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Jurandir Malerba (Org.

Lições de história
O caminho da ciência no longo século XIX

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Copyright © 2010 Jurandir Malerba

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Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.

1a edição — 2010

Preparação de originais: Luiz Alberto Monjardim


Editoração eletrônica: FA Editoração Eletrônica
Revisão: Aleidis de Beltran, Fatima Caroni e Marco Antonio Corrêa
Capa: Adriana Moreno

Ficha catalográfica elaborada pela


Biblioteca Mario Henrique Simonsen

Lições de história : o caminho da ciência no longo século XIX / Jurandir


Malerba (Org.). — Rio de Janeiro : Editora FGV, 2010.
492 p.

Coedição EdiPUCRS
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-225-0833-4
ISBN: 978-85-7430-999-6

1. Historiografia. 2. História — Séc. XIX. 3. Historiadores — Séc. XIX.
I. Malerba, Jurandir. II. Fundação Getulio Vargas.
CDD — 907.2

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Sumário

Prefácio | Jurandir Malerba 7


História e historiadores no século XIX | François Dosse 15
Voltaire | Daniela Kern 33
Voltaire, História 42
Pierre Daunou | Daniela Kern 63
Daunou, Discurso de abertura do curso de história pronunciado no
Collège de France em 13 de abril de 1819 72
Jules Michelet | Lilia Moritz Schwarcz 91
Do método e do espírito: “Liberdade é liberdade” 94
Michelet, Prefácio de 1868 (História da Revolução Francesa) 98
Michelet, Do método e do espírito deste livro 100
Chateaubriand | Teresa Malatian 113
Chateaubriand, Prefácio (Études Historiques) 119
Leopold von Ranke | Julio Bentivoglio 133
Ranke, Sobre o caráter da ciência histórica 141
Gervinus | Julio Bentivoglio 155
Gervinus, Prefácio (Einleitung in die Geschichte des
Neunzehnten Jahrhunderts) 164
A história em Marx | Leandro Konder 173

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Thomas Carlyle | Jurandir Malerba 191
Carlyle, Sobre a história 196
Thomas Babington Macaulay | Sérgio Campos Gonçalves 211
Macaulay, História 216
Lord Acton | Jurandir Malerba 249
Lord Acton, Do estudo da história 261
Louis Bourdeau | Marcos Antônio Lopes 287
Bourdeau, Parágrafo II — Lei geral da história: do progresso 297
Fustel de Coulanges | Temístocles Cezar 307
Fustel de Coulanges, Aula inaugural do curso de história
da Faculdade de Estrasburgo (1862) 317
Fustel de Coulanges, Regras de uma história imparcial 318
Gabriel Monod | Teresa Malatian 323
Monod, Do progresso dos estudos históricos na
França desde o século XVI 332
Ernest Lavisse | Tereza Cristina Kirschner 353
Lavisse, Do determinismo histórico e geográfico 361
Charles Seignobos | Helenice Rodrigues da Silva 375
Seignobos, Advertência 381
Seignobos, O método histórico aplicado às ciências sociais 382
Paul Lacombe | Raimundo Barroso Cordeiro Jr. 393
Lacombe, O domínio da história ciência e seus limites 399
Henri Berr | José Carlos Reis 413
Berr, Erudição, filosofia da história e síntese 423
Ernst Troeltsch | Sérgio da Mata 433
Troeltsch, A crise atual da história 448
Bibliografia 459
Os colaboradores 485

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Thomas Babington Macaulay
Sérgio Campos Gonçalves

“A história, pelo menos no seu estado de perfeição ideal, é um misto


de poesia e filosofia. Imprime no espírito verdades gerais por meio da
representação viva de certos personagens e incidentes.”

Thomas Babington Macaulay foi um dos historiadores britânicos mais


respeitados do século XIX. Filho de mãe quacre protestante e de um
montanhês da Escócia que era partidário da reforma social e filantropo
do movimento antiescravista, Macaulay nasceu em Leicestershire, onde
revelou seu dom para as letras já na tenra idade: o prodígio lia aos três
anos, e aos oito escreveu um compêndio de história universal. Aos 18
anos, entrou para o Trinity College, em Cambridge, e, aos 23, começou
sua carreira literária no Knight’s Quarterly Magazine. Em dois anos, pas-
sou a publicar ensaios na Edinburgh Review, onde seu estilo declamatório
e sutil conquistou leitores. Aos 26 obteve sua admissão de advogado, mas
nunca exerceu a profissão. A partir de 1830, quando se tornou membro
do parlamento, Macaulay ganhou notoriedade com seus discursos a favor
dos movimentos da reforma parlamentar, contra o escravismo e pela am-
pliação da igualdade de direitos, posto que a ideia do sufrágio universal
nunca o agradou. Ensaísta eloquente, poeta e político whig, Macaulay foi
porta-voz das classes médias liberais inglesas tanto através de seus escri-
tos quanto em sua participação parlamentar.


Macaulay, 1843.

Para traçar o perfil de Macaulay, utilizei um apanhado de ensaios biográficos: Canning (1882);
Stephen (1893); MacGregor (1901); Morison (1901); Pattison (2008); Stirling (1868); Strunk
Jr. (1895); The Dean of St. Paul’s (1862); Trevelyan (1876 e 1907); Watrous (1900).

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Macaulay entrou na política pela porta da escrita. Ao passo que seus


ensaios tornaram possível que seu nome fosse votado para a Câmara dos
Comuns, a baixa câmara britânica, seus discursos o destacaram entre os
parlamentares. No entanto, sua reputação e credibilidade pública não evi-
taram que sua família estivesse à beira da falência. Como era o princi-
pal provedor da família, Macaulay aceitou servir ao Conselho Supremo
da Índia, entre 1834 e 1838, no qual trabalhou na instrumentalização do
sistema educacional e na criação do código criminal, que anos depois foi
reproduzido em outras colônias britânicas. Crente firmemente na superio-
ridade e na integridade moral das instituições britânicas, sua participação
determinante pela presença inglesa na Índia rendeu a criação dos termos
Macaulay’s children e macaulayism, que se referem aos nativos indianos que
adotam a cultura ocidental como estilo de vida, ou que se mostram in-
fluenciados pelos colonizadores.
Ao retornar à Inglaterra, Macaulay ganhou várias posições de prestí-
gio no governo e na Universidade de Glasgow. Em 1839, voltou a ser mem-
bro do parlamento por Edimburgo e, no mesmo ano, ganhou o posto de
secretário de Guerra no gabinete do ministro Lord Melbourne. Sua estada
no gabinete o desviou do plano de produzir sua grande obra histórica, mas
Macaulay voltou a devotar seu tempo aos escritos quando o ministério de
Melbourne caiu. Em 1842, alcançou o sucesso com a publicação de uma
coleção de poemas sobre episódios heroicos da história de Roma, os quais
compusera durante sua estada na Índia, intitulado Lays of Ancient Rome.
No ano seguinte, recolheu e publicou seus Critical and historical essays.
Em 1846, voltou a ter um cargo ministerial, mas suas atribuições leves
o permitiram trabalhar também como historiador. Perdeu sua cadeira no
parlamento nas eleições de 1847 e, no ano seguinte, publicou os dois pri-
meiros volumes de sua grande obra, The history of England from the accession
of James the Second, que obteve estrondoso sucesso. Logo foi eleito reitor
na Universidade de Glasgow, cargo sem obrigações administrativas que
frequentemente é atribuído aos estudiosos de fama literária ou política. Em
Glasgow, Macaulay recusou o cargo de professor de história moderna para
se dedicar aos seus escritos. Ao ser aclamado pelos eleitores de Edimburgo


Macaulay, 1957:721-724.

Gilley, 1999:746-747.

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Thomas Babington Macaulay 213

nas eleições de 1852, para que fosse reeleito para o parlamento, Macaulay
aceitou candidatar-se sob a condição de não fazer campanha e de não se
comprometer com nenhuma questão política. Foi eleito, apesar das con-
dições. Entretanto, devido à saúde ruim, mal permaneceu na Câmara nos
anos que se seguiram. O trabalho no parlamento evidentemente havia se
tornado pesado demais, e Macaulay deixou o cargo vago em 1856, sacrifi-
cando sua carreira política e até mesmo seu convívio social para se dedicar
à sua obra histórica. Apesar de ter sido agraciado com o título nobiliárqui-
co de barão de Rothley em 1857, raramente esteve presente na Câmara dos
Lordes, a instituição superior bretã.
Os escritos políticos de Macaulay, famosos pelo seu estilo brilhante
de prosa autoconfiante, às vezes dogmático, enfatizavam um modelo pro-
gressivo para a história britânica, em acordo com a articulação de uma
cultura provisional e da crença na liberdade de expressão. Os ensaios
que publicou, notadamente na Edinburgh Review, tornaram célebre um
homem de origem simples. Em 1855, a publicação do terceiro e quarto
volumes de sua History of England alcançou o mesmo sucesso dos volu-
mes anteriores. Nos Estados Unidos, suas vendas apenas não excederam
a Bíblia e alguns livros escolares. Posteriormente, a obra foi traduzida
para vários idiomas, como o alemão, o dinamarquês, o sueco, o italiano,
o francês, o holandês, o espanhol, o húngaro, o russo, o persa. O sucesso
foi imediato, os leitores se deixaram cativar-se pela obra histórica como
o faziam pela ficção, pois sua arte narrativa evocava a qualidade cênica e
dramática para os eventos históricos.
O estilo empírico, formal e impositivo de Macaulay era muito admi-
rado em sua época. A escrita era clara e impressiva, com uma narrativa
poderosa e rica em detalhes. Contudo, sua perspectiva mostra-se inega-
velmente influenciada por preconceitos protestantes e com a tendência do
exagero e da pomposidade. Além de sua forma de escrever a história ter
sido bastante criticada por historiadores posteriores, foi acusado de mani-
pular a narrativa para conformá-la a seus pontos de vista e, portanto, de
subestimar os fatos que contrariavam suas opiniões. Karl Marx se refere


Ward et al., 2000.

Gilley, 1983.

Sobre a estilística literária de Macaulay e sua historicidade, ver Gay (1990).

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a Macaulay como um “sistemático falsificador da história”, dado que “ele


minimiza tanto quanto possível os fatos que lhe convêm”. Ironicamente,
o próprio Macaulay havia escrito, em 1828, que “a prática de distorcer a
narrativa para conformá-la a uma teoria é um vício não tão desconfortável
quanto pode aparecer à primeira vista aos interesses da ciência política”.
Ao incluir em sua perspectiva histórica os fatores econômicos, políti-
cos e sociais juntamente com as transformações das maneiras de compor-
tamento e de moral como os principais fatores das “revoluções silenciosas”,
Macaulay antecipou as tendências historiográficas que apenas se cristaliza-
riam um século depois no ofício do historiador.10
Na universidade, Macaulay ficou conhecido por sua proeminência ge-
nial de orador inesgotável, e isso o tornou admirado por personalidades de
destaque em sua época. Embora estivesse absolutamente em acordo com
os ideais rankianos, com sua abordagem historiográfica mais próxima do
positivismo que do empirismo puro, Macaulay apresentava um tom oti-
mista para as origens históricas da era vitoriana e do império britânico.11
Enxergava na história uma fonte valiosa de conhecimento, pois ela condu-
ziria o pensamento a um raciocínio provisional, isto é, a história forneceria
as ponderações a respeito do futuro. Em sua obra, é evidente a concepção
filosófica da história como um contínuo progresso da vida, que evoluía da
“selvageria para a humanidade”,12 e cuja narrativa servia para justificar os
ideais whigs e protestantes. É lugar-comum em sua história o delineamento
dos personagens através de uma dualidade maniqueísta, em que os whigs
liberais e protestantes aparecem como protagonistas, e os tories conserva-
dores e católicos, como antagonistas, todos articulados ao processo histó-
rico do sucesso britânico pela exclusão do catolicismo.
Como historiador, Macaulay não escapou do partidarismo. Os cinco
volumes de sua grande obra, History of England, garantiram que seu mo-
delo progressista de interpretação o colocasse como um dos fundadores
da chamada “interpretação whig da história”, que é, em outras palavras,


Marx, 1906.

Macaulay, 1828:361.
10
Ibid., p. 363. Ver Davies (1939).
11
Powell, 2007.
12
Macaulay, 1828:362.

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Thomas Babington Macaulay 215

uma historiografia que apresentava o passado inevitavelmente progressista


rumo à liberdade e à ilustração, o qual culminaria nas formas modernas da
democracia liberal e na monarquia constitucional. Macaulay foi precursor
de um modelo de interpretação histórica whig em que é comum o enalte-
cimento da ascensão do governo constitucional, das liberdades pessoais e
do progresso científico.13
Na primeira metade do século XIX, no Reino Unido, o crescimento
do poder da classe média industrialista e de homens de negócio criou
a demanda por uma reinterpretação da história inglesa que enfatizasse
o papel da guerra civil do século XVII e da Revolução Gloriosa como a
pedra fundamental para a liberdade, a prosperidade e o progresso social
da Inglaterra. Mais que qualquer outro escritor, Macaulay advogou his-
toriograficamente em favor desse ponto de vista whig na história bretã
e foi porta-voz do avanço material da era vitoriana à mesma proporção
que atenuou os problemas econômicos e sociais oriundos da revolução
industrial.14
Combinando racionalismo e imaginação romântica, os ensaios de Ma-
caulay ajudaram a moldar a visão histórica de mundo de uma geração de
ingleses, convenientemente convictos de que suas instituições serviam aos
melhores interesses para o desenvolvimento dos países sob sua tutela. Seu
estilo narrativo claro e enfático tornou-se um exemplo a ser perseguido
pelo alto padrão jornalístico. Com Carlyle, Macaulay compartilha a honra
de figurar entre os grandes ensaístas ingleses. Enquanto Carlyle se desta-
cou por sua percepção imaginativa, Macaulay conquistou grande audiência
com seu estilo atrativo, sua narrativa ilustrada e sua precisão descritiva.15
A concepção de história de Macaulay foi seguida notadamente por
seu sobrinho, Sir George Otto Trevelyan, editor da coletânea Life and Let-
ters, que ainda é a mais completa obra sobre a vida de Macaulay, e por seu
sobrinho-neto, o historiador George Macaulay Trevelyan, que adotou o
estilo literário do tio-avô, mirando no exemplo de Macaulay em toda a sua
carreira.16

13
Gilley, 1983.
14
Nixon, 2002; Clive, 1973.
15
Fitch, 1912.
16
Adrian, 1963.

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216 Lições de história

Macaulay morreu em 1859, sem nunca ter se casado e sem filhos. Dei-
xou sua History of England incompleta, cujo último volume foi publicado
após sua morte, em 1861. Seu corpo foi enterrado em Abadia de West-
minster, na cripta dos poetas, sob o epitáfio “o seu corpo jaz em paz/ mas
o seu nome viverá para sempre”.17
Principais obras de Macaulay:

F Criticaland historical essays contributed in the Edinburgh Review (1843);


F Historical essays of Thomas Babington Macaulay (1901);
F Lays of Ancient Rome (1842);
F Literary essays of Thomas Babington Macaulay (1900);
F The complete works (1866, 8v.);
F The history of England from the accession of James the Second (1848-1861);
F The miscellaneous writings and speeches of Lord Macaulay (1860).

História18

Para escrever a história apropriadamente — isto é, para abreviar de-


liberações e extrair excertos dos discursos, para intercalar na devida pro-
porção epítetos de enaltecimento e abominação, para traçar as qualidades
antagônicas dos grandes homens, mostrando quantas virtudes contraditó-
rias e vícios eles reúnem, e seus prós e contras em abundância — tudo isso
é muito fácil.19 Entretanto, ser realmente um grande historiador é talvez a
mais rara das distinções intelectuais. Muitos trabalhos científicos são, ao
seu modo, absolutamente perfeitos. Há poemas que somos inclinados a
designar como impecáveis, ou como prejudicados apenas por defeitos que
em geral passam despercebidos no brilho geral da excelência. Há discursos,
em particular alguns de Demóstenes,20 nos quais seria impossível mudar
uma palavra sem que a alteração se desse para pior. Mas não conhecemos

17
Ruas, 1940:32.
18
Publicado originalmente na Edinburgh Review (n. 47, p. 331-367, 1828), em resenha ao livro
The romance of history England (London, 1828), do literário inglês Henry Neele (1798-1828).
Traduzido de Macaulay (1889). Tradução, edição e notas de Sérgio Campos Gonçalves.
19
Mantive os destaques em itálico do autor estritamente de acordo com a primeira versão do
texto, publicada na Edinburgh Review.
20
Proeminente orador e estadista ateniense (385-322 a.C.).

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Thomas Babington Macaulay 217

nenhuma história que se aproxime de nossa noção de como a história deve


ser — nenhuma história que não se afaste, tanto à direita quanto à esquer-
da, da linha exata.
A causa pode ser facilmente determinada. Essa província da literatura
é uma zona litigiosa. Situa-se nos confins de dois territórios distintos. Está
sob a jurisdição de dois poderes hostis; e, como outros distritos semelhan-
temente situados, é maldefinido, malcultivado e malregulado. Em vez de
ser igualmente partilhada entre seus dois regentes, a razão e a imaginação,
cai alternadamente sob o domínio único e absoluto de um deles. É às vezes
ficção. É às vezes teoria.
A história, como se diz, é filosofia ensinada através de exemplos. Infe-
lizmente, o que a filosofia ganha em validade e profundidade, os exemplos
geralmente perdem em vivacidade. Um historiador perfeito precisa possuir
uma imaginação suficientemente poderosa para tornar sua narrativa envol-
vente e pitoresca. Contudo, ele deve controlá-la absolutamente, contentan-
do-se com os materiais que encontra e abstendo-se de suprir as deficiências
pelo acréscimo de materiais próprios. Ele deve ser um pensador profundo
e astuto. Todavia, deve possuir autocontrole suficiente para se abster de
moldar os fatos às suas hipóteses. Aqueles que podem estimar justamente
essas dificuldades quase insuperáveis não acharão estranho que todos os
escritores possam falhar, tanto na narrativa quanto no departamento espe-
culativo da história.
Pode-se colocar como uma regra geral, apesar de sujeita a ressalvas
e exceções consideráveis, que a história se inicia como romance e termina
como ensaio. Dos historiadores românticos, Heródoto é o mais antigo e o
melhor. Sua animação, sua ternura sincera, seu maravilhoso talento para a
descrição e o diálogo, e o fluxo doce e puro de sua linguagem os colocam à
frente dos narradores. Lembra-nos uma criança encantadora. Há uma graça
além do alcance da simulação em sua inaptidão, uma malícia em sua ino-
cência, uma inteligência em seu absurdo, uma eloquência insinuante em
seu ceceio.21 Não sabemos de nenhum escritor que desperte tal interesse
por si mesmo e sua obra no coração do leitor. Escreveu um livro incompa-
rável. Escreveu algo talvez melhor que a melhor história; mas não escreveu

21
De acordo com o Dicionário Houaiss (Objetiva, 2001), é a ação ou o efeito de pronunciar as
consoantes /s/ e /z/ como interdentais.

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uma boa história; ele é, do primeiro ao último capítulo, um inventor. Não


nos referimos aqui meramente àquelas ficções grosseiras pelas quais ele
foi repreendido pelos críticos de tempos depois. Falamos desse colorido
que é igualmente difuso sobre toda a sua narrativa e que perpetuamente
deixa o mais sagaz leitor em dúvida sobre o que rejeitar e o que acolher. As
partes mais autênticas de seu trabalho têm a mesma relação com as lendas
mais selvagens que Henrique V tem com A tempestade.22 Shakespeare nos
faz enumerações dos exércitos e dos que retornaram mortos ou feridos, as
quais, suspeitamos, não são muito menos exatas que aquelas de Heródoto.
Há passagens em Heródoto quase tão longas quanto os atos de Shakespea-
re, em que tudo é dito dramaticamente, e em que a narrativa serve apenas
às finalidades da encenação. Sem dúvida, é possível que o conteúdo de
algumas conversas tenha sido reportado ao historiador. Contudo, eventos
que aconteceram em épocas e nações tão remotas cujos detalhes nunca po-
deriam ter sido do conhecimento dele, se é que chegaram a ocorrer, são re-
latados com grande minúcia de detalhes. Consequentemente, consideran-
do o que ele registrou dos acontecimentos sobre os quais poderia estar bem
informado, somos incapazes de julgar se podemos acreditar em qualquer
coisa além do esboço despido; por exemplo, se a resposta de Gélon23 aos
embaixadores da Confederação Grega, ou se o que foi dito entre Aristides24
e Temístocles25 na sua famosa entrevista nos foram corretamente transmiti-
dos. Os grandes eventos são, sem dúvida, fielmente relatados. Assim como

22
Considerada por muitos a última peça escrita por William Shakespeare, provavelmente em
1610/1611. Embora sua primeira publicação tenha sido listada como comédia, muitos editores
modernos catalogam a peça como romance.
23
Tirano (c.540-478 a.C.) de Gela e Siracusa, colônias fundadas pelos gregos na Sicília.
24
Aristides, o Justo, general e estadista ateniense. Em 482 a.C., sofreu a pena do ostracismo,
provavelmente, por fazer oposição a Temístocles. No entanto, foi requisitado a voltar para aju-
dar a derrotar os persas nas batalhas de Salamina e Plateia. Em 478 a.C., colaborou com os alia-
dos do leste de Esparta para formar a Liga de Delos, que, aliada à cidade de Atenas, efetivamente
se tornou uma espécie de império ateniense.
25
Político e general-estrategista naval ateniense (525-460 a.C.) que liderou o Partido Democrá-
tico Ateniense. Sua principal medida foi criar uma frota naval capaz de rechaçar uma possível
invasão persa. A vitória sobre a frota persa de Xerxes I na batalha de Salamina lhe deu grande
fama. No entanto, em razão de seu caráter belicista, foi lançado no ostracismo por seus adver-
sários, que tentaram lhe imputar uma acusação de alta traição. Refugiou-se no reino persa antes
do julgamento e, ironicamente, foi aceito no reino que derrotou, pois os persas aceitavam os
homens experientes que pudessem ajudá-los na expansão de seu império.

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Thomas Babington Macaulay 219

provavelmente o são muitas das circunstâncias menos importantes, mas as


quais é impossível verificar. As ficções são em muito como os fatos, e os
fatos são em muito como as ficções, de modo que, com respeito a vários
detalhes interessantes, nossa crença não é confirmada nem negada, mas
permanece em um estado inquieto e eterno de suspensão. Nós sabemos
que há uma verdade; mas não podemos decidir exatamente onde ela está.
As falhas de Heródoto são falhas de uma mente simples e imagina-
tiva. As crianças e os criados são notavelmente herodotonianos em seu
estilo de narração. Dizem tudo de maneira dramática. Qualquer um que
já teve que resolver suas disputas sabe que, mesmo quando eles não têm
intenção de enganar, seus relatos de conversas sempre requerem uma
filtragem cuidadosa.
Heródoto escreveu como era natural que devesse escrever. Ele escre-
veu para uma nação suscetível, curiosa, vigorosa, insaciavelmente desejosa
de novidade e excitação; para uma nação onde as belas-artes tinham alcan-
çado sua mais alta excelência, mas onde a filosofia ainda engatinhava. Seus
compatriotas tinham recentemente começado a cultivar a composição em
prosa. Os negócios públicos geralmente haviam sido registrados em verso.
Assim, os primeiros historiadores puderam usar, sem medo de censura, da
licença permitida a seus antecessores, os bardos.26 Os livros eram poucos.
Os acontecimentos dos tempos passados eram aprendidos pela tradição e
pelas canções populares; as maneiras dos países estrangeiros, pelos relatos
de viajantes. É sabido que o mistério que paira sobre o que é distante, tan-
to no espaço quanto no tempo, frequentemente nos impede de censurar
como aberração o que percebemos ser impossível. O que para nós é a época
das Cruzadas, a geração de Creso27 e Sólon28 era para os gregos na época de
Heródoto. A Babilônia era para eles o que Pequim era para os acadêmicos
franceses do século passado.
A obra de Heródoto foi composta para tal povo; e, se pudermos con-
fiar em um relato, não sancionado de fato por escritores de alta autoridade,
mas em si mesmo não improvável, foi composta não para ser lida, mas

26
Poetas ou cantadores de versos épicos e heroicos. O termo remete a uma tribo celta que viveu
onde hoje é a Irlanda.
27
Creso (?-546 a.C.), último rei da Lídia, morto em 546 a.C., famoso pela sua imensa riqueza.
28
Sólon (c.638-c.559 a.C.), legislador e estadista da antiga Atenas.

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220 Lições de história

para ser ouvida. Não foi na circulação vagarosa de algumas cópias, as quais
apenas alguns ricos poderiam possuir, que o ambicioso autor procurou
assegurar sua recompensa. O interesse pela narrativa e a beleza do estilo
foram auxiliados pelo majestoso efeito da declamação, pelo esplendor do
espetáculo, pela forte influência da empatia. Um crítico que solicitasse au-
toridades no meio de tal cena deveria ser de uma natureza fria e cética; e
poucos críticos estavam lá. Como era o historiador, assim também eram os
ouvintes, inquisitivos, crédulos, facilmente movidos pelo temor religioso
ou pelo entusiasmo patriótico. Com igual prazer escutariam os romances
graciosos de seu próprio país. Eles agora ouviam falar da realização de
predições obscuras, da punição de crimes sobre os quais a justiça do Céu
parecia ter ignorado, de sonhos, presságios, avisos dos mortos, de prince-
sas para quem nobres pretendentes se afirmavam através de cada exercício
generoso de força e habilidade, de crianças estranhamente protegidas da
lança do assassino, para cumprir grandiosos destinos.
Como a narrativa aproximou-se da sua época, o interesse se tornou
ainda mais atraente. O cronista tinha agora que contar a história daquele
grande conflito do qual a Europa data sua supremacia intelectual e política,
uma história que, mesmo com a distância no tempo, é a mais incrível e a
mais emocionante dos anais da raça humana, uma história abundante de
tudo que é espantoso e admirável, com tudo que é patético e animado;
com caprichos gigantescos de fortunas infinitas e poder despótico, com
poderosos milagres de sabedoria, de virtude e de coragem. Qualquer coisa
que desse um forte tom de realidade à narrativa tão bem calculada para
inflamar paixões, e para lisonjear o orgulho nacional, certamente seria re-
cebida favoravelmente.
Entre o tempo em que se diz que Heródoto compôs sua história e o
final da Guerra do Peloponeso transcorreram aproximadamente 40 anos
— 40 anos coroados de grandes eventos políticos e militares. As circuns-
tâncias do período produziram um grande efeito na personalidade grega;
e em parte alguma esse efeito foi tão extraordinário como na ilustre demo-
cracia de Atenas. Um ateniense, de fato, mesmo no tempo de Heródoto,
dificilmente poderia ter escrito um livro tão romântico e eloquente como
aquele de Heródoto. Enquanto civilização avançada, os cidadãos daque-
la famosa república tornaram-se ainda menos visionários, e ainda menos
ingênuos. Ambicionaram saber, enquanto seus ancestrais contentavam-se

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Thomas Babington Macaulay 221

com a dúvida; começaram a duvidar, enquanto seus ancestrais pensavam


em seu dever de acreditar. Aristófanes29 gosta de aludir a essa mudança no
espírito de sua gente. O pai e o filho, em As nuvens,30 são evidentemente
representativos das gerações às quais respectivamente pertenceram. Nada
ilustra mais claramente a natureza dessa revolução moral que o julgamento
sobre a tragédia. As leituras sobre pontos de difícil compreensão da filo-
sofia, a fina distinção do casuísmo e o deslumbrante brilho que cerca a
retórica foram substituídos pela poesia.
A lógica moderna dos gregos era, de fato, distante do absoluto. A
lógica nunca pode ser estrita onde os livros são escassos, e onde as infor-
mações são veiculadas oralmente. Somos todos cientes de quão frequente-
mente as falácias, que quando estabelecidas no papel são logo detectadas,
passam por argumentos irrefutáveis quando apresentadas com destreza no
parlamento, em um bar ou em uma conversa privada. A razão é evidente.
Nós não podemos inspecioná-las de perto o suficiente para perceber suas
imprecisões. Não podemos compará-las. Perdemos de vista uma parte do
assunto antes que outro, que deveria ser tomado em relação àquele, chegue
até nós; e, como não há registro imutável do que havia sido aceito e do que
havia sido negado, contradições diretas passam a ser aceitas com pouca
dificuldade. Quase toda a educação de um grego consistia em falar e ouvir.
Suas opiniões sobre o governo eram levantadas nos debates da assembleia.
Se desejasse estudar metafísica, ao invés de se enclausurar com um livro,
ele poderia caminhar até o mercado e procurar por um sofista. De tal modo
esses homens foram formados por esses hábitos, que mesmo a escrita ad-
quiriu um tom de conversação. Os filósofos adotaram a forma do diálogo
como o modo mais natural de comunicar o conhecimento. Suas razões têm
os méritos e os defeitos que pertencem àquela composição específica, e que
são caracterizadas mais pela rapidez e sutileza que pela profundidade e pre-
cisão. A verdade é exibida em partes e num relance. Inumeráveis conselhos
engenhosos são dados; mas nenhum sistema sólido e durável é erguido. O

29
Dramaturgo ateniense (c.447-c.385 a.C.), considerado o maior representante da comédia
antiga.
30
Nessa peça (423 a.C.), Aristófanes compara Sócrates aos sofistas, mestres da retórica, e acusa
o filósofo grego de exercer uma influência nefasta sobre a sociedade.

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222 Lições de história

argumentum ad hominem,31 o argumento mais eficaz em um debate, mas ab-


solutamente inútil para uma investigação de princípios gerais, está entre os
seus recursos favoritos. Assim, apesar de que nada pode ser mais admirável
que as habilidades que Sócrates mostrava nas conversas que Platão repor-
tou ou inventou, suas vitórias, na maioria das vezes, nos parecem inúteis.
Um troféu foi levantado; mas nenhuma nova província foi incorporada aos
domínios da mente humana.
No entanto, quando milhares de intelectos ágeis e afiados foram cons-
tantemente empregados na especulação sobre as qualidades das ações e
sobre os princípios do governo, foi impossível que a história retivesse seu
caráter inteiramente. Ela tornou-se menos comentário e menos pitoresca;
mas muito mais precisa, e de certa forma mais científica.
A história de Tucídides difere daquela de Heródoto como um retrato
difere da representação de uma cena imaginária; como o Burke32 ou o Fox33
de Reynolds34 diferem de seu Ugolino35 ou seu Beaufort.36 No caso anterior,
o arquétipo é dado; nos últimos, é criado. Aquele que é apto a pintar o
que vê com os olhos da mente seguramente será capaz de pintar o que ele
enxerga com os olhos do corpo. Aquele que pode inventar uma história, e
contá-la bem, também será capaz de contar, de maneira interessante, uma
história que não fora inventada.

31
“Argumento contra a pessoa”. Significa uma falácia ou erro de raciocínio que é identificado
quando alguém responde a algum argumento com uma crítica contra quem apresentou o argu-
mento, isto é, questiona a pessoa que argumenta ao invés do argumento.
32
Edmund Burke (1729-1797), filósofo e político anglo-irlandês famoso por sua oratória. Autor
de An inquiry into the origin of our ideas of the sublime and the beautiful (1757), defendeu a causa
dos colonos americanos no parlamento e também o sistema parlamentarista.
33
Trata-se do retrato de Charles James Fox (1749-1806), pintado pelo seu amigo próximo
Joshua Reynolds, em 1782. Político britânico, Fox foi um líder dos whigs na Câmara que se des-
tacou por sua campanha antiescravista, por defender a independência americana da Inglaterra
e por ser a favor dos preceitos da Revolução Francesa.
34
Sir Joshua Reynolds (1723-1792), um dos mais importantes e mais influentes pintores ingle-
ses do século XVIII. Especializado em retratos, foi um dos fundadores e primeiro presidente da
Royal Academy.
35
Em 1773, Reynolds pintou Count Ugolino and his children in the dungeon, inspirado na descri-
ção que Dante Alighieri fez de Ugolino della Gherardesca (c.1220-1289), comandante naval e
nobre italiano, no canto 33 de O inferno,
36
Cardinal Beaufort é o título do “retrato histórico” que Reynolds fez de Henry Beaufort (c.1375-
1447), clérigo medieval inglês e bispo de Winchester.

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Thomas Babington Macaulay 223

Alguns artistas volúveis e insatisfeitos têm influenciado outros a con-


siderarem a pintura de retrato como obra indigna de um gênio. Alguns
críticos têm falado da mesma maneira desdenhosa da história. Johnson37
trata o caso dessa forma: o historiador conta ou o que é falso ou o que é
verdadeiro. No primeiro caso, ele não é historiador; no último, ele não tem
oportunidade de mostrar suas habilidades. Para a verdade ser única, todos
que contam a verdade precisam contá-la igualmente.
Diversidade, diz-se, implica erro: a verdade é única e não admite gra-
dações. Respondemos que esse princípio apoia-se apenas em razões abs-
tratas. Quando falamos da verdade da imitação nas belas-artes, queremos
dizer uma verdade imperfeita e graduada. Nenhum desenho é exatamente
como o original; nem o desenho é proporcionalmente equilibrado como o
original. Quando Sir Thomas Lawrence38 pinta uma fidalga formosa, ele não
a contempla através de um poderoso microscópio, nem transfere à tela os
poros da pele, os vasos sanguíneos dos olhos e todas as outras belezas que
Gulliver descobriu nas damas de honra brobdingnagianas.39 Se ele tivesse
que fazer isso, o efeito não seria meramente desagradável, mas, a menos
que a escala da pintura fosse ampliada proporcionalmente, seria absoluta-
mente falso. E, apesar de tudo, um microscópio mais potente que o que ele
empregou o condenaria a inúmeras omissões. O mesmo poderia ser dito da
história. Não pode ser perfeitamente e absolutamente verdade: pois, para
ser perfeitamente e absolutamente verdade, conviria registrar toda a mais
insignificante particularidade dos mais insignificantes processos — todas
as coisas feitas e todas as palavras pronunciadas durante a época da qual se
trata. A omissão de qualquer circunstância, não importa quão insignificante,
seria um defeito. O que foi contado nos mais completos e mais exatos anais
representa uma proporção infinitamente menor daquilo que foi suprimido.

37
Samuel Johnson (1709-1784), lexicógrafo e escritor de destaque no cenário intelectual da
Inglaterra no século XVIII. Autor do Dictionary of the English language (1755) e da crítica literária
Lives of the most eminent English poets (1779-1781, 10v.), também escreveu em periódicos como
The Gentleman’s Magazine, The Universal Chronicle e The Rambler, além de narrativas de viagem,
como A journey to the Western Islands of Scotland (1775).
38
Considerado um dos melhores retratistas ingleses (1769-1830) de sua geração. Sucedeu Sir
Joshua Reynolds como pintor principal de George III, que lhe concedeu o título de Sir em
1815.
39
Habitantes da terra imaginária de Brobdingnag em As viagens de Gulliver (1726), de Jonathan
Swift (1667-1745).

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224 Lições de história

A diferença entre o trabalho copioso de Clarendon40 e a contabilidade das


guerras civis no resumo de Goldsmith41 desaparece quando comparada com
a imensa massa de fatos que ambos igualmente silenciam.
Nenhuma pintura, então, e nenhuma história podem nos oferecer a
verdade completa: mas as melhores pinturas e as melhores histórias são
aquelas que exibem tais partes da verdade como produto realizado mais
próximo do todo. Aquele que é desprovido da arte de verificação poderia,
apresentando nada além da verdade, produzir todo o efeito da falsidade
mais bruta. Sempre acontece que um escritor conta menos verdade que
outro, meramente porque ele conta mais verdades.
A história tem seu primeiro plano e seu fundo: e é principalmente no
gerenciamento de sua perspectiva que um artista difere de outro. Alguns
eventos devem ser representados em uma escala ampliada, e outros, dimi­
nuídos; a grande maioria será obscurecida no horizonte; e uma ideia geral de
sua articulação será dada por alguns toques singelos.
A esse respeito nenhum escritor jamais se igualou a Tucídides. Ele foi
um perfeito mestre da arte da diminuição gradual. Sua história às vezes é
concisa como um diagrama cronológico; todavia sempre é clara. Às vezes é
tão pequena quanto uma das cartas de Lovelace;42 embora nunca seja proli-
xo. Ele nunca falha em resumir ou expandir nos lugares corretos.
Tucídides emprestou de Heródoto a prática de colocar os seus próprios
discursos na boca de suas personagens. Em Heródoto esse uso dificilmente é
censurável. É uma parte de seu trabalho. Mas, no geral, é incompatível com
a obra de seu sucessor, e viola não apenas a precisão da história, mas a de-
cência da ficção. Uma vez dentro de espírito de Heródoto, não encontramos
inconsistência. A probabilidade costumeira de seu drama é preservada do co-
meço ao fim. As orações deliberadas e os diálogos familiares são mantidos em
estrita harmonia. Mas os discursos de Tucídides não são nem precedidos nem
seguidos de nada com que eles concordem. A invenção é chocante quando a
verdade está em tão próxima justaposição a ela.

40
Edward Hyde (1609-1674), primeiro conde de Clarendon, historiador e estadista inglês, con-
selheiro de Charles I e de Charles II, que lhe concedeu o título nobiliárquico. Escreveu History
of the rebellion and civil wars in England, publicada após sua morte em 1704.
41
Oliver Goldsmith (1728-1774), escritor de novelas, poesias, peças e ensaios. Inglês de origem
irlandesa, fez parte do Clube Literário fundado por Samuel Johnson e Joshua Reynolds.
42
Richard Lovelace (1618-c.1657), poeta e nobre cavaleiro inglês.

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Thomas Babington Macaulay 225

Tucídides nos diz honestamente que alguns daqueles discursos são


puramente fictícios. Ele poderia ter reproduzido o conteúdo de outros cor-
retamente, mas está nítido por evidências internas que ele preservou nada
mais que o conteúdo. Em toda parte, seus hábitos peculiares de pensar e
expressar são discerníveis. Raramente peculiaridades individuais e nacio-
nais são encontradas nos sentimentos, e nunca no estilo.
A despeito desse grande defeito, deve-se admitir que Tucídides ultra-
passou todos os seus rivais na arte da narração histórica, na arte de pro-
duzir um efeito sobre a imaginação, pela hábil seleção e organização, sem
se entregar à licença da invenção. Mas a narração, embora uma parte im-
portante do ofício do historiador, não é o todo. Acrescentar a moral a um
trabalho de ficção é tanto inútil quanto supérfluo. A ficção poderia dar um
efeito mais impressionante para o que já é sabido; mas não pode ensinar
nada de novo. Se ela nos apresenta características e séries de eventos para
os quais nossa experiência não nos fornece nada similar, ao invés de tirar
ensinamento dela, consideramo-la artificial. Nós não formamos nossas opi-
niões a partir dela; mas julgamo-la através de nossas opiniões preconcebi-
das. A ficção é, pois, essencialmente imitativa. Seu mérito consiste em sua
semelhança com um modelo com o qual já estamos familiarizados, ou ao
qual ao menos podemos imediatamente nos referir. Na ficção, os princípios
são dados para encontrar os fatos: na história, os fatos são dados para en-
contrar os princípios; e o escritor que não explica os fenômenos que expõe
faz apenas metade do seu serviço. Os fatos são meros dejetos da história. É
da verdade abstrata que os permeia e jaz latente entre eles, como o ouro em
um minério, que o conjunto deriva todo o seu valor: e as partículas precio-
sas estão geralmente combinadas de tal maneira que separá-las é uma tarefa
de máxima dificuldade.
Aqui Tucídides é falho: a deficiência, de fato, não é para ele vergo-
nhosa. Era um inevitável efeito das circunstâncias. Necessariamente, era na
natureza das coisas, em alguma parte de seu progresso através da ciência
política, que a mente humana deveria alcançar esse ponto que ela conquis-
tou em seu tempo. O conhecimento avança por etapas, e não por saltos. Os
axiomas de um clube de debate inglês seriam paradoxos impressionantes e
misteriosos aos homens políticos mais iluminados de Atenas.
Tucídides foi indubitavelmente um homem sagaz e iluminado. Isso
claramente aparece na habilidade com que examina questões práticas. Mas

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226 Lições de história

o talento de decidir sobre circunstâncias de casos particulares é um dom


possuído frequentemente na mais alta perfeição por pessoas destituídas
de poder de generalização. Certamente, a espécie de disciplina pela qual
essa destreza é adquirida tende a atrofiar a mente e a torna incapaz para o
raciocínio abstrato.
Os homens de Estado gregos da época de Tucídides foram célebres por
sua sagacidade prática, sua intuição das causas, sua habilidade de planejar os
meios para a realização de suas finalidades. Essa era a mesma escola em que
provavelmente os homens adquiriram a dissimulação de Mazarin,43 a ousa-
dia judiciosa de Richelieu,44 a compreensão, o tato delicado, o pressentimen-
to quase instintivo da aproximação de eventos que deram tanta autoridade ao
conselho de Shaftesbury, que “era como se um homem tivesse consultado o
oráculo divino”. Tucídides estudou nessa escola; e seu conhecimento é aque-
le que tal escola naturalmente propiciaria. Ele julga melhor circunstâncias
que princípios. Quanto mais a questão é limitada, melhor ele raciocina sobre
ela. Seu trabalho sugere várias considerações importantes com respeito aos
primeiros princípios de governo e moral, o crescimento das facções, a orga-
nização de exércitos, e as relações mútuas de comunidades. Todavia, todas
as suas observações gerais sobre esses assuntos são muito superficiais. Suas
observações mais judiciosas diferem daquelas observações de um historiador
realmente filosófico, assim como uma quantia corretamente calculada por
um contador difere de uma expressão geral descoberta por um algebrista. A
primeira é útil apenas em uma única transação; a última pode ser aplicada a
um número infinito de casos.
Receamos que essa opinião seja considerada heterodoxa. Pois, sem fa-
lar da ilusão que a visão de um caractere grego ou que o som de um diton-
go grego frequentemente produzem, há algumas peculiaridades no estilo
de Tucídides que nem minimamente lhe asseguram a reputação de quali-
dade profunda. Seu livro evidentemente é a obra de um homem e de um
estadista; e nesse aspecto apresenta um notável contraste com a prazerosa

43
Jules Mazarin (1602-1661) foi cardeal, estadista e diplomata papal aos 26 anos de idade. En-
volvido no cenário político italiano, serviu como primeiro-ministro na França a partir de 1642,
quando sucedeu seu mentor, o cardeal Richelieu.
44
Armand Jean du Plessis de Richelieu (1585-1642), cardeal-duque de Richelieu, foi primei-
ro-ministro de Luís XIII, de 1628 até sua morte. Além de ter sido uma liderança francesa na
Europa, colaborou para a construção do absolutismo na França.

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Thomas Babington Macaulay 227

imaturidade de Heródoto. Por toda a parte há um tom de madura autori-


dade, de reflexão grave e melancólica, de imparcialidade e de autodomínio
habitual. Raramente se entrega aos sentimentos, rapidamente reprimidos.
Preconceitos vulgares de todo tipo, e particularmente superstições banais,
são tratados com um peculiar desprezo frio e soberbo. Seu estilo é pesado,
condensado, antitético, e frequentemente obscuro. Mas, quando olhamos
para sua filosofia política, sem considerar tais circunstâncias, achamos que
ele foi — e seria realmente um milagre que não tivesse sido — simplesmen-
te um ateniense do quinto século antes de Cristo.
Geralmente, Xenofonte45 é situado, a nosso ver sem muita razão, no
mesmo nível de Heródoto e Tucídides. Ele se parece com eles, de fato, na
pureza e na doçura do seu estilo; mas, no espírito, pouco se parece com
aquela escola subsequente de historiadores cujas obras parecem ser fábulas
compostas para uma moral, e que, em sua ânsia de nos dar conselhos e
exemplos, esquece de nos dar homens e mulheres. A educação de Ciro, se a
olharmos como uma história ou como um romance, nos parece um desem-
penho muito miserável. Anábase e Helênicas certamente constituem leitura
agradável, mas não indicam nenhuma grande potência intelectual. Os sen-
timentos de piedade e virtude que abundam em seu trabalho são aqueles de
um homem bem intencionado, um tanto tímido e de visão limitada, devoto
da constituição em vez da convicção racional. A falta de senso de Heródoto
é a de um bebê; a de Xenofonte é a de um caduco. Suas histórias sobre
sonhos, presságios e profecias apresentam um estranho contraste com as
passagens em que o astuto e incrédulo Tucídides menciona as superstições
populares. Não está totalmente claro que Xenofonte era honesto em sua
credulidade; seu fanatismo, em alguma medida, estava na política.
Políbio46 e Arriano47 nos deram conta autêntica dos fatos; e aqui aca-
bam seus méritos. Não eram homens de mentes detalhadas; não tiveram a

45
Xenofonte (c. 427-355 a.C.), soldado, mercenário e discípulo de Sócrates. Autor de Anábase,
Helênicas, A educação de Ciro (370 a.C.), Agesilau (360 a.C.) e de obras socráticas.
46
Geógrafo e historiador grego (c. 203-120 a.C.), famoso por sua obra Histórias, que tratava do
mundo Mediterrâneo entre o período de 220 a 146 a.C.
47
Lucius Flavius Arrianus Xenofonte, ou Arriano (c. 92-c. 175), historiador romano da língua
grega, comandante militar e filósofo. Nasceu em Nicomédia, capital da província da Bitínia,
onde hoje é o noroeste da Turquia. Embora fosse cidadão romano, Arriano falava e escrevia em
grego. Seu trabalho constitui um importante relato sobre Alexandre, o Grande.

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228 Lições de história

arte de contar uma história de maneira interessante. Em consequência, foram


colocados à sombra pelos escritores que, embora menos estudiosos da ver-
dade que de si mesmos, de longe compreendiam melhor a arte de produzir
impacto, como Tito Lívio48 e como Quintus Curtius.49
Contudo, Políbio e Arriano merecem grande louvor quando compa-
rados com os escritores dessa escola de que Plutarco50 pode ser conside-
rado líder. Em relação aos historiadores dessa classe, devemos confessar
que guardamos uma aversão peculiar. Eles parecem ter sido meticulosos,
embora destituídos daquelas valiosas qualidades que frequentemente são
encontradas junto com a meticulosidade, ainda que eles mesmos fossem
grandes filósofos e grandes políticos. Eles não apenas enganaram seus leito-
res em cada página, em relação a fatos particulares, mas, em geral, parecem
ter entendido mal toda a natureza do tempo sobre o qual escreveram. Da
liberdade, tal como é em pequenas democracias, do patriotismo, tal como
é em pequenas comunidades independentes de qualquer tipo, eles não ti-
nham, e poderiam ter, nenhum conhecimento empírico.
Os escritores de quem falamos deveriam ter considerado isso. Deve-
riam ter considerado que o patriotismo, tal como existiu entre os gregos,
nada teve de essencialmente e eternamente bom; que a associação exclusiva
a uma sociedade particular, apesar de ser um sentimento natural e, sob
certas restrições, bastante útil, não implica nenhuma realização extraordi-
nária no conhecimento ou na virtude; que isso, onde existiu em um grau
intenso, transformou Estados em gangues de usurpadores cuja fidelidade
mútua os tornou mais perigosos, deu à guerra um caráter da atrocidade
peculiar, e gerou aquele que é o pior de todos os males políticos: a tirania
de nações sobre nações.
Entusiasticamente ligados à boa reputação da liberdade, esses histo-
riadores se preocuparam pouco com sua definição. Os espartanos, ator-
mentados por 10 mil restrições absurdas, incapazes de se satisfazerem com
a escolha de suas esposas, seus jantares ou suas corporações, foram com-
pelidos a assumir uma maneira peculiar, e a falar em um estilo peculiar,

48
Historiador romano (59 a.C.-17 d.C.) que escreveu a monumental história de Roma, em 142
volumes, desde sua fundação em 753 a.C.
49
Quintus Curtius Rufus ( ? -53 d.C.), historiador romano que escreveu durante o reinado do
imperador Cláudio. Autor de História de Alexandre Magno.
50
Plutarco de Queroneia (c. 46-120 d.C.), filósofo e biógrafo grego. Estudou na Academia de
Atenas, fundada por Platão.

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Thomas Babington Macaulay 229

em nome de sua liberdade. A aristocracia de Roma repetidamente fez da


liberdade um argumento para eliminar os favoritos dos povos. Em qua-
se todas as nações pequenas da Antiguidade, a liberdade era usada como
pretexto para medidas contrárias a tudo aquilo que faz a liberdade valiosa,
para medidas que reprimiam a discussão, corrompiam a administração da
justiça e desencorajavam a acumulação de propriedade. Os escritores cujas
obras estamos considerando confundiram o aspecto com a substância, e os
meios com as finalidades. A imaginação deles era inflamada pelo mistério.
Na relação dos eventos e na delineação das personagens, prestaram pouca
atenção aos fatos, aos costumes dos tempos que pretendiam tratar ou aos
princípios gerais da natureza humana. Foram fiéis apenas às suas próprias
doutrinas pueris e extravagantes.
Esses escritores, homens que não souberam o que era ter um país, ho-
mens que nunca gozaram de direitos políticos, criaram um discurso ofen-
sivo sobre patriotismo e zelo pela liberdade. O que os puritanos ingleses
fizeram pela linguagem da cristandade, o que Scuderi51 fez pelo discurso
do amor, eles fizeram pela linguagem do espírito público. Pelo exagero ha-
bitual fizeram-na vil. Pela ênfase monótona fizeram-na fraca. Maltrataram-
na até que ela se tornasse dificilmente possível de ser usada com efeito.
Tito Lívio teve algumas falhas em comum com esses escritores. Mas,
em geral, ele mesmo deve ser considerado uma classe à parte: nenhum his-
toriador com quem somos familiarizados mostrou tão completa indiferença
pela verdade. Ele parece ter se importado apenas com o efeito pitoresco
de sua obra e a honra de seu país. Por outro lado, em toda a extensão da
literatura, não encontramos exemplo de uma coisa ruim tão bem feita. O
quadro da narrativa está além da descrição vívida e graciosa. A abundância
de sentimentos interessantes e de imagens esplêndidas é quase miraculosa.
Sua mente é um solo que nunca é exaurido, uma fonte que parece nunca
gotejar. Jorra abundantemente; contudo, não dá nenhum sinal de exaustão.
Era provavelmente a essa exuberância do pensamento e da língua, sempre
fresca, sempre doce, sempre pura, frutífera, que os críticos aplicavam aque-
la expressão que tanto foi discutida: actea ubertas.52

51
Madeleine de Scudéry (1607-1701), também conhecida como Mademoiselle de Scudéry, foi
uma escritora e novelista francesa. Seu nome é encontrado grafado também como Scuderi.
52
Conforme a interpretação tradicional, essa expressão em latim foi usada no Institutio Ora-
toria, por Marcus Fabius Quintilianus (c.35-c.95), professor de retórica na Roma antiga, para

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230 Lições de história

Todos os méritos e todos os defeitos de Tito Lívio tomam as cores do


caráter de sua nação. Ele foi um escritor peculiarmente romano; orgulhoso
cidadão de um povo que, de fato, tinha perdido a realidade da liberdade,
mas que ainda preservou suas formas sagradas — na verdade, súdito de
um príncipe arbitrário, mas, em sua própria avaliação, um dos senhores do
mundo, com centenas de reis abaixo dele, e apenas deuses acima dele. En-
tão, ele olhou para trás, para os tempos passados, com sentimentos muito
diferentes daqueles que foram naturalmente compartilhados por seus con-
temporâneos gregos, e que em um período anterior se generalizaram entre
os homens de letras durante todo o império romano. Ele contemplou o
passado com interesse e prazer, não porque o passado forneceu o contraste
com o presente, mas porque havia conduzido ao presente. Ele recorreu a
isso, não para perder em recordações orgulhosas o sentido de degradação
nacional, mas para seguir o processo da glória nacional. É verdadeiro que
sua veneração pela Antiguidade produziu nele alguns efeitos que foram
gerados naqueles que chegaram nela por um caminho muito diferente. Ele
tem algo de seu exagero, algo de sua expressão, algo de seu apreço por ano-
malias e lusus naturae53 na moralidade. Contudo, mesmo aqui percebemos
uma diferença. Falam com entusiasmo do patriotismo e da liberdade de
forma abstrata. Ele não parece pensar em nenhum país exceto Roma como
merecedor de afeição; nem é pela liberdade em si que ele zela, mas pela
liberdade como uma parte das instituições romanas.
Dos relatos concisos e elegantes das campanhas de César54 pouco
pode ser dito. São modelos incomparáveis de expedições militares. Mas as
histórias não o são, nem fingem sê-lo.

caracterizar o estilo da prosa de Tito Lívio. Assim, a expressão de Quintiliano faria referência à
“patavinidade”, isto é, à latinidade provinciana do modo de falar que é próprio dos moradores
de Patavium, como Tito Lívio. Muito provavelmente, é a esta interpretação que Macaulay se
referiu. Contudo, outra possibilidade de entendimento foi levantada por Steve Hays (1986:107-
116), para quem a melhor compreensão da frase de Quintiliano é a seguinte: que os escritos
de Tito Lívio são “nutritivos”, ou seja, são tão apropriados para os bons estudantes de retórica,
por fornecer um bom modelo, quanto o leite é bom para o desenvolvimento dos bebês. Hays
argumenta que a metáfora do leite, no contexto da educação, é encontrada em Quintiliano, em
vários escritores gregos do século primeiro e até na Bíblia.
53
Anormalidade, pessoa ou coisa deformada, monstruosa.
54
Gaius Julius Caesar (100-44 a.C.), general, estadista e ditador romano. Teve papel decisivo na
transformação da Roma republicana em império.

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Thomas Babington Macaulay 231

Os críticos antigos colocaram Salústio55 no mesmo nível que Tito Lí-


vio; e inquestionavelmente a menor porção de seu trabalho que chegou até
nós é calculada para dar uma opinião justa de seus talentos. Mas seu estilo
não é muito aprazível: e o seu trabalho mais poderoso, o relato da conspira-
ção de Catilina,56 tem um pouco o tom de panfleto partidário, mais que de
história. É abundante em inconsistências estranhas, as quais, inexplicáveis
que são, necessariamente levantam dúvidas a respeito da imparcialidade da
narrativa. É verdade que muitas circunstâncias hoje esquecidas poderiam
ter sido familiares aos seus contemporâneos e ter tornado claras para eles as
passagens que nos parecem dúbias e complicadas. Mas um grande historia-
dor deveria lembrar que ele escreve para gerações distantes, para homens
que irão perceber as contradições aparentes, e que não possuirão nenhum
meio de reconciliá-las.
Salústio nos conta, em verdade, o que as cartas e discursos de Cícero
suficientemente provam: que algumas pessoas consideram as partes chocan-
tes e atrozes da trama como meras invenções do governo, destinadas a justifi-
car medidas inconstitucionais. Devemos confessar que somos dessa opinião.
Indubitavelmente, há um forte partido desejoso de mudar a administração.
Dos historiadores latinos, Tácito57 certamente foi o maior. De fato,
seu estilo em si não é apenas defeituoso, mas, em alguns aspectos, pe-
culiarmente inepto para a composição histórica. Ele leva sua paixão pela
realização para muito além dos limites da moderação. Conta uma bela his-
tória com primor, mas não pode contar uma simples história simplesmen-
te. Ele estimula até que os estimulantes percam sua força. Tucídides, como

55
Caio Salústio Crispo (86-34 a.C), historiador romano e um dos grandes escritores e poetas
da literatura latina. Escreveu sobre a decadência do povo romano e descreveu dois grandes
momentos do fim da república romana, a conjuração de Catilina e a guerra de Jugurta. Salústio
fez de suas narrativas um pretexto para criticar os erros políticos cometidos por aqueles que
detiveram o poder em Roma, principalmente por Cícero, seu inimigo político e pessoal.
56
Lucius Sergius Catilina (? -109 a.C), político romano. Tentou ser nomeado cônsul, sem su-
cesso. Irritado e pressionado por dívidas, iniciou uma conspiração, a conjuração de Catilina,
na qual reuniu jovens nobres falidos. Sua tentativa de assassinar os dois cônsules falhou, e sua
pretensão ao consulado não obteve sucesso.
57
Publius Cornelius Tacitus (55-120), historiador romano, foi questor, pretor, cônsul e ora-
dor. Considerado um dos maiores historiadores da Antiguidade, suas principais obras foram
os Anais, onde contou a história do império romano do século primeiro, desde a chegada do
imperador Tibério ao poder, até a morte de Nero, e Histórias, em que trata da morte de Nero
até a de Domiciano.

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232 Lições de história

já observamos, relaciona os acontecimentos ordinários com uma clareza


despretensiosa e a concisão de uma gazeta. Ele reserva seus grandes do-
tes descritivos para os eventos cujos menores detalhes são interessantes. A
simplicidade do ajuste dá o lustre adicional aos destaques. Há passagens
em que a narrativa de Tácito supera o que de melhor pode ser citado de
Tucídides. Mas elas não ornamentam e realçam com a mesma habilidade.
São muito mais impressionantes quando extraídas do corpo da obra a que
pertencem do que quando ocorrem no seu lugar e são lidas em conexão
com o que antecede e o que se segue.
No delineamento da personagem, Tácito não encontra rival entre
os historiadores, e seus pouquíssimos superiores estão entre dramatur-
gos e romancistas. Por delineação da personagem não queremos dizer a
prática de formular catálogos epigramáticos de qualidades boas e más, e
de anexar a elas os nomes de homens eminentes. Nenhum escritor, de
fato, fez isto mais habilmente do que Tácito; mas essa não é sua glória
particular. Todas as personagens que ocupam um grande espaço na sua
obra têm uma individualidade de caráter que parece atravessar todos os
seus trabalhos e ações. O historiador se propôs a nos tornar intimamen-
te familiarizados com um homem [Tibério] singularmente misterioso e
inescrutável, com um homem cujo verdadeiro temperamento por muito
tempo permaneceu envolvido em dobras de virtudes aparentes, e sobre
cujos atos a hipocrisia de sua juventude e o isolamento de sua velhice
lançaram um mistério singular. Ele mostraria as qualidades ilusórias do
tirano sob uma luz que pudesse torná-las transparentes e imediatamente
nos permitisse perceber a capa e os vícios que ocultava. Revelaria as fases
através das quais o primeiro magistrado de uma república, o senador
que participava livremente no debate, o nobre associado ao seus pares
nobres transformou-se em um sultão asiático; mostraria uma personagem
notável pela coragem, autodomínio e política sagaz, porém inteiramente
maculada pela “extravagância/e a insana indecência da veleidade”.58

58
No original, “th’extravagancy/ and crazy ribaldry of fancy”; é uma citação de Hudibras (1663-
1678), poema narrativo em forma de sátira heroica escrito por Samuel Butler (1612-1680), no
qual faz escárnio do fanatismo, pedantismo, hipocrisia e arrogância da militância puritana. É
considerado o poema burlesco mais memorável da língua inglesa e a primeira sátira inglesa que
atacou ideias em vez de personalidades.

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Thomas Babington Macaulay 233

Ele assinalaria o efeito gradual do avançar da idade e da aproximação


da morte sobre seu estranho composto de força e fraqueza; para exibir o
velho soberano do mundo afundando na senilidade que, apesar de tornar
seus apetites excêntricos e seu temperamento selvagem, nunca arruinou os
poderes de sua mente austera e penetrante — consciente da falta de for-
ça, enfurecendo-se com voluptuosidade caprichosa, e no entanto, para o
último dos mais aguçados observadores, o mais astuto dos dissimuladores
e o mais terrível dos mestres. A tarefa era de uma dificuldade extrema. A
execução é quase perfeita.
O talento que é requerido para escrever a história desse modo sus-
tenta uma considerável afinidade com o talento de um grande dramaturgo.
Há uma distinção óbvia. O dramaturgo cria; o historiador apenas põe em
ordem. A diferença não é no modo de execução, mas no modo de concep-
ção. Shakespeare é guiado por um modelo que existe em sua imaginação;
Tácito, por um modelo fornecido de fora.
Nessa parte de sua arte, Tácito certamente não teve igual nem segundo
entre os historiadores antigos. Heródoto, embora tenha escrito de uma for-
ma dramática, tinha pouca genialidade dramática. Os frequentes diálogos
que apresentou deram vivacidade e movimento à sua narrativa, mas não
são visivelmente característicos. Xenofonte se compraz em contar aos seus
leitores, longamente, o que ele pensava das pessoas cujas aventuras ele re-
lata. Mas ele não lhes mostra os homens, e os deixa julgar por eles mesmos.
Os heróis de Tito Lívio são as mais insípidas de todas as criaturas, reais ou
imaginárias, os heróis de Plutarco sempre excetuados. Tucídides, embora
após longo intervalo, vem em seguida a Tácito. Seu Péricles, sua Nícias, seu
Cleion, seu Brásidas são felizmente diferenciados. As linhas são poucas, o
colorido é fraco: mas a atmosfera geral e expressão são capturadas.
Como o padre na biblioteca de dom Quixote,59 começamos a ficar
cansados de pegar os livros um por um para julgá-los separadamente e
sentimo-nos inclinados a sentenciá-los em massa. Devemos, então, em vez
de apontar os defeitos e os méritos de diferentes historiadores modernos,

59
No capítulo 6 da mais famosa obra de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), enquanto
dom Quixote repousava na cama, doente, depois de sofrer um espancamento, um padre e um
barbeiro vasculham sua biblioteca à procura das obras que teriam provocado a loucura do fidal-
go, leitor de romances de cavalaria.

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234 Lições de história

declarar geralmente em que particularidades eles superaram seus predeces-


sores, e em que entendemos que eles falharam.
Certamente eles têm sido, de certo modo, muito mais estritamente
comprometidos com a verdade do que a maioria dos escritores gregos e
romanos. Eles não se sentem no direito de tornar sua narrativa interes-
sante introduzindo descrições, conversas e discursos que não existem
senão em sua própria imaginação. Esse progresso se deu gradualmente.
A história começou entre as nações modernas da Europa, assim como
começara entre os gregos, no romance. Froissart60 era nosso Heródoto. A
Itália era para a Europa o que Atenas era para a Grécia. Na Itália, conse-
quentemente, uma modalidade mais exata e mais viril da narração foi in-
troduzida logo cedo. Maquiavel61 e Guicciardini62, à imitação de Tito Lí-
vio e Tucídides, compuseram discursos para seus personagens históricos.
Mas, como o entusiasmo clássico que distinguiu a época de Lourenço63
e Leão64 gradualmente arrefeceu, essa prática foi abandonada. Desconfia-
mos que na França, em alguma medida, ela ainda se mantém. Em nosso
próprio país, um escritor que se aventurasse a isso seria ridicularizado. Se
os historiadores dos últimos dois séculos dizem mais verdades que aque-
les da Antiguidade, isso talvez possa ser posto em dúvida. Mas é quase
certo que eles contaram menos falsidades.
Na filosofia da história, os modernos ultrapassaram em muito os an-
tigos. De fato, não é estranho que os gregos e os romanos não tenham de-
senvolvido a ciência do governo ou qualquer outra ciência empírica tanto

60
Jean Froissart (c.1333-c.1405), cronista, poeta e cortesão francês. Seus escritos cobrem o
período entre 1322 e 1400, e descrevem as preparações e o progresso da primeira metade da
Guerra dos Cem Anos.
61
Niccolò Machiavelli (1469-1527), diplomata, historiador e teórico político florentino. Autor
do tratado O príncipe (1513), é reconhecido como o fundador da ciência política moderna.
62
Francesco Guicciardini (1483-1540), cronista e diplomata italiano. Amigo e crítico de Ma-
quiavel, é considerado o maior escritor político da Renascença italiana. Devido ao uso de do-
cumentos para a verificação em sua História da Itália (1514), é considerado o pai da história
moderna.
63
Lourenço de Medici (1449-1492), estadista florentino. Foi mecenas de Leonardo da Vin-
ci (1452-1519), do pintor e escultor Michelangelo (1475-1564) e do artista Sandro Boticelli
(1444-1510).
64
Papa Leão X (1475-1521), cujo nome original é Giovanni de Medici, foi o segundo filho de
Lourenço de Medici. Seu pontificado, um dos mais extravagantes da Renascença, durou de
1513 até sua morte.

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Thomas Babington Macaulay 235

quanto em nosso tempo; pois as ciências empíricas geralmente estão em


estado de progressão. Foram mais bem compreendidas no século XVII do
que no XVI, e no século XVIII mais do que no XVII. Mas esse aprimora-
mento constante, essa evolução natural do conhecimento não explica in-
teiramente a enorme superioridade dos escritores modernos. A diferença
não é de grau, mas de tipo. Não é meramente que novos princípios têm
sido descobertos, e sim que novas faculdades parecem ser exercidas. Não
é que em certas épocas o intelecto humano tenha feito apenas pequenos
progressos, e em outras avançado bem mais, e sim que às vezes ele deve ter
estacionado, e outras vezes, evoluído bastante. No gosto e na imaginação,
nos adornos de estilo, na arte da persuasão, na magnificência das obras
públicas, os antigos ao menos se equiparavam a nós. Eles raciocinaram tão
justamente quanto nós sobre os assuntos que requeriam pura demonstra-
ção. Mas nas ciências morais quase que não fizeram avanço algum. Durante
o longo período transcorrido entre o século XV antes da era cristã e o sécu-
lo XV depois dela houve pouco progresso perceptível. Todas as descobertas
metafísicas de todos os filósofos, desde o tempo de Sócrates até a invasão
do Norte, não se comparam em importância àquelas que têm sido feitas na
Inglaterra a cada 50 anos, desde o tempo de Elizabeth.65 Não há a menor
razão para acreditar que os princípios do governo, a legislação e a econo-
mia política foram mais bem compreendidos no tempo de Augusto66 do
que no tempo de Péricles. Em nosso próprio país, as sólidas doutrinas de
comércio e jurisprudência foram, no espaço de tempo de uma só geração,
vagamente sugeridas, corajosamente propostas, defendidas, sistematizadas,
adotadas por todos os pensadores de todos os partidos, citadas em assem-
bleias legislativas e incorporadas em leis e tratados.
A que se atribui essa mudança? Em parte, sem dúvida, à descoberta
da imprensa, uma descoberta que tem não apenas largamente difundido
conhecimento, mas, como já observamos, também introduzido no raciocínio
uma precisão desconhecida naquelas comunidades antigas, nas quais a in-
formação era principalmente transmitida oralmente. Suspeitamos que havia
outra causa, menos óbvia, mas ainda mais poderosa.

65
Elizabeth I (1533-1603), filha de Henrique VIII e sua segunda esposa, Ana Bolena (c.1501-
1536), foi rainha da Inglaterra de 1558 a 1603.
66
Gaius Julius Caesar Octavianus (63 a.C.-14 d.C.), primeiro imperador romano.

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236 Lições de história

O espírito das duas nações mais famosas da Antiguidade foi notavel-


mente exclusivo. No tempo de Homero,67 os gregos não haviam começado
a se considerar uma raça distinta. Ainda viam com certo espanto e respeito
infantis as riquezas e a sabedoria de Sidon68 e do Egito. Não é fácil determi-
nar por que causas e quão gradualmente seus sentimentos se modificaram.
A história deles, da guerra de Troia à guerra pérsica, está envolta numa obs-
curidade quebrada somente por vagos e esparsos clarões de verdade. Mas é
certo que uma grande alteração ocorreu. Passaram a considerar-se um povo
distinto. Tinham ritos religiosos comuns e princípios comuns de lei pública,
de que os estrangeiros não participavam. Em todos os seus sistemas políti-
cos, monárquico, aristocrático, e democrático, havia uma forte semelhança
familiar. Depois da retirada de Xerxes e da queda de Mardônio, o orgulho
nacional representou a completa separação entre os gregos e os bárbaros. Os
conquistadores consideravam a si próprios homens de uma raça superior,
homens que, no intercurso com as nações vizinhas, estavam para ensinar, e
não para aprender. Não procuravam nada fora deles mesmos. Não tomaram
nada emprestado. Não traduziram nada. Não podemos recordar uma única
expressão de qualquer escritor grego anterior à era de Augusto indicando
que alguma coisa que merecesse ser lida poderia ser escrita em outra língua
que não a sua própria. Os sentimentos que brotaram da glória nacional não
foram absolutamente extintos pela degradação nacional. Foram ciosamente
preservados através de eras de escravidão e desonra. A literatura de Roma,
ela mesma, foi observada com desprezo por aqueles que tinham fugido
diante de suas armas e se curvado sob seus fasces.69 Até um período bem
tardio, os gregos pareciam sentir necessidade de informação a respeito dos
seus dominadores. Com Paulo Emílio,70 Sila71 e César, estavam bem fami-

67
Poeta épico grego do século 9 a.C., a quem se atribui a autoria da Ilíada e da Odisseia.
68
Principal cidade da Fenícia no segundo milênio antes da era cristã. Na Antiguidade, foi suces-
sivamente dominada por assírios, babilônios e persas. Por volta de 330 a.C., foi conquistada por
Alexandre, o Grande. Sob domínio romano, no século I a.C., desempenhou a função de importan-
te centro de fabricação de vidro e corantes. Durante as Cruzadas, mudou de mãos várias vezes até
cair sob domínio muçulmano em 1291. Depois de 1517, passou à tutela dos otomanos.
69
Segundo o Dicionário Houaiss, “na antiga Roma, conjunto formado por feixe de varas em torno
de um machado, que, carregado pelos lictores que acompanhavam os cônsules, representava o
direito que tinham os últimos de aplicar punições”.
70
Paulus Aemilius Veronensis (c. 1455-1529), historiador italiano.
71
Lucius Cornelius Sulla (c.138-78 a.C.), general e estadista romano.

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Thomas Babington Macaulay 237

liarizados. Mas as opiniões que eles tinham a respeito de Cícero e Virgílio72


provavelmente não eram diferentes daquelas que Boileau73 deveria ter sobre
Shakespeare. Dionísio viveu na mais esplêndida era da poesia e eloquência
latina. Foi um crítico e, à maneira de sua época, um talentoso crítico. Estu-
dou a língua de Roma, associou-se com seus homens sábios, e compilou sua
história. No entanto, ele parece ter pensado que sua literatura servia apenas
para ilustrar suas antiguidades. Suas leituras parecem ter-se limitado aos
registros públicos e a alguns poucos antigos analistas.
Os romanos se submeteram às pretensões de uma raça que despre-
zavam. Seu poeta épico, embora reclamasse para eles a preeminência nas
artes do governo e da guerra, reconhecia-lhes a inferioridade no gosto,
na eloquência e na ciência. Os homens de letras fingiam compreender a
língua grega melhor que a sua própria. Pompônio74 preferiu a honra de se
tornar um ateniense, pela naturalização intelectual, a todas as distinções
que pudessem ser adquiridas nas disputas políticas de Roma. Muitos ro-
manos eminentes parecem ter sentido o mesmo desprezo por sua língua
pátria, em comparação com o idioma grego. Tal preconceito persistiu por
muito tempo.
Mesmo os escritores latinos que não levavam tão longe essa presun-
ção viam os gregos como a única fonte de conhecimento. Do grego deri-
varam a métrica de sua poesia, e, de fato, tudo o que podia ser importado
da poesia. Do grego emprestaram os princípios e o vocabulário de sua

72
Publius Vergilius Maro (70-19 a.C.), o maior dos poetas romanos. Seu poema épico Eneida (ini-
ciado em c. 29, mas inacabado) é considerado uma das obras-primas da literatura mundial.
73
Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711), poeta e crítico literário francês. Escreveu A arte
poética (1674), um tratado didático em verso que estabelece as regras da composição poética
na tradição clássica.
74
Titus Pomponius Atticus (c.110-32 a.C.), nobre da classe equestre, intelectual e negociante
romano. Nasceu e foi criado em Roma, mas se mudou para Atenas para se afastar da erupção
de violência causada pelo retorno de Sila e seu exército. Apaixonado pela cultura helênica, ele
próprio se apelidou de “Atticus”. Excelente estudante, fez de sua passagem pela Grécia (85-65
a.C.) um momento de imersão na filosofia e na literatura gregas, cultivando seus interesses
artísticos, antiquários, literários e filosóficos. Pompônio é recordado como grande amigo de
Cícero, que lhe dedicou um tratado sobre a amizade, De amicitia; a correspondência entre os
dois está preservada nos 16 volumes das Epistulae ad Atticum (Cartas a Ático). No ano 32, após
sofrer doente por meses, Pompônio acelerou sua própria morte ao se abster da alimentação.
Deixou uma brevíssima história de Roma, Annalis, além de uma narrativa em grego sobre o
consulado de Cícero.

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238 Lições de história

filosofia. Não parecem ter dado a menor atenção à literatura de outras


nações. Os livros sagrados dos hebreus, por exemplo, livros que, consi-
derados meramente como composições humanas, são inestimáveis para a
crítica, os antiquários e os filósofos, parecem ter-lhes passado totalmente
despercebidos. As peculiaridades do judaísmo e o rápido crescimento do
cristianismo lhes atraíram a atenção. Fizeram guerra contra os judeus.
Fizeram leis contra os cristãos. Mas nunca abriram os livros de Moisés.
O fato é que parece que os gregos admiravam apenas a si próprios, e
que os romanos admiravam apenas a si mesmos e os gregos. Os literatos
afastaram-se com repugnância dos modos de pensamento e expressão
tão diferentes de tudo aquilo que eles tinham se acostumado a admirar.
O resultado foi a estreiteza e a monotonia intelectual. Suas mentes en-
dogâmicas, se pudermos assim nos expressar, foram consequentemente
amaldiçoadas com esterilidade e degeneração. Nenhuma beleza externa
ou vigor foi enxertado no estoque da decadência. Por uma atenção exclu-
siva a uma classe de fenômenos, por um gosto exclusivo por uma única
espécie de excelência, o intelecto humano atrofiou-se. Coincidências oca-
sionais se transformaram em regras gerais. Preconceitos se confundiram
com tendências naturais. Sobre o homem, como viveu num determinado
tipo de sociedade — sobre o governo, como existiu num determinado
canto do mundo, muitas observações justas foram feitas; mas do homem
como homem, ou do governo como governo, pouco se sabia. A filosofia
permanecia estacionária. As pequenas mudanças, às vezes para pior, às
vezes para melhor, foram feitas na superestrutura. Mas ninguém pensou
em examinar os fundamentos.
A apatia era quebrada por duas grandes revoluções: uma moral, e ou-
tra política; uma vinda de dentro, a outra de fora. A vitória do cristianismo
sobre o paganismo, considerada apenas sob esse aspecto, foi de grande im-
portância. Aboliu o antigo sistema moral e, com isso, muito do antigo sis-
tema da metafísica. Abasteceu o orador com novos tópicos de declamação,
e o lógico com novos pontos de controvérsia. Sobretudo, introduziu um
novo princípio, cuja operação constantemente se fez sentir em toda par-
te da sociedade. Revolveu a massa estagnada da mais interna profundeza.
Despertou todas as paixões de uma democracia tempestuosa na população
quieta e indiferente de um império que havia crescido excessivamente. O
medo da heresia fez o que o senso de opressão não poderia fazer; transfor-

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Thomas Babington Macaulay 239

mou os homens, acostumados a serem passados adiante como carneiros de


tirano para tirano, em partidários ferrenhos e rebeldes obstinados.
Contudo, mesmo esse remédio não foi suficientemente forte para a do-
ença. Não impediu o império de Constantinopla de recair, após um breve
paroxismo de excitação, num um estado de estupefação que não tem para-
lelo na história. Vemos então que uma sociedade ilustrada, uma sociedade
em que se estabeleceu um intrincado e complexo sistema de jurisprudência,
em que as artes de luxo foram bem compreendidas e em que as obras dos
grandes escritores antigos foram preservadas e estudadas passou quase mil
anos sem fazer nenhuma grande descoberta na ciência ou produzir um livro
que fosse lido por alguém a não ser investigadores curiosos. Houve também
muitos tumultos, controvérsias e guerras: e essas coisas, ruins como são em
si, geralmente foram favoráveis ao progresso do intelecto.
Desse estado miserável o Império do Ocidente foi salvo pela mais
feroz e mais destruidora visita com que Deus já puniu suas criaturas — a
invasão das nações do Norte. Tal cura foi necessária para tal enfermidade.
Como fora observado, o incêndio de Londres foi uma bênção. Destruiu
a cidade, mas eliminou a praga. O mesmo poderia ser dito da tremenda
devastação dos domínios romanos. Aniquilou os recessos asquerosos onde
se escondiam as sementes de grandes enfermidades morais; limpou uma
atmosfera fatal à saúde e ao vigor da mente humana. Custaram à Europa
mil anos de barbarismo para escapar do destino da China.
A terrível purificação realizou-se finalmente, e uma segunda civiliza-
ção da humanidade iniciou-se, sob circunstâncias que proporcionaram uma
forte segurança de que não haveria retrocesso ou pausa. A Europa era agora
uma grande comunidade federal. Seus numerosos Estados estavam unidos
pelos laços confortáveis do direito internacional e de uma religião comum.
Suas instituições, seus idiomas, suas maneiras, seus gostos na literatura, suas
formas de educação eram bastante diferentes. Sua conexão era próxima o
bastante para permitir a mútua observação e aprimoramento; mas não tão
próxima para destruir os idiomas da opinião e do sentimento nacionais.
O equilíbrio da influência moral e intelectual então estabelecido
entre as nações da Europa é muito mais importante que o equilíbrio do
poder político. De fato, somos inclinados a pensar que o último é princi-
palmente valioso porque tende a manter o primeiro. Dessa forma, o mun-
do civilizado foi preservado de uma uniformidade de caráter fatal a todo

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240 Lições de história

aprimoramento. Cada parte dele foi iluminada com a luz refletida de suas
outras partes. A competição tem produzido atividade onde o monopólio
poderia ter produzido letargia. O número de experimentos em ciência
moral que o especulador tem a oportunidade de testemunhar aumentou
além de todas as expectativas. A sociedade e a natureza humana, em vez
de serem consideradas de um único ponto de vista, lhe são apresentadas
sob 10 mil aspectos diferentes.Observando as maneiras das nações em
volta, estudando sua literatura, comparando-a com aquela de seu próprio
país e das repúblicas antigas, ele pode corrigir aqueles erros nos quais os
homens mais finos incorrem quando raciocinam de uma única espécie
para um gênero. Aprende a distinguir o que é local do que é universal:
o que é transitório do que é eterno; a discriminar entre as exceções e as
regras; a identificar a ação das causas perturbadoras; a separar aqueles
princípios gerais que sempre são verdadeiros e aplicáveis em toda parte
das circunstâncias acidentais com as quais, em cada comunidade, eles se
misturam, e com as quais, em uma comunidade isolada, são confundidos
pela mente mais filosófica.
Daí que, por generalização, os escritores dos tempos modernos supe-
raram em muito aqueles da Antiguidade. Os historiadores de nosso próprio
país são inigualáveis em profundidade e precisão da razão; e, mesmo nas
obras de nossos meros compiladores, frequentemente encontramos espe-
culações além do alcance de Tucídides ou Tácito.
Mas, ao mesmo tempo, deve-se admitir que eles têm falhas caracterís-
ticas, tão ligadas a seus méritos característicos, e de tal magnitude, que bem
se poderia duvidar se, no todo, esse departamento da literatura ganhou ou
perdeu durante os últimos 22 séculos.
Os melhores historiadores dos últimos tempos se deixaram seduzir
pela verdade, não por sua imaginação, mas pela sua razão. Superaram em
muito seus predecessores na arte de deduzir princípios gerais de fatos.
Mas infelizmente têm incorrido no erro de distorcer os fatos para justi-
ficar princípios gerais. Chegam à teoria através da observação de certos
fenômenos; e distorcem ou reduzem os fenômenos restantes para satis-
fazer a teoria. Para tanto não é necessário que afirmem o que é absolu-
tamente falso; pois todas as questões morais e políticas são questões de
comparação e grau. Qualquer proposição que não envolva contradição de

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Thomas Babington Macaulay 241

termos pode ser verdadeira; e pode parecer demonstrada se todas as cir-


cunstâncias que aumentam a probabilidade a seu favor são estabelecidas
e reforçadas, e aquelas que levem a uma conclusão oposta são omitidas
ou desprezadas.
Essa espécie de deturpação é frequente nas mais valiosas obras dos his-
toriadores modernos. Heródoto conta sua história como uma testemunha
negligente que, inflamada por parcialidades e preconceitos, não familiarizada
com as regras de evidência estabelecidas, e não instruída a respeito das obri-
gações de seu juramento, confunde o que ela imagina com o que ela viu e
ouviu, e apresenta um monte de fatos, relatos, conjecturas e fantasias.
Os historiadores modernos da Grécia tinham o hábito de escrever
como se o mundo nada tivesse aprendido de novo nos últimos 600 anos.
Em vez de ilustrarem os eventos que narravam pela filosofia de uma era
mais esclarecida, julgavam a Antiguidade apenas por si mesma. Conside-
ravam todos os historiadores antigos como igualmente autênticos. Mal fa-
ziam qualquer distinção entre aquele que relatou os eventos que ele mesmo
presenciou e aquele que 500 anos depois compôs um romance filosófico
para uma sociedade que nesse intervalo havia passado por uma completa
transformação. Era tudo grego, e tudo verdadeiro! Os séculos que separam
Plutarco de Tucídides pareciam nada para homens que viveram numa era
tão remota. A distância no tempo produziu um erro similar àquele que às
vezes é produzido pela distância física.
A prática de distorcer a narrativa para conformá-la à teoria não é um
vício tão desfavorável quanto pode parecer à primeira vista aos interes-
ses da ciência política. Comparamos os escritores que se permitem fazer
isso aos advogados; e podemos acrescentar que suas falácias conflitantes,
assim como as dos advogados, se corrigem umas às outras. Sempre se
acreditou, nas nações mais esclarecidas, que um tribunal decidirá mais
justamente uma questão judicial após ouvir dois homens capazes de de-
baterem, tão injustamente quanto possível, os dois lados da questão; e
somos inclinados a pensar que essa opinião é correta. Às vezes, é verda-
de, a eloquência superior e a destreza farão o pior argumento parecer o
melhor; mas ao menos é certo que o juiz será compelido a contemplar
o caso sob dois aspectos diferentes. É certo que nenhuma consideração
importante passará totalmente despercebida.

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242 Lições de história

Esse é o presente estado da história. O poeta laureado75 testemunha


pela Igreja da Inglaterra, Lingard76 pela Igreja de Roma. Brodie77 propôs
pôr de lado os veredictos obtidos por Hume,78 e a causa na qual Mitford79
obteve sucesso está, segundo entendemos, para ser reconsiderada. No meio
dessas disputas, entretanto, a história apropriada, se pudermos usar essa
expressão, está desaparecendo. A visão elevada, grave e imparcial de Tucí-
dides não é encontrada em parte alguma.
Enquanto nossos historiadores estão praticando todas as artes da con-
trovérsia, infelizmente negligenciam a arte da narrativa, a arte de despertar in-
teresse pelas emoções e de criar quadros para a imaginação. Que um escritor
pode produzir esses efeitos sem faltar à verdade está suficientemente provado
por várias excelentes obras bibliográficas. A imensa popularidade que livros
bem escritos desse tipo têm adquirido merece ser seriamente considerada
pelos historiadores. O Carlos XII de Voltaire,80 as Memórias de Marmontel,81
A vida de Johnson de Boswell82 e as considerações de Southey83 sobre Nelson
são lidas com deleite pelo mais frívolo e indolente. Enquanto isso, histórias
de grandes impérios, escritas por homens de habilidade eminente, repousam
sem serem lidas sobre as prateleiras de bibliotecas pomposas.

75
O título de poeta laureado é concedido na Inglaterra pelo mérito da excelência poética. Foi
criado em 1616 e formalmente estabelecido desde 1668.
76
John Lingard (1771-1851), padre católico inglês, publicou The history of England, from the first
invasion by the Romans to the accession of Henry VIII (1819), em oito volumes.
77
George Brodie (1786?-1867), advogado e historiador escocês. Autor de A history of the British
Empire (1822) e A constitutional history of the British Empire (1866).
78
David Hume (1711-1776), economista, filósofo e historiador escocês. Autor de A treatise of
human nature (1739-1740), Treatise as an enquiry concerning human understanding (1758) e Dia-
logues concerning natural religion (1779). Sua History of England (1778) é considerada um marco
da historiografia inglesa.
79
William Mitford (1744-1827), descendente de uma antiga família do norte da Inglaterra,
autor de History of Greece (1784). Foi alvo de pesadas críticas de Macaulay (1824).
80
François-Marie Arouet Voltaire (1694-1778), filósofo, dramaturgo e literário francês, foi figu-
ra central do Iluminismo. Exilado na Inglaterra em 1726, retornou à França em 1728-1729.
81
Jean-François Marmontel (1723-1799), escritor, gramático, filósofo, romancista e historiador
francês, participou do movimento Enciclopedista.
82
James Boswell (1740-1795), advogado, renomado linguista, escritor escocês e biógrafo de
Samuel Johnson. Seu nome foi incorporado à língua inglesa (Boswell, Boswellian, Boswellism)
como sinônimo de observador e biógrafo devotado.
83
Robert Southey (1774-1843), poeta laureado e historiador inglês membro do “Lake Poets”.
Além de sua História do Brasil (1810), publicou diversas biografias, como The life of Nelson
(1813), sobre Horatio Nelson (1752-1805), almirante naval inglês que derrotou as tropas de
Napoleão e foi fatalmente ferido na batalha de Trafalgar.

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Thomas Babington Macaulay 243

Os escritores de história parecem nutrir um desprezo aristocrático pe-


los escritores de memórias. Eles acreditam que está abaixo da dignidade de
homens que descrevem as revoluções das nações debruçar-se sobre os de-
talhes que constituem o charme de uma biografia. As circunstâncias mais
características e interessantes são omitidas e suavizadas, pois, como sabemos,
são muito triviais para a majestade da história.
Há de se convir, supomos, que essa história seria mais divertida se
essa etiqueta fosse mais descontraída. Mas, seria menos dignificante ou me-
nos útil? O que queremos dizer quando afirmamos que um evento passado
é importante e outro insignificante? Nenhum evento passado possui qual-
quer importância intrínseca. O conhecimento dele é valioso apenas na me-
dida em que nos leva a fazer justas ponderações com respeito ao futuro.
Uma história em que cada incidente particular possivelmente é ve-
rídico pode, no seu conjunto, ser falsa. As circunstâncias que têm maior
influência sobre a felicidade da espécie humana, as mudanças das maneiras
e na moral, a passagem de comunidades da pobreza para a riqueza, do
conhecimento para a ignorância, da selvageria para a humanidade — essas
são, na maior parte, revoluções silenciosas. O progresso delas raramente é
indicado por aquilo que os historiadores se contentam em chamar de even-
tos importantes. Não são realizadas por exércitos, nem promulgadas por
senadores. Não são sancionadas por nenhum tratado, nem registradas em
nenhum arquivo. Elas se dão em cada escola, em cada igreja, atrás de 10
mil balcões, em 10 mil lares. O fluxo superior da sociedade não apresenta
nenhum critério determinado através do qual possamos conhecer a direção
em que flui o fluxo inferior. Lemos sobre derrotas e vitórias. Lemos que
as nações podem ser miseráveis em meio a vitórias e prósperas em meio a
derrotas. Lemos sobre a queda de ministros sábios e sobre a ascensão de
favoritos corruptos. Mas devemos lembrar quão mínima é a parte do bem
ou do mal realizado por um único estadista que pode contribuir para o
bem ou o mal num grande sistema social.
O bispo Watson84 compara um geólogo a um mosquito montado
sobre um elefante, formulando teorias sobre toda a estrutura interna do

84
Richard Watson (1781-1833), teólogo metodista inglês, uma das figuras mais importantes
do metodismo no século XIX. A passagem a que Macaulay se refere localiza-se no cap. 20 da
primeira parte de sua obra Theological institutes, publicada a partir de 1823.

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grande animal a partir do fenômeno do couro. A comparação é injusta com


os geólogos; mas aplica-se muito bem àqueles historiadores que escrevem
como se o corpo da política fosse homogêneo, que apenas observam a su-
perfície dos fatos e nunca refletem sobre a organização poderosa e variada
que se encontra nas profundezas.
Nas obras desses escritores, a Inglaterra, ao final da Guerra dos Sete
Anos, está no mais alto estado de prosperidade. Ao final da guerra america-
na,85 está em uma condição miserável e degradada; como se o povo em geral
não fosse tão rico, tão bem governado e tão bem instruído no último período
quanto no anterior. Lemos obras intituladas histórias da Inglaterra, sob o
reinado de George II,86 em que a ascensão do metodismo não é nem mesmo
mencionada. Esperamos que esse conjunto de autores seja extinto em 100
anos. Estamos quase certos de que equívocos grosseiros prevalecem neste
momento com respeito a várias partes importantes dos nossos anais.
Em muitos aspectos, o efeito da leitura da história é análogo àquele
produzido pela viagem ao estrangeiro. O estudante, como o turista, é
transportado para um novo estado de sociedade. Vê novas modas. Ouve
novos modos de expressão. Sua mente é alargada para contemplar a am-
pla diversidade de leis, de moral e de maneiras. Mas os homens podem
viajar para longe e retornar com suas mentes tão estreitas como se nunca
tivessem saído do mercado de sua própria vila. Da mesma maneira, os
homens podem conhecer as datas de muitas batalhas e as genealogias de
muitas dinastias, e ainda assim não serem sábios. A maioria das pessoas
olha para os tempos passados como os príncipes olham para os países
estrangeiros. Mais de um estranho ilustre aportou em nossa ilha em meio
aos gritos de uma multidão, ceou com o rei, caçou com o mestre dos
cães de caça, passou em revista os guardas, empossou um cavaleiro da
Ordem da Jarreteira,87 cavalgou pela Regent Street,88 visitou Saint Paul’s89

85
Trata-se da guerra dos Estados Unidos pela sua independência do Reino Unido, entre 1775
e 1783.
86
George Augustus (1683-1760), nascido em Hanover, foi rei no Reino Unido a partir de
1727.
87
Ordem militar criada pelo rei inglês Edward III (1312-1377).
88
Ao se tornar príncipe regente com a abdicação de seu pai, o rei George III, em 1811, uma das
primeiras ações do futuro George IV foi tentar reformar o caminho para seu palácio, o Carlton
House, de acordo com sua admiração pelo planejamento urbano napoleônico de Paris. Planeja-
da pelo arquiteto John Nash (1752-1835) durante uma década, a Regent Street é um boulevard
localizado na área central de Londres.
89
Catedral anglicana do bispado de Londres que data do século XVII.

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e registrou suas dimensões; e então partiu pensando que viu a Inglaterra.


De fato, ele viu alguns prédios públicos, homens públicos e cerimônias
públicas. Mas ele nada sabe do vasto e complexo sistema da sociedade,
das finas sombras do caráter nacional, da operação prática do governo e
das leis. Aquele que deseja compreender essas coisas corretamente não
deve limitar suas observações a palacetes e dias solenes. Ele deve ver os
homens comuns tal qual aparecem em seus negócios habituais e em seus
prazeres cotidianos. Ele deve se misturar nas multidões dos mercados e
das cafeterias. Deve obter acesso ao convívio à mesa e ao lar doméstico.
Deve tolerar as expressões vulgares. Não deve evitar nem mesmo explorar
os recessos da miséria. Aquele que deseja entender a condição da espécie
humana nas épocas anteriores deve adotar o mesmo princípio. Se ocupar-
se apenas dos negócios públicos, das guerras, congressos e debates, seus
estudos serão tão inúteis quanto as viagens daqueles imperiais, reais e
serenos soberanos que formam seus julgamentos sobre nossa ilha tendo
assistido a umas poucas solenidades e participado de conferências for-
mais com umas poucas autoridades.
O historiador perfeito é aquele em cuja obra o caráter e o espírito de
uma época são exibidos em miniatura. Ele não relata nenhum fato, não
atribui nenhuma expressão a seus personagens que não sejam autentica-
dos pelo testemunho apropriado. Mas, pela seleção judiciosa, rejeição e
ordenação, confere verdade àquelas atrações que foram usurpadas pela fic-
ção. Em sua narrativa, uma subordinação é devidamente observada: alguns
processos são proeminentes; outros, relegados. Mas a escala na qual ele
os representa é aumentada ou diminuída, não de acordo com a dignidade
dos personagens envolvidos, mas de acordo com o grau no qual elucida a
condição da sociedade e da natureza do homem. Ele nos mostra a corte, o
acampamento e o senado. Mas também mostra a nação. Não considera ne-
nhuma anedota, nenhuma peculiaridade de costumes, nenhum provérbio
familiar como demasiado insignificante para sua observação, nem dema-
siado insignificante para ilustrar a ação das leis, da religião e da educação,
e para assinalar o progresso da mente humana. Os homens não serão me-
ramente descritos, mas se tornarão intimamente conhecidos. As mudanças
de comportamento não serão meramente indicadas por algumas frases ge-
rais ou alguns excertos de documentos estatísticos, mas por imagens apro-
priadas apresentadas em cada linha.

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Se um homem, tal como supomos, deve escrever a história da Ingla-


terra, certamente ele não omitiria as batalhas, os cercos, as negociações, as
sedições, as mudanças ministeriais. Contudo, ele aí intercalaria os detalhes
que são o charme dos romances históricos. A história do governo e a histó-
ria do povo seriam apresentadas da única maneira pela qual poderiam ser
justamente apresentadas, em conjunção e relação indissociáveis.
A primeira parte de nossa história imaginária seria rica com o colo-
rido do romance, da poesia e da crônica. Deveríamos nos encontrar na
companhia de cavaleiros como aqueles de Froissart, e de peregrinos como
aqueles que partiam com Chaucer do Tabard.90 A sociedade seria mostrada
do mais alto ao mais baixo — das vestes da realeza ao antro dos foras da
lei; da cátedra do legado à fogueira da esquina onde o monge pedinte se
aquece. O renascimento das letras não seria meramente descrito em alguns
períodos magníficos. Deveríamos discernir, em incontáveis detalhes, a fer-
mentação das mentes, o apetite ávido por conhecimento, que distinguiram
o século XVI do XV. Na Reforma, deveríamos enxergar não meramente
um cisma que mudou a constituição eclesiástica da Inglaterra e as relações
mútuas das potências europeias, mas uma guerra moral que se espalhou
em cada família, que colocou o pai contra o filho e o filho contra o pai, a
mãe contra a filha e a filha contra a mãe. Henrique seria retratado com a
habilidade de Tácito. Veríamos a transformação do seu caráter desde a sua
exuberante e alegre juventude até sua brutal e despótica velhice. Veríamos
Elizabeth em todas as suas fraquezas e em todas as suas forças, cercada pe-
los elegantes favoritos em quem ela jamais acreditou e pelos velhos sábios
estadistas que ela jamais dispensou, reunindo nela mesma as qualidades
mais contraditórias — a vaidade, o capricho, a malícia mesquinha de Ana,
e o espírito altivo e resoluto de Henrique. Veríamos as fortalezas, onde os
nobres, inseguros de si, espalhavam a insegurança à sua volta, darem gra-
dualmente lugar aos salões da calma opulência, às sacadas envidraçadas de
Longleat91 e às suntuosas torres de Burleigh.92 Veríamos as vilas ampliadas,

90
Hospedaria estabelecida em 1307, situada em Southwark, Londres, onde se reuniam aqueles
que peregrinavam ao Santuário de Thomas Beckett, na Catedral de Canterbury. É famosa por
sua descrição em Canterbury Tales (1387), coleção de histórias escrita pelo filósofo e diplomata
inglês Geoffrey Chaucer (1343-1400). Foi demolida em 1873.
91
Luxuosa casa de campo elisabetana construída sobre as ruínas de um convento destruído por um
incêndio em 1567 e projetada em estilo renascentista italiano por Robert Smythson (1535-1614).
92
As ruínas do castelo de Burleigh, na Escócia, com suas duas famosas torres, datam dos sécu-
los XV e XVI.

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os desertos cultivados, os vilarejos de pescadores transformados em portos


prósperos, a refeição do camponês melhorada, e sua cabana confortavel-
mente mobilhada.
A instrução derivada da história assim escrita teria um caráter vívido e
prático. Seria aceita pela imaginação tão bem quanto pela razão. Não seria
meramente seguida na mente, mas marcada nela. Muitas verdades também
seriam aprendidas, as quais não poderiam ser aprendidas de nenhuma ou-
tra maneira. À medida que a história dos Estados é escrita de forma geral,
as maiores e mais decisivas revoluções parecem sobrevir-lhes como castigos
sobrenaturais, sem aviso ou causa. Mas o fato é que tais revoluções quase
sempre são consequências de mudanças morais pelas quais gradualmente
passaram a maioria das comunidades e que já vinham ocorrendo bem antes
que seu progresso fosse indicado por qualquer medida pública. Um conhe-
cimento íntimo da história doméstica das nações é, pois, absolutamente ne-
cessário para o prognóstico dos eventos políticos. Uma narrativa deficiente
nesse sentido é tão inútil quanto um tratamento médico que ignora todos
os sintomas presentes na fase inicial da doença e leva em conta somente os
que ocorrem quando os remédios já não fazem efeito no paciente.
Um historiador como esse que vimos tentando descrever certamente
seria um prodígio intelectual. Em sua mente, forças dificilmente compatí-
veis entre si devem combinar-se em perfeita harmonia. Logo veremos outro
Shakespeare ou outro Homero. A mais alta excelência a que poderia chegar
uma única aptidão qualquer seria menos surpreendente do que aquela feliz
e delicada combinação de qualidades. No entanto, a contemplação de mo-
delos imaginários não é uma atividade mental desagradável ou inútil. Segu-
ramente não pode produzir a perfeição; mas produz melhorias e alimenta
aquela meticulosidade liberal e generosa que não é incompatível com a
forte sensibilidade ao mérito e que, enquanto exalta nossas concepções de
arte, não nos torna injustos para com o artista.

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