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Resumo
Percorrendo os registros da história oficial brasileira, observa-se a ausência de
relatos que destaquem a atuação das mulheres negras em vários episódios de
nossa história nacional. Caso singular é o de Francisca da Silva de Oliveira que, ao
atingir o status de “objeto histórico”, se torna, entretanto, vítima de uma narrativa
profundamente estereotipada. Os primeiros relatos históricos sobre Chica da Silva,
determinados sempre por uma ótica masculina e branca, aparecem reeditados pelas
produções literárias, cinematográfica e televisiva que, ao longo do tempo, vão
surgindo sobre essa personagem negra, que marcou a história de Minas Gerais e do
Brasil Colônia. O presente ensaio traz algumas considerações em torno da criação e
da recriação da imagem de Chica da Silva tendo por base textos históricos e
literários. Pode-se afirmar que há certa coerência entre a representação histórica e a
literária. Em ambas as modalidades, na maioria das vezes, impera um imaginário em
que a mulher negra seria sedutora somente pelos seus dotes físicos sexuais. E para
cotejar com as diversas versões criadas sobre Chica da Silva, trouxe para leitura o
texto ficcional afro-brasileiro, Chica da Silva - a mulher que inventou o mar, de
autoria de Lia Viera, buscando apreender distanciamentos e/ou aproximações da
criação afro-brasileira com as narrativas anteriores a respeito de Francisca da Silva
de Oliveira.
Palavras-chave: História. Literatura. Representação. Mulher Negra.
Introdução
Vítima de invisibilidade por parte do registro histórico brasileiro, a mulher, em
geral, é concebida a partir de uma representação estática, que projeta uma
“enfadada ilusão de imobilidade” de sua pessoa, conforme argumenta Mary Del
Priore (1994, p. 11). A autora observa que tanto a mulher da elite como a do povo
são representadas a partir de estereótipos na história do Brasil. A primeira aparece
“autossacrificada, submissa sexual, material e reclusa com rigor”. À imagem dessa
mulher se contrapõe à da segunda, que aparece como promíscua, lasciva, “pivô da
miscigenação e das relações interétnicas que justificaram por tanto tempo a falsa
cordialidade entre colonizadores e colonizados” (ibid). Nesse sentido é preciso
enfatizar que, se na História do Brasil há pouquíssimos registros sobre a mulher
branca como agente da nacionalidade brasileira, para as mulheres negras, todo e
qualquer protagonismo, experimentado pelas africanas e suas descendentes no
Brasil, sofreu um apagamento histórico.
O tratamento dado pelos historiadores à saga dos africanos e seus
descendentes, no Brasil, só começou apresentar algumas mudanças na década de
80, período de grande efervescência dos movimentos sociais. A aproximação do
Centenário da assinatura da Lei Área, em 1988, aprofundou não só as demandas do
Movimento Negro, como também gerou novas proposições para a escrita e para a
compreensão da História do Brasil. Surgiram vários textos cujo foco principal incidia
1
O título do presente artigo se refere à obra de VASCONCELOS, Agripa. Chica que manda, Belo
Horizonte: Itatiaia, 1966 e à de VIEIRA, Lia. Chica da Silva – a mulher que inventou o mar. Rio de
Janeiro: OR Produtor Editorial Independente, 2001.
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[...] Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de
Nação), de nome Luiza Mahin, pagã que sempre recusou o batismo e a
doutrina cristã.
Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto
[...] muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.
Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez,
na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições
de escravos, que não tiveram efeitos. (GAMA, 2011, p. 131).
2
Heroína africana, Rainha de Ndongo, que durante 40 anos lutou contra a invasão portuguesa e
contra o tráfico de escravos, no território que hoje é Angola.
3
Matriarca de Palmares, líder quilombola de um dos mocambos que compunha o Quilombo
Palmarino.
4
Líder quilombola, criada em Palmares, que enfrentou as forças escravocratas portuguesas, ao lado
de Zumbi de Palmares, sendo morta, na batalha final, com a destruição de Palmares.
5
Luiza Mahin, africana livre, apontada como uma das lideranças da Revolta dos Malês, em 1835, na
Bahia.
6
Coletivo de escritores/as afro-brasileiros/as que desde 1978 é responsável pela organização e
publicação anual de Cadernos Negros, alternando a cada publicação poemas e prosa. As
publicações são auto-financiadas pelos próprios/as autores/as.
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7
Conferir autores como: Joaquim Silvério de Souza, Aires da Mata Machado Filho, Lucia Machado de
Almeida, Soter Couto, dentre outros.
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João tocou no braço de Chica. A pele dela fervia. Chica olhou firme para
João. [...] Chica não encontrava palavra de língua de branco para dizer. Tudo
que a partir dali chegava à ponta de sua língua era uma vontade
desrespeitosa de falar em língua de africano. O que fervia dentro dela, saía
pela noite da pele, furava os panos de vestido, entrava no nariz de João
Fernandes. [...]
– João Fernandes foi até a porta, deu ordem ao feitor:
– Cabeça, não recebo ninguém no dia de hoje.
Fechou a porta. E Chica já se despia dos panos brancos de sua roupa
africana. (AMADOR, 1990, p. 87, grifos meus).
Outro dado a observar é que, desde criança, Chica da Silva almejava por uma
embarcação e, por conseguinte, pelas águas, pelo mar. Ela “esguia, menina
celebreira, inventadeira de modas! Fazia navios de casca de melancia.” (p. 11). É
conveniente ressaltar, que o mar criado nos textos anteriores surge a partir de um
capricho, da extrema vaidade de uma mulher. No texto em questão, o mar surge
como um desejo acalentado por Chica desde a infância. A menina também gostava
de contar histórias que havia aprendido com sua mãe. Era a griot-menina
conservando o elo da corrente, repetindo a tradição, repetindo o que ouvira dos mais
velhos. Uma narrativa dentro da narrativa aparece na estrutura do texto na
apresentação do conto “A abelha construtora”, história preferida das crianças e que
era narrada por Chiquinha nos dias chuvosos (p. 11-12). Uma fábula ao estilo dos
contos tradicionais africanos, em que deuses e animais se comunicam.
Um aspecto a salientar no texto de Lia Vieira é que a personagem aparece
descrita em suas várias etapas de vida: infância, mocidade, maturidade e morte. Na
evolução da narrativa, que corresponde às diferenciadas fases da vida da
personagem, Chica da Silva, já adulta, compreende os horrores da escravidão. Um
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preto velho chamado Okambi, porta-voz dos escravizados, cumpre o papel de falar à
consciência de Chica da Silva. Essa função que a autora dá ao preto velho, recupera
no texto o papel dos anciãos nas culturas tradicionais como conselheiros. Ao ouvir o
velho, ela se compadece e reconhece o estado de alienação em que vivia.
Conversando com Nailá, uma das escravas de dentro de casa, ela diz: “Eu acho que
andei muito tempo enganada. [...] Esqueci de minha gente (p. 39). A partir de então
torna-se protetora dos cativos.
Na construção textual de Lia Vieira observa-se o aproveitamento de nomes e
expressões africanas, algo que pode ser ressaltado também no texto de Paulo
Amador. Entretanto, em Rei branco, rainha negra, apesar de o texto ser atravessado
por cantigas, versos e expressões das culturas africanas, que às vezes são
utilizadas até como uma espécie de epígrafe de determinados capítulos, não há uma
fusão profunda dessas expressões com o sentido da história que está sendo
contada. No texto de Lia Vieira, ao contrário, ditos populares, expressões do
universo religioso africano e afro-brasileiro, narrações sucintas de mitos, assim como
a própria voz mitológica, são procedimentos estéticos que constroem a semântica do
texto. Nesse sentido, a Abelha Construtora, personagem do conto incrustado na
narrativa, se apresenta como duplo de Chica da Silva e o fogo, protetor do lar, lição
ensinada por Olorum à abelha, contrapõe-se ao fogo sexual imputado à imagem da
ex-escrava pelos textos tradicionais.
Com um cuidado nunca visto, a narrativa é construída com uma sutileza impar
para se referir às relações amorosas de Chica da Silva. Tudo é insinuado, como
nessa passagem:
– Vocês não acham que a Chiquinha tem engordado muito ultimamente? Não
tem modos! Como pode o coronel Souza permitir que aquela negra conviva
com sua pré-adolescente e pura filha?
Que descalabro!
– E deu-se, assim, o início ao falatório sobre Chiquinha na cidade. [...]
– Estava um dia ensolarado. [...] D.Corina sentou-se à mesa [...]
– Coronel Sousa, o que falam de Chiquinha exige providências. [...]
– De que falas, mulher?
– Você sabe. [...]
Coronel Sousa, pigarreou e mais calmo, retrucou:
– Vou por um fim nisso.
Assim Chiquinha, agora Chica, mudou-se da casa do coronel Souza para a
casa do intendente Muniz.
Ali teve seu primeiro filho Simão e logo seguiu-se Cipriano, o segundo.
(VIEIRA, 2001, p. 19).
Com relação aos dias finais de Chica da Silva, enquanto os outros relatos primam
em descrever a decadência da personagem, a narrativa de Vieira insiste na
afirmativa de sua dignidade, embora não negue a solidão da mulher: “Os dias
rolavam tristes. Chica não era mais a mulher majestosa de outros tempos, embora
conservasse o porte altivo e a liderança.” (p. 56, grifos meus).
A morte de Chica da Silva recebe um tratamento também bastante original. A
personagem celebra a própria morte com uma canção, que é respondida por uma de
suas fiéis acompanhantes. O canto e a dança na hora desse crucial momento de
vida, assim como nas cerimônias fúnebres, estão presentes em várias culturas
africanas e no Brasil. O ritual do axexê, dispensado às mães e pais de terreiros,
atualiza parte de uma memória africana entre nós. Os momentos finais estão assim
descritos: “Pela porta entreaberta [Nailá] observou na Sinhá as feições do rosto
envolvidas em uma beleza de juventude recuperada”. Chica da Silva tinha nas mãos
“o baú de flandres, relicário de sortilégios em pedras preciosas, que manuseava” e
sussurrava uma “suave musica” cujos versos eram: “O rio corre para o mar/lua veio
anunciar maré vazante/carrega saudade pra lá/carrega quizilá pra lá/ Ê Girê, o Girá/
Me leva Girá, para o fundo do mar.” Ao que a escrava acompanhante, “com os olhos
de quem já tinha visto de tudo” apreendeu “o encantamento” da hora, quando “todas
as velas enfunadas ao vento chegaram ao porto”. Nesse momento, Naila cantou em
surdina: Iemanjá sobá, sobá mieiê/ Sobá mieiê, ô doía, sobá mieiê”. (p. 59). Nota-se,
no texto a recuperação de uma origem africana, de um retorno simbólico ao ventre
materno para a personagem. Uma Chica da Silva, que “usava agora tranças
africanas” (p. 56), não mais as cabeleiras europeias, e que tinha percorrido grande
parte de sua vida, presa a um esforço de construção de uma aparência e de um
estilo de vida europeu – como uma tática possível de sobrevivência, em meio à
sociedade escravocrata da época – retorna simbolicamente ao ventre materno na
hora de sua morte. As águas de kalunga guardam os mortos, visão cosmogônica,
que pode ser recolhida em culturas africanas, aportadas em todas as Américas.
Chica da Silva é acolhida por Iemanjá, a Rainha do Mar, Orixá reconhecida em
terras brasileiras.
Conforme foi observado anteriormente, o livro Chica da Silva a mulher que inventou
o mar, parece se destinar a um público infantojuvenil, embora a sua ficha
catalográfica, incompleta, não traga nenhuma indicação nesse sentido. O que se
quer, entretanto argumentar é que, independente do público ao qual a obra se
destina, é perceptível a intenção e o esforço da autora em criar outro imaginário em
torno da personagem. A narrativa de Lia Vieira pode ser lida como uma prática
discursiva travada no campo de uma batalha simbólica, onde aqueles/as, que
sempre foram representados pela autoridade/autoria da cultura hegemônica, lutam
para instituir uma representatividade própria. Passeando pelo que já foi inventado
sobre Chica da Silva, a escritora escolhe outro lugar de enunciação, opta por um
novo lócus para a produção de sentido de seu discurso. Escrevendo um texto a
partir de outro ponto de vista, o de uma mulher negra inserida no movimento social
negro e de mulheres negras, Lia Vieira, assim como a ilustradora do livro, Iléa
Ferraz, concebem uma contra narrativa a tudo que foi veiculado sobre Francisca
Maria de Oliveira. A opção consciente das duas artistas, uma da palavra, outra das
artes plásticas, se inscreve no proposto por Homi Bhabha (1998, p. 321) acerca da
poesia do colonizado. Para ele, o discurso poético do colonizado, não só encena o
“direito de significar”, como também questiona o direito de nomeação que é exercido
pelo colonizador sobre o próprio colonizado e seu mundo. Exercendo o direito de
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Referências
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Conceição Evaristo é Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Em
sua pesquisa de tese, estudou as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas
de língua portuguesa. Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra no país,
estreou na literatura em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos
Negros. Publicou Ponciá Vicêncio (romance, 2003); Becos da memória (romance, 2006); Poemas da
recordação e outros movimentos (2008); e Insubmissas lágrimas de mulheres (contos, 2011).