: SILVA, T. T. e MOREIRA, A F. (Orgs.). Territórios contestados.
Petrópolis: Vozes, 1995.

PESQUISADORES/AS PARTICIPANTES DO GECC:


Professores/as da UFMG:
Prof. Doutora Marlucy Alves Paraíso (Faculdade de Educação) (Coordenadora)
Prof. Doutora Lucíola Licínio de C. Paixão Santos (Faculdade de Educação) (Vice-
coordenadora)
Prof. Doutora Marildes Marinho (Faculdade de Educação)
Prof. Doutora Christianne Luce Gomes (Escola de Educação Física)
Prof. Doutor Hélder Ferreira Isayama (Escola de Educação Física)
Prof. Doutor Eduardo Marques Arantes (DEMC – Engenharia Civil)
Prof. Ana Maria Chagas Sette Câmara (Escola de Fisioterapia)
Prof. João Henrique Lara do Amaral (Escola de Odontologia)

Professores/as de Outras Instituições:


Prof. Doutor Antônio Flávio Moreira (UCP – RJ)
Prof. Doutora Maria da Mercez Ferreira Sampaio ( PUC – SP)
Prof. Doutora Alda Junqueira Marinho (PUC – SP)
Prof. Doutor Cláudio Lúcio Mendes (Universidade de Itaúna e UNA)
Prof.Vanessa R. E. M. Oliveira (Faculdade Metropolitana de BH e Doutoranda da
FAE/UFMG)
13

Prof. Karla Cunha Pádua (Universidade Estadual de Minas Gerais e Doutoranda da


FAE/UFMG)
Prof. Marcel de Almeida Freitas (UNIP – Universidade Paulista)
Prof. Frederico de Assis Cardoso (UNA)
Prof. Clarissa Enderle (Fundação Educacional Monsenhor Messias)
Prof. Jacqueline Costa Azevedo (Centro Universitário Newton Paiva)

Doutorandas e Mestrandas
Shirlei Rezende Sales do Espírito Santo (Doutoranda da FAE/UFMG)
Heloísa R. Herneck (Doutoranda da Faculdade de Educação da UFSCar)
Rosani Siqueira (Mestranda na FAE/UFMG);
Maria Carolina da Silva (Mestranda na FAE/UFMG);
Daniela Amaral Silva Freitas (Mestranda na FAE/UFMG);
Karla Vignoli Viégas Barreira (Mestranda na Fae/UFMG)

Estudantes de Graduação:
Letícia Gonçalves Ribeiro (Graduanda da FAE/UFMG)
Daniela do Carmo Pereira (Graduanda da FAE/UFMG)
Renata Medeiros Ribeiro (Graduanda da FAE/UFMG)
Clara Tatiana (Graduanda da FAE/UFMG)
Juliana Prochnow (Graduanda da FAE/UFMG)
Danielle Carvalhar (Graduanda da FAE/UFMG)

Professores e Mestrandos do Equador (Quito):


Prof. María Elena Ortiz Espinoza (Mestrado em Currículo da Universidade Salesiana de
Quito)
Prof. Juan Sebastián Granda Merchán (Mestrado em Educação Intercultural de Quito)
Prof. Hugo Ernesto Sánchez MENA (Doutorando da Universidade Andina Simón Bolívar)
Prof. Verónica Di Caudo (Universidade Salesiana de Quito)
Grimaneza Chávez (Estudante do Mestrado em Educação Intercultural de Quito)
Moisés Arcos (Estudante do Mestrado em Educação Intercultural de Quito)
14

Cultura material, cotidianos e práticas culturais afro-brasileiras em


diversos espaços educativos, dentro e fora da escola: discutindo as cotas e
trazendo perguntas

Nilda Alves* , Paulo Sgarbi** , Mailsa Passos*** e Stela Guedes Caputo****

Toda boa história é, está claro, uma imagem e uma idéia


e quanto mais elas estiverem entremeadas
melhor terá sido a solução do problema
(Henry James, Guy de Maupassant)2

No presente momento, entre março/2006 e fevereiro/2009, o grupo de pesquisa a que


pertencemos desenvolve o projeto “Artefatos tecnológicos relacionados à imagem e ao som
na expressão da cultura de afro-brasileiros e seu ‘uso’ em processos curriculares de
formação de professoras na Educação Superior – o caso do curso de Pedagogia da
Uerj/campus Maracanã”, com financiamento CNPq e UERJ/Faperj, organizado em diversos
sub-projetos . Esse projeto teve origem no desenvolvimento de dois outros projetos -
“Memórias de professoras sobre televisão: o cotidiano escolar e a televisão na reprodução,
transmissão e criação de valores” (1999/2002) e “O uso da tecnologia, de imagens e de sons
por professoras de jovens e adultos e a tessitura de conhecimentos (valores) no cotidiano: a
ética e a estética que nos fazem professoras”(2002/2005) – nos quais se estabelecia

*
Professora titular da Faculdade de Educação/UERJ, coordenadora Grupo de Pesquisa “As redes de conhecimentos em
educação e comunicação: questão de cidadania” e do Laboratório Educação e Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br)
**
Professor adjunto da Faculdade de Educação/UERJ, membro do Grupo de Pesquisa “As redes de conhecimentos em
educação e comunicação: questão de cidadania”, do Laboratório Educação e Imagem, coordenando o sub-projeto
“Gibiteca Armando Sgarbi”.

***
Professora adjunta da Faculdade de Educação/UERJ, membro do Grupo de Pesquisa “As redes de conhecimentos em
educação e comunicação: questão de cidadania”, do Laboratório Educação e Imagem, coordenando o sub-projeto
“Narrativas, memórias e imagens da diáspora: práticas culturais afro-brasileiras em escolas públicas do Rio de Janeiro e
seus praticantes”

****
Bolsista Prodoc/Capes na Faculdade de Educação/UERJ, membro do Grupo de Pesquisa “As redes de conhecimentos
em educação e comunicação: questão de cidadania”, do Laboratório Educação e Imagem, coordenando o sub-projeto
“As redes de conhecimentos nas práticas culturais de sujeitos afro-descendentes: imagens, sons e práticas
educativas” (Maristela Gomes de Souza Guedes)
2
Cf Manguel (2001).
15

múltiplas relações entre os ‘conhecimentos cotidianos’, criados nas múltiplas ‘redes’ em


que vivemos e aprendemosensinamos3, e as ‘tecnologias’ criadas no ‘uso’ cotidianos dos
tantos ‘artefatos culturais’ colocados à disposição nessas redes.
Como se pode depreender, há muito a questão da cultura e as diferentes formas de
transmissão/apropriação/usos da mesma por parte dos praticantes dos cotidianos (Certeau,
1994), ocupa um grande espaçotempo nas pesquisas que desenvolvemos no grupo e temos
trabalhado, particularmente, no que diz respeito às expressões suas materiais e a
produção/criação de tecnologias.
Assim, na atual pesquisa, usando essas idéias, relacionamo-las com uma
temática/campo de estudo que foi se impondo no transcorrer do trabalho nas duas pesquisas
anteriores e, também, pela introdução do sistema de cotas na UERJ - a partir de 2003 - e
pelo aumento da inclusão de afro-brasileiros no curso de Pedagogia: percebíamos que para
receber esses alunos/alunas, muitas vezes com o apoio deles próprios, mas especialmente
com a ‘compreensão’ de boa parte da comunidade acadêmica, na Universidade,
preparávamo-nos para receber alunos portadores de ‘carências’ de toda sorte - “era preciso
cursos especiais em horários especiais”, indicavam alguns; chegou-se, em um primeiro
momento, a criar-se uma ‘turma especial’ no curso de Pedagogia só com alunos/alunas
cotistas “para terem um atendimento próprio”, era a explicação dada; reconhecia-se que
precisavam de ‘apoios especiais’ de toda ordem, inclusive porque, muitas vezes, “exigiam
demais” ou “falam alto”.
Entendemos que se tornava urgente, a organização de uma pesquisa que buscasse
inverter a lógica de compreensão dessa questão, permitindo pensar que a entrada desse
contingente de estudantes com suas vivências de escolas e de outros espaçostempos
educativos – encontros e desencontros raciais, formas diversas de crenças religiosas, de
práticas culturais – oportuniza que aprendamos com eles dentro dos processos curriculares
praticados no curso em questão.
Ou dito de outro modo, considerando a preocupação proposta para esse encontro do
GT na 29ª RA da ANPED – a centralidade da cultura nas pesquisas de currículo –
entendemos que mais importante do que perguntar o que podemos modificar na

3
Esse modo de escrever tem a intensão de mostrar os limites que as dicotomias da modernidade traz às
necessidades de desenvolvimento das pesquisas nos/dos/com os cotidianos.
16

universidade para oferecer aos novos estudantes que pluralizam esse espaçotempo é
perguntar 1) o que estes praticantes de cotidianos trazem que modifica esses espaçostempos
curriculares/pedagógicos/culturais; 2) quais os modos pelos quais eles têm se apropriado da
cultura em geral, capturando os processos de negociação cultural presentes nas múltiplas
redes em que vivem – partindo do pressuposto de que todo conhecimento é sempre
mediado por artefatos culturais; 3) como eles vem se apropriando/criando/ressignificando o
que é posto à disposição deles no curso de tantos artefatos culturais, da proposta curricular
a recursos áudio-visuais. Nessa perspectiva,
o termo ‘cultura material’ não se opõe ao de ‘cultura imaterial’ ou ‘cultura
simbólica’. Insistimos na idéia de que os objetos fazem, também, ‘cultura’ e
que a relação que o homem mantém com eles participa de sua própria
constituição enquanto sujeito individual, social e cultural. Os objetos não são,
unicamente, a materialização de um sentido que será dado ‘a priori’ ou ‘a
posteriori’. (Julien e Warnier, 1999)
Nas pesquisas desenvolvidas, assim, vamos entendendo que os seres humanos, em
suas ações e para se comunicarem, estão carregados de valores que reproduzem,
transmitem, mas também criam, nos contatos que têm entre si e com toda a produção
técnica e artística. Assim, em um mesmo processo, vão consumindo o que lhes é imposto
pela cultura dominante, com os produtos técnicos colocados à disposição, e vão criando
modos de usar e conhecer o invento técnico, fazendo surgir tecnologias e possibilidades de
mudanças tanto dos artefatos culturais, como das técnicas de uso, como, ainda, dos
valores, significados e crenças, ou seja, da cultura em seus aspectos materiais e imateriais.
Buscar compreender, assim, o que se fabrica, o que se cria/transmite/reproduz nos
usos de tantos artefatos postos à disposição para o consumo tem sido possível incorporando
a idéia de redes de relações e de significados entre os tantos contextos cotidianos nos quais
vivemos, o que vai explicar tanto a indisciplina do uso (Certeau, 1994), como a
hibridização desses/nesses produtos (Canclini, 1995). Por isso, precisamos nos dedicar a
estudar as táticas dos praticantes (Certeau, 1994; et al, 1997) e as relações de comunicação
que os mesmos, como receptores (Martin-Barbero, 2000;1997;1995; e Rey, 2001),
estabelecem com os produtos colocados à disposição, entendendo-os, todos, como artefatos
culturais.
17

Nos escritos desses autores, percebe-se preocupações comuns, no campo da


comunicação e da educação, que deslocam as idéias iniciais, centradas exclusivamente na
produção, para outras, em uma perspectiva diferente que busca compreender como as
apropriações, as articulações e as negociações se verificam nos processos de recepção e nos
processos de uso, que devem ser entendidos, todos, como processos educativo-culturais.
Isso leva à compreensão de que há criação de conhecimentos, para além dos processos de
reprodução e transmissão dos mesmos, no contato com todo o tipo de artefatos culturais, de
imagens e sons a ‘novas’ propostas curriculares, ‘inventando’, cotidianamente, tecnologias
de uso, parte integrante das expressões culturais.
É por isso que Luce Giard, ao introduzir os trabalhos de Certeau (1994) sobre o
cotidiano, vai indicar que a grande “empreitada teórica” deste autor se refere à busca de
compreender não os produtos culturais oferecidos no mercado de bens, mas sim as
operações dos seus usuários (p.13), indicando as maneiras diferentes de ‘marcar’
socialmente o desvio operado num dado por uma prática4, na tentativa de responder “a
questão indiscreta”: como se cria? (p.12).
Essas maneiras vão compor o que Certeau indica, com base em Foucault, ser uma
rede de antidisciplina, na qual as práticas exercidas permitem indicar que há uma maneira
de pensar investida em uma maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma
arte de utilizar (p.42). É por isso que se torna imprescindível compreender que os
praticantes dos cotidianos fazem sua síntese intelectual não pela forma de um discurso,
mas pela própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ‘ocasião’ (p. 47), o que exige que
nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos tenhamos que nos dedicar a conversas sobre as
práticas culturais presentes, passadas e futuras, com os próprios praticantes delas em torno
dos usos possíveis, em permanente criação de artefatos que nos marcam nas redes de
conhecimentos e significação em que vivemos e aprendemosensinamos.
Compreender, em especial no caso da formação de professoras na Educação Superior,
primeiramente, como as heranças culturais dos afro-brasileiros estão presentes nos
currículos praticados das escolas e, ainda, como se dão os processos de negociação cultural
nesses contextos, significa concordar com a idéia que essas heranças estão encarnadas nos
praticantes dos currículos – todos eles/todas elas - a partir de múltiplas vivências nas redes

4
A autora cita, aqui, um trecho do livro Cultura no Plural, de Certeau (1992).
18

nas quais vivem: seja pela sua negação ou pela sua posse; seja em qualquer dos lados que
ocupemos em processos de exclusão ou de articulação; seja porque a conseguimos ver e
compreender, seja porque sequer a vemos ou imaginamos. Não se trata, assim, de viver
uma experiência que vai interessar, somente, aos afro-brasileiros, mas que tem a ver com
marcas incorporadas à vida de todos que vivem essa história.
Por outro lado, significa admitir, ainda, que a formação de todos, mesmo que não
esteja no que poderíamos chamar de ‘currículo declarado’5, tem a ver com essas questões –
elas estão presentes o tempo todo, em todos os espaçostempos dos currículos praticados,
quer possamos ver ou não sua presença, nas relações entre os diversos praticantes dos
currículos. Isso porque:
a cultura, seja na educação ou nas ciências sociais, é mais do que um conceito
acadêmico. Ela diz respeito às vivências concretas dos sujeitos, à variabilidade
de formas de conceber o mundo, às particularidades e semelhanças construídas
pelos seres humanos ao longo do processo histórico e social. (...) [Assim] a
cultura negra pode ser vista como uma particularidade cultural construída
historicamente por um grupo étnico/racial específico, não de maneira isolada,
mas no contato com outros grupos e povos. Essa cultura faz-se presente no
modo de vida do brasileiro, seja qual for o seu pertencimento étnico. Todavia, a
sua predominância se dá entre os descendentes de africanos escravizados no
Brasil, ou seja, o segmento negro da população.(Gomes, 2003, p. 75 e 77).

Eis o que justifica o estudo dos processos de negociação cultural nestes contextos.
Para tanto temos incorporado em nossos estudos, a contribuição de autores - em particular,
Hall, 1997 e 2003; Appiah, 1997; Prudente, 2002; Pereira e Gomes, 2001; Barbosa, Silva e
Silvério, 2003, Gilroy, 2001, Sodré, 2000 - que nos tem permitido compreender tanto as
relações étnico-raciais no mundo contemporâneo nos chamados contextos pós-coloniais,
como especificamente essas mesmas relações no Brasil, historicamente.
Temos dado ainda especial atenção à produção cultural dos praticantes com os quais
trabalhamos, entendendo que em suas práticas curriculares surge toda a potência dessas

5
Aqueles processos que articulam tanto o que foi assumido institucionalmente, pelos organismos decisórios,
como o que vai sendo declarado, politicamente, pelos inúmeros praticantes do mesmo, como aquilo que é ou
que deveria ser.
19

culturas na expressão e na compreensão do mundo, bem como nas múltiplas inserções


dentro dele – nos aspectos religiosos, musicais, artísticos em geral, de alimentação e modos
de vestir, nas relações que estabelecem com os mais velhos e os mais novos, nos contatos
com as escolas e outros espaçostempos educativos etc.
Por outro lado, esses processos exigem, como indica Gomes (2003), no mesmo
movimento, perceber e indicar a importância de se ter nas escolas, em todos os seus níveis,
e, portanto, na formação de professores/professoras, espaçostempos que permitam tecer
práticas que busquem inverter o que até hoje está presente nas propostas curriculares
hegemônicas, nas quais predominam o esquecimento ou a ‘folclorização’ de múltiplas
culturas. Essa autora afirma e sugere, então, que isso requer um posicionamento e
implica a construção de práticas pedagógicas de combate à discriminação
racial, um rompimento com a ‘naturalização’ das diferenças étnico/raciais, pois
esta sempre desliza para o racismo biológico e acaba por reforçar o mito da
democracia racial. Uma alternativa para a construção de práticas pedagógicas
que se posicionem contra a discriminação racial é a compreensão, a divulgação
e o trabalho educativo que destaca a radicalidade da cultura negra (p.79)

Referências bibliográficas
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de Janeiro: Contraponto, 1997.
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20

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HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações. Belo Horizonte: Editora UFMG;
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MARTIN-BARBERO, Jesús e REY, Germán. Os exercícios do ver – hegemonia audio-
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SODRÉ, Muniz. Claros e escuros – Identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 2000.
21

Práticas culturais, regulação e emancipação cultural no cotidiano escolar


Alexandra Garcia (UERJ) e Inês Barbosa de Oliveira (UERJ)

Sou feliz só por preguiça.


A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença.
Mia Couto

Gostamos de pensar que a frase em epígrafe, com a qual Mia Couto inicia um de
seus livros, só poderia ter sido escrita por um autor “tropical”. A felicidade indolente e sem
motivo do personagem principal e narrador do livro parece só ser possível ao sul do
Equador. Como elogio de uma alegria natural, sem vínculo com os padrões de consumo, de
trabalho ou com os valores que a civilização “moderna” estabelece, ou como crítica
associada à incapacidade do exercício da vida madura, civilizada e responsável, a natureza
dos povos do “Sul” tem sido reconhecida assim, desde os primeiros contatos entre estes e a
“civilização ocidental”.
Dos padrões estéticos da arte erudita aos conceitos que definem as qualidades do
bom cidadão, as “tradições” culturais eurocêntricas têm legitimado sua superioridade social
através de direitos auto-outorgados de estabelecer o bonito e o feio, o certo e o errado, o
civilizado e o selvagem, ao longo da história da interação com o “novo mundo”. Na escola
não é diferente. Conteúdos e padrões de comportamento são definidos com base nos valores
fundadores da cultura ocidental erudita, tanto do ponto de vista dos saberes valorizados e
selecionados para compor as propostas pedagógicas, quanto no que se refere aos valores
morais e sociais que regem as normas disciplinares dominantes. Entretanto,
desdobramentos transformadores, criadores de culturas diferentes das matrizes de origem
também ocorreram. Crenças, valores, conceitos e produções culturais oriundas dos
processos de interação foram sendo gestadas ao longo de uma história de criação
simultânea de dominação e desigualdade e de novas culturas, dentro e fora da escola. E é
isso que vimos estudando no nosso grupo, em busca da desinvisibilização das práticas
sociais e culturais cotidianas que contribuem para a emancipação social e da possível
institucionalização ampliada destas.
22

O que implica e significa falarmos da escola e sua cultura, nessa perspectiva? Que
sentido estamos, especificamente, atribuindo para essa discussão ao termo? Citando
Edward Hall, Vieira (1999: 112) sugere que tantos significados já se deu ao termo que não
fará diferença trazer mais algum . Num tom menos relativista que o transcrito, propomos
que se muito já se disse, muito ainda há para se dizer sobre o duo cultura e educação, visto
que mesmo sobre esses termos há um leque de possibilidades acessíveis por fontes
filosóficas, sociológicas, antropológicas ou pedagógicas.
Procurando em um dicionário de filosofia6 um significado para o termo que possa
ajudar a estabelecer uma linha da argumentação que interesse ao nosso debate, encontramos
as seguintes definições:
CULTURA (lat. cultura) 1. conceito que serve para designar tanto a
formação do espírito humano quanto de toda a personalidade do homem:
gosto, sensibilidade, inteligência.
2. Tesouro coletivo de saberes possuído pela humanidade ou por certas
civilizações: a cultura helênica, a cultura ocidental, etc.
3. Enquanto se opõe a natura (natureza), a cultura possui um duplo sentido
antropológico: a) é o conjunto das representações e dos comportamentos
adquiridos pelo homem enquanto ser social. Em outras palavras, é o
conjunto histórica e geograficamente definido das instituições
características de determinada sociedade designando “não somente as
tradições artísticas, religiosas e filosóficas de uma sociedade, mas também
suas técnicas próprias , seus costumes políticos e os mil usos que
caracterizam a vida cotidiana” (Margaret Mead); b) é o processo dinâmico
de socialização pelo qual todos esses fatos de cultura se comunicam e se
impõem, em determinada sociedade, seja pelos processos educacionais
propriamente ditos, seja pela difusão de informações em grande escala, a
todas as estruturas sociais, mediante os meios de comunicação de massa.
Nesse sentido, a cultura praticamente se identifica com o modo de vida de
uma população determinada, vale dizer, com todo esse conjunto de regras e

6
JAPIASSU, H. e MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. Rio de janeiro, Jorge Zahar Editor:
1991: 63.
23

comportamentos pelos quais as instituições adquirem um significado para


os agentes sociais e através dos quais eles se encarnam em condutas mais
ou menos codificadas.
4. Num sentido mais filosófico, a cultura pode ser considerada como esse
feixe de representações, símbolos, de imaginário, de atitudes e referências,
suscetível de irrigar de modo bastante desigual, mas globalmente, o corpo
social.
O que nos falam as definições transcritas sobre os modos de entender cultura aceitos
socialmente? É certo que temos apresentações em diversas abordagens e acepções,
fornecendo a possibilidade de ampliação para o entendimento do conceito que ultrapassam
o sentido lato de um significado sucinto dicionarizado semanticamente. Porém, o cerne
permanente das acepções, que transitam entre a monoculturalidade única e universalista e
os pressupostos essencialistas, fala apenas dos significados atribuídos à palavra Cultura,
grafada em maiúscula e no singular. Ou seja, por mais que se amplie ou revitalize sua
definição, os referenciais acabam por recair numa idéia de unicidade, um pressuposto de
um panorama geral sobre o qual se relativizam as formas mas, ainda, sem dar conta da
polissemia que se faz presente na idéia de culturas, no plural e sem maiúscula.Com isso,
mantém-se o caráter uno pelo qual a hierarquização se torna possível e justificável e o
aspecto pluri se secundariza, em benefício do caráter mono. Encontramos esse quadro
mesmo em algumas vertentes antropológicas, que guardam uma noção de tradutibilidade
idealizada – para a qual exige-se e pressupõe-se uma essência – que, embora
implicitamente considere a pluralidade, mantém a idéia universalista que pode convergir
para um certo determinismo no que concerne a educação.
Nesse sentido, é possível que o conceito de cultura escolar – modos, formas e
sentidos próprios da relação instituição educativa-conhecimento-cultura – tenha encontrado
na perspectiva antropológica os aportes iniciais para sua criação, dado que permite, na
abrangência do termo, incluir comportamentos pelos quais as instituições adquirem um
significado para os agentes sociais e através dos quais eles se encarnam em condutas mais
ou menos codificadas.
Assim, muitos pesquisadores se apropriam desse entendimento e tratam a "cultura
escolar" referindo-se ao universo cultural das escolas como algo uniforme, auto-referido
24

onde o dinamismo e a pluralidade entre diferentes culturas encontra-se ausente (Candau,


2000; Sacristán, 1996; Tura, 2000). Tais considerações mostram-se pertinentes no quadro
da relação formal escola-cultura. Assim, nos documentos escolares, nas propostas ou grades
curriculares, nos planos de aula, nas atas dos conselhos de classe, nas descrições da
instituição, bem como em outros elementos que possam constituir discursivamente o cartão
de visitas de uma escola, a relação que possivelmente se observará, em linhas gerais, será
de permanência, homogeneidade, centralidade, conservação e reprodução de padrões
universalistas e hierarquizados do duo escola e cultura. Ou se preferirmos, da tripartite
escola, conhecimento e cultura.
Em nossas pesquisas, temos buscado descobrir como se apresenta essa relação no que se
refere aos espaços-tempos não formais e à vida cotidiana. Como se colocam os modos de
estar no mundo, os valores, as crenças e hábitos dos diferentes sujeitos da escola na relação
cotidiana que estabelecem com os valores e conteúdos da cultura hegemônica incorporados
ao currículo oficial, a partir dos sentidos que estes criam incorporando esta relação às suas
redes de subjetividades, ao emprestarem, ou melhor, impregnarem de suas identidades os
currículos praticados?
Essa presença dos valores, modos e crenças de outras culturas enredadas com a
"cultura escolar" oficial vem sendo observada e considerada por nós, e também por outros
autores que se dedicam ao estudo das relações escola-cultura, estabelecendo um conjunto
de aspectos próprios dos espaços da informalidade autorizada na escola que delinearia o
que tem se chamado de cultura da escola (Candau, 2000), em oposição aos aspectos que
demarcariam a cultura escolar. Segundo alguns, essa expressão da relação cultura-escola,
com características próprias quanto às simbologias, linguagens, ritmos e ritos, estaria
privilegiada nos espaços que sofrem menor controle e rotina, geralmente relacionados às
atividades extra-classe.
O que propomos considerar, contudo, é que, mesmo sem estar autorizado, ou seja,
no âmbito dos espaços fomais, esse diálogo também se estabelece, trazendo para o espaço
da formalização saberes produzidos na “informalidade”. Talvez seja possível concordar
que, uma vez autorizada, esta articulação gere maiores possibilidades de reconhecimento da
pluralidade que – seja na sala de aula ou no âmbito da própria Cultura – faz-se presente,
25

ainda que resistam os Olhares que não querem ver7 sua produção ordinária. Sobre esse
diálogo, nem sempre autorizado, Sgarbi (2001: 106) lembra que, em seu cotidiano, os
sujeitos da comunidade escolar produzem muito mais coisas do que apenas as que a escola
promove.
Assim, nos apropriando do pensamento certeauniano, acreditamos que há em cada
escola modos de saber investidos em maneiras de fazer que podem ser captados nas
práticas cotidianas e que essas ações guardam marcas da rede de subjetividades que cada
um de nós é (Santos, 1995), e vimos considerando que, para além da regulação implícita
nos currículos oficiais e na cultura escolar, circulam nas escolas saberes e valores passíveis
de serem incorporados às identidades individuais e coletivas da comunidade escolar. Nesta
produção cotidiana de sentidos e práticas residiria um modo próprio de significação e ação,
hábitos, costumes e valores em diálogo permanente com as redes de cada indivíduo pelos
sentidos atribuídos aos conteúdos curriculares, ideológicos, culturais e sociais que habitam
as escolas. É ao estudo dessas práticas culturais cotidianas nas/das escolas que nossas
pesquisas vêm se dedicando.
Para falar da cultura ordinária presente em cada escola e da identidade própria
conferida às subjetividades que nelas se enredam e, ainda, para vislumbrar em sua
existência a presença de espaços emancipatórios, tanto nos currículos como nas
subjetividades que neles também se produzem, é preciso um estudo do currículo e da
cultura no qual o sujeito não seja compreendido como mera subjetividade. Isto implica em
considerar que, mesmo que circulem nos currículos e na própria cultura escolar textos
culturais dotados de valores ancorados, ou a serviço, da dominação e da regulação,
povoando subjetivamente o espaço da ética, a organização complexa do sujeito o permite
produzir objetivamente sua realidade em ações/desejos estranhos a essa regulação.
Desse modo, nossos estudos vêm buscando afirmar que as formas culturais próprias
de a escola relacionar-se com a cultura apontam um padrão nesta relação que permite captar
relações de poder implícitas nos currículos e nas práticas. Há, por outro lado, indícios que
nos permitem considerar que a cultura ordinária praticada por cada escola, a partir de sua
identidade singular, não se reduz ao padrão comum a todas as escolas, pois nelas estão

7
A expressão no singular intitula o livro que conta a forte presença da cultura escolar como elemento
determinante das ações da prática institucional diante das contingências do cotidiano de uma escola. (TURA,
M.L.R, 2000)
26

presentes elementos diferenciados das relações de poder, reconhecidas e atuantes


permitindo a co-habitação, no mesmo universo, de formas culturais próprias e de
subjetividades estranhas à colonização , da qual não podem fugir (Certeau,1994:), com
sentidos mediados pelas redes de seus praticantes.
27

Cultura na investigação das políticas de currículo

Alice Casimiro Lopes

Fazendo um contraponto à provocação de Eagleton apresentada ao GT, penso que


talvez seja possível considerar qualquer palavra como ao mesmo tempo ampla demais e
restrita demais. Sua “utilidade” dependerá da operação que fizermos com essas palavras
em nossas pesquisas. Na medida em que não há fixidez dos sentidos de um conceito, tais
sentidos vão depender de como lidamos com tais conceitos nas investigações.
Particularmente nas investigações que desenvolvo junto com meu grupo de pesquisa
na UERJ – Políticas de currículo em contextos disciplinares -, tenho focalizado as políticas
de currículo e, a partir desse foco, busco entender tais políticas como políticas culturais.
Tenho me valido das contribuições de teóricos como García Canclini, Stuart Hall, Ernesto
Laclau, Chantal Mouffe e Stephen Ball para problematizar as políticas de currículo como
produções de múltiplos contextos, buscando superar concepções que entendem as políticas
como ações verticalizadas do Estado. Na perspectiva com a qual trabalho, a política é
entendida como um terreno racional, mas em um terreno marcado pelo conflito e pela
indecidibilidade (Laclau & Mouffe, 2001). Ao considerar as políticas de currículo como
políticas culturais, busco entender os deslizamentos de sentidos dos híbridos culturais que
expressam negociações entre diferentes grupos para legitimar suas posições nesses
processos políticos caracterizados pela assimetria de poder. Assim, apresento alguns
extratos de textos nos quais opero com a palavra cultura e com o cultural, visando a
colaborar com o debate no GT.

Extrato 1 – Fonte: Política de currículo: recontextualização e hibridismo In: Currículo


sem fronteiras, 2005.
Quando Ball incorpora à recontextualização o entendimento da cultura pelo
hibridismo, busca entender as nuances e variações locais das políticas educacionais. Sua
investigação caracteriza uma agenda política global para a educação centrada na
performatividade, na escolha dos pais, no gerencialismo, no novo vocacionalismo, na
competição institucional e no fundamentalismo curricular, mas visa a investigar como em
28

diferentes lugares essa agenda se modifica, seja pela intensidade com que tais princípios se
expressam, seja pelo nível de associação desses discursos a outros (Ball, 1998). É a partir
da idéia de uma mistura de lógicas globais, locais e distantes, sempre recontextualizadas,
que o hibridismo se configura.
A incorporação da categoria hibridismo implica entender as políticas de currículo não
apenas como políticas de seleção, produção, distribuição e reprodução do conhecimento,
mas como políticas culturais, que visam a orientar determinados desenvolvimentos
simbólicos, obter consenso para uma dada ordem e/ou alcançar uma transformação social
almejada (García Canclini, 2001). Em uma perspectiva anti-hegemônica, desenvolver
políticas culturais implica favorecer a heterogeneidade e variedade de mensagens, que
podem ser lidas por diferentes sujeitos de diferentes formas, sem a pretensão de congelar
identidades. As orientações curriculares centralizadas, entretanto, tendem a projetar certas
identidades (Lopes, 2002) e a regular os sentidos das mesmas, ainda que não consigam
sempre as projeções e regulações almejadas. Cabe entender como esses processos de
desenvolvem, valendo-se da hibridização de tendências teóricas distintas, no âmbito dos
três contextos investigados por Ball (1994). (...)
García Canclini e suas análises da cultura estimulam a pensar que as coleções teóricas
com as quais usualmente o currículo é interpretado se dissolvem, produzindo associações
aparentemente contraditórias em nome de finalidades distintas daquelas entendidas como
originais. A cultura, que com Bernstein poderia ser pensada em termos de classificações de
categorias, identitariamente definidas por relações de poder, assume um caráter difuso, no
qual identidades e diferenças se mesclam e princípios de classificação não são mais
reconhecidos como tais. As descoleções, associadas às desterritorializações e
reterritorializações em espaços simbólicos e materiais, acabam por produzir os chamados
gêneros impuros, cuja impureza é conferida pela impossibilidade de classificá-los segundo
os modelos das antigas coleções curriculares classicamente definidas. (...) Ainda que
Canclini não focalize a discussão da ambivalência, ao afirmar que os poderes verticalizados
passam a ser entendidos como poderes oblíquos, pelos quais há descentramentos de poder,
aponta para a possibilidade de zonas de escape configuradas na nova cena cultural híbrida.
É por intermédio dos poderes oblíquos que ele espera poder compreender as situações de
29

sustentação mútua entre hegemônicos e subalternos, provocando a estranheza de setores


populares apoiarem aqueles que o oprimem. (...)
Canclini (s.d.) não deixa de situar que uma teoria crítica da hibridização precisa não
apenas descrever as novas mesclas formadas, mas entender o processo de hibridização,
identificando o que não quer e o que não pode ser hibridizado. Como discute Bhabha
(2001), o híbrido não é um terceiro termo que resolve a tensão entre duas culturas em um
jogo dialético de “reconhecimento”. Mas como a autoridade se constitui pela perspectiva de
reconhecimento, a formação do híbrido, característica dos processos de negociação
necessários ao exercício da autoridade, coloca em crise esse reconhecimento, ao gerar
desvios ambivalentes e sentidos imprevisíveis. Na própria dinâmica da imposição de
determinados sentidos e significados e na busca de legitimação para os mesmos é que as
cisões se expressam produzindo ambivalências e desarticulando a autoridade. A tentativa
do discurso colonial opressor, como discute Hall (2003), é a de saturar tudo, se assumir
como absoluto, mas como igualmente há necessidade do reconhecimento desse discurso, há
necessidade de negociar sentidos e significados para garantir sua própria autoridade,
gerando efeitos inesperados que escapam ao controle.
O entendimento da recontextualização como desenvolvida por processos híbridos
abre a possibilidade, portanto, para pensarmos a recontextualização nos termos da lógica
cultural da tradução (Hall, 2003). Não se trata de um processo de assimilação ou de simples
adaptação, mas um ato em que ambivalências e antagonismos acompanham o processo de
negociar a diferença com o outro. O espaço simbólico da recontextualização passa a ser
entendido como um espaço de negociação de sentidos e significados, a construção de uma
“comunidade imaginada” – para usar uma expressão cara a Appadurai -, visando a negociar
a identidade com a cultura produzida.

Extrato 2 – fonte: Quem defende os PCN para o ensino médio? In: LOPES, Alice
Casimiro & MACEDO, Elizabeth (org.). Políticas de currículo em múltiplos contextos, Ed
Cortez, 2006.
Selecionar um corpo de saberes como capaz de compor uma cultura comum e
transmitir essa cultura implica interpretar tais saberes, associá-los a determinadas práticas e
instituições específicas e obrigatoriamente reconstruí-los, produzindo novas culturas. Ou
30

seja, o próprio processo de construir uma cultura entendida como comum produz uma
pluralidade cultural que nega a cultura comum.
Hall (1997) contribui para o entendimento desse processo ao sinalizar como cada
instituição e cada prática social engendram seu próprio universo de significados e práticas,
portanto, sua própria cultura. A clássica separação entre o material e o simbólico se
dissolve, não significando com isso a inexistência do material, mas o entendimento de que
toda prática social depende e tem relação com significados, depende de discursos que a
constituem como prática (Hall, 1997). A cultura é sempre plural e multifacetada,
constituída pelas diferentes formas segundo as quais a realidade é interpretada e pelas
diferentes realidades constituídas nessa interpretação. Por isso, em tempos de centralidade
da cultura, a questão da diferença também se torna central. Definir uma cultura como
comum é pretender uma homogeneidade que mascara e silencia as diferenças. Ao invés de
serem concebidas diferentes formas de significação do mundo, o projeto da cultura comum
busca impor uma única forma ou uma forma primordial de significação, como a mais certa,
mais correta e a única capaz de garantir as finalidades pretendidas, sejam elas democráticas
ou não.
Particularmente no que concerne ao currículo, é preciso considerar que já existem
diversos mecanismos sociais que regulam a cultura e contribuem para determinados
direcionamentos comuns. A formação de professores, os livros didáticos, a mídia, a
organização disciplinar são apenas alguns desses mecanismos pelos quais a regulação do
currículo se desenvolve. Instituir um currículo nacional implica o aprofundamento desses
processos de regulação, pois tal currículo, associado aos processos de avaliação
centralizada, passam a atuar sobre todos os demais mecanismos sociais já existentes e
tendem a promover a tentativa de colonização das práticas em uma dada direção. Embates
permanecem ocorrendo, híbridos culturais são construídos, como já discuti aqui, a
heterogeneidade permanece como marca do processo, porém um padrão como garantidor
de determinados fins passa a ser utilizado de forma a ampliar a regulação da cultura,
estabelecendo tal marco regulatório como desejável, apropriado e fundamental para a
produção do currículo nas escolas.

Extrato 3 - Discursos nas Políticas de Currículo In Currículo sem Fronteiras, v. 2, 2006.


31

Na medida em que toda política de currículo é uma política cultural, tanto sua análise
a partir da derivação dos processos econômicos e de classe, nos quais o Estado está
inegavelmente engendrado, quanto seu deslocamento fetichizado dessas relações exclui
dimensões importantes das lutas sociais para dar sentido a algumas dinâmicas da cultura e,
particularmente, do conhecimento.
Com base na análise de Stuart Hall (2003) sobre os limites da concepção de ideologia
em Marx, considero produtivo afirmar a determinação em primeira instância da cultura pela
economia. A economia fornece um repertório de categorias culturais, delineando contornos
do pensamento, mas não define nem fixa os conteúdos particulares do pensamento de uma
classe ou grupo social. O Estado, no sentido ampliado analisado por Gramsci, ao engendrar
determinada estrutura econômica, associada ao modo de produção capitalista, não
determina os sentidos das políticas nem é capaz de saturar todo tecido social com sua
lógica, mas limita a matéria-prima do pensamento (Hall, 2003) e estabelece possíveis
sistemas de representação. Para o entendimento das políticas de currículo como políticas
culturais, tais sistemas de representação – o mercado, a produção, o consumo, a cultura
comum, o currículo nacional – precisam ser considerados, de forma a entender seus efeitos
discursivos, simultaneamente simbólicos e materiais.
A essa análise podemos associar o questionamento que Laclau e Mouffe (2001)
fazem da visão essencialista do papel da economia, e por conseqüência, das classes sociais
nas análises marxistas. Esses autores não abandonam as discussões teóricas marxistas, mas
buscam repensá-las à luz das relações sociais e dos processos históricos do século XX.
Defendem, então, que o espaço econômico é constituído politicamente, de forma
hegemônica, e a constituição dos sujeitos políticos não é conseqüência direta de suas
posições nas relações de produção, pois não são essas posições que garantem o
antagonismo desses sujeitos em relação ao capitalismo. Esse antagonismo pode ser
produzido por outras posições, como as de gênero ou raça, dependendo, portanto, de
dinâmicas contingentes. O desafio na constituição de uma nova hegemonia é construir
processos de articulação em que a identidade hegemônica não seja constituída a priori, de
fora do processo, e no qual uma dada particularidade possa assumir certo nível de
universalidade provisório e reversível.
32

Nesse sentido, Laclau e Mouffe afirmam existir uma disputa entre discursos que
constituem o Estado, mas nessa luta o discursivo não é visto apenas como superestrutural
ou referente ao campo das idéias. Trata-se de uma disputa pelas condições materiais
engendradas nesse discurso constituinte do antagonismo social. Um antagonismo que nunca
é superado, por ser inerente à atividade política democrática.

Referências
GARCÍA CANCLINI, Néstor, (2001). Definiciones en transición. Buenos Aires:
CLACSO. Disponível em: http://www.clacso.edu.ar/~libros/mato/canclini.pdf Acesso
em 30/04/2003.
HALL, Stuart (1997). A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tempo.
Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 22, n. 2, jul/dez, p.15-46.
HALL, Stuart (2003). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte,
Editora UFMG.
LACLAU, Ernesto (1993). Poder y Representación.
LACLAU, Ernesto & MOUFFE, Chantal (2001). Hegemony and socialist strategy,
Londres, Verso.
33

OBSERVATÓRIO DE CULTURA ESCOLAR: as potencialidades da


centralidade da(s) cultura(s) para as investigações no campo do currículo

Eurize Caldas PESSANHA e Fabiany de Cássia Tavares SILVA (PPGEdu—UFMS).

O equilíbrio entre escola e cultura parece ser a tarefa mais atual do currículo, uma
vez que tal equilíbrio constitui uma das primeiras condições para a escola planejar a
atenção à diversidade educacional em todos os seus níveis. A compreensão da cultura
enquanto práxis, o significado de cultura como conjunto de práticas que conferem
determinados significados a indivíduos e grupos e, porque não dizer, à escola, insere-se no
propósito de oferecer uma possibilidade de análise do currículo escolar como prática
cultural.
Essa possibilidade vem sendo materializada no interior do/no Observatório de Cultura
Escolar e, para tanto, temos utilizado referenciais teórico-metodológicos que entendemos
responder nossa agenda de pesquisas, de estudos e de produções acadêmicas. Partimos da
análise da cultura escolar, pois ela tem nos permitido evidenciar as ligações profundas que
unem escola e cultura no todo sócio-histórico: a generalização da forma escolar (lugar
específico separado, baseado na objetivação-codificação-acumulação dos saberes), a
constituição do aluno médio, a progressiva autonomia das práticas, a generalização da
aprendizagem, e a construção de uma relação hierarquizada entre os iguais e os diferentes.
Essas ligações estão sendo organizadas como elementos constitutivos do currículo e, nesse,
sentido ele é uma seleção de cultura serve a uma sociedade ou a uma visão de como esta há
de ser, “a seleção considerada apropriada depende das forças dominantes de cada momento
e dos valores que historicamente se foram perfilando.” (GIMENO-SACRISTAN, 1998,
p.178)

O(s) conceito(s) de cultura: fundamentos das análises do/no Observatório

Para aprofundarmos nossos estudos e pesquisas sobre cultura escolar temos nos
proposto, primeiramente, mapear com rigor o(s) conceito(s) de cultura, trazidos à tona pelas
áreas da Sociologia, da Antropologia, da História e dos Estudos Culturais, principalmente,
34

da/na área da Linguagem e da Literatura. Essa rigorosidade nos tem permitido diferentes
diálogos com a definição de cultura, na perspectiva de fugirmos da armadilha de
transformar ”escolar” em seu adjetivo.
Nesse sentido, não nos furtamos ao estabelecimento de diálogos entre os autores,
não no sentido de sustentação do conceito de cultura escolar, mas porque eles nos permitem
construir referências para a análise da cultura como a organização dos significados e dos
valores de determinados grupos sociais e como campo de confronto desses grupos, no qual
as práticas culturais só podem ser entendidas no interior do processo de valorização do
capital8.
Assim sendo, estabelecer diálogos entre diferentes autores não é uma prática
simples tão pouco fácil, pois manifestam por/em diversos olhares sobre a relação Cultura X
Sociedade. Williams, um dos investigadores da Sociologia da Cultura, argumenta que tal
dificuldade pode ser encarada de modo mais proveitoso como o resultado de “formas
precursoras de convergências de interesses”. Dentre essas formas, ele destaca duas
principais:

a) ênfase no espírito formador de um modo de vida global, manifesto por


todo o âmbito das atividades sociais, porém mais evidente em atividades
‘especificamente culturais’ – uma certa linguagem, estilos de arte, tipos de
trabalho intelectual; e b) ênfase em uma ordem social global no seio da qual
uma cultura específica, quanto a estilos de arte e tipos de trabalho
intelectual, é considerada produto direto ou indireto de uma ordem
primordialmente constituída por outras atividades sociais. (WILLIAMS,
1994, p. 11-12)

Assim, é no processo de inter-relacionar a cultura e os sistemas sociais que esse


autor analisa as interfaces entre a cultura e a ideologia, essa entendida como uma

8
Segundo Bourdieu (1988), a destruição das bases econômicas e sociais das aquisições culturais
da humanidade, que se verifica nas sociedades neoliberais contemporâneas, tem, crescentemente,
subordinado a esfera cultural aos interesses econômicos, empresariais, burocráticos ou estatais
dominantes, tornando-a cada vez mais dependente desses mesmos interesses.
35

visão de mundo ou perspectiva geral característica de uma classe ou grupo social,


a qual inclui crenças formais e conscientes, mas também atitudes, hábitos e
sentimentos menos conscientes e menos articulados ou, até mesmo, pressupostos,
posturas e compromissos inconscientes (WILLIAMS, 1992, p. 25).

Como se pode observar, aqui há uma especial afirmação subliminar, qual seja, nem
toda produção cultural é uma produção ideológica, ou pelo menos, não deve ser vista assim,
mesmo que a generalização dos conceitos de ideologia e de cultura permita essa
aproximação: “Dizer que toda prática cultural é necessidade ‘ideológica’ não quer dizer
nada mais (...) senão que toda prática é significativa” (WILLIAMS, 1992, p. 28).
Essa idéia aponta para o entendimento da cultura como um sistema de significações
realizado, voltado a abrir “espaço para o estudo de instituições, práticas e obras
manifestamente significativas”, mas não apenas isso, como também para “por meio dessa
ênfase, estimular o estudo das relações entre essas e outras instituições, práticas e obras”
(WILLIAMS, 1992, p. 207-208).
Com Certeau (1998) encontramos algumas respostas para os estudos das relações
entre as instituições e as práticas, ao apontar a cultura como ciência prática do singular que
faz dos espaços público e privado um “lugar de vida possível”. Tal prática singular está
determinada pelos comportamentos, pelas instituições, pelas ideologias e pelos mitos que
compõem quadros de referência e cujo conjunto, coerente ou não, caracteriza uma
sociedade como diferente das outras. Práticas de pessoas comuns, isto é, maneiras de fazer
que, majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes senão a título de resistência ou
inércia em relação ao desenvolvimento da produção sócio-cultural.
Para aprofundarmos estudos sobre os quadros de referência de que fala Certeau
(1998), o colocamos para dialogar com Williams (1992) e Elias (1994). Este último entra
em nossa agenda a partir da sintetização dos termos kultur (germânico; usado para
simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade) e civilization (francês; refere-
se principalmente às realizações materiais de um povo) no vocabulário inglês Culture.
Segundo Elias (1994) a cultura pode ser objeto de estudo sistemático por se tratar de um
fenômeno natural que possui causas e regularidades, o que permite um estudo objetivo e
36

uma análise capazes de proporcionar a formulação de leis sobre o processo cultural e sua
evolução, o que marca o caráter de aprendizagem da cultura. Nesse sentido, refere-se
basicamente a fatos intelectuais, artísticos, religiosos e, apresenta a tendência de traçar uma
linha divisória entre fatos religiosos e fatos políticos, econômicos e sociais.
Na tentativa de melhor entendermos esse caráter de aprendizagem da cultura,
chegamos ao conceito de cultura defendido por Geertz (1989), apreendido como o mais
semiótico deles, qual seja: “sistema entrelaçado de signos interpretáveis”. Esse autor não
concebe cultura como um poder, algo ao qual possam ser atribuídos casualmente os
acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos. Para tanto,
afirma que cultura é “um contexto, algo dentro do qual eles [acontecimentos sociais,
comportamentos, instituições, processos] podem ser descritos de forma inteligível – isto é,
descritos com densidade” (GEERTZ, 1989, p. 24).
Ao aproximarmos Elias (1994) e Geertz (1989) identificamos a ascendência de
Weber no pensamento dos autores, particularmente, no que se refere à interpretação de que
o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumindo a
cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado.
Os resultados, ainda que iniciais, desse cruzamento encontram eco nas idéias de
Pérez-Gómez (2001), uma das referências na discussão da cultura escolar na sociedade
neoliberal, ao afirmar que a cultura requer interpretação mais do que explicação causal,
visto que ela é um fenômeno radicalmente interativo e hermenêutico. Para esse autor,
conhecê-la “é um empreendimento sem fim. O próprio fato de pensá-la e repensá-la, de
questioná-la ou compartilhá-la supõe seu enriquecimento e sua modificação. Seu caráter
reflexivo implica sua natureza cambiante, sua identidade autoconstrutiva, sua dimensão
criativa e poética” (PÉREZ GÓMEZ, 2001, p. 15).
Para tanto, interrogamos o próprio conceito de cultura escolar no sentido de que
tome a solidez e elasticidade capazes de abrigar a complexidade das práticas sociais e dos
sentidos do/no/pelo currículo.
37

Currículo como cultura da escola e cultura escolar 9

Pressupomos diante das reflexões acima, que o currículo está circundado pela idéia
de uma seleção da cultura, isto é, escolhas que se faz em amplo universo de possibilidades,
considerando a cultura como espaço em que significados se produzem.
No entanto, nosso foco de análise está em outra direção, o campo de cruzamento de
culturas no interior das escolas, no qual se estabelecem os acordos, se resolvem os
conflitos, se materializam as relações de poder, ou seja, a cultura escolar como componente
determinante do currículo e, não, como aferidora de autonomia às práticas.
Se a concepção de currículo corresponde às experiências pedagógicas em que a
escola e seus indivíduos arquitetam e restauraram os conhecimentos, se cabe a escola por
meio dos administradores, dos professores e dos alunos a participação ativa no processo de
planejamento e de desenvolvimento de tais experiências, é impossível a ocorrência do
desenvolvimento curricular, caso desconsideremos a existência de práticas singulares, ou a
cultura escolar.

(...) a educação não transmite jamais a cultura, considerada como um


patrimônio simbólico unitário e imperiosamente coerente. Nem sequer
diremos que ela transmite fielmente uma cultura ou culturas (...): ela
transmite, no máximo, algo da cultura, elementos da cultura, entre os quais
não há forçosamente homogeneidade, que podem provir de fontes diversas,
ser de épocas diferentes, obedecer a princípios de produção e lógicas de
desenvolvimentos heterogêneos e não recorrer aos mesmos procedimentos
de legitimação (FORQUIN, 1993, p. 15)

Para Forquin, a palavra cultura, quando expressa transmissão cultural da escola, só


pode ser entendida como um patrimônio de conhecimentos, competências, instituições,
valores e de símbolos constituídos ao longo de gerações e característico de uma
comunidade humana particular, definida de modo mais ou menos amplo e mais ou menos
exclusivo (FORQUIN, 1993, p. 12). Nesse sentido, a cultura escolar é uma caracterização,

9
De acordo com a diferenciação operada por Forquin (1993).
38

uma reconstrução da cultura realizada em razão das próprias condições na qual a


escolarização reflete pautas de comportamento, pensamento e organização.
Desse modo, podemos pensar no currículo como intenção e realidade que ocorrem
num contexto determinado, ou como resultado de decisões tomadas em vários contextos.
Dentro dessa perspectiva dinâmica e processual, o currículo, é uma interseção de práticas,
também culturais, com a finalidade de responder a situações concretas.

Referências
BOURDIEU, Pierre. Contre-feux. Paris: Liber Raison D’agir, 1988.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano (v.1 – Artes de Fazer). 4ª ed. Tradução:
Ephraim Ferreira Alves, 1998.
______. GIARD, Luce & MAYOL, Pierre. 1998. A invenção do cotidiano (v.2 – Morar,
cozinhar). Tradução: Ephraim Ferreira Alves e Lúcia Endlich Orth. Rio de Janeiro: Vozes,
1998.
CEVASCO, Maria Elisa. Sétima Lição – Diálogos Pertinentes: marxismo e cultura. IN:
______. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, pp. 119-
137.
EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. Lisboa: Temas e Debates, Colecção Memória do
Mundo, 2003.
ELIAS, Norbert. Da sociogênese dos conceitos de “civilização” e “cultura”. IN:_____. O
processo civilizador (vol 1). Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
FORQUIN, J. Claude. Escola e Cultura: a sociologia do conhecimento escolar. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1993.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São Paulo: LTC, 1989.
GIMENO-SACRISTAN, J. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre, RS:
ArtMed, 1998.
PERÉZ-GOMÉZ, A. I. A Cultura Escolar na sociedade neoliberal. Tradução: Ernani
Rosa. Porto alegre: Artmed Editora, 2001, Introdução.
WILLIAMS, R. Cultura. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992.
39

Cultura Científica, Cultura Escolar, Cultura Juvenil e Cultura Popular


no currículo de Química no Ensino Médio - um coro de vozes: quão
afinado, quão desafinado?
Murilo Cruz Leal - Departamento de Ciências Naturais / Universidade Federal de São João
del-Rei,
FUPE: Grupo Multidisciplinar de Pesquisa em Fundamentos da Prática Educativa
NAEB: Núcleo de Apoio à Educação Básica

O presente projeto constitui parte de um programa de pesquisa10 que objetiva


estabelecer um conjunto de reflexões sobre currículo e inovação curricular em Química.
Normalmente, na área das Ciências Exatas ou Naturais (ambos os termos são imprecisos), a
discussão curricular costuma constituir-se sobre conceitos tradicionais tais como “ensino,
aprendizagem, avaliação metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência,
objetivos”.11 Buscando ampliar nossa compreensão da complexidade da questão curricular,
currículo entendido em sua natureza dinâmica e processual, enquanto ente social e
historicamente constituído, enfatizaremos em nossa abordagem os conceitos: identidade,
alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso e saber-poder.12 Trazemos
conosco o pressuposto de que o insucesso escolar pode estar associado às oposições,

10
A tal programa, intitulado Ouvindo vozes com a metalingüística de Mikhail Bakhtin: em busca de novas
compreensões acerca do ensino de química, interessa estabelecer uma rede de compreensões envolvendo os
processos de formação de professores (os agentes realizadores de currículos), de inovação curricular, de
justificação das práticas correntes e de sucesso e insucesso escolar, relacionados às concepções do que é um
saber legítimo e de quais são os objetivos da escolarização (conforme materializadas nos currículos).
11
Tomaz Tadeu da Silva elaborou um mapa dos estudos sobre currículo, desde sua gênese
nos anos vinte, onde aparecem três categorias de teorias do currículo, com base nos
conceitos que são enfatizados. As teorias tradicionais enfatizam “ensino, aprendizagem,
avaliação metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência, objetivos”. As
teorias críticas enfatizam “ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social,
capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação,
currículo oculto e resistência”. Finalmente, as teorias pós-críticas enfatizam “identidade,
alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação,
cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo” (1999, p. 17).
12
Nosso intuito é contribuir para, como sugere Peter Fensham, superarmos a percepção da educação científica
“em um vácuo social e político” (1995, p. 411).
40

estabelecidas nas práticas e nos discursos, entre as culturas dos estudantes, de fora da escola
(cultura popular, cultura juvenil), e aquelas representadas pela instituição escolar (cultura
culta, cultura científica). Por conta disso, pensamos que nossas reflexões acerca do ensino
de Química precisam passar a enfatizar conceitos tais como os elencados acima. Os
conceitos de “vozes” e “polifonia”, dentre outros, habitantes da matriz analítico-conceitual
constituída por Mikhail Bakhtin, tomam a frente em nosso empreendimento investigativo.

OBJETIVO

Neste projeto, pretende-se, em sentido amplo, discutir as relações entre o sucesso e


o insucesso escolar e as concepções de saber legítimo e de objetivos da escolarização,
conforme materializadas nos currículos.

As questões que aparecem no Programa de Pesquisa (acima referido) e que se fazem


presentes neste sub-programa são:

• qual é a relação entre currículo e aprendizagem (e sucesso escolar)?


• qual relação entre diferentes saberes – científicos, populares etc. – está pressuposta
na atual
estrutura escolar-curricular?
• como os estudantes se apropriam da cultura escolar?

Mais especificamente, temos o objetivo de abordar os focos de tensão e articulação entre


as diferentes culturas em jogo na constituição de identidades de jovens entre 15 e 20 anos
de idade, pertencentes às classes populares, destacando-se as influências do sistema escolar
público, em geral, e das aulas de Química, em particular, identidades essas situadas no
horizonte formatador de desenhos e práticas curriculares.13 O insucesso escolar, como

13
Falemos um pouco do conceito de identidade, explicitando sumariamente o modo como o
concebemos no contexto de nossa ênfase em processos discursivos. Bakhtin escreveu:
“Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à
coletividade”(1929/1981, p. 113). Dessa forma, podemos considerar, com base em Bakhtin,
que a palavra (o discurso, o texto) é o local onde se definem identidades que são sempre
41

estamos pressupondo, estaria relacionado à mútua negação aluno versus escola, podendo,
desse modo, ser considerado um atributo da identidade projetada para jovens das classes
populares (“indisciplinados”, “desinteressados”, “nem aí!”).

Numa representação esquemática simples, apresentamos algumas “vozes” presentes no que


estamos denominando conjunto (certamente incompleto) de elementos definidores das
identidades dos jovens das camadas populares:

Cultura dominante
Cultura juvenil Cultura culta
Cultura popular Cultura escolar
Cultura cientifica

Santomé (1995) inclui as culturas juvenis no rol das “culturas negadas e silenciadas
no currículo” (p. 159), das “vozes ausentes na seleção da cultura escolar” (p. 161). Claude
Grignon, ao discutir as relações entre cultura dominante, multiculturalismo popular e
cultura escolar, enfatiza a ação monoculturalista da escola e ressalta o papel do ensino de
ciências e de matemática na “função de integração lógica desempenhada pela escola”:

tais instrumentos (o ensino de ciências e de matemática) veiculam e fazem interiorizar a


idéia da superioridade dos saberes gerais e universais sobre os saberes particulares e
locais, da teoria sobre a cultura prática, do pensamento abstrato sobre a experiência
concreta (1995, p. 181).

relacionais. A esse respeito, Marisa Vorraber Costa, evocando o pensamento de Michel


Foucault, diz o seguinte: “o sujeito unificado e poderoso da filosofia moderna passa a ceder
lugar ao sujeito descentrado, pós-moderno, despojado de uma identidade fixa, essencial ou
permanente. [...] A linguagem, as narrativas, os textos, os discursos não apenas descrevem
ou falam sobre as coisas, ao fazer isso eles instituem as coisas, inventando sua
identidade”(2000, p. 31-32). E Tomaz Tadeu complementa: “Por meio do processo de
significação, construímos nossa posição de sujeito e nossa posição social, a identidade
cultural e social de nosso grupo, e procuramos constituir as posições e as identidades de
outros indivíduos e de outros grupos. Produzimos significados e sentidos que queremos que
prevaleçam relativamente aos significados e aos sentidos de outros indivíduos e de outros
grupos (SILVA, 2001, p. 21).
42

Cultura escolar, cultura científica, cultura popular e cultura juvenil, dentre outras
“entidades” de nosso interesse, são vistas como “vozes”, diferentes perspectivas conceituais
e ideológicas, de acordo com o conceito de polifonia de Mikhail Bakhtin. Vejamos este e
outros conceitos centrais da estrutura metodológica proposta para o presente projeto.
43

Interdisciplinaridade e Ciência do Sistema Terra como eixos para o


ensino básico
Pedro Wagner Gonçalves (Instituto de Geociências, UNICAMP) e Natalina Aparecida
Laguna Sicca (Mestrado em Educação, Centro Universitário Moura Lacerda)
Participantes: professores do ensino básico de Ribeirão Preto, assistentes técnicos da
Oficina Pedagógica da Diretoria de Ensino da Região de Ribeirão Preto, alunos de pós-
graduação (Programa de Mestrado e Doutorado em Ensino e História de Ciências da Terra
do Instituto de Geociências – IG-UNICAMP) do e Mestrado em Educação do Centro
Universitário Moura Lacerda) e de graduação (IG-UNICAMP)

Introdução
As atividades de pesquisa do Grupo de Estudos Interdisciplinaridade e Ciência do
sistema Terra como eixos pra o ensino básico perseguem o campo complementar em que
se cruza elementos microcurriculares e formação de professores. Persegue-se certas
referências que contribuem para orientar inovações curriculares coletivamente planejadas e
aplicadas por professores do ensino básico e, ao mesmo tempo, indicam trajetórias para
construir o currículo do programa de formação de professores (Beane, 2003; Apple, 1995;
Apple & Beane, 2003; Rodriguez & Garzón, 2003; Contreras, 1997; Gimeno & Pérez,
1998).
Busca-se orientar a reflexão de formadores de professores (pesquisadores da
universidade e assistentes técnicos de órgão da Secretaria da Educação do Estado de São
Paulo) e dos próprios professores do sistema estadual de educação em torno dos problemas
de ensino e de aprendizagem que acham-se vinculados às múltiplas dimensões do processo
educativo (institucional, legal, histórico e sociológico).
O presente texto visa indicar quais trajetórias de pesquisa foram perseguidas, quais
foram seus principais resultados e como foram construídos em um processo de pesquisa
qualitativa realizado em cidade do interior do Estado de São Paulo.

Fundamentação teórica
A literatura sugere certa indefinição quanto ao conteúdo e abrangência do que deve
compor a formação de professores para capacitá-los para o ensino e pesquisa (Wilson,
44

2006). O que deve ser o padrão e o núcleo da formação de professores: experiência prática
e profunda dos problemas do ensino formal e não formal; ensino a distância e seus
possíveis papéis para educação; o saber de como usar experiências de campo ou projetos de
pesquisa curriculares para melhorar o ensino; domínio de tecnologias de informação para
trabalhar com alunos; ampla concepção histórica, teórica e empírica da educação e da
formação de professores; etc.? Diante de tais perguntas, poderíamos ser tentados a dizer
que os aspectos listados e, de fato, muitos outros, fazem parte do campo de trabalho do
professor e, portanto, seriam desejáveis para quaisquer pesquisadores sobre formação de
professores. Mesmo que restringíssemos ao que seria importante para formar pesquisadores
o desafio permaneceria; o bom pesquisador deve conhecer e ser capaz de usar distintas
metodologias de pesquisas e deve estar consciente da variedade de métodos que faz parte
da pesquisa disciplinar em educação.
Diante da dificuldade de construir uma proposta curricular de formação de
professores tão abrangente, a opção foi restringir o conhecimento a parcela do saber que foi
pobremente desenvolvida na formação inicial dos professores. Dessa maneira, é feita uma
clara opção em defesa da necessidade de incluir no processo educacional do ensino básico
conhecimento geológico: como o ciclo da água funciona ao longo do tempo geológico. É
importante assinalar que a decisão sobre a delimitação temática contou com a participação
e interferência dos próprios professores do sistema estadual.
A delimitação temática em torno do ciclo da água e do tempo geológico implicou
aproximar a pesquisa de debates sobre ensino e aprendizagem de temas da Ciência do
sistema Terra (Ben-Zvi-Assarf & Orion, 2005 a e b; Dickerson & Dawkins, 2004;
Shepardson et al., 2005; Orion & Kali, 2005)
A aproximação com os problemas do Ensino de ciências contribuiu para construir
uma parte dos indicadores de como a concepção dos professores muda ao longo do tempo.
Foram privilegiadas noções ambientais: a água, a natureza, a cidade, bem como de suas
inter-relações naturais e urbanas. O processo interativo propiciado pelo Grupo de Estudos
sugere algumas possibilidades de educação continuada para professores. Van Driel &
Verloop (2002), Greca & Moreira (2000), Harrison & Treagust (2000), Treagust et al.
(2002) servem tanto para construir indicadores de modelos mentais adotados pelos
professores para compreender o mundo, quanto para ensinar a seus alunos.
45

O cruzamento dos aspectos vinculados ao entendimento da dinâmica de ensino e


aprendizagem de Geologia com o conceito de integração curricular contribui para os
professores refletirem sobre sua atitude diante do ensino, dos alunos e da pesquisa
educacional. Como modo de contribuir para uma atitude observadora, voltada ao
entendimento das dificuldades do ensino e visando obter uma avaliação um pouco mais
distante do que a simples reflexão sobre seu próprio trabalho, adotou-se a pesquisa por
meio de parcerias entre duplas de professores (conforme é sugerido pela pesquisa de
Burbank & Kauchak, 2003).
Para criar um espaço de integração curricular adotou-se a idéia de que o currículo
possui distintas dimensões e que cada professor é um agente ativo ao formular o currículo
de acordo com as características de seus alunos (Gimeno, 2000).
É importante assinalar que a integração curricular aqui perseguida mantém as
disciplinas ministradas por cada professor, não apenas porque essa é uma das mais fortes
marcas dos currículos durante o século XX mas, também, porque aceitamos argumentos
favoráveis à disciplinaridade como aqueles expostos por Shulman (2002): o que os
professores precisam saber para ensinar matemática no nível médio é diferente do que é
preciso saber ensinar história no ensino fundamental.
Isso conduziu ao esforço de introduzir inovações curriculares nas distintas
disciplinas ministradas pelos membros do Grupo de Estudos (Ciências, Biologia, Física,
História, Matemática, Química).

O que avançou e aprofundou a discussão de 2005 para 2006?


Há um ponto absolutamente decisivo que é a realização de uma inovação curricular.
Mesmo considerando que a maioria dos professores do Grupo de Estudos é constituída por
pessoal experiente, a introdução de mudanças de rotinas (selecionar, delimitar e organizar
conteúdos para os alunos) gerou inseguranças mas, ao mesmo tempo, trouxe satisfação
pelas atividades realizadas.
A inovação empreendida por cada professor perseguiu os eixos definidos
coletivamente, ou seja, contextualizar tópicos previstos por meio de abordagem sistêmica e
temporal (histórica) do ciclo da água. Trata-se de uma possibilidade de refletir sobre o que
ensinar, muito além de usais discussões restritas ao como ensinar. Assinalamos as
46

considerações de Izquierdo (2005) sobre as múltiplas dimensões que devem ser


consideradas na Didática de ciências (humanista, social, histórica, econômica, etc.).
Além disso, a participação de professores em congressos educacionais para expor
experiências e reflexões sobre a inovação curricular realizada trouxe um impulso para o
engajamento na pesquisa sobre a prática.
Os eixos que presidem a inovação curricular são o ciclo da água, a teoria de
sistemas, o local e a cidade, o tempo geológico. Estes eixos dependem de uma articulação
interdisciplinar que é obtida pelo coletivo composto por professores de distintos
componentes curriculares, diferentes escolas, pesquisadores de distintas áreas e assistentes
técnicos da Oficina Pedagógica.
O arranjo institucional contribui para enfrentar certos hábitos e crenças amplamente
compartilhados pelos professores: Carroll (2005, p.470) assinala que a cultura tradicional
da escola raramente prepara os professores para valorizar aspectos práticos ou para validar
a pesquisa coletiva feita pelos práticos. Continua: a experiência com desenvolvimento
profissional mostra que os professores são preparados mais para ver o conhecimento como
algo que vem de fora e quase não é incentivada a perspectiva de conjuntamente construir o
conhecimento em torno de sua prática. Em anos recentes, muitos professores têm seguido
os passos de quebrar epistemologicamente esse padrão.
O esforço realizado de pesquisa conjunta opera em um campo que pretende
enfrentar esse cotidiano e criar condições favoráveis à autonomia do professor em torno dos
três valores revelados por Contreras (1997) – obrigação moral, compromisso com a
comunidade e competência profissional.
Os professores começaram a preocupar-se com certos aspectos anteriormente
desprezados, passaram a dar mais atenção a como incorporar conhecimentos da cultura e da
comunidade para construir o contexto do ensino. Esse corresponde a características
desejadas para o professor, como é assinalado por Darling-Hammond (2006).
O currículo da formação dos professores do Grupo de Estudos valoriza um ponto
educacional central: o conhecimento do professor e a atitude dele diante do ensino, dos
colegas e da escola deve ser o de aprender a partir da prática e aprender para desenvolver a
prática. No momento em que professores fazem levantamentos sobre aspectos físicos,
sociais e históricos da cidade, estão reunindo condições e articulando esforços que
47

modificam seu trabalho em sala de aula. É uma importante mudança de atitude diante da
cidade e dos colegas (tanto os da mesma disciplina, quanto os de disciplinas distintas).
O envolvimento do professor para dominar o conteúdo específico e transmitir o
conhecimento produzido aos alunos é algo parcialmente ligado com o compromisso de
avançar o conhecimento dos alunos, algo intrinsecamente associado aos compromissos
pessoais e profissionais dos membros do Grupo de Estudos.

Quadro sinótico das pesquisas relativas ao Programa criado pelo Grupo de Estudos
Interdisciplinaridade e Ciência do sistema Terra como eixos pra o ensino básico

No atual estágio de desenvolvimento, as atividades de pesquisa propiciadas pelo


Grupo de Estudos apresentam, ainda, certa dispersão e a incorporação de seus resultados ao
processo de reflexão dos professores não pode ser considerada orgânica (alguns professores
conseguem apropriar de modo mais consistente dados de pesquisas a seu trabalho, outros
fazem de forma mais incipiente). Em outros termos, embora nota-se um amadurecimento de
professores e pesquisadores há um espaço para aprofundar nexos somente esboçados.
O tópico ciclo da água tem a clara vantagem de poder ser utilizado por professores
de disciplinas tão distintas como Matemática e História. Tal vantagem introduz
significativa dispersão temática. As dificuldades de incorporação dos resultados de
levantamentos ao trabalho pedagógico e à pesquisa dos professores acha-se muitas vezes
limitada aos estudos feitos por eles mesmos.
Buscando agrupar as investigações realizadas, pode-se separar em dois blocos:
pesquisas educacionais e pesquisas de outras áreas do conhecimento. As primeiras
dedicaram-se a problemas de Ensino de geologia, indicadores sobre a mudança dos
professores diante do ensino e de seus alunos, estudos sobre livro didático, alteração do
modelo mental dos professores sobre o ciclo da água, descrições do processo curricular
vivido pelos professores do Grupo de Estudos.
No segundo bloco vamos encontrar pesquisas e levantamentos feitos por
professores, alunos de graduação e de pós-graduação voltadas para o estudo de vários
aspectos da cidade. A meta geral dos levantamentos é fornecer informações que possam ser
usadas pelos professores em suas aulas nas quais tópicos possam ser contextualizados pelo
48

conhecimento do local. Estudos da história da cidade, do saneamento, da agricultura e da


urbanização podem ser tratados como estudos regionais ou como pesquisas de história da
ciência e da técnica. Levantamentos do meio físico (geologia e hidrogeologia da cidade)
foram voltados para o conhecimento de microbacias hidrográficas exploradas como alvo
pedagógico pelos professores.

Discussão
O presente texto não explora detalhadamente quais são as razões que conduzem à
defesa de incluir conteúdos geológicos no ensino básico. Há motivos estratégicos quanto à
necessidade de conhecimento de como a Terra funciona para compreender os desafios
ambientais da sociedade científica e tecnológica; adicionalmente assinala-se a necessidade
de construir uma relação afetiva com o planeta; além disso, Geologia é uma ciência
hipotética, histórica e narrativa e o conhecimento dessa área pode ajudar a formar uma
atitude científica dos cidadãos. Autores que exploram os aspectos epistemológicos e
educacionais da Geologia servem de referência a esta abordagem: Frodeman, 2000;
Guimarães, 2004; Carneiro, Toledo & Almeida, 2004; Compiani, 2006).
As rupturas que foram operadas por meio do processo interativo propiciado pelo
Grupo de Estudos contribuem para mudar a concepção de planejamento e execução do
ensino: do trabalho individual, solitário e apoiado fundamentalmente no livro didático, o
professor passa a valorizar o planejamento coletivo inserido em um projeto pedagógico no
qual cruzam alvos de engajamento dos alunos e da comunidade em uma formação cidadã
dos alunos, inicia o uso de distintos materiais de apoio para preparar suas aulas (livros,
documentos históricos, memória de informantes da sociedade, fontes de órgãos públicos e
privados). Em conjunto trata-se de um engajamento do professor que contribui para
aumento da autonomia docente e, simultaneamente, altera a concepção de ensino e dos
alunos.
Nos elementos que compõem o ensino e a formação dos professores, o
conhecimento do assunto específico recebe especial ênfase no trabalho do Grupo de
Estudos. Observa-se interesse e engajamento dos professores no desenvolvimento de
tópicos específicos que possam dinamizar e aprofundar suas aulas – em grande parte isso
corresponde a necessidade de habilidades técnicas no domínio de instrumentos didáticos
49

(fato que se destaca devido a ausência desses conteúdos na formação inicial dos
professores). Dessa maneira, tópicos geológicos fazem parte do currículo construído junto
com os professores.
Outra parcela de instrumentos técnicos e políticos é delimitada pela inovação
curricular introduzida pelos professores em suas salas de aula. Estas põem a tona
dificuldades de ensino e aprendizagem anteriormente desprezadas ou simplesmente não
percebidas pelos professores.
O conhecimento geológico aplicado ao ambiente local ajuda a mudar a percepção
sobre como a água circula pela cidade e assinala as dificuldades dos alunos de compreender
o ciclo da água. Portanto, o professor do Grupo de Estudos pode tornar-se mais consciente
de sua atividade profissional e, ao mesmo tempo, modifica seu modelo de natureza, de ciclo
da água e de cidade.
Um alvo que articula a multiplicidade de ações pedagógicas e investigativas acha-se
em torno do projeto político e pedagógico de construir uma escola democrática e do papel
que é atribuído ao professor nesse processo de transformação do ambiente escolar. Adota-
se a perspectiva de que o professor deve ser um agente desse processo e, portanto, necessita
daqueles conhecimentos mencionados na introdução.

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52

A dimensão cultural no composto música, educação e currículo


Regina Marcia Simão Santos; Elza Lancman Greif; Neila Ruiz Alfonso; Sérgio Sansão
Simões

Instigado pela possibilidade de compreender as práticas curriculares para além das


que se constituem a partir do modelo comeniano e “conservatorial”, o grupo de pesquisa
institucional da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), na linha de
estudos sobre Ensino e Aprendizagem Musical, tem transitado pelo terreno
(etno)musicológico e pelo debate contemporâneo sobre pensamento pedagógico e
curricular, desfazendo as fronteiras entre didática e currículo e ressaltando o funcionamento
do currículo. Interessa ao grupo investigar espaços onde se dá algum processo de
educação/formação musical, o que compreende tanto a prática da educação básica como a
aula universitária, tanto a educação escolar como a que se dá em projetos comunitários e
por iniciativa de instituições culturais.
Sob a ótica deleuze-guattariana, toma os princípios do rizoma, as noções de plano
de imanência, plano de composição estética, liso e estriado para tratar da aula como plano
de composição e do currículo como paradigma estético. Considera algumas composições
com outros autores. Como parte do seu marco referencial conceitual, entende: (1) Música
como prática social de sujeitos em um contexto em que se relacionam indivíduos, grupos e
cultura; experiência massiva e singular; (2) Cultura como toda e qualquer produção
humana, “um conjunto de representações que se manifestam em discursos, imagens,
artefatos, códigos de conduta e narrativas, produzidas socialmente em relações permeadas
pelo poder” (Veiga-Neto, 2002, p. 177); (3) Cultura como pluralidade de trajetos, caminhos
interiores a um corpo e trajetos exteriores, ao invés de uma concepção da ordem da
reprodução-memória, arqueológica, “memorial, comemorativa ou monumental” (Deleuze,
1997, p. 75); cultura que produz a escuta “obediente”, do “hábito”, mas que também abriga
a escuta nômade; (4) Currículo como mapa-cartografia, plano de orientação, imanência, ao
invés de objeto a ser planejado e implantado (Sacristán, 1995); como produção de uma
matriz que fornece pistas, rede cultural (Santomé, 1998; Sacristán, 1999); (5) Currículo
como lugar de produção de significados e processos identitários (subjetividades),
53

diferenciação e hierarquização; como controle, autoridade e poder; como política cultural


(Silva, 2004).
Identifica-se com a idéia de “pós-currículo” (Corazza, 2002, p. 103-114), que debate
questões sobre processos de significação, políticas de identidade e da diferença, estética e
disciplinaridade, cultura popular, artefatos culturais. Currículo dos “diferentes-puros”, que
escuta o que os diferentes têm a dizer. E que pode acontecer em qualquer comunidade
formal ou informal, até em escolas.
Historicamente a educação musical tem sido marcada pela lógica dos
conservatórios, instituição moderna de ensino de música criada com a Revolução Francesa.
O conservatório elege carreiras e ideais de formação, com base na figura do solista-
virtuose; toma como base um repertório dado pelos critérios de verdade e essencialidade,
segmenta e hierarquiza o “popular” e o “erudito”; seleciona o conhecimento considerado
válido a partir de descrições sobre uma identidade ideal a ser atingida. Contudo, a própria
academia de música identifica os múltiplos perfis culturais dos seus alunos, quanto aos
repertórios, práticas e carreiras (Travassos, 1999).
O músico Antônio Jardim (2002) faz a crítica das escolas oficiais de música que
seguem o modelo “conservatorial” e destaca o privilégio dado à escrita como fonte de
conhecimento musical. Isso importa sobremaneira, visto que a cultura e a música brasileiras
se firmaram na transmissão oral e recepção aural. No conservatório, como dois códigos de
coleção separam-se os mundos da música popular e da música erudita. Interessa saber
como o currículo se articula com tais processos de diferenciação, como afeta e é afetado por
eles.
Como parte da investigação desse grupo de estudo, nas imbricações entre currículo
e cultura, consideramos aqui três cenários: o aprendizado de Choro na Escola Portátil de
Música e sua prática no “bandão”, pesquisa em andamento no Doutorado do Programa de
Pós-Graduação em Música (PPGM) da UNIRIO, por Elza Lancman Greif; o projeto funk
na rede cultural do Coro do Colégio Santa Úrsula, dirigido por Neila Ruiz Alfonzo, objeto
de investigação concluída no seu Mestrado no PPGM/UNIRIO; e o Dá no Coro, um projeto
coral multicultural universitário dirigido pelo mestrando Sérgio Sansão Simões há 11 anos,
pesquisa em andamento no PPGM/UNIRIO.
54

Currículo e cultura na Escola Portátil de Música e sua prática do “bandão”


A pesquisa Ensinar e Aprender Música: o “bandão” no caso Escola Portátil de
Música (EPM) considera estudos realizados sobre a filosofia de Simondon, Deleuze e
Guattari e sua possível aproximação aos domínios da Arte, da Música e da Educação
Musical. Pretende compreender como se dá a apreensão e realização da música por sujeitos
que atuam coletivamente, em um contexto em que se relacionam indivíduos, grupos e
cultura. Apóia-se nas noções de realidade pré-individual/realidade individuada, ação
transindividual e transdução para entender como se constituem o ser físico ou vivo, o
coletivo e o processo de conhecimento (Simondon, 1989). Aproxima tais noções das de
caos, ritornelo e rizoma, em Deleuze e Guattari, elementos que permitem pensar a
emergência de formas de sociabilidade, o seu caráter territorial e a produção de
conhecimento. Como uma dessas formas, está a EPM, onde sujeitos se reúnem em nome de
uma prática social e nela se reconhecem.
A EPM pode ser considerada como uma escola com um perfil traçado “não
oficialmente”. Criada em 2000 com o objetivo de promover o ensino do choro, hoje
funciona como projeto de Extensão Universitária na UNIRIO. Atende a uma comunidade
heterogênea em relação à idade e à formação. Na EPM o próprio aluno decide o seu
currículo. Uma das atividades oferecidas é a prática do “bandão”, uma aula coletiva, aula-
performance, que acontece no espaço Mário de Andrade, jardim do CLA. Entre o horário
das aulas da manhã e as da tarde de sábado, às 12h, os alunos vão instalando suas cadeiras e
estantes em lugares que parecem demarcados previamente para naipes ou instrumentos. O
repertório é constituído de choro, choro serenata, dobrado, maxixe, polca, polca choro,
samba, schottisch e valsa. Os alunos vêm de bairros e cidades diversas; chegam com uma
vivência musical diferenciada: uns estudaram música quando criança; outros
participavam/participam, como amadores ou profissionais, de grupos de diversos gêneros
musicais; outros ainda são professores de instrumentos ou de música em escolas regulares.
A partir da pesquisa exploratória recentemente realizada, destaca-se a articulação do
currículo com a vivência cultural e musical dos sujeitos que aí se encontram, oriundos do
universo do samba, da MPB, da bossa-nova, do rock, da música clássica, da batucada, do
maracatu, das tradicionais expressões do choro e deste na contemporaneidade. A
constituição de saberes e processos identitários é uma das questões que se abrem para quem
55

procura entender o currículo nas suas conexões com a cultura musical dos sujeitos aluno e
professor da EPM e sua prática no bandão.
A rede cultural numa prática coral infantil: uma trajetória a partir do funk
O Projeto Sons e Músicas Daqui, desenvolvido no Coral do Colégio Santa Úrsula
(2º sem/2001), envolveu 34 crianças da 2ª à 8ª série. O funcionamento do cotidiano
pedagógico e curricular nesse grupo coral pode ser entendido pela lógica do rizoma e seu
princípio de mapa (Deleuze & Guattari, 1995). No ambiente de trabalho, produz-se uma
rede cultural tomada como sistema aberto. Ao tratar dessa rede cultural - matriz de
conteúdo (Sacristán, 1999) -, a educação deve facilitar o trânsito entre as culturas, partindo
de onde o aluno está, para ir a zonas da rede distantes de “seu território”, pois “ninguém -
indivíduos ou povos - é fruto apenas de si mesmo” (p.182).
No primeiro encontro do projeto o coro relaciona elementos presentes no universo
dos bairros dos integrantes do coral. Tendo em vista a montagem de um repertório que
represente esse universo, traçamos juntos uma matriz de currículo que serviria à trajetória
do grupo. Do plano previamente traçado pela regente constava partir da música Rosa, de
Pixinguinha, do repertório dos seresteiros do bairro. Contudo, o funk surge do grupo
instabilizando a lógica traçada. Diversas direções surgem: “Funk não é música”, “Então o
que é música?”, “Tem que ter melodia”, “Posso ter música só com ritmo?” “O funk é
música, mas é música ruim”, “O que é música ruim e música boa?”, “Eu gosto do ‘batidão’,
não da letra!” “A música que faz sucesso é aquela que está na televisão”, “Moda muda toda
hora para a gente comprar mais”.
No segundo encontro, procuramos instabilizar tais representações. O ambiente de
aula se dá numa troca de CDs, num intercâmbio de questões e hipóteses: “O Gilberto Gil
canta funk?”, “Parece samba...”, “O Gil faz musica pop? “(...) a Fernanda Abreu faz
funk?!”; “Quem é Luiz Melodia?”; “Isso é funk?”; “Isso é funk atual?”. Ao som do grupo
Funk como Le Gusta, é feito um improviso corporal/vocal. O plano do ensaio ganha outras
direções: música pop, música das rádios, capoeira (som de atabaques numa música de O
Bonde do Tigrão) e critérios sobre o que é ou não do bairro abriram outras questões. O funk
toma muitas formas na rede cultural e no mapa-cartografia, produz devires e faz acontecer
o currículo-coro pelos critérios do interessante, notável e importante, numa composição
coletiva. No terceiro encontro, o funk do Gil serve a uma audição conjunta, resultando num
56

arranjo vocal a partir dos elementos destacados no grupo e na oficina de percussão


vocal/corporal com o grupo vocal “Bombando”.
No projeto Sons e Músicas Daqui, um planejamento coletivo caracterizado por
processos de negociação amplia o mapa do trabalho coral e acena para possibilidades de um
redimensionamento da prática coral como espaço de educação musical e processo de
produção cultural.
O Dá no Coro no contexto do Multiculturalismo Crítico
No estudo de caso Dá no Coro, grupo vocal formado por estudantes universitários
da cidade do Rio de Janeiro, o foco recai no trabalho de musicalização concebido a partir
de uma perspectiva curricular multicultural. Atendendo às demandas de construção
identitária e de manifestação cultural dos próprios integrantes do grupo (20 cantores e 4
instrumentistas), passamos a nortear todo o trabalho artístico-educativo por meio dos traços
identitários e culturais manifestos nestes indivíduos.
No Dá no Coro, misturam-se os tempos de ensino-aprendizagem e de realização
musical. Percepção, harmonia, análise, história da música, sociologia das práticas musicais
etc. deixam suas fronteiras disciplinares e se compõem como territórios de um fazer
musical de múltiplas dimensões. Trata-se de saberes produzidos nas aulas-ensaios: na
leitura dos arranjos, na sua execução em público, nos exercícios vocais e corporais, nas
audições de material gravado, na apreciação de vídeos, na leitura de textos e discussões que
ajudam na compreensão (sensação) de cada peça do repertório musical e do contexto
histórico-sócio-cultural onde cada uma está originalmente inserida.
No Dá no Coro não existe um currículo determinado a priori, mas um plano de
orientação, sinalizando aquilo de que precisamos para o trabalho: executar ritmos
sincopados, para que possamos realizar todo o suingue musical presente no texto musical;
saber cantar com o corpo todo, pois é assim que se realizam as peças de nosso repertório
quando inseridas em suas tradições originais; dominar técnicas vocais distintas da
aprendida no ensino conservatorial (tomada como verdadeira e generalizada), para que
possamos cantar como aqueles que não estudaram canto em conservatórios; dançar e nos
movimentar enquanto cantamos, para o que precisamos de espaços amplos. O currículo,
impregnado das culturas que pretendemos cantar, passa também por nossos figurinos, por
nossos gestos, por nossos sorrisos e por nossa poesia.
57

O currículo ganha sentido e existe em função do repertório que buscamos realizar.


O repertório musical orienta o currículo, da mesma forma como o currículo do Dá no Coro
existe em função do repertório, e este emana dos traços culturais dos que compõem o
grupo. Ele é função dos repertórios de vida dessas pessoas.
A prática do Dá no Coro é caracterizada pela heterogeneidade e singularidade de
seus indivíduos, tendo em seu corpo "multi" algumas das mais importantes "minorias
representativas" da sociedade brasileira. Por isso, nossa aproximação com as teorias do
multiculturalismo crítico que “supõe pontos de contato entre as culturas, capacidade de
tradução entre elas, identidades de fronteira” para uma “transformação das relações de
poder existentes entre elas” (Silva, 1995, p.196).
Temos, então, neste caso, as múltiplas culturas como elementos centrais dos
processos pedagógicos. A cultura está no início, no meio e no fim de tais processos. É ao
mesmo tempo sua motivação e finalidade. Está nos fins e também nos meios. Mas
principalmente, a cultura colocada no centro das práticas pedagógicas ajuda a diminuir o
abismo criado entre aquilo que se ensina e aquilo que se vive.

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59

Sobre cultura(s) e seu lugar nas pesquisas sobre currículo escolar


Maria Inês Petrucci Rosa14

“Ao mesmo tempo, no momento em que a escola perde suas forças próprias, uma
grande parte da opinião reclama dela a solução de dois dos mais graves
problemas da sociedade contemporânea: uma redefinição da cultura e a
integração da juventude.”
(M. De Certeau In: A Cultura no Plural)

Começar com Certeau quer significar os nossos movimentos de pesquisas voltados


para a escola, para a cultura escolar e para a juventude, principalmente. Escola, aqui,
entendida no seu sentido mais amplo como qualquer instituição educativa que trabalhe com
processos de formação de identidades, sejam elas pedagógicas ou profissionais. Em outras
palavras: locais de ensino, que podem ser escolas básicas ou universidades. Nelas, olhamos
para os jovens, notadamente quando investigamos questões relacionadas com o ensino
médio, ou ainda, quando esses mesmos ao ingressarem em universidades, enveredam por
currículos de formação docente. Ainda são jovens...
O nosso grupo de orientação15 é jovem também, tendo sido formado no início de
2002, quando ingressei como pesquisadora no Programa de Pós-Graduação da Faculdade
de Educação da Unicamp e hoje, um pouco mais maduro, integra o GEPEC (Grupo de
Estudos e Pesquisas em Educação Continuada), sob a coordenação do prof. Dr. Guilherme
do Val Toledo Prado, com a minha participação e das profas. Dra. Corinta Geraldi e Dra.
Ana Maria Sadalla Aragão.
Apresentarei aqui a centralidade da cultura nas pesquisas que venho desenvolvendo
em conjunto com alunas e alunos da pós-graduação que oriento em suas dissertações e
teses.
De que cultura(s) falamos? Falamos de cultura(s) como modo global de vida
(WILLIAMS, 2000), como estilo, como existência marcada por um campo de significações
em disputa que se estabilizam e se desestabilizam continuamente delineando maneiras de
viver dentro das instituições educativas. Essa(s) cultura(s) forjam identidades que vão

14
Professora Doutora do Departamento de Ensino e Práticas Culturais da Faculdade de Educação da
UNICAMP; membro pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC);
integrante do Laboratório de Estudos de Currículo.
15
Chamo de grupo de orientação o conjunto de alunos de pós-graduação em nível de mestrado e doutorado
que estão ou estiveram sob minha orientação e que integram o trabalho colaborativo de pesquisa.
60

nomeando sujeitos – tornam-se professore(a)s nas universidades, tornam-se professore(a)s


nas escolas; tornam-se estudantes nas escolas e nas universidades. Esses processos
identitários são marcados por discursos que inventam formas de ser/estar nesses lugares,
sendo que geralmente tais formas são interpelações ou estratégias que produzem consumo
permeado por táticas de sobrevivência. (CERTEAU, 1994)
Nossos movimentos de investigação ocorrem em torno das idéias de cultura e
currículo. Nesse sentido, a inspiração provocada pelos escritos de Garcia Canclini é
evidente:
“Cultura será entendida como aquela dimensão da realidade que dá
conta das práticas institucionais que, de uma ou outra maneira,
contribuem para a produção, a administração, renovação e
reestruturação do sentido das ações sociais. O conceito procura
apreender o conjunto dos processos mediante os quais os homens
representam o mundo para si mesmos, o interpretam e o constroem,
tornando assim comunicável e inteligível a sua experiência para os
demais.” (GARCIA CANCLINI, 1993).
Em nossas pesquisas, há uma sensibilidade para as culturas das instituições
formadoras, sejam elas a escola ou a universidade. É aí que aparece o movimento de
qualificá-la como profissional ou profissional docente, posto que muitas vezes, nossos
interesses de investigação estão voltados para o(a) professor(a) em formação. Outras vezes,
o foco está nas intercambiações da cultura no currículo disciplinar, acompanhando como
movimentos da macroestrutura – políticas; parâmetros; diretrizes - se transformam em
outras histórias no cotidiano escolar.
Nesse sentido, posso começar citando o trabalho de pesquisa que vem sendo
desenvolvido por Andréa V. Carreri, que investiga como professore(a)s do ensino médio
consomem as noções de competências e habilidades presentes nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (1999/2000). Para isso, são entrevistados professore(a)s com mais de dez anos de
docência na escola pública e que contam em forma de narrativas, suas táticas para
sobreviver diante daquilo que lhe é apresentado para ser consumido. As narrativas vão
mostrando que tal qual um “apartamento alugado” (CERTEAU, 1994), diferentes posições
de leitor que vão se delineando engendrando diferentes táticas de sobrevivência que recriam
61

as práticas pedagógicas no contato com as noções de competências e habilidades presentes


nos parâmetros do currículo do ensino médio (CARRERI e ROSA, 2006).
Nesse trabalho, a cultura escolar vista do ponto de vista do(a)s professore(a)s
praticantes do cotidiano vai produzindo uma tessitura de processos e significados que
mostra uma imagem docente não mais “incompetente”, “ignorante” ou “atrasada”, mas sim
prudente, experiente e questionadora.
Ainda no cenário da escola básica, a cultura também pode ser o meio possível de se
inventar e fazer acontecer histórias de trabalho coletivo, em currículos que são notadamente
marcados pela disciplinaridade, como é o caso do ensino médio. Em nosso grupo, Tânia
Quintino desenvolveu pesquisa que mostra as narrativas dos participantes de um grupo de
trabalho docente interdisciplinar que se ex-põe (LARROSA, 2002) produzindo tensões,
estranhamentos e a violência provocada pela intensa exposição advinda da vivência de um
currículo integrado (BERNSTEIN, 1996).

No contexto dessa pesquisa, a noção de consenso como princípio integrador do


currículo cai por terra e é justamente a assimetria e as tensões que são potencializadoras da
experiência. Classificações e enquadramentos abrandados são os produtos do trabalho
coletivo, no entanto, não são resultantes de alguma força diretriz controladora que fêz a
integração acontecer. Ao contrário, numa relação agonística de confiança e de amizade
(ORTEGA,2000), as diferenças ficaram marcadas e se tornaram o substrato do projeto
interdisciplinar. A disciplina escolar também é campo simbólico onde práticas são
legitimadas e reconhecidas, onde negociações de significados estabilizam ou não diferentes
rituais presentes na cultura escolar. O(a) professor(a) carrega em suas identidades aquilo
que a cultura da disciplina marca como mais importante. Ser professor(a) de... é uma
condição que explicita um conjunto de elementos culturais próprios do campo de
conhecimento que se representa (QUINTINO, 2005; QUINTINO e ROSA, 2005).
Esse também foi o mote da pesquisa de Dulcelena P. Corradi, que tomando a noção
de identidade, na perspectiva de S. Hall, investigou processos de formação de professores
de química no contexto do estágio num currículo de licenciatura de uma universidade
pública. Processos identitários na experiência de estágio vão acontecendo em histórias de
permanentes disputas entre diferentes interpelações (CORRADI, 2005; CORRADI e
ROSA, 2005).
62

Tais disputas vão além do território do estágio no currículo de formação docente,


acontecem também em outras atividades disciplinares, produzindo disciplinas com
discursos híbridos, que são produtos de inovação curricular, no entanto, com a permanência
de marcas de antigos discursos antes inconciliáveis. Adriana Pavan tem investigado como
disciplinas – práticas pedagógicas, didáticas, disciplinas científicas específicas – têm
reconfigurado suas ementas e programas, através de hibridismos produzidos nos processos
de disputa ocorridos na reformulação curricular de licenciaturas (PAVAN e ROSA, 2006).
Esse sujeito experiente desses currículos, múltiplo de identidades fragmentadas e
por vezes, contraditórias (HALL,2003) é nomeado(a) professor(a) e no encontro com a
cultura escolar, a qual passará a integrar como profissional, pode se sentir acolhido ou não,
preparado ou não (ROSA, 2005). São essas nuances que nos mobilizam na formulação de
diferentes questões de investigação que envolvem currículos de formação docente,
cultura(s), identidades.
Ainda na perspectiva da cultura escolar, outra frente de trabalho que tem se
mostrado instigante é a pesquisa sobre discursos produzidos no cotidiano sobre as
disciplinas escolares no ensino médio, tendo como foco o período pós-anos 90, quando
ocorreu a publicação do documento conhecido como Parâmetros Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio (1999/2000). A partir do conceito de lugar da forma como é proposto
por Certeau, pergunta-se aos praticantes do cotidiano: Qual é o lugar da química na
escola?16 As manifestações registradas em escolas públicas da cidade de Campinas vão
mostrando um dilema entre o discurso científico e o discurso cotidiano, configurando a
disciplina escolar como um híbrido mal resolvido. (ROSA e TOSTA, 2005).
Nesse trabalho, também através da análise da cultura material escolar nas
instituições observadas, é possível perceber movimentos na arquitetura, na re-organização
dos espaços e materiais simbólicos, indícios de reconfigurações provocadas pelas leituras
dos documentos curriculares publicados no final dos anos 90. Exemplo disso, a constatação
da substituição de laboratórios de química nas escolas por espaços agora denominados
“salas de projetos”, talvez sinalize invenções de currículos integrados no cotidiano dessas
instituições. (RAMOS e ROSA, 2006).

16
Como atualmente o grupo é integrado por várias professoras de química que atuam no ensino médio, o foco
das pesquisas relacionadas com disciplinas escolares é justamente relacionado com a área de docência das
pesquisadoras (a química).
63

Concluo deixando brechas entre os fios trançados na tessitura aqui apresentada e


esperando ter mostrado as potencialidades da centralidade da cultura para as pesquisas que
estamos desenvolvendo em nosso grupo de pesquisa na FE/UNICAMP. Tais investigações
abordam, em primeiro plano, processos de formação docente e também de reconfiguração
de discursos acerca das disciplinas escolares no período pós-publicação dos PCN,
notadamente com interesse no ensino médio. E ao apostar na cultura como integradora das
questões que fazemos ao currículo e à escola, deixo aqui como últimas palavras as escritas
por Carlos R. Brandão:
“Aos poucos o “mundo da educação” se revela na sua inteireza
humana, isto é, cultural. Surgem nele então as pessoas inteiras e
interativas envolvidas na educação. Surgem e podem afinal falar... as
suas visões de mundo... as suas experiências cotidianas... as suas
vidas de pessoas inteiras, ali onde antes a educadora ou o aluno
eram vistos e interpretados apenas enquanto produtores de algum
tipo de trabalho na educação.” (BRANDÃO, 2002) /

Referências
BERNSTEIN, B. A estruturação do discurso pedagógico.1ª Edição Petrópolis: Ed. Vozes,
1996.
BRANDÃO, C.R. A Educação como Cultura. Edição revista e ampliada. Campinas:
Mercado de Letras, 2002.
BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Ministério da
Educação: Secretária da Educação Básica, 1999.
CARRERI, A.V. e ROSA, M.I.P. Reformas Curriculares e práticas pedagógicas –
investigando aproximações no ensino de química. Artigo completo publicado em CD-rom.
Anais do XIII Encontro Nacional de Ensino de Química. Campinas, 2006.
CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano: I.. artes de fazer. 9ª. Edição. Petrópolis: Vozes,
1994.
CERTEAU, M. A Cultura no Plural. 3ª. Edição. Campinas: Editora Papirus, 1995.
64

CORRADI, D. P. Estágio Superivisionado: Cultura(s) e processos de identificação


permeando um currículo de formação de professores de química. Campinas:
UNICAMP/FE, Dissertação de Mestrado, 2005.
CORRADI, D.P. e ROSA, M.I.P. Estágio Supervisionado: Cultura(s) e Processos de
Identificação num Currículo de Licenciatura em Química. Artigo completo publicado em
CD-rom. Anais do V Encontro de Pesquisa em Educação em Ciências. ABRAPEC:
Bauru, 2005.
GARCIA CANCLINI, N. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense,
1983.
HALL. S. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª. Edição. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de
Educação, Jan/Fev/Mar/Abr 2002 n.º 19 2002.
ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de
Janeiro: Ed. Relume Dumará, 2000.
PAVAN, A.C. e ROSA, M.I.P. Hibridismos de discursos nas memórias de uma
licenciatura em ciências. Artigo completo publicado em CD-rom. Anais do XIII Encontro
Nacional de Ensino de Química, Campinas, 2006.
QUINTINO. T.C. Alice no País das Maravilhas: Currículo Integrado,
interdisciplinaridade e um grupo de professores que mergulhou na toca do coelho.
Campinas: UNICAMP/FE, Dissertação de Mestrado, 2005.
QUINTINO, T.C. e ROSA, M.I.P. Investigando aspectos do currículo integrado numa
história de formação continuada de professores do ensino médio da área de ciências.
Artigo completo publicado em CD-rom. Anais do V Encontro de Pesquisa em Educação
em Ciências. ABRAPEC: Bauru, 2005.
RAMOS, T.A. e ROSA, M.I.P. A disciplina escolar química e seu lugar no cotidiano da
escola – ampliando o debate. Artigo completo publicado em CD-rom. Anais do XIII
Encontro Nacional de Ensino de Química. Campinas, 2006.
ROSA (a), M.I.P. Currículo, Imaginário e Formação de Professores: uma Experiência no
Estágio da Licenciatura em Química . Artigo completo publicado em CD-rom. Anais do V
Encontro de Pesquisa em Educação em Ciências. ABRAPEC: Bauru, 2005.
65

ROSA, M.I.P. e TOSTA, A. H. O lugar da Química na escola – movimentos constitutivos


da disciplina no cotidiano escolar. Revista Ciência e Educação, vol. 11, n. 2, 2005.
WILLIAMS, R. Cultura. 2ª. Edição, São Paulo: Paz e Terra, 2000.
66

Uma abordagem cultural do currículo

Elizabeth Macedo (UERJ, coordenadora)


Aura Helena Ramos, Débora Barreiros e Rita de Cássia Frangella (doutorandas)
Patrícia Agostinho e Sonia Griffo Mattioda (mestrandas)
Alcione Correa, Bonnie Axer, Janaina Lins e Renata Marinho (bolsistas de IC)

INTRODUÇÃO

O grupo de pesquisa é parte do GrPesq “Currículo: sujeitos, conhecimento e


cultura”, do Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ, e conta com a
coordenadora e com alunos do Programa de Pós-graduação. Ao longo dos últimos anos,
veio se dedicando em diferentes projetos a entender o currículo no seio de uma sociedade
cada vez mais marcada pela cultura. Contou, neste período, com vários participantes não
listados acima, mas que certamente deram uma considerável contribuição para as
discussões que hoje são realizadas. Destaco, além das bolsistas de graduação, os pós-
graduandos que trabalharam mais diretamente conosco: Ozerina Victor de Oliveira (doutora
pela UERJ e professora da UFMT); Denise de Souza Destro (mestre pela UERJ, professora
da SME/JF); Lucia de Assis Alves (mestre pela UERJ e professora da Instituição); Rosana
Lourenço da Silva (mestre pela UERJ, professora Colégio Santo Inácio); e Vânia Morgado
(mestra pela UERJ e professora da SME/RJ). Os últimos projetos desenvolvidos e seus
produtos (relatórios, textos publicados, teses e dissertações) podem ser acessados na página
do grupo www.curriculo-uerj.pro.br .

NOSSAS ANÁLISES ATÉ O MOMENTO

O grupo tem trabalhado no sentido de uma definição de currículo como espaço-


tempo de enunciação da cultura e não como um processo de seleção de informações de um
repertório partilhado de significados. Temos até o momento conclusões parciais (se
podemos dizer que isso existe) que temos buscado partilhar neste e em outros fóruns de
67

pesquisa em currículo no sentido de buscar subsídios para ampliarmos nossas


compreensões daquilo que estudamos.
Nossa preocupação central tem sido como articular uma agenda política num
espaço-tempo marcado pela diferença e, para tanto, temos nos utilizado de discussões no
campo do que se convencionou denominar pós-colonialismo. Trazemos tais autores por
julgar eles nos ajudam a entender que toda dominação é ambivalente em si e que as
resistências não estão, portanto, fora, mas dentro do próprio ato de dominar. Apresentamos
abaixo extratos de textos produzidos a partir de nossas leituras para propiciar o debate sobre
as relações entre currículo e cultura na perspectiva em que vimos trabalhando:

1. Cultura, hibridismo e pós-colonialismo


(extrato do texto Currículo e hibridismo: para politizar o currículo como cultura, de
autoria de Elizabeth Macedo e publicado na Revista Educação em Foco, v.8, n. 1 & 2)
O hibridismo não é uma superação do conflito entre as culturas presentes no
espaço colonial, ou seja, não se trata de culturas diferentes que interagem num espaço em
que bastaria um certo relativismo cultural ou uma espécie de tolerância para que a diferença
pudesse conviver. Trata-se de entender que os saberes coloniais, ao se imporem à cultura do
colonizador, o fazem pondo em questão a própria autoridade desta cultura tanto no que se
refere ao seu conteúdo quanto às suas regras de reconhecimento. O cultural passa a ser,
portanto, não apenas "fonte de conflito—culturas diferentes— mas (...) o efeito de práticas
discriminatórias— a produção da diferenciação cultural como signos de autoridade"
(Bhabha, 2003, p.166). Assim, o cultural, articulado com a noção de hibridismo, torna-se
espaço político por excelência. É na cultura, espaço em que o poder colonial pretende
marcar sua presença e sua autoridade, que o hibridismo imprevisível articula os saberes
discriminatórios com os saberes nativos. À idéia de que a dominação política, no caso da
dominação das colônias, se manteve a despeito do hibridismo do poder colonial, Bhabha
(2003) contrapõe a certeza de que os colonizadores podiam governar os nativos, mas "já
não podiam representá-[los]" (p.167).
68

2. Currículo como fronteira cultural


(extrato do texto Currículo: política, cultura e poder, de autoria de Elizabeth Macedo
a ser publicado na Revista Currículo Sem Fronteiras, 2006)

Antes de mais nada, julgo necessário esclarecer que não vejo o currículo como um
cenário em que as culturas lutam por legitimidade, um território contestado, mas como uma
prática cultural que envolve, ela mesma, a negociação de posições ambivalentes de controle
e resistência. O cultural não pode, na perspectiva que defendo, ser visto como fonte de
conflito entre diversas culturas, mas como práticas discriminatórias em que a diferença é
produzida. Isso significa tentar descrever o currículo como cultura, não uma cultura como
repertório partilhado de significados, mas como lugar de enunciação. Ou seja, não é
possível contemplar as culturas, seja numa perspectiva epistemológica seja do ponto de
vista moral, assim como não é possível selecioná-las para que façam parte do currículo. O
currículo é ele mesmo um híbrido, em que as culturas negociam com-a-diferença. (...)
Entendo ser mais promissor, do ponto de vista teórico, buscar pensar o currículo
como espaço-tempo de fronteira, permeado por relações interculturais e por um poder
oblíquo e contingente. A noção de fronteira tem sido utilizada pelo pós-colonialismo para
designar um espaço-tempo em que sujeitos, eles mesmos híbridos em seus pertencimentos
culturais, interagem produzindo novos híbridos que não podem ser entendidos como um
simples somatório de culturas de pertencimentos. Para Bhabha (2003), a noção de cultura
deve ser tomada numa perspectiva interativa como algo constantemente recomposto a partir
de uma ampla variedade de fontes num processo híbrido e fluido. É também nessa
perspectiva que julgo ser produtivo pensar o currículo.
Nesse sentido, o currículo seria um espaço-tempo de interação entre culturas. Usando a
terminologia de nossas coleções Modernas, em que as culturas são vistas como repertórios
partilhados de sentidos, poderíamos enumerar um sem número de culturas presentes no
currículo. Desde o que chamaríamos de princípios do Iluminismo, do mercado, da cultura
de massa até repertórios culturais diversos, dentre os quais freqüentemente destacamos
culturas locais. Mas estar na fronteira significa desconfiar dessas coleções e viver no limiar
69

entre as culturas, um lugar-tempo em que o hibridismo é a marca e em que não há


significados puros.
É a partir dessa fronteira que entendo ser o currículo que pretendo discutir as
questões de poder, argumentando que uma perspectiva de poder menos hierárquica e
vertical nos permite pensar uma outra forma de agência. Entendo que essa concepção de
poder e de agência é necessária para a superação da lógica da prescrição que tem
caracterizado os estudos em políticas curriculares.

NOSSOS DESAFIOS ATUAIS

Definindo currículo como espaço-tempo de fronteira cultural, temos desenvolvido


nossas teses e dissertações e um desafio tem se apresentado: como pensar uma luta política
que não cabe numa cidadania global. Ou, como resume Santos (2003), “como reinventar as
cidadanias que consigam, ao mesmo tempo, ser cosmopolitas e ser locais?” (p.25). Uma
pergunta difícil posto que envolve abrir mão de certos mecanismos de luta coletivos que
fomos vivenciando, assim como questionar os sistemas referenciais com os quais
construímos nossa compreensão de mundo. Mas, ao mesmo tempo, uma pergunta que nos
parece que não pode ficar sem resposta. Nesse sentido, nossa tarefa teórica, no momento,
tem sido enfrentar a questão da agência num espaço-tempo marcado pela diferença cultural.
Temos, para tanto, nos valido das contribuições de E.Laclau e C.Mouffe.
Assim, temos defendido um currículo, que chamamos de emancipador por carinho
a uma expressão que já nos disse tanto, no qual as narrativas da modernidade dialoguem
com nossas contingências cotidianas. Um espaço que, como defende Spivak (1994), “torne
visíveis as lacunas dos slogans do iluminismo europeu— nacionalismo, internacionalismo,
secularismo, culturalismo, baluartes do nativismo— sem participar em sua destruição”
(p.204). Entendemos que esse currículo emancipador, que dá sentido à educação como
projeto, precisa apostar na negociação de sentidos entre as narrativas do iluminismo e seus
outros culturais com os quais também dialogamos diariamente.
Defendemos a idéia de negociação como negociação agonística, que se dá na
prática (Hall, 2003). Nesse espaço-tempo da prática, sempre híbrido, a cultura se estabelece
como lugar de enunciação e as identidades são forjadas num terreno movediço, em entre-
70

lugares culturais. Não podem ser concebidas com base numa oposição entre presença e
ausência absolutas. Seria mais produtivo, nesse sentido, pensar a diferença como algo que
não pode ser fixado de forma decisiva. Ainda que, em algumas situações, nossos projetos
pedagógicos mantenham a fantasia de um significado fixo, cabal, ele nunca será totalmente
apreensível. Vista a partir dessa noção, a negociação torna-se uma forma de subversão.
Uma temporalidade em que elementos antagônicos e até mesmo contraditórios se articulam
sem a perspectiva da superação, criando espaços de luta híbridos, nos quais polaridades
positivas ou negativas, ainda que relativas, não se justificam. Ou seja, na temporalidade da
negociação, não é possível pensar em sentidos fixos, primordiais, que reflitam objetos
políticos unitários e homogêneos. As categorias que têm alicerçado muitas de nossas lutas
políticas são, elas mesmas, um processo de tradução. Rearticulam os elementos que
supostamente as constituem, contestando os territórios definidos por cada uma para si.
Ao sustentar que essas categorias não implicam em posições fixadas num espectro
político claro, não estamos propondo o fim da atuação política, mas a necessidade de se
elaborar alternativas — políticas e teóricas — para um mundo contemporâneo. Um mundo
dominado por discursos globais e homogêneos, por hegemonias que não se admitem
transitórias. Nesse sentido, o “negociar na prática” exige mobilização política. A
argumentação pós-colonial de que toda cultura é híbrida e de que não há, na interação entre
culturas, a possibilidade de imposição absoluta não implica na desconsideração de
estratégias que visam à manutenção do poder colonial, tais como as destacadas no currículo
de ciências analisado. Ainda que não seja absoluto, e apenas por isso possa ser combatido,
o poder colonial nos exige uma articulação estratégica dos saberes de diferentes grupos
culturais sem que isso implique na contestação da singularidade da diferença. Estamos, por
enquanto, entendendo que uma agência pós-colonial no currículo necessita, como qualquer
outra, de uma fundamentação, mas não podemos esperar construir uma fundamentação
totalizada sob pena de estarmos quebrando o jogo hegemônico necessário a um processo
político democrático e realmente plural.
71

As potencialidades da centralidade da(s) cultura(s) para as investigações


no campo do currículo: algumas reflexões para o debate – NEC/UFRJ

Carmen Teresa Gabriel17

1. Respondendo a provocação de Terry Eagleton

É difícil escapar à conclusão de que a palavra “cultura” é ao mesmo tempo ampla


demais e restrita demais para que seja de muita utilidade. Seu significado
antropológico abrange tudo, desde estilos de penteado e hábito de bebida até como
dirigir a palavra ao primo em segundo grau de seu marido, ao passo que o sentido
estético da palavra inclui Igor Stravinsky mas não a ficção científica. A ficção
científica pertence à cultura popular ou “de massa”, uma categoria que paira
ambiguamente entre o antropológico e o estético. Em contraposição, poder-se-ia
considerar o significado estético nebuloso demais, e o antropológico, limitado
demais. O sentido de cultura de Matthew Arnold – como perfeição, encanto e luz, o
melhor do que já foi concebido e dito, ver o objeto como ele realmente é etc. – é
embaraçosamente impreciso, ao passo que se cultura significa apenas o modo de
vida de fisioterapeutas turcos então ela parece desconfortavelmente específica (...)
Margaret Archer observa que o conceito de cultura exibiu o mais fraco
desenvolvimento analítico dentre todos os conceitos - chaves da sociologia e
desempenhou o papel mais descontroladamente vacilante na teoria Sociológica.
(EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. (trad. Sandra Castello Branco). São Paulo:
Editora da Unesp, 2005)

1.1. “Portas de entrada” possíveis neste debate

Falar, discutir sobre potencialidades da centralidade do conceito de cultura(s) para a


investigação no campo do currículo implica em explicitar alguns pressupostos. Um
primeiro diz respeito ao lugar de onde falamos e discutimos, isto é, faz referência as nossas
posições de sujeitos–pesquisadores no interior do próprio campo no qual pesquisamos. Na
própria citação acima a avaliação dessa potencialidade varia em função do campo de
conhecimento a partir do qual esse conceito é avaliado. As percepções da “carga analítica”
não são as mesmas quando se fala do campo da Antropologia, da Estética ou da Sociologia.
O segundo pressupõe que a potencialidade heurística de um conceito não se encontra no
conceito “em si”, mas nas apropriações feitas por esses mesmos campos e /ou sujeitos.

17
Professora do Programa de pós-graduação da FE/UFRJ. Pesquisadora do NEC/UFRJ.
72

Traços comuns do NEC na sua configuração atual: falar de “um lugar de fronteira”

O Núcleo de Estudos de Currículo da Faculdade de Educação da UFRJ (NEC) reúne


atualmente pesquisadores cujos interesses de investigação no âmbito do campo do currículo
têm em comum pensar a instituição escolar, tendo como foco seus sujeitos e saberes
contextualizados em áreas disciplinares específicas. Nesse sentido, nossos estudos abarcam
temáticas como a formação de professores, os processos de constituição dos conhecimentos
escolares e as políticas curriculares particularmente em áreas como Ciências e História.
Essas temáticas por sua vez são trabalhadas a partir de diferentes recortes, enfoques e
ênfases incorporando de forma articulada as contribuições de pesquisadores de diferentes
campos das Ciências Sociais – História, Sociologia, Epistemologia, Antropologia, na
construção de nossos quadros teóricos de pesquisa.

Essa diversidade de enfoques e abordagens tem se articulado mais recentemente em


torno do que vem se constituindo como uma linha de pesquisa em processo de gestação no
interior do NEC - a do “ensino de” - cuja marca principal é a sua inserção em uma “zona
de fronteira” entre diferentes campos disciplinares. As pesquisas em fase de
desenvolvimento trazem essa marca, exigindo de nós, pesquisadores, dialogarmos não
apenas com os interlocutores reconhecidos e legitimados no campo do currículo, mas
também estabelecer a interlocução com autores representantes de campos disciplinares nos
quais buscamos construir a nossa empiría. A título de exemplo, o lugar da História como
campo disciplinar e de pesquisa alterna-se, algumas vezes, em uma mesma pesquisa do
grupo, entre o de referencial teórico e o de objeto de investigação. É pois, desse lugar de
fronteira, desse “entre-lugar” que nos propomos a aceitar a provocação proposta por
Eagleton e refletir sobre as modalidades de apropriação do conceito de cultura em nossas
investigações.
73

1.2. Apropriações pelo NEC do conceito de cultura

Sobre apropriações...

Analisar as formas possíveis de apropriação de um conceito por um grupo


específico pressupõe explicitar ângulos e direções da lupa utilizada para esse tipo de
análise. Uma primeira possibilidade é pensar essa apropriação direcionada para a leitura de
práticas educativas, consideradas nossos objetos de investigação. Outra possibilidade é
reorientar a lupa dos objetos investigados para os olhares de quem os investiga. A idéia
nesse texto é focar a segunda possibilidade. Esse exercício intelectual pressupõe falar “de
dentro” e tomar distância ao mesmo tempo, nos fazendo escrever como sujeitos-
pesquisadores sobre as pesquisas que fazemos, o que implica fazer de nossa prática de
pesquisa objeto de reflexão.

De uma maneira geral o conceito de cultura tem aparecido nas nossas pesquisas
mais como categoria de análise para nomear, interpretar e explicar os objetos /sujeitos e
práticas investigados, do que como objeto de investigação. Dito de outra forma, se por um
lado, desde o início reconhecemos no nosso fazer pesquisa, o potencial heurístico das
implicações políticas e epistemológicas da incorporação do enfoque cultural, de outro, a
problematização do próprio conceito de cultura tal como é utilizado no nosso “fazer
pesquisa” é um desafio que começa apenas a ser enfrentado.

Desafio esse que por sinal, pressupõe que situemos nossa reflexão em um momento
anterior ou exterior à discussão da apropriação do conceito de cultura pelo campo do
currículo. Trata-se de pensar também em termos da própria trajetória histórica de
construção do conceito de cultura no campo da antropologia, marcada pelas lutas de
representação travadas entre as perspectivas teóricas universalistas (Tylor) e particularistas
(Boas) e seus desdobramentos até os dias atuais. Perceber igualmente a incorporação pelo
campo da Antropologia da própria crise paradigmática e a emergência e o desenvolvimento
de uma perspectiva interpretativista (Geertz) para ver o campo antropológico e as
implicações no que diz respeito ao significado atribuído ao conceito de cultura. Importa
74

ainda perceber as diferentes apropriações desse conceito, central no campo da Antropologia


, por outras áreas de conhecimento como a da Sociologia e /ou quadros teóricos como o
dos Estudos Culturais, com os quais o campo do currículo tem estabelecido e intensificado
o diálogo nessa última década. Essas considerações permitem pensar que a tendência no
campo do currículo tem sido apropriações , indiretas, mediadas por outras apropriações de
outros campo o que de certa forma, nos parece importante ser levado em consideração
nesse debate.

Uma “perspectiva para ver” o campo

A idéia aqui é dar início a uma reflexão sobre as formas de apropriação do conceito
de cultura pelas pesquisas realizadas e em curso no NEC18 e que, de certa forma, permitem
delinear, esboçar uma perspectiva desse núcleo “para ver o campo do currículo”. Para tal,
utilizaremos trechos desses projetos de pesquisa com o intuito de mapear alguns traços ou
indícios que nos permitem perceber a forma como o conceito de cultura vem sendo
apropriado nesse grupo específico.

Uma primeira observação coerente com a atual configuração do NEC é que


podemos perceber apropriações diferenciadas desse conceito por parte de seus
pesquisadores. Diferenciadas tanto no que se refere ao movimento implementado pelas
pesquisas em curso no sentido de utilizar, operar com esse conceito, como também no que
se refere ao lugar ocupado por esse conceito nesses estudos. È possível identificar pelo
menos três movimentos de apropriação e três significados distintos desse conceito
atribuídos nas pesquisas em curso do NEC que muitas vezes aparecem articulados em uma

18 As pesquisas em curso são: Currículo, identidade e diferença: embates na escola e na formação

docente (2003) – Antonio Flavio Moreira (coordenador) e Regina Cunha; Currículo de Ciências:
iniciativas inovadoras nas décadas de 1950/60/70 (2005) – Marcia Serra Ferreira (coordenadora); A
história ensinada: saber escolar e saberes docentes em narrativas da história escolar (2005) – Ana
Maria Monteiro (coordenadora) ;Currículo de Historia. investigando sobre saberes aprendidos e
construções de sentido na Educação Básica (2005) – Carmen Teresa Gabriel (coordenadora).
75

mesma linha de pesquisa. Um mesmo movimento de apropriação pode operar com


significados diferenciados do conceito cultura.

A segunda observação é que esta pluralidade de modalidades de apropriação não é


vista neste texto como indicadora de algum tipo de fragilidade teórico-metodológica. Ao
contrario, expressam o reconhecimento da fertilidade heurística do olhar reflexivo sobre o
próprio dizer e fazer pesquisa, bem como da contradição, da pluralidade, da coexistência do
“isto e aquilo” e da tensão para/no ato investigativo.

Primeiro movimento: “cultura escolar” e “cultura da escola”

Esse movimento de apropriação está presente no campo quase como um


pressuposto, uma “tela de fundo” de nossas pesquisas. Ao nos situarmos na linha do
“ensino de” reconhecemos a potencialidade de categorias como “cultura escolar” e/ ou
“cultura da escola” (Forquin, 1993) como ponto de partida para a construção dos nossos
problemas de pesquisa.

A assunção dessas categorias indica a presença de um diálogo, embora de forma


indireta ou mediada, por parte dos pesquisadores com o conceito antropológico de cultura
via a incorporação das contribuições da nova sociologia do currículo a partir do final dos
anos de 1960. Desde a primeira metade do século passado, o olhar da Antropologia legitima
falar de culturas, no plural. Hoje a assunção da pluralidade cultural tende a radicalizar-se.
O uso dessas expressões no campo educacional traduziria a especificidade da apropriação
pelo campo educacional dos desdobramentos da fragmentação do conceito de cultura que
passa ser usada pelos diferentes atores sociais, nem sempre de maneira consciente, como
estratégia nas lutas sociais e políticas. Expressões como: cultura de origem, cultura popular,
cultura da cidade, da escola, de classe, dos imigrantes, negra, judaica, cristã, dos jovens,
feminina, são usadas com o intuito de sublinhar a especificidade do lugar e/ou da escala de
onde se fala e/ou sobre o qual se pensa. É esse mesmo movimento que encontramos em
algumas da pesquisa do NEC, como indicam os trechos abaixo:
76

Assim, esta pesquisa permitiu verificar que estes professores produzem, dominam e
mobilizam saberes para ensinar o que ensinam. Estes saberes, temporais, plurais,
heterogêneos, personalizados e situados, configuram uma construção complexa, que
apresenta marcas de suas trajetórias de vida pessoal, da formação e da experiência
profissional, e que se realiza num contexto de autonomia relativa no qual interagem
outros sujeitos, saberes e práticas, integrantes da cultura escolar, e do contexto mais
amplo da sociedade onde se insere. (MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa,
Resumo da Tese de Doutorado. Ensino de História: entre saberes e práticas. Rio de
Janeiro.2002)

O objetivo desta pesquisa é analisar diferentes construções, criadas e utilizadas pelos


professores em aulas de história e em livros didáticos desta disciplina, ou outros
documentos de referência, de forma a caracterizar a estrutura narrativa configurada
em construções do saber escolar no âmbito do ensino de história. Essa análise será
articulada com aquela que permite investigar os saberes docentes entendidos como
resultado de um processo de transformação realizado pelo professor. Essa pesquisa se
realiza em campo de fronteira que, necessariamente, articula História e Educação.
Partimos do pressuposto de que os professores produzem, dominam e mobilizam,
dentro de uma autonomia relativa, saberes plurais e heterogêneos para ensinar o que
ensinam, e que estes saberes que ensinam são, por sua vez, uma criação da cultura
escolar – os saberes escolares, com epistemologia própria. (MONTEIRO, Ana Maria
Ferreira da Costa, Projeto de pesquisa A história ensinada: saber escolar e saberes
docentes em narrativas da história escolar, 2005)

A aproximação com o campo da História permite reforçar a potencialidade do


relativismo cultural como princípio metodológico ao reconhecer singularidades no próprio
âmbito da cultura escolar.

Como anteriormente afirmado, os escritos de Chervel (1990) e de Julia (2001 e 2002)


auxiliam na compreensão da história das diversas disciplinas escolares como parte de
uma cultura que se desenvolve no âmbito da escola, uma instituição criada com
determinadas finalidades sociais. Entretanto, minha opção por investigar a história da
disciplina escolar Ciências no Colégio Pedro II – uma instituição singular e
importante para a educação secundária no país – me sugeriu um segundo modo de
entender a participação dos aspectos de ordem institucional na constituição das
diferentes disciplinas escolares. Nessa outra perspectiva, afirmo que, para além dos
condicionantes institucionais mais gerais, que dizem respeito ao estudo de uma
disciplina que foi produzida como parte de uma cultura escolar, cabe considerar
elementos institucionais específicos, que se relacionam à própria natureza e história
do referido colégio. Como veremos no Capítulo III, as especificidades da instituição –
como sua origem e construção sócio-histórica, seus processos de seleção docente e a
existência das cátedras, além das relações entre o ensino das humanidades e os
estudos científicos – se constituíram em importantes elementos na definição dos rumos
da disciplina escolar Ciências. (FERREIRA, Marcia Serra, Tese de Doutorado. A
História da Disciplina Escolar Ciências no Colégio Pedro II (1960-1980) , 2005)

Uma outra modalidade de apropriação do termo “cultura escolar” está presente nas
pesquisas cuja ênfase está posta no viés epistemológico e tem como recorte privilegiado o
processo de construção do conhecimento escolar. Nessa perspectiva, esse termo tende a
77

aparecer como sinônimo dos saberes, valores e atitudes que são produzidos e/ou
reelaborados nesse espaço específico e, como tal, carregam especificidades tanto de ordem
epistemológica como política. Nota-se que neste sentido, o conceito de cultura está
intimamente relacionado com o conceito de conhecimento, de leitura do mundo, e tende a
incorporar a tensão entre as perspectivas universalistas e particularistas intrínsecas à
emergência do conceito de cultura.

A despeito do viés privilegiado, esses estudos abrem pistas para a construção de


uma nova área de pesquisa na qual a idéia de uma epistemologia escolar (Develay,
1995) começa ganhar visibilidade, neste início de século, no campo do pensável.
Trata-se de buscar uma abordagem multidimensional do processo de construção dos
saberes escolares concebidos como um dos elementos chaves em torno dos quais se
articulam políticas de diferença e de identidade, de igualdade e de desigualdade
através dos diversos discursos sobre currículo em disputa no debate educacional
contemporâneo. Embora esse tipo de enfoque apresenta desdobramentos e ênfases
diferenciadas em função dos campos disciplinares onde tem sido desenvolvido,
importa destacar, a assunção, nas linhas de pesquisa que se desenvolvem nesse
campo emergente, da carga analítica de categorias como "cultura escolar"
(Forquin, 1993), "saber escolar" (Perrenoud, 1998; Develay, 1995, 1999),
"disciplina" (Chervel, 1990), "conteúdos curricularizados" (Gimeno Sacristan,
1995,1996), "saber a ensinar", "saber ensinado" (Chevallard, 1991) para pensar o
campo educacional e em particular as questões relativas aos processos de ensino-
aprendizagem em contextos escolares. (GABRIEL, Carmen Teresa. Projeto de
pesquisa Currículo de Historia: investigando sobre saberes aprendidos e
construções de sentido na Educação Básica, 2005)

Segundo movimento: Identidade(s) e cultura(s)

O segundo movimento de apropriação do conceito de cultura presente no NEC se


faz através da entrada no debate em torno das questões identitárias. A incorporação no
campo curricular da articulação entre identidade(s) e cultura(s) passa a ser (re)significada a
partir das contribuições da teorias curriculares críticas e pós-críticas. Como indica o trecho
do projeto de pesquisa abaixo cultura é significada como um “espaço produtor de
significados” inclusive no que diz respeito àqueles que constituem-se como marcas de
identidades individuais e/ou coletivas. Por sua vez, o currículo visto como uma seleção da
cultura, assim significada, torna-se ele próprio um território de disputas em torno da
atribuição de sentidos das práticas e representações , ambas coisas desse mundo.

Em primeiro lugar, considera-se que o currículo e a escola contribuem


significativamente para a construção de identidades sociais. Se o currículo é uma
seleção da cultura e se a cultura constitui espaço em que significados se produzem,
cabe entender o currículo como uma prática de significação que, se expressando em
meio a conflitos e relações de poder, desempenha importante papel na produção de
78

identidades (Silva, 1999). O currículo configura, assim, território em que ocorrem


disputas culturais, em que se travam disputas entre diferentes significados do
indivíduo, do mundo e da sociedade. Participa do processo de construção de
identidades que dividem a esfera social, ajudando a produzir, entre outras,
determinadas identidades raciais, sexuais, nacionais (MOREIRA, A. F. Projeto de
pesquisa. Currículo, identidade e diferença: embates na escola e na formação
docente 2003)

Essas concepções de cultura e currículo são apresentadas como pressupostos


teóricos para a apreensão dos problemas de pesquisa que surgem da observação, da imersão
no cotidiano escolar onde se articulam representações e práticas docentes e discentes.

Identidade e diferença constituem hoje matéria de preocupação pedagógica e


curricular dos docentes que atuam em escolas de ensino fundamental da rede
municipal do Rio de Janeiro? Como esses profissionais concebem identidade e
diferença? Como explicam a produção da identidade e da diferença? Como vêem a
escola atuando nos processos de construção e de fixação de determinadas
identidades? Que conhecimentos escolares e procedimentos pedagógicos escolhem
para abordar a temática? Que objetivos buscam atingir? Em que materiais didáticos
apóiam-se para tratar identidade e diferença? Como trabalham os textos
curriculares disponíveis? Costumam recorrer à proposta curricular da Secretaria de
Educação? Em caso positivo, como a empregam? Costumam recorrer a textos não
didáticos? Quais? Como os utilizam? Que grupos sociais acabam sendo
representados no planejamento curricular desses docentes? Que idéias de gênero, de
raça, de classe, de sexualidade e de nacionalismo encontram-se presentes nos textos
que utilizam? Que identidades são apresentadas como modelos a serem seguidas?
Há questionamento de modelos dominantes? Como? Que conhecimentos
pedagógicos e que categorias parecem subsidiar os discursos? Que sistemas de
raciocínio encontram-se subjacentes a esses discursos? De que modo esses sistemas
constroem espaços sociais e biografias para as crianças? (MOREIRA, A. F. Projeto
de pesquisa. Currículo, identidade e diferença: embates na escola e na formação
docente, 2003)

É por meio do enfoque das políticas de identidades e de diferenças, vistas de forma


relacional e não antagônica, que o diálogo com o multiculturalismo se faz presente nos
estudos do NEC, fundamentando teoricamente os recortes de pesquisa privilegiados, como
indica o trecho a seguir:

Em terceiro lugar, sustenta-se, com base em Souza (2002), que a diferença


representa o nó central do multiculturalismo. Reivindicações pautadas na diferença
trazem à tona reflexões e disputas sobre o lugar, os direitos, as representações e as
vozes de grupos minoritários. O multiculturalismo e a reivindicação pela diferença
implicam o esforço por atender às reivindicações de distintas identidades de raça,
gênero, classe social, idade, sexualidade. Todas essas identidades apresentam em
comum o fato de serem alvos de preconceitos, discriminações e exclusões, o que as
impede de terem os mesmos direitos dos grupos privilegiados. Investigar diferença e
identidade, reitere-se então, é situar-se no âmbito do multiculturalismo, na análise e
na proposição de respostas a serem dadas, na educação, à inevitável condição
plural de nossas sociedades contemporâneas, visando a questionar e desafiar as
relações de poder que nos dividem e nos definem como “nós” ou como “outros”.
79

(MOREIRA , A. F. Projeto de pesquisa. Currículo, identidade e diferença:


embates na escola e na formação docente, 2003)

Terceiro movimento: Cultura e linguagem

Este terceiro movimento de apropriação pode ser percebido nas linhas de pesquisas
do NEC que vem estreitando o diálogo com o paradigma interpretativista para a
significação do conceito de cultura, fazendo emergir a centralidade da linguagem na
construção de sentidos.

Essas pesquisas ao privilegiarem o enfoque da epistemologia social escolar,


considerando a cultura escolar tanto como uma fabricação socio-cultural como
epistemológica têm buscado se aproximar das contribuições da Antropologia
interpretativista de Geertz para a compreensão dos mecanismos políticos e epistemológicos
que entram em jogo mo momento da construção dos saberes escolares. Na medida em que
cultura passa a ser apreendida como teias de significados tecidas pelos sujeitos, que se
apresentam sob a forma de esquemas de representação permeadas de relações de poder e
responsáveis pela inteligibilidade das coisas desse mundo, que os saberes escolares –
ensinados e aprendidos - são apreendidos como resultado de um processo de seleção
cultural, logo eles próprios teias de significado e de inteligibilidade, e que esses saberes se
materializam através da linguagem oral e/ou escrita, torna-se importante entender as
articulações possíveis entre currículo, cultura e linguagem.

Trata-se de compreender como vem sendo enfrentado, no cotidiano das aulas de


História, o desafio da aprendizagem dos saberes ensinados, tendo como base dois
pressupostos: a idéia de que aprender é um ato de significação do mundo (Bruner), e
que o sentido atribuído se encontra nos sujeitos que ensinam e aprendem; e a
percepção do papel central assumido pela linguagem por meio de enunciados
escritos e/ou orais. Os saberes aprendidos se manifestam através de traços, pistas
signos indicadores – cadernos de apontamentos dos alunos, exercícios, instrumentos
formais de avaliação, participação oral em sala de aula, etc. – e é a partir desses
traços que os professores deduzem, inferem, constroem uma certa relação entre o
aluno e o saber a ser ensinado de sua disciplina. As contribuições de Bruner e
Fairclough abrem caminhos teóricos para pensar os mecanismos políticos, culturais
e epistemológicos acionados no ato de aprendizagem e específicos a esse nível de
configuração dos saberes, trazendo pistas de reflexão, instrumentos conceituais que
permitem a abordagem de questões emergentes e/ou a construção de novos olhares
para enfrentar antigos desafios: Que fatores ou elementos entram em jogo no ato de
aprender que se distinguem daqueles considerados no ato de ensinar? O que
diferencia, epistemologicamente falando, o saber aprendido, do saber ensinado? O
que garante a produção de sentido no ato de aprendizagem? Qual o papel da
linguagem nesse processo de construção de saberes e sentidos no caso específico do
80

conhecimento histórico? (GABRIEL, Carmen Teresa. Projeto de pesquisa.


Currículo de Historia: investigando sobre saberes aprendidos e construções de
sentido na Educação Básica. 2005)

2. Outras provocações possíveis em torno do conceito de cultura:

Para além da tensão relativismo x universalismo: o combate ao essencialismo

Não estaria Egleaton, neste trecho, caindo nas armadilhas de um essencialismo


epistemológico que tende a fixar, engessar sentidos? Um conceito para ser potencialmente
fértil precisaria ser “nem tão amplo, nem tão restrito”? precisaria ser algo não ambíguo?
Definível? Traduzir de forma rigorosa algo que existe fora dele? Ou estaria a
potencialidade de um conceito, como o de cultura, justamente nessa sua imprecisão, nessa
sua possibilidade de diferentes apropriações e ao mesmo tempo na impossibilidade do seu
enfrentamento ser evitado, da sua condição de categoria incontornável na leitura de mundo
na nossa contemporaneidade?
81

Possibilidades discursivas no campo do currículo a partir das narrativas


dos sujeitos praticantes do cotidiano de escolas públicas do primeiro
segmento do Ensino Fundamental

Carlos Eduardo Ferraço - Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, Programa de


Pós-Graduação em Educação – PPGE

Este trabalho situa-se em meio à dimensão do “hibridismo do campo curricular”


(LOPES e MACEDO, 2002), tendo em vista nossa tentativa de aproximação dos discursos
dos “currículos em redes” (ALVES, 2002), do “cotidiano praticado” (CERTEAU, 1994) e
dos “estudos pós-coloniais” (BHABHA, 1998), sobretudo em relação às idéias de “redes de
saberesfazeres”, “sujeito praticante”, “performance”, “mímica”, “tradução”, “negociação”,
“hibridismo” e “cultura”. De modo mais específico, estamos interessados em
problematizar, com os sujeitos que praticam o cotidiano, os currículos realizados em meio
às redes de saberesfazeres tecidas e compartilhadas por eles, assumindo a perspectiva de
escola como entrelugar da cultura. Nessas redes, estamos interessados nas possibilidades
teórico-metodológicas praticadas pelos sujeitos cotidianos que escapam àquelas propostas
no currículo prescrito expressando, muitas vezes, embates culturais que são produzidos
performativamente a partir de uma negociação complexa em andamento que procura
conferir autoridade aos hibridismos culturais (BHABHA). Os sujeitos praticantes do
cotidiano, ao tecerem suas redes de fazeressaberes por ocasião do currículo, negociam
temporalidades culturais incomensuráveis. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a
uma identidade original ou a uma tradição recebida por meio de uma prescrição. Para tanto,
assumimos com Bhabha a idéia de cultura como “lugar enunciativo” que se realiza a partir
das negociações, traduções, mímicas e usos que são vividos nas redes cotidianas. De fato,
se cultura como epistemologia se concentra na função e na intenção, ou ainda, na descrição
de elementos culturais em sua tendência a uma totalidade, a idéia de cultura como
enunciação se concentra na significação. Assim, a cultura pensada como enunciação busca
rastrear deslocamentos e realinhamentos que são resultado de articulações culturais,
subvertendo a razão do momento hegemônico e recolocando lugares híbridos, alternativos,
de negociação cultural. Como defende Bhabha, a intenção de especificar o presente
82

enunciativo na articulação da cultura é estabelecer um processo pelo qual outros


objetificados possam ser transformados em sujeitos de sua história e de sua experiência, o
que nos aproximaria da proposta de sujeito praticante de Certeau. Os diferentes tipos de
interesses e histórias de vida e de formação, as condições mutantes dos sujeitos e suas
relações de enunciações da cultura, tecidas em redes, possibilitam nas escolas a criação de
ambientes movediços, entrelugares culturais, proporcionando aos praticantes múltiplos
espaçostempos de negociações, traduções, performances, mímicas e hibridizações na
realização dos currículos. Com isso, temos negado a visão de escola que a assume como
museu imaginário de diversas culturas, possíveis de serem apreciadas por meio de datas
comemorativas, personagens da história ou da cultura, costumes próprios de determinados
povos ou qualquer outra tentativa curricular que se aproxime de uma perspectiva
multicultural clássica. De fato, como sujeitos híbridos nos entrelugares culturais das
escolas, professores e alunos praticam currículos os quais não se deixam aprisionar todo o
tempo por identidades culturais ou políticas, originais ou fixas, ameaçando o discurso
oficial de uma proposta única para todo o sistema e abrindo brechas que desafiam o
instituído. São essas brechas que nos interessam na realização deste projeto de pesquisa. Ou
seja, nos anais do anonimato das redes cotidianas, as negociações, traduções, performances,
hibridismos e usos que acontecem se valem de diferentes lógicas, diferentes éticas e
estéticas. Os saberesfazeres dos sujeitos que praticam o cotidiano escolar são ambivalentes,
deslizam o tempo todo, produzem fraudes, dissimulações, deslocam o instituído, criam
outras possibilidades. Por isso, nosso interesse está naquilo que escapa, nas táticas dos
praticantes que burlam a prescrição. Para tanto, metodologicamente, defendemos que
somente mergulhando com todos os sentidos (ALVES, 2001) na pesquisa com o cotidiano
(FERRAÇO, 2005) das escolas é possível nos aproximarmos das possibilidades discursivas
que desconstróem a idéia de que existe algo objetivo e pontual que possa ser chamado de
cultura ou de currículo.

Referências
ALVES, Nilda. Decifrando o pergaminho: o cotidiano das escolas nas lógicas das redes
cotidianas. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa de; ALVES, Nilda (Org.). Pesquisa no/do
cotidiano das escolas: sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 13-38.
ALVES et al. (Org.). Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez, 2002.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
83

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes de fazer. Petrópolis: Vozes,


1994.
FERRAÇO, Carlos Eduardo. (Org.). Cotidiano escolar, formação de professores(as) e
currículo. São Paulo: Cortez, 2005.
LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elisabeth (Org.). Currículo: debates contemporâneos.
São Paulo: Cortez, 2002.

Grupo de Pesquisa: Formação de professores e práticas pedagógicas


Ano de formação: 1992
Pesquisadores
Janete Magalhães Carvalho - janetemc@terra.com.br (Coordenadora)
Regina Helena Silva Simões - reginahe@terra.com.br (Coordenadora)
Carlos Eduardo Ferraço - ferraco@uol.com.br (Membro)
Linhas de pesquisa
Escola, currículo, sociedade e cultura
Formação de professores e práticas pedagógicas
Formação e Práxis Político-Pedagógica do Professor

Endereço
Avenida Fernando Ferrari, s/nº - Campus Universitário - CP
Goiabeiras, Vitória, ES, CEP: 29060-900
e-mail: ppge@npd.ufes.br

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