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POEMAS
Fagundes
Varela
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CyberSebo
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(011} 3SS14140
(011) SMl·Z7'0
Direção
EDLA VAN STEEN
MELHORES
POEMAS
Fagundes
Varela
Seleção ·
ANTONIO CARLOS SECCHIN
São Paulo
2005
© Global Editora, 2005
Diretor Editorial
JEFFERSON L. ALVES
Gerente de Produção
FLÁVIO SAMUEL
Assistente Editorial
ANA CRISTINA TEIXEIRA
Revisão
CLÁUDIA ELIANA AGUENA
Projeto de Capa
VICTOR BURTON
Editoração Eletrônica
ANTONIO SILVIO LOPES
Bibliografia.
ISBN 85-260-1008-5
05-3705 CDD-869.91
Direitos Reservados
.
:~rn GLOBAL EDITORA E
~~ DIS1RIBUIDORA LIDA.
Rua Pirapitingüi, 111 - Liberdade
CEP 01508-020 - São Pau lo - SP
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Colabore com a produção científica e cultural.
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra
sem a autorização do editor.
Nº DE CATÁLOGO: 2526
Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro, em
1952. É doutor em Letras e professor titular de Litera-
tura Brasileira da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, além de professor visitante de várias universi-
dades estrangeiras - na França, em Portugal, na Itália e
na Venezuela. Ensaísta, poeta e ficcionista, autor de
nove livros. Suas publicações mais recentes são: Poesia e
desordem (ensaios, 1996), João Cabral de Melo Neto: a poe-
sia do menos (segunda edição, 1999), Todos os ventos (poe-
mas reunidos, 2002) e Escritos sobre poesia & alguma ficção
(2003). Seu livro sobre João Cabral ganhou o concurso
nacional de ensaios do INL/Ministério da Educação e
Cultura em 1985 e o Prêmio Sílvio Romero da Academia
Brasileira de Letras em 1987, e foi considerado pelo
próprio poeta pernambucano como o mais importante
estudo consagrado à sua obra. Sobre a poesia e o ensaís-
mo de Antonio Carlos Secchin escreveram, entre outros,
Benedito Nunes, José Guilherme Merquior, Eduardo
Portella, Alfredo Bosi, Antônio Houaiss, Sergio Paulo
Rouanet, José Paulo Paes, Ivo Barbieri, Ivan Junqueira e
Fábio Lucas. Em 2004, foi eleito para a cadeira 19 da
Academia Brasileira de Letras.
POEMAS DE OITO FACES
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Preliminarmente, esclareçamos que a obra de
Varela, obviamente, abarca número bem superior de
temas; listamos, todavia, um total de oito, dentre os
que nos pareceram mais expressivos e recorrentes.
Por outro lado, a segmentação não elimina a eventual
convivência ou diálogo de dois ou mais temas num
único texto; assim, se um poema poderia estar elenca-
do no eixo temático a ou b, nossa escolha deu-se por
um critério de preponderância, não de exclusividade.
Os que tentam minimizar o valor de Fagundes
Varela insistem no fato de que sua obra seria excessi-
vamente tributária da produção de seus antecessores
imediatos no Brasil - como se a poesia desses ante-
cessores não fosse, ela também, tributária de outros
antecessores, dentro ou fora d e nossas fronteiras.
Como pensar em Álvares e Casimiro sem evocar de
pronto Byron e Musset? O ultra-romântico, inclusive,
parecia cultivar um secreto prazer de afirmar que só
conseguia se exprimir "a partir de" alguém. A enxur-
rada de epígrafes nos poemas do movimento remete
à constituição de uma confraria de chorosos, em que
um cita, retoma e expande a lágrima já vertida em
outro texto. A diferença é que, até Álvares, essas lágri-
mas eram quase todas importadas; a partir dele -
cujos versos passaram a servir de epígrafe a inú-
meros poetas - já pudemos chorar em vernáculo.
Vigoravam, assim, alguns arquitextos - por exemplo:
poeta, flébil, se lamuria frente à indiferença da vir-
gem - cujas sucessivas atualizações só têm interesse
nos casos em que, em meio ao coro do exército dos
tristonhos de plantão p ela ginástica mecânica do esti-
lo, nós conseguimos auscultar o timbre m ais persona-
lizado d e uma voz. É evidente que esses instantes de
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deslocamento perceptivo, de configuração do novo,
podem ser intermitentes, algo disseminados ao longo
de uma obra extensa como a de Varela. Mas existin-
do, como existem, são suficientes para que tais mo-
mentos se situem no nível do que de melhor se pro-
duziu nas letras brasileiras do século XIX.
Os núcleos temáticos desta antologia são: 1) "A
musa cívica"; 2) "Quem sou?"; 3) "Em busca de
Cristo"; 4) "Em nome do amor"; 5) "Cidade versus
campo"; 6) "Paisagens"; 7) ''A poesia no espelho"; 8)
''A morte e depois". Sumariamente embora, exami-
nemos algumas das inflexões de cada um dos grupos.
''A musa cívica" de Varela, sua poesia ostensiva-
mente política ou politizada, abrange três faixas de
referência: ora é baseada em acontecimentos históri-
cos específicos (a chamada "Questão Christie", que
nos opôs aos britânicos em inícios da década de 1860;
a campanha libertadora de Juarez, no México), ora se
debruça sobre determinada questão social (em parti-
cular, o regime escravista brasileiro), ora se alça a con-
siderações genéricas sobre o destino da humanidade.
Como ponto comum, no que tange à fabulação meta-
fórica de Varela, o apego a imagens de tormenta, de
violência eólica, como estágio necessário à "purifi-
cação" do homem, e à construção de uma nova e justa
ordem social. Lemos em "Versos soltos" (dedicados a
Juarez): "Trarás contigo os raios da tormenta!/ Da tor-
menta serás o sopro ardente!". Em "O escravo", o poeta,
lamurioso, indaga: "Por que/.. ./ não chamaste das terras
Africanas/ O vento assolador?". E, em"Aurora", refere-se
a uma "tormenta salutar e grande". Esse poema, de viés
marcadamente apocalíptico, sugere que o destino do
homem se subordina ao arbítrio divino, diversa-
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mente do que ocorre em "Aspirações", onde, após
queixar-se de certa letargia popular, cúmplice passiva
da opressão, Varela (outra vez apoiando-se em ima-
gens aéreas) lança o vigoroso brado: "Quero escutar
nas praças, ao vento das paixões,/ Erguer-se retumbante a
voz das multidões!". Já no combate à escravidão, o
poeta recorreu, em "O escravo", à estratégia da comi-
seração (de que também se valeriam, depois, Castro
Alves e Bernardo Guimarães, n'A escrava Isaura). A
morte como conquista da liberdade é o mote do
poema - "Se a terra devorou sedenta/ De teu rosto o suor,/
Mãe compassiva agora te agasalha/ Com zelo e com amor" -
numa concepção similar à que, quase um século
depois, João Cabral de Melo Neto desenvolveria no
funeral de um lavrador, em Morte e vida severina.
Também merece relevo "À Bahia", pela interessante
contraposição entre uma realidade "turística", estam-
pada, nas cinco primeiras estrofes do poema, no elo-
gio à exuberância tropical da paisagem, e a existência
do regime escravocrata, num registro cacofônico de
sons que ironicamente se "casam": "E pelas noites tran-
qüilas,/ Aos ecos das serenatas, / Casam-se as vozes
ingratas/ Da mais cruenta opressão!".
"Quem sou", segunda seção da antologia, resu-
me a matéria sobre a qual mais detidamente se debru-
çam os românticos: eles próprios. A tentativa de defi-
nir-se pela construção de uma subjetividade estável,
e a consciência da impossibilidade de tal construção,
é das tensões mais freqüentes da lírica ultra-romântica.
Volátil por natureza, o ideal está sempre além. Como
atingi-lo, se ele se desloca na mesma velocidade com
que supomos dele nos aproximar? Daí, no "eu", um
movimento simultaneamente lançado para o futuro
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(lá, onde o ideal está, mas não cheguei ainda) e para
o passado (cá, onde em algum momento o ideal
esteve - mas cheguei tarde demais ... ). Daí o apelo à
Natureza, cartilha primordial do mundo, onde,
excluída a História, vivencia-se o mito de uma
eternidade sempre idêntica a si mesma. Daí, também,
que o aparente desejo da morte seja, fundamental-
mente, um desejo de parar de morrer o tempo todo, em
vida, para renascer-se num Céu de onde a morte este-
ja perpetuamente banida. Sou o que, fora de mim,
aponta para o que nunca serei, e só me devolve ima-
gens de minha própria fragmentação e incomple-
tude: 'Minha casa é deserta; na frente/ Brotam plantas
bravias do chão/. ../ Minha casa é deserta. O que é feito/
Desses templos benditos d' outrora?" ("O foragido");
''Amo nas plantas, que na tumba crescem,/ De errante
brisa o funeral cicio" ("Tristeza"); "É este enojo perenal,
contínuo,/ Que em toda a parte me acompanha os pas-
sos/. ../ Quem de si mesmo desterrar-se pode?" ("Childe-
Harold"); "Nada a meu fado se prende,/ Nada enxergo
junto a mim;/ Só o deserto se estende/ A meus pés, fiel mas-
tim" ("Resignação"); "Brinco do fado, a dor é minha
essência,/ O acaso minha lei! ... " (''Ao Rio de Janeiro");
'Minh'alma é como um deserto/ Por onde o romeiro incer-
to/ Procura uma sombra em vão" ("Noturno"); "Eu amo
a noite quando deixa os montes,/ Bela, mas bela de um hor-
ror sublime" ("Eu amo a noite"). É esse "horror subli-
me", vislumbrado no espaço noturno, que o poeta
enxerga em seu próprio espírito. O estigma da anoma-
lia, da excentricidade, é, ao mesmo tempo, um dolo-
roso e glorioso brasão. Sua melhor imagem é a do ser
em eterna errância, na formulação lapidar de "O exi-
lado": "O exilado está só por toda a parte!".
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De um Deus disseminado na Natureza, e cujas
manifestações o poeta associa mais à esfera do senso-
rial do que à fé abstrata (como se verificará na seção
"Paisagens"), Varela transita, no fim da vida, para a
apologia cristã. O terceiro núcleo da antologia - "Em
busca de Cristo" - apresenta fragmentos e poemas
extraídos de três livros: Anchieta, Cantos religiosos e
Diário de Lázaro. Curiosamente, todos póstumos.
Sabe-se do empenho do poeta, já combalido, em pre-
parar o que supunha ser seu maior legado: uma obra
de teor edificante, que narrasse, mesclando fantasia e
realidade, o esforço do apóstolo Anchieta, na missão
de converter os índios à religião católica, por meio do
relato dos Evangelhos (daí o subtítulo O evangelho nas
selvas). Os mais de 8 mil decassílabos brancos reve-
lam um escritor com grande domínio técnico, embo-
ra o imperativo de obediência à narrativa do Novo
Testamento acabe freando maiores ímpetos de ima-
ginação, reduzindo o nível do texto a uma mediania
algo tediosa ao leitor não particularmente aficionado
do assunto. Os Cantos religiosos foram publicados pela
irmã de Fagundes, Ernestina, também autora de algu-
mas das peças do volume. O poema de abertura, sem
título, reproduz iconicamente uma cruz. Já o Diário é
fragmento que, possivelmente, o poeta não logrou
revisar, e vale sobretudo como ratificação do peso da
vertente religiosa na produção tardia de Varela.
Comparado ao divino, o amor humano, para o
poeta, é sujeito a muito mais sobressaltos e inconstân-
cias. A maioria dos textos consagrados ao tema irá
registrar sucessivos déficits na sua contabilidade
amorosa, caracterizada por grandes investimentos
afetivos e pequeno retorno. "Em nome do amor",
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algumas vezes o objeto se encontra fora de seu
alcance - 'a mulher que minh'alma idolatra/ É princesa
do império chinês", dirá em "Ideal", poema de lavor
miniaturista que antecipa traços parnasianos; outras
vezes, a mulher o abandonou ("Eu passava na vida
errante e vago"), sem que ele aceite reconciliação
("Deixa-me"). Eventualmente, o afastamento se dá
por iniciativa do poeta, como nos sóbrios versos de
'As letras", raros exemplos de eneassílabos numa
obra em que predominam os heptassílabos e os
decassílabos: "Na tênue casca de verde arbusto/ Gravei
teu nome, depois parti". A morte da amada, após curto
e intenso período de relacionamento, é dolorosa-
mente evocada em "Elegia". "Visões da noite" define
as amadas como "Pálidas sombras de ilusão perdida".
"Ilusão" é poema narrativo em que o poeta supera
um ambiente hostil e fantasmagórico, para, enfim,
aproximar-se da mulher, sem que, todavia, haja afir-
mação de um contato efetivo entre ambos. O lirismo
de Fagundes Varela, em geral, não escamoteia uma
dimensão explicitamente erótica, e a contenção do
desejo, tão evidente na produção de Álvares e de
Casimiro, nele encontra escassa acolhida. Seus poe-
mas são um canto de amor à mulher, e não à virgem.
Mas, curiosamente, opera-se uma contenção erótica
quando o canto do poeta se dirige à mulher que ama
na temporalidade do presente: é como se a luxúria
(de relações e de poemas passados) se transmudasse
em sublimação. Leia-se "Estâncias", em que Varela
afirma adorar "tu' alma/ Pura como o sorrir de uma
criança", e investe contra "o amor terrestre"; leiam-se
os belíssimos 'A flor do maracujá" e "Não te esqueças
de mim". No primeiro, monorrimado em "a" nos
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versos pares, a natureza brasileira compõe um deli-
cado cenário para avalizar a declaração de amor
("Pelo jasmim, pelo goivo,/ Pelo agreste manacá,/ Pelas
gotas de sereno/ Nas folhas do gravatá,/ Pela coroa de espi-
nhos/ Da flor do maracujá!"). No segundo, o poeta,
ainda sob o tépido agasalho do espaço tropical
("Quando a brisa estival roçar-te a fronte/ Não te esqueças
de mim, que te amo tanto"), pede à amada que reco-
nheça sua presença disseminada nos mais acolhedores
signos da natureza, na vida e para além dela. Uma
paisagem igualmente feita de aconchego, mas agora
perpassada nostalgicamente pelo sopro do ubi sunt,
desenha-se no primeiro dos dez poemas de "Juve-
m1ia": "Lembras-te, Iná, dessas noites/ Cheias de doce har-
monia,/ Quando a floresta gemia/ Do vento aos brandos
açoites?li Oh! primavera sem termos!/ Brancos luares dos
ermos!/ Auroras de amor sem fim!". "Juvenília" estampa
uma espécie de caleidoscópio afetivo do poeta, com
altos momentos líricos, mas algo desarticulado entre
seus segmentos. Aparentemente dilui-se entre várias
musas (das quais apenas Iná é nomeada), mesclando
espaços e temporalidades distintas. As duas primei-
ras partes vinculam-se ao passado; da terceira à séti-
ma, e na décima, predomina o presente; a oitava e a
nona retornam ao passado. No poema 8 encontram-
se nítidos vestígios casimirianos, por meio de um
quase-pastiche do célebre "Meus oito anos": "Oh!
minha infância querida!/ Oh! doce quartel da vida,/ Como
passaste depressa!// Eu era vivo e travesso, /Tinha seis anos
então// Junto do alpendre sentado/ Brincava com minha
irmã". Notas diversas serão executadas em 'Antonico
e Corá", exemplar da verve jocosa e humorística de
Fagundes Varela, que reduz o amor à atração física e
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satiriza os hipócritas arranjos de fachada, para que a
moral e os bons costumes se acomodem como lhes
for possível.
Uma visão claramente antitética permeia a maio-
ria dos poemas de "Cidade versus campo". Para nos
assegurarmos da pertinência dessa assertiva, bastaria
lermos uma estrofe de ''A cidade": "Eis a cidade! Ali a
guerra, as trevas,/ A lama, a podridão, a iniqüidade;/ Aqui
o céu azul, as selvas virgens,/ O ar, a luz, a vida, a liber-
dade!", ou os versos iniciais de "Em viagem": 'A vida
nas cidades me enfastia,/ Enoja-me o tropel das multi-
dões". Um desejo de retorno à simplicidade campe-
sina é o que se depreende de ''A roça": "O balanço da
rede, o bom fogo/ Sob um teto de humilde sapé;/ A palestra,
os lundus, a viola,/ O cigarro, a modinha, o café". No
mesmo poema, todavia, Varela alude à força inven-
cível de "um gênio impiedoso", que o arrasta e arre-
messa "do vulgo ao vaivém", do mesmo modo que, em
"No ermo", confessa: ''Ah! que eu não possa me afastar
das turbas,/ Curar a febre que meu ser consome". Estar
condenado ao que o aniquila parece constituir-se
numa das aporias do espírito romântico: saber onde
o bem reside, mas sentir-se impotente para atingi-lo
(e, discretamente, até julgar bem-vindo o impasse,
sem o qual não haveria motivação de lamuriar-se em
verso e prosa). Consoante tal perspectiva, Fagundes
Varela, em ''As selvas", indaga: "Que faço triste no
rumor das praças?/ Que busco pasmo nos salões doura-
dos?" . Há uma espécie de força conflituosa que cinde
a unidade do poeta; seu corpo sente-se atado ao vil
fascínio da urbe, enquanto seu espírito é imantado
pelo espaço da floresta: "Selvas do Novo Mundo, am-
plos zimbórios/ Mares de sombra e ondas de verdura//
Salve! minh'alma vos procura embalde".
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- - • ~'_.o_ l_ - ~
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Sob forma de adesões ou recusas, o espaço natural
não deixa de ser entrevisto como uma extensão do
corpo ou da alma do poeta. É o que percebemos na
macroscopia de "O mar", de Vozes d'América, cujas
idéias centrais - e numerosos versos - seriam reapro-
veitados em "O oceano", de Cantos e fantasias, sem que
a segunda versão, a nosso ver, suplante a primeira.
Trata-se de um hino à força indomável das águas,
capazes de destruírem ou se sobreporem à fatuidade
humana; eternamente imune à mudança, o mar foi
roteiro de civilizações extintas: "Quantos impérios cele-
brados, fortes/ Não floresceram de teu trono às bases,/
Sublime potestade! e onde estão eles?/ O que é feito de
Roma, Assíria e Grécia?". Submisso apenas - como o
próprio poeta - ao desígnio divino, do qual seria uma
espécie de representante terreno ("Santo espelho de
Deus, três vezes salve!"), o mar com que Varela se iden-
tifica traz as marcas da força indômita, da ousadia
hiperbólica, do orgulho feroz e desafiador na exibi-
ção de seus atributos: '~mo-te horrível/ Arrogante e
soberbo, repelindo/ Os furacões que roçam-te nas crinas".
Identificando-se ao campo metafórico atribuído ao
oceano, o poeta afirma: "SoU livre como as vagas que me
cercam/ E só à tempestade e a Deus respeito".
Nesse universo em convulsão, é de registrar-se a
placidez que emana dos versos de "Hino à aurora":
noite e dia em harmônica transição, sem o caráter
antitético predominante no imaginário romântico.
Varela, ao invés de apartar-se, mistura-se aos outros,
sente-se elo de uma interminável cadeia iniciada em
épocas imemoriais, formada por todos os homens
que, tempo afora, contemplaram o nascer do dia: "Há
muito que passaram/ Os que viram no céu luzir outrora/
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Teu fúlgido clarão.// Seus olhos se apagaram,/ E nós por
nossa vez também agora/ Vemos-te n 'amplidão". Para
contextualizarmos a suave inflexão do poema, con-
vém recordar que não se trata de peça original de
Varela, mas de tradução que fez de um fragmento do
Rig-Veda ...
Expandindo o conceito convencional de "tradu-
ção", chegaremos, talvez, a uma das definições de
"poeta" mais presentes na obra de Fagundes Varela:
a de um tradutor imperfeito de Deus. Tradutor na
medida em que é um ser assinalado, condenado ao
desvio e à solidão: afastado (ou estigmatizado) pela
diferença, cabe-lhe como consolo (ou, quem sabe,
como castigo maior) ser o porta-voz das verdades
invisíveis e buscar em vão a Unidade para sempre
rompida: do homem para com Deus, do homem para
com a natureza e do homem para consigo próprio.
Quando coloca a "Poesia no espelho", o poeta, além
de seu rosto, contempla ruínas e d estroços. Se a cons-
trução da obra una é apanágio divino, cabe ao es-
critor contentar-se em se mover entre escombros, e
acenar nostalgicamente para um paraíso onde tudo
se correspondesse com tudo, éden da absoluta indi-
ferenciação. É o que se lê no injustamente pouco
divulgado "Queixas do poeta". Em bem-elaborados
alexandrinos de rimas emparelhadas, Varela sente a
mão de Deus estabelecer liames e correspondências
entre os seres, à exclusão do poeta, único não-benefi-
ciário desse poder de consórcio divino. Enquanto à
flora, à fauna e à humanidade em geral acorrem ver-
bos como "ligar", "ter", "espelhar", "enlaçar" e "em-
balar", cabe ao vate "soluçar", "descarar" e "sucum-
bir". Tal impossibilidade de adesão ou inclusão na
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mecânica do mundo ganhará também superior fatura
estética no longo poema 'Acúsmata": nele, o artista
troca a antiga figuração de "vidente" pela de "ouvin-
te". Tentando adentrar no sentido 'Desse rumor confu-
so, imenso e vago/ Que se eleva da terra", o poeta se faz
receptáculo do que dizem as árvores, as flores, o rio,
a estrela Vésper e os espíritos na atmosfera. No to-
cante epílogo, indaga: 'Donde parte esta voz?". Trava-se,
então, um combate entre o medo pânico do nada, e a
hipótese consoladora de haver Deus (a fantasia "aban-
dona o pó, transpõe as nuvens,/. ../ E nada encontra além
do eterno abismo!''// "Perdão, perdão, meu Deus! Busco-te
embalde/ Na natureza inteira!"). Buscando Deus na
natureza, acaba por encontrá-lo, como sinônimo da
força que assegura uma origem, um sentido e um
destino ao mundo: 'Da natureza inteira que aviventas/
Todos os elos a teu ser se prendem, /Tudo parte de ti, e a ti
se volta". Sob o influxo do pensamento místico-poé-
tico, origem e destino se confundem ...
Em outros poemas, teremos Varela debruçado
não sobre o ato de pensar genericamente o poeta e a
poesia, mas preocupado com o gesto concreto de
escrever o poema. É o que sucede em 'A pena": com
certa ironia, observa que cabe à arte superar a dor
que eventualmente lhe tenha servido de mola ou
esteio ("De pé sobre a própria ruína/ Canta, oh! alma
miseranda!/ Pede ao inferno uma lira,/ Toma os guizos da
loucura,/ Dança, ri, folga e delira/ Mesmo sobre a sepul-
tura!"). A "Canção", igualmente irônica, critica os
artesãos da mediocridade: Máquina de escrever e fazer
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pos1çoes de teor brejeiro, a exemplo de "Lira"
("Encomendo minh'alma às nove musas/ Faço um sone-
to") e de "Canção lógica": "Teus olhos são duas sflabas/
Que me custam soletrar".
A morte. E depois? Num certo número de poe-
mas, Varela procura indagar o que pode advir do
espólio da vida. As respostas são variadas: num caso
("Sobre um túmulo"), a maldição eterna. Poucas
vezes as imprecações do poeta soaram tão forte, pela
sucessão de signos hostis a cercar, por cima e por
baixo, o corpo do inimigo: "Pese-te a terra qual um
fardo imenso,/ Infecta podridão cubra teus olhos,/ Seque o
salgueiro que sombreia a lousa". A morte, ao invés de
apaziguar, parece aviventar o ódio. Do ódio ao amor:
visão oposta comparece em "Oração fúnebre", mais
uma tradução do Rig-Veda. Como em "Aurora", pre-
domina uma atmosfera de suave harmonia, em que a
transição não se faz com ruptura, na medida em que
um dos termos (noite ou morte) já está presente no
outro (aurora ou vida): "Desce à terra materna, tão
fecunda,/ Tão meiga para os bons que a fronte encostam/
Em seu úmido seio.// Ela te acolherá terna e amorosa/
Como em seus braços uma mãe querida/ Acolhe o filho
amado". Um universo sem turbulência ecoa nos ver-
sos de "Desejo": o poeta imagina sua morte no mes-
mo campo semântico da placidez que lemos em
"Oração fúnebre" - a terra como um leito brando de
"suave dormir". Depois, diversamente da vertigem do
nada' que desejou ao desafeto de "Sobre um túmulo",
imagina um reencontro de almas com a pessoa ama-
da, o que, a rigor, implica o desejo de sua morte,
condição para que o pacto afetivo não se desfaça:
''Ah! e contudo se deixando o globo/ Ave ditosa eu não par-
20
tisse só,/ Se ao mesmo sopro conduzisse unidas/ Nossas
essências num estreito nó! ... ".
"Cântico do calvário", para muitos a obra-prima
de Varela, se constitui numa das mais pungentes ele-
gias do lirismo brasileiro. Por meio de admirável
orquestração de metáforas, o longo poema apresenta
simultaneamente a morte do filho do poeta, a dis-
sipação das esperanças que sua vida projetava para a
vida atormentada do pai, e a morte em vida de Varela,
pela perda do referencial afetivo que a presença do
filho representava: "Ouço o tanger monótono dos sinos,/
E cada vibração contar parece/ As ilusões que murcham-se
contigo". Em alta voltagem dramática, o poema se
encerra com a negação e a transfiguração da morte,
reelaborada em signos de luz e de solidariedade. De
algum modo, a morte do menino o transforma no pai
de seu pai, apontando-lhe o caminho da redenção:
''Brilha e fulgura! Quando a morte fria/ Sobre mim sacu-
dir o pó das asas,/ Escada de Jacó serão teus raios/ Por onde
asinha subirá minh 'alma".
21
Noturnas-N
O estandarte auriverde - EA
Vozes d'América - VA
Cantos e fantasias - CF
Cantos meridionais - CM
Cantos do ermo e da cidade - CE
Anchieta ou O evangelho nas selvas - AE
Avulsas-A
Cantos religiosos - CR
Diário de Lázaro - D L
Antonio Carlos Secchin
22
POEMAS
A MUSA CÍVICA
AS. PAULO
Terra da liberdade!
Pátria de heróis e berço de guerreiros,
Tu és o louro mais brilhante e puro,
O mais belo florão dos Brasileiros!
27
Pejaste os ares de sagrados cantos,
Ergueste os braços e sorriste à guerra,
Mostrando ousada ao murmurar das turbas
Bandeira imensa da Cabrália terra!
28
CANÇÃO
Em torno, tudo
São negras penhas,
Névoas ligeiras,
Grutas e brenhas.
E o sol despeja,
Rasgando as brumas,
Torrentes de oiro
No véu e espumas!
29
Assim murmura
De manhãzinha
O viajante
Que além caminha,
Cravando os olhos
Na linfa pura
Que se despenha
Da selva escura.
Em torno, tudo
São vozes, cantos,
Virgens florestas
De eternos mantos.
Plagas, - savanas,
Montes sombrios,
Curvam-se humildes
Ao rei dos riosl
30
Salve! Amazonas soberbo!
Salve! das águas Titão!
Teu povo brada arrogante:
- Quem vive ao pé de um gigante
Não tem receio ao Bretão!
EA
31
AURORA
32
Preparai-vos, ó turbas! Preparai-vos,
Rebatei vossos ferros e cadeias,
Algozes e tiranos!
A hora se aproxima pouco a pouco,
E o dedo do Senhor já volve a folha
Do livro do destino!
33
Vis, abatidos, o fidalgo e o rico
Sairão de seus paços vacilantes
Nos podres alicerces;
E errantes sobre a terra irão chorando
Mendigar um farrapo ao vagabundo,
E um pedaço de pão!
34
Como aos dias primeiros do universo
O globo se erguerá banhado em luzes,
Reflexos de Deus;
E a raça humana sob um céu mais puro
Um hino insigne enviará, prostrada
Aos pés do Onipotente!
35
ASPIRAÇÕES
36
Espanta-me a tormenta que as árvores derriba,
Mas o tufão que passa e a cerração fustiga
É útil e propício, porque descobre os montes
E deixa que eu contemple os vastos horizontes
Onde ao clarão suave de um sol brilhante e puro
Ostenta-se formosa a imagem do futuro!. ..
A raça entorpecida à sombra se acostuma
E nada enxerga além da condensada bruma! ...
Venha o tufão bendito, e ao vento das paixões
Quero escutar nas praças a voz das multidões!
38
O espaço de rugidos?
Que sicário real, nas matas virgens
Amplas, sem marcos, sem batismo e data,
Te apanhará, jaguar das soledades? ...
Ah! tu espreitas os vulcões que dormem!
Quando a cratera encher-se, à luz vermelha
Rebentarás nas praças!. ..
Trarás contigo os raios da tormenta!
Da tormenta serás o sopro ardente!
Mas a tormenta passará de novo
E o golfo Mexicano iluminado
Refletirá teu vulto gigantesco,
Ó águia do porvir!
Teu nome está gravado nos desertos
Onde pés de mortal jamais pisaram!
Quando pudessem deslembrá-lo os homens,
As selvas despiriam-se de folhas,
Para arrojá-las do tufão nas asas
Às multidões ingratas!
Como as de um livro imenso elas compõem
Teu poema sublime; a pluma eterna
Do invisível destino, e não rasteira,
Mísera pena de mundano bardo,
Nelas traçou as indeléveis cifras
39
De teu nome imortal!
Os pastores de Puebla e de Jalisco,
As morenas donzelas de Bergara,
Cantam teus feitos junto ao lar tranqüilo
Nas noites perfumadas e risonhas
Da terra Americana. Os viajantes
Que os desertos percorrem, - pensativos,
Param no cimo das erguidas serras,
Medem co'a vista o descampado imenso,
E murmuram fitando os horizontes
Vastos, perdidos num lençol de névoas:
Juarez! Juarez! em toda a parte
, ºt o vaga ....
.teu esp1n
'T' '
40
Como o brado do arcanjo no infinito
Ao fenecer dos mundos!
41
O ESCRAVO
Ao sr. Tomaz de Aquino Borges
42
Do augusto condenado as leis são santas,
São leis porém de amor:
Por amor de ti mesmo e dos mais homens
Preciso era o valor,
Não o tiveste! Os ferros e os açoites
Mataram-te a razão!
Dobrado cativeiro! A teus algozes
Dobrada punição!
43
Então ergueras resoluto a fronte,
E grande em teu valor
Mostraras que em teu seio inda vibrava
A voz do Criador!
Mostraras que das sombras do martírio
Também rebenta a luz!
Oh! teus grilhões seriam tão sublimes,
Tão santos como a cruz!
44
Digam-no as ambições desenfreadas,
A cobiça fatal,
Que a eternidade arvoram nos limites
De um círculo mortal!
Digam-no o luxo, as pompas e grandezas,
Lacaios e brasões,
Tesouros sobre o sangue amontoados,
Paços sobre vulcões!
45
Tudo, tudo abateu sem dó nem pena!
Tudo, tudo, meu Deus!
E teu olhar à lama condenado
Esqueceu-se dos céus!. ..
Dorme! Bendito o arcanjo tenebroso -
Cuja cifra imortal,
Selando-te o sepulcro, abriu-te os olhos
À luz universal!
CM
46
À BAHIA
47
- -~-- l ·- ~
48
Mas ah! Vede, nesta pátria
De heróis, de gênios, de bravos,
Vestígios de pés escravos
Conspurcam tão nobre chão!
E pelas noites tranqüilas,
Aos ecos das serenatas,
Casam-se as vozes ingratas
Da mais cruenta opressão!
49
Bahia, terra das artes!
Terra do amor e da glória!
Quão grande foras na História,
Quão grande com teus brasões,
Se à fronte não te luzissem
Aos diamantes misturados
Os prantos cristalizados
De cativas multidões!
CM
50
QUEM SOU?
O FORAGIDO
(Canção)
53
No curral esbanjado, entre espinhos,
Já não bala ansioso o cordeiro,
- Nem desperta-se ao toque do sino -
- Nem ao canto do galo ao poleiro. -
54
Corre pois vendaval das tormentas,
Hoje é tua esta morna soidão!
Nada tenho, que um céu lutulento
E uma cama de espinhos no chão!
55
. -- - - i ~ - ·~
TRISTEZA
56
Amo a tormenta, o perpassar dos ventos,
A voz da morte no fatal parcel;
Porque minh' alma só traduz tristeza,
Porque meu seio se abrevou de fel.
57
O céu de anil, a viração fagueira,
O lago azul que os passarinhos beijam;
A pobre choça do pastor no vale;
Chorosas flores no sertão vicejam;
... 1861.
VA
58
O EXILADO
O exilado está só por toda a parte!
59
Desta campina as árvores são belas,
São belas estas flores que se vergam
Das auras estivais ao débil sopro;
Mas nem a sombra que no chão se alonga,
Nem o perfume que o ambiente inunda,
São dessa gleba divinal que adoro.
O exilado está só por toda a parte!
60
Vi o ancião da prole rodeado
Sorrir-se calmo e bendizer a Deus,
Vi junto à porta da nativa choça
As crianças beijaram-se abraçadas;
Mas de filho ou de irmão o santo nome
Ninguém me deu, e eu fui passando triste.
O exilado está só por toda a parte!
61
Quando nas folhas de lustrosos plátanos
Novos luares descansarem gratos,
Já sobre a estrada de meus pés os traços
O pegureiro não verá, que passa!
Mísero! ao leito de final descanso
Ninguém meu sono velará chorando.
O exilado está só por toda a parte!
VA
62
CHILDE-HAROLD
(Sobre uma página de Byron)
63
J _ l_......L •I
64
RESIGNAÇÃO
Sozinho no descampado
Sozinho, sem companheiro,
Sou como o cedro altaneiro
Pela tormenta açoutado.
Gigante da soledade,
Tenho na vida um consolo:
Se enterro as plantas no solo,
Chego a fronte à imensidade!
65
À dor o orgulho sagrado
Deus ligou num grande nó ...
Quero viver isolado,
Quero viver sempre só!
66
IRADESAUL
(Fragmento)
67
Lembra-me a vista do Carmelo, - as tendas
Brancas sobre as encostas de Efraim,
E pouco a pouco apagam-se as tremendas
Fúrias do gênio que me oprime assim!
CF
68
AO RIO DE JANEIRO
69
Agora o espaço, as sombras, a saudade,
O pranto e a reflexão ...
A alma entregue a si, Deus nas alturas ...
Nos lábios a oração!
70
NOTURNO
71
1 -- -- -
72
Quero morrer! Este mundo
Com seu sarcasmo profundo
Manchou-me de lodo e fel!
Minha esperança esvaiu-se,
Meu talento consumiu-se
Dos martírios ao tropel!
73
Virgens, anjos e crianças
Coroadas de esperanças
Dobram a fronte a teus pés!
Os vivos vão repousando!
E tu me deixas chorando!
Quando virá minha vez?
74
EU AMO A NOITE
75
Amo o furor do vendaval que ruge
Das asas densas sacudindo o estrago,
Silvos de balas, turbilhões de fumo,
Tribos de corvos em sangrento lago.
76
Como a criança, do viver nas veigas,
Gastei meus dias namorando as flores,
Finos espinhos os meus pés rasgaram,
Pisei-os ébrio de ilusões e amores.
77
ARMAS
78
VELHA CANÇÃO
(Voltas)
79
Prosperidade na terra
É sonho que pouco dura,
Tudo definha e fenece
Na lousa da sepultura.
Meditem os estadistas
Sobre casos mal seguros,
Trato de cousas mais leves,
Não sou desses gênios duros.
80
Eu por mim penso que o mundo
Por pouco vai-se a perder,
Por causa de tantos grulhas
Inimigos do prazer.
81
EM BUSCA
DE CRISTO
CANTO I, XXVIII
85
As mil constelações se tresmalharam
Quais errantes lucíolas: a láctea
Banda, que o firmamento em dois divide,
Como um cinto de frágeis filigranas
Na vastidão perdeu-se! - Os grandes lagos,
Os tanques primorosos, as colinas
Coroadas de vinhas e oliveiras,
Transformaram-se em mares encantados,
Ilhas de nácar, mágicos pomares,
Grutas de fadas e amorosos gênios.
AE
86
CANTO IV
87
E debalde procura e não encontra,
E tenta dar um nome, e os frios lábios
Não sabem que dizer! Meu Deus, acaso
Serás tu? ... - Como a nau incendiada
Que, meia oculta em turbilhões de fumo,
De vermelho clarão as ondas tinge,
Tal das nuvens purpúreas do Ocidente
Dardeja o sol os raios derradeiros
Nas soledades dos sertões Brasílios.
As campinas e as selvas clareadas
Pela mágica luz do cíntio globo
Arreiam-se de galas, e parecem
Cobertas de oiro em pó, e finas pedras.
AE
88
"ESTRELAS"
Estrelas
Singelas,
Luzeiros
Fagueiros,
Esplêndidos orbes, que o mundo aclarais!
Desertos e mares, - florestas vivazes!
Montanhas audazes que o céu topetais!
Abismos
Profundos!
Cavernas
Eternas!
Extensos,
Imensos
Espaços
Azuis!
Altares e tronos,
Humildes e sábios, soberbos e grandes!
Dobrai-vos ao vulto sublime da cruz!
Só ela nos mostra da glória o caminho,
Só ela nos fala das leis de - Jesus!
CR
89
"EI-NOS UNIDOS ... "
Margens do Tietê, 24 de julho
90
Duplicaste meu ser, minha existência
Na posse da mulher, que idolatrava!..
Ah! faze, grande Deus, que nossas vidas
Corram tranqüilas, como agora correm;
Que benditos por ti, por ti sagrados,
Nossos dias unidos para sempre
Sejam em teu louvor um canto eterno!
DL
91
EM NOME DO AMOR
ILUSÃO
95
No seu vasto salão iluminado,
Suavemente repousando o seio
Entre sedas e flores,
Toda de branco, engrinaldada a fronte,
Ela me espera, a linda soberana
De :i:neus santos amores.
96
IDEAL
97
DEIXA-ME!*
98
Ah! não me lembres do passado as cenas,
Nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? a quantos outros, dize,
A quantos outros não fizeste o mesmo?
99
NÃO TE ESQUEÇAS DE MIM!
100
Não te esqueças de mim, quando meus olhos
Do sudário no gelo se apagarem,
Quando as roxas perpétuas do finado
Junto à cruz de meu leito se embalarem.
101
SONETO
102
ELEGIA
103
Nós éramos jovens, - e as balsas floridas
O espaço inundavam - de quentes perfumes,
E o vento chorava nas tílias do parque,
E a lua soltava seus tépidos lumes!. ..
104
Vestida de branco, - nas cismas perdida,
Seu mórbido rosto pousava em meu seio,
E o aroma celeste das negras madeixas
Minh' alma inundava de férvido anseio.
105
Ligeira, essa noite de infindas venturas
Somente em minh' alma lembranças deixou ...
Três meses passaram, e o sino do templo
À reza dos mortos os homens chamou!
106
VISÕES DA NOITE
107
JUVENÍLIA
(Excertos)
Poema
Os regatos soluçavam,
Os pinheiros murmuravam
No viso das cordilheiras,
E a brisa lenta e tardia
O chão relvoso cobria
Das flores das trepadeiras.
108
Lembras-te, Iná? Eras bela,
Ainda no albor da vida,
Tinhas a fronte cingida
De uma inocente capela.
109
Ah! Iná! Quanta esperança
Eu não vi brilhar nos céus,
Ao luzir dos olhos teus,
A teu sorrir de criança!
110
Que é feito agora de tudo?
De tanta ilusão querida?
A selva não tem mais vida,
O lar é deserto e mudo!
111
Irei à pátria das fadas
E dos silfos errabundos,
Irei aos antros profundos
Das montanhas encantadas;
IV
112
Teu cabelo mais cheiroso
Que o perfume dos vergéis,
Na brancura imaculada
Da cútis acetinada
Rola em prófusos anéis:
Eu quisera ter mil almas,
Todas ardentes de anelos,
Para prendê-las, meu anjo,
À luz de teus olhos belos,
Nos grilhões de teus olhares,
Nos anéis de teus cabelos!
VIII
113
Oh! minha infância querida!
Oh! doce quartel da vida,
Como passaste depressa!
Se tinhas de abandonar-me,
Por que falsária enganar-me
Com tanta meiga promessa?
Ingrata, p or que te foste?
Por que te foste, infiel?
E a taça de etéreas ditas,
As ilusões tão bonitas
Cobriste de lama e fel?
114
Junto do alpendre sentado
Brincava com minha irmã,
Chamando o grupo de anjinhos
Que tiritavam sozinhos
Na cerração da manhã;
Depois por ínvios caminhos,
Por campinas orvalhadas,
Ao som de ledas risadas
Nos lançávamos correndo.
O viandante parava
Tão descuidosos nos vendo,
O camponês nos saudava,
A serrana nos beijava
Ternas palavras dizendo.
115
Inda revejo esse dia,
Cheio de dores e prantos,
Em que tão puros encantos
Oh! sem saber os perdia!
Lembra-me ainda: era à tarde,
Morria o sol entre os montes,
Casava-se a voz das rolas
Ao burburinho das fontes;
O espaço era todo aromas,
Da mata virgem nas comas
Pairava um grato frescor;
As criancinhas brincavam,
E as violas ressoavam
Na cabana do pastor.
116
Subi aos paços dos nobres,
Fui aos casebres dos pobres,
Riqueza e miséria vi,
Mas tudo é morno e cansado,
Tem um gesto refalsado
Nestes lugares daqui!
Oh! então chorei por ti,
Minha adorada mansão;
Chamei-te de meu desterro,
Os braços alcei-te em vão!
Não mais! Os anos passaram,
E com eles desbotaram
Tantas rosas de esperança!
Do tempo nas cinzas frias
Repousam p'ra sempre os dias
De meu sonhar de criança!
CF
117
A FLOR DO MARACUJÁ
118
Pelo mar, pelo deserto,
Pelas montanhas, sinhá!
Pelas florestas imensas
Que falam de Jeová!
Pela lança ensangüentada
Da flor do maracujá!
119
ANTONICO E CORÁ
História Brasileira
120
O nosso herói obrigado,
Por uma questão urgente,
Teve de deixar a esposa
Da repente.
121
Mas onde estava Antonico?
Não sei, dessas longes plagas
Guardo apenas na carteira
Notas vagas.
122
Dous anos mais são passados,
E Antonico, quem diria!
De sua segunda esposa
Se enfastia!
123
Chegando à mísera aldeia,
Cumprindo o triste fadário,
Vai logo bater à porta
Do vigário.
124
No dia seguinte, humilde,
Nos largos peitos batendo,
Voltou à casa do gordo
Reverendo.
125
Findas as rezas: - acuse-se,
Murmura o bom reverendo,
Antonico enxuga os olhos
E tremendo
126
- Pior! Juraste então falso?
Feriste alguém? - Não, senhor.
- Mataste, filho, mataste?
- Fiz pior! -
127
- Corá!.. Exclama Antonico!
- Compaixão!. .. Brada Corá.
- O que é isto? Indaga o padre,
-Que será?
128
O padre franze os sobrolhos,
Esfrega as orelhas bentas,
Passa a língua pelos lábios,
Coça as ventas.
129
- Bonitos, hein? Diz o padre
Contente esfregando as mãos,
- Pois obremos, filho, como
Bons cristãos:
130
ESTÂNCIAS
131
O que eu adoro em ti, ouve, é tu' alma
Pura como o sorrir de uma criança,
Alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de crenças, rica de esperança.
132
Na douda pira de um amor terrestre
Pensei sagrar-te o coração demente ...
Mas ao mirar-te deslumbrou-me o raio ...
Tinhas nos olhos o perdão somente!
CE
133
AS LETRAS
134
CIDADE VERSUS CAMPO
ARQUÉTIPO
137
Em nada acreditava; há muito tempo
Que a idéia de Deus soprara d' alma
Como das botas a poeira incômoda.
O Evangelho era um livro de anedotas,
Beethoven torturava-lhe os ouvidos,
A Poesia provocava o sono.
138
Quatro dias depois tinha casado.
Escolhera uma noiva descuidoso,
Como um brinco chinês - um livro in-fólio,
Ao altar conduziu-a, distraído,
E as juras divinais do casamento
Repetiu bocejando ao sacerdote.
139
AS SELVAS
140
Eu não detesto nem maldigo a vida,
Nem do despeito me remorde a chaga,
Mas ah! sou pobre, pequenino e débil
E sobre a estrada o viajor me esmaga!
141
NO ERMO
142
Ah! que eu não possa me afastar das turbas,
Curar a febre que meu ser consome,
E entre alegrias me atirar cantando
Nas secas folhas do sertão sem nome.
143
Que inda pudera se alentar de novo
E entre delícias flutuar minh' alma,
Fanada planta que mendiga apenas
O orvalho, a noite, a viração e a calma!
144
Só há martírios e dores?
Quando a aurora é sem belezas,
Cheias de espinho as devesas,
E a tarde só tem tristezas
Em vez de cantos e flores!
CF
145
A CIDADE
A meu predileto amigo o sr. dr. Betoldi
146
Não, não é na cidade que se formam
Os fortes corações, as crenças grandes,
Como também nos charcos das planícies
Não é que gera-se o condor dos Andes!
147
Eis a cidade! Ali a guerra, as trevas,
A lama, a podridão, a iniqüidade;
Aqui o céu azul, as selvas virgens,
O ar, a luz, a vida, a liberdade!
148
Presa a virtude ao cofre dos banqueiros,
A lei de Deus entregue aos histriões!
Em cada rosto o selo do egoísmo!
Em cada peito um mundo de traições!
149
O CAVALO
150
Bebe a plenos pulmões as bafagens
Desta noite sombria, mas pura;
Deixa as feras rugirem no mato,
Deixa o inseto chilrar na espessura!
151
Como rasgas as trevas garboso!
Ah! como elas te lambem as ancas!
Como aos ventos sacodes ousado
Essas crinas espessas e brancas!
152
Novos mundos parece que vejo,
Novo solo parece que pisas,
Novos cantos escuto no espaço,
Novas queixas nas asas das brisas!
153
A ROÇA
154
Belos ermos, risonhos desertos,
Livres serras, extensos maméis,
Onde muge o novilho anafado,
Onde nitrem fogosos corcéis;
155
Voto horror às grandezas do mundo,
Mar coberto de horríveis parcéis,
Vejo as pompas e galas da vida
De um sendal de poeira através.
156
EM VIAGEM
157
PAISAGENS
SONETO
161
CANTIGA
162
Curva-te ao guarda soberbo
Que junto da barra está,
Mede as vagas do Amazonas
E os campos de Paraná.
163
O SABIÁ
(Cançoneta)
164
Vem junto à minha janela,
Sobre a bela
Verdejante laranjeira,
Beber o eflúvio das flores,
Teus amores,
Nas asas de aura fagueira.
165
OMAR
166
Cartago, a valorosa? As vagas tuas
Lambiam-lhe os muros, quer nos tempos
De paz e de bonança, quer na quadra
Em que chuvas de setas se cruzavam
À face torva das hostis falanges!
Tudo esb'rou-se, se desfez em cinzas,
Sumiu-se corno os traços que o romeiro
Deixa da Núbia na revolta areia!
Só tu, oh mar, sem termos, imutável
Corno o quadrante lúgubre do tempo,
Ruges, palpitas sem grilhões nem peias!
167
Espelho glorioso onde entre fogos
Se mostra onipotente, nas tormentas,
A face do Senhor! Monstro sublime
Cujas garras de ferro o globo abraçam
Até que um dia, quem o sabe? exausto
Lance o último alento! ah! no teu seio
Talvez tremendo espírito se agite,
Misto sombrio de paixões sem freios,
Cuja expressão vislumbra-te no rosto,
Ora hediondo de compressos músculos,
Ora suave como o louro infante
Sobre o seio materno, ora cruento
Gotejando suor, escuma e raiva!
168
Viste tudo cair! riscada a Atlântida
Da face do universo, os brônzeos deuses
Desterrados p'ra sempre, e só restou-te
Uma voz gemedora que chorava:
- Já não vive o deus Pan! oh! Pan é morto!
Oceano sem fundo! vagas túmidas,
Abismo de mistério, ah! desde a infância,
Preso na teia da atração divina,
Eu vos busquei sedento! sobre as praias,
Curvas como os alfanges dos eunucos,
Eu me perdia nos dourados dias
Da santa primavera, ouvindo os brados
Dos marinhos corcéis, molhando as plantas
Na gase salitrosa que envolvia
169
Arrogante e soberbo, repelindo
Os furacões que roçam-te nas crinas,
Quebrando a asa de fogo que das nuvens
Procura-te domar, batendo a terra
Com teus flancos robustos, levantando
Triunfante e feroz no tredo espaço
A cabeça vendada de ardentias!
170
SEXTILHAS
171
Amo a lagarta que dorme,
Nojenta, lânguida, informe,
Por entre as ervas rasteiras,
E as rãs que os pauis habitam,
E os moluscos que palpitam
Sob as vagas altaneiras!
172
O OCEANO
173
Sublime potestade! E onde estão eles?
O que é feito da Grécia, Tiro e Roma,
Cartago a valerosa? As vagas tuas
Lambiam-lhes os muros, quer nos tempos
De paz e de bonança, - quer na quadra
Em que chuvas de setas se cruzavam
À face torva d as hostis falanges!
Tudo aluiu-se, transformou-se em cinzas,
Sumiu-se como os traços que o romeiro
Deixa da Núbia na revolta areia!
Só tu, oh! mar sem termos, imutável
Como o quadrante lúgubre do tempo,
Ruges, palpitas sem grilhões nem peias!
Nunca na face desse azul sombrio,
Onde tranqüilas, ao soprar das brisas,
Poesias do céu, flores do éter,
As estrelas se miram namoradas,
Nunca o fogo e a lava, a guerra e a morte,
As frotas dos tiranos hão deixado
Um vestígio sequer de seus ultrajes!
Tal como à tard e do primeiro dia
Que o espaço desflorou, hoje te ostentas
Na tua majestade horrenda e bela!
174
A face do senhor! Monstro atrevido
Cujas garras de bronze o globo abraçam,
Até que um dia - quem o sabe! - exausto
Lance o alento final! ... ai! no teu seio
Talvez tremendo espírito se agite,
Misto ignoto de paixões sem freios,
Cuja expressão deslumbra-te nas faces,
Ora hediondas de compressos músculos,
Ora doridas como a virgem morta
Na flor da juventude, ora risonhas
Como a loura criança que repousa
Sobre o colo matemo adormecida!
175
Sumiram-se na sombra os brônzeos deuses,
E nem restou-te aquela que nascida
De teus flocos de espuma deslumbrara
O Olimpo e a terra com seus olhos langues!
176
Os vendavais que roçam-te nas crinas;
Quebrando a asa de fogo que das nuvens
Procura te domar; batendo a terra
Com teus flancos robustos; levantando
Triunfante e feroz no tredo espaço
A cabeça vendada de ardentias!
Amo-te assim, oh! mar! porque minh' alma
Vê-te imenso e potente, desdenhoso
As humanas cobiças derribando!
Amo-te assim; ditoso no teu seio,
Zombo do mundo que meu ser esmaga,
Sou livre como as ondas que me cercam,
E só à tempestade e a Deus me curvo!
CF
177
O VAGA-LUME
178
A tribo das borboletas,
Das borboletas azuis,
Segue teus giros no espaço,
Mimosa gota de luz.
179
HINO À AURORA
(Rig-Veda, I, 8)
Percorreis o universo,
Aurora e Noite, sempre redivivas,
Opostas na aparência.
180
Rósea filha do Dia,
Brilhante a nossos olhos apareces,
Cheia de glória e amor;
E espalhas a harmonia,
A vida, o gozo, ao mundo que esclareces
Com teu sacro esplendor.
181
A POESIA
NO ESPELHO
QUEIXAS DO POETA
185
Divisa junto às selvas um fio de fumaça
Erguer-se preguiçoso da choça hospitaleira
Pousada alegremente de um ribeirão à beira;
Ali junto dos seus descansa o lavrador
Dos homens afastado e longe do rumor;
Mas no recinto escuro que o desalento infecta
Sucumbe lentamente o gênio do poeta!. ..
No rio caudaloso que a solidão retalha,
Da funda correnteza na límpida toalha,
Deslizam mansamente as garças alvejantes;
Nos trêmulos cipós de orvalho gotejantes,
Embalam-se avezinhas de penas multicores
Pejando a mata virgem de cânticos de amores;
Mas presa de uma dor tantálica e secreta
De dia em dia murcha o louro do poeta!. ..
CF
186
ACÚSMATA
(Fragmento)
POETA
187
Quero chorar. Mas não, não, que meus olhos
Têm pudor, não choram! E contudo
Sinto-os num mar de lágrimas perdidos!
Sinto que o pranto sobe-me do seio!
Sinto que o pranto desce-me do cérebro!
Sinto que o pranto escalda-me as retinas!
Sinto que fui feliz, e nessa quadra
Nem tristezas cantei, nem amarguras,
Mas Deus, a vida, a mocidade e a glória!
188
Mais ásperos da vida, hei mendigado
Uma nuvem de paz, um véu de olvido!
E tudo é mudo! O que me resta agora?
O sossego da morte, a cinza, o nada!. ..
189
Mentira! tudo é quedo, imóvel, frio!
O vento passa, os espinheiros gemem
Torcendo os galhos secos, dir-se-ia
Que ameaçam as nuvens! Bem, morramos,
Tem belezas o pó, sonhos a tumba,
E a morte que os estultos amedronta
Brota a meus olhos pensativa e meiga,
Coroada de flores mais formosas
Que as tristes rosas dos jardins dos homens!
190
POETA
As ÁRVORES
191
Ah! eras belo nesse tempo! A aurora
Tinha-te posto toda a luz nos olhos!
Quando passavas, teu caminho ledo
De frescura e de folhas alfombrávamos!. ..
E tu partiste, ingrato, e tu partiste!
E trocaste o sossego do deserto
Pelo fulgor das salas dos palácios!
Pelos fingidos risos da mentira!
Pela voragem negra onde soluças!. ..
As FLORES
192
Andróginas do éter, a desgraça
Nos dividiu nos primitivos tempos:
Uma parte fulgura entre as estrelas,
Outra desceu à terra, e suspirosa
Cada noite meneia a débil fronte,
Mirando o firmamento. Um doce pranto,
Um pranto repassado de saudades,
Vem nos banhar o aveludado colo.
Que divina volúpia nessas lágrimas!
193
Nunca fomos ciosas! Muitas vezes,
Brutal, nos trucidaste sem piedade
Para adornar as frontes suarentas
De grosseiras amantes! Muitas vezes,
Distraído vagando, nos pisaste,
Como torpe animal! Porém que importa?
Se outras vezes choravas debruçado
Beijando-nos o seio? Se outras vezes
Tinhas tanta poesia a repetir-nos?
194
A fim que o viandante nos tomasse
Para tecer a c'roa derradeira,
A c'roa derradeira que te resta!
O R:ro
195
E desprezaste a virgem que eu fadei-te,
Pura, mais pura que as estrelas todas!
Cortaste o fio do dourado drama
Que no silêncio místico das noites,
Pensando em ti, tracei, esmando o espaço
De um brilhante porvir! Lírios e rosas,
Tudo pisaste no delírio insólito
De uma febre insensata! Desditoso!
O que te resta agora? O que te resta?
A ESTRELA VÉSPER
196
NUMA CHOÇA DE PALHA
ESPÍRITOS NA ATMOSFERA
197
POETA
NoEsrAço
198
POETA
199
Perdão, perdão, meu Deus! Busco-te embalde
Na natureza inteira! O dia, a noite,
O tempo, as estações, mudos sucedem-se,
E se falo de ti mudos se escoam!
Mas eu sinto-te o sopro dentro d'alma!
Da consciência ao fundo eu te contemplo!
E movo-me por ti, por ti respiro,
Ouço-te a voz que o cérebro me anima,
Em ti me alegro, e choro, e canto e penso!
200
Eu creio em ti, eu sofro, e o sofrimento
Como ligeira nuvem se esvaece
. Quando repito teu sagrado nome!
Eu creio em ti, e vejo além dos mundos
Minha essência imortal brilhante e livre,
Longe dos erros, perto da verdade,
Branca dessa brancura imaculada
Que os gênios inspirados, nesta vida,
Em vão tentaram descobrir nos mármores.
CE
201
LIRA
202
APENA
(Fragmento de um poema íntimo)
203
E no entanto que sonhos,
Que planos ledos, risonhos,
Minha mente não formou
À luz deste céu brilhante,
Sobre este solo gigante
Que o Senhor abençoou!
Quantas vezes reclinado,
Mansamente balouçado
Sobre o regaço materno,
Não senti por minhas faces
Roçarem gênios falaces
Que me apontavam mendaces
Um porvir de gozo eterno!
204
Quando tudo se alegrava,
Por que chorar me fizeste?
Por que me deste um destino?
Por que me deixas sem tino
No meio da criação,
Imagem de um mal acerbo,
No teu poema soberbo
Sangrento escuro borrão?
205
Oh! minha pena querida,
Não quero ensopar-te, não,
Na funda, negra ferida
Que tenho no coração!. ..
Não quero, não posso! Ainda
Eu a vejo airosa e linda
Vir-se sentar junto a mim!
E não é mais que uma idéia!
Folha de rota epopéia!
Fátua luz que bruxuleia
Sobre um deserto sem fim!
E não é mais que uma nota,
Triste, lânguida, remota,
Nas solidões do passado!
Um monte de brancos ossos!
Marco atirado entre os fossos
De medonho descampado!
Oh! minha pena mimosa,
Minha pena graciosa,
Companheira carinhosa
Dos festins da mocidade!
Meu orgulho de criança!
206
Mais tarde loura esperança!
Maga estrela de bonança
No meio da tempestade!
Vou deixar-te! Está quebrada
Essa trindade adorada
Que tantos sonhos gerou!
Ela partiu, nós ficamos!
Ingratos, não mais riamos,
Oh! de lágrimas enchamos
O espaço que ela ocupou!
207
Dos precitos eternais;
Sobre túmulos e berços
Escreve ainda, e teus versos
Sejam banhados, imersos,
Nos prantos de Satanás!
CE
208
CANÇÃO LÓGICA
Eu amo, tu amas, ele ama ...
209
Teus pezinhos microscópicos,
Que nem rastejam no chão,
São leves traços estéticos
Que transtornam,
Que transtornam a razão!
Os preceitos de Aristóteles
Neste momento quebrei!
Tendo tratado dos píncaros,
Oh! nas bases,
Nas bases me demorei.
A
210
CANÇÃO
Santos. - S. Paulo. - 1870.
211
Onde olhavam meus bons antepassados
Sem dor e sem pesar,
Não posso eu mais olhar, perdi as asas
E vim cair no mar.
212
A MORTE E DEPOIS
SOBRE UM TÚMULO
215
CÂNTICO DO CALVÁRIO
À memória de meu filho
morto a 11 de dezembro de 1863
216
Estrelas do sofrer, - gotas de mágoa,
Brando orvalho do céu! Sede benditas!
Oh! filho de minh' alma! Última rosa
Que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce!
Quando as garças vierem do ocidente
Buscando um novo clima onde pousarem,
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
Acharei um consolo a meus tormentos!
Não mais invocarei a musa errante
Nesses retiros onde cada folha
Era um polido espelho de esmeralda
Que refletia os fugitivos quadros
Dos suspirados tempos que se foram!
Não mais perdido em vaporosas cismas
Escutarei ao pôr-do-sol, nas serras,
Vibrar a trompa sonora e leda
Do caçador que aos lares se recolhe!
217
Do galho eivado rolará por terra!
Ainda um treno, e o vendaval sem freio
Ao soprar quebrará a última fibra
Da lira infausta que nas mãos sustenho!
Tornei-me o eco das tristezas todas
Que entre os homens achei! O lago escuro
Onde ao clarão dos fogos da tormenta
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
Por toda a parte em que arrastei meu manto
Deixei um traço fundo de agonias!. ..
218
Do selvagem corcel? .. . E tudo embalde!
A vida parecia ardente e douda
Agarrar-se a meu ser!. .. E tu tão jovem,
Tão puro ainda, ainda n' alvorada,
Ave banhada em mares de esperança,
Rosa em botão, crisálida entre luzes,
Foste o escolhido na tremenda ceifa!
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
Senti bater teu hálito suave;
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
Pulsar-te o coração divino ainda;
Quando fitei teus olhos sossegados,
Abismos de inocência e de candura,
E baixo e a medo murmurei: meu filho!
Meu filho! frase imensa, inexplicável,
Grata como o chorar de Madalena
Aos pés do Redentor.. . ah! pelas fibras
Senti rugir o vento incendiado
Desse amor infinito que eterniza
O consórcio dos orbes que se enredam
Dos mistérios do ser na teia augusta!
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
Que se expande em torrentes inefáveis
Do seio imaculado de Maria!
219
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
E de meu erro a punição cruenta
Na mesma glória que elevou-me aos astros,
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!
220
Do exílio escuro a cítara chorosa
Surgiu de novo e às virações errantes
Lançou dilúvios de harmonia! - O gozo
Ao pranto sucedeu. As férreas horas
Em desejos alados se mudaram.
Noites fugiam, madrugadas vinham,
Mas sepultado num prazer profundo
Não te deixava o berço descuidoso,
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!
221
Ai! doudo sonho!. .. Uma estação passou-se,
E tantas glórias, tão risonhos planos
Desfizeram-se em pó! O ·gênio escuro
Abrasou com seu facho ensangüentado
Meus soberbos castelos. A desgraça
Sentou-se em meu solar, e a soberana
Dos sinistros impérios de além-mundo
Com seu dedo real selou-te a fronte!
Inda te vejo pelas noites minhas,
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
Creio-te vivo, e morto te pranteio!. ..
222
Mas não! Tu dormes no infinito seio
Do Criador dos seres! Tu me falas
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
Talvez das ondas no respiro flébil!
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,
No vulto solitário de uma estrela.
E são teus raios que meu estro aquecem!
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
Brilha e fulgura no azulado manto,
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
Nas ondas nebulosas do ocidente!
Brilha e fulgura! Quando a morte fria
Sobre mim sacudir o pó das asas,
Escada de Jacó serão teus raios
Por onde asinha subirá minh' alma.
CF
223
DESEJO
224
Se junto ao leito das finais angústias,
Da morte fria ao bafejar gelado
Eu te sentisse junto a mim dizendo:
São horas de marchar, eis-me a teu lado.
225
ORAÇÃO FÚNEBRE
(Rig-Veda, VIII, 14)
226
Ela te acolherá terna e amorosa
Como em seus braços uma mãe querida
Acolhe o filho amado.
CE
227
BIOGRAFIA
229
tura. Mas desses episódios, algo grotescos, surge a
imagem de um poeta que, mais do que qualquer
outro de nosso romantismo, levou às últimas conse-
qüências a vocação "maldita" de ser poeta. Não se
tratava de uma excentricidade livresca, mas de uma
vocação pàra o absoluto obstada pela demanda de
um cotidiano burguês ao qual Varela nunca logrou
adaptar-se.
Morreu em 18 de fevereiro de 1875. Alguns dias
antes, numa tarde chuvosa de Niterói, tombara na
rua, em decorrência do excesso de ingestão alcoólica.
Infeliz, desencontrado de si mesmo - como o seu per-
sonagem do poema" Arquétipo" - "à eternidade/ Foi
ver se divertia-se um momento".
230
BIBLIOGRAFIA
231
Obras completas. Org. Visconti Coaracy. Rio de Janeiro:
H. Garnier, [s/ d]. 3 vol.
Obras completas. São Paulo: Cultura, 1943.
Obras completas. Rio de Janeiro: Zélia Valverde, 1943.
3 vol.
Poesias completas. Org. Frederico José da Silva Ramos.
São Paulo: Saraiva, 1956.
Poesias completas. Org. Miécio Táti e E. Carrera Guerra.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
3 vol.
Poesia. Org. Edgard Cavalheiro. Rio de Janeiro: Agir,
1957.
Dispersos. Org. Vicente de Paulo Vicente de Azevedo.
São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1970.
Poemas. Org. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São
Paulo: Cultrix, 1982.
232
ÍNDICE
A MUSA CÍVICA
A S. Paulo ... .... .. ...... ... .... ..... ........... ... ..... ... ... .... ........ .. 27
Canção ....................................................................... 29
Aurora ....................................................................... 32
Asp1raçoes ................................................................. 36
Versos soltos ... ... ... ... ............... ..... ..... ...... ... ............... 38
O escravo ....... ....... .. ... ... ... ... ... ...... ..... .. ... ...... .... .......... 42
À Bahia ...................................................................... 47
QUEM SOU?
233
Noturno ..................................................................... 71
Eu amo a noite .......................................................... 75
Armas ........................................................................ 78
Velha canção............................................................. 79
EM BUSCA DE CRISTO
EM NOME DO AMOR
Ilusão......................................................................... 95
Ideal........................................................................... 97
Deixa-me ................................................................... 98
Não te esqueças de mim! ........................................ 100
Soneto ("Eu passava na vida ...") .............................. 102
Elegia ......................................................................... 103
Visões da noite ......................................................... 107
Juvenília .................................................................... 108
A flor do maracujá ................................................... 118
Antonico e Corá ....................................................... 120
Estâncias .................................................................... 131
As letras ..................................................................... 134
234
CIDADE VERSUS CAMPO
PAISAGENS
A POESIA NO ESPELHO
235
Canção lógica ............................. :............................. 209
Canção ....................................................................... 211
A MORTE E DEPOIS
236