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auditiva
na Psicomotricidade
Relacional
The child with hearing disability in Relational Psychomotricity
Resumo
O presente artigo é fruto de um processo investigativo de crianças com deficiência auditiva reunidas com
crianças "normais" em sessões de psicomotricidade relacional. O objetivo do estudo foi estudar o processo de
brincar das crianças protagonistas do estudo, as experiências de jogo e de exercício. O estudo, de corte
qualitativo, fez uso de vários instrumentos para a coleta de informações tal como: entrevistas, observações
pautadas, memoriais descritivos e análise de documentos. A análise e interpretação dos resultados permitiram
compreender que a intervenção pedagógica da prática da psicomotricidade relacional em conjunto com um
grupo de criança misto permitiu ampliar e enriquecer a trajetória de brincar, seus comportamentos de jogo e de
exercício.
Unitermos: Deficiência auditiva. Desenvolvimento humano. Psicomotricidade.
Abstract
The present article is the result of a study carried out with children with hearing disability in contact with
"normal" children in relational psychomotricity sessions. The study aimed at investigating the playing process of
the protagonist children, as well as their playing and exercising experiences.It is a qualitative study based on
observations, descriptive memories, and analysis of documents. The results showed that the pedagogical
intervention in the relational psychomotricity practice, extended and enriched their way of playing, as well as
their exercising and playing behavior.
Keywords: Hearing disability. Human development. Psychomotricity.
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Introdução
1. Apresentação da temática da criança com deficiência auditiva na
Psicomotricidade Relacional
Para dar início ao tema deste artigo considero importante explicar que para mais além das
simples características que identificam o comportamento, as capacidades e as limitações no
processo de desenvolvimento e de aprendizagem, é fundamental versar sobre as relações
sociais: como se estabelecem, as influências do coletivo e as necessidades nesse processo.
Neste primeiro momento abordo a perspectiva da literatura da área da DA para, depois,
dialogar com as evidências desta investigação.
Marchesi (1995) assinala que existem diversos subgrupos na DA e com diferenças maiores
entre as mesmas do que quando comparadas ao coletivo dos ouvintes. O autor cita como
variáveis diferenciadoras mais significativas: o nível de perda auditiva, a idade do início da
surdez, sua etiologia e os fatores educacionais comunicativos.
O nível de perda auditiva está ligado ao desenvolvimento da fala interna, à leitura labial, à
leitura do texto escrito e à inteligibilidade da fala. A fala interna é proporcional ao nível de
perda auditiva (Marchesi, 1995). Telford e Sawrey (1988) ilustram cinco níveis de perdas
auditivas: a) perdas leves (20 a 30 db) - se localiza entre a audição difícil e a audição normal;
b) perdas marginais (30 a 40 db) - dificuldade em ouvir a fala a poucos metros; c) perdas
moderadas (40 a 60 db) - com a amplificação do som e o auxílio da visão é possível aprender a
falar de ouvido; d) perdas graves (60 a 75 db) - uso de técnicas especializadas para aquisição
da fala. São os indivíduos limítrofes entre os de audição difícil e os surdos; e e) perdas
profundas (superiores a 75 db) - rara aquisição da linguagem de ouvido, mesmo com a
amplificação do som.
Outro subgrupo diz respeito à idade início da surdez que tem uma repercussão importante
para o desenvolvimento infantil. Telford e Sawrey (1988) explicam que quanto mais idade a
criança possuir no início das dificuldades auditivas, maior experiência com o som e a linguagem
oral ela possui, o que facilita sua posterior evolução lingüística. É como os autores ilustram:
"Segundo essa definição um indivíduo com uma perda auditiva congênita de 80 db é chamado
"surdo"; outra pessoa, com perda auditiva idêntica, porém ocorrida na idade dos dez anos, é
chamada de "audição difícil" (Telford e Sawrey, 1988, p. 516).
Marchesi (1995) explica que é difícil obter precisão na origem da DA, mas que a idade da
perda auditiva pode incluir fatores associados como a reação emocional dos pais e, também,
com o desenvolvimento intelectual. Entre os fatores biológicos é consenso em aceitar que existe
pouca probabilidade de um distúrbio associado à DA, quando sua origem é hereditária. A DA
está associada a outras lesões como anoxia perinatal, incompatibilidade de RH ou rubéola.
Marchesi (1995) apresenta estudos realizados a partir de modelos que privilegiam a ação
relacional da criança com DA. Estas abordagens são consideradas como inferências para o
desenvolvimento cognitivo da criança com DA que são: a) a limitação do jogo simbólico em
relação às crianças ouvintes; b) menor planejamento da conduta e capacidade de antecipar
situações; c) limitações em receber as informações do meio externo; d) dificuldades para
realizar operações como formular hipóteses.
Também Telford e Sawrey (1988) assinalam que as DAs profundas em crianças provocam
inúmeras dificuldades motoras e relacionais ao serem comparadas com as crianças ouvintes.
Por sua vez Herzog (1988) apresenta dificuldades vinculadas a sua comunicação e capacidade
de escuta, que são: a) dificuldades na comunicação e restituição de acontecimentos que deseja
expressar; b) a espera ganha um caráter intolerável; c) a dificuldade da espera impede adotar
uma postura harmoniosa para poder receber do outro a sua comunicação na íntegra.
Para além do processo educativo que isola e trata as individualidades das crianças segundo
suas características e somente em relação a elas, o processo investigativo abordou o
comportamento das crianças com DA em conjunto com crianças "normais". Nessa abordagem
trago alguns estudos que analisam a interação social da criança com DA.
Goés (1999) explica que na classe de ensino regular a simples "alocação" da criança com DA
não a integra com as demais ouvintes. Explica que pelo menos até o momento, a inserção na
escola regular tal como está organizada, acentua discrepâncias de oportunidades entre as
diferentes crianças e ensina a segregar. Goés (1999) ressalta que, se os caminhos oferecidos
são iguais, impede-se o alcance de metas iguais, invertendo-se a tese de metas comuns e
caminhos diferentes em acordo com as individualidades das crianças.
Em relação à interação dos adultos, faço referências aos pais, mas com maior ênfase ao
papel mediador dos professores. Marchesi (1995) comenta que a atitude dos pais em relação à
DA da criança e à forma como enfrentam a situação é influente nas relações que serão
estabelecidas entre ambos. Pais ouvintes podem ser desconhecedores do comportamento da
criança com DA e adotar comportamentos diversos, como: superproteção ou mesmo de negar a
existência de DA. A superproteção acaba por reservar a criança de confrontos com o meio
social, deixando-a cada vez menos preparada para aprender e exercitar a linguagem. Esta
dificuldade para comunicar-se sobre os fatos que acontecerão, atividades para o final de
semana, para as férias, entre outras, limita o conhecimento da criança sobre o futuro e
restringe sua possibilidade de planejar e de agir sobre ele, o que faz com que ela seja insegura
e mais dependente da decisão dos demais.
2. A psicomotricidade relacional
É importante analisar o diagnóstico inicial feito das crianças com DA e a sua relação com o
conhecimento teórico sobre este tema. Em relação às variáveis citadas por Marchesi (1995)
como diferenciadoras entre os grupos de pessoas com DA e que influenciam na precisão do
diagnóstico, tanto Sergio3 (DA, 5 anos, masculino) como também Diego (DA, 3 anos,
masculino) obtiveram um diagnóstico inicial entre o primeiro e o segundo ano de vida. Ambos
obtiveram resultado indicador de um nível de perda auditiva considerada profunda, ou seja,
acima dos 75db, e que significa, de acordo com Telford e Sawrey (1988), uma rara aquisição da
linguagem de ouvido, mesmo com a amplificação do som. A idade início da DA é o aspecto que
se diferencia para Sergio e Diego, pois há hipóteses de o primeiro haver desenvolvido a DA nos
primeiros três meses de vida em função da carência de cuidados afetivos adequados e de
subnutrição e, o segundo, adquiriu aos dezoito meses de idade, conseqüência de uma
meningite bacteriana. Por outro lado em relação ao processo educativo para a comunicação
ambos receberam bom tratamento e auxílio da família neste processo 4.
Esta forma inicial de brincar também dificultou a aproximação com os demais colegas do
grupo, sendo que Sergio permanecia brincando individualmente. A ajuda dos professores
acompanhando e fazendo sugestões para brincar permitiu a aproximação entre o menino e os
colegas. A diminuição do ritmo e a organização da sua trajetória lúdica, a partir da interação
dos professores, contribuiu para o estabelecimento das primeiras trocas com os colegas. Nesse
sentido compreendi que o processo educativo que utiliza do lúdico como promovedor de
aprendizagens e das experiências interpessoais não pode limitar-se em apenas oferecer os
espaços para brincar, o fundamento neste processo está em potenciar as relações e as trocas
entre as crianças. Tal resultado não pode ser obtido apenas por intermédio da observação
passiva por parte do adulto. O ato pedagógico de implicar-se corporalmente nesta interação
ajuda a despertar as zonas proximais na comunicação entre as crianças, uma necessidade
educacional para as relações.
Diego também recebeu influência do grupo para a motivação e ajuda dos professores para
envolver-se no processo de brincar. Logo percebi que Diego, a exemplo de Sergio, se
interessava muito por atividades engraçadas e que produzissem barulho. O divertimento do
lúdico, expresso nas atividades engraçadas demonstradas pelos professores, permitiu maior
descontração e envolvimento para o menino iniciar a brincar.
O auxílio inicial dos professores foi alavanca necessária para o envolvimento de Sergio e
Diego nas brincadeiras em conjunto com os colegas. As vivências simbólicas de ambos foram
criativas e passaram a ser modelo para as brincadeiras de pares ouvintes que os
acompanhavam nas sessões. Exemplo disto foi o uso plástico que Diego fez das cordas para
balançar-se; apoiar-se para fazer subidas; estabelecer relações com os colegas e amarrar os
professores. Para Sergio este uso foi a capacidade de fazer-se passar por personagens diversos
como ser peixe e pescador, fantasma e fugitivo, criar o jogo das armadilhas, entre outras
vivências criativas e simbólicas.
Outro aspecto do comportamento de Diego e Sergio faz referência aos momentos dos ritos
de entrada e de saída das sessões, bem como aos momentos de parar de brincar e de
participar das atividades da massagem. O auxílio dos professores a Diego nos ritos de entrada
obedeceu à seguinte ordem de necessidades: primeiro ajudá-lo para descontrair-se no grupo, a
tarefa era fazer com que Diego se sentisse bem com o grupo, isto é, que conseguisse
permanecer com os colegas; num segundo momento, a pauta foi orientar a atenção de Diego e
o exercício da sua comunicação.
Tanto Diego como Sergio, em tempos diferentes (Sergio antes de Diego), mostraram-se
muito atentos aos colegas e aos recursos utilizados para o exercício da atenção, como as
estórias interpretadas pela professora auxiliar e os fantoches. Percebi que os meninos
entenderam o uso da linguagem dos ritos, que representava fazer parte de um grupo e escutar
os colegas. As observações sistemáticas permitiram interpretar que o significado atribuído pelos
meninos ao momento do rito de entrada foi maior que a vontade de brincar. Não se trata de ter
maior ou menor capacidade de paciência, mas sim, de atribuir significado aos momentos
pedagógicos de que foram participantes.
O que desejo salientar neste aspecto é que a motivação para a participação nos momentos
pedagógicos necessita da atribuição de significados que ajudam no envolvimento da criança.
Significa entender que Diego e Sergio não esperavam o momento de brincar, mas sim, que
aprenderam a desfrutar do momento de escutar os colegas e de comunicar-lhes nos ritos de
entrada e de saída das sessões.
A característica citada por Telford e Sawrey (1988) de que a criança com DA apresenta
comportamento de aparente desatenção crônica e a mencionada por Herzog (1988) que a
espera ganha um caráter, por vezes, intolerável não podem ser aplicadas aos casos estudados
nesta investigação. De fato, o diagnóstico inicial apresentava evidências sobre estes
comportamentos, mas que devem ser compreendidos mais sob a ótica da zona de
desenvolvimento potencial do desenvolvimento humano e menos sob, apenas, os
comportamentos efetivos, que dizem respeito à zona de desenvolvimento real, ou seja, aqueles
que a criança demonstra neste momento. Prever o despertar das zonas próximas de
desenvolvimento implica em compreender que o processo interativo e de ajuda possibilita o
desenvolvimento de novos comportamentos e desfaz as características das deficiências que
estão mais a serviço de uma perspectiva determinista do comportamento do que as
possibilidades de aprendizagem e de desenvolvimento.
Este mesmo recurso foi evidenciado para ajudar no comportamento de cooperação destas
crianças nos momentos de ajudar a guardar os materiais, pois em princípio demonstraram
dificuldades para identificar quando isto acontecia. A orientação dos professores para as
crianças guardarem os materiais ajudou-as a perceber que, quando o ritmo das brincadeiras
diminuía, era porque poderiam ter acabado. As limitações das crianças com DA em receber
estímulos do meio externo, descritas por Marchesi (1995), podem ser auxiliadas pelos
processos compensatórios (Vygotsky, 1997). Tais processos foram forças sociais que
contribuíram na modificação de comportamentos e dificuldades iniciais, neste caso, em guardar
os materiais e receber a massagem.
O exercício final que realizo tenta fazer um apanhado sintético dos comportamentos
evidenciados pelas crianças protagonistas do estudo. O desenvolvimento reflexivo do marco
teórico estudado e das evidências descritas e interpretadas, que tiveram como norte estudar as
relações e os efeitos comportamentais das crianças com DA, participantes de um Programa de
Psicomotricidade Relacional, em conjunto com crianças "normais" e crianças com necessidades
educacionais especiais diversas, permitem pontuar alguns aspectos que foram comuns ao
estudo dos casos investigados, como: as características da DA descritas na literatura e nos
diagnósticos iniciais das crianças protagonistas do estudo; a convivência em um grupo misto de
crianças, que reuniu crianças com necessidades educacionais e especiais e aquelas "normais";
bem como o ato pedagógico como estímulo para as relações entre as crianças no grupo.
Nos estudos de Vygotsky (1997) fica claro que tanto as crianças com necessidades
educacionais e especiais como aquelas "normais" aprendem e se desenvolvem de forma
idêntica. O aparecimento das funções superiores de conduta se dá no coletivo. O social é o
provocador das aprendizagens em seres humanos.
O repertório de movimentos das crianças foi provocado na convivência das crianças com DA
no grupo misto, nas sessões de psicomotricidade relacional:
Em relação à ação pedagógica como estímulo para as relações das crianças protagonistas do
estudo no grupo, evidenciou-se que:
Nas crianças com DA, a provocação para o brincar e as diversas experiências corporais
provocadas, ajudadas pelos professores e pelos colegas, que participaram das sessões de
psicomotricidade relacional, contribuíram para as novas relações. Este aspecto relacional é
provocador do simbolismo e da necessidade de comunicação nessas crianças. Se a aquisição
dos processos mentais superiores se dá através do meio e o brincar é provocador de novas
zonas proximais na criança, então a psicomotricidade relacional, que se utiliza do brincar como
instrumento para o desenvolvimento e aprendizagem infantil, possibilita um ambiente
fundamental para a ampliação das aprendizagens das crianças com DA.
Notas
1. Tese de Doutoramento: "Um estudo de casos: as relações de crianças com síndrome de Down e de
crianças com deficiência auditiva na psicomotricidade relacional" - UFRGS, 2003. 448f.
2. Abreviação utilizada neste artigo para a denominação da deficiência auditiva.
3. Sergio e Diego são nomes fictícios adotados com a finalidade de preservar o anonimato das crianças
protagonistas do estudo.
4. O menino Sérgio foi adotado por uma nova família que, em acordo com as entrevistas e
acompanhamentos realizados, preenche todos os requisitos de um ambiente satisfatório para o bom
desenvolvimento do menino.
5. Parecer de Sergio da escola de educação infantil, em 2001.
Referências bibliográficas