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NA LITERATURA
E OUTRAS ARTES
Organização:
Teresa Mendes
Luís Cardoso
Portalegre 2013
4
Organização:
Teresa Mendes e Luís Cardoso
Junho de 2013
ISBN: 978-989-96701-6-7
Índice
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
TEXTO de ABERTURA Arte Poética
5
Maria Teresa Horta
7
I
Literatura e autoria feminina: Clarice Lispector: 27
vozes, percursos e modos de ver o a mulher e a escritora; o mérito e o mito
mundo Angela Maria Rodrigues Laguardia
Mulheres:
vozes femininas que se dão a ler 33
Isabel Maria Barreiros Luclktenberg
II
Representações da mulher na literatu-
ra de autoria masculina ou feminina: 1- Entre Ângela, Bárbara e Beatriz: a visão vergiliana
a (des)construção do estereótipo do sensível
1- Daniela Di Pasquale
Silveira
EDITORIAL
A Comissão Organizadora
Arte Poética
Maria Teresa Horta
Diz-se língua materna aquela que começamos a escutar e a aprender ainda dentro
da barriga da nossa mãe. Tessitura do fio que nos irá ligar um dia mais tarde à escuta
das nossas raízes, das nossas origens, e em seguida à fala de tudo isso, como nossa
própria nacionalidade.
Portugalidade, meu genoma literário.
Urdidura que me levou à escrita, com um gosto atravessado de lua e travo crave-
jado de oceano, intacto e incontido, num mítico, simbólico e ensimesmado canto de
sereias.
Eurídice em vez de Orfeu.
Heloísa em vez de Abelardo.
Isolda em vez de Tristão.
Penélope em vez de Ulisses.
Arriscando encantamentos e tentações, fatalidades que tanto têm alimentado a
intensa cintilação da história da literatura... Penélope na urdidura, não da fidelidade,
mas antes, sim, da criatividade pura; linha e fio de alinhavo, ponto a ponto, de cruz ou
pé-de-flor... Ponto dado e logo desmanchado, com ele cerzindo a trama desgastada,
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puída.
Ou deveria dizer antes: palavra a palavra-escrita e de imediato emendada e reescri-
ta?
Literatura que em Portugal tem como linhagem a pena dos trovadores e dos
poetas. Dos primeiros deles, na Idade Média, a construirem as suas poesias, curio-
samente, através de um discurso travestido, feminino, sendo disso exemplo maior as
Cantigas de Amigo.
Assombro a assombro
constroi-se a poesia, fenda a fenda, brecha e fissura, corte e frincha e falha.
Haste.
Cisne e rola, no trilho das constelações em torno da literatura.
Sirius e Cassiopeia.
Na busca da linguagem da mudez, porque nada é impossível ou inviável ao nosso
imaginário; de ficcionistas, poetisas da ruptura e da inclemência, em versos e ficções
insondáveis, enigmáticas. Por onde corre a pantera ao longo dos textos, dos versos e
dos sonhos cruéis.
Daquilo que as mulheres escrevem, tentando esquecer, vencer a escuridade, a
mordaça e as algemas.
De alvoroço em alvoroço.
LUZIMENTOS
Pouco depois de chegar à escrita, encontrei a Fiama Hasse Pais Brandão e a Luiza
Neto Jorge, com elas vieram o Gastão Cruz e o Casimiro de Brito, e os cinco escreve-
mos «Poesia 61».
Nos anos 60 andávamos as três seguindo o luzimento dos versos, das palavras
que íamos colhendo do nosso imaginário, a reinventar a vida, suspensas do indizível e
incendiado gosto da criatividade, perplexas e maravilhadas perante os inesperados e
deslumbrantes universos que perseguíamos.
Desabrigadas em tudo o resto.
À nossa beira, abria-se a floração dos poemas, que não raras vezes temíamos con-
fundir com as paixões, a lima amarga das desilusões, a malvasia do resto da infância,
e até por vezes connosco mesmas; enquanto seguíamos por caminhos incertos.
Cada uma de nós admirada, a escutar as outras...
a falarmos,
a calarmos.
A lermos alto o que íamos escrevendo, a deslindar símbolos, inconscientes
obscuros, e imagens. Podia adivinhar-se o sobressalto e a inquietude, a percepção
alante que nos havia ficado de crianças. Por isso, aqui e ali ainda parecíamos hesitar,
embora também esvoajassemos, marinhássemos pela luz, trepadeiras de hera ou
de roseira, numa cumplicidade desobediente e bem cumprida: a Fiama com a sua
serenidade um tanto surpresa na contínua descoberta de tudo à sua volta, e a Luíza,
a mais determinada em sair ilesa, numa iludida fragilidade impossível de sustentar. De
mim, lembro a desmesura voraz fazendo-se destemida.
Mas recordo sobretudo, com alguma perplexidade, a ousadia e a ambição des- 17
medida de querermos tomar nas mãos a própria existência: o mundo. Assim como a
invenção quotidiana da escrita e a luta pelas tantas liberdades urgentes, num Portu-
gal onde qualquer pensamento livre era considerado crime.
Coisa natural era, pois, gostarmos de conversar horas e horas, encostadas em
almofadas no chão da minha casa, onde a “Poesia 61” foi planeada, organizada,
discutida. Coisa natural, era, pois, dançarmos sem par, rirmos juntas, enumerar o que
iríamos recusar e construir, exigir dali para a frente. Enquanto tentávamos entender
igualmente as nossas diferenças múltiplas.
Resguardando, afinal, o que mantínhamos trancado por dentro, fechadura de
segredo na altura do peito, embora pretendêssemos demonstrar o contrário, a equi-
librarmo-nos numa corda de trança. É assim que nos lembro: com uma certa reserva
de expectativa, na invenção hábil duma alegria de proximidade, que nos fizesse sentir
amadas, a iludir a solidão imensa.
Temendo desorganizar a naturalidade,
com que escrevíamos, colhíamos e habitávamos os dias.
Harmoniosas e dissemelhantes.
«Comigo me desavim,
Sou posto em todo o perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.»
Indisciplina literária chamo eu, por exemplo, tomar estes versos, a fim de transfor-
má-los, mudá-los em meus versos, fruto da minha sensibilidade e dissemelhança.
Ou seja: a mesma língua e quase as mesmas palavras, mas usadas com a marca do
feminino. Portanto, sentidos e sentimentos totalmente diversos:
«Comigo me desavim
minha senhora
de mim
Corpo a corpo
constroi-se a poesia, de ardil a ardil e desacato, sedução e posse. Discurso do
desejo a despir as palavras, a tirar-lhes lentamente os vestidos, as blusas, as luvas,
as saias, os véus, as meias de vidro, com vagares de rumorejo num titilar de pássaro,
a deitar o poema no lençol, no joelho, no papel, na pele ensimesmada do pulso.
De deleite a deleite.
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Num entrançar de escritas várias entre si, mas em si mesmas unas; árduas no
acrescentarem-se, num imenso trabalho literário, dimencionando-se, criando avesso
na sua outra criatividade.
Ousando tudo.
Num prazer único, que em si mesmo contém a aventura da palavra escrita.
A PALAVRA DO CORPO
O CORPO DA PALAVRA
E “Novas Cartas Portuguesas”, livro que a partir das cinco cartas de Mariana Al-
coforado, escrevi com a Maria Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa, testemunham
esse mesmo deleite e anseio, determinação em denunciar e transgredir, numa mistura
de vários géneros literários: a poesia, o ensaio, a ficção, memórias, cartas e diários.
Livro assumidamente de conturbação e desassombro, que nos valeu por parte do
governo fascista de Marcelo Caetano, um processo político em tribunal, sob a capa
de “atentado ao pudor, à moral e aos bons costumes”.
Ou seja, com esta obra, infringimos vários interditos maiores: abordámos a guer-
ra colonial, denunciámos a opressão da ditadura, falámos enquanto mulheres da
discriminação das mulheres portuguesas, da sua sexualidade, do seu-nosso corpo,
do seu-nosso prazer. E fizemo-lo, também e não só, em termos do desejo feminino.
Falámos do corpo, usando as palavras do corpo.
As palavras do corpo.
O corpo das palavras:
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
Paixão a paixão
constroi-se a poesia, de delírio em delírio;
Mas há ainda a pressa do papel discurso amoroso a alimentar-se de si próprio,
que no tacto navega a brusca seda desejo que arde e queima ao pé dos lábios até à
22 Se a sede se disfarça sob a pele loucura.
descendo pela escrita essa vereda No refazer da sua identidade, ideia e metáfora;
linguagem possuida e elaborada com devastados e
chameados signos e sinais.
E já se inventa Palavras de fogo e vidro... Sem salvação possí-
enlaça vel.
ou se insinua A escrita nunca esquece, nunca redime nem
sublima; questionando-se e a questionar-nos o
mínimo e o tudo da criatividade.
Se entrelaça a roca e o bordado
que as palavras tecendo
Com a sua arte poética.
lado a lado
Diante do espelho literário: atenta à própria ima-
querem do país a alma nua
gem.
Escrever salva-me.
Aí podes parar
e retornar à boca
esse espaço de beijo e de cinzel
Portalegre, 12 de Junho de 2012
Onde a fala retoma a língua solta
trocando a ternura
pelo fel
CLARICE LISPECTOR:
a mulher e a escritora;
o mérito e o mito
Angela Maria Rodrigues Laguardia
Universidade Nova de Lisboa, Portugal
no jornalismo, como colunista, podem ter contri- desencadeia-se, pelo menos aparentemente, um
buído para este exercício “transgressor” do espaço certo deslaçamento de tensões temáticas expres-
da crónica. Em 1952, ela assina a coluna “Entre sivas, uma atitude nova perante a escrita (...) ao
Mulheres”, no semanário Comício, sob o pseudó- qual não se pode deixar de associar ao acidente” (
nimo de Teresa Quadros, a convite do escritor e SOUZA, 2011:496).
jornalista Rubem Braga. Em um contexto do pós- O nascimento da cronista vai revelando as faces
-guerra, ela tratava de assuntos do lar e de moda, da escritora, da mulher e do mito Clarice. Em uma
dava conselhos para as leitoras sobre a silhueta, de suas crónicas iniciais, Amor Imorredouro, um
receitas e até da maneira de prevenir problemas aparente despojamento inaugura o tom confessio-
no casamento, entre outros assuntos. Porém, ela nal que ela imprime a muitas de suas crônicas:
foi além dos considerados assuntos fúteis, porque
Ainda continuo um pouco sem jeito na minha
a ficcionista, ou a “personagem Teresa Quadros”
nova função daquilo que se pode chamar
acrescentou àquele espaço do Comício, seu gosto
propriamente de crônica. E além de ser neó-
pela literatura, reproduzindo trechos de textos e re-
fita no assunto, também o sou em matéria
ferências de autoras como Virgínia Wolf, Katherine
de ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa
Mansfield - e de Clarice Lispector.
como profissional, sem assinar. Assinando,
Sua segunda colunista fictícia aparece em 1959, porém, fico automaticamente mais pessoal. E
como Helen Palmer, no “Correio feminino – feira de sinto-me um pouco como se estivesse ven-
utilidades”, no jornal Correio da Manhã. Um traba- dendo minha alma. Falei nisso com um amigo
lho menos sofisticado do que o anterior que, sob o que me respondeu: mas escrever é um pouco
patrocínio da indústria de cosméticos Pond’s, tinha vender a alma. É verdade. Mesmo que não por
a missão de passar à leitora conselhos de beleza dinheiro, a gente se expõe muito (LISPECTOR,
que fossem associados aos seus produtos. Um 1999, p.29).
público em que a “rainha do lar” e zelosas donas
de casa eram o enfoque da coluna. A cronista vai-se revezando entre as crónicas
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Durante este período, Clarice aceita o convite em que exprime esta sua preocupação em não
de Alberto Dines para assinar uma outra coluna revelar-se, entre aquelas que possuem um caráter
feminina no Diário da Noite, desta vez como ghost- metalinguístico, entre aquelas em que afirma, ou
-writer de Ilka Soares, modelo e atriz do cinema discute sobre ser misteriosa ou não, aquelas em
brasileiro. Com o nome de “Só para mulheres”, que também questiona seu papel de escritora e
“Ilka Soares” conversava com as leitoras desta tantas outras que não mencionaremos aqui, devido
seção, aproximando-se das leitoras para dar dicas à brevidade deste trabalho.
sobre o mundo da moda ou sobre questões re- Neste percurso, o mecanismo de identificação
lacionadas ao cotidiano da mulher comum. Sua com o leitor é o eixo que conduz ou amarra as
contribuição terminaria em março de 1961. crónicas, ora de forma perceptível, ora de forma
Assim, em agosto de 1967, quando Clarice implícita, em um jogo sedutor e prazeroso com as
novamente recebe o convite de Alberto Dines para palavras.
participar de uma coluna no Jornal do Brasil, sente- Em Outra Carta, ela responde à carta de um
-se temerosa ao saber que iria escrever crónicas, leitor que “parece revelar” que conheceu Clarice só
algo que ainda não fizera e ainda assinadas por a partir da crónicas e que pede à escritora que não
ela mesma, sem a “proteção” dos pseudónimos largue sua coluna sob o pretexto de defender sua
anteriores. Ao mesmo tempo, era um momento de- intimidade, porque para ele, o “escritor, se legítimo,
licado da vida de Clarice, sua única atividade extra sempre se delata”. Ela responde que, embora seus
eram as traduções e ainda se recuperava de um romances não fossem autobiográficos, quem os lê
acidente doméstico, um incêndio provocado por acaba por informá-la de que ela se delata, por isto
um cigarro com graves queimaduras, especialmen- o cuidado de não expor-se nas crónicas. Porém,
te nas mãos, abatendo-a profundamente. ela diz que, paradoxalmente, “lado a lado com o
No capítulo “O acidente (corpo, a ferida, a escri- desejo de defender a própria intimidade, há o dese-
ta)”, de Figuras da Escrita, Carlos Mendes de Souza jo intenso de me confessar em público e não a um
refere-se a este acidente e como sua colaboração padre” (LISPECTOR, 1999:78).
nas páginas do Jornal do Brasil também contami- O leitor é seu interlocutor, tem sua função ques-
nará a escrita do livro Uma aprendizagem ou o livro tionada neste diálogo, ao mesmo tempo em que
dos prazeres, fator que se define como um marco ocorre o processo de identificação entre escritor/
na escrita clariciana: “Com efeito, a partir daqui leitor: “O personagem leitor é um personagem
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteira- silêncio dentro de mim. E este silêncio tem
mente individual e com reações próprias , é tão sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio
terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, tem vindo o que é mais precioso que tudo: o
o leitor,é o escritor” ( LISPECTOR,1999: 79). próprio silêncio. (LISPECTOR, 1999: 75-76).
No desvão desta escrita, Clarice provoca o Em Ser Cronista, Clarice indaga-se para indagar
leitor de suas crónicas, insinuando-se pelo cami- o género, um “esboço” que ganha forma na sua
nho da possibilidade, do que não se define, como singularidade:
na crónica Sim ou não: “Eu sou sim. Eu sou não.
Aguardo com paciência a harmonia dos contrários. Sei que não sou, mas tenho meditado ligei-
Serei um eu, o que significa também vós” (LISPEC- ramente no assunto. Na verdade, eu deveria
TOR,1999:279). conversar a respeito com Rubem Braga, que
foi o inventor da crônica. Mas quero ver se
Para José Castello, não interessava a Clarice
consigo tatear sozinha no assunto e ver se
“escrever ‘para o leitor’, mas ‘ser’ este leitor. Escre-
chego a entender. Crônica é um relato? É uma
via como uma leitora, que se delicia com as pala-
conversa? é o resumo de um estado de espíri-
vras alheias” (CASTELLO, O Globo, 2011).
to? (LISPECTOR, 1999:112).
Nesta inquieta incompletude, ela procura pala-
vras que lhe possibilitariam o encontro com o outro Outras crónicas de natureza metalinguística
e este caminho, sob o pretexto das crônicas, é refletiram sobre o ato da escrita e assinalam esta
aludido através da crónica Em Busca do Outro: preocupação constante de Clarice, para quem
escrever é transcender o próprio ato. Na crônica
Não é à toa que entendo os que buscam o
Escrever, ela expressa este seu sentimento diante
caminho. Como busquei arduamente o meu!E
da escrita:
como hoje busco (...) o melhor de ser, o meu
atalho, já que não ouso mais falar em cami- Eu disse uma vez que escrever é uma mal-
nho. O Caminho, com letra maiúscula, hoje dição. (...) Hoje repito: é uma maldição, mas
me agarro ferozmente à procura de um modo uma maldição que salva. (...) É uma maldição 29
de andar, de um passo certo. Mas sei de uma porque obriga e arrasta como um vício penoso
coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os do qual é quase impossível se livrar, pois nada
outros. Quando eu puder sentir plenamente o o substitui. E é uma salvação. Salva a alma
outro estarei salva e pensarei; eis o meu ponto presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva
de chegada (LISPECTOR, 1999: 119). o dia que se vive e que nunca se entende a
menos que se escreva. Escrever é procurar
Escrever é um caminho, um modo de aproximar- entender, é procurar reproduzir o irreproduzí-
-se do outro, e Clarice, ao longo das crônicas, vel, é sentir até o último fim o sentimento que
reporta-se muitas vezes a estes deslocamentos, permaneceria apenas vago e sufocador. Es-
ora com a angústia de quem tateia o caminho, ora crever é também abençoar uma vida que não
com o entusiasmo da aventura, ora questionando foi abençoada (LISPECTOR, 1999:134 - grifos
o próprio caminho, ou mesmo “filosofando” sobre nossos).
ele.
Com o título de Anonimato, temos uma crónica, Clarice compartilha com o leitor de suas crôni-
que expõe esta tensão entre o ato da escrita e a cas esta “intimidade” com a escrita, daí a genuína
“pessoa Clarice”, diante desta proximidade com cumplicidade, o passaporte lícito para “colocar-se”
o público, imposta pelo espaço da crônica, uma com leveza e autenticidade, sem abdicar de seu
entrega em que resiste e, resistindo, ancora-se na valor como cronista.
palavra “silêncio” para preservar-se e preservar as Para ela, escrever é também uma aventura, e
palavras: duas crônicas nomeadas com este tema ilustram
a razão desta afirmação: A Perigosa Aventura de
Tantos querem a projeção. Sem saber como
Escrever e Aventura. Na primeira, ela diz : “Minhas
esta limita a vida. Minha pequena projeção
intuições se tornam mais claras ao esforço de
fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria di-
transpô-las em palavras” (LISPECTOR,1999:183),
zer [:] já não posso mais. O anonimato é suave
mas depois discorda do que havia dito: “Mas está
como um sonho. (...) Aliás eu não queria mais
errado, pois que, ao escrever, grudada e colada,
escrever. Escrevo porque estou precisando de
está a intuição. É perigoso porque nunca se sabe
dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que
o que virá _se se for sincero” (ibidem). E remata a
nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito.
crónica, dizendo: “Não se brinca com a intuição,
Essas por dinheiro nenhum. Há um grande
não se brinca com o escrever: a caça pode ferir
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
mortalmente o caçador” (ibidem). desmentia este mistério que lhe era atribuído.
A segunda crônica, Aventura, repete a frase so- Numa crónica escrita em agosto de 1967, logo
bre o valor da intuição, falando de sua necessidade no início de sua participação no Jornal do Brasil,
de escrever para entender e como se relaciona denominada A Surpresa, temos o olhar de Clarice
com a aventura: sobre si mesma: “Olhar-se ao espelho e dizer-se
Minhas intuições se tornam mais claras ao deslumbrada: como sou misteriosa. Sou tão delica-
esforço de transpô-las em palavras. É neste da e forte. E a curva dos lábios manteve a inocên-
sentido, pois, que escrever me é uma neces- cia” (LISPECTOR, 1999:23). Ao surpreender-se, ela
sidade. De um lado, porque escrever é um surpreende quem lê, um espelho de duas faces
modo de não mentir o pensamento (...); de ou- que alterna a cronista e a personagem Clarice.
tro lado, escrevo pela incapacidade de enten- Quase um ano depois, na crónica O Meu Próprio
der, sem ser através do processo de escrever. Mistério, ela resume-se assim: “sou tão misteriosa
(...) Sempre tive um profundo senso de aventu- que não me entendo” (LISPECTOR, 1999:116).
ra (...). Este senso de aventura é o que me dá o Perscrutar o mistério? Em Fernando Pessoa Me
que tenho de aproximação mais isenta e real Ajudando, ela alude ao poeta e aponta o jogo am-
em relação a viver e, de cambulhada, a escre- bíguo do revelar-se:
ver (LISPECTOR, 1999:236). Na literatura de livros permaneço anônima e
Porém, Clarice foi além da “aventura” da escrita. discreta. Nesta coluna estou de algum modo
Ela mergulha dentro de si, busca as palavras, ques- me dando a conhecer. Perco minha intimida-
tiona suas origens, como em Escrever ao Sabor da de secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao
Pena, sabor que consiste na procura: “Estou falan- correr da máquina e, quando vejo, revelei certa
do de procurar em si próprio a nebulosa que aos parte de mim. (...) O que me consola é a frase
poucos se condensa, aos poucos se concretiza, de Fernando Pessoa, que li citada: “Falar é o
aos poucos sobe à tona - até vir como num parto modo mais simples de nos tornarmos desco-
30 a primeira palavra que a exprima” (LISPECTOR, nhecidos (LISPECTOR, 1999, p.136-137).
1999:278). Em entrevista para o Correio do Povo, em janeiro
“Escrever é lembrar-se do que nunca existiu” de 1971, Antonio Hohlfeldt lhe indagaria se suas
(LISPECTOR, 1999:385) - filosofa Clarice. E esta crónicas seriam uma confissão. Ela, sem negar
insistência na “memória” é fundamental para a nem confessar, justifica-se, dizendo: “Eu preciso do
existência, segundo ela: “Nunca nasci, nunca vivi: dinheiro. A posição de um mito não é muito con-
mas eu me lembro, e a lembrança é em carne fortável. Por isso eu gosto de crônica. Porque ela
viva”( ibidem). diminui a distância que existe entre mim e o leitor”
Ao abordar o tema da escrita em suas cróni- (ROCHA1, 2011: 58).
cas, Clarice estava constantemente lembrando aos Em 1977, em entrevista concedida ao programa
seus leitores, sua preocupação com as palavras, Panorama da TV Cultura, responde a Júlio Lerner
não prescindia de seu compromisso com elas, e que não se considerava uma escritora popular. E,
ainda chamava a atenção para elas: “Mas já que se quando ele pergunta qual seria razão, ela dispara:
há de escrever, que ao menos não esmaguem as “Ué, me chamam até de hermética. Como é que
palavras nas entrelinhas” (LISPECTOR, 1999:385). eu posso ser popular sendo hermética?” (ROCHA2,
2011: 178)
2. O mérito e o mito na voz da cronista Outra preocupação de Clarice, revelada através
de uma de suas crônicas, denominada Como É
Foram as crónicas que mais “falaram” de Cla-
Que Se Escreve?, prendia-se com seu “ofício de
rice. Embora ela almejasse o anonimato, suas
escritora”. Diante do leitor, ela se questiona sobre
palavras acabavam por suscitar, paradoxalmente, o
o conceito do ato de escrever e, também, sobre
inverso: “No dia-a-dia, ela caminhava sobre o tênue
a razão pela qual ainda não se considerava uma
limite entre mostrar e esconder. Não se queria mis-
escritora:
teriosa, mas tampouco tinha vontade de se expor”
(Cadernos de Literatura, 2004:57). Por que, realmente, como é que se escreve?
Esta aparente contradição, no decorrer da leitura
da Descoberta Do Mundo, ajuda-nos compreender 1 Entrevista feita por Antonio Hohlfeldt e originalmente publicada no Correio
como o mito Clarice se vai delineando através das do Povo em 3 de janeiro de 1971, com o título de Uma tarde com Clarice
Lispector.
crônicas e, paralelamente, através de depoimen- 2 Entrevista feita por Júlio Lerner, para o programa Panorama da TV Cultura
tos ou entrevistas, onde, ora se confirmava, ora se em 1977, com o título A última entrevista.
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
que é que se diz? e como dizer? como é que genuína identificação, por si só, já justificaria o mito
se começa? (...) Sei a resposta, por mais que e o mérito clariciano.
intrigue, é a única: escrevendo. Sou a pessoa Porém, lendo suas crónicas, vamos mais além,
que mais se surpreende de escrever. E ainda como Guimarães Rosa, que confessou ler Clarice
não me habituei a que me chamem de escri- “não para a Literatura, mas para a vida”.
tora. (...) Será que escrever não é um ofício?
Não há aprendizagem, então?O que é? Só me
considerarei escritora no dia em que eu dis- Referências Bibliogáficas
ser: sei como se escreve” (LISPECTOR,1999, AAVV, Cadernos de Literatura Brasileira. Edição
p.156-157). Especial, números 17 e 18. Dezembro de 2004.
Instituto Moreira Salles.
Para Clarice, escrever era uma forma de existir:
CASTELLO, José. Clarice Lispector- Clarice na
“Essa capacidade de me renovar toda à medida
Cabeceira: romances. Rio de Janeiro: Editora Roc-
que o tempo passa é o que eu chamo de viver e
co, 2011.
escrever” (LISPECTOR, 1999:101). Por isto, dispen-
sava os rótulos que lhe eram atribuídos, questiona- CASTELLO, José. O Globo. Caderno Prosa e
va-os como uma forma de não se deixar impregnar Verso. 8 de janeiro de 2011.
por eles, dispensando-os se sentia “livre” para se LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo.
exercer, para ser Clarice. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999.
Intelectual? Não - responde Clarice em outra MONTERO, Teresa. Clarice Lispector- Clarice na
crónica, explicando as razões pelas quais não Cabeceira. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2009.
se considerava como tal. “Literata também não ROCHA, Evelyn. Clarice Lispector- Encontros.
sou porque não tornei o fato de escrever livros Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.
‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’” (LISPECTOR,
1999:149). “O que sou então?”, pergunta Clarice,
para depois falar de “si mesma”: 31
Sou uma pessoa que tem coração que por
vezes percebe, sou uma pessoa que preten-
deu pôr em palavras um mundo ininteligível e
um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa
cujo coração bate de alegria levíssima quando
consegue em uma frase dizer alguma coisa
sobre a vida humana ou animal. (LISPECTOR,
1994:149).
Somos, assim, surpreendidos pela mulher, pela
cronista e pela escritora Clarice, que emergem des-
tas palavras. Seu grande mérito, assim compreen-
demos, surge deste modo de ser,
da autenticidade que seduz o leitor, e da capaci-
dade de colocar em palavras o que o leitor gostaria
de dizer e ouvir.
Conclusão
Ao percorrer as crónicas de Clarice Lispector
em A Descoberta do Mundo, com destaque para
aquelas que elegemos para o presente trabalho,
podemos perceber como ela constrói um espaço
que vai além do modelo convencional do género
cronístico: descobre-se para “descobrir o mundo”,
movendo-se entre as fronteiras da literatura e do
jornalismo.
Nesta “travessia”, conseguimos entrever como
ocorre a relação ficcional/factual de seus textos
com o leitor de suas crónicas, cujo processo de
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Mulheres:
vozes femininas que se dão a ler
Isabel Maria Barreiros Luclktenberg
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
33
Este texto é um recorte da minha dissertação, país era ainda bastante precária e, para melhorá-la,
que procurou, a partir do estudo da formação do era necessário acabar com sua reclusão e atraso
livro e da leitura no Brasil no século XIX, refletir intelectual. Por isso surgem as Escolas Normais,
sobre a sociedade leitora no período e como a que, em virtude da organização rudimentar do
história da literatura se relaciona com a solidifica- curso e da falta de infraestrutura, são fechadas e
ção de uma produção editorial.1 Minha primeira só reabrem em 1870, quando o Estado institui a
hipótese apontou na direção de que, para falarmos educação obrigatória.
da história do livro e da leitura no Brasil, devemos A popularização dessas escolas só ocorreu
nos debruçar também sobre a história da leitora e quando passou a ser uma atividade profissional
do escritor, uma história muitas vezes de encontros exercida pelas moças de classe média, que não
e desencontros... podiam desempenhar outra atividade porque era
Quando tratamos da história da leitora, nos reservada aos homens ou considerada masculina.
dirigimos para o século XVIII, quando a impressão Destinada ao ensino, a mulher resolvia então os
de livros passa a ser empresarial na Europa. Para problemas com a falta de mão de obra no magis-
se expandir, a leitura dependia ainda da valoriza- tério e desobrigava o Estado a remunerar melhor
ção da família, que se deu graças às revoluções os professores, porque seu salário era um comple-
dos séculos XVIII e XIX. Pois é no interior da família mento ao do marido.
que se torna mais forte o gosto pela leitura, por ser Ou seja, o exercício do magistério não escan-
apropriada ao contexto da privacidade e essencial dalizava as bases machistas da sociedade
para a formação moral das pessoas. Ao contrário patriarcal brasileira, permanecendo intocada,
da Europa, somente em 1840, o Brasil passa a e também idealizada, a associação mulher-
apresentar alguns traços de uma sociedade leitora, -esposa-mãe, mesmo quando essa estivesse
a do Rio de Janeiro, pois é somente nessa época fora de casa, ganhando um modestíssimo pão
que surgem as tipografias, livrarias e bibliotecas... de cada dia (Lajolo, 2009).
Porém, nessa época a situação da mulher no
A mulher podia estudar e trabalhar, mas conti-
nuava dependente da família, da casa e do marido.
1 Uma versão deste texto foi publicada nos Anais do XIV Seminário Nacional
e V Seminário Internacional Mulher e Literatura, realizado de 4 a 6 de agosto
Não era aconselhado que lesse folhetins, romances
de 2011, em Brasília (Brasil). ou histórias de fantasias porque afastavam a leitora
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
das suas atividades domésticas; ao contrário, era timação da literatura, elemento da prática social
recomendado que lesse obra de moral e religião. da leitura e escrita, papel que será cumprido pela
Como visto, a sociedade tentou controlar as mulhe- história da literatura. Era necessário credenciar
res convertendo o magistério em tarefa maternal, uma nacionalidade que dependia de uma identi-
desvalorizando suas leituras e condicionando a re- dade literária e sua confirmação, assegurada pela
cepção de obras às necessidades de doutrinação. produção e pelo consumo de textos por escritores
Do outro lado da circulação de livros encontra- e público locais. Portanto, a partir do século XIX
mos eles, os escritores brasileiros do século XIX. vemos a necessidade de se organizar a história de
Sua história é cheia de lutas, reivindicações, vitó- uma produção literária.
rias e derrotas e se relaciona à sua inserção social. O certificado de nossa identidade é emitido
Enquanto na Europa e nos EUA víamos o aperfei- pelos estrangeiros Ferdinand Denis e Almeida
çoamento da legislação que estabelecia a proteção Garret, precedidos de outros historiadores que lhes
à propriedade intelectual – em 1710 na Inglaterra, fornecem critérios de análise e seleção. O primeiro
em 1783 nos EUA e em 1793 na França –, a lei que amplia o cânone da literatura brasileira e o segun-
trata desses direitos é sancionada somente em do reúne poesia de autores portugueses antigos e
1898 no Brasil. modernos e alguns autores brasileiros. Com essas
Era de se esperar que no século XIX os escrito- e outras coleções se determinou o cânone literá-
res não conseguissem viver de literatura. Um dos rio, dando visibilidade a alguns autores e textos e
motivos foi o aparecimento tardio da imprensa excluindo as autoras.
entre nós, mas esse atraso tecnológico não foi o Nessa perspectiva da exclusão e de visibilidade
maior problema, o pior era contar ainda no final busquei como se processou a inserção das mu-
do século XIX com mais de 70% de analfabetos. lheres no campo literário brasileiro e como essa
Esse século representou a falta de profissionalismo inserção se dá no século XX-XXI, com a atuação
no âmbito das Letras e ainda o conformismo do dos movimentos feministas e de uma produção
escritor diante da falta de infraestrutura socioeco- acadêmica que se volta para o estudo da literatura
34
nômica. produzida por mulheres e para perspectivas de
Sua profissionalização inicia-se, mesmo que teoria de gênero e da crítica feminista.
lentamente, no mercado escolar, em que o retorno Meu olhar então recaiu sobre a Editora Mulheres
financeiro estava assegurado pela importância que e seu objetivo de recuperar, editar ou reeditar obras
tinha o livro didático na educação brasileira. Para de escritoras do passado, sejam elas brasileiras ou
receber ganhos consideráveis, era necessário não não. Busco então fazer um trabalho que chamei
resistir ao apelo do livro didático, já naquela época. de arqueologia literária: um levantamento e regis-
Esses escritores nos mostram que o texto literá- tro documental das obras publicadas pela Editora
rio articula-se com o modo de produção da socie- desde 1996, quando de sua criação, através de
dade. Esse modo de produção, circulação e consu- pesquisa na internet, em arquivos pessoais e de
mo da literatura brasileira é a história de contratos textos mantidos pela própria Editora. A homofonia
entre escritores, editores, críticos, leitores, livreiros; na minha leitura ao falar editora me remete tanto
hoje podemos acrescentar agentes literários, publi- ao campo editorial quanto à professora e pesqui-
citários, professores, bibliotecários... sadora Zahidé Muzart, cujos papéis se fundem e
Como vimos, a literatura só pôde ser incorpora- se confundem no fazer história literária. Editora e
da ao dia a dia depois da descoberta da imprensa editora, onde começa uma e outra?
e de seu aperfeiçoamento, que tornou possível a Embora não tenha feito uma análise formal dos
produção e a circulação industrial de livros, revis- conteúdos do material recolhido e sistematiza-
tas, jornais, entre outros veículos. Sendo assim, do, todos os textos foram lidos e organizados e,
foi importante também o fortalecimento da indus- através deles, constato que com a recuperação
trialização e da comercialização desses objetos dessas escritoras do passado e a visibilidade e o
em editoras, distribuidoras, livrarias, além de uma acesso de vozes de teóricas e críticas contemporâ-
regulamentação, através de legislação específica, neas é possível ampliar a história cultural brasileira
do funcionamento das etapas do processo de pro- e escrever uma história que não apenas inclua
dução, importação, implantação de parque gráfico, nomes de autoras e obras, mas apresente, numa
regulamentação dos direitos do autor e remunera- linha editorialmente coerente, outras e silenciadas
ção dos intermediários. formas de ler e de escrever, especialmente porque
Outras necessidades precisavam ser igualmente o trabalho editorial da Editora Mulheres se cerca
atendidas, como a formação discursiva de legi- de paratextos: olhares críticos contemporâneos de
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
pesquisadoras que se debruçam sobre os textos e perar as obras de escritoras do passado. Trata-se
sobre a teoria que dele emerge. de um trabalho árduo que impõe persistência e
Fica visível na materialidade aqui recolhida que a paciência para que essas obras possam ser lidas,
inserção das mulheres no campo literário brasileiro reavaliadas e estudadas. Evidencia-se, seja nas en-
só acontece com a atuação dos movimentos femi- trevistas, seja nos prefácios ou nas apresentações
nistas, de eventos nacionais e internacionais sobre que precedem os textos originais, por exemplo,
gênero e feminismo, eventos transdisciplinares que que um dos maiores problemas enfrentados pela
garantiram a publicação e a veiculação tanto de Editora é a inexistência de reedições, porque as
narrativas e poesias de escritoras brasileiras quan- obras de mulheres vendiam pouco ou se perdiam,
to da reflexão teórica contemporânea. É, portanto, desaparecendo ao longo dos anos. Dessa forma, a
graças ao esforço da crítica literária feminista e de Editora tem que “ressuscitar” muitos desses textos,
movimentos como mulher e literatura, mulher na li- que se encontram, em sua maioria, dispersos em
teratura, que outra história dos livros no Brasil pode antigas bibliotecas.
ser contada. Assim entendi o processo da Editora: quando
É com esse objetivo de recuperar e publicar um título é descoberto, começa-se o processo de
obras de escritoras do passado que Zahidé Lu- sua localização: contato com sebos, visita a biblio-
pinacci Muzart, Elvira Sponholz e Susana Bornéo tecas, apelo a bibliófilos. É a partir das informações
Funck, professoras de Literatura da UFSC, fundam, bibliográficas e da reprodução das obras que se
criam, inventam, materializam a Editora Mulheres conhecem tantas mulheres produtivas. Para Cons-
em 1996, preocupadas com a memória cultural e a tância Lima Duarte (2007), uma das pesquisadoras
história literária do país que passasse pela história que mais têm publicação pela Editora Mulheres,
das mulheres. essas pesquisas
O que eu constatei em minha pesquisa? Desde
que foi criada, a Editora teve uma boa receptivi- realizam ainda o questionamento da cultura
dade por parte do público leitor e recebeu muitos hegemônica, estabelecem uma nova tradição 35
incentivos, como cartas e e-mails saudando a literária, revelam a mulher como sujeito do
fundação de uma editora dedicada às mulheres. E discurso literário [...]. Enfim, contribuem para a
ficou muito conhecida, mesmo sendo “uma editora construção de uma história das mentalidades
de fundo de quintal”, expressão utilizada modes- femininas e uma nova história das letras no
tamente por Zahidé Muzart em Mulher e literatura nosso país.
(Stevens, 2010), não tendo funcionários, nem sede,
nem bons distribuidores.
Mas por que o interesse pela literatura feminina Quero também enfatizar neste trabalho de ar-
do século XIX? Porque a literatura feminina só se queologia literária que as obras recuperadas pela
torna visível entre nós no século XX. As mulheres Editora são muito bem organizadas pelas pes-
do século XIX, mesmo que muito produtivas, foram quisadoras, que incluem biografia, ensaio crítico,
excluídas do cânone literário, feito pela crítica e bibliografia, fotografia e pequena amostragem
historiografia masculinas. Elas permaneceram à de prosa literária e jornalística, ensaio, memórias,
margem, mesmo estando presentes nos periódicos poesia, com excelente trabalho de tradução e de
do século XIX, dirigidos por homens ou criados e revisão. As edições, em média a tiragem é de 500
mantidos por elas mesmas. exemplares, são de qualidade, com uma boa apre-
sentação gráfica. Tanto que fiz questão de docu-
Muitas dessas mulheres do passado se uniram
mentar as capas em minha pesquisa. Essas capas
para criar jornais e revistas, os quais se constituí-
constituem uma narrativa por si.
ram em uma rede de informações e cultura. Escre-
veram poemas, contos, diários, romances, dramas, Quinze anos depois, a Editora conta em seu
comédias, ensaios, teatro e crítica literária, e publi- catálogo com 96 obras, não somente romances,
caram seus livros, que acabavam se perdendo nas poesia, teatro, mas relatos de viajantes estrangei-
primeiras edições. Toda essa produção foi sendo ras e estudos sobre questões de gênero (de cunho
esquecida a partir do século XX, ou seja, do Mo- teórico). Todas reunidas nas séries Referências (7
dernismo, e é somente com o trabalho de algumas obras), Ensaios (51 obras), Gênero e violência (3
pioneiras – Josefina Álvares de Azevedo, Carmem obras), Romance/Narrativas (18 obras), Poesia e
Dolores, Gilka Machado e Maria Lacerda de Mou- teatro (4 obras), Viagens (4 obras), Cartas e memó-
ra – que as mulheres conseguem respeito como rias (3 obras), Feminista (4 obras) e Infantojuvenil
escritoras. Por isso a intenção da Editora de recu- (2 obras). Há mais seis obras que serão publica-
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
das em breve, entre essas Edith Gama, Francisca to público e privado na pesquisa, disseminando
Senhorinha da Motta Diniz e Josefina Álvares de conhecimento, solidificando os estudos feministas
Azevedo. e de mulheres, formando outras gerações de pes-
Assim eu fui terminando a minha pesquisa. Um quisadoras.
trabalho que deseja um devir. Foram muitos meses A Editora Mulheres possibilita, assim, a amplia-
para eu conseguir todo o material que eu desejava ção da história literária brasileira e, por que não, a
deixar em forma de pesquisa para leituras futuras. mudança da nossa concepção sobre essa história.
Uma dissertação-homenagem. Uma dissertação Soma-se a esta arqueologia, como eixo da Editora
sobre uma Editora que faz parte da história do Cur- Mulheres, o seleto grupo, esse elenco, como se
so, da história da UFSC, da história de Florianópolis queira denominar, de teóricas, críticas, ensaístas
foi o que constatei ao me debruçar sobre a mate- contemporâneas que, nos livros organizados, na
rialidade dessa Editora e fazer o levantamento e seleção de textos em antologias temáticas, nos
registro documental de todas as suas obras. Reuni prefácios e nas apresentações dos livros, acen-
reportagens, artigos e resenhas encontrados na tuam e documentam suas experiências de leitura
internet e/ou mantidos pela Editora. Ao todo encon- e seu amadurecimento intelectual. Acima de tudo,
trei aproximadamente cem reportagens, mais de as publicações e a fortuna crítica sobre a Editora
cem artigos científicos e/ou resenhas e quase vinte Mulheres e a partir da Editora Mulheres preenchem
trabalhos acadêmicos (entre dissertação, tese e vazios e fazem falar o silêncio, levam à percepção
TCC). São textos de acadêmicos/as, de jornalistas, de que, para se compreender como as escrito-
de pesquisadores/as e das próprias autoras das ras (no sentido amplo de intelectual e escrevente)
obras, que em muitas páginas, mais de 1.000, pro- posicionam-se e são posicionadas no campo literá-
curam lançar novos olhares diante das obras uma rio e cultural, é necessário levar em consideração,
vez esquecidas. Apresento as capas e seus pa- especialmente, as condições de exercício da leitura
ratextos (apresentação e/ou introdução). Em cada e como a crítica literária feminista influencia/in-
cor, em cada capa, em cada textura de papel, em fluenciou esse campo, alterando substancialmente
36 cada título, em cada nome próprio, em cada texto os marcos e as marcas da história das mulheres e
crítico, em cada prefácio, em cada apresentação, da história da crítica feminista no Brasil.
histórias de mulheres.
Mas muito mais: concluo que a Editora Mulhe-
Referências Bibliográficas
res é um capítulo na história do livro no Brasil, a
possibilidade de outro entendimento da pequena Duarte, Constância Lima. (2007). Arquivos de
editora, da edição, circulação e difusão do livro, mulheres e mulheres anarquivadas: histórias de
da produção de conhecimento nas universidades, uma história mal contada. Revista Estudos de Lite-
nos órgãos culturais, na intervenção das bolsas ratura Brasileira Contemporânea, 30. Acesso em:
de produtividade pelos órgãos de fomento. Toda a 13 jan. 2011. Disponível em: <http://seer.bce.unb.br/
materialidade que reúno quer se dar a ler, a conhe- index.php/estudos/article/viewFile/2038/1611>.
cer e a responder como ler os códigos estéticos, Lajolo, Marisa; Zilberman, Regina. (2009). A
regionais, ideológicos, políticos, inscritos nas pu- formação da leitura no Brasil (3a ed.). São Paulo:
blicações da Editora Mulheres. Cada obra, como já Ática. pp. 262.
disse, é sistematicamente organizada numa espé- Stevens, Cristina (Org.). (2010). Mulher e literatura
cie de arte de cuidar: a capa, a orelha, a contraca- – 25 anos. Raízes e rumos. Florianópolis: Mulheres.
pa, a autora, a apresentação, a biografia, o ensaio
crítico, a bibliografia. O livro para a Editora e para
a editora é visto como um espaço, um lugar, uma
morada.
Durante esses 15 anos – e aqui destaco a edito-
ra da Editora –, Zahidé Muzart fez um trabalho de
“ressuscitação” (no sentido mesmo bíblico de um
renascer, de outra vida, de outro plano) de muitas
obras através de contatos, visitas a sebos e biblio-
tecas, apelo a bibliófilos e pesquisadores. E con-
grega, inegavelmente, um dos maiores e sólidos
grupos de pesquisadoras brasileiras do século XX
e XXI, materializando e concretizando o investimen-
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
A figura feminina, criatura e criadora. nos dá uma explicação ao mesmo tempo irônica e
Desde sempre a figura feminina, a mulher, foi bem humorada em resposta às considerações de
fonte e razão de inspiração para a poesia. Arnold Bennet expostas no livro “Nossa mulheres
É possível até que a própria serpente tenha can- – capítulos sobre a discordância entre os sexos”
tado loas à formosura do ser recém esculpido por (1920): “Bem”, diz ela, “acredito que todos concor-
Deus antes de lhe oferecer a maçã. dam com o fato de que desde o início dos tempos
até o dia de hoje, as mulheres deram à luz e cuida-
Entretanto, como autora de textos poéticos
ram de toda a população do mundo. Esta ocupa-
escritos, declamados ou cantados, a presença
ção lhes tem tomado muito tempo e esforço.”(1)
feminina na literatura fez-se esparsa ou totalmente
ausente no espaço cultural ocidental por muitos Não acreditamos que as mulheres tivessem
séculos. realmente ficado à margem da produção poéti-
ca por tanto tempo. Afora textos resgatados por
Na antiguidade clássica, a poetisa Safo teve
estudiosos como os de Santa Thereza D’Avila e
sua poesia igualada a Homero e foi elogiada pelo
Heloise Abelard, provavelmente, muitas produ-
próprio Aristóteles, porém hoje seus textos nos
ções femininas foram desconsideradas, destruídas
chegam aos retalhos. Depois dela, nenhuma poeta
e relegadas ao esquecimento, como de resto, a
pode medir ombros com reconhecidos nomes
maior parte de suas manifestações artísticas. O
do mundo literário como Shakespeare, Dante ou
processo de conquista de espaço no panorama
Camões.
cultural regido, estudado e produzido por represen-
A escritora inglesa Virginia Woolf (1882 – 1941)
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
tantes do sexo masculino não aconteceu no Brasil “(... ) em geral em artes, nunca foram criadoras”. (2)
de modo diferente do sucedido nos outros países Por muito tempo era dado como indiscutível que
da comunidade ocidental. Tal processo está direta- ao sexo masculino cabia a vida pública, a produ-
mente relacionado com as modificações ocorridas ção, a criação e regulamentação da vida social e
no papel representado pelas mulheres no contexto ao sexo feminino cabia o universo doméstico, a
social de cada época e de cada país. São histórias geração e criação da prole.
individuais de transgressão e ousadia e de lutas Vamos nos ater à resposta de Virginia Woolf às
coletivas de afirmação, participação e autoconhe- considerações mordazes de Arnold Bennet quanto
cimento. à incapacidade das mulheres para a criação artís-
Este pequeno estudo comparativo entre a tica por deficiência de espírito e pouca inteligência
produção poética masculina e feminina na poesia nata. Do contrário, escapamos de nosso propósito
brasileira visa contar um pouco de tal história para que encara apenas um aspecto das conquistas
melhor compreensão da produção poética feminina sociais da mulher ao longo dos tempos. A reação
contemporânea que, embora exista em pluralida- masculina à invasão feminina nos espaços sociais
de de estilos, com formatos literários e linguagem ditos exclusivos do homem sempre foi ferrenha e
similares a seus pares masculinos, mantém ca- imediata.
racterísticas próprias e ainda sofrem das muitas
restrições e dificuldades impostas às mulheres ao
longo dos séculos. Primeiras poetas
Até meados do século XVII, as mulheres no Bra- Consideramos os primórdios da poesia dita bra-
sil quase não tinham acesso à educação. Eram em sileira as publicações do poeta Gregório de Matos
maioria analfabetas e se submetiam ao domínio so- no século XVII. Nascido em Salvador, Bahia, em
cial e intelectual masculino. Não por razão de gosto 1633, apesar de contemporâneo do Padre Antônio
como afirmou Arnold Bennet no já referido traba- Vieira, muito diferente foi sua produção literária. É
lho: “(...) também afirmo que não só nos tempos conhecido por muitos como “Boca do Inferno” por
38 seus poemas satíricos e irreverentes. Não foi, po-
correntes as mulheres gostam de ser dominadas,
como continuarão a sê-lo daqui a mil anos senão rém, indiferente à paixão humana e religiosa, à na-
para sempre. Sempre gostarão de ser dominadas. tureza e à reflexão. Quanto à mulher, como musa,
Este desejo é prova de inferioridade intelectual.” (1) em dois exemplos vemos o cantar lírico elogioso
As mulheres submetiam-se pela mais absoluta da figura feminina e o uso da linguagem jocosa e
falta de outra opção. É tão falsa aquela ideia que foi satírica para descrever uma mulher.
pela mão dos homens ligados as elas que iniciaram Dois sonetos de Gregório de Matos: “À uma
seu aprendizado e começaram a crescer inte- dama dormindo junto a uma fonte.” E “Anjo no
lectualmente. Pais, esposos e mestres que nelas nome, Angélica na cara”.
acreditaram por alguma razão e lhes proporciona-
ram oportunidade de adquirir conhecimentos e de GREGÓRIO DE MATOS Guerra
se dedicar à expressão de sua arte. (1633–1696)
Assim como Bennet, na Europa, também no
Brasil, vozes de respeitados jornalistas, escritores e Soneto
juristas se levantaram ao longo dos tempos contes- À uma dama dormindo junto a uma fonte
tando a inteligência, a propriedade e a capacidade
de criação das mulheres. À margem de uma fonte que corria,
Lima Barreto (1881 – 1922) em artigo publicado Lira doce dos pássaros cantores
em 1918 foi diretamente contra a contratação de A bela ocasião de minhas dores
uma mulher para o serviço público por considerar Dormindo estava ao despertar do dia.
que o ato “aberra a todas as nossas concepções
políticas e vai de encontro a todos os princípios Mas como dorme Silvia, não vestia
sociais. A ocupação pelas mulheres de cargos O céu seu horizonte de mil cores;
naturalmente destinados aos homens, prejudica a Dominava o silêncio entre as flores
reprodução de nossa raça”. Calava o mar, e o rio não se ouvia.
“As mulheres têm muita aptidão para a retenção
e para a repetição,” _ diz ele em outro artigo “mas Não dão o parabém à nova Aurora
não filtram os conhecimentos através de seu tem- Flores canoras, pássaros fragrantes,
peramento, não os incorporam à sua inteligência” Nem seu âmbar respira a rica Flora.
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Porém abrindo Silvia os dois diamantes, teria ela talvez escrito, rabiscado poemas e depois
Tudo a Silvia festeja, tudo adora os jogado fora, por não levar a sério sua produção?
Aves cheirosas, flores ressonantes. Quantas outras procederam do mesmo modo?
Temos hoje ciência de vários poemas soltos e
livros representativos da produção literária de mu-
Soneto lheres que viveram nos séculos passados através
Anjo no nome, Angélica na cara do resgate efetuado por estudos recentes, não por
Anjo no nome, Angélica na cara terem sido reconhecidos e divulgados em suas
Isso é ser flor, e Anjo juntamente épocas. Nenhuma delas, nem mesmo as citadas
Ser Angélica flor, e Anjo florente mais adiante fazem parte das relações de poetas
Em quem, se não em vós se uniformara? creditados nos compêndios de literatura brasileira.
No entanto, se algo lhes faltou para merecer tal
Quem veria uma flor, que a não cortara crédito, foi tão só o reconhecimento da academia
De verde pé, de rama florescente? que as ignorava apenas por razão de sua condição
E quem um Anjo vira tão luzente feminina.
Que por seu Deus, o não idolatrara? Comparemos alguns trechos da “Sextilhas a
Se como Anjo sois dos meus altares meus filhos” que, assim como o Soneto à Ifigê-
Fôreis o meu custódio, e minha guarda nia, nos remete à figura feminina como mãe zelosa
Livrara eu de diabólicos azares e amorosa, aos versos saudosos de seu marido,
Alvarenga Peixoto, escritos no cárcere da Ilha das
Mas vejo, que tão bela, e tão galharda Cobras.
Posto que os Anjos nunca dão pesares
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
BARBARA HELIODORA Guilhermina da
Silveira (1758 – 1819)
Para fazer par a Gregório de Matos, nenhuma 39
Mineira de São João Del Rei
voz feminina se levantou naquela época. Ou se
o fez, não logrou fama. A primeira mulher a fazer “Sextilhas a meus filhos”
história na poesia brasileira foi Barbara Heliodora
Guilhermina da Silveira, nascida em fins de 1758 Meninos, eu vou dictar
na cidade de São João Del Rei nas Minas Gerais. As regras do bem viver,
Fez sua história como poeta e transgressora dos Não basta somente ler,
padrões sociais da época. Era esposa do aclama- É preciso ponderar,
do poeta e inconfidente Alvarenga Peixoto, tendo Que a lição não faz saber,
vivido com ele por bastante tempo antes de despo- Quem faz sábios é o pensar.
sá-lo, o que aconteceu só depois que a filha, Maria Neste tormentoso mar
Ifigênia, já completara três anos de idade. Barbara D’ondas de contradicções,
Heliodora viveu os tempos do Arcadismo Brasileiro, Ninguém soletre feições,
cercada de poetas de fama como Cláudio Manuel Que sempre se ha de enganar;
da Costa, Tomaz Antônio Gonzaga, Basílio da De caras a corações
Gama e Santa Rita Durão.(3) Sua produção literá- A muitas legoas que andar.
ria é bastante reduzida e controvertida. A ela são (...)
atribuídos os poemas “Sextilhas a meus filhos” ou
“Conselhos a meus filhos” e um soneto dedicado à Não vos deixeis enganar
sua filha Ifigênia. Por amigos, nem amigas;
Segundo Rodrigues Lapa, os poemas não Rapazes e raparigas
podem ser a ela atribuídos porque ela não teria cul- Não sabem mais, que asnear;
tura literária, pois não há em suas cartas qualquer As conversas, e as intrigas
menção literária, nem mesmo pedido de livros. No Servem de precipitar.
entanto, há cartas, e uma extensa bibliografia so-
Sempre vos deveis guiar
bre sua pessoa, o que é por demais curioso, tendo
Pelos antigos conselhos,
ela produzido, na melhor das hipóteses, apenas as
Que dizem, que ratos velhos
duas referidas peças. (4)
Não ha modo de os caçar:
Por que não seria ela capaz de usar uma lingua- Não batam ferros vermelhos,
gem tão enxuta e mordaz em seu poema? Não
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
rárias das mulheres poetas no Brasil. Mas em 1849 sai a primeira edição de “A lágrima
De início, os romances de mulheres eram em de um caeté” no Rio de Janeiro, sob o pseudôni-
grande parte autobiográficos. Precisavam ex- mo de Telesilla. O poema de 712 versos trata do
pressar-se descrevendo seu próprio sofrimento, processo de degradação do índio brasileiro coloni-
defendendo uma causa própria. Ainda presas aos zado pelo homem branco e do drama vivido pelos
estereótipos criados pelos autores masculinos, liberais durante a Revolução Praieira ocorrida em
sentiam-se podadas pela insegurança em romper fevereiro do mesmo ano. É este exemplo que nos
com os padrões socialmente aceitos. Na poesia, o demonstra a ruptura com temas então ditos femini-
resultado foi uma quantidade de poemas retratan- nos, e seus versos – embora sejam mais narrativa
do seus próprios sentimentos o que muitas vezes e descrição, pelo vocabulário escolhido, por sua
soava piegas, elaborado, sem valor. força e precisão nada têm da suposta pieguice ou
O grande jurista Clóvis Beviláqua(7) em crítica “leveza” esperada por sua condição feminina. “As
a tais poemas, comenta: “Com a direção mental a lágrimas de um caeté” fazem par com “I-Juca-
que geralmente se submetem, as mulheres que em Pirama” de Gonçalves Dias e incluem Nísia Flores-
nosso país têm uma ta no rol dos melhores representantes da corrente
indianista ou nacionalista da
educação intelectual, com sua sujeição inevitável
à lei do atavismo... aqui as mulheres serão somen- primeira geração dos românticos do século XIX,
te poetisas e poetisas voluptuosas, plangentes e conforme se verifica nos trechos escolhidos.
desoladas.”
Casado com Amélia de Freitas Beviláqua, es- NÍSIA FLORESTA Brasileira Augusta
critora e editora da revista O Lyrio, incentivou-a a (1810–1885)
seguir o jornalismo, e a publicar artigos e livros.
Porém, quando em 1930, ela se candidatou à A Lágrima de um Caeté
Academia Brasileira de Letras, viu sua pretensão Lá quando no Ocidente o sol havia
42 barrada pelo simples fato de ser mulher. Do mesmo Seus raios mergulhado, e a noite triste
modo, Julia Lopes de Almeida, autora de romances Denso ebânico véu já começava
de sucesso, teve que ceder sua candidatura ao Vagarosa a estender por sobre a terra;
marido, Filinto de Almeida. Pelas margens do fresco Beberibe,
Em seus mais melancólicos lugares,
Poetas brasileiras do século XIX Azados para a dor de quem se apraz
Sobre a dor meditar que a Pátria enluta!
Selecionamos entre tantas apenas algumas que
Vagava solitário um vulto de homem,
por sua obra ilustram o caminho percorrido. Uma
De quando em quando ao céu levando os
seleção simbólica que permite demonstrar, na
olhos
comparação entre seus poemas com os seus con-
Sobre a terra depois triste os volvendo...
temporâneos do sexo masculino, as modificações
Não lhe cingia a fronte um diadema,
sofridas nos temas e linguagem ao longo do tempo
Insígnia de opressor da humanidade...
de modo a acompanhar as modificações vivencia-
Armas não empunhava, que os tiranos
das no papel social da mulher.
Inventaram cruéis, e sob as quais
Do Nordeste do Brasil vem Nisia Floresta Bra- Sucumbe o rijo peito, vence o inerte,
sileira Augusta (1810 – 1885). Dionísia Gonçalves Mata do fraco a bala o corajoso,
Pinto, nascida no Estado do Rio Grande do Norte Mas deste ao pulso forte aquele foge...
já revela no pseudônimo escolhido sua persona- Caia-lhe dos ombros sombreados
lidade e opções existenciais: Nísia, diminutivo de Por negra espessa nuvem de cabelos,
Dionísia; Floresta, para lembrar o nome do sítio Arco e cheio carcaz de simples flechas:
Floresta, onde nasceu; Brasileira, como afirmação Adornavam-lhe o corpo lindas penas
do sentimento nativista; Augusta, uma homenagem Pendentes da cintura, as pontas suas
ao companheiro Manuel Augusto. Seus joelhos beijavam musculosos
Sua obra reflete a preocupação com a posição Em seu rosto expansivo não se viam
feminina na sociedade. Escreve, de início, crônicas, Os gestos, as momices, que contrai
artigos e opúsculos sempre sobre o mesmo assun- A composta infiel fisionomia
to: “Conselhos à minha filha”, “A jovem completa” Desses seres do mundo social,
“O modelo das donzelas” “Discurso às educan- Que devorados uns de paixões feras,
das”. No vício mergulhados falam outros
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
I-juca-pirama
NARCISA AMÁLIA
Em larga roda de novéis guerreiros (1852 – 1924)
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras, Por que Sou Forte
Na fronte o canitar sacode em ondas, a Ezequiel Freire
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a iverapeme, Dirás que é falso. Não. É certo. Desço
Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo Ao fundo d’alma toda vez que hesito...
Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra, Cada vez que uma lágrima ou que um grito
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, Trai-me a angústia - ao sentir que desfaleço...
Como que por feitiço não sabido
E toda assombro, toda amor, confesso,
Encantadas ali as almas grandes
O limiar desse país bendito
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Cruzo: - aguardam-me as festas do infinito!
Serem glória e brasão d’imigos feros.
O horror da vida, deslumbrada, esqueço!
“Eis-me aqui”, diz ao índio prisioneiro;
É que há dentro vales, céus, alturas, 43
“Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
Que o olhar do mundo não macula, a tern
“As nossas matas devassaste ousado,
Lua, flores, queridas criaturas,
“Morrerás morte vil da mão de um forte.”
E soa em cada moita, em cada gruta,
Vem a terreiro o mísero contrário;
A sinfonia da paixão eterna!...
Do colo à cinta a muçurana desce:
- E eis-me de novo forte para a luta.
“Dize-nos quem és, teus feitos canta,
“Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove. Luís José JUNQUEIRA FREIRE
(1832 – 1855)
Relações étnico-raciais
e de gênero na cena literária
brasileira do século XIX
Isabel Silveira dos Santos e Marta Campos de Quadros
PPGEdu/UFRGS, Brasil
prestigiados por esta tradição. (SOUZA, 2005, representação esta “estreitamente ligada a rela-
p. 64). ções de poder” (SILVA, 2005, p. 91). Quem tem
o poder de representar dita as regras de como o
Outro será representado. É através dessa política
Dentro dessa tradição, a cultura afro-brasileira
de representação que estereótipos e preconceitos
e a produção intelectual de negros é invisibilizada,
são construídos e naturalizados, justificando-se a
pois, nesse momento, negros (as)1, africanos e
discriminação étnico-racial assim como a discrimi-
seus descendentes eram vistos como inferiores.
nação de gênero.
Nesse sentido, torna-se importante, ainda que den-
tro das limitações que esse trabalho impõe discutir Carlos Skliar e Silvia Duschatzky (2001) analisa-
como negros (as), particularmente mulheres negras ram o estereótipo como uma estratégia discursiva
dos últimos anos do século XIX e primeiras déca- de poder, “... produzida dentro de relações de po-
das do século XX tiveram uma produção literária e der, por meio de mecanismos de delegação: quem
como negociaram os discursos vigentes sobre as tem o direito de representar a quem; e de descri-
mulheres e sobre os negros (as), especialmente o ção: como os diferentes grupos culturais são apre-
discurso do racismo científico articulado ao discur- sentados.” (SKLIAR e DUSCHATZKY, 2001, p.122).
so civilizatório que pretendia a construção de uma Neste sentido, quem tem o poder de representar
identidade nacional. Tomo como objeto de estudo dita as regras de como o Outro é visto na esfe-
a trajetória de uma mulher negras, Maria Firmina ra da cultura. Nesse processo de construção de
dos Reis (1825-1917) que em 1859 publicava o significados, neste jogo de poder, sistemas classifi-
romance Úrsula. catórios são produzidos e reproduzidos simbolica-
mente, geralmente em oposições binárias: o bom
Para tanto, assumo como perspectiva teórico-
e mau, o bonito e o feio, o sagrado e o profano, o
-metodológica o campo de teorização e inves-
civilizado e o primitivo, o sujo e o limpo, branco e
tigação conhecido como Estudos Culturais que
negro. O Outro, geralmente, é constituído como
assumem que “a cultura é uma das condições
uma inversão negativa do primeiro, e este, por sua
54 constitutivas da existência das práticas sociais” e
vez, não existe fora, mas relacionado ao Outro.
“que toda prática social tem uma dimensão cultu-
ral” (HALL, 1997, p. 33). Essa centralidade atribuída Neste sentido, investigar a narrativa literária
à cultura nos Estudos Culturais é também conheci- produzida por mulheres negras torna-se uma rara
da como Virada Cultural, no sentido de considerar oportunidade para a discussão das relações raciais
que é através da linguagem e da representação e dos “papéis de gênero” antes e depois da Abo-
que os significados são construídos socialmente lição da Escravidão, quando se iniciava a reorga-
e historicamente. Stuart Hall (1997) salienta que a nização do mercado de trabalho e se repensava o
representação é uma forma de produção de sig- futuro da nação. É importante indagar ainda sobre
nificados que ocorre através da linguagem e está a possibilidade de a questão racial e de gênero
articulada a um momento histórico e a uma cultura terem contribuído para uma maior ou menor visibili-
específica. dade da produção literária de mulheres negras, em
especial, a produção de Maria Firmina dos Reis.
Neste sentido, a produção de significado não é
fixa, estável e imutável, mas, ao contrário, o signi-
Relações raciais e de gênero no Brasil entre
ficado desliza e se adapta conforme o contexto, o
o final dos oitocentos e primeiras décadas do
uso e as circunstâncias históricas. De acordo com
século XX
Hall, o significado está sempre sendo negociado
e às vezes é severamente disputado e contestado Pensar em narrativas produzidas por mulheres
pelos diferentes circuitos de significação em circu- negras não é um processo simples. Em primeiro
lação. O autor destaca ainda que a representação, lugar a dificuldade de se ter acesso a materiais es-
sempre produzida no interior de códigos, não tem critos por essas pessoas, principalmente porque a
outro significado que não seja aquele que lhe é legislação do período colonial, extensiva ao século
discursivamente atribuído. Por último, Hall (1997) XIX, negava aos negros (as) o acesso a escolariza-
chama a atenção para o fato de que a represen- ção e, portanto, “não caberia aos negros escrever,
tação exerce um poder constitutivo, formativo, na publicar ou mesmo falar de si ou de seu grupo.”
construção da vida social e política e na constru- (SOUZA, 2005, p. 65). Já no inicio do período repu-
ção da identidade. blicano, a pouca oferta de escolas, as dificuldades
econômicas e a dificuldades nas relações entre
Tomaz Tadeu da Silva (2005) sublinha que a
brancos (as) e negros (as) impedia a freqüência e
1 Nesse trabalho negro (a) será utilizado para caracterizar pretos e pardos ao permanência dos negros (as) na escola.
modo do Censo Populacional.
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Em segundo lugar, o Brasil passava por trans- final dos oitocentos e solidifica-se nas primeiras
formações significativas de caráter urbano, que décadas do século XX o processo em que no-
se iniciaram pelo Rio de janeiro, estendendo- vos papéis sociais vão ser criados para homens
-se depois para as principais cidades brasileiras. e mulheres. Nesse processo, a diferença entre
Essas transformações aceleraram a necessidade homens e mulheres será demonstrada através
de mudanças urbanas, especialmente nos hábitos da construção de marcadores sócio-sexuais que
de comportamento civil e higiênico da população, determinavam novos lugares a ser ocupado por
necessárias para o convívio em grandes cidades cada um. Jurandir Freire Costa (1983) destaca que
(COSTA, 1989, p. 29). as mulheres passaram a ser vistas como moral e
Com a aceleração do crescimento das cidades, fisicamente mais frágeis que os homens, domina-
habitadas principalmente por uma população de das pelas faculdades afetivas e emotivas e assim
mulatos e negros livres e de brancos pobres, de- sendo sua “natureza”, ligada aos sentimentos, com
senvolvendo-se uma crescente preocupação com uma capacidade intelectual inferior. Cabia a mulher,
uma possível revolta desse contingente populacio- o lugar de mãe amorosa que deveria cuidar e zelar
nal “sem senhor”. A partir dessas modificações dos filhos e do marido, e por isso, sua presença na
no âmbito social é possível descrever a produção academia não era tolerada e ela não podia ter uma
de uma rede de discursos, disperso em variadas profissão que a colocasse em situação de igualda-
instituições, pretendendo disciplinar, governar essa de com os homens.
massa populacional que ameaça o projeto de Esta- Assim, na historiografia literária brasileira são
do pretendido para o país. poucas as mulheres que conseguiram ter uma
Visando preparar os sujeitos para a nova ordem produção literária. Destacamos que isso não signi-
urbana e para a entrada do Brasil no “rol das na- fica que as mulheres não escrevessem, mas que,
ções civilizadas”, a medicina, através das campa- foram poucas as mulheres que tiveram sua produ-
nhas sanitarista/higienista, irá tentar o comprome- ção intelectual publicada, seja em forma de livros,
timento das famílias brasileiras com esse projeto, revistas literárias ou jornais, entre o final do século
XIX e anos iniciais do século XX. Em se tratando 55
elegendo a higiene como forma de levar a popula-
ção a aderir ao padrão de vida europeu, visto como de mulheres negras, essa presença é ainda mais
modelo de “civilização” a ser seguido. A campanha escassa.
higienista vai defender a assepsia das casas e das É importante destacar que no período do qual
cidades, livrando o ambiente das “impurezas do esse trabalho se ocupa, o mercado editorial bra-
passado”, estreitamente vinculadas à escravidão. sileiro não tinha uma grande produção, seja pelas
Através da campanha sanitarista/higienista, dificuldades de impressão, seja pelo baixo índice
a posição dos homens e mulheres negras antes de alfabetizado entre a população branca e negra.
da abolição e após o fim do regime escravista se Mas, embora o índice de analfabetismo fosse gran-
converteu de patrimônio útil à propriedade, ao ini- de, não podemos afirmar que as obras publicadas
migo doméstico, nocivo à saúde da família branca, não circulassem entre a população, alfabetizada
“produtor de efeitos morais” capazes de corromper ou não. Basta ver o grande número de periódi-
os lares com seu comportamento não-civilizado e cos, revistas literárias, informativos publicados por
afeito a todos os vícios, muitos destes decorrentes agremiações de classe e sociais que circulavam
da escravidão. nos grandes e pequenos centros urbanos brasi-
No momento em que os médicos e o Estado leiros. Muitas pesquisas acadêmicas relatam a
se aliam na defesa de discursos e práticas que existência de grupos de “intelectuais” que atua-
vão promover o saneamento da nação, através ram na chamada “Imprensa Negra”2, que fizeram
da modificação de hábitos alimentares, de indu- circular entre seus pares, letrados ou não, questões
mentária, de costumes, colocava-se em destaque que se propunham a desbancar as teorias raciais
quem estava na norma e quem não estava, quem que postulavam a “inferioridade dos negros” e a
era “civilizado” e quem não era, mas principalmen- “superioridade dos brancos”, e outras questões
te, colocava-se em disputa a construção de uma de interesse da comunidade negra como: relações
idéia de nação que passava, necessariamente, pela raciais, abolição, educação, direitos civis, moradia,
questão do negro e seus descendentes no Brasil, democracia, trabalho, etc. Entretanto, esses grupos
que vão ser considerados “um dos fatores da in- de “intelectuais negros” é composto quase que na
ferioridade do povo brasileiro” e, portanto, alvo do sua totalidade por homens. São quase inexistentes
disciplinamento e repressão.
Não podemos esquecer ainda que, inicia-se no 2 Ver, entre outros, trabalho “Imprensa Negra no Brasil do Século XX” de Ana
Flavia Magalhães Pinto, 2010.
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
os relatos de mulheres negras jornalistas, teatró- básico e do ensino superior. Embora o enorme
logas, poetisas, romancistas, contistas ou cronis- esforço revisionista da historiografia literária brasi-
tas. Uma das poucas exceções é o caso de Maria leira, motivado, parece, pelas reivindicações dos
Firmina dos Reis. novos agentes sociais na luta por representação,
os estudos praticamente se restringem aos autores
Maria Firmina dos Reis (1825-1917) e Carolina Ma- (as) negros (as) contemporâneos. Muitos autores do
ria de Jesus (1914 – 1977): contando outra história passado continuam praticamente desconhecidos.
na literatura brasileira No caso das autoras negras, esse desconhecimen-
Ao percorrermos a historiografia brasileira to é ainda maior.
geralmente podemos sentir a presença de muitos Esse é o caso que parece impedir que a produ-
“silêncios” sobre a população negra brasileira. ção literária da maranhense Maria Firmina dos Reis
Desde o período colonial que negros (as) e seus e Carolina Maria de Jesus conste nos currículos
descendentes se fazem presentes em praticamente dos cursos das instituições escolares no Brasil.
todos os tipos de atividades, sejam elas braçais Maria Firmina nasceu de São Luis, no estado do
ou intelectualizadas. No entanto, nem sempre essa Maranhão em outubro de 1825. Mulata, vivendo
participação obteve reconhecimento ou divulgação. num contexto de extrema segregação racial e
Negros (as) atuaram como sujeito, nas pequenas social, num fato inédito para a época, aos vinte e
brechas que conseguiam abrir na sociedade brasi- dois anos é aprovada num concurso público para
leira, desde o período escravista até a atualidade, a cadeira de Instrução Primária, tendo exercido o
procurando modificar a estrutura social vigente. A magistério por boa parte dos seus noventa e dois
participação de negros (as) e seus descendentes anos de vida. Parecendo bastante instruída, Maria
no processo que levou ao fim do regime escravista Firmina teve participação importante no Maranhão,
foi decisiva. Mesmo assim, esta participação geral- atuando como folclorista, escrevendo poesias,
mente é silenciada. contos, compondo hinos e músicas em jornais da
Embora durante todo o século XIX, até pratica- província e sendo a primeira mulher a escrever um
56 romance abolicionista no Brasil, Úrsula, de 1859.
mente metade do século XX, o índice de analfa-
betismo entre a população negra brasileira fosse Nesse romance, pela primeira vez o escravo negro
grande, muitos eram os negros (a) alfabetizados tem voz na narrativa e, diferentemente de outras
que, individualmente ou em grupos, discutiam narrativas abolicionistas da época, a personagem
temas atinentes aos afro-descendentes, como a Mãe Susana vai contar como se deu sua prisão em
abolição e discriminação racial, especialmente em África e como sobreviveu a longa viagem de navio
jornais. De acordo com Eduardo de Assis Duar- até o Brasil. Embora esse pioneirismo, provavel-
te (2005), no caso da literatura, a produção dos mente devido às limitações a que estavam subme-
negros (as) e seus descendentes sofreu, ao longo tidas as mulheres naquele momento, Maria Firmina,
dos tempos, vários impedimentos, a começar pela ao publicar esse romance, recorre a um pseudô-
própria materialização do livro. Sobre este aspecto nimo, identificando-se apenas como “uma Mara-
o autor sublinha o seguinte: nhense”. Talvez, também seja por ser Maria Firmina
Quando não ficou inédita ou se perdeu nas mulher, negra vivendo numa distante província
prateleiras dos arquivos, circulou muitas vezes de nordestina que sua produção literária só tenha sido
forma restrita, em pequenas edições ou suportes conhecida em 1975. De acordo com Duarte (2005),
alternativos. Em outros casos, existe o apagamento “uma espessa cortina de silêncio envolveu a autora
deliberado dos vínculos autorais e, mesmo, tex- por mais de um século. Silvio Romero e José Verís-
tuais, com a etnicidade africana ou com modos e simo a ignoram.” (DUARTE, 2005, p. 133). É impor-
condições de existência dos afro-brasileiros, em tante destacar que no mesmo ano em que Maria
função do processo de miscigenação branquea- Firmina dos Reis publicava o romance Úrsula, Luis
dora que perpassa a trajetória desta população. Gama, poeta negro, trazia a público sua Primeiras
(DUARTE, 2005, p. 114). trovas burlescas, considerada um marco na litera-
tura produzida por afro-descendentes. Mas ao que
parece, as questões de gênero impedem que o
Sem entrar na discussão de definir ou não a romance de Maria Firmina seja divulgado e reco-
existência de uma “literatura afro-brasileira”, torna- nhecido na literatura brasileira. Se a cultura brasi-
-se importante destacar que a produção literária leira vigente na época, até admitia que um homem
dos negros e seus descendentes, tanto do pas- negro desconstruísse os estereótipos vigentes que
sado como do presente, é quase que totalmente apregoavam a inferioridade intelectual dos negros
desconhecida nos currículos escolares do ensino e seus descendentes, ao que parece, não conse-
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
guiu admitir que do mesmo modo uma mulher, que em geral e nem mesmo faz parte do currículo dos
também era vista como incapaz intelectualmente cursos de Literatura Letras, História ou Ciencias
e ainda mais, sendo negra, também promovesse Sociais.
essa desconstrução. Além de Úrsula Maria Firmina Embora Carolina Maria de Jesus e Maria Firmi-
escreveu ainda o romance-folhetim Gupeva, de na dos Reis, tenham vivido em tempos históricos
1861, e o conto A escrava, de 1887. Em o Álbum, diferentes e específicos, as duas escritoras utili-
diário no qual, entre 1853 e 1903, a autora apresen- zam a literatura como um meio onde é possível
ta a visão de uma mulher, negra, brasileira do final falarem e escreverem sobre si e, ao mesmo tempo
do século XIX sobre a vida, religião, amor, solidão. construírem e atribuírem significado a sua própria
Maria Firmina já completamente cega morre em experiência e á própria identidade. No entendimen-
Guimarães, Maranhão em novembro de 1917. to de Renata Jesus da Costa (2007) as mulheres
Enquanto Maria Firmina dos Reis vive a maior como Carolina Maria de Jesus (e Maria Firmina dos
parte de sua vida num período em que o espaço Reis) “tinham consciência que poucas pessoas
público era negado às mulheres e que a escraviza- compreendiam os seus desejos de ler e escrever,
ção dos negros (as) era instituída legalmente, Ca- uma vez que as pressões sociais de sua época de
rolina Maria de Jesus vive no período pós-abolição certa forma, reprovava tal comportamento”(COSTA,
em que, embora “livres”, a população afro-brasilei- 2007, p. 04).
ra vivenciava uma profunda hierarquização social e A existência do romance Úrsula (1848) de Maria
racial. Neta de escravos, Carolina Maria de Jesus Firmina dos Reis e Quarto de despejo (1960) de
nasceu na cidade de Sacramento, Minas Gerais, Carolina Maria de Jesus podem marcar a des-
em 1914 e faleceu no em 13 de fevereiro de 1977. construção de uma história literária marcadamen-
Em Minas Gerais, freqüentou a escola somente nos te etnocêntrica e masculina. Ao mesmo tempo,
dois primeiros anos as séries iniciais. Trabalhou em serem as autoras de Úrsula, e Quarto de despejo
fazendas do interior de Minas e de São Paulo até duas mulheres negras, intelectuais, também pare-
1937 quando migra para a capital paulista e passa ce apontar para outras representações sobre as
a trabalhar como empregada doméstica, função 57
mulheres negras, que não somente aquelas que
históricamente destinada as mulheres negras, e geralmente circulam na cultura brasileira.
posteriormente, como catadora de lixo na favela
do Canindé, São Paulo. Apesar da condição e fave-
lada, mãe solteira de três filhos e pelo pouco estu- Referências Bibliográficas:
do, os trabalhos literários de Carolina estão reple- COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma
tos de reflexões sobre a vida das mulheres, sobre Familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989.
a política e sobre a vida daqueles que viviam em COSTA, Renata Jesus. Subjetividades femininas:
situação semelhante a sua. Em sés trabalhos Quar- mulheres negras sob o olhar de Carolina Maria de
to de Despejo: diário de uma ex-favelada (1960), Jesus, Maria Conceição Evaristo Brito e Paulina
Casa de Alvenaria (1961), Provérbios (1963), Peda- Chiziane. Anais do XXIV Simposio Nacional de
ços da fome( 1963), Diário de Bibita ( 1982) e Meu História-ANPUH, 2007.
estranho diário( 1996) Carolina abordou, através de DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, política,
um relato intimo de quem vivieu a discriminação identidade: ensaios. Belo Horizonte: FALE/UFGM,
racial, o tema do racismo no Brasil, ainda naquele 2005.
momento histórico, quase que somente discutido HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e media-
nos meios acadêmicos e em poucos movimentos ções culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
sociais. Ao explicitar suas vivencias, experiências,
HALL, Stuart. The Work of Representation. In:
expectativas e desilusões, Carolina Maria de Jesus
HALL (Org.) Representation. Cultural Representa-
subverteu, através de sua produção literária, vários
tion and Signifying Practices. London/ Thousand
estigmas historicamente associados aos negros e
Oaks/ New Delhi: Sage/Open University, 1997.
as mulheres.
SANTOS, Isabel Silveira dos. Abram-se as Corti-
Quarto de despejo (1960) , principal obra de
na: representações étnico-raciais e pedagogies do
Carolina, alcançou mais de um milhão de cópias
palco no teatro de Arthur Rocha. Dissertação de
vendidas , superando todos grandes cânones
Mestrado, Universidade Luterana do Brasil – UL-
da literatura brasileira. Também foi publicado em
BRA- Canoas, 2009.
vários países em 13 línguas diferentes, sendo ainda
muito lido e estudado fora do pais. No entanto, no SKLIAR, Carlos e DUSCHATZKY, Silvia. O Nome
Brasil, é praticamente desconhecido da população dos Outros. Narrando a alteridade na cultura In:
LARROSA, Jorge e SKLIAR, Carlos. Habitantes de
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
58
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Representações femininas
e escrita de si na literatura
de Maria Helena Cardoso
Cláudia J. Maia
Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes, Brasil
registravam em seus escritos as experiências de de si presentes nas obras Por onde andou meu
vida e de confinamento a que estavam submeti- coração e Vida, vida. Conforme argumenta Tânia
das, sendo que muitas delas, através do romance Navarro Swain (2011), “faz parte da construção
autobiográfico, procuraram denunciar a situação dos saberes e das estratégias de implantação da
de submissão das mulheres. Mas foi através da heterossexualidade compulsória a extinção da me-
literatura memorialística que essas experiências e mória, dos traços das atividades das mulheres, em
vivências foram mais detalhadamente rememora- conjunto, ou individualmente” no passado; pois “[...]
das, resgatadas, descritas e reavaliadas por elas. uma vez controlados os processos de construção
A publicação desses escritos possibilitou torná-las, do saber e o acesso a eles, é muito fácil negar a
mais tarde, conhecidas. existência da criatividade e de presença incontor-
Maria José Viana (1995) sublinha que, enquanto nável das mulheres na história” (p.8). As memórias
no século XIX, a escrita memorialística já se afir- de Helena são não apenas evidências da criativida-
mava como gênero literário na Europa, no Brasil, de feminina, por meio da escrita, mas, sobretudo
limitava-se a “parcas obras escritas obviamente nos fornece mais do que indícios das representa-
por homens de renome entre a intelectualidade na- ções e fazeres femininos no passado.
cional” (p.14). Dessa forma, o caminho das memó-
rias começou a ser trilhado pelas mulheres pouco
A escritora e sua escritura
depois da poesia e da ficção, mas de forma ainda
muito tímida. Todavia, o diário íntimo e os cadernos Maria Helena Cardoso nasceu na cidade de Dia-
de memórias, em que elas registravam pensamen- mantina, em 1903, passou sua infância em Curvelo
tos, estados de alma, lembranças ou ideias foi uma e em outras pequenas cidades do interior mineiro;
prática muito comum entre as mocinhas e senho- em 1914, a família mudou-se para a capital, Belo
ras burguesas, mas que ficaram restritos à família Horizonte, onde ela cursou o ensino secundário no
ou esquecidos em gavetas e baús empoeirados. Ginásio Mineiro. Foi também nessa cidade que ela
Será, sobretudo, a partir do final da década de iniciou suas leituras e sua grande paixão pela lite-
60 1960, que esses registros saírão das gavetas e do ratura e pela música clássica. Em 1923, época em
âmbito familiar para ocupar espaço nas livrarias e que ainda eram raras as mulheres que ingressa-
bibliotecas, ao lado de outras escritas e escritores. vam em cursos superiores, ela concluiu o curso de
Nessas obras de cunho memorialístico, as mulhe- Farmácia, mas nunca pôde exercer essa profissão.
res procuravam, com sua narrativa, a inscrição de No mesmo ano, mais uma vez, a família mudou-
si mesmas (Viana, 1995, p.16). Ao contrário das -se, agora e definitivamente para o Rio de Janeiro,
escritas masculinas, as femininas nesse gênero onde ela passou a trabalhar como secretária, até
literário, conforme sublinha Ruth Silviano Brandão aposentar-se em 1967. No Rio, junto com o irmão
(2004), Lúcio Cardoso, conviveu com reconhecidos escri-
tores, intelectuais, poetas e jornalistas. Morreu em
[...] apontam para uma visão subjetivada e 1997, aos 94 anos.
intimista da vida, com inquietações pessoais,
Embora uma escritora reconhecidamente talen-
passando por fatos miúdos, relatos narrados
tosa, conforme ressaltou Clarice Lispector (1973),
de forma fragmentária ou reflexões sobre pe-
capaz de “pegar numa asa de borboleta sem
daços do vivido, talvez marcado pela reclusão,
quebrá-la”, somente começou sua carreira literária
em que os horizontes podem por vezes pa-
aos 64 anos. Em seus escritos, se considera uma
recer demasiadamente estreitos para o leitor
pessoa tímida e covarde, usando esse argumento
dos grandes romances ( p.78).
para justificar o seu não engajamento como es-
critora no mundo das letras, como descreve em
Essas características estão presentes nos Vida-vida:
livros de Maria Helena Cardoso que misturam os [...] na verdade não me importa tanto assim
gêneros memória e autobiografia. Seus escritos editar meu livro! Sei lá, enfrentar a crítica não
abrem, assim, possibilidade de tornar inteligíveis deve ser agradável e por mim prefiro ficar
suas vivências, mas principalmente entender como esquecida [...] O que dizer, quais as perguntas
uma mulher celibatária, sexagenária, constrói suas que me farão lá? Saberei conversar com de-
experiências e relações sociais, constitui-se como sembaraço, vencendo minha incrível timidez,
sujeito, representa a si mesma e os/as outros. sem que pareça tola?
Seus livros sugerem o estudo de inúmeros te-
mas, entretanto, nesse texto limitarei a discutir as [...] meu coração bate desordenadamente [...].
representações femininas e elementos da escrita Parece mais que cometi um crime do que
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
escrevi minhas memórias. Tenho tal medo que obras anteriores, seguiu a linha memorialística. Em
chego a desejar não seja publicado... (Cardo- um manuscrito encontrado no arquivo pessoal de
so, 1973, 42-43, 46). Lúcio Cardoso, Helena fala da sua preferência pela
literatura íntima:
Entretanto, o que suas memórias deixam en- Cada dia me interesso menos pela ficção, se a
trever é que ela não tinha condições econômicas ficção me interessa menos, a curiosidade pelo
para dedicar-se a carreira das letras limitada às diário, memórias, aumenta. Quero saber como
mulheres, sobretudo às mais pobres. De família viveram antes de mim outras pessoas, as suas
tradicional do interior mineiro, mas sem dinheiro e relações perante os sofrimentos e alegrias. O
pai “aventureiro”, Helena teve, desde muito cedo, que me interessa, não é somente saber como
que ajudar no sustento da mãe e dos irmãos meno- viveram, mas principalmente se souberam
res. Assim, foi obrigada a empregos indesejados, morrer. A experiência criada pela imaginação,
fora de sua área de formação profissional, que não eu a admiro, enquanto a experiência vivida me
gostava e onde parece não ter sido bem-sucedida; desperta paixão. (FCRB. Lc 08/320, prit. S/l.,
o emprego em escritórios era, na década de 1920, s/d).
quando entrou para o mercado de trabalho, um
dos poucos abertos às mulheres. Além disso, a
admiração e o sucesso do irmão, o escritor Lúcio Mulheres escritas
Cardoso, parecem ter aumentado seu “medo” ou O livro Por onde andou meu coração é caracte-
ofuscado seu desejo de lançar-se na carreira de rizado pela riqueza de detalhes, descritos muitos
escritora: anos após o vivido. Helena oferece uma verdadeira
“descrição densa” de objetos, roupas, fantasias,
Lembrei-me com certa tristeza do que Walmir
cores, cheiros, ruas, praças, imóveis, decoração de
me disse à hora do almoço: que estava con-
casas, pessoas, etc. A arte de lembrar, misturada
vencido de que eu era realmente uma escritora
ao seu talento de romancista, transporta-nos por
e que se não tinha aparecido até agora devia- 61
uma viagem no tempo e em espaços, criando a
-o somente ao meu enorme respeito por Nono
impressão de serem familiares os lugares narrados,
[Lúcio Cardoso]. No primeiro momento fiquei
de sermos íntimos das pessoas saudosamente
feliz, cheguei mesmo a acreditar (a vaidade
lembradas. Ela dá vida, emoção, sentimentos aos
está sempre latente). Quem sabe esta minha
seus personagens retirados da vida real, muitas
incapacidade para qualquer outro trabalho não
delas figuras sertanejas típicas, excêntricas, pi-
teria sua razão de ser? Sentia-me justificada
torescas, quase cômicas, que parecem saídas
de todos os meus fracassos no escritório,
da sua imaginação como construções fictícias.
onde qualquer funcionária sem grandes co-
Pessoas como Sá Maria da Ponte, Terto Veludo, o
nhecimentos desempenhava muito melhor as
anão Faria, Sá Maria Papuda, Leopoldo de Amor,
minhas funções, eu a eterna distraída, a fora
Sá Miloca, Sá Cota de Bilá e Cotinha de Primainês,
do ambiente. (Cardoso, 1973, p.14).
as Filipas e as Cardinali, dentre muitas outras. A
autora penetra em seus pensamentos e sentimen-
Seu primeiro livro Por onde andou meu coração, tos, dando mais vivacidade à sua narrativa.
publicado em 1967, obteve sucesso de crítica e de Helena narra sua infância pobre e sofrida na
venda. Helena pertencia a uma família errante, que cidade de Curvelo, mas longe de querer despertar
sempre se mudava de um lugar a outro em busca sentimento de compaixão no leitor, faz-nos rir e nos
de melhoria de vida, por isso, nesse livro, ela per- divertir com as brigas e brincadeiras de crianças,
corre suas vivências e reconstrói, a partir de suas apresentando-se como uma menina faceira, es-
lembranças, fatos, histórias e acontecimentos que perta e curiosa que se metia em situações emba-
viveu em diversos lugares por onde passou. raçosas. Descreve o pavor da professora “neuras-
Seis anos depois, publicou Vida-vida, também tênica” dona Esmeralda por quem frequentemente
no estilo memorialístico. Nele, o foco da narrativa sentia-se “humilhada” e “aniquilada”. Dona Esme-
são seus sentimentos mediante a morte que ronda- ralda era proprietária de uma das duas escolas
va a família e os amigos, o sofrimento e paralisia do de Curvelo, que à época se ocupava de todos os
irmão Lúcio, seu envelhecimento e a vida. Em 1979, aspectos da formação das meninas “de posição”,
publicou Sonatas perdidas: anotações de uma como sempre repetia. Em Belo Horizonte, a ênfase
velha dama digna, um romance que mistura perso- de suas lembranças é no seu interesse pelas aulas
nagens reais e ficcionais, mas, assim como suas no colégio e na Escola de Medicina. A passagei-
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
ra melhoria de vida da família que lhe possibilitou ta, respeitada, admirada e amada em Curvelo; era
adquirir livros e discos. O gosto pelo francês, pela interessada por política e entusiasta da Revolução
música e pela literatura, registrando a veemência de 1930; apaixonada pelo marido de quem supor-
com que lia os livros de todos os gêneros literários tou “todas as suas infidelidades de homem bonito”;
e as peripécias que fazia para adquiri-los. amava a vida e os filhos;
É, sobretudo, a família o foco central da sua nar- A sua atividade intelectual, entretanto, não pre-
rativa. Extensa, empobrecida, mas de certo pres- judicava os seus deveres de mãe de família pobre:
tígio em Curvelo, preservava alguns valores aristo- na semana em que estava na cozinha, preparava
cráticos como a importância dada à educação, às comida para duas famílias, sem por isso deixar
artes e aos costumes. Pertencia à família Vianna – de lavar a nossa roupa, costurar, fazer enxovais
pelo lado materno – uma das que, tradicionalmen- de batizado para ajudar Tidoce nas despesas da
te, controlava a política local e os cargos públicos casa (...). Era enérgica e ai dela se não o fosse, a
importantes, assim, embora pobres, tinham lugar educação dos filhos tendo ficado inteiramente a
cativo no cinema e de destaque nas festas e co- seu cargo. Expansiva e alegre, era orgulhosa, no
memorações tradicionais. Composta pela avó, tios, bom sentido da palavra, e fechada com relação
tias, irmãos e a mãe, ora morando todos juntos, aos seus problemas íntimos (...). Ao lado do charme
ora em casas separadas, a família se caracterizava, que lhe emprestavam sua inteligência e vivacida-
acima de tudo, por permanecer sempre unida e em de, fisicamente era também dotada: elegante e de
torno das mulheres. A avó e tios acompanhando traços regulares, agradava a todos, pois, sabendo
a mãe, Nanhá, em suas mudanças de uma cidade costurar, mesmo com poucos recursos, conseguia
para outra, sempre em busca de uma vida melhor. vestir-se com graça e elegância (Id. Ibid.,p.149-150).
O pai era um engenheiro carioca que chegou a Dedicada e preocupada com a educação dos
Curvelo a fim de trabalhar na construção da estra- filhos, conseguiu formar um médico, um advoga-
da de ferro Central Brasil; homem disputado pelos do, as duas filhas em farmácia; e Lúcio Cardoso,
melhores partidos, preferiu casar-se em segundas que se tornou um dos grandes e admirados escri-
62 núpcias com a mãe de Helena, moça pobre da tores da literatura brasileira. Os casamentos mal-
cidade com que teve seis filhos. Era presença forte -sucedidos da avó e da mãe serviram de parâmetro
na vida dos filhos, mas nas lembranças relatadas e justificativa para a opção pela solteirice das tias
no livro pouco aparece, justamente pela ausência e dela própria; numa época em que “ficar solteira”
constante da família. É descrito como aventureiro e era alvo de condenação moral, sinônimo de des-
sonhador, um homem que não teve muita sorte na qualificação social e em que o terror causado pelo
vida, fracassando em todos os negócios que em- estereótipo da solteirona coagia muitas mulheres
preendeu. Assim, coube à mãe a tarefa de criar e ao casamento (Maia, 2011). No Rio, a avó e Tidoce
educar sozinha os filhos e constantemente recome- mortas, a mãe envelhecida, foi a vez de Helena –
çar a vida em nova cidade, sempre que o marido das irmãs a que permaneceu solteira – dar conti-
vislumbrava uma situação melhor para a família em nuidade à chefia feminina da família.
outro lugar ou se aventurava em um novo negócio. As memórias de Helena estão, assim, reple-
A liderança e chefia feminina é, assim, uma ca- tas de histórias extraordinárias de mulheres e de
racterística marcante da família de Helena. Primeiro amizades femininas, a começar pelas da própria
a avó, seguida de Tidoce, tia solteirona, a mãe e ela família. Em sua narrativa, figuram lideranças co-
própria. A avó, Leopoldina, foi obrigada a assumir o munitárias, profissionais, donas-de-casa, beatas,
sustento da família, pois, o marido “absolutamen- prostitutas, pianistas, viúvas, solteironas, loucas,
te incapaz para a vida prática”, depois de muitos ex-escravas, cozinheiras, domésticas, concubinas
insucessos nos negócios que se metia, começou e muitas outras em quem prestou atenção, como
a beber, tornando-se completamente apático até Aninha Veludo, filha de escravo e rainha da festa
morrer, deixando-a viúva, com quatorze filhos pe- do divino; a pobre Emília Perácio, assassinada
quenos, na mais absoluta pobreza. “Para sustentar brutalmente pelo marido; Áurea, a doce professora
a família, batia máquina dia e noite, só contando de francês; Dona Isabel, a estranha estrangeira;
com o aluguel de duas escravas que lhe tinham ca- Raimunda, a solteirona dona da farmácia; Babita, a
bido como herança do pai” (Cardoso, 2007, p.351). mau-humorada prima-avó. Ela retrata um precioso
Quando já estava velha, o sustento da casa ficou a e rico universo feminino do interior mineiro, com
cabo de Tidoce, modista famosa em Curvelo, com seus afazeres, a faina do dia-a-dia, suas lutas e
o auxílio de outras duas tias solteironas, Sanóre e esperas, aspirações, desejos, amizades e solidarie-
Dazinha. A mãe, mulher de grande inteligência, cul- dades.
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Ao contrário das memórias masculinas que textos foram escritos em diferentes momentos e
frequentemente privilegiam pessoas de prestígio não ordenados cronologicamente. Embora alguns
social e de grandes “feitos”, ela descreve mulhe- trechos assumam um tom confessional – carac-
res simples, plurais e que escapam aos padrões terística do gênero autobiográfico moderno – não
e ideais femininos do período rememorado, cons- percebo tal escrita como um mero “exame de
truídos pelas representações de gênero. Assim, consciência” para redimir-se de culpas ou para
longe de mulheres fracas, sujeitadas, desprovidas encontrar e decifrar a essência de si, um eu coe-
de inteligência, econômica e emocionalmente rente e unificado que reitera condutas e discursos
dependentes que constituem as representações normalizados (Rago, 2011). Mas, seguindo a ela-
femininas instituídas no passado, Helena escreve e boração teórica proposta por Michel Foucault ao
inscreve na realidade histórica mulheres fortes, ca- retomar as “artes da existência” dos antigos gregos
pazes, livres e independentes. Sua escrita contribui e romanos – dentre essas a escrita de si – vejo
dessa maneira para a desconstrução das imagens um eu móvel, que nunca é, mas está, um trabalho
que tradicionalmente associam as mulheres à pas- constante de elaboração de si, na escrita.
sividade e submissão tanto na História, quanto na Agora era eu mesma quem estava ali e entre-
Literatura. tanto era outra. Outra que tinha vivido tudo
que se findara e voltava. Voltava vivendo a
Escrever a si mesma mesma vida, porém mais calma, mais profun-
da. Viver é bom, mesmo depois de se ter vivi-
Helena fala de muitas mulheres, dos amigos,
do prazeres e desencantos. Tudo retorna mais
dos irmãos, mas, principalmente, fala de si mesma,
calmo, mais suave. (CARDOSO, 1973, p.126)
constitui-se na própria escrita, perante o olhar do
outro. Por onde andou meu coração é uma viagem Uma das técnicas da escrita de si apresentada
por lembranças, episódios, lugares em que pes- por Foucault é os hupomnêmata, espécie de livros
soas são revividas. Vida-vida, por sua vez, é uma de notas e suportes da memória, onde se anota-
viagem a sentimentos e à arte de viver. A ênfase vam “citações, fragmentos de obras, exemplos e 63
do livro recai sobre si e na relação com o irmão ações que foram testemunhadas ou cuja narrativa
Lúcio Cardoso: narra o trágico Acidente Vascular havia sido lida, reflexões ou pensamentos ouvidos
Cerebral de Lúcio que o deixou parcialmente pa- ou que vieram à mente”. Constituíam “uma memó-
ralítico, suas crises de convulsão e seus pequenos ria material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas”.
progressos; lembra sua vida boêmia e despreocu- Conforme Foucault (2004), os hupomnêmatas
pada, mas sempre a partir de um sentimento, uma “formavam também uma matéria prima (...) para
emoção que ela experimentou e vivenciou: angús- superar alguma circunstância difícil” tais como um
tia, tristeza, dor, alegria, alívio, orgulho, saudade, luto, um exílio, a ruína ou a desgraça. (p.147-148).
ansiedade, medo. Nessas travessias – que são A escrita de Helena em Vida-vida se aproxima das
suas obras – a autora se constitui “como alguém características do exercício dos hupomnêmatas
capaz de dar um depoimento de uma época e de que, conforme Foucault, não se trata de um diário,
espaços diferentes” (Brandão, 2004, p.78), e de de narrativas de experiências espirituais ou “de si
existir singularmente. mesmo”, cuja função seja uma confissão com valor
Vida-vida segue o estilo memorialístico, a que a de purificação; mas de “(...) perseguir o indizível,
autora se filia, mas desta vez a narrativa assume não de revelar o que está oculto, mas, pelo contrá-
características do diário e da autobiografia. Phi- rio, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde
lippe Lejeune (2008) define autobiografia como a ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é
“narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa nada menos que a constituição de si” (Foucault,
real faz da sua própria existência, quando focaliza 2004, p.147-148).
sua vida individual, em particular a história da sua Assim, ao escrever sobre si, ela se mostra ao
personalidade” ( p.14), o que não exclui a crônica outro e, ao mesmo tempo, constitui a sua própria
e a história social ou política. “Trata-se de uma identidade mediante “a recolocação das coisas
questão de proporção ou, antes, de hierarquia: ditas”. (Id. Idid.). Conforme sublinha Norma Telles,
estabelecem-se, naturalmente, transições com “ao escrever o escrevente cria a si mesmo ativa-
os outros gêneros da literatura íntima (memórias, mente. Trata-se de se constituir como sujeito da
diário, ensaio) e uma certa latitude é dada ao clas- ação racional mediante a apropriação, unificação
sificador no exame de casos particulares” (Lejeune, e subjetivação do fragmentário e da seleção do já
2008, p.15). dito e já selecionado”. (Telles, 2009, p.8).
Vida-vida é uma narrativa descompassa, os A Helena que vai se constituindo e se revela
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
perante o olhar do outro é uma mulher sexagená- momento em que poderia pensar e viver para si,
ria, culta, independente, sem beleza, que gosta situação historicamente negada às mulheres pelo
de chope, gim-tônica, bares, aventuras, viagens e seu dever de altruísmo.
estradas sem destino, medrosa, mas ao mesmo Por outro, se em Por onde andou meu coração a
tempo independente e forte. Amante da beleza, escrita foi uma forma de não deixar morrerem pes-
das coisas simples, da literatura, pintura, dos ami- soas e lugares do seu coração, Vida-vida foi uma
gos, da vida e acima de tudo da música. Ao contrá- forma de resistir, driblar e vencer a própria ideia de
rio do estereótipo da solteirona infeliz e mal-amada, morte. Desvencilhar-se do sentimento de morte, do
Helena se mostra uma mulher feliz, que ama a vida cheio da morte, do desejo de morte. Diz ela: “Não
e sabe viver, se constituindo em um exemplo para quero pensar nem falar mais na morte. Entretanto,
outras mulheres que por opção ou não viveram este pensamento não me deixa um instante se-
solteiras. Seu modo de vida desdobra o discurso quer”. (Cardoso, 1973, p.20). E ainda: “[...] penso
do casamento como única forma de felicidade para na minha, na morte de uma mulher já velha que
as mulheres. já viveu o seu tempo, foi e é feliz apesar de tudo,
Uma mulher livre, mas que vê esvair-se sua liber- mas que continua amando a vida tanto quanto uma
dade mediante as experiências trágicas: a doença jovem de quinze ou dezesseis anos, o amor dos
que faz perder o controle do próprio corpo: “Torno- velhos à vida tão bela” (Id. Ibid. p.309).
-me propriedade de médicos, escrava de exames Os escritos que se tornaram depois o livro foram
e mais exames, eu que antes era dona de mim, da elaborados durante e após a doença e falecimento
minha alegria ou da minha tristeza. Sinto-me como do irmão que fez pesar e sentir ainda mais outras
um livro de biblioteca pública a quem todos consul- mortes que, na sua idade, tornaram-se sucessivas:
tassem” (Cardoso, 1973, p.299). E a do irmão que a avó, o pai, as tias Dazinha, Sanóre, Tidoce, os
a faz perder o controle do próprio tempo e espaço: tios Leopoldo e Oscar, os amigos Vito Pentagna,
“[...] mais uma vez penso na liberdade. Não tenho Jaime. Assim, o “medo da morte”, não aparece na
mais a minha vida, vivo a dele”. (Id. Idid. p. 289). escrita como decorrência inexorável da sua velhice,
64 Ela, que já estava acostumada a viver só, sem “la- mas muito mais pela dos outros. Na experiência
ços de amor que me criassem compromisso” (Id. trágica e na escrita ela vai construindo também
Ibid.p.136). Assim, a dependência que se estabe- sua relação com a morte: “[...] eis-me lutando para
lece do irmão – a quem tanto ama – faz com que a aceitar a idéia da morte, da minha morte.[...] Ainda
liberdade, valor que lhe é caro, essencial e o mais não posso morrer, ainda não consigo acreditar na
cultivado em sua forma de viver, passasse a ser minha morte. E só se morre, só se pode morrer,
percebida como paradoxo: “De novo as correntes quando se acredita nela”. (Id. Ibid. p.301-302).
e de novo o anseio pela liberdade [...] quero minha Esse exercício de colocar a morte no discur-
vida antiga, a vida em que ninguém precisava de so escrito, de se constituir como sujeito mortal é
mim, em que eu era só. [...] E o que farei sem o so- também uma forma de reescrever a vida. Desta
frimento, da liberdade sem amor?” (Id. Ibid. p.201). maneira, o entusiasmo e o gosto pela vida também
Ela se debate com a “culpa” – este percorre o livro, contrapondo o discurso-presença
“eterno”sentimento que acompanha as mulheres da morte: “Nem a tristeza da situação de Nono,
desde o “pecado original” – pelo desejo de viver nem seu desalento alguns dias, nada consegue
para si e a “obrigação” de viver para o irmão. En- deter o meu entusiasmo pela vida, a minha vontade
quanto sujeitos, as mulheres são constituídas para de ser eterna”. (Id. Ibid. p.159).
serem altruístas, colocando o outro sempre em Assim, no trabalho de elaboração de si e recria-
primeiro lugar. Quando mães, os filhos e o marido; ção da vida, a Helena, profundamente religiosa,
quando celibatárias, os idosos, irmãos e sobri- desencantada da existência, que se sente enve-
nhos. Assim, a dedicação e o cuidado de outros lhecida, cercada e centrada no pensamento de
com suas tarefas de doação associadas foram morte do início da narrativa, não é coerentemente
socialmente construídas como forma de redimir a mesma até o final. Ela vai se reconstituindo como
as mulheres celibatárias do egoísmo, expresso na sujeito amante da vida nas coisas mais belas e
ausência da maternidade biológica, e de restituí-las simples.
à sua condição de mulher (Maia, 2011, p.231-232).
24 de Maio de 1967. Faço hoje sessenta e qua-
Mediante a completa absorção e dependên- tro anos de idade. [...] Absolutamente não me
cia do irmão doente, seu constante mau-humor e sinto uma mulher dessa idade. [...] minhas paixões
depois sua ausência repentina, a escrita foi, por atualmente se estendem à música, plantas, livros,
um lado, um exercício de liberdade para Helena, objetos lindos, o mundo que amo cada vez mais e
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
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I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
66
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
67
Em 1922, no ano da Semana de Arte Moderna -burguesa de seus contemporâneos mais famosos
em São Paulo, Gilka Machado publicou seu quinto da Semana de Arte Moderna. Mas quando ela é
volume de poesia com o título simples, mas provo- mencionada nas obras de referência, é classificada
cante, Mulher nua. Nos primeiros anos da década como simbolista ou colocada ao lado de outras es-
de 30, depois da publicação de mais dois livros de critoras sob a rubrica genérica de “poetisa.” Embo-
poemas, O meu glorioso pecado (1928) e a antolo- ra ela publicasse alguns poemas em Festa, revista
gia Carne e alma (1931), a revista literária, O malho, literária dos espiritualistas (Andrade Muricy, Tasso
pediu a duzentos intelectuais que votassem na da Silveira, e Cecília Meireles, entre outros), não
poetisa mais importante do Brasil. Gilka Machado há nada especialmente simbolista a respeito da
recebeu o maior número de votos, ultrapassando obra de Gilka Machado. De facto, alguns de seus
escritoras notáveis como Henriqueta Lisboa, Fran- poemas tratam da classe operária, da pobreza e
cisca Júlia e Cecília Meireles. Mas apesar de sua da injustiça social, enquanto muito mais poemas
produção considerável nas primeiras três décadas descrevem uma sexualidade feminina liberada que,
do século 20, e apesar da atenção e elogios crí- não surpreendentemente, ganhou para ela um pú-
ticos que recebeu como poetisa, Gilka Machado blico substancial de leitores. Mas escrevendo sobre
está curiosamente ausente do panteão de escri- o amor erótico também se meteu em apuros com
tores modernos brasileiros. Embora não fosse a o testamento, alguns membros do qual publicaram
primeira pessoa a ser ignorada no processo da resenhas altamente negativas da sua poesia.
formação do cânone, a exclusão de Gilka Macha- O ensaísta João Ribeiro tentou desviar certas
do parece diretamente ligada ao conteúdo erótico críticas ao declarar que seus poemas não eram
de seus versos – um conteúdo que transgredia as “nem imorais nem amorais” e que seu conteúdo
regras literárias daquilo que era considerado bom erótico foi mais “sublimada e espiritualizada” e
gosto – sobretudo para uma escritora. “nada têm de ofensivos ao pudor” (278). Os co-
Para avaliar o lugar de Gilka Machado na litera- mentários de Ribeiro são interessantes a conside-
tura brasileira, é importante levar em conta que a rar ao lado daqueles de Agripino Grieco, crítico que
originalidade de sua poesia vem não só de suas observou que os sentimentos expressos em seus
representações do amor físico, mas também de versos não eram de jeito nenhum uma reflexão de
uma crítica feminista mais generalizada que resul- “sua vida modesta e altiva.” E ele acrescentou: “...
taram numa obra tão radical como a poesia anti- nunca ninguém a viu tomar a atitude de certas
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
madamas desabusadas - misto de sabichonas de observado antes, Gilka pagou caro por ter escrito
Molière e de `bas-bleus’ de 1830 – que pretendem sobre o amor erótico e a sexualidade da mulher
adotar as maneiras masculinas, virando fulanos de – assuntos considerados até muito recentemente
saias, usando gravata e monóculo, fumando pelos no Brasil e noutros lugares como de proveniência
botequins” (93). Numa defesa igualmente duvidosa dos homens. Ao mesmo tempo, sua criação dum
de sua obra, o crítico Humberto Campos atribuiu locus eroticus é consistente com o espírito radical
seu ardor poético a sua “mentalidade creoula.” E e anti-burguês do modernismo literário. Em outras
disse: “Ao ler-lhe as rimas cheirando ao pecado, palavras, Gilka Machado merece ser reconhecida
toda a gente supôs que estas subiam dos sub- como uma escritora inovadora e, como muitos de
terrâneos escuros de um temperamento, quando seus contemporâneos da geração da Semana de
elas, na realidade, provinham do alto das nuvens Arte Moderna, ela merece ser incluída no cânone.
de ouro de uma bizarra imaginação” (314). Campos
cita Henrique Pongetti, que escreveu num ensaio Foi o erudito e gramático Sérvio quem disse, ao
em 1930 que para aqueles que “lhe conhecem a ler os versos de Virgílio: “Amoena sunt loca solius
intimidade, [Gilka é] a mais virtuosa das mulheres e voluptatis plena,” ou seja, amenos são os lugares
a mais abnegada das mães (315). cheios só de prazer. Para Sérvio, a ideia de amoe-
O que estes comentários nos dizem é que os nus associava-se com um lugar específico – nesse
defensores de Gilka se sentiam tão pouco confor- caso, a natureza, com ênfase dada às árvores,
táveis com seu erotismo como seus críticos mais frondes, fontes, rios, água em geral, florestas e jar-
virulentos. Além disso, ao descrever seu erotismo dins. Pode-se encontrar sinais da noção da nature-
como espiritualizado - em vez de humano e car- za como lugar para prazer nos versos de Homero.
nal – Ribeiro ajudou a decidir-lhe para sempre o Mas foi as Bucólicas de Virgílio que transformaram
destino de ser classificada como simbolista. Mas a ideia do locus amoenus num topos literário, e foi
qualquer pessoa que leia Gilka Machado sabe que através de Virgílio que o conceito se disseminou
sua poesia erótica não é espiritualizada – a não pela Europa. Em Portugal, encontramos referências
68 ser que se considere a rapsódia sexual e o êxtase ao locus amoenus nas cantigas de amigo, com
orgásmico como estados místicos. O facto de ter suas fontes e regatos; o topos também aparece em
escrito sobre um erotismo feminino tornou-a voz várias outras obras, inclusive no anónimo Boosco
única na literatura brasileira na primeira parte do deleitoso, em Menina e Moça de Bernardim Ri-
século vinte. Esta é a razão por que ela foi excluída beiro, na poesia de Camões e na obra de Sá de
do cânone e por que agora ela é o foco de consi- Miranda, na qual se fala dum “prado ameno” que
derável análise feminista e revisionista.i inspira amor (Biblos 24-25).
Neste estudo, quero ir além dos comentários Na tradição do locus amoenus dos poetas
de Gilka Machado como poetisa erótica, e que clássicos e renascentistas, arcadistas do século 18
são na maior parte generalizados, para focalizar no Brasil escreveram versos aristocráticos sobre
a poesia em si e, mais especificamente, o papel lugares pastoris idílicos onde pastores-poetas
da natureza na sua obra. Paradoxalmente, o que falam com pastoras-musas bonitas, às vezes ten-
seus defensores como Ribeiro e Grieco não perce- tando convencê-las a aproveitar o momento (tema
beram foi o facto que Gilka estava re-elaborando do carpe diem). Em poema após de poema dessa
certas convenções clássicas ligadas ao poeta, ao época, vemos a ideia do agradável e do pastoril
amor e à natureza às quais se dá o nome de locus ligada ao amor. As odes de Ricardo Reis, o heteró-
amoenus” A poesia de Gilka oferece um conceito nimo de Fernando Pessoa, são bom exemplo duma
totalmente novo e original da natureza como locus variação contemporânea do locus amoenus. Mas
eroticus e estímulo para uma lírica anti-tradicional ao contrário dos arcadistas, Ricardo Reis nunca
na qual uma voz feminina descreve as emoções aproveita o momento, preferindo utilizar o ima-
e os atos associados com um amor físico desen- ginário lugar pastoril no sentido estrito para uma
freado. Ao contrário de outros autores modernis- contemplação estóica. Para os poetas românticos,
tas, Gilka Machado mostra-nos um diferente tipo a natureza já não era amena nem consoladora,
de natureza - uma natureza mais pagã e animista mas sim escura, sombria e às vezes assustadora.
cujas implicações são freudianas em vez de espi- A natureza ainda é um lugar real, mas funcionou
rituais - e é isso que a distingue dos simbolistas. também como um espelho para as emoções an-
Na poesia de Gilka, a natureza não só representa gustiadas do poeta. Esse retrato da natureza mais
uma sexualidade feminina liberada, mas também dramático e subjetivizado tornou-se comum na
representa às vezes o amante-objeto. Como foi poesia do século 19, e a natureza tornou-se conhe-
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
cida como o locus horrendus ou locus terribilus. na sua condição “nua / completamente exposta a
Gilka Machado reúne as ideias de prazer e amor Volúpia do Vento!” (164). O que é interessante é que
associadas com o locus amoenus clássico e a a poetisa dirige-se a um amante neste poema. Mas
subjetividade dramática associada com o locus é à natureza que ela se dá mais livremente e da
horrendus para criar o locus eroticus. Como os qual ela experimenta o “gozo violento” que diz que
românticos, ela é atraída para a natureza como um o amante não consegue entender – um gozo que
lugar distante das vicissitudes do mundo moderno está diretamente associado com a natureza (“este
– mas com a importante diferença que não é ao tu- ermo”) como o locus eroticus.
multo da vida urbana que ela quer escapar, senão Num poema do volume O meu glorioso peca-
ao “jugo atroz dos homens e da ronda / da velha do, a imagem da árvore torna-se o meio pelo qual
Sociedade (Poesias completas 24). Note-se que os Gilka descreve o êxtase do orgasmo feminino:
mesmo críticos que deploraram suas descrições “Beijas-me e todo o corpo meu gorjeia, / e toda me
do amor físico nunca comentaram sua denúncia suponho uma árvore alta, / cantando aos céus, de
aqui e alhures da sociedade, dos homens e do es- passarinhos cheia. . .” (297). Note-se que enquanto
tamento. Na opinião dos críticos de Gilka, escrever um beijo do amante é o estímulo para o prazer, a
sobre o desejo erótico – mesmo quando este está natureza outra vez serve como metáfora do êxta-
encoberto numa linguagem sobre a natureza – é se sexual. Noutro poema do volume Estados de
muito mais transgressivo que escrevendo um poe- alma, a sensualidade da poetisa é despertada pela
ma como “Alerta, miseráveis” que explicitamente “pubescente poma” dum pessegueiro. O poema é
denuncia a injustiça social ao referir-se àqueles uma exploração táctil da fruta cujos contornos sua-
“que sempre tudo nos roubaram / que planejam ves e carnais excitam a poetisa. Ela fica resoluta a
agora / um roubo mais/ audaz: / querem ainda esta não prejudicá-la; “saborei[a]-a num beijo, evitando
migalha que nos resta, / a independência de morrer ressabio” ao mesmo tempo que ela oscula o “lábio
de fome / em paz (391). morno” do amante. Acordada sexualmente pelos
Ao mesmo tempo, seu retrato da natureza, lábios, ela acaricia a fruta e experimenta um “pra-
zer insensato” cujo erotismo torna-se até mais forte 69
que inclui “prados ondulados pelo vento,” “mares
molemente espreguiçados,” “praias espalmos” e pela repetição do verbo “comer.” Este poema é um
árvores dançando,” é uma celebração dos prazeres “tour de force” de sinestesia. Ao contrário da maio-
físicos que encorajam a poetisa a “cantar, vibrar e ria dos poetas simbolistas que mistura os sentidos
gozar” (24-25). Na natureza, e já não debaixo do para evocar mundos além do reino físico, Gilka
“jugo da Sociedade,” Gilka imagina-se a si mes- emprega a sinestesia para retratar um momento
ma como “qual desenfreado potro [a correr] ,/ intensamente erótico derivado do desejo feminino
por estes campos / escampos” (25). O desejo e a sexual – um desejo explicitamente nascido de e
necessidade de uma liberdade (sexual) total e seu ligado ao mundo natural que a rodeia.
reconhecimento que a liberdade de qualquer tipo Uma das representações mais dramáticas do
ainda está fora de seu alcance, faz com que ela locus eroticus aparece no poema intitulado “Ena-
olhe os aspetos mais humildes da natureza como moradas”– uma composição em verso livre que se
desejáveis para sua condição como mulher: “Ai! encontra no volume com o título freudiano, Su-
Antes pedra ser, inseto, verme ou planta, / do que blimação (1938). Na primeira estrofe, a natureza é
existir trazendo a forma de mulher” (26). descrita em termos do amante que a chama com
O locos eroticus de Gilka Machado é povoado “seus múltiplos lábios de corola” (318). A natureza
de árvores altas e sensuais que balançam, rosas aqui é fresca e cheirosa, e seus sons embriagam-
vermelhas cuja “aroma excita, enleva e estua” -na e penetram-na. O aspeto primevo da natureza
(34), e “rios, espreguiçados à sesta, [como] / u[ns] é que atrai a poetisa e, ao mesmo tempo, sua
sátiro[s], com o corpo encurvado, a lamber / o ven- “atração irresistível das origens” cria dentro dela
tre virginal e verde da floresta” (67). As árvores tem uma certa ansiedade. Sua trepidação vem da idéia
papel proeminente em sua poesia. Elas dançam, de entrar num estado de abandono absoluto ou o
gesticulam lentamente, e transmitem seus pólens “desagregamento dos átomos” pelo qual seu ser
de uma a outra num abraço fecundo. Uma das fica totalmente superado pelas forças da natureza:
imagens mais sensuais da poetisa eu-lírico aparece “sinto que o azul me absorve, / que a água tem
no volume Estados de alma (1917), onde ela se tor- sede de mim, / que a terra de mim tem fome, / e
na “árvore a oscilar,” e cujos “cabelos são franças.” pairo, ectoplásmica, desfeita / em ar / em água,
Como uma árvore, ela se deleita no vento “ora em pó, / misturada com as coisas / integrada no
lagoroso, ora forte, medonho”, e ela está estática infinito” (318). Gilka é uma poetisa da natureza, ao
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
mesmo tempo sua identificação com a natureza vestes assim?” transmite o desconforto e conde-
é reciproca e absoluta: “cantas nos meus versos; nação que ela frequentemente experimentou como
/ vegeto nos teus cernes; / vôo com os pássaros, uma poetisa que foi determinada a escrever sobre
/ respira-lo com os perfumes / marejo com as sua sexualidade. O facto que tenha escrito sobre
ondas, / medito com as montanhas / e espojo- um assunto proibido enquanto ainda era jovem
-me com as bestas” (319). Aqui a natureza é o “tu” e continuou a escrever apesar da reprovação de
que sabe “os caminhos secretos de [s]ua alma,” alguns críticos fez com que ganhasse apoio das
e quem, segundo ela, é o único ser que a possui críticas feministas. Mas Gilka também merece ser
completamente. Na estrofe final do poema, há uma reconhecida como uma poetisa importante cuja
sugestão não muito sutil que o que a poetisa está sensibilidade lírica e talento linguístico eram apa-
experimentando nesses “imortais momentos / em rentes mesmo àqueles críticos que “mantinham
que confund[em] os seres, / em que rola[m] pelo in- sua distância.” Pelo uso altamente imaginativo da
finito” (318) não é só os prazeres do abandono se- natureza como o locus eroticus, ela abriu a porta
xual mas também uma paixão que só as mulheres ao tema do desejo sexual feminino. Até hoje, os
enamoradas podem sentir. Assim como a poetisa é seus poemas são ímpares no seu tratamento pode-
transformada por e torna-se a verdadeira essência roso e delicado desse assunto.
da natureza, à natureza, nas linhas finais, é dada Notas
uma recíproca forma humana como “fêmea ena- .Vejam-se, por exemplo, os estudos de Cristina
morada.” O poema termina com as duas fêmeas Ferreira-Pinto e Sylvia Paixão.
“loucas de liberdade” “num longo enleio” (319).
É difícil determinar se Gilka Machado descreve
um amor lésbico em “Enamoradas,” mas o poema Referências Bobliográficas
está aberto a esta possibilidade. Em outro poema Biblos: Enciclopédia Verbo das literaturas de lín-
do mesmo volume, intitulado “Na festa da beleza,” gua Portuguesa. Vol 3. São Paulo e Lisboa: Editorial
algo semelhante é sugerido. A natureza é retratada Verbo, 1999..
70 tanto como lugar para os sentimentos e emoções Campos, Humberto de. Crítica: Segunda Série.
da poetisa quanto como um ser que está enamora- Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1935.
da da poetisa e que se identifica com sua nudez e Ferreira-Pinto, Cristina. “A mulher e o cânone
sensibilidade. O que é distinto neste poema é que poético brasileiro: Uma releitura de Gilka Machado.
o Homem (com letra maiúscula) também aparece. http://www.iacd.oas.org
Mas ele só aparece no fim do poema, onde é des- Grieco, Agripino. Evolução da poesia brasileira.
crito como ser receoso que mantem sua distância. 3a ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Edito-
Ou como diz no poema “...o Homem, / receoso de ra, 1947.
se defrontar, / fugindo à projeção de si mesmo / na
Machado, Gilka. Poesias completas. Rio de Ja-
objetiva / da minha frase / passou ao largo...” (323).
neiro: Léo Chriatiano Editorial, Ltda. 1992.
Enquanto ela experimenta a liberdade e êxtase na
natureza, o Homem passa “incrédulo e...descon- Paixão Sylvia. “A fala de Eros.” A Fala-A-Menos.
fiado” da “carne de [s]eu espírito” e do “desatavio Rio de Janeiro: Numen Editora, 1991. 121-165.
de [s]eu verso” (323). O poema termina com uma —. “`A sombra de Eros.” Anais do IV seminário
pergunta feita pelo Homem: “`Por que te vestes nacional mulher e literatura. Org. Lúcia Helena
assim?’” (323). Vianna. Niterói: ABRALIC, 1992. 115-128.
Nesse poema, Gilka oferece uma visão positiva Ribeiro, João. Crítica. Vol. II. Poetas. Parnasianis-
e libertadora duma mulher que rejeita ser como a mo e simbolismo. Rio de Janeiro: Edição da Acade-
sociedade, ou o Homem, quaisquer que eles se- mia Brasileira de Letras, 1957.
jam. A natureza é a desejada e desejável alternativa
a uma vida de constrangimentos físicos – os quais
são metaforicamente descritos no poema como
indumentárias que ela experimenta e rejeita; e sua
nudez e encanto no locus eroticus confundem e
desafiam o patriarcado que, distanciado, olha-a e a
julga. “Na festa da beleza” pode ser lido como uma
obra meta-poética sobre o medo, desconfiança
e incredulidade que outros (homens) exprimiram
sobre seus poemas eróticos. A linha “Por que te
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Literatura, Imprensa
e representações da vida
social portuguesa
Elisabeth Battista
Universidade do Estado de Mato Grosso -UNEMAT/CAPES, Brasil
Literatura, Imprensa e representações da vida Deste modo, afim de pensar como a prática
social portuguesa intelectual de Maria Archer, no segundo quartel do
Os documentos que fornecem um testemunho século XX, elabora, recorta, e põe em circulação
da gênese da obra e vida da autora portuguesa dadas ideias, fazendo funcionar uma espécie de
Maria Archer registram que a atuação literária corre (re) visão de conceitos, imprimindo novos olhares
paralela ao jornalismo. Nosso interesse em investi- para os modos de ser e de viver, nas relações entre
gar aspectos relacionados à escrita jornalística de cultura e vida social nos países de Língua Portu-
autoria feminina é motivada pela constatação de guesa. Assim, o estudo do recorte ficcional de Eu
que a produção intelectual da autora portuguesa e Elas – Apontamentos de Romancista (1945), pu-
laborada para os periódicos de Língua Portugue- blicado pela da Editora Aviz, selecionado para esta
sa, constitui-se exemplar positivo de uma relação comunicação busca a identificação de aspectos da
íntima entre a experiência literária e o jornalismo. vida social encenados na representação literária e
Como observa Arrigucci Jr. (1987), trata-se de tex- cultural, sob o olhar de Maria Archer.
tos escritos de forma despretenciosa no sentido de A autora nasceu no limiar do século XX (1899) e
permanecerem no tempo, uma vez que a palavra viveu parte de sua vida entre Portugal, a África e o
deriva do vocábulo grego crhonus, marcando sua Brasil, tendo legado expressivo contributo literário
relação provisória com os leitores e temporal ao dedicado ao temas da África, da condição feminina
relatar os eventos da vida social cotidiana. e de resistência ao regime político ao tempo do
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
Estado Novo. que arde cura”. “Não é preciso ser bom, basta
Em seu Intróito1 a autora informa que trata-se de ser justo...” Isto foi Platão quem me ensinou e
“apontamentos de romancista, caderno secreto e eu queria aprendê-lo, com êle, e em relação
pungente onde retirou anotações leves – de sáti- aos outros e a mim. Castigai ridendo mores...
ra amena, de entretenimento, de humorismo, de Possa eu também receber, como único casti-
crítica” – os textos que compõe a coletânea tinham go, aquêle que dou!”
sido publicadas semanalmente, a partir de 1942,
no periódico lisboeta “Acção”. A recolha, confor-
Um olhar, ainda que superficial à representação
me a autora, é composta por crônicas de quadros
estética de passagens do cotidiano que ganham
vividos e, os seus títulos, bem como as respectivas
materialidade linguística no gênero popular, cons-
datas de publicações, foram mantidos conforme a
tataremos que elas estão perto do dia a dia, pro-
sua difusão no semanário.
movendo uma quebra com o monumental, com o
Um olhar sobre a temática deste livro, estrutu- esperado, conferindo perenidade ao fugaz, a even-
rado em cinquenta e duas narrativas, verifica-se, tos aparentemente banais do cotidiano. Ou seja,
com espanto, a apresentação de textos, que à ao invés de investir em assuntos de impacto, em
priori não tinham sido feitos para durar, uma vez cenários exuberantes, seus textos pegam o miúdo,
que elas são filhas do jornal – publicação efêmera mostram nele a grandeza que não suspeitávamos e
que se compra num dia, e se descarta no outro – , ajudam-nos a restabelecer a dimensão das coisas
e da era da velocidade tecnológica da máquina de e das pessoas e, inusitadamente, nos levam a pen-
escrever. Ao passá-las do jornal para o livro veri- sar em consequência disto.
ficamos que a sua durabilidade será maior do que
A coletânea fornece um rico repertório te-
se pensava. É o caso da coletânea de narrativas
mático. Faremos neta reflexão um referência a um
Eu e Elas – Apontamentos de Romancista (1945),
recorte exemplar: A casa da volframista, publicada
no qual verifica-se o registro literário de cenas da
inicialmente na imprensa portuguesa. A narrativa
vida cotidiana num dos gêneros mais populares – a
72 apareceu no semanário Acção de Lisboa, em 18
crônica. A partir da vivência pessoal, a produtora
de novembro de 1943. Posteriormente a crônica
textual descortinou o panorama da vida íntima e
circulou no Jornal brasileiro O Estado de São Paulo
social.
– OESP, no dia 21 de setembro de 1956.
O Intróito – termo usado na apresentação pela
autora – anuncia o cariz humoristico da coletânea :
Na aldeia onde passei o último outono falava-
-se, com sincero e deslumbrado espanto, no velho
Nenhuma imaginação nestas páginas. Rela- solarengo que os volframistas tinham comprado e
tos fotográficos de casos acontecidos e de feito restaurar de ponta a ponta. Restauro rico, de
que tive conhecimento directo. Fui buscá-las apainelados, de paredes pintadas a “fresco”, de
à l’humble verité, como me ensinou Maupas- douraduras em portas e alisares. A mobília causava
sant. Se falo também de mim, como me ensi- pasmo que nunca vi. E era o professor, e o padre,
nou Montaigne, é apenas porque cada um de e o funcionário dos correios, e o homem da mer-
nós traz em si o mesmo paradigma da huma- cearia, enfim, tôda a gente a falar-me no palácio,
nidade. A lente satírica com que fitei os outros dos salões doirados, nos tapêtes do chão e nas
também se virou para quem a tinha na mão. tapeçarias murais, nos cetins dos estofos e cortina-
O meu trabalho neste livro foi quase o de um dos, nos quadros de Santos e Reis, “como há nos
artista plástico. Moldei a obra sobre o modelo museus”.
vivo. Colori-o com o humor dos meus dias –
hoje alegre, amanhã triste, ontem saudoso, de
A escrita para os jornais, como se sabe, tem
quando em quando mordaz, nunca cruel. (…)
um público específico e pressupõe a presença do
Creio, porém, que há-de haver quem as leia
leitor como a figura que percebe, em sua cons-
e sofra na sua sensibilidade. Nem todos os
ciência, a essência da criação literária. Assim, se
meus modelos gostarão de se ver reproduzi-
por um lado temos a autora no polo da produção,
dos no quadro. Isso faz-me pena, mas não me
por outro temos o público leitor que se encontra no
causa remorsos. A cópia é fiel. Se os modelos
polo da recepção. O recorte ficcional, na instância
se arrepiam da própria contemplação, a culpa
da produção, evidencia o olhar atento da narradora
não me pertence. O povo me ensinou que “o
na captação de pormenores e não deixa escapar
1 Termo da autora no prefácio na pág. 7, de Eu e Elas – Apontamentos de nenhum detalhe ao passear pelas vastidão do pa-
Romancista (1945).
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
lácio restaurado para causar impacto no conjunto despertasse em mim o desejo de conhecer o con-
arquitetônico local e impressionar. junto da produção criativa da autora e saber mais
O exibicionismo dos seus novos proprietários sobre a sua biografia.
serão alvo de ironia. Isto se dá após a narradora E tendo o meu Projeto de Doutoramento a fina-
constatar, ao levantar discretamente a colcha da lidade de contribuir para o estudo de autores da
cama do quarto, onde a volframista apresenta literatura de Língua Portuguesa a partir do século
como seus aposentos pessoais, depois de ter XX ainda pouco explorados nas relações literárias
afirmado ainda, que cultivava o hábito de rezar de Brasil, Portugal e África, a obra de Maria Archer
antes de dormir, diante do quadro legítimo do fa- logo me pareceu ser um corpus em potencial.
moso pintor Rubens. A narradora revela que abaixo Foi assim que ao ter elegido como objetivo dar
da colcha, sem os lençóis, há apenas um colchão visibilidade à diversidade cultural gerada por essas
de palha vulgar e grosseiro, ou seja, um simulacro. relações, me lancei na busca de documentos que
O fato evidencia que os anfitriões-proprietários afir- fornecessem um testemunho da gênese da obra e
mavam categoricamente algo que não se confirma, da vida de Maria Archer, inclusive visitando alfar-
ou seja, uma inverdade. rabistas e adquirindo todos os títulos disponíveis.
A veia irônica e a originalidade que perpassam a Nessas andanças conheci a escritora Maria Alber-
tessitura da escrita; da memória; do feminino e sua tina Mitelo. À medida que sobre os materiais me
relação com a imagem desencantada do outro são debruçava, deparei-me com um fato curioso que
aspectos que darão a tônica da coletânea. corroborou ainda mais a minha reflexão: O fato de
Centrada no universo da literatura de língua tendo ela nascido no limiar do século XX, e tendo
portuguesa e lançada em 1945, a coletânea Eu e contatado direta ou indiretamente com as corren-
Elas de Maria Archer, constitui-se emblema signi- tes de pensamento que influenciaram, ou afetaram
ficativo enquanto registro literário da vida social. É de forma intensa o ambiente político-cultural por-
assim que posso dizer que com Maria Archer gasto tuguês até meados dos anos cinquenta do século
horas de trabalho e de lazer ficando-me sempre a passado, e ser, não obstante, pouco estudada
73
impressão de haver passado momentos em boa pela historiografia literária da Literatura Portuguesa.
companhia. Conheci Maria Archer na travessia para Buscando entre os lusitanos notícias sobre a
a outra margem do Atlântico. Sim, depois que li Ela autora e sua obra, contatei a amiga e poetisa Maria
é Apenas Mulher (1944), no contato com Esmeral- Albertina Mitelo3, a qual se referiu a uma recen-
da, personagem principal do referido romance, foi te entrevista do Professor Fernando de Pádua4 à
encanto à primeira leitura. Naquela oportunidade, televisão portuguesa, em que ele, na ocasião teria
debrucei-me à janela e fitei, junto com ela, o ma- nomeado a escritora Maria Archer como sua tia,
jestoso Tejo, no seu desembarque em Cacilhas, e dava a conhecer a última reedição da obra Ela é
frente à Lisboa. Apenas Mulher.
Quando isto se deu? Parece que foi ontem, mas De fato, o dado fornecido pela Maria Alberti-
remonta a 2003, o tempo em que a Universidade na Mitelo foi fundamental para que eu acessasse
de Coimbra sediou um evento internacional, no um outro estágio da investigação. Isto porque, ao
qual, em companhia de uma equipe de investiga- tomar conhecimento dos objetivos que o mesmo
dores do Brasil, participei com apresentação de perseguia, o Professor Fernando de Pádua, com
trabalhos. O grupo2 de estudiosos da Universida- a generosidade que lhe é peculiar, acolheu-me
de de São Paulo – USP, dentre os quais a minha muito prontamente e concedeu uma entrevista,
orientadora do Doutorado, a Professora. Doutora. colocando-me em contato com pessoas simpati-
Benilde Justo Lacorte Caniato (in memorian), e a zantes à causa. Na oportunidade, citou existência
Professora. Doutora. Tania Macêdo, tomou parte da Dissertação de Mestrado5 da Professora Dina
ativa no evento que congraçou investigadores de
3 Maria Albertina Mitelo é autora de quatro obras de poemas: Entre Pássaros
diversas áreas e vários países, visto se tratar de
e o Mar (2002), O Corpo das Aves (2004), Uma Leve Matéria (2007) e Maté-
um Congresso Internacional Luso Afro Brasileiro de ria Brevíssima (2009). Edições Afrontamento.
Ciências Sociais. 4 Professor Doutor Fernando Manuel Archer Moreira Paraíso de Pádua,
Entretanto, de passagem por Lisboa, a Profes- Fundador da Fundação Professor Fernando de Pádua e do Instituto Nacional
de Cardiologia Preventiva – INCP. Autor de O Livro do Coração, (2008) e
sora Benilde Caniato adquiriu a obra Ela é Apenas Conversas no Meu Consultório (2011).
Mulher, de Maria Archer, reeditada em 2001 pela 5 BOTELHO, Dina Maria dos Santos. “Ela é Apenas Mulher” Maria Archer
Editora Parceria A. M. Pereira, e recomendou-me a Obra e Autora. Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-portugueses,
sua leitura. Esta foi motivação suficiente para que apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, sob a orientação da Professora. Dra. Maria Leonor Carvalhão
2 de Estudos de Culturas e Literaturas de Língua Portuguesa – CELP Buescu. Lisboa, 1994, 182p.
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
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74
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Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
‘Afinidades eletivas’:
uma análise de duas poesias
de Yolanda Morazzo
Maria da Graça Gomes de Pina
Maria da Graça Gomes de Pina
Em 1961, Jaime de Figueiredo trazia a lume uma Estas qualidades devem ter sido logo notadas
meticulosa seleção e apresentação antológica pelos seus conterrâneos e contemporâneos poe-
dedicada aos Modernos poetas cabo-verdianos. tas que a acolheram na antologia supracitada. Em
Essa antologia, sob a veste de uma edição que co- boa verdade, as poesias de Yolanda Morazzo que
memorava o Meio Milénio do achamento das ilhas pretendo analisar são fruto de uma longa conversa
de Cabo Verde, causava maravilha pela presença da poetisa com a realidade que a circundava, de
de um nome. É que ao consultar o índice geral se onde se deduzem o seu feitio questionador e a sua
notava que dos 20 poetas que haviam contribuído curiosidade dialética.
para a realização do volume apenas um era do Yolanda Morazzo nasce e cresce num ambiente
sexo feminino: Yolanda Morazzo. Tal nome não favorável à sementeira do gosto pela leitura e pelo
pôde deixar de provocar uma espécie de descon- saber. Neta do já consagrado poeta caboverdia-
forto, pois me levou a questionar se a sua inserção no José Lopes, é desde logo nutrida pelo néctar
fosse devida a um ato de pura cortesia, ou se a da poesia, manifestando a sua veia lírica ainda na
uma autêntica demonstração de apreço pela quali- juventude A sua passagem por Lisboa, a transfe-
dade da sua poesia. Espero poder demonstrar aqui rência para Angola, unidas à privação com algumas
ter sido a segunda das duas hipóteses menciona- das intelectualidades mais marcantes da época,
das a ter vingado. moldar-lhe-ão ulteriormente o carácter e enrobus-
Segundo testemunho de Elsa Rodrigues dos tecer-lhe-ão a veia poética.
Santos (2006: xi), que é também a prefaciadora Quando digo que Lisboa e Angola ‘moldam’ de
do volume que contém toda a obra poética da certa forma a natureza psicológica da poetisa, não
autora caboverdiana, Yolanda Morazzo era uma estou a afirmar que esses dois espaços geográ-
«conversadora nata, com uma cultura vasta, leitora ficos, tão contrastantes quanto distantes um do
compulsiva e atenta [...], detendo-se nas literaturas outro, funcionem como vasos por onde vazou a
africanas, em especial na cabo-verdiana e angola- personalidade de Morazzo. A sua personalidade
na [...]». está longe de poder ser comparada com um sim-
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
a ambas, como estimulava nelas igual desejo de gular os soluços na garganta» (1a estrofe, versos
dissecação poética. Existem alguns versos-espias 3-5). Este último verso mostra perfeitamente que os
que no-lo indicam. O principal e mais evidente é «rapazes», em vez de chorarem pelo que não con-
dado pelo que cadenceia e ritma temporalmente seguem entender ou por aquilo contra o qual não
toda a ação: «É tempo». Morazzo e Lara exortam à sabem combater, deveriam dar o grande passo em
autodeterminação do próximo, à tomada de cons- direção à maturidade. A consciência desse ato de
ciência do indivíduo, pois é chegada a hora: «É maioridade tem como efeito imediato a constata-
tempo». ção à maneira de Galileu de que o mundo se move
Alda Lara abre a sua poesia já na primeira estro- (1a estrofe, verso 6), isto é, de que nada é estático:
fe com o verso «É tempo companheiro». Em segui- o mundo não está fossilizado na forma granítica em
da descreve o instante revolucionário que se avizi- que fomos habituados e/ou obrigados a conhecê-
nha e se consolidará, intermediando-o novamente -lo/vê-lo. Em suma, é mester verificar que existe a
com o verso «É tempo...» (2a estrofe, verso 7), vida e que ela é pujante, ela é a força da juventude:
para terminar a sua exortação poética na terceira «A vida é mais do que um cântico / A vida é uma
estrofe com «E é tempo companheiro! / Caminhe- certeza» (1a estrofe, versos 8-9). Essa consciência
mos...». Estes três passos dados com igual passo/ madura é o que torna os «rapazes» «Amigos». E
peso numérico, distribuindo de forma trinitária o superior ao «rapaz», a quem Morazzo primeiramen-
percurso que o destinatário companheiro-irmão- te se dirige, é o «Amigo».
-companheiro deve seguir, podem ser encontrados Mas um «Amigo» revela-se também um «Ca-
de forma subsumida em dois versos de Yolanda marada», pois é este quem arregaça as mangas
Morazzo: «É tempo de aniquilar os enigmas» (1a («Tirem as mãos dos bolsos»: 3a estrofe, verso 2)
estrofe, verso 3), «É tempo de começar» (3a estro- e se dispõe a agir segundo a sua consciência, em
fe, verso 4). Morazzo, ao contrário da trindade de uníssono com as de quem considera «Amigos».
momentos temporais aplicada por Alda Lara, prefe- E enquanto que os ‘rapazes-Amigos’ usavam as
re ritmar a ação por meio de dois tempos apenas, pás e as picaretas para abater o muro do ontem e
em que se une o princípio com o fim, e vice-versa. construir as escadas para o amanhã, os ‘Camara- 77
Em primeiro lugar, a meu ver, para Yolanda Mora- das’ usarão as foices e o arado (3a estrofe, verso
zzo é preciso não começar do princípio, segundo 7) para alcançar esse objetivo, tornando-se assim
e seguindo o ponto de vista criacionista, como se ‘Irmãos’, pois um mesmo destino e finalidade os
nada existisse antes; é antes necessário ‘aniqui- une.
lar’, isto é, destruir o que se apresenta hoje como Como se vê, embora com termos diferentes
caótico, eliminar o cancro que corrói o que deveria mas afins, Yolanda Morazzo e Alda Lara sentem
ser todo igual em cada parte de si mesmo, destruir o mesmo desejo e intuem a mesma necessidade.
aquele enigma que não justifica nenhuma ação de Ambas leem no horizonte da realidade a obrigação
supremacia sobre o próximo. Só depois se poderá de intervir e ambas, por um ato de generosidade
dar início ao começo, e nesse princípio o destinatá- poética, transcrevem para o papel a mensagem
rio é primeiro rapaz, em seguida Amigo, Camarada, que leram nesse horizonte.
por fim, Irmão. Alda Lara, além de chamar a nossa atenção para
Ao intercalar os termos «rapazes» (1a estrofe, o tempo, alerta-nos também para o fator ‘terra’. «É
verso 1; 2a estrofe, verso 1) com «Amigos» (1a es- tempo», sim, mas é tempo de responder ao cha-
trofe, verso 6; 3a estrofe, verso 1), Yolanda Morazzo mamento da Terra: «Longe, a terra chama por nós»
constrói um percurso em crescendo, onde se vai (5a estrofe, verso 1); «É a terra que nos chama» (3a
dando espaço progressiva e simultaneamente ao estrofe, verso 4). Alda Lara usa esse conceito qua-
crescimento pessoal. Contudo, a meu ver, a poeti- tro vezes ao longo da poesia e sempre ligando-o
sa pauta esse crescendo por meio da diminuição ao fator tempo (cf., por exemplo, 3a estrofe, versos
gradual da distância que separa os indivíduos, ob- 4-5). Também Yolanda Morazzo une o fator tempo
tendo com isso que eles se reconheçam como se- à terra, e ainda que este vocábulo só ocorra uma
melhantes, embora conscientes da própria e inalie- vez (5a estrofe, verso 1), encontra-se presente em
nável diversidade. O crescendo é facilmente intuído toda a poesia. São suas testemunhas o facto de
pelo dosear dos termos. Aos «rapazes» a poetisa aparecerem ligados a ele todos os utensílios agrí-
mostra a vacuidade e a ilusão daquilo que poderia colas que servem para revolver a terra e prepará-la
parecer um problema sem solução, precisamente para a sementeira, isto é, os utensílios típicos da
um mistério ou um enigma. Portanto, é preciso «[...] lavoura.
aniquilar os enigmas / Todos os enigmas / E estran- Tempo e espaço são, pois, o elo de cumplici-
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
ao primeiro. É que antes de ser poetisa, Yolanda esta relação de diversos que por vezes se demons-
Morazzo se vê e se sente claramente como mulher. tram opostos – tão ao gosto poético de Yolanda
O seu elogio ao género feminino representa, por Morazzo – revela precisamente aquilo que para
assim dizer, o desfecho do mito de Pandora. Se ela representam a mulher e/ou a poesia, a saber,
esta figura mitológica conseguira guardar apenas declaração de liberdade máxima do ser humano,
a esperança dentro da caixa, após ter deixado eco que emite as diferenças de género mas que
fugir todos os males do mundo, Yolanda Morazzo todavia nesse ecoar faz com que estas se atenuem
empreende uma viagem ao contrário para resgatar para originar uma simbiose perfeita a partir de con-
a esperança, que é ao mesmo tempo o único meio trários. Por essa razão também, se afirma no verso
de salvação desses males. Quer isto dizer que na 7 da 8a estrofe que ela é «eterna geratriz». E aqui
sua caça ao tesouro, a poetisa encontrará a mulher regressa novamente a figura da maternidade como
e, porventura a si mesma, como prémio. Mas o que aspeto específico da mulher e da poesia. Am-
é a ‘mulher’? bas dão à luz, fazem vir ao mundo o embrião que
Yolanda Morazzo di-lo logo no seu mote: «A trouxeram no seu corpo. Por elas e através delas
poesia é uma mulher / a liberdade é uma mulher / se dá espaço ao novo, se cortam «[...] os rochedos
chama / liberdade / flor / ilha». Não por acaso ela das nuvens» (5a estrofe, verso 1), ou seja, coloca-
simboliza a “mulher” por meio de vocábulos cujo -se no mundo outro ser que fará o seu caminho
género é feminino, facto que Morazzo afirma de nele e que poderá tornar-se para outros um bálsa-
maneira explícita já no penúltimo verso do mote. mo. Da mesma forma o produto da poesia, isto é,
a composição lírica, funciona como um bálsamo
Portanto, aqui mulher e poesia confundem-se
para os males de quem vive privado dela. A mulher
e misturam-se intensa e intencionalmente. Ambas
enquanto poesia é, conforme o segundo refrão, um
possuem o mesmo género quanto à morfologia,
«guia farol / luzindo no mar do canal». Ela simboliza
ambas são uma forma de expressão de liberda-
o ponto fixo e iluminado que permite a navegação
de do ser, ambas incendeiam ou apelam para a
segura em mares tempestuosos que tantas vezes
nossa razão de viver, ambas fazem desabrochar os 81
se encrespam na vida do ser humano.
sonhos na primavera da vida, ambas são a porção
de terra que, circundada por mar (elemento mascu- A mulher-poesia é, portanto, amiga-irmã-com-
lino), oferecem refúgio e porto de abrigo. panheira-mãe, e cada um destes papéis corres-
ponderá ao tipo de relação que pretendermos ou
O mote ou proémio à poesia Mulher pode ser
escolhermos estabelecer com ela.
lido também como epílogo, pois encerra a rota
de desconstrução do ‘objeto’ feminino. Mas é O encómio de Yolanda Morazzo à mulher deixa-
na própria poesia que encontramos desenhada -nos assim uma «Porta aberta para o mundo /
a cartografia dessa desconstrução construtiva. esculpida no Centro da Muralha» (9a estrofe),
As primeiras três estrofes representam as etapas querendo com isto dizer que somos nós, cada um
desse procedimento poético e cada uma delas é de nós individualmente, a dever entrar pela porta
cadenciada por refrões diferentes que condensam que nos leva ao mundo ao qual queremos aceder.
as características da mulher explicitadas em cada E nesse atravessamento, cada um de nós escolhe
bloco. Na primeira estrofe a mulher é convidada ser levado por uma determinada mão, ou seja, pela
a sair à rua, a tomar a palavra, gritando liberdade, mão pertencente à nossa interpretação da poesia.
para poder, segundo o preceito do médico grego
Alcméon, unir o fim com o princípio, a manhã com Referências Bibliográficas
a noite: «cantando na madrugada / com passos fei- Ativa:
tos de lua» (versos 3-4). Na posse plena da liberda-
Morazzo Yolanda (2006). Poesia completa 1954-
de que lhe pertence por direito e que não lhe deve
2004. Prefácio de Elsa Rodrigues dos Santos.
ser oferecida como se se quisesse tirar um peso
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
da consciência (veja-se o verso 2 da 5a estrofe:
«Rasga a carta de alforria»), vejo os argumentos Lara Alda (1979). Poesia. Luanda: União dos
fortes de Alda Espírito Santo em Luares de África Escritores angolanos.
(1996), onde a autora santomense defende a tese Lara Alda (20052). Obra completa i Poemas.
da emancipação da mulher africana como primeiro Notas biográficas e Introdução de Orlando de Albu-
passo para a emancipação do continente. querque. Braga: APPACDM.
Logo, a mulher-poesia contém em si a diver-
sidade do mundo, por isso Yolanda Morazzo diz Passiva
«repercutindo mil vozes» (1a estrofe, verso 7), pois Campos Sandra (2006). «Mulheres na diáspora
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
O apoderamento da cidadania
por meio da leitura: vinte e cinco
projetos brasilienses voltados para
essa busca
Dinorá Couto Cançado
Biblioteca Braille Dorina Nowill - DF (brasil)
O Fórum “Brasília, capital das leituras” tornou-se compreende todos os direitos de uma só vez: os
um encontro especial de celebração entre atores fundamentais, os políticos, os civis, os sociais, os
sociais multiplicadores de leituras, responsáveis econômicos, os culturais, os ambientais [...]” (MA-
por 25 (vinte e cinco) ações coletivas, já mapeadas TOS, 2009, p. 24). Portanto, há toda uma prepara-
em Brasília. De acordo com Aguiar (2002, p. 120), ção para que o indivíduo se sinta imbuído de seus
“o potencial criativo é inerente ao ser humano; na direitos e deveres e possa exercê-los em toda sua
maior parte das vezes, o que se precisa é ofere- abrangência. Com educação de qualidade, pode-
cer oportunidades”. A oferta de espaços, no caso -se alcançar esse desejado estágio de formação,
desse Fórum, é a oportunidade fundamental para a já que “[...] de nada adianta ser titular de liberdade
inclusão. de expressão se não se possui a educação mínima
A pesquisa citada refere-se a três edições do para a manifestação crítica das próprias ideias”
Fórum (até 2009) e tem como foco: quais projetos (MATOS, 2009, p. 24).
foram divulgados; o desempenho dos mesmos; o Segundo Blattmann & Viapiana (2005, p. 2):
perfil dos executores e dos participantes; o acolhi- “As ações leitoras precisam acontecer em espa-
mento aos projetos; os resultados de cada Fórum; ços educacionais, desde o ambiente familiar aos
o alcance das ações desenvolvidas e a verdade ambientes de ensino fundamental e também no en-
sobre o apoderamento do hábito de ler, por parte sino profissionalizante, indiferente se para crianças,
dos participantes. A consciência da importância do jovens, adultos e idosos”. A leitura “[...] é a mola
evento instigou a buscar respostas para a pergun- propulsora na libertação do pensamento e possi-
ta-problema: projetos sociais vivenciados por meio bilita desencadear reflexões e desenvolver ações
de práticas de leituras contribuem com os princí- para melhoria da cidadania e desenvolvimento do
pios da cidadania, gerando transformação social? ser humano” (BLATTMANN e VIAPIANA, 2005, p.6).
Além do público-alvo, que são os participantes Um exemplo da importância de dar fomento a
beneficiários de cada projeto, a intenção também ações que deflagrem o hábito de ler está no fato
se voltou para saber se esses específicos indiví- de o Programa Nacional do Livro e Leitura – PNLL
84
duos, que atuam na função de atores sociais, à ter realizado, em Brasília, um Fórum, dia 07/10/09,
frente das mais diversas ações em prol de leituras, em que foi feita a orientação para que Estados
vivenciam aspectos de cidadania, da mesma forma e Municípios criem também os seus Planos de
que os beneficiários dos projetos. Leituras – PELLs e PMLLs. Construído a partir de
muitas experiências que fizeram a história da luta
pela leitura no Brasil, o PNLL teve sua origem em
Referencial teórico mais de 150 reuniões públicas em todo o país nos
Ezequiel Theodoro da Silva, em seu livro Critici- anos de 2005 e 2006 (CASTILHO, 2009). Mobilizar
dade e leitura destaca que “a presença de leitores estados e municípios será um marco para transfor-
críticos é uma necessidade imediata de modo que mar o Brasil em um país de leitores e na conquista
os processos de leitura e os processos de ensino de melhores índices de desenvolvimento humano e
da leitura possam estar vinculados a um projeto de social.
transformação social.” (SILVA, 1998, p. 12). Antunes Espaços públicos de leitura podem ser desde
(2000) e Kuhlthau (2002), responsáveis por ações bibliotecas públicas e escolares, ou espaços mais
dinâmicas motivadoras de leituras, reiteram Silva reservados em entidades so ciais como asilos,
(1998). No artigo Leitura instrumento de Cida- creches, favelas, centros comunitários e de bairros,
dania, Blattmann e Viapiana (2005) discorreram locais de acesso e frequência de grande público
sobre os aspectos que servem de estímulo para a como em rodoviárias, terminais urbanos, entre ou-
proposição de projetos que sejam essenciais ao tros. Estes ambientes precisam oferecer informa-
desenvolvimento educacional, evidenciando que ção segura, objetiva e clara, conforme Blattmann
cabe aos educadores buscar formas de minimizar e Viapiana (2005) destacam no seu artigo Leitura,
a falta do gosto por leitura. O apoderamento desse instrumento de cidadania.
hábito é a base de sucesso do processo ensino-
A pessoa, para poder interagir na comunidade
-aprendizagem e é ferramenta que propicia criar
em que reside ou trabalha, necessita de informa-
estratégias para que a educação cumpra a função
ção. A informação pode auxiliar, direta ou indireta-
de socializar e permita que o indivíduo se apodere
mente o ser humano, para o desenvolvimento da
do conhecimento, integrando-se à sociedade.
sua identidade, cidadania e desempenho profis-
Somente com educação, com muitos livros e sional. A leitura torna-se mola propulsora de seu
muitas leituras ocorre o processo de construção auto-desenvolvimento.
cidadã que, “[...] numa perspectiva contemporânea,
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Quadro 1:
DADOS DOS PROJETOS DE LEITURAS
Nome dos Projetos de Ano de im- Instrumento principal Local do Projeto Público benefi- Faixa etária
Leituras plantação ciado
1. A Boneca Bela Aparecida 2008 Livros infantis e infanto- Escola rural de Sobradinho Entre 101 e 500 Crianças e pais
-juvenis
2. Baú de Histórias 2004 Livros infanto-juvenis Espaços culturais de Brasília Mais de 4000 Crianças e adolescentes
3. Beija-Flor e os Livros 2007 Livros infantis Creche de Taguatinga Menos de 100 Crianças e voluntários
“4. Brincando de Biblioteca 2003 Livros infantis Escolas públicas do DF Entre 2001 a 4000 Crianças e adolescentes
com Programa Literário“
5. Café com Letras 2000 Livros infanto-juvenis Escola rural de Planaltina Entre 901 a 2000 Adolescentes
6. Casas do Saber 2007 Livros gerais: Comunidade de todo o DF Mais de 4000 Crianças à adultos
literatura,didáticos...
7. Chocolate Literário 2004 Livros infantis Escola pública de Ceilândia Entre 501 a 900 Crianças
8. Descobrindo o encanto 2009 Livros infantis Escola pública de Sobra- Entre 101 a 500 Crianças
da leitura dinho
9. Hemerotecas Criativas 2007 Revistas Escolas públicas do DF Entre 2001 a 4000 Crianças, adolescentes e
professores
10. Jornal e Educação 1995 Jornais Sede de jornais e escolas do Mais de 4000 Todas as faixas etárias
DF e do país
11. Ledor Interativo 2008 Livros didáticos, apostilas... Biblioteca Braille de Menos de 100 Jovens e adultos
Taguatinga
86 12. Leitura: uma janela 2004 Livros infanto-juvenis Escola pública de Taguatinga Entre 501 a 900 Adolescentes
aberta para o mundo
13. Ler e Criar 2006 Livros infantis e juvenis Comunidade: instituição de Entre 101 a 500 Crianças à 3ª idade
saúde
14. Luz & Autor em Braille 1995 Livros de literatura Biblioteca Braille de Mais de 4000 Jovens, adultos e idosos
brasiliense Taguatinga dvs; escritores
15. Mala do Livro 1990 Literatura de modo geral, Secretaria de Cultura, Co- Mais de 4000 Todas as faixas etárias
técnicos munidade: todas as cidades
do DF
16.Manhã e Tarde Cultural 2009 Livros infantis Escola pública de São Entre 101 a 500 Crianças
Sebastião
“17. Os Craques da Educação 2006 Livros temáticos/didáticos Escolas públicas, Biblioteca Entre 101 a 500 Adolescentes, jovens e
Fiscal“ Braille e Feira do Livro adultos
18. O escritor no meio da gente 2004 Livros infantis e infanto- Bibliotecas públicas do DF Entre 501 a 900 Adolescentes, jovens e
-juvenis adultos
19. O livro na rua 2004 Minilivros de literatura Centro editorial em Brasília Entre 2001 a 4000 Todas as idades
editados
20. Revista Pensamento Livre 2005 Revista Penitenciária Mais de 4000 Jovens e adultos
21. Roedores de Livros 2006 Livros infantis e infanto- Comunidade – creche em Entre 101 a 500 Crianças e adolescentes
-juvenis Ceilândia
22. Sacola Literária 2007 Livros infantis e de histórias Escola particular de Entre 101 a 500 Crianças
Ceilândia
23. Servidor Solidário 2006 Livros infanto-juvenis Escolas rurais e Biblioteca do Entre Todas as idades
Planalto 501 a 900
24. Solidários da Visão 2007 Livros didáticos, jornais, Biblioteca Braille de Entre 101 a 500 Jovens e Adultos
computador Taguatinga
25. Teatro Infantil em ação 2007 Livros infantis Escolas públicas, Biblioteca Entre 501 a 900 Crianças e adultos
Braille, Feira do Livro
Fonte: Pesquisa de Campo no DF/2009
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
como, bibliotecas públicas, escolares e comunitá- local e outras obras nacionais. Com certeza, o
rias. Um exemplo de projeto desenvolvido em Cen- destaque fica por conta do Projeto Brincando de
tro Editorial é o Livro na Rua, com edição e ampla Biblioteca com Programa Literário. Em destaque,
distribuição de minilivros. também, o Programa de Jornal e Educação com 62
As atividades mais presentes em todos os pro- projetos desenvolvidos no país. Conforme Relatório
jetos são: oficinas, cursos; debates, discussões; de Responsabilidade Social 2006/2008 o Programa
pesquisas. Dependendo das características de é a principal iniciativa de responsabilidade social da
cada projeto, desenvolvem-se, ainda: encontro Associação Nacional de Jornais – ANJ; o programa
com escritores; visitas às instituições; rodas de quer que as pessoas leiam o mundo, leiam-se no
leituras; produção de textos; apresentações tea- mundo, posicionem-se no mundo e possam assu-
trais, atividades lítero-musicais, recitais, concursos mir com firmeza seu papel como agente de trans-
culturais, contação de histórias, criação de jornais, formação.
desenhos, dramatizações, mediação de leituras, Depoimentos evidenciam que, por existirem pes-
empréstimo de livros, leitura compartilhada, álbum soas que se preocupam em aprender e precisam
seriado, fantoches, tenda da leitura ao ar livre, etc. de incentivo para ficarem à frente das ferramentas
Cada um desses projetos, de acordo com suas de apoderamento dessa aprendizagem, é que exis-
metas e seus objetivos, planeja atividades e utiliza tem pessoas que se voltam para abrir essas por-
estratégias que geram bons resultados ao que se tas. São eles os idealizadores e dinamizadores de
propõe. projetos, que dão acesso a ambientes de fomento
Ler é uma questão de cidadania e essa ques- à leitura e marcam vidas com marcas de cidadania.
tão passa tanto pela inclusão social quanto pela Porque ler é viagem que se faz só ou em com-
inclusão escolar. Nas respostas dos questioná- panhia de sonhos que unem as pessoas e mudam
rios, quando perguntados sobre as vantagens do a realidade para melhor. Quem lê se apropria de
projeto de leitura, os respondentes destacaram condições de reflexão e pertencimento e descobre
(1) os métodos empregados no projeto podem ser que a capacidade de cada um depende de sua
87
utilizados em outros contextos e isso já acontece; própria busca por mudanças. Os depoimentos dos
(2) amplia o acesso para as pessoas aos recursos respondentes, participantes da pesquisa, compro-
culturais dentro e fora da comunidade, promove a varam que os caminhos estão abertos para que
socialização; (3) desenvolve parcerias e a respon- essas mudanças aconteçam. O Fórum, Brasília,
sabilidade social dos envolvidos, enriquecendo os capital das leituras pretendeu, desde seu início,
participantes. servir como veículo de divulgação dessas ativida-
Vale destacar que vários projetos já extrapolaram des literárias.
fronteiras, destacando o Programa da Mala do Li-
vro, que foi também implantado em outros países.
Conclusões
O Projeto Casas do Saber é o exemplo-destaque
por ter estimulado e criado cerca de mais de 80 bi- Nem as bibliotecas públicas, nem as escolares
bliotecas em todo o Distrito Federal. O Projeto Luz estão aparelhadas, suficientemente, para atender
& Autor em Braille que é voltado para os deficientes a todas as necessidades dos cidadãos no Distrito
visuais é um exemplo pioneiro no DF, já foi apre- Federal. Por isso, as iniciativas que democratizam
sentado em Cuba, Peru e Portugal. Seu destaque o livro e a leitura revestem-se de importância. As
é, sem dúvida, o da socialização que Tardif (2007, questões propostas, na pesquisa realizada, mos-
p.71) descreve como “um processo de formação tram isso, comprovando que a cidadania é viven-
do indivíduo que se estende por toda a história de ciada e que a leitura é uma ação que está presente
vida e comporta rupturas e continuidades”. Isso re- na vida dos entrevistados.
presenta que o desempenho e a capacidade social Os resultados foram positivos, em sua totalida-
e cultural dos indivíduos tornam-se variados graças de. Mesmo os projetos de menor alcance, realiza-
às oportunidades de acesso aos saberes que lhes dos em salas de aula, como é o caso do Projeto
permitem compreender melhor o mundo socializa- Leitura, uma janela aberta para o mundo; ou em
do, para que possam construir, em interação com creche infantil, como é o caso do Projeto Beija-Flor
os outros, a própria identidade pessoal, enrique- e os Livros; ou em uma única comunidade, como
cendo a identidade coletiva. é o caso dos alunos de uma creche, beneficiados
Todos os projetos se encaixam na afirmação com o Projeto Roedores de Livros evidenciaram
contida no questionário aplicado Incentiva práticas sua importância e alcance. Todos demonstram
culturais, o conhecimento da produção literária transformação social muito acentuada nos benefi-
ciários. A solidariedade, acrescida da inclusão so-
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
cial, são características fundamentais dos projetos: - Congresso Brasileiro de Biblioteconomia, Docu-
Luz & Autor em Braille, Ledor Interativo, Solidários mentação e Ciência da Informação, Curitiba, 2005.
da Visão, Servidor Solidário. Temas transversais, Disponível em www.geocities.com/ublattmann/pa-
como ética e cidadania e outros sugeridos nos pers/ao55.html acesso em 10-04 e 22-08-09.
parâmetros curriculares do MEC, como saúde, BRASIL. Ministério da Educação; Ministério da
meio-ambiente, pluralidade cultural, são abordados Cultura. Plano Nacional do Livro e Leitura. Brasília:
em vários dos projetos pesquisados, por meio dos MEC, MINC. 2007. 48 p.
livros trabalhados, destacando-se: Os Craques da ___________________________. Guia para
Educação Fiscal, Teatro Infantil em Ação, Hemero- elaboração e implantação dos Planos estadual e
tecas Criativas. municipal do livro e leitura. 2009, 24 p.
Os projetos A Bela Boneca Aparecida; Projeto CANÇADO, Dinorá Couto. Leitura, Cidadania e
Baú de Histórias; Projeto Ler e Criar; e Projeto Sa- Transformação Social. Brasília, 2010. 50 p.
cola Literária evidenciam transformações sociais,
CASTILHO, José. Uma nova agenda para as
trabalham com contação de histórias, interagindo
políticas públicas do livro e leitores. In: AMORIM,
autores/executores com os beneficiários, de forma
Galeno (org.). Retratos de leituras no Brasil. Vários
educativa, prazerosa. Tanto o Projeto Brincando
autores. São Paulo: Imprensa Oficial: Instituto Pró-
de Biblioteca, quanto o Projeto Café com Letras e
-livro, 2008.
o Projeto Chocolate Literário contam com a atua-
ção dos atores sociais na dramatização das obras KUHLTHAU, Carol. Como usar a biblioteca na
lidas. O Projeto O Livro na rua e o Projeto Revista escola: um programa de atividades para a pré-es-
Pensamento Livre destacaram-se como exemplos cola e ensino fundamental. Belo Horizonte: Autênti-
de desempenho voltado à democratização do livro ca, 2002.
e leitura, com materiais acessíveis, nas mais diver- MATOS, Marlise. Cidadania Porque, Quando,
sas realidades sociais; um com milhares de livros Para Quê e Para Quem? Desafios contemporâneos
distribuídos e outro com produção de revista em ao Estado e à democracia inclusiva. In: Leonardo
88 sistema prisional. Avritzer. (Org.). Cidadania e a luta por direitos hu-
A conquista de leitores é um desafio contínuo e manos, sociais, econômicos, culturais. Belo Hori-
o caminho é longo. As principais descobertas nos zonte: Editora do Departamento de Ciência Política
projetos, dos mais simples aos mais abrangen- da UFMG, v. 6, 2009.
tes são: igualdade de oportunidades para todos, SILVA, Ezequiel Theodoro. Criticidade e Leitura.
inclusão social, solidariedade, criticidade e com- SP, Campinas: Mercado de Letras, 1998.
preensão leitora, democratização do livro e leitura, ________________________. O ato de ler. Fun-
ludicidade, inclusão cultural, parceria entre estado damentos psicológicos para uma nova pedagogia
e sociedade civil. O caminho percorrido, até aqui, da leitura. 5ª ed. SP: Cortez, 1991.
por todos esses projetos sociais evidencia que TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação
serão colhidos frutos que disseminarão sementes profissional. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007
e beneficiarão mais e mais envolvidos. Também
é latente a certeza que há muito mais a ser feito.
Depende de cada um que se empenha e que só
faz a diferença por ter se apoderado da leitura e da
consciência de que é cidadão todo indivíduo que
sabe ser responsável por si e pelo próximo.
Referências Bibliográficas
AGUIAR, Ritamaria. Convergências: educação,
arte, inclusão. In:Caderno de Textos Educação, Arte
e Inclusão. Nº 1 - set/dez de 2002, p. 115-122.
ANTUNES, Walda de Andrade; CAVALCANTE,
Gildete; ANTUNES, Márcia Carneiro. Curso de
Capacitação para Dinamização e uso da Biblioteca
Pública. 2ª ed. São Paulo: Global, 2000.
BLATTMANN, Úrsula e VIAPIANA, Noeli. Leitura
como Instrumento de Cidadania,. In: XXI CBBD
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
O artigo ‘Dois finais de séculos na Bahia: cenas descoberta da fantasia nas páginas dos livros.
de mulheres” traduz os resultados da pesquisa O cinema e a televisão concorrem com o que
comparativa entre a escrita das mulheres que têm Sylvia Molloy chama de “a cena de leitura”,
produzido na Bahia na virada dos séculos XIX e XX, momento epifânico de contato com o livro e,
tendo em vista o foco desse I Congresso Interna- mais adiante, com a escritura. Os escritores
cional de Cultura Lusófona Contemporânea – A contemporâneos passam a descobrir a litera-
Mulher na Literatura e outras Artes, discorrer-se-á tura por meio da ficção audiovisual.
particularmente nas autoras coevas.
Assim, não é de surpreender que as escritoras
É inegável que a situação “autoral” feminina pas- não apenas se apropriem dos espaços ligados à
sa por uma grande transformação com o advento cultura para as massas como façam desta uma
tecnológico. Primeiramente, essa escrita sofre o aliada, pervertendo a história que, durante todo o
que de um modo geral a própria literatura sofreu século XIX, as mantiveram romanticamente reféns
diante do fenômeno mass media no decorrer do de uma ideia de escritura traduzida por diários
século XX e, de maneira particular, houve uma secretos. Esses diários obedeciam ao subjetivo de-
tomada de vantagem, nos últimos dez anos, dos sejo “de ser”, de ter um “espelho” que desdobrasse
espaços e dos mecanismos oferecidos pelas ferra- e refletisse algo que não estivesse subjugado e
mentas ligadas à rede. controlado como todo o resto – ou por “genialida-
Desde os folhetins, mas, sobretudo, com o cine- des” fora do comum que justificavam um pai, um
ma e as telenovelas, o ofício de escritor tem muda- marido ou um amigo de família a dar licença para
do e, tal como afirma Sérgio Sá ( 2010, p. 30), que elas pudessem ir a público.
A decisão de ser escritor não vem mais da Uma das estratégias utilizadas pelas escritoras
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
do século XIX consistia em buscar um mecanismo de leitura da época Frei Sinzig –, rica das “verdades
de legitimação para justificar a escrita e a publi- religiosas”, ou pela sociedade em geral, os diários
cação de suas obras através da parceria com a se constituíam no espaço privilegiado de evasão
Igreja Católica, seja nos jornais ou nas revistas das das almas femininas.
senhoras católicas, muito comuns até as primeiras Mesmo a escritora Lygia Fagundes Telles refere-
décadas do século XX na Bahia. Das autoras do -se a esse hábito das moças como resistente ao
arco temporal delimitado nesse projeto, nota- se a longo do século XX e intitula de “cadernos goia-
preocupação com a formação da mulher e com as bada”, esse espaço de escrita das mulheres. Sem
leituras a elas adequadas, na busca de uma litera- dúvida, foram esses cadernos os responsáveis por
tura de formação, uma espécie de bildungsroman guardar os sentimentos mais íntimos das mulhe-
feminino, a que se propunham a fazer sob a égide res, seus desejos, suas histórias. Conforme as
da Igreja. predecessoras da autora de As meninas, essas
De acordo com a historiadora Michelle Perrot narrativas secretas deveriam ser esquecidas, assim
(1989, p.14), como as leituras, após o casamento, visto que os
[...] Elas se inscrevem num século XIX que faz afazeres domésticos, os cuidados com os filhos e
do privado um lugar de felicidade imóvel, cujo o marido eram prioridade. Pelo menos era o que os
palco é a casa, os atores, os membros da homens recomendavam e eram deles as preocu-
família, e as mulheres, as testemunhas e as pações com a influência da má literatura junto às
cronistas. [...] A memória feminina, assim como mulheres, elas, porém, incluíam o acesso aos livros
a escrita feminina, é uma memória familiar, como uma das conquistas fundamentais para uma
semioficial. melhor vida doméstica.
Poucos foram os exemplares dessa escritura
A escrita feminina ganhou espaço dentro da em tom confessional produzida por mulheres em
sociedade após o processo de alfabetização con- forma de diários ou memórias, que escaparam do
quistado ao longo do século XIX pelas mulheres tempo, do abandono ou mesmo foram vítimas da
90 brasileiras de famílias tradicionais ou mesmo pela ação violenta dos membros da família ao descobri-
incipiente família de traços burgueses, incentivadas rem esses registros, que não deveriam ter leitores
pelas transformações sociais e culturais advin- posteriores.
das da divulgação dos valores dessa nova classe
Na contemporaneidade, ao não mais submete-
social. A leitura e a escrita, comuns aos filhos dos
rem o que pensavam ao crivo da autoridade mas-
senhores de terras no final do século XIX, acon-
culina, as mulheres escritoras também se viram
teciam no espaço da casa através das chamadas
diante de uma encruzilhada: ferramenta e publici-
preceptoras. Em torno dos 12 anos, os meninos
dade podem ser objetos de transgressão ou ape-
iam para as escolas, ao tempo em que as moças
nas espaço para colocar os modelos aceitos pela
interrompiam os estudos e se preparavam para o
sociedade sexista. Outro fator ligado ao mass me-
casamento, com a aprendizagem de corte e cos-
dia também chegou para as escritoras com relação
tura e da culinária. Poucas continuavam com a
ao repertório. Ainda que usando os novos espaços
leitura, o estudo das línguas e do piano, após esse
para se realizarem como escritoras, muitas autoras
período.
talvez não houvessem pensado nisso se por trás
A sociabilidade burguesa recomendava a que as não estivesse mais a vontade de falarem como
mulheres tivessem certa desenvoltura nos salões, indíviduo antes reprimido do que de fato possuírem
trazida pelo convívio social, sem dúvida, mas tam- uma literatura para mostrar. Nesse ponto, sendo ou
bém pela leitura dos folhetins, a frutinha daquele não o repertório vindo da cultura para as massas
tempo para parafrasear o escritor Machado de ou de influências literárias, estamos diante de um
Assis. Os folhetins, ainda que de acesso controlado novo momento que tensiona todas as implicações
pela família, se tornaram leitura comum entre os do ofício de escritor e questiona o lugar dessa es-
jovens daquela época. Quanto à escrita, além dos crita, feminina ou não, pois, como diz Eneida Souza
textos publicados pela Imprensa Católica, temos (2002, p. 80)
ainda uma farta produção esquecida de poemas
de consumo familiar, ou poemas para datas festi- Um vez que o objeto literário encontra-se, há
vas ou históricas – formas de divulgação da produ- muito tempo, desprovido da aura e transfor-
ção de mulheres e ainda de acesso à esfera públi- mado em mercadoria, recalcando-se o traço
ca, pela declamação dos versos produzidos. do trabalho que o produziu, torna-se igual-
mente difícil identificar o repertório de leitura
Enquanto nesses textos vigiados pelos ideais da
do escritor. Esse sentimento de perda esten-
“literatura moral” – termo empregado pelo censor
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
de-se ainda à memória, que tanto pode ser Em se tratando de usar tanto a cultura para as
cultivada como o reduto das grandes obras massas quanto as ferramentas tecnológicas como
presentes na biblioteca dos autores, quanto recursos de transgressão, as escritoras estão
como resquício de outras manifestações cul- empenhadas em mostrarem e assumirem o seu
turais, entre as quais aí se inclui o universo da trabalho como fruto do tempo em que elas estão
cultura de massa.) inseridas, não importando do passado de suas
“irmãs”de ofício a mesma visão de mundo, mas
Com a falta de censura, a maioria das mulheres
tampouco fugindo dos temas que circundavam
queria usar de sua pena – ou de sua tecla – para
aquelas. Temos, como exemplo disso, três escrito-
expressar a sua voz e apenas viraram o jogo com
ras contemporâneas: Karina Rabinovitz, Katherine
relação à publicidade, mas não com relação ao
Funke e Laura Castro. A segunda é radicada na Ba-
conteúdo, à estética, à linguagem, sendo ainda os
hia, a primeira nunca morou fora e a terceira morou
temas universalmente relacionados ao feminino
na capital do país por alguns anos.
que tomavam conta de seus escritos.
Como disse Sérgio de Sá (2010, p. 31), “a ati-
Ao por em contato essa produção contemporâ-
vidade de escritor em tempos audiovisuais vive o
nea, divulgada nos blogs com a escrita das mulhe-
drama da busca pela comunicação”. Essa busca
res do século XIX – resguardados os contextos his-
vai encontrar na imagem um recurso que ampara
tóricos e culturais no cotejamento dessas épocas
e amplifica a estética reivindicada pelas autoras
– ressalta-se, por exemplo, certa linhagem literária
que utilizam como recurso as tecnologias. Karina
que investiga/discorre/propõe acerca da identi-
Rabinovitz possui dois livros de poesia publica-
dade feminina tematizando a questão do corpo e
dos, mas é em seu blog Sussurros que a sua obra
da maternidade, em autoras baianas contemporâ-
aparece sólida e impactante, pois os recursos
neas como Ângela Vilma, Adelice Souza e Mônica
audiovisuais são incorporados como parte de sua
Meneses, escritora sergipana, radicada na Bahia,
obra, que também tem uma dimensão performáti-
as quais guardam semelhanças temáticas com
ca e de instalação. É lá que encontramos poemas
Anna Ribeiro, Emília Leitão Guerra e Maria Augus- 91
audiovisuais, poesia eletrônica e versos de poemas
ta Guimarães, entre outras autoras oitocentistas.
que ilustraram a paisagem da cidade. Recolhemos
A aproximação dessa nova literatura de mulheres
alguns exemplares do site da autora:
com as novas linguagens e, em particular, com a
gramática da mídia tem apontado, ao menos nesse
grupo de autoras listadas, temáticas que tratam de
questões ligadas ao feminino. quarta-feira, 31 de agosto de 2011
É assim que se observam ambíguas ocorrências
nas “escrituras” divulgadas por poetas, contis- duas meninas
tas, cronistas, romancistas na rede: algumas das
produções em nada questionam o lugar destinado
à mulher e nem escapam da temática presente na alheias à quarta-feira,
obra do século XIX: amor, maternidade, a mulher qualquer sujeira,
romântica, a que se preocupa com o mundo, com às viroses pós-
o lar, com a natureza. Mas há também o uso irôni- -chuva, neuroses,
co desses temas ou uma nova abordagem destes, engarrafamentos,
em que se explicita uma consciência desse lugar e documentos,
um questionamento dele também. mormaço ou
Com relação à publicidade da escrita, enquanto compasso
no século XIX as mulheres que escreviam usaram de um dia comum de trabalho.
as revistas femininas como lugar de escrita literária, duas meninas,
no século XXI, as autoras baianas começaram um [aqui dentro]
movimento profícuo em torno do blog. Na primeira tomavam banho de mar
década, praticamente todas as escritoras que esta- e rolavam na areia.
vam publicando na cidade passaram ao ou vieram gargalhar!
do blog. Isso acrescenta muitíssimo à discussão,
uma vez que, como dito, estamos diante de um
fenômeno que está diretamente ligado à vontade segunda-feira, 30 de maio de 2011
de ser pública, de ser ouvida, de ser consumida e
melancolia
aceita como sujeito.
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
mente com insistência e alguma malícia mal escrevendo um romance em “post” diariamente
escondida. publicados em seu blog de mesmo nome e depois
transformou o blog inteiro numa publicação em for-
tonta de fastio ma de kit: um livro em forma de caderno, um bloco
“Emancipate yourself from mental slavery” de notas e umas máscaras.
Há uma performance tanto da escrita quanto do
(Bob Marley) escritor e toda a obra é confeccionada usando-se
da metalinguagem como recurso, pois há tanto
uma consciência da quebra de paradigmas da con-
O quarto fechado, escuro e sem ar, era como temporaneidade, com o pós-moderno enfrentando
a cabeça da mulher que ali vivia. Ela sempre a “prosa de Estado”, como diz Marcelo Cohen,
dizia estar “cheia de fastio”. Melhor seria falar quanto a busca de uma estética que traduza a sua
“vazia de fastio”, apressei-me em julgar, quan- reflexão sobre o momento contemporâneo. Laura
do a conheci. Depois, entendi melhor, acho: Castro registra em sua obra aquilo que Sá adverte:
assim como aquele ambiente em que a falta
Outro caminho que os narradores encontram
de ar era compensada pelo excesso de an-
para “pelear”contra a prosa de Estado é o da
gústia, aquele cansaço extremo também trazia
“hiperliteratura”. Trata-se de uma “insuborni-
consigo toneladas de pensamentos, sentimen-
nação estética” a partir de uma performance
tos e memórias. Tantos, tantos, tantos, que
literária que se quer perfeita ao extremo. “Con-
nem dava vontade de ter outro dia inteiro para
tra a demência lógica da prosa de Estado, a
remoê-los todos de novo...
hiperliteratura enlouquece a narração de si
Em Katherine Faunke, o tom é diverso do de Ka- mesma.”(SÁ, 2010, p. 95, grifos no original).
rine Rabinovitz. Ela discute em pequenos contos,
De Cabidela bloco de máscaras, recortamos os
ou em suas notas mínimas, como intitula seu livro,
seguintes trechos:
aspectos da condição feminina. As situações são
Voltei. Abri a gaveta que havia se tornado um 93
diversas, a velhice de uma mulher é narrada não
mais como uma vida de dedicação aos seus, como armário. Desenrolei a frota de barquinhos
propunham as escritoras de antes ao referir-se às de papel. Decidi transcrever tudo, à caneta.
cãs femininas, mas como recomeço de vida, uma Mas aqueles papéis avulsos não tinham rota.
vida subterrânea era o que se via naquela mulher, Davam voltas, isso sim. No umbigo, disse um
tamanha sua energia de recomeço. O olhar da supereu. Não senhor. Suprimi essa parte do
narradora é de impaciência, alternada com cer- texto para não levar outra bronca de Edith e
ta curiosidade ante aquela mulher atenta ao seu ouvir pela milésima vez que eu não era uma
tempo. Nos dois outros trechos, o enfoque sobre romancista de verdade. De verdade, ela dizia
as questões femininas permanece, seja pelo olhar inclinando um pouco os óculos para me fitar,
de um homem – Ruan – a observar Elza, em um enfática.
jogo de sedução, ou seja dissecando a cabeça da Voltando: eu comecei assim, me terminando.
mulher. A epígrafe do compositor Bob Marley pare- Tirei o figurino de personagem - que sou - e
ce ser uma resposta possível a essa personagem: me pus a narrar. Era isso sair da gaveta: me
libertação de certa escravidão a que as mulheres pôr nua, me expor à diagnóstico.
foram submetidas pela sociedade hegemonica-
mente masculina. A falta de ar parece indicar a falta Está tudo aqui transcrito, neste rolo de papel,
de liberdade, do enclausuramento psicológico a à caneta. É o retrato do artista quando moça.
que esteve submetida. É uma página inteira e só. É um emaranhado
A última das escritoras relacionadas, Laura Cas- de fios. Romance não é mais novelo, tento
tro, mestre em Letras pela UNB e com formação explicar a Edith. Eles não permitirão, ela diz,
teatral, foi a mais radical tanto em sua proposta em tom de sentença, não te deixarão passar.
estética quanto em sua discussão sobre o que é a Eles quem?
escrita, o que é o autor e o que é a obra nos dias às 10:21:00
de hoje. Em seu romance-objeto Breu: Cabidela
bloco de máscaras, a autora coloca como perso- síndrome da gaveta
nagem-narrador uma autora que não sabe que é
escritora e que questiona esse lugar, confundindo Escolhi a caneta para começar. Já não era
a sua própria vida com o “romance”. Ela radicalizou mais tempo de grafite, lápis de olho, giz de
cera, borrão. Era tempo do definitivo. O que
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
Referências Bibliográficas
ALCÂNTARA, Simone Silveira de. Entrecruza-
mento de Linguagens em Arnaldo Antunes. Santa
Catarina: Interdisciplinar, v. 7, jul-dez, 2008.
CARNEIRO, Flávio. No país do presente; ficção
brasileira no início do século XXI. Rio de Janeiro:
Rocco, 2005.
CASTRO, Laura. Cabidela bloco de máscaras.
Bolsa de criação literária FUNARTE. www.cabidela.
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
96
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Itinerários femininos:
um olhar sobre a escrita feita
por mulheres no meio do século
passado
Joana Marques de Almeida
CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal
Resumo: O presente artigo terá como objecto de estudo três romances por-
tugueses de autoria feminina publicados nos anos 40 do século passado, os
quais constituem um prenúncio da verdadeira irrupção de mulheres escritoras
que se verificou na década seguinte: Ela É Apenas Mulher (1944), de Maria
Archer, Joana Moledo (1949), de Maria da Graça Azambuja, e Rapariga (1949),
de Ester de Lemos. Debruçar-se-á em particular sobre as respectivas protago-
nistas, analisando os traços que as individualizam e o modo como encaram o
mundo, ao mesmo tempo que põe em evidência os pontos comuns às várias
trajectórias, aliás também presentes em textos de outras escritoras que co-
meçaram a publicar por volta da mesma altura. Em simultâneo, e uma vez que
a grande maioria delas acabou por resvalar para um lugar de esquecimento, 97
o trabalho que aqui me proponho desenvolver terá ainda a preocupação de
dar um passo no sentido de as resgatar do limbo em que hoje se encontram,
dando assim nova voz a um grupo de mulheres cuja obra, reconhecida pela
crítica na altura e com o passar do tempo imerecidamente ignorada, em muito
contribui para enriquecer o panorama literário português.
No final da década de 40 do século passado, facto de serem mulheres, foram tratadas como um
início da de 50, o panorama literário português viu grupo à parte, sem contudo receberem linhas de
surgir um número muito significativo de mulheres aprofundamento que as identifiquem como tal, o
escritoras, de que nomes como Celeste Andrade, que as tem mantido à margem do cânone literário.
Judite Navarro, Natércia Freire, Natália Nunes, são Assim, se nada for feito em contrário, as gerações
apenas alguns exemplos. Sem terem formado qual- futuras ver-se-ão privadas de um legado que em
quer escola ou movimento, deixaram-nos, no en- muito enriquece a literatura portuguesa, represen-
tanto, um vasto leque de obras, a que um conjunto tativo de uma realidade histórica e socio-cultural.
de traços dá unidade. Neste estudo, os romances No sentido de evitar que isso aconteça, impõe-se a
Ela É Apenas Mulher (1944), de Maria Archer, Joana necessidade de ressuscitar estas vozes que o tem-
Moledo (1949), de Maria da Graça Azambuja, e Ra- po calou e que acabaram por ser imerecidamente
pariga (1949), de Ester de Lemos, constituem uma relegadas para segundo plano.
pequena amostra dessa herança literária, que aos O primeiro dos três romances aqui em estudo,
poucos tem vindo a perder-se. Ela É Apenas Mulher, de Maria Archer, apresenta-
Reler todos estes textos, reflectir sobre o mundo -nos, como o próprio título de certo modo faz
que retratam, a forma como é visto, reveste-se de prever, uma protagonista que se debate num
particular importância por, antes do mais, se en- mundo hostil, onde todos os direitos lhe são nega-
contrarem hoje num limbo de esquecimento de que dos, excepto o de se resignar, o de suportar calada
é urgente resgatá-los, apesar de terem sido na altu- e submissa o destino que lhe é imposto por uma
ra bem recebidos pela crítica e pelo público. Note- sociedade surda aos seus apelos e cega perante a
-se, para além disso, que estas autoras, devido ao luta que trava. Esforça-se, então, para aí conquistar
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
um espaço em que possa mover-se livremente, agir nha medo da viagem, de Lisboa, e até desse futuro
sem ser alvo de julgamento constante, em suma, misterioso que a tia Juliana lhe prometia” (p:24).
ser mulher. Medo e expectativa, eis os sentimentos que
A obra começa com a chegada da personagem dominam a protagonista no momento em que
a Lisboa, que olha para a realidade desconhecida abandona a terra natal, o pai, a mãe, os irmãos, em
de que se aproxima com uma atitude de deslum- suma, tudo o que sempre conheceu, que troca pela
brado espanto: “Esmeralda, encolhida no banco da casa da tia Juliana, pronvinciana abastada que se
camioneta, olha para o clarão das luzes da cidade, instalou em Lisboa. Será uma criada sem ordena-
olha para as estrelinhas amareladas que cintilam do, devido ao parentesco que as une, mas agra-
aqui e além, e diz consigo: «Será festa...»” (p:1). E, dece a oportunidade. As desilusões, porém, cedo
se o momento em que entrou nessa mesma ca- lhe ensombram o horizonte, que via limpo e claro,
mionete, abandonando a aldeia em que nasceu e e a primeira tem precisamente a ver com essa
cresceu, simboliza o fim de uma etapa da sua vida, casa, que imaginara “à moda de Lisboa” (p:59) e
uma espécie de morte, o primeiro contacto com a que afinal “cheira a província” (p:12), reflectindo a
cidade representa um renascimento. personalidade mesquinha e avarenta da sua habi-
A jovem provinciana desapareceu, dando lugar tante, o que pode ser visto como um prenúncio de
à mulher que logo na página de abertura vemos dificuldades vindouras.
chegar à capital do país, levada por um sonho e Esmeralda, contudo, deslumbrada perante o
pela vontade determinada de o tornar realidade, desfile de novidades que já consegue adivinhar,
a que se vem juntar o compreensível medo do não atenta neste detalhe. Para mais, incapaz de
desconhecido. A visão do rio que então atravessa, resistir ao apelo do mundo que agora começa a ex-
depois de a das luzes, cuja fluidez contrasta com plorar, obstina-se em conquistá-lo, alimentando-se,
a secura das planícies de que é oriunda, acentua num primeiro momento, de ilusão, de sonho, de
de modo significativo o sentimento de insegurança: esperança, que depressa se transformam, quan-
“E aquele rio, feito estrada, desnorteia-a, dá-lhe a do a personagem se apercebe de que a realidade
98
primeira sensação do mundo estranho onde ficam é bem mais dura do que idealizara e de que a tia
as cidades imensas, onde fica essa Lisboa em que Juliana não tenciona cumprir as promessas feitas,
ela, daí em diante, vai viver para sempre, em que numa vontade inquebrável. A mudança de atitude é
quer viver” (p:2). evidente: “Lisboa já não a deslumbra, já a conhece,
Tem vinte anos e é então que verdadeiramente e agora começa a sentir a presença da sua própria
começa o seu percurso, como se tudo o que ficou pessoa dentro de Lisboa e a reflectir na situação e
para trás não passasse de um prelúdio. É a infância colocação da sua própria pessoa nessa Lisboa que
que termina, estrangulada por esse caminho que já conhece” (p:70).
perante si se estende, ao longo do qual avança- A ruptura com a terra natal torna-se inevitável e
rá, em equilíbrio sobre a ténue linha que separa o regresso às origens, que em outras autoras da
o universo da esperança e da visão de um futuro mesma época se reveste de uma forte aura positi-
promissor, do universo das dificuldades que parte va, quase edénica, surge aqui como algo a evitar a
de si não deixa de antecipar. Avançará, ainda, entre qualquer custo. O casamento, numa fase idealizada
dois tempos, o do passado, onde jaz aquela que do seu percurso, parece-lhe o melhor caminho,
outrora foi, com quem quer cortar todos os laços, e mas a relação com o sedutor e mulherengo Ge-
o futuro, para onde projecta a imagem da figura em rardo, o homem que a obriga a enfrentar sozinha
que pretende transformar-se. uma situação de aborto, para além de estilhaçar
A viagem, enquanto deslocação no espaço, dá parte do sonho que Esmeralda ainda acalenta,
origem a esta dualidade. De facto, a estrada que transforma-a no alvo de uma condenação unânime.
liga a pequena localidade à grande metrópole, ao Ela agarra-se, então, à hipótese de se empregar,
interpor-se entre ambas, é a mesma que as afasta, saltando do curso de corte e costura para o de
estabelecendo-se, assim, uma incontornável opo- dactilógrafa, sem que de um ou de outro lhe adve-
sição entre o rural e o urbano. Temos, pois, de um nha a estabilidade que deseja.
lado, um meio pequeno e apaziguadoramente fami- Por tudo isto, Esmeralda representa a mulher
liar, mas também sufocante e castrador, e, do outro jovem que apenas quer conquistar o seu espaço e
lado, o mundo imenso da cidade, desconhecido, a sua liberdade. É nesse sentido que avança, que-
perigoso, ameaçador até. Vibra, porém, sob um brando regras, é certo, mas mantendo-se dentro
turbilhão de possibilidades: “Partia para Lisboa... de certos limites, até que as desilusões, os fracas-
Chorava e despedia-se, em lágrimas, da família. Ti- sos, o desdém de que é vítima, a obrigam a mudar
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
ro, com a dureza do meio laboral e com mais uma íntimo, semelhante ao de um diário, leva-nos a atri-
relação falhada. buir à protagonista uma experiência de vida mais
A certa altura, porém, quando, desapossada de extensa e mais dolorosa do que realmente tem. No
tudo o que alguma vez teve ou desejou vir a ter, entanto, sabêmo-lo pouco depois, não passa de
sente que as forças lhe faltam, ouve o chamamen- uma rapariga a braços com o primeiro amor e com
to das origens, como antes ouvira o da cidade, e dúvidas existenciais que não preocupam as outras
procura refúgio na promessa que este encerra. É jovens da sua idade. Por isso as inveja, desejando
na terra natal, portanto, na forja e na casa contí- caminhar com leveza idêntica, sentindo-se, em
gua deixada pelo avô em herança, que encontra simultâneo, orgulhosa por ser como é: “Mas ao
a tranquilidade desde sempre procurada e uma mesmo tempo, qualquer coisa como um orgulho
felicidade que, em si, jamais poderá ser total: “É amargo se insinuava em mim, em mim que lia Cíce-
uma ansiedade mais alta, que nada pode sustar, ro e Virgílio, em mim que escrevia versos e supu-
que não admite diques, que só em Amor e luta, na nha desenhar com talento, em mim que era uma
procura de um sentido sempre mais aprofundado filósofa, uma amorosa e uma desiludida da vida
da vida, se realizará. Como um rio que não pára de (como se pode ser tanta coisa, quando ainda se
correr, incansável, para o fim a que aspira” (p:242). não é nada!) ao contemplar essas meninas fúteis,
No terceiro e último romance, Rapariga, de Ester passarinhos amáveis, sem miolo, que não sabiam
de Lemos, temos uma protagonista, Luísa, cujo amar, nem sofrer, nem trabalhar” (p:12).
percurso apresenta características ligeiramente Esta dualidade, que a faz oscilar entre inveja e
diferentes das que marcam os de Esmeralda e Joa- orgulho, entre a tristeza que lhe tolhe os movimen-
na. Com apenas 16 anos, é pouco mais jovem do tos e a felicidade que a faz vibrar, acompanha-a
que estas, mas encara o mundo com uma inocên- durante toda esta etapa da existência, como uma
cia que elas perderam no momento em que dei- sombra, ou uma segunda pele, capaz de condicio-
xaram o espaço protegido mas sufocante em que nar o modo como encara o mundo. Sofre por saber
cresceram, para, num outro mais vasto e mais hos- que a infância é um país que se perdeu com o
100 passar dos anos – “Nesse tempo, o quintal era azul
til, se transformarem em mulheres. Passam, por-
tanto, por um processo de morte e renascimento, e doirado, em vez de ser cinzento e amarelo como
que neste romance não se verifica. De facto, como é agora; e tinha ilhas de coral, grandes palmeirais
o título indica, a fase da vida aqui em destaque é a sombrios, mares tempestuosos e grutas profundas,
da adolescência, marcada pelas descobertas, hesi- onde havia tesoiros...” (p:20) – e porque o que o
tações, dúvidas e também supostas certezas que a presente tem para oferecer se lhe afigura baço e
caracterizam. sem vida. O futuro, porém, agita-se ao longe, e é
Neste sentido, podemos dizer que o percurso de para lá que se dirige.
Luísa termina onde o das outras começa. Há, no Ao longo da caminhada, terá de enfrentar obs-
entanto, pontos comuns aos três, como o contraste táculos, desilusões, incertezas. Terá de lidar com a
entre o universo rural e o urbano, a angústia com doença do irmão, com as dificuldades financeiras
que as figuras se debatem, a desadequação face da família, com a impossibilidade de continuar os
ao mundo que as rodeia, questões que em Rapa- estudos, com o quotidiano cinzento de um empre-
riga surgem de forma ainda embrionária. Serão, de go de escritório. Considera-o medíocre, mas acaba
facto, desenvolvidas e aprofundadas pela autora por se habituar, manifestando assim uma capa-
no admirável romance Companheiros (1959) cuja cidade de adaptação que lhe permite suavizar o
protagonista, Flávia, vergada sob o peso da dor de sofrimento e retirar daí um prazer inesperado. Con-
ter perdido os pais, se lança numa vertigem de de- tente com o facto de se sacrificar pela família, de
sepero, guiada pela réstia de esperança que ainda ajudar os pais com o dinheiro que ganha, alcança
subsiste e que a faz amar a vida. Luísa não é muito um simulacro de felicidade: “Quanto a mim, pou-
diferente, oscilando entre estes pólos opostos, que co teria a dizer-lhe a respeito do que sentia nessa
alternadamente a aproximam e a afastam daqueles época; a minha vida interior parecia reduzida a um
que a rodeiam. vegetar mortiço e débil. Eu era, de resto, a essa
No início do romance, o desfasamento entre si data, quase completamente feliz” (p:238).
e os outros é já evidente: “Todos tinham coisas Esta é, porém, uma felicidade viciada, própria
que os preocupavam, coisas que lhes enchiam a daqueles que, como que anestesiados, não vivem
alma e lhes impulsionavam a vontade. Eu não; tinha os acontecimentos por inteiro. Com efeito, Luísa,
desgostos, mais nada” (p:3). Esta confissão, feita tendo sufocado o seu desejo de escrever poesia e
na primeira pessoa, o que imprime ao texto um tom de estudar literatura, sente latejar dentro de si uma
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
insatisfação contida, de que apenas se consegue envolve as personagens. Este sentimento pode
libertar perto do fim do romance, com a reviravolta ter causas diferentes, nem sempre definidas ou
nas finanças familiares que lhe permite finalmente concretas, e manifestar-se de formas diversas,
frequentar a universidade e movimentar-se por Lis- mas é sempre denso e pesado, pairando no pró-
boa com o à-vontade de quem aí pertence. Dá as- prio ar que se respira. Constitui, em certa medida,
sim o primeiro passo no caminho que a afastará da um reflexo do clima de dificuldade e de desilusão
casa paterna e, apesar da centelha de tristeza que que então se vivia em Portugal, na sequência da
semelhante perspectiva faz brotar, experimenta um Segunda Guerra Mundial e da conjuntura socio-
sentimento pleno e total que jamais antes conhe- -económica que se lhe seguiu, que em Joana
cera, encerrando a sua história e todo um ciclo da Moledo está patente na quase incompreensão com
existência com as seguintes palavras: “A consciên- que a protagonista olha para o que a rodeia e na
cia da minha mocidade toma-me a cada momento. sua incapacidade de se satisfazer com a existência
Sinto que vivo uma época única e excepcional da superficial que aos outros parece bastar.
vida, persuado-me cada vez mais da beleza das Quarto traço prende-se com um constante
coisas e da sua facilidade” (p:290). regresso ao passado. De facto, uma vez que esta
Eis-nos perante três mulheres e três itinerários angústia provém de uma insatisfação face à reali-
diferentes. Esmeralda, protagonista de Ela É Ape- dade, as personagens procuram nas suas memó-
nas Mulher, luta com todas as forças e recorre a to- rias um refúgio, quando se referem a acontecimen-
dos os meios ao seu alcance para realizar o sonho tos positivos, ou uma forma de se auto-analisarem
de se instalar de vez na cidade e de aí conquistar e melhor compreenderem a situação em que se
um espaço, deixando para trás o ambiente humilde encontram, processo que nos três romances aqui
e rural de que é oriunda. Joana, de Joana Moledo, em estudo surge de forma ainda embrionária, tor-
persegue também um objectivo, o de encontrar nando-se bem mais evidente em obras posteriores.
um local a que sinta pertencer, onde possa amar Note-se, no entanto, o modo como Luísa, apesar
e conseguir a paz de que o seu espírito intranquilo da ainda tenra idade, recorda a infância, conferindo
precisa. Por fim, Luísa, de Rapariga, embora per- a esse tempo passado os contornos de um paraíso 101
corra um caminho que termina no ponto em que os perdido.
das outras começam, leva a cabo busca idêntica, A saída da casa paterna, do meio demasiado
procurando por outros meios, como a escrita e os pequeno e sufocante em que nasceram, em suma,
estudos superiores, saciar a sede de vida. do espaço de origem, que no entanto continua a
Não obstante as diferenças que afastam estes desempenhar um papel importante no percurso
itinerários, une-os um conjunto de traços, co- das protagonistas, é também um traço a ter em
muns a muitas outras escritoras que começaram conta. Esta quebra de laços, que pode ser mais
a publicar por volta da mesma altura. Um dos ou menos radical, brota de causas distintas, como
mais importantes é o protagonismo dado às per- vimos. Temos, assim, a necessidade de transfor-
sonagens femininas, as quais, porque criadas por mação, em Ela É Apenas Mulher, uma dificuldade
mulheres, ao contrário do que até então era mais de integração no espaço envolvente, em Joana
comum, nos são apresentadas sob uma perspecti- Moledo, e o desejo de prosseguir os estudos, em
va que parte do interior para o exterior. Assim, mais Rapariga, mas lança sempre as personagens numa
do que no eixo central da narrativa, estas figuras viagem rumo a um mundo que lhes é estranho e
transformam-se na própria ação, o que nos permite que funciona como um passaporte para o auto-
reflectir sobre a condição da mulher na sociedade -conhecimento e para a liberdade.
da época. Semelhante coexistência de dois mundos tão di-
Outro traço, que surge na sequência do anterior, ferentes coloca-nos perante novo traço, a oposição
é a alusão recorrente a uma série de questões que entre o campo e a cidade. Isto porque as persona-
poderão dar um contributo significativo no que diz gens, estas e outras criadas por volta da mesma
respeito à problemática de género, como o acesso altura, são normalmente oriundas de um ambiente
ao mercado de trabalho, a dependência face ao rural, fechado, capaz de lhes limitar os movimen-
sexo oposto e consequente importância do casa- tos, mas familiar, trocando-o não raro pelas pro-
mento, e até a maternidade. Esmeralda, por exem- messas da urbe, que se lhes afigura libertadora
plo, mesmo perseguindo avidamente o amor, aca- e plena de promessas. Estas, no entanto, ficam
ba por casar com um homem de quem não gosta muitas vezes por cumprir, o que transforma esse
verdadeiramente, para evitar o regresso à aldeia. mundo que deixaram para trás, independentemen-
Um terceiro traço tem a ver com a angústia que te do desejo de aí regressarem, numa espécie de
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
refúgio.
Um derradeiro traço prende-se com a ligação
estreita que se estabelece entre estas personagens
femininas e o espaço casa. De facto, seja a que
Esmeralda abandonou voluntariamente ou a que
sonha possuir na cidade, a que Joana herdou do
Avô e onde por fim consegue apaziguar a natureza
inquieta, ou ainda a que serve de porto de abrigo e
de ponto de partida para Luísa, funciona como um
prolongamento do próprio corpo da mulher. Assim,
refúgio, prisão, ou em ambos os casos, real e pal-
pável ou sonhada e etérea, desempenha um papel
central e determinante.
Eis-nos, pois, para concluir, perante três roman-
ces escritos por mulheres, representativos de um
grupo mais vasto de obras de autoras que come-
çaram a publicar por volta do meio do século pas-
sado. Partilham, por isso, um conjunto de traços
que as transforma num todo coeso, sendo o pro-
tagonismo dado às personagens femininas o que
se reveste de uma maior importância. Estas figuras
dominam, assim, toda a acção, constituindo uma
espécie de pilar em torno do qual tudo gravita. São
jovens, determinadas, inquietas perante uma reali-
dade que as oprime, que lhes limita os horizontes.
102
Incapazes de se resignarem, avançam, derrubando
barreiras, ultrapassando obstáculos, movidas por
uma intranquilidade que as conduz por um itine-
rário que é, em simultâneo, íntimo e privado, rumo
ao auto-conhecimento, e de conquista do espaço
exterior, até atingirem a desejada liberdade.
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nio Ferro, Porto, Tavares Martins, 1949
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
vindo a esbater-se, podendo registar-se, nas déca- livro de viagens Paris (1888); e a comédia Educação
das mais recentes, algumas iniciativas de recolha Moderna (1894). Ao longo da sua carreira literária,
e de análise dos textos de reflexão literária des- colaborou em vários periódicos, como o Diário
se período (Mendes, 1980; Palma-Ferreira (1985, Ilustrado, Diário de Notícias, O Repórter, Artes e
1986); Moisés, 2000; Hess, 1999; Venâncio, 1998; Letras, A Ilustração Portuguesa, bem como o Alma-
Buescu, 1999; Vieira, 2003; Rio Novo, 2008), bem naque das Senhoras e O Mundo Elegante, que
como, numa perspetiva comparatista, algumas fundou. Morreu de doença cardíaca.
abordagens significativas da dita part d’étranger É preciso assinalar que a análise à produção
da literatura portuguesa deste período (Machado, literária, sobretudo folhetinesca, de Guiomar Tor-
1986, Santos, 2005), incluindo alguns estudos que resão, precisamente sob a perspetiva da escrita
tomam como corpora de análise textos de teoriza- no feminino e da imagem da mulher no mundo das
ção literária, numa abordagem comparatista (Vieira, letras oitocentista, foi iniciada por Maria de Fáti-
2003; Rio Novo, 2008). ma Outeirinho (1998), num excelente artigo escrito
Assim sendo, no estado atual do projeto, consi- por ocasião do centenário da morte da escritora.
deramos que, sendo indesmentível a ausência de Aqui, interessar-nos-emos particularmente pela
um conjunto articulado de escritores oitocentistas produção teórico-crítica de Guiomar Torresão, a
portugueses entre os quais se evidencie uma pro- qual se concentra entre as décadas de 70 e 90 do
dução teórica sistemática e unitária, é igualmente século XIX, um período da história literária e cultural
inquestionável que essa reflexão dominou toda a portuguesa balizado entre, por um lado, a Questão
época, sendo a esse título surpreendente e revela- Coimbrã e a afirmação da Geração de 70, a que
dora a quantidade de textos de teorização literária corresponde, numa primeira fase, a emergência de
recolhidos, publicados ou em condições de serem um Romantismo social e panfletário, influenciado
publicados na plataforma E-poeticae.2 por Vítor Hugo, numa segunda fase, a afirmação do
Realismo-Naturalismo, e, por outro lado, as cor-
rentes finisseculares simbolistas e decadentistas.
2. Teorização literária no feminino: textos teóri- Não surpreende, pois, que encontremos a autora 105
co-críticos de Guiomar Torresão (1844-1898) no a debruçar-se sobre questões como o novo lirismo
arquivo digital E-poeticae ou o problema do romance contemporâneo.
Um dos corpora recentemente recuperados e
editados no arquivo E-poeticae corresponde ao
acervo de textos de teorização e crítica literária O novo lirismo
da escritora oitocentista Guiomar Torresão (1844- Em 1864, antes mesmo das formulações de
1898). Nascida em 1844, Guiomar Delfina de No- Antero de Quental e Teófilo Braga em torno da mis-
ronha Torresão, cedo por razões familiares teve de são revolucionária da literatura que incendiariam
assegurar a sua própria subsistência, dando lições o panorama literário nacional, Joaquim Guilherme
de instrução primária e de francês, dedicando-se Gomes Coelho, que viria a celebrizar-se como
ao folhetim e à tradução de autores como o roman- romancista com o nome de Júlio Dinis, publica sob
cista romântico Victor Cherbuliez, o poeta realista o pseudónimo feminino de Diana de Aveleda uma
François Coppée e o dramaturgo Pierre Decourcel- carta ao redator do Jornal do Porto onde ironiza
le. Estreou-se em volume aos dezasseis anos, com acerca da “terrivel doença” que vê propagar-se
o romance Uma Alma de Mulher (1869), prefaciado entre os jovens poetas da atualidade, uma espécie
por Júlio César Machado, a que se seguiram, entre de “febre philosophica” inspirada em Vítor Hugo
muitas obras, o volume de contos Rosas Pálidas (Dinis, 1910: 193, 194):
(1873), prefaciado por Tomás Ribeiro; o romance
histórico A Família Albergaria (1874); as recolhas
Philosophos a fazerem versos! Cada poesia
de artigos Meteoros (1875) e No Teatro e na Sala
era a exposição de uma theoria de metaphy-
(1881), prefaciado por Camilo Castelo Branco; o
sica ultra germanica, uma argumentação de
2 O exame desse corpus permite-nos compreender que, longe de ser inexis- sophista, e até, quando Deus queria, o desen-
tente ou despicienda, a teorização oitocentista apresenta certas particularida- volvimento de qualquer principio de sciencia
des: o seu caráter esparso e fragmentário; o facto de se tratar, muitas vezes, politica; e nós, as mulheres que nos afizera-
de um conjunto de reflexões circunstanciais e circunscritas, motivadas pela mos a contar com os poetas do nosso lado,
necessidade de escrever um parecer crítico sobre uma determinada obra ou,
a acharmo-nos abandonadas por elles! (Dinis,
no caso das reflexões autorais, de afirmar ou justificar uma praxis literária
sentida como polémica ou inovadora; a imbricação profunda entre a teoria e 1910: 189, 190)
a crítica, que sabíamos ser, em boa medida, uma característica da reflexão
romântica, quando não uma realidade de todos os tempos.
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
Lamentando o abandono do lirismo amoroso, satanismo de Maurice Rollinat e na arte vazia dos
religioso e patriótico, Diana de Aveleda procurava parnasianos, como atentado que são ao “pobre
demonstrar a inutilidade prática de uma poesia lyrismo innoffensivo” (Torresão, 1888b: 3). Porém,
filosófica e chegava ao extremo de convocar uma ao contrário de autores como Eça de Queirós, que
“cruzada feminina” contra “a poesia que se estu- se limitam ao diagnóstico dos “poetas do mal”
da”: “Por amor de Deus, chorae, chorae se tanto (Queirós, 1881: 1), Guiomar Torresão acredita na
preciso fôr, mas salvae-me a poesia da doença que existência de um “antidoto” para o “veneno subtil”
a corroe, transformae-me estes poetas, de refor- que constitui a violenta nevrose mental refletida em
madores em amantes, e tereis conseguido tudo, toda a obra moderna, antídoto que não se encontra
tereis operado uma das mais salutares revoluções nas manifestações mais recentes da poesia fran-
que se tem visto no mundo.” (Dinis, 1910: 190, 194, cesa ou portuguesa, mas sim nos novos poetas
195) brasileiros, onde a poesia (res)surge como “eterno
Uma década depois, década essa de afirmação milagre”, “exuberante florescencia de uma arte
da poesia panfletária, por intermédio de autores ainda não contaminada”, “impetuosa força creado-
como Guilherme Braga, Guilherme de Azevedo, ra inherente a um mundo que renasce”. (Torresão,
Guerra Junqueiro ou Gomes Leal, uma voz femini- 1888d: 3) E, por isso, grande parte dos seus textos
na parece responder àquele chistoso apelo de cru- de crítica serão dedicados à pujança e ao entusias-
zada: a da crítica literária Guiomar Torresão, que, mo vital desses autores.4
no entanto, curiosamente, não se eximiria a lançar Buscando definir as caraterísticas do novo liris-
o confronto entre o modelo ficcional dinisino e a mo, Guiomar Torresão evoca por diversas vezes
estética realista-naturalista estribada nas doutrinas a “bella idade” do Romantismo, época de entu-
de Émile Zola, nem sempre em benefício do primei- siasmos palpitantes, loucuras heróicas e ideais
ro (Torresão, 1875).3 ingénuos, para concluir que parece ter mediado um
Cerca de dez anos depois, num artigo sobre o século entre a geração dos românticos e a geração
poeta brasileiro Luís Guimarães, Guiomar Torresão atual, de tal forma os homens de finais de oitocen-
106 tos, embrenhados no naturalismo, empenhados em
consolida a sua negação da poética do mal, con-
denando os poetas da geração nova, que trans- subordinar tudo à observação, à análise, à dedu-
formaram o “sonoro rythmo de crystal” na “aspera ção científica, desdenham desses “pallidos visiona-
gargalhada de Mephistopheles”, que converteram rios de grande cabelleira, que compunham roman-
“a meiga e consoladora Poesia” na “cathedra, onde ces, poemas e dramas, por entre as allucinantes
elles, os Moysés da nova lei, blasfemam e negam miragens de haschich, e que pediam á antithese
tudo o que nossas mães nos ensinaram a amar e e á idealisação, todas as suas fantasticas efflo-
respeitar, curvadas para o nosso berço […]” (Tor- rescencias” (Torresão, 1887: 3)5 Compreendendo
resão, 1886: 7) Para a crítica, contudo, enquanto embora que os princípios erigidos pela revolução
a alma humana continuar a sentir, a sonhar, a ser literária do início do século não se coadunam com
devorada pela sede de ideal, por tudo aquilo, en- o contexto finissecular, parecendo à época uma
fim, que “nenhum dos livros de Comte, de Spencer, escola pueril e fora da verdade humana, a autora
de Darwin ou de Leittré [sic] poderá saciar-lhe”, os admite que havia no movimento romântico uma
homens e as mulheres continuarão a “espalhar vio- tão “tumultuosa e indomita seiva”, que ainda hoje
letas n’essa cova adorada, onde dorme, á sombra “nós temos no sangue e nos ossos o romantismo,
das nossas saudades, o unico amigo que entendia que empiricamente condemnamos”. Assumindo-
e suavisava os nossos amargos desencantos”, -se como voz feminina – “nós, mulheres, pobres
entenda-se, o lirismo. (Torresão, 1886: 7, 8) sedentas de ideal, que buscamos sem cessar nos
Nesse sentido, condena a atitude de descrença ethereos dominios da arte as sobrehumanas perfei-
de que padece a moderna poesia francesa, con- ções, embora ficticias, as delicadas sensibilidades,
substanciada no ateísmo de Jean Richepin, no embora ephemeras, que a vida ferozmente nos
recusa” (Torresão, 1888c: 10) –, a crítica defende,
pois, a perenidade da poesia lírica, convicta de
3 esse artigo, Guiomar Torresão interroga-se sobre se ao realismo de
Feydeau, Zola e Flaubert, que “pinta só o monstruoso e copia de preferencia o
que, “a despeito dos methodos, das escolas, dos
hediondo”, serão preferíveis as “doces aguarellas intimas” de Júlio Dinis, para, processos modernos e das anatomias da alma,
todavia, rejeitar a estética que “abusando do idyllio, falseia a vida pintando- haverá sempre no mundo estas duas loucuras: o
-a com a palheta do Ideal, desconhece o homem prestando-lhe azas de sonho dos poetas e a credula ingenuidade dos
cherubim, desacredita o Ideal forçando-o a intervir, a proposito de tudo, nos
felizes que se amam”, as quais configuram verda-
vulgares incidentes quotidianos, e não corresponde, porque as não entende,
ás pungitivas contradicções, ás revoltas perennes, ás illimitadas aspirações e deiramente “toda a sabedoria humana” (Torresão,
infinitas dôres da Alma nova.” (Torresão, 1875: 10, 11.) 1888c: 10).
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
instincto carnal, que não procede senão em harmo- HESS, Rainer (1999). Os Inícios da Lírica Mo-
nia com uma suprema preoccupação, – o interes- derna em Portugal (1865-1890). Lisboa: Imprensa
se. (Torresão, 1888a: 11). Nacional – Casa da Moeda.
MACHADO, Álvaro Manuel (1986). Les Romantis-
Note-se que esta crítica de Guiomar Torresão mes au Portugal. Modèles Étrangers et Orientations
aos escritores que minimizam a capacidade de a Nationales. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian –
mulher conduzir a sua existência entronca numa Centre Culturel Portugais.
crítica mais generalizada ao modo como o roman- MACHADO, Álvaro Manuel e PAGEAUX, Daniel-
ce naturalista coloca em causa o livro arbítrio do -Henri (1988). Da Literatura Comparada à Teoria da
homem, que, sob o determinismo do meio e da Literatura. Lisboa: Edições 70.
natureza, é “apenas o docil escravo impotente do MENDES, Margarida Vieira (1980). O conceito
vicio que o governa, do sordido interesse que o de poesia na segunda metade do século XIX. In
orienta, e da passiva e gelida indifferença que o Para uma História das Ideias Literárias em Portugal.
reduz, pela atonia de todas as suas faculdades Lisboa: I.N.I.C./ C.L.E.P.U.L. 63-94.
affectivas, de todas as suas sensibilidades extinc- MINER, Earl (1990). Comparative Poetics. An
tas, de toda a sua alma narcotisada e silenciosa, á Intercultural Essay on Theories of Literature. Prince-
simples qualidade de automato” e que representa ton – New Jersey: Princeton University Press.
na vida o papel “pouco mais ou menos, identico ao
MOISÉS, Massaud (2000). As Estéticas Literárias
de um titere” (Torresão, 1888a: 3).
em Portugal. Volume II Séculos XVIII e XIX. Lisboa:
Caminho.
6. Conclusão PALMA-FERREIRA, João (1985). Literatura Por-
Numa época em que a mulher era muito mais tuguesa. História e Crítica. Vol. I. Lisboa: Imprensa
objeto do que sujeito da expressão literária e da Nacional – Casa da Moeda.
expressão metaliterária e em que o Realismo-Natu- __________ (1986). Subsídios para o Estudo da
108 ralismo se afirma como corrente estética e artística, Evolução da História e Crítica da Literatura Portu-
Guiomar Torresão, sem deixar de assumir a sua guesa. Lisboa: Instituto Português do Património
condição feminina, a sua “sensibilidade de mulher” Cultural.
(Torresão, 1888c: 10), surge como uma voz a todos OSÓRIO, Jorge (1974). [Recensão] a Estética do
os títulos singular no discurso teórico-crítico da Romantismo em Portugal. In Arquivos do Centro
literatura portuguesa do século XIX, debruçando- Cultural Português. Vol. VIII. Paris: F. C. G.. 659-663
-se sobre questões como o problema do romance OUTEIRINHO, Maria de Fátima (1998). Guiomar
moderno; a estética naturalista; o novo lirismo; em Torrezão ou memória de uma mulher de letras
suma, a expressão literária no contexto finissecular. oitocentista. Intercâmbio. Nº 9. Porto: Instituto de
Estudos Franceses da Universidade do Porto/ Fun-
dação Engenheiro António de Almeida. 163-176.
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Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
110
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Quando pensei no tema deste congresso de ou outros, e tendo escrito sobre outros escritos?
cultura contemporânea, “a mulher na literatura Vou então “ler” convosco, mais no sentido her-
e outras artes”, imediatamente me surgiram, em menêutico (de interpretação) do que no filológico
oposição, duas figuras: “the girl with a pearl ear- (de quem “analisa e situa no contexto histórico”),
ring”, de Vermeer – (1666-67) e “the girl with the textos de uma autora portuguesa contemporânea, 111
dragon tatoo”, Lisbeth Salander. Uma, personagem Dulce Maria Cardoso. Preferia fazê-lo no sentido de
de mulher comum e anónima que terá dado ori- quem incorpora a voz do texto e a reproduz, inter-
gem à Mona Lisa do Norte; outra, figura sem nada pretando-o, como o actor – porque alguns destes
de convencional na sua feminilidade,1 plenamente textos parecem escritos para serem ditos, porque
nomeada, direta e indirectamente caraterizada na os seus parágrafos têm a dimensão dramática da
sua bizarria. A rapariga de Vermeer, ligeiramente oralização, da fala que se interrompe e retoma, e
virada para mim, espreita do fundo do tempo, num comenta o próprio discurso, motor do pensamento
álbum dos mestres da pintura holandesa e conti- e da história. Mas para isso seria necessário outro
nua aqui, com as mulheres que passaram incóg- espaço.
nitas, no mundo e na literatura; Lisbeth Salander Como a maioria saberá, Dulce Maria Cardoso
está algures na rede virtual, quando abro o mail adquiriu maior notoriedade pública quando rece-
que ela olha desinteressada. É a heroína extraordi- beu, em 2011, os Prémios Ler/Booktailors, pelo seu
nária e silenciosa que redime outras personagens último romance publicado, O retorno. Já fora pre-
femininas secundarizadas na submissão a mundos miada com o Prémio Ciranda e o Prémio do PEN
violentamente masculinos. Estas duas imagens Clube Português de Novelística, em 2010, pelo seu
de mulher, plástica e literária, são como extremos terceiro romance O chão dos pardais, e recebera
de um grande espectro de personagens femininas o European Union Prize for Literature, em 2009,
universais, e, por influência direta do ficcional no pelo romance Os Meus Sentimentos, assim como
real, imagens de mulheres que querem parecer-se o Grande Prémio Acontece, em 2002, pela primeira
com elas. Porque na sociedade mediatizada em obra, Campo de sangue.
que vivemos, a mulher, como a criança, o jovem e
Limitada por questões de tempo e espaço, colhi
as relações que estabelecem, o que consomem e
uma “amostra” da “população feminina” apenas de
como se transportam, tudo é imposto por imagens,
dois universos ficcionais da escritora: Campo de
discursos sobre essas imagens e discursos sobre
Sangue e Os Meus Sentimentos. Vou falar-vos de
os próprios discursos, em que se perdeu o fio a
Eva, da mãe, da rapariga bonita, de Violeta, Celes-
quem imita quem, quem surge primeiro, quem dá
te, Dora, figuras da contemporaneidade, marca-
origem a quê. Não nos juntámos nós aqui também
das pelas características de uma sociedade que
falando e discorrendo sobre o discurso de outras
Bauman classificou como líquida, por nela se ter
perdido a consistência das relações interpessoais
1 Personagem da trilogia Millenium, bestseller póstumo de Stieg Larsson.
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
e o sentido da busca intrapessoal. Sendo a obra de Judas, que identifica Jesus e, assim, o entrega. As
arte “apenas um substituto enquanto a beleza da mulheres também foram chamadas para identifi-
vida for deficiente”, no dizer de Mondrian, cabe- carem o homem, o explicarem e, talvez, o entrega-
-lhe revelar esteticamente, no espelho em que nos rem. Ele cometeu um crime que lembra L’étranger,
reflete, a matéria da nossa humanidade. É isso que de Camus: “com o calor há sempre quem mate
a escritora faz com um estilo muito femininamente por razões alheias à vontade, o calor ferve o san-
atual, atrever-me-ia eu a dizer. gue que uma vez derramado é rapidamente pó,
No percurso literário de Dulce Maria Cardoso, um pó que se entranha facilmente na calçada,”
com a singularidade que caracteriza a sua obra no (p.27) –indício que surge logo no início da narrativa.
panorama literário português, gostaria no entanto Houve um crime, levado a cabo pelo absurdo da
de traçar um ramo genealógico com Virgina Woolf. existência, pela ilusão que conduziu o homem a
Mulheres-escritoras de universos espácio-tempo- confundir a rapariga bonita que encontrara na praia
rais muito diferentes, cada uma a seu modo escre- com a outra, semi-marginal, que levou para casa e
veu/escreve romances, narrou histórias que fogem amou como nunca antes. Cada uma das mulheres
à linearidade cronológica e se desenvolvem dentro “Conta a verdade apesar de saber que a verdade
e fora do presente e do passado, entrando e saindo se apresenta de várias formas. Escolhe a verdade
da mente das personagens, entrando e saindo dos dela, a que lhe convém.” (p.164) Porque verdade e
seus discursos, pensamentos e silêncios. realidade dependem de quem pensa, de quem vê,
Por outro lado, em Dulce Maria Cardoso parece- na literatura e na vida.
-me também patente a constatação do absurdo E são as analepses de um narrador que acom-
da existência, da fragilidade da linha que separa panha os pontos de vista das diferentes persona-
normalidade e loucura, ser e parecer. As suas per- gens que nos dão uma visão global da(s) história(s).
sonagens, simultaneamente atuais e intemporais Cerca de um ano de narrativa, onde todo o passa-
na dificuldade de se definirem e de encontrarem do se encaixa em episódios evocados diversamen-
um sentido para a vida, inscrevem-se em várias te por cada personagem.
112
classes sociais, e “vivem”, cada uma a seu modo, As mulheres são herdeiras de um pecado origi-
a luta entre quem são ou querem ser e aquilo nal. A ex-mulher chama-se Eva. ES no remetente
que parecem ou se esforçam por parecer. Vão da dos postais enviados de férias para o homem (cf.
senhora que recebe semanalmente as amigas para p.25). É a única personagem com um nome no
o chá-canasta formalmente perfeito2, à sua filha, romance. Mesmo o homem, à volta de quem elas
“monstrengo” desolado e mal-amado, envergo- se reúnem, não adquire nunca a identidade de um
nhado de si, vítima de desamor e indiferença. Da nome. Embora pense:
funcionária de notário, de dias amarfanhados, con- (…) o nome que é o que se diz sempre ape-
solada na desgraça alheia3, à Denise do shopping, sar de dizer tão pouco de cada um, o nome é
personagem-tipo de uma sociedade de escravos. muito importante, já lho perguntaram tantas
Profundas ou planas, a nenhuma sobrou o brinco vezes, o seu nome por favor e ele diz o nome
de pérola, símbolo da perfeição evolutiva da natu- que lhe puseram aquando da fotografia em
reza e ponto de focagem do olhar, no quadro. que se conhece mais pequeno, a fotogra-
Campo de Sangue começa: “Estão quatro fia que só foi feita porque se baptizou outra
mulheres na sala. Destas mulheres é preciso saber criança no mesmo dia, os pais da outra crian-
antes de tudo que estão aqui por causa de um ça contrataram o fotógrafo para eternizar a
homem que cometeu um crime e que se por acaso entrada do filho no reino dos céus, os seus
se encontrassem na rua não se cumprimentariam.” ainda não se tinham desgraçado, mas nunca
(p. 9) se lembrariam de contratar o fotógrafo, diz ao
Chamadas a identificar o homem, filho, ex-ma- menos o nome, se disseres o nome pensam
rido, amante, hóspede, são definidas pela relação que te conhecem.”4 (p.47)
com ele. São testemunhas da vida que ele não
Sem o nome como vai o leitor conhecer as
teve. São actrizes contrariadas perante os funcio-
personagens? O campo de sangue foi provocado
nários e o médico que as questiona. As epígrafes
pelo homem. Mas teria sido motivado pela senhoria
iniciais, versículos da Bíblia, falam do pecado de
da pensão decrépita onde vivia? Pela mãe pisada
2 “a minha mãe sentada na sala da casa que hoje vendi com o vestido pela vida? Pela mulher-primeira, a Eva protetora
amarelo-clarinho de pregas que lhe assenta tão bem ou aqui no Salão Prin- (ou que o perdeu?) e nada exigia em troca do tudo
cesa, ao fundo nos secadores, com a perna traçada, a folhear uma revista de
moda, o dernier cri, in, Os meus sentimentos, p.61.
3 idem, pp.139-151 4 Sublinhado meu.
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
da boca do corpo, o sangue é quase bonito, Quem o visse pensaria que era um filho de-
uma cereja esmagada que escorre, a rapariga dicado que ia visitar a sua mãe e com este
tem o útero rasgado para sempre, nunca mais engano aos olhos dos outros veio o prazer de
poderá passar a mão pela barriga, o despren- se parecer com quem nunca foi, de se apro-
dimento tem sempre um preço, a ex-mulher ximar duma pessoa que poderia ter sido. (…)
guarda os bocados da criança, bastará um e soube que nunca poderia parecer um filho
saco de plástico, um caixão branco de anji- dedicado porque era necessário que a mãe
nho, um saco de plástico, (p.134) também se parecesse com uma mãe com
saudades do filho, uma mãe contente por ver
Outro crime por cometer, o do homem, no dia de
o filho, e isso não acontecia. (pp.101-102)
festejar o aniversário da mãe, dividido entre deixá-
-la ou não morrer com o gás do forno avariado. É sempre um jogo de papéis de cada mulher na
“Não sei o que faça mãe, a mãe sempre soube o vida do homem; dele na vida delas. A permanente
que se devia fazer, o que ficava bem que se fizes- ideia de que nada vai para além de uma aparência
se, (…) não sei o que faça, mãe (…) acordo-a ou de normalidade que, nem mesmo ela se consegue,
deixo-a morrer, mãe,” (p.113)5. O monólogo não ver- por vezes, inventar. A mãe gastou-se a bordar os
balizado é um homicídio por omissão, num mundo enxovais de noiva de que sobreviviam, deixou de
onde o pecado reina (vd. p. 238). existir como mulher, como ser humano. “Há muito
Entre o homem e cada mulher da sua vida há um tempo que a única coisa que a mãe quer é repetir
comportamento específico. Repetido como para todos os dias os mesmos gestos até ao dia em que
fundar a relação, mas sublinhando a discrepância já não precise de os fazer.” (p.191) Mecanismos de
entre o que é um comportamento e o que são os autómato, não de gente. Elas reificaram-no, como
pensamentos e sentimentos que atravessam as ele as usou. Todos parecem alguém que não são
personagens, na lucidez com que o narrador as de facto, e sofrem o absurdo desse desvio.
conta, adotando os vários pontos de vista. A construção das personagens pelo discurso
114 O homem e a ex-mulher “portavam-se como do narrador confunde o leitor naïf que tenderá a
amantes”, leitmotiv repetido ao longo da narrativa. justapor narrador e personagem narrada, pela
“Ambos gostavam de se comportar como amantes, frequente sobreposição do ponto de vista de quem
não tendo a obrigação de fingir que se amavam, de conta com o da personagem sobre quem se conta.
se mostrarem felizes. Não se conseguiam afastar DMC é exemplar na subtil passagem entre a voz de
porque a única obrigação que tinham era de se um narrador heterodiegético e omnisciente, para
portarem como amantes.” (p.25)6 A sua relação a de um narrador homodiegético, personagem e
não é aquilo que parece, não corresponde aos voz narrativa que evidencia o ponto de vista de um
comportamentos observáveis. Daí a ferida de Eva, participante na história.
preterida, enganada, esquecida, limitada à vida Assim, é curioso notar que a proposição: “um
interior, às suas invenções, aos três níveis de água amor tão exagerado, quase uma doença,” seja as-
e de azul de que diz necessitar para viver. sumida por várias vozes, e que a ideia expressa se
O homem e a rapariga “portavam-se como apai- modifique na alteridade: “um amor tão exagerado,
xonados.” quase uma doença,” pensava o homem do senti-
Andavam abraçados na rua. Beijavam-se. Riam mento da ex-mulher por si (p.175); pensou depois
de tudo. Não achavam nada de que não gostas- do seu amor pela rapariga bonita. (cf. pp. 176, 195,
sem. Falavam ao mesmo tempo e forçavam coinci- 199, 200, 220); pensa Eva, já no final da relação,
dências. Quando se deitavam provocavam o desejo do amor que dedica ao homem (cf. p. 213). O amor
com medo de adormecerem sem se terem amado. pode ser excessivo? Pode ser doentio? Pode ca-
Quando isso acontecesse a ilusão desfazia-se e a muflar o absurdo da sua ausência? Eva sabe que
verdade apareceria intolerável. Seriam apenas dois “A verdade é sempre muito difícil de compreender.
corpos que não sabiam o que faziam ao lado um A mentira é sempre mais compreensível, mais lógi-
do outro.” (p. 179) ca, mais correcta como tudo o que é construído.”
(p. 146) Como a ficção é mais compreensível que
O homem e a mãe: “Portavam-se como desco-
a realidade. A literatura é uma construção estética
nhecidos. (…) portavam-se como estranhos mas
que imita o mundo, revelando-o. Mas o discurso
nunca sentiram necessidade de se portarem de
do narrador e os pontos de vista que adota neste
forma diferente.” (p.97)
romance mimetizam, de certo modo, a confusão de
5 Novamente na p. 120.
cada ser enredado em relações familiares e sociais
múltiplas e a ausência de nomes joga a favor da
6 Vd. por exemplo, pp. 167, 206
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
ções da mulher gorda a quem a vida aconteceu ao este momento pode já não existir para mim
lado, a quem a vida impôs um destino que lhe rou- (p.10)
bou a vida. Porque “quando nos põem numa vida
Se a narração depende da voz e da organização
não sabemos ter outra” (p.28, 122, 156, 181) “quan-
que o narrador impõe à história, há, neste romance,
do nos põem numa vida temos de a levar para
marcada pelos deíticos e pela focalização interna,
todo o lado” (p.139) “quando tentamos fugir da vida
uma exacerbação da subjectividade do que é nar-
em que nos puseram acabamos por nos perder”
rado, na medida em que se anula a distância entre
(p.140) ”quanto mais queremos fugir da vida que te-
quem conta e o que é contado e se encurta tam-
mos mais ela se agarra a nós” (p.150). Um discurso
bém esse espaço com quem lê, empaticamente ou
interrompido aleatoriamente por ideias mais ínti-
com a objectividade do leitor literário experiente.
mas, ou por frases feitas, ou pela vox populi… “as
Por outro lado, a predominância da utilização do
regras de educação e de cortesia devem manter-
presente do indicativo para todos os tempos da
-se sempre que possível” (p.138); “uma senhora
história, compacta o tempo no momento da morte,
deve em qualquer circunstância ser chic, très chic”
o momento da narração, um tempo que escapa à
(p.189) “não houve rapaz deste bairro com quem
cronologia:
não tenha ido até que se meteu com um retornado
preto e já mais nenhum a quis” (p.90) É a ficcio- sei de tudo num tempo que não é este que
nalização de alguém que, podendo ter tido tudo, está a passar, nem o que já passou, nem o
pouco ou nada teve, pouco ou nada foi: “a menina que vai passar, um tempo planificado, aces-
é má, a menina é uma menina mesmo muito má” sível por inteiro como as estradas dos meus
(p.23, p.147) dizia a criada, vítima de todos, da mapas, o tempo finalmente cartografado
criança com o estigma da rejeição dos pais: “esta como as terras dos mapas, sítios que só
miúda faz tudo para nos aborrecer”; “esta miúda existem para me esperarem, tempos que só
faz sempre o que não deve”; “com esta miúda existem para que eu os percorra, de cabeça
ninguém consegue fazer nada, nem sequer morrer” para baixo, suspensa pelo cinto de segurança,
116 (p.159). “a vergonha que o teu pai tem de ti, Violeta” num momento em que posso já não existir,
(p.31) “o meu pai tinha vergonha da mostrenga em num momento que pode já não existir para
vez de ter vergonha do bastardo” (p.188). Depois, a mim (pp. 215-216)
sua própria filha que não lhe chega a dizer “os teus Nos tempos de fim de um império cresceu Vio-
pais não gostavam de ti porque não merecias, eu leta, a filha de Celeste, a mulher que usa o Francês
não gosto porque não mereces” (p77). E os últimos para parecer distinguée. Presa na teia das apa-
a vê-la: rências, afivelada ao mundo colonial moribundo,
os rapazes calam-se por segundos quando Celeste pertence ao tempo da História onde se
me vêem, e depois, um deles, tanto faz, são inscreve a ficção, na medida em que representa
todos parecidos, diz large, extra extra large, um sector da sociedade portuguesa que passou
todos se riem, ainda a gargalhada não se a viver em função do passado, descolado do real.
desfez e já estão enredados em suposições, A gorda vitimizada é a mãe de Dora, o anjo que
come para aí o triplo de uma pessoa normal, salvou os avós. É ainda a vendedora de ceras depi-
pode ser uma doença, a cama, já imaginaste latórias, a melhor, num combate desigual contra os
a cama lasers espanhóis.
De entre as personagens secundárias, lembro
era uma mulher tão gorda, tão gorda, que
as personagens-tipo Denise e Betty, clientes das
quando caía da cama caía para os dois lados
ceras – nomes marcados de um mundo dos salões
(pp. 20-21)
de estética, como as raparigas do Salão Prince-
Vamos encontrá-la só, no momento final da vida, sa, de outros tempos, Denise com o seu escravo
em trânsito entre a casa que deixou de ter e a que ucraniano, Betty na vivenda clandestina, com a
não poderá, portanto, voltar e a casa de uma clien- profissão clandestina, a vida clandestina. E Maria
te. Entre o passado e o infinito… da Guia, a criada da mãe que a criou a ela, que se
inesperadamente matou a ser criada e não chegou a ser mulher, que
contava a Violeta a história da sua infância e dos
não sinto dores, não tenho medo, os meus muitos irmãos, dos mortos em pequenos e da mãe
olhos afogados na gota de luz, os meus ouvi- que foi vendendo os outros por falta de pão e amor
dos um albergue de grilos, para dar.
neste momento posso já não existir aqui Violeta atravessa a vida e a história quase sem
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Referências Bibliográficas
CARDOSO, Dulce Maria, (2002) Campo de san-
gue, Alfragide, Edições ASA.
(2005) Os meus sentimentos, Alfragide, Edições
ASA. .
Steiner, Georges (1993), Presenças Reais, Lis-
boa, Editorial Presença.
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Tudo é dito por um observador – Humberto invejável, ao fazer da vida conhecimento e devolver
Maturana vida ao conhecimento através das confissões em
primeira pessoa do sujeito lírico, suas histórias,
No cenário mundial do século XXI, a prosa apa- suas emoções e seus afetos. Afinal, ela
renta ser o único sinônimo de Literatura, contudo
a poesia não se transformou em algo do passa- [...] se rende e se aumenta no esforço de inter-
do, ela continua viva e a promover uma aventura pretar o mundo, mas esse mundo interpretado
é o universo coletivo dos homens, e seus pro-
*Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro blemas não apenas a afetam – como chegam
(PUC-Rio). Ex-bolsista da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes- a criá-la. A primeira pessoa do singular é hoje
soal de nível Superior de doutorado sanduíche pelo programa de cooperação
internacional entre PUC-Rio e Universidade de Copenhagen, DK. E-mail: mais do que nunca uma primeira pessoa do
moizalmeida@gmail.com plural. E assim o “tempo interior”, ele próprio,
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
pois se a lírica se dedica a pensar o social, bem e mal, entre tantas outras dicotomias.
devota-se a pensar História, e faz matéria sua Descartes (1596-1650) com sua máxima “Penso,
a temporalidade feita pelos homens: eis o logo existo” relacionou a razão como traço distin-
tempo íntimo confundido e engrandecido com tivo do espírito humano a representar a clareza do
o próprio tempo da História. A poesia se torna pensamento e a competência dedutiva enquan-
então crítica da sociedade (MERCHIOR, 1965, to que a emoção conota a obscuridade e a vida
p. 154). menos disciplinada das paixões. Segundo essa
lógica, para se alcançar os melhores resultados, as
emoções teriam de ficar “de fora”, pois o processo
A Poesia, semente do novo, carrega marcas da
racional não deveria ser prejudicado pela paixão.
inscrição do sujeito lírico por trás da mancha no
Tal pensamento leva-nos a Maturana (2002, p. 12)
papel, na escrita de poetisas contemporâneas e
que diz que:
seus olhares múltiplos sobre o mundo. Para falar-
mos da poesia e do feminino, selecionamos quatro
poemas de língua portuguesa retirados da obra Todos os conceitos e afirmações sobre os
de quatro poetisas: Darcy França Denófrio (1936, quais não temos refletido, e que aceitamos
de Jataí - Go - Brasil); Ana Luísa Amaral (1956, de como se significassem algo simplesmente
Lisboa - Portugal); Lília Pereira da Silva (1926, de porque parece que todo o mundo os entende,
Itapira - SP - Brasil); e Raquel Naveira (1957, de são antolhos. Dizer que a razão caracteriza
Campo Grande - MS - Brasil). Os poemas ampliam o humano é um antolho, porque nos deixa
suas vozes para além do cânone e nos proporcio- cegos frente à emoção, que fica desvalorizada
nam repensar afeto, emoção, razão e nosso estar como algo animal ou como algo que nega o
no mundo à luz dos estudos do Construtivismo racional. Quer dizer, ao nos declararmos seres
Radical e de pesquisadores como António Damá- racionais vivemos uma cultura que desvaloriza
sio, Humberto Maturana, Michel Foucault, Óscar as emoções, e não vemos o entrelaçamento
120 Gonçalves entre outros. cotidiano entre razão e emoção, que constitui
nosso viver humano, e não nos damos conta
de que todo sistema racional tem um funda-
Reflexões sobre o humano mento emocional.
Não existe o humano fora do social - Humberto
Maturana
“Antolhos” são também uma boa tradução para
a visão do sujeito homem a representar a parcela
Para organizarmos nosso conhecimento de
racional e da mulher, a emocional, como se pos-
mundo e nos situarmos nele é preciso indagarmos
sível fosse entender a “razão” separada da “emo-
sobre o que é a mente, o que conhecemos e como
ção”. Não há como negar que inda subestimamos
conhecemos e, desta forma, compreendermos:
nossas mentes e o funcionamento de nossos
“como vivemos, de fato, em um espaço psíquico, e
corpos, e não nos darmos conta que o cérebro em
como esse viver modula a dinâmica do nosso sis-
constante e profunda comunicação com o corpo é
tema vivo e vice-versa” (MATURANA, 2002, p. 107).
o responsável pelos sentimentos que nos surpreen-
Depois das descobertas da neurociência1, o dem com um mundo de emoções. Para Damásio
dualismo mente versus corpo perdeu terreno para (1996, p. 282):
a visão do homem integral, multifacetado, ligado a
sua biologia, mas muito mais a cultura a que per-
tence. Contudo, somos ainda fortemente influen- A perspectiva da “razão nobre”, que não é
ciados pela visão dualista que esteve presente em outra senão a do senso comum, parte do prin-
nossa cultura em concepções, como por exemplo, cípio de que estamos nas melhores condições
as de Platão que distinguia matéria e forma, Kos- para decidir e somos o orgulho de Platão,
mos aisthetos e Kosmos noetos, corpo e razão, Descartes e Kant quando deixamos a lógica
e, principalmente, nas epístolas de São Paulo que formal conduzir-nos à melhor solução para o
marcaram decisivamente a tradição ocidental com problema. Um aspecto importante da con-
distinções entre alma e corpo, espírito e matéria, cepção racionalista é o de que, para alcançar
os melhores resultados, as emoções têm de
1 A neurociência faz parte das chamadas “ciências cognitivas” e seu campo ficar de fora. O processo racional não deve ser
é bastante vasto e heterogêneo por isso, não é nossa intenção abarcá-lo em prejudicado pela paixão.
toda sua multiplicidade, mas apenas nos aspectos da formação da mente
inteligente que dão base para repensar a linguagem e o eu lírico.
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
A mente é fruto do cérebro; fruto de uma combi- obscuro, sem deixar por isso de ser vital,
nação refinada e fluida de imagens do presente e como as plantas que nascem em terrenos
recordadas em proporções que variam constante- áridos. Como um imperativo da natureza, na
mente, em uma inter-relação lógica, que se formam busca incessante pelo equilíbrio, a mulher foi
mesmo quando não temos consciência delas e, em emergindo pela afirmação da sua condição de
muitos casos, essas imagens conseguem influen- ser humano e da sua identidade de ser femini-
ciar o nosso pensamento e nossas ações. Embora no.
as emoções sejam considerados entidades diáfa-
nas, incapazes de partilhar o palco com o conteú-
do palpável dos pensamentos, não parece sensato Tais condições adversas e antinaturais de que
exclui-las de qualquer concepção geral da mente, nos fala Castro são também matéria da poesia
haja vista que “os sentimentos são tão cognitivos escrita por mulheres e suas histórias se delineiam
como qualquer outra imagem perceptual e tão de- por trás do sujeito lírico; histórias que não se
pendentes do córtex cerebral como qualquer outra encontram em livros, mas retratadas por vozes
imagem” (DAMÁSIO, 1996, p. 190). esquecidas a margem do cânone que reportam
múltiplas realidades e nos remetem a pensar o que
Conta-nos o autor, ainda, que a consciência está
diz Gonçalves (2002, p. 31): “Os tempos foram-se
entre os mais espantosos, fundamentais e, aparen-
encarregando de mostrar que os indivíduos, que
temente, misteriosos constituintes do nosso ser;
a ciência tomava como objetos, eram sobretudo
sem ela, ou seja, sem uma mente dotada de sub-
projectos, isto é, seres em constante movimento
jetividade, não poderíamos saber que existimos, e
no espaço relacional e que era neste espaço que,
muito menos quem somos e aquilo que pensamos.
longe de encontrarem uma identidade, eles consti-
Se a subjetividade não tivesse surgido, a memória
tuíam uma autoria.”
e o raciocínio provavelmente não teriam se expan-
dido de forma tão prodigiosa e o caminho evolutivo As exigências da “multirealidade” (GONÇALVES,
para a linguagem e para a elaborada versão huma- 2002) obrigam a acertos de ângulos; a rever vozes
na da consciência não teria sido aberta: “O amor de poetisas esquecidas na invisibilidade do cânone 121
nunca teria sido amor, apenas sexo. A amizade não literário, a fim de renovar nossa visão ampliada na
passaria de uma mera vantagem cooperativa. A alteridade. Pensar no conceito de identidade e de
dor nunca se teria tornado sofrimento, [...] o prazer autoria que a multirealidade do século XXI convoca,
nunca viria a se tornar alegria” (DAMÁSIO, 2010, p. faz-nos revisitar a poesia escrita por mulheres, a
20). começar pelo poema Sou X “sou’” de Darcy Fran-
ça Denófrio (1980, p. 14) e sua visaõ da civilização
como um lugar de desconforto:
Marcas do feminino na poesia contemporânea
Foi escrevendo que descobri que sou uma Eu sou
mulher – Darcy França Denófrio o que não sou:
peias e amarras
Mulher e homem são iguais na essência de sua da civilização.
humanidade, contudo diferentes no a-temporal da
sua condição de ser feminino e masculino; juntos
formam o equilíbrio social que deve ser justificado Eu sou
pela via da igualdade e não da diferença (CASTRO, “eu” Censurado,
2000). Desta forma, os gêneros masculino e femi- amordaçado,
nino devem ser pensados como uma dimensão re- por milhões de mãos.
lacional haja vista que o ser humano é ser feminino
e ser masculino, cujos papéis são moldados pela Eu sou rio subterrâneo
sociedade, frutos de uma escolha cultural.
que desviaram
Para Castro (2000, p.5):
de curso
[...]
Apesar das condições adversas e anti-naturais Eu sou cérebro
criadas pelo domínio histórico do mundo
mais que coração.
masculino [...] as mulheres nunca deixaram de
afirmar, paulatinamente ou não, a sua condi- Eu sou mentira
ção de ser feminino. Foi um estar tantas vezes mais que verdade.
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
Segundo Elias (2006) quando hoje refletimos e o calcanhar bem firme na serpente,
tentamos elaborar teorias acerca da estrutura dos a técnica em ardente e claro ceptro.
afetos humanos e dos controles sociais, partimos
da assunção tácita de que é possível construí-los
Nas palavras do eu lírico: “E devia”, mas há “pro-
a partir de nossa própria sociedade, tal como se
gramas” em nosso cérebro que teimam em funcio-
apresentam aqui e agora. No entanto, se os juí-
nar mesmo quando tentamos desliga-los; há um
zos de valor podem parecer evidentes, o mesmo
labirinto que nos deixa perdidos na vastidão dos
não ocorre com os fatos a que se referem e isso
caminhos neuronais e nos impedem de encontrar
acontece, em parte, porque os estudos empíricos
a “saída perfeita” para controlarmos nosso sentir,
das transformações operadas a longo prazo nas
nosso emocionar, a maneira de afetar e de sermos
estruturas da personalidade e, especialmente,
afetados. É essa química que constitui nossos cé-
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
mundo para o papel e nos leva a mergulhar no Relógio D’Água Editores, 1994.
universo do “outro”; um exercício de alteridade GOFFMAN, Erving. A representação do eu na
que possibilita distanciarmo-nos de nosso mundo vida cotidiana. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
fechado e, ao retornarmos para este, podermos GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, rit-
dar-lhe novas cores e significados. mos. São Paulo: Ática, 1985.
Nossa escolha pelos quatro poemas teve como GONÇALVES, Óscar F. Viver narrativamente.
intenção resgatar um pouco da poesia escrita por A psicoterapia como adjetivação da experiência.
mulheres contemporâneas da margem esquecida Coimbra: Quarteto, 2002.
e apagada do sistema Literatura; trazer o tom de
MATURANA, R. Humberto. A ontologia da rea-
suas vozes, a confidência de seus sentimentos,
lidade. Cristina Magro, Míriam Graciano e Nelson
seus afetos e carências; a concepção intimista de
Vaz (Org.) Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
diferentes eus líricos a descreverem seus mundos
e suas buscas de completude. A participação da Naveira, raquel. Abadia. Rio de Janeiro: Imago,
mulher na Literatura, bem como em todos os ou- 1995.
tros campos do saber, abre portas para um exercí- SILVA, Lília A. Pereira. 33 anos de poesia. Auto-
cio ético de alteridade, de projetos autorais plurais biografia poética. São Paulo: Scortecci, 1991. v.1.
quando a musa toma para si a pena e passa a ser
ela, a voz do poeta.
Abordar a escrita da poetisa contemporânea
como autora, sujeito da enunciação (o eu lírico)
e objeto do enunciado, levaram-nos não apenas
a poetisa/mulher a falar do feminino (condição, sen-
timentos, afetos etc.), mas também a destacar este
nicho literário e, assim, ressaltar sua importância,
seu valor a fim de que todos tenham espaço dentro
126
do mundo que participamos.
Referências Bibliográficas
AMARAL, Ana Luísa. Poesia reunida. 1990-2005.
Vila Nova de Farmalicão: Quasi Edições, 2005.
ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin
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BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São
Paulo: Paulus, 2002.
DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes:
emoção razão e o cérebro humano. Tradução por-
tuguesa Dora Vicente e Georgina Segurado. São
Paulo Companhia das Letras, 1996.
. O livro da consciência. A construção do
cérebro consciente. Portugal: Temas e debates,
2010.
DENÓFRIO, Darcy França. Vôo Cego. Goiânia:
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CASTRO, Zília Osório de. Nota de abertura In:
IPHI-UNL, Revista Faces de Eva. Estudos sobre a
Mulher, 2000. n. 3. p.5-7.
ELIAS, Norbert. O processo civilizacional. Investi-
gações sociogenéticas e psicogenéticas. Tradução
Lídia Campos Rodrigues. Lisboa: Dom Quixote,
2006.
Foucault, Michel. História da sexualidade I. A
vontade de saber. Tradução Pedro Tamen. Lisboa:
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Maria Emília Archer Eyrolles Baltasar Moreira, teatro, como já disse. Podemos dizer, como iremos
na cena literária Maria Archer, nasceu na Rua de ver a seguir, que é uma das nossas melhores escri-
S. Marçal, freguesia das Mercês, em Lisboa, a 4 toras da primeira metade do séc. XX.
de Janeiro de 1899, e não de 1905, ano referido Eu tomei contacto com Maria Archer num alfar-
nalgumas obras. Maria Archer terá feito apenas a rabista de Lisboa. Hoje, e ainda bem que assim é,
4ª classe (terminada aos 16 anos, por iniciativa pró- temos já 3 livros de Maria Archer reeditados e que
pria) o que nos leva a considerá-la uma autodidata, podem ser comprados nas livrarias Ela é apenas
em especial se pensarmos que escreveu 31 obras, mulher, Nada lhe será perdoado e Memórias da li-
publicadas entre 1935 e 1963, tendo algumas delas nha de Cascais, dois deles (os 2 primeiros) graças à
chegado à terceira edição (como por exemplo Há editora Parceria António Maria Pereira que apostou
de Haver uma Lei e Aristocratas e Ela é Apenas na sua republicação e portanto não é só através de
Mulher que é de 1944 e no mesmo ano saiu a 2ª alfarrabistas que podemos tomar contacto com a
edição tendo chegado à 3ª edição em 1952), 5 sua escrita, que considero ter sido um marco para
delas foram publicadas no Brasil (Terras Onde se a época em que viveu e é nesse sentido que sem-
Fala Português, África sem Luz, Brasil, Fronteira pre me deram testemunho quando dela falo com
de África, Os últimos Dias do Fascismo Português pessoas mais velhas.
e do último nada se sabe), Dentre elas estão cinco Maria Archer foi uma das poucas mulheres do
peças de teatro e três traduções. seu tempo a ter como profissão a de jornalista e
Colaborou também em diversos jornais, tanto escritora. Mas não se julgue que era fácil ser uma
em Portugal como no Brasil, e escreveu desde no- mulher escritora na época. Este é outro reconhe-
velas a romances, passando por ensaios e contos cido mérito de Maria Archer. Muitas mulheres da
de literatura sobre as colónias e ainda peças de época, tais como Maria Lamas e Irene Lisboa,
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
esconderam-se atrás de pseudónimos, quer fe- o trabalho e com os homens dominavam os seus
mininos quer masculinos, para poderem escrever romances e novelas.
à vontade sem penalizarem a sua vida pessoal ou Mas se o tema dominante era o mesmo havia
até mesmo para obterem maior imparcialidade por novidades em todas as suas obras. O estatuto
parte da crítica. Se agora temos muitas mulhe- social das mulheres que retratava era diferente, a
res escritoras, no início do séc. XX, quando uma mulher tanto era vítima como até brincava com os
mulher queria escrever sobre outro tema, que não homens e por isso lia-se com empolgamento as
a vida doméstica ou a educação dos filhos, refugia- suas obras. O seu conhecimento profundo do pen-
va-se atrás de um pseudónimo. samento da mulher das várias classes sociais per-
Maria Archer nunca se escondeu, nunca usou mitia-lhe falar com à vontade e realismo das suas
pseudónimos. Talvez esse mesmo facto tenha vidas. Já João Gaspar Simões falava, em 1950, do
levado ao afastamento da família que, por vezes, seu «superior espírito de observação, penetrante
não viu com bons olhos certas publicações suas. análise social, sólida expressão literária, magistral
Também o seu divórcio (esteve casada apenas 10 equilíbrio no doseamento do imprevisto, pelo que
anos durante os quais publicou apenas em periódi- não poderia deixar de ser considerada desde já um
cos) poderá ter tido alguma base na sua profissão grande contista, um grande escritor» .
apesar da causa pública do mesmo ter mais a ver Pela sua obra passam desde a jovem inocente
com questões familiares (sevícias e injúrias graves) que vem da província para a cidade para traba-
e menos profissionais. lhar na casa senhorial por intercessão de uma tia
Maria Archer viveu numa época em que era su- (Esmeralda de Ela é Apenas Mulher) que conhece
posto a mulher ser apenas boa filha, boa esposa e toda a vida diferente da cidade e se apaixona por
boa mãe. As únicas atividades permitidas à mulher um mulherengo que lhe jura fazer por ela todos os
eram a lida doméstica e a educação dos filhos. Ma- sacrifícios mas que, quando ela lhe diz que pensa
ria Archer dizia que escrever era fugir ao longo si- estar grávida, a abandona e ela vê-se desgraça-
lêncio a que a mulher da época estava votada. Até da, de volta à terra do Alentejo onde até os pais a
128
o acesso à cultura é negado à mulher na época, tratam mal por terem tomado conhecimento do seu
como Maria Archer retrata bem na personagem de namoro na cidade. De regresso à cidade, já a pen-
Adriana (de Casa sem Pão) que tinha de se escon- sar ganhar a vida com um trabalho decente verifica
der para ler livros. que é difícil uma jovem arranjar trabalho em Lisboa
Houve mesmo casos em que a crítica a um livro sem ter de “ser simpática para os homens”. Decide
escrito com pseudónimo masculino era otimista e afinal casar por dinheiro e depois acaba por trair o
depois de se saber que havia sido escrito por uma marido com o homem que, nos primeiros tempos,
mulher, o mesmo crítico dizia o contrário do que a abandonara.
havia dito antes. João Gaspar Simões foi, dos crí- Também temos a mulher da alta sociedade que
ticos literários da época, o que melhor entendeu a vive pelo dinheiro e pensa (Maria Benta de Aris-
luta da mulher escritora. Disse ele que «Em Portu- tocratas p.129) que «na vida tudo falha, menos o
gal uma mulher que queira falar de si mesma com gosto de gastar dinheiro, de ter dinheiro, de fazer
franqueza equivalente à de um homem quase pudi- coisas que se podem fazer com dinheiro». É esta
co corre risco de enxovalho» Maria Archer mostrou a personagem que considera que com 20 anos a
as vozes profundas do seu ser sem nunca recorrer jovem deve casar. Também a única personagem da
a pseudónimos o que fez dela única na sua época comédia “Alfacinha” se preocupa com o facto de
e no seu meio. Ela partia do real e era esse real que ter vinte anos e ainda não ter casado. Neste caso
interessava aos seus leitores. Ela própria reconhe- vemos uma jovem da burguesia que, apesar de
ceu que a literatura feminina da sua época não era amar muito um jovem, como este ainda pensava
criativa «pois a mulher encontrava-se subjugada tirar o curso o que pressupunha uma espera de 5
pela estrutura social e familiar repressiva.» anos, decide jogar com vários outros mostrando
Talvez por ter sido tão direta e tão profunda nas toda a sua arte de sedução para ver qual decide
suas obras tenha visto duas delas (Ida e volta duma casar com ela enquanto ainda «fazia vista».
caixa de cigarros, 1938, e Casa sem pão, 1947) Também a vivência de uma vida de aparências e
apreendidas pela Censura. de preconceitos pode ser vista em Filosofia duma
Mas passando agora à sua escrita em si. A preo- mulher moderna onde vemos uma mãe aristocrata
cupação/tema principal da sua obra era a situação (“Sujeição”) a convidar a filha e o marido, de quem
da mulher e as dificuldades por ela sentidas. A esta está separada, para almoçarem em sua casa
vida da mulher, a sua relação com a família, com ao domingo. Também o drama da solteirona, cujo
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
pai foi para África para casar as filhas que viam uma rapariga loira”. Diz mesmo que ela se aparenta
no casamento uma libertação, tendo na época, ao a Camilo. Diz-nos o mesmo ensaísta que se existir
contrário das irmãs, decidido não casar, quando o um tema nos seus contos este é o tema social: a
quis fazer já era tarde de mais. rebelião da mulher contra as normas sociais sacri-
Em Ida e volta duma caixa de cigarros temos a ficadoras da sua sagrada independência». O conto
descrição pormenorizada de uma mulher que vive de Maria Archer é o conto de fundo social, o conto
o prazer do sexo em sucessivos encontros até de costumes.» Ela é considerada por ele «um dos
que vê o seu sonho destruído por uma mulher que nossos primeiros contistas contemporâneos, um
reclama «os direitos do seu ventre fecundado» e dos nossos mais fortes temperamentos de escri-
depois vinga-se do homem que entretanto conhece tor». Como diz o Prof. Fernando de Pádua, seu
e que por ela demonstra amor. Mas com nenhum sobrinho, a propósito destes elogios carregados de
dos dois fica. Conhecera o amor verdadeiro e o masculinidade, «só faltaria dizer que Maria Archer é
amor carnal, agora queria o amor integral. um homem».
No romance Bato às Portas da Vida temos o Termino apresentando duas citações da própria
problema da adolescência gerida pelas aparências, Maria Archer seguidas de um desafio:
a necessidade de, independentemente de como se «Saibam quantos fazem coro no desprestígio
ganha o dinheiro, aparentar um estatuto superior da obra literária das mulheres que os nossos livros
ao que se poderia alcançar, mas que vem de famí- são momentos heróicos. Custam-nos coragem, e
lia. Mais uma vez temos a jovem voluntariosa que angústias, que os homens, para igual feito, desco-
rejeita vender-se por um estatuto mas que, depois nhecem de todo» (in “Revisão de Conceitos Anti-
de ter o seu dinheiro fruto de árduo trabalho, acaba quados” out. 1952)
por casar entregando o seu dinheiro ao marido, «Eu precisarei de morrer para que a minha obra
que lho rouba quando se separam. A solidão é uma seja avaliada na altura que eu lhe atribuí quando
constante deste romance onde as decisões mais a escrevi – como um documento histórico duma
importantes são tomadas por ela sem qualquer ap época e da situação da mulher. » (1973) 129
oio. Lanço então o desafio – Não deixemos que a
Mas também temos, como disse no início, a víti- sua obra morra, pois muito ainda há a fazer, no-
ma que ama e se vê traída ( a Adriana de Casa sem meadamente estudos sobre os seus cadernos
pão) mas que salva a casa quando o marido perde coloniais de que fala maravilhosamente o Prof.
o emprego, fazendo traduções. Conhecemos o Salvato Trigo aos seus alunos da Universidade Fer-
marido com dupla vida. O marido que reconhece a nando Pessoa e estudos sobre as suas peças de
mulher como santa mas a quem não deseja. O que teatro. Devemos enaltecer e reconhecer a sua luta
quer a mulher que todos desejariam ter e por isso pela dignificação da condição da mulher através
casa com ela e nem imaginaria separar-se dela. da apresentação da realidade que a mulher da sua
Em Nada lhe será perdoado conhecemos o época vivia. A vida da mulher de meados do séc.
drama de uma mulher enganada até aos 41 anos XX não está bem conhecida – os jovens de hoje
pela família do marido e por ele. Vê-se obrigada a não a conhecem e através da obra de Maria Archer
refazer a sua vida, não conseguindo permanecer poderão conhecê-la.
muito tempo nos vários empregos por ter sido Encontro-me no presente a escrever a sua
educada «para menina rica, para ser servida, para biografia e vejo com prazer que, depois de fazer a
a inutilidade.» minha tese de mestrado sobre Maria Archer, vários
Maria Archer queixou-se de como as mulheres investigadores de outros países se interessam por
escritoras têm de trabalhar «Trabalhamos sem esta nossa escritora e escrevem artigos e teses
poder sair do círculo de arame farpado com que o sobre ela. É pena os editores de livros escolares
clã e a sociedade nos limitam a criação» (in “Revi- não se terem ainda lembrado dela como já se lem-
são de conceitos Antiquados”, Ler, out. 1952) mas braram de Maria Lamas e Irene Lisboa. Talvez no
parece que ela conseguiu sair desse círculo mos- futuro nos lembremos do seu testemunho histórico.
trando e descrevendo a vida social da época como Bem hajam todos por nos fazerem reviver a vida
nenhuma outra. da mulher do início do séc. XX nas suas diversas
Também como contista sobressai. vertentes.
É João Gaspar Simões (em Filosofia de uma
mulher moderna) que diz que Maria Archer em
alguns contos de Há-de Haver uma Lei nos faz
pensar em Eça de Queirós e “Singularidades de
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
130
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
abrindo espaço à construção de uma narrativa o ser mulher é plasmado em toda a sua dimensão
de pendor existencialista que recupera os temas caleidoscópica, ao investir numa cosmovisão do
universais do conflito, da solidão, da morte, numa feminino em permanente interação com o mundo
perspetiva de desconstrução do próprio texto circundante. A mulher não é, assim, elevada a uma
literário – a asfixia da literatura brasileira no período categoria que a isola das relações humanas e a
da ditadura militar incita à abertura, transgressão e deifica enquanto paradigma, pelo contrário, ela
subversão das matrizes literárias.1 assume as verdadeiras proporções de uma Ariadne
Em Lya Luft (Santa Cruz do Sul, RS, 1938), o que lança e desnovela o fio no labirinto do quotidia-
trabalho da linguagem intensifica-se na ‘ótica do no.
sujeito’: o processo narrativo é, conscientemente, Deste modo, quando Lya publica, a abrir a
motivado por uma narradora feminina que narra a década de 80, a novela As Parceiras, percorre
sua própria história em diálogo com outras per- o caminho antes trilhado por Clarice ou Nélida,
sonagens, maioritariamente, femininas – trata-se singularizando os laivos da sua escrita não só no
de uma espécie de genealogia do feminino, como ethos feminino, mas também extravasando e supe-
atesta a saga familiar da obra As parceiras. rando os lugares comuns que colocam a mulher na
No inventário ou levantamento crítico da litera- sociedade e na própria literatura. Se atentarmos no
tura feminina brasileira do séc. XX, Nelly Novaes percurso de Lya Luft, podemos verificar que a sua
Coelho marca, justamente, as décadas de 60 e 70, trajetória se inicia em plena década de 60 – sinto-
como viragem e afirmação de mulheres-autoras ma dessa “explosão no feminino” – mas só se (con)
em busca do seu palco e da sua pujança criativa, firma e (con)sagra nos anos 80 – período de síntese
como o desenrolar do fio de Ariadne em busca de e sincretismo. Por outro lado, Luft revisita com fre-
uma saída do labirinto repressivo instaurado pela quência a linguagem de Clarice Lispector – a forte
golpe militar de 64: herança desta escritora fará eco na escrita luftiana,
sobretudo no recurso ao discurso indireto livre, ao
monólogo e à digressão narrativa.
132 Isto significa que, da submissão ao ‘modelo’,
Através de uma ótica no feminino, a autora de
ela [a mulher] passa gradativamente à sua
Pensar é Transgredir joga com os vários jugos
transgressão e, nos anos mais recentes, à
que dominam as relações humanas, não fazendo,
busca de uma nova imagem que lhe permita
por isso, da mulher uma condição sine qua non
auto-identificar-se novamente com segurança.
reveladora de um pathos endócrino e crónico. É
[…]. Em busca de uma nova imagem ou iden-
na noção de relação que a aposta ganha sentido,
tidade as mulheres rompem audaciosamente
quer do ponto de vista dialógico ou, até mesmo,
com a antiga imagem e, em encontrar a nova,
monológico. A relação com os outros (alteridade)
assumem uma paradoxal multiplicidade de
ou com o próprio (identidade) é a rede que sustenta
identidades conflitantes…2
a existência não linear dos indivíduos. Ao propor
uma enunciação no feminino, a narrativa luftiana
De facto, a escrita luftiana coloca a mulher no aborda uma dimensão da ficção brasileira do séc.
palco – título homónimo do livro publicado em XX que marcou, simultaneamente, a emergência de
1984 – como celebração do universo feminino, mulheres-autoras e a reflexão em torno da proble-
quer numa vertente mais ou menos patética (pa- mática erótico-sexual (d)escrita pelo próprio sujeito
thos) quer desafiando os poderes estabelecidos feminino.
(morais e sociais), através de uma hybris libertado- A própria noção de pacto ou testemunho auto-
ra. É neste sentido que apontam as narrativas da biográfico (narrativa da narrativa) surge implicada
autora gaúcha: em linguagem lispectoriana, aqui, em As parceiras pela construção textual – assumin-
do a forma de um registo diarístico (de Domingo a
1 Na obra Anos 70/80. Cultura em Trânsito, Ventura, Gsapari e Heloísa Buar- Sábado), a novela concatena o tempo da escrita
que da Hollanda reforçam a abertura do universo literário em contraponto ao e o tempo da diegese com a própria dimensão
fechamento proposto pela ditadura, agudizado pelo fenómeno do exílio. Assim,
da repressão à abertura, a própria ficção brasileira, através de uma intensa
onírica (metáfora da criação, os 7 dias da semana).
produção autoral feminina, sentirá a diluição do cânone e o transbordar para Esta narrativa singular será o ponto de partida para
a periferia - o epicentro é, agora, o discurso no e do feminino, pelo ensaio um inventário romanesco que se debruça sobre um
textual da mais variada índole. De destacar que estas autoras – emergentes universo familiar conflituante:
ou já de renome – experimentam os diversos géneros textuais, sendo a sua
produção multímoda (ficção, teatro, poesia, crónica, ensaio) e plurais os
enunciados veiculados. As parceiras, publicado em 1980, dá início a
2 COELHO, Nelly Novaes, A literatura feminina no Brasil contemporâneo, São
uma série de romances que podem ser defini-
Paulo: Siciliano, 1993, pp. 16-19.
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
dos como um dramático inventário de perdas, incógnito. O sótão.»4 Entre jogos de sombra e azar,
que o ser humano (principalmente as mulhe- este teatro de mulheres tem como cenário espe-
res) vai sofrendo, do nascimento à morte. […]. lhos estilhaçados que deformam e descosem os
A trilogia As parceiras, A asa esquerda do laços de família (título homónimo do livro de Clarice
Anjo e Reunião de Família – densos romances, Lispector) cujo novelo é um contínuo de pontas
expressos em linguagem contida, concisa e soltas. O espelho funciona como vórtice de uma
aparentemente indiferente ao que é narrado – identidade construída entre um código normativo
nos oferece uma dorida radiografia do univer- e o desejo de transgredi-lo, como acontece com
so familiar, patriarcal, cristão-burguês, na qual a “loucura” de Catarina de quem Anelise será um
se denuncia o desencontro profundo entre o alter-ego atualizado – o fim da narrativa irmana avó
que é vivido nas exterioridades das relações e neta no percurso que fundamenta a união de
humanas, e aquilo que se oculta nas almas.3 duas mulheres que vai muito além do mero vínculo
geracional.
O mundo feminino traçado por Lya Luft – osci-
2. Espelhos quebrados: os jogos femininos lando entre um realismo dramático e o maravilhoso
(des)velados em As Parceiras, A asa esquerda dos contos de fadas – desmascara tabus e des-
do anjo e Reunião de família monta raciocínios falaciosos e capciosos atribuídos
O entrosamento de um espaço simbólico com a às mulheres.
dimensão onírica ressalta incontornável da leitura Na obra A asa esquerda do anjo (1982) surge, de
de As parceiras, obra de maturação que revela novo, uma relação umbilical entre neta e avó, Gisela
e desvela o discurso feminino em diálogo com o e Frau Wölf, porém, é um foco relacional primado
universo dos conflitos humanos. O núcleo familiar pela negatividade: Lya Luft extrema e agudiza as
constitui a rede primária de conflitos e (des)afetos noções de identidade e língua, num universo fami-
que impulsiona a convivência – árdua e apaixonada liar cadenciado pelo matriarcado austero, rígido e
– entre a dimensão simbólica e as suas representa- implacável, no qual a revolta, o inconformismo e a
ções. Tal como em Clarice ou Nélida, também Lya 133
diferença germinam na figura central de Guísela ou
Luft convoca a língua como polo de atração, quer Gisela – a neta que sofre a ambivalência nominal
numa vertente linguístico-discursiva quer como ele- (ascendência germânica e brasileira) e espelha a
mento potenciador de desejo e, por isso mesmo, sua condição de mulher insubmissa ao paradigma
de cariz erótico-sexual. da avó:
A narrativa de Luft conduz ao conceito de ge-
nealogia – cartografia da estirpe e, também, des-
Nenhum deles, excepto talvez a minha mãe,
crição e superação desse mapa geracional. Este
suspeitava da extensão da minha dor, e do
jogo familiar ressalta da objetividade do elemento
meu medo de nunca vir a pertencer a nada
individual, na figura-protagonista de Anelise, para o
ou a ninguém. Nem um nome certo eu tinha.
confronto com o coletivo e os dramas relacionais.
E as coisas, as que pensava e sentia, em que
A abertura do texto coloca à cabeça Catarina – a
língua deveria expressá-las: em alemão ou em
matriarca da família – para que esta se desdobre,
português?5
primeiro em Norma, a filha, e, depois, em Anelise, a
neta. Mais do que diferenças, o texto constrói uma
teia de aproximações e imbricações entre Catarina Todavia, as restrições e a clausura imputadas
e Anelise, unidas não só pela força da paixão, dos pelo regime familiar vão promover não a libertação
afetos e da fantasia, mas também pela dor, pelo de Gisela, mas a sua castração erótica e intelectual
fragmento interior e pelo medo da loucura. – a incapacidade de amar o seu próprio corpo e de
No decorrer da narrativa, a repetição ou variação se entregar ao prazer de uma relação a dois, neste
das expressões “uma família de doidas” e “bando caso, com Leo, ao qual amou, mas nunca se entre-
de mulheres” é uma forma de contágio e conta- gou. A culpabilidade pelo fracasso da não afirma-
minação que conjuga os tópicos constitutivos de ção da sua personalidade feminina será um vetor
uma (des)ordem familiar vivida por mulheres: «Uma punitivo que acompanhará Gisela até ao momento
família triste e patética, todo mundo querendo derradeiro da sua aniquilação. O peso da tradição
sobrenadar – mas, e as águas? Teatro de sombras, e os dogmas e/ou tabus imputados pela sombra da
3 COLEHO, Nelly Novaes, Dicionário crítico de escritoras brasileiras, São 5 LUFT, Lya, A asa esquerda do anjo, Lisboa: Per-
Paulo: Escrituras, 2002, p. 385. gaminho, 2008, p. 25.
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
grande matriarca Wolf terão consequências irrever- encantados. A tónica nesse jogo de criaturas dos
síveis nas atitudes e comportamentos de Gisela, contos de fadas (gnomos, duendes, fadas, etc.)
nomeadamente a carência afetiva e o silenciamento surge, desde logo, em As parceiras, como suporte
de um desejo imaterializado, ao ponto de questio- ou alívio de uma realidade demasiado humana,
nar a sua própria identidade: «A minha identidade agreste e mortal. Esta dimensão simbólico-onírica
– qual é a minha identidade? […] Sem identidade, é o baluarte que ora faz o contraponto com a
como eu – qual é o meu nome?»6 realidade (clausura da avó Catarina no seu quarto
As narrativas de Lya Luft denunciam as inibi- miniaturizado) ora estimula a “idade da infância”
ções e interdições que acossaram a mulher em como alento contra a finitude humana (o caso da
pleno séc. XX – dividida entre uma mundividência morte de Cristiano) ou ainda permite o refúgio no
doméstica (a típica fada do lar) e uma assunção mundo dos sonhos quando “olhar” a realidade
erótico-sexual (a mulher independente e emancipa- parece deveras grotesco (o jogo do espelho ence-
da). O drama da identidade estilhaçada de Gisela nado por Alice).
é o mote que será extremado na obra seguinte, Nesta perspetiva, numa dissertação sobre a
Reunião de família: o jogo de espelhos será assu- infantilização do mundo de Lya Luft, Cintia Barreto
mido, ironicamente, pela protagonista Alice, num retrata a desconstrução do mito da infância, ope-
paralelismo com a Alice de Carroll, entre o real e o rada pelo simbolismo das personagens dos contos
maravilhoso. maravilhosos:
Deste modo, em Reunião de família, verificam-
-se duas particularidades relevantes manifestadas O imaginário infantil se faz presente através
nas obras anteriores – o simbolismo do espelho e das personagens dos contos de fadas de
a acentuação de um discurso negativo, pelo uso Hans Christian Andersen e dos irmãos Grimm,
intensivo dos advérbios “não” e “nunca”. Esta obra como a Rainha da Neve, o Patinho Feio e a
apresenta, também, um revés no uso da tática Branca de Neve. Alice, protagonista de Aven-
discursiva e do enredo face à enunciação de As turas de Alice através do espelho também par-
134
Parceiras e de A asa esquerda do anjo, já que o ticipa do diálogo com os romances luftianos.
conflito não surge da relação avó-neta, mas centra- Além dessas imagens, surgem figuras míticas
-se num núcleo familiar cujo protagonista é a figura que contribuem para a atmosfera simbólica
paterna e a ausência da mãe. Trata-se de uma das narrativas.8
narrativa que agudiza a mulher submissa, dona
de casa, como se autocarateriza Alice, e a forma
como é vista pelos seus pares femininos: Aretusa Retomando o fio discursivo, umas dessas figuras
(a Medusa, mulher livre, independente, saficamente míticas mais fortes é sem dúvida Aretusa, identi-
despudorada, pela menção ao amor lésbico com ficada com Medusa, aquela que petrifica com o
Corália) e Evelyn, a irmã metódica, regrada, mas olhar. Quando Aretusa entra em cena, em Reunião
enlouquecida pela morte do filho. Então, o jogo do de Família, há uma sinalética visual que se impõe
espelho vira-se contra a jogadora e Alice torna-se como referência à sua mitificação. Eis alguns dos
a impudica, a prevaricadora, a traidora, a perversa, traços adjetivantes mais veementes desta perso-
a falsa moralista. As próprias figuras masculinas, nagem – agreste, lasciva, irascível, erótica, insub-
inclusive o pai, são joguetes manipulados pelo nú- missa e inconformada – que, à semelhança de
cleo feminino, com predominância para revelações Medusa, também possui o seu ponto fraco: o amor
(epifanias?) do amor sáfico, com laivos de triangu- destrutivo de e por Corália, o calcanhar de Aquiles
lações lésbicas insinuadas (Aretusa-Corália-Alice?) que a transporta para o universo da culpabilidade e
ou desejos recalcados, como é o caso de Berta, a da punição.
serviçal, que oculta recortes de mulheres em poses De acordo com Mircea Eliade, as narrativas
pornográficas e chega a afirmar categoricamente: cumprem um propósito de reatualizar o dimensão
«os homens para mim são como a peste!»7. cosmogónica do universo, pela interpelação à ida-
Apesar de os enredos remeterem para jogos de de mítica do logos: «Embora as personagens dos
sombras num teatro eminentemente feminino, as mitos seja, geralmente, Deuses e Seres Sobrenatu-
três obras apresentam momentos de décalage em rais, e as dos contos heróis ou animais maravilho-
detrimento do real narrado, pela irrupção do ma- sos, todas essas personagens têm uma coisa em
ravilhoso num universo de sujeitos femininos (des)
6 LUFT, Lya, A asa esquerda do anjo, Lisboa: Pergaminho, 2008, p. 113. 8 BARRETO, Cintia, A representação da infância em Lya Luft, Rio de Janeiro:
7 LUFT, Lya, Reunião de Família, Lisboa: Pergaminho, 2008, p. 82. UFRJ, 2006, p. 8.
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
O estado do espelho é o primeiro momento A criança loura [Catarina] era agora uma adulta
em que, para retomar a expressão de Lacan, precoce: cheia de manias. Uma delas era o
«o eu se precipita numa forma primordial». sótão. Ali ela construiu uma dimensão em que
Primeira identificação, cadinho de todas as só cabiam os seus interlocutores invisíveis. 135
identificações ulteriores.10 […]. Mandou mobilar o sótão como um quar-
to de menina. Tudo branco. Faltavam só as
bonecas, para que a inocência fosse recom-
Desta forma, os jogos femininos (des)velados posta.12
nestas narrativas de Lya Luft acontecem justamen-
te no espaço mágico que é a casa – a importância
física, material e afetiva que reveste a dinâmica Também Anelise, à semelhança da avó, cons-
destas personagens é a de uma relação umbilical. truiu o seu sótão para (res)guardar o corpo que
Na obra A Poética do Espaço, Gaston Bachelard expulsava filhos mortos e albergar a sua infância
reforça a importância primordial da casa como de luzes e sombras; esse sótão tinha a dimensão
“primeiro cosmos”: de um espaço sonhado que restaurava a unidade
de uma identidade estilhaçada: «Fizera um sótão
para mim mesma, com traves, madeirames, tijolos
Porque a casa é o nosso canto no mundo. Ela
tirados das escuridões desde a minha infância.
é, como se diz amiúde, o nosso primeiro uni-
Ali moravam as mulheres da minha família; meus
verso. É um verdadeiro cosmos. […]. Quando,
mortos […]»13. O nódulo identitário provoca um
na nova casa, retornam as lembranças das an-
enunciado reflexivo, «Meu sótão era eu […]»14, ao
tigas moradas, transportamo-nos ao país da
ponto de desfazer a perceção entre espaço físico e
Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. […].
psicológico.
Logicamente, é graças à casa que um grande
número de nossas lembranças estão guarda- Por outro lado, em Reunião de Família, a casa
das; e quando a casa se complica um pouco, adquire as dimensões de um palco gigante onde
quando tem um porão e um sótão, cantos e se joga o jogo dos espelhos: «A nossa família era
corredores, nossas lembranças têm refúgios então um espelho sem moldura. Inconsistente: um
cada vez mais bem caracterizados.11 toque mais brusco, e tudo se estilhaçava»15. Neste
sentido, esta reunião de família é um cancro que se
alimenta das identidades quebradas pelos reflexos
9 ELIADE, Mircea, Aspectos do mito, Lisboa: Edições 70, 1986, p. 17.
10 BARRÈRE, Jean-Jacques, ROCHE, Christian, Espelho, Espelho Meu! Mem 12 LUFT, Lya, As parceiras, São Paulo: Editora Siciliano, 1999, pp. 14-15.
Martins: Editorial Inquérito, 1997, p. 79. 13 Idem, Ibidem, p. 121.
11 BACHELARD, Gaston, A Poética do Espaço, S. Paulo: Martins Fontes, 14 Idem, Ibidem, p. 124.
1993, pp. 24-27. 15 LUFT, Lya, Reunião de Família, Lisboa: Pergaminho, 2008, p. 30.
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
Representações da mulher
na literatura de autoria
masculina ou feminina:
a (des)construção do estereótipo
140
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Resumo: Viditque Deus cuncta quae fecerat et erant valde bona (Génesis, I,
31). Abre-se com esta epígrafe romance Na tua face de Vergílio Ferreira (1993),
uma epígrafe que propõe desde o início a conciliação do conflito existen-
cial entre estética e ética. Através da releitura do stilnovismo dantesco nas
suas fases primeiro moral e depois espiritual, claramente intertextualizadas
no romance, Vergílio Ferreira reconfigura assim a ideia de beleza feminina,
transformando a Beatriz de Dante Alighieri numa mulher-resguardo (Ânge-
la) e transportando o conceito de desejo do outro do plano ultraterrestre ao
plano antrópico do caricatural, do horrível, do disforme, do doente, do feio e
do cadavérico. Acabada a hera da exclusividade da luz, começa então a hera
do erro, toda outra ordem de vida. Com a dissolução das fronteiras entre os
corpos na experiência sexual e entre o interior e o exterior do corpo que a
tecnologia radiográfica permite, rasga-se assim o véu da ficção da estética do
belo e, em alucinadas visões de multidões de aleijados, de cegos, de aliena- 141
dos e de desadaptados, reprograma-se a agenda da criação divina e cala-se
a ansiedade pela procura das causas. Desta forma, contrastando a Beatriz
da última admirável visão de Dante entre Vida Nova e Paraíso, o autor quebra
conscientemente toda uma tradição poética (o elogio da mulher-anjo e angé-
lica) que, depois de Dante, encontrará no petrarquismo europeu a sua maior
declinação. Trata-se de uma forma de dignificar o visível e o sensível e de fun-
dar uma nova poética da glorificação (que a literatura permite) da natureza que
se cumpre e o do nosso olhar sobre ela. Já não, portanto, a mulher no elogio
objectivo de todos e intermediária entre terra e céu, mas a persona na subjec-
tividade da nossa percepção e intermediária entre o grotesco e o sublime da
criação divina.
Uma aplicação literária da teoria da fenome- to de visão, partindo do pressuposto que entre
nologia da percepção de Merleau-Ponty parece o olhar e o objecto olhado exista uma relação de
encontrar-se numa das últimas obras de ficção de reciprocidade: o meu corpo é vidente e visto ao
Vergílio Ferreira, Na tua face, um romance publi- mesmo tempo, e todo o visível é só um campo de
cado em 1993 e no qual o escritor elabora aquela aparências destinadas a se dissolver e ser substi-
que poderíamos chamar uma filofofia do tudo tuídas. Assim, a ideia de nos sermos seres-vistos
em-potência, ligada à teoria do filosofo francês no permite uma atitude dialéctica que é o princípio da
que diz respeito à ideia da multipotencialidade do inclusão constante dos opostos, do multíplice, do
ser e do mundo, da reversibilidade da visão, da provável. É um pôr o limite do horizonte no infinito
atitude probabilístico-descriptiva e não explicativa e considerar que a verdadeira filosofia nunca pode
do mundo e, sobretudo, da experiência percepti- dizer o mundo mas, sem pretender conhecimen-
va como ambiguidade e síntese temporal. É ver o to ou consciência, é só interrogação muda que
outro como uma outra modalidade de mim, uma deixa o mundo falar e se limita a escutar. Ora, esta
intersubjectividade que leva a redefinir o concei- posição é evidentemente em contraste com a visão
do outro codificada pela literatura medieval e, em
*Bolseira de pós-doutoramento da FCT (SFRH/BPD/35837/2007). particular, com a poesia italiana stilnovista e dan-
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
tesca que aspirava a possuir o mundo dando-lhe ideal: face de neve corada de vermelho3, cabelo
significado, idealizando-o, duvidando do ser e da louro, encaracolado ou com tranças,4 o porte ai-
percepção do sensível sem nunca interrogá-los e roso e o garbo5 e, sobretudo, a fresca, adornada e
que, sobretudo, considera os objectos do mundo luzente face,6 o doce rosto, o lindo sorriso7. Sempre
como dato e não como possível. O interlocutor da a adjectivação do outro e nunca a sua substantiva-
poesia stilnovista raramente é o outro a quem se di- ção. Foi sobretudo o cânone de Policleto, passado
rige, é sempre o eu que fala a si ou a outros espec- depois a Galeno, a fecundar esta imagética do belo
tadores da mesma visão, mas sempre colocados feminino baseado na ideia da congruentia, isto é,
no plano prospectivo do poeta. O poeta nunca se na harmonia e proporção de todas as partes do
percebe como outra possível dimensão da visão da corpo8 que muito influenciará o princípio vitruviano
mulher cantada e, desta forma, o emissor poético da simetria. Além disso, a ideia medieval de beleza
nunca se sente perpassado pelo olhar do mundo que o neo-platonismo de Plotino (séc. III) descodi-
numa única irradiação carnal, mas configura-se fica e transmite até ao Pseudo-Dionísio Areopagita
como cultura, como entidade criada e que, só (sécs. V-VI), a João Escoto Eriúgena (séc. IX) e a
por isso, pretende conhecer e corrigir a natureza Tomás de Aquinas na Summa Theologiae9, acres-
significando-a através de uma forma de linguagem. centava às condições de proporção e integridade,
É esta idealização que Ferreira parece contradizer, também a claritas, a luz como atributo de Deus
reconfigurando, através da filosofia de Merleau- e vindo de Deus, que chega por fim a configurar
-Ponty, a imagética do objecto da visão stilnovista todo o Paradiso de Dante10. No romance de Fer-
que canonizou um discurso prescritivo sobre o reira assistimos em vez ao triunfo da ambiguidade
outro através da representação da beleza feminina e da união do tudo em-potência. Na tua face tenta
e da conduta a ter na relação de amor eterosexual. assim lutar contra esta concepção do amor plató-
A mulher dos stilnovisti é então um ser irreversível, nico que colmata a lacuna, a nível tanto sentimen-
confinado, na ilusão que exista uma percepção tal como intelectual, à procura da união originária
subjectiva das coisas, e não intersubjectiva, che- depois da separação dos corpos pela punição de
142 gando até a estabelecer intelectualisticamente as Júpiter (é o discurso de Aristófanes n’O Banquete
modalidades ideais do corpo, a materialidade da de Platão11) e à qual a Idade Média acrescentava a
carne. A mulher é portanto veículo e não pessoa
análoga ao eu do poeta, é uma função, uma meto- 3 Guido Guinizzelli : «viso de neve colorato in grana»; Guido Cavalcanti: «cera
dologia para alcançar o Céu, nem é humana mas, rosata»; Lapo Gianni: «bionda trezza»; Cino da Pistoia: «’l bel color de’ biondi
entre zoomorfo e irreal, é uma mulher-anjo1, um ser capei crespi», «due belle trecce bionde» in Ibi, p. 127-132.
4 uido Cavalcanti: «Cavelli avea biondetti e ricciutelli» in Ibi, p. 128.
sobrenatural e desmaterializado, uma visão celes- 5 Cino da Pistoia: «Li atti vostri leggiadri e ‘l bel diporto» in Ibi, p. 132.
te, uma imagem interiorizada, a garante da ordem 6 Cino da Pistoia:«’l fresco ed adorno / e rilucente viso» in Ibi, p. 133.
moral2, a beatificadora e milagrosa fonte de saúde 7 Cino da Pistoia: «guardando ‘l dolce viso, / lo qual so che v’è pinto il suo bel
e salvação do poeta e, por fim, um amor desconec- riso» in Ibi, p.134.
8 Segundo Eco (2000), nos textos de Policleto “o belo surge, pouco a pouco,
tado dos sentidos e pura transcendência espiritual.
de muitos requisitos” e para Galeno “a beleza não consiste nos elementos
Toda a caracterização da mulher na poesia italiana mas na harmoniosa proporção das partes; de um dedo ao outro, de todos os
stilnovista, em parte derivada da poesia provençal dedos ao resto da mão… de cada parte a outra, como está escrito no Cânone
e sículo-toscana, codificou, de facto, uma ideia da de Policleto (Placita Hippocratis et Platonis V, 3)” (p.44).
visão do outro contrapondo o corpo real ao corpo 9 Tomás de Aquinas na Summa Theologiae (II-II, 145, 2) afirma, de facto,
o seguinte: “Como se pode depreender das palavras de Dionísio, o belo é
constituido não só pelo esplendor, mas também pelas devidas proporções; de
facto, ele afirma que Deus é belo ‘como causa do esplendor e da harmonia
1 Derivada da idealização das virtudes femininas no Cântico dos Cânti- de todas as coisas’. Por isso, a beleza do corpo consiste em ter os membros
cos, o stilnovo elogia a beleza da mulher como obra perfeita de Deus, sem bem proporcionados, com a luminosidade da cor certa” (como citado em Eco,
referências à sexualidade, ela é puro sentimento, aparição, contemplação, 2009: 100).
sem reciprocidade nem sedução carnal. Persistem alguns detalhes físicos de 10 Aproximando-se da visão de Deus (Par. XX, 61-66), Dante vê “lume in
origem provençal, mas já simbolizados e espiritualizados. A mulher è deusa forma di riviera / fulvido di fulgore, intra due rive / dipinte di mirabil primavera.
e semelhante às Inteligências Angélicas. A verdadeira beleza é só uma forma / Di tal fiumana uscia faville vive, / e d’ogne parte si mettea nei fiori, / quasi
de bondade (Cfr. Marti 1972). Veja-se, por exemplo, Guido Guinizzelli: «tenne rubino che oro circoscrive” (Dantis Alagherii, 2001: 542).
d’angel sembianza», Guido Cavalcanti: «angelicata criatura. / Angelica sem- 11 Segundo a teoria do amor de Aristófanes contada n’O Banquete de Platão,
branza», Lapo Gianni: «Angelica figura novamente / di ciel venuta a spander o desejo amoroso deriva de uma antiga punição de Zeus da insolência dos
tua salute», Cino da Pistoia: «angelica figura mi parete» (Savona, 1973, pp. homens que queriam desafiar as divinidades. Assim o rei do Olimpo nos
142-143). separou para nos tornar mais fracos, dividindo a nossa esfericidade em dois:
2 uido Guinizzelli: «Ma voi pur sete quella / che possedete i monti del valore, / “de cada vez que cortava um, ordenava a Apolo para lhe voltar a face e o
unde si spande amore», Guido Cavalcanti: «umile, / saggia e adorna e accorta pescoço para o lado do golpe, a fim de que, vendo-o, o homem se tornasse
e sottile / e fatta a modo di soavitate», Lapo Gianni: «lingua di gentil vertute», mais humilde; mandava-lhe, além disso, curar as feridas. Apolo assim fazia
Dino Frescobaldi:«donna piena di merzede, / in cui ogni vertù bella si fida», e, ligando toda a pele na parte que se chama ventre, deixava apenas uma
Cino da Pistoia: «quella ch’è somma salute», in Ibi, pp. 135-138. cavidade, que se chama umbigo. Depois, lisava as costuras e arranjava o
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
identidade entre luz e beleza, a hostilidade perpé- contraste) do bem, expressa também por Alexan-
tua entre Eros e a disformidade12 e o afastamento dre de Hales:
da fealdade13. Neste sentido, a visão do sensível o mal enquanto tal é disforme… Contudo,
de Vergílio Ferreira contrapõe-se também a uma enquanto do mal se desenvolve o bem, diz-se
outra tradição medieval pré-stilnovista, a corrente que é bem por aquilo que confere ao belo; as-
da filosofia Escolástica, em particular da Escola de sim, na ordem diz-se que é belo. Portanto, não
Chartres, que, retomando as ideias de uma com- se diz belo de modo absoluto, mas belo em
pacta conexão de todos os seres entre si numa ordem; aliás, seria preferível dizer: “A própria
perfeita união expressas no Timeu de Platão, exalta ordem é bela” (como citado em Eco, 2000:
a natureza como mediadora da ordem do cosmos 149).
criado por Deus, chegando a afirmar (Guillaume de
Conches, Glosae super Platonem) que “a beleza do
mundo é tudo aquilo que aparece em cada um dos Na tua face recusa esta solução, assim como
seus elementos” (Eco, 2000: 49), dando ao mal um recusa o decadentismo daqueles espíritos mais
lugar na ordem divina14. É a ideia que vê no mons- curiosos e viciados que acorrem aos anfiteatros
tro um outro meio divino de moralização, um desíg- anatómicos ou às clínicas citados por Baudelaire15.
no do projecto providencial, como expresso no De E recusa também a sabedoria socrática da beleza,
Civitate Dei (XII, 5-6) de Agostinho nos parágrafos sobrenatural, essencial, desincarnada, assim como
do Est ratio gubernandae universitatis (tudo cabe foi descrita por Diótima n’O Banquete de Platão:
na ordem) e Miseria naturae rationalis fuit ex aver- beleza eterna, que não conhece nem o nas-
sione a Deo (não existe ser essencialmente mau). É cimento nem a morte, que não está sujeita à
a ideia da necessidade do mal como exaltação (por evolução de crescimento e diminuição, que
peito com um instrumento semelhante ao que utilizam os correeiros para polir, não é bela por um lado e feia por outro, ou
na fôrma, as rugas do cabedal, mas deixava ficar algumas rugas, como as do bela a um tempo e feia a outro; bela de um
ventre e as do umbigo, como recordação deste castigo. Ora, depois de assim ponto de vista e feia de outro, bela neste lugar
ter dividido o corpo, cada uma das partes, lamentando a outra metade, foi à 143
procura dela e, abraçando-se e enlaçando-se umas às outras, no desejo de
e feia naquele; beleza que não se apresentará
se fundirem numa só, iam morrendo de fome, por inacção, pois nada queriam com um rosto, nem com as mãos, nem com
fazer, umas sem as outras. […] Zeus, tocado de misericórdia, imaginou um forma corpórea, nem com palavras, nem com
outro expediente: transpos os órgãos da geração para o lado de frente, pois, sabedoria, nem com outra coisa qualquer que
antes disso, estavam implantados atrás e os homens geravam, não uns nos porventura possa existir nalgum lugar, por
outros, mas sobre a terra, como as cigarras. Colocou estes órgãos à frente, e
fez com que os homens procriassem uns nos outros, isto é, o macho com a exemplo, no animal, na terra, no céu, ou em
fêmea” (Platão, 1986: 60-62). Na poesia da Vida nova, Dante reafirma o prín- qualquer outra parte; beleza que, em contra-
cipio platónico da incompletude dos seres e da procura da metade originária partida, existe nela mesma e por ela mesma,
através da ideia de emendar com a morte a dor pela perda da amada: simples e eterna, da qual participam todas
Pobre de mim, que tanto lembro em vão
as coisas belas, de tal maneira que o nasci-
que não poderei mais mento ou a morte destas nâo lhe trazem, nem
ver a senhora que me traz doente, aumento, nem diminuição, nem alteração de
tanta pena em redor do coração qualquer espécie. (Platão, 1986: 104-105).
põe dolorosa a mente,
que eu digo: “Alma minha, pois não vais?
que os tormentos que levas e são tais No romance vergiliano é evidente a contrapo-
no mundo já pra ti tão doloroso,
me dão cuidados de receio forte.” sição ao conceito stilnovista do desejo do outro,
E é quando chamo a morte, transportado do plano ultraterrestre e subjectivo ao
como suave e doce e meu repouso; plano antrópico e intersubjectivo do caricatural, do
e digo “Vem a mim” com tanto amor horrível, do disforme, do doente, do feio e do cada-
que invejo a morte alheia por melhor.
vérico16. A ideia da mulher-anjo e angelizada é já
(Alighieri, 1995: 123-125).
12 É Agatão a pronunciar estas palavras n’O Banquete de Platão: “Eros e a contradita se comparamos o episódio do desenho
disformidade estão em hostilidade perpétua!” (Platão, 1986: 73). interrompido na Vida nova de Dante com o trabalho
13 “Eros não se encontra ligado à fealdade!” (Platão, 1986: 75). caricatural do protagonista do romance português.
14 “Nestas e noutras visões da harmonia cósmica dissolviam-se também Enquanto, depois da morte da amada Beatriz, o
as interrogações colocadas pelos aspectos negativos da realidade. As coisas
brutas também se conciliam na harmonia do mundo, por via de proporção e poeta florentino procede à transfiguração divina
contraste. A beleza (e esta será agora a convicção comum a toda a Escolásti- e artística da mulher (paradoxalmente) através da
ca) nasce também destes contrastes, e também os monstros têm uma razão sua concretização gráfica: “Naquele dia em que um
e uma dignidade no concerto da criação, também o mal na ordem divina se ano se cumpria que esta senhora se havia tornado
torna belo e bom porque dele nasce o bem, e ao lado dele o bem resplandece
habitante da vida eterna, estava eu sentado em
melhor” (Eco, 2000: 50).
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
um lugar em que, dela me recordando, debuxava que provoca o amor e a sua percepção através do
um anjo numas tabuinhas” (Alighieri, 1995: 125); corpo que entra pelos olhos. Bárbara é, noutras
Daniel, o médico e aspirante pintor protagonista do palavras, a passagem da transcendência do real no
romance de Ferreira, encontra no gesto caricatural espiritual à sublimação da imanência, identificando
a única forma de sobreposição da imagem ideal à a condição de humilhação já não com a satisfação
sua verdade real: “Pegar num rosto e devastá-lo de do prazer carnal, como nos stilnovisti, mas com a
horror e ficar igual ao que estava por fora mas se recusa de contacto sexual20. É a angelizada Ân-
não via por estar por dentro. Revelar o que se não gela “baixa loura e um certo ar de beata” (Ferreira,
via e deitar fora o que o não deixava ver” (Ferreira, 1993: 14) a mulher que substitui presencialmente
1993: 11). Desta forma, Ferreira parece querer apa- a ausência de Bárbara21, porque verdade e von-
gar o confim entre corpo externo e corpo interno, tade22 estão na beleza incompreensível, cuja face
afirmando a atravessabilidade do limiar que separa existe no impossível23. Este belo impossível (ou
a nossa face humana da nossa Verónica, a vera em-potência) tem então a sua extensão artística
icona do nosso ser que transcende o corpo. O na fotografia24, cuja aura nos revela, cuja bidimen-
esgar que a caricatura suscita em nós é portanto a sionalidade de papel parece mais real, tocável, na
percepção pré-lógica da existência do outro visível perfeição da única arte verdadeiramente referencial
também na distorção caricatural da visão. O sujeito e memorial que nos sobrevive, enquanto o movi-
disforme parece assim reproduzir, ou melhor, gerar mento dos corpos é sempre efémero e fugitivo,
de novo, o humano animal (no sentido de dotado como será o corpo de Bárbara desde o início da
de alma e de amor) que é a indiferenciação da car- sua partida para a Inglaterra até ao último encon-
ne do mundo e a sua temporalidade parece opor- tro onde ela desaparece. Assim, uma percepção é
-se à nova religião da ciência que tenta tornar-nos substituída por outra. Ângela, pelo contrário, não
imortais, embora “de vez em quando a Natureza permite esta substituição, ela é sempre presente,
arranj[e] uma doença nova e é uma alegria nela tornando o seu amor um amor morto que sufo-
para o equilíbrio da humanidade” (Ferreira, 1993: ca25, pois ela é “de mármore, coisa maciça, por
144 106). É por isso que Daniel pode desenhar a cari- dentro só tinha pedra também” (Ferreira, 1993:
catura de Bárbara, a mulher que nunca deixará de 32), não tem pessoa por dentro26 e é ela própria a
amar por ela ser o intersujeito da sua perspectiva dizer “Nunca sinto calor nem frio […] seria huma-
do mundo, enquanto Ângela, a mulher com a qual na? Talvez de louça, pensei. Estaria fora do tempo
acaba por casar, nunca poderá gozar do mesmo como uma boneca de porcelana incorruptível, só
privilégio17 por ser ela um sujeito do tipo stilnovis- se lhe dermos com um martelo” (Ferreira, 1993: 50).
ta. O verdadeiro amor é agora o amor natural, pré- Ela é a mulher indesejável, correcta, fria, classifica-
-cultural, barbárico, é o corpo do outro que o meu da, geométrica (Ferreira, 1993: 112), certa, precisa,
corpo percebe e que Daniel precisa de respirar no perfeita, metalizada, tenra, asséptica, inconspurcá-
terrível da sua realidade18 e já não o angélico irreal vel (Ferreira, 1993: 169), imóvel, silenciosa, absorta,
de Ângela que beleza inútil (Ferreira, 1993: 245), uma regra de
era a encarnação de um certo milagre que a sintaxe (Ferreira, 1993: 252). Ainda a adjectivação
transfigurava no que ela era, mas em transfigura- que define, pura anti-filosofia, rumor de fundo
ção, qualquer coisa assim, bela e incompreensível. contra o silêncio do sujeito que só escuta. Por isso,
Todo o imaginário e iluminação dos homens pelos o desejo vergiliano se configura pela oposição a
milénios, como o sol pela vidraça, a vidraça é a tudo o que é ideal e, por conseguinte, entrega-se
mesma mas é outra, trespassavam-na e deixavam- ao fascínio pelo disforme, pelo desfigurado, pela
-na intacta (Ferreira, 1993: 16). doença, pela anatomia dos corpos mortos na mesa
de pedra do curso de Medicina, com os quais
Daniel quer falar, como com o cadáver de Angélica
Ângela, a mulher-vidraça, é morfologicamente
Serafina, nome dos mais altos guardas do trono de
a mulher imaginada pelos stilnovisti, mas é uma
Deus e rapariga dos primeiros encontros sexuais
mulher-resguardo agora, como aquela que o poeta
do protagonista, agora com “o cabelo rapado, uma
florentino nomeava em certo poemas, fingindo
etiqueta dependurada do pé direito” (Ferreira, 1993:
de amar, para disfarçar a verdadeira destinatária
65), o corpo conhecido por ter sido coscuvilha-
do seu elogio. No romance vergiliano “a gloriosa
do por dentro e agora objectivado e maquinizado
senhora da […] mente” (Alighieri, 1995: 15) é ain-
“aberto até aos seus interiores [enquanto] o pro-
da um desejo infinito que acontece no eterno19,
fessor apartava para os lados as tampas desses
mas subvertendo a ideia platónica da procura da
interiores como quem levanta o capot de um motor
completude no outro e mudando a visão da beleza
e ia indicando todas as peças” (Ferreira, 1993: 67).
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Como já Foucault escreveu no seu ensaio sobre O O feio, então, é só aquilo que não se conforma à
Nascimento da Clínica (1963), é mesmo a partir da contingencia do social e ideologicamente cons-
prática da autópsia que se conseguiu descobrir o truído, enquanto na filosofia do tudo em-potência
invisível do corpo, aumenta o domínio da visibilida- o disforme encontra a sua própria possibilidade e
de e da própria morte como explicação da vida: “o valoriza-se o fenomenológico, o intersubjetivo, o
que oculta e envolve, o véu da noite sobre a verda- anormativo, encontrando a transcendência na ima-
de, é paradoxalmente a vida; a morte, ao contrário, nência e positivando as oposições. É por isso que
abre à luz do dia o negro cofre dos corpos: vida Daniel pode imaginar uma corrida entre Ajax, Ulis-
obscura, morte límpida” (Foucault, 1977: 190). O ses, Antíloco e o aleijado Serpa sapo, ou pressupor
ideal de uma beleza feminina intacta é constante- que o pedinte que encontra na rua com a bossa
mente recusado e revisto, como Daniel nos explica angiomatosa no pescoço possa “ter a [sua] beleza
ao contar a história de um individuo muito parecido numa humanidade com sacos caídos do queixo”
com o Dante da Vida nova, embora tenha um des- (Ferreira, 1993: 80). Tudo isto nos lembra um conto
fecho diferente, vergilianamente mais grotesco: de Italo Calvino, O dia de um escrutinador (obra
Houve um tipo que foi a santo assim. Tinha ele original publicada em 1963), sobre a votação num
uma amada que era uma flor de beleza e ele apa- sanatório para aleijados, onde Amerigo, o prota-
nhou uma tremenda paixão subsequente. E um dia gonista, perante a disformidade dos internados no
a amada morreu e a paixão cresceu-lhe ainda mais hospital do Cottolengo, inquieta-se pelas mesmas
porque já não tinha objecto onde pousar e vinha interrogações vergilianas:
toda para cima dele. Mas tempos depois abriram De repente deu consigo a pensar num mundo
a sepultura e ele viu a restolhada da ossaria com em que já não houvesse beleza. E era na beleza
uma caveira a rir-se dele de uma maneira indecen- feminina que pensava. […] O que é esta necessida-
te. E ele disse meu Deus. E deixou lá a paixão toda de de beleza? […] Uma característica adquirida, um
e o coveiro enterrou-a com os restos da lixarada. reflexo condicionado, uma convenção linguística? E
Agora é santo e deve ser advogado das paixões o que é, em si, a beleza física? Um sinal, um pri-
mal encaminhadas. Mas eu não quero ser santo vilégio, um dado irracional da sorte, como – entre 145
nem tenho paixão nenhuma a acalmar. O meu estas – a fealdade, a deformidade, o defeito? Ou é
projecto é mais simples e digamos mais reflexivo, um modelo cada vez mais diferente que nós ima-
sem Deus nenhum à espera da sua oportunidade ginamos, mais histórico que natural, uma projec-
(Ferreira, 1993: 66-67). ção dos nossos valores de cultura? […] Mas pôr a
beleza demasiado no alto da escala de valores, não
A verdade do amor tornou-se para Daniel o é já o primeiro passo para uma civilização desuma-
prazer do corpo, do simples existir hic et nunc, da na, que condenará os disformes a serem lançados
natureza que se cumpre, da indistinção entre bele- do precipício? […] Um mundo, o “Cottolengo” […]
za e fealdade, numa fenomenologia da percepção que poderia ser o único mundo no mundo se a
do sensível percebido como vital para a construção evolução da espécie humana tivesse reagido dife-
da história das nossas ideias, por ser, como a fo- rentemente a qualquer cataclismo pré-histórico ou
tografia, revelável e imprimível na memória indivi- a qualquer peste… E hoje, quem poderia falar de
dual. Os dois polos desta filosofia da dialéctica dos defeituosos, de idiotas, de disformes, num mundo
opostos “desde o mais alto que se chama a beleza inteiramente disforme? (Calvino, 1997: 47-50).
virtude perfeição, até ao mais baixo que se chama
ordinaríssimo e excrementício” (Ferreira, 1993: 69) No oitavo capítulo do romance de Ferreira, a
permitem portanto uma filosofia do tudo em-potên- visão alegórica de um desfile de corpos muda-
cia onde carne, respiração, faces intocáveis mas dos e mutantes, fluídos e multíplices em contínuo
verdadeiras, início e fim do desejo como acção em transformar-se pela idade, pela doença e pela
contínuo devir são dominados tanto por Eros como natureza demonstra que o corpo visível é, no fundo
por Tânatos, pois “o horror da morte é anti-natural e como afirma Merleau-Ponty, enraizado na ambi-
e mais próprio das civilizações atrasadas” (Ferreira, guidade do tempo, pois as coisas são reais em si
1993: 180). Não se trata de um mundo às avessas, só porque são reais para mim28. Nesta concepção
mas de um mundo onde acabou o império da luz e encontra-se também o amor pelo horror do orgáni-
começou a era do erro que problematiza o horrível, co interior, pela memória do animal no nosso rosto,
na tentativa de perceber porquê o baixo e o imun- até pelo esqueleto que a tecnologia radiográfica
do têm um sinal de libertação27 e não de exclusão consegue desvendar. Assim, a percepção ultrapas-
do mundo como a beleza medieval comportava. sa o visível, os limites impostos pela pele, passan-
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
do do valor medieval da virtuosidade para o valor a funcionalidade ambiental dos corpos animais no
de virtualidade do mundo e do ser em-potência. habitat pós-humano de um mundo em-potência:
Se para Merleau-Ponty a invisibilidade do mundo “uma cauda para sacudir a mosca e não ter de
é a sua possibilidade interna e externa e o invisível inventar os insecticidas. O sistema eléctrico da tre-
e o visível são tais um para o outro, como o dentro melga para não ter de inventar a electricidade. […]
e o fora da mesma luva, para Ferreira a película O olho do lince para não ter de usar óculos” (Ferrei-
radiográfica do esqueleto de Ângela é a prova da ra, 1993: 137)33. É assim que se passa da ilusão da
existência dessa dupla dimensão e uma forma de beleza ideal ao verdadeiro provável, questionando
tranquilizar a ideia da finitude humana29: constantemente o nosso ser bidimensional, pré-ló-
Que é que se ama numa mulher? Porque se ama gico e intersubjectivo que se, por um lado, tem os
só a pele e um pouco da pele mais para dentro. O dentes para lhe recordar a sua origem animal, car-
resto, que é afinal o que mais se ama, não existe. nívora, aggressíva, os dentes como metonímia do
[…] Vou decidir a sério que és também a ossaria nosso instinto de mastigar e fagocitar o outro (Fer-
das radiografias do teu corpo. Vou tê-la em conta reira, 1993: 158-159), por outro lado, tem também o
para também a amar. Vou saber que existes nela sorriso, a sua ficção. É aquilo que está por dentro
para não seres beleza para um lado e horror para o mas que se vê por fora, os dentes, a boca, a língua,
outro (Ferreira, 1993: 98-99). a garganta que possibilita tanto o grito primor-
dial do nascimento como o suspiro final da morte
(Ferreira, 1993: 241). Por tudo isso, o horror já não é
Na ideia de amor de Daniel não se pode emen-
horrível, o horrível não é, passados cinquenta anos,
dar o erro de ter o ser as suas facetas biológica e
reencontrar Bárbara e ver-lhe o rosto envelhecido,
fisiológica e perspectivas determinísticas, mas é
o horrível é o Daniel sobrepor-lhe ainda a face lisa
preciso empatizar com ele, entrar em contacto para
da juventude, confessando assim não a derrota da
assimilar tanto a face (máscara do duplo que há
sua filosofia de uma outra ordem de vida, mas a
em nós) como o focinho, a nossa marca-de-água
aceitação do egocentrismo34 que faz parte desta
primordial. A fealdade é também nossa essência30,
146 filosofia do sensível e perceber, por fim, que só na
a caricatura o nosso retrato, a fotografia a nossa
precariedade da beleza ideal o homem consegue
alma, aquela que se revela também na hora da
desassossegar (Ferreira, 1993: 284). Daniel repro-
morte, no último momento de luz, pelo que Luzia,
grama a agenda da criação divina interpretada pe-
a filha de Daniel, não tira fotografias aos vivos. A
los stilnovisti e cala assim a ansiedade pela procura
descrição do quadro de Picasso, Le damoiselles
das causas. Contrastando a morfologia da Beatriz
d’Avignon31, torna-se então, para o protagonista
da última admirável visão de Dante entre Vida Nova
do romance, só a representação de uma perspec-
e Paradiso (Alighieri, 1995: 147-149), o autor que-
tiva do sujeito artístico, entrelaçada com cuncta,
bra conscientemente toda uma tradição poética (o
todas as coisas, como reza o versículo do Génesis
elogio da mulher-anjo e angelizada) que, depois de
que é a epígrafe do romance: “Viditque Deus cunc-
Dante, encontrará no petrarquismo europeu a sua
ta quae fecerat et erant valde bona” (Ferreira, 1993:
maior declinação. Trata-se de uma forma de dig-
7). Assim, neste tudo já não faz sentido falar de
nificar o visível e o invisível e de fundar uma nova
beleza e de fealdade, mas só daquilo que continua
poética da glorificação da natureza que se cum-
a existir apesar de tudo, apesar da atribuição da
pre e do nosso olhar e sermos olhados. Já não,
qualidade de horrível ao horror, quando, de facto,
portanto, a mulher no elogio objectivo de todos e
Ferreira tenta só “provar que o feio não existe e a
intermediária entre terra e Céu, mas a persona na
morte também não” (Gordo, 2004: 110). A beleza
intersubjectividade da recíproca percepção, pela
clássica, pelo contrário, gera impotência32 e não
qual, segundo a filosofia de Merleau-Ponty, mundo
visão do em-potência de todas as coisas, que
e ser fazem parte da mesma paisagem. Em tudo
são, no fundo, uma só. Um tudo em que entram
isso, as diferenças de género relativizam-se e tanto
também as últimas fronteiras da ciência, com a
o barbárico como o angélico, o natural e o cultural,
multiplicação das células cerebrais, o novo invisível
o silêncio e a palavra, como qualquer definição do
revelado, chegando a reconfigurar o projecto divino
mundo, nos mostram que a verdade última é só a
até pensar que um cão possa tornar-se “deputado
reversibilidade (Merleau-Ponty, 2007: 150).
da assembleia ou ministro” (Ferreira, 1993: 123) ou
que possa existir uma sociedade zoomorfa com
animais elegantes a passear pelo Chiado e um
Daniel-Deus a reinventar uma humanidade que Referências bibliográficas:
recupera as oposições da Natureza e reprograma Alighieri, D. (1995) Vida Nova (V. Graça Moura,
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
148
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Submissão e resistência:
o feminino em Germano Almeida
Maria do Carmo Pinheiro e Silva Cardoso Mendes
Universidade do Minho (Portugal)
construindo uma imagem submissa da mulher, escritório e entrar de amor com ela pelos cantos da
mas constituem já uma forma de insubmissão e divisão e por cima da secretária, a ponto de chegar
de resistência; em segundo lugar, intentarei provar ao preciosismo de lhe fazer um filho, melhor di-
que na narrativa pós-colonial Eva a protagonista zendo uma filha, em cima do tampo de vidro!” (…).
constitui um símbolo de indiferença pelo Outro – o Nunca se lhe conheceu um único caso amoroso
colonizador branco –, uma figuração pós-moderna em toda a sua longa vida de quase 80 anos (pp. 11
da imagem do colonizador, um questionamento do e 13-14).
luso-tropicalismo e, por consequência, uma des-
construção de estereótipos associados ao feminino Na vida amorosa do senhor Napumoceno ocu-
– a sujeição, a obediência, o silêncio e o confor- param lugar preponderante três mulheres: Maria
mismo; em terceiro lugar, procurarei mostrar que a Francisca (Chica), a mulher de limpezas do seu
representação das mulheres na ficção narrativa de escritório, Maria da Graça, a filha que só descobre
Germano Almeida é um contributo determinante sê-lo aquando da leitura do testamento, e Adélia,
para analisar a evolução histórica, cultural e simbó- presumível amante, que surge pela primeira vez
lica de Cabo Verde. no testamento como herdeira. Porque jamais será
encontrada, esta mulher levanta a forte suspeita
2. Submissão de não ter sido senão uma narrativa imaginária do
senhor Napumoceno e uma projeção fantasiada da
A longa vida do senhor Napumoceno da Sil-
sua ânsia de viver um amor de traços romantica-
va Araújo – que vizinhos e amigos só conhecem
mente ultra-sentimentais.
através da leitura do seu longo testamento – na ilha
cabo-verdiana de São Vicente, evidencia uma cliva- Os comportamentos do protagonista com cada
gem profunda entre a vida pública e a vida privada, uma destas mulheres mostram uma personalidade
em particular no que concerne ao envolvimento complexa: com D. Chica, manteve relações fortui-
com o universo feminino. tas movidas pelo ímpeto sexual e pela ascendên-
cia do patrão sobre a empregada; com Maria da
150 Socialmente respeitado em vida, este negociante
Graça, alimentou um profundo sentimento de culpa
oferece no testamento – mais precisamente, “livro
pela incapacidade de a reconhecer como filha –
de memórias” – uma imagem que contrasta com
sentimento que o levará a tentar compensá-la com
uma reputação firmada ao longo de quase 80 anos
presentes e visitas periódicas durante a infância e
de vida. Lacrado pelo próprio em 30 de novembro
a juventude; com Adélia, viveu a devoção absoluta
de 1974, o testamento continha “387 laudas de
e um amor que, todavia, não ilude a objetualização
papal almaço pautado, sento das primeiras 379
da mulher.
laudas à máquina e as restantes manuscritas com
caneta de tinta permanente” (Almeida, 1991, p. 27). Estas variações comportamentais refletem, em
O número sugere revelações extensas (não limita- primeiro lugar, as múltiplas mutações sofridas
das à indicação dos herdeiros de um considerável pelo senhor Napumoceno durante a sua vida; mas
património) e revelará informações que, no seu demonstram também que o testamento não é su-
todo, contrariam o que era conhecido pela comu- ficiente para que o leitor aceda à totalidade existen-
nidade e pelos mais próximos: os qualificativos cial e emocional do protagonista. De facto, a sua
honesto, discreto, honrado e virtuoso revelar-se-ão, imagem torna-se ainda mais intrincada diante das
após a leitura do testamento, de muito frágil sus- versões discrepantes produzidas por duas mulhe-
tentação. res: D. Chica tem consciência que é sexualmente
objetualizada; Maria da Graça sente dificuldade em
Com efeito, o “livro de memórias” escrito pelo
entender as motivações de um homem para acau-
protagonista ilumina zonas menos claras da sua
telar o seu bem-estar económico; só as compreen-
existência e oferece um conjunto de informações
derá quando aparece como herdeira e tem acesso
inéditas que diferem totalmente da imagem que,
ao conteúdo do “livro de memórias”.
por razões de respeitabilidade e reputação social,
se empenhou em ocultar durante a vida. É sobretu- Deste modo, as mulheres adquirem um valor
do no campo das relações amorosas que o testa- cultural e simbólico, pois cada uma delas possi-
mento se mostra surpreendente: bilita uma reflexão sobre a situação do feminino
no arquipélago cabo-verdiano. É possível dizer, a
respeito de Chica e de Adélia, que são um símbolo
Quem na verdade alguma vez sonhou que Na- e uma metonímia das cabo-verdianas: a mulher-
pumoceno da Silva Araújo poderia ser capaz de -objeto corresponde a uma sociedade colonial, ou,
aproveitar das suas da sua mulher de limpeza ao como afirma Maria da Conceição Gordon (2009),
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Chica “represents the older, pre-independence brava” (p. 104), Araújo é confrontado com a notícia
generation of women” (p. 67). A primeira relação de que a relação tem de terminar, porque Adélia
sexual de Araújo com a empregada corresponde espera um namorado emigrado. Por isso, Araújo
a um ato de violação, cujo estímulo – a saia verde, conclui que foi apenas “um proprietário desapos-
prolongando a paixão obsessiva de Napumoceno sado, defraudado, ultrajado” (p. 104). Em registo
por uma equipa de futebol portuguesa – evidencia proudhoniano, nunca chega a ser um possuidor do
a instrumentalização pura da mulher1: corpo feminino3.
A presença destas três mulheres na vida do
Agarrou-a e dobrou-a sobre a secretária, ela senhor Napumoceno concorre ainda para pôr em
lutou, disse larga-me senão eu grito!, e ao mesmo causa a autoridade enunciativa do protagonista.
tempo sentia-o a esforçar-se para lhe levantar as A noção de verdade absoluta é substituída por
saias que ela conseguira prender entre as pernas uma pluralidade de pontos de vista que, em última
(…) ele aproveitou e conseguiu abrir-lhe as pernas análise, representam uma marca pós-moderna do
e levantar-lhe as saias enquanto ela lhe dava socos romance: “These three women (…) form a symbolic
na cabeça (…) estava cego e surdo. [Ela] não sabia (un) holy trinity of interaction with the male prota-
se devia zangar-se ou ir-se embora (p. 74). gonist that, while illuminating his portrayal (for both
Graça and the reader), equally decentralizes his po-
sition in the narrative, and substantiates the novel’s
A tentativa de resistência de Chica corresponde
postmodernist quality” (Gordon, 2009, p. 74).
à impossibilidade humana de aceitar a violação;
mas poderá ler-se na sua indecisão final o confor-
mismo de uma mulher que, como outras no seu 3. Resistência
tempo, conhecia bem os maus-tratos exercidos so- Tendo como pano de fundo os derradeiros
bre o género feminino. Apesar da submissão e da anos da descolonização portuguesa do arquipé-
compaixão perante o comportamento masculino, a lago cabo-verdiano, o romance Eva apresenta um
ousadia de Francisca em não cumprir a exigência turbulento triângulo amoroso protagonizado por 151
de aborto imposta por Napumoceno revela uma uma mulher branca portuguesa que seduz dois
personalidade orientada por princípios sólidos. De mestiços cabo-verdianos. Procede também a uma
resto, Chica sabe que educará sozinha Maria da revisão irónica do mito lusotropicalista, sobre o
Graça e que será socialmente censurada. qual me deterei de seguida.
O envolvimento de Napumoceno com a empre- Formulado pelo sociólogo brasileiro Gilberto
gada de limpeza não reflete preconceitos raciais Freyre a partir da obra de 1933, Casa Grande &
– ambos são mestiços cabo-verdianos –, mas sim Senzala, o Lusotropicalismo construiu uma imagem
preconceitos de género e de classe social. de exaltação da influência do colonizador portu-
Embora educada por uma mãe submissa e re- guês, tido como o mais amável e recetivo nos seus
signada, Graça tem uma instrução e um sistema de contactos com “as raças ditas inferiores”. Depois
valores substancialmente diferente: simbolicamen- de um período em que o Estado Novo o encarou
te, ela corresponde a um país mais reflexivo, que com desconfiança, passou a ser assimilado como
faz o seu caminho para a libertação. mecanismo de legitimação internacional da manu-
A presumível amante de Araújo exemplifica, tal tenção do império colonial português.
como acontece com Francisca, a condição epocal Se já no romance fundador da cabo-verdianida-
da mulher, discriminada em função do sexo, do de, Chiquinho (1947), de Baltasar Lopes, era possí-
estatuto social e da beleza. No seu corpo, depre- vel observar, nas escassas e disfóricas referências
ciativamente descrito pelo senhor Araújo – “seco ao país colonizador, um claro afastamento de tese
de pernas compridas” –, há um elemento profun- lusotropicalista, em Eva, romance pós-colonial, tal
damente fascinante – “aqueles olhos eternamente distanciamento torna-se ainda mais evidente. Aten-
assustados ou espantados” (p. 96). Nos primeiros dendo à simbologia do nome próprio – evocador
tempos da relação, Araújo não “a via como uma da sedutora figura do Génesis – e ao papel da pro-
mulher”, encarando-a como “santa e imaculada” (p. tagonista que ao longo da narrativa mantém um ca-
97)2. A mulher que o fascina não é a Adélia “lasciva samento, duas relações extra-conjugais que duram
e voluptuosa” que se dá a conhecer na primeira três décadas e alguns envolvimentos casuais, de-
relação sexual, mas aquela que “já se perdera, a verá concluir-se que é graças a Eva que o narrador
criança que vira nela, pura de inocência” (p. 102). subverte um dos fundamentos do lusotropicalismo:
Quando se sente “dono e senhor daquele corpo, aquele que sustentava que o colonizador branco
proprietário daquela carne que escondia a gazela seduzia – ou simplesmente violava – a mulher negra
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
ou mestiça africana. Os seduzidos são agora dois coração na construção do país” e professora de
homens cabo-verdianos, perante os quais Eva vem liceu, fazendo parte do “grupo de alfabetizadores
a ser também um símbolo de indiferença pelo Ou- de adultos ministrando cursos nocturnos nos luga-
tro – o marido, os amantes que espicaça e acaba res mais esconsos dos arredores da cidade” (pp.
por converter em adversários que disputam o seu 223-224).
afeto e se sentem inferiorizados sempre que ouvem A postura de Eva sobre a influência nefasta do
narrativas acerca do outro, mas que acabam por colonialismo é ambígua, mas acaba por matizar
concluir que o que dela podem esperar é apenas posições radicais: por um lado, ela participa “em
a inalterabilidade do triângulo amoroso: “nossa todas as manifestações a favor das independên-
Eva pelos dois amada e por ela amados com igual cias das ex-colónias” (p. 92), por outro, encara o
intensidade” (p. 85). colonialismo como justificação infundada dos pró-
O posicionamento da protagonista diante do prios cabo-verdianos para o subdesenvolvimento
lusotropicalismo mostra-se consistente com a tese do arquipélago: “o colonialismo, a eterna desculpa
sustentada por Gilberto Freyre, mas não sintoni- para tudo de mal que continua acontecendo neste
zado com o dos seus dois amantes: tal como o país, ainda que por desleixo exclusivo dos cabover-
sociólogo havia defendido que o português foi o dianos” (pp. 67-68). Acusada de falta de escrúpulos
colonizador europeu que “melhor confraternizou nos negócios, reage exclamando: “quando lhe digo
com as raças chamadas inferiores”, assim Eva de- que são negociatas de enganar preto em nada
clara: “se os portugueses tinham agido em África diferentes das que os portugueses fizeram há 500
de forma diferente dos outros colonizadores tinha anos atrás ela zanga-se comigo e deixa de me falar
sido para melhor, e mostrava-lhe como exemplos durante dias” (p. 86). De algum modo, Eva acaba
os espanhóis na América Latina ou os belgas no por assumir uma função simbólica relevante como
Congo, os ingleses na África do Sul…” (p. 235; nova colonizadora de Cabo Verde.
meus itálicos). Os processos de auto e de hetero-caraterização
Em registo paródico, Luís Henriques contra- confirmam a singularidade desta mulher e o seu
152 põe corrosivamente: “Vendo bem as coisas, havia afastamento das expectativas de submissão im-
importantes heranças de Portugal que os novos postas ao género feminino em período colonial. No
países independentes deveriam guardar com cari- primeiro caso, Eva assume a rebelião e o desafio
nho. E citou três: a língua portuguesa, as mulheres ostensivo a convenções sócio-morais: “Eu não
portuguesas e o vinho português!” (p. 336) sou uma mulher fiel! (…) Sou apenas uma mulher
A instrução – vedada a mulheres em período casada que engana o marido com pelo menos
colonial – permite a Eva tornar-se não só uma em- mais dois homens, e que tem como única desculpa
presária de sucesso em Cabo Verde – subvertendo o facto de os amar a todos, ainda que a cada um à
simbolicamente o poder do colonizador – mas tam- sua maneira” (pp. 68 e 183)
bém uma ativista política: são várias as manifes- Caraterizada como “uma gueixa portuguesa”, a
tações em que participa – a revolução de abril de própria se encarrega se exprimir o seu fascínio pelo
1974; a independência de Timor Leste; a oposição sexo e pelo erotismo como forma de se libertar de
ao capitalismo – sendo que, paradoxalmente, ela uma educação castradora. Por meio de uma “per-
se transformará numa distribuidora de bens de luxo versa doutrinação que diabolizava o sexo como
em Cabo Verde. uma prática horrorosa”, a mãe dedicara-se a des-
A sua adesão à revolução dos cravos é justifica- truir nela “toda a pulsão de natureza erótica como
da como um mecanismo de emancipação não só nefando crime contra a moral e os bons costumes”.
coletiva, mas sobretudo individual: “o 25 de Abril foi Como reação a esta catequização materna, Eva
para a Eva muito mais que a libertação do seu povo tornar-se-á “uma messalina moderna, sem qual-
da ditadura fascista. Foi sobretudo uma espécie de quer freio ou pudor” (p. 161).
um repentino desabrochar para uma nova vida, a Ao mesmo tempo, define-se como uma figu-
descoberta de um sentido útil para a sua existência ração feminina do donjuanismo: ora porque tece
de menina de família que recusa a domesticidade promessas “sempre adiadas para um dia qualquer
que viu a mãe aceitar com mais resignação que de um futuro incerto” (p. 70); ora porque coleciona
vocação” (p. 213). amantes e entende a sedução como um jogo em
Com a independência de Cabo Verde, Eva que cada homem tem um lugar importante, embo-
cumpre o desejo de contribuir para o crescimento ra breve: “amo a todos porque é presente, porque
cultural e económico do arquipélago: por isso se cada um tem um lugar marcado, um lugar próprio
torna cooperante, “comprometendo-se de alma e e insubstituível, nenhum tomou o lugar do outro,
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
nenhum de vocês substituiu um qualquer outro” (p. Em Eva, assiste-se a uma significativa mudança
231); ora ainda porque decide, na segunda metade de contexto histórico e social. A época colonial dá
da década de 1970, viver “abertamente” com Luís lugar ao período pós-colonial e tal alteração permi-
Henriques, “sem qualquer espécie de constrangi- te, desde logo, observar uma manifesta modifica-
mento como marido e mulher, e perspectivavam vir ção de comportamentos e de visões do arquipéla-
juntos para Cabo Verde após o dia 5 de Julho” (p. go.
232). A transformação do contexto histórico tem
Eva rege a sua existência por uma pauta de va- também consequências na abordagem da temática
lores pessoal, na qual se destacam a provocação amorosa: assim, no romance de 1991, conhece-
a princípios familiares (em particular à autoridade mos, através da leitura de um extenso testamento,
paterna); o incumprimento dos votos do casamen- os relacionamentos amorosos do protagonista com
to católico; o fascínio por Don Juan, que procura duas mulheres: são relacionamentos pautados pela
imitar no seu empenho em multiplicar amantes e dominação masculina – social e economicamente
abandoná-los sem sequer conhecer as suas iden- mais forte – e pela alienação feminina – subjugada
tidades. e reprimida. Já no romance de 2006, a dominação
No que respeita à hetero-caraterização, tanto económica e também erótica é exercida por uma
Reinaldo como Luís Henriques – os amigos que mulher branca.
dialogam sobre as relações vividas com Eva e que Nos dois romances, mais relevantes do que
tentam sistematicamente suplantar-se – concor- preconceitos raciais de tempos coloniais, são as
dam na identificação de uma figuração contempo- problemáticas de dominação em função do género
rânea do mito da beleza e do amor: uma Vénus que e do domínio económico. Com Eva, deparamo-nos
se deixa admirar, mas que impede a estabilidade com uma subversão de um fundamento do lusotro-
dos afetos: “saindo do meio daqueles panos como picalismo: a sedução e a conquista deixam de ser
uma deusa desprendendo-se das nuvens que a protagonizadas por homens brancos e passam a
escondem. (…) Conservava-se hirta como uma ser desempenhadas por uma mulher.
deusa esfíngica, o vestido branco tapando-lhe os 153
Tratando-se de um romance pós-colonial, Eva
pés” (pp. 84 e 89). permite ainda uma reflexão sobre a condição dos
Também neste romance se assiste a uma frag- cabo-verdianos de segunda e terceira gerações
mentação do discurso omnisciente do narrador e que vivem em Portugal: emigrantes de “precária si-
à presença de uma poifonia vocal que, em leitura tuação” a quem o país “não reconhecia a condição
pós-moderna, relativiza a noção de verdade, pois de portugueses” (p. 128).
diversas vozes se contrariam ou se complemen- O protagonismo feminino no romance Eva mos-
tam. tra as capacidades de uma mulher instruída, civica-
mente responsável e comprometida com os valores
da liberdade e da fraternidade. Revela ainda, numa
4. Conclusão
visão comparativa de duas obras literárias inscritas
O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva em contextos históricos acentuadamente diferen-
Araújo e Eva traçam o retrato da sociedade cabo- tes, que o arquipélago cabo-verdiano conheceu,
-verdiana em dois momentos bem diferentes da no seu percurso mental, uma transformação muito
sua História. No primeiro romance, maioritaria- significativa: o papel das mulheres em Cabo Verde
mente localizado nos últimos anos da colonização desvela um caminho que, não assimilando intei-
portuguesa de Cabo Verde, o relacionamento de ramente expectativas de submissão, foi marcado
um cabo-verdiano bem posicionado económica e pela resistência e pela conquista da emancipação e
socialmente revela um comportamento opressivo do reconhecimento.
que, não acentuando questões de natureza racial,
aponta para a prepotência dos mais poderosos e
para a dominação da mulher sem instrução formal Referências bibliográficas
e moldada por regime patriarcal que a transforma Almeida, G. (1991). O Testamento do Senhor Na-
em ser alienado e resignado. pumoceno da Silva Araújo. Lisboa: Caminho.
Todavia, a presença da personagem de Graça Almeida, G. (2006). Eva. Lisboa: Caminho.
permite antecipar simbolicamente o caminho de Gordon, Maria da Conceição Lopes (2009) “The
Cabo Verde para a emancipação. Permanecem (Un) Holy Trinity: Women’s Protagonism in O Testa-
duas mulheres que correspondem a estereótipos mento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”, Portu-
sociais e a expectativas masculinas epocais. guese Studies, 25, 1, 65-79.
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
154
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
real e lógica, com a razão muito presente simboli- Logo no primeiro agrupamento de versos, pri-
zada pelo mês de Maio, período quente, de calor e meiro dia portanto, há a revelação do romantismo,
ardência no amor. Numa outra estrofe, o eu-lírico do galanteio masculino a descrever a beleza femi-
privilegia a sensatez, a busca do equilíbrio, da com- nina “como o sol de Novembro brincando de artista
preensão e da manifestação de afecto, demons- nas acácias floridas/ espalhando diamantes na fím-
trando a seguir, no grupo de versos seguintes, a bria do mar e dando calor ao sumo das mangas.”
sua incapacidade natural de doar-se totalmente A estratégia de conquista continua numa investi-
para o amor. Nesse caso, a expressão “Ter só de- da indirecta na segunda estrofe ganhando o pen-
dos e dentes é muito triste” pode simbolizar a ideia dor religioso, com um sujeito “pedindo rogando de
de que os dentes, enquanto guardiães do interior, e joelhos no chão/ pela Senhora do Cabo, pela Santa
os dedos, como indício de responsabilidade natu- Ifigénia,/ me desse a ventura do seu namoro...”,
ral do ser, estabelecem a relação entre a razão e a uma investida que se revela infrutífera porque “(…)
emoção perante “o verão [que] pinta de azul o céu/ ela disse que não.”
e o mar é devassado pelas estrelas”, uma alusão O desespero do sujeito vai aumentando e, na
a ideia de dias longos. Finalmente, o “Antes que a terceira estrofe, o obscuro e a tradição africana são
morte se aproxime, procuro-te.” anuncia o princípio chamadas na pele da “avó Chica, quimbanda de
de continuidade da vida para fins confessos “Nas fama”, esperando que ela fosse capaz de fazer “um
ruas, nos barcos, na cama,/ com amor, com ódio, feitiço forte e seguro/ que nela nascesse um amor
ao sol, à chuva,/ de noite, de dia, triste, alegre — como o meu...”. Ainda assim, “(…)
procuro-te.”, testemunha a essência da vida conju-
o feitiço falhou.”.
gal segundo a qual deve-se persistir em busca da
costela oferecida para se tornar completo. No quinto dia, ou quinta estrofe, o sujeito inicia a
investida directa. Prepara-se para abordar a mulher
amada “à porta da fábrica,”, procurando conquistá-
2. Com “Canto à amada”, o poeta entoa a voz do -la através de bens materiais, pelo romantismo, “e
real para descrever a visão masculina da mulher ela disse que não.”
156 amada que está “sempre sempre desdobrada/ em
O sexto dia é o do desespero total; da descren-
beleza e formosura”. Como apaixonado, o eu-lírico
ça. O sujeito anda sujo e descalço. O seu caso não
demonstra a obstinação ao encontrar em cada ros-
passa despercebido na comunidade. As pessoas
to ou objecto, o rosto da amada, “dentro da cara
envolvem-se, levam-no ao baile, um momento e
da Lua/ numa garota da rua/ no palhaço da folia”.
local de convívio comunitário.
Na verdade, vê a amada no meio da imensidão, do
universal, e na voz e ouvido de outrem, preenchen- E chega o sétimo dia, ou sétima estrofe, a da
do todo o seu-eu, porque “sempre está no meu gloria:
amor”. Tocaram uma rumba dancei com ela
Na última quadra do poema, o autor enclausura e num passo maluco voamos na sala
o conteúdo que, tal como no “Procuro-te”, cria a qual uma estrela riscando o céu!
sensação de um campo magnético que chama a si E a malta gritou: “Aí Benjamim!
todo o sentido de beleza da mulher amada, “sem- “Olhei-a nos olhos -sorriu para mim
pre sempre desdobrada/ em beleza e formosura”. pedi-lhe um beijo -e ela disse que sim.
3. O poema “Namoro” é bem mais directo na Poder-se-á questionar sobre se realmente não
abordagem da temática, embora parecido ao “Pro- terá sido a pressa a não permitir que as estratégias
curo-te” na irregularidade da estrutura estrófica e utilizadas tivessem sucesso, ou se tudo antes tenha
mesmo na métrica. Há uma história de declaração sido um fracasso. Entendido como uma instituição
de amor, de conquista, de pedido de namoro, em que valoriza o sentimento recíproco entre duas
que o sujeito se socorre de várias estratagemas pessoas, o pedido de namoro só acabou corres-
para atingir um fim que nos dois poemas anteriores pondido quando houve a envolvência e apoio da
não foram alcançados, principalmente porque o comunidade.
platonismo do amor estava mais próximo de uma
lírica provençal. Sem pretendermos forçar uma
analogia com a criação do mundo, a conquista Poema: a razão tensiva de ser
se reparte em sete estrofes – para tal contagem Essa relação vista logo na ponta de iceberg dos
excluímos o refrão –, em que cada uma poderá poemas, tem a sua razão de ser. Foi, no fundo,
corresponder a um dia da semana. o que me animou a fazer a leitura, que a seguir
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
proponho, estando exactamente na relação que os mas a amada, tal como em Solano trindade e em
três poemas dos autores referenciados convocam Eugénio de Andrade, é propositadamente anónima.
no seu conteúdo. Refiro-me à “Procuro-te” (Eugé- Porém, os tais materiais de construção recupe-
nio de Andrade), “Canto à amada” (Solano Trinda- rados do poema “A musa e a poesia” trazem em
de) e “Namoro” (Viriato da cruz). Na relação entre comum o facto de terem sido transformados em
as temáticas desses três poemas, há como que monumento. Apoiando este excerto, Umberto Eco
uma cadeia que inicia na procura da mulher ideal, (2011) relata que “a matéria é, assim, uma espécie
passa pelo encontrar e na dedicação de um canto de obstáculo sobre o qual se exerce a actividade
em sua honra e culmina com um sôfrego pedido inventiva, que transforma as necessidades do obs-
de namoro. No entanto, há aqui uma certeza nessa táculo em leis da obra” (p. 16).
cadeia: o ser amado, embora identificado, é simbó- Nos poemas que seleccionamos, a mulher não é
lico e imaginário, e a sua fisionomia é comparada tão matéria quanto aquela que Eugénio de Andra-
a elementos naturais que servem para visualizar e de nos apresenta em “Algumas reflexões sobre a
visionar a grandeza da mulher. Daí a ideia de “fé mulher”1, em que o material de construção poética
menina” simbolizar uma inocente crença por um é mãe, animal sonâmbulo, fabricante do mel, que
ser eminentemente ideal. também sabe romper o inferno, esconder o latir
lancinante dos seus cães, beber o silêncio nas pró-
No curso do natural, em “Procuro-te”, Eugénio prias mãos, voar mais fundo que as aves e mergu-
de Andrade propõe uma viagem de busca que se lhar nas águas da sombra.
inicia no mar e emerge para o ar; Solano Trinda- Pelos três poemas, um de cada autor, a mulher
de convoca, no “Canto à amada”, um passeio do é grafada num quadro estereotipado, em que a ló-
cosmo ao cultural e, em “Namoro”, Viriato da Cruz gica masculinizada endeusa e presta vassalagem à
emigra do individual para o comunitário. menina que inspira e oxigena a vida do poeta. Daí,
Em essência, vemos os três textos a enclausurar quanto menos humanizada ela for retratada, mais o
paixões entre o natural e o social; entre poeta terá oxigénio para a idolatrar.
157
o utópico e o realizável. É nesse prisma que a http://www.astormentas.com/PT/poema/9852/
mulher é representada; numa sentimental convic- Algumas%20Reflex%C3%B5es%20Sobre%20
ção a%20Mulher acedido a 31.05.2012
inocente para homens que se mostram aparen-
temente racionais. Dissemos aparentemente racio- Mas isso não é nenhuma novidade pois, ao lon-
nais porque “a racionalidade própria ao universo go dos tempos, a literatura tem revelado
da paixão é aquela do acontecimento: o aconteci- o seu mecanismo aparentemente desarticulado,
mento não é acabado, ele advém e afecta aquilo apresentado como um espaço privilegiado para se
que está diante dele, para quem ou em quem ele humanizar o inexistente e explorar o inalcançável.
advém” (Fontanille, 2008, p. 188). Nesses advérbios artísticos de lugar, o feminino se
A distância entre a mulher ideal e a real na poe- eleva como uma deusa da criatividade, até porque
sia sinonimiza a relação virtual entre o material e “o acto criador é apenas um momento incompleto
o incorporal. E a razão poética tem noção dessa e abstracto da produção de uma obra” (SARTRE,
realidade artística. 2006, p. 37). Umberto Eco acrescentaria que “o
No poema “A musa e a poesia”, Solano Trindade artista procede por tentativas, mas a sua tentativa
(2008b, p. 100) confessa-se: é guiada pela obra tal como esta deverá ser, algo
É necessário criar muitas musas que, na forma de um apelo e de uma exigência in-
trínseca à formação, orienta o processo produtivo”
para que a poesia não pare…
(p.17).
(…)
Tudo isso, essas impressões e imprecisões
A função do poeta é construir sobre o fazer poético, vem desde muito antes do li-
a musa é material de construção rismo trovadoresco, período em que a mulher tinha
que o poeta transforma em monumento… já para si um lugar devidamente descriminado nas
cantigas. Portanto, não nasceu na época contem-
Está claro que a lírica precisa de musas, que em porânea a manifestação artística na qual o homem
muitos casos é um ser definidamente indetermina- procura demonstrar um platonismo masoquista,
do, como se observa no poema “Namoro”, de Vi- criando uma realidade abstracta onde se presta
riato da Cruz. Neste, o sujeito tem nome (Benjamin), vassalagem à mulher.
Se Benedetto Croce (1967) se tenha referido
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
à poesia como “sopro sagrado” (p. 6), Roland afirmando que “a paixão poderia ser considerada
Barthes (1987) procura estar em sintonia sobre o como o princípio da coerência (ou da incoerência)
poder da poesia ao afirmar que “escrever é abalar interna do sujeito: ela dissocia ou mobiliza, ela se-
o sentido do mundo” (p. 6-7). Nessa perspectiva, lecciona um papel e suspende todos os outros, ela
ambos parecem encarar o texto poético como uma agrupa os papeis em torno de um só, etc” (p. 214).
lufada que traz consigo senhas de impulso perante Para concretizar este proposito poético, como
um mundo que se deixou consumir por imensos refere Jerôme Roger (2002), “o poeta propõe
abalos que não são necessariamente sagrados e, símbolos; imagens que vão levar o leitor a recriar
por arrasto, não poéticos. figuras também simbólicas” (p. 166). Essa estra-
A mulher, nos poemas que constituem o nosso tégia poética masculinizada nos três textos em
corpus, afirmada pelo sujeito lírico, é fonte ins- análise, leva o leitor a desconcertar-se com o texto
piradora e criadora de paixões que o eu-poético num primeiro contacto, mas depois “a leitura se
necessita para se autoflagelar e, assim, posicionar dedica a desfazer o «tecido» do texto para mostrar
melhor a sua criatividade libertadora. Esse mundo, como nele se superpõem aos diversos «códigos»
criado por si para a sua própria evasão, é ao mes- constitutivos de todos os seus sentidos possíveis
mo tempo o da sua orgástica paixão. ou secundários subjacentes” (idem).
Citado por Pierre Bourdieu (1996), Flaubert faz a Aos olhos do leitor, tais símbolos carregam-se
seguinte declaração: “Eis porque amo eu a arte. É de feminilidade e alimentam a paixão “como se a
que aí, pelo menos, tudo é liberdade, nesse mundo imagem pudesse nascer som, cor, sem um exercí-
de ficções. Tudo se sacia nele, nele tudo se faz, cio concreto da fisicidade a formar que fosse para
somos ao mesmo tempo o nosso rei e o nosso ela [imagem] uma contínua referência, um suporte,
povo, activo e passivo, vítima e sacerdote. Nada de uma sugestão” (ECO, 2011, p. 15).
limites; a humanidade é para nós um fantoche de É a tal ideia de se afastar do concreto e procurar
guizos que fazemos tocar na ponta de uma frase descrever o inexistente ou inalcançável a partir do
como um saltibanco na ponta do pé” (p. 48). existente. Sobre esse fenómeno, Francisco Soares
158
E nesse espaço lírico que é o aludido mundo do (2007) dá uma explicação pertinente:
poeta, a incompletude permanece para gáudio da “A importância de uma imagem de conjunto no
criatividade. E, concomitantemente, da sua liber- processo criativo deriva de a visão da totalidade se
dade, que permite a Eugénio de Andrade achar tornar o projecto da obra e de ser sempre necessá-
que “Um pássaro e um navio são a mesma coisa/ rio termos um projecto – ainda que não tenhamos
quando te procuro de rosto cravado na luz”, que sempre o mesmo” (p. 88).
permite a Solano Trindade andar alucinado e ver a O processo criativo pode ser condicionado ou
sua amada “dentro da cara da Lua”e“nas águas do condicionar uma imagem poética, que pode vir
grande mar”, e que permite a Viriato da Cruz atingir depois a resultar num todo estrutural para que a
a euforia perante o consumar de um desejo: obra, na vã busca da perfeição, tente comunicar
o projecto, que nem sempre existe objectivamen-
Tocaram uma rumba dancei com ela te. Aliás, Jean-Paul Sartre (2006) refere que “essa
e num passo maluco voamos na sala aparência de finalidade que descubro na variedade
qual uma estrela riscando o céu! das cores, na harmonia das formas, nos movimen-
tos provocados pelo vento, sei bem que não posso
explicá-la” (p. 43).
Flaubert e Madame Bovary (1971) querem ver o
No entanto, a reprodução da imagem feminina
homem mais comprometido com o acto poético e,
no texto, na perseguição de paixões e (des)ilusões,
talvez por isso, se questionam sobre uma provável
traça uma linha que foge do horizonte do poeta,
pirâmide de prioridades do homem-poeta:
mas que sem ele a linha jamais será definida.
Jean-Paul Sartre (2006) explica isso buscando a
“Um homem não devia (…) primar por múltiplas sua própria experiência: “Quando me encanto com
actividades, sem primeiro saber iniciar uma mu- uma paisagem, sei muito bem que não sou eu que
lher nos embates da paixão, nos requintes da vida, a estou criando, mas sei também que, sem mim,
enfim em todos os seus mistérios?” (p. 31) as relações que se estabelecem diante dos meus
Pode-se depreender que, na relação poeta- olhos entre as árvores, a folhagem, a terra, a relva,
-criação-mulher, há um código de ética, em que em absoluto não existiriam” (p. 43).
o eu-lírico compreende e assume paixões e (des) No presente trabalho, Gaston Bachelard (1990)
ilusões. Fontanille (2008) sintetiza esse pressuposto vem ajudar a sintetizar os nossos objectivos peran-
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
te a transformação da paisagem pela visão criado- ce que “enquanto a identidade de género se liga
ra do poeta. Conforme refere, “para bem sentir o a identificação histórica e social dos sujeitos que
papel imaginante da linguagem, é preciso procurar se reconhecem como femininos e masculinos, a
pacientemente, a propósito de todas as palavras, identidade sexual está relacionada directamente à
os desejos de alteridade, os desejos de duplo sen- maneira como os indivíduos experenciam os seus
tido, os desejos de metáfora” (p. 3). desejos corporais” (p. 33).
Aliás, Jean-Paul Sartre (2006) é peremptório na
Na nossa perspectiva, vamos revisitar três ma- sua análise: “Todas as relações que estabelecemos
trizes em função de uma metáfora-mãe (paixão), permanecem hipóteses” (p. 43). Ou seja, o poeta
encarada como um universal temático. Como nos busca e buscará sempre o inalcançável, mesmo na
lembram Brunel e Chevrel (2004), “os problemas impressão que vai construir sobre as paixões.
relativos à construção de conjunto colocam-se É um desígnio ingrato, pois, como nos lembram
evidentemente com acuidade quando se pretende Deleuze e Guatarri (1992), “o objectivo da arte (…) é
demonstrar a existência de analogias fundamentais arrancar o percepto das percepções do objecto e
entre alguns autores ou entre algumas obras, não dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o
tanto no quadro preestabelecido de um qualquer afecto das afecções, como passagem de um esta-
universal temático ou tipológico, mas segundo do a um outro” (p. 217).
o ângulo de um conceito-chave que terá de ser Portanto, não é uma tarefa fácil, não fosse ela
seguido nas suas diferentes encarnações e cuja também um novilho perdido num labirinto fictício,
pertinência para o estudo do corpus escolhido será que existe para ser desflorado pelo poeta e existirá
precisamente o que se pretende demonstrar” (p. para o consumo do futuro leitor.
177). Voltando ao título da presente comunicação,
Essa paixão, o poeta direcciona-a à mulher. para situarmos e espelharmos melhor a nossa
Depois de lermos os textos seleccionados, somos proposta de leitura, torna-se pertinente visitar o
invadidos pela curiosidade de conhecer as inde- conceito do monema fé. Para Roquete e Fonseca 159
terminadas mulheres por trás dos poemas e saber (1974), fé é um pressuposto de persuasão que se
de Eugénio de Andrade, Solano Trindade e Viriato tem na verdade de uma coisa.
da Cruz a razão do escrever. Na impossibilidade de
ouvir deles tal resposta, podemos recorrer à res-
“A fé é uma crença fundada unicamente na auto-
posta de Jean-Paul Sartre (2006) disse: “Cada um
ridade do que fala. Neste sentido é que se diz, ter
tem suas razões: para este, a arte é uma fuga; para
fé em alguém, que vale o mesmo que estar persua-
aquele, uma maneira de conquistar. Mas pode-
dido na verdade do que diz” (p. 262).
-se fugir para um claustro, para a loucura, para a
morte; pode-se conquistar pelas armas” (p. 33), e A aparente verdade do poeta alimenta o seu
no entanto está aí o poeta, de caneta na mão, em anseio no fazer poético. Assim, em cada um dos
busca da conquista ou a tentar empreender uma três poemas do nosso corpus há um princípio de
fuga. anseio, de desejo, de exaltação, de entusiasmo,
de êxtase, palavras que equivalem a paixão (Porto
Ainda assim, a dúvida sobre tal posição pode
Editora, 2009, p. 510). Nos três poemas, os autores
permanecer. Porquê tal opção?
destacam o belo como enfoque de abordagem e
Voltamos a um escrito de Jean-Paul Sartre justificativa da intensidade afectiva. Por exemplo,
(2006): Viriato da Cruz descreve o sorriso luminoso:
“(…) existe, por trás dos diversos desígnios dos (…)tão quente e gaiato
autores, uma escolha mais profunda e mais imedia-
como o sol de Novembro brincando de artista
ta, que é comum a todos” (p. 33).
nas acácias floridas
Na realidade, e após análise dos textos poéti-
espalhando diamantes na fímbria do mar e dan-
cos do nosso corpus, não se trata de uma visão
do calor ao sumo das mangas.
do macho para a fêmea, mas antes uma visão de
dependência consciente do poeta que reconhece a sua pele macia - era sumaúma...
sua natureza masculina, não tanto apelando a uma Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a
relação sexual carnal, mas a uma rosas
relação sexual mais espiritual à boa maneira das tão rijo e tão doce - como o maboque...
cantigas de amor ou do lirismo provençal. O que o Seu seios laranjas - laranjas do Loge
poeta busca nas palavras não será explicável pela seus dentes... – marfim.
lógica dos géneros. Guacira Louro (1997) reconhe-
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
do tamanho do mundo
Eugénio de Andrade, por seu lado, chama a mu-
lher amada e vê o nome dela ecoar pelo seu infinito Não menos arrebatador, Viriato da Cruz hiperbo-
horizonte: liza também no primeiro conjunto de versos:
Chamo por ti, e o teu nome ilumina Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
as coisas mais simples: e com a letra bonita eu disse ela tinha
o pão e a água, um sorrir luminoso tão quente e gaiato
a cama e a mesa, como o sol de Novembro brincando de artista
os pequenos e dóceis animais, nas acácias floridas
onde também quero que chegue espalhando diamantes na fímbria do mar e dan-
o meu canto e a manhã de maio. do calor ao sumo das mangas.
seu estado emocional de excitação plena, sendo a fugidia voz da água entre o azul
possível “sentir” a carga emocional que as palavras do prado e de um corpo estendido.
trazem da euforia contagiante.
Por outro lado, a disforia testemunha a tensão Solano Trindade projecta a paixão do mar da
do eu-lírico masculino na descrição da fé menina. desgraça para o da alegria:
Entendida como uma mudança repentina e transi-
Um dia vi minha amada
tória do estado de ânimo, tais como sentimentos
de tristeza, pena ou angústia, o eu-lírico dos três nas águas do grande mar
poemas deixa-se vencer por um mal estar psíqui- outra vez a encontrei
co acompanhado por sentimentos de tristeza e/ou num belo maracatu
melancolia:
Ter só dedos e dentes é muito triste: dedos para Chegado em África, o angolano Viriato da Cruz
amortalhar crianças, resgata o mar para o fazer brilhar através de um
dentes para roer a solidão, sorriso quente e gaiato:
enquanto o verão pinta de azul o céu e o mar é espalhando diamantes na fímbria do mar e dan-
devassado pelas estrelas. [Eugénio de do calor ao sumo das mangas.
Andrade]
ou Consideramos pertinente abrir um parêntese
Ontem minha amada para lembrar uma outra das três dimensões da
estava dentro da cara da Lua actividade de linguagem ou do discurso na pers-
pectiva de Fonanille (2008). Referimo-nos à Acção
(…)
que, como vimos, faz alusão à lógica das transfor-
Um dia vi minha amada mações, que é tomado retrospectivamente.
nas águas do grande mar [Solano Trindade] Ora, o eu-lírico de Viriato da Cruz dá sentido
prático a essa dimensão tensiva: 161
Ou ainda Andei barbado, sujo, e descalço,
como um mona-ngamba.
Mandei-lhe uma carta (…)
e ela disse que não. Tocaram uma rumba dancei com ela
(…) e num passo maluco voamos na sala
Andei barbado, sujo, e descalço, qual uma estrela riscando o céu!
como um mona-ngamba. [Viriato da Cruz] E a malta gritou: “Aí Benjamim!”
Na paixão pela mulher idealizada, traduzida O que aqui se percebe é que o sujeito lírico vive
pelos três poetas, há uma intensidade afectiva e de um momento de crise; de sacrifícios, compensado
valor que regula a relação tensiva do homem. posteriormente com a bonança afectiva. Fontanille
Continuando a citar J. Fontanille, “o percurso refere que “o regime da acção baseia-se na trans-
passional só segue um programa na medida em formação descontínua das conjunturas. Uma acção
que ele é altamente estereotipado. (…) Consequen- liga duas situações, a inicial e a final, cujos conteú-
temente, o discurso apaixonado é regido por uma dos são invertidos: antes da acção, o ambicioso é
racionalidade bem diferente (…): a racionalidade do pobre e desconhecido; depois da acção, ele é rico
advir, que é aquela irrupção dos afectos e do devir e (talvez) estimado” (p. 191).
das tensões afectivas” (p. 188). A pretensa crise vivenciada pelo sujeito poético
permite-nos rebuscar um poema de Solano Trin-
E, isso, os três poetas conseguiram. Ora, nos dade (2008b) intitulado “A mensagem do poeta” (p.
seus poemas permitem que a água jorre sobre os 95), que apresenta alguns versos chaves na pers-
seus afectos alforriados, com a intensidade das pectiva de resumir a nossa comunicação:
suas torrentes. O português abre o discurso de (…)A mensagem do poeta
tensões afectivas logo com uma interjeição, em Fala do corpo da mulher,
que o seu azul é de liberdade: Dos seus seios
Oh, a carícia da terra, Da sua boca
a juventude suspensa, Das suas mãos,
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
Porque na mulher
Está a vida do poeta
Porque a mensagem do poeta
Vem do ventre da mulher.
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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
DA MITIFICAÇÃO À
PROSCRINAÇÃO:
Maria Monforte e o magnífico
poder da ausência
Ana Luísa Vilela
Universidade de Évora Portugal
mais ou menos anónimos, constituem a massa curiosamente análoga à dissociação entre presen-
da “corte”; Pedro, às vezes pelos cantos como o ça e representação - é agravada culturalmente pelo
sogro, despeitado, morde o seu charuto apagado. regime anómico que parece generalizadamente
Só Tancredo, “indolente e belo”, como ela “uma presidir à atribuição do patronímico às mulheres.
imagem”(OM, p. 42), “uma pintura” (OM, p. 40), e Como G. Pommier sublinha, a substituição,
a pequenina Maria, adorada pela mãe e por Tan- pelo casamento, do nome do pai pelo do marido,
credo, podem concorrer com Maria na polarização consagra, na mulher, o advento do reconhecimento
óptica do desejo. da sua identidade sexual; a característica exclusiva
A propósito de Maria, de Tancredo e da menina do patronímico feminino é, então, a de dever ser
são, neste mesmo capítulo, enunciadas mais de perdido (Pommier, 1992, pp. 19/24). Desta forma, é
30 formas lexicais relacionadas com amor, desejo justamente a carência ou o apagamento da função
e exibição. Provavelmente, a cena mais expressiva paterna que permite o acesso a uma identidade
da condição simultaneamente sensualista e voyeu- autónoma da mulher. O primeiro nome das mulhe-
rista do desejo é protagonizada pelo velho Monfor- res - o nome próprio - é, pois, o sinal mais estável
te admirando Tancredo: do feminino, ainda assim reconhecendo-lhes um
género, mais que uma individualidade. No caso
da Monforte, o seu nome, Maria, é o signo de uma
Todos ali o adoravam; mas ninguém mais que
identidade totalmente genérica, permitindo qualifi-
o velho Monforte, que passava horas, enterra-
car uma margem ampla, indiferenciada, de femini-
do na sua alta gravata, contemplando o prín-
lidade.
cipe com enternecimento. Depois, de repente,
erguia-se, atravessava a sala, ia-se debruçar De qualquer forma, à mulher, mais ainda do que
sobre ele, palpá-lo, senti-lo, respirá-lo, murmu- ao homem, parece cometida, como meio único
rando no seu francês de embarcadiço: de afirmação autónoma da identidade, a tarefa da
- Ça aller bien... Hein? Beaucoup bien... Ora anulação simbólica do pai, cuja certidão de óbito
estimo... (OM, p. 43) seria justamente assinada pela mudança de nome,
166 através do casamento ou de outra forma de afir-
mação identitária. Notemos a forma como o papá
Este grupo polarizante do desejo, composto Monforte favorece, com o seu apagamento físico, a
por uma rede de referências figurativas sacrais desejabilidade ostensiva da filha. Compreendamos,
- Judith, Helena, Beatriz, Madona, Apolo, Cristo, igualmente, o modo como a identidade formal de
princesa, Bambino Sagrado - tenderá, portanto, Maria Monforte parece incompatível com a sua va-
a autonomizar-se da família institucional, normal, lência erótica. No período de vigência do esplendor
e dos critérios biológicos de representação. As físico de Maria - e do pleno reconhecimento social
figuras operadoras da verosimilhança pessoal da sua identidade sexual - outras formas desvian-
(figuras estruturantes da personagem, tais como tes de desacreditação ficcional do nome paterno
a representação da identidade carnal e a atribui- podem ainda consistir nas agressões verbais a
ção onomástica) tenderão, neste grupo, a ceder Afonso, na ocultação do nome específico da filha,
lugar à vigência do fantasma. Em suma: a fanta- na atribuição de um nome de inspiração romanes-
sia idealizante é colectivamente investida sobre a ca a Carlos, na assunção de Alencar enquanto seu
identidade; esta torna-se uma identidade erotizada padrinho fictício.
e espectacularizada, provida de uma multiplicidade Parece-nos possível concluir, assim, que Maria
de designações, epítetos, títulos, próteses, emble- Monforte materializa, de facto, a básica incom-
mas, acessórios intensificadores (perfumes, laços, patibilidade entre o Eros e o regime instituído da
rendas, jóias, grandes sedas) e convertida em procriação regulamentar, da herança patronímica e
objecto de representação estética (quadros vivos, da formalização identitária.
retratos, pinturas). A anulação drástica da presença temática de
Maria e o abandono dos seus espaços coincidirão,
A identidade feminina e as suas aporias. por sua vez, com o regresso da presença de Afon-
A representação da Monforte e do seu trajecto so, com a morte temática de Pedro em Benfica,
narrativo adapta-se, assim, com singular rigor, aos e também com o nascimento narrativo de Carlos,
contornos arquetípicos de que se reveste, para os traduzido pela sua reintegração no espaço original
psicanalistas, o complexo processo da identidade da família e no seu correspondente lugar dinástico.
feminina (cf. Pommier, 1992). Em Maria Monforte, a Aliás, tal nascimento é consagrado por uma espé-
dissociação quase absoluta entre corpo e nome - cie de segundo baptismo pelo avô, à luz normali-
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
zadora da raça familiar personificada por Afonso. Eduarda, e depois pelo seu depoimento póstumo.
Restará lembrar que Carlos da Maia, tal como a O destino dessas mulheres “que muito amaram”,
irmã, desempenhará junto de Afonso idênticas liricamente deplorado na prosa de Alencar, consa-
funções de Menino Sagrado, num registo erotizante gra então Maria Monforte como uma espécie de
significativamente mais discreto do que o dela (ma- grande alegoria intratextual do feminino, em relação
nifestado nas menções ao seu viço, vigor, frescura, à qual todas as distâncias são tomadas: distâncias
alegria, etc., aos seus aparatos de rendas, franjas enunciativas (Maria é sempre vista ou mencionada
e guizos de prata, mas ainda assim explicitando do exterior, pelos olhos fascinados ou horrorizados
a alusão sacral: “No vasto leito o pequeno dormia dos admiradores, ouvintes ou leitores - mesmo
como um Menino Jesus cansado” - OM, p. 51). E retrospectivos ou indirectos); distâncias repre-
Carlos, como se sabe, é claramente identificado sentacionais (Maria é sempre descrita como um
com a função redentora do herdeiro. Literalmente, corpo especulativo e em pose, frequentemente sob
vigorará no romance em nome do pai. o enquadramento teatral ou protésico conferido
Na ausência da Monforte, alude-se ao desenvol- pelos contrastes ópticos e cromáticos, pelo dispo-
vimento estranhamente inconclusivo de actividades sitivo reflexivo dos espelhos e luzes, jóias, espaços
detectivescas de investigação, através da influência e adornos).
das legações, através da polícia secreta “regia- Bem ao gosto de Dumas, a sua declaração final
mente paga” por Afonso, através de delegados sobre a identidade do pai de Maria surge final-
pessoais. Por um lado, e por suposição de Afonso mente, ante os olhos de Manuel Vilaça e de Ega,
e Vilaça, atribui-se aos fugitivos, “naturezas boé- envolta num enquadramento cénico pitoresco: um
mias”, a errância exótica por regiões longínquas. documento inverosímil, entregue por um velho com
Por outro lado, justamente se supõe que tenham barbas de profeta, num embrulho misterioso, lacra-
mudado de nome. do, atado com fitas como um corpete feminino, que
De facto, sabe-se depois, por uma florida car- contém uma caixa de charutos onde, por sua vez, a
ta de Alencar, que o exotismo da fuga se limita a grave declaração se mistura com provas frívolas de
Viena, ao Mónaco, a Londres, Paris e Alemanha; e uma vida pouco respeitável. Tal cenografia mimeti- 167
realmente sucedem-se na Monforte as adopções za ainda, caricaturizando-a, essa multiplicação de
sucessivas de nomes ilegítimos. Morta uma filha acessórios metonímicos, típicos da representação
e morto Tancredo - outras duas histórias em- física da Monforte, os quais, em camadas sobre-
brionárias e digressivas - Maria chamar-se-á de postas, lhe disfarçam o vazio e a irrisão.
l’Estorade, talvez Cattani. Este último nome, ao que
parece de um acrobata de circo (o que não deixa
de poder constituir uma alusão ao único marido de Uma proscrição naturalista?
Sarah Bernhardt) é uma versão degradada do apo- Concluindo: segundo pensamos, a representa-
líneo Tancredo: um “Apolo de feira”. Todas estas ção de Maria Monforte (uma representação apesar
“torpezas” enojam o digno Afonso, e mais ainda o de tudo temperamentalista e evidenciando a doen-
fazem os lirismos relambidos do estilo da em que ça de idealismo de que padece toda a sociedade
Alencar lhe conta tudo isto. adoradora de Maria) cumpre os desígnios natura-
A carta do poeta romântico integra, de facto, a listas de contra-sacralização da mulher. Todavia,
montagem de um dispositivo dialógico intertextual: esses desígnios são singularmente relativizados.
por um lado, como texto citado, permite que os É que a carnalidade da mulher (ser toscamente
citantes-leitores (Afonso, Vilaça) tomem as suas instintivo, em que a animalidade das pulsões trai-
características posições em relação a ele: desde o çoeiramente se mascara de beleza) será sempre
“repelão” de Afonso, à “recolha religiosa” de Vilaça. curiosamente elidida, mediatizada, obscura e mal
Por outro lado, a carta de Alencar permite devolver provada como a sua identidade biológica. A ênfase
à história de Maria o registo idealizante, meta-fic- é colocada no efeito maléfico da sedução - e não
cionalizante e meta-romanesco, que é o seu n’Os na causa ou no objecto.
Maias. O poder de Maria é construído do exterior, é-lhe
Do corpo esplêndido da Monforte, não restará, atribuído por via contextual (no sentido mais lato do
agora, por ordem de Pedro, nenhum contorno ou termo). Maria é exactamente representada como
retrato. A memória de Maria será activada apenas um objecto de desejo - um objecto cujas inércia e
retrospectivamente, discursivamente: pelo bilhete intrínseca vacuidade disponibilizam para reflectir o
que deixa ao marido, pela carta de Alencar, pe- desejo e o sentido, sempre investidos de fora para
los testemunhos deste, de Guimarães e de Maria dentro. Com razão, Baudrillard fala na supremacia
da sedução metafórica do objecto: “O sujeito pode
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
desejar, só o objecto pode seduzir” (Baudrillard, jogo tende a estruturar, no romance, a representa-
1990, 95). ção familiar de um duelo entre os princípios prou-
Ou seja: cremos que acabam por se não cum- dhonianos - masculino-razão e feminino-sedução
prir, na representação da Monforte, importantes - traduzidos no antagonismo entre a honra familiar
preceitos da fórmula misógina da proscrição e o Eros desviante, ou entre realismo e romantismo.
feminina pelo realismo racionalista. Por um lado, tal A evocação da grande ausente pontua os lan-
proscrição não se consuma jamais, permanecendo ces fulcrais da intriga; em limite, os seus efeitos
na narrativa constantes alusões ao fascínio con- implacáveis e transcendentes identificam-na com
textual e extrínseco de um corpo-espectáculo que, o destino. A inscrição da ausência feminina atinge,
em si próprio, não é nunca representado. Por outro efectivamente, um estatuto meta-narrativo. Não
lado, é certo que tal objectiva proscrição, exercida se pode talvez render melhor preito a uma força
no romance por intermédio do complexo ético, proscrita.
virilizante e patriarcal representado por Afonso,
salientará, por muitas formas, os poderes desvian-
tes e maléficos da proscrita. Mas, na economia Referências Bibliográficas
semântica do romance, é justamente a sua apres- Correia, Natália (1971). “A ausência de Eurídice
sada proscrição que exponencialmente potenciará em Eça”. Diário de Notícias - Artes e Letras (26 de
a produtividade e a tematicidade desta mulher fatal. Agosto). Lisboa.
Representam-se, de muitos modos, os efeitos Dantas, Francisco J. C. (1999). A Mulher no Ro-
falsificadores e destruidores de tal proscrição: o mance de Eça de Queiroz. Sergipe: Universidade
romance de origens de Carlos será outra história Federal de Sergipe.
obscura e mal provada, e disso derivará toda a Dottin-Orsini, Mireille (1993). Cette femme qu’ils
tragédia. O Eros defectivo, tributário da ausência, disent fatale. Textes et images de la mysoginie fin-
as sugestões constantes de inconsequência, in- -de-siècle. Paris: Bernard Grasset.
completude, falha, dissociação e lacuna identitária, Hamon, Philippe (2001). Imageries. Littérature et
168 as permanentes clivagens entre o ser e o parecer image au XIXe siècle. Paris: José Corti.
- mascaram-se, no romance, por meio de cópias, Mitterand, Henri (1987). “Le corps féminin et ses
simulacros, acessórios, prolongamentos e reflexos, clôtures: L’Education Sentimentale. – Thérèse Ra-
fúteis como os da Monforte: tal como, na fachada quin”. Le regard et le signe. Paris: PUF, 107/127.
do Ramalhete, o vazio do escudo heráldico dos Pommier, Gérard (1992). A ordem sexual. Per-
Maias é ocultado pelo painel de azulejos que frivo- versão, desejo e gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
lamente lhe confere um nome substitutivo.
Praz, Mario (1988). La chair, la mort et le diable.
A presença fugitiva de Maria Monforte deixa- Le romantisme noir. Paris: Denoël.
rá, na economia simbólica do romance, um sulco
Queirós, Eça de (s./d.). Os Maias. Episódios da
profundo de latência e ameaça. Mesmo fisicamente
Vida Romântica. Lisboa: Livros do Brasil.
ausente, a sua evocação continuará a ser profun-
damente icónica e alegórica, materializando, no Rosa, Alberto Machado da (s./d.). Eça, discípulo
plano propriamente figurativo, a persistência surda de Machado? (Formação de Eça de DATAueirós:
e as metamorfoses do feminino. Alberto Machado 1875-1880) (ed. revista e actualizada). Lisboa: Pre-
da Rosa sublinha justamente a importância do sim- sença.
bolismo “quase disfarçado” da estátua do quintal Roy-Reverzy, Eléonore (1997). La mort d’Eros -
do Ramalhete, que considera incluir a “primeira la mésalliance dans le roman du second XIXème
estátua”, Maria Monforte, cuja figura permanece- siècle. Liège: Sedes.
rá, habitando a Vénus Citereia, como “uma vaga
premonição de tragédia”; a estátua renovar-se-á
depois, com a remodelação do palacete e a apari-
ção de Maria Eduarda em Lisboa, para, acompa-
nhando a saciedade e a repugnância de Carlos, se
transformar enfim na imagem de grossos membros
sob a ferrugem verde, do Ramalhete final (cf. Rosa,
pp. 351/355).
O jogo entre a presença e a ausência da Monfor-
te, em alternância com as de Afonso, estrutura todo
o II capítulo d’Os Maias. Por extrapolação, este
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Resumo: Sendo certo que as sociedades não podem viver sem literatura, a
representação da mulher, na produção literária dos séculos XIX e XX, atinge
particular singularidade nas obras de dois autores portugueses: o romance
A Morgadinha dos Canaviais de Júlio Dinis (18391871) e o conto A Mulher do
Chapéu de Palha de Graça Pina de Morais (1929-1992). Tais produções enfa-
tizam a figura feminina, cuja relevância se concretiza na função que a mulher
desempenha como um dos principais pilares da sociedade. Estas obras,
embora separadas longamente no tempo, identificam-se, porque visam, na
representação da mulher, a sua dignificação e uma interpretação singulariza-
da, que proporciona o desmontar de consciências preconceituosas e porque,
numa expressão literária marcante, analisam, não só a problemática interior
das protagonistas, as quais se afirmam no seio da sociedade contemporânea
dos autores, mas também as circunstâncias peculiares destas personagens à
procura de uma justificação para a vida.
169
Uma das áreas de investigação que merece de Palha. Este interesse decorre do gosto e da
ser objeto de análise é a literatura, cuja difusão é admiração suscitados pelas produções literárias
motivada pelo aparecimento e pela divulgação de destes escritores, consideradas menores e que
uma multiplicidade de obras literárias conducen- se encontram bastante esquecidas no panorama
tes a uma diversidade de estudos relativos a esta literário português.
matéria. Por tais factos, pretendemos demonstrar que as
Na verdade, as sociedades não podem viver obras de Júlio Dinis e as obras de Graça Pina de
sem literatura, pois este domínio constitui um dos Morais devem ser revalorizadas, visto que estas
fundamentos que integra o património da huma- produções revelam personalidades originais que
nidade, o qual requer estudo e posicionamento são capazes de enfatizar a figura feminina através
crítico, estabelecendo-se, por conseguinte, uma do elogio que nelas está presente, concedendo-lhe
relação entre as obras literárias e o mundo onde uma relevância concretizada na função que a mu-
as mesmas surgem, a fim de se poder verificar que lher desempenha como um dos principais pilares
aquela área é capaz de responder às exigências da sociedade.
dos indivíduos de uma sociedade, sem perder a Por coincidência, além de escritores, nascidos
sua identidade e a sua independência. na cidade do Porto, revelando ambos uma expres-
Com o intuito de garantir a exequibilidade e a sividade marcante, que põe em destaque a figura
atualidade dos estudos literários, centraremos a feminina, estas duas personalidades portuguesas
nossa atenção na temática da representação da identificam-se também pela profissão que lhes
mulher na literatura, nomeadamente na produção é comum – são médicos e esta vertente revela-
datada dos séculos XIX e XX, porquanto a figura -se fundamental para a representação da mulher,
feminina foi desde sempre representada pelos es- porque, por um lado, confere uma sensibilidade
critores e respetivas obras, surgindo como motivo conducente a um tratamento em consonância com
de interesse ao longo dos tempos. a realidade relativamente à figura em estudo e, por
A escolha da representação da mulher resulta do outro lado, conduz a uma interpretação singulariza-
estudo particular de dois autores e de duas obras da, que proporciona o desmontar de consciências
específicas: Júlio Dinis (1839-1871) com o romance preconceituosas e a expressão literária da interiori-
A Morgadinha dos Canaviais e Graça Pina de Mo- dade das personagens.
rais (1929-1992) com o conto A Mulher do Chapéu A estruturação das suas produções literárias
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
está, assim, construída num tom que analisa as começa a publicar as suas obras.
circunstâncias peculiares do indivíduo à procura de Durante muito tempo, “as mulheres foram […]
uma justificação para a vida e para o sofrimento, deixadas na sombra da história” (Duby e Perrot,
que envolve a evolução dessa existência através de 1991: 7), situação que vai sendo alterada com a
personagens que se afirmam no seio da sociedade enfatização dada à família e, por conseguinte, ao
contemporânea dos autores. papel da mulher, particularizada na sua vivência
quotidiana e na sua experiência individual, conquis-
tando direitos concretizados na sua emancipação.
1.1. Contextualização das obras literárias
A mulher ganha, deste modo, um novo estatu-
Enquadrando as obras de Júlio Dinis1 e as obras
to, progredindo à medida que as mentalidades se
de Graça Pina de Morais na sua época, referimos
alteram, sendo concedido à figura feminina um
que as primeiras são publicadas nas décadas de
maior protagonismo, obtido no âmbito de diver-
60 e 70 do século XIX, um período marcado por
sas vertentes da sociedade, que conduzem a uma
conquistas, por transformações e pelo progresso –
afirmação da sua identidade: “O século XX é […] o
fatores que, conjugados, proporcionam estabilida-
século em que mulheres, […], tomam a palavra e o
de, reproduzida nas criações dinisianas, na tenta-
controlo das suas identidades visuais; sublinhando
tiva de regeneração de costumes e de melhoria da
o desafio político da representação, elas tentam
sociedade portuguesa.
quebrar os estereótipos e propõem múltiplas vias
O período oitocentista vê nascer diferentes de realização pessoal” (Thébaud, in Duby e Perrot,
correntes estético-literárias – o romantismo, o 1991: 11), pelo que se afirmam, por exemplo, no
ultrarromantismo, o realismo e o naturalismo –, as panorama literário, construindo ou representando a
quais, preconizando uma pluralidade de fundamen- sua própria história.
tos, contribuem para a divulgação de novas ideias,
conceitos e formas de representar a realidade,
recorrendo principalmente ao género literário de 1.2. Análise do romance A Morgadinha dos
170 prestígio que se difunde neste século e que privile- Canaviais
gia a representação do indivíduo na sociedade – o Voltando ao século XIX, começamos por des-
romance. tacar o romance A Morgadinha dos Canaviais,
Estas mudanças refletir-se-ão no século XX, uma obra representativa das transformações que
época em que os escritores assumem um posicio- ocorrem em Portugal no período da Regeneração,
namento caracterizado por uma verdadeira febre quer a nível político, por exemplo, com a cons-
de produção no que respeita à prosa literária. trução de estradas, quer a nível social, através da
Escreve-se, visando a dignificação do ser humano participação da mulher na solução dos problemas
através de temas contemporâneos que se centram da comunidade.
no sujeito individual e na exploração da sua proble- Neste romance, publicado em 1868, em folhe-
mática interior, abrindo-se caminhos que resultam tins e em volume, são descritas algumas conquis-
de uma atitude essencialmente crítica e mesmo de tas que vão ocorrendo no país, nomeadamente a
autocrítica, na tentativa de sintetizar o que de mais extinção dos morgadios, pelo que o título atribuído
relevante ocorreu no passado para melhor projetar aponta para uma situação de elevação social que,
as experiências no futuro. no entanto, é extemporânea, dado que advém do
É nos anos 50 de Novecentos que se desenvolve facto de Madalena, a morgadinha dos Canaviais, o
a novelística portuguesa contemporânea, surgindo ter herdado da madrinha e de, naquele momento,
muitas obras produzidas por penas femininas ágeis já ter ocorrido a referida extinção3.
e sensíveis. As autoras colocamse ao nível dos Aliás, Júlio Dinis destaca esta situação, atribuin-
escritores masculinos e, apoiadas numa dura expe- do à protagonista uma atitude de recusa face ao
riência, analisam e questionam a tradicional condi- tratamento cerimonioso de Excelência que Henri-
ção da mulher, sujeita ao homem durante séculos que de Souselas, o jovem citadino, que se desloca
numa obediência silenciosa e resignada, sendo para o campo a fim de recuperar dos vícios da
a partir desta década que Graça Pina de Morais2 cidade, lhe concede: “Não me soa bem o imperti-
nente tratamento de excelência que me dá. Essa
1 Obras do autor: As Pupilas do Senhor Reitor (1867); A Morgadinha dos excelência está a pedir-me uma senhoria, pelo me-
Canaviais (1868); Uma Família Inglesa (1868); Os Fidalgos da Casa Mourisca
(1871); Serões da Província (1870, 1947); Poesia (1874); Inéditos e Esparsos
(1910); Teatro (1946-1947). Jerónimo e Eulália (1969); A Mulher do Chapéu de Palha (2000).
2 Obras da autora: Sala de Aula e Semideuses (1953); O Pobre de Santiago 3 A extinção dos morgadios é datada de 1860, ocorrendo a abolição definiti-
(1955); A Origem (1958); Na Luz do Fim (1961); O Medo e Raquel (1964); va em 1863.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
nos, e confesso-lhe ingenuamente que me custaria ção, a leitura que uma senhora jovem e ele-
a voltar na língua uma palavra tão comprida” (Dinis, gante lhes fazia das cartas, que elas para esse
s./d.: 276). fim lhe davam. A senhora estava montada, não
A atribuição deste título resulta, como já refe- como romântica amazona, […] mas modesta
rimos, de uma herança, mas não se enquadra no e simplesmente […] em uma possante e bem
rumo das mutações que ocorrem no país, por- aparelhada jumenta […]. Lia com voz agradá-
quanto a sociedade portuguesa vive um período vel e sonora (Dinis, s./d.: 266).
em que a burguesia, a nova classe social, começa
a ascender e a afirmar-se em detrimento da aristo-
A descrição enuncia algumas qualidades da
cracia.
jovem morgadinha, destacada como uma mulher
Dadas essas transformações e a singeleza da diferente no seio daquele grupo, mas que não se
vida no campo, o título de morgadinha surge de- impõe pela superioridade; pelo contrário, a prota-
sajustado desta nova ambiência. Porém, o escritor gonista distingue-se naquele ambiente modesto
pretende ressaltar, não só as alterações na vida so- pela singeleza, antecipando a função que a mulher
cial em Portugal, mas também valorizar o ambiente pode desempenhar a favor de uma comunidade,
campesino com as suas experiências, costumes intervindo e colaborando e não se confinando ao
e relações, evidenciados na personagem principal papel de esposa e de mãe, o que indicia o início da
que demonstra uma personalidade pouco comum emancipação da figura feminina moderna.
para a época, traduzida na simplicidade e na de-
Madalena assume-se, igualmente, como gestora
terminação decorrentes da rejeição do tratamento
do lar e como educadora, vetores que revelam a
cerimonioso utilizado na cidade, fator que indicia o
prática do dever familiar; a sua educação e pre-
princípio da desconstrução dos modelos instituídos
paração revelam, ainda, a função que, mais tarde,
ao longo dos séculos.
pode vir a exercer; demonstra em todas as suas
Devido aos efeitos regeneradores, representa- atitudes bons sentimentos e, apesar de ser jovem,
dos na ação benéfica que o meio rural tem sobre a possui maturidade e responsabilidade social, que 171
personagem que vive aborrecida e deprimida pela contribuem para a conceção da protagonista como
rotina da vida urbana, Henrique começa a desco- uma mulher determinada e moralmente bem forma-
brir uma nova vida, caracterizada pela serenidade da.
e pelo delicioso bemestar, sentindo prazer em
De facto, a morgadinha é apresentada como o
viver na aldeia, onde conhece a morgadinha, uma
anjo da família e da aldeia pelos atos que pratica
rapariga solteira, de vinte e três anos de idade, de
e pela presença de espírito com que age, sendo
trato afável e insinuante, meiga, inteligente, sensata
descrita da seguinte forma:
e de esmerada educação, revelando-se uma per-
sonagem bastante forte pelas qualidades morais
e que defende sempre os bons princípios, sendo Era uma mulher muito nova ainda. Uma gra-
apaixonada por tudo o que é justo e lhe desperta ciosa figura de mulher, suave, elegante, dis-
generosidade. tinta, um desses tipos que insensivelmente
Com efeito, Madalena é filha de um conselheiro desenha uma mão de artista, quando movida
e apresenta um caráter determinado e virtuoso, ao grado da livre fantasia; a cor, essa cor
agindo em conformidade com os bons costumes e inimitável, onde nunca dominam as rosas, mas
com os nobres sentimentos, sendo descrita como que não é bem o desmaiado das pálidas, en-
protetora da aldeia e destacando-se o seu sentido carnação surpreendente, a que ainda não ouvi
de responsabilidade e de solidariedade para com dar nome apropriado […]. A estatura esbelta,
as famílias mais pobres – características que são sem ser alta; o corpo flexível, sem ser lângui-
apontadas logo no início do romance, conduzindo do; um vulto de fada, enfim, com a majestade,
os leitores a uma perceção positiva da persona- com a graça que deviam ter estas criações da
gem. poesia popular (Dinis, s./d.: 267).
Após uma das visitas inspiradas pela genero-
sidade, Madalena surge num episódio peculiar. O retrato apresentado é, assim, o de uma figura
Trata-se da chegada do correio, momento ansiado delicada, mas que se revela segura das suas deci-
por todos os habitantes da aldeia: sões e que está presente em todos os momentos
oportunos para poder intervir. Ainda que apresente
Um grupo de crianças e de mulheres do povo traços românticos, que poderiam tornar frágil a per-
escutavam em pleno ar e com religiosa aten- sonagem, caracterizada pela pureza e pela elegân-
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
cia, Madalena é uma mulher forte, que luta pela sua um ser livre e independente.
felicidade e pela felicidade dos outros, revelando- Prova desta voz livre é o facto de o jornal sema-
-se pragmática, ativa e decidida, qualidades que a nal A Voz Feminina ser publicado entre 1868 (coin-
distanciam da simples idealização da mulher-anjo, cidentemente, o ano da publicação do romance A
tornando-a concreta e, como tal, autêntica. Morgadinha dos Canaviais) e 1869, sob a direção
Já não se trata de representar a mulher como fi- de Francisca Martins Wood, que se propõe “lutar
gura ideal ou como alvo de contemplação ou dese- pela emancipação [das mulheres em Portugal],
jo do homem, mas a figura feminina surge, agora, pondo ao serviço do jornal uma inteligência deter-
como representação de si própria, na sua psico- minada, uma frontalidade corajosa e uma temível
logia individual e no seu comportamento social, capacidade argumentativa” (Ildefonso, in Joaquim e
“pondo a sua condição privilegiada ao serviço dos Galhardo, 2003: 16), procurando “alargar os conhe-
seus semelhantes” (Lopes, in Buescu, 1997: 326), cimentos das leitoras, apontar erros, aconselhar
como sucede com a protagonista deste romance novos comportamentos” (Ildefonso, in Joaquim e
que, apesar de ser caracterizada pela doçura ange- Galhardo, 2003: 17), atitudes que são consubstan-
lical, aparece como um anjo “com os pés assentes ciadas na figura de Madalena, individualizada pelo
na Terra” (Lopes, in Buescu, 1997: 326). seu valor e pela afirmação da sua identidade.
A morgadinha é, deste modo, um modelo de
virtudes que evidencia marcas de participação na
1.3. Análise do conto A Mulher do Chapéu de
comunidade e que se destaca ainda como pro-
Palha
motora da instrução de Augusto, o mestreescola
da aldeia, que lhe devota forte gratidão, além de Também a protagonista apresentada no conto A
profunda afeição. Este sentimento é retribuído Mulher do Chapéu de Palha constrói a sua singu-
por Madalena que confessa o seu amor ao jovem laridade, expressa na sensibilidade de uma mulher
professor, sabendo, contudo, que a diferença de de meia-idade, sem apresentar, inicialmente, carac-
categorias sociais de um e de outro pode dificultar terísticas que a distingam da vulgaridade.
172 a sua união. Certo dia, a mulher sai de casa e, ao tirar do
Efetivamente, o conselheiro não aceita a ideia do saco de praia um feio chapéu de palha, torna-se
casamento da filha com o professor, expressando diferente, porque se distingue dos outros seres
algum preconceito relativamente a Augusto, porque humanos que a rodeiam, questionando-se: “O que
é pobre, não tem família, nem posição social ele- poderá ter para mim ainda um sentido?” (Morais,
vada. Gera-se, pois, uma discussão entre a mor- 2000: 17).
gadinha e o pai, que, entretanto, cede à decisão da Apesar de só, a mulher não se sente solitária:
jovem. Entre lágrimas e risos, Madalena e Augusto Deus em que ela não acredita, acompanha-a. E
anunciam o seu casamento, realizado com base no pensa que, quando se é só, inventa-se a compa-
sentimento puro do amor. nhia de alguém sem defeito, que não fala, não ouve
Esta resolução define a personalidade vinca- e nem sequer se vê.
da de Madalena, que afirma a sua identidade ao À tarde, o tempo altera-se e o vento do norte
quebrar o estereótipo das jovens que se casam por começa a soprar, fatigando e perturbando a mu-
conveniência ou por indicação paternal; ao pôr em lher que se detém em divagações que resultam na
causa a autoridade do pai, declarando-se a Au- inegável certeza de que os seres humanos não se
gusto, assume uma atitude pioneira para a época diferenciam uns dos outros nem pela sua capaci-
por anular determinadas convenções limitadoras dade económica, nem pelo que fizeram os seus
da condição feminina. Esta atitude acresce, assim, antecessores, o que demonstra a homogeneização
positivamente na caracterização da morgadinha, da humanidade, pois os bens e o viver dos ante-
tornando-a diferente das jovens suas contemporâ- passados não influenciam a distinção dos seres
neas e, como tal, singular. humanos: os indivíduos caracterizam-se pelo meio
A imagem da mulher, submissa e resignada, é, em que vivem, pelos seus atos e pelas suas atitu-
com efeito, substituída pelo estatuto de emanci- des.
pação da figura feminina, que, deste modo, altera Devido ao vento que se levanta, a mulher reco-
a sua condição no contexto de um universo mar- lhe-se num abrigo, fixando o mercado à sua frente,
cadamente masculino, fazendo da literatura e da que se afigura como um imenso e sujo barracão,
imprensa periódica a forma de exprimir ideias e características que denotam um valor pejorativo e
opiniões, levantando questões e apresentando so- que remetem para o indefinível e para a destruição,
luções, querendo a mulher, enfim, assumir-se como diretamente refletidos na protagonista.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Por influir sobre o estado de espírito da persona- De caráter autobiográfico, o conto de Graça
gem, alterando a sua visão do mundo e por marcar Pina de Morais, escrito em 1986, apresenta como
pontos de viragem no desenrolar da ação, o tempo, temática principal a condição de uma mulher, cuja
em complementaridade com o espaço, traduz as liberdade existe em função de uma negação – a de
vivências desta mulher, exprimindo a sua proble- não acreditar num Ser Superior – mas que, afinal,
mática interior: encobre o apego aos valores religiosos.
A religiosidade constitui uma característica ge-
O que é que na realidade poderia ainda inte- nuína do povo português, devoto e cristão, que se
ressá-la e ter sentido para ela? Cumprir uma rege pelos valores éticomorais que a esta condi-
missão importante […]. Levar a uma pessoa ção estão subjacentes; tais valores são igualmente
eminente e que residisse do outro lado da salientados no romance de Júlio Dinis, que elogia
terra uma carta necessária […] [pois não com- estas particularidades e evidencia a reciprocidade
preende] qual o motivo por que numa vida tão existente entre religião, moralidade e bons costu-
curta, irrisória e cruel, os seres humanos ainda mes.
conseguiam energias para se brutalizarem uns É na descoberta de um sentido para a vida que
aos outros (Morais, 2000: 30, 31, 35). se estrutura a ação narrada no conto, cuja procura
aflige e tortura a mulher: a dilaceração do sujeito,
refletida no ambiente em que a personagem se
Levando a mão aos cabelos, verifica que já movimenta, numa expressão de emoções recípro-
não possui o chapéu, o qual é restituído por duas cas com a natureza, dando especial relevo ao mar,
mulheres idosas que aparecem. Com afabilidade, símbolo de nostalgia, mas também de fronteira
a mulher pergunta-lhes como a conhecem, ao que que condiciona a expressão livre de um indivíduo.
as duas mulheres respondem que a veem passar Sendo o mar ainda associado à ideia de liberda-
todos os dias e que a reconhecem devido ao seu de, o leitor compreende que a mulher procura um
chapéu. A mulher sente-se vaidosa, porque se sentido para a sua existência – a procura da sua
distingue dos outros seres humanos. condição de existência feminina. 173
Apesar de ser anónima e vulgar, “indistinguível Comparando as duas obras, verificamos que
de qualquer outro ser humano no meio duma mul- os sentimentos e os estados de alma se refletem
tidão, [esta é uma mulher diferente por causa do] na natureza, que se transforma, configurando-se
seu feio e insólito chapéu de palha” (Morais, 2000: numa alteração do estado do tempo, que provoca
45-46). uma mudança nas sequências narrativas: Madale-
A sua caracterização é escassa, cingindo-se aos na perde a mantilha num passeio feito à ermida e a
cabelos castanhos, curtos, abundantes e “desgre- mulher do chapéu de palha perde o chapéu aquan-
nhados pelo vento”, “olhos brilhantes e sonhado- do da sua movimentação pela cidade.
res” (Morais, 2000: 36, 17), parecendo distraídos, No caso do romance de Júlio Dinis, o ambiente
mas estando atentos a tudo. A sua voz é terna, representado é surpreendentemente associado a
“doce, tranquila e baixa, voz que se mantinha fosse elementos sensoriais e pictóricos que impressio-
qual fosse o seu estado de espírito” (Morais, 2000: nam os seus observadores, causando uma sensa-
40), estado traduzido em nostalgia, simpatia, genti- ção de entusiasmo que comove todos os corações,
leza e sonho. até o do jovem Henrique que se rende à beleza
daquele espaço. Todavia, o bom tempo dissipa-se
1.4. Estudo comparativo entre as obras de Jú- e a preocupação reina em todos os intervenientes
lio Dinis e de Graça Pina de Morais do passeio, pois aproximase uma tempestade, que
lhes dificulta o caminho e que faz cair a mantilha de
Verificamos, assim, que, à semelhança do que
Madalena para um local de difícil acesso.
ocorre com o romance dinisiano, a narrativa deste
conto é construída com base na história de uma Paralelamente, a mulher perde o seu chapéu
mulher – neste caso, a mulher do chapéu de palha quando se levanta o vento do norte. Estes mo-
–, concebida na sua singularidade por possuir mentos diegéticos permitem reconhecer o valor
aquele chapéu. O título das produções literárias em e a autenticidade das atitudes praticadas pelos
análise pretende focalizar o interesse e chamar a indivíduos que intervêm na ação, o que é ressal-
atenção do leitor para as vivências de uma perso- tado pelo facto de a perda de um elemento, que
nagem feminina, pelo que podemos considerar am- constitui a identidade de um indivíduo, modificar,
bas as obras epónimas, porquanto a designação muitas vezes, o próprio sujeito, podendo conduzir
atribuída às protagonistas intitula estas produções. igualmente à realização de determinados atos por
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - IBILCE/UNESP São José do Rio Preto – SP (Brasil)
Duas palavras sobre gênero, esporte e futebol car a diferença dos sexos masculino e feminino,
Ainda que, no espaço acadêmico contempo- se tornou uma fecunda ferramenta analítica, cuja
râneo, estejamos habituados com trabalhos que utilização provocou a contestação das concepções
incorporam a categoria de gênero e, mesmo no essencialistas e biológicas de ser homem e ser mu-
espaço social mais amplo, este seja um termo que lher. Nesse sentido, numerosos estudos já aponta-
já adquiriu uma relativa circulação, não podemos ram, conforme Louro observa, que “as concepções
esquecer que “a preocupação teórica com o gê- de gênero diferem não apenas entre as sociedades
nero como uma categoria analítica só emergiu no ou momentos históricos, mas no interior de uma
final do século XX” (SCOTT, 1995: 85) E foi a partir dada sociedade, ao se considerar os diversos
de então que o gênero, como marca identitária, grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe) que a
construída no âmbito social e cultural para mar- constituem” (LOURO, 1997: 23). Ou seja: diferentes
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
maneiras de ser homem e de ser mulher, em suas meninas na prática de futsal1. Debruçando-se,
funções sociais, atribuições, prerrogativas, direi- por um lado, sobre textos e imagens de jornais e
tos, “aptidões” e “vocações”, formas prescritas de revistas e sobre capas de livros didáticos de futsal,
vestir, agir, falar, se comportar... são encontradas e, por outro, aplicando questionários e entrevistan-
em diferentes contextos, mostrando o relativismo e do alunos do ensino fundamental sobre a presença
o caráter construído dessa identidade genérica. de meninas no citado esporte, o autor identificou a
Tal é o caso, em parte do mundo ocidental con- circulação de discursos – tanto nos artefatos cultu-
temporâneo e, de maneira que especialmente nos rais quanto nas falas de alunos – que “reforçam o
interessa, no Brasil, da associação estereotipada privilégio do acesso e da prática do futsal ao gêne-
entre masculinidade e prática de futebol. Como é ro masculino”(Tenroller, 2009:7) Explicando melhor,
amplamente sabido, “o esporte (no caso brasileiro, o autor informa que “foi recorrente, e aceito como
o futebol), usualmente [é] agregado como um inte- natural por ambos os gêneros, o entendimento
resse masculino ‘obrigatório’” (LOURO, 1999: 23). de que as meninas são mais fracas e frágeis, não
Não apenas ele é entendido como marca de mas- gostam e não sabem jogar futsal, embora, na res-
culinidade, como também a prática do esporte só posta ao roteiro escrito as meninas manifestassem
recentemente (poucas décadas) vem se abrindo – e vontade de praticá-lo” (id.ibid.)
de maneira assaz tímida – à participação feminina, Essas são rápidas contribuições que esboçam
continuando a ser majoritariamente masculina. Afi- o pano de fundo de nosso trabalho, qual seja a
nal, parece que, em se tratando de futebol, o lugar associação entre futebol (e outro jogo também
preferencial das mulheres continua sendo a torcida. típico de meninos brasileiros – o jogo de bolitas) e
Alguns trabalhos empíricos no campo acadê- gênero masculino. Já o tipo de material de análise,
mico corroboram a circulação desse estereótipo a literatura infantil, passamos a discutir agora.
em diferentes contextos sociais. Silveira e Amaral
(2004), por exemplo, analisaram um acervo de tex-
A narrativa infantil no contexto contemporâneo
tos narrativos produzidos por crianças de 4ª série
178 de 70 diferentes cidades do estado do Rio Grande Em relação à literatura para crianças, cabe
do Sul, Brasil, as quais tinham sido solicitadas a lembrar inicialmente a afirmação de Hunt (2010:
desenvolver o seguinte tema: Foi num domingo 177) no sentido de que a maioria dos livros para
ensolarado que tudo aconteceu. A turma toda, crianças priorizam a narrativa, “de certo modo, eles
acompanhada da professora, saiu para visitar... Ain- são sobre a narrativa”; nesse sentido, eles consti-
da que a proposta não tivesse qualquer conotação tuem terreno fértil para análise de representações
de gênero, as narrativas produzidas pelas crianças, predominantes em certas épocas e contextos. Já
certamente inspiradas por suas experiências coti- Colomer (2003), em abrangente pesquisa envolven-
dianas, mostraram clara distinção entre as ações do 201 narrativas incluídas em 150 obras publi-
atribuídas a meninas e meninos. Assim, ao relatar cadas em língua espanhola ou catalã a partir da
o que as meninas faziam nos passeios narrados, década de 1970, observou que a literatura infantil e
as crianças citaram “tomar banho de sol, dançar, juvenil tem apresentado, desde então, um “enorme
jogar vôlei e basquete, brincar de roda, de casinha, impulso inovador” para atender um novo perfil de
de pegar, andar em balanços e gangorras, pular leitor. Tal perfil se configura com base em mudan-
corda e passear” (SILVEIRA E AMARAL, 2004: 270), ças ocorridas nas sociedades pós-industriais e
além de auxiliarem a professora a preparar lanches democráticas, mudanças essas que, segundo a
e refeições para o grupo. Já para os meninos, autora, possibilitaram transformações nos temas
descreve-se que eles “jogam bola, futebol, tênis, e nos critérios dos autores em relação àquilo que
futsal e vôlei, andam de prancha, brincam de correr seria adequado abordar, na maneira de descrever
e pescar, fazem travessuras” (id. Ibid.) Ou seja: a o mundo e nos valores que são propostos e discu-
naturalização da divisão genérica das ações – e a tidos nas obras. Com base nesses - e também em
generificação do futebol emerge em simples re- outros – pressupostos, a pesquisadora aponta para
latos de atividades cotidianas, relatos esses feitos uma diversidade de gêneros e de temas dos livros
por crianças presumivelmente na faixa etária dos analisados, além das mudanças ocorridas em
nove aos onze anos.
Já Tenroller (2009), em sua dissertação de 1 O futsal pode ser caracterizado como o futebol adaptado para prática em
uma quadra esportiva, com times de cinco jogadores e outras modificações
mestrado, realizou trabalho de maior fôlego, dedi- em regras, decorrentes de tal adaptação. Devido a menores exigências quanto
cando-se a analisar os discursos que circulam, no às condições de praticá-lo – times com menos jogadores e espaço menor
Brasil, sobre a presença-ausência de mulheres/ requerido – o futsal se popularizou largamente no Brasil, mas sua origem –
do futebol – parece ter trazido consigo também o estereótipo de gênero.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
para completar o time, surge uma menina – trata- Já no início do texto, quando a menina se aproxi-
-se de Joana, apelidada de Joana Banana pelos ma dos meninos que estão jogando, sua roupa é
meninos do bairro onde ela passa a morar (no livro descrita: “Claudinha apareceu como quem queria
Joana Banana), e de Fernanda, nova vizinha e irmã nada, de saia vermelha, blusa da mesma cor e, na
de dois meninos que também jogariam no time do cabeça, um laço de fita4”. Na mesma página, a
bairro, cujo nome é “Meninos Futebol Clube” (no ilustração traz Claudinha em pé, com a vestimenta
livro Menina não entra). Em Nariz em pé, a força descrita, enquanto três meninos aparecem aga-
perturbadora dos fatos iniciais vem da tentativa chados, jogando bolinhas de gude, dois deles de
de Claudinha de participar do jogo de bolinhas de calças compridas, um de bermudas, e todos de
gude, disputado somente por meninos. tênis; um deles está com um boné na cabeça. É
A partir desse elemento complicador comum – importante ressaltar que somente Claudinha, a me-
uma menina em jogos considerados de meninos nina, tem a sua roupa descrita, mas a ilustração já
– se desenvolvem as histórias, cujo enfoque e cujas marca uma diferença entre o modo como a menina
tramas giram em torno dessas personagens e de e os meninos se vestem.
suas ações e atitudes no sentido de conquistar, Ainda no que tange à maneira de se vestir, na
por assim dizer, um espaço feminino nesse lugar obra Joana Banana é dado destaque ao fato de a
masculino, provando a capacidade e o talento de menina não usar roupas consideradas típicas de
cada menina e problematizando, assim, a preten- menina. Tal fato é sublinhado em um diálogo entre
sa “naturalidade” das diferenças entre meninos e os pais de Joana, cujo excerto merece destaque,
meninas. Vejamos como se desenvolvem as tramas até porque a passagem encena os embates sobre
e qual o papel das protagonistas nelas. marcadores de gênero feminino na infância, de cer-
ta forma dando corpo a uma certa voz pedagógica
(que se insinua com frequência na literatura para
Menina em jogos de menino: as personagens crianças, como sabemos):
femininas ocupando espaços masculinos
- Você sabe que sempre sonhei em ter uma
180 Ao tratarmos, então, do desenvolvimento dos
menina só pra poder enfeitar, vestir com aque-
enredos dos livros em questão, gostaríamos de
les vestidinhos cheios de babados, bem en-
ressaltar a importância das personagens na cons-
gomadinhos, laço de fita combinando, meias
trução narrativa, uma vez que elas têm um papel
brancas e sapatos de verniz pretos... Ah, não
primordial na organização do enredo. Reuter (2002)
sei a quem ela puxou!
afirma que as personagens “permitem as ações,
assumem-nas, vivem-nas, ligam-nas entre si e - Foi a criação, Teresa, quero dizer, foi por ter
lhes dão sentido. De certa forma, toda história é sido criada praticamente no meio de homens.
história de personagens” (p. 41). Também é neces- Nenhuma prima, só primos.
sário, conforme escrevem Adam e Revaz (1997),
“construir um mundo”, ou seja, situar os fatos e as - E dos dois lados, Meu Deus, que falta de
personagens em um espaço e atribuir-lhes caracte- sorte! Até pra bonecas ela nunca ligou muito!
rísticas. Não me conformo! E as roupas, então? Sem-
Na esteira de tal argumento, Colomer (2003) pre folgadas, não gostava de nada que aper-
também deu especial atenção às personagens na tasse, que incomodasse...
sua pesquisa. Ainda ancorada nos estudos de Reu- (...)
ter, a autora explicita que as personagens “são um
dos grandes pilares da ilusão realista de qualquer - É, você nunca me apoiou na tentativa de
obra”, determinando, no leitor, a verossimilhança, a deixá-la mais feminina, mais delicada...
coerência e a aceitabilidade do texto (p. 201).
- Deixe de história, mulher! O importante é que
Um dos primeiros pontos que merecem des- Joana é uma boa filha, geniosa, tá certo, mas
taque diz respeito à descrição física das perso- obediente, nunca deu trabalho na escola e tem
nagens: em dois dos livros é descrita a maneira um coração de ouro!
como as meninas se vestem (e relembremos como
a questão da vestimenta é um crucial marcador Deixe que ela se vista como quiser! E que seja
de diferença de gêneros, em diversos contextos feliz assim, do jeito que é.
e épocas históricas), sendo que em Nariz em pé o
- É, no fundo acho que você tem razão... (p.
modo de se vestir de Claudinha, a protagonista da
24)
história, é usado como argumento pelos meninos
para não aceitá-la no jogo de bolinhas de gude.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
No caso de Joana, além da vestimenta, a mãe e meninos “de carne e osso”, quando questionados
ainda lamenta o fato de a menina não gostar de sobre a presença de meninas na prática de futsal,
bonecas, uma preferência de brinquedo geralmen- que dizem respeito à fragilidade e à ignorância das
te atribuída ao gênero feminino e que sugere a meninas em relação ao esporte. Entretanto, Fer-
naturalidade do “espírito maternal” nas mulheres. nanda insiste, argumenta e acaba por ser admitida
O pai, entretanto, ressalta que o caráter da filha é no time.
mais importante do que seu jeito “não tão feminino Em relação ao livro Joana Banana, sua es-
de ser”. trutura narrativa é mais complexa, já que apresenta
Como já mencionamos antes, a vestimenta de mais de uma complicação. Em um primeiro mo-
Claudinha, na obra Nariz em pé, é utilizada pelos mento, é apresentada ao leitor a situação inicial, em
meninos como um argumento para que ela não que um grupo de garotos de uma cidade pequena
seja aceita no jogo, o que faz com que ela tire, uma espera com ansiedade o caminhão de mudança de
a uma, cada peça de roupa e seu laço de fita e as uma família que vai ocupar uma casa vazia, ante-
substitua por uma calça comprida, blusão e tênis. riormente habitada por uma família que foi embora
Um trecho do diálogo entre Claudinha e os garo- da cidade e cujo filho era membro do “Espelunca
tos exemplifica tais exigências, quando ela inicia Futebol Clube”. A ansiedade dos meninos é fruto
perguntando: da expectativa de que chegue um substituto para
- Posso jogar agora? Zito, que se mudou e que deixou o time desfalcado.
Entretanto, há surpresa e decepção ao se darem
- Poderia se você não usasse saia – falou conta de que uma menina, Joana, logo apelidada
Dudu com uma enorme cara de deboche. pelos meninos de Joana Banana, é que veio com
seus pais para a casa onde morava Zito.
Claudinha virou as costas e rumou para casa.
Os meninos pensaram, então, que finalmente Assim como nos outros dois livros analisa-
a tinham vencido. Mas enganavam-se redon- dos, o conflito inicial se dá justamente pelas per-
damente. Minutos depois ela voltou usando sonagens femininas quererem ocupar um espaço
em jogos considerados masculinos. No caso de 181
sabe o quê?... Calças compridas!
Joana, essa vontade de ocupar um espaço no time
de futebol surge também para provar a quem lhe
Quando, enfim, Claudinha atende às exigências atribuiu o apelido de “Joana Banana”, que ela não
dos meninos quanto ao vestuário marcadamente era “nenhuma banana”. No trecho abaixo, destaca-
feminino, eles são compelidos a expressar a razão mos o momento em que Joana conhece Maneco
“de fundo” por que não a deixam participar do e Duda, dois dos meninos moradores do bairro,
jogo: - Não pode jogar, porque você é MENINA! entende o porquê do apelido e decide que quer
Já na história de Fernanda, em Menina não jogar no time:
entra, a narrativa logo é conduzida para o ponto - Bem, o negócio é o seguinte: a gente está
central que gera a complicação e que é motivo com o time desfalcado faz um tempão, desde
para que ela, em um primeiro momento, não seja que o Zito foi embora. O Zito morava na casa
aceita no time “Meninos Futebol Clube”: o fato de onde você está morando, não é, Maneco?
ela ser menina, pois, segundo os dez garotos “-
Menina não entra!”. Apesar de não haver descrição - É. É isso aí que o Duda falou. A casa ficou
física específica de Fernanda, como de Joana e de desocupada um tempão e a gente esperan-
Claudinha, nas duas páginas em que os meninos do que chegasse um menino pra ser nosso
argumentam que ela não pode jogar por ser meni- ponta-esquerda.
na, as ilustrações mostram a garota em roupas de - Isso mesmo. E, depois de esperar todo esse
balé, ora dançando junto com uma bola de fute- tempão, chega você uma Joana e
bol, ora caída no chão e machucada, numa clara não um João, né, Maneco?
referência às justificativas dadas pelos meninos e
que giram em torno dos clichês de feminilidade, - É, é isso aí que o Duda falou. Será que dá
daquilo que é considerado “coisas de menina”, pra entender agora por que a gente
segundo transcrevemos abaixo: “- Futebol é coisa só podia chamar você de Joana Banana?
de menino. - Meninas fazem balé! - Vai sair machu-
cada... - Garotas não sabem de nada!” Observe-se - Ah, então a história é essa? Pois vou mostrar
como se reeditam aqui os argumentos que Tenrol- pra vocês que não sou nenhuma
ler (2008) encontrou nas entrevistas com meninas banana, ouviram bem? (p. 13)
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
que isso, elas preferem que algo seja resolvi- mente, se intromete na partida, a vence e simples-
do, que a normalidade seja restabelecida, que mente vai embora, “de nariz em pé”:
a segurança seja enfatizada (p. 187). Era a Claudinha que, com saia, laço de fita
e tudo, ajoelhou-se no chão e, com gudes e
Embora Colomer (2003) aponte a adoção de mais gudes, ganhou feliz da vida todas as bo-
outros tipos de final em um terço das obras por ela linhas do jogo. Os meninos ficaram com cara
analisadas, a autora reconhece que “o desenlace de tacho, sem saber o que fazer.
tradicional da narrativa infantil e juvenil é o desapa- E lá foi Claudinha pela rua das Palmeiras. Ia
recimento positivo do problema proposto” (p. 286). toda rebolando, exibindo satisfeita a sacola e
As três obras analisadas obedecem a essa pre- os bolsos da saia cheia de bolinhas: tlinc, tlinc,
missa mais tradicional do desenlace das histórias, tlinc.
mesmo que apresentem algumas especificidades.
Em Menina não entra, restabelece-se e “sela-se a
paz” entre meninos e meninas – a ilustração final Uma possibilidade de leitura do final é a trazida
do livro apresenta Fernanda em um círculo, de por Silveira e Santos (2007), em análise do mesmo
mãos dadas com os meninos do time. Nessa obra, livro, que propõem que:
aliás, o reconhecimento feminino e a mudança de o fato de que Claudinha volte a vestir seu ves-
atitudes dos meninos aparecem de forma mais tido vermelho e colocar sua fita, e volte a
explícita e marcada, sendo que Fernanda recebeu, “parecer menina”, mas ganhe “com gudes
inclusive, um convite do time adversário, a que Mi- e mais gudes”todas as bolinhas do jogo (...)
guel respondeu: - Nem pensar! Agora ela é capitã! aponta para um entendimento do tipo “não
Além disso, o “Meninos Futebol Clube” resolve preciso deixar de ser menina, para jogar “jogo
“abrir vagas para meninas e mudar o nome do de meninos” e “vencer”.
time: Todo Mundo Futebol Clube”, numa solução
apressadamente pacificadora e quase celebratória. 183
Em Joana Banana, o conflito é resolvido com a Considerações finais
vitória do time feminino. Mesmo que na hora da A partir desse breve percurso sobre três obras
derrota, o time do Espelunca tenha relutado um de literatura infantil de autores (duas autoras e
pouco em reconhecer a superioridade das adver- um autor) brasileiros que tematizam a questão
sárias, o livro apresenta um tom de conciliação – de gênero, através da contestação de uma rela-
com a vitória do Brasil na Copa do Mundo – com ção estereotípica futebol/jogo de bolitas – gênero
uma clara lição de aceitação das diferenças: masculino, podemos fazer algumas observações
Depois da comemoração no restaurante, o mais gerais. Vimos como elas concretizam tal
pessoal foi continuar a festa na rua. E aí, sim, a contestação, através de enredos em que avultam
confraternização foi geral! As diferenças foram protagonistas meninas que reivindicam o direito
esquecidas, as rivalidades deixaram de existir. a participarem dos jogos dos meninos, tornam tal
Não havia vitorianos nem espelunquenses: ali reivindicação um fato e, graças ao seu sucesso,
eram todos brasileiros, comemorando uma abrem passagem para a permanência dessa inclu-
vitória maior, a do próprio país, cuja equi- são, problematizando-se, assim, a pretensa “natu-
pe tinha honrado a camisa! Não havia espaço ralidade” das diferenças entre meninos e meninas
para sentimentos menores, mesquinhos. (p. neste campo. De alguma forma, entretanto, conta-
126) minadas por uma intenção programática subjacen-
te, algumas passagens das obras se ressentem de
uma marca formativa, em que se explica ao leitor o
Cabe lembrar que Joana e Geninho formam um aspecto convencional de tais construções. Assim,
par no final feliz do livro. em Menina não entra, a protagonista menina rebate
Por fim, a obra Nariz em pé se diferencia um as reações dos meninos à sua intenção de en-
pouco das outras, uma vez que Claudinha vence trar no time com uma fala que soa quase adulta e
o jogo de bolas de gude, mas não há menção ao bastante inverossímil: – Coisas de menino, coisas
reconhecimento dos meninos e nem a uma certa de menina... Quanto preconceito! Por outro lado,
conciliação entre os gêneros. Depois de ter trocado podemos ver nesse livro uma tendência recorrente
suas vestes “femininas” por “masculinas”, para ver em outros livros que tematizam diferenças como a
se era aceita pelos meninos, a menina, novamente deficiência, por exemplo: o “diferente” (no caso, a
trajada com saia e laço de fita, aparece repentina- menina) deve compensar tal “diferença” com uma
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Colóquio Letras do ano 1984, os contos de Sophia,
Andresen publicou cerca de 23 livros de poemas, (12 ao todo: 5 pertencentes ao livro “Histórias da
que dentre eles destacam-se “Dual”, 1972; “Livro Terra e do Mar” e 7 pertencentes ao livro “Contos
sexto”, 1962 e “O nome das coisas”, 1977, tendo Exemplares) denotam a grande capacidade da
esse último recebido o prêmio Teixeira de Pascoais autora também ao escrever narrativas. O prestígio
no mesmo ano da sua publicação. No campo da de Sophia como contista está na “escrita linear, de
ficção, publicou dois livros de contos, intitulados sintagmática narrativa aparentemente simples” (Ibi-
“Contos Exemplares”, 1962 e “Histórias da Terra dem). Todavia, segundo a estudiosa, a linearidade
e do Mar”, 1984, além de narrativas infantis, tais e a simplicidade complexificam-se com a “leitura
como “A menina do mar”, 1958 e “O cavaleiro consciente e informada, em múltiplos e divergen-
da Dinamarca”, 1964. Escreveu, ainda, o ensaio tes eixos da vectorização semântica do texto; e as
“Cecília Meireles”, 1956, expressando a sua gran- breves páginas de um conto de Sophia convertem-
de admiração pela poeta brasileira e traduções de -se (...) numa espécie de programações discursivas
Dante, Shakespeare e Paul Claudel. densas e despojadas” (Ibidem).
Os contos de Sophia nos encantam pela relação Em entrevista a Eduardo do Prado Coelho (In:
que estabelecem com o real, embora sem quebrar ICALP – Revista, nº6, 1986, p. 60-77), Sophia revela
a “imaginária linha” (ANDRESEN, 2004, p. 105). temer o que possa vir a surgir de seus contos:
Geralmente situada na fase do neorrealismo por- E.P.C.- E quanto aos seus personagens, aos
tuguês, Sophia acreditava que através da literatura personagens dos seus contos,
é possível delinear o real, mas não representá-lo, por exemplo, os que lhe fazem medo, o que é
e sim libertar-se dele. Dessa maneira seus escritos que lhes acontece?
são marcados pela relação estreita com o real, mas
de forma “que as imagens se organizam segundo S. M. B. – Bem, eu liberto-me como posso
as suas próprias forças de coesão, sem argamassa (...) E há um conto que se eu o acabar, talvez
de uma retórica analisável” (SARAIVA & LOPES, me liberte de muitas coisas, mas tenho tanto
1973, p. 1133). medo... Até porque... é tudo muito esquisito!
De acordo com Maria Alzira Seixo, na Revista Começam a aparecer coisas terríveis, sabe?,
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
com as coordenadas que manifesta, em dois que é explorado na segunda parte do conto. Essa
espaços semânticos, que se cruzam e pene- divisão, portanto, marca a decisão de Lúcia pelo
tram entre si como duas forças vitalizadoras caminho que norteará a sua vida daquele momen-
do princípio da criação (PEREIRA, 2003, p. to em diante. Podemos pensar também, que a
107). primeira parte refere-se ao primeiro baile da gata
borralheira, como podemos verificar na compara-
ção com a história de Perrault.
Assim, nos valeremos dessa polaridade para
No primeiro baile, Lúcia, acompanhada de sua
analisar, neste artigo, a desconstrução da História
tia, que também era sua madrinha, conhece uma
da Gata Borralheira de Sophia. Apesar de ter dei-
moça um tanto “aérea” e moço muito bonito e
xado claro em entrevistas anteriormente menciona-
moreno, com os quais ela tem conversas um tanto
das, que a escrita de prosa e poesia para ela são
estranhas, e que nos revela respectivamente, a
ações totalmente distintas, levaremos em conta
relação de Lúcia com o espelho e com a noite. São
as dimensões lexicais de sugestividades eufóri-
duas repetições lexicais muito presentes no texto,
ca e disfórica, que estarão presentes também na
e que, de acordo com Maria Luísa Sarmento de
narrativa, pois como afirma Maria Luísa Sarmento
Matos, marca a presença do maravilhoso em suas
Matos, em seus contos “verificam-se algumas va-
narrativas.
riações próprias das texturas poéticas de Sophia,
já delineadas em outras narrativas” (1993, p. 82). Na primeira conversa a moça aérea de vesti-
do cor-de-rosa, tenta convencer Lúcia a não se
Desse modo, podemos notar que, apesar da
olhar no grande espelho de moldura dourada dos
poeta assinalar a diferença de construção e subje-
anfitriões do baile: “Não se veja nesse espelho,
tivação no momento da escrita de poesia e prosa,
faz muito má cara (...) A sua pele é linda e branca
seus contos também partilham os topoi de sua
(...) e, ali, parece cinzenta. É melhor não olhar para
poesia, como a casa e o jardim, por exemplo. Outra
lá” e ainda complementa “Sabe (..) não sabemos
repetição, que como ela mesma dizia “eu sou muito
ao certo o que querem os maus reflexos, os maus
repetitiva de natureza” (2010, p. 171) são a noite, o 187
olhares, as más palavras. Talvez a perdição da
espelho e as introjeções da mitologia grega.
nossa alma. E temos que manter a nossa alma
O conto de fadas mais conhecido e reescrito livre” (ANDRESEN, 2006, p. 22).
por diversos autores, comumente intitulado A gata
A imagem refletida de Lúcia na abertura do con-
borralheira ou Cinderela, que “vem sendo narrado
to é feita pela luz da lua sobre o tanque redondo,
há mais de mil anos”, passou a sua forma canô-
da qual ela não tirava os olhos: “mirava extasiada-
nica com Charles Perrault, Cendrillon de 1697
mente o reflexo do seu rosto” (ANDRESEN, 2006,
(WARNER, 1999, p. 234). A Cinderela de Perrault
p. 09). A aura que rodeava Lúcia nos primeiros
de 1697 (tradução do original para o português
parágrafos do conto era de magia, a noite fora da
realizado por Maria Luiza X. de A. Borges, que
casa era uma noite mágica, tão cheia de mistérios
utilizamos neste trabalho) era paciente, obediente,
que a noite é comparada com uma rapariga des-
bela e extremamente boa, que suporta os mandos
calça: “como uma rapariga descalça a noite ca-
e desmandos das irmãs e madrastas, reforçando e
minha leve e lenta sobre a relva do jardim” (Idem).
instaurando, assim, o estereótipo da heroína sofre-
A noite e o jardim, assim representados, reforçam
dora, que passa por “uma longa provação antes de
a ideia de “território selvagem” de que fala Elaine
sua redenção e triunfo” (WERNER, 1999, p. 234).
Showalter (1994) ao examinar o modelo de Arde-
Percebemos que a Gata borralheira de Sophia ner, quando trata-se da escrita de autoria feminina:
opõe-se à de Perrault logo no início da narrati-
va, no momento em que nos é apresentada uma Os grupos de Ardener são representados por
moça sem traços definidos de personalidade, sem círculos intersecutivos. Muito do círculo silen-
a constante marcação do binômio bom e mau. A ciado Y recai nas divisas do círculo dominante
gata borralheira de Sophia é indecisa quanto a si X; existe também uma parte de Y crescendo
mesma e aos poucos sua psique vai sendo des- por fora do limite dominante e é, portanto,
velada, deixando entrever a fragilidade da perso- (na terminologia de Ardener), “selvagem” (...)
nagem frente a sua própria imagem refletida no Espacialmente ela significa uma área só de
espelho. mulheres (...) Neste sentido o “selvagem” é
sempre o imaginário; do ponto de vista mas-
O conto é dividido em duas partes, na primeira
culino, ele pode ser simplesmente a projeção
consta a apresentação da situação de Lúcia (nome
do inconsciente (...) para algumas críticas
dado à gata borralheira de Sophia) e as razões
feministas, a zona selvagem, ou o “espaço
pelas quais ela teria se decidido pelo caminho
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
feminino”, deve ser o lugar de uma crítica, uma “troça”, “dúvida”, “duvidosa”, “inexistentes”, dentre
teoria e uma arte centradas na mulher, cujo outros.
projeto em comum seja trazer o peso simbó- No entanto, há menção à casa familiar, onde
lico da consciência feminina para o ser, tornar moram os irmãos e o pai, na qual nada é austero.
visível o invisível, fazer o silêncio falar (SHO- A casa em que Lúcia mora com sua família é o lar
WALTER, 1994, pp. 48-49). amoroso, repleto de vida, calor e liberdade. Sobre
o tema da casa como topoi de felicidade, Maria
Luísa Sarmento de Matos a associa à “imagem
A importância do modelo de Ardener é justa-
repousante” de Gilbert Durant (1969). Essa repre-
mente tentar traduzir esse espaço estritamente
sentação da casa familiar defere-se da casa da
feminino que, no conto de Sophia, se dá pela pre-
madrinha, em que tudo é rígido e repleto de pru-
sença do maravilhoso. A noite, que figura sempre
dência e cálculo.
como uma rapariga (num momento é descrita des-
calça e em outro pousa sua mão no rosto de Lúcia) Além da noite, o espelho também atua como
vem sempre acompanhada das palavras “feéricas”, intervenção mágica, bem como simboliza uma pas-
“irreais” e “mágica”, formam, dessa maneira, um sagem. O reflexo de Lúcia é diferenciado nos dois
campo semântico que traz à superfície do texto espaços em que se passa a narrativa. O espaço
o território imaginário, o mundo maravilhoso das aberto e edênico do jardim, com suas significações
fadas. de liberdade e descoberta de si, é ignorado por
Lúcia, mesmo ela sendo alertada pela moça de
Em relação à importância determinante do espa-
cor-de-rosa e pelo moço moreno e bonito. A pre-
ço no conto, notamos que desde o início é estabe-
sença desse moço no conto também é marcada
lecida uma diferença entre o espaço aberto (jardim)
pela aura fantástica. A fala dele revela a intenção
e espaço fechado (casa). De acordo com Maria
de advertir a gata borralheira de sua escolha pela
Luísa Sarmento de Matos, a casa representaria o
vida corrompida da madrinha rica.
espaço acolhedor nos contos para as crianças, e
é justamente nesse ponto que está a diferença da O moço moreno e bonito revela a Lúcia o temor
188
História da Gata Borralheira. Aí se encontra uma de noites mágicas como aquela, que pretendem
subversão, tanto do conto de fadas, como da ideia nos desviar de nossa verdadeira vida:
de acalento e segurança que a casa representa na
obra de Sophia: a casa do baile representa o caos, _ Tudo parece tão misterioso: o brilho do luar
a perturbação de Lúcia: os espelhos que estão entre as sombras e as folhas das árvores, o
dentro da casa fazem “má cara” a ela, ao passo reflexo da lua no lago. O lago parece um espe-
que o reflexo de seu rosto na água do “tanque lho. É uma noite mágica (...) Tanto azul, tantos
redondo” do jardim é admirado “extasiadamente”, brilhos, brisas, perfumes, parecem a promes-
indicando a liberdade do espaço aberto em com- sa de uma vida deslumbrada que é a nossa
paração aos grilhões de uma sociedade da qual verdadeira vida. Mas, ao mesmo tempo, há
Lúcia não fazia parte. nestas noites uma angústia especial - há no
Remetendo à mitologia grega, fortemente pre- ar o pressentimento de que nos vamos des-
sente em toda obra de Sophia, podemos ver a pistar, nos vamos distrair, nos vamos enganar
presença da noite, já desde o início metamorfomi- e não vamos nunca ser capazes de reconhe-
zada em uma rapariga descalça, representando a cer e agarrar essa vida que é a nossa verda-
liberdade de Lúcia. O vocábulo noite, de acordo deira vida (ANDRESEN, 2006, p. 29).
com José Ricardo Pereira, faz parte do espaço
apolíneo ou, ainda, da dimensão lexical eufórica, da
qual também faz parte o advérbio “extasiadamen- O espelho, de acordo com o Dicionário de Sím-
te”, tendo significado positivo. bolos, é um símbolo feminino e lunar, como tam-
bém pode significar o auto-conhecimento, reflete a
No espaço fechado da casa onde se passa o
alma:
baile, todas as imagens refletidas de Lúcia são
distorcidas para uma imagem negativa de si mes- El espejo no tiene solamente por función re-
ma: ela estava envergonhada de ir ao baile com flejar uma imagen; el alma, convirtiéndose em
o vestido emprestado de sua madrinha e com o um perfecto espejo, participa de la imagem e
sapato achado num sótão de sua casa, velho, roto, por esta participación sufre um transforma-
enfim, miserável. A dimensão lexical que pertence ción. Existe pues una configuración entre el
à descrição do baile é disfórica: “alheio”, “indiferen- sujeto contemplado y el espejo que lo contem-
te”, “incompreensíveis”, “entrecortadas”, “temor”, pla (CHEVALIER, 1986, pp. 474-477).
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
posse, domínio. Lúcia dança com a própria morte, BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-
o príncipe de Cinderela é substituído por Tânatos, -Etimológico da Mitologia Grega. Vol. II. 3ª Ed.
que em sua conversa com Lúcia revela a “angústia Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 399.
especial” e o despistar de uma “verdadeira vida” CHEVALIER, Jean. Diccionário de los Símbolos.
que, de acordo com Junito de Souza Brandão em Barcelona: Editorial Herder, 1986, p. 474-477.
sua definição da personagem mitológia Tânatos, FRANZ, Marie-Louise von. O feminino no conto
confirma: de fadas. Petrópolis, Vozes, 2010.
É tão-somente uma fonte de angústia (...) _______________________. A interpretação dos
Tânatos é o aspecto perecível e destruidor contos de fada. São Paulo: Paulus, 2008.
da vida (...) patenteia sua ambivalência, rela- LAMAS, E. P. R. Sophia de Mello Breyner Andre-
cionando-se de alguma forma, com os ritos sen da Escrita ao Texto. Lisboa: Editorial Caminho,
de passagem. Revelação e Introdução, toda 1998.
e qualquer iniciação passa por uma fase da
MACHADO, Ana Maria. Contos de fadas de
morte, antes que as portas se abram para
Perrault, Grimm, Adersen e outros. Rio de Janeiro:
uma vida nova (...) Tânatos pode ser a condi-
Zahar, 2010.
ção de ultrapassagem de um nível para outro
nível superior. Libertadora dos sofrimentos e MATOS, Maria Luísa Sarmento de. Os Itinerá-
preocupações (...) A morte não é um fim em si; rios do Maravilhoso – Uma leitura dos contos para
ela pode nos abrir as portas para o reino do crianças de Sophia de Mello Breyner Andresen.
espírito, para a verdadeira vida, a morte é a Porto: Porto Editora, 1993.
porta para a vida (BRANDÃO, 2000, pp. 399- PEREIRA, Luís Ricardo. Sophia de Mello Brey-
340). ner Andresen – Inscrição da Terra. Lisboa: Instituto
Piaget, 2003.
SEIXO, Maria Alzira. Sophia de Mello Breyner
A “História da gata borralheira” de Sophia de Andresen “Histórias da Terra e do Mar”. In: Coló-
190 Mello Breyner Andresen, desconstrói o estereó- quio Letras:
tipo da heroína dos contos de fadas, que passa
SHOWALTER, Elaine. A crítica Feminista no
por provações antes de alcançar o triunfo, sendo
Território Selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buar-
eternizada por sua beleza e bondade, totalmente
que de. Tendências e Impasses – O Feminino como
despidas de realidade e que viverão felizes para
Crítica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, pp.
sempre, após serem as esposas dos príncipes
23-57.
mais disputados do reino. Há ausência de um terri-
tório selvagem nessa heroína dos contos de fadas WERNER, Marina. Da fera à loira. Sobre contos
tradicionais e é justamente o que Sophia explora ao de fadas e seus narradores. Trad. Médici Nóbrega.
mostrar que a melhor escolha é aquela que liberta Cia das Letras: São Paulo, 1999.
a mulher das imposições, limitações e castrações
que a sociedade impõe ao transformá-las em belas
esposas, que vivem de seu mundo de vestidos,
diamantes e festas. A lição que Sophia nos deixa,
ao final do conto, além da discussão sobre o poder
material e a libertação espiritual, é a escolha de
que a sexualidade feminina pode se vivida “como
uma rapariga descalça que caminha leve e lenta
sobre a relva do jardim”.
Referências Bibliográficas
AMADO, Teresa & Morão, Paula. Sophia de Mello
Breyner Andresen. Uma Vida de Poeta. Alfragide:
Editorial Caminho, 2010.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Histórias
da Terra e do Mar. Porto: Figueirinhas, 2006.
BACHELARD, Gaston. A água e a sombra.
Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Fora, chovia e num imenso e deserto salão do se dizia encantada pelas qualidades do jovem ra-
mais elegante e detestável hotel do centro da cida- paz. Entretanto, depois de um ano de relação com
de do Rio de Janeiro, André de Belfort, Godofredo Alexandre, a menina aparece no teatro noiva de um
de Alencar, Hortêncio Gomes e Alexandre aca- outro homem.
bavam de jantar. Hortêncio Gomes parecia estar Este drama de amor vivido por Alexandre foi nar-
entre o pesar e uma vaga e tênue alegria. André de rado no conto “Créssida” publicado pelo escritor
Belfort sorria. A atitude de Godofredo de Alencar e jornalista Paulo Barreto, sob o pesudônimo de
era impossível de ser definida. Enquanto isso, o po- João do Rio, em 1915 no jornal carioca Gazeta de
bre Alexandre sofria, estava abatidíssimo, parecia Notícias. Em 1919, o literato reproduziu esse texto
um trapo de paixão. Questionado sobre o motivo no livro A mulher e os espelhos, junto com mais
de tamanha tristeza Alexandre relata aos colegas dezessete outros contos. De uma maneira geral,
a sua última e infeliz história de amor. História que as narrativas dessa série de textos convergem
começara com um telefonema de Créssida, uma sempre para a discussão em torno da figura da
menina de dezesseis anos, aparentemente ingê- mulher que, segundo o próprio autor, seria a causa
nua, que pertencia a alta sociedade carioca, e que
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
inicial de todos os males e de todo os bens1. No a venda ambulante de alimentos, o ato de cuspir
texto indrodutório do livro, João do Rio afirma que no chão de dentro dos bondes, o comércio de leite
os homens não entendem as mulheres, pois eles em que as vacas eram levadas de porta em porta,
tentam explicá-las somente através da imagem que a criação de porcos dentro dos limites urbanos, a
eles querem fazer delas, imagens que geralmen- exposição de carne nos açougues, a perambula-
te deformam ou enfeitam os gestos de sua alma. ção de cães vadios e o descuido com a pintura das
Assim, para ele, as narrações presentes no volume fachadas4. Além disso, houve uma forte intolerância
seriam simples exposições de fatos verdadeiros com a realização do entrudo e dos cordões, duran-
que contam o eterno drama da mulher diante do te o carnaval, com as festas e reuniões organiza-
espelho - o homem - que mostra apenas a imagem das pelas classes trabalhadoras, com a prática da
que ele deseja refletir2. Uma análise atenta desses capoeira e com as manifestações religiosas ligadas
textos nos permite, porém, entender como João do ao candomblé e às religiões afros-brasileiras. No
Rio representava o papel da mulher na sociedade entanto, para a elite carioca, esse anos marcaram
brasileira durante o final do século XIX e as duas um tempo de euforia, na medida em que, segundo
primeiras décadas do século XX e como o com- eles, as transformações da cidade do Rio de Janei-
portamento feminino era definido por uma série de ro e da vida de sua população eram fundamentais
premissas ligadas ao contexto de intensas mudan- para o processo de civilização e para o desenvolvi-
ças vividas pelo Brasil naquele momento. mento do país. Para esse grupo, era indispensável
A partir da segunda metade do século XIX a ci- transformar o cotidiano em um grande espetáculo
dade do Rio de Janeiro, capital da nova República, de moda com um sistema de manifestações im-
passou por um período de profundas transforma- pressionantes, de fachadas brilhantes e de espeta-
ções socioeconômicas associadas ao processo de culares triunfos de decoração e estilo5. Levar a vida
implantação da modernidade e ao desenvolvimento em grande pompa era o mais importante em todas
do capitalismo no Brasil. Tendo como pretexto as cidades civilizadas inclusive no Rio de Janeiro.
uma política de planejamento urbano que visava o Nesse contexto, as autoridades e as classes
192 “saneamento” e o “embelezamento” da cidade, as dominantes cariocas também impuseram mudan-
autoridades cariocas, associadas à elite, coorde- ças no comportamento feminino estabelecendo
naram o processo de urbanização que tinha como o modelo de mulher idéal que era legitimado pela
objetivo orientar a ocupação do espaço urbano Igreja e amplamente divulgado pelos orgãos de
do Rio de Janeiro de acordo com as premissas do imprensa da época. Para Maria Maluf e Maria
capitalismo3. Essas reformas significavam, para Lúcia Mott, em História da Vida Privada no Brasil,
as classes dominantes, um desejo de progresso e a representação do comportamento feminino idéal
civilização e pretendiam acabar com as caracterís- limitava o horizonte da mulher ao interior do lar,
ticas coloniais da cidade. Ao mesmo tempo, elas reduzindo, assim, suas atividades e aspirações até
correspondiam a uma tentativa do Brasil de se ali- encaixá-la no tríplice papel de mãe, esposa e dona
nhar aos modelos e ritmos de desenvolvimento das de casa. A mulher seria, então, responsável pela
economias européias, assim como ao seus desen- honra familiar devendo se distinguir socialmente
volvimentos culturais e sociais. Entretanto, as con- através do respeito às regras da moral e dos bons
sequências políticas e sociais dessa reforma foram costumes6. As relações entre homens e mulheres
importantes, pois uma grande parte da população também foram modificadas, sempre na tentativa
foi deixada às margens dessas mudanças, sem de normatizar e disciplinar hábitos e costumes da
que o poder público tivesse uma real preocupação população. O casamento passou a ser visto como
com o efeito que essas transformações pudessem algo indispensável, pois era ele a instituição social
causar na vida dos trabalhadores pobres, negros capaz de garantir a ordem da família e dar suporte
e mestiços. As autoridades impuseram também ao Estado, que buscava se afirmar nesse contexto
uma transformação dos costumes e dos hábitos da de profundas mudanças. No interior da sociedade
população, sempre com o objetivo de acabar com matrimonial cada cônjuge deveria desempenhar
as antigas tradições coloniais e com os elementos seu respectivo papel. Cabia ao marido prover a
da cultura popular consideradas como marcas do
primitivismo e da barbárie. Assim, foram proibídas 4 NEEDELLl, Jeffrey. Belle Époque Tropical. São Paulo: Companhia das Letras,
1993, p.57.
1 RIO, João do. A mulher e os espelhos. Rio de Janeiro. Secretaria Municipal 5 BERMAN, Marshel. Tudo que é solido se desmancha no ar. São Paulo,
de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Edições, 1995, p. 15. Companhia das Letras, 2007.
2 Id. Ibid. p.16. 6 MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do Mundo Feminino.
3 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim. Campinas, Editora da In SEVCENKO, Nicolau e NOVAIS, Fernando A. A história da vida privada no
Unicamp, 2001, p.135. Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1998, v.3, pp. 367-421.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
manutenção da família e a identidade pública, fância para serem esposas, mães e donas de casa,
enquanto que à mulher cabia a identidade social de deveriam renunciar às grandes paixões em favor da
esposa e mãe. A mulher seria dependente e subor- serenidade do amor conjugal. Independentemente
dinada ao homem, e este senhor da ação7. A honra dos seus sentimentos, elas deveriam receber com
do homem dependia da conduta feminina, que grado o marido que se aprensentasse, respeitá-lo
lhe deveria ser absolutamente fiel, o que também e honrá-lo. No conto “A honestidade de Etelvina,
legitimava a dependência da mulher e o poder do amante” João do Rio de uma forma irônica excede
homem sobre ela8. os limites dessas regras de conduta social. Nesse
Segundo Sidney Chalhoub, em Trabalho, Lar texto, Gastão da Fonsceca conta para um amigo a
e Botequin, durante o período colonial, no qual a história do seu namoro com a atriz Etelvina San-
idéologia do senhor era determinada pela lógica tos. Quando os dois personagens se conheceram
de dominação e perpetuação da dependência, o a jovem moça era casada com outro homem, o
patriarca ostentava seu poder sobre todo o grupo que não impediu Gastão de cortejá-la. Entretanto,
familiar e demais dependentes da propriedade. segundo Gastão, Etelvina era muito fiel e honesta
Com a advento da modernidade esse modelo foi como vemos, no trecho a baixo, no qual o presona-
substituído pelas relações moldadas por normas gem narra o começo da sua relação com a atriz :
econômicas e de mercado compatíveis com a nova
organização capitalista da sociedade. Assim, o “Eltelvina estava com o ensaiador, um sujei-
antigo patriarca, desprovido de terras e escravos, to de nome Eusébio, que também escrevia
teve como compensação a propriedade privada da peças. As informações davam-na sempre fiel
mulher.9 aos amantes. Era tão fiel, tão honesta, que não
Retomando a leitura do conto “Créssida” vimos só ninguém se lembrava dos motivos por que
que para os personagens André de Belfort, Godo- mudava várias vezes de cavalheiro como até
fredo de Alencar e Hortêncio Gomes, Alexandre foi creio bem ninguém mais se lembrava desses
o único responsável pelo fracasso da sua relação homens. Etelvina era fiel, era honesta perante
com a jovem Créssida. Isso porque, segundo eles, 193
os amantes, que de secundário passavam a
Alexandre demorou muito tempo para se decidir ser apenas o amante, o mesmo, o geral.”11
e pedir a mão da menina em casamento, como
podemos ver no diálogo a seguir:
Para não transgredir as regras sociais que
exigiam da mulher fidelidade e honestidade Etel-
“ – A culpa é aliás dele!...setenciou Godofredo. vina mudava de companheiro cada vez que se
apaixonava por um outro homem. Desse modo, o
- Por quê? novo casamento respeitaria os padrões de com-
- Porque levou tempo sem se decidir. O ideal portamento impostos a tal ponto que, assim como
da menina é casar. Qual o casamento por no caso de Créssida, o importante deixa de ser a
amor? Em, geral os casamentos por amor figura do marido em si, mas a instituição que ele re-
nunca se realizam. As meninas foram educa- presenta. O fundamental, nesse caso, não é quem
das para aceitar um marido, quando o marido é o amante, mas sim estar casado com alguém e
aparece é possível que tenham simpatias, se inserir no modelo feminimo idealizado da épo-
inclinações. Mas, flutuantes, vagas.”10 ca. Nesse caso, tanto Etelvina como Créssida, são
representadas por João do Rio como personagens
contraditórias que vivem de maneira intensa as mu-
Na discussão entre os personagens percebe- danças e os paradoxos da modenidade brasileira.
mos o importante papel social do casamento, visto Entretanto, se analisarmos outros contos presen-
como algo indispensável para a manutenção de tes no livro A mulher e os espelhos, percebemos
uma conduta considerada descente e civilizada. que, muitas vezes, os padrões de comportamento
Assim como o casamento, o amor também era e os valores impostos pelas classes dominates
normatizado e enquadrado nos padrões morais estavam longe de coincidir com as práticas coti-
da ordem burgueza que se impunham no período, dianas da população. No conto “A amante ideal”,
uma vez que as mulheres, educadas desde sua in- por exemplo, João do Rio narra a história de Júlio
Bento, excelente rapaz de trinta e cinco anos,
7 Id. Ibid. pp. 367-421.
8 CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p.180.
lindo, membro da alta sociedade, casado, pai de
9 CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p.179.
10 RIO, João do. Op. Cit., p.18 11 RIO, João do. Op. Cit., p. 99.
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
cinco filhos, mas que possuia uma enorme lista de trabalhadoras a luta pela sobrevivência obrigava
amantes. Um dia Júlio conhece Adelina Roxo, uma as mulheres a transgredirem as regras sociais e a
mulher muito bonita, alta, magra, olhos verdes e entrarem no mundo do trabalho15. Na maioria das
uma longa cabeleira de ébano. Separada do ma- vezes essas mulheres exerciam atividades relacio-
rido Adelina vivia mantida por um velho diretor de nadas ao serviço dosméstico, como por exemplo a
banco que lhe dava uma vida financeiramente mui- costura ou a lavagem de roupa. Nesse caso, perce-
to confortável. Rapidamente os dois personagens bemos como o modelo idealizado pelas classes
tornam-se amantes. A relação entre Júlio e Adelina dominantes, no qual a mulher é frágil, passiva e de-
durou muitos anos até que a jovem dama morresse pendente de seu marido, não dá conta da realidade
durante uma operação de apendicite. Nesse texto, das classes trabalhadoras cariocas. A mulher obri-
percebemos uma evidente transgressão das regras gada a trabalhar para garantir seu sustento acaba-
sociais uma vez que, ao viverem um relação fora do va por adquirir uma certa idêntidade social que era
contrato matrimonial, os personagens deixam de independente da identidade do homem. Assim, a
lado os valores atribuídos ao casamento, à fidelida- experiência de vida dessas pessoas não oferecia
de e até mesmo ao amor impostos pelas classes bases concretas que justificassem a dominação do
dominantes cariocas. Isso mostra quanto era difícil homem no relacionamento do casal16. Entretanto,
para a própria elite ajustar seu comportamento às essas mulheres ainda eram vítimas da violência
regras de conduta moral consideradas como legíti- de seus amantes ou companheiros. No conto “As
mas. Contudo, para as mulheres as consequências aventuras de Rosendo Moura”, por exemplo, a
dessa transgressão eram mais significativas do que personagem Corina Gomes, uma menina magra,
para os homens, pois eram elas as responsáveis lívida que tomava cocaína e frequentava os clubs
pela manutenção do lar e do casamento. No caso da cidade, descreve as violências que sofria do seu
de Adelina a pena paga por viver uma relação ilegí- companheiro e a tentativa deste último de controlá-
tima foi morrer sozinha, sem a presença do aman- -la:
te. Em muitos casos, porém, os homens recorriam “- Há três anos suporto as torturas de um
194 à violência para afirmar sua dominação e a coerção monstro. Tudo quanto ganho é dele. Quan-
física das mulheres se tornava frequente. Segundo do vou ao club toma-me o dinheiro. Depois
Maluf e Mott, a violência contra as mulheres se fecha o quarto todo, abre vários frascos de
dava sob a proteção de regras do costume, assim éter, põe-me inteiramente nua, prende-me os
ela só era vista como selvageria quando exercida cabelos à gaveta da cômoda, e goza naquela
diante de pessoas consideradas pelas classes atmosfera desvairante, gotejando sobre mim
médias e altas como seus iguais, ou daqueles que éter. [...] Cada gota que cai dá-me um arre-
privavam com o casal. Dessa categoria estariam pio. Ao cabo de certo tempo é uma sensação
excluídos, por exemplo, os empregados domés- de queimadura, queimadura de gelo até à
ticos, tratados como inferiores. Diante detes, a insensibilidade...”17
coersão física não era vista como humilhante12.
Se considerarmos os padrões de comportamen-
to dos trabalhadores pobres, negros e mestiços Segundo Chalhoub, os modelos do homem e da
percebemos que também nesse grupo a assimila- mulher ideais divulgados pelas classes dominantes
ção ou a negação dos papéis e dos valores im- eram parcialmente interiorizados pelos casais das
postos pelas elites sugerem limites à eficácia dos classes trabalhadoras. Esses modelos, ao incidi-
mecanismos de controle e repressão do periodo13. rem sobre um meio social que não tinha as con-
Como foi anteriormente dito, com o advento da dições materiais nem as motivações necessárias
modernidade e o desenvolvimento do capitalismo, para praticá-los, criavam situações de ambiguidade
o papel do homem e da mulher dentro da socieda- e insegurança que contribuiam para a violência. O
de matrimonial foram redefinidos. Enquanto cabia à homem aprendia que a mulher era sua subordina-
mulher a conservação do lar, o homem era con- da, sua propriedade privada, o que o tornava mais
siderado como único provedor da familia. Assim, frustado ao perceber que a prática da vida não
cabia ao homem o sustento da casa através do autorizava que ele exercesse seu poder sobre a
trabalho. Segundo o Código Civil de 1916, a mulher mulher18. Assim, na história de Corina, seu amante
só poderia trabalhar fora do lar mediante autoriza- usava a coersão física e até mesmo a humilhação
ção prévia do seu marido14. Entretanto, nas classes
15 CHALHOUB, Sidney. Op Cit., p. 202
12 MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Op. Cit., p. pp. 367-421. 16 Id. Ibid., p. 228
13 CHALHOUB, Sidney. Op Cit., p.173. 17 RIO, João do. Op. Cit., p. 58
14 MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Op. Cit., p. pp. 367-421. 18 Id. Ibid. p. 228
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
para tentar controlar a mulher que independen- borar o dicurso das elites cariocas que viam nas
temente dele ganhava seu próprio dinheiro e era transformações dos hábitos e costumes da popula-
dona da sua vida. ção a solução para civilizar o país. No discurso das
Nas classes trabalhadoras muitas vezes a prosti- classes dominantes as relações sexuais só eram
tuição era a única solução possível para as mulhe- classificadas como desejadas e legítimas quando
res que precisavam garantir sua sobrevivência ou ocorriam no seio da família. Era preciso controlar
até mesmo sustentar os filhos. Em alguns dos seus os desejos e impulsos considerados bárbaros e
textos João do Rio coloca como tema central da não civilizados e favorecer as relações sexuais
narrativa as experiências das mulheres que foram decentes e higiênicas do casamento, o que se-
obrigadas a entrar para a prostituição. Dois desses ria fundamental para manter a família e garantir a
textos merecem nossa atenção: “D. Joaquina” e salubridade da sociedade20. Nesse contexto, tanto
“Encontro”. No primeiro conto o narrador sai às D. Joaquina quanto Argemira são vistas como
ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro acom- ameaças à ordem e à saúde pública o que explica-
panhado pelo amigo Augusto Guimarães a fim ria porque o narrador do conto “D. Joaquina” olha
de observar a vida das “mulheres perdidas”. Uma para a velha senhora com repugnância e chega até
noite os dois personagens se depararam com uma mesmo a se irritar com seu comportamento diante
mulher, muito mais velha do que as outras, que dos jovens rapazes que buscavam seus serviços.
com seu andar curvado de idosa e seus cabelos Enquanto que, Argemira causa em Teodureto
grisalhos causava repugnância. No entanto, nas Gomes um certo desconforto, pois a jovem menina
noites seguintes o narrador não consegue con- bonita de autrora era agora uma pobre mulher que
trolar seus impulsos e a sua vontade de voltar ao perdera a beleza e a saúde vítima das desgraças
centro da cidade, curioso em descobrir os motivos da vida e da miséria humana representadas pela
que levavam aquela velha senhora a se prostituir. prostituição.
Depois de algumas madrugadas de observação os A aversão sentida pelo narrador do texto “D.
personagens descobrem que na verdade a velha Joaquina”, assim como o incômodo sentido pelo
se chamava D. Joaquina. Ela era uma respeitavel personagem de “Encontro”, se reproduzem na 195
senhora de sociedade que fora obrigada a se pros- maioria dos contos presentes no livro A mulher e
tituir para dar dinheiro aos dois filhos que mimados os espelhos. Isso porque, todas as narrativas de
pela mãe, que os queria estudantes, cresceram mal João do Rio são contruídas a partir de diálogos
educados e cairam na “pândega”. Cada vez mais entre seres considerados socialmente diferentes.
vagabundos, mais exploradores os dois garotos Os narradores, homens, sempre aparecem inseri-
exigiam que a mãe lhes desse dinheiro, e por amor dos no contexto histórico, no qual a ideologia da
D. Joaquina preferia se prostituir a negar-lhes qual- sustentação do poder estaria baseada na posição
quer coisa. O segundo conto, narra a história do de superioridade do homem em relação à mulher.
encontro de Teodureto Gomes com Argemira, uma As personagens femininas são contruídas a partir
antiga namorado dos tempos de juventude que do olhar masculino e das expectativas que eles
agora se prostituia para sobreviver. Teodureto era projetam sobre elas. Assim, os comportamentos
apaixonado pela moça, mais não casou-se com femininos que fogem às normas e às regras sociais
ela, pois a menina não pertencia à alta sociedade previstas e aceitas ora causam estranhamento nos
como ele. Quando jovens o namoro dos dois per- personagens ora são passíveis de punição. Desta
sonagens se resumia a trocas de carícias inocentes maneira, nessa série de textos, ao mostrar com-
e beijos apaixonados. Quinze anos depois o desejo portamentos femininos que transgridem as regras
dos dois renasce, mas Argemira se recusa a ter re- impostas, o literato carioca questiona a constru-
lações sexuais com Teodureto. Ela prefere guardar ção do modelo ideal feminimo e a redefinição dos
as lembranças da relação inocente que eles tinham papéis sociais do homem e da mulher, ao mesmo
a ver seu antigo amor se transformar em mais um tempo que ele constrói uma crítica à normatização,
dos homens com quem ela se deitava. à disciplinarização e a tentativa das classes domi-
A partir desses textos podemos pensar a nor- nantes de civilizar os hábitos e comportamentos
matização das relações sexuais nesse contexto dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro do final
de intensas mudanças vividas na cidade do Rio do século XIX e começo do XX.
de Janeiro. Com a implatação da modernidade e o
desenvolvimento do capitalismo no Brasil os ideais
higienistas ganharam amplitude19 e vieram corro- no Rio de Janeiro da Primeira República. São Paulo: Editora Fundação Perceu
Abramo, 2002.
19 PEREIRA, Leonardo. As barricadas da saúde: vacina e protesto popular 20 MALUF, Marina e MOTT, Maria Lúcia. Op. Cit., p. pp. 367-421.
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
196
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
foram deixados por grande parte dos historiadores Que vai criando a inesgotável moda,
que viram a história apenas pelo viés dos vencedo- De babados, de gregas, fitas, rendas,
res. (Martins, 1995, pp.4-5) De franjas, de vidrilhos,
E outros mil badulaques e fazendas,
Nesse caso, merece a obra de Bernardo Guima- Que os olhos enchem de importunos brilhos,
rães estudos voltados, principalmente para a sua Se no seio de tão tofuda mouta
produção poética, rica em temas que, a princípio, Mal se pode saber que ente se acouta?!
soam destoantes ao seu tempo. Ou, como escla-
É, num plano inicial, a crítica a essa mudança
rece Antonio Candido, “Como artista era irregular,
no vestuário feminino que Bernardo Guimarães
não raro descuidado e impaciente,(...). Mas como
se refere no poema “À saia-balão” e sobre a qual
possuía sensibilidade plástica excepcional e mu-
pretende cantar:
sicalidade espontânea, obtém versos admiráveis,
sobretudo na segunda fase de sua evolução”. (Can- Balão, balão, balão! cúpula errante,
dido, 1964, p.169) Atrevido cometa de ampla roda,
Que invades triunfante
Os horizontes frívolos da moda;
1.2 Sfumatos de riso
Tenho afinado já para cantar-te
“À moda” configura-se como um poema satíri- Meu rude rabecão;
co-social e, no conjunto da obra poética de Bernar- Vou teu nome espalhar por toda parte,
do Guimarães, pode ser visto como um desmem- Balão, balão, balão!
bramento do poema “À saia-balão” (18/07/1859),
publicado no livro Poesias Diversas (1865). Como a moda sugere frivolidade e importação,
“À saia-balão” descreve uma mudança signifi- tem-se, na França, depois de 1860, a diminuição
cativa no vestuário feminino. No início do século da roda de crinolina e o volume do vestido se aloja
XIX, as mulheres são influenciadas pela Revolução na parte posterior, revivendo o século XVIII7.
Francesa que sugere um retorno ao estilo neoclás- A mulher passa a ter a forma de um triângulo, 199
sico, abandonando os saiotes e saltos para adotar auxiliada pelos xales e pelo espartilho (artifício para
vestidos simples, semitransparentes, que valorizam tornar o corpo mais atraente; é através dele que
o corpo. Eram vestidos geralmente de cores sua- a curva do quadril se torna mais acentuda). Além
ves, com cintura marcada sob os seios4. disso, com a invenção da máquina de costura em
1870, os vestidos ganham cada vez mais detalhes.
Pudesse eu ver-te das belezas gregas,
Quais as figuram mármores divinos, O poema “À moda” critica o modismo feminino
Na túnica gentil, não farta em pregas, que leva ao ridículo: “Ah! modista cruel, que por
Envolver teus contornos peregrinos; chacota/ Te pôs assim com cara de idiota”. (Gui-
E ver dessa figura, que me encanta, marães, 1979, p.396). Segundo Wladimir Propp, “o
O altivo porte desdobrando a aragem riso ocorre em presença de duas grandezas: de um
De Diana, de Hero, ou de Atalanta objeto ridículo e de um sujeito que ri.” (Propp, 1992,
A clássica roupagem!...5 p.31). Dessa forma, o objeto ridículo é desencadea-
do pela roupa que o homem usa, provocando no
(Guimarães, 1979) outro (sujeito) o riso.
O poema “À moda” é composto de quinze
estrofes, cada uma com seis versos (sexteto), com
Essa releitura do classicismo não dura muito rimas ababcc, exceção apenas na quinta estrofe,
tempo e logo começam a ressurgir as mangas em que encontramos rimas abbacc. O poema pode
bufantes, as saias começam a inflar, principalmente ser dividido em quatro subtemas. O primeiro reto-
depois de 1855, quando surge a crinolina.6 ma a crítica desenvolvida no poema “À saia-balão”,
De que serve enfeitar da vasta roda e o autor dá ao objeto a conotação não mais de
Os estufados flancos ilusórios coisa, mas de ser. Para Henri Bergson, “um objeto
Com esses infinitos acessórios, inanimado consegue fazer rir, devido a marca que
o homem lhe imprime ou ao uso que o homem lhe
4 Para melhor entendimento dos versos, v. anexo I.
dá”(Bergson, 2001, p.3); seguindo o mesmo racio-
5 Os fragmentos a serem inseridos aqui foram retirados de: Guimarães, cínio, segundo Wladimir Propp, “o objeto se torna
1979, pelo que não iremos nos reportar continuadamente. ridículo quando ele é capaz de refletir o homem”
6 Invenção da Imperatriz Eugênia, a crinolina era uma armação à base de
anéis metálicos flexíveis que substituía com vantagem as anáguas. 7 V. anexo I, as imagens a partir de 1860.
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
geral qualquer roupa extravagante que destaque o do Guimarães. Fortaleza. (Dissertação de Mestrado
homem de seu meio. do Programa de Pós-Graduação em Letras – UFC)
Propp, V. (1992). Comicidade e riso. Trad. Aurora
Assim, a “moda piramidal” destacada por Ber- Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.
nardo Guimarães se torna risível para ele e para São Paulo: Ática.
o leitor porque não existe o reconhecimento, não Veríssimo, J. (1977). Estudos de Literatura Bra-
existe o hábito da vestimenta. sileira. 2ª Série. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EDUS
2 Os laços finais
Ao realizar esses poemas satírico-sociais,
especificamente “À Saia-Balão” e “À Moda”, Ber-
nardo Guimarães não se volta exclusivamente para
os padrões do vestuário feminino, uma vez que a
preocupação do poeta é o modismo que invade
todas as artes, como bem esclarece no prólogo
de Folhas de Outono: “A moda, não contente de
exercer império absoluto no vestuário da espécie
humana, pretende também invadir a região das
artes, da poesia e da literatura” (Guimarães, 1959,
p.330).
Portanto, a obra poética de Bernardo Guima-
rães apresenta-se muito mais como um retrato da
capacidade do autor em criticar as estéticas de
seu tempo (Romantismo e Realismo) e em inovar
no âmbito da criação poética, do que como uma 201
iniciativa isolada.
Bernardo Guimarães merece, sempre que pos-
sível, um olhar mais atento, tanto de seus leitores
como de seus críticos ou futuros críticos, pois seu
talento poético foi ofuscado pelas normas de perio-
dização adotadas na Literatura Brasileira que visam
apenas enquadrar os autores dentro do modismo
vigente à época de suas produções.
Referências Bibliográficas
Amora, A. S. (1967). O Romantismo (1833-
1838/1878-1881). Vol. II. São Paulo: Cultrix.
Bergson, H. (2001). O riso: comicidade sobre a
significação do cômico. Trad. Ivone Castilho Bene-
detti. São Paulo: Martins Fontes.
Candido, A. (1964). Formação da Literatura
Brasileira. Momentos Decisivos. 2º vol. (1836-1880).
Rio de Janeiro: Liv. Martins.
Guimarães, B. (1959). Poesias completas de Ber-
nardo Guimarães. Org. Alphonsus de Guimaraens
Filho. Rio de Janeiro: INL.
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crava Isaura. Brasília: Editora Imprensa do Senado
Federal.
Lyra, P. (1986). Conceito de poesia. São Paulo:
Editora Ática.
Martins, E. D. (1995) A Poesia Satírica de Bernar-
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
202
Disponível em
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02/06/2012
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
“Esses Lopes” é um dos quarenta contos que abordados no conto. Com a análise desses ele-
compõem o livro Tutaméia: terceiras estórias de mentos, confrontamos duas teorias feministas: a
Guimarães Rosa publicado em 1967. No conto, francesa, tendo como representante Hélène Ci-
deparamo-nos com a história de Flausina. Esta, xous, e a ginocrítica de Elaine Showalter.
narradora-personagem, conta-nos a sua vida pas- Para atingirmos tal objetivo, partimos de três
sada, mostrando-se como uma mulher que, após direções teóricas: a) bibliografia relativa ao autor e
vivenciar a submissão, reconhece sua condição ao corpus, como Guimarães Rosa: do feminino e
marginal e passa a agir em busca da liberdade e da suas estórias de Cleusa Passos, b) propostas de
realização de seus desejos. Sendo assim, bus- Genette sobre narrador e focalização presentes
camos analisar o modo como essa voz feminina em O discurso da narrativa e c) estudos da crítica
manifesta-se no texto do escritor mineiro, com o feminista sobre o feminismo e a escritura feminina,
intuito de observar e discutir a posição ocupada como de Beauvoir em O segundo sexo: a experiên-
pela mulher na cultura e na sociedade patriarcal cia vivida, de Millet em Política Sexual, de Woolf em
que transparece no texto, levando em conta a Um teto todo seu, de Sánches Dueñas em Literatu-
questão do estereótipo. Ainda, como a presença ra y feminismo: una revisión de las teorías literarias
do corpo, o silêncio e a linguagem reinventada são feministas en el ocaso del siglo XX, de Showalter
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
o seu destino. Destaca-se o fato da rejeição da mens. Segundo Beauvoir (1967, p.21), a passividade
maternidade e a vontade de se manifestar, impor a feminina é marca adquirida já na infância, com as
sua voz. Por meio da frase “Quero falar alto” vê-se brincadeiras e brinquedos destinados às mulheres
que a personagem toma posse da linguagem e por – as bonecas, por exemplo, permitem que elas se
isso pode fazê-lo. vejam já, em criança, como mães, um dos destinos
Desse modo, Flausina, nessa primeira apresen- delegados a elas pelos educadores e pela socieda-
tação, mostra-se como uma personagem fora dos de -, de modo que são condicionadas a pensar que
padrões maternais femininos e de submissão do esse é o único destino que lhes cabem.
século XVI, por exemplo, comportando-se como Porém, no trecho destacado acima, a expres-
uma mulher do século XX, após as conquistas dos são “botão de flor” condensa os dois aspectos da
movimentos feministas. No entanto, ainda sente-se caracterização da personagem protagonista: “bela
presa aos valores morais impostos pela socieda- e feminina e, ao mesmo tempo, contida em seus
de e pela religião, o de que a virgindade valoriza planos – mas pronta para a desforra”. (PASSOS,
a mulher. Para Passos (2000, p.213), a perda da 2000, p.217).
virgindade marca profundamente a vida da prota- “Aos pedacinhos”, Flausina vai se “alembrando”,
gonista, porque ser virgem é manter os princípios em uma espécie de narrativa de memórias, dos
de integridade e inocência, estabelecer elos entre desejos que lhe foram negados: enxoval, cortesias
pudor e sexualidade, a dissimulação e as normas e igreja (desejos também tipicamente femininos),
sociais – aspectos essenciais para a caracterização restando-lhe a violência e submissão do casamen-
de Flausina, uma vez que a violação de sua virgin- to (BEAUVOIR, 1967, p.7): “O homem me pegou,
dade pelos Lopes constitui um dos motivos pelo com quentes mãos e curtos braços, me levou para
qual ela trama a sua vingança. uma casa, para a cama dele.[...] Calei muitos pran-
Nos parágrafos que se seguem, ela retorna ao tos.” (ROSA, 1969, p.45). Nesse “caso corporal”,
passado para explicar o motivo de suas ações e como ela define seu casamento, sofre e tem de su-
estado no presente. Para isso, ela se vale de diver- portar a violência calada: “Deitada é que eu achava
206 sas analepses – “[...] toda a ulterior evocação de o somenos do mundo, camisolas do demônio”,
um acontecimento anterior ao ponto da história em
que se está.” (GENETTE, [197-], p.38) – para infor- Ninguém põe ideia nesses casos: de se estar
mar o leitor sobre esse tempo passado: noite inteira em canto de catre, com o volume
do outro cercando a gente, rombudo, o cheiro, o
Eu era menina, me via vestida de flores. Só que ressonar, qualquer um é alheios abusos. [...]Dani-
o que mais cedo reponta é a pobreza. Me valia ter nhagem. Aquilo tange as canduras de noiva, pega
pai e mãe sendo órfã de dinheiro? Mocinha fiquei, feito doença, para a gente em espírito se traspassa.
sem da inocência me destruir, tirava junto cantigas [...] Eu ficava espremida mais pequena, na parede
de roda e modinhas de sentimento. Eu queria me minha unha riscava rezas, o querer outras larguras.
chamar Maria Miss, reprovo meu nome, de Flausi- (ROSA, 1969, p.46, grifo nosso).
na. (ROSA, 1969, p.45).
Transparece, na citação acima, as condições
A inocência do vestido de flores é mesclada à femininas impostas pelo regime patriarcal (MILLET,
ganância e ao desejo de riqueza, beleza e status. 1970, p.12), dentre as quais, a mulher tem de se
Segundo Passos (2000, p.213), a reprovação do calar e aceitar a dominação do poderio masculino,
nome e a preferência por “Maria Miss” acentuam a no caso, a opressão física. Nota-se a presença do
questão narcísica e a necessidade de reconheci- corpo na escrita – e não a escrita do corpo, como
mento da própria beleza. diz a teoria francesa - para descrever as situações
De família pobre, ela culpa os pais por não im- de pavor e a utilização sutil da linguagem que faz
pedirem o casamento com Zé, homem forte e rico, surgir um erotismo, mas que é repulsivo, o que
o primeiro Lopes: “chapéu grandão, aba desaba- podemos observar no neologismo “daninhagem”.
da”, “rompente sedutor”: “A gente tem é de ser O termo refere-se ao ato sexual da maneira como é
miúda, mansa, feito botão de flor. Mãe e pai não visto pela narradora-personagem : unindo o adje-
deram para punir por mim.”. (ROSA, 1969, p.45, tivo “daninha” (que produz dano, nocivo, prejudicial)
grifo nosso). Por essa declaração, depreendemos a com o sufixo “agem”, que segundo Bechara (2005,
consciência da personagem em relação ao com- p.358) é formador de substantivo, o ato sexual é
portamento feminino de passividade e submissão, definido como ato nocivo e prejudicial.
colocando-se em uma posição inferior aos ho- Assim, de acordo com Cleusa Passos, “[...] a
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
memória da narradora seleciona impressões su- nela, e dá início ao plano de vingança, virando
gestivas do intolerável toque físico por meio dessa “cria de cobra”. Tudo engenhosamente arquitetado,
contiguidade metonímica cuja função é, ainda, sus- Flausina envenena o marido, desapercebidamente,
tentar as metáforas encobridoras do pudor.” (PAS- com “cabaceira-preta”, “cipó-timbó” e “saia-bran-
SOS, 2000, p.211). Nota-se, portanto, os recursos ca”. Ele, então, morre “sem muito custo”: “Só para
utilizados na escrita feminina, delimitados pelas arrefecer aquela desatada vontade, nem confirmo
teóricas francesas (BRANCO; BRANDÃO, 2004) no que seja crime.” (ROSA, 1969, p.46).
texto de Guimarães Rosa: o segredo e o circun- Porém, o destino da personagem-protagonista
lóquio, presente na utilização de metáforas, e a parece traçado pela presença dos Lopes: “Dois
presença do corpo e do erotismo relacionados, no deles, tesos, me requerendo, o primo e o irmão do
entanto, à reinvenção e dessimbolização da lingua- falecido. [...] Mexi em vão por me soltar, dessas mi-
gem- princípio defendido pro Showalter (1994). nhas pintadas feras.” (ROSA, 1969, p.47). Sertório,
Em relação ao casamento de Flausina, vale as mal esperou o sétimo dia: “[...] já entrava por mim a
propostas de Millet (1970, p.16). A autora (MILLET, dentro em casa. Padeci com jeito. E o governo da
1970, p.16) diz que com essa união, a mulher morria vida? Anos, que me foram, de gentil sujeição, cus-
aos olhos da lei, perdendo seus (poucos ou ne- toso que nem guardar chuva em cabaça, picar
nhum) direitos. De tal modo, o marido possuía tanto fininho a couve.” (ROSA, 1969, p.47, grifo nosso).
a esposa como seus serviços, sendo esta, um Mais uma vez, destaca-se a presença do corpo
verdadeiro objeto por toda a vida – maneira como conferindo eroticidade ao texto: “[...] entrava por
Flausina se sente e é tratada. mim a dentro em casa.”, a que se sucede a decla-
Conforme Passos (2000, p.209), ofendida e ração da dificuldade da personagem protagonista
calada, a personagem dissimula angústia e revolta, em suportar por mais alguns anos a submissão.
amealha o que pode e aprende a ler para livrar-se Para demonstrar esse sentimento, o autor (ROSA,
do(s) agressor(es). Descobrindo o poder da palavra, 1969, p.47) faz uma comparação entre a dificul-
“sacou malinas lábias” – a linguagem que também dade dela tomar as rédeas de sua vida com o ato
por ora havia-lhe sido vetada - para manipular as de “guardar chuva em cabaça” e “picar fininho a 207
situações a seu favor. Agindo dessa maneira, “fez couve.”, ações que, pelo sistema patriarcal, são
que quis” e, às escondidas, estuda e prepara a destinadas às mulheres. Uma vez que elas são
vingança: “Falei, quando dinheiro me deu, afetando privadas do conhecimento de mundo, veem a vida
ser bondoso [...] Contentado ele ficou, não sabia por meio dos elementos que compõem a realidade,
que eu estava abrindo e medindo.” (ROSA, 1969, a sociedade, em que estão inseridas.
p.46); “Para me vigiar, botou uma preta magra em Assim, com o segundo marido, Flausina obtém
casa, Si-Ana. Entendi: a que eu tinha que engam- mais dinheiro, dá-lhe dois filhos, experimenta “fi-
belar, por arte de contas; e à qual chamei de ma- nuras novas” e sente-se “mais donzela”. E aprovei-
drinha e comadre. Regi de analisar por fora a vida.” tando o ciúmes que Sertório tinha de Nicão, usa do
(ROSA, 1969, p.46). fato para elaborar seu argumento e tramar a briga
Como as mulheres do século XIX, Flausina da qual ambos saem mortos, como ela, ironica-
percebe a necessidade do estudo e da educação mente, relata: “Inconsolável chorei, conforme os
para libertar-se das amarras masculinas, o que costumes certos, por a piedade de todos: pobre,
constituiu o objetivo da primeira onda do movi- duas e meio três vezes viúva.” (ROSA, 1969, p.47)
mento feminista (VACÁRCEL, 2000, p.23). Assim, Todavia, mais um Lopes participa de sua traje-
a personagem busca maneiras de aprender a ler e tória. Dessa vez, Sorocabano Lopes, “o das fortes
a escrever -“Tracei as letras. Carecia de ter o bem propriedades”, o que faltava para aumentar sua
ler e escrever, conforme escondida. Isso principiei riqueza. O “velhôco”- velho e oco- , “aflitinho dos
– minha ajuda em jornais de embrulhar e mais com consolos”, aceita a condição de Flausina de se
as crianças de escola.” (ROSA, 1969, p.46) - para casar. Porém, com este, a personagem muda de
alcançar seus objetivos, reconhecer seus direitos, estratégia, tratando-o bem e enchendo-lhe de
de forma a tomar conta de suas posses - “O que “gordas, temperadas comidas, e sem descanso,
podendo, dele tudo eu para mim regrava. Mealha- agradadas horas” (ROSA, 1969,p.47). Desse modo,
va. Fazia portar escrituras. Sem acautelar, ele me ele não perceberia – uma vez que estava “chupado
enriquecia” (ROSA, 1969, p.46). de amores”- que ela, na verdade, ardilosamente,
Após preparar-se para a independência e liber- tramava a morte dele : “Tudo o que é bom faz mal
dade, despede Si-Ana, tem um filho com Zé Lopes, e bem. Quem morreu mais foi ele. Daí tudo tanto
para que ele pudesse ter ainda mais confiança herdei, até que com nenhum enjôo.” (ROSA, 1969,
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
210
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
tionando sobre o futuro da Alemanha, sobre um pregados era dos mais graves da Alemanha. O
questionamento do mundo civilizado: seria ela nazismo honra-se muito de havê-lo resolvido.
“mesmo capaz de se integrar de forma honesta a Mas como o resolveu? Proibindo o trabalho
uma ordem das nações nova e socialmente desen- feminino numa série de ofícios, mandando as
volvida, baseada na paz e na justiça”? mulheres para casa e colocando nos seus lu-
Como se segue observando, Mann não perde o gares os homens desempregados. É claro que
fio do seu raciocínio, nem mesmo poderia fazê-lo. isso levou à miséria a milhares e milhares de
Em breve comentário, traça um perfil, histórico e famílias, onde o salário da mulher era muitas
não esquecido, da sua “boa e velha Alemanha da vezes a principal base de vida. O nazismo tirou
cultura e da formação”, sem encobrir certa vaidade à mulher alemã a possibilidade de competir
que caracterizava o seu “nacionalismo”. livremente com o homem nas diversas profis-
E responde, a seu interrogatório – “otimista e pa- sões. Lançando mão de um preceito feudal
triota o suficiente” –, para apostar na permanência de que a mulher nasceu exclusivamente para
e duração da pátria germânica de “Dürer e Bach e procriar e para os afazeres caseiros, o nazis-
Goethe e Beethoven”, e não na de picadeiro passa- mo retirou a mulher da vida pública, das uni-
da por Hitler – “confundir seu bufar atual com um versidades, das profissões técnicas e liberais.
fôlego poderoso”! (AMADO. Hora da Guerra: 5 mar. 1944).
Dos grupos ou etnias considerados pelos ditos
de Hitler inferiores e, como tais, objetos de exter- Evidente que o texto amadiano comporta sua
mínio do nazismo – sem querer esgotar o assunto dimensão em relação a um sistema que se opõe
–, avultam os judeus, os ciganos, os doentes, as diametralmente ao marxismo. Alexander De Grand,
crianças, os refugiados políticos, os homosse- em Itália fascista e Alemanha nazista, depõe sobre
xuais e as mulheres. Os primeiros, em número o assunto:
bem maior, facilmente identificados, como um dos
responsáveis pela Civilização ocidental, marcada
212 A posição fascista sempre fora a de que dis-
pelos traços greco-romano-judaico-cristãos; os
ciganos, pela vida livre a que se acostumaram, tinções de classe eram artificiais e superficiais,
considerados pelos ditos hitleristas, erroneamen- enquanto os papéis biologicamente deter-
te, de braços desocupados e bocas vazias; os minados pelo gênero sexual eram imutáveis.
doentes, congenitamente insanos ou deficientes, Logo, os regimes fascista e nazista procu-
incluídos entre os “associais” marginalizados; as ravam transcender as distinções de classe
crianças, nenhum grupo se compara ao dos jovens dentro da comunidade nacional ou racial,
atingidos; os refugiados políticos, um grupo grande enquanto dividiam firmemente a sociedade ao
de pessoas está incluído entre aqueles que tiveram longo de linhas do gênero sexual. (DE GRAND,
que sair dos países dominados ou atingidos, sob 2005, p.117).
pena de correrem o risco de vida ou de confina-
mento nos campos de concentração; os homosse- Portanto, é bom se entender as palavras de
xuais, perseguidos cruelmente pelo movimento e Amado, dentro de uma referência a linhas partidá-
as mulheres, objeto específico deste ensaio. rias. Claro que não se quer contestar a ocorrência
da aplicação prática: “isso levou à miséria a milha-
2 DAS MULHERES res e milhares de famílias, onde o salário da mulher
era muitas vezes a principal base de vida”.
Outros dos atingidos pelo nazismo foram as
mulheres, como aparece no texto “E o Arianismo?”, Mas é conveniente observar que a manutenção
de 5 de março de 1944. da aplicação de leis, como mostra De Grand, de-
sempenhou um papel decisivo:
Amado dá sua visão do tratamento das mulheres
pelo nazifascismo, destacando a marcante diferen-
ça sexual estabelecida no regime e comprovada na A política sobre o gênero sexual foi em par-
norma nazista em vigor, como: te fruto da composição esmagadoramente
masculina dos movimentos. Após 1920, o
Fascismo italiano respondeu à pressão dos
O nazismo foi antes de tudo contra as mulhe-
veteranos para eliminar a competição feminina
res. Degradou a mulher alemã, transformando-
do mercado de trabalho. De 1929 a 1933, os
-a em simples máquina de procriar. Quando
nazistas beneficiaram menos os veteranos do
Hitler subiu ao poder o problema dos desem-
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
que os desempregados masculinos atingidos tando esta a mais rasa concepção medieval:
pela Grande Depressão. Quando tomaram o
poder, bastou-lhes continuar a legislação exis-
[...] De forma mais evidente, a mulher moderna,
tente, aprovada em maio de 1932, que permi-
isenta de obrigações familiares e trabalhando
tia dispensar as servidoras públicas casadas e
fora, simbolizava tudo que havia de errado na
economicamente seguras, as chamadas dou-
perspectiva “egoísta” da classe média. Por
ble dippers [recebem salário mais aposenta-
meio de textos escolares, revistas e filmes,
doria]. Os nazistas limitaram o direito a recurso
eles exaltavam a família camponesa, os
da sentença, aumentaram a idade mínima
regimes podiam fazer um apelo seguro, não-
para conseguir a garantia de permanência no
-subversivo e populista ao popolo ou Volk, em
emprego público e reduziram a importância
geral. Portanto, a batalha contra o feminismo e
da indenização rescisória. (DE GRAND, 2005,
a igualdade sexual se ajustava ao lado antiur-
p.117-118).
bano, anticomunista e reacionário de ambos
os movimentos. (DE GRAND, 2005, p. 119).
Muita coisa já se encontrava no espírito tradicio-
nal e conservador, que os movimentos já tinham
Portanto, eis os caminhos propostos: valorização
sobre as mulheres, como a premiação das mães
da sociedade camponesa, a mulher renunciaria
de vários filhos, tudo condizente com certa valo-
ao trabalho fora do lar; contrários às conquistas,
rização das famílias numerosas, e uma atitude de
sobretudo citadinas, de igualdade sexual. Tudo
subserviência feminina.
servindo ao embate, dentro das inclinações na-
Na segunda questão do descrédito das mulhe- zifascistas: do antifeminismo, do antiurbano, do
res, é conveniente indiciar o momento da Guerra anticomunismo.
em que isso aumenta: Deveria ser em meados de
Em sua relação com o homem – o ariano, em
1942, quando as tropas alemãs passaram a experi-
destaque – eram identificadas em seu status:
mentar revezes: 213
3.1 Enquanto casadas: não apenas como donas
laboriosas dos seus lares, mas, principalmente,
E, quando os homens partiram para a guerra, responsáveis por prole numerosa, como ajunta DE
o nazismo chegou ao máximo de humilhação GRAND, em Itália Fascista e Alemanha Nazista, ao
às mulheres, apelando para que dessem filhos discorrer sobre a mulher na chamada “nova comu-
ao Estado, sem levar em conta o amor que nidade”:
deve ser o laço natural de qualquer ligação
entre homem e mulher. Dar filhos ao Estado, fi-
lhos de soldados arianos que fossem amanhã As famílias grandes perpetuavam os mais anti-
carne para canhão, eis a tarefa que o Reich gos modelos de subserviência e dependência
entregava às mulheres alemãs. (AMADO. Hora da classe baixa. Durante os anos de 1930,
da Guerra: 5 mar. 1944). em regimes que desencorajavam o consumo
doméstico, o populismo fascista e nazista ata-
cavam o estilo de vida da burguesia por seu
É por demais degradante para se chegar a uma hedonismo, decadência e individualismo. [...]
situação de desvalorização tão grande do ser hu- (DE GRAND, 2005, p. 119).
mano. Até que ponto poderia caminhar a inventiva
amadiana?
Amado, na sua crônica “E o Arianismo”, de 5 de
maço de1944, corrobora o assunto:
3 DAS POSSIBILIDADES DE REPRESENTAÇÕES
A partir dos escritos das crônicas amadianas e [...] Lançando mão de um preceito feudal de
de pronunciamentos teóricos sobre o momento, que a mulher nasceu exclusivamente para pro-
pode-se encaminhar que as representações reser- criar e para os afazeres caseiros, o nazismo
vadas à mulher estavam encaminhadas em situa- retirou a mulher da vida pública, das univer-
ções femininas nas sociedades fascistas, tradicio- sidades, das profissões técnicas e liberais. E,
nais, conservadoras e contra qualquer conquista quando os homens partiram para a guerra, o
mais moderna. nazismo chegou ao máximo de humilhação às
Em princípio, as mulheres passaram a ser consi- mulheres, apelando para que dessem filhos ao
deradas na perspectiva fascista de mando, acei- Estado, sem levar em conta o amor que deve
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
ser o laço natural de qualquer ligação entre As organizações de trabalho nazistas e a pres-
homem e mulher. Dar filhos ao Estado, filhos tação de trabalho obrigatório não conseguiram
de soldados arianos que fossem amanhã vencer a relutância de Hitler ao envolvimento
carne para canhão, eis a tarefa que o Reich de mais mulheres. Na verdade, ele fez de tudo
entregava às mulheres alemãs. [...] (AMADO. para manter as mulheres dos soldados em
Hora da Guerra: 5 mar. 1944). casa, de modo a não perturbar o moral das
tropas. O regime liberal democrata americano
e o inglês foram muito mais eficientes para
3.2 Enquanto solteiras: eram estimuladas ao ca- mobilizar mulheres para a guerra do que o
samento ou à construção de uma prole numerosa, nazista e o fascista. A lei nazista de prestação
em sua grande maioria de homens para servir aos de serviço compulsório parece ter meramente
interesses do Estado, ou ao Duce ou ao Führer. forçado as jovens a casar-se, já que o servi-
Não se trata, porém, da procriação de qualquer ço não era obrigatório para as casadas. (DE
criança, como escreve AMADO, em Amor e Nazis- GRAND, 2005, p. 121).
mo:
Referências Bibliográficas
AMADO, Jorge. Hora da Guerra (Amor e Nazis-
mo). O Imparcial, Salvador, p. 3, 21 set. 1943.
AMADO, Jorge. Hora da Guerra (E o Arianismo?).
O Imparcial, Salvador, p. 3, 5 mar. 1944.
DE GRAND, Alexander J. Itália Fascista e Alema-
nha Nazista. Tradução Carlos David Soares. São
Paulo: Madras, 2005.
MANN, Thomas. Ouvintes alemães!: discursos
contra Hitler (1940-1945). Tradução Antonio Carlos
dos Santos e Renato Zwick. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2009.
215
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
216
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Antes de Eva havia Adão e antes de Eva teria mento em que Deus não teria ainda descansado a
havido Lilith. Sobre ela, a Bíblia encerra o silêncio contemplar a sua criação, inicialmente considerada
prudente reservado aos fantasmas, o menosprezo muito boa. No pensamento exegético do Livro do
ético reservado aos demónios, o véu do contingen- Esplendor, por exemplo, o seu nome figura no dia
te reservado a todo o empreendimento arquetípi- da criação dos peixes como um ser vivo que, a par
co. A sua vinculação ao mal parece acompanhar do monstro Leviatã, se movia pelos quatro cantos
naturalmente a damnatio da sua nomeação, que do mundo (Zohar, I 34b).
constitui um dos hapax legomena mais comenta- Antes de Eva, criada a partir da substância de
dos da literatura bíblica, constando de uma única Adão, outra tradição talmúdica regista a geração
menção, sombria e pouco esclarecedora, no Livro de Lilith a partir do mesmo barro de Adão, à noite,
de Isaías a propósito da terrível desolação do vale através da mão de Deus, surgindo numa primeira
de Edon. A tradição suméria da epopeia mitológica, imagem terrífica coberta de saliva, lágrimas e san-
onde já era celebrado o seu poder negativo, cons- gue. Apenas numa segunda tentativa surgiu uma
titui apenas um dos substratos mais conhecidos de mulher atraente e sedutora, de longos cabelos, que
um mito entre cujos avatares figuram as funestas em breve perturbaria com as suas desavenças a
lâmias, servas da Hécate infernal. beatitude do Paraíso. Num momento em que Deus
Na tradição judaico-cristã, da sua história há que não ainda apontara ao casal primitivo a Árvore
reter as narrativas da tradição oral rabínica, muito da Ciência do Bem e do Mal, Lilith interpela Adão
diversificadas nas suas variantes, mais tarde regis- quando se trata de fazer valer a sua igualdade pe-
tadas em obras cabalísticas como o Talmude Ba- rante o poder, legitimada na mesma substância (o
bilónico ou o Zohar, o Livro do Esplendor. O que de barro) e no mesmo criador (contrariamente à futura
Lilith sabemos, ainda assim, não é suficientemente Eva, eternamente dependente do corpo de Adão,
claro mercê da sua substância proto-histórica no com quem formará uma só carne) e visível no
seio do Genesis, sobretudo em relação ao mo- âmbito da sexualidade e das paixões intempestivas
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
que despertaria. A perturbação instalada resulta no teriores pela mediação da palavra poética – que
seu banimento do Éden, o seu exílio no deserto e a teremos em consideração a presença de Lilith
sua transformação em demónio sensual e invejoso. e Eva numa certa leitura do feminino em alguns
Antes da serpente havia Lilith e a arte consagrou-a momentos da poesia de valter hugo mãe, nomea-
muitas vezes como a própria serpente tentadora da damente nas duas obras que selecionámos como
submissa Eva, um monstro com cabeça feminina corpus representativo, a cobrição das filhas e útero.
a rodear como um súcubo os filhos do casal (Lilith Será importante destacar que Lilith, tal como Eva,
é a inimiga dos recém-nascidos) como no fresco não assoma textualmente nesta poesia senão na
de Filippino Lippi na capela Strozzi em Florença sua representatividade; por se dirigir, como tere-
(fig. 1) ou em terrível xilogravura quatrocentista ao mos a ocasião de destacar, a um reservatório do
jeito de uma tentadora personagem de Bosch (fig. imaginário onde a subversão acompanha a forma-
2). Estamos neste ponto ainda distantes do volup- ção do cosmos, reabilitando o caos e a abjeção
tuoso ressurgimento romântico, após um relativo como forças de especial grandeza na composição
apagamento da sua presença durante o período de futuros empreendimentos estéticos, a evocação
pós-tridentino, incarnado pela prostituta Fanny de caraterísticas destas duas figurações da mulher
Cornforth posando para Dante Gabriel Rossetti a tomando as representações próprias do feminino
sua imensa cabeleira rubra e suscitando do poeta nos livros citados parece-nos revestir-se de espe-
pré-rafaelita o soneto “Body’s Beauty”. Já na arte cial pertinência.
contemporânea, pela mão de HR Giger, Lilith rea- Partindo assim das dimensões apontadas na
braça o monstruoso através da visão fantástica da evocação do mito de Lilith, começaríamos por
existência biomecânica da mulher e seu hibridismo destacar em que medida o poder (o foedus na sua
corpo-máquina, apesar de não destituída da sua acepção etimológica enquanto nome, o pacto ou
herança hierática (fig. 3). tratado com vista à conciliação, mas selado por um
A tentação de ver neste mito genesíaco da ato sacrificial) estaria no âmago de uma subversão
mulher-demónio um extremo do par distintivo que estética conducente à sua realização adjetiva (ape-
218 poderia formar com a Eva maternal e expiadora, sar de etimologicamente discutível), foedus como o
como de resto tem sido acentuado, parece-nos, que é abjeto, repelente, indigno, imoral, feio, conse-
todavia, apenas mais uma das múltiplas dimen- quentemente numa linha estética clássica consubs-
sões interpretativas possíveis. A nosso ver, Lilith tancial ao mal. Poder e liberdade, como fez notar
não se encontra circunscrita ao arco estrito da sua Rüdiger Safranski (2010: 13), têm como preço o
negação dadas as diferenças assinaláveis, apesar mal, cuja origem mítica terá ocorrido logo no Paraí-
de breves pontos em comum. Possível compa- so e, mais espantosamente, surgido a partir do po-
nheira de Leviatã e primeira companheira de Adão, der da divindade, a declaração máxima do Sobera-
de quem, segundo uma outra tradição de que o no Bem, que o instaurara num momento anterior ao
Zohar dá eco, se terá separado por instâncias de do pecado original com a proibição sobre a Árvore
Deus, seu criador, por não ter dado qualquer auxílio do Conhecimento. O não, a negação de um acesso
ao homem e o ter submetido ao prazer culpado cuja transgressão acarreta uma mudança de esta-
(ibid.), torna-se o primeiro demónio a vaguear por do, terá, porém, emancipado o arbítrio do humano
terras ainda virgem de humanos, aquelas que se na sua dimensão eletiva; o mesmo será reconhecer
encontravam para lá do Éden. O seu processo de a secundarização da Árvore do Conhecimento do
singularização identitária encontra-se contido na Bem e do Mal a partir do instante de enunciação
sua geração não linear (da primeira tentativa mons- do tabu por parte da divindade, dado que as suas
truosa à modelagem como ser muito belo) e no seu palavras contêm as proposições distintivas entre
exílio posterior, cuja condenação lhe impõe uma duas atitudes éticas. A nomeação da espécie, a
reversão ao estado ignóbil da indefinição entre a sua singularização entre tantas árvores agradáveis
força obscura e imaterial do fantasma (o súcubo, à vista, condiciona o pensamento acerca do bem
mas também a escuridão, o sopro maligno, o vento e o do mal, pelo que o conhecimento pré-queda
funesto), a sua figuração teratológica e, ao nível da existiria e deveria conformar-se com o arbítrio da
linguagem, a damnatio que faz com que no texto inocência humana. Safranski não assinala Lilith,
bíblico não seja diretamente nomeada. Será nestes a outra criatura do Deus oleiro que nas versões
pontos essenciais – a criação abjeta e seu funda- apócrifas reconhecera por si uma opção de poder,
mento estético reportado figurativamente à mulher, uma liberdade que teve como consequência um
a instabilização ambígua do foedus e a reativação regresso à degradação primitiva da criatura nasci-
de uma perspetiva de sublime reconhecida nas da do barro e da imundície. A expulsão do Paraí-
práticas intercomunicantes das perspetivas an- so como pecado da desobediência corresponde
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
também a um afastamento desse Soberano Bem tabus judaicos sobre o sangue (Kristeva 1980: 86).
que é transformativo e regressivo quando visto es- Há nesta Lilith inicial uma proveniência cosmogó-
teticamente no âmbito da distanciação; é por esta nica marcada pela “podridão matricial” em que o
via que se torna pertinente recordar o tratamento útero impuro é a mesma terra que seria estrato do
iconográfico de Eva após a sua saída do Éden nos caos anterior ao génesis; é assinalável que José Gil
célebres frescos sistinos de Miguel ngelo (fig. 4), (2006: 85) tenha relembrado essa relação entre o
bastante próximos de uma evocação do idealis- nascimento do monstro com a “sujidade matricial”
mo neoplatónico do afastamento do Uno, donde do útero materno e, por metonímia, da corrup-
provém o ser, o bem e o belo, obras que continuam ção moral da mãe. A implicação ao nível estéti-
os frescos florentinos de Masaccio, onde o pranto co parece-nos ainda mais determinante quando
de Eva desfigura as linhas do seu rosto (fig. 5). No pensamos na precedência do feio (o foedus) como
trabalho de Miguel ngelo tem sido reconhecida na princípio gerativo, ao contrário da dependência há
serpente a presença de Lilith, o que poderia sig- muito estabelecida em relação ao belo, em ace-
nificar a coexistência de duas versões do mal na ções reiteradas nos alvores dos estudos sobre esta
mesma composição, a da condenação voluntária relação e as conclusões da falta de autonomia do
de Eva, a quem Deus destina viver no sofrimento feio relativamente ao seu oposto. Na introdução de
da maternidade e da mortalidade mas cujos filhos Estética do Feio (1853), um dos primeiros tratados
vão expiando a sua transgressão em busca de uma sistemáticos sobre o tema escritos no Roman-
reaproximação à promessa do estado edénico, e a tismo, Karl Rosenkanz não lhe admite qualquer
condenação eterna de Lilith, do mal originário num hipótese de autonomia do conceito de belo, que
estado de pureza proveniente, de modo parado- constitui a sua condição primeira positiva, sendo o
xal, do seu estado primitivo, da imundície. Entre feio a sua negação enquanto existência secundária
Eva e Lilith, como Deus vaticinara amaldiçoando a (Rozenkranz 2004: 51). A argumentação não escon-
serpente, surgirá a incompatibilidade de quem se de a sua concordância com Hegel sobre a legitima-
irmanou através do mesmo criador. As implicações ção do feio na sua dependência dissonante ou de
mais simbólicas, no âmbito estético, serão diver- desvio do espetro luminoso do Ideal. A expetativa 219
sas mas em alguns pontos coincidentes, por vezes reside na irrevogabilidade da autoanulação do ape-
assimilando-se mutuamente na recriação de uma lidado Belo Negativo, cuja existência apenas se vê
figuração da mulher como a que vemos assomar útil e legitimada num combate onde a sua derrota
em alguns versos de valter hugo mãe, como em por parte do Belo Positivo é a condição necessária
útero, parodiando na Anunciação a Eva remida, a de um processo de consolidação e sublimação
maldição bíblica da serpente: de um poder irrevogável: “Dans ce processos, le
beau apparaît comme la puissance qui reprend le
trarás a cobra entre
pouvoir après cette rébellion du laid” (idem, 44).
as pernas, um sexo Rosenkranz não quer com isto afirmar que o belo
extremamente aperfeiçoado, necessita exclusivamente do feio para se afirmar
alimentando-se longamente, digerindo enquanto tal, antes que a existência real do feio (e
a anunciação, fodendo o do mal) deve ser entendida como uma dissonância,
verbo uma contradição relativa que apenas confirma a
(Ut 33) não necessidade de dependência que carateriza o
belo (o bem) como um absoluto.
O pensamento moderno e pós-moderno, essen-
A existir um direito ao foedus que assentas-
cialmente questionador perante qualquer tentativa
se na primazia da origem, Lilith ganha uma clara
de normalização de conceitos estéticos no domínio
vantagem sobre Eva por proceder diretamente da
da representação, admite para o feio uma autono-
divindade. A sua esterilidade, contrária à da Eva
mia que deriva do processo de reconfiguração da
maternal, não lhe impede o poder tremendo de
consciência de dependência do ato criador e, não
atemorizar o homem porque a sua condição é a
menos importante, de sua receção de várias condi-
da paridade com ele. Contrariamente a Eva, có-
cionantes presentes no processo artístico. Nelson
pia inteligível do homem que foi inicialmente ideia
Goodman (2006: 63) resumiria pouco pacificamen-
perfeita de Deus e através da sua substância, a
te, em célebre enunciado, a natureza como produto
primeira existência de Lilith é moldada a partir de
da arte e do discurso, no qual pretendia acentuar
uma matéria abjeta e informe da terra junto das
a experiência da imagem resultante de operações
águas, a mesma figurada no segundo versículo
onde as três componentes referidas mutuamente
bíblico, um barro impuro que prenuncia os futuros
se provocam. O juízo subjetivo do gosto enunciado
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
animais” (CF 21) - e de suas filhas, “instintivas no terribilidade do poder feminino, que Julia Kristeva
seu papel / como o estrume que o campo come” caraterizaria como “asymétrique, irrationelle, rusée,
(CF 65). Eva, a mãe da Humanidade mas também incontrôlable” (idem, 85), o mesmo poder devido
“a porta do diabo, aquela que tocou a árvore proi- a Lilith antes do seu exílio que as filhas pretendem
bida” (Tertuliano 1974: 38) e suas filhas pretendem instintivamente retomar:
vingar o direito primevo de Lilith com a exibição em mergulham à proa do
a cobrição das filhas de um excesso procriador e beijo, o corpo deles
de maternidade como mácula-medalha a ostentar,
a mutilar o delas como
destituída dos topoi habituais, orientando-se numa
relação hereditária do foedus que se desenvolve um animal aflito, elas
a partir das viúvas, “poços da imagem”, marcos estreitas na cama, apenas
orientadores da profundidade ou cimos perscruta- um punhado de víveres, o
dores dos espaços mais arcaicos, até às filhas e à sangue a iluminar os
sua existência animalesca, enganosamente sub- lençóis e as mãos escavadas
missa. A condição das viúvas é a da imobilidade, a no peito, elas malignas,
da espera silenciosa da Morte e a degradação do
cheias de graça
corpo-quotidiano que pactua com os crimes e a
violação dos tabus da descendência: (CF 54)
mijam-nos as filhas, ainda
que cresçamos como crostas Há nestas mulheres uma vocação para o sagra-
do não apenas no apelo direto a uma versão mítica
em redor das suas peles, enterramos
da existência próxima da irracionalidade ou na
os netos no quintal e adiamos-lhes subversão da fórmula cristã do mistério da mater-
as almas, recebemo-los anos nidade dos versos finais anteriores, mas sobretudo
mais tarde, perdoadas no ato subversivo em si. A existência aparentemen-
e tombadas no chão a partir te submissa à vontade não afasta o narcisismo de 221
das filhas desparasitadas uma dimensão superior e que, no devir-animal que
(CF 28) revelam, estabelecem com o mistério da criação a
analogia da Terra corrupta, abjeta, porém geradora
de vida, e a da maternidade semelhante à corrup-
O horror impõe-se nestes poemas ao expor os ção do húmus, destituída de glorificação, júbilo ou
corpos das mães a um tratamento de irremediável beleza, o mesmo ambiente que abriga a semente
mácula a que se acrescenta a alusão ao interdito, mas também a serpente:
presente noutros poemas (cf. CF 71) e servindo
de introito à segunda sequência de poemas da
obra, dedicada às filhas, por sua vez circularmente e eles são larvas
apelando à continuidade da abominação quando alojadas no sexo ocre
sobre elas recai o degrau da maternidade. Julia que elas trazem, a devorar-lhes
Kristeva (1980: 87) reportaria a este corpo pró- o miolo para volverem
prio um sentido de autoridade precisamente por os predadores meticulosamente criados
constituir uma referência quanto à diferenciação à medida do medo delas
fálica do masculino, mas sobretudo por nele me-
(CF 56)
lhor se exercer a topografia das frustrações e dos
interditos, o que significará fazer dele, na ótica do
duplo, um repositório de linguagem e de simbo- ou inundadas de sémen fervido de
lização. A violência nele exercida ou a corrupção ódio, uma degeneração
a que se sujeita adequam-se a atentados contra que as procura avidamente, como
a superfície e seus limites numa perspetiva de um filho demoníaco que as possa
contínua encenação das condições pré-verbais
chamar, e se os filhos as chamam a
do ato fundacional do humano, o tempo sacro da
partir do ventre, enlouquecem
descontinuidade. Neste díptico, um Éden de lamas
simbólico cujas margens se compõem enganado- grandes, já elas pouco discretos
ramente dos índices de domesticidade da mulher, ninhos de víboras
o poder é parte instável da relação agressiva com (CF 68)
o homem, ameaçado do “désouvrement” mercê da
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
O estatuto das filhas é, em certa medida, seme- na sua combinação com o espanto ou admiração,
lhante à metamorfose da mulher em cabra do poe- um par-mínimo que Burke terá encontrado numa
ma de Luiza Neto Jorge e este estatuto reatualiza-a breve análise dos significados do termo em outras
na vontade de pura existência animal e sacrificial, línguas (idem, 54).
por oferecer a sua carne ao repasto da vida como Nos poemas de valter hugo mãe, a associação
nos antigos mitos cosmogónicos, mas anuncian- da abjeção à crueza espantosa de imagens que
do em simultâneo a contrapartida violenta que faz propõem uma domesticidade simbolicamente
parte da sua natureza altamente transgressora e, codificadas na sua exterioridade (a mesa, o lar, a
por conseguinte, sagrada; o seu corpo maternal refeição familiar, a cumplicidade maternal) reenvia
invadido, devorado, escavado e perfurado guarda para a instabilização destes códigos e do corpo
atrás de si a torrente de crimes, de atos cortantes e próprio, detendo-se o sublime nos momentos em
furiosos, de cabeças humanas cortadas em gro- que é proposta a celebração do resto (o corpo da
tesca procissão epifânica como na fantasmagoria mulher como resíduo) e o impuro (os interditos rela-
onírica do expressionista Alfred Kubin intitulada cionados com o sangue):
“A Nossa Mãe Universal, a Terra” (1901-2) (fig. 6). sempre como bichos, os
Esta visão aproxima a abjeção do sublime pelo
cabelos na sopa coçados
lado mais terrível e sagrado do crime, do homicídio
perpetrado durante o sono à maneira de certas de sujos, elas e os
heroínas bíblicas: filhos à mesa, bocas
límpidas de dor, velhas desprovidas umas das outras, e eles
deles, matam-nos assim avisam que o tempo virá
que adormecem, servem-se do mais tarde, convictos, elas
machado e não os deixam já restos da refeição, por
muito tempo no sono, não vezes nem bichos, os filhos
222 vão sonhar que agarram a arma tortos do diabo latindo
antes que elas o façam, e afirmam casa fora (CF 61)
que os lamentam, esmagados,
elas aos gritos (CF 72) contam às filhas histórias
secretas sobre as suas
O sublime corresponde nestes versos à exi- coninhas, não as ajudam
gência de abertura à memória da vingança ou do a limpar o sangue do corpo, fumam
desencontro das sensações em estado puro que com papel higiénico na mão (CF 70)
se resumem à vocalização (o grito), a forma-eco
do fundo dos poços que reporta à anterioridade Em relação aos tópicos anteriores, Julia Kristeva
da linguagem ou que, reatualizado, sugere a sua fazia notar a ambiguidade que percorre os restos,
coexistência. No transporte pelo poço da memó- entre a poluição suscitada pela sua incompletude
ria da linguagem que atinge, como afirmaria Julia e a potência do ressurgimento, do recomeço, de
Kristeva, a possibilidade de nomear o pré-nominal um novo horizonte cosmogónico, e o valor de tabu
ou o pré-objetal, estaria um dos fundamentos do sangue menstrual, que interpreta no sentido da
desta sublimação (idem, 19), de que a linguagem identidade e de um sinal de perigo proveniente do
do abjeto surge como sintoma, revestimento ou seu interior, significado instabilizado quando conce-
promessa de abertura ao turbilhão das sensações. bido na perspetiva de uma atribuição sacrificial do
Já o tempo do terror evocado na sua dimensão sangue a Deus (a carne sem sangue, biblicamente,
primitiva adequa-se à visão criadora do foedus e é oferecida ao homem) e o derramamento feminino
do sublime que Edmund Burke em A Philosophical como promessa de fertilidade (idem, 115-116). Na
Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime adoção desta ambiguidade confrontamo-nos com
and the Beautiful, quanto à ideia de terror, concebia o esvaziamento de uma conceção fechada do fe-
na dependência de ideias como a dor ou o perigo minino, a quem é possível atribuir a sacralidade do
(Burke 2008: VII, 36) todas as emoções mais fortes que é impuro e proibido e a capacidade geradora
que a mente pudesse suportar e geradoras de da linhagem pela linguagem da abjeção. Na pers-
prazer (delight) e não a gratuitidade de qualquer petiva de Burke, a linguagem é tão capaz de incitar
experiência que visasse a dor apenas por si, dado o sublime como os objetos a que se reportam não
que o princípio fundamental do sublime residiria apenas por ter a capacidade de despertar imagens
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
na memória mas ainda emoções ou um estado es- recompensa do sofrimento terreno do humano,
pecífico de ânimo, tornando-se mais interventiva e uma purga na saison do Paraíso da herança abo-
dinâmica e distanciando-se das tentativas anterio- minável de Lilith e Eva. Na verdade, a metamorfo-
res que o reconheciam como um resultado especí- se da mulher-cabra na instabilidade de um “anjo
fico de uma articulação estética com codificações em eterna muda de penas”, a par das imediatas
retóricas, como em Longino ou Boileau (Heleno sugestões simbólicas - os bestiários medievais
2001: 97). A linguagem age neste sentido como um concordavam que o pássaro era ave inconstante
detonador, objeto de deflagração que aponta nas e instável, representando os mesmos estados da
várias direções da contingência, categoria que faz mente (cf. Folieto 1999: 95) -, não lhe retira a sua
parte da natureza do sublime, entre a volatilidade substância animal de pássaro sem bico, definitiva-
dos estados mentais, o prazer e o não-racional mente comprometido com o silêncio numa orga-
(Kirwan 2005: 159). nização de pura substância em que o aturdimento
Também o mecanismo explosivo do corpo que suscitaria, segundo Agamben em O Aberto,
da fêmea - em útero, elas “parem / os filhos em ca- uma caraterística da animalidade (Agamben 2011,
nhão” (Ut 26), em a cobrição das filhas “expelem os 73). Assim, “parvas, sempre de boca aberta de /
filhos / como fumo em que / sufocam” (CF 67) – co- onde as moscas se desviam” (CF 74), as filhas me-
loca-se em alternativa (ou no degrau mais elevado tamorfoseadas contemplam uma relação instintiva
da roda) à ameaça de emudecimento das mães - com o mundo que, porém, não implica uma ime-
“arremessamos o tempo ao corpo e / ameaçamos diata cessação da sua natureza humana, porque tal
emudecer” (CF 21) - e ao progressivo esvaimento como o novo espaço por onde vogam é intermédio,
da palavra, na contemplação da violência de um a sua nova substância deve ser situada em parte
mundo que geraram e sobre o qual as filhas vêm fora do ser mas ainda nas potencialidades do ser.
exercer o seu direito. Poeticamente, o fechamento instintivo como animal
Nesta circularidade – “um círculo que se fecha não pode ser totalmente conseguido por se encon-
/ entre bocas espelhadas, perfeitas, / agressivas trar enredado na memória arquetípica de um corpo,
com as outras / como se tivéssemos tudo” (CF 23) do desejo, do desequilíbrio das paixões. O mes- 223
–, o caminho para o infinito, na sua negatividade mo será dizer que a animalidade destas mulheres
essencial ao nível estético, dirige-se retrospetiva- não se aparta de um género de conhecimento, tal
mente para uma memória utópica que o final de a como os companheiros de Ulisses, quando meta-
cobrição das filhas recupera não no sentido de um morfoseados em porcos, conservaram o seu en-
regresso ao Éden (espaço vazio do humano desde tendimento (o nous), que “permaneceu como era”
o pecado original, onde ainda se possam manter enquanto choravam encurralados nos domínios de
os animais originalmente criados) mas à fronteira Circe (Odisseia, X, 240).
entre os mundos, onde a avidez explosiva da ma- Na inocência do Paraíso teriam ficado os animais
ternidade danada é substituída pela lentidão, pelo nomeados por Adão. O regresso foi vedado suces-
espanto: sivamente a Lilith, a Eva, às filhas transformadas
em anjos emplumados e a outras figurações pre-
sentes na obra de valter hugo mãe, entre a prosa e
caminham sobre a
a poesia. Para estas, não houve outro abrigo sufi-
terra rápida e, quando ciente do que a mancha contaminante da palavra
morrem são anjos em poética, criadora de mundos a partir do nada, tal
eterna muda de penas, feitas como Deus, cujo espírito inicialmente pairava sobre
só pássaros sem bico, engolidas as águas, terá criado o mundo a partir do nada. Na
por grande morte depois de detonação do sublime a partir do abjeto afigura-se
tão pequena vida, assistem um desses barros regeneradores do mal que para
a arte, de acordo com Safranski (idem, 200), vem
ao céu, pasmadas numa
do seu mistério criador cujo dote é o mesmo nada.
lentidão eterna (CF 73) Para as filhas como para os leitores ou para esse
Deus inicial, o foedus destes poemas persistirá
Esta poetização do regresso, moralmente con- enquanto estas palavras se elevarem “só pulmões
traditório quando pensado do ponto de vista do cheios, máquinas de pairar, alegres imprecisões ao
belo platónico ao acentuar uma redenção sem alto” (Mãe 2006, 28).
castigo e subversiva quanto à relação idealizada
com o bem, não deverá, todavia, ser univocamente
entendida do ponto de vista de uma eterização ou
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
FIGURAS
225
226
Figura 3 – “Lilith”, HR
Giger (1976)
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
227
228
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
229
atitude de uma leitora pragmática, por cujo anúncio “Eu quero fazer o elogio do amor puro, do
publicado n’O Independente Miguel Esteves Car- amor cego, do amor estúpido, do amor doen-
doso se congratulava na crónica “A aventura da te, do único amor verdadeiro que há (…).
mãe solteira” (Cardoso, 1995 [1990]:55-58). Dizia o
anúncio: Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita
a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza
“PROCURO RAPAZ NOVO com emprego, o medo, o desequilíbrio, o custo, o amor, a
carro, Faro, Olhão, arredores. Queira casar doença que é como um cancro a comer-nos o
rápido. Sou mãe solteira. Foto recente.” (Car- coração e que nos canta no peito ao mesmo
doso, 1995 [1990]:55) tempo?
Do ponto de vista do autor, tratava-se da afirma-
O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor
ção de uma nova forma de entender o relaciona-
não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo,
mento amoroso. Através do seu anúncio, a leitora
a pancadinha nas costas, a pausa que refres-
manifestava uma atitude positiva e proactiva, ao
ca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da
estabelecer o claro objectivo de procurar um mari-
vida, o nosso “dá lá um jeitinho” sentimental
do, porque
(…)
“Um marido procura-se. Não se espera. Um
marido não faz parte do mundo natural. É obra Amor é amor. É essa a beleza. É esse o perigo
da mulher. Os príncipes encantados não estão (…). O nosso amor é para nos amar.
à espera de si ao virar da esquina. Têm de se O amor puro não é um meio, não é um fim,
desencantar (…). O casamento é um contrato não é um princípio, não é um destino. O amor
importante e não faz sentido selecionar um puro é uma condição (…).
marido com menos rigor do que se escolhe
um empregado” (Cardoso, 1995 [1990]:56). O amor é a nossa alma. É a nossa alma a
desatar. A desatar a correr atrás do que não
232 Esta concepção parece querer contrariar a con-
sabe, não apanha, não larga, não compreen-
cepção romântica (e ocidental) do amor, tal como
de. O amor é uma verdade (…). O amor é mais
Denis de Rougemont a estudou. Analisando o mito
bonito do que a vida. A vida que se lixe.”
de Tristão e Isolda, Rougemont assinala como esta
história medieval prevaleceu no imaginário amoro- Este amor intenso, cuja natureza é, por vezes,
so ocidental: é a ideia de amor mágico, idealizado, elusiva e contrária, exige declaração e demonstra-
concebido como fatalidade e destino, que é “mais ção. Para o pobre apaixonado, isso nem sempre é
forte e mais verdadeiro do que a felicidade, a socie- tarefa fácil, já que cada vez que alguém se apaixo-
dade e a moral” (Rougemont, 1999:20). na é como que um regresso àquele primeiro amor
Este ideário, como veremos a seguir, está tam- que se viveu na adolescência, experienciado como
bém presente nos textos de Miguel Esteves Car- “o único amor, o máximo amor”, o amor “que ocu-
doso. Trata-se de um amor que se compraz na pa o amor todo”4.
sua própria natureza ambígua, entre a perdição e a No entanto, a vivência amorosa não se esgota
salvação, que é experiência totalizante e totalitária, aqui. Seguem-se “amores maiores, amores me-
capaz de condensar e conciliar opostos. É este lhores, amores mais bem pensados e apaixona-
amor que encontramos numa das mais famosas damente vividos. Há amores mais duradouros”5
crónicas de Miguel Esteves Cardoso, “Em nome do – há amores mais felizes, poder-se-ia acrescen-
amor puro” (Cardoso, 2001 [1991]:75-77)3: tar. Talvez por isso, Miguel Esteves Cardoso não
se envergonhe de convocar para os seus textos
empregar o verbo “amar”, preferindo dizer que “estão apaixonados; a palavra as mulheres que amou e que ama. Por exemplo,
“amante” tem uma conotação negativa; “amoroso” significa “qualquer vago Susana, a quem é dedicado o texto “Quando esti-
conceito a leste de levemente simpático, porreiro ou giríssimo”; “amável” e
veres velha e grisalha e cheia de sono”, publicada
“amado” são pouco usados; “um amor” pode “dizer-se indistintamente de
escovas de dentes, contínuos que trazem os cafés a horas, ou casinhas de no Caderno 3 de O Independente, em 16 de Abril
emigrantes”; o termo “amigas” é um eufemismo frequente para “namoradas”.
Porém, esta forma de se exprimir tem apenas lugar em público e contrasta puro”, no Caderno 3 de O Independente, de 12 de Outubro de 1990, a cróni-
fortemente com a expressão sentimental em privado, que é marcada pelo ca mudará de título na passagem para o livro, perdendo a menção dedica-
exagero e exacerbamento amoroso. Esteves Cardoso conclui: “A retracção tória que incorporava e passando a “Em nome do amor puro”. Uma simples
épica a que os portugueses se forçam no uso próprio das palavras do amor, pesquisa na internet demonstrará o elevado número de blogs e sites que
quando o contexto é minimamente público, parece atirá-los ilogicamente, para reproduzem o texto, dando-o, erradamente, como proveniente do semanário
uma confrangedora catarse de lamechices cada vez que se encontram a sós Expresso.
com quem amam” 4 Cardoso, 2001 [1988]: 163.
3 Inicialmente publicada sob o título “Para Júlia Wolff, em nome do amor 5 Idem
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
de 1994. Trata-se de uma tradução do poema de samos marrar uns com os outros à vontade”. Trata-
Yeats “When You Are Old”, datado de 1892, e que -se de uma conflitualidade que nasce do próprio
em nota é identificado como tendo sido “[t]raduzido facto de marido e mulher serem dois indivíduos
por Miguel Vicente Esteves Cardoso para a Susana autónomos, com ideias e valores próprios, que
Maria Silva Brás, que faz vinte e seis anos depois expressam os seus sentimentos de forma diferen-
de amanhã”. ciada. Anular essas diferenças é abrir caminho à
Ora, esta Susana é a mesma a quem são dedi- indiferença e, consequentemente, à infelicidade.
cadas as colectâneas de crónicas As Minhas Aven- Por isso, não é de estranhar que mesmo nos ca-
turas na República Portuguesa e Último Volume e samentos felizes, surjam desavenças e diferendos
os romances O Amor é Fodido, A Vida Inteira e O ocasionais.
Cemitério de Raparigas, e que já antes fora home- Miguel Esteves Cardoso relata um desses mo-
nageada com “Aedh sonha com as sedas do céu” mentos, quando sentindo-se “desamado, sozinho
(O Independente, Caderno 3, 18/12/1992), tradução e triste” decidiu sair de casa com o intuito de se
de “Aedh wishes for the Cloths of Heaven”, outro isolar, na certeza de que a mulher, apesar das
poema de Yeats, extraído de The Wind Among the eventuais saudades, ia compreender a sua atitude.
Reeds (1899). No entanto, Maria João afligiu-se com o desapare-
Mas nem sempre os amores felizes duram para cimento inusitado do marido – e da “birra secreta,
sempre. Susana já não é o amor de Miguel Esteves por ser pequena, no meio de um casamento feliz” –
Cardoso; esse amor escreve-se agora Maria João saiu reforçado o amor do cronista à sua mulher:
e a sua história tem sido feita no Público. Dando “Ficou aflita – a coisa que eu menos queria
conta do estado de saúde da mulher, da sua luta (e nisso ganhou) – e enquanto eu escondi
contra o cancro, das idas ao IPO, dos tratamentos pindericamente a minha aflição, ela tornou-a
realizados e das melhoras alcançadas, Esteves pública ao ponto de levantar auto na GNR que,
Cardoso faz a crónica do seu amor e conta, inclu- diga-se com espanto de quem já a admira, me
sivamente, como os dois se conheceram e apaixo- apanhou, bem apanhado, na Praia Grande,
naram: 233
ontem de manhã. Nunca um alarme foi tão
“Apaixonamo-nos em 1996, mal nos conhe- bem alevantado. Tenho ou não razão em amá-
cemos. Casámos no dia 30 de Setembro de -la?”7
2000. Já vivíamos um com o outro desde 1
de Janeiro desse ano, logo a seguir à primeira
noite em que dormimos juntos (…)”6. 3. Considerações finais
Através da sua rica e vasta produção cronística,
Na crónica “Um segredo de um casamento feliz”
Miguel Esteves Cardoso tem sabido dar aos seus
(Pública, 24/10/2010), o autor exprime a sua am-
leitores uma imagem de Portugal e dos portugue-
bição de “revelar os segredos de um casamento
ses, matizada pelo humor e mordacidade, verificá-
feliz”. Porém, constata que aquilo que poderia dizer
vel nas suas reflexões sobre como as mudanças
tem um escopo limitado, sendo apenas aplicável
sociais afectam as relações entre homens e mu-
ao seu casamento com Maria João. Assim, as suas
lheres. Congratulando-se pela libertação feminina
convicções acabam por ser uma reflexão sobre
e pela crescente igualdade entre homens e mulhe-
o seu casamento em particular, podendo não ser
res, Esteves Cardoso defende, no entanto, que tal
universais:
igualdade deve ser (re)conciliada com as diferenças
“O casamento feliz não é nem um contrato que existem (e que provavelmente existirão sempre)
nem uma relação (…). É uma criação. É criado entre homens e mulheres.
por duas pessoas que se amam. Porém, as observações acutilantes quase desa-
O nosso casamento é um filho (…). parecem quando surpreendemos Miguel Esteves
Cardoso teórico da sentimentalidade. Ora reflectin-
Não basta que os casados se amem um ao do sobre a natureza do amor, ora partilhado a sua
outro. Têm também de amar o casamento que própria experiência amorosa, o cronista oferece-se
criaram (…)”. ao leitor em figura humana: é o sujeito que ama,
O casamento feliz, no entanto, não é aquele que sofre, que desabafa e com o qual o leitor se
onde impera a total concordância entre parceiros, identifica, seduzido por ver na sua escrita a expres-
pois “é preciso haver arenas designadas onde pos- são daquilo que (tantas vezes) já experimentou.
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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Apresentam-se neste artigo duas personagens persistem há séculos na região. Graciliano Ramos
femininas construídas a partir dos olhares de nar- talvez seja o maior dentre eles, com a tragédia
radores masculinos: Alícia, que mobiliza episódios recorrente da migração em massa provocada
decisivos na trama de Cinzas do Norte (Hatoum, pela seca, em Vidas secas e com a crueldade e
2005) e Lavínia, a jovem pouco convencional que violência que permeiam as relações de trabalho
protagoniza Eu receberia as piores notícias de seus em São Bernardo. Tangenciando, por enquanto, a
lindos lábios (Aquino, 2003). Ambos os romances questão a ser discutida adiante, ou seja, o papel
ambientam-se na Amazônia, o primeiro na cida- de personagens femininas no regionalismo, uma
de de Manaus e o outro em uma cidadezinha não figura notável é Madalena, a protagonista de São
denominada, no estado do Pará, o que os torna Bernardo, professora pobre que involuntariamente
representantes da literatura regionalista. Estão, cativa Paulo Honório, o rico e desonesto proprie-
portanto, distantes da tendência predominante na tário da fazenda que dá o título ao livro. Madalena
literatura brasileira do século XXI, situada em gran- casa-se com o fazendeiro, porém não consegue
des centros urbanos. adequar-se ao ambiente injusto e opressivo, em
A título de contextualização, faço uma breve re- que tudo se reifica. Revolta-se contra a situação
tomada do regionalismo literário brasileiro no sécu- degradante em que vivem os trabalhadores rurais,
lo XX, ou melhor, a diferentes regionalismos, com torna-se uma voz dissonante em relação ao papel
destaque para os decênios seguintes a 1930. À tradicionalmente atribuído a uma esposa de latifun-
explosão criativa do modernismo em sua primeira diário, enfim, transgride as convenções e acaba por
fase sucederam-se obras de forte viés ideológico sucumbir tragicamente.
que empreenderam a discussão de questões regio- José Lins do Rego, com Fogo morto, focali-
nais, associadas frequentemente à desigualdade za a mesma problemática, sob a perspectiva de
socioeconômica e à precária situação do homem uma classe dominante de costumes praticamente
do campo explorado pelo latifúndio. feudais que se encontrava em plena decadência,
Escritores oriundos do Nordeste brasileiro atropelada pela chegada das usinas, o que acaba-
problematizaram as situações problemáticas que ria por eliminar os grandes engenhos como haviam
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
sido implantados desde a colonização. Ainda com literatura “urbanizada” do século XXI. A Amazônia
o Nordeste em foco, a cearense Raquel de Queirós torna-se cenário de situações dramáticas envolven-
constituiu-se em voz solitária na criação de prota- do, por um lado, relações erótico-afetivas cheias de
gonistas femininas, como Conceição, em O quinze, conflito e, por outro, ambientes sobrecarregados
ou as personagens de As três Marias, obras hoje de opressão e violência.
praticamente circunscrita aos cultores do regiona- Lavínia e Alícia são personagens transgressoras.
lismo. Seu desafio às normas de convívio que a socieda-
Na Bahia, pela pena de Jorge Amado, o regio- de habitualmente estipula para mulheres casadas
nalismo conquista um enorme público leitor, não implica um exame do modo de exposição de tais
só no Brasil como em numerosos países – basta comportamentos em âmbito teórico-crítico. Uma
mencionar as mais de setenta línguas para as possibilidade para melhor compreensão dessas
quais suas obras foram traduzidas. Temas como a personagens pode associar-se ao que postula Lélia
posse da terra, a miséria e o êxodo rural revestem- Almeida (2003) em ensaio sobre as “meninas más”.
-se de intensa “cor local”, com aspectos folclóricos Embora Almeida se refira especificamente à litera-
que acabam por minimizar a problemática social. tura de autoria feminina, o que, evidentemente, não
O lançamento de Gabriela, cravo e canela marca se aplica a este estudo, vale ressaltar que ambas
uma grande inovação, com o protagonismo que as figuras apresentam “o questionamento das
Amado proporciona às figuras femininas. Ao lado condutas e comportamentos femininos em relação
de Gabriela, alinham-se Tieta do Agreste e Teresa aos mandatos patriarcais”. São personagens que
Batista cansada de guerra, mulheres bonitas e sen- desafiam e põem em xeque os preceitos de uma
suais que, – como tantas personagens na extensa ordem social que as precede. Sua atitude remete
produção de Jorge Amado –nascidas em ambiente à pergunta atribuída originalmente a Freud: “o que
de extrema pobreza, desenvolvem estratégias de quer uma mulher?”, mas pode encontrar origens
sobrevivência, e seus atributos físicos as levam a mais remotas na tradição literária como, por exem-
conquistar melhores condições de vida. Aparente- plo nos Canterbury Tales de Chaucer. Em um dos
236 mente emancipadas, tais personagens, na verdade, relatos, um jovem é condenado à pena de morte
permanecem submissas aos costumes machistas por ter violentado uma donzela, porém obtém um
da sociedade patriarcal, posicionam-se à margem ano para buscar a resposta à enigmática pergun-
da vida pequeno-burguesa, e em plena sujeição ao ta sobre o que é que as mulheres mais desejam.
universo masculino. Quase ao final do prazo ele encontra na floresta
Migrações internas inflaram a região sudeste uma megera que oferece a ajuda e sussurra-lhe a
do Brasil, no auge da industrialização ocorrida na resposta em segredo, para que ele apresente aos
segunda metade do século passado. Como resul- que o condenam:
tado, verificou-se um célere processo de urbaniza-
ção, com a explosão populacional que persiste até [...] “Majestade, de modo geral”, disse ele, “o
hoje nos grandes centros urbanos. Como a ficção que as mulheres mais ambicionam é mandar
literária acompanhou o processo, multiplicaram-se no marido, ou dominar o amante, impondo ao
obras de temática urbana: a vida nas favelas, nos homem a sua sujeição. Ainda que me mate,
conjuntos habitacionais de baixa renda ou ainda digo que é esse o seu maior desejo. Vossa
nos condomínios de luxo, sempre afetada pela de- Majestade agora pode fazer comigo o que
sigualdade e violência, temática sempre marcada quiser: estou a seu dispor” (Chaucer, 1988, p.
por diversas formas de violência. Tais problemas 153).
agravaram-se com o advento da pós-modernidade,
em que indivíduos vagam pelas metrópoles em
busca da própria identidade, impossível ante a Assim ele se salva, com uma resposta absolu-
ausência de vínculos familiares ou sociais. Tais pro- tamente discutível, mas a questão atravessou os
blemas não são exclusivos da massificação urbana séculos e ainda inquieta o mundo masculino. Mui-
pós-moderna, pois manifestam-se igualmente em tas das personagens femininas contemporâneas
cidades pequenas ou vilarejos, como se observa vivem suas trajetórias contrapondo-se, consciente
em Eu receberia as piores notícias..., em Cinzas ou inconscientemente, às antigas normas da boa
do Norte e em tantas outras narrativas. Ao optar educação, segundo as quais as mulheres, acima
pelo regionalismo, abordando, todavia, problemas de tudo, deviam casar-se, ser boas donas-de-casa,
similares aos dos grandes centros, Aquino e Ha- mães perfeitas e incansáveis, bondosas, submis-
toum criam ficções que permanecem à margem da sas e cordatas. As duas personagens em estudo
respondem de maneira ambígua à inesgotável
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
da de longa data em Manaus, também para Marçal AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias
Aquino, que nasceu e vive em São Paulo, a milha- dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das
res de quilômetros de distância do Estado do Pará. Letras, 2005.
O espaço ficcional, semelhante em sua concretude CHAUCER, Geoffrey. Os Contos da Cantuária.
nos dois romances, difere no registro – tradicional (The Canterbury Tales). São Paulo: T.A. Queiróz,
e quase intimista em uma das narrativas, melo- 1988.
dramático em outra. Também difere o modo como EL-KADI, Aileen. “Perversos melodramas. Marçal
cada uma das figuras femininas se vincula à cida- Aquino, 2005”. In www.brasa.org/portuguese/con-
de grande: Em Cinzas do Norte, Alicia tem o Rio gressos/brasa_x_portuguese.html (2011)
de Janeiro como objeto de desejo, ao passo que
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo:
Lavínia, em Eu receberia..., não tem a mais remota
Companhia das Letras, 2005.
intenção de retornar à cidade de Vitória, palco de
experiências amargas em sua infância e adolescên-
cia. No mesmo sentido, violência e erotismo per-
meiam ambas as narrativas de diferentes maneiras.
Em Cinzas do Norte, a escrita regionalista às vezes
se reveste de intimismo, com a sobrepsição da
vivência psicológica e emocional às contingências
do meio. Em Eu receberia..., a violência difusa das
primeiras páginas cresce e se materializa, a ponto
de desaguar em episódios de extrema gravidade
para indivíduos e coletividade.
Ambas as obras particularizam-se pela forma
cuidadosa com que constroem personagens
femininas densas, sedutoras, capazes de alterar os
240 destinos dos homens que por elas se apaixonam.
São verdadeiras musas que têm raízes na interface
da literatura com outras artes, outras mídias e tam-
bém com a cultura de massa. Em Cinzas do Nor-
te, Alicia pode ser compreendida como uma das
“meninas más” teorizadas anteriormente, ou ainda
como sucessora da femme fatale do romance ou
do filme noir. Em Eu receberia..., o casal protago-
nista está indissoluvelmente associado à fotografia,
com a música e a literatura inserindo-se em sua
convivência, além de alusões a cultura de massa,
como observa El-Kadi. Transgressoras, Alícia e
Lavínia rejeitam o papel que costumeiramente se
atribui às mulheres. De suas transgressões pode
resultar a ruína, para Alícia, ou a redenção, para
Lavínia.
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Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Representações da mulher em
obras de Ana de Castro Osório
e Maria Archer:
a (des)construção do estereótipo
Armanda Bouzy
Université de Nice Sophia Antipolis, França
Resumo: Nos anos 20 e 30, na grande maioria das capitais europeias, surge
um novo modelo feminino. Com efeito, o período que segue a primeira guer-
ra mundial marca uma ruptura no estereótipo feminino. Durante a guerra, as
mulheres viram-se na obrigação de efectuar tarefas até então reservadas aos
homens; depois da guerra, elas reivindicam um estatuto mais adaptado à sua
nova posição na sociedade. Pouco a pouco, tudo muda no comportamento da 241
mulher, ela conquista cada vez mais domínios reservados essencialmente aos
homens. Será que em Portugal, país pouco industrializado que viveu a guerra
de 14-18 de maneira menos cruel, este novo tipo feminino vai conseguir repre-
sentar um papel na sociedade? Não esqueçamos que Portugal foi submetido
a uma forte restrição das suas liberdades logo em 1926, com a ditadura militar,
e a partir de 1933, com o Estado Novo. Apesar de um clima pouco propício ao
desenvolvimento da liberdade das mulheres, duas escritoras marcam forte-
mente esta primeira parte do século XX: Ana de Castro Osório e Maria Archer.
Já em 1095, Ana de Castro Osório, uma das principais militantes do primeiro
movimento feminista português, exorta as suas congéneres a adquirir a in-
dependência pelo trabalho. Por sua vez, a escritora e jornalista, Maria Archer,
descreve nos seus romances esta nova mulher que reivindica uma liberdade
intelectual, mas também física e sexual. Marietta, personagem da novela «Ida
e volta duma caixa de cigarros» de Maria Archer, surge como a incarnação
deste desejo de liberdade física, rejeitando primeiramente o carcan do ves-
tuário feminino e assumindo ostentatoriamente uma nova liberdade sexual.
Como sublinha Augusto de Castro no seu livro Sexo 33, a mulher não hesitou
em talhar as saias pelos joelhos e cortar o cabelo e “nesse momento viu ao
espelho que a distância física que a separava do homem, era mais pequena
do que ela supunha”*1. Mas será que a flapper ou a garçonne que penetraram
na sociedade e na literatura portuguesa com a alcunha de “joãozinho” vão
conseguir impor, através da obra de Ana de Castro Osório e de Maria Archer,
um novo modo de pensar, de ser e de agir, rejeitando para sempre o estereóti-
po do eterno feminino?
* Augusto de Castro, Sexo 33 ou a Revolução da Mulher, Lisboa, Editora Empresa Nacional de Publicidade, p. 160.
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
No início do século XX, no campo da literatura culina e do papel representado pela sociedade,
portuguesa de autoria feminina, destacam-se dois a família, a Igreja... Daí que muitas feministas o
grandes nomes que pouco têm interessado a crí- tenham acusado de ter aplicado a sua teoria “a um
tica literária: Ana de Castro Osório e Maria Archer. objeto cujo desenvolvimento teórico já estava muito
Ana de Castro Osório (1872-1935), grande figura da mais avançado do que o construído por seu campo
vida política, literária e social de Portugal, manifes- analítico” (Scavone, p. 182). O fato de Bourdieu não
tou muito cedo interesse pelas ideias republicanas mencionar todo este trabalho efetuado, levou Mi-
participando na fundação da Liga Republicana das chelle Perrot a afirmar que algumas pesquisadoras
Mulheres Portuguesas. A sua luta para a defesa ressentiram isso como uma falta de consideração
dos direitos das mulheres foi manifesta e levou-a a reveladora da dominação masculina (1998, para.
trabalhar com o Dr Afonso Costa, então Ministro da 4). Porém, alguns trabalhos acadêmicos de cunho
Justiça, sobre “a nova lei do divórcio, que concedia feminista referem-se aos conceitos de Bourdieu,
os mesmos direitos ao marido e à mulher, tanto principalmente àqueles “relacionados a dominação,
para os motivos de divórcio como nos direitos poder e violência simbólica, a trabalho e a condi-
sobre as crianças” (Tavares da Silva & Vicente, n.d., ções de sua reprodução [...] para o entendimento
p. 79)1. da permanência da dominação masculina.” (Scavo-
Maria Archer (1899-1982), “autodidacta e viajada” ne, p. 182).
(Lopes de Oliveira, 1981, p. 73), viveu em Mo- Neste livro, Bourdieu recorre a sua pesquisa
çambique, Guiné, Angola e Brasil (Batista, 2007), etnográfica sobre a sociedade cabila para explicar
colaborou em diversas revistas e jornais e escreveu a dominação que o homem exerce sobre a mulher.
inúmeros romances, novelas e peças de teatro. A sociedade cabila, ordenada segundo o princípio
Toda a sua produção literária e jornalística apresen- da superioridade masculina, é assim apresentada
ta conteúdos relacionados com a mulher, a família, como uma espécie de “arqueologia do nosso in-
a educação, a história portuguesa e colonialista. consciente” (Uceda Betti, 2011, p. 1). A partir de um
A posição da mulher na sociedade e na família caso específico, Bourdieu elabora uma teoria geral,
242 prima na obra destas duas escritoras. Ana de Cas- mas será que essa teoria se aplica a todas as so-
tro Osório e Maria Archer, seguindo o conceito de ciedades independentemente do grau de evolução
mimesis, expõem nos seus romances e novelas a de cada uma delas? Será que o critério histórico
pintura de uma sociedade em movimento na qual a e geográfico não é determinante da problemática
mulher deseja ocupar o lugar que lhe fora até então abordada?
recusado. No romance e nas novelas objeto deste estudo
O corpus é composto pelo romance Mundo coabitam dois tipos de mulheres: o primeiro tipo é
Novo (1927?) de Ana de Castro Osório, e pela co- a mulher tradicional que não somente aceita mas
lectânea de novelas que constituem Filosofia duma também reproduz o modelo falocrático; o segun-
mulher moderna de Maria Archer (1950), assim do tipo é a mulher em plena mutação, aquela que,
como pela novela da mesma autora, “O Inglês”, consciente de ter recebido uma educação aliena-
integrada na coleção Há-de haver uma lei (1949). dora, decide construir a sua vida de modo diferen-
Mundo Novo é um romance em grande parte epis- te. Esta nova mulher, tal como a define Alda Cor-
tolar no qual a heroína, Leonor, parte para o Brasil, reia, é “associada a uma busca da individualidade,
levando com ela a ideologia da nova mulher num a um desejo de realizar o seu potencial como ser
meio social marcadamente português. humano em pé de igualdade com o homem.” (2001,
Nossa proposta é identificar a maneira como p. 1).
estas duas escritoras apresentam a mulher e exa- A mulher dominada é descrita como um ser
minar como Ana de Castro Osório e Maria Archer inferior que o poder masculino conseguiu subme-
constroem ou desconstroem o estereótipo da ter espiritual e fisicamente. As estruturas de do-
mulher aplicando à própria sociedade uma análise minação do homem sobre a mulher baseiam-se,
crítica. segundo Bourdieu, na reconstrução de esquemas
Para tal, apoiar-nos-emos no ensaio de Pierre profundamente ancorados na nossa sociedade.
Bourdieu A dominação masculina (2002). Este livro Estes esquemas são reproduzidos “pelos agentes
não é propriamente fundador da sociologia femi- específicos (entre os quais os homens [...], com
nista; antes de Bourdieu numerosas pesquisadoras suas armas como a violência física e a violência
demonstraram a importância da dominação mas- simbólica) e instituições, famílias, Igreja, Escola,
Estado.” (2002, p. 23a).
1 Nas citações deste artigo serão respeitadas a ortografia, a pontuação e a Tanto Ana de Castro Osório como Maria Archer
acentuação dos textos originais
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
sublinham a parte importante da educação que existência” (1928, p. 66)2, mantém a adolescente, e
constitui uma espécie de mediação entre o indiví- mais tarde a mulher, numa posição de submissão.
duo e a sociedade. Os dois veículos da educação Esta posição alienadora, imposta à mulher desde
são a família e a estrutura escolar. As ideias incul- os primeiros anos da sua vida, é reforçada pelo
cadas por estas duas instituições podem ser ou fato da educação escolar ser transmitida dentro do
alienadoras ou produtoras de equilíbrio e estabili- círculo familiar, sob a dependência direta da mãe.
dade. Na sociedade portuguesa do início do século Na novela de Maria Archer, “Dez raparigas alen-
XX, a formação das raparigas era feita essencial- tejanas”, o narrador comenta: “quanto às filhas era
mente pela mãe; ora esta, enquanto dominada, vai mister acompanhar os tempos e dar-lhes também
transmitir aquilo que lhe foi transmitido a ela pró- educação. Prendadas, mas honestas, e mulheres
pria, conforme a asserção de Bourdieu: “Os domi- de sua casa mais que tudo. Por isso veio para elas
nados aplicam categorias construídas do ponto de uma mestra de Beja [...]” (Archer, n.d., p. 232). Logo
vista dos dominantes às relações de dominação.” a seguir, a escritora põe habilmente em paralelo
(2002, p. 23a). A filha acaba por ser o duplo da a educação dada ao outro sexo: “os rapazes, os
mãe: “o regresso à mãe é um fascinante regresso irmãos, andavam por Lisboa e Coimbra, nos estu-
ao mesmo, ou mais propriamente à mesma” (Di- dos, e só nas férias apareciam em casa.” (Archer,
dier, 1981, p. 26). A educação conferida pela mãe n.d., p. 232-233). Conforme o sociólogo francês, o
constrói assim esquemas de ação e de pensamen- rapaz é submetido a um “rito de separação” (2002,
to, chamados por Bourdieu de habitus, que conse- p. 17b) que tem por função “emancipar um menino
guem ser transmitidos de geração em geração de com relação à sua mãe e garantir sua progressiva
maneira inconsciente. A mulher submissa, incapaz masculinização, incitando-o e preparando-o para
de se aperceber da submissão, seria uma espécie enfrentar o mundo exterior” (2002, p. 17b).
de ser inferior, sem inteligência própria para rejei- O rapaz adquire a independência graças à
tar a dependência. Esta fatalidade que pesa sobre distância que o separa da mãe, enquanto a rapa-
o destino das mulheres contrariou fortemente as riga permanece prisioneira duma educação que a
feministas cujas críticas recaíram sobre o ensaio de impede de se libertar; a mãe, responsável pela sua 243
Bourdieu (Louis, 1999; Sousa, n.d.). formação, torna-se a carcereira da própria filha.
A educação das raparigas encontra-se então O psicanalista americano, Erik H. Erickson (1980),
legitimada pelas próprias mães que conferem constata que, ao contrário do rapaz que vai tomar
às filhas uma educação tradicional. As meninas rapidamente consciência da diferença dos sexos, a
pertencentes à boa sociedade estudam “piano e rapariga só poderá atingir esse nível de consciência
francês” (Archer, 1950, p. 91) e aprendem a ser há- quando cortar o vínculo com aquela que reflete a
beis donas de casa. Assim, Bia –heroína de “Up do sua própria imagem, ou seja a mãe. Esta mesma
date”, novela de Maria Archer– “Sabia mandar nas ideia encontramo-la em Psychanalyse et Féminis-
criadas, cozinhar, fazer doces, bordar. As senhoras me; segundo Juliet Mitchell, a família é o lugar “que
da família gabavam-na.” (1950, p. 91). A mesma produz a psicologia inferiorizada da feminilidade, e
temática surge em Mundo Novo quando a heroína, que legitima a exploração económica e social das
Leonor, confessa à sua amiga: mulheres (as esposas e as mães não têm qualquer
independência económica ou jurídica).” (1974, p.
–Com essa custosa educação sem finalidade, 18)3
que minha mãe proclamava perfeita e comple- Se Julia Kristeva afirma que existe “uma mode-
ta, adquirira, apenas, o conhecimento super- lação du psiquismo da menina, depois da mulher,
ficial das línguas francesa e inglesa, com o através das noções de passividade, de submissão,
bastante de alemão para ler sem compreender para que ela ocupe o segundo lugar” (Rodgers,
[...]. De resto... umas luzes gerais sobre artes e 1998, p. 200)4, ela não nega a existência, contra-
sciências vagas, como é de uso indispensável riamente a Pierre Bourdieu, “do fator biológico por
numa menina de boa condição [...]” (p. 20). um lado e por outro lado do insconciente” (Rod-
(Castro Osório, n.d., p. 103). dificilmente a liberdade. Esta só pode ser adquirida
Mas, nesta sociedade portuguesa da primeira ou pelos estudos que dão acesso ao trabalho, ou
metade do século XX, as raparigas só podem ad- pelo amor compartilhado em plena fusão física e
quirir o estatuto de esposas se forem virtuosas. A sentimental.
menor suspeita de leviandade fá-las perder o valor As análises de Pierre Bourdieu, baseadas na
simbólico, conforme um princípio enunciado por cultura cabila, encontram resonância na socieda-
Bourdieu: de portuguesa tradicional da primeira metade do
século XX, aquela que rejeita o acesso ao divórcio
que nega à mulher a possibilidade de estudar, de
As mulheres são valores que é preciso conser-
trabalhar, em suma de efetuar qualquer tipo de
var ao abrigo da ofensa e da suspeita; valores
atividade física ou inteletual que lhe permita abrir o
que investidos nas trocas, podem produzir
espírito e rejeitar os habitus. Porém, como afirma
alianças, isto é, capital social e aliados pres-
Mariza Corrêa, estas análises aplicadas a uma so-
tigiosos, isto é, capital simbólico. Na medida
ciedade em plena mutação tornam-se caricaturais,
em que o valor dessas alianças, e portanto o
visto “os estereótipos da lógica ocidental” (n.d., p.
lucro simbólico que elas podem trazer, depen-
2) começarem a ser postos em causa. A submissão
de, por um lado, do valor simbólico das mu-
deixa de ser uma fatalidade, pode ser aniquilada
lheres disponíveis para a troca, isto é, de sua
graças essencialmente à instrução e ao trabalho.
reputação e sobretudo de sua castidade [...].
(p. 29a) Na novela “Up do Date”, Maria Archer conta o
caso de Bia, menina oriunda duma família abas-
tada, destinada a casar, desde a escola primária,
Na novela de Maria Archer, “Cavalleria Rustica- com o primo Quim. Enquanto Bia permanece junto
na”, a Jorja, acusada de ter tido relações sexuais da família e recebe a instrução mínima das meninas
com um rapaz, torna-se imediatamente sua pro- de boa condição, Quim parte para Evora e depois
priedade “porque o ato sexual em si é concebido para Lisboa, para se matricular na Escola Politécni-
pelos homens como uma forma de dominação, de ca. A separação com o meio social e com a família, 245
apropriação, de posse.” (Bourdieu, p. 14b-15a). Ra- afasta-o irremediavelmente da sua namorada. A
zão pela qual os pais defendem de maneira quase ruptura torna-se efetiva quando o rapaz encontra
“paranóica” aquilo que consideram ser o principal Helsa, encarnação da Mulher Moderna. Ambos
bem atribuído ao sexo feminino: a castidade. frequentam a mesma Escola e compartilham a
Se a perda da virgindade, na província arcaica, paixão do desporto. A rapariga exerce sobre Quim
condena irremediavelmente a mulher, nas gran- uma sedução mais inteletual que física: “Helsa era
des cidades, o dinheiro reabilita-a. Maria Archer uma rapariga quase feia, desportiva, máscula, mas
sublinha que o dinheiro reveste a mulher de todas inteligente e muito pessoal. Filha de ingleses, nas-
as virtudes, imprimindo-lhe nova virgindade. Por cida em Lisboa, tirava o seu curso para trabalhar.”
conseguinte, quando Safira, a personagem femini- (Archer, n.d., p. 93).
na de “Labirinto”, se torna proprietária, os homens Face à traição do namorado, Bia, com a cum-
deixaram de ver nela plicidade da avó, decide reagir matriculando-se no
colégio, fazendo desporto e tirando a carta. É o
a aventura momentânea mas a possível espo- trauma do abandono amoroso, que vai transformar
sa –a esposa que pode manter a casa. Arran- ideologicamente a personagem dando-lhe a possi-
jou depressa outro noivo e fez um casamento bilidade de conquistar a liberdade. Novamente, é o
aparatoso que encheu de raiva e de inveja as homem que se encontra na base da construção da
raparigas que não são proprietárias e a quem, mulher; mas, desta vez, trata-se de uma constru-
por falta do trono da propriedade, os homens ção positiva que permite à rapariga passar de uma
exigem virtudes. (n.d., p. 257) atitude passiva a uma atitude ativa tanto a nível do
intelecto quanto do corpo. Desta forma afasta-se
definitivamente do princípio aristotélico segundo o
Esta hipocrisia masculina é um tema recurrente qual a mulher é um “homem incompleto” (Ribeiro
na obra de Maria Archer. Nas novelas “Emprego de Ferreira, n.d., p. 143), um ser passivo e receptor,
capital”, “Dez raparigas Alentejanas” e “Um Inglês”, enquanto o homem seria um ser ativo e dador.
o dinheiro exerce um forte poder de atração sobre A disciplina imposta ao corpo faz com que Bia
o homem. Todavia, se o dinheiro imprime ao sexo perca rapidamente dois quilos e comece a usar
feminino uma certa respeitabilidade, ele confere calças. Enquanto mulher moderna, Bia age de ime-
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
diato sobre aquilo que marca mais profundamente, Como Bia ou Annie, que obtêm a independên-
segundo Bourdieu, a sua situação de subalterna cia graças respetivamente à avó e ao pai, Leonor
em relação ao homem: conquista a liberdade graças à tia que lhe facilitou
o acesso à cultura. D. Barbara possuía, segundo a
sobrinha, um espírito “esclarecido e cheio de tole-
Todo o trabalho de socialização tende, por
rância para todas as ideias novas” (Castro Osório,
conseguinte, a impor-lhe limites, todos eles
n.d., p. 117). Contrariamente ao que afirma Bour-
referentes ao corpo, definido para tal como sa-
dieu, a “vontade particular” de certas personagens
grado, h’aram [...]. A moral feminina se impõe,
facilita o acesso à emancipação sem que uma pro-
sobretudo, através de uma disciplina inces-
funda transformação das forças simbólicas tenha
sante, relativa a todas as partes do corpo, e
necessariamente ocorrido. A mulher teria então a
que faz lembrar e se exerce continuamente
faculdade de sair individualmente dos habitus e até
através da coação quanto aos trajes e aos
mesmo de os contrariar.
penteados. (p. 18b-19c).
As duas escritoras revelam-se assíduas mili-
tantes da causa feminina, mas a escrita de Maria
Usando calças, Bia deixa o corpo livre e rejeita Archer é mais aberta relativamente à liberdade
as estruturas sociais que o mantinham encerrado. sexual da mulher. Em “Um Inglês”, a escritora não
Como evidencia justamente Bourdieu, a saia tem hesita em descrever uma rapariga totalmente livre,
“uma função semelhante à sotaina dos padres” (p. não somente intelectualmente mas também se-
19b), ela “impede ou desencoraja alguns tipos de xualmente. Com o apoio do pai, de origem inglesa,
atividades (a corrida, algumas formas de se sentar, Annie assume sem preconceitos a sua sexualidade.
etc.)” (p. 19b). Graças à transformação do vestuário Nesta novela, a autora critica abertamente a socie-
e ao desporto, a mulher vai aceder a outra imagem dade portuguesa através das palavras do pai da
corporal, pois Bourdieu considera que jovem heroína: “–Isso de ficar desonrada por actos
alheios é uma ideia portuguesa, fora de moda no
246 resto do mundo... Não vou estragar o futuro da
[...] a prática intensiva de um determinado
esporte determina nas mulheres uma profun- Annie para dar satisfação aos preconceitos de
da transformação da experiência subjectiva e certa gente antiquada...” (Archer, 1949, p. 137). O
objectiva do corpo: deixando de existir apenas pai opõe-se assim à mãe que, quando soube da
para o outro ou, o que dá no mesmo, para o gravidez da filha, emitiu o desejo, para salvaguar-
espelho [...], isto é, deixando de ser apenas dar as aparências, de a condenar sobre o altar da
uma coisa feita para ser olhada [...], ela se con- honorabilidade.
verte de corpo-para-o-outro em corpo-para- As personagens femininas de Ana de Castro
-si-mesma [...] (p. 41b-42a). Osório não reivindicam um tipo de sexualidade sem
tabus, mas sim uma liberdade jurídica e uma credi-
bilidade profissional. A escrita de Maria Archer se-
Em Mundo Novo, a transformação da nova ria então mais feminina que feminista7 visto, como
mulher é mais moral que física, Leonor consegue afirma Dina Botelho, a literatura feminina não ter
impor-se num mundo de homens, sem todavia
passar pela transformação física que caracteriza
as heroínas de Maria Archer. O tio confessa que a por objectivo a reivindicação. Pretende, antes,
sobrinha, Leonor, deve “ser tratada com o respeito mostrar uma realidade que não deveria exis-
e com a mesma franqueza com que se tratam os tir. Uma realidade dura e degradante para a
homens inteligentes.” (Castro Osório, n.d., p. 115). A mulher. Defende a melhoria das condições da
protagonista feminina de Mundo Novo afasta-se to- mulher, face à vida em geral e à sua actividade
talmente da tese de Bourdieu que consiste em afir- profissional, mas fá-lo subjectivamente e de
mar que, quando as mulheres ocupam posições de forma pouco aguerrida. (Botelho, 1994, p. 21)
poder, a sua situação é duplamente crítica e inso-
lúvel, “se atuam como homens […], elas se expõem Ana de Castro Osório, considerada como uma
a perder os atributos obrigatórios da feminilidade das primeiras feministas do nosso país, expõe
[...] se agem como mulheres, parecem incapazes e a situação da mulher na sociedade portuguesa,
inadaptadas à situação.” (p. 42a). Leonor contradiz mas também brasileira, não hesitando em criticar
esta asserção, pois ela consegue ser feminina e
respeitada num mundo de homens. 7 Sobre este tema, ler Luiza Lobo, “Literatura de autoria feminina na América
latina” (n.d.)
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
abertamente esta sociedade que oprime o sexo enquanto tal, modifica o mundo e a si mesmo num
feminino. Na primeira carta que escreve à sua constante pôr de novo, criando novas necessida-
amiga Regina, Leonor confia acerca de Portugal: des e possibilidades [...]” (n.d., p. 2). Esta afirmação
“Ahi, concordo, há muito que fazer para alimentar o da mulher enquanto ser social que apavora o ho-
pêso enorme da injustiça e crueldade atávica, que mem, porque constitui uma ameaça ao seu poder
esmaga a consciência feminina” (Castro Osório, divino. Assim, ao pai que a desafia dizendo que é
n.d., p. 14). Para aliviar o sofrimento da mulher, o o homem que assume o trabalho e “os encargos
divórcio surge como um recurso indispensável, mais pesados”, Antonina, rapariga com ideias pro-
Leonor confessa que “para a sua idiosincracia nem fundamente feministas, responde:
sequer era motivo de dúvidas, em qualquer socie-
dade organizada legalmente.” (p. 92)
–Sim, Papá! É por nós compreendermos que é
Contrariamente às personagens femininas de injusto que essa responsabilidade e esse tra-
Filosofia de uma mulher moderna e de “Um Inglês”, balho pesado carregue todo sobre os vossos
Leonor leu “em revistas e jornais estrangeiros tudo hombros é que reclamamos a nossa parte,
quanto reflete, duma forma mais ou menos sim- para lhes facilitarmos a missão!... Mas... para
patica, a questão social a que, impropriamente, se os compensar queremos dar-lhes participa-
convencionou chamar feminismo.” (p. 21). O seu ção nas vantagens e honras da nossa realeza
militantismo feminista leva-a a afirmar: doméstica... (Castro Osório, n.d., p. 103)
mais forte e mais serenamente autónoma, como se Castro Osório e Maria Archer, rejeitam o molde da
as nossas almas estivessem organizadas de modo opressão, escapando assim aos habitus descritos
a viverem a par, numa perfeita e completa comu- por Bourdieu. Elas põem em relevo certas estrutu-
nhão, sem absorção.” (p. 279). Leonor e Bernardo ras arquetípicas referentes à feminilidade para me-
conseguiram aceder a essa profunda felicidade lhor as destruir. Estas duas figuras marcantes da li-
que é dada pelo encontro de duas almas gêmeas. teratura feminina ousam contrariar a representação
Relembremos o mito grego que indica que, após convencional, falocêntrica, da sociedade, apresen-
ter criado um ser duplo –metade homem metade tando nos seus romances e novelas mulheres em
mulher–, Zeus, para castigar a criatura por ele for- busca da independência. Elas têm em comum um
mada, decidiu separá-la. Daí que para estas duas desejo profundo de libertar o sexo feminino da jaula
personagens o amor seja mais que o sexo, é antes onde a família e a sociedade as colocou.
de tudo uma união espiritual. Em “Up to date”, o O romance de Ana de Castro Osório e as nove-
narrador, sem dúvida emissário das ideias de Maria las de Maria Archer revelam-se um excelente veí-
Archer, sublinha igualmente que a atração que o culo para apresentar imagens da nossa sociedade
Quim sente pela Helsa é mais intelectual que física: poucas vezes utilizadas pelo historiador. Em todas
as obras das autoras, a representação feminina
A Helsa era o seu complexo integral, de corpo surge como uma crítica à sociedade portuguesa
e alma, era a mulher companheira do homem, e, no caso de Maria Archer, àquele que a domina:
igual ao homem, era a mulher dos seus so- Salazar. A escritora foi fortemente molestada pelo
nhos. Via nela a Mulher ideal dos romances regime salazarista, com a apreensão pela PIDE de
estrangeiros, dos filmes estrangeiros, a mulher dois livros e do manuscrito que relatava o processo
por quem ansiara, anos e anos, através do seu de Henrique Galvão. Mundo novo de Ana de Castro
noivado infantil. (n.d., p. 94) Osório, Filosofia de uma mulher moderna e Há-de
haver uma lei de Maria Archer são portanto obras
profundamente militantes criadas num determinado
248 A escritora insiste sobre a ideia que a nova mu- momento da história, contra a ideologia patriarcal.
lher é mais comum no estrangeiro do que em Por-
tugal, país no qual o ideal do “eterno feminino” –tal Bibliografia
como o descreve Júlio Dantas no seu livro epónimo
Archer, M. (n.d.). Filosofia duma mulher moderna.
(1929)– continua profundamente ancorado na so-
Porto: Simões Lopes.
ciedade. Não esqueçamos que Portugal foi subme-
tido a uma forte restrição das suas liberdades logo Archer, M. (1949). Há-de haver uma lei... Lisboa:
em 1926, com a ditadura militar, e a partir de 1933, Edição da autora.
com o Estado Novo. Elisabeth Batista relembra que Balzac, H. de (1891). La Physiologie du mariage.
“Maria Archer foi escritora e jornalista durante os Paris: Calmann-Lévy.
anos em que o Estado Novo queria a mulher em Batista, E. (2007). Entre a Literatura e a Impresa:
casa. A situação portuguesa na altura era franca- Percursos de Maria Archer no Brasil. Tese apresen-
mente hostil a expressões do pensamento crítico tada à Faculdade de Letras da Universidade de São
[...] e, sobretudo, advindas de uma mulher.” (n.d., p. Paulo. Recuperado em 15 abril, 2012, de http://w
6). ww.teses.usp.br/teses/.../tde-13022008-103921/
Bourdieu salienta a importância do papel do Batista, E. (n.d.). Entre o Índico e o Atlântico:
Estado na reprodução da divisão dos géneros, ci- Incursões literárias de Maria Archer. Recuperado
tando como casos extremos os “estados paterna- em 15 abril, 2012, de http://www.fflch.usp.br/dlcv/
listas e autoritários (como a França de Pétain ou a revistas/crioula/.../02.pdf
Espanha de Franco), realizações acabadas da visão Botelho, D. (1994). “Ela é apenas mulher”, Maria
ultraconservadora que faz da família patriarcal o Archer Obra e Autora. Dissertação de Mestrado:
princípio e modelo da ordem social como ordem Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciên-
moral, fundamentado na preeminência absoluta cias Sociais e Humanas.
dos homens em relação às mulheres” (p. 52b). Bourdieu, P. (2002). A dominação masculina (M.
Nesta citação Bourdieu poderia perfeitamente ter H. Kühner, Trad.) 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand
incluído o Portugal de Salazar. Brasil. Recuperado em 12 maio, 2012, de http://
Se bem que as mulheres se encontrem “encerra- www.scribd.com/.../Bourdieu-Pierre-A-Dominacao-
das em uma espécie de cerco invisível” (Bourdieu, -masculina (obra original publicada 1998).
2002, p. 20b), algumas escritoras, como Ana de Castro Osorio, A. de (1905). Ás Mulheres Portu-
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
(Ana Cruz)
As escritoras Maria Firmina dos Reis (século encantado de Grongonzo (1992), Obsceno aban-
XIX); Carolina Maria de Jesus (meados do século dono: amor e perda (2002), de Marilene Felinto;
XX); Conceição Evaristo e Marilene Felinto (final do Ponciá Vicêncio (2003), Becos da memória (2006),
século XX e início do XXI) têm mais em comum do de Conceição Evaristo. O intuito é evidenciar os
que o sexo, o gênero e a raça: são escritoras afro- elementos que as tornam próximas ou distantes
-brasileiras em cujos textos há uma representação umas das outras. E, mais importante, detectar, na
literária da mulher negra que possibilita uma leitura medida do possível, indícios da trajetória histórica
além da literatura, isto é, nas obras dessas autoras, e social da mulher negra na literatura e sociedade
é possível ler, simbolicamente, entre outros aspec- brasileira, através da sua representação literária
tos, o que seria a vida social, literária, econômi- nas obras daquelas autoras.
ca... das mulheres negras na sociedade brasileira. Contudo, ao falar de possíveis aspectos seme-
Sendo assim, o objetivo deste trabalho é trazer à lhantes e/ou distintos quanto à representação na
tona os aspectos semelhantes e distintos quanto obra de qualquer autor/a não é possível ignorar
à representação da mulher negra nas suas obras, certos aspectos como, por exemplo, distâncias
quais sejam: Úrsula e o conto “A escrava” (2004), temporais, históricas e a subjetividade inerente a
de Maria Firmina dos Reis; Quarto de despejo: cada ser humano. Devido a estes aspectos, óbvio
diário de uma favelada (1960), Carolina Maria de que uma das diferenças entre aquelas autoras está
Jesus, As mulheres de Tijucopapo (1982), O lago relacionada à escrita de cada uma, como não po-
*Este texto é parte dos resultados da minha tese de doutorado defendida em deria deixar de ser. Maria Firmina dos Reis escre-
agosto de 2011, na Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação veu em uma época na qual a literatura estava aten-
da Profª Drª Simone Pereira Schmidt.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
dendo a certos propósitos como, por exemplo, solitárias dentre todas as personagens das quatro
a construção de uma identidade nacional, o uso escritoras, devido, principalmente, à solidão que as
da liberdade de expressão dentro de um gênero cerca.
literário relativamente novo: o romance. Como ela Contudo, apesar do distinto contexto e estilo nos
possuía uma boa formação intelectual, tinha, desta quais estão inseridas, algo as torna próximas: a
forma, conhecimento da convenção literária de sua representação das mulheres negras, pois, entre ou-
época, natural então que sua literatura fosse escri- tros aspectos, todas elas (autoras) trazem nos seus
ta o mais próxima possível do estilo literário vigente respectivos discursos narrativos, a representação
naquele período. Pode-se dizer que Maria Firmina de uma mulher negra consciente do seu estar e ser
dos Reis assimilou o modelo literário da época, no mundo. Contudo, cada personagem vai viven-
contudo foi um pouco além e utilizou-o não como ciar isso de uma determinada forma, pois estão
forma de ratificar uma identidade nacional, mas intrinsecamente sujeitas à sua respectiva história
como arma para denunciar a chaga social, política pessoal. As personagens Susana e a escrava, am-
e econômica daquele momento: a escravidão. bas de Maria Firmina dos Reis, assim como a pro-
A literatura de Carolina Maria de Jesus, por tagonista de Quarto de despejo, de Carolina Maria
sua vez, está inserida em um contexto social e de Jesus, e Ponciá Vivencio, de Conceição Evaris-
literário denominado de terceira fase modernista to, são e estão representadas na narrativa como
(1945-1960), partindo do princípio de que Quarto pessoas conscientes da sua pouca ou nenhuma
de despejo: memórias de uma favelada foi escrita valorização na sociedade. Por isso, são pessoas
antes de 1960, ano da sua publicação. Já desde a introspectivas, tristes, possuidoras de uma revolta
primeira fase do Modernismo, a literatura brasileira contida. Entretanto, estão, cada uma a seu modo
buscou por novos caminhos quanto à forma de se e possibilidades, tentando reverter a sua condição
expressar, principalmente no que se refere ao as- enquanto mulher e mulher negra, exceto a escrava
pecto da linguagem. Dando continuidade a esses Susana. Contudo, o sistema político, social e eco-
novos caminhos, na terceira fase, as produções nômico as aniquila ao longo da caminhada. Mas,
literárias se diversificam, são feitos experimentos nesse ponto, a questão temporal agirá sobre o 251
linguísticos através de novas técnicas de expres- destino de cada uma dessas personagens. O tem-
são (Guimarães Rosa, Clarice Lispector) e gêneros po histórico-social de Carolina Maria de Jesus e de
literários vão conviver (um gênero não predominará Conceição Evaristo permitirá a suas personagens
sobre o outro). sonhar, ter esperança. Em Ponciá Vicêncio , “por-
Já a contemporânea Conceição Evaristo se que enquanto o sofrimento estivesse vivo na me-
encontra num período privilegiado, pois, aparente- mória de todos, quem sabe não procurariam, nem
mente, aqui se escreve o que se quer e no formato que fosse pela força do desejo, a criação de um
desejado. A liberdade de expressão, contudo, outro destino”2. Já com a protagonista de Quarto
esbarra no caráter fragmentado1 do sujeito con- de despejo, porque indiferente à fome, à violência
temporâneo e, muitas vezes, na própria fragmenta- das favelas, um novo dia sempre amanhecia e com
ção da narrativa. Em Becos da memória e Ponciá ele o “1 de janeiro de 1960”3 , 1970, 1980....
Vicêncio, por exemplo, personagens fragmentados A mesma sorte, entretanto, não coube à Susa-
buscam reafirmar e/ou conquistar sua identidade na e à escrava, pois o contexto histórico dessas
humana, de raça, de gênero (não no sentido de personagens não permitia que escravos tivessem
construção social). muito com o que sonhar, exceto com a liberdade.
Embora dividindo com Evaristo a contempo- Por isso, no século XIX, no qual estão inseridos
raneidade, Marilene Felinto, por outro lado, tem a obra Úrsula e o conto “A escrava”, o sistema
um único compromisso: com o eu subjetivo das escravocrata vence, aniquilando quaisquer possibi-
personagens. Este eu que fala/grita tudo o que lidades de ser e estar para as personagens Susana
as personagens de Reis não podem falar, grita e a escrava Joana. À primeira coube uma “escura e
por toda fome e injustiça social educadamente úmida prisão” onde a deixaram “entregue aos ver-
denunciada por Carolina de Jesus e, além disso, mes, à fome e ao desespero”4 até morrer. Mesmo
extravasa todas as angústias e frustrações sufo- fim teve a escrava Joana, mas esta foi mais ousa-
cadas no âmago das personagens de Conceição da, porque “antes que a morte (lhe) cerre os lábios
Evaristo. Mas mesmo gritando, na verdade, talvez para sempre”5ela pede para falar, pois quer “morrer
por que gritem para o nada e ninguém em especial, 2 EVARISTO, 2003, p. 103.
as personagens de Felinto são as mais infelizes e 3 JESUS, 1960, p. 182.
4 REIS, 2004, p. 225.
1 HALL, Stuart (2001). 5 REIS, 2004, p. 225 (parêntese meu).
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
o porquê da ausência desse novo item ‘excluidor’ fará o favor de apaixonar-se por mim?”17, pois sabe
na literatura de Maria Firmina, no século XIX, em não ter o padrão de beleza estabelecido e sabe
pleno sistema escravocrata. Porém, a condição de que isso é, pelo menos, uma das causas da sua
escrava não impede, muito pelo contrário, acaba solidão.
colocando Susana e a escrava Joana em uma Das vozes ouvidas aqui, pode-se concluir,
espécie de “entre mundos”, no qual, a lembrança/ portanto, que as poucas dissonâncias entre elas
memória/cultura seria o mecanismo com o qual advêm da distância histórica e temporal, como não
ratifica sua identidade, mas, ao mesmo tempo, poderia deixar de acontecer. Já as ressonâncias,
inconscientemente, poderia ser também o meca- isto é, os aspectos em comum quanto à represen-
nismo através do qual, Susana, em específico, tação da afro-brasileira nas quatro escritoras, elas
reivindicaria para si um pertencimento a um grupo/ têm desafiado ao tempo, pois as desigualdades
mundo que, exceto pelo lado da memória, não sociais, de gênero e raça ainda existem até os dias
mais lhe pertenceria. atuais, por exemplo.
Portanto, a denúncia de Carneiro sobre a he- Diante de todos os aspectos expostos aqui e
gemonia da ‘branquitute’, citada acima, vem ao devido a algumas dissonâncias, para uma melhor
encontro da situação de Ditinha, doméstica e anal- compreensão da mulher negra na sociedade e na
fabeta funcional que, ao pensar nas belas roupas, própria literatura, poder-se-ia separar sua trajetória
joias e nos bonitos sapatos da patroa, olhou-se histórica, literária, social e humana em três fases
no espelho e se sentiu “tão feia, mais feia do que cujas características são distintas. A primeira fase,
normalmente se sentia”14, pois sugestionada pela na qual Maria Firmina dos Reis e seus textos estão
visão do outro (no caso a sua patroa branca), ao se inseridos, diz respeito ao período no qual as mu-
olhar no espelho, enxergou-se com os olhos desse lheres negras, de forma generalizada, não tinham
outro. Em outras palavras, a beleza que via na quaisquer atenções, qualquer consideração da
patroa a cegou para quaisquer aspectos belos que sociedade brasileira (além do aspecto de merca-
trazia em si, pois não viu refletido no espelho nada doria valiosa), pois não existiam enquanto pessoa,
que se assemelhasse à beleza alva da patroa. Daí apenas como objeto de propriedade particular. Já 253
a constatação de ela não ser um modelo de bele- a segunda fase, na qual se encontra Carolina Maria
za, pois não possuía nada do que a patroa de Jesus, a situação social da mulher negra sofreu
tinha – nem em beleza física, muito menos em poucas alterações, muito embora o fim da escravi-
bens materiais. Muito provavelmente, mas de forma dão já tivesse completado mais de cinquenta anos
inconsciente, foi o fato de se defrontar com essa e um novo sistema de governo também. Nesta
‘verdade’ socialmente introjetada que o desejo de fase houve uma ‘anulação’ distinta da primeira,
roubar, no sentido metafórico e literal do termo, pois elas (mulheres negras) não apenas tinham
um pouco da beleza física e material da patroa uma existência real, eram cidadãs livres – para
nasceu, por isso “colocou a caixinha de jóias na ir e vir. Porém, na intimidade era uma existência
terceira prateleira; mas, antes, porém, apanhou a ‘real’ na medida em que sua presença servia à
pedra verde, tão bonita, tão suave, que até parecia sociedade enquanto mão-de-obra, isto é, a mulher
macia.[...]. Ditinha colocou o broche no peito, só negra era boa para os serviços domésticos. Afora
que do lado de dentro do peito [...]. A pedra não era isso, sua invisibilidade social tornava sua exis-
tão macia assim, estava machucando-lhe o peito15. tência praticamente nula. Mas como ela era uma
Machucava porque não era da sua índole apro- cidadã livre – e considerada ‘boa para os serviços
priar-se de coisas alheias e, além disso, “Ditinha domésticos’ –, ela adquiria, nesta situação, a sua
gostava muito de D. Laura”, em contrapartida, “D. visibilidade social, pois os meios para adquirir essa
Laura gostava muito do trabalho de Ditinha”16. mão-de-obra pediam caminhos e ‘jeitos’ distin-
Devido a essas desigualdades afetivas, econô- tos daqueles do tempo da escravidão, visto que
micas e, principalmente por saber não correspon- não era mais possível comprá-las em mercados
der ao padrão de beleza pré-estabelecido é que, abertos e nem mantê-las onde elas não quisessem
por outro lado, ‘Maria Doidinha’ curva-se, único trabalhar. Sendo assim, a sociedade, necessaria-
momento, sob o peso de (pré)conceitos físicos e mente, enxergava-a e é por isso que a ‘anulação’,
não foge à indagação: “quem fará o favor? Quem neste período, torna-se distinta da primeira fase. A
fará o favor de olhar para a minha cara feia? Quem outra forma de a sociedade enxergá-la, tornando-
-a visível dentro do contexto social, era quando a
14 EVARISTO, 2006, p. 93. sua presença, por um motivo ou outro, tornava-se
15 EVARISTO, 2006, p. 99.
16 EVARISTO, 2006, p.94. 17 FELINTO, 2002, p. 80.
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
incômoda, isto é, quando a mesma ousadamente abertura estas mulheres ainda encontram muitas
aparecia em ambientes nos quais era ‘proibida a dificuldades, tanto de ordem econômica quanto
entrada de negros’, por exemplo. de gênero e raça dentro da sociedade. Contudo,
Em se tratando da literatura, no período cor- a mulher negra neste terceiro momento está (re)
respondente à Carolina M. de Jesus, a situação escrevendo sua história nas literaturas e na socie-
pouco se alterou, pois embora tenha sido dada dade brasileira. Esta (re)escrita tem denunciado
visibilidade para as personagens femininas negras, que a trajetória da margem até o centro (já que o
essa visibilidade não chegou além do exterior das centro é algo que a sociedade capitalista nos im-
mesmas, isto é, das mãos, braços e pernas, enfim põe e do qual, por isso, não podemos nos livrar) ou
do corpo: instrumento necessário para a realização suas proximidades é lenta, pois a ‘abertura’ muitas
dos serviços da casa e da ‘cama’ – na concepção vezes se confessa utópica ou se revela como uma
da sociedade e, muitas vezes, refletida na litera- miragem. Por isso, uma das formas encontradas
tura. Tudo isso, portanto, colocaria a mulher negra para atravessá-la se resume a ir ‘comendo pe-
em um contexto no qual existe sim a ‘anulação’ las beiradas’, isto é, ir buscando mecanismos de
da sua pessoa enquanto indivíduo, cidadã, mas sobrevivência alternativos para atingir os objetivos.
que se realiza sob condições sociais distintas Neste processo ainda árduo, dadas as muitas ad-
que, entre outras coisas, permite-lhe ser política e versidades seculares, a mulher negra vai realizando
socialmente livre – embora ainda não reconhecida, o que na atualidade se denomina como ‘inclusão’19.
respeitada e valorizada. Na literatura, em muitos casos, inserindo-se nesse
Em relação à terceira fase, a mesma compreen- campo através da união de grupos de escritores
de os anos 80 do século passado até a atualida- como, por exemplo, o Quilombhoje ou com uma
de, por isso é preciso considerar a proximidade literatura de escre(vivência)20. Enfim, fazendo-se
desse período como um elemento complicador, visível na sociedade e literatura enquanto sujei-
pois falta um distanciamento que proporcione uma to e objeto de sua escrita, enquanto portadora
certa neutralidade a qualquer julgamento. Contudo, de um discurso feminino negro... Por tudo isso,
254 nesta fase, na qual Conceição Evaristo e Marilene esse momento pode ser caracterizado como o
Felinto estão inseridas (de 1980 a 2011), é possível do movimento para dentro de uma sociedade na
lançar algumas assertivas. Uma delas diz respeito qual nem sempre sua pessoa se fez presente. Ou
às últimas décadas onde termos como anulação, seja, fase do movimento para dentro da sociedade
intolerância, por exemplo, não devem nortear pen- literária, dos discursos acadêmicos, dos discursos
samentos e atitudes, porque já há algum tempo políticos, sociais... E/ou pode ser também a fase do
movimento no qual se quer negar para reivindicar
existe em relação ao pobre uma nova atitude, algo, isto é, fase da negação de uma socieda-
que vai do sentimento de culpa até o medo. de que se autodenomina democrática, negação
Nas caricaturas dos jornais e das revistas o de ‘verdades’ construídas para elas, negação de
esfarrapado e o negro não são mais temas que somos mulheres cujos anseios, cujas reivin-
prediletos das piadas, porque a sociedade dicações são iguais aos da mulher branca só por
sentiu que eles podem ser um fator de rom- sermos do mesmo sexo, entre outras tantas nega-
pimento do estado de coisas, e o temor é um ções. Fase esta na qual o movimento para dentro,
dos caminhos para a compreensão.18 isto é, o movimento de ingressar, inscrever, inserir-
19 ‘Inclusão’ pode ser compreendido como sendo o “fechamento, encerra-
Mais que o temor, creio que lembranças de mento de alguma coisa dentro de outra”, segundo Bueno (1988, p. 1888),
um passado sangrento, desumano na história da semântica que neste contexto não explica a mobilidade e a existência de uma
independência que advogamos ao longo deste trabalho. Ainda nesse viés,
humanidade, aliado a uma propagação de discur- se lermos IN – CLU – SÃO por partes silábicas, pode-se obter os seguintes
sos conscienciosos sobre o respeito às diferenças significados: in = entre, em; club = sociedade, associação; são = que tem
contribuem para as mudanças de hoje, isto é, a saúde, saudável. Ao pé da letra, inclusão pode ser lida, então, como estar
sociedade contemporânea tenta remendar e não dentre aqueles que são saudáveis, se a sílaba ‘clu’ estiver relacionada ao
repetir erros passados e, é fato, há uma grande termo club, do inglês e são remeter ao vocábulo sadio. É uma possibilidade
(ainda que gramaticalmente pouco fundamentada aqui) que, de qualquer
parcela da sociedade disposta a viver e deixar forma, dá ao vocábulo inclusão um peso que não quero trazer para esta
viver, a respeitar para ser respeitada, felizmente. terceira fase da mulher negra na sociedade brasileira. Principalmente porque
De qualquer forma, neste contexto surgiu, ainda na sociedade brasileira, o termo inclusão está muito associado à inclusão das
que com ressalvas, uma abertura para nós mulhe- crianças portadoras de alguma deficiência nas escolas regulares, isto é, nas
escolas onde estudam os alunos ‘normais’ (sadios aos olhos da sociedade,
res negras. Ressalvas porque para alcançar esta em oposição aos ‘não normais’ - os portadores de deficiência, os ‘doentes’
aos olhos da sociedade. Por isso trouxe a palavra entre aspas simples.
18 CÂNDIDO, 1995, p. 238. 20 Termo utilizado por Conceição Evaristo
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
-se passa, parece que necessariamente, pelo ca- sociedade e literatura brasileira. Refletir e se posi-
minho do imigrar. Imigrar para dentro de si, para o cionar, de preferência antes que “bip-bip-bip-bip...
passado. Por isso, talvez, a literatura afro-brasileira [...]. Tempo esgotado” porque “a vida é cruel”25. E
tenha esse olhar voltado para o passado e para o no ínterim de um século para outro, de uma déca-
interior de si e suas reminiscências. Linguistica- da para outra estereótipos já foram criados, sofri-
mente, este é o caminho da inserção, da inscrição, mentos impingidos e outras senzalas criadas, pois
enfim, do movimento que nós leve a um lugar/espa- para os (e porque) vivos o tempo não para – para
ço de direito. nada, nem ninguém.
Quanto às literaturas das escritoras dessas três
fases, em particular as que foram estudadas aqui, Referências Bibliográficas
mesmo sendo literaturas distintas, posto que estão BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicioná-
inseridas em fases, em períodos literários e estilo rio etimológico – prosódico da língua portugue-
de escrita distintos, seus discursos ultrapassam sa. São Paulo: Editora Lira S.A., 1988. v.2 e 4.
as barreiras temporais e revelam um legado entre-
CÂNDIDO, Antonio. O direito à literatura. In:
meado de ressonâncias, denunciando o quanto e
CÂNDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São
como gênero, raça e classe têm conduzido e torna-
Paulo: Duas Cidades, 1995.
do distinta a vida das mulheres negras. E se estas
ressonâncias têm invadido os séculos, insistir, CARNEIRO, Sueli. Gênero, democracia e socie-
portanto, nos aspectos racistas, discriminatórios, dade brasileira. In: BRUSCHINI, C. UNBEHAUM,
machistas que permeiam as relações de gênero e S.G. (orgs.) Gênero, democracia e sociedade
raça e, consequentemente, classe no Brasil ainda brasileira. São Paulo: Ed. 34, 2002.
é a única forma possível de reverter o legado que EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo
o tempo deixou: os estereótipos depreciativos que Horizonte: Mazza Edições, 2003.
têm colocado a mulher negra, em muitos casos, _____. Becos da memória. Belo Horizonte:
em uma situação de exclusão profissional e/ou Mazza edições, 2006.
social e/ou afetiva. Por isso, estão, no amor, na FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopa- 255
“[...] eterna busca, busca de um lugar que não po. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
seja o de amante fogosa, mas da mulher que ama _____. O lago encantado de Grongonzo. 2.ed.
e quer ser amada” de acordo com a historiadora Rio de Janeiro: Imago, 1992.
Fabiana Schleumer21. Mas quase sempre terminam _____. Obsceno abandono: amor e perda. Rio
social e literariamente solitárias, pois já dizia ‘Maria de Janeiro: Record, 2002.
Doidinha’, “ hoje é sábado de noite no silêncio da
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo:
minha casa, e estou pondo roupa no varal como se
diário de uma favelada. 2. ed. São Paulo: Editora
fosse qualquer outro dia deste mês [...]. Dia, noite,
Paulo de Azevedo Ltda., 1960.
segunda, terça, tanto faz.. Estou só22.
REIS, Maria Firmina. Úrsula. Ilha de Santa Cata-
Reverter todo este contexto, contudo, não tem
rina: Ed. Mulheres, 2004.
data, nem tempo certo. O certo é jogar palavras,
reflexões no tempo presente, acreditando que o
tempo futuro saberá traduzi-las e (re)escrevê-las.
Isso, porém, não quer dizer que se chegou ao fim
de um problema secular: a situação social dessa
mulher. Aliás, “a quantas mil milhas será que es-
tou? A 250? Faltará parte ainda?”23
Seguramente sim, visto que “a paisagem que eu
trouxe pintada na folha em branco [...]” não “virou
uma revolução”24, já que não era essa a proposta.
Mas, por outro lado, essa “paisagem” rabiscada
aqui possibilita que reflitamos, entre outras coisas,
sobre quem é, onde e como está a mulher negra na
(2003:231). Não há nada de exagero em dizer que A desconstrução dos estereótipos sobre a
as imagens apresentadas nas obras literárias mulher na obra de Ponciá Vicêncio
podem influenciar ou definir o comportamento das Depois de muitos anos de opressão feminina,
pessoas na sociedade. É esse poder da linguagem alguns autores engajados na luta contra a opres-
na literatura que serve como uma arma de naturali- são feminina e a má representação da mulher na
zação das imagens estereotipadas da mulher. sociedade e nas obras literárias começam a revol-
Lucia Marilena Guidicini contesta essa idéia do tar contra essa situação. Eles usam a única arma
espaço privado como o âmbito natural da mulher. que têm, seu poder intelectual, para reconstruir a
Ela explica que isso é uma forma de deformação imagem da mulher na sociedade através de uma
machista da realidade em defesa dos próprios imagem criada fora de estereótipos. O foco dessa
interesses e de monopólio do espaço público. Tam- tentativa é incentivar a nova imagem da mulher
bém critica a ausência de acesso das mulheres às na sociedade, também para ajudar na mudan-
atividades profissionais. Ela chama isso de um es- ça de comportamento feminino e na percepção
tratagema para evitar a participação das mulheres que o povo tem da imagem da mulher. A análise
que possam sair muito melhor do que os homens da imagem das mulheres nas obras literárias é
(1987:87). Por isso, toda mulher tem que sair desse muito importante no campo acadêmico do femi-
padrão patriarcal. Arnfred Signe (2011:33) também nismo. Principalmente para mostrar que alguma
comenta sobre essa falta de oportunidades para coisa está errada na representação da mulher, e
as mulheres no espaço público em seu estudo das por outro lado, denunciar as imagens estereoti-
mulheres moçambicanas, o que vale para todas padas da mulher na literatura. Além disso, Davies
as mulheres. Para ela, as mulheres são poucas no (1986:14-15),comenta que isso torna-se uma forma
espaço público não porque elas são incapazes de de contestar a representação deformada que a
atuar nessa área, mas porque as regras patriarcais maioria dos autores masculinos fazem da figura
já confinam-nas na vida domestica2. Tudo isso feminina, desmascarando seu machismo e, às ve-
nos leva a repensar a representação da mulher na zes, seu racismo contra a mulher.. Quase sempre,
sociedade, e a pensar como se pode desnaturalizar as representações feitas das mulheres nas obras 257
os estereótipos naturalizados sobre a imagem da literárias são baseadas no estereotipo. Criticando
mulher tanto na sociedade como nas obras literá- a naturalização dos estereótipos sobre a mulher,
rias. Francineide, F.(2008:3), afirma, “...os estereótipos
A luta das feministas e o avanço de estudo de de gênero atravessaram os tempos e naturalizam
gênero, têm o foco de emancipação feminina. Des- a diferença entre o masculino e o feminino como
de os anos ’70, logo após e resultando da revolu- se essa visão social e cultural que varia a depender
ção de 68, muitas feministas da primeira geração já da civilização, época e povo, fosse uma caracte-
haviam proclamado a desconstrução dos estereó- rística biológica”4. Em muitos casos, a mulher é
tipos sobre a mulher. (algumas precursoras d(esse) vista como a provocadora das relações sexuais, ou
gênero mais conhecido como) feminismo descons- seja, atribui-se-lhe um papel ativo na vida privada,
trucionistas dos anos de 70 são Virginia Woolf, Julia principalmente do tipo ilícito, enquanto ela é apre-
Kristeva etc. Perrot, (2007:15) descreve a mudança sentada como um ser necessariamente passivo
que aconteceu depois desse período assim, no espaço público. Afirmando essa noção na sua
análise de algumas obras literárias brasileiras, Cris-
... A partir desse período a história das mulhe-
tina Ferreira Pinto descreve a imagem da mulher
res mudou em seus objetos, em seus pontos
na maioria das obras literárias como um mito da
de vista. Partiu de uma história do corpo e dos
feminilidade:
papéis desempenhados na vida privada para
chegar a uma história das mulheres no espaço Even Works that depict Brazilian social reality,
público da cidade, do trabalho, da política, da critically, or with irony, such as Manuel Antônio
guerra, da criação. Partiu de uma história das de Almeida`s popular novel Memória de um
mulheres vítimas para chegar a uma história sargento de milícias, fails to significantly de-
das mulheres ativas, nas múltiplas interações viate from stereotypical portrayal of women. In
que provocam a mudança3 reality Memórias defines some of the myths of
feminity that will be pervasive in Braziliancul-
ture throughout the twentieth century. These
2 Arnfred Signe, Sexuality and Dender Politics in Mozambique. Rethinking
Gender in Africa. James Currey, Boydell & Brewer Ltd, UK. 2011:33 myths are concerned particularly with the
3 http://www.portalsaofrancisco.com.br/ Depoimento de Conceição Evaristo
concedido a Eduardo de Assis Duarte,em 2 de março de 2006., Acesso 4 Palmeira Francineide Santo, Souza, FLorentina da silva. “Representações
em:03 de fevereiro, 2012. de Gênero e Afro-descendência na obra de Conceição Evaristo” 2008:3
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
female body and sexuality and with marriage corpo de Gabriela, já se vê desde o início da obra
as the institution that sets the boundaries for que o autor quer eternizar a noção popular da ‘mu-
women`s social action.5 lata boa-de-cama’. De fato, esse preconceito racial
promovido por Jorge Amado confirma a afirmação
de Eliana Guerreiro Ramos Bennet de que existe no
Efetivamente, a estereotipação da mulher denun- Brasil um mito sobre a sexualidade da Mulata. Isso,
ciada por Cristina Ferreira Pinto é evidente na cons- ela demonstra com maestria na sua análise da si-
trução da mulata Gabriela projetada na obra de tuação da mulher afro-brasileira no texto “Gabriela,
Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela e de Rita Cravo e Canela: Jorge Amado and the Myth of the
baiana em O Cortiço, de Aluisio Azevedo e tantas Sexual Mulata in Brazil” na qual ela assim descreve
outras obras literárias brasileiras. esse preconceito racial, “In Brazil, there developed
Como afirma Lucia Marilena Guidicini, o machis- the ideology of `Mulata` by which woman of colour
mo é considerado como terreno de confronto e are mythologized as both less than human and over
conflito pelas feministas. É nessa crítica ao machis- sexual”7.
mo e outras formas da ideologia construída pela Na realidade, vejo a situação da mulher afro-
instituição patriarcal que as feministas encontram -brasileira pior que isso. A mulher afro-brasileira
as raízes da humilhação e de todo o preconceito sofre de uma tripla condenação - ela é inferiorizada
contra as mulheres. A mulher é condenada a ser ao homem; ela é condenada ao espaço privado
subordinada ao homem enquanto ser homem é si- e ainda estigmatizada como modelo hiper-sexual
nônimo de poder. Virginia Woolf sugere uma abor- como é o caso de Gabriela e de Rita Baiana.
dagem desconstrutiva do binarismo que aprisiona
os sexos em pólo opostos regido pela relação de
poder. (Apud, Eduardo de Assis Duarte, 2003:442) Conceição Evaristo e a criação de Ponciá
Vicêncio
Quer não, a imagem estereotipada da mulher
nas obras literárias faz parte dos produtos desse Falar da autora de Ponciá Vicêncio é também
258 binarismo. Para todas feministas, é necessário falar da obra por causa da experiência da infância
desconstruir a imagem estereotipada da mulher, da autora que faz parte dos temas desenvolvidos
esvaziando todo o discurso preconceituoso do na obra. A autora, Conceição Evaristo nasceu
machismo para que as mulheres possam melhorar em 1946, numa favela situada no alto da Avenida
de auto estima e disputar o espaço público a pé de Afonso Pena, hoje uma das áreas mais valoriza-
igualdade com os homens. das da zona sul de Belo Horizonte. A mudança
social e estrutural que tornou sua área que era de
Outro elemento histórico que a gente não pode
barracos e favelados para uma avenida de altos
deixar de salientar nessa obra é a questão de
prédios deixou a autora a guardar tudo que havia
preconceito racial que existe na sociedade brasi-
vivido antes dessas mudanças na memória afetiva.
leira. Por questão histórica, a mistura das raças na
Essa memória foi re-consultada depois de mui-
sociedade brasileira não se produziu sem proble-
tos anos para produzir muitas obras que servem
mas entre os componentes da população. De fato,
para conscientizar os afro-descendente sobre a
o mito da democracia racial é um disfarce para
sua herança cultural e identidade racial. Autora de
esconder a segregação e discriminação racial na
muitas obras literárias, a obra Ponciá Vicêncio foi
sociedade brasileira. Esse preconceito racial é visto
seu primeiro romance e foi indicado ao vestibular
como uma sombra que percorre e atormenta a
da UFMG em 2008. A mesma obra foi publicada
sociedade brasileira até os dias de hoje. A noção
recentemente em Inglês. A autora condena a for-
comum relacionada à raça e gênero é concebida
ma pela qual o discurso histórico tenta esconder
nessa noção de que a mulher branca é para casar,
os feitos e as contribuições de negros africanos
a mulata é para fazer amor e a negra para cozinhar.
para a construção do Brasil. Ela citou várias obras
Essa noção da mulata boa-de-cama é exibida
literárias tais como os romances de São Bernardo
nas personagens de Gabriela e Rita Baiana dos
de Graciliano Ramos e Agosto de Rubem Fonse-
dois autores já citados, o que denuncia o racismo
ca como exemplos de textos em que os negros
latente dos autores. Começando pelo sentido do
existem como personagens, mas sem ter o direito
próprio título da obra de Jorge Amado, Gabriela,
à fala. Denunciando tal silenciamento, ela pergunta:
Cravo e Canela6 que é relacionado ao aroma do
7 Eliana Guerreiro Ramos Bennett na sua análise de ``Gabriela, Cravo e Ca-
5 Cristina Ferreira Pinto, Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century nela: Jorge Amado and the Myth of the Sexual Mulata in Brazil``In The African
Brazilian Women`s Literature. Purdue University, 2004:15 Diaspora, African Origins and NewWorld Identities. Ed. Isidore Okpeweho,
6 Cravo e Canela referem-se ao aroma do corpo de Gabriela que Nacib Carole Boyce Davies & Ali A. Mazrui. Indiana University Press, U.S.A. 1999,
aprecia e que ele não consegue esquecer depois do divórcio. p.232
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
“...O que uma ficção que cria personagens sem fala de uma infância perdida.
está construindo? ...A literatura brasileira nega a
presença negra na constituição da nacionalidade A voz de minha avó
brasileira?...”8A sua arte é muito diferente, ela pro-
ecoou obediência
cura alterar as imagens estereotipadas da mulher
nas suas obras, apresentando a realidade das aos brancos donos de tudo.
mulheres afros-descendentes desde a sua própria e
experiência como mulher negra, sofrida e oprimida fome...10
que precisa ser vindicada. Como ela mesma ana-
lisa no seu trabalho intitulado “Da representação e
Ponciá Vicêncio, defensora do saber familiar
auto-representação da mulher negra na literatura
brasileira”(Apud, Francineide et al, 2008: 53): A historia e a memória de um povo se forma a
partir da convivência do povo junto com sua ex-
...Uma leitura mais profunda da literatura periência em um período. Nessa reprodução de
brasileira, em suas diversas épocas e gênero memória de um povo, os velhos, principalmente os
nos revela uma imagem deturpada da mulher avôs são considerados os guardiões da memorial
negra. Um aspecto a observar é a ausência familiar. Nesse papel de mediador da memorial os
de representação da mulher negra como mãe, mais novos se encontram com os eventos mar-
matriz de uma família negra, perfil delineado cantes da historia de seu povo e de sua família,
para as mulheres brancas em geral... 9 tirando as morais necessárias para suas vidas.
Essa corrente de contar uma história ou mostrar a
A tentativa de mudar as imagens estereotipadas maneira de fazer uma coisa para uma nova gera-
da mulher liderar a criação de uma protagonista ção pela velha geração faz parte da cultura oral do
forte e corajosa na sua obra de Ponciá Vicêncio, povo africano, a origem dos afros-descendentes.
dando uma imagem valorizada para essa perso- Segundo Amanda Dal’Zotto Parizote, “os avós são
nagem. O ambiente cultural e memorial em que a considerados figuras fundamentais para a análi- 259
autora cresceu, com a mãe que valoriza a herança se da representação da família e se configuram
cultural africana ajudou-a bastante na criação das como responsáveis pela manutenção do valor
suas obras ficcionais. Sua biografia mostra como a família”11Essa colocação confirma a atuação de
mãe, Dona Joana, sempre conta as historias para Conceição Evaristo na criação de sua obra. Ela re-
os pequenos depois do trabalho de lavar e passar produz as histórias narradas por sua mãe nas suas
roupas que ela fazia. A mãe ainda pediu a autora narrativas. Aline Alves Arruda (2007:11) descreve
e outros para escrever muita dessas historias em essa obra como “...uma historia narrada com alta
caderno grafado a lápis. Seguindo no mundo, ela dose de lirismo e com marcas culturais...”, essa
deparou-se com a sociedade que não lhe deu idéia de Aline mostra como a autora valoriza sua
outra oportunidade senão para ser doméstica. A herança negra.
autora exercia este mesmo ofício enquanto sonha- Pensando na historia da humanidade e toda
va em estudar. evolução que acompanham o povo por muitos sé-
Apesar de toda a dificuldade enfrentada pela culos, o poder de saber e de contar a historia ficam
autora quando se dispôs a estudar, a sua formação nas mãos dos homens. Raramente acha-se uma
da infância e a exigência da mãe severa colaboram mulher na liderança de tal empreendimento. O
para o sucesso de seu desempenho literário. Em lugar de liderar é sempre reservado por os homens,
1990 foi publicado o primeiro poema de Conceição sendo eles capazes de funcionar nesse cargo ou
Evaristo em Cadernos Negros, Numero 13. E seu não. Graças à luta dos movimentos das mulheres
poema “Vozes-mulheres”, foi uma produção lite- e das feministas a partir dos anos de sessenta
rária na qual ela demonstra a sua ligação com sua que dá um novo olhar para a situação da mulher
herança memorial. com isso a mulher começa a aparecer em algumas
A voz de minha bisavó ecoou obras literárias em nova imagem de valor tal como
Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo.
criança
A obra Ponciá Vicêncio (2003) tem o foco de
nos porões do navio.
relatar e denunciar os eventos históricos que preju-
Ecoou lamentos
10 Ibid, Eduardo de Assis Duarte.
8 Conceição Evaristo, informe@quilombhoje.com.br. Acessed: Dimanche 29 11 Amanda Dal’Zotto Parizote “Literatura, história: Fronteiras instáveis” In
avril 2012, 20h37 Mulher e Literatura:, Historia, Gênero, Sexualidade. Org. Cecil Jeanine Albert
9 Ibid, Francineide et al: 53 Zinani, Salete Rosa Pezzi dos Santos. Caxias do Sul, RS. Brasil. 2010:41
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
dicam os afros-descendentes na época da pós- ...O que havia com aquela menina? Primeiro
-escravidão. Presente no contexto textual da obra andou de repente e com o todo jeito de avô...
e dos temas tratados, a denuncia da opressão e a agora havia feito aquele homenzinho de barro,
dominação enfrentada pelos trabalhadores afros- tao igual ao velho. Ela havia enrolado o trabalho
-descendentes nas fazendas dos brancos nessa guardando-o no fundo do caixote. E mesmo assim,
época e a desconstrução dos estereótipos sobre parecia que la de dentro saia ora risos-lamentos,
a mulher, o que deixa a obra a ser considerada ora choro-gargalhadas. O que fazer com a criação
um romance de denuncia. A protagonista Ponciá da filha? Sim era ele, igualzinho! Como a meninia
Vicêncio consegue reconstruir seu destino a través se lembrava dele? Ela era tão pequena quando
do saber familiar e sua coragem de dar um novo o homem fez a passagem. Como, então, Pon-
rumo à sua vida. Ela demonstra uma coragem forte ciá Vicêncio havia guardado todo o jeito dele na
e uma sensibilidade focada à união familiar e às memória?...13
relações familiares.
Maria José Somerlate Barbosa no prefácio da Mas diferente do que a mãe pensava, a herança
obra descreve a protagonista, Ponciá Vicêncio familiar maior que ela herdou de avô é o foco de
como uma agente memorial que conecta a cultura mudar a situação de seu povo, a luta pela liber-
e a memorial familiar do passado com o presen- dade. Nessa obra, conseguimos acompanhar a
te. Ponciá é de uma família simples e humilde, trajetória da vida da protagonista que mostra sua
o pai trabalha com o irmão de Ponciá em uma determinação de mudar a sua vida para o melhor.
fazenda do Coronel Vicêncio e a mãe trabalha Nesse caminho nada chega para ela de bandeja,
com a criação dos objetos feitos de barro. A arte ela começa a ter dificuldades consigo próprio,
familiar que a mãe de Ponciá passa para ela. Ela começando com o próprio nome que carrega.
trabalha com a mãe no trabalho de barro e esses Remi Sonaiya (2010), pensando nos obstáculos que
objetos passam a ser vendidos na fazenda pelo afrontam um povo na luta pela liberdade nos lem-
pai de Ponciá. Quando a mãe de Ponciá embar- bra que o caminho da liberdade nunca é fácil. Su-
260 ca na viagem em buscar de seus filhos, Ponciá gere a coragem e persistência do povo na luta pela
e Luandi que foram para a cidade, ela encontra liberdade, “Freedom will never be handed to us on
suas obras de barro e de filha em cada povoação a platter; it is a people’s desire for and insistence on
que ela passa, “E nessa andanças, em cada lugar freedom that compels and propels them to wrest
que passava, encontrava os trabalhos de barros it from the hands of whoever their oppressor might
feitos por ela e pela filhas”.12Até na cidade, Luandi, be.”14Mesmo sabendo que o caminho de liberdade
o irmao de Poncia também encontra o trabalho nunca é fácil, Ponciá Vicêncio coloca a esperança
da mãe e de irmã em uma exposição, com seus e a determinação como seus guias de caminho.
nomes grifados nesses trabalhos. Essa descoberta A luta pela sua identidade começa desde crian-
dos trabalhos de barro das duas mulheres na obra ça. Cada vez que a sua mãe manda-a buscar o
nos ponha diante da desconstrução de estereótipo barro, Poncia Vicêncio senta-se na beira do rio e
sobre a mulher, transformando Ponciá e sua mãe questiona o seu ser, o nome dela parece vazio. Ela
de mulheres passivas para mulheres produtivas no considera o sobrenome “Vicêncio” como um estig-
espaço publico. Mostrando também a valorização ma que refere à herança da escravidão. Porque o
do poder econômico da mulher na sociedade e o sobrenome da família “Vicêncio” é também o nome
reconhecimento da mulher como a preservadora de Coronel, o branco. Ele é o dono da fazenda
da memória familiar. onde todos os homens da sua família trabalham.
Ponciá sempre demonstra seu afeto para sua Por isso o nome sempre traz para ela uma sensa-
família. Na sua família, a protagonista é vista como ção de opressão e dominação racial. Vemos como
alguém que carrega a marca memorial de seu avô. a autora descreve o sentimento de Ponciá sobre
Os pais de Ponciá Vicêncio continuam a estranhar seu nome:
à maneira como a menina comporta-se como o
avô, andando de braço coto igual ao avô. Com o
saber de barro, ela faz uma figura de avô de braço ... em tempos outros, havia sonhado tanto!
coto, guarda dentro de um pano na casa. Quan- Quando mais nova, sonhara até um outro
do a mãe achou o trabalho escondido de Ponciá nome para si. Não gostava daquele que lhe
Vicêncio, ela continua pensando nesse mistério da
13 Evaristo Conceição, Ponciá Vicêncio. Maza Edição, Belo Horizon-
herança familiar que a menina carrega, uma vez ela te.2003:18-19
14 Sonaiya, Remi. A Trust to Earn. Reflection on Life and Leadership in Nige-
12 Ibid, Conceição: 85 ria. Prestige Publisher, Lagos, Nigeria. 2010:41
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
deram. Menina, tinha o habito de ir à beira do mais comum era considerar todos os povos afri-
rio e lá, se mirando nas águas, gritava o pró- canos como incultos, portanto incapazes de fazer
prio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! aquilo que a epistemologia eurocêntrica classisfica
Sentia-se como se estivesse chamando outra como “ alta literatura...”17
pessoa...15 A situação dos negros na fazenda dos brancos
piora e por causa da injustiça contra os negros, o
avô de Ponciá entra na tristeza. O avô matava a
Fora desse nome que ela odeia, a memorial
mulher e tentando se matar quando o filho e outros
familiar que ela guarda a faz lembrar de alguma
conseguiram impedi-lo de tirar sua própria vida.
historia dolorosa da situação opressiva de seu
Mas ele já se havia mutilado, cortando o próprio
povo. O pai de Ponciá Vicêncio havia contado uma
braço. Por muitos anos antes de sua morte, o avô
historia de como a vida era dura para ele e o avô na
fica no delírio, às vezes grita ou dá sorriso de nada.
fazenda. No período posterior à Lei Áurea, ele ex-
Depois disso, o Coronel Vicêncio planeja tirar os
perimentava o maltrato na mão de filho de coronel,
papeis assinados para a doação de terra, com o
o coronelzinho da fazenda. O pai de Ponciá Vicên-
pretexto de ajudá-lhes a guardar esses papeis.
cio naquela época sempre ia com o seu pai, (o avô
Para ele, os negros não sabem guardar documen-
de Ponciá Vicêncio) para a fazenda com o sonho
tos. Mas o avô de Ponciá não cai nessa armadilha.
de conhecer a terra de sua família. Ele era o “pa-
Na frente de Coronel rasga o título da sua terra,
jem” para o filho de Coronel porque era ele quem
porque não queria entregá-lhe a sua terra. Tudo
brincava com o coronelzinho na fazenda. Um dia
isso faz parte da memorial familiar que Ponciá
o filho de coronel pediu para ele abrir a boca para
guarda no seu pensamento, pensa na revolta do
ele mijar dentro. Ele abriu e o coronelzinho come-
avô na luta contra a opressão racial. É nesse ponto
çou a urinar dentro de sua boca. Ele questionava
que nos conseguimos achar a herança de Pon-
a situação de liberdade do seu povo. Ele como o
cia Vicêncio – a luta pela liberdade de seu povo.
pajem de sinhô moço era também o escravo de
Ponciá segue esse caminho de ser diferente dos
sinhô moço. O pai de Poncia não entendia a situa- 261
outros, ela tomar a coragem de sair da sua terra,
ção do pai, se ele estava livre porque continuava na
Vila Vicêncio, em busca de uma vida melhor.
mesma situação de opressão, exploração e domi-
nação? O questionamento da situação precária do povo
negro na fazenda dos brancos e a insatisfação de
Considerando como a protagonista ocupa uma
Ponciá Vicêncio com o seu nome, sua identidade,
posição de mulher consciente, pronta para lu-
tem uma referencia ao tempo de escravidão e são
tar contra toda forma de injustiça podemos dizer
justificadas na experiência vivida pelo seu povo de-
que a luta pela emancipação feminina está muito
pois da escravidão. Ponciá queria uma nova identi-
presente na obra. Outra coisa que Poncia Vicêncio
dade para ela. Barro (1989) descreve o ser humano
guarda na memória é a discriminação racial contra
como um produto do meio social. Para ele, a com-
seu povo naquela época. O coronelzinho (O filho do
preensão comum dos símbolos e dos significados
Coronel Vicêncio) demonstra isso quando ensina
e a comunhão de noções que partilhamos com
o pai de Ponciá Vicêncio a aprender a ler. Para ele,
os membros social definem o caráter social das
os negros não são tão inteligentes como os bran-
memórias individuais. A través dessa participação
cos. E quando o pai de Ponciá Vicêncio consegue
de um grupo social, na reconstrução da lembrança
reconhecer as letras em pouco tempo, ele questio-
coletiva, os indivíduos conseguem reconstruir sua
na o poder de saber dos negros e pergunta o que
memória coletiva, (Apud Amanda Dal’Zotto Parizo-
o negro fazia com o saber dos brancos, “...Quando
te, 2010:30-38. Vale dizer que a memória coletiva
sinhô-moço se certificou que o negro aprendia, pa-
que Barro descreve está muito presente na vida de
rou a brincadeira. Negro aprendia sim! Mas o que
Poncia Vicêncio, e isso muda sua vida de uma me-
o negro ia fazer com o saber de brancos?...”16 Essa
nina simples, filha de um trabalhador de fazenda e
manifestação do coronelzinho confirma a coloca-
de trabalhadora de barro para se transformar numa
ção de Ayoh’Omidire (200:9), na sua análise do que
guerreira. Para uma mulher chegar nesse ponto de
chama de “Oralitura ou uma outra escrita”, ele traz
lutar contra as discriminações raciais, precisa ter
à luz a ligação entre a oralidade e a escrita dos gê-
uma coragem que a faça chegar no ponto de ser
neros literários do povo Yorubano na África, ressal-
impugnante às regras da sociedade patriarcal.
tando o preconceito europeu em relação ao povo
africano afirmando que “ ...O estereotipo europeu
17 Ayoh’OMIDIRE, F. “Yorubanidade Mundializada: O reinado oralitura em
15 Ibid. p. 16 textos yorubá-nigerianos e afro-baianos contemporâneos”. Tese de doutora-
16 Ibid, p. 14-15 mento, Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2005:9.
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
Considerando como a protagonista ocupa uma do sua forca e sua coragem. A autora descreve
posição de mulher consciente, pronta para lutar sua coragem assim, “...ela trazia a esperança como
contra toda forma de injustiça podemos dizer que a bilhete de passagem. Haveria, sim, de traça o seu
luta pela emancipação feminina está muito presen- destino...”20. Chegando na cidade toda sozinha,
te na obra. Outra coisa relacionada é a criação de sem nenhuma pessoa conhecida para a acolher,
uma nova imagem fora de discurso androcêntrico, ela dorme na frente da igreja até o dia seguinte
aquela que atua por decisão própria. Essa atitude quando ela consegue arrumar um trabalho de
confirma a colocação de Martha Narvaz e Henrique domestica na casa de uma mulher. Ela trabalha e
Caetano Nardi que convidam as feministas para fica juntando dinheiro para comprar um barraco na
fazer a desconstrução dos discursos hegemônicos perspectiva de trazer sua família para a cidade. Foi
acerca dos sexos e dos gêneros.18A final, todos os esse exemplo de coragem de Ponciá que o irmão
estereótipos sobre a mulher foram naturalizados a de Ponciá segue quando ele sair para a cidade e foi
partir das representações das mulheres nas muitas acolhido pelo soldado Nestor, um negro que ajuda
obras literárias de autoria masculina e nas imagens ele a aprender a ler e realizar seu sonho de se tor-
promovidas na sociedade, nada melhor do que nar um soldado também. Essa oportunidade de ter
criar uma personagem ativa como Ponciá. alguém para amenizar o sofrimento da cidade para
Para se torna uma mulher independente, Pon- quem é novo falta no caso de Ponciá, é ela que
ciá Vicêncio se disponha a aprender a ler. Ela se resolve sua problema sozinha.
interesse por ter um novo saber fora de saber de
barro. Até sua mãe se disponha a deixar a menina a
Ponciá Vicêncio na relação do género
aprender a ler com a esperança de que um dia ela
terá outra vida melhor. Em uma oportunidade de Pela regra, a sociedade moderna tem uma voca-
aprender com os missionários na sua área, Ponciá ção androcêntrica, ou seja, ela é centrada na figura
Vicêncio se disponha a fazer tudo para conseguir masculina. O estudo de gênero mostra como a
o novo saber. A autora descreve a coragem e o sociedade patriarcal coloca o homem como ocu-
262 desempenho de protagonista nesse período de pando o topo da hierarquia das relações homem-
aprendizagem: -mulher. O homem é considerado como o prove-
dor, o trabalhador que ocupa o espaço publico. Por
... Ponciá Vicêncio vencia as dificuldades. outro lado, a mulher tem o seu lugar marcado na
Aprendeu o abecedário, conhecia as letras sociedade, condenada ao espaço domestico que é
em qualquer lugar..., quando os padres parti- considerado natural para toda mulher, pilotando o
ram, depois de terem cumprido todos os seus fogão e cuidando da ninhada. No estudo de gênero
ofícios, Ponciá logo percebeu que não podia e jornalismo, Nincia Ribas Borges Teixeira (2012),
ficar esperando por eles para aumentar o seu explica as funções de revista na desconstrução
saber. Foi avançado sozinha e pertinaz pelas dos estereótipos sobre a mulher em seu traba-
folhas da cartilha. E em poucos meses já sabia lho de “A Nova Mulher: O estereotipas femininas
ler... 19 representadas na Revista Nova Cosmopolita.” Para
ela, “...as imagens promovidas na revista mostram
Na tentativa de conquistar a emancipação as ideologias, cultura, hábitos e formas de vida das
feminina, a autora coloca Ponciá, uma menina na pessoas em uma época...”21 A mesma opinião vale
posição de liderança deixando seu irmão, Luan- para analisar as obras literárias, elas tornam a ser
di, (que sempre acompanha o pai ao trabalho) a consideradas como o espelho da sociedade e uma
seguir o exemplo de Ponciá. É Poncia que decide fonte de entender a evolução da imagem feminina
viajar para a cidade, quebrando uma das regras na sociedade.
da sociedade patriarcal que somente os homens Na relação de gênero, a sociedade patriarcal co-
podem ocupar o lugar de liderança. Na sociedade loca o homem como aquele que ocupa a posição
patriarcal é o homem que ocupa o lugar de chefe de liderança, ele é o provedor da família, o modelo
da família, é ele que sair em busca da nova vida en- da humanidade. Por causa de sua atuação no es-
quanto a mulher fica à espera do homem em casa. paço publico, ele tem na mão o controle de poder
Acrescentando nessa troca de papel de gênero, a econômico e político. Enquanto a mulher é a outra,
menina embarca em uma viagem de três dias e três condenada ao espaço privada como dona de casa,
noites, com todo desconforto e de fome, mostran-
20 Ibid, p. 35
18 Martha Narvaz e Henrique Caetano Nardi, revista Mal estar e subjetivida- 21 Teixeira Nincia Ribas Borges, “A Nova Mulher : O estereótipos femininos
de, vol. vii – Nº 1 – Fortaleza, Mar /2007,p. 45-70. Acesso em:25 fev, 2012. representados na Revista Nova Cosmopolita. [htpp://revista.univerciencia.org/
19 Ibid, p. 25-26 index.php/versoereverso] Acesso em:03 de fevereiro, 2012.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
coroando ela na função de procriação. Essa falta trem, volta ao povoado, volta ao rio. Dizendo
de oportunidade no espaço publico para a mulher isso apanhou debaixo do banco a estatueta
a deixa de ser dependente no marido por todas do homem-barro. Pegou ainda uns panos e
necessidades financeiras. A situação se torna mais com um gesto antigo, com um modo reme-
desagradável para uma mulher quando sua função morativo de sua mãe, perguntou se não havia
biológica de mãe se torna a ser uma inibição para folhas de bananeiras secas e palhas de milho
sua ascensão social. para embrulhar o barro. Em seguida fez uma
O estudo de gênero mostra como o corpo da pequena trouxa e lentamente saiu...22
mulher pode ser um fator determinante que impede
sua ascensão social. A crítica de Simone sobre
Ponciá saia com toda determinação para a
os corpos femininos é que a mulher está sempre
estação de trem, e seu irmão que já se tornou um
ligada ao seu corpo, isso é justificada nos modelos
soldado reconhecê-la na sua ida e volta e levá-la
dados às mulheres em muitas obras literárias. Ela
para sua casa para encontrar sua mãe. A partida
critica a naturalização dos alguns estereótipos atra-
de protagonista mostra que a memória familiar
vés de conceito biológico da mulher, “o corpo femi-
se torna o objetivo maior de vida para ela, não há
nino permanecesse preso a sua imanência, o que
nenhum lugar no seu coração para a submissão
lhe deixa fora da possibilidade de transcendência”.
feminina no casamento ou para o sentimento afeti-
(Apud, Funck, Susana Boméo. 2003, SIgne Arnfred,
vo. Com isso a autora desconstrói o estereotipo de
2011:108) A mulher é sempre amarrada com seu
que a mulher é feita só para o casamento.
corpo ou com sua função materna, limitando a ao
espaço domestico sem nenhuma oportunidade de Outra coisa que vale salientar na obra é a
mostrar sua capacidade no espaço público. No denuncia de violência domestica que está presen-
caso de Ponciá Vicêncio, ela sofre de fator biológi- te na obra. Sabemos que a violência domestica
cos. A perda materna de sete filhos no casamento não é um novo tema na nossa sociedade, essa
e o sufoco de violência domestica a deixa na tris- atitude violenta já foi denunciado pelas feministas
teza, a mesma posição de tristeza que ela procura por muitos anos. Analisando a atitude de Ponciá 263
mudar. Na sua memória está a lista das mulheres diante dessa violência domestica, descobrimos
negras como Sá Ita, Durvalina e Zé Moreira, traba- que a autora mostra sua fidelidade à realidade
lhadoras domesticas que ainda sofrem por causa da condição da mulher na sociedade patriarcal.
de miséria. Por causa da discriminação racial a Através da protagonista, podemos ver a situação
mulher negra não tem outra opção a não ser o tra- da mulher que ela está silenciada pela repressão e
balho menos remunerado, tal de domestica. pela submissão feminina que percorre a sociedade
patriarcal. A apresentação das causas sociais pela
Infelizmente, a conquista de alfabetização e de
autora como a explicação para a violência domes-
trabalho na cidade pela Ponciá não a coloca fora
tica na obra não são as justificações de violência,
de estereotipo de negra pobre. E nessa situação
mas uma forma de denunciar a injustiça contra os
sofrida de Ponciá, a única coisa que faz sentido
homens afros-descendentes na sociedade brasilei-
para ela é o sonho de encontrar sua familiar. En-
ra. Isso mostra que os homens afros-descendentes
quanto muitas mulheres irão permanecer na so-
são vitimas da desigualdade social e racismo, o
lidão da perda de seus filhos, Ponciá se abre ao
que levam alguns a tornar-se violentos quando
outro caminho de felicidade. Ela sempre lembra
não querem. Para afirmar essa posição da autora,
da sua promessa de retornar a Vila Vicêncio para
Harrazini (1998:81) descreve a violência domesti-
buscar sua mãe e seu irmão. Lembrando que a
ca como a distribuição desigual do poder físico,
velha Nêngua Kainda na Vila VIcêncio a avisa que
econômico psicológico, social e sobre tudo emo-
um dia, ela vai cumprir sua herança e encontrar sua
cional do homem.23Mas para defender as mulheres
família. Um dia ela decide sair de casa em buscar
violentadas precisamos mais que essa leitura.
de sua família. Tudo que vale para ela no mundo, é
encontrar sua família e volta para o rio da sua terra. Outra analise feminista nos aconselha de tomar
A autora descreve essa cena de partida de Ponciá cuidado com toda simpatia que nós temos para
em busca de sua família: os homens quando o assunto é violência contra
as mulheres. Yvete Flores Ortiz (2003) critica essa
Um dia, depois de olha para o homem como simpatia das mulheres pelos homens violentos. Ela
se fosse não o visse, depois de tantos anos
recolhida, enterrada morta-viva dentro de 22 Ibid, p. 123
casa, Ponciá Vicêncio sorriu, gargalhou, cho- 23 Apud, Ivoneide Lima de Goias, “Violência domestica na cidade de Natal”In
rou, dizendo que sabia o que fazer. La toma o Os Poderes e Os Saberes das Mulheres: A Construção do Gênero. Org, Maria
Ferreira et al. EDUFMA, Salvador, 2001.
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
descreve a atitude das mulheres que têm simpatia gem valorizada e não estereotipada transformara a
para os homens violentos como a manifestação situação da mulher de pior para o melhor
de cultura, linguagem e ordem patriarcal. Algumas A autora, Conceição Evaristo mostra que a
mulheres escolhem o silêncio para proteger a hon- mulher também tem direito de escolhar o que ela
ra da família e outras por piedade dos homens que queria e de ter um sonho fora da vida sentimental.
sofrem de desigualdade social. Algumas mulheres Ela tem sua arma para combater a desigualdade
que sofrem da repressão no casamento resultam que existe na nossa sociedade. Basta-a decidir, e
em divulgar seus sentimentos através de outros sistematicamente acabará com todo preconceito
vínculos como as canções etc, mas no caso da sobre a mulher. Em prol da valorização da imagem
protagonista, ela escolhe a forma tradicional, “o si- da mulher, é importante acabar com a naturaliza-
lêncio”. Se nos consideramos a época que a autora ção dos estereótipos machista/sexistas e racistas,
pretende recriar na obra, podemos dizer que a es- tal como as de Jorge Amado, Luísio Azevedo cita-
colha de Ponciá está certa porque naquela época do no trabalho. Como Lukás sugere, precisamos
não há outra opção para as mulheres a não ficar das obras literárias que apresentem o essencial
no silêncio diante de um marido violento. Ponciá da condição humana e não as que promovem as
procura isola-se em silêncio para proibir o acesso ideologias falsas. (apud Toril Moi, 1985:7)
do marido ao seu mundo. Esse silêncio tem dois
lados: primeiro, para uma mulher ficar no silêncio
durante a violência domestica, a autora mostra isso Referências bibliográficas
como o produto da cultura de repressão feminina. AMANDA, Dal’Zotto Parizote. “Literatura, história:
Outra interpretação para esse silêncio é que algu- Fronteiras instáveis” In Mulher e Literatura:, Histo-
mas feministas consideram esse tipo de silencio ria, Gênero, Sexualidade. Org. Cecil Jeanine Albert
como uma forma de prevenir a expansão do poder Zinani, Salete Rosa Pezzi dos Santos. Caxias do
masculino. Showalter, (1985:262) descreve a condi- Sul, RS. Brasil. 2010
ção da mulher opressiva com a diagrama de Arde- ARNFRED, Signe. Sexuality & Gender Politics in
264 ner. Mostrando que a mulher opressiva consegue Mozambique, Rethinking Gender in Africa. James
isola se em um espaço crescente, chamado “Wild Currey, Suffolk, UK. 2011
Zone” onde o homem não tem nenhum acesso de BENNETT, Eliana Guerreiro Ramos. “Gabriela,
penetrar, deixando o sem forçar de dominar a mu- Cravo e Canela: Jorge Amado and the Myth of the
lher. A descrição da reação de Ponciá um dia que o Sexual Mulata in Brazil``In The African Diaspora,
marido agredi-la mostra que ela escolha a segunda African Origins and New World Identities. Ed. Isido-
opção de silencio. “...Ela não reagia, não manifesta- re Okpeweho, Carole Boyce Davies & Ali A. Mazrui.
va qualquer sentimento de dor ou de raiva”24 Indiana University Press, U.S.A. 1999
Mas vale dizer que nada justifica a violência con- CARVALHO, Maria Eulina. “Introdução à Ques-
tra a mulher. O estudo de gênero condena a per- tão das Relações de Gênero”. EDUIFIBA, Salvador.
manência de silêncio diante da violência domesti- 2004
ca, A nova visão de conscientização aponta para DAVIES, Carole Boyce “Feminist Conscious-
a denuncia de violência em qualquer forma, seja ness and African Literature Criticism” In Ngambika,
no espaço público ou privado. Precisamos evitar a Studies of Women in Africa Literature. Ed. Carole
continuação de naturalização de violência domesti- Boyce Davies & Anne Adams Graves. Africa World
ca e a continuação da cultura de silêncio Press, Trenton, New Jersey.1986
DUARTE, Eduardo de Assis. “Feminismo e Des-
Conclusão constução: Anotações para um possível percurso”.
Em conclusão, a busca pela desconstrução dos In Refazendo Nós:ensaios sobre mulher e literatura.
estereótipos sobre a mulher nessa obra torna se Org. BRADÃO, Izabel e ZAHIDE, L. Florianópolis,
um olha extensivo e profundo para a análise de Ed. Mulheres: EDUNSC. 2003
emancipação feminina. Essa nova representação EVARISTO, Conceição, Ponciá Vicêncio. Maza
da mulher brasileira na obra nos ponha diante das Edição, Belo Horizonte. 2003
novas representações da mulher na sociedade FUNCK, Susana Boméo. “O jogo das Represen-
humana. Essa tentativa serve para incentivar a tações”. In Refazendo Nós: ensaios sobre mulher e
criação de nova imagem da mulher na sociedade, literatura.Org. BRADÃO, Izabel e ZAHIDE, L. Floria-
serve também para ajudar na mudança de com- nópolis, Ed. Mulheres: EDUNSC. 2003
portamento e de percepção do povo. Cada ima- FERREIRA, Mary. Org. Os Poderes e os Saberes
24 Ibid, p. 98 das Mulheres: A Construção de Gênero. São Luis,
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
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informe@quilombhoje.com.br. Acesso em: Di-
manche 29 avril 2012, 20h37
266
III
Sujeitos textuais e construção
da identidade feminina:
(auto)perceção e
(in)aceitação de si corpo:
totalidade e fragmentação
III Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação
A ESCRITA DO CORPO
NA LITERATURA FEMININA
AFROBRASILEIRA:
novos olhares, outras representações*
Cristian Souza de Sales**
Liz Maria Telles de Sá Almeida***
Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes, Brasil
tes sociais e psicológicos”, principalmente, a sua “materialidade simbólica”, o corpo está localizado
conduta moral. Esta também fixa seus “sentidos e em um “terreno social e subjetivamente conflitivo”2.
seus valores”, submetendo o corpo a normatiza- De acordo com Gomes, ao longo da história,
ções, privilegiando um dado número de atributos o corpo se tornou “emblema étnico”, símbolo a
físicos e padrões estéticos que o “transformam” e ser explorado, manipulado e transformado nas
o definem dentro de uma escala definida entre o “relações de poder e de dominação” para marcar
aceitável e o inaceitável. E o modo como este se “assimetrias sociais”, “classificar, hierarquizar”
move e modifica-se “revela trechos da história a e estabelecer desigualdades na “distribuição de
que pertence”. (SOARES, 2006, p.110). poder” entre grupos raciais distintos por causa de
Em É possível realizar uma história do corpo, fenótipos como a cor da pele. Assim, a sua aparên-
Denise Bernuzzi Sant´Anna (2006, p.3) apresenta cia física passou a difundir mensagens e a integrar
perspectiva semelhante à de Soares, já que con- significados ideológicos relacionados a “atributos
sidera a possibilidade de leitura do corpo a partir negativos e positivos”, introjetados por regras so-
de duas dimensões, abrindo espaço para reflexões ciais, padrões estéticos, códigos de comportamen-
sobre o tema, tanto na esfera biológica – quanto to moral, transformando-se em “objeto de reflexão
na cultura e/ou simbólica. Para a autora, o corpo é e de apelo da cultura” dominante, sendo por ela,
uma “instância biocultural” que é determinada por “tocado, modelado, modificado”, violentado e agre-
aspectos naturais, morais, religiosos e históricos. dido. (GOMES, 2006, pp.261-262).
Território simbólico onde “atuam forças que não Nesse sentido, a autora passa a discorrer so-
cessam de inquietar e confrontar”. É um verdadei- bre o corpo negro, pois segundo ela, no processo
ro arquivo vivo: “talvez seja o mais belo traço da histórico, cultural e político brasileiro, este corpo
memória da vida” dos sujeitos. foi “tocado, modificado”, agredido e violentado nas
Segundo Sant´Anna, investigar seus segredos relações do poder mantidas entre os brancos e os
e sua história é uma tarefa ampla e escorregadia, afrodescendentes. O corpo negro foi usado como
pois quando se pesquisa o corpo por meio de suas um dos “sinais diferenciadores” mais evidentes
inúmeras vias, a biológica, a cultural, a educacio- pelo racismo para estabelecer hierarquias entre as 269
nal, a política, a antropológica, entre outras, é pre- classes sociais no Brasil e para marcar a “referên-
ciso destacar uma questão geral: como uma dada cia negra” de um sujeito, e, dessa forma, justificar
cultura ou um determinado grupo social criou ma- sua posição social subalterna. (GOMES, 2006,
neiras de conhecê-lo e controlá-lo?. (SANT´ANNA, p.261). Sobre este corpo, agiram duplamente e de
2006, p.3). forma simultânea, a violência física e simbólica,
Portanto, diferentemente de realizar uma história investindo no controle de sua aparência, em seus
do corpo, Sant´Anna orienta que talvez seja mais movimentos, em seus gestos, em suas expressões,
instigante realizar investigações sobre algumas das em seus desejos, em suas vontades, em suas ex-
ambições utilizadas para “governá-lo e organizá- periências, entre muitos outros aspectos.
-lo”, pois cada vontade de “manter o corpo sob o Essa é uma das razões pelas quais, na constru-
controle” é constituída por ideologias, “especifici- ção de sua identidade, na sociedade brasileira, os
dades e generalidades culturais”. Assim exposto, a negros, sobretudo, as mulheres negras “por meio
autora ressalva que é preciso levar em conta como de um aprendizado contínuo” precisam aprender
uma dada cultura “o define e o interpreta” ou ainda a lidar, desde sempre, com um “movimento tenso,
de que forma um determinado grupo social criou conflitivo” e ambivalente de aceitação e rejeição,
maneiras de “conhecê-lo, governá-lo e controlá- “negação e aceitação” de seus corpos. (GOMES,
-lo”, impondo-lhe condutas morais, sociais, ra- 2006, p.262). Ainda meninas, as mulheres afro-
ciais e de gênero ou definindo padrões estéticos. descendentes são impelidas a conviver, cotidiana-
(SANT`ANNA, 2006, p.3). mente, com os referenciais de beleza, de poder, de
Em uma vertente de reflexão mais restrita, Nilma pertencimento, de inserção e de exclusão social,
Lino Gomes (2006, p.261), em Sem perder a raiz: que foram estabelecidos pelos padrões da estética
corpo e cabelo como símbolo de identidade ne- branca, vinculados ao corpo da mulher, concernen-
gra, corroborando com as reflexões propostas tes à forma, ao movimento, à proporcionalidade, à
por Sant´Anna e por Soares, diz que para além do
2 O trabalho realizado pela autora sobre o corpo negro, em particular, sobre
princípio de apreensão do corpo em sua “especifi- o cabelo, está relacionado à estética, beleza e identidade negra presente no
cidade biológica” ou mesmo em suas funções “pu- universo dos salões étnicos. Embora Gomes não trate das representações
ramente fisiológicas”, aproximando-o das “relações ficcionais do corpo feminino negro, suas considerações sobre o significado do
de sentido e de significação”, interpretado em sua corpo feminino negro no âmbito da cultura são importantes para a composi-
ção deste artigo.
III Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação
efeitos que elas produziram para a trajetória social relação à pretensa inferioridade, passividade e se-
das afrodescendentes5. xualidade voraz do corpo feminino negro. Por isso,
Nos dizeres poéticos de Miriam Alves, as mulhe- em princípio, o sujeito poético solicita:
res negras se ocupam em elaborar outras formas
de escrita para o corpo feminino negro, à medida Ser pessoa
que o seu olhar reescreve a história e trajetória das
mulheres negras na sociedade brasileira, levan-
Nego as forjas
do em conta, nessa, outra forma constituição de
corporal negra, as marcações sociais, históricas, as armaduras
estéticas e culturais que este traz consigo. Lapidadas na aparência
São versos que projetam imagens de um corpo bruta da lama
feminino negro carregando as dores do tempo (e Nego as máscaras
de seu tempo), de onde ecoam as vozes de seus/ indiferentes
suas antepassados(as) africanos (as), homens e forjando distância
mulheres que vivenciaram as agruras e as amargu- Nego o resguardo do
ras das experiências vivenciadas durante o escra-
silêncio
vismo colonial e a diáspora africana no Brasil
(ALVES, 1985, p-42).
construídas por representações sociais com as parte das tradições, negado o direito de decidir
quais as mulheres afrodescendentes não se identi- sobre como agir com seus corpos”. Silenciadas ou
ficam. Recusar as “armaduras” que forçaram a sua marcadas pelas tentativas de “descorporificação”,
invisibilização social, impondo-lhes a clausura de elas continuam reagindo firmemente contra as
rostos e corpos femininos negros. Negar a submis- várias formas de opressão, principalmente a racial
são feminina negra. Afirmar a sua voz, o seu olhar e a de gênero. Assim exposto, reflete sobre o papel
e o seu discurso literário sobre si, como um canto das mulheres afrodescendentes neste processo
de denúncia, de rebeldia e de renovação: investir de recomposição do corpo por outras imagens
em sua imagem social como pessoa a cada linha ficcionais, discutindo em particular a sua condição
poética. Portanto, nos poemas de Miriam Alves feminina em todas as dimensões (sociais, políticas,
aparece a escrita de um corpo negro que deseja se econômicas etc.), na qual elas saem da situação de
depreender das “amarras do silêncio”, promovendo “objeto”, assunto ou tema para tornarem-se sujeito
contínuas reversibilidades: de sua própria escrita.
De acordo com Souza, teórica ou poeticamente,
Quero correr em desafio as mulheres negras demonstram a preocupação
soltar meu corpo em apontar e “questionar os papéis e os lugares
definidos para si”, colocando-se como “vozes
lamber sem sentido
autorizadas para falar de suas sensações e per-
as verdades cepções de mundo”, tendo em vista que a autoi-
as mentiras magens elaboradas por escritoras como Miriam
não ditas Alves, nelas, estão introjetadas as experiências de
não ditas dor, prazer, ou desprazer vivenciadas pelos afro-
verdades escritas descendentes na diáspora africana. O corpo negro
que não posso entender feminino obriga-se a “sentir e a pensar um espaço
qualificado historicamente para a grafia e a leitura
272 [...]
das experiências passadas e cotidianas”, lugares
Como um aflito novos para “inscrição de sonhos e desejos”. (SOU-
libertar num grito ZA, 2006, p.340).
- Quero Viver! Quero Viver! Ao mencionar e reiterar mais uma vez a neces-
QUERO VIVER! sidade de se libertar o corpo feminino negro das
(ALVES, 1983, p.26) “amarras” elaboradas pelas vozes dos autores
brasileiros, “das mordaças de linguagem”, “das
mordaças ideológicas” do racismo e das imposi-
Em Vozes Femininas no Atlântico negro, Floren-
ções da dominação masculina e branca, o sujeito
tina Souza (2006, p.340) analisando as represen-
poético feminino negro confirma o que diz Souza.8.
tações do “feminino” no texto de autoras negras,
O corpo feminino negro que aparece concebido
observa que algumas escritoras contemporâneas,
na poesia Cena do Cotidiano, “obriga-se” a pen-
africanas ou brasileiras, têm se voltado para o
sar nas imagens estereotipadas do passado, “nas
questionamento do próprio sentido e “lugar do
experiências de dor e de desprazer” vivenciadas,
feminino: seus ritos e seus mitos”. Nesse sentido,
ao longo da história, pelas mulheres afrodescen-
a autora diz que o corpo assume “papel significati-
dentes. (SOUZA, 2006, p.340).
vo”, se não “principal”, pois
Entretanto, apesar de ressentido, segregado e
violentado por “mentiras”, é um corpo feminino
[...] trazendo inscritos em si signos, histórias, que deseja se distanciar dos “lugares definidos
verdades e sutilezas das experiências de vida, para si”. Apresenta-se como um corpo em ação e
com sua exuberância, vitalidade ou rugas, o ativo, negando, mais uma vez, a imagem do corpo
corpo revela os caminhos trilhados, as mudan- negro feminino submisso e subalterno construída
ças vivenciadas, as escarificações dos tempos pelos textos literários nacionais. É um corpo femi-
e do coração. Em razão das circunstâncias nino negro que performatiza a luta, a rebeldia e a
da ordem da cultura e da natureza, a mulher resistência feminina negra, emudecida nas histórias
vivencia significativas especificidades de mu- narradas sobre a presença da mulher negra na
danças no corpo. (SOUZA, 2006, p.340).
8 As aspas correspondem às afirmações feitas por Miriam Alves, no ensaio
Mulheres negras: vozes na literatura que integra o livro BrasilAfro Autorrevala-
Para Souza, “as mulheres têm sido, na maior
do: literatura brasileira contemporânea, organizado pela poetisa.
Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação III
Quero começar este artigo, em que me ocupa- real2, não é contudo a revisitação desse episódio
rei de Balada da Praia dos Cães [BPC], de José mediático o aspecto central deste romance, nem
Cardoso Pires, com uma pequena provocação, mesmo é ele veículo primeiro da reavaliação da
dizendo a respeito deste romance: “ceci n’est pas História a que aqui se procede (mas tão-somente
une fiction”. A blague prende-se com aquilo que da historiografia tradicional), assumindo eu já, nes-
me parece ser o tema principal deste texto, comum ta afirmação, que estaremos perante um exemplo
aliás, como a crítica já notou1, a todos os romances da “metaficção historiográfica”, conforme teoriza-
do autor: a identidade, tanto a nacional como a de da por Linda Hutcheon em A poetics of postmo-
cada sujeito em confronto com o país e o espectro dernism : history, theory, fiction. Neste romance,
da sua história, no contexto do Estado Novo. Mais repensar a História e a identidade nacional não
especificamente, prende-se com o retrato que significa tanto procurar e efabular uma verdade
neste texto é feito do modo como as estruturas de alternativa àquela veiculada pelos vencedores,
poder instituem ficções, procuram viver nelas e por mas sondar e encenar o confronto dos indivíduos
elas acabam finalmente por perecer. com os vários mitos e discursos que formam o seu
Catorze anos após O Delfim, Cardoso Pires contexto histórico, cultural e ideológico, e a forma
publica um novo romance em torno de um crime, como este é vivenciado pelo sujeito anónimo no
pretexto para um retrato já não de um ambiente seu quotidiano, contribuindo assim para uma des-
de uma anacrónica ruralidade, como no romance construção da história do Estado Novo tal como
anterior, mas de uma Lisboa em clima de silencio- concebida e veiculada pelos vários órgãos ligados
sa opressão. Baseado, como é sabido, num caso ao poder.
Diria, a propósito da Balada da Praia dos Cães,
e adoptando a formulação de Mônica Figueiredo,
1 Ver, a este respeito, a título de exemplo, o artigo de Maria Luiza Scher
Pereira “Espaço em questão: Portugal no romance de Cardoso Pires” (s.d.), 2 O assassínio em 1960 de um dissidente político evadido do Forte de Elvas,
bem como declarações do próprio autor, em entrevista a Artur Portela (1991, depois de um golpe militar abortado, o ex-capitão do Exército José Almeida
51-2). Santos, cujo cadáver viria a ser encontrado na Praia do Guincho.
Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação III
que “[e]ste texto quer percorrer construções que Elias e o Major Luís Dantas Castro, Mena forma o
fugiram à sedução do monumento, repositório da núcleo de personagens que estrutura a narrativa,
verdade - porque sabe o quanto a monumentaliza- constituindo-se como elo de ligação entre as ou-
ção cerceia, impede e inviabiliza” (Figueiredo 2002, tras duas: por um lado, Mena é o elemento funda-
6). Este modo de retratar, que toma como objecto mental e principal interveniente dos acontecimen-
aqueles que tradicionalmente são deixados de tos que antecedem o crime, estando a sua relação
fora da historiografia, é desde logo indiciado pelo com o morto no cerne dos problemas que a ele
próprio título do romance, que aponta para o seu conduzem; por outro lado, a investigação levada
carácter “popular”, como já notaram Ana Paula Ar- a cabo por Elias centra-se em Mena e baseia-se
naut (2002, 145) e Benjamin Abdala Jr. (s.d.). Quer nos interrogatórios a que a susujeita, confundindo-
pensemos na “balada” enquanto narrativa poética -se com a própria reconstituição do romance entre
de lendas que fazem parte de um repositório colec- aquela e o Major. Mena é, assim, também, aquela
tivo, actualizado em cada interpretação individual, que articula e serve de ponte entre os dois níveis
quer consideremos a acepção de canção de diegéticos – o do presente da narração e da inves-
estrutura simples e conteúdo narrativo, em estilo tigação e o da estadia dos fugitivos na Casa da
popular ou ainda a de canção de temática român- Vereda – que finalmente se intersectam na segunda
tica, os vários significados encontram eco neste parte do romance, na reconstituição do crime. De
texto: por um lado nele se expõe o modo como um importância central é também, pois, a relação que
determinado repositório de discursos que fazem se estabelece entre esta personagem e Elias, e que
parte do contexto histórico-social da narrativa são a vários níveis duplica a outra, entre ela e o Major.
incorporados pelos indivíduos, por outro, é uma O nosso primeiro contacto com Mena dá-se
temática romântica a enformar aquilo que, em apa- por meio de uma reconstituição que Elias faz do
rência, seria uma intriga de contornos políticos; por que teria sido a chegada dos fugitivos à Casa da
fim, note-se a própria hibridez genológica do texto, Vereda, onde se abrigariam durante meses, até ao
que se vale de artifícios de romance histórico e de assassínio do Major. Nessa reconstituição, Mena
policial, subgéneros de grande sucesso popular3. surge-nos a ter relações sexuais com um padre 277
Só considerando, pois, o contexto histórico da (que pouco depois percebemos não se tratar
narrativa se pode compreender o ambiente re- realmente de um padre, mas de Dantas Castro
tratado no romance de Cardoso Pires, a cosmo- disfarçado), numa descrição em que o vocabulá-
visão das personagens e todos os conflitos que rio sublinha toda a dimensão corporal do acto, ao
as opõem4. Mais do que a forma como o Estado mesmo tempo que o dota de um carácter quase
Novo agiu na determinação das condições reais de compulsivo, conotando-o assim com um estereóti-
existência dos indivíduos, interessa neste romance po de animalidade:
sobretudo a influência insidiosa daquele na di- E de repente jogaram-se um ao outro, assim
mensão das relações humanas, não só ditando os mesmo, jogaram-se, e rolavam pelas paredes,
termos simbólicos da existência dos sujeitos, mas e sorviam-se na pele, nos cheiros, saliva, tudo,
também coagindo a acção destes. Por outro lado, irmanados na chuva que traziam, e só se ouvia
o texto revela também – e é esse o ponto que aqui uma voz soluçada, um gritar para dentro, cego
mais me interessa – que neste jogo de coacção e e obstinado (“Homem… sim, oh, homem…”) –
interferências subtis as posições não são fixas e as a voz dela retomada em toda a sua verdade ao
influências circulam em ambas as direcções, numa fim de oito meses de ausência. (BPC, 30)
manifesta interdependência que constitui a contra-
dição interna desta lógica de domínio. A personagem é-nos desde logo apresenta-
Porque é da mulher na literatura que aqui se tra- da, portanto, associada a uma dimensão sexual
ta, farei uma brevíssima leitura do romance a partir transgressiva, indiciada pela situação do encontro
da personagem de Mena, a única figura feminina amoroso com um padre6. Esta representação será
a ocupar um lugar central5. Com o chefe de polícia reiterada ao longo do texto em inúmeros momen-
3 E, coincidentemente, foi a Balada da Praia dos Cães o romance do autor a que breves irrupções, ainda que altamente individualizadas, nunca dotadas de
obter maior sucesso junto do público. relevância na acção ou de espessura suficiente para se tornarem verdadeira-
4 Veja-se, a este respeito, Petar Petrov (2000). Dowe Fokkema (1992, 65), mente personagens. Óscar Lopes (1990, 302-3) afirma a este respeito que
na sua análise desta obra, faz contudo notar que um leitor não familiarizado a Balada… é “rica em polifonia vocal, se pensarmos no seu coral de vozes
com o contexto histórico português não deixaria de convocar para a sua que à nossa leitura se sobrepõem […] dando às mulheres, populares ou
leitura outras referências, com as quais a Balada da Praia dos Cães também burguesas, vozes sexual e pessoalmente mais individualizadas e por vezes
estabelece um diálogo, nomeadamente o romance erótico e o romance de mais insubmissas do que nunca na ficção portuguesa (…)”
tonalidade existencialista. 6 Como nos é dito pela voz de Elias “Um padre é pai, é Deus, é pecado, tudo
5 Embora as vozes femininas abundem neste texto, elas não são mais do duma assentada” (BPC, 32).
III Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação
tos, nas descrições físicas da personagem e da telúrica, patente, por exemplo, na recorrência de
sua relação com o Major, nos comentários de Elias, palavras como “verdade” e “natural” associadas a
e também numa parafernália erótica que a ela se ela ou ao seu corpo, ou nas referências àquilo que
associa (os versos escritos pelo punho de Mena neste mais remete para a sua dimensão biológi-
que o chefe de polícia guarda no “baú dos sobran- ca, como por exemplo o pormenor dos pêlos nas
tes”, uma página de revista, Erotika, com alusões axilas: “(…) e os pêlos do sovaco são de um negro
sexuais privadas, o postal enviado de Itália, por um seco e agreste, tão negro como é decerto todo
não assinado, com o chavão, bastante significativo, o cabelo que ela tem no mais privado do corpo e
“Não há homens impotentes, há mulheres incom- com um gosto acidulado, retenso”.
petentes” [BPC, 114-5] etc…). Elias, cuja perspec- Embora a retórica do Estado Novo, de forma, na
tiva seguiremos ao longo do romance, oferece-nos verdade, pouco original, tenha procurado aplicar às
a lente pela qual a narrativa nos é apresentada e, mulheres modelos simbólicos que veiculavam uma
sobretudo, pela qual Mena nos é revelada. Ainda ideia de contenção sexual ou mesmo de dessexua-
que Mena seja o eixo em torno do qual se constrói lização (a mulher é anjo, fada, mãe, irmã), figuras
esta teia de relações, a sua perspectiva está quase havia que rompiam com esses modelos, e nas
ausente. O nosso acesso a esta personagem é quais se cristalizavam fantasias de uma sexualida-
sempre mediado pela voz do chefe de polícia, seja de livre, como a prostituta ou a “criada de servir”,
por este se fazer narrador dos eventos que re- verdadeira marginalidade institucionalizada7. Esta
constitui, seja pelas suas divagações, que se vão dicotomia funda-se, claro, numa mesma essencia-
apondo a cada frase de Mena em discurso directo. lização do feminino. Neste caso, o carácter irracio-
Alguns parágrafos adiante, Mena é descrita pela nal e emotivo atribuído à mulher, a sua fragilidade
primeira vez, numa passagem em que é sobretudo moral, a sua maior propensão a ser conduzida por
o desejo de Elias que se diz: impulsos são as características que, quando não
Pelas fotografias apreendidas na busca da devidamente controladas, ameaçam permanente-
polícia ao apartamento de Mena, Elias adivi- mente a ordem com a irrupção de uma sexualidade
278 nha esse corpo. Um corpo sumptuoso; e todo capaz de arrastar o homem para a sua voragem.
no concreto, cada coisa no seu lugar. Admira- Estas tipificações funcionam, portanto, como uma
-o em particular numa foto em que ela apare- segunda ficção capaz de delimitar e acondicionar
ce em bikini num relvado de piscina com um esse perigo pressentido, permitindo a existência de
friso de pavões ao fundo – e era uma verdade, uma ideia de feminino não ameaçador ao circuns-
aquele corpo. Coxas serenas e poderosas, crever e banir a ameaça para as margens, tornan-
o altear do púbis, era isso, era essa verdade do-a assim manejável.
saudável e repousada que o homem fugido à O ideal do lar, tal como se configurou no contex-
tempestade contemplava, apoiado num coto- to do Estado Novo, lugar de serôdia utopia, deve
velo. (BPC, 31) ser aqui tido em mente enquanto modelo institu-
cionalizado dessa pacificação possível. A casa
É portanto o olhar desejante de Elias que molda
era, como se sabe, o domínio por excelência da
Mena, transformada em paradigma de uma fisicali-
mulher, a rainha do lar, cuja missão de educadora
dade e sexualidade livres. Essa “verdade saudável
dos filhos e apoio do marido se exercia no e devia
e repousada” que se faz abrigo do “homem fugido
confinar-se ao espaço protegido do lar. Utopia mi-
à tempestade”, na imaginação de Elias, torna-se
nada desde a base, pois de uma parte exaltam-se
símbolo de um feminino poderoso, matricial, peri-
as virtudes “tipicamente” femininas com o intuito
goso. O corpo é “sumptuoso”, “concreto” porque
de hipervalorizar um comportamento passivo e
nele se projecta um desejo de reencontro com a
ideologicamente legitimar um lugar de subser-
carne, tornando-o uma espécie de irrupção do real,
viência da mulher, através de série de discursos
sobreabundância de matéria que não se deixa con-
que (de)limitam o modo como é possível pensá-la,
ter, um absoluto que se impõe como evidência.
enquanto doutra parte o dispositivo legal corrobora
Ora, se a beleza de Mena a torna naturalmen- e assegura a vigência daquele modelo.
te alvo conspícuo de uma atenção masculina, as
Desenha-se aqui, portanto, desde logo, o rever-
projecções de Elias, que tem de inventá-la como
so do lar utópico: a casa como microcosmos onde
mito de um feminino quase titânico, de um poder
se reproduzem as mesmas tensões que rasgam
de atracção subterrâneo, não deixam de se revelar
o tecido social. Os espaços domésticos repre-
ficções pelas quais procura acomodar o desejo em
si suscitado. Ao longo do texto, as descrições de
7 Veja-se, a este respeito, por exemplo, o trabalho de Irene Flunser Pimentel
Mena ecoam sempre esta ideia de uma realidade (2011) e da jornalista Isabel Freire (2010).
Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação III
sentados na Balada da Praia dos Cães – aqueles rizada, objectivada, a frase repetida nas paredes
ocupados por Mena e a casa de Elias (de que não para assim se “retraçar” serve a Mena para assu-
me ocuparei aqui) – revelam-se prolongamento dos mir a agressão de que é alvo, para então finalmente
constrangimentos e violências que embebem a poder não se aceitar naquela súmula da sua identi-
sociedade, e em ambas as esferas são os próprios dade.
mecanismos do poder ditatorial e os discursos que A passagem de Mena para a Casa da Vereda
ele sanciona a gerar, desde a base, as perturba- representa o agudizar das tensões já vividas, até ao
ções de que irão padecer. ponto de ruptura. Esta casa, que Mena partilhará
As duas casas que Mena habita – a casa da com o Major e os dois companheiros de fuga – o
Av. de Roma e a Casa da Vereda8 – mostram uma arquitecto Fontenova e o cabo Barroca – converter-
realidade muito diferente da que é veiculada pelos -se-á numa prisão, com Dantas Castro transforma-
meios ligados directa ou indirectamente ao poder. do em duplo doméstico do regime. Aqui, Dantas
Da casa da Av. de Roma, onde Mena vive grande Castro vale-se principalmente de formas de violên-
parte do seu romance com Dantas Castro, se diz cia psicológica, mantendo os três cúmplices num
que Mena lá passava os dias “sentada à espera e clima de tensão e medo constantes, não só pela
a fumar” (BPC, 189), numa espécie de suspensão ameaça que permanentemente espreita do exte-
da normalidade quotidiana que já prenuncia as rior como pela ameaça interna que o Major neste
tensões vividas na Casa da Vereda. As frequentes ponto já representa. Da parte de Dantas Castro,
e violentas brigas são relatadas, no testemunho da este comportamento, é-nos dito, é motivado por
proprietária, bem como um certo discurso libertário um receio paranoico de traição, levando o Major
do Major que, como refere a mesma proprietária “à a procurar um controlo total sobre os movimentos
mais pequena coisa punha-se a berrar que daquela dos companheiros e exercendo sobre eles vigilân-
porta para fora cada qual tinha a sua liberdade e cia perpétua, mimetizando assim, novamente, os
que não precisava que ela lhe desse contas do que mecanismos do próprio regime. É esta tentativa
fazia para coisíssima nenhuma” (BPC, 190). Con- de criação de uma micro-sociedade transparente,
tudo, a relação entre Dantas Castro e Mena nesta em que qualquer ameaça possa ser de imediato 279
casa torna-se uma negra inversão do “amor livre” identificada e debelada, esta forma progressiva-
propalado pelo Major, revelando-se este apenas mente mais violenta de eliminação sistemática de
uma espécie de duplo invertido do discurso oficial. qualquer oposição, que, ao não mais permitir a
Quando Mena confessa ao amante uma traição, possibilidade de negociação, cria o próprio estado
este insulta-a e espanca-a. Sozinha e desprezada, de espírito que levará ao assassínio do Major.
Mena risca as paredes do apartamento com a frase Como o próprio Cardoso Pires refere, em entre-
que fica a ecoar-lhe na cabeça: vista a Artur Portela, a propósito do Estado Novo,
Mena, a investir contra as paredes, de esfero- “(…) a Dura Pax de tal branda ditadura o que pre-
gráfica em punho, a destroçar-se pelas portas, tendia era instituir uma atmosfera de medo tolerado
pelos vidros, por tudo o que representasse e tolerante. Pacto de convívio entre opressores
limite, barreira, e onde pudesse deixar bem à e oprimidos, o sonho de qualquer totalitarismo é
vista e para ser lido SOU UMA PUTA PORCA sempre esse” (Portela 1991, 38). Ao retratar o ma-
(…) Desvairara ao correr dos muros, riscando- rasmo deste pacto de convívio – o “crime social”
-se neles, retraçando-se, e quando levantou a referido na nota final do romance9 - que se alastra a
cabeça e se viu no espelho não se reconhe- todas as instâncias da sociedade, mesmo àquelas
ceu. Recusava-se a aceitar aquela cara ensan- aliadas ao regime (pense-se em Elias e no seu re-
guentada e para não ter piedade dela pôs-se a ceio da PIDE, espectro omnipresente), a Balada da
cobri-la à esferográfica com toda a fúria. (BPC, Praia dos Cães mostra também como este pacto é
199) frágil, pois a sua manutenção depende da margem
que concede aos indivíduos para negociação das
A frase em que se concentram a violência e o suas condições de existência – a sua possibilidade
particular modo de opressão existente na ficção e de exercício de poder.
na imposição identitárias que ela sintetiza é pre- Se este é o contexto em que Mena se move – de
cisamente a arma de arremesso contra todos os uma parte, uma sociedade patriarcal e um regi-
limites físicos da casa, materialização dos outros
limites que lhe são impostos. A imagem própria 9 “Então como hoje ele sabia que na sua tragédia individual existia uma
procurada e reflectida no espelho, e assim exterio- parte-maior de erro colectivo; que as sociedades de terror se servem dos
crimes avulsos para justificarem o crime social que elas representam por si
8 Menciona-se também uma casa na Estrada da Luz, que Mena abandona mesmas e que em todos esses crimes a sua mão está presente, em todos.”
para viver com Dantas Castro na Avenida de Roma. (BPC, 300-1).
III Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação
me ditatorial, de outra parte, no que diz respeito se depara e de assunção de uma individualidade
à dimensão privada, uma relação amorosa e um que não permite a apropriação que o discurso do
espaço doméstico em que a opressão silenciosa outro inevitavelmente procura. Dirigindo-se sempre
do exterior se transpõe como violência explícita, a Elias de forma impessoal e assim destituindo-o
quer física quer psicológica, esta personagem não de conteúdo subjectivo, Mena relata pormenores
deixa de exercer a sua particular forma de poder íntimos da sua relação com Dantas Castro, mais
– aquela para que se abre espaço nas brechas da uma vez confrontando Elias por um lado com a
própria ideologia. As características intrínsecas ao inatingibilidade da promessa contida no estereótipo
tipo de idealização de que a mulher é alvo – que sexual que Mena para ele incarna e por outro com
amputa uma dimensão da pluralidade do real para a própria irredutibilidade do ser real cuja existência
o acomodar a abstracções e que, fundando-se se assinala para além daquela ficção. Ao perguntar
num imaginário simbólico fortemente enraizado a Elias “São assim tão primários, os juízes? Assus-
(Jung chamar-lhe-ia arquétipos do inconsciente ta-os tanto uma mulher confessar que foi para a
colectivo), exerce uma sedução sobre o sujeito, na cama com outro homem? Por outro lado a palavra
medida em que apela a impulsos humanos bási- amante incomoda-os porquê?” (BPC, 196), a sua
cos – são precisamente o que dota Mena de poder assunção de um discurso próprio – que aqui se
perante o indivíduo que adere àquela ficção identi- manifesta na confissão da traição a Dantas Castro,
tária – ou mito, ou estereótipo, como lhe queiramos na repetição a Elias e na antecipada reprodução
chamar. em tribunal – garante o seu reduto de existência
Esta assunção do poder que os próprios mode- enquanto indivíduo. Por outro lado, ao descrever-
los identitários disponíveis no imaginário colectivo -se a si mesma como “amante”, apropria-se da
lhe permitem é particularmente evidente na inte- palavra e subtrai-a ao contexto ideológico que lhe
racção com Elias. Os interrogatórios são exemplo cunha o significado, criando para ela e para si um
de uma curiosa inversão de papéis que revela não lugar que a própria Mena assim define. Esta não-
só a permutabilidade das posições relativas das -conformidade na conduta sexual, na ética amoro-
280 personagens como também a sua equivalência, sa, tão “incómoda” e “assustadora” porque mostra
se consideradas no contexto social mais amplo. quão porosas são as fronteiras entre o que se quis
Se Elias transforma Mena na consubstanciação de escrupulosamente separado e estanque, é afinal
um estereótipo sexual, a própria Mena reivindica reflexo da maior ou menor refracção dos sujeitos
a imagem que esse olhar lhe impõe para a partir a qualquer narrativa identitária que se procure
dela exercer o poder de que dispõe – o de fazer impor-lhes, e por isso ameaçadora também pelo
Elias confrontar-se com a sua própria impotência potencial de não-conformidade mais amplo, a nível
perante o desejo que nela se projecta, mas que ela social, que ela indicia.
só reflecte. Enquanto a interacção de Mena e Elias ocu-
Veja-se o seguinte excerto: “Elias vigia-a es- pa longas passagens do romance, da relação de
palmado na superfície da porta, olho quedo. Ali a Mena com Dantas Castro sabemos apenas aquilo
tem ao real e por inteiro. Fechada num círculo de que nos é revelado por testemunhos, da própria e
vidro, ali a tem. (…) Mesmo distanciada e reduzida de terceiros. Contudo, pelos relatos das violências
pelo vidro panorâmico do ralo é uma provocação, físicas e psicológicas de que Mena era alvo, pelas
uma agressão da natureza (…)” [BPC, 244]). O olhar menções a uma espécie de desregramento sexual
que tenta aprisioná-la e delimitá-la, como que e pela afirmação da impotência final do Major, per-
fechando-a num círculo de vidro, num movimento cebemos que também aqui se joga aquele mesmo
que é de distanciamento do objecto e consequente jogo de dominação que se desenrola entre Mena e
redução (porque de amputação), submete-se por Elias. Quando Mena revela ao chefe de polícia que
sua vez ao poder que essa imagem passa a deter o Major se havia tornado impotente, fá-lo na se-
sobre ele. A “indiferença humilhadora” (BPC, 149) quência da afirmação na crença de que este aca-
de Mena confronta Elias e, nesse confronto, é tam- baria por matá-la (BPC, 255), estabelecendo uma
bém a identidade “masculina”, socialmente cons- associação explícita entre a impotência do Major e
truída, que é abalada, agredida por esse feminino o crescendo da violência. A ameaça que Mena re-
que, ao não se conformar às diversas ficções que presenta exige, assim, punição. Em Dantas Castro,
procuram torná-lo manejável, baralha as próprias ela concretiza-se em violência física; em Elias, é
categorias da masculinidade. uma “exorcização pela linguagem”, nas palavras de
O relato de Mena revela-se mais um modo de Petar Petrov (2000, 233), que concentra a violência
confronto com os modelos e estereótipos com que que não pode encontrar outra concretização.
Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação III
Cardoso Pires, no volume E agora, José?, refe- antecede. Embora as estratégias repressivas e de
re, a propósito de O Delfim, e articulando as duas formação ideológica não deixem de produzir o efei-
questões: “Nas sociedades fechadas, sociedades to desejado – a criação de sujeitos que mantêm e
predominantemente masculinas em que o cida- reproduzem o sistema – o texto retrata o regime sa-
dão é destituído de autoridade cívica e de influên- lazarista no princípio do fim e mostra como, ainda
cia social, os exibicionismos da virilidade são as que na aparência sólido, já indicia na sua própria
compensações dessa desautorização (…)”. Depois constituição os elementos que o levarão à queda.
de enumerar alguns exemplos, acrescenta: “De As várias formas de disfunção ou perversão
qualquer deles se pode deduzir que, quer a obses- sexual mencionadas ao longo do texto, clara metá-
são sexual, quer as manifestações secundárias de fora (como já o eram n’O Delfim) da decadência do
exibicionismos viris, são sublimações de impotên- próprio regime, mostram também, como referi no
cia sexual” (Pires 1999, 135-6). Podemos dizer que início, os aspectos internamente contraditórios da
neste texto tanto a impotência como a obsessão lógica de dominação que elas aqui implicam, bem
sexual e os exibicionismos viris são materializa- como o seu carácter auto-destrutivo. Além da ob-
ções e manifestações da impotência do indivíduo sessão de Elias e do Major, a deste último transfor-
no campo político e social. Mena, enquanto alvo mada em impotência, pense-se no sonho delirante
do desejo e da obsessão é aquela que revela esta de Elias em que a irmã morta se transforma numa
impotência e, por isso, a vítima da violência. espécie de monstro voraz, expressamente sexuali-
Quando, transtornado pela venda da pulseira de zado, ameaçando engolir Elias, e como essa figura
tornozelo que oferecera à amante como símbolo adopta algumas características de Mena, ou na
da sua união, tomado por um ciúme paranoico conversa telefónica com a prostituta, na referência
e impotente, o Major desnuda Mena e a obriga a Américo Thomaz como “pénis decrépito fardado
a manter-se nua enquanto a insulta e finalmente de almirante” (BPC, 113), ou ainda no modo como
a força a lavar o chão, o sentido dessa nudez é Fontenova acaba por substituir o Major na cama de
explicitado pelo próprio texto: “Mena de pé, en- Mena, depois daquilo que Óscar Lopes (1990, 305)
volvida nos braços. Não era frio que sentia, era a refere como “crime edipiano”, entre outros exem- 281
nudez como uma impotência final (…)” (BPC, 123). plos de ocorrências de um imaginário de decadên-
Creio que é precisamente durante este episódio, na cia sexual, no qual as sugestões de incesto têm
percepção de uma “impotência final”, que se impõe um papel particularmente revelador, a meu ver, do
a Mena a ideia do crime. Fácil ou violenta que seja carácter intrinsecamente malsão e estéril do am-
a negociação do quotidiano, o ponto de ruptura biente de que se fazem metáfora.
só se atinge quando ela deixa de ser possível e a Regresso à pequena brincadeira com que iniciei
sobrevivência do indivíduo está ameaçada. Quan- esta comunicação. Se a obra de Cardoso Pires se
do isto sucede, Mena reage exercendo também o ocupa, antes de mais, da identidade, e das diver-
poder que lhe é possível. sas formas como a de cada indivíduo se constitui
À semelhança de um Iago, Mena vai instilando no confronto com um contexto histórico e social
nos seus companheiros de cativeiro a dúvida, o específico, com os vários discursos, estereótipos,
medo e a consciência da insustentabilidade da si- mitos que constituem esse tecido simbólico, na
tuação que todos vivem. Valendo-se de um exem- Balada da Praia dos Cães o retrato desse confronto
plar do Lobo do Mar, de Jack London, que circula faz-se mostrando o quanto a realidade das perso-
entre os três, e do qual vai sublinhando passagens nagens é sempre mais complexa e multifacetada
cuidadosamente selecionadas para que nelas os do que quaisquer ficções individuais ou colectivas
companheiro possam ler a sua própria situação, que perpassem o tecido social. Mena torna-se aqui
Mena acaba por conseguir despertar em todos a figura paradigmática desse confronto, e a ela mais
ideia de que vivem num estado limite cuja manu- do que a qualquer outra das personagens parece
tenção é impossível. poder aplicar-se a passagem já muito citada da
Assim perspectivada, Mena torna-se represen- “Nota final”:
tativa de todas as outras personagens do romance Em certas vidas (…) há circunstâncias que
e do próprio rumo histórico do país. O crime e o projectam o indivíduo para significações do
papel de Mena nele – a sua acção subterrânea – domínio geral. Um acaso pode transformá-lo
tornam-se, pois, metáfora dos acontecimentos que em matéria universal – matéria histórica para
levam à queda do regime, uma vez chegado o pon- uns, matéria de ficção para outros, mas sem-
to de ruptura que a guerra colonial inevitavelmente pre justificativa de abordagem. Interrogamo-
representou, e que o tempo da narrativa pouco -la, essa matéria, porque ela nos interroga no
III Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação
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Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação III
O romance Ponciá Vicêncio narra a trajetória mento que trazem não só o amor e a ternura, mas 283
de Ponciá, desde a infância à idade adulta, evi- momentos de grande impacto psicológico. A figura
denciando a busca pela identidade, o trauma da de Vô Vicêncio é a conexão entre Ponciá e suas
ausência dos entes queridos e as marcas da escra- raízes, marca o passado-presente-aqui-agora da
vidão, presentes no sobrenome Vicêncio, herdado escravidão, isto é, a atemporalidade da condição
do Coronel Vicêncio, dono de seus bisavós e do de escravidão do negro, sua estratégia de sub-
qual carregava o nome como estigma, seu jeito de missão insubmissa e os reflexos da memória de
“não estar no mundo”. tempos difíceis, passados como herança.
Ponciá Vicêncio é também um romance de Desprovida de si, Ponciá mergulha na sua
denúncia da situação da mulher, da exploração do narrativa particular, coletiva, atemporal, em que
trabalho na zona rural e do coronelismo. Conscien- convivem as alegrias, tristezas, traumas e o dese-
te da falta de perspectiva no campo, Ponciá parte jo de reconstruir o seio familiar na esperança de
para a cidade em busca de melhores oportunida- retê-lo, se reencontrar nele, refazer o caminho dos
des de vida e trabalho: antepassados que é também seu, na expectativa
de unir fragmentos de vida que foram perdidos e
dar um sentido a sua existência. O contínuo fluir
Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do
dos pensamentos de Ponciá recria as figuras do
povoado onde nascera, a decisão chegou
pai ausente e do avô que tinha o braço cotó e dá a
forte e repentina. Estava cansada de tudo ali.
eles substância e visibilidade. Remerorando toda a
de trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às
sua trajetória, Ponciá percebe que a herança do Vó
terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De
Vicêncio era a loucura, advinda da consciência da
ver a terra dos negros cobertas de plantações,
impossibilidade da verdadeira liberdade e da escra-
cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os
vidão sem fim. Por isso, Vô Vicêncio havia matado
homens gastavam a vida trabalhando nas
sua mulher e tentou contra sua própria vida. Pon-
terras dos senhores, e depois a maior parte
ciá tinha esse estigma no seu corpo que não dava
da colheita ser entregue aos coronéis. (Ponciá
condições de vida aos filhos fora de seu ventre.
Vicêncio, 2003:32)
Com relação aos personagens, eles são im-
buídos de complexidade que os coloca além do
Durante sua trajetória, Ponciá une passado e simples dualismo e dos estereótipos. Para cada
presente através da memória num fluxo de pensa- personagem, Conceição Evaristo apresenta um
III Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação
aspecto da trajetória e os justifica, evitando que em que ela se abria para ele, o homem vinha
caiam na comiseração do leitor ou que façamos emudecido, trancado de falas, sem gesto
acerca deles considerações simplistas. algum dizível de nada. Enquanto que Ponciá
Essas situações pelas quais passam os herdei- vivia a ânsia do prazer e o desesperado desejo
ros da escravidão se refletem nas condições de de encontro. E, então, um nisto de raiva e de-
vida das populações que migraram do campo para saponto tomava conta dela, ao perceber que
as grandes cidades em busca de melhores oportu- ela e ele nunca iam além do corpo, que não se
nidades de vida e trabalho e que percebem, tanto tocavam para além da pele. (Ponciá Vicêncio,
quanto Luandi e Ponciá, que a situação do negro 2002:67)
livre reproduz a escravidão, através do trabalho
subalterno, que não lhe confere poder de decisão
e da vida no barraco da favela. A esse respeito, Quando viu Ponciá parada, alheia, morta-viva,
Ponciá considera: longe de tudo, precisou fazê-la doer também
e começou a agredi-la. Batia-lhe, chutava-a,
puxava-lhe os cabelos. Ela não tinha um ges-
De que adiantara a coragem de muitos em to de defesa. Quando o homem viu o sangue a
escolher a fuga, de viverem o ideal quilombo- escorrer-lhe pela boca e pelas narinas, pensou
la? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? em matá-la, mas caiu em si assustado. Foi
Ele, num ato de coragem-covardia, se rebe- ao pote, buscou uma caneca d´água e limpou
lara, matara uns dos seus e quisera se matar arrependido e carinhoso o rosto da mulher.
também. O que adiantara? A vida escrava (Ponciá Vicêncio, 2002:98)
continuava até os dias de hoje. Sim, ela era es-
crava também. Escrava de uma situação que
se repetia. (Ponciá Vicêncio, 2002: 84) Insubmissas lágrimas de mulheres é uma enun-
ciação ficcional de relatos de mulheres negras que
têm em comum estórias de insubmissão, das quais
284 A narrativa aponta um caminho ao exibir os seleciono três.
trabalhos de cerâmica de Ponciá e sua mãe como A primeira, Aramides Florença conta o episódio
elemento agregador da família e da valorização da de ter sido estuprada pelo próprio marido enquanto
arte popular como agente de mudança e dignifi- amamentava o filho recém-nascido e de não acei-
cação social, mas que ainda é vedado ao negro. tar aquela violência, sentindo-se machucada em
Como exemplo, podemos citar a emoção de Luan- seu corpo e em sua dignidade:
di, ao ver os trabalhos de sua mãe e Ponciá numa
exposição de arte popular:
Numa sucessão de gestos violentos, ele me
jogou sobre nossa cama, rasgando minhas
E, não agüentando mais guardar as lágri- roupas e tocando violentamente com a boca
mas, Luandi tomou do Cartãozinho branco umdos meus seios que já estava descober-
e reconheceu o nome das duas, quis levar A to, no ato da amamentação de meu filho. E,
indicação consigo, mas recuou. Estava feliz dessa forma, o pai de Emildes me violentou.
também, porque Na criação da mãe e da irmã E, em mim, o que ainda doía um pouco pela
estavam apontados os nomes delas Como passagem de meu filho, de dor aprofundada
autoras. Na mesa anterior havia um trabalho sofri, sentindo o sangue jorrar. (...) havia dei-
tão bonito E o nome de seu criador era desco- xado conceber em mim um filho.(...) E quando
nhecido. No caso de sua família, não. Desco- ele se levantou com o seu membro murcho e
nhecido para ele era o dono. (Ponciá Vicêncio, satisfeito, a escorrer o sangue que jorrava de
2002: 107) mim, ainda murmurou entre os dentes que
não me queria mais, pois eu não havia sido
No tocante à vida sentimental de Ponciá, o rela- dele, como sempre fora, nos outros mo-
cionamento entre ela e seu companheiro é marca- mentos de prazer. (Insubmissas lágrimas de
do pela impossibilidade de diálogo, desesperança mulheres, 2011:18)
e violência doméstica, que aumentaram ainda mais
o vazio e o alheamento da personagem:
O segundo conto, Shirley Paixão, narra a estória
de uma mulher que tinha duas filhas e se casou
Desde os primeiros tempos, nos momentos com um homem que tinha três filhas. Depois de
Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação III
anos de convivência em comum, o homem estu- -estima. O fazer literário é também fazer político
prou a própria filha e foi golpeado pela esposa, por expressar as várias subjetividades aqui mos-
numa tentativa desesperada de proteger a enteada: tradas na tecitura do texto e compartilhar vivên-
cias, vazios, temores e coragem. Coragem de se
expressar, de se reinventar e se reencontrar a cada
Um homem esbravejando, tentando agarrar,
passo no caminho.
possuir, violentar o Corpo nu de uma menina,
enquanto outras vozes suplicantes, deespera- Ao tematizar o feminino negro, Conceição Eva-
das, desamparadas, chamavam por socorro. risto coloca em evidência não só a denúncia social,
Pediam ajuda Ao pai, sem perceberem que mas a visibilidade de populações marginalizadas
ele era o próprio algoz. (...) Eu precisava salvar em busca da real cidadania. E a voz da mulher
minha filha que, literalmente, estava sob as negra como insubmissa, superando os desafios
garras daquele monstro. (...) Foi só um levantar sociais e estereótipos em busca da plena realiza-
e abaixar da barra. Quand Vi, o animal ruim ção do ser mulher, apoiada pela convicção do seu
caiu estatelado no chão. (Insubmissas lágri- direito de expressão.
mas de mulheres, 2011:29-30)
Referências bibliográficas
O terceiro conto, Lia Gabriel, narra a estória de EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: uma
uma mulher, mãe de três filhos, cujo filho caçula poética da nossa afro-brasilidade. 1996. Disserta-
sofre de esquizofrenia e no tratamento ao qual ele ção (Mestrado em Letras), Pontifícia Universidade
foi submetido, descobriu-se que o monstro imagi- Católica do Rio de Janeiro.
nário que o afligia era a figura do pai que ao espan- ____________________. Ponciá Vicêncio. Belo
car a mãe, o espancou nos braços dela: Horizonte: Mazza Edições, 2003
____________________. Insubmissas lágrimas
Não era a primeira vez que ele me agredia. de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
285
As crianças choravam aturdidas. Eu só escu- GUIMARÃES, Geni. Leite do peito. São Paulo:
tava os gritos e imaginava o temor delas. Em Fundação Nestlé de Cultura, 1988.
seguida, ele me jogou no quartinho de empre- VÁRIOS AUTORES. Cadernos Negros 13. São
gada e, com o cinto na mão, ordenou que eu Paulo: Quilombhoje, 1990.
tirasse a roupa, me chicoteando várias vezes.
Eu não emiti um só grito, não podia assustar
mais as crianças, que já estavam apavoradas.
O que mais me dois era o choro desampara-
do delas. Depois, ele voltou à sala e me trouxe
o meu menino, já nu, arremessando a criança
contra mim. Amparei meu filho em meus bra-
ços, que já sangravam. (...) Ele me chicotean-
do e eu com Gabriel no colo. E, quando uma
das chicotadas pegou o corpo do menino, eu
só tive tempo de de me envergar sobre meu
filho e oferecer as minhas costas e as minhas
nadegas nuas ao homem que me torturava.
(Insubmissas lágrimas de mulheres,
2011:87)
286
Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação III
287
Introdução juvenil protagonistas adolescentes, na sua maioria
Portugal assistia, no final dos anos setenta, femininas, que, na primeira pessoa, discursivizam
início dos anos oitenta do século XX, a uma fase de os problemas e os anseios relacionados com a
transição, marcada por diversas movimentações sua dupla condição de mulheres e de seres em
políticas, ideológicas, sociais e culturais decorren- crescimento, manifestando, nas suas vozes plurais,
tes da instauração de um novo regime, fase essa as inquietações decorrentes da fase de desen-
que se traduziu numa completa alteração das men- volvimento em que se encontram bem como as
talidades, dos códigos sociais de conduta e numa divergências ideológicas e comportamentais que
renovação sem precedentes ao nível das estruturas as separam de uma certa alteridade adulta, desva-
familiares. De facto, a evolução socioeconómica e lorizada no interior dos textos.
cultural e a democratização dos costumes possi- A vastíssima obra de Alice Vieira, a escritora
bilitaram o surgimento de novas estruturas fami- portuguesa de livros para jovens mais conceituada,
liares e a redefinição dos papéis tradicionalmente traduzida e divulgada no estrangeiro, é a este nível
desempenhados por homens e mulheres na socie- exemplar, na medida em que nela encontramos um
dade e no microcosmos familiar, bem como trans- universo predominantemente feminino, povoado
formações profundas nos modelos de autoridade por personagens adolescentes de grande densi-
parental e, consequentemente, nos relacionamen- dade psicológica, que se constroem literariamente
tos intergeracionais e intrafamiliares. através de procedimentos como a focalização
Especialmente atenta às profundas mudanças interna e o discurso autodiegético, a introspeção,
operadas na sociedade portuguesa finissecular, o autoquestionamento e a indagação, o registo
a literatura juvenil, em grande parte pela mão de intimista e confessional, por vezes memorialístico,
Alice Vieira, que se viria a afirmar no panorama personagens que nos inquietam porque nos dão
literário para o público adolescente e juvenil como a conhecer os meandros da sua interioridade e
“a grande revelação da literatura portuguesa para as oscilações do seu sentir através de um discur-
jovens dos anos oitenta e noventa” (Gomes, 1997: so fortemente modalizado que serve claramente
45), soube dar conta dessa evolução da sociedade o intuito de validação do mundo adolescente e a
portuguesa contemporânea, colocando no cen- consequente desvalorização dos adultos, não raro
tro das narrativas literárias destinadas ao público submetidos ao olhar impiedoso e crítico dos mais
III Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação
novos, naquela que se me afigura como uma subtil disfórica e invariavelmente submetidos ao olhar
estratégia de captação do público leitor adolescen- (impiedoso) dos mais novos.
te e juvenil. Nas narrativas de Alice Vieira em que o procedi-
mento autodiegético predomina, é de facto através
de um discurso de primeira pessoa que persona-
Predomínio do Eu – introspeção e discurso
gens e/ou narradoras verbalizam a inevitabilidade
intimista
do dizer(-se) e exploram narcisicamente os cami-
O predomínio da primeira pessoa (e da narração nhos da sua interioridade, incorporando no tecido
autodiegética) institui-se, nas obras de Alice Vieira, narrativo considerações epistemológicas sobre
como um vetor axial na construção das persona- o existir discursivizadas em registo introspetivo e
gens adolescentes que, recorrendo preferencial- intimista.
mente à palavra monologal e a uma retórica da
Ora, sendo a narrativa literária para jovens, nos
intimidade a que frequentes vezes só o leitor tem
finais do século XX, uma produção que assenta
acesso, manifestam, nos seus discursos plurais, as
em matrizes semânticas e genológicas de tendên-
suas inquietações, os seus desejos mais íntimos
cia manifestamente intimista, a preponderância da
e os problemas de ordem afetiva e relacional que
primeira pessoa num discurso fortemente modali-
decorrem das situações de incomunicabilidade e
zado, propício à prática da autoanálise e do auto-
divergência interpessoal e intergeracional com que
questionamento, não surpreende.
se deparam habitualmente.
Assim, os meandros da interioridade subjetiva
Na verdade, em obras como Rosa, minha irmã
são plasmados numa expressão individual não
Rosa, Lote 12, 2º Frente, Chocolate à Chuva, Ca-
necessariamente acessível ao outro - por pudor ou
derno de Agosto, Paulina ao Piano, Úrsula, a maior,
tão-só por vontade de resguardar a sua privacida-
Flor de Mel, Os Olhos de Ana Marta, Águas de
de -, o que explica, pelo menos em parte, a centra-
Verão, Se Perguntarem por Mim Digam que Voei, e
ção preferencial do discurso na primeira pessoa.
muitas outras, as vozes plurais de um sujeito ado-
288 lescente arquetípico, frequentemente configurado Aliás, a inexistência efetiva de um interlocutor
como um eu exemplar, atravessam os universos nesse contexto (pelo menos a nível intratextual)
textuais, instituindo-se o recurso à primeira pessoa acentua a autorreflexividade que enforma os dis-
como estratégia discursiva e enunciativa preferen- cursos plurais das personagens, que manifestam
cial. Nos seus discursos introspetivos, as persona- assim a necessidade imperiosa de falarem de si,
gens narrativizam a problemática da constituição para si, de se dizerem simultaneamente enquanto
do sujeito como ser oscilante e dramático, plas- sujeitos e enquanto objetos.
mando na superfície textual os meandros da sua Nesse sentido, e de forma recorrente, as nar-
interioridade. radoras projetam para o exterior (leia-se, para a
Esse movimento introspetivo de um ser que superfície textual) o discurso interior que corporiza
continuamente se desdobra e multiplica no discur- o seu pensamento ou as oscilações do seu sen-
so é sustentado preferencialmente pela narração tir, no presente, mas também as reminiscências
autodiegética, colocando no centro das narrativas de um tempo passado frequentes vezes evocado
personagens adolescentes, na sua maioria femi- pela memória subjetiva, um tempo filtrado pelo
ninas, que, através do seu ponto de vista e de um olhar distante de sujeitos adolescentes que assim
discurso gerado no seu interior, legitimam não se reveem mimeticamente no espelho da infância.
apenas a sua voz singular mas a da geração a que Numa e noutra situação, os segmentos textuais,
pertencem. cumprindo uma função preferencialmente retórica,
dão conta do mover labiríntico do sujeito dentro de
Tal estratégia narrativa serve o propósito genéri-
si e da sua linguagem.
co de orientação da leitura, uma vez que, pelo filtro
da sua subjetividade, o sujeito enunciativo selecio-
na os dados da sua existência ficcional, construin- Diálogo interiorizado: a dramaturgia da voz
do uma imagem idílica de si, das suas vivências De um modo geral, a modalidade discursiva
pessoais e do seu constructo mental. A partir mais difundida e declinada na narrativa literária
do ponto de vista da personagem em formação, para jovens nas duas últimas décadas do sécu-
constrói-se, pois, um universo ficcional em que se lo XX, e em particular na obra de Alice Vieira, é
procede explicitamente à valorização do mundo o monólogo. De facto, e porque nem sempre as
adolescente e, por consequência, à desvaloriza- personagens encontram nas diversas representa-
ção e desqualificação dos adultos, pelo menos ções da alteridade a comunhão empática que lhes
de alguns, apresentados quase sempre de forma
Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação III
No seu discurso retrospetivo, Mariana vê-se à Desse tempo, Marta guarda a memória das
distância como uma menina frágil e desprotegida agradáveis impressões sinestésicas que então
(com vontade de chorar), uma menina que então se experimentava (“Essa era outra das coisas boas
sentira abandonada pela mãe, mas o eu que assim de se estar doente: o cheiro a alfazema”, as mãos
se observa num tempo pretérito é ainda um sujeito frescas de Leonor “sobre a minha cabeça a escal-
fragilizado pelas emoções então vividas, um sujeito dar” (74)), mas também da indiferença de Flávia, a
que confessa nunca ter sido “capaz de esquecer mãe “que só respondia pelo nome próprio porque –
esse dia” e que assume, sem grande convicção dizia – já não tinha idade para ser mãe de ninguém”
(“quero mesmo?”), querer lembrar-se de outras (25).
coisas – como se a memória se submetesse à von- Compreende-se, portanto, que toda a movi-
tade do sujeito e dele dependesse para irromper, mentação retrospetiva de um sujeito adolescente
dar forma, visibilidade ou nitidez a determinadas que se olha narcisicamente no espelho da infância,
imagens do passado. procurando reunir os fragmentos dispersos de si
Assim se compreende que o processo de cons- e as marcas impressivas que esse tempo anterior
trução de si encontra na visão retrospetiva do deixou no seu íntimo, deriva, nas obras de Alice
sujeito-observador uma das estratégias narrativas Vieira, grosso modo, de um desejo de unificação2
mais declinadas nas narrativas em estudo. Várias que o ajude a compreender-se no presente e a
são as personagens que, à semelhança de Maria- projetar-se no futuro. Por isso, as operações sele-
na, recordam episódios marcantes do seu passado tivas que realiza neste contexto de rememoração e
(na maior parte dos casos, dolorosos), episódios de evocação do paraíso perdido para resumir a sua
que sublinham feridas por cicatrizar, no presente. (ainda) curta experiência de vida passam também
É o caso, por exemplo, de Marta, a protagonista pela recordação dos que já partiram, adquirindo a
de Os Olhos de Ana Marta, que recorda o tempo presença fantasmática dos mortos particular rele-
em que era acometida por febres altas, durante a vância no discurso retrospetivo das personagens
Primavera, embora a sua memória não lhe permita femininas (pré)adolescentes. O eu recupera, pois,
290 precisar o momento em que tudo começou: através da sua memória subjetiva, as palavras, os
gestos, o riso do(s) outro(s), o tempo de harmonia
vivido em comum e que já não causa sofrimento
Não me lembro quando as febres começaram.
porque a dilatação temporal que separa o então do
Quero eu dizer: sempre me lembro de elas agora lhe permite minimizar a dor da perda.
chegarem no princípio da Primavera, mas É assim com Mariana, a protagonista de Rosa,
quando foi a primeira vez que isso sucedeu, Minha Irmã Rosa, Lote 12-2º Frente e Chocolate à
não sei. Chuva, que evoca constantemente, no seu discur-
so interior, a avó Lídia, assumindo lembrar-se dela
Nem tinha sentido chamar o médico, porque
“todos os dias, apesar de ter morrido há quase um
não havia nada a fazer, nem remédios a tomar.
ano” (RMIR, 23). Mariana recorda assim esse tem-
Leonor deitava-me e dizia: po anterior ao nascimento da irmã Rosa, um tempo
em que, como a menina enfatiza, “as coisas eram
- Esteja muito quieta, Vidrinho: chegou a hora. bem melhores cá em casa [porque] chegava da
(OAM, 73) escola, a avó Lídia arranjava-me sempre pão com
queijo, e para ali ficávamos as duas a rir” (RMIR,
O que Marta retém desse tempo é a vulnerabi- 92). Esse era o tempo em que a avó lhe pertencia
lidade de um eu impossibilitado de lutar contra a só a ela, em que a menina era ela e não tinha de
doença, mas sobretudo a dedicação da velha cria- dividir a avó com ninguém, era o tempo em que
da Leonor, que lhe “punha na cama lençóis de linho o riso era fácil e o afeto se traduzia em pequenos
que cheiravam a alfazema” (73), que “não largava gestos do quotidiano.
a cabeceira da (…) [sua] cama” (74), que “não fazia Deste modo se percebe que o eu arquetípico
outra coisa senão olhar para [si]” (74) e que a tra- que atravessa os universos textuais, consubstan-
tava carinhosamente pelo diminutivo Vidrinho por ciado nas diversas manifestações romanescas que
causa das febres que a debilitavam e a tornavam o configuram, é um ser inquieto, permanentemente
frágil, como se depreende das palavras de Marta: em busca de si, um ser que ora se vira para o pas-
“Por causa das febres, Leonor chamava-me às ve- sado e procura filtrar, com um outro olhar, os mar-
zes Vidrinho. Dizia ela que eu não tinha resistência cos incontornáveis da sua história de vida, ora se
nenhuma, que era frágil” (97). foca no presente, tentando perceber quem é e qual
Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação III
o seu lugar no mundo. As constantes movimen- dos romanos, e dos mouros, e não saiba nada
tações discursivas de introspeção e análise que, da minha vizinha?! Como se explica que eu
nas obras em estudo, traduzem a inquietação das saiba quantas toneladas pesava a espada do
personagens adolescentes, dão conta justamente D. Afonso Henriques e não saiba quanto pesa
do seu percurso «iniciático» rumo à maturação, um a máquina de costura da minha vizinha?! (…)
percurso interior feito de avanços e recuos, de he- Como se explica que eu saiba que Isabel era o
sitações e certezas, de contradições e fragilidades. nome da mulher de D. Dinis e não saiba nem o
nome da minha vizinha?! (RMIR, 96)
Indagação e perplexidade: o discurso da
itinerância Frente a frente consigo própria, ou com a voz da
Instituindo-se como o reflexo da natural inquie- sua consciência, Mariana oferece-nos um quadro
tação dos sujeitos em crescimento, a interrogação, reflexivo sustentado pelo procedimento da inter-
a par da projeção retrospetiva, funciona como um rogação retórica, que se afigura, neste contexto,
dos mecanismos linguísticos mais reiterados no como uma estratégia discursiva de autorrepresen-
discurso autocentrado das narradoras, o que não tação com um nítido propósito de fazer participar o
surpreende, uma vez que, como afirma Mercedes leitor na construção de sentidos propositadamente
Manzano, “na adolescência prevalece o mundo das deixados em suspenso. Nesse sentido, o dizer-
perguntas” (Manzano, 1984: 4). Assim, no traje- -se, ou melhor, o interrogar-se pode ser entendido
to indagador do sujeito em busca de si e da sua como um ato perfomativo e pedagógico que impli-
identidade, as personagens adolescentes encetam ca o leitor no circuito comunicativo, empurrando-o
um percurso interior de (auto)questionamento e de para além do texto, obrigando-o também a ques-
(auto)análise que passa inevitavelmente também tionar-se. Aliás, no âmbito dos estudos literários e
pelo confronto com as diversas representações semióticos, as orientações teóricas contemporâ-
da alteridade. Perceber por que são assim e não neas, de que se destacam a perspetiva desenvol-
como os outros é um caminho que se afigura não vimentista defendida por J. A. Appleyard (1991) e a 291
isento de dor para algumas dessas adolescentes, teoria semiótica da cooperação textual concebida
mas o processo de indagação não se fica por aqui. por Umberto Eco (1993), atribuem ao leitor uma
Na realidade, o eu arquetípico que atravessa os função relevante e dinâmica no processo interpre-
diversos universos textuais manifesta, através de tativo do texto literário.
uma forte propensão para o discurso interrogati- Desta forma, o leitor modelo previsto pelo autor
vo, não só um insaciável desejo de (se) conhecer, do texto infanto-juvenil deverá ser capaz de ativar
de perceber os contornos da sua existência (e da os mecanismos da compreensão que lhe permitam
dos outros), de compreender qual o seu lugar no estabelecer inferências e retirar ilações a partir do
mundo, mas também uma necessidade de tecer conteúdo semântico plasmado na superfície tex-
considerações de natureza filosófica e epistemo- tual. Por isso, e apesar de o alcance epistemológi-
lógica quase sempre de grande profundidade, não co e metafísico das interrogações de Mariana - só
sendo, nestes casos, a interrogação sentida como para dar um exemplo - poder não ser demasiado
particularmente dolorosa. evidente a priori, a instância recetiva não adulta
Em Rosa, Minha Irmã Rosa, por exemplo, uma provavelmente será capaz de preencher os espa-
das obras em que o recurso à interrogação é mais ços em branco, ensaiar respostas para as questões
evidente, Mariana questiona-se frequentemente retóricas deixadas em suspenso, projetando-se no
sobre as implicações pessoais e familiares que o lido, e fechar dessa forma o circuito comunicativo
nascimento da irmã Rosa acarretou (74), os sen- através da sua capacidade hermenêutica, apesar
timentos que a unem aos outros (17), o seu cres- da sua inevitável incompetência (ou competência
cimento e o da irmã (66), atitudes que considera condicionada) na decifração de códigos axiológico-
incompreensíveis nos outros (57), o significado de -valorativos mais complexos.
palavras que desconhece ou que não consegue
perceber quando inseridas em contextos pragmá-
Conclusão
ticos não habituais (9) ou o desfasamento entre
o que se aprende na escola e o que se sabe das Percebe-se assim que, aquando da leitura das
pessoas que estão perto de si: obras de Alice Vieira, o leitor funciona como teste-
munha do processo de construção literária de um
sujeito oscilante e dramático, um ser em fase de
Como se explica que eu saiba tantas coisas crescimento e de consolidação da sua personali-
III Sujeitos textuais e construção da identidade feminina: (auto)perceção e (in)aceitação de si; corpo: totalidade e fragmentação
Representações da mulher
no cinema e outras artes:
a (re)configuração do cânone
e da identidade
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
DO CINEMA, O MENOR:
algumas considerações sobre
mulheres, alteridade e documentário
Carla Maia*
(Doutoranda do PPGCOM/UFMG)
Resumo: A partir de dois filmes realizados por mulheres no Brasil que apre-
sentam personagens femininas – Vida (Paula Gaitán, 2008) e Acácio (Marília
Rocha, 2008) - busco elaborar um pensamento que vincula três termos: o
feminino, a alteridade e o cinema, em particular, o documentário. Em lugar de
um cinema de mulher, tomado sob viés autoral ou identitário, me interessa
refletir sobre um cinema com as mulheres, numa perspectiva animada pelo
encontro entre mulheres que filmam e que são filmadas. Em minha análise,
destaco a dimensão relacional e necessariamente política desse fazer com,
estar junto, que tais filmes trazem à cena.
Deleuze e Guattari escrevem sobre uma literatura que poderia ser considera-
da não como língua menor, “mas antes a que uma minoria faz em uma língua
maior.”1 Entre suas características principais, os autores destacam que, nela,
“tudo é político”.2 A proposta desse trabalho é construir uma ponte que sus-
tente tal formulação, levando-a porém a uma outra margem: passar da literatu- 295
ra para um cinema menor - e feminino.
macho, cidadão” e “as mulheres, independentemente de seu número, são
uma minoria”.3 Avançando a partir dos pressupostos de Deleuze e Guattari, a
proposta é justamente refletir sobre alguns filmes que resultam da ação con-
junta de mulheres. Se, de acordo com a formulação deleuziana, o cinema não
apenas apresenta imagens mas as cerca com um mundo, a questão ganha
fôlego e surge renovada: que mundos podem resultar da ação conjunta de
mulheres?
A alteridade começa no feminino, ensina o filósofo Emmanuel Levinas4. Re-
corro ao pensamento do filósofo para compor minha análise, justamente por
defender a ideia de que abordar esse cinema com mulheres exige atentar para
algo como um mundo com alteridade - mundo em que ainda é possível atar
laços e propor partilha.
Certa vez, no Rio de Janeiro, ouvi a diretora ta. É em torno desse centro de gravidade – esse
Claire Denis fazer um comentário instigante a res- atributo de diferença ou de alteridade das mulheres
peito de seu filme O intruso (2004): ela disse que – que busco elaborar um pensamento a respeito da
Jean-Luc Nancy, autor do livro que inspirou o filme, presença das mulheres no documentário brasileiro
contou-lhe que muitos transplantes do coração não contemporâneo. Presença discreta, é verdade, haja
acontecem porque os pacientes do sexo masculino vista a diminuta produção de filmes de assinatura
não querem receber o órgão de uma mulher. Pelo feminina no Brasil, quiçá no mundo. É fato que as
visto, de acordo com eles, um coração feminino cineastas são menores em número, o que pode ser
pode ser algo muito grave. A anedota não é gratui- explicado a partir de uma série de contingências
sociais, históricas, políticas. Entretanto, elas exis-
tem.
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Deleuze e Guattari escrevem: “no Ocidente, o
Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço eletrônico: kkmaia@gmail.
padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, ma-
com / www.carlamaia.com
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
cho, cidadão” e “as mulheres, independentemen- cimento. Um comum que não se constitui sobre a
te de seu número, são uma minoria.” (DELEUZE; semelhança ou a identidade, mas sobre um vazio,
GUATTARI, 2005: 44). Elas são minoria, no enten- uma lacuna, uma falta, que não é preenchida ou
dimento dos autores, porque não se encaixam nos eliminada, mas antes é tornada visível enquanto
padrões ocidentais, porque dizem respeito a uma falta.
alteridade difícil de contar. Em Kafka – por uma Penso num filme brasileiro recente: A falta que
literatura menor, os mesmos autores referem-se a me faz (2009) de Marília Rocha. Nele, a diretora vai
um tornar-se menor – dentro de uma língua maior, ao encontro de um grupo de jovens em Curralinho,
fazer um uso menor, estar em sua própria língua na Serra do Espinhaço, Minas Gerais. No convívio
como estrangeiro. Ao analisar a escritura de Ka- com as meninas, entre imagens do cotidiano – elas
fka, Deleuze e Guattari destacam o modo original nadam no rio, colhem flores, saem para dançar - há
como Kafka soube escrever como nômade, imigra- diálogos com a diretora em que ficam nítidas as
do, cigano de sua própria língua. Tal atitude exige diferenças de mundo que estão ali em contato, em
deslocamentos, rupturas, uma certa maneira de contraste. O casamento, por exemplo, relacionado
fazer a língua vacilar em suas estruturas dominan- à violência e à restrição e portanto visto como in-
tes, numa busca das intensidades menos que das desejável pelas meninas, surge na conversa como
representações: “a linguagem deixa de ser repre- indicador dessa diferença de repertórios: a diretora,
sentativa para tender para seus extremos, ou seus ao ouvir das meninas que elas não pretendem se
limites” (DELEUZE; GUATTARI, 1977: 36). casar, replica numa voz um tanto hesitante: “mas
Propomos explorar esse pensamento do menor casamento é bom…” Há outros momentos como
pela chave oferecida por Deleuze e Guattari, que esse no filme, em que, no diálogo entre a diretora
de modo algum corresponde a “em menor número” e as personagens, restam lacunas, desentendi-
ou “de menor importância”. No cinema, queremos mentos que não permitem uma aproximação total
observar como um certo devir minoritário e femini- ao mundo filmado. Em uma desses momentos,
no gera processos criativos particulares. Quando vemos a personagem Alessandra numa conversa
296 transponho tal pensamento, inicialmente pensado com a equipe do filme. Ela começa por contrariar
para a literatura, para o domínio das imagens e nossas expectativas: no diálogo, é ela quem coloca
sons cinematográficos, quero insistir no que há de as perguntas, ao contrário do que se espera. Uma
político em “tornar-se menor”. Tal movimento, que certa reversibilidade da relação entre quem filma e
pressupõe algo de autônomo e imprevisto, constitui quem é filmado toma a cena. Tudo se passa “como
um devir que só pode existir como minoritário, “de- se” Alessandra ocupasse posição semelhante a
vir potencial por desviar do modelo”, como explica dos entrevistadores – mas nas incompreensões e
Deleuze. Para o autor, não há devir majoritário, a no riso tímido fica evidente que não há, de um lado
maioria apenas reproduz o mesmo, sob o jugo do a outro, equivalências. A cena se constrói, numa
poder e da dominação, enquanto o devir exige a aparente igualdade, que é colocada à prova a todo
variação contínua, o irrompimento da diferença, a instante, dissensualmente. À medida que o filme se
criação. Enquanto a palavra da maioria é palavra de aproxima de suas personagens, surgem a contra-
ordem, estratificada e organizada, uma consciência dição, o impasse, o silêncio, a hesitação. O que se
minoritária compõe com as passagens, detonando torna cada vez mais evidente é a diferença entre
movimentos incontroláveis, na busca por encontrar os mundos que ali estão colocados em contato,
“seu próprio patuá, seu próprio subdesenvolvimen- em contraste: o daquela jovem moradora de Cur-
to, seu próprio deserto” (DELEUZE; GUATTARI, ralinho, Minas Gerais, e o da reduzida equipe que
1977: 29). a filma. No encontro da diretora com o grupo de
Pensar o menor exige uma saída do subjetivo meninas, há sempre algo que falta, que resta fratu-
em favor do coletivo – cada caso individual passa a rado e separado, e essa falta é constitutiva do filme
exercer funções políticas na medida em que outra (como já anuncia o próprio título).
história se agita nele. A enunciação individuada Cria-se, assim, um espaço sensível movido pela
passa a convocar enunciações coletivas, a ação do diferença, pelo dissenso. Um dissenso que se dá
autor passa a constituir-se como ação que cria um a ver sutilmente, mais pela hesitação do que pela
comum. Esse comum não é da ordem da identifi- afirmação. No filme, encena-se uma aproximação
cação, antes, é um comum que só pode surgir das da diretora ao universo daquelas meninas, mas
diferenças, de situações de não-entendimento em trata-se de uma aproximação que não existe de
que, ainda assim, alguma relação se afirma, fora da fato – elas não vem do mesmo lugar, não comparti-
lógica da dominação, da propriedade, do perten- lham do mesmo repertório, não se tornam amigas.
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
Aproximam-se, mas também se afastam. Esse como atriz ao receber o Urso de Prata no Festival
afastamento dá o tom do encerramento do filme, de Berlim de 1985, pela sua atuação como a Maca-
quando vemos uma das meninas na garupa de béa na adaptação de Suzana Amaral do romance
uma moto, na estrada, ao som de uma trilha evi- A hora da estrela, de Clarice Lispector. O segundo
dentemente alheia a paisagem sonora do filme. Se motivo é mais arriscado, porém mais promissor: é
antes ouvíamos músicas populares bem próximas possível encontrar, nesse mesmo livro, preciosas
do contexto das moradoras de Curralinho, o filme chaves de leitura para o filme de Gaitán. Logo no
alcança o final com uma canção francesa, estran- princípio, escreve Clarice: “a minha vida mais ver-
geira em tudo daquele universo: “Je rêve de toi”. dadeira é irreconhecível”. Esse é, também, o efeito
Seria fácil identificar, na canção, o tema do amor, do filme: tornar irreconhecível a vida da persona-
tão caro ao filme (a letra da canção poderia ser tra- gem que propõe retratar.
duzida como “eu sonho com você, escuto sua voz, A cineasta parece guardar “o delicado essencial”
a voz do amor”). Mas a canção é mais que isso: é da escritora, por contar uma história que contém
um elemento que instaura uma certa dissonância segredos1. De forte carga poética, Agreste não se
com aquele universo. O eu sonha com o tu, mas o deixa apreender por completo. Nele, resiste sempre
tu permanece apartado. Em nossa leitura, o filme a abertura do mundo a outros mundos possíveis. A
se torna mais político na medida em que propõe fotografia abusa das sombras, como que a subli-
um trabalho ao espectador, negando a ele qualquer nhar que nem tudo será iluminado pela verdade e
satisfação (o desejo de ver mais, ou o desejo de seus fogos. É na penumbra que Gaitán constrói
integração ao mundo filmado, nenhum desses é o retrato da artista, retrato em que se vê perfeita-
atendido, nenhum voyerisno na observação dessas mente nada. Ou melhor, para ser fiel a uma das
meninas, nenhum fetiche). Assim, ao espectador imagens do filme, um retrato que se forma como
cabe elaborar algo com a falta de correspondên- reflexo na superfície lisa da água, para num segun-
cia, com a distância insuperável e jamais elidida do do momento oscilar e deformar-se, no momento
mundo do outro. em que a água se agita, diante do toque da mão,
Embora bem distintos na forma e no conteúdo, como que a quebrar o feitiço de Narciso. 297
algo análogo se passa nos filmes mais recentes Com Maria Gladys, em Vida, tampouco se
de Paula Gaitán: Vida (2008) e Agreste (2010). Ao adivinha um retrato nítido. Logo na sequência
compor o retrato das atrizes Maria Gladys e Mar- inicial, vemos uma série de porta-retratos velados
célia Cartaxo, respectivamente, tais filmes não nos e desvelados por um tecido vermelho, que culmi-
deixam adivinhar suas feições com nitidez, não são na na imagem de um porta-retrato… sem retrato.
revelados seus segredos, seus detalhes íntimos. Ao Enigmática, a abertura do filme já coloca questões:
contrário, através de um forte investimento poé- “impossibilidade do retrato, ou retrato a preencher
tico, os filmes sugerem associações insuspeitas, a partir da relação contingente e criativa que o filme
bem longe de qualquer fidelidade autobiográfica: (que ali se inicia) vai erigir e reportar?” (MESQUITA,
é assim que Gladys é filmada, por trás de um véu, 2010: 117). Entre a abertura e a impossibilidade,
lendo repetidas vezes o mesmo poema, ou Cartaxo entre a luz e a sombra, firma-se uma relação de al-
atravessa desertos, estranhas paisagens agrestes, teridade formalmente construída, indicada nas es-
até desaparecer nos rostos de mulheres anônimas, colhas e procedimentos expressivos do filme. Além
montados em sequência como uma série de retra- dos momentos de abertura, há diversas cenas em
tos. “Marcélia pode ser todas as mulheres”, diz a que a atriz surge entre sombras, ou por trás de um
sinopse de Agreste – no rosto da atriz se agita uma tecido leve e translúcido. Em outras, Maria Gladys
outra história. declama poemas e versos diversos, repetidamente:
Agreste nos convida a uma incursão pela paisa- “lembrar é quase promessa, é quase, quase ale-
gem de um rosto, de uma montanha, de um campo gria”. Ecoando nos versos declamados repetidas
aberto. Como que a seguir o ensinamento da mu- vezes por Gladys, há o pensamento de Deleuze,
lher que vemos no retrato logo no início do filme, a que escreve que “não é por acaso que um poema
escritora Clarice Lispector, o filme parece não se deve ser aprendido de cor. A cabeça é o órgão
preocupar em fazer-se entender – “viver ultrapassa das trocas, mas o coração é o órgão amoroso da
qualquer entendimento”, escreve Clarice. A pre- repetição” (DELEUZE 1988: 11,12). O filósofo afirma
sença da foto e da voz de Clarice logo no começo que “a repetição só é uma conduta necessária e
do filme, apesar da aparente desconexão, não são fundada apenas em relação ao que não pode ser
nada gratuitas. Por dois motivos. O primeiro, mais 1 A predileção de Clarice Lispector pelos segredos fica bem evidente na
óbvio: Marcélia Cartaxo obteve reconhecimento mesma entrevista da TV Cultura, de onde se retira a frase ouvida no filme.
Diante de várias perguntas, ela responde, simplesmente: “Isso é segredo”.
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
substituído. Como conduta e como ponto de vista, surge desses encontros. Afirmar que esse cinema
a repetição concerne a uma singularidade não com mulheres é um cinema menor é, portanto,
trocável, insubstituível” (DELEUZE 1988:11). Desse sublinhar seu caráter não-totalizante, seu traço de
modo, a repetição não deve remeter a qualquer ge- abertura aos movimentos de alteridade. O cinema,
neralidade, semelhança, igualdade ou equivalência, quando se faz dele um uso menor, busca a frontei-
mas somente ao que é único e singular, aquilo que, ra, como quem testa o limite de sua própria lingua-
de tal modo insubstituível, só pode ser repetido. gem. Com isso, há um abandono da ontologia em
Por isso, ela não se refere a qualquer identidade ou função de estados provisórios de relação, sempre
generalidade do particular. “Para ser parecido, tem muito passageiros, instáveis e incertos, mas que no
que ser muito diferente”, como lembra Gladys no limite dessa incerteza, nesse modo minoritário de
filme, ao ler em voz alta a frase de Caetano Veloso expressão, acabam por criar novas possibilidades
anotada em sua agenda. Lemos a repetição dos de pensamento. “Grande e revolucionário, somente
versos, no filme, como recurso expressivo que tem o menor” (DELEUZE; GUATTARI, 1977: 40).
a ver com a alteridade, algo como “a universalida- Um traço que chama atenção nesses documen-
de do singular”, em termos deleuzianos. O que se tários realizados entre mulheres é como é conferida
repete nunca é o mesmo: é, a cada vez, a singular a elas uma presença praticamente exclusiva nos
e insubstituível aparição do novo. filmes. Os homens ocupam um fora-de-campo,
Entre os diálogos hesitantes e contrastados de embora não possamos dizer que fiquem fora de
Marília Rocha e a presença misteriosa de Maria e cena. Mesmo que não sejam vistos, eles estão pre-
Marcélia nos filmes de Paula Gaitán, afirma-se uma sentes, sobretudo em A falta que me faz, filme que
força feminina que não cabe em determinações e tem o amor como um dos seus principais temas.
não segue princípios normativos, o que coloca pro- As meninas falam muito sobre os meninos, vivem
blemas a uma aproximação das obras pela chave os dramas da relação amorosa, inclusive a gravidez
da identidade ou do reconhecimento. Ao contrário, precoce: duas delas estão grávidas. Elas trocam
é pelo estranhamento que essas mulheres são da- anéis, “brincam” de casamento, mas se recusam a
298 das a ver. Esse modo de aparecer como um enig- cumprir o papel de esposas, querem fugir da sina
ma, fora de qualquer identificação, faz do feminino de suas mães e avós que se viram condenadas ao
potência de alteridade e, do cinema, instrumento trabalho doméstico e a uma vida de submissão ao
de relação com essa alteridade. Não se trata, por- marido. Diante desse impasse – entre o desejo de
tanto, de afirmar um feminino centrado no sujeito, encontrar o amor e o de evitar a opressão advinda
ou um feminino estilisticamente formado, delineado da relação com o homem – elas hesitam, e junto
pelo gênio criativo de uma diretora que distribui com elas, hesita o filme. Com efeito, o filme deixa
cada coisa em seu lugar: trata-se de um feminino mais incertezas que verdades. É tudo passagem
politicamente problematizado e tensionado, justa- - o amor, a gravidez, a moto na estrada que leva o
mente pelo encontro entre autoras e personagens, casal de namorados ao final (para onde irão?).
e destas com o espectador. O amor, no filme (e na vida?), jamais se realiza
Por isso propomos pensar um cinema com completamente. Ele se efetua momentaneamente,
mulheres, e não um cinema de mulher. É na alte- num beijo apaixonado da jovem em seu namora-
ração da preposição, um pequeno detalhe, que se do, mas somente para se esquivar em seguida,
dá a mudança de sentido fundamental para nossa no olhar dessa mesma jovem, dirigido ao extra-
argumentação. Dizer “cinema de mulher” implicaria -campo. A relação do eros, nos escritos do filósofo
pensar em traços autorais, padrões de estilo. A es- Emmanuel Levinas, encontra, na incompletude, sua
ses padrões, contrapomos filmes que são realiza- singularidade:
dos em terrenos instáveis de abertura aos movi- Só ao mostrarmos aquilo por que o eros difere
mentos do outro, filmes em que a fala hesita diante da posse e do poder é que podemos admitir
do impasse, em que os planos se chocam uns con- uma comunicação no eros. Não é uma luta,
tra os outros, fragmentam-se em passagens que nem uma fusão, nem um conhecimento. Há
não chegam a se concluir. Afirmar o com é buscar que reconhecer o seu lugar excepcional entre
um comum firmado sobre a lacuna e o vazio, mas as relações. É a relação com a alteridade, com
que ainda assim se afirma, enquanto necessário o mistério, quer dizer, com o futuro, com aquilo
endereçamento ao outro. Paula encontra Marcélia que, num mundo onde tudo está dado, nunca
e Maria, Marília encontra Valdete, Alessandra, Cota, está lá, com aquilo que não pode estar onde
Priscila, nós, espectadores, as encontramos, na tudo está (...) (LEVINAS, 1983: 81,82).”
tela: é assim que os filmes se constróem, do que
Eis que se anuncia, na relação com a alteridade
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
que é também relação com o futuro, um tempo já quanto mulheres’, o dado da diferença sexual com
não mais contido no horizonte ontológico do ser, todas as suas mais impertinentes decorrências e
mas au delà de l’etre, na relação com o outro. Para implicações até então impensadas” (PIERUCCI,
Levinas, o tempo e o outro só podem ser pensados 2007: 32). Iniciada nos anos 1960, essa “onda” co-
conjuntamente. O futuro é a temporalidade própria loca toda uma nova problemática em torno do pen-
da relação com a exterioridade, o acontecimen- samento sobre as mulheres “enquanto mulheres”
to do absolutamente outro. “O tempo significa o – o que seria o específico do sexo feminino? A di-
sempre da nãocoincidência, mas também o sem- ferença irredutível da mulher seria de ordem natural
pre da relação”(LEVINAS, 1983: 10). Em lugar da ou cultural? Origina-se no corpo ou na sociedade?
representação do outro, que depende da presença É possível pensar uma diferença irredutível entre
ou co-presença para se efetuar, Levinas propõe homens e mulheres sem com isso determinar uma
o tempo do outro, enquanto abertura para sua relação de dominação? Como pensar a relação
dimensão infinita, sua alteridade. Liberto de uma entre os sexos de forma positivamente diferente? A
compreensão totalizadora que tome o tempo como todas essas questões de difícil resolução, Levinas
linear e progressivo, o movimento do tempo é ago- oferece uma resposta intrigante e promissora:
ra a transcendência. Sua significação é marcada Todas estas alusões às diferenças ontológi-
pelo mistério - o mistério da morte (LEVINAS, 1983: cas entre o masculino e o feminino parecerão
11), como escreve Levinas. Também o mistério do talvez menos arcaicas se, em vez de dividir a
feminino: humanidade em duas espécies (ou em dois
O feminino é outro para um ser masculino, gêneros), elas quisessem significar que a par-
não só porque é de natureza diferente, mas ticipação no masculino e no feminino é próprio
também enquanto a alteridade é, de alguma de todo o ser humano. Será este o sentido do
maneira, a sua natureza. Não se trata, na rela- enigmático versículo do Gênesis 1:27: homem
ção erótica, de um atributo noutrem, mas de e mulher os criou?” (LEVINAS, 1982: 58).
um atributo de alteridade nele (LEVINAS, 1982:
O autor defende menos uma ontologia do que 299
58).
uma ética, um modo de relação ao ser que não
Para Levinas, homem e mulher, ou mais precisa- passe pela determinação, mas pela relação. A críti-
mente, masculino e feminino são, de saída e para ca de Levinas ao idealismo hegeliano toca precisa-
sempre, incomparáveis. O atributo de alteridade mente nesse ponto: conhecer, pela representação,
que o feminino possui funda a distância infinita é determinar o Outro pelo Mesmo, sem que o Mes-
que impede a comparação. Nos escritos de Levi- mo se determine pelo Outro (LEVINAS, 1980: 164).
nas, o feminino é o outro per si, incognoscível visto Elimina-se toda e qualquer alteridade da relação
que seu modo de ser é o de uma fuga diante da entre-dois em favor da soberania do ser. Contra
luz: “a maneira de existir do feminino é esconder- essa vontade de representação do outro que acaba
-se”, escreve o autor, “seu mistério constitui sua por determiná-lo em identidades fixas - o negro, a
alteridade”(LEVINAS, 1983: 79, 80). O feminino, mulher, o pobre, o imigrante etc. - Levinas, defen-
por designar não apenas uma diferença qualita- de o outro como incomparável, não-representável.
tiva, mas antes a qualidade mesma da diferença, Isso não significa relativizar sua existência: sabe-
permanece como absolutamente outro, enigma mos bem que os negros, as mulheres, os pobres,
que não se pode desvendar, mistério reservado às os imigrantes existem. Trata-se, porém, de uma
vidas futuras.2 esquiva da representação, do conhecimento, em
Não é nova a discussão que relaciona a ideia de favor de uma aposta no exigente jogo da alterida-
feminino com a noção de alteridade ou diferença. de: se o outro é uma questão sem resposta, entrar
Na teoria feminista, como explica Antônio Flávio em relação com ele é uma tarefa imperativa. A
Pierucci, há uma forte “onda” diferencialista, que argumentação de Levinas segue a lógica de um
tratou de inverter o sinal negativo da diferença, sujeito despojado de poderes, na condição mes-
“bloquear a carga inferiorizante de um preconceito ma de estar sujeito ao outro: para tornar possível
tradicionalista e explorar, e favor das mulheres ‘en- a política, é preciso dar ouvidos às exigências do
intersubjectivo. Diante do outro, nada posso, tudo
2 Pensar as vidas futuras é pensar a fecundidade, tópico ao qual Levinas
devo. Trata-se, portanto, de entender a subjetivida-
dedica longas reflexões. A relação de filiação é, para Levinas, ainda mais de de um modo bem diferente – em lugar do sujeito
misteriosa que o feminino, “é uma relação com outrem em que outrem é soberano do idealismo, o ser-em-si, ou mesmo do
radicalmente outro, e em que, apesar de tudo, é de alguma maneira, eu, o eu sujeito fragmentado do desconstrucionismo, temos
do pai tem de haver-se com uma alteridade que é sua, sem ser possessão ou um sujeito que existe para-outrem, um processo de
prioridade”(LEVINAS, 1982: 61).
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
subjetivação fundado sobre uma impossibilidade, ________________. Kafka – por uma literatura
um não-poder diante do outro. menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
Para dar conta de toda essa problemática no LEVINAS. Entre nós. Ensaios sobre a alteridade.
campo do cinema, consideramos fundamental a Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
atenção ao documentário, esse “pobre cinema de __________________. Ética e Infinito. Lisboa:
atualidades”, como quis Godard, um cinema afeta- Edições 70, 1982.
do pela alteridade. Menos um pacto de verdade do __________________. Le temps et l’autre. Paris:
que uma tentativa de relação, a prática do docu- Quadrige, 1983.
mentário se orienta pela criação de um comum,
__________________. Totalidade e Infinito. Lis-
ainda que fraturado, disperso, difícil de apreender.
boa: Edições 70, 1980.
É evidente que alguns filmes são mais ou menos
bem sucedidos nessa empreitada, mas o que bus- MESQUITA, Cláudia. Retratos em diálogo: notas
camos refletir é como a participação mais efetiva sobre o documentário brasileiro recente. Revista
das mulheres contribui nesses processos criativos Novos Estudos CEBRAP, n.86, março de 2010, p.
menores, dedicados ao que difere, atento às potên- 105-118.
cias de alteridade presentes no mundo. PIERUCCI. Do feminismo igualitarista ao femi-
Defendemos uma pesquisa das mulheres no ci- nismo diferencialista e depois. In: BRABO (org.).
nema que passe pela tentativa de evitar arquétipos, Gênero e educação: lutas do passado, conquistas
de fugir de relações biunívocas de contraposição do presente e perspectivas futuras. São Paulo:
entre masculino e feminino. “O arquétipo procede Ícone, 2007.
por assimilação, homogeneização, temática, ao
passo que só encontramos nossa regra quando
resvala uma pequena linha heterogênea, em ruptu-
ra” (DELEUZE; GUATTARI, 1977: 12). Não acredita-
mos numa estrutura simbólica própria do feminino
300 que encontraria, nos filmes, sua expressão, sua
simetria. Tampouco queremos, pela via da inter-
pretação, revelar significados ocultos das imagens
que os filmes apresentam. Interessa-nos apenas
uma política fundada pela presença e ação das
mulheres no mundo, mas uma política bem diferen-
te daquela da representação. Uma política que se
faça como experiência sensível, como prática de
relação com a alteridade. Sobretudo, uma políti-
ca que não faça do Outro apenas o contrário do
Mesmo, mas algo de, a um só tempo, radicalmente
inacessível e necessariamente endereçado. Não
se trata, simplesmente, de tomar a política como
instrumento de combate à opressão na busca
por uma liberdade, mas de valorizar alguns movi-
mentos que destacam qualidades heterogêneas e
dissonantes de dentro das estruturas dominantes.
Tornadas visíveis, expostas em suas fragilidades,
essas heterogeneidades talvez permitam encontrar
não saídas ou entradas, mas portas laterais, cor-
redores obscuros, caminhos tortuosos através dos
quais seja possível tatear outros modos de acesso
ao mundo.
Referências bibliográficas:
DELEUZE. Diferença e repetição. Rio de Janeiro:
Graal, 1988.
DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs. Capitalismo e
esquizofrenia. Vol.2. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2005.
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
Modulações do Feminino
na canção de Chico Buarque
e na Pintura Brasileira
Adelia Bezerra de Meneses
Universidade de São Paulo (USP) e
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) (Brasil)
Resumo: Chico Buarque sempre foi reconhecido no Brasil como um dos poe-
tas que mais sensivelmente captam o feminino e o exprimem, traduzindo-o em
palavras e música. Em sua lírica entranhadamente corporal, emerge o ser e
a fala da mulher de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina.É
esta a proposta desta apresentação: um estudo temático das letras que mo-
dulam o feminino na canção desse compositor, e que utilizará uma abordagem
ora sociológica, ora psicanalítica – inevitáveis quando se trata de “questões de
gênero”. Partindo da vinculação do tema das mulheres ao da marginalidade
social , apontam-se, entre outros tópicos, a mulher “dionisíaca” (canção “Ela
desatinou”) e a mulher “prometéica” (canção “Quotidiano”); a mulher na or-
dem da festa e na ordem do trágico – especificamente, a maternidade ferida
(“Angélica” e “ Meu Guri”) ; a sobreposicão das imagens da mulher e da polis,
mesclando o afetivo e o social, o erótico e o político (“Cala a boca Bárbara”).
301
E chega-se à conclusão de que é impossível tratar-se da mulher sem que
se desvende também o homem, sem que o masculino seja convocado: é no
contexto de uma intensa relação afetiva que se flagra o fundamental do femi-
nino. E é por isso que se acabará deslizando inescapavelmente para o terreno
dos afetos, obrigando-nos a descortinar o poderoso filão da lírica amorosa do
Autor. (Como exemplo, a canção “Pedaço de Mim”). Os temas da mulher e do
amor, que por sinal entraram juntos na poesia ocidental, são reciprocamente
aferidos. No entanto, as “modulações” de que fala o título não se restringirão
apenas à alta poesia de Chico Buarque, mas dirão respeito, também à presen-
ça da mulher no imaginário de pintores brasileiros. Assim, reproduções de Di
Cavalcanti, Ismael Nery, Candido Portinari, Vicente do Rego Monteiro, Flávio
de Carvalho, entre outros, estabelecerão – pela mera aposição – um diálogo
texto-imagem que pode ser eficaz.
O poeta é aquele ser a quem é dado, mais do pintura brasileira. São os artistas que propiciam o
que aos outros, o poder de manifestar a vida dos “nascimento de Vênus”, o nascimento do feminino
afetos; é como se ele tivesse uma maior possibili- no imaginário brasileiro.
dade de contacto com o próprio inconsciente (pes- Aliás, “Nascimento de Vênus” numa praia bra-
soal e filogenético...) e a poesia é um espaço em sileira é o que se vê numa pintura de Di Cavalcanti,
que se permite ao inconsciente aflorar. Eu propo- do ano de 1940, e que tem esse título:
nho uma amostra -- nos limites deste ensaio, uma
pequeníssima amostra -- de composições que
É interessante fazer-se um contraponto com o
modulam o feminino na canção de Chico Buarque.
“Nascimento de Venus” de Botticelli – quadro com
Apenas uma amostra dessa temática, que é riquís-
o qual Di Cavalcanti inequivocamente – a partir do
sima. Importa observar que as figuras do Feminino
título! – dialogará.
evocadas não se restringirão apenas à alta poesia
de Chico, mas dirão respeito também à presen-
ça da mulher no patrimônio de sensibilidade da Botticelli: “Nascimento de Vênus”, 1485.
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
a manhã, o espectador da cena – que vem a ser de ser ao mesmo tempo ele próprio e outro. E eu
o eu lírico -- se confessa paralisado , “atolado acrescentaria: ou outra. É assim que , assumindo o
na areia” e, também literalmente, “sem palavras” eu lírico feminino, ele fala como mulher. Na canção
(Mas o assombro gelou / na minha boca as pala- de um homem, Chico Buarque, emerge a fala da
vras que eu ia falar)”. Isso é grave porque se trata mulher, de uma perspectiva, por vezes, espantosa-
de um artista (poeta, compositor, ficcionista, que mente feminina..
trabalha com a palavra. “Músicas imaginei” diz o É o caso da canção “Pedaço de Mim”, em que
eu lírico que é um poeta dublado de compositor. surge com grande intensidade o sentimento femini-
E na sequência, ele recupera as palavras de sua no de perda, de privação, de falta:
boca, com que comporá os versos da canção que
estampa a sua reação diante do feminino:
Oh, pedaço de mim
Ela era ela era ela no centro da tela daquela
Oh, metade exilada de mim
manhã
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
A presença dominadora do feminino é marte-
lada pelo pronome pessoal feminino “ela”: Ela era Que aos poucos descreve um arco
ela era ela – que ecoa dentro do termos “tela” e E evita atracar no cais
“daquela”. Então: é sob o signo do nascimento de
Venus no imaginário brasileiro que esta abordagem Oh, pedaço de mim
que se seguirá é feita. Vamos ver algumas modu- Oh, metade arrancada de mim
lações do feminino na canção de Chico Buarque, Leva o vulto teu
onde “ela” ocupa o centro da tela.
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Mulher como protagonista
Do filho que já morreu
É inegável que a canção de Chico privilegia a 303
Oh, pedaço de mim
fala da mulher, como na galeria das suas perso-
nagens sobressai o marginal como protagonista. Oh, metade amputada de mim
Desde o Pedro Pedreiro do seu primeiro disco Leva o que há de ti
(1965), até “Sinhá” (do último CD e do show de Que a saudade dói latejada
2012) os despossuídos têm voz e vez: sambistas, É assim como uma fisgada
malandros, operários, pivetes, escravos, mulheres. No membro que já perdi
Mulheres. O seu discurso dá voz àqueles que em
[...]
geral não têm voz. Assim, encontraremos, de uma
certa maneira, o tema das mulheres vinculado ao
tema da marginalidade social. E não por acaso, O poeta fala de um “ pedaço de mim”, de uma
junto com a temática do marginal, em Chico Buar- metade – exilada / arrancada / amputada” ... de si..
que emerge a fala da mulher — o que o filia a uma Evidentemente, há aqui uma convergência de ele-
velha tradição: a tradição grega do dionismo.. mentos: de uma perspectiva psicanalítica (freudia-
na), o complexo de castração: a percepção femini-
Seguem, à guisa de ilustração de magníficas
na de que lhe falta um pedaço, como queria Freud
“modulações do feminino”, pinturas, respectiva-
(e que se evidencia nesse “metade amputada” de
mente, de Ismael Nery (“Mulher com Ramo de
mim); no nível do mito, uma dupla alusão. De um
flores”) e de Volpi: “Mulata”.
lado, alusão ao Andrógino do Banquete de Platão:
o ser composto, dividido por Zeus em 2 metades,
No entanto, há uma observação importan- que hão de procurar-se, inapelavelmente... De outro
tíssima a ser feita: como é sempre no contexto de lado, ainda no nível mítico, mas de outra vertente
uma intensa relação afetiva que se flagra o funda- cultural, alusão à narrativa mítica da Criação, tal
mental do feminino,ao tratar da mulher deslizar- como ela aparece no Genesis, no primeiro livro da
-se-á, inevitavelmente, para o mundo dos afetos, Bíblia: – trata-se do texto em que Javé cria Eva a
obrigando-nos a descortinar o poderoso filão da partir de uma costela de Adão.
lírica amorosa de Chico Buarque. Assim, não se
pode falar da mulher sem falar do homem, sem
O que de melhor para ilustrar a canção “Pedaço
convocar o masculino.
de Mim” de Chico Buarque do que a pintura inti-
Diz Baudelaire que o Poeta dispõe do privilégio
tulada “Casal”, de Ismael Nery, no qual um homem
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
e uma mulher, num registro dramático, compõem mas que, por problemas de censura só em 1980
uma única figura, metades orgânicas que procuram pode ser conhecida pela público. Nessa peça os
uma unidade à beira do risco? autores empreendem uma reconsideração do pa-
Voltemos ao mito: é essa percepção de radical pel histórico dessa personagem, Calabar, da época
incompletude que experimentamos, a dor da mu- do Brasil Colônia, considerado como o traidor por
tilação nas separações amorosas, a percepção da excelência na historiografia brasileira oficial. De
falha, da falta, da carência – é a isso tudo que res- 1630 a 1645 o Brasil foi ocupado pela Holanda, e
pondem essas duas narrativas míticas, de culturas as lutas entre portugueses e holandeses travadas
diferentes, grega e judaica. aqui ressoam o eco das disputas que ocorriam na
“Pedaço de mim” é uma canção que tematiza a Europa. E havia interesses muito precisos em jogo:
separação – e a saudade. Um homem e uma mu- o açúcar, imenso potencial econômico. Na guer-
lher se falam, no momento da despedida. Momento ra para a expulsão dos holandeses, Calabar, que
de intensidade extrema, desraigadora. A caracteri- lutava com os portugueses, passa para o lado dos
zação dos amantes separados se faz pelo estigma holandeses. Julgado como traidor, foi condenado
da mutilação: de arrancar pedaços. A unidade (pre- e executado.
cária, fugaz, ilusória) que se consegue no encontro Nessa canção reverberam os problemas políti-
amoroso, quando rompida, leva à percepção de cos tanto do período histórico em que se desenrola
uma mutilação. O Andrógino era, efetivamente, o a trama da peça, o século XVII, os percalços do
ser total, completo, pleno. Dividido, restam meta- Brasil Colonia, quanto dos tempos em que foi pro-
des incompletas, faltantes. Vivemos na nostalgia duzida a canção (década de 70, os anos de chum-
de uma unidade perdida. Com efeito, quando essa bo da Ditadura Militar brasileira).
unidade se rompe, restam metades desamparadas, Vamos à canção:
procurando sua outra “cara metade”. Há quase que
uma perda do próprio eu, no momento da sepa- Ele sabe dos caminhos
ração. A intensa troca entre os amantes faz com
304 Dessa minha terra
que a própria identidade deles seja alterada. O que
remeteria a um belíssimo soneto de Camões: No meu corpo se escondeu
Transforma-se o amador na cousa amada Minhas matas percorreu,
por virtude do muito imaginar Os meus rios,
não tenho logo mais que desejar Os meus braços
Pois em mim tenho a parte desejada. Ele é o meu guerreiro
-- no qual, embutida, está a idéia petrarqueana Nos colchões de terra
de “L’amante nell’amato si trasforma”. Nas bandeiras, bons lençóis
Nas trincheiras, quantos ais, ai
*** Cala a boca,
Vamos a uma outra modulação do feminino. Olha o fogo,
“Cala a boca, Bárbara” é uma canção cujo “eu Cala a boca,
lírico” é feminino”, e que representa a variante Olha a relva,
engajada e política de Chico Buarque, com uma Cala a boca, Bárbara
sobreposição de planos erótico, telúrico e político. Cala a boca, Bárbara
Trata-se de uma das mais intensas e delicadas Cala a boca, Bárbara
canções de amor da Literatura Brasileira, em que
Cala a boca, Bárbara
os elementos da natureza metaforizam o corpo
feminino; aí se apresenta uma mulher que é ao Ele sabe dos segredos
mesmo tempo amante e parceira de luta, a guerri- Que ninguém ensina:
lheira. Onde guardo o meu prazer
(Não podemos nos esquecer de que essa can- Em que pântanos beber,
ção foi composta nos inícios da década de 70, As vazantes,
nos anos de chumbo da Ditadura Militar, em que As correntes,
grupos de militantes propunham o enfrentamento
Nos colchões de ferro
da repressão militar com a luta armada -- a Guerri-
Ele é o meu parceiro
lha.) Essa canção integra a peça de teatro Calabar
, escrita por Chico Buarque e Rui Guerra, em 1973, Nas campanhas, nos currais
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
Nas estranhas, quantos ais, ai canta a canção, e em quem o amado está intensa-
Cala a boca, mente presente. Ela nunca o chama, nessa canção,
Olha a noite, pelo nome: Calabar é o ele a que se refere. No en-
tanto, é esse nome que se forma, com espantosa
Cala a boca,
nitidez, como uma constelaçào, à força da repeti-
Olha o frio ção quase obsessiva do refrão:
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara CALA a boca BÁRbara : CALABAR
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara Aquilo que Bárbara silencia, é o que reponta,
com força e realidade. Impõe-se uma técnica
Como se vê, trata-se de um poema em que o psicanalítica: no não dito, descobrir-se o dito. No
corpo feminino, com a sexualidade feminina inten- inter-dito, descobre-se o dito. Interdito porque foi
samente presente, se sobrepõe a imagens da terra: interditado (por injunções da censura) e interdito
rios, matas, vazantes, enchentes, relva, pântanos porque está dito entre as sílabas das palavras que
– tudo sintetizado em “essa minha terra”. Cada um constituem o refrão. O nome proibido continua
desses termos pode ser submetido a uma dupla a ressoar, no tecido da linguagem. O essencial é
leitura, no registro paisagístico, e no registro eróti- aparentemente omitido, mas ele está lá, latejando
co: eles evocam toda uma geografia simbólica do (latente...) no coração do discurso. A partir daí,
corpo feminino, marcam inequívocas referências a própria palavra Calabar, reinventada, passa a
(por alusão e/ou analogia) ao sexo da mulher: pe- condensar em si o “Cala a boca” que estigmatiza
los, fenda e fonte de umidade. a peça e os tempos que a geraram. Doravante,
No entanto, essa terra/mulher não há que ser aqueles que lerem/ouvirem esta canção, incorpora-
considerada só do ponto de vista telúrico, mas rão o “Cala a boca” ao nome de Calabar. E o nome
também do político: é a terra pátria, pela qual vale de Calabar conterá o nome de Bárbara: fusão de 305
a pena lutar. Calabar era um “guerreiro”, ao mesmo amantes apaixonados. Aqui também, nessa canção
tempo que “parceiro”, e a mulher que aí aparece é que diz respeito a dois amantes, um pode dizer do
a guerrilheira, misturada ao combate e identificada outro, literalmente, que é um “Pedaço de Mim.” E
com o país pelo qual se luta. A entrega do homem, comprova-se que não se pode falar da mulher sem
no jogo amoroso, é a entrega à mulher-terra, pos- falar do homem, e vice-versa.
suidora de trincheiras/entranhas (povoadas de ais).
Ao registro telúrico, soma-se não apenas o erótico,
mas o político.
Em contraponto ilustrativo, a pintura “Mulher” de
Flávio de Carvalho:
306
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
Território de mulheres
Pontuações do trânsito entre
as montanhas de Minas Gerais
e a cordilheira dos Andes
Dulce Couto
Especialista em Arte Contemporânea, Brasil
Este trabalho tem a intenção de delinear parte de possuem uma relação direta com as experiências,
um percurso com as Artes Visuais, especificamen- com a espacialidade, temporalidade e universo
te com as configurações híbridas do campo am- imagético nos quais as obras foram geradas.
pliado1 da cultura contemporânea, procedimento Apesar das variações contidas em cada obra,
esse que venho percorrendo como artista ao longo conceitos comuns ou recorrentes, abordam subs-
de uma pesquisa estética. tâncias tal como: vida e morte, fronteiras, territó-
Por se tratar de um trabalho que busca organizar rios, transitoriedade e erotismo3, constituindo des-
pontos imagéticos que são as chaves que acionam te modo as vertentes fundamentais que deságuam
um campo memorial, dentro de um território espe- no campo do sagrado e do profano4 do universo
cífico, foi utilizada como metodologia a proposta de feminino. O erotismo é uma experiência que de-
impregnação e interpretação2, que a princípio pro- pende de seu aspecto proibido e sagrado e nasce
cura estreitar o contato com uma produção visual, justamente deste sentimento de violação, de pro-
registrando, coletando dados e materiais relaciona- fanação de seu objeto. O erotismo se liga á morte
dos com o percurso pesquisado porque de certa forma antecipa a experiência da
Vale ressaltar que os pontos de memória, emer- morte. O ser humano, segundo Bataille, é um dado
gidos de um território exclusivamente feminino, trágico e em suas concepções, a vida e a morte,
são bastante distintos entre si e que os elementos a dor e o êxtase comunicam-se em agonia, numa
utilizados nas obras também o são. Tais elementos estética que permeia o sujeito com sua ambivalên-
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
cia. De acordo com suas concepções o erotismo é cor avermelhada abundante no Chile e que me
a aprovação da vida até na morte. remete á terra vermelha do vilarejo onde nasci em
Nessa vertente, a pesquisa remete ao memorial Minas Gerais. Esse material também possui uma
de uma trilha percorrida e supostamente vivencia- maleabilidade como a terra de minha infância e na
da. Vale ressaltar que a idéia de trilha consiste em arte possui uma função primordial como suporte
um percurso que já foi percorrido por muitos, um de gravação, o que também remete à necessidade
caminho que se constituí pela constante passagem de gravar as imagens contidas em minha memória.
de andarilhos que migram de um lugar para outro e O cobre permite a presença de marcas origina-
aproveitam as pegadas já existentes e as clareiras das pela oxidação do metal a partir do manuseio,
já abertas deixadas pelos outros que por ali passa- tendo em vista que tais marcas remetem ao corpo
ram. ausente, que anteriormente foram feitas a partir de
Portanto nessa trilha, caminho que muitos já uma presença física que ali não habita mais. Foram
transitaram com suas propostas artísticas, me também utilizados nas obras materiais coletados
embrenho agora como uma andarilha que está nos lugares percorridos como: espinhos, terra,
sempre pronta para partir e com anseios de retorno lágrimas de pessoas e imagens de santos. Todos
ao antigo território. os materiais carregam em si suas relativas cargas
afetivas e semânticas e estabelecem uma relação
Esta relação diaspórica5, na qual sempre se
com elementos advindos do meu imaginário.
busca a tão sonhada origem perdida na escuridão
do tempo e do espaço me impulsiona a estabe- Nessa vertente apresento um breve percurso
lecer diálogos com as diferenças culturais obser- que mapeará parte desse território poético.
vadas durante o caminho, trânsito pontuado de
memórias. Esse trânsito é determinado apenas por Um breve percurso
pontos que se somam a partir do tempo vivido, de Os impulsos que acionaram essa produção
uma existência que inclua o passado, o presente visual são originários de minha infância em Minas
e o futuro e que vai se abrindo no momento em as Gerais. Meu imaginário abriu as portas para um
308
chaves da memória e do imaginário são acionadas. mundo repleto de imagens e sentimentos dos quais
Esse caminho é uma busca sem um fim, sem uma me recordo de forma fragmentária, como se fos-
intenção de propor um perfil definido6 que não se sem retalhos de memória que tento resgatar para
basta em nenhuma cartografia estabelecida. organizar e construir uma história.
Para realização da pesquisa elegi um campo de Dessa trajetória imagética recordo-me dos san-
especulação para definir o território de trabalho, tos milagreiros que sabiam curar todos os males e
aquele que ainda estou demarcando e que hoje é dos demônios que sabiam com maestria a alquimia
composto por pontos que sinalizam minha carto- das tentações. Nessa mescla de fantasia e realida-
grafia, meu mapeamento poético na forma de um de, medo e coragem, a morte era muito presente
solilóquio7. Na verdade busco unir vários percursos e sempre visitava o pequeno vilarejo onde eu vivia.
sob a forma de pontos que recordo, imagens que Tal visita produzia velórios nos quais as carpideiras
vão compondo e aperfeiçoando minha identidade8 ecoavam um coro de gemidos regado de lágrimas.
como ser humano e como artista. Do negro profundo de minha imaginação, onde
O território de trabalho eleito teve para mim um habitam fortes impressões, recordo-me dos lenços
valor afetivo e significativo. Entre as montanhas de que elas usavam, desenhados por uma monocro-
Minas Gerais, no Brasil e a cordilheira dos Andes, mia de lágrimas já secas, sempre prontas para se-
no Chile, estabeleci um diálogo com essas cul- rem redesenhados novamente por novas lágrimas.
turas, buscando referências não só em minhas Essas lembranças me remetem atualmente aos
próprias memórias como também, em possíveis caminhos por onde transitei. Esses caminhos me
correspondências ou analogias com o ambiente impulsionaram a ressignificar essas imagens de mi-
cultural desses lugares. nha infância, criando a partir de minhas andanças
Considerando a experiência gerada na vivência novos lenços com outros significados. Os lenços
desse trânsito, apresento algumas obras que reme- foram tingidos com monocromias de pigmentos
tem de forma direta e às vezes por meio de me- extraídos da terra do lugar onde nasci. As imagens
táforas esses pontos que agora somados demar- são oriundas de manchas que surgem com a umi-
cam parte de meu território poético. Faço dessas dade dos lenços em contato com terra vermelha.
aparições, minhas imagens, meus fragmentos que Os caminhos que surgem são demarcados por
pavimentam esse percurso. meio de bordado com fios de cobre. Tais percur-
Na maioria das obras utilizo o cobre, metal de sos foram transitados por mim e indicam que o
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
momento do inicio de cada caminho é o ponto de Essas sensações, captadas pelo corpo de algu-
partida para o seu um fim. ma forma remetiam á minha interioridade, ás frag-
mentárias lembranças de coisas sagradas e profa-
Choro de carpideira – seda, pigmento de terra e nas, de nascimento e morte, de perdas e também
fios de cobre – 400 x 30 – 2006 ( detalhe) de erotismo. Vale ressaltar que o erotismo está
associado á própria dinâmica da vida, á sua inte-
rioridade, á sua essência. Para Bataille o erotismo
Também nessa concepção de caminho foi é, na consciência do homem, o que leva a colocar
construída uma cartografia tridimensional ligando o seu SER em questão. Portanto, o erotismo, é por
o hemisfério Norte ao Sul, dois pólos opostos: vida excelência, uma experiência interior, na medida em
e morte, sagrado e profano, dor e êxtase. Os dois que seu sentido último está em conduzir o sujeito
pólos se apresentam configurados por um ex- a um estado de interioridade plena. Para ele todos
tenso tubo de cobre remetendo a uma trilha, mas existem por dentro.
não podemos determinar onde é o início ou o fim
Nesse denso território de memórias as mulheres
dessa trilha. A trilha segue serpenteando pelo ar,
de minha terra me introduziram no incomensurável
repleta de pequenas conexões que deixam aflorar
universo feminino. Com elas aprendi a magia da
pequenos recipientes de vidro. Os recipientes são
terra, a mesma terra que coloria seus pés descal-
garrafinhas coletoras de lágrimas expelidas por
ços. As mulheres recebiam o nome de pés verme-
pessoas que encontrei ao longo dessa pesquisa. A
lhos, pois o clima frio de inverno fazia trincar em
trilha chora as lágrimas de encontros e despedidas
sulcos seus calcanhares, impregnando-os da cor
expelidas por uma torneira de cobre.
rubra da terra. Elas eram fortes, trabalhavam no
plantio e na colheita da lavoura. Algumas iam com
Trilha Guarani – cobre, vidro e lágrimas – 300x seus filhos ainda no ventre, sempre mais cuida-
30 – 2007 ( detalhe) dosas nestas ocasiões devido ao fato da enorme
barriga não lhes conceder grande mobilidade. As
As experiências sensoriais vividas na infância crianças sempre ajudavam devido ao fato destas 309
definiram também a forma de relacionar com o serem também convocadas para acompanhar o
mundo, estimulando meu corpo por meio dos ritual do plantio e da colheita dos grãos. Elas fa-
sentidos e sempre acionando os mecanismos ziam pequenas covas e depositavam as sementes
de minha memória, promovendo cada vez mais esperando a época do grande milagre de gestação
diferentes impressões sobre o mundo no qual vivo. da Mãe Terra. Essas experiências me impulsiona-
A partir dessas idéias de memória ou impressões9 ram a estabelecer metáforas do universo feminino
formamos um tipo de sistema, compreendendo o e elementos como terra, semente, maternidade,
que quer que lembremos que tenha estado presen- gestação e milagres.
te às nossas percepções e sentidos. Tais sensa- Atualmente aciono meu imaginário e reconfi-
ções poderiam ser advindas de algo exterior como guro essas mulheres que sempre povoaram minha
a temperatura local, as imagens que observava, os memória. Elas hoje se apresentam como santas
odores que sentia, os doces que comia, sempre rainhas, prestes a dar a luz, grávidas de desejos e
roubados nas compoteiras e escondidos na calci- prontas para realizarem o extremo milagre da vida.
nha, degustados posteriormente às escondidas. Elas são modeladas pelo mesmo barro vermelho
Nessa época domingo era sempre movimenta- advindo do local onde viviam e são coroadas por
do, pelas festas religiosas ou simplesmente pela coroas de cobre produzidas pelo metal de cor
missa na igreja que fazia as mães zelosas pedir ás avermelhada advindo do território chileno.
filhas para vestirem a roupa de domingo, também
conhecida como “roupa de ver Deus”. Eu sempre Filhas da terra – cerâmica e cobre – 30x 20 –
me perguntava: Será que Deus quer que nos vista- 2006 ( detalhe)
mos para vê-lo? Os rituais religiosos da cristandade delinea-
ram meu imaginário em minha infância. Em Minas
Gerais, no período da quaresma, quarentena que
Roupa de ver Deus – cobre – 70x 30 – 2007 antecede a Semana Santa, as igrejas se vestiam
Ode aos sentidos – cobre e cravos da índia – 30x de roxo. Naquela época eu percorria as matas com
30 – 2007 uma caixa de sapatos vazia colhendo espinhos
para construir a coroa do “Senhor Morto”. Minhas
mãos sangravam perfuradas por espinhos de
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
várias espécies e os pontos vermelhos de sangue causada por acidentes, atropelamentos, suicídios
que brotavam de meus pequenos dedos fazendo- etc. As animitas nos impulsionam a lembrar que
-me lembrar da agonia do Senhor. Esses pontos os espíritos dos mortos sobrevivam na memória
vermelhos eram quase imperceptíveis pois se con- dos vivos. Nesta oportunidade produzi uma série
fundiam pelo vermelho da terra sempre presente fotográfica que narra parte de meu percurso de
em minhas mãos. pesquisa visual e configuram para mim um olhar
Tais sensações, impressas em minha memória diferente sobre o conceito de vida e morte.
se afloram atualmente em forma de configurações Vale ressaltar que a fotografia é um índice, ori-
duráveis suportadas em caixas de cobre, ver- gem de ligação de contiguidade e casualidade com
melhas como minhas mãos de menina. Elas hoje seu referente e que assinala a sua existência e sua
acondicionam espinhos que carregam em suas realidade.
formas distintas uma carga de significados acerca De acordo com os ensaios sobre fotografia de
de experiências vividas e lugares percorridos. Thierry de Duvé, esta se divide em séries: super-
ficial que indica o ponto em que o signo está em
Segredos da dor – Cobre e espinhos - Dimen- conexão com o seu referente e a série referencial
sões variadas – 2007 ( detalhe) que apresenta o real denotado pela fotografia. A
As estradas de Minas Gerais, caminhos que série referencial mostra sua natureza indicial, aquilo
muito transitei em minha infância são referências que marca sua origem, os elementos primários que
presentes nessa pesquisa. Os caminhos eram indica sua referência primeira, seu índice. Para o
margeados por cruzes de madeira tosca indicando autor a fotografia divide e une ao mesmo tempo a
os pontos daqueles que foram levados subitamente superfície e o referente , unindo um traço á vida (
pela morte. Nesses pontos jamais se passava sem tempo presente) e o outro á morte ( tempo passa-
gesticular o “Nome do Pai”. do), por isso é um miasma entre estas duas séries.
Ela se apreende de duas facções que se excluem,
mutuamente, sendo ela testemunha viva como
310 Margens da Rota 262, de Bom Despacho a En- tempo estacionado ou como vida mantida e morte
genho do Ribeiro – Minas Gerais - 2006 recuada ou mesmo como natureza imanente.
A fotografia pode designar a morte do referente,
Naquela época minha família utilizava um ca- o passado retornado, um tempo efetuado e imóvel.
minhão de transporte de leite como condução. Por outro ângulo ela pode também ser recebida
O caminhão, pertencente a uma cooperativa de como captação de vida, como tempo suspendido,
laticínios, além de transportar os latões de leite, como vida suprimida e não realizada ou como um
desempenhava uma função social de transportar artifício. Sendo assim a fotografia indica que por
também agricultores que trabalhavam nas fazendas debaixo a vida continua, que o temo flui e que o
da região. Viajando por aquelas estradas, sentindo objeto capta e ao mesmo tempo deixa escapar.
o cheiro forte do leite se adentrando por minhas Na série de fotografias produzida sobre as ani-
narinas, observava e contabilizava as cruzes do mitas busquei captar a carga semântica contida
caminho, ao som de uma sinfonia causada pelo ba- nos elementos encontrados, tendo em vista que
rulho estridente do metal dos latões se chocando a impressão fotográfica é impressão de luz, por-
uns aos outros. Essa experiência sensorial traduzia tanto é também impressão imaginária. A fotografia
para mim a própria vida advinda do cheiro de vida permitiu não apenas o registro das imagens, mas
presente no leite, da vida interrompida presente nas também perceber o quanto uma realidade não
cruzes e da vida vivida traduzida pela dinâmica e orgânica como uma construção arquitetônica pode
transformações geográficas sempre presentes nos remeter a uma presença de vida. Remete também
caminhos percorridos. a interferência do corpo ausente, aquele que esteve
Atualmente percorro outras estradas e tive a ali e depositou flores, acendeu uma vela ou sim-
oportunidade de voltar a meu imaginário primeiro plesmente orou.
percorrendo as carreteiras do Chile. A experiência com as animitas estabelece uma
Nessa oportunidade de investigação visual, correspondência com as cruzes de beira de estra-
utilizando a fotografia como forma de apreensão, da do Brasil, distante desta tristeza suscitada que
viajei ao norte em direção ao deserto de Atacama. estas transmitem na cultura brasileira, as animitas
Percorri oitocentos quilômetros de distância conhe- chilenas não transparecem este sentimento.
cendo as animitas10, pequenos templos erguidos
na beira das estradas, sinalizando a morte súbita
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
ro, 1998
Série fotográfica realizada nas Rotas da região HALL. Stuart, Da Diáspora- Identidades e me-
de Valparaizo a Coquimbo – Chile - 2006 diações culturais – Liv Sovic – Organização: Editora
A partir dessa experiência iniciei meu trabalho UFMG, Belo Horizonte. 2006
como arquiteta de animitas reconstruindo-as com HUME, David – Tratado da natureza humana –
materiais típicos da cultura brasileira, estabelecen- Tradução de Débora Danawski. UNESP, 2000
do um trânsito entre minhas memórias e a realida- HUME, David – Investigação sobre o entendi-
de que agora me inscrevo. mento Humano e sobre princípios da moral. Trad.
De José Osmar de Almeida Marques. Unesp. 2004
Catedrais – vidro e materiais diversos - 60x15 - KRAUSS. Rosalind, A Escultura no campo
2006 ampliado. Tradução de Elizabeth Barbosa Baes.
Revista Gávea nº 1, Rio de janeiro. 1984.
As experiências estéticas citadas demarcaram MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de - Crítica Hu-
meu percurso, acionaram minhas lembranças e miana da razão, UFPr e discurso editorial, 2001
outras obras vão sendo produzidas, mapeando STRAUSS, LéviC. “Entretien avec Raymond Be-
deste modo territórios remotos perdidos no imagi- llour”. Lê Monde, 5 de novembro de 1971.
nário, configurando o que para mim pode ser não Revista de Filosofia - Solilíquy or advice to an
o fim ou nem início de um novo percurso, mas a author. Shaftesbury, em caracteristicks of men,
consciência sobre a experiência que os intercursos manners, opinions, times. Clarendon, 1999. ( TA)
podem dispor. Revista de Filosofia - Éthique de la communica-
Talvez as respostas ou o sentido dessa pesquisa tion et art d’écrire – Shaftesbury et les
não se concentrem em um fim específico, mas na lumiéres anglaises. Laurent Jafro. PUF, 1998 (
própria vivência do percurso, longe de tentar traçar T.A).
um perfil da minha poética, talvez o fato conclusivo
de reconhecer que a experiência no seu aconteci- 311
mento11 me baste. www.unap.cl/iecta/revista
Atualmente a transitoriedade é minha condi-
ção, sempre tentando retornar a um ponto inicial
que não mais existe, sempre buscando o início
do cordão umbilical, ou seja: nesse sentido posso
então entender que minhas questões se inclinam
na direção da origem e dos mitos que a circun-
dam. Portanto, as obras apresentadas nesse breve
percurso, em verdade são as que emergiram de
um oceano profundo de memórias, território femi-
nino vivo e latente que aloja percepções e senti-
dos, partes de um universo das quais originaram
as impressões que me ajudaram a organizar uma
pequena parcela de meu território poético.
Bibliografia
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre:
L&PM, 1987
DE DUVÉ, Thierry – Essais Date I 1974- 1976 –
Editions de la difference, Paris,1987
DUBOIS, Phillippe. O ato fotográfico e outros en-
saios. Tradução de marina Appenzeller, Campinas,
SP: Papirus, 1994
HALL. Stuart, A identidade Cultural na pós mo-
dernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro: Editora DP&A, Rio de Janei-
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
312
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
RESUMO: Tanto a musicologia como os estudos de género são áreas com en-
trada tardia em Portugal, apenas na década de 1980. Sendo os dois campos
de estudo recentes, há ainda muito por fazer em cada um deles, explicando-
-se por isso a quase inexistência de uma interdisciplinaridade absolutamen-
te necessária. A partir de dois estudos de caso, Maria Helena de Freitas e
Francine Benoit, procuraremos dar o nosso contributo, mostrando o que era
publicado entre os anos de 1950 e 1970 na crítica musical portuguesa por mu-
lheres. Explorámos marcadores de género, invisibilidades, e destinatários das
palavras de ambas. Tentaremos demonstrar porque foram duas figuras tão
distintas, o que fez e quem fez parte do percurso de cada uma delas. Ambas
representando mulheres, ambas escrevendo sobre música, sobre uma mesma
vida musical, a portuguesa, acabaram por se distanciar e incorporar diferentes
poderes e interesses. Saibamos quais.. 313
estudos de género será dos menos desenvolvidos rádio, como acima já apontámos parcialmente,
na musicologia. Tendo a musicologia em Portugal a sua função sociológico-cultural. […] Um ramo
cerca de vinte anos, fácil é entender porque há ain- importante da sociologia terá de ocupar-se do que
da tanto a fazer. A crítica musical feminina é, dentro diz respeito aos múltiplos agentes de acção e de
de uma, outra área por explorar e foi na portuguesa reacção movidos pelos homens em contacto uns
que nos focámos para este trabalho, para o qual com os outros.
pegámos em duas mulheres do século XX, Maria […]
Helena de Freitas e Francine Benoit. Vejamos que, na realidade, as emissões mu-
sicais prestam-se a flutuar entre dois pólos: o
DIFERENTES ENTENDIMENTOS DE CRÍTICA que o radiouvinte pede, sugere ou demonstra por
MUSICAL qualquer modo, ser-lhe mais grato; e o que umas
mentalidades, algumas esclarecidas sem dúvida,
Chamo a atenção para a sobriedade de expres-
entendem próprio para servir uma cultura, no en-
são de Shirley Verrett, para os seus bons agudos, a
tanto, nebulosa, indefinida. […] Pela má infiltração
nobreza desta versão, cujo carácter envolvente não
da toda-poderosa rádio, aconteceu que o pior fado
deixa dúvidas.
entrou no coração da Beira Alta para ajudar triste-
[…] mente a rica e rara música folclórica a sucumbir…
Segue-se uma passagem d´O Orfeu de Gluck, No que diz respeito a uma acção de cultura musi-
onde Shirley Verrett põe à prova as suas possibili- cal a que chamaremos unilateral […] a música na
dades expressivas que são realmente muito gran- nossa rádio está ainda inteiramente submetida aos
des. gostos criados e mantidos pelos concertos que
emanam de Lisboa e do Porto […] De Lisboa parte
Marilyn Horne […] é actualmente um dos ca- quase tudo, inclusive uma quantidade monstruosa
sos mais extraordinários da cena lírica. A sua voz de música em disco… estrangeiro. Discos portu-
fenomenal e a sua estupenda técnica permitem-lhe gueses, salvo raríssimas excepções, só de música
314 ligeira.
abordar o reportório mais variado. […] De notar a
beleza da sua voz, redonda, igual, de belos graves
e muito expressiva. […] Marilyn Horne sabe dar- Quantas vezes, em quantas bocas, a arte em ge-
-nos todo o dramatismo que existe no poema e ral e a música em especial são tidas por devaneios
na música, através duma voz escura de inflexões de sensibilidade, da fantasia, fundamentalmente,
profundas. Quase no final, o timbre torna-se mais alheios à vida social, aos momentos e movimen-
claro, mais doce. tos históricos. […] E se a música […] tem lugar na
formação do indivíduo, não menos tem parte para
Numa boa interpretação de qualquer artista do representá-lo não só como unidade mas como
canto deve considerar-se aspecto de primordial membro da colectividade a que fatalmente perten-
importância a clareza da dicção. Ora tratando de ce.
obras que utilizam textos literários portugueses […]
muito significativos, uma dicção nítida e apropriada O ponto de partida do autor para a esplanação
torna-se fundamental e por motivos óbvios. duma análise social da história da música está
[…] contido na afirmação de Roman Rolland: toda e
A [Vianna da Mota e Luis de Freitas Branco] ficou qualquer forma musical está ligada a uma forma da
a dever-se, principalmente, a reforma do conser- sociedade e torna-a compreensível.
vatório, promulgada em 1919, que visava antes de […]
mais à elevação mental dos cultores da arte sonora Acabar com a música como frívolo privilégio
no nosso país. Vianna da Mota compositor não de classes, como arma diplomática, denunciar os
atinge as mesmas culminâncias de Vianna da Mota seus compromissos suspeitos […] é tudo que nos
pianista e pedagogo. De qualquer modo, e sob cer- faz empenhados, todos nós que acreditamos numa
tos aspectos, também a sua acção neste campo vitória rápida ou demorada, mas vitória do século
não pode minimizar-se. XX.
e palavras que pretendem centrar a atenção de sem. Não era desejável que se pronunciassem
quem nos lê. O que vemos? Nas primeiras frases, sobre certos assuntos, como política, nem que
adjectivos vagos, falta de imparcialidade, poucas revelassem possuir uma cultura muito alargada. Ou
preocupações musicais. Nas frases de Francine melhor, alargada sim, para servir o seu papel de
Benoit, pelo contrário, encontramos preocupações educadora, mas não muito profunda nem reflexi-
legítimas, reflexões consistentes e pertinentes, ver- va. Ao mesmo tempo, o modelo de comunicação
dadeiras questões com que a musicologia se bate. ópera ainda não era em Portugal reconhecido
Após atenta audição das emissões da década como tal (parece-nos que ainda hoje não é, dada
de 1970 do programa de rádio de Maria Helena de a parca significância atribuída à produção nacional
Freitas, O Canto e os seus Intérpretes, podemos pelos constantes executivos), servindo a ópera de
afirmar que o tipo de discurso é pouco substancial, palco para exibição das destrezas vocais das mais
não há análise musical, nem sequer comentário, aclamadas estrelas internacionais (CARVALHO,
fala-se muitas vezes de ópera, mas sem tecer 1999). A ópera dificilmente era vista como um es-
considerações sobre os compositores, autores pectáculo musico-teatral completo, como um todo,
dos libretti ou mesmo análise destes ou sequer mas antes como alvo de atenção determinada ária
dos personagens. Não há espírito crítico, sendo o e/ou dueto e/ou coro, onde brilhariam as vozes
discurso construído por comentários ao nível do de que se falam. Maria Helena de Freitas reforça
senso comum, pontuados por adjectivos decora- essa ideia na rádio ao longo de quarenta anos, nas
tivos - muitos. Maria Helena de Freitas (1913-2004) notas de programa que escrevia frequentemente
foi pianista, crítica musical, musicógrafa. Chegou para espectáculos de ópera e nos seus artigos em
a assinar artigos em periódicos sob o pseudóni- periódicos de grande tiragem. Lembremo-nos do
mo Mário Heitor que abandonou a certa altura. A poder que tinha a rádio nas décadas de 1950, 60,
relação que manteve com Luis de Freitas Branco 70, quando poucos eram os lares em que havia
e o seu posterior casamento com o amigo deste televisão (surgida em 1957). Numa altura em que
Nuno Barreiros garantiram-lhe visibilidade e re- raros eram os privilegiados que podiam ter acesso
conhecimento. Publicou em periódicos como A a música dita erudita, a pouca que se ouvia, pela 315
Voz, Diário Popular, Diário de Notícias, O Século rádio, era comentada desta forma. E uma análise
Ilustrado, Diário de Lisboa, Gazeta Musical, A Voz desta superficialidade só poderia ser tecida por
de Paço d´Arcos e foi autora do programa de rádio uma mulher, veiculando assim o ideal do género
de maior duração da história da rádio portuguesa, feminino cultivado pelo regime.
entre 1959 e 2000, inicialmente na Emissora Nacio- O programa de que citámos excertos, O canto e
nal, depois na RDP, Antena 2, O Canto e os seus os seus intérpretes, nasceu na Emissora Nacional,
Intérpretes. com tudo o que isso acarreta em termos de corres-
Francine Benoit (1894-1990) foi compositora, pondência ao ideal preconizado pelos representan-
musicógrafa, conferencista, pedagoga, nascida em tes do poder. Como rádio oficial do regime, a sua
França, naturalizada portuguesa em 1929. À sua abrangência queria-se a mais alargada possível,
importância no panorama musical português não com a intenção de levar as mensagens sublimina-
foi feita ainda justiça. Havendo duas teses recen- res à maior extensão de território possível. Já na
temente publicadas, não é suficiente para lhe dar era democrática o programa passou a ser emitido
a visibilidade merecida e há questões que mere- pela RDP, Antena 2, continuando a ser um canal de
cem uma abordagem mais profunda e englobante rádio estatal, agora um consagrado à música dita
do que as apresentadas, que se centram na sua erudita, mais tarde passando a abranger também a
expressão enquanto crítica musical. A acrescentar, chamada world music, o jazz, e outros programas
há dados significativos da sua existência que foram de cariz cultural idealmente elevado.
pura e simplesmente omitidos, como veremos nas
secções seguintes.
AS INVISIBILIDADES DE FRANCINE BENOIT
Não há um, mas vários silêncios, e eles fazem
MARIA HELENA DE FREITAS COMO MODELO parte integrante das estratégias que subentendem
No nosso entender, Maria Helena de Freitas e atravessam os discursos.
cumpre o seu papel de mulher que se pronuncia Francine era uma mulher, num contexto nada
sobre “a arte dos sons”. Sabemos o lugar que es- favorável a este sexo. Francine era contra o regime,
tava destinado às mulheres durante o Estado Novo feminista, lésbica. Ou seja, reunia uma série de re-
e que tipo de requisitos se esperava que cumpris- quisitos que fariam dela um ser humano menor, aos
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
olhos de grande parte da conservadora sociedade nata (1942), sociedade de concertos responsável
portuguesa e, sobretudo, das elites de poder. pela divulgação de música contemporânea. A sua
À intelectual que foi Francine, muito pouco foi carreira de pedagoga passou também pela Escola
permitido tendo em conta o seu talento e a sua Oficina nº1 de Lisboa, pelo Instituto de Música de
visão. Comecemos pelo seu percurso, que depois Coimbra, pela Universidade Popular Portuguesa,
das aulas de piano com a mãe passou pela Acade- entre outras, tendo sido responsável por vários
mia de Amadores de Música e pelo Conservatório coros em várias instituições.
Nacional, bem como por Paris, pela Schola Can- Enquanto crítica, desde publicações femininas
torum, importante centro de formação europeu, como o Magazine de Mulher, Os Nossos Filhos, a
fundado por Vincent D´Indy. Um dos primeiros revista Eva, onde publicou um artigo sobre Clara
percalços evidentes da carreira de Francine deu- Schumann- escrever sobre uma mulher composito-
-se em 1932, quando foi lhe foi recusado o lugar de ra era uma atitude claramente desafiante e inova-
professora no Conservatório Nacional, através da dora; mas também especializadas como a Gazeta
anulação do concurso para o lugar com o pretexto Musical, De Música, Sonoarte e outras. Próximas
de não possuir nacionalidade portuguesa há pelo da orientação ideológica subversiva estão as
menos cinco anos, sobre o que nada constava nas colaborações com a Revista de Portugal, Seara
regras do concurso. Já em 1955 foi convidada a di- Nova e Vértice, a que não podemos excluir uma
rigir a Academia de Amadores de Música por oca- observação sobre o facto de estas revistas serem
sião da morte de Luis de Freitas Branco. Mesmo dominadas por um círculo intelectual de esquer-
impedida pelo poder central de aceitar, acabou por da, sim, contra o regime, sim, mas exclusivamente
tomar o cargo. Escusado será dizer que em toda a masculino. Aqui se levanta uma questão a explorar
sua vida surgiram vários contratempos e dificulda- futuramente: estará por detrás da sua participação
des, tendo constado dos registos da PIDE. apenas o valor da sua qualidade intelectual, ou
É impossível separarmos o seu círculo social também o facto de ser lésbica a terá aproxima-
da sua actividade profissional. Ao passar por do de intelectuais do grupo como Lopes-Graça,
316 várias instituições, desde escolas, a associações, Armando José Fernandes e Jorge Croner de
publicações, entre outros, Francine cruzava-se Vasconcelos, também homossexuais; ou ainda por
com figuras da elite intelectual portuguesa, onde ser lésbica ser vista como detentora de qualidades
manteve muitas amizades, sobretudo do lado dos ditas masculinas, como possuidora de comporta-
opositores ao regime. Foi também graças a es- mentos ditos masculinos?
tas amizades que viu algum reconhecimento pelo Francine foi uma crítica exímia, conhecida por
seu valor criativo, intelectual e pedagógico, área não ceder a nenhum tipo de interesses, manifes-
onde se revelou bastante activa, defendendo um tando sempre a sua opinião, mesmo que dura e
modelo educacional que englobasse o ensino da desfavorável a pessoas próximas - o que a envol-
música, responsável por desenvolver o intelecto veu em algumas polémicas por exemplo, com Ruy
e incutir capacidade de trabalho em grupo, de Coelho. Mas o que mais gostava de fazer era com-
concentração, de criatividade e valores como a por e não o pode fazer tanto quanto gostaria. O
amizade, a solidariedade e o respeito pelos outros. Prémio Nacional de Composição que a Fundação
Preocupava-a a também a falta de participação Calouste Gulbenkian lhe atribuiu no ano de 1965
das mulheres na vida musical, constatava que os não foi suficiente para receber encomendas de
coros com que trabalhava tinham mais homens do outras instituições. A mulher pode acompanhar o
que mulheres, pois estas não eram incentivadas marido aos concertos, com a sua nova toilette e o
para a prática musical a menos que doméstica, o cabelo arranjado, ficando em silêncio todo o tempo
que a levou a abrir um curso de música destinado e não se pronunciando muito sobre o espectácu-
a mulheres na Voz do Operário, instituição a que lo, senão para tecer elogios vagos e agradecer ao
esteve ligada quer como professora, quer como marido por tê-la levado. Mas imaginar uma mulher
directora coral, quer como conferencista. Francine por trás de uma obra daquelas poria muitos sis-
Benoit associou-se a várias manifestações feminis- temas de comunicação em causa. Estava fora de
tas, tendo privado com Maria Lamas, Irene Lisboa, questão.
Manuela Porto, em organizações como o Conselho Por reflectir está também o seu envolvimento em
Nacional de Mulheres Portuguesas, a Associação grupos feministas. Para uma análise mais profunda
Feminina Portuguesa para a Paz, o M.U.D. e, já torna-se importante desenterrar a sua participação
depois do 25 de Abril, o Movimento Democrático concreta, o que nalguns casos se torna difícil pois
das Mulheres. Foi uma das fundadoras da So- algumas destas associações, extintas pela PIDE,
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
viram os seus arquivos destruídos. ocasiões vítima de xenofobia. Nos seus primeiros
Por fim, uma questão essencial: não consegui- artigos publicados assinava com o apelido Bessa-
mos ser indiferentes ao silenciamento absoluto da o que se torna um nome ambíguo, não só quanto à
homossexualidade de Francine Benoit em tudo o nacionalidade, mas quanto ao sexo.
que sobre ela foi escrito até hoje. Muito embora
sendo excelentes trabalhos de investigação e neste
CONCLUSÕES
momento das maiores referências para o estudo da
vida e obra de Francine, ambas as teses recente- Vimos como duas figuras tão diferentes co-exis-
mente publicadas pura e simplesmente falham na tiram no espaço público português, as duas pro-
omissão de uma questão tão fundamental como nunciando-se sobre música. Uma, Maria Helena de
esta, imprescindível para um entendimento e refle- Freitas, correspondendo ao estereótipo de género,
xão profundos. Não podemos deixar de observar contribuindo para a formação de um público dito
que Madalena Gomes, companheira de Francine, melómano, que frui a música não enquanto arte,
foi uma das fontes primárias a que ambas as inves- enquanto arma de reflexão sobre a sociedade, mas
tigadoras recorreram… enquanto palco de virtudes, enquanto criadora de
figuras públicas desejáveis para os homens e co-
piáveis para as mulheres, como, de resto, a própria
PARA A VISIBILIDADE Maria Helena se tornava. Outra, Francine Benoit,
É necessário dar a conhecer Francine e muitas como verdadeira conhecedora do poder da música
outras mulheres que participaram activamente na enquanto arte, mas também da sua funcionalidade,
vida musical portuguesa no século XX, como Maria que revelava e difundia outro tipo de conhecimen-
de Lurdes Martins, Berta Alves de Sousa, Clotilde tos e reflexões, abrangentes, pluridisciplinares, cuja
Rosa, Constança Capdeville e um número sem fim participação activa na sociedade esteve limitada
de outras por descobrir. Quantas não terão repri- por não corresponder ao ideal feminino procurado
mido os seus ímpetos criativos ao aceitarem o seu pela sociedade capitalista burguesa conservadora
papel de esposas- lembremo-nos de Alma Mahler- do Estado Novo. Em consequência disso foi siste- 317
-Werfel, que expressa nos seus diários o que foi ter maticamente silenciada, marginalizada e menos-
de satisfazer uma das exigências do seu marido, prezada, senão por um círculo restrito, também ele
Gustav Mahler, deixar de compor; ou de Fanny marginal.
Mendelshon Hensel, irmã de Félix Mendelsshon
Bartholdy, o celebrado pela historiografia, esque-
cida pela obrigação de corresponder ao seu papel
de esposa.
Quanto ao conhecimento a ser produzido sobre
estas mulheres, é essencial que seja pluridiscipli-
nar, não se centrando na análise do seu trabalho,
ou simplesmente num levantamento biográfico; e
de tal modo abrangente que se possam construir
narrativas o mais fieis possíveis de cada uma delas.
É neste ponto que o pouco que foi produzido sobre
Francine, apesar de louvável, falha. Não se pode
omitir características tão fundamentais da vida
de alguém como a orientação sexual, as relações
amorosas que teve, os amigos mais próximos, a
cor política, ideologias de qualquer espécie. A obra
destas mulheres que queremos conhecer traz em
si tudo o que elas foram. Conseguimos ver por
este exemplo que se Francine não fosse mulher,
se Francine não fosse de esquerda muito se tinha
dado de outras formas, se Francine não fosse fe-
minista, se Francine não tivesse um apelido belga,
se Francine não fosse lésbica… E não abordámos
aqui a questão familiar, igualmente importante.
O facto de ter um nome estrangeiro consistiu em
mais uma fonte de preconceitos pois foi em várias
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
A evanescência do absoluto
e a sublimação pela Arte:
a Mulher em Cântico Final
– do romance de Vergílio Ferreira
ao filme de Manuel de Guimarães
Luís Miguel Cardoso
Instituto Politécnico de Portalegre, Escola Superior de Educação, C3i, (Portugal)
Uma das conexões mais pertinentes entre a Cântico Final viria a revelar, mais uma vez, que
literatura e o cinema que podemos encontrar em uma adaptação é sempre uma leitura. Não obstan-
Vergílio Ferreira é o conjunto das adaptações dos te os desejos de Guimarães e de Vergílio Ferreira
318 seus livros para a tela. em criar um filme fiel ao romance, os trâmites da
O principal problema neste campo de reflexão é rodagem e da posterior montagem feita por Dórdio
a transmutação do labirinto metafísico e ideológico Guimarães deram origem a uma «visão» do texto
em que se insere a palavra vergiliana no texto escri- original. É que uma adaptação, ainda que marcada
to, para o labirinto estético, narrativo e ideológico por uma fidelização explícita à essência semântica
do cinema que interpreta o texto original e o tenta do texto original, implica sempre uma transfigura-
traduzir através da imagem. ção, perpetrada num exercício de recriação esté-
Assim, os realizadores Manuel Guimarães e tica, da qual não podemos separar as respetivas
Lauro António sentiram a dificuldade específica do implicações epocais, ou seja, estabelece-se um
texto vergiliano em se deixar transfigurar para o cruzamento nas linhas do texto matriz de movimen-
plano das imagens devido, acima de tudo, à dimen- tos sociais e históricos, contextos psicológicos e
são esfíngica do processo de leitura que advém culturais, e procedimentos formais2.
da natureza filosófica e reflexiva do texto, entre Quinze anos separam o romance e o filme. É
a imanência e a transcendência, entre o mundo uma separação que também contempla coordena-
empírico e o cosmos interior do sujeito pensante. das históricas e sociológicas diferentes. Guimarães
Neste plano, os realizadores enfrentaram o labirinto opta por desvalorizar as orientações estéticas do
das opções que uma adaptação acarreta. romance que atravessam o pensamento de Mário
No caso de Cântico Final, o primeiro romance e o seu círculo de amizades, elevando o contexto
vergiliano a ser transposto para o ecrã, constata- político e ideológico. O filme traduz precisamente a
mos que Manuel Guimarães1 optou deliberamente atmosfera da revolução de 1974, sendo as alusões
por uma adaptação que seguisse a «letra» do texto. mais evidentes as cenas em que Mário e os seus
amigos debatem diretrizes ideológicas, e o desen-
1 José de Matos-Cruz sintetiza a tessitura narrativa do filme com as seguin- lace do filme, com a introdução da cena do fuzila-
tes palavras: «Mário Gonçalves, professor do liceu ameaçado pela morte, mento dos prisioneiros por agentes da PIDE.
devida a cancro, passa os últimos tempos de vida na aldeia onde nasceu, em Para compreendermos o cerne do romance e
plena Serra da Estrela. Aí, dá expressão ao seu talento de pintor, na íntima
decoração duma capela abandonada. Essa é, também, a hora crepuscular das
o principal problema na sua transposição fílmica,
memórias insubmissas: o amor e a precaridade, as opções e a contingência, devemos dedicar-nos a Mário, ao estatuto (meta)
a perene insatisfação…» (Cf. José de Matos-Cruz, O cais do olhar. O cinema
português de longa metragem e a ficção muda, Lisboa, Cinemateca Portugue- 2 Cf. Sérgio Sousa, Literatura e Cinema. Ensaios, Entrevistas, Bibliografia, p.
sa, 1999, p. 160). 26.
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
físico da Arte, e à sua relação com Elsa, encarada Espaço do Invisível I e Invocação ao meu Corpo).
como o reflexo da evanescência do absoluto e da A Capela permite um reencontro com o sagrado,
sublimação pela Arte. que na Aldeia é confundido com uma conversão –
Para utilizarmos as palavras de Eduardo Louren- interpretação que também é referida no filme –, um
ço, «As ideias dum romancista são os seus per- retorno e uma libertação, um triunfo sobre a morte
sonagens…»3, portanto traduzem o seu universo que espreita o pintor, um «cântico final» vitorioso
interior, os pilares da sua consciência e os tumultos do homem sobre o inexorável, em que a Arte é o
do seu labirinto íntimo. agente da redenção.
Mário está dividido entre a metafísica da Arte, Para ultrapassar e dirimir esta dicotomia, a Arte
a dimensão física da Capela em ruínas, o projecto é em Mário, a superação pura dos antagonismos
transcendente de a pintar, numa absoluta situação- (meta)físicos, pois permite, pela criação, uma atitu-
-limite que é o seu regresso à aldeia natal para de de emancipação do Homem5.
morrer. Este espaço físico permite a confluência Outra opção do realizador radicou na relação
de passado e presente, de personagens e de Mário – Elsa. No romance, este par é a matriz de
espaços, memórias e desejos, construindo uma muitas das reflexões de Mário sobre a Arte, princi-
dimensão metafísica do ser e do criar. No roman- pal temática do texto vergiliano.
ce, Vergílio Ferreira descreve a missão (meta)física Elsa é um ideal de mulher. Mulher amada, mulher
de Mário, num segmento marcado pela consubs- que se entrega totalmente à sua arte, mulher que
tanciação na matéria visível das distintas forças traga a vida em intensidade inebriante do momen-
interiores invisíveis e mesmo indizíveis. to.
Esta confluência entre distintos tempos é uma A relação entre Mário e Elsa ultrapassa os lam-
estratégia narrativa que nos lembra o Nouveau pejos de sensualidade e alcança uma dimensão
Cinéma. Sobre esta problemática, lembrem-se os erótica que o autor já havia trabalhado nos seus
filmes de Alain Resnais onde passado e futuro, textos ensaísticos e que realiza uma metamorfose
imaginário e real se entrelaçam, muitas vezes ilus- do físico para o metafísico, do corpo para a trans- 319
trando uma estratégia do cineasta que consiste na cendência. O erotismo é um caminho de partilha
presentificação de um momento do passado4. com o Absoluto, tal como a relação de Mário e Elsa
O protagonista revela-se um instrumento vergilia- é um contacto entre duas expressões desse Abso-
no para demonstrar a natureza (meta)física da Arte, luto, traduzidas em Arte. O texto reflete uma leitura
traduzida na transcendência/imanência consubs- do erótico, elevado por uma veia mística e simbó-
tanciada na Capela. Nesta imagem de espaço de lica que transcende o nível superficial do Eros e o
projecto heideggeriano, de saída da aldeia, vivência redimensiona de forma sublime6.
na cidade e regresso purificador à mesma aldeia, Se no romance esta problemática (meta)física se
Mário não pretende reconstruir uma Capela, mas destaca, no filme resume-se a esparsos contactos
sim edificar uma contemplação do mistério que é a entre Mário e Elsa, numa relação vagamente mar-
vida, numa cristalização do Absoluto que é a Arte, cada pelo desejo e pela sede de infinito do pintor,
uma redenção artística, à semelhança de outros enquanto a bailarina, fugaz e ilusória, se esbate
pintores como Matisse, Goya, Braque, Chagal, num retrato de contornos pouco nítidos.
Léger ou Lurçat. Não se trata de uma conversão
No filme, o realizador tenta definir Elsa como
religiosa. Pelo contrário, parece um desafio ao
uma figura etérea. Desde a primeira sequência do
divino quando Elsa surge lentamente do pincel de
bailado, em que surge percorrendo o palco com
Mário, uma substituição do divino pelo humano
um vestido que ondula de acordo com os movi-
– uma linha central do romance vergiliano –, pois
mentos do seu corpo num compasso de ave e de
o pintor celebra a própria Arte, o verdadeiro Ab-
sedução, em que a personagem nunca está verda-
soluto e o divino por eleição humana, derivado do
conceito existencialista de «morte» de Deus e que
5 «Frente ao estilismo puro da fórmula de “a arte pela arte” que vê no objecto
resulta numa identificação da Arte com o Sagrado estético um valor absoluto, em Cântico Final, através da personagem central,
(presente em Carta ao Futuro, Do Mundo Original, configura-se a arte como prazer essencial da criatura humana, como modo
de actualizar uma ideia-emoção, como a única coisa que permite ao homem
3 Idem, ibidem, p. 97. transcender as limitações inerentes à sua condição, como a única possibili-
4 «…assim acontece em L´année dernière à Marienbad e em Hiroshima, dade de se realizar com plenitude através da criação. Pela arte torna-se mais
mon amour, um dos mais belos filmes franceses (em 1959, em Hiroshi- presente, visível, e manifesta-se-nos, ainda que de modo esporádico mas
ma, cidade mártir, durante a rodagem de um filme, uma jovem francesa, fulminante e revelador, o que está para lá dos nossos limites, chame-se-lhe
Emmanuelle Riva, vive um breve e patético amor com um japonês, Eiji Okada. invisível, irracional, transcendente, etc.» (Gavilanes Laso, op. cit., p. 205).
Essa ligação a faz lembrar de uma outra relação vivida em Nevers durante a 6 Cf. José Rodrigues de Paiva, O Espaço-Limite no romance de Vergílio
ocupação alemã da França)» (Cf. Gérard Betton, op. cit., p. 27). Ferreira, Recife, Edições Encontro, 1984, p. 155.
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
No filme, na cena que ocorre no estúdio de mais uma memória. Perde consistência e ganha
Mário, depois de esboçar o retrato, o pintor dialoga essência, perde presença e ganha ausência, perde
com Elsa. A bailarina afirma que nunca havia pen- a matéria e ganha o simbolismo da eternidade.
sado o que era a vida e para reforçar este posicio- Mário torna Elsa eterna através da Arte. Na
namento sem consciência, relembra Fokine (para Capela, vai criando a Senhora da Noite e vai recor-
quem Pavlova podia «voar sobre uma seara») e diz dando a bailarina, projetando-a para a imortalida-
que sente a vida no seu próprio corpo. Deambulan- de, numa conjugação mental de passado, presente
do pela sala, Elsa, filmada em travelling, apresenta e futuro.
o seu ideário: o valor do instante, o milagre que não No final do filme, Manuel Guimarães coloca Má-
dura, a convicção do presente eterno e o desa- rio no seu leito de morte. Lenta e sucessivamente,
parecimento no futuro. É o milagre de estar vivo, várias personagens importantes na sua vida visi-
o instante da fulguração, o mistério da existência tam-no como aparições fantasmagóricas e deixam
perpetuado pela Arte. o seu testemunho. Elsa, que sorri no retrato, ganha
Posteriormente, na praia, uma cena entre Mário corpo e diz ao pintor que regressará em Março
e Elsa na areia, recorda-nos que a bailarina não com as luas verdes ou em Junho com as manhãs
acredita nem no passado nem no futuro, apenas solenes e pergunta se o retrato já estará pronto.
no instante do momento. Diz Elsa a Mário: «Só Para sempre, ficará a memória de uma Elsa fugidia,
acontece o que se assume, quer aconteça, quer etérea e narcisista.
não. Nada mais há agora, para o passado e para o O romance é perpassado por esta dicotómica
futuro, do que nós aqui». Na cena seguinte, no in- consciência de uma aparição inicial e de um an-
terior da casa, Elsa levanta-se da cama onde Mário gustiante fim anunciado, percorrendo nas suas
dorme, apressa-se até à varanda e lança um grito palavras as coordenadas intemporais da inexorabi-
agudo. Mário acorda e vai ter com Elsa. lidade10. A Arte torna-se uma inspiração genesía-
No romance, Vergílio Ferreira explora a dimensão ca, fonte de todo o pensamento vergiliano, capaz
mais profunda do grito da bailarina, numa análise de estruturar diferentes tessituras narrativas, como
sobre a vontade de viver, o milagre de estar vivo, o 321
o provam os seus exercícios romanescos.
carácter místico do instante numa celebração so- Assim se pode compreender como este ro-
bre as forças da inércia e do não-ser. O grito, inve- mance comporta desde o seu título – mantido
rosímil e profundo, é uma vitória sobre o silêncio e por Guimarães –, uma ressonância religiosa e até
sobre a noite, ou uma tentativa para o esconjurar9. mesmo litúrgica11. Este cântico não é apenas um
No filme, apenas existe o grito. Na cena da casa determinado canto, mas sim uma profunda metáfo-
da praia, e não durante a visita a Sintra, como no ra respeitante ao lugar central e matricial que a Arte
livro, não há diálogo entre as personagens que possui. Este é também um cântico de reunião entre
ilustre o ato de Elsa ou tente explicá-lo. O narrador facetas artísticas e existenciais, que se traduz na
fílmico não atua de forma esclarecedora, nem no Capela, fim último de Mário, sua realização final, e
enquadramento, nem na seleção dos planos, de que ainda é adensado, numa comunhão entre o au-
modo a fornecer aos espectadores alguma infor- tor e o narrador, pelos cânticos de Natal referidos
mação. Talvez a vontade do realizador tenha sido em memória, numa abstração sem tempo e sem
proporcionar um momento de perplexidade, susci- destinatário específico.
tar a dúvida. Porém, esta cena perde-se na inexis- No texto, o canto também se identifica com a
tência de uma plataforma de entendimento, quer dança de Elsa, essencial para a compreensão do
da palavra, quer da imagem e dilui-se, sem grande valor da Arte e que o cineasta apenas trabalha em
sentido. Elsa irá partir sem avisar Mário, deixando- alguns laivos, sendo o mais relevante a atuação da
-o a gritar o seu nome, ao mesmo tempo que uma bailarina que coloca Mário em suspenso durante
dor aguda o sufoca. toda a sua performance. O corpo de Elsa estabele-
Ao longo do filme, Elsa irá tornar-se cada vez ce uma confluência de várias expressões artísticas
e sublima-se na existência para dele permanecer
9 Cf. Helder Godinho, O Universo Imaginário de Vergílio Ferreira, p. 165. O em símbolo maior. No livro, a atuação de Elsa
grito surge com relevo na produção romanesca de Vergílio Ferreira. Carlos M. também deixa Mário em êxtase literal, captado e
F. Cunha recorda: «O grito constante do narrador de Alegria Breve e o grito
final do narrador de Para Sempre dirigido à montanha e ao Espírito do Mundo,
descrito pelo narrador heterodiegético que o acom-
são outros modos de uma expressão trágica do não enunciável, do excesso e panha sempre e que no filme também revela este
violência interior, duma interrogação primordial…» (Cf. Carlos M. F. da Cunha, posicionamento narrativo, deixando o espectador
«Da aparição à interrogação: figurações do trágico em Vergílio Ferreira», ler essa dimensão mística na atuação de Rui de
in Maria Joaquina Nobre Júlio, In memoriam, de Vergílio Ferreira, Lisboa, Carvalho, quase de experiência religiosa, que foi o
Bertrand Editora, 2003, p. 153).
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
bailado de Elsa.
Em síntese, como nos disse Vergílio Ferreira, «A
arte é assim o único possível do universo que ficará
intacto e disponível, ou seja, que se esbanja quan-
do todo o universo for o silêncio das pedras»12.
Com este pensamento, não podemos deixar de
ver Mário como a tradução deste ideal e a pintura
como instrumento da afirmação do ser, tal como
acontece com a palavra.
Elsa, encarnação do absoluto, reduz-se à eva-
nescência efémera, mas sublimada pela Arte, na
capela pintada por Mário. É a sacralização do
humano que renasce e se afirma pela morte dos
deuses que inexoravelmente são arrastados pela
vertigem do tempo.
Do crepúsculo dos deuses surge a aurora do
homem. Entre o livro e o filme afirma-se o mortal
pela constatação da ausência.
O panteão dos deuses está vazio. Agora, é o
tempo dos homens.
Bibliografia
322
BETTON, Gérard (1987), Estética do Cinema,
São Paulo, Martins Fontes
CUNHA, Carlos M. F. da, «Da aparição à interro-
gação: figurações do trágico em Vergílio Ferreira»,
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e a filosofia da sua obra literária, Lisboa, Aríon
SOUSA, Sérgio Paulo Guimarães de (2003), Lite-
ratura e Cinema. Ensaios, Entrevistas, Bibliografia,
Coimbra, Angelus Novus
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
Princesas da Disney:
Percepções do discurso imagético
Roberto Lima Bordin
Mestrando em Design UNIRRITER RS BRASIL
Drª. Sibila Rocha
UNIFRA RS BRASIL
realizar processos de semiose, que são remissivas no seu contexto. Para Peruzzolo, ao olhar uma figu-
contínuas de signo para signo, na ação de cons- ra e fazer sua leitura, na verdade não descrevemos
truir um conhecimento). Assim, os signos têm de signos, mas desenvolvemos uma narrativa, “é mais
ser lidos, não somente vistos, ouvidos, sentidos, um relato que um significado determinado” (2002
tocados... Não é a mesma coisa LER um quadro e p.111), concluindo que figuras, na verdade, são tex-
ver um quadro! Este processo de leitura crítica das tos articulados. Ele explica, ainda, que “os sentidos
significações e dos efeitos de sentido é também denotativos são os que garantem a comunicação”.
um trabalho educativo. Ensinar a LER imagens, por O autor ressalta, nesse contexto, que, na análise
exemplo, é EDUCAR para que se tome consciên- denotativa, “os signos são analisados mais como
cia muito clara do que a imagem representa; da apontadores, indicadores de objetos, de referên-
maneira como é feita; do que significa; do que se cias, circunstâncias e aspectos, e menos como
pretende; das relações que movimenta dentro de significantes produtores de sentido. Ele fala tam-
uma tessitura (...). Enfim, ler uma imagem – ler qual- bém que a leitura semiológica procura, primeiro,
quer texto é a mesma coisa – é desvelar os seus localizar, isto é, constituir a matéria significante dos
significados e, como veremos posteriormente, seus signos e, a seguir, referenciar o que eles mostram,
sentidos. (PERUZZOLO 2002 p.108) designam, ou indicam”
Isso significa dizer que o primeiro nível trata de tações sociais no cinema. No entendimento de Gil
símbolos como os do trânsito ou o alfabeto ro- (1991, p. 46), o estudo de caso permite “embora
mano, que, de “tão desvinculados da informação definidas como descritivas a partir de seus objeti-
(identificável) é preciso aprendê-los da maneira vos, acabam servindo mais para proporcionar uma
como se aprende uma língua”. Quanto segun- nova visão do problema, o que as aproxima das
do nível representacional da inteligência visual, a pesquisas exploratórias”. O autor acrescenta ainda:
autora nos fala que é fortemente governado pela Há possibilidade de responder perguntas do
experiência direta que ultrapassa a percepção. tipo “como”? e “por quê”?, questões impor-
Aprendemos sobre coisas das quais não podemos tantes para uma área que não tem muitos
ter experiência direta. Através dos meios visuais, de trabalhos realizados e uma bibliografia ainda
demonstrações e de exemplos em forma de mode- em construção. O estudo de caso não prevê
lo. O último nível trata da estrutura abstrata: generalizações através de amostras numerica-
Mensagem visual pura; Que a natureza da mente representativas, mas sim, uma forma de
abstração libera o visualizador das exigências produzir generalizações analíticas. (1991, p.47).
de representar a solução final e consumada,
Por tratar-se de uma pesquisa que tem caráter
permitindo assim que aflorem à superfície as
interpretativo e, portanto com aspectos subjeti-
forças estruturais e subjacentes dos proble-
vos, classifica-se o estudo como uma pesquisa
mas compositivos, que apareçam os elemen-
de natureza qualitativa. Segundo Triviños (1987), a
tos visuais puros e que as técnicas sejam
pesquisa qualitativa permite analisar os aspectos
aplicadas através da experimentação direta.
implícitos dos fenômenos sociais, e a abordagem
(DONDIS, 1997, pág.22)
descritiva é praticada quando o que se pretende
buscar é o conhecimento de determinadas infor-
“Os três níveis têm características especificas mações, por ser um método capaz de descrever
que podem ser isoladas e definidas, mas que não os fatos e fenômenos de determinada realidade. Ao
326 são absolutamente antagônicas, na verdade eles unir o estudo de caso com a pesquisa de natureza
se sobrepõem, interagem e reforçam mutuamen- qualitativa, pode-se trabalhar com a análise e /ou
te suas respectivas qualidades.” (DONDIS, 1997, percepções de uma unidade de determinado uni-
pág.103) “O discurso narrativo no cinema e dos verso, pois as ferramentas metodológicas possibili-
quadrinhos parte da Imagem.” Na criação da ima- tam a compreensão da generalidade do mesmo ou
gem da princesa, não vemos apenas seu contorno, o estabelecimento de bases para uma investigação
mas, segundo Dondis (1997, pág. 30): posterior, mais sistemática e precisa.
Evidenciadas essas possibilidades de pesquisa,
cabe ressaltar a importância, nesse método de
Na criação e mensagens visuais, o significado
estudo, de o caso escolhido ter efetivamente con-
não se encontra apenas nos efeitos cumulati-
dições de colaborar com os objetivos propostos.
vos da disposição de elementos básicos, mas
Dessa forma, as técnicas de pesquisa utilizadas
também no mecanismo perceptivo universal-
para o desenvolvimento do estudo de caso foram:
mente compartilhado pelo organismo humano.
1)a pesquisa bibliográfica, 2) análise documental
(...) criamos um design a partir de inúmeras
e 3) percepções semânticas. Desse conjunto de
cores e formas, texturas, sons e proporções
material, sistematizam-se os dados para responder
relativas relacionando interativamente esses
o problema de pesquisa do trabalho.
elementos, temos em vista em significado.
curtas, mas bufantes. Tem também uma capa curta é a sua realização sendo feliz com o que a vida
e nunca usa a tiara ou coroa de princesa, mas uma lhe oferece e, portanto, aceitando seu destino. A
fita no cabelo, que faz a referencia a tal acessório. missão desta personagem é clara, o bem vence o
Estes traços caracterizam a elegância “interna” mal, o bom vence o malvado, e mais: as aparências
da princesa, em contraponto com a simplicida- nem sempre são o que demonstram. É preciso (re)
de de sua aparência. Percebe-se o implícito, as conhecer as pistas das representações do bem.
entrelinhas que ditam quem é a princesa Branca de
Neve.
4.2 Tiana do Filme: A Princesa e o Sapo
4.2.1 Identidade e figurino
4.1.2 Cenário
O discurso imagético e discursivo desta princesa
O filme começa com enredo desenvolvendo- sugere uma evolução do personagem, de criança
-se no castelo medieval. Ele é mostrado com uma para a fase adulta. Nesta história, a princesa é uma
visão geral, passando para um detalhe da torre e moça trabalhadora, que junta dinheiro para realizar
depois vai para dentro do quarto, onde aparece a seu sonho, ter um restaurante. Sem lazer, foca na
madrasta/rainha, que fala com seu espelho mági- sua determinação. O lado amoroso da personagem
co. Logo depois, a princesa é mostrada sentada na está sempre em segundo lugar, pois sua intenção
escadaria do pátio do castelo com um balde e uma não é casar, mas ter um trabalho para poder con-
escova, esfregando, lavando a escadaria e cercada quistar sua independência.
de pombas brancas. Estas imagens sinalizam para
Nesse sentido, a personagem volta-se sempre
a grandiosidade do reino da pequena princesa.
para os valores que lhe são mais importantes: o
Os meios de transporte do jovem príncipe e do
trabalho honesto e o amor. Já adulta, não tem vida
caçador são a tração animal, o cavalo ou a pé, que
social com os amigos, pois guarda suas forças e
é como se locomovem, também, a princesa e os
dinheiro para atingir a meta. Diversas vezes, dife-
anões. Logo após aparece um passeio a pé pelo
rentes personagens tentam minimizar sua meta
328 campo de onde Branca de Neve foge para dentro
e sua capacidade de realizá-la: seu patrão no
da floresta e acaba em um pântano e é cercada
restaurante, os corretores de imóveis e alguns de
por troncos de arvores que lembram crocodilos,
seus amigos menosprezam seu sonho de ter um
denotando um ambiente perigoso, hostil e ameaça-
restaurante. Ao final, essa representação do bem
dor para a princesa. O ambiente de claro no campo
tem um final feliz: a protagonista ganha o amor e o
passa para escuro como a noite dentro da floresta,
restaurante como recompensa de atos corretos e
fugindo, ela cai em um buraco e desiste de fugir
responsáveis, com sacrifício e luta. O figurino desta
se entregando a fatalidade. Nesse momento, a luz
personagem é simples. Na cena inicial do filme,
volta aos poucos, e os animais na floresta ajudam,
mostra uma mansão, no quarto aparecem duas
ela acaba então na casa dos anões.
meninas uma branca, loira e com um vestido rosa
Basicamente, o castelo de Branca de Neve, a rodado com chapéu de cone e varinha na mão, in-
floresta, o pântano, a gruta de minério e a casa dícios claros de uma fada e a outra negra, cabelos
dos anões, a montanha com o penhasco, são os escuros, um vestido simples e curto, verde, golas
cenários do filme, onde os personagens se articu- brancas e uma coroa na cabeça, indícios claros de
lam numa dualidade entre o bem e o mal, o claro e uma princesa: Charlotte e Tiana.
o escuro, o colorido e a falta de cor.
Seu guarda roupa de adulta, em outra cena,
mostra poucos vestidos, e a maioria do figurino
4.1.3 Missão usado por ela tem a cor verde para conectar com
Branca de Neve, no filme esta sempre sofrendo o sentido do filme que a transforma, em determina-
maldades, injustiças, perseguições. Mas indiferente do período, em uma rã. É só no casamento com o
a esses reveses, passa a sua bondade e sua ino- príncipe e como empresária do restaurante que o
cência a tudo em sua volta. Ela é doce com os ani- figurino da princesa se apresenta com mais gla-
mais e com as pessoas, com os anões. Conquista mour e cuidado, percebendo-se, então, os indícios
tudo a sua volta e põe amor em tudo que faz, sem de vitória, ou seja, de final feliz.
julgar pela aparência, como mostra na parte em
que ela, apesar de se assustar com a aparência da 4.2.2. Cenário
rainha transformada em velha que chega a casa
Neste filme há uma localização geográfica. Ele
dos anões, ajuda-a e aceita sua oferta da fruta
se passa nos Estados Unidos da América do Norte,
envenenada. O amor incondicional a tudo e a todos
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
na Louisiana, especificamente na cidade de Nova lhar de serviçal, fazendo-a esfregar o chão. Assim,
Orleans. A época situa-se logo após a 2º Guerra uma rainha feiticeira, que usa seus poderes para
nos anos 50/60, o que se percebe pelo modelo dos subjugar a princesa às suas vontades, opõe-se à
carros e das roupas. O filme começa mostrando mocinha resignada com seu destino, que espera,
a casa de Charlotte, uma mansão com torres, a feliz, o dia que tudo se resolverá, com a amizade
câmera aproxima de uma delas onde mostra um dos pássaros, ela faz o trabalho que lhe é dado
quarto todo rosa, móveis estilo Luis XV, donde sai sem revolta e até sem consciência da maldade que
a menina Tiana, tomando um bonde, ela vê, pela está a sua volta. Tímida com o interesse do jovem,
janela, as mansões vizinhas a casa da sua amiga e que lhe quer, ela não se revolta com as maldades
depois a mudança para seu bairro, de casas sim- da madrasta, embora fuga ao se deparar com a
ples, chalés de madeira, um próximo do outro sem grande crueldade de sua vilã, ela é ingênua ao não
cercas. Na cozinha, sua mãe trabalha em seus ves- perceber o novo golpe, quando transformada de
tidos, ao mesmo tempo em que Tiana cozinha uma velha a rainha vai ao seu encontro na casa dos sete
sopa, mostrando claramente a falta de espaço. anões para enfeitiça-lá.
A cena que mostra seu quarto apresenta móveis Quanto a Tiana, ela que sabe o que quer e tra-
simples retos, roupeiro armário e cama. balha para conseguir isso. Por vontade própria e
Tiana, já adulta, trabalha na cidade, no centro, por necessidade, trabalha em dois empregos, com
em um restaurante simples também, como gar- a idéia de realizar seu sonho: ter um restaurante
çonete. O príncipe chega ao porto da cidade e próprio. Não está feliz com o destino que lhe é
sai dançando e tocando pelas ruas do centro da apresentado e luta para mudá-lo. Quando está pró-
cidade. A mudança de cenário se dá quando, já xima de conseguir isso, novos obstáculos embara-
transformados Tiana e o Naveen vão parar nos çam seu caminho, mas não a impedem de seguir
pântanos. De lá, voltam para a cidade, pelo rio, buscando seu sonho. Ocorre então que, no ultimo
indo direto para o desfile de Carnaval. Há cenas momento, ela escolhe o amor, deixando seu sonho
também dentro de uma igreja e no cemitério da para ser feliz, tendo feito a escolha certa, ela é re-
cidade. O filme termina com o local do restaurante, compensada e logo consegue os dois. Ao contrá- 329
o Palácio de Tiana, muito luxo, lustres de cristal, rio de Branca de Neve, ela é que salva seu príncipe
musica ao vivo de uma banda de jazz em que o e não foge da luta, encara e enfrenta a maldade e
príncipe toca. E por fim, ele e Tiana dançando no resiste às tentações em função de seu amor.
terraço de seu palácio-restaurante. Com relação ao figurino, enquanto Branca de
Neve é vestida com trapos e mostra somente dois
trajes o filme inteiro, Tiana usa roupas simples e
4.2.3 Missão
uniformes, roupas de trabalho; tem um guarda-
A missão da personagem-protagonista mesmo -roupa com poucos vestidos, por escolha pessoal,
dita nas entrelinhas, é fácil de perceber: evidencia pois, sendo sua mãe estilista, poderia vestir-se
que com muito trabalho foi possível realizar seu so- melhor, se não guarda-se todo o seu dinheiro para
nho – adquirir seu restaurante. Este, que foi sonho a consecução de seu sonho.
e objetivo de seu pai, havia passado para ela, Tia-
As duas apresentam poucas roupas, com a
na. Durante o filme, ela aprende que só a realização
diferença de que Tiana não as tem porque não
profissional não é o suficiente para ser feliz, e que o
quer, e Branca de Neve, porque a madrasta não
amor é mais importante. Para isso, porém, ela tem
lhe permite mostrar sua beleza. Essas diferenças,
que sofrer muito em dois empregos, ser transfor-
entretanto, deixam um ponto em comum entre
mada em uma rã, lutar contra crocodilos, caçado-
ambas: elas têm uma feminilidade, uma graciosi-
res, o homem das sombras e, então, apaixonar-se.
dade e uma postura elegante, que é mostrada em
Ela abre mão de seu sonho do restaurante pouco
Branca de Neve quando ela vai para a floresta com
antes do fim do filme para ficar com o “sapo” ama-
seu vestido amarelo e azul e em Tiana quando, na
do. E, dessa forma, escolhendo o amor, em vez
festa precisa mudar de roupa e usa um vestido azul
da realização profissional é que ela consegue os
longo. É ai, então que recebe o reconhecimento de
dois, ou seja, uma missão de vitória através de atos
sua beleza por sua amiga Charlotte. Essas cenas
corretos e verdadeiros.
deixam implícita a elegância interna das princesas,
4.3 Diferenças e Semelhanças ponto comum, portanto, entre estes dois persona-
O bem e o mal. Em Branca de Neve e os Sete gens.
Anões assiste-se à contraposição das duas for- No que tange ao cenário, as ambiências dos
ças oponentes. Vemos, então, as cenas em que a filmes são bem distintas. Enquanto que Branca de
rainha, com inveja de sua enteada, obriga-a traba-
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
Neve está contextualizada em um castelo medieval da cidade tocando e dançando. O primeiro con-
e uma floresta, Tiana é uma jovem da cidade de tato com Tiana está longe de suscitar um amor à
Nova Orleans, com todas as demandas de uma primeira vista, mas o príncipe reconhece nela uma
vida urbana. As marcas imagéticas, porém, apon- mulher batalhadora. Ao se apaixonar, ela conhece
tam para pontos em comum: há semelhanças na todos os seus defeitos, mas também consegue ver
abertura de ambos os filmes, mostrando castelos, as suas qualidades. Reconhecendo o amor dele
e torres, e quartos. A diferença é que, enquanto, por ela, ela se dispõe a ficar com ele, pede-lhe que
em um, o quarto é da rainha/madrasta de Branca não faça o sacrificio de casar sem amor com Char-
de Neve, no outro, o quarto é da amiga vestida de lotte e que fiquem juntos, mesmo como sapos,
fada, Charlotte. pois, sozinha, seu sonho não teria mais sentido.
Vemos também semelhanças na forma com que, Tiana escolhe o príncipe conhecendo todos os
nas duas histórias, as mocinhas fogem ou acabam, seus defeitos e qualidades, e reformam o palácio,
em sua fuga, indo para a floresta que está na volta onde os dois trabalharão juntos, cada um com seu
e, mais especificamente, no caso de Tiana, che- dom, e poderão ser felizes. O epílogo não mencio-
gando a um pântano, com crocodilos em volta. A na que “serão felizes para sempre”.
diferença é que Branca de Neve, em sua fuga, che- A missão que as duas princesas apresentam é
ga a ficar tão assustada que desiste de fugir e cai bem distinta também. Tiana tem claro um sonho
ao solo, enquanto Tiana consegue fugir com suas a perseguir, um objetivo e, para realizá-lo, conta
próprias forças, sem esmorecer, e ainda salva o somente com a força de seu trabalho e sua de-
príncipe sapo dos crocodilos. terminação. Porém, na busca de seu sonho, ela
As duas conseguem sair da floresta da mesma encontra também o amor. Tem que escolher e
forma: com a ajuda de amigos que por lá en- escolhe o amor, mas acaba conseguindo os dois.
contram e lhes indicam o caminho para um local Branca de Neve conta com os outros – príncipe,
seguro: Branca de Neve é orientada para a casa caçador, anões, animais – para ajudá-la a escapar
dos sete anões, e Tiana, para a casa da Mama- da maldade de sua madrasta. Nessa fuga, encon-
330 -Odie. No entanto, elas buscam coisas diferentes: tra a amizade e o amor do príncipe.
enquanto Branca de Neve está fugindo para não As duas encontram o amor em suas aventuras,
voltar mais, pois sua madrasta a quer morta, Tiana e isso une as duas historias. Também a inveja está
e o príncipe sapo buscam uma forma de voltar a presente nos dois enredos: em Branca de Neve, a
ser humanos. Para Branca de Neve, a casa é um inveja de sua beleza, por parte da madrasta, que
fim; para Tiana, um meio. manda matá-la; em A Princesa e o Sapo, a inve-
Há diferenças também nos príncipes. O de ja que o homem da sombra tem pelo dinheiro do
Branca de Neve é perfeito, um homem que vem pai de Charlotte, a ponto de usar o príncipe para
em um cavalo branco, roupas impecáveis, não conseguir chegar até ele; e a inveja do mordomo
apresenta defeito algum, compreende a timidez da do príncipe pela posição de Naveen, que ele nunca
donzela e canta para ela na sacada. Não a salva da conseguiria ter. Entre diferenças e semelhanças, a
rainha má, mas aparece para dar o beijo e acordar representação imagética é percebida nos contex-
do encanto maligno a bela princesa. Ela o aceita tos de cada signo através de percursos gerativos
naquele momento como seu salvador, já estava semânticos.
por ele apaixonada, apesar de não o conhecer e
nada saber a seu respeito. Seu relacionamento,
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
portanto, é baseado no amor à primeira vista, que
os encaminha para o tradicional epílogo do “felizes Este trabalho tem um ponto final, mas não uma
para sempre”: o príncipe carrega a amada nos bra- conclusão fechada. Trata-se de uma pesquisa qua-
ços até o cavalo e a leva para viverem no castelo litativa, que buscou, em um estudo baseado em
dourado. Ou seja, um amor romântico, encantado e percepções semânticas, os modos de endereça-
desconectado da realidade. mento de diferentes personagens/princesas a partir
de interpretações subjetivas das marcas imagéti-
O príncipe de Tiana é bem diferente, está longe
cas e discursivas dos filmes. O trabalho comparati-
de ser perfeito e perto de ser um homem normal.
vo entre os dois filmes e seus personagens permite
Já de início ela sabe que ele não tem dinheiro e
alguns encaminhamentos de pesquisa:
que vem para casar com sua amiga, para conse-
guir seguir a vida de boêmio que sempre teve; não 1) A evolução do papel representado pela mu-
sabe cortar um cogumelo e nunca trabalhou na lher. Ela deixa de ser uma resignada com seu des-
vida. Sendo apaixonado por jazz, ele vai pelas ruas tino, permanecendo à espera do príncipe, como no
filme dos anos 30, e passa a ser dona de seu des-
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
tino, tendo o poder de mudar sua vida com a força sente e, na maioria das vezes, constituindo-se na
de seu trabalho, como no filme dos anos 2000. escolha mais desejável para todas as princesas.
Exatos 70 anos separam o lançamento desses
dois filmes, e a diferença na construção do papel
da mulher fica bastante clara: as princesas agora Referências Bibliográficas
trabalham e sabem que os príncipes têm defeitos, DISNEY.COM.. princesas Site oficial disponível
podendo escolher ficar com eles ou não. em: < http://www.disney.com.br/DVD/brancadene-
2) A construção da personagem princesa. Toda ve/downloads/> acessado em 01 jan.2012.
menina sonha com seu príncipe. Não podemos DONDIS Donis A. Sintaxe da linguagem visual;
negar que essas construções do imaginário infantil tradução Jeferson L. Camargo, 2º Ed - São Paulo,
são reais, e o próprio filme da Princesa e o Sapo Martins fontes 1997
mostra a diferença entre meninas que crescem ou- GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos
vindo histórias românticas e, quando adultas, ainda de pesquisa, São Paulo, Atlas. 1991,
esperam seu príncipe. Ou seja, o amor continua a HALL, S. (Ed.). Representation: cultural re-
ser romantizado, glamurizado, fugindo de conceitos presentations and signifying practices. London:
mais concretos e reais. Sage; The Open University, 1997.
3) Os contos de princesas, apesar de focados PERUZZOLO, Adair Caetano. A Estratégia dos
em diferentes épocas, apresentam o amor como signos: quando aprender é fazer. Santa Maria;
um valor sempre presente. Mesmo que a prince- Ed. FACOS-UFSM, 2002.
sa moderna trabalhe e não dependa mais de um RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da
“príncipe”para salvá-la, a realização dela está sem- Comunicação. Questão comunicacional e for-
pre vinculada ao amor correspondido. mas de sociabilidade; Ed. Presença, Lisboa; PT.
4) Podemos ver que, na luta do bem contra o 1990
mal, para que este seja vencido, é necessário, qua- ROCHA, Decio. Agendamentos coletivos de
se como paradigma de verdade, que haja bondade enunciação e discursos midiáticos, semiosfera, 331
e uma boa amizade para indicar caminhos e ajudar 8 ano 5, revista da pos graduação eco-ufrj 2004,
na luta conta o mal. disponível em : :<http://www.ecoufrj/semiosfera>
5) Evidenciamos mais diferenças do que seme- eacessado em 01 jan.2012.
lhanças entre as duas histórias. Podemos notar, TRIVIÑOS, A.V.S. introdução a pesquisa em
então, que o conto da princesa está-se atualizando ciências sociais- a pesquisa qualitativa em educa-
com o passar do tempo. Novos modelos de prínci- ção. São Paulo. Atlas. 1987
pe e de princesas são importantes para compatibi-
lizar a fantasia com a vida e a sociedade atuais.
Por outro lado, embora não haja embasamento
teórico para se afirmar que toda menina quer ser
princesa e ter como par um príncipe para juntos
realizarem sonhos, ocorre que, há décadas, ge-
rações e gerações de crianças vêem modelos
de mulher em princesas criadas pelas empresas
cinematográficas, o que pode contribuir para essa
afirmação. Walt Disney tem usado essa fórmula
repetidas vezes, para ir contando sempre a mes-
ma história: uma princesa, um príncipe, o mal que
separa os dois, amigos que ajudam a remover
obstáculos do caminho, a magia a serviço do mal,
o confronto entre o bem e o mal, a escolha, a vitó-
ria do amor.
A contemporaneidade mostra, entretanto, que
nossas princesas agora trabalham, pegam ônibus,
escolhem e salvam os príncipes, são as heroínas
na história, as protagonistas mesmo, decidindo seu
destino na trama e lutando contra o mal. Essa é
hoje a realidade mais próxima da mulher moderna.
O que não muda, porém, é o amor, sempre pre-
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
Identidades em cena em
Des-Medéia, de Denise Stoklos
Sonia Pascolati
Universidade Estadual de Londrina – Paraná, (Brasil)
de uma mulher violenta, violenta, violentíssima”, re- zoológico voraz me trepa, me come, carnívoro
cuperando o sentido cristalizado do mito, por outro e mamífero mas invertebrado e de penas, meu
lado toma liberdades para com Jasão, chamando- inidentificado ser animal.
-o de “Jasão-tesão, Jasão-cagão, Jasão-bundão”
(STOKLOS, 1995, p.5). Está dada ao leitor/espec- Eu, égua árabe, negra, suada, com fogo de
tador a primeira construção de um duplo: Medeia dragão nas ventas, vagina olímpica e útero
e Jasão, feminino e masculino, força e fraqueza. encharcado de esperma de Zeus, com o reto
Esses pares se desdobram à medida que, no caso imantado de rubra paixão, eu, égua árabe,
de uma reescritura, sempre paira sobre o texto pertenço a tua espécie, meu bicho, me come,
a sombra de outros textos ou de um texto-fonte me trepa. (STOKLOS, 1995, p.15-16).
(PASCOLATI, 2005); portanto, o feminino, por
exemplo, se desdobra no feminino euripideano e O sexo parece ser a única forma de junção dos
no feminino de Stoklos. Não se pode negligenciar corpos, de eus tão diferentes desde a essência:
que é nessa tensão que os sentidos de feminino se ele, paradoxalmente, dotado de virilidade, mas
constroem durante a leitura de Des-Medéia. invertebrado – é tudo e nada ao mesmo tempo:
A marca do discurso de Medeia é o sofrimento, mamífero/ carnívoro, quadrúpede / bípede; ela é
como se suas falas formassem um longo canto de égua, pura e simplesmente, e comunga da espécie
lamento pelo abandono. Há uma constante tensão animal de Jasão – qualquer que seja ela – apenas
entre o estar junto, o pertencer ao outro, e o estar no plano instintivo, físico, jamais ideológico.
só, o voltar a ser apenas um, como se vê no trecho Essa Medeia que se lamenta, que revela indis-
abaixo tanto na metáfora da bifurcação do caminho cretamente seus sentimentos – ao contrário do que
(divisão), quanto na imagem da lua, sempre incons- se espera de um herói clássico, contido e seguro
tante e múltipla: de si (DJIRIGUIAN, 1991) –, absolutamente cons-
ciente de ter dado seu maior tesouro – “Aquele
MEDEIA precioso da arca sagrada: o tempo [...]” (STOKLOS,
334
1995, p.19) – a um homem pérfido, sozinha numa
No barranco da rota em que me encontro lar vazio, do que ela é capaz? Diz o mito que sua
bifurcada vejo as luas. vingança não poupa sequer os filhos. Mas não
esta Medeia, que se recusa ao crime: “Não imo-
Encostar-se no barranco faz uma sombra nes-
larei morte nenhuma por você, nenhum sacrifício
te atalho imposto.
ritual, a causa não merece. / Há muito a se fazer,
É mais uma imagem em dois. adiante.” (STOKLOS, 1995, p.25). Para ela, não faz
sentido a vingança para com uma relação em que
E a lua projeta também em duplos dois a sua não há amor: “Como eu poderia assassinar meus
prateada série, do crescente ao pleno [...]. frutos por vingança se não há sentimento a ferir?
(STOKLOS, 1995, p.10). (STOKLOS, 1995, p.30). Numa inversão completa
de perspectiva, ela afirma Jasão como perdedor,
A dor da heroína se inscreve no campo da se- destronando-o “[...] do direito de permanecer em
xualidade, do desejo físico que o outro já não quer mim, que é sobre o qual temos autoria: a liber-
mais satisfazer. Trata-se de um doloroso processo dade de escolher o repertório que me ocupa”
de disjunção em relação ao ser amado, expresso (STOKLOS, 1995, p.30).
por imagens contrastantes como o fogo, signo do Se a alternativa face à traição não é a vingança
desejo que consome o corpo da mulher, e a pedra ou a violência, tampouco é a passividade. Medeia
e a água, elementos frios. Medeia vê Jasão como sofre, se lamenta, mas não se entrega. É outro o
uma porção de si mesma, mas uma porção perdi- caminho proposto pela peça.
da. O duplo, que antes da separação é visto como
soma, adição, agora é visto como oposição, forças
3. Des-Medéia e a alma brasileira
contrárias, ou melhor, desejos contrários. Numa es-
pécie de êxtase verbal, Medeia recorre a metáforas A retomada de um texto clássico nunca é gratui-
animalescas para expressar simultaneamente seu ta, ainda mais quando se trata de uma figura em-
tesão e seu desprezo pelo marido: blemática e tantas vezes revisitada pela arte (litera-
tura, pintura, cinema) quanto Medeia. Como afirmo
em minha tese de doutorado, “[...] a reescritura do
Argonauta, seu porco, meu cavalo, veado, seu mito é direcionada pelo olhar do leitor-escritor e
bode, asno, burro, burro, avestruz, pavão, meu
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
é marcada pelo movimento de redemocratização Estado do Maranhão desde 2009: “Como boa filha
do país, cujo ápice é a aprovação da Constituição de presidente que era, ensinou pro Jasão umas
de 1988. O movimento chamado “Diretas já!”, de politicagens, isto é, deu umas rosaneadas: pistolão,
1984, embora não tenha conseguido a modificação sacas? [...]” (STOKLOS, 1995, p.7).
do sistema de eleição presidencial, foi fundamental É desse modo, fazendo com que o contexto do
para a reunião das mais diferentes categorias so- mito se projete sobre o contexto político brasileiro e
ciais em torno de um mesmo objetivo, unidas pela vice-versa, que Stoklos consegue reconfigurar tan-
conquista de um mesmo direito: a escolha direto to a identidade de Medeia quanto do povo brasilei-
do governante maior do país. ro. Mesmo não sendo possível apagar o assassina-
Contudo, velhas estruturas permanecem no to do irmão e a culpa pela morte do pai, é possível
cenário político, como registra a esclarecedora fala transformar o final da história, numa espécie de
inicial do Coro. Com um tom bastante coloquial, desenredo no qual Medeia
a personagem retoma a trajetória de Jasão, mas
refere-se simultaneamente ao contexto político
CORO
brasileiro, estabelecendo um provocativo paralelo
entre o exercício do poder no mundo grego e no [...]
Brasil. Se em Iolco Pélias usurpa o trono do pai de
Jasão, no Brasil o poder foi usurpado pelos milita- não matou filhos neste espetáculo.
res anteriormente, e agora está nas mãos de outros Isso foi um fim invertido.
poderes tais que o empresariado e a mídia, como
relata ironicamente o Coro acerca das jogadas polí- Sua natureza há de ser salva.
ticas de Jasão:
Também não esteve aqui cozinhando nem
costurando.
Jasão não se deu por achado. Como ele tinha
um dote grande, como era bem dotado, era de Ocupou-se de transformar.
336
família bem situada, bem relacionada nessas Tal como ela, o mito, merecemos desfazer
esferas do poder, sabe como é, empreiteiras já todo malfeito, fazê-lo em novo jeito: bem.
na jogada, gráficas à disposição, [...] com um (STOKLOS, 1995, p.31).
generoso apadrinhamento de muitos deuses
ele construiu o primeiro navio da história: Argo,
com uma madeira de lei, que falava e dava Lição para os brasileiros: a história está escri-
ordens de tão poderosa, uma rede brasileira ta, mas escrita até o momento presente (década
de televisão, assim. [...]. 1990); daqui pra frente é possível mudar, transfor-
mar. Mais do que possível, necessário. Lição para
Chamou sua coligaçãozinha, seus cabos elei- as mulheres, que também devem ocupar-se de
torais, combinou favores depois de conquista- transformar, de gerar vida, como é de sua natureza
do o cargo, digo, o título, digo, conquistado o biológica, e não morte, como em Eurípides.
pelego, [...] apelidou seus capangas de argo-
nautas e lá se foi (STOKLOS, 1995, p.7).
4. Desmedeando identidades
Como aponta Leites Júnior (2012, p.13), cuja pes-
Apesar do avanço democrático representado quisa mapeia retomadas do mito de Medeia nas
pela década de 1980, o ranço da troca de favores, mais diversas artes e objetos (textos dramáticos,
do apadrinhamento político, das manipulações pinturas, imagens iconográficas, filmes), o funda-
ideológicas continua imperando na política bra- mental na investigação da transposição do mito
sileira da década de 1990. O texto de Stoklos dá para novos contextos é “[...] verificar [...] quais obras
voz ao desencanto de uma parcela da população – apresentam ruptura com a série e de que modo os
talvez sua maioria – diante da esperança frustrada. artistas, escritores e dramaturgos se reapropriaram
Tancredo Neves, escolhido para presidência com criticamente do passado (representações) para
apoio popular, morre antes de assumir, ficando em realizar a problematização do presente ou de sua
seu lugar José Sarney, símbolo do conservadoris- temporalidade histórica”. Não há dúvidas de que o
mo, da permanência no poder por gerações, como texto de Denise Stoklos é não só uma ruptura com
o texto faz questão de registrar, ao referir-se às arti- a representação da heroína clássica, como tam-
manhas de Medeia em comparação às de Roseana bém faz dessa ruptura uma forma de desvelamento
Sarney, filha do então presidente e governadora do de identidades: passagem do paradigma da mulher
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
vingativa e violenta para a mulher-mãe amorosa e sociales del arte y la cultura. Buenos Aires, n°. 2,
transformadora; mudança de uma posição confor- jul. 2011. Disponível em: <http://www.revistalindes.
mista para uma ação atuante no espaço político, org.ar/numeros_anteriores/numero_2/articulos/
em particular pela conscientização da importância Giordano_O_TTeatr_Essencial.pdf.>. Acesso em: 03
da escolha dos representantes do povo no poder. maio 2012.
O apagamento da violência evidencia outro lado GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph.
de Medeia: a força de transformação, que começa Dicionário de semiótica. 9. ed. Tradução Alceu Dias
pela contenção de seus próprios impulsos e chega Lima et al. São Paulo, Cultrix, s.d. [verbete disforia].
ao altruísmo de pensar no bem comum, na trans- LEITES JÚNIOR, Pedro. Leituras de Medeia: o
formação de atitudes individuais para o bem de mito e o lastro cultural. Dissertação de Mestrado.
todos. Repudiar Jasão é dizer não à corrupção, à Orientadora: Lourdes Kaminski Alves. UNIOESTE –
política suja que se esquece do povo em favor de Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Casca-
benefícios pessoais, como é claro na imagem do vel, 2012.
abandono de Medeia movido pelo desejo de poder. MARQUARDT, Cristina Rosito. Ifigênia em
Em Stoklos, o masculino é fraco e desleal e o femi- Áulis: a função religiosa, o papel das mulheres
nino é marcado pela pulsão renovadora. e a simbologia do sacrifício na tragédia euridi-
Se o masculino é investido de valor disfóri- peana. Tese de Doutorado. Instituto de Letras.
co (GREIMAS; COURTÉS, s.d, p.130), há o feminino Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
para apontar outros caminhos de luta que não a Porto Alegre, 2007. Orientação: Kathrin Rosen-
violência, seja ela predominantemente física (tor- field. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.
tura), como na época da ditadura, seja social e br/bitstream/handle/10183/14695/000667240.
ideológica, como nos tempos democráticos cujos pdf?sequence=1>Acesso em 02 maio 2012.
discursos igualitários camuflam políticas assisten- PASCOLATI, Sonia. Faces de Antígona: leituras
cialistas e manipuladoras. Portanto, vejo na Des- e (re)escrituras do mito. Tese de Doutorado. Facul-
-Medéia de Stoklos uma força que atrai o leitor/es- dade de Ciências e Letras – UNESP – Campus de
pectador em direção a esse novo perfil de feminino 337
Araraquara. Araraquara, 2005.
e à atuação política consciente e transformadora.
RIBEIRO, Luiz Gustavo Marques. Desmistifican-
Como nos lembra o Coro, o mito não é do medéias: um olhar crítico sobre a representação
imutável e tem um caráter simbólico: “[...] E mais feminina em obras dramatúrgicas. Anais Fazendo
uma: Medéia não é de carne e osso como nossos Gênero 8 – Corpo, violência e poder. ago. 2008.
criminosos: é apenas um mito, criado para sim- p. 1-7. Disponível em: <http://www.fazendogenero.
bolizar e espelhar esse lado escuro da natureza ufsc.br/8/sts/ST4/Luiz_Gustavo_Marques_Ribei-
humana, para que possamos refletir sobre ele e ro_04.pdf> Acesso em 02 maio 2012.
transformá-lo” (STOKLOS, 1995, p.9). O grito de
SÓFOCLES. Antígona. Tradução: J. B. de Mello e
Medeia – solitário, plangente, orgânico –, primeiro
Souza. Versão digital. Clássicos Jackson, vol. XXII,
som por ela emitido na peça, é substituído por um
2005. Disponível em: <http://www.lendo.org/wp-
raio de esperança, que não se quer farol a guiar
-content/uploads/2007/06/antigona.pdf>. Acesso
consciências, mas poderoso sino a despertá-las.
em 03 maio 2012.
STOKLOS, Denise. Des-Medéia. São Paulo: De-
Referências Bibliográficas nise Stoklos Produções Artísticas, 1995.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. In: ______. Manifesto do Teatro Essencial. 1987.
______. Por que ler os clássicos. Tradução Nilson Disponível em: <http://denisestoklos.uol.com.br/
Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. trabalhos/manifestos/manifesto-teatro-essencial.
9-16. htm>. Acesso em 10 mar. 2012.
DJIRIGUIAN, Karine. La souffrance dans les ______. Teatro essencial. São Paulo: Denise
mythes des labdacides : comparaison entre les tra- Stoklos Produções Artísticas, 1993.
gédies de Sophocle, Antigone et Oedipe roi et les
drames d’Anouilh, Antigone et Oedipe ou le roi boi-
teux. Thèse de doctorat en Littérature Comparée.
Direction : Pierre Brunel. Université Paris-Sorbonne
IV. Paris, 1991.
GIORDANO, Davi. O teatro essencial sob uma
perspectiva minimalista. Revista Lindes. Estudios
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
O termo de língua inglesa “women’s cinema”, as seguintes obras, as quais o/a leitor/a deve con-
poderia ser traduzido literalmente como “cinema de siderar como representativos da primeira fase da
mulheres” para a língua portuguesa e chick flicks retomada: Carlota Joaquina (1995), O quatrilho
traduzido como filmes, cujas temáticas são... “coi- (1994); A ostra e o vento (1998); Amélia (2000); A
sas de mulheres”. Mas a tradução cultural desses partilha (2001); Domésticas, o filme (2001); Uma
termos teria alguma correspondência no cinema vida em segredo (2002); Garotas do ABC (2003);
brasileiro, especialmente na primeira fase da Re- Nina (2004); Casa de areia (2005); Vida de meni-
tomada1? Para tentar responder a esta pergunta, na (2005); Zuzu Angel (2006); As filhas do vento
esta análise focou nos elementos da narrativa e da (2005); O céu de Suely (2006).
linguagem cinematográfica: o discurso, a diegese, Evidentemente, na narrativa de cada filme há
a relação das protagonistas com outros persona- um posicionamento político imbuído. A semântica
gens, a montagem e os jogos de enquadramento da narrativa é inseparável daqueles elementos da
imagético, a estética. Elencou-se um conjunto de linguagem cinematográfica, logo, o ponto de vista
filmes para a análise, não importando se foram narrativo também traduz uma visão de mundo que
dirigidos por cineasta homem ou mulher, mas se está nas entrelinhas do filme. Contudo, tão impor-
havia algum protagonismo feminino. Elencaram-se tante quanto a análise da narrativa, é a leitura que
1 Retomada, Ver: CATELLI; CARDOSO, 2009. Para efeito de pesquisa, dela se faz e o lugar de quem a faz. Seu posicio-
convencionou-se a primeira fase da Retomada o período entre 1995 a 2006. namento deve ser considerável na análise, uma
Este artigo é adaptado da tese de doutorado da autora. vez que as leituras críticas são uma reflexão livre
* SUMAYA MACHADO LIMA é Professora graduada em Letras pela Univer- sobre leituras de teorias e conceituações feministas
sidade Federal de Juiz de Fora, Minas. Mestre em Estudos Literários pela elaboradas por Susan Bordo, Joan Scott, Judith
Pontifícia da Universidade Católica do Rio de Janeiro e Doutora em Teoria Butler, Elizabeth Grosz, Donna Haraway, mas es-
Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina. Sua linha de pesquisas
compreende estudos de gênero, cinema e cultura. Atualmente é gestora de
pecialmente de Teresa de Lauretis (1984;1987;1994)
projetos sócio-culturais que, sem ignorar as conquistas femininas, proble-
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
matiza-as, foca sua análise na representação do como categoria de análise, encontrou-se o termo
sujeito feminino, na construção do sujeito pelas chick flicks. A priori, este termo pareceu um deno-
diversas tecnologias de gênero2 (a mídia, a arte, o minador comum. A posteriori, percebeu-se que, em
universo cibernético, o cinema), a produção cine- vez de especificar, ele generaliza o que considera
matográfica e a leitura de textos culturais. Ques- cinema de mulheres, fazendo uma grande mistura,
tiona tanto o conservadorismo ideológico quanto ou hodgepodge, por conter uma grande variedade
rotulações de comportamentos de gênero. Esse é de filmes num mesmo universo.
o posicionamento que se procura adotar aqui nas Samantha Cook (2006), em The Roudge Guide
reflexões sobre a semântica do termos women’s to Chick Flicks, define chick flicks pelo que parece
cinema e chick flicks para denominar filmes de ser, afinal, um melodrama.
protagonismo feminino no cinema brasileiro da
retomada.
O chick flick possui muitos aspectos. Obvia-
Não classifico estes filmes como um “cinema
mente, há alguns elementos constantes. Seja
de mulheres” ou o que poderia ser um cinema
uma fábula, seja um filme de doença terminal,
de “olhar feminino” no Brasil. Provavelmente isso
um musical ou um drama de época, um chick
remeteria a toda a discussão de Mulvey (1989;1996)
flick incluirá os seguintes ingredientes combi-
sobre a espectatorialidade, o fetichismo e o olhar
nados: união feminina; crises de família e de
de aspecto masculino no cinema, de um ponto de
amizades; mães e filhas; mulheres fortes, sa-
vista predominantemente psicanalítico, cujo desdo-
crifícios, doença, amor e perda. Sobretudo, o
bramento desviaria da questão principal.
chick flick trará emoções – sentimentos – para
a grande tela.4
A RETOMADA
A denominação “cinema da retomada” foi cria- Cook (2006) analisa os filmes e suas respectivas
da por alguns profissionais, para se referirem à heroínas; elege um rol das frases mais famosas
produção cinematográfica reativada no governo que elas dizem, assim como descrimina uma trilha 339
de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Há sonora correspondente aos seus dramas, ou cenas
um artigo3 de Carlos Alberto de Mattos (1998), marcantes. Numa lista de mais de 50 filmes, há
jornalista e crítico de cinema, que busca entender os antigos Brief Encounter (1945) de David Lean,
a característica fundamental dos filmes produzi- Reino Unido, Doutor Jivago (1965), também de
dos nesta fase que, embora ainda seja cedo para Lean, Reino Unido, Gone with the Wind (1940) de
defini-la, é possível assegurar, conforme Mattos, Victor Fleming, EUA, misturados a outros contem-
que a existência da diversidade estética é predomi- porâneos de temáticas, gêneros e origens bastante
nante – e constatamos que esta tendência continua diferentes. Dentre eles: The aple (1998), de Samira
após a primeira fase. Uma pergunta reiterada sobre Makhmalbaf, Irã; Run, Lola, run (1998), Tom Tykwer,
aquele período é se existia algum movimento que Alemanha; O exterminador do futuro (1984) James
pudesse caracterizá-lo como no cinema marginal Cameron; Legalmente Loura (2001), Robert Luketic,
ou no cinema novo. De acordo com Mattos, uma EUA e O diário de Bridget Jones (2001) de Sharon
estética representativa é um mito que já começava Maguire, Grã Bretanha e França.
a ser contestado energicamente por produtores e
Considerando uma lista tão abrangente, ela
realizadores em 1996. A discussão estética ficava
afirma que o estilo melodrama tem sofrido modifi-
como que alijada do cenário, pois temiam que se
cações com o tempo. De fato, este também é o pa-
disseminasse uma concepção uniformizadora des-
recer de Ismail Xavier (2003). Em A experiência do
se cinema surgente. Ao contrário, os idealizadores
cinema5, o autor faz uma diacronia do estilo, desde
prezavam pela diversidade.
a literatura da Revolução Francesa, para focar sua
análise nas telenovelas do Brasil hodierno. Discute,
OS TERMOS especialmente, atualizações da matriz melodramá-
Ao procurar por possíveis traduções para o mo- tica na dramaturgia de Gilberto Braga, com Anos
mento cultural do cinema brasileiro, tendo o gênero Dourados e Anos Rebeldes. Xavier (2003) observa
2 LAURETIS, 1987 4 “The chick flick comes in many guises. There are of course, constants. Be it
3 Este artigo foi escrito no Estadão, em 1996, com o título: “Cinema a fairy-tale fantasy or a terminal illness movie, a musical or a costume drama,
Brasileiro Prepara Novo Rosto”, mas não consegui encontrar a data exata a chick flick will include, in some combination, the following ingredients: fema-
de publicação nos arquivos do jornal por internet. Entretanto, informada pelo le bonding; friendship and family crises; mostheres and daughters; strong
próprio autor, soube que este artigo está expandido em uma publicação de women; sacrifice, sickness, love and loss. Above all, a chick flick will bring
1998. Pude adquiri-lo e citá-lo (MATTOS, 1998). emotion – feelings – to the fore.” (COOK, 2006, p.7, tradução nossa).
IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
que durante o século XIX o melodrama estimulou o ou “woman cinema” e o “feminist film studies”?
surgimento do cinema e posteriormente a televisão, Como pensar a semântica dos termos traduzidos:
na predominância de maniqueísmos, sentimenta- filmes de mulher, cinema de mulher, estudos de
lismos e moralismos. Embora se possa ter diversi- filmes feministas? Um filme precisaria ser con-
ficado no melodrama e suas formas narrativas no siderado feminista pelo feminismo acadêmico?
romance e no audiovisual, o fundamental parece Considerando o gênero como categoria de análise,
estar na seguinte definição de Ismail Xavier: conclui-se que esses termos classificatórios só
são interessantes para ajudar nos questionamen-
tos teóricos e nas suas próprias desconstruções,
Ao melodrama estaria reservada a organiza-
sobretudo, para serem localizados como um ponto,
ção de um mundo mais simples em que os
de onde se deve “escapar”, mas escapar de sig-
projetos humanos parecem ter a vocação de
nificados que se quer encerrar, engarrafar. Se for
chegar a termo, em que o sucesso é produ-
assim, qualquer tradução literal servirá.
to do mérito e da ajuda da Providência, ao
passo que o fracasso resulta de uma conspi- De acordo com Lauretis (2007, p.29), perguntar
ração exterior que isenta o sujeito de culpa e qual forma, qual estilística ou qual temática apon-
transforma-o em vítima radical. Essa terceira taria a presença feminina atrás da câmera ou para
via da fabulação traria, portanto, as reduções um cinema dito de mulheres é o mesmo que cair
de quem não suporta ambiguidades nem a na armadilha da universalização de termos, que
carga de ironia contida na experiência social, pode generalizar por um lado, mas invisibilizar por
alguém que demanda proteção ou precisa de outro. Além disso, ela ironiza que há o risco de se
uma fantasia de inocência diante de qualquer reproduzir o termo apenas para assegurar que há
mau resultado. Associado a um maniqueísmo uma linguagem específica ou um “cinema de mu-
adolescente, o melodrama desenha-se, nesse lheres” – como se uma definição da arte, servisse
esquema, como o vértice desvalorizado do para se mostrar um tributo que a mulher paga à so-
triângulo, sendo, no entanto, a modalidade ciedade. Ao contrário, isso pode legitimar agendas
340 escondidas de uma cultura que nós mal podemos,
mais popular na ficção moderna, aparente-
mente imbatível no mercado de sonhos e de mas precisamos mudar7.
experiências vicárias consoladoras.6 Não obstante, ao mesmo tempo em que não
quer rotular formas, a autora apresenta caminhos
para se identificar esse cinema sobre mulheres.
Portanto, o melodrama é recorrente na maioria Lauretis (2007) afirma que esse perfil de “cinema
dos filmes eleitos por Samantha Cook (2006), no de mulheres” (ou, talvez, “cinema feminino”, porque
entanto, o termo chick flicks universaliza gêne- não está ligado à sexualidade, mas a aspectos do
ros cinematográficos (drama, comédia, aventura, gênero feminino) está contido na pré-estética, que
suspense, de viso comercial, mainstream, ou não já é plena de estética.
comercial). Não se preze pela classificação, mas Ela exemplifica com o filme de Chantal Aker-
se fosse extremamente necessária, poder-se-ia man, Jeanne Dielman (1975), uma narrativa sobre
concluir que, ainda que o melodrama tenha se mo- a rotina das atividades diárias de uma dona de
dificado, a ampla definição de chick flicks de Cook casa belga, de meia idade, de classe média, para
não tem correspondência com o conjunto de filmes mostrar que há mais estética na pré-estética de
selecionados para a primeira fase da retomada. um filme do que sua aestetização. Entendo que o
Ambos os universos de filmes têm em comum a que Lauretis (2007) quer dizer com a “pré-estética”
centralidade narrativa sobre mulheres; mas, em esteja naquilo que pré-existe fora da ficção, fora
geral, os filmes brasileiros, nos quais se percebe o do ambiente narrativo, antes, que está previsível
protagonismo feminino e a centralidade da narrati- na vida comum e nos afazeres cotidianos que, às
va em sujeitos femininos, são filmes autorais, não vezes, são mecânicos, mas estão saturados de
comerciais, e estão inseridos predominantemente uma semântica da cultura e relativa à tecnologia de
na categoria de drama e melodrama. Para o chick gênero e aos comportamentos de gênero no mun-
flicks, o melodrama parece ter transformado em do. Tentando exemplificar, a autora comenta que o
sutis as diferenças entre o neorrealismo, o drama, suspense da narrativa de Akerman8 é produzido
o melodrama. Desse modo, os tipos de filmes bra-
sileiros mencionados dessa primeira fase podem
estar contidos na classificação chick flicks, mas Pelos pequenos deslizes na rotina de Jeanne,
não o contrário. seus pequenos esquecimentos, e as hesita-
E a tradução cultural dos termos “woman’s films” ções durante gestos comuns e “insignifican-
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
tes” tais como descascar batatas, lavar pratos, www.ufscar.br/rua/site/?p=1670>. Acesso em: 10
ou fazer café – que ela nem vai beber. Todavia, jul. 2010
não está lá devido à beleza das suas imagens, COOK, Samantha, The Rough guide to Chick
à composição harmoniosa de seus enquadra- Flicks. New York: Rough Guides, 2006.
mentos, à ausência de campo e contra-cam- LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do Gênero.
po. (LAURETIS, 2007, p. 30, tradução nossa). In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org.). Ten-
dências e Impasses: o feminismo como crítica da
Há esses suspenses, por exemplo, no filme cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57
em O céu de Suely (2006). O que é revelado ao ______. Alice doesn’t. Indiana: University Press;
espectador/a sobre as futuras atitudes de Hermila Bloomington, 1984.
está mais no suspense de suas ações do que no ______. Fetishism and Curiosity. Indiana, USA:
seu discurso. O que o filme de Akerman constrói, University Press, 1996.
na visão de Lauretis (2007) (e, em parte, é o que se ______. Figures of resistence: essays in feminist
procura encontrar na análise de filmes da primei- theory, with an introduction. USA [S.I.]: Patrícia
ra fase da retomada), é um retrato da experiência White, 2007. Disponível em: <http://www.amazon.
feminina, da duração, da percepção, dos eventos, com/Figures-Resistance-Essays-Feminist-Theory/
relacionamentos e silêncios, os quais se fazem dp/0252074394#reader>, Acesso em: 16 jul 2009.
sentir imediatamente e inquestionavelmente verda- ______. Technology of gender: essays on theory,
deiros9. films and fiction. Indianapolis, USA: Indiana Univer-
Por isso, entende-se que a pré-estética parece sity Press, 1987.
estar no que é extremamente banal e verossímil, ______. Rethinking women’s cinema: Aesthetic
compõe uma atmosfera reconhecível nos trejeitos and feminist theory”: Aesthétic and feminist theory.
do ator e no cenário, pelo que espectador/a pode In: ERENS, Patricia. (Org.). Issues in feminist film
perceber no ambiente (enviroment), e reconhecer criticism. Indianapolis, USA: Indiana University
nas pequenas ações das personagens. Segundo Press, 1990. 341
Lauretis (2007), este filme de Akerman é pleno de
MATTOS, Carlos Alberto. Signs of life (Sinais
estética nas ações, nos gestos, no corpo e no olhar
de Vida). In: VIEIRA, João Luiz. Cinema novo and
de mulher que define o espaço de nossa visão.
beyond, 1998.
Está na temporalidade, no ritmo da percepção e
no horizonte de significados disponíveis para o/a MULVEY, Laura. Afterthoughts on ‘Visual Plea-
espectador/a – o que ratifica a importância de sure and Narrative Cinema inspired by King Vidor’s
quem faz a análise e a interpretação das entreli- Duel in the Sun (1946). In: ______. Visual and other
nhas desse tipo de filme, bem como no posiciona- pleasures. London: The Macmillan Press, 1989.
mento, intrinsecamente político, de quem o faz e o p. 29-38. Disponível em: <http://afc-theliterature.
produz. blogspot.com/2007/07/afterthoughts-on-visual-
-pleasure-and.html>, Acesso em: 8 jul. 2009.
De onde se conclui que pode não haver uma es-
tética definida que aponte, na retomada da primeira XAVIER, Ismail. (Org.). A experiência do cinema:
fase, o que é cinema de mulheres, ou women’s antologia. Rio de Janeiro: Graal; Embrafilmes, 2003.
cinema. Mas, decerto, há elementos que, reunidos,
podem traçar um perfil relacionado a esse “cinema Filmografia
feminizado” que, a propósito da pré-estética de A OSTRA e o Vento. Direção de Walter Lima Jr.
Lauretis, podem ser lidos, quase sistematicamen- Brasil: Riofilmes, 1998.
te, em o Céu de Suely. E um dos diferenciais dos
AMÉLIA. Direção de Ana Carolina. Brasil: Europa
filmes do período da retomada, sem dúvida, é o de
Filmes, 2000.
se preocupar com temáticas, discursos e imagens
que representam o universo feminino. Na delicade- FILHAS do Vento. Direção Joel Zito Araújo. Bra-
za imagética destes filmes, é visível essa preocupa- sil: Riofilmes, 2005.
ção. CARLOTA Joaquina. Direção de Carla Camurati.
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IIII Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade
342
Representações da mulher no cinema e outras artes: a (re)confi guração do cânone e da identidade IIII
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344
V
Identidade feminina e alteridade:
a poética do (des)encontro
345
V Identidade feminina e alteridade: a poética do (des)encontro
AS MULHERES-ILHAS
DE ORLANDA AMARÍLIS
NO CONTO “MAIRA DA LUZ”
Fabiana Miraz de Freitas Grecco
UNESP/Assis Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Brasil)
a pátria, como também, a vida daquelas mulheres a sua premonição quanto ao futuro, ela res-
que ficaram nas ilhas, mostrando a união entre ponderia: “Vou ser médica. Vou usar uma
mães, filhas, tias, avós, amigas, lutando em um bata branca como a doutora Maria Francisca.
ambiente desfavorável. Mandarei construir um hospital novo e uma
De acordo com Simone Caputo Gomes, a mu- maternidade... (AMARÍLIS, 1989, p. 118).
lher cabo-verdiana tem importância essencial “na Maira inicia os estudos no Liceu Central Infante
construção, nas lutas de libertação e na emanci- D. Henrique, com aquele mesmo desejo de tornar-
pação do país” (GOMES, 2008, p. 161). Seu papel -se médica. Passa, logo no início das aulas, por um
é destacado, ainda, pela transmissão da cultura rito de passagem dentro de um colégio dominado
crioula e pela fixação da tradição oral. Nesse por homens, percebe que se sente bem em com-
aspecto, Orlanda se insere entre essas mulhe- panhia masculina, e escolhe somente os “melho-
res, “que contam histórias de mulheres dentro da res-amigos” do sexo oposto:
História do seu país. Daí a força da construção de
suas personagens femininas” (TUTIKIAN, 2007, p. Aproximou-se e viu-se envolvida pelos co-
239). Não é por acaso, que na literatura, as mulhe- legas, rapazes. Da Praia e, sobretudo de S.
res cabo-verdianas constituem o maior número de Vicente. Esses eram a maioria. Daí em diante
publicações periódicas, fato que afirma a dispersão começou a escolher os melhores amigos, to-
de textos das autoras, como Dina Salústio, Vera dos do sexo oposto (AMARÍLIS, 1989, p. 123).
Duarte, Ana Júlia, Orlanda Amarílis, entre outras. Apesar de demonstrar inteligência e conseguir
De acordo com Benjamin Abdala Jr., em seu sair-se muito bem nas aulas, a situação financeira
ensaio Globalização, Cultura e Identidade em Or- desfavorável faz com que interrompa os estudos.
landa Amarílis (2003, p. 287), as marcas femininas Vê-se, então, destinada a lecionar em um posto
da autora se articulam “ao social e não o contrário, de ensino no Tarrafal (lugar onde se localizavam as
como acontecia com as obras de autoria mascu- prisões e o campo de concentração dos presos
lina” (2003, p. 299) o que reforça a capacidade da políticos das colônias africanas do governo portu-
autora em agravar “uma distonia anterior, que seria guês do Estado Novo), muito longe da cidade do 347
de gênero” (Idem). Dessa forma, procuraremos Mindelo/ São Vicente, fervilhante centro intelec-
refletir, neste artigo, as questões sobre a identida- tual de Cabo Verde, de onde Maira não queria se
de da mulher cabo-verdiana no conto “Maira da distanciar.
Luz”, do livro A casa dos mastros, 1989, explicando Victor Barros, em seu livro “Campos de Concen-
como ocorre a “escrita pós-colonial de fronteira” na tração em Cabo Verde”, 2009, afirma que a instala-
obra da escritora Orlanda Amarílis. ção da Colônia Penal no Tarrafal, em 1936
representou uma das fortes medidas de
“MAIRA DA LUZ” – AS MULHERES-ILHAS DE endurecimento do regime na produção dos
ORLANDA AMARÍLIS aparelhos repressivos de enquadramento e
depuração política e ideológica da sociedade,
“... fustigada pela escassez de recursos que
tendo em conta a perspectiva regeneradora
lhe permitam a sobrevivência, uma inteira
que se pretendia imprimir com a nova ordem
população de gente válida, a chamada ‘popu-
de obediência política com vista à criação do
lação activa’ opta pela partida. Fica um mundo
homem novo do regime, (2009, p. 87).
pequeno, reduzido, exíguo, de corpos frágeis
que já não encaram a possibilidade de emi- O conto narra a época mais repressiva do
grar. São as mulheres, as mães , as crianças regime em Cabo Verde, pois coloca em cena o
que povoam grande parte dos contos” (MAIA, momento histórico do fechamento do Liceu Central
2007, p. 271). Infante D. Henrique, ocorrido em 1937 e reaberto
em 1975) com o nome de Liceu Gil Eanes. Assim
O conto “Maira da Luz” discorre sobre a deter-
como o fechamento do Liceu, há ainda a denúncia
minação de uma menina em alcançar, por meio
e exílio de professores que criticavam o regime,
dos estudos, a profissão com que sonha: tornar-
como o caso do professor de Maira, D. Duarte
-se médica para, assim, abrir um hospital e uma
que, por admirar a educação inglesa foi “afastado
maternidade na cidade do Mindelo. O conto é
de seus cargos: “afastado do ensino e do hospital
antecipado de seu conteúdo por uma epígrafe, que
onde dava consultas, este aviso servia para todos.
anuncia, mediante o uso dos verbos no subjuntivo
Nada de fazer ondas” (AMARÍLIS, 1989, p. 123).
e no futuro do presente, a hipótese de uma ação:
O professor Duarte (Abílio Augusto Monteiro
Se caso perguntassem a Maira da Luz qual
V Identidade feminina e alteridade: a poética do (des)encontro
Duarte), viveu fora das páginas do conto de Orlan- metamorfose de Maira em um inseto, assim como
da. Ele foi um dos fundadores do Liceu Gil Eanes, a de Gregório, na obra de Kafka, que a transforma-
foi ativista e líder político da época da indepen- ção parte da opressão. Gregório é constantemente
dência. A mudança dos nomes do Liceu, após a oprimido pelo pai e pelo poder burocrático, que
denúncia do professor Duarte que se apresentava o persegue constantemente. Maira é perseguida
contra o fascismo, no conto, ilustra um momento por Cesarina, a menina invejosa que consegue um
histórico em Cabo Verde, de luta contra o colonia- posto de escrevente junto aos negócios de seu tio:
lismo português, no auge de sua repressão. Esses “Tio Chico arranjou-me um lugar ao pé dele” (AMA-
acontecimentos escancaram os desmandos do RÍLIS, 1989, p. 125). Pode-se concluir que o poder
poder colonial e a política repressiva do Estado patriarcal protege Cesarina, pois essa se encontra
Novo português. “ao pé” do tio, enquanto Maira está desprovida da
A personagem Maira, enquanto mulher e colo- proteção do pai, do irmão e do tio, tentando vencer
nizada, não tem chance alguma de vir a tornar-se por sua própria inteligência e força.
médica. O desenvolvimento intelectual do coloni- Articulando aspectos próprios de sua cultura, da
zado era castrado pelo colonizador, por meio de chamada “identidade de fronteira”, característica
ações como a extinção dos Liceus, o confinamento fundamental de escritores que vivenciam a diáspo-
de seus intelectuais e a perpetuação da miséria, ra, como afirma Bonnici (2009, p. 278), dentro da
levando à imobilização de quem desejava mudan- chamada literatura pós-colonial, de acordo com
ças positivas para o arquipélago. Tal imobilização Phyllis Peres, as narrativas de Amarílis atuam como
aparece, no conto, configurada na metamorfose de uma escrita de fronteira, que problematiza as com-
Maira em um inseto e o esmagamento desse: plexidades, contradições e negociações de identi-
Surpresa maior foi a descoberta de Maira de dade nas vidas das mulheres cabo-verdianas. Para
uns pés enormes quase a pisarem-na e de compreender sua obra, precisamos compreender
uma voz a desmoronar-se sobre si, a voz da que escrever na fronteira entre a colônia e a metró-
Cesarina. ‘Repare nessa coisa, nesse bicho pole implica em uma posição específica de subjeti-
348 vidade, reconhecendo que a escrita é uma pratica
tão nojento’ (...) ‘Parece uma carocha, não
parece?’ (...) ‘Parece daquelas carochas mal localizada na intersecção entre sujeito e história.
cheirosas (...) Pois eu a bichos faço assim’. Le- No caso de Orlanda, essa posição demasiadamen-
vantou o pé e esborrachou a nódoa castanha. te dividida de nação, raça, classe e gênero, ilustra a
Um estalido elevou-se no ar (AMARÍLIS, 1991, negociação de identidades no mundo pós-colonial.
p. 126). De acordo com Phyllis Peres, a escritora Orlanda
Amarílis pode ser considerada uma escritora pós-
A intertextualidade com a obra “A Metamorfose”, -colonial tanto quanto uma escritora de fronteira
de Franz Kafka, 1915, torna-se evidente ao final (PERES, 2002, pp. 149-150).
do conto, quando a personagem transmuta-se em Amarílis e sua “escrita pós-colonial de fronteira”
um inseto, que é esmagado por sua rival, Cesari- coloca em questão, no conto Maíra da Luz, a rea-
na, “she of the masculine imperial name” (PERES, lidade da mulher cabo-verdiana da época colonial.
2002, p. 163). Sobre a metamorfose de Maira, Jane A imigração dos homens para Portugal, a fim de
Tutikian retoma o fantástico em Orlanda, explicado realizarem estudos ou trabalharem com o intuito de
em tópico anterior, com relação ao mito: enviar dinheiro as suas famílias, é retratado no con-
Da mesma forma, na relação com o mito, to de modo a mostrar o não cumprimento desse
Orlanda aporta na relação racional. Há, em propósito, ou seja, os homens abandonam a terra
seus contos, também possibilidade de revisão natal e seus familiares passam a viver na Metrópole
da realidade externa pelo fantástico, levando à e muitas vezes constituem novas famílias, como é
descoberta de verdades fundamentais através o caso do irmão e do tio de Maira.
de experiências cotidianas. É o caso de Maira A idade avançada de seu pai (oitenta anos)
da Luz, de A casa dos mastros, kafkianamente contrasta com a juventude de sua mãe (quarenta
esmagada, feito inseto, pelo meio sócio-histó- anos), trazendo à tona a viuvez precoce, um aspec-
rico. Aí, se corrobora a idéia – ocidental – de to também bastante explorado em seus contos. As
que o pensamento mitológico é, por princí- mulheres, portanto, nos contos de Orlanda, estão
pio, metafórico, o conteúdo dos mitos não é “sós”, nas palavras de Maria Aparecida Santilli
religioso, apenas se torna (TUTIKIAN, 2007, p. (1985), ou ainda são “ilhas desafortunadas” como
247). prefere Pires Laranjeira (1989). Ilhas, pois com
Poderíamos pensar, já que há a presença da relação à diáspora/exílio estão sempre separadas
Identidade feminina e alteridade: a poética do (des)encontro V
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V Identidade feminina e alteridade: a poética do (des)encontro
Estrangeira e estranho:
louvor e ilustração da alteridade
Joëlle Ghazarian
Instituto Politécnico de Portalegre/Escola Superior de Educação (Portugal)
Ao escrever, o homem perde a sua secreção vital na oralidade e de, apesar disso, poder apreen-
e, insensivelmente, aspira à linguagem da ressur- der profundamente um autor português graças à
reição. A mulher, quando passa entre as gotas, sensibilidade estética e emotiva da sua escrita. De
nada perde e mantém-se em letargia. Em busca resto, quanto mais a escrita é elíptica, invulgar ou
de uma harmonia, ambos instauram amiúde ritos misteriosa, mais a sinto. É como perante certas
estranhos, a cujo auge chegam transexualizando pinturas abstractas intensas: se verdadeiramente
o Moloque estabelecido pelos homens (manda- estivermos «no sentir, no outro, na percepção», não
tados por mulheres), desautorizando assim esse só compreendemos o que vemos, como passamos
deus medonho para reconhecerem em si mesmos a compreendê-lo organicamente, corporalmente.
a diferença, a água de um sexo morto inumado na E aquilo que assim se compreende não são sen-
sua carne viva. tidos prosaicos, são sentidos amplos, exteriores
Estrangeira e estranho é o mote para a alteridade às convenções, que suscitam a alteridade. É nisso
de que vamos falar. A estrangeira sou eu, mulher também que se esboça a ligação com uma espé-
que não é de língua portuguesa e se intrometeu na cie de arcaísmo, como se ocorresse um encontro
obra de um poeta português, o qual, ao ser simul- atemporal, ou mesmo associal. Aos poucos, como
taneamente célebre e obscuro, é por isso mesmo, esse «encontro» se dá no interior da cultura indivi-
aos olhos do público, uma figura estranha. dualmente formulada, esta adquire a coloração or-
gânica e vivaz para cuja perda a cultura dominante
Alteridade também linguística, porque no início
contribui. Por conseguinte, a alteridade encontra-se
o meu manuscrito estava em francês e português,
aqui também na cultura e contra a cultura, inserin-
nas duas línguas misturadas, e Herberto Helder
do-se numa espécie de fundo ancestral arcaico,
também as sentiu como uma só. Alteridade, ainda,
sem sexo cultural.
no facto de eu não dominar a língua portuguesa
Esse fundo arcaico não é uma metáfora, é algo
Identidade feminina e alteridade: a poética do (des)encontro V
que provavelmente se encontra algures na nos- Esta alteridade não é facilmente assumida
sa memória ancestral, mas inacessível por es- porque entre o homem e a mulher, mesmo nas
tar soterrado sob as muitas interdições mentais sociedades tidas como mais avançadas, subsistem
acumuladas pela nossa civilização. A este respeito incompreensões, separações e hostilidades muito
lembro apenas as experiências que o psiquiatra fortes, tão fortes, por vezes, que podem chegar
chileno Claudio Naranjo levou a cabo na década de à agressividade homicida, como se constata, por
1960 com uma planta psicoactiva, o yagé, graças exemplo, na violência doméstica. Além disso, tais
às quais detectou a existência de um fundo co- sentimentos existem num plano amiúde invisível ou
mum arcaico de representações humanas. Essas opaco, fora de cena, onde ninguém pode ou quer
experiências, em que participaram pessoas cultu- intervir; e aquilo que se vê em cena, relações mais
ralmente muito contrastadas, índios da Amazónia e ou menos equilibradas entre homens e mulhe-
cidadãos urbanos habitantes da capital, Santiago res, esconde muitas vezes a dimensão obscura e
do Chile, tiveram como resultado que todos os par- potencialmente violenta das relações entre os dois
ticipantes, independentemente das suas contrasta- sexos.
das culturas, se assimilaram ao felino, ao réptil ou a Se admitirmos que da evolução positiva da
uma ave de rapina. Das hipóteses formuladas pelo sociedade faz parte também o incremento da co-
Dr. Naranjo, uma delas remeteu para a existência municação dialogante entre o homem e a mulher,
de uma memória ancestral da espécie humana.1 compreendemos que a alteridade exerce um papel
À partida, a alteridade significa simplesmente central no melhoramento emocional das condições
o outro. Mas sendo ela o contrário da identidade, de vida.
constitui-se como reconhecimento do Outro, a Para abordar este assunto de forma palpável,
partir da perspectiva de Platão segundo a qual um vou recorrer à minha própria experiência. Em 2007
dos atributos do ser humano é a multiplicidade publiquei um livro de ficção, Cântico do Crime, cuja
das ideias, entre as quais se encontra a relação de necessidade se me impôs na sequência da leitu-
alteridade recíproca. Não se trata pois de paridade; ra exaustiva da obra de Herberto Helder, um dos
a alteridade está para além de noções legais, admi- maiores poetas portugueses contemporâneos. A 353
nistrativas ou jurídicas. É uma complementaridade minha relação com a sua obra acentuara-se a partir
genérica. É o encontro com o Outro, assumindo de um trabalho anterior que eu tinha feito para uma
positivamente a diferença real que esse outro editora de Lisboa, a organização de uma antologia
tem em relação a nós, diferença essa destinada a do poeta Henri Michaux, autor que Herberto Helder
completar-nos e sem a qual nos atomizamos. também grandemente preza. A correspondência
A alteridade encontra-se em múltiplas relações. que trocámos a propósito de Michaux levou-me a
O seu objecto pode ser o forasteiro, o estrangeiro, aprofundar o conhecimento da obra de Herberto
a pessoa com diferente cor de pele, a pessoa mais Helder e, ao mesmo tempo, a integrar nas minhas
velha, a pessoa mais nova, a pessoa muito pobre, cartas, espontaneamente, a teia de um texto ficcio-
o deficiente físico ou mental, os indivíduos com nal a que essas leituras me conduziram, a tal ponto
diferentes crenças religiosas, qualquer pessoa que que a certa altura o poeta português me incentivou
apresente características diferentes das nossas. a dar substância a essas linhas, ou seja, a corpori-
Mas aqui vamos apenas abordar a alteridade recí- zá-las em livro. A nossa alteridade começou por se
proca entre o homem e a mulher. manifestar na espontânea orientação que Herberto
Ao contrário do que pode parecer, a alteridade Helder me deu a partir desse momento.
homem-mulher não é facilmente assumida. Para Manifestou-se também no facto de eu redi-
que ela se manifeste, pressupõe-se que haja entre gir esse texto em francês e português, ou seja,
o homem e a mulher um reconhecimento comum, incluindo no meu texto excertos de vários livros
um respeito partilhado e uma comunicação basea- de Herberto Helder que se foram impondo, com
da nestas características essenciais. Neste caso, a naturalidade, no meu espírito e na lógica do livro
alteridade pressupõe uma partilha sem hierarqui- em construção. Mais: que se foram impondo como
zação de poderes ou de estatutos, em que o grau um amoque, porém pacífico, algo a que não podia
de liberdade do homem e da mulher é semelhante, furtar-me. Foi pois um processo de consubstancia-
assente no facto de ambos serem semelhantes da ção, de passagem de um estado a outro estado em
mesma espécie, a espécie humana. que ambos os estados mantêm a sua individualida-
1 Claudio Naranjo, «Psychological Aspects of Yagé Experience in an Experi- de, ao mesmo tempo que se fundem. Ao expor-me
mental Setting», American Anthropological Association, Denver, 1965, in Peter a essa intervenção, não o fiz para satisfazer um
T. Furst (org.), Flesh of the Gods: The Ritual Use of Hallucinogens, Praeger capricho ou um fantasma; ninguém escolhe ceder
Publishers, Nova Iorque, 1972.
V Identidade feminina e alteridade: a poética do (des)encontro
à exigência duma necessidade vital. gir, gostaria de dizer que costumo abordar as ques-
Quando o livro saiu, em 2007, fiz questão de nele tões em que me envolvo com a distanciação que
incluir, em prólogo, a carta que em 2004 Herberto elas possam exigir, observando-me, sem estados
Helder me enviara em resposta a algumas dúvidas de alma, como parte integrante do fenómeno em
minhas. Nessa carta o poeta felicitava-me pelo ma- apreço. É o que acontece no caso vertente.
nuscrito, explicava-me que embora tivesse utilizado No domínio da leitura, creio ser o peso dos pre-
em bruto algum material seu, o livro era inteiramen- conceitos (e dos maus hábitos que estes instituem)
te meu, e incitava-me a publicá-lo (ver anexo). que impede a abertura de espírito perante um texto
Na recepção que o livro teve depois de edita- dito «estranho». Na realidade, recorremos cons-
do, é interessante notar que ele despoletou desde tantemente, de modo inconsciente, a um mundo
logo a má-fé, a susceptibilidade e a pequenez que linguístico «estranho», que nos permite apreender
também existem, por vezes em doses abundantes, diversos mundos interiores, os nossos e os dos
nos círculos literários e culturais. Algumas recen- outros. Na vida cotidiana, as expressões idiomá-
sões não deram mostras dessa pequenez, tendo ticas, que todos conhecemos, baseiam-se numa
os seus autores sabido ler o prólogo de Herberto constante mediação entre a linguagem e a ordem
Helder e apreendido honestamente o conteúdo do poética. Dever-se-ia pois abandonar a ideia de que
livro; mas ficou a pairar a ideia, desonesta e igno- aquilo que nos exprime é um esquema linear, como
rante, de que eu me apropriara indevidamente da se a nossa identidade fosse «escolar» e como se
obra de Herberto Helder, de que fizera um plágio. fossemos incapazes de enunciar algo que não
No tocante aos livros ditos «estranhos», a re- tenha sido já formulado. Nós não somos uma mera
cepção deficiente ou equivocada que eles têm nos justaposição de objectos de ensino e de obediên-
meios mundanos da literatura em conserva ou nos cia; e a nossa verbalização ou a nossa escrita tão-
redutos provincianos arrogantes e timoratos só -pouco se reduzem a isso.
revela as limitações destes círculos sociais, que No sentido da comunhão e complementarida-
obviamente não contribuem para uma alterida- de que referi, creio que a alteridade recíproca do
354 feminino e do masculino não só é possível, como
de estimulante. Essa leitura perversa não revelou
apenas uma grande miopia literária, resultante de faz parte do processo de emancipação geral, que
prováveis azedumes primariamente deduzidos do exige, entre outras coisas, a superação do patriar-
facto de uma ilustre desconhecida vir a público em cado. O caso que expus é apenas um exemplo
companhia de um poeta célebre. Mostrou também, de como a alteridade constitui um campo fértil
e sobretudo, a dramática incapacidade de reco- das relações humanas. Digo-o também tendo em
nhecer e valorizar uma alteridade absolutamente mente o que penso serem derivas nossas con-
exposta. temporâneas, resultantes do terreno minado onde
Neste livro, com efeito, podemos dizer que a decorre grande parte das relações entre homens
personagem principal é essa, a alteridade assumi- e mulheres, que leva algumas mulheres, por se ve-
da de um homem e uma mulher concretos, identifi- rem negadas na sua integridade e independência,
cável no reconhecimento mútuo, na mútua gratidão a pôr em causa a relação homem-mulher, na qual a
de dois seres que se encaram como humanamente mulher – apesar das muitas aparências – só existirá
iguais na sua diversidade respectiva, diversidade com a identidade de um ser inferior.
de homem e de mulher, de poeta célebre e de
autora desconhecida. Sendo conveniente registar A alteridade homem-mulher que aqui abordo
aqui que nesta alteridade se inclui também a ques- conjuga-se também com o carácter híbrido do meu
tão da personalidade: Herberto Helder é um autor livro em questão. Vou tentar mostrar porquê.
que sempre recusou os prémios que lhe foram As convenções habituais referentes à narratolo-
atribuídos (como Henri Michaux em França), que gia do romance têm por base a exposição mais ou
sempre se furtou a dar entrevistas e a participar em menos linear de uma história, com princípio, meio
mundanidades exteriores à poesia, e eu sempre fiz e fim facilmente identificáveis e com personagens
questão de formular e manter exigências no plano de contornos facilmente reconhecíveis. Esta forma
da comunicação, procurando não ceder à dema- expositiva decorre de um racionalismo que assen-
gogia que hoje nos rodeia e se respira no ar do ta nas predominantes concepções europeias do
tempo, ao ponto de muita gente já nem dar por ela. imaginário e respectivas configurações estéticas.
Como no domínio intelectual ainda não deixá- Ou seja, o romance tal como é habitualmente
mos de viver parcialmente mergulhados nalguns entendido é um modo expositivo sem sobressaltos,
pântanos onde a mesquinhez tem por hábito emer- em que a forma narrativa propriamente dita não
Identidade feminina e alteridade: a poética do (des)encontro V
narrativa tanta importância, não é todavia para o extenso como desejaria – e você merece –, mas
destacar como uma espécie de entidade à parte, escreverei com certeza o bastante para dizer-
embora esse universo possa por vezes sugerir a -lhe que ler o seu livro foi uma das pouquíssimas
ideia (de resto criticamente estimulante) de que na exaltações que tive nos últimos – e já extensos –
criança é ainda concebível consubstanciar-se um tempos. O livro é inteiramente seu. Se é verdade
paraíso perdido – perdido porque nela, a criança, que você utiliza material meu, em bruto, cristaliza-o
ele será sempre provisório. O universo da criança depois num sistema peremptoriamente seu. Le son
interrogante é importante na medida em que esse et le sens, isto é: forma e demonstração de enten-
seu universo se inter-relaciona com o universo dimento do mundo – nada têm a ver comigo. Se eu
do adulto, dessa outra entidade humana que, por estivesse bem, decerto poderia dizer-lhe melhor.
exaustão ou medo, já não tem perguntas a fazer ao Desejo apenas que fique tranquila quanto a este
mundo (ou prefere não as ter), por saber que pode assunto.
ser perigoso questionar o mundo. Não posso escrever mais.
O universo da criança subentende a vitalidade. Parabéns pelo seu livro excepcional e obrigado
Elementarmente, a vitalidade está sem dúvida por ter-me dado a oportunidade de ser o seu pri-
associada à criança, cuja energia deseja desbravar meiro (ou segundo, visto o Júlio já o ter lido) leitor.
os grandes mistérios que a circundam e a cercam,
Talvez um dia, mais tarde, quando (e se) eu sair
não para os eliminar enquanto mistérios, mas para
do inferno, lhe diga mais longas palavras.
intimizar com eles, para os conhecer por dentro,
para fazer parte deles. E neste movimento da vita- Um beijo
lidade integra-se, com a naturalidade das coisas Muito afectuosamente,
que se impõem por si, a vibratória sensualidade do Herberto
que pode haver de intenso na comunicação huma- P.S. – Não hesite nem um momento em publicar
na. a sua obra.
Falei discretamente de um jogo muito longo que
356 é preciso jogar muito depressa mas intensamente
para apreender as suas fulgurâncias. Impõe-se ir
atrás, a montante: antes de escrever, onde reside o
sentir? E são masculinas ou femininas tais profun-
didades? Serão o nosso fundo ancestral arcaico,
sem sexo cultural? E será o resultado de uma escri-
ta a dois, homem e mulher, um livro masculino, um
livro feminino, um livro assexuado, um livro andró-
gino ou um livro de alteridade? Quem é o homem,
quem é a mulher? Acaso no-lo dirá a escrita, a
escritura? O encontro literário decorreu aqui de um
amoque – desta vez, a loucura que é um amoque
não foi de raiva, foi indiferente às contingências e
às normas; impacto desconcertante, testemunha
uma alteridade imanente, feminina e masculina.
Antes de ser masculino, feminino ou andrógino, um
tal encontro é o reconhecimento do outro e de nós.
A alteridade é um conjunto de múltiplas oposições
que não se opõem.
Anexo
Carta de Herberto Helder
14.4.04, Cascais
Joëlle
Perdoe a demora em responder ao seu livro
e à carta. Tenho de chamar todas as forças que
me restam para fazê-lo. Estou no fundo do fundo.
No negro. Na pior das várias depressões (como
chamam por aí a estes infernos). Não poderei ser
357
358
VI
Modalidades de
escrita no feminino:
diários ficcionais
e narrativas epistolares
359
VI Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares
FALSOS CAMINHOS
DE UM POSSÍVEL DIÁRIO:
lugares e não lugares na poesia
de Ana Cristina Cesar
Juliana Silva Dias
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - IBILCE/UNESP São José do Rio Preto – SP(Brasil)
O livro de Ana Cristina Cesar, A Teus Pés (1982), impressionam e que desestruturam o leitor desa-
único publicado durante a vida da autora, configu- fiante. Entendemos que a escrita de Ana C. não é
ra-se como parada um tanto obrigatória àqueles um simples fruto - ou fruto simples - do legado da
que se voltam ao estudo da poesia brasileira con- modernidade: o seu trabalho com prosa e poesia
temporânea. Fruto da chamada “poesia marginal”, reinventa as duas formas, conjuga em si formas da
que, por sua vez, parece ser uma legítima poesia tradição, criando, assim, outra forma.
sem aura da modernidade, esse livro, marcado por As manifestações poéticas brasileiras das
intensidade e impacto poéticos, mas escrito, em décadas de 60 e 70 foram produzidas em meio a
grande parte, ao modo corrente da prosa, abriga vivência de uma situação política caótica e intensa,
em si marcas de gêneros como o diário e a narra- oriundas, em grande parte, por movimentos van-
tiva de viagem (entendido, por vezes, ainda como guardistas que, de alguma forma, procuravam se
diário de viagem). Além desses, a carta e o cartão- situar diante dessa problemática social. O pano-
-postal e, conseqüentemente, as implicações e as rama das relações entre as produções das dife-
perturbações que cerceiam a produção desses rentes manifestações literárias traçado por Heloísa
elementos comunicativos, escrever ou não uma Buarque de Hollanda (1980), mostra-nos como o
carta, enviar ou não um cartão, são espécies de posicionamento adotado por cada uma dessas
aparições e situações que são encontradas por manifestações diante das conturbações políticas
todo o livro da poeta. A apropriação de diferentes e do sistema econômico de produção, implicava
gêneros e o uso de alguns elementos relacionados em aproximação ou distanciamento tanto entre
a acontecimentos do cotidiano, alguns, espécies as próprias manifestações quanto entre essas e o
de elementos em trânsito (como no caso dos que meio social. Dessa forma, notamos que afastando-
envolvem a ideia de viagem) que são captados em -se ou dando certa continuidade em sua produ-
meio a própria fugacidade do instante, permite- ções, o concretismo (pelo menos em um primeiro
-nos dizer que os escritos de Ana são construídos momento), o poema - práxis e o poema - processo,
pelo e no detalhe do que, aparentemente, é parti- tinham, cada um à sua maneira, o quadro social
cular e íntimo. Dessas forma, nascem escritos que como base. Já a tropicália, caracterizada, em
Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares VI
linhas gerais, pela “recusa dos projetos e utopias agora, no poema do poeta marginal, Chico Alvim,
do poder da esquerda tradicional brasileira” (SÜS- essa atmosfera de sufoco, apontada por Hollanda
SEKIND, p.48, 2004) e pela construção de uma (1980), que é sintetizada na poesia na imagem do
linguagem mais fragmentária, considerada mais fole que arqueja em meio ao lugar em que ele está
coerente com a condição do sujeito moderno, e em meio às ações que o cerceiam:
constituiu-se como “crítica despedaçada” e foi
entendida como registro de “uma linguagem do
EU TOCO PRATOS
nosso tempo” (HOLLANDA, p.56, 1980). A gran-
de diferença entre os primeiros movimentos e a À minha esquerda
tropicália e, mais incisivamente, a pós-tropicália, violas ondulam um areal imenso
será uma mudança de foco na relação entre pares: À minha direita
sai-se da relação Arte/Sociedade, e adota-se “uma ossos de baleia cavucam as cáries do ar
postura mais vitalista” pautada no binômio Arte/ Maestro e pianista desfecham o último ofício:
Vida (HOLLANDA, p.80-81, 1980). Na platéia um fole arqueja
Após esse breve percurso por entre as manifes-
tações literárias pregressas a poesia de Ana C. e
Esse eu-lírico que, aparentemente, compõe uma
que, como veremos adiante, produziram ecos que
inusitada orquestra, “eu toco pratos”, que realiza
se fizeram presentes na escrita da poeta, detere-
movimentos delirantes, observa a reação de in-
mo-nos, agora, no movimento no qual a poeta, à
cômodo de um fole diante dessa apresentação.
grosso modo, encerrou sua produção: a poesia
Nesse clima de sufoco, outras são as particularida-
marginal. À parte as rusgas que envolvem o pró-
des dos autores dessa geração que merecem ser
prio “rótulo”, como o dizer-se poeta marginal ou o
apontadas. Observa-se uma espécie de tendência
classificar como marginal, os poetas que criaram
em relação a o quê e como se falar: a preferência
e que desenvolveram essa manifestação literária
pelo tom (político) biográfico, pelo confessional,
eram aqueles que, em linhas gerais, ficaram à mar-
pelas memórias e memorialismo, com temática in- 361
gem dos grandes círculos editorias. Longe, então,
timista ou geracional, como uma espécie de proce-
dos recursos financeiros para editar um livro, eles
dimento comum, como uma fo(ô)rma escolhida de
se envolveram nesse trabalho e desenvolveram,
expressão da geração pós-641. Essa preferência,
assim, um trabalho artesanal de confecção de
que marca não somente a poesia mas, sobretudo,
livros. Findo esse trabalho, posteriormente, os
a prosa, estará presente não somente em escritos
poetas também realizavam o exercício último dessa
como os de João Cabral de Melo Neto, Ferreira
produção: vendiam seus livros ao leitor. Se, por um
Gullar, Pedro Nava e Carlos Drummond de Andra-
lado, todo esse processo, por si só, já proporcio-
de; mas também, povoarão “o bate-papo gera-
nava o estabelecimento de um vínculo mais afetivo
cional” de poetas como Chacal e Charles Peixoto,
com esse leitor, por outro lado, a própria poesia de
alguns dos colegas da geração marginal de Ana C
alguns desses livros coloca-se como uma espécie
(SÜSSEKIND, p. 18-19, 2004).
de reafirmação dessa intimidade, seja pela temá-
tica desenvolvida, seja pelo assunto sobre o qual Contudo, notamos que apesar dos escritos de
se poetizava: esses poemas carregavam em si Ana serem considerados frutos da prática dessa
a marca da relação Arte e Vida herdada da pós- poesia, sua poética não se constitui no que pode-
-tropicália, consolidando-a e definindo-a. Em uma ríamos chamar de lugar modelar para aqueles que
atmosfera marcada por um “vazio cultural”, produto procuram, por meio de uma primeira impressão,
de uma capitalização crescente, onde a cultura características bem definidas da também conhe-
passa a alimentar o sistema vigente, “exatamente cida por “poesia de mimeógrafo”. Vale dizer que,
num momento em que as alternativas fornecidas se dentro do próprio movimento houve uma espé-
pela política cultural oficial são inúmeras que os cie de divisão entre os poetas, onde, em um lado,
setores jovens passarão a enfatizar a atuação em ficaram os que procuraram maior referencialidade
circuitos alternativos ou marginais” (HOLLANDA, externa para a sua poesia e, em outro lado, se
p.96, 1980. Ou seja, nesse clima de “sufoco”, mar- situaram os que buscaram formas diferentes de
cado por sentimento de descompromisso e des- concepção e lide com as diferentes facetas da cen-
crença, por uma não preocupação com o futuro, sura durante o período da ditadura militar brasileira
a prática “marginal” coloca-se como alternativa (SÜSSEKIND, p. 18-19, 2004), os escritos cesaria-
e sua poesia como reflexão sobre as linguagens nos se alinharão mais ao segundo grupo, no que se
legitimadas (HOLLANDA, p.117, 1980). Vejamos, refere à inovação e singularidade poética, contudo,
1 Ano em que se inicia o período da ditadura militar brasileira.
VI Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares
paradoxalmente, essa mesma poética ainda se dis- prido inventando a ilha perdida do prazer. O
tanciará de seu próprio “subgrupo”, criando, dessa livrinho que sumiu atrás da estante que mo-
forma, o seu próprio locus, ao se apropriar, um rava na parede do quarto que cabia no labi-
tanto às avessas, ao construir os seus poemas, do rinto cego que o coelho pensante conhecia e
gênero diário, forma mais ao gosto e ao estilo dos conhecia e conhecia. Nessa altura eu tinha um
que buscaram o traço memorialístico na composi- quarto só para mim com janela de correr nar-
ção de suas obras. cisos e era atacada de noite pela fome tenra
Então, se o “encanto” da poesia marginal, uma que meu pai me deu. (CESAR, p.105, 1999)
espécie de “elo perdido”, construiu-se justamente
no bem marcado e “romântico” contato intimista
Contudo, esse diário não tem o mesmo tipo de
entre escritor e leitor por meio da produção arte-
intimismo construído por seus colegas, nem apa-
sanal e venda direta de livros ao leitor e também
renta ter o sulco da tal marca geracional, visto que
pelo tom memorialista, pessoal ou geracional, das
eles não assinalam um posicionamento do eu-lirico
obras, sendo essas características tidas como
diante das ações do Estado por meio de uma refe-
fortes marcas da poesia marginal, como Ana C.
rência. A escrita toma outras proporções. Os diá-
pode ser associada a essa marginalidade? De qual
rios de Ana C. parecem mais perturbar do que ge-
tipo de traço é formado sua poesia que poderia
rar empatia aos viventes pós-64. A estreita relação
associá-la à poesia marginal? Ou, ainda: qual seria
estabelecida constante e “metalinguisticamente”
a poesia marginal de Ana C.?
entre eu - lírico e poetisa, quando ele assume seus
Se a prosa e poesia tradicionais, ou seja, aque- escritos e anuncia o trabalho poético, “Nem tudo
las dotadas de uma espécie de rigor que buscam são novidades, e escrever demora.”, salienta ainda
inspiração nos modelos clássicos para a constru- mais o desconforto, pois a “exposição do eu não
ção de sua própria forma, marcam um trabalho se dá apenas em termos de emoções, sentimentos
norteado, muitas vezes, por espécies de projetos ou aspirações pessoais, mas constitui procedimen-
quase que didáticos, muitos deles, um tanto “ape- to para a escrita literária, em poemas nos quais,
362 gados” e “preocupados” em colocarem-se no con- reflexivamente, problematiza-se a própria inserção
tínuo da tradição, Ana fará, então, de seu livro, uma de aspectos pessoais na poesia.” (BORGES, p.2,
espécie de busca e anseio por um projeto outro na 2008).
escrita de seu diário que, aparentemente, não se
Entretanto, é possível afirmarmos que,
alinha nem à tradição nem à marginália:
atualmente, sua poesia tem um raio de ação mais
abrangente, causando impacto mais profundo que
[...] Preciso aproveitar os últimos segundos, muitos de seus colegas da geração marginal: se
as soluções do dia, a maturação da espera seus escritos sem aura, por si só, trazem a marca
– realmente pensei nisso, e não sou um perso- de uma poética intensa que atrai o leitor, aprecia-
nagem sob a pena impiedosa e suave de KM, dor e sabedor da importância do instante, há o que
wild colonial girl e metas no caminho do bem, se dizer também sobre uma espécie de atração
tuberculose em Fontainebleau e histórias em (talvez, aura) que envolve a sua obra: A Teus Pés é
fila e um diário com projetos de verdade que como que o produto de uma vida inteira, é como
me vejo admirando ardentemente nos últimos que tudo o que uma poeta poetizou até o alto
segundos. (CESAR, p.133, 1999, grifo nosso) dos seus 31 anos, mais que um livro, A Teus Pés
configura-se como espécie de legado poético2.
Dessa forma, em performance, Ana fará algo 2 A poeta Ana Cristina Cesar comete suicídio em 29 de outubro de 1983,
como que um projeto ou o esboço do que poderia quase um ano após a publicação de A Teus pés, único livro da autora publica-
ser um projeto, ao conjugar modos e gêneros em do em vida, e que foi lançado em dezembro de 1982. Esse livro é formado por
sua escrita. O diário, que pode ser facilmente iden- blocos que foram publicados anteriormente de forma separada e em peque-
nas tiragens, ou seja, à moda marginal, mas tiveram uma editora a produzir
tificado no trabalho da poetisa, como em: o livro. Tomados, aqui, os devidos cuidados e proporções, entendemos que
o livro de Ana, metaforicamente, reconstrói em si, de certa forma, uma velha
narrativa benjaminiana, encontrada tanto no texto “Experiência e Pobreza”,
16 de junho e retomada no texto “Narrador”, em que o legado do pai é passado para os
filhos em forma de narrativa e, esses filhos, para descobrirem o valor dessa
Decido escrever um romance. Personagens: herança precisam escavar a terra de todo o vinhedo para descobrirem que
a Grande Escritora de Grandes Olhos Pardos, a riqueza está no trabalho. Tal como o velho lavrador, Ana nos deixou como
mulher farpada e apaixonada. O fotógrafo feio legado seus escritos poéticos conjugados em A Teus Pés e, como tal, estamos
e fino que me vê pronta e prosa e lápis com- em um contínuo processo de escavação que nos possibilita encontrar, a cada
movimento, a cada escavação proporcionada pela leitura e análise, um novo
Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares VI
A Teus Pés é um livro marcado pela intensidade que encontramos na mala, por cima de tudo, é/
e pelo impacto poético da palavra, mas escrito, em -adivinhem - um par de luvas./ Ei-las./ Pelica./ Coi-
grande parte, ao modo corrente da prosa e que sa fina./ Visto as luvas [...]” (CESAR, p.146, 11999),
abriga em si marcas de gêneros como o diário e a e sem truques, “Como todos podem ver, não há
narrativa de viagem (que também pode ser enten- nenhum truque, nenhum/alçapão escondido, nem
dido, por vezes, como diário de viagem). Nessa jogos de luz enganadores” (CESAR, p.146, 1999),
confluência de gêneros que compõem todo o livro a mostrar elementos, mais precisamente, cartões-
de Ana C., um bloco que daremos especial aten- -postais, aos seus amigos, em um procedimento
ção no desenvolvimento desse trabalho, “Luvas de poético que realiza um processo de distribuição
Pelica”, apresenta em si o que poderíamos chamar que, às avessas, aponta uma anterior recolha des-
de traços de um possível diário de viagem. Entre- ses objetos angariados em viagens realizadas. Se o
tanto, vale dizer que mais que título, essas luvas de início dessa “jornada” informa-nos sobre o começo
pelica são objetos que propiciam proteção, são ob- de uma viagem que nos é sugerida no âmbito da
jetos que evitam que um contato direto aconteça, palavra, o “Epílogo” marca, em um primeiro nível,
são o prenúncio de que não nos depararemos com o fim dessa jornada, mas, já em um segundo nível,
um diário propriamente dito, em outras palavras, no metafórico, com a retirada das luvas “[...] mas
a presença desses objetos revela-nos, em certo antes de/ sair tiro a luva, deixo aqui no espaldar
sentido, a existências de um eu-poemático que não desta cadeira.” (CESAR, p.149, 1999), marca o fim
teria cedido totalmente ao pacto geracional. do próprio processo de escrita empreendido, visto
É assim que as imagens do cotidiano e os que essas luvas envolvem todo o bloco. Dessa
espaços mencionados nessas imagens do diário forma, considerando o próprio formato do bloco,
não são vistos, ou melhor, não são passíveis de que, marcadamente, abriga início, meio e fim de
serem vistos em seu correspondente imediato na um acontecimento, “Luvas de pelica” emoldura o
exterioridade: há, pois, a prática de um tipo de que seria essa viagem promovida pela linguagem.
desdobramento dessa preferência pelo cotidiano, Bebendo em fontes longínquas e inusitadas,
cuja referencialidade espacial, por mais que seja notamos que apesar do evidente distanciamento, 363
diretamente marcada na poesia, como Brasil, Paris em tempo e forma, dos escritos de Ana C. dos
e Espanha, é transfigurada a ponto de não ser gêneros mais antigos, há como que a apropriação
possível encontrar a forma base, em sua totalidade, e uma posterior reconstrução inebriante das nar-
nos poemas. É assim também que as espécies de rativas de viagem no bloco supracitado. À priori, a
diálogos travados com o leitor que estão presen- produção dessas narrativas era ditada pelo ritmo
tes em sua poesia, não desenvolvem-se em sua do transporte escolhido para realizar as travessias.
“forma plena” na construção poética, pois junto Travessia essa que tinha como finalidade realizar
aos leitores aparecem Reinaldo, Mick, Shirley, Joe, grandes descobertas. Entretanto, há que se des-
Luke, Jack, KM e LM: tanto as personagens quanto tacar que se a viagem em si tinha um propósito
os leitores diluem-se na poesia, os primeiros quan- definido, para fins de sistematização e logística da
do tornam-se ficção por situarem-se junto aos se- própria viagem, entretanto, não era o lugar-destino
gundos, já os segundos, por transitarem de nome à que proporcionava ao sujeito um encontro com o
abreviação e por serem referência sem referencial, seu não-Eu, mas sim, era o trajeto em si, que lhe
estabelecem, juntos, diálogos fingidos travados rendia esse processo de um contínuo transcender-
em meio a captação de instantes. Essa fluência -se. Aparentemente, a poesia cesariana não nos
da poetiza ao transitar entre o que é referencial e o guia a um destino-espaço seguro e esperado, ela
que é ficção, é como um fruto do olhar estetizante é formada por um intensivo captar de instantes;
da autora que torna singular a sua poética. não traz marcas de constância e precisão, mas
O início do bloco “Luvas de Pelica” é mar- antes, traz no traço a mudança constante de foco.
cado por um eu-lirico em deslocamento, “Eu só É assim que nesse labiríntico espaço poético, os
enjôo quando olho o mar, me disse a comissária/ caminhos podem até serem vislumbrados - é como
de sea-jet./ Estou partindo com suspiro de alívio.” se ao leitor fosse possível somente enxergar a linha
(CESAR, p.125, 1999, grifo nosso), que, lá no fim do que levaria e revelaria o minotauro - mas o destino
bloco, mais precisamente, no “Epílogo”, mostra- não poderá ser identificado mesmo que se che-
-nos uma espécie de volta marcada por uma apre- gue à extremidade oposta do fio: essa linguagem
sentação ilusionista. O eu-lirico feminino se põe na parece deixar que nos seja revelado somente o
posição de ilusionista com luvas, “A primeira coisa caminho, o trajeto, um aparente way, mas que, em
verdade, tem a potencialidade e as virtudes de um
valor de sua poética. path, ou seja, um caminho com os valores de uma
VI Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares
vereda cuja transcendência, aqui, se restringe ao e algumas definições, há algo como que um des-
próprio labor poético: locamento contínuo não somente em relação aos
lugares citados no início do bloco poético, como o
avião, “sea-jet”, os “campos ingleses”, o “lago com
Que tristeza essa cidade portuária. Subo Lon-
patos”, entre outros, mas há também um trânsito
don Road de bicicleta e sinto as bochechas
intenso do eu-lírico entre o que é externo e o que
pesarem.
é interno a ela, entre o contato estabelecido com
Comprei um cartão de avião para Malink – um
os que estão a sua volta e o contato que ela esta-
avião roliço, tropical, feliz de estar partindo.
belece consigo. Contudo, sendo esse um poetizar
Estou há vários dias pensando que rumo dar à
fragmentado, não parece haver intensidade no(s)
correspondência.
contato(s) em si estabelecidos(s), o que é valoriza-
Em vez dos rasgos de Verdade embarcar no
do e descrito é o caminho, o curso, a singular traje-
olhar estetizante
tória que estranhamente une esses lugares e esses
(foto muito oblíqua, de lado, olheiras invisíveis
não lugares. Ou seja, nesse sentido, mais uma vez,
na luz azul).
é o processo em trânsito “de si” que é valorizado
Ou ser repentina e exclamar do avião – não me
nessa narrativa de viagem de Ana.
escreve mais, suave. (CESAR, p.141, 1999)
Já em relação ao procedimento adotado
por Ana, há uma espécie de ritmo singular que dita
É assim que, por meio de uma espécie de dissi- o seu poetizar: o flash fotográfico. Esse transita
mulação anunciada, uma espécie de fio condutor entre os lugares e o eu poemático de forma a com-
que perpassa por caminhos que, definitivamente, por um estado ou lugar outro por meio da (trans)
não conduzirão a um destino-espaço intimamente formação de elementos e de ações em sequências
seguro, é que é construído o diário de Ana C. Se a ininterruptas de imagens-texto. Em um mundo em
forma diário tradicionalmente apresenta-se como que o ser é só fragmentos, o flash coloca-se como
simples ferramenta pessoal para a organização dos recurso que revela partes desse sujeito, luz a ilumi-
364 fatos da vida sob forma de papel e, talvez em outro nar esse ser em ruínas. É também nesse singular
nível, ele também poderia ser considerado um estado ou lugar poético, que nos é possível ver
instrumento que auxiliaria o indivíduo a se adequar mais claramente uma espécie de construção exem-
e a se situar em meio a própria vida, visto que ele, plar formada por prosa e poesia, visto que é nesse
ao escrever, passa sua vida a limpo; em “Luvas escrito, marcado pela continuidade, aqui, acelerada
de Pelica” é possível notar que há uma espécie de da prosa, que se pode notar um encadeamento
oscilante “eu criador” que não estabelece compro- quase infinito do que se poderia chamar de uma
misso com o que poderíamos chamar de situa- das maiores marcas de uma construção poemáti-
ções poéticas fragmentárias que “viveu”, mas que ca: as imagens:
parece existir somente para atender aos anseios
da própria linguagem em que esse eu se constrói,
Estou te dizendo isso há oito dias. Aprendo a
parece ser com ela (a linguagem) o seu único com-
focar em pleno parque. Imagino a onipotência
promisso. Se o diário tradicional tem como base
dos fotógrafos escrutinando por trás do visor,
uma seleção de fatos do dia pautados, a princípio,
invisíveis como Deus. (CESAR, p.126, 1999)
em uma curta viagem da memória pelo que acon-
teceu no hoje e sua, digamos, exceção, acontece
quando fatos do dia específico acabam pinçando Outra forma, a crônica, é, de alguma forma,
outro ou outros fatos de um passado mais distante, apropriada pelo texto poético e, dentro dela, como
promovendo, assim, um tipo de fluxo de consciên- um tipo de mote para a elaboração dessa crônica,
cia, é importante compreendermos que o diário de reaparece a carta. Considerando-se que o gêne-
Ana é construído justamente pela e na exceção, ro crônica, em algumas de suas manifestações,
há constante captar de fragmentos que compõem é marcado pela construção de uma história com
como que um fluxo de consciência restilizado à base em um fato do cotidiano, o eu-lírico de “Luvas
moda cesariana. de Pelica” contará a história de um carteiro que
Em linhas gerais, a construção desse diário ao invés de entregar as cartas, ele as enterrava no
parece seguir um movimento e um procedimento porão. Se o escopo social do delito do profissional
basilares: um movimento que oscila entre interiori- dos Correios, por si só já bastaria para servir como
dade e exterioridade do eu-lirico e um procedimen- um tipo de “justificativa” para a definição do trecho
to que pinça os instantes que formam essa poesia. da narração - que compõe parte do poema - como
No primeiro, notamos que, em meio a impressões crônica, talvez, de cunho jornalístico, esse “narra-
Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares VI
dor” que conta os fatos, reforça a marca da crônica afastamento das formas e reencontro incessante
aos relacionar os fatos narrados à sua própria vida entre as mesmas, paradoxalmente, novas páginas
poética e fictícia quando este relata que uma de do diário da tradição.
suas cartas não foi entregue pelo carteiro: “Uma
dessas que ele enterrou no mês de maio continha
todo o meu pathos derramado, belo e/ secreto Referências bibliográficas
como os fatos.” (CESAR, p.134, 1999). BENJAMIN, Walter. “O narrador.” In: Obras es-
Após essa confluência de gêneros, formas e colhidas I: magia e técnica, arte e política, ensaios
elementos, entendemos que, em “Luvas de pelica”, sobre literatura e história da cultura. Tradução de S.
o diário abriga a carta, que estabelece um ponte e P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, vol.1, p.
parece ser mote para o aparecimento da crônica. 197-221.
Que, por sua vez, nos traz o cartão postal, que é BORGES, Luciana. Uma poética do segredo: o
recorrente em todo o livro. Se o acionamento de pacto autobiográfico como projeto poético em Ana
todos esses elementos em um único texto marca o C. Travessias, 2008, vol.2, n1, p. 1-12.
caráter de presenças múltiplas em trânsito por todo CESAR, Ana Cristina. A teus pés. 2.ed. São Pau-
o livro, é a crônica, aqui, que indica uma espécie de lo: Ática, 1999.
lapso desse trânsito quando conjuga em si um raro HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de
arranjo das formas. É essa espécie de narrativa da viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70. São
narrativa que evidencia a importância do processo, Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
mais que o seu “fim utilitário”. É a crônica, aqui, SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária:
que aparece como síntese de um procedimento polêmicas, diários e retratos. 2.ed. Belo Horizonte:
que ecoa por toda a obra. UFMG, 2004.
Nesse sentido, notamos que se a poesia tratou
de perder sua aura foi porque a forma romance
e, principalmente, o narrar e a narrativa, também,
anteriormente, precisaram reinventar-se para 365
sobreviver da modernidade em diante. Ou seja,
se a narrativa tratou e continua a tratar de encon-
trar novas formas de se expressar na linguagem,
a poesia também cede à convocação que é feita
(àqueles que são encarregados de reinventar a
linguagem) desde a modernidade e se vale de
todos os recursos possíveis para que esse sujeito-
-fragmentos transmita, então, o que está a sua
volta - e que também é fragmento - e que, em um
embate incessante, o que é externo passa tam-
bém a compor esse eu, e vice e versa. Se essa
comunhão de gêneros na composição do poema
de Ana Cristina Cesar marca, por um lado, uma
espécie de subversão da forma poética tradicio-
nal na formação do poema, por outro lado, esse
acionar de formas que têm força maior na expres-
são do eu, afirma como que um perpetuamento da
posição ou até mesmo da existência desse “eu”
pela própria reinvenção e adaptação de sua forma
de expressão. É assim que a poética de Ana cria
para si e em si um não-lugar que, paradoxalmente,
gera conforto, pois se trata de um lugar onde para
o eu é possível ser a partir dos encontros entre
fragmentos. Dessa forma, entendemos que o diário
da poeta, não é o lugar onde encontraremos uma
espécie de intimidade partilhada entre eu-lírico e
leitor, mas sim, é o lugar da recriação das formas
de poetizar, da confluência de formas que cria pelo
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
1. Mécia de Sena : trajectória biográfica ensino da música e de piano, áreas em que teve
esmerada educação, desde criança, com a avó e
Mécia de Sena (Maria Mécia de Freitas Lopes a mãe, exímias violoncelistas assim reconhecidas
Leça de Sena), mulher do escritor Jorge de Sena, por Guilhermina Suggia. Teve mais quatro irmãos,
curadora, organizadora e responsável pela edição sendo seu irmão mais velho o ensaísta, professor
póstuma da obra de seu marido, desde a sua mor- universitário e historiador da literatura portuguesa,
te, em 1978, é figura notável da cultura portuguesa Óscar Lopes, com quem Mécia partilhava o gosto
do séc XX. Ensaísta, tradutora, autora de vasta e o interesse pela cultura e a literatura.
epistolografia e escrita diarística ainda largamente Licenciada em Histórico-Filosóficas, pela Uni-
inédita, nasceu em Leça da Palmeira em Março de versidade de Lisboa, em 1956, foi mãe de 9 filhos e
1920, filha do portuense Armando Leça [1891-1977] colaboradora incessante da obra literária do mari-
prestigiado compositor, musicólogo, etnólogo, do, com quem casou em 1949, no Porto, tendo-o
investigador e estudioso do Cancioneiro Musical acompanhado no seu exílio voluntário no Brasil,
Popular Português. entre 1959 e 1965 e a partir desta data, nos USA,
Com o pai colaborou, desde muito jovem, no Wisconsin e Santa Bárbara (Califórnia) onde actual-
mente reside.
1 COSTA, José Francisco ; FAGUNDES, Francisco Cota, Pref.(2003). A Cor- É sócia correspondente do Centro da Associa-
respondência de Jorge de Sena : um outro espaço da sua escrita. Lisboa : Ed.
Salamandra. Este autor faz um estudo das cartas de amor de Mécia e Jorge
ção Mundial de Escritores – Rio de Janeiro, qua-
de Sena publicadas na obra Isto Tudo que nos rodeia (1981) em paralelo com lidade que lhe foi reconhecida pelo Pen Clube do
as Cartas Literárias de Mariana Alcoforado que Jorge de Sena dizia serem Brasil em Agosto de 1980, tendo igualmente sido
suplantadas pelas de Mécia, e das Novas Cartas Portuguesas (1972) de Maria membro, por convite, do Comité Luso-Brasileiro
Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, as três Marias,
da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara,
designação por que ficou conhecida a autoria desta obra de grande impacto
político à época da sua edição. onde se fundou no mesmo ano, o “Center for Por-
Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares VI
da, como um contributo incontornável para uma sível identificar nestas cartas, os muitos papéis e
melhor compreensão de dimensões essenciais da diferentes funções sociais e culturais desempenha-
vida-obra Seniana e de aspectos importantes da das por Mécia de Sena, “anjo eficaz”4 de Jorge de
história da sociedade e da cultura portuguesa e Sena e companheira inseparável do intenso trajecto
brasileira nos anos 1950 e 1960. pessoal, profissional, académico, cultural e literário
Alguns autores, de que é exemplo a crítica do escritor.
argentina Marta Traba, costumam apontar como Mas a escrita epistolar de Mécia de Sena pode
características femininas na literatura contemporâ- ainda ser entendida como exercício de “um soliló-
nea “a palavra fragmentada, a tendência a impreg- quio de ausente para ausente” através do qual se
nar a palavra escrita com elementos de oralidade, procura superar a distância, espacial, temporal e
o discurso voltado para o sujeito que fala, a projec- afectiva, como se ilustra:
ção da linguagem no nível simbólico, a tendência Carta de 14/8/959:
a explicar o universo em vez de interpretá-lo, a
“À noite, a convite da Maria Lamas, fui ao
predilecção pelo detalhe”.
“Restelo” ver a “Grande Estrada Azul”. Uma
Todas estas nuances, umas mais que outras, se coisa italiana bem feita, sem concessões de
evidenciam nas cartas de Mécia de Sena, as quais happy end mas muito lenta de acção, com
são ainda expressão significativa da sua posição interpretações boas mas não excepcionais.
de mulher no exílio, vivendo longe da pátria, de Uma coisa um pouco deprimente ou o meu
familiares e amigos, consciente de seus novos estado de espírito é que anda deprimido. (…)”
papéis na sociedade e no mundo em grande me- (referência implícita ao estado de abatimento
dida também ligados à intensa e pública trajectória provocado pela morte recente de sua mãe)
literária, cultural e política do marido. Breves ou
mais extensas, mas sempre escritas com gran- E se a terminar uma carta de 17/8/959 escreve:
de regularidade e num estilo simples, coloquial e “ (…) “Meu, amor, vivo das tuas cartas e do
familiar, as suas cartas não são nunca impessoais teu amor. Beijo-te com muitas saudades…”
368 ou desapaixonadas, antes ricas de significado e noutra do mesmo dia desabafa: “… isto aqui é
expressões literárias espontâneas, pensamento atoleiro por todos os lados e ainda por cima é
arguto, opiniões desassombradas, raciocínios e pobre, ao nível dos dez tostões que é a coisa
comentários críticos e informados sendo, simulta- miserável, desconsoladora. Não haverá no
neamente, expressão sincera, espontânea e natural mundo uma Parságada qualquer para onde
de fortes sentimentos e emoções genuínas. vamos? Meu amor, o mundo é nojento e a
Passíveis de inúmeras leituras, as cartas de Mé- humanidade está ao nível do mesmo. E a vida
cia que Jorge de Sena considerava que “metiam as é tão breve e tão poucas as coisas que nos dá
de Soror Mariana num canto”, subvertem padrões meu querido. É-me insuportável estar sem ti,
e estereótipos rígidos e convidam-nos a rever as sem te abraçar, sem me sentir nos teus bra-
funções triviais da correspondência pessoal e os ços com a minha cabeça no teu peito quente,
papéis apagados das mulheres na vida social. acolhedor, que eu sei pertencer-me como eu
Representam, para além de sua subjectividade te pertenço inteiramente.”
e subjectivação, depoimentos de forte realidade Numa vontade sempre renovada de ter e de dar
histórica, considerações de crítica literária e análise notícias, através de relatos e diálogos retomados,
política, meios e modos de compreender múltiplas as cartas de Mécia de Sena são um incentivo à es-
relações com a sociedade e o mundo ou com os crita de seu interlocutor de quem é leitora especial
microcosmos da imprensa, da edição ou da políti- e atentíssima, para além de um espaço de experi-
ca. São igualmente objecto de especial referência mentação constante de uma corrente ininterrupta
nestas cartas em que o público e o privado se de escrita em que há lugar para a digressão literária
mesclam: o elevado sentido de pertença e inter- para além da peculiar resistência feminina que se
venção social nos países de origem e de destino, entretece de conversas sempre vivas que a escrita
sentimentos de liberdade, convivialidade, soli- epistolar alimenta. Simultaneamente, abrem-nos
dariedade, amizade e hospitalidade, a constante outros tantos caminhos para a leitura do impor-
inscrição do quotidiano na materialidade da escrita tante diálogo epistolar entre duas figuras públicas
em que emergem também as representações do destacadas da literatura e da cultura portuguesa do
mundo social e cultural, e uma multiplicidade de séc XX, que em seus silêncios, entrelinhas e senti-
sentimentos individuais, familiares, sociais, cultu-
rais, éticos, cívicos e políticos. É igualmente pos- 4 Carta de Jorge de Sena para Mécia de Sena, datada do Rio em 24/7/963,
6 páginas.
Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares VI
dos somente adivinhados, ou em suas confidências ção, qual teia de Penélope, e a qual só poderia ter
e considerações explicitas, exercem sobre nós o saído da pena de uma mulher com uma atitude pe-
fascínio e a tentação de escrever sobre vidas que, rante a vida e a morte, tão sofrida quanto corajosa.
para além do seu real interesse histórico e impor- Quando Mécia, a propósito desse seu Diário
tância social e cultural objectiva, teceram quotidia- singular, construído de impressivas micro-histórias,
nos de relações humanas e sociais com grandes anotações e contidos textos de grande beleza
figuras das artes e das letras que continuam a literária, suscitados por uma enorme riqueza de
envolver-nos e seduzir-nos no seu conhecimento. afectos e memórias, diz “escrevi um livro de amor”,
Em síntese, a correspondência de Mécia de adverte-nos, assim, para que o mesmo deverá
Sena produzida, ininterruptamente, durante mais ser lido tendo-se, em conta isso mesmo, o que
de sete décadas, e na qual se contam não só os poderá entender-se como tendo escrito um livro
milhares de cartas dirigidas a Jorge de Sena, mas sobre o amor, ou como o de com amor ter escrito
ainda as inúmeras cartas que por si foram e conti- esse livro. Amor que se evidencia não só na escrita
nuam a ser escritas para numerosos destinatários epistolar cuja abordagem se poderia também fazer
de todo o mundo, assim como o seu significativo como prática de um diário específico, mas sobre-
trabalho de organização e edição de vários volu- tudo neste outro registo de escrita feminina, de que
mes da Correspondência de Jorge de Sena permi- são expressão os “Flashes” cujo valor literário e
tem situá-la, com toda a justeza, em lugar de relevo documental bem justifica, a sua publicação integral
na melhor tradição da moderna epistolografia até para reconhecimento público de Mécia de Sena
portuguesa, em que se destacam como relevantes como mulher escritora. Embora não seja, porém,
fontes de pesquisa de interesse histórico, literário e na qualidade de escritora que Mécia de Sena se
documental. revê. A obra de que se reclama e a que tem dedica-
do toda a sua vida é, outra, a de Jorge de Sena.
A ensaísta Luciana Picchio6 apresenta-nos assim
2.2. Escrita diarística: FLASHES , livro inédito
esse livro de “perfil documentário, cronístico e lite-
de Mécia de Sena 369
rário [que] fixa em microsequências memorialistas,
Como a escrita epistolar, a escrita diarística de recordações da vida de Mécia com Jorge de Sena,
Mécia de Sena, de que o seu livro Flashes, pode desde em 1940 em Portugal, Porto e Lisboa até
ser considerado exemplo, é ilustração paradigmá- 1978, ano da morte de Sena no exílio. São mais de
tica dessa importante componente da literatura de 30 anos de existência comum recuperada, revisi-
autoria feminina que sublinha o processo de inser- tada, reconstituída no efémero dos instantes, de
ção das mulheres nas aprendizagens da expressão circunstâncias, de frases de um léxico familiar, de
escrita de si próprias, ocorridas desde o séc. XIX uma proximidade de amigos. Um livro escrito com
e, em particular, das aprendizagens da afirmação a sabedoria e a consciência do ‘aqui e agora’ que
cultural e social das mulheres ao longo de todo o é Santa Bárbara, Califórnia, sob a casa dos Sena
séc. XX. que continua a ser um ponto preciso de referência
“Escrevi um livro de amor”, diz Mécia desse seu humana e cultural. Um livro ‘coral’ colectivo, um
inédito com mais de 600 páginas5, cuja escrita coro de família…”
iniciou em 1980, mantendo-a em contínua constru- Mécia de Sena demarca aí a posição das memó-
5 Mécia de Sena publicou apenas oito flashes na colectânea de estudos rias femininas no campo literário, uma das formas
apresentados ao Colóquio Internacional sobre Jorge de Sena realizado em de as mulheres estabelecerem sua incorporação
Outubro de 1988, na Universidade de Massachusetts em Amherst, tendo ain- à literatura, à margem dos cânones oficiais e das
da autorizado a publicação de mais alguns excertos esparsos nos seguintes
estudos e trabalhos: Sena, Mécia de (1992). “FLASHES: Recordando alguns culturas hegemónicas que ela conhece melhor
momentos com Jorge de Sena” In “Jorge de Sena: O Homem que sempre que qualquer outra mulher de sua geração e com
foi”. Selecção, organização e introdução de Francisco Cota Fagundes e José que ao longo de toda a sua vida privou, construin-
N. Ornelas. Lisboa: Ministério da Educação, ICALP, p. 243-245; Picchio, do uma identidade cultural e intelectual em que o
Luciana Stegagno (1983). Esercizi su di una vita: i “Flashes” di Mécia de Sena.
feminino e o masculino se entrecruzam harmoniosa
“Quaderni portoghesi” 13-14. Pisa: Giardini Editori e Stampatori. Primave-
ra – Autunno, p. 313-322; Santos, Gilda da Conceição (1995).À sombra e criativamente. Por sua vez também aí emerge a
de uma Paixão: Os Flashes de Mécia de Sena. In “O Rosto Feminino da diversidade de protagonismos femininos expres-
expansão Portuguesa. Congresso Internacional realizado em Lisboa, 21-25 de sivamente captados em muitas passagens, num
Novembro de 1994. Actas II.” (Cadernos Condição Feminina, nº 43). Lisboa: registo minucioso das particularidades sociais, etá-
Comissão para a Igualdade e para os direitos das Mulheres, p. 235 – 241;
Magalhães, Joaquim; Jorge, João Miguel F., ed. (1989). As escadas não têm rias, profissionais, de origem e contextos de vida
degraus. Editora Cotovia, 1º número, Janeiro; Lage, Maria Otilia Pereira(2007). que encerram vivências e experiências marcadas
Correspondência(S) Mécia e Jorge de Sena.evocação de Carrazeda 8anos
1940). Guimarães: NEPS. 6 Ob cit.
VI Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares
por acentuadas singularidades nacionais e interna- Nobre, Junqueiro, com muito Fernão Lopes e
cionais. O que nos permite uma melhor aproxima- Cantares de Amigo…8
ção à Mulher que, ao relatar factos de uma realida-
Já casada e mãe de filhos, vários episódios
de quotidiana, fornece múltiplas coordenadas de
narrados evocam canseiras, esforços e sacrifícios
análise que induzem e possibilitam rastrear, iden-
mas também a desenvoltura e coragem femininas
tificar e observar o modo como através do acto e
para vencer as dificuldades que marcaram a sua
da própria prática de escrita, uma realidade social
vida de mulher trabalhadora dentro e fora de casa,
é construída, pensada, vivida, materializada e dada
companheira insubstituível de um grande escritor,
a ver.
mãe de 9 filhos, qual “chefe de tribo” que subverte
Familiarizando-se rapidamente com os outros com sabedoria e naturalidade a ordem do modelo
e sabendo, como poucos, familiarizá-los consigo, patriarcal da família clássica:
muito facilmente, Mécia de Sena, introduz, com
toda a naturalidade, os leitores na sua intimidade “pouco antes de nascer a Mariana deixara de
que no entanto sabe muito bem manter preserva- dar aulas porque tivera uma anemia séria…
da. fazia traduções, revisões de livros e de provas
para os Livros do Brasil, onde o Jorge era con-
“A minha avó materna, Francisca Teresa de sultor literário, por gosto e por necessidade,
Jesus, tocava piano e, uma vez por ano, no pois só tinha o ordenado de engenheiro de 3ª
1º de Dezembro…, não falhava! …juntava os classe … começou nessa altura a minha briga
netos e tocava o Hino da Restauração. Conta- com os tipógrafos... escritores brasileiros -
va permanentemente histórias (Dumas, Victor correcção de nomes”.9
Hugo, Max Du Veuzi, folhetins do século…
romances camilianos… reconhecia as peças Mais adiante, evocada a estreita relação do casal
que se tocavam, se eram piano ou violino, pe- e os tempos difíceis, Mécia enfrenta, com ironia,
los movimentos dos dedos. E enquanto cozia a maledicência social que visava Jorge de Sena
ou fazia intermináveis camisolas de lã, cantava numa época de suspeitas”:
370
sonatas, trios, quartetos, especificando qual “… alguns anos antes, a Alice [irmã do escritor
o instrumento da passagem ou trecho em neo-realista Soeiro Pereira Gomes e esposa
causa… e já cega, recomeçava… por vezes do poeta e ensaísta Adolfo Casais Monteiro,
já irreconhecível o fio melódico. (…) duas ruas amigo do casal Sena] tinha-me dito que se
acima morava a Guilhermina Suggia, a maior dizia que eu escrevia parte das coisas dele.
veneração de minha mãe…”7 Respondi-lhe que agradecia muito que tão alto
Na educação artística e cultural que a embebe e conceito fizessem de mim. Eu tinha um filho
de todos os lados, absorve, Mécia evoca a mar- cada ano, ensinava horas e horas em colégios,
cante influência do círculo familiar e da ambiência eu dactilografava tudo para o Jorge e não per-
cultural local: dia concerto nem conferência que ele desse…
Um de nós tinha que ser génio, se lhe aprazia
que fosse eu…, problema deles! Ficava muito
“…minha mãe tocava e ensinava violoncelo grata.”10
que me embevecia e cheia de entusiasmo me
começou a ensinar. Meu pai interferiu logo: Este o tom nuanceado da escrita diarística, de
piano era o que devia estudar… Na minha Mécia de Sena, rés à forma de ser e estar, na qual
casa a música sentava-se à mesa, dormia e foi encontrando a força necessária para continuar a
despertava connosco. …o melhor de tudo era viver e produzir.
quando o meu pai proclamava: “ vamos dar Num estilo de escrita de intensas e fugazes
um passeio mistério”… os ex-votos… Guifões iluminações, os Flashes mobilizam fragmentos de
com o seu moinho… Santa Cruz do Bispo conversas, narrativas que se suspendem para logo
mais “o homem da massa” …despejavam- se cruzarem em novas recordações vivas e ricas de
-lhe vinho pela cabeça nos dias de romaria e sentido, cumplicidades, empenhamentos, ideias e
havia que abraçá-lo para casar cedo!... …eu grandes ideais, reflexões sobre a vida, evocação de
tocava piano, estudava francês, português e situações, casos, tipos sociais, pessoas e aconte-
bordados com a “Julinha”, e fui moldando as cimentos quer da sociedade portuense, seu meio
minhas leituras pelos livros do meu pai: Pierre de formação, ou da de Lisboa dos primeiros anos
Loti, Aquilino, Anatole France, Garrett, António 8 Mécia de Sena, ob cit.
9 Mécia de Sena, ob cit.
7 Mécia de Sena – Flashes. Pasta 1. 10 Mécia de Sena, ob cit.
Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares VI
de casada, quer da sociedade portuguesa, brasi- dernas de revisão do cânone literário para valorizar
leira, americana e do mundo com que ao longo da este misto de diário, crónica, biografia, autobiogra-
vida manteve e mantém contacto estreito. fia, memórias.”
Numa escrita de afectos, se exprimem as suas Sintetizando, para além de reconhecida obra
múltiplas relações de trabalho e convivência com literária, Flashes é ainda um documento histórico,
figuras públicas do campo das artes, das letras antropológico e sociológico, invulgar na história
e da cultura, fazendo-nos assim partilhar de uma da nossa produção literária e cultural feminina,
mundividência que permite vencer distâncias. tratando-se, em suma, de um livro quase impossí-
A expressividade da sua escrita, objectiva, realis- vel de escrever-se, tal a tensão com que o vivido e
ta, clara e densificada por reflexões que irrompem o sentido irrompem na corrente impetuosa de uma
a cada passo, súbitas e certeiras, faz lembrar, profusão de recordações ora felizes ora amargas,
frequentemente, as “javelines” sobre a China, do mas sempre intensas.
escritor clássico e médico revolucionário Lu Xun Estamos pois em presença, não de um livro de
(Lou Sin) ou as “iluminações” do filósofo e escritor memórias, como nos adverte a sua autora, antes
revolucionário judeu alemão, Walter Benjamim. perante a escrita da memória para si própria, num
Atravessados pela voz muito fresca e jovem diário vivo e actual, porque memória em acto, tra-
e por um olhar retrospectivo, fragmentário, mas ço, sobrevida.
não fragmentado de sua autora, os Flashes são
um diálogo vivo, constante e amoroso com Jorge
CONCLUSÃO
de Sena, interlocutor privilegiado e omnipresente
em quase todos os relatos e narrativas deste livro Mécia de Sena inscreve fluentemente em suas
que traça, numa teia intensa e extensa de recipro- narrativas epistolares e na sua escrita diarística o
cidades, afectos e amizades, uma trajectória de tempo histórico, a sua consciência ética e crítica do
vida feminina (projectos, problemas, realizações, mesmo, uma clara opção pela linguagem do corpo
anseios…) ancorada numa grande diversidade de e, no registo labiríntico do tudo e do muito que inte-
ressa, a procura do “sentido das coisas” – caracte- 371
redes sociais e culturais.
rísticas da escrita feminina contemporânea. Numa
“Não interessa realmente o que se passou mas o
“escrita de si” que atravessa as suas narrativas
que nos ficou do que se passou”11, acentua Mécia
quotidianas, na correspondência, e rememorativas,
de Sena para quem Flashes é uma escrita de liber-
no diário Flashes, formas distintas de um idêntico
tação, uma escrita terapêutica, e não uma escrita
monólogo interactivo e reflexivo, se revelam a resis-
de memórias, onde “recordando …momentos com
tência, a consciencialização e a coragem da autora
Jorge de Sena”, instantes densos de diálogo em
em expor-se em épocas e momentos conturbados
silêncio, lembranças de uma relação mutuamente
da história de Portugal e dos diferentes países da
estimulante e criativa, desvenda facetas pouco
América por onde passou e viveu.
conhecidas de ambos, congregando, na correnteza
dos testemunhos de múltiplos sabores: literários, O que nos permite ainda figurar Mécia de Sena
pictóricos, fotográficos, musicais, uma multiplicida- como exemplo de mulher e intelectual que, embora
de de círculos humanos, sociais, culturais e acadé- indissoluvelmente ligada a Jorge de Sena, se afir-
micos portugueses e estrangeiros. mou sempre, de modo singular, livre e autónomo,
não só pelo seu papel na epistolografia portugue-
Mécia de Sena inventou em Flashes uma escrita
sa, reconhecida função editorial pró-autor e função
de sobrevivência que é ainda um trabalho sobre a
de relevo que assumiu quer na produção de uma
obra-vida de Jorge de Sena: promessa herdada,
escrita de resistência reveladora das subtilezas
rastro salvaguardado e responsabilidade confiada.
sugestivas de múltiplas capacidades do “femini-
Sendo, ela própria, Para além disso, aí é ela própria
no”, quer no horizonte da história, da cultura e da
que “apesar de sua insistência em permanecer
literatura portuguesa do séc XX, devolvendo outra
na sombra, em terras californianas”, se nos revela
visibilidade ao fazer quotidiano da literatura, da
como “indubitavelmente, uma individualidade lite-
cultura e da política.
rária portuguesa que merece ganhar os reflectores
do reconhecimento”, assim o salienta Gilda Santos, A sua produção escrita, paradigma de uma
autora para quem: “os Flashes não constituem escrita feminina emancipada, moderna e de resis-
somente obra de circunstância, referencial sem tência, na manifestação irrecusável da sua mate-
polimento, mas literatura em si, de qualidade. Não rialidade e evidência inscrita na linguagem, de um
é, pois, necessário convocar propostas pós-mo- trajecto singular de mulher que envolve múltiplas
redes culturais transatlânticas de pessoas, coisas,
11 Carta de Mécia de Sena para Otilia Lage, 7 de Abril, 2007.
VI Modalidades de escrita no feminino: diários fi ccionais e narrativas epistolares
acontecimentos e afectos, constitui-se ainda numa Picchio, Luciana Stegagno (1983). Esercizi su di
fonte documental privilegiada quer para a história una vita: i “Flashes” di Mécia de Sena. “Quaderni
quotidiana e cultural de Portugal, do Brasil e EUA, portoghesi” 13-14. Pisa: Giardini Editori e Stampa-
no séc XX, quer para a compreensão de meandros tori. Primavera – Autunno, p. 313-322.
menos visíveis da construção intelectual de uma Santos, Gilda da Conceição (1995).À sombra de
obra literária e sua acção cultural. uma Paixão: Os Flashes de Mécia de Sena. In “O
Neste quadro, e sendo a problemática das mu- Rosto Feminino da expansão Portuguesa. Con-
lheres no exílio, entre nós, muito parca de estudos gresso Internacional realizado em Lisboa, 21-25 de
e trabalhos, Mécia de Sena, personalidade publica- Novembro de 1994. Actas II.” (Cadernos Condição
mente conhecida mas digna de maior visibilidade Feminina, nº 43). Lisboa: Comissão para a Igualda-
e reconhecimento social e histórico é, também, a de e para os direitos das Mulheres, p. 235 – 241
este título, uma figura relevante da história contem- Santos, Maria Irene Ramalho de Sousa e Ana
porânea das mulheres portuguesas cujo estudo e Luísa Amaral (1997). “Sobre a ‘escrita feminina’.”
divulgação se impõem, designadamente através de Oficina do Centro de Estudos Sociais 90 (Abril), 41
um melhor conhecimento da sua relevante produ- pp.
ção escrita. Sena, Mécia (1982). Isto tudo que nos rodeia
(Cartas de Amor): Mécia de Sena e Jorge de Sena.
BIBLIOGRAFIA Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
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Chartier, Roger (1995). “Diferença entre os sexos
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(im)possibilidade continuada : Cidadania e exílios.”À
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literatura. Estudos Lingüísticos, São Paulo, 37 (3):
317-324, Set.-Dez. Disponível em http://www.gel.
org.br/estudoslinguisticos/volumes/37/ acedido em
12/2/2011.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
A teia de Penélope:
artifícios da inscrição
ficcional do diário feminino
Sílvia Cunha
Universidade de Aveiro, (Portugal) (Doutoranda da Universidade de Aveiro/FCT.)
ma de que “a necessidade aguça o engenho”, pois, why the diarist keeps a diary, what keeping a
a necessidade de resistir aos desígnios tirânicos diary means to the narrator, where and when
masculinos, motivou Penélope a desenvolver um the diary is written, what its physical form is,
ardil astucioso para impor a sua vontade: and how it came to be published. (Hassam,
Penelope’s weaving-room is a place which 1993:13)
shelters her from men, a place where she wea- A exploração ficcional do diário de autoria femi-
ves her own story, a place where her endless nina apresenta diversas potencialidades expressi-
weaving grants her a different temporal dimen- vas. Por um lado, permite demonstrar a perceção
sion which cannot be entered, and unders- feminina de uma sociedade que ignora as suas
tood, by men. By spinning during the day the necessidades, que bloqueia as suas ambições e
same threads that she unspins at night, Pene- que restringe oportunidades. Por outro lado, permi-
lope “fabricates” a fictional texture that allows te que a mulher se pronuncie sobre questões como
her to escape from the male by symbolic order. o casamento, a maternidade e a sexualidade, nas
And her “plot” shall not be unmasked because quais ela sempre foi protagonista, sem, no entanto,
her suitors cannot access the weaving-room, ter poder de decisão ou sequer de opinião.
the room in which she was secretly construed Assim, como o manto de Penélope, o diário
her ultimate mockery of patriarch system. ficcional tem sido uma forma subtil de protesto e
(Lombardi, 2002: 13, 14) de resistência ao jugo patriarcal, permitindo que
Do mesmo modo, durante séculos, mas, sobre- personagens femininas, que existem apenas no
tudo com o impulso romântico, que as mulheres domínio da ficção, sejam porta-vozes discretas das
teciam “a ponto de silêncio” as suas angústias suas criadoras, salvaguardando assim a posição
e desabafos em diários íntimos, como exercício da autora, que, muitas vezes, necessita de se sub-
confessional e de autoanálise. Com uma educação meter às regras masculinas.
deficitária (em relação à masculina) e com todos Segundo Andrew Hassam, a ficção diarística de
374 os afazeres domésticos, entre a casa e os filhos, a autoria feminina pode ser examinada, à luz de dois
mulher encontra, na liberdade formal do diário, um modos distintos: o modo documental e o modo
incentivo à escrita e a possibilidade de ganhar voz discursivo. Na verdade, o autor distingue entre os
e a tornar-se a protagonista da sua história. diários que “documentam” ou retratam os estereó-
Desta forma, quando a mulher decide assumir a tipos culturais e as restrições sociais, representan-
sua veia literária e assumir-se como escritora, não do assim a condição feminina num meio patriarcal,
é de todo estranho que revisite o formato diarístico, e aqueles que questionam, através da escrita, as
ainda que ao serviço da ficção. convenções masculinas e as denunciam. Esta
Assim, ainda que se inspire no modelo do diário distinção, no entanto, é pouco funcional no con-
íntimo, pertencente à constelação autobiográfica, texto português, já que a representatividade de
o diário ficcional subverte a sua essência, ao negar romances-diários de autoria feminina, ainda assim,
a autenticidade e o secretismo que envolvem a es- é limitada, para além de que esta delimitação entre
crita diarística. Assim, desde pequenos fragmentos os dois modos nem sempre é precisa, verificando-
de diário, inseridos em textos diversos, evoluindo -se a sua coexistência em vários textos.
para contos e novelas, o formato diarístico impõe- Além disso, importa referir que, como defende
-se, sobretudo no século XX, como subgénero – o Isabel Allegro de Magalhães, não há realmente
romance-diário. uma escrita feminista, propriamente dita, apontan-
O diário ficcional é uma narrativa que mimetiza do como exceção as Novas Cartas Portuguesas
os expedientes técnico-compositivos do diário, (Magalhães, 1992: 154). Ainda assim, Isabel Allegro
como a fragmentação, a datação, o uso de abre- Magalhães, encontra um “denominador simbólico”
viaturas e códigos. Estes elementos aliam-se a na escrita feminina:
uma narrativa na primeira pessoa, que privilegia os Trata-se de um denominador simbólico defi-
sentimentos de emoções do diarista, estreitando nido pela forma como as mulheres condicio-
laços de empatia com o leitor. No entanto, uma das nadas por elementos fisiológicos, antropo-
maiores singularidades da ficção diarística é o de- lógicos, sócio-económicos, culturais, deram
senvolvimento em topoi concomitantes ao próprio respostas aos problemas de produção e de
diário: reprodução, material e simbólica. Haverá, pois,
In other words, unlike other types of fiction the uma afinidade natural e cultural, historicamen-
diary novel is concerned with such matters as te construída, a ligar as mulheres entre si.
(ibidem: 152)
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
Assim, apresentaremos alguns exemplos muito The idea is that if no one listens to women
curiosos de autoras que teceram a sua resistência writing in old traditional forms, then she must
pelos meandros da exploração ficcional do diário necessarily use new forms that allow her to
na literatura portuguesa, tais Guiomar Torrezão, speak in her own voice about the things that
Maria Ondina Braga e Olga Gonçalves. matter to her. To this end, women have ex-
perimented with literary forms such as diary.
(Ribeiro, 1990: 5)
1.1 Guiomar Torrezão: ‘cosendo à penna’ a
angústia feminina, no «Diário de uma Compli- Desta forma, a diarista deste conto é uma jovem
cada» burguesa, Maria, que decide empreender este
Guiomar Torrezão (1844-1898) é considerada a projeto de escrita por não ter ninguém que a possa
primeira escritora de profissão, em Portugal (Jesus, compreender:
2005: 484). Numa situação familiar e económica Janeiro, 7 … - Ninguem me comprehende, e
delicada, esta mulher opta pelas agruras de tra- eis-ahi porque resolvi confiar ao meu jornal,
balhar para ganhar o seu sustento, rejeitando a companheiro discreto e mudo que reduzirá
convenção social que encontrava no casamento a cinzas os segredos que lhe entregarem, o
uma situação de estabilidade financeira: estado da minha alma. (Torrezão, 1894: 43)
Guiomar Torrezão não tinha pae nem irmãos Apesar de Maria se sentir incompreendida pelo
que exigissem contas aos desrespeitado- seu círculo de familiares e amigos, as primeiras en-
res eméritos das mulheres sós; e não tendo tradas diarísticas apresentam-na como uma jovem
constituido família, nem tendo fortuna propria, fútil e complicada, muito semelhante a outras de
achou-se na condição de ter que ganhar ella quem ela fala, parecendo perfeitamente integrada
mesma o seu prato e os seus vestidos, escre- no seu meio social. As suas preocupações pare-
vendo jornaes todos os dias – isto é, cosendo cem gravitar apenas em torno de rendas e vesti-
á penna, em vez de coser á machina, e não dos, pretendentes e intrigas. Porém, o leitor de-
tirando deste esgotante martyrio sequer talvez parar-se-á com alguns indícios sub-repticiamente 375
o que as pobres costureiras auferem nos ar- distribuídos no texto, relativamente à valorização de
mazens onde trabalham. (Almeida, 1924: 189) uma educação cuidada. Por exemplo, Maria revela-
Para além das traduções e das explicações, -se leitora assídua dos diários de Amiel e domina
Guiomar Torrezão escrevia para jornais e perió- fluentemente o inglês, surpreendendo Francis, um
dicos, o que justifica a dispersão genológica dos pretendente britânico, que se lhe dirige em francês,
seus textos e a sua reduzida extensão. Para além por pensar que, como era usual na época, esta se-
disso, a sua escrita encontrava-se condicionada ria apenas a língua que Maria teria estudado. Além
pela sua necessidade de sobrevivência e, por isso, disso, o pai de Maria dá-lhe certa medida de Inde-
pela conformação aos padrões sociais vigentes no pendência ao levar em conta a sua opinião acerca
final do século XIX, “subalternisada ás fluctuações do noivo a escolher, embora o casamento lhe seja
de gosto de gente grosseira, principal clientela dos imposto pelas convenções sociais. Maria escolhe
jornalinhos”. (Almeida, 1924: 193) Francis, justamente pela admiração que nutre pela
sua educação britânica, preterindo outros candida-
Ainda assim, Guiomar Torrezão evidenciava al-
tos, um dos quais tinha formação coimbrã. Apesar
gum conhecimento da literatura europeia da época
de discreta, esta subtil valorização de uma edu-
e experimentou, em contexto nacional, formas
cação cuidada para as mulheres fez parte de uma
literárias como o diário ficcional. Primeiro, Guiomar
das mais marcantes batalhas da vida de Guiomar
Torrezão usou excertos de um diário, inseridos
Torrezão.
no conto «Amor de Mãe», publicado em 1873, e
depois publicou um conto, que se apresenta inte- No entanto, um dos aspetos mais curiosos do
gralmente em formato diarístico, em 1894, o «Diário diário de Maria é a angústia que ela manifesta em
de uma Complicada». Este conto, para além de ser relação ao seu casamento, inesperadamente sem
um dos precursores do romance-diário em Portu- qualquer referência à escolha do vestido ou da
gal, apresenta-se como uma subtil e engenhosa festa, como seria esperado. Pelo contrário, Maria
narrativa de denúncia e resistência social. Aliás, o expressa verdadeiramente “terror” (ibidem: 66) face
próprio formato diarístico permite dar voz à mulher, à iminência do seu enlace, aspirando à liberdade
aos seus pensamentos e angústias mais íntimas, das aves, revendo-se, porém, na situação de um
através da dissociação entre personagem e autora, “condemnado que espera (…) execução”.
ficção e realidade: Curiosamente, depois do casamento, Maria só
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
volta a escrever uma vez no diário, para se anunciar para se afirmar num mundo, regido por ditames
verdadeiramente feliz e “curada” das suas compli- masculinos. Este processo de afirmação envolve
cadas oscilações de humor, sendo que o miraculo- necessariamente um percurso de autognose e de
so remédio foi o seu casamento, “a mais divina das reunificação da sua identidade, que se encontra
instituições humanas” (ibidem: 72). Esta inversão estilhaçada e se projeta em Vânia, “a personagem”
abrupta assume uma dimensão quase cómica, que ela criou, com quem convive, na esperança de
contrastando todo o dramatismo de uma sucessão dela fazer um romance. Assim, neste romance-diá-
de entradas diarísticas, carregadas de uma dimen- rio, há um claro confronto entre os mundos mascu-
são trágica e assustadora, com uma só entrada tão lino e feminino, onde Paula denuncia as diferentes
idílica e, ao mesmo tempo, tão exagerada, que não perspetivas de mulheres de diferentes grupos e
parece um sentimento genuíno. De facto, Guiomar formações que a rodeiam. Apesar da datação não
Torrezão esbate engenhosamente a visão decetiva incluir uma menção direta ao ano a que este diário
do casamento como imposição social no último se reporta, existe a referência ao marco da Revo-
momento da narrativa, devido à necessidade de lução de 74 como tendo ocorrido há apenas dois
agradar ao seu público leitor, mas, sobretudo, a um anos (Braga, 1978: 203), não tendo, por isso, ainda
sistema literário, regido por convenções patriarcais, um impacto estrutural na libertação social das mu-
onde a mulher só pode assumir o papel de mãe e lheres e, menos ainda, na mentalidade social em
esposa. relação ao estatuto da mulher.
Assim, esta estratégia de (dis)simular permitiu Paula é uma mulher independente, que se orgu-
que Guiomar Torrezão tecesse um manto de resis- lha de ganhar o seu sustento, que vive em união
tência feminina: de facto com Raul, mas que nunca abdicou do
A transgressão está, muitas vezes, no não seu pequeno apartamento. Porém, Raul pressiona
dito, produzindo humor dentro do contexto Paula a deixar o seu trabalho:
temporal e espacial. Torresão, como escritora, «Quando deixas esse maldito jornal? Trabalhar
tinha que limitar sua expressão verbal, para de noite, andar por fora de casa a desoras,
376
não ser criticada e até mesmo condenada. não é para mulheres como tu, Paula. Para
Ao expor uma situação, revela mais do que mais agora, com essa vadiagem por aí…
palavras poderiam expressar. Faz uso do dis- Quando me fazes a vontade?» (ibidem: 14)
curso hiperbólico e de uma retórica desusada.
A relação do casal deteriora-se e Paula lamenta
(Rector, 2005: 30)
a sua incapacidade de se entregar plenamente a
Como Penélope que desfazia o que tecera du- Raul, recusando, porém, de abdicar do seu empre-
rante o dia, também Guiomar Torrezão teceu uma go, como é o desejo do companheiro, sendo que
personagem que defendia o valor da educação e a sua independência financeira e a sua atividade
denunciava a violência da imposição social do ca- profissional liberal são as únicas coisas que confe-
samento, mas anulando, no final, os seus efeitos. rem significado à sua vida. No entanto, esta recusa
Assim, Guiomar Torrezão assumiu corajosamen- e insubmissão ao padrão sociocultural de que uma
te a sua postura de mulher trabalhadora e indepen- mulher deve constituir família, dedicar-se ao mari-
dente, mas também marcou a sua posição como do e aos filhos não deixa de provocar um conflito
mulher escritora, que engenhosamente manipulou interior em Paula, evidenciando que nem a própria
para “sobreviver num mundo que ainda não estava diarista interiorizou o seu direito como mulher à
receptivo às suas escolhas e à sua forma de vida.” liberdade:
Aliás, retomando as palavras de apreço de Fialho Será que não nasci para casar, para coabitar
de Almeida à sua memória, “esta mulher só teve, com um homem dia após dia, noite após noite,
para ser verdadeiramente alguém, um obstaculo – meses, anos? Nesse caso, a culpa é minha,
o meio onde appareceu e se fez gente.” (Almeida, que aceitei a sua companhia. Mas as outras
1924: 188) mulheres? Com a Nucha? Com a Lourdes?
As dezenas de mulheres que conheço, orgu-
lhosas de ter marido, de falar do marido, de
1.2 Maria Ondina Braga: “urdindo os fios que o
apresentar o marido… e às vezes que marido!
Tempo destroçou”, em A Personagem
Maria Ondina Braga (1932-2003) também revi- Raul tem boa figura […], é amável, sabe muitas
sitou o formato diarístico, com a publicação, em coisas, e, no entanto… Sofro por ser assim.
1978, do romance-diário A Personagem. Neste Estou contra mim. (ibidem: 71, 72)
diário, Paula, a protagonista, verte as suas pelejas
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
No entanto, apesar de Raul condescender as as- Sobrecarregadas com a lida da casa e a prole
pirações de liberdade de Paula, ele revela também – algumas ainda trabalham fora –, e os ho-
um discurso machista, considerando as suas rei- mens sem nenhuma deferência, sem qualquer
vindicações como caprichos, revelando que Paula, mostra de apreço. No entanto, elas dizem na
aliás, como qualquer mulher “precisa de alguém, mercearia, no talho: «O meu homem disso não
precisa de um homem” (ibidem: 73) gosta… Despache-me que o meu marido vem
Aliás, bastante significativo é um diálogo com a casa almoçar…» Os maridos. Como aquelas
Raul, que Paula regista no seu diário, que sintetiza bocas amargas, ansiosas ou desconsoladas,
a diferença do estatuto social da mulher, em rela- se enchem deles! Má sina a das mulheres, até
ção ao homem: das ociosas, as que levam o dia de seios es-
papaçados no peitoril da janela ou encostadas
- Já reparaste […] que tens muita liberdade,
à ombreira da porta, de lábios pintados, soqui-
Paula?
nha de pau. São novas, são de meia-idade,
- Não sei a que te referes. engravidam, incham-lhes as veias das pernas,
discorrem entre si sobre partos e abortos,
- Bem, os meus amigos espantam-se desse ralham com os filhos, compram a Crónica na
teu emprego de noite, esse recolher de ma- tabacaria defronte, estendem a roupa à janela,
drugada, sem nós termos necessidade disso. criam periquitos em gaiolas, lavam e cozinham
- Para mim é uma necessidade. E não foi o para um homem que habituaram mimoso e
que combinámos quando nos juntámos: que que chega, come, e parte de novo, quantas
eu ficava no jornal? vezes em busca de outra. (ibidem: 136, 137)
Esta expressiva caraterização das mulheres que
- Combinámos!... Ora, combinámos!... Sabes
rodeiam a diarista demonstra a passividade com
que a lei dá ao homem direito de decidir sobre
que as mulheres aceitam o seu cruel fado e, por
o modo de vida da mulher? Não sabias...
vezes, até o procuram. Aliás, várias micronarrativas
377
- Sim, sabia. Mas que temos nós com a lei? são descritas por Paula, histórias a que ela assis-
[…] Estamos fora da lei. tiu casualmente na rua, situações específicas de
vizinhas, conhecidas e colegas de trabalho, ou até
- Compreendo. Por isso te interessa uma conversas com mulheres em ocasiões sociais ou
situação ilegal. Para fazeres o que te apetece, com amigas que lhe pedem conselhos ou ajuda,
não? demonstram a precariedade da condição feminina,
- Para ser livre. Para sermos livres. mesmo depois da Revolução.
Assim, Maria Ondina Braga, através do formato
- Um homem é sempre livre. (ibidem: 166, 167) diarístico, não só denuncia a situação da mulher no
período pós-revolucionário, mas também retrata
De facto, a lei desajustada, ainda reflexo do todo o tipo de conflitos e contradições de uma
anterior regime, concedia direitos ao marido sobre mulher que tenta enfrentar os padrões patriarcais
a mulher e a sociedade impunha restrições morais vigentes, através da perspetiva privilegiada do diá-
à mulher, que ditavam os seus comportamentos rio íntimo de Paula.
e padrões aceitáveis, mas “o homem era sempre
livre”. Esta desigualdade, que Maria Ondina Braga 1.3 Olga Gonçalves: rompendo os fios do tear,
denuncia e que o casal Raul e Paula preconizam, em Sara
demonstra a necessidade de a mulher lutar pelos
Olga Gonçalves (1929-2004) deu à estampa, em
seus direitos e de fazer valer a Revolução de Abril.
1986, Sara, um romance-diário que reflete sobre
Paula projeta-se na sua personagem, Vânia, o Portugal do pós 25 de Abril. Sara1 é uma jovem
cuja vida construiu e reconstruiu, atribuindo-lhe
a coragem necessária para romper com um ca- 1 Sara é também a protagonista de Mandei-lhe uma Boca (1977), onde
surge como uma adolescente de dezassete anos, em rota de colisão com
samento insatisfatório, a atitude que Paula tenta
o poder parental, com questões existenciais e problemas como namoros,
tomar relativamente à sua relação com Raul. drogas e aborto. O romance representa um longo diálogo, aliás, na verdade,
No entanto, a coragem de Vânia e os anseios de monólogo, já que a interlocutora Riva, amiga e confidente, não se manifes-
Paula são raros numa sociedade, onde as mulheres ta, apenas ouve Sara: «Nesta obra, Olga Gonçalves apresenta-nos o longo
discorrer de uma adolescente (Sara) em busca de si própria. A personagem
são coniventes com a sua própria discriminação constrói-se pouco a pouco, através de um discurso directo, aparentemente
e responsáveis pelo seu infortúnio, por motivos espontâneo, dirigido a Riva (uma amiga da mãe) que assume as funções de
diversos: narratária silenciosa, e cujas reacções vamos conhecendo de forma indirec-
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
E esta mulher não diz basta!, sem coragem, Claro que a polémica deu pano para man-
sem asco, sem vontade de se atirar para o gas. Grande discussão, em alta sonoridade,
chão, correr pelo jardim, pelos campos, deixar a contestação de hábitos, reacções e inclina-
para trás a casa, um dia só, somente algumas ções, mas nenhuma se rendeu. E, em fabulosa
horas, as janelas abertas, o portão escancara- trajetória, foram parar a uma passagem dos
do. (ibidem) Evangelhos muito da simpatia da Cândida, as
palavras da Virgem Maria quando da Anun-
A mentalidade de subserviência a uma socie-
ciação do Anjo: ‘Eis aqui a escrava do Senhor.
dade patriarcal também subsiste nas cidades,
Faça-se em mim segundo a Vossa palavra.
embora já se assistam a mudanças graduais. Um
(ibidem: 20)
episódio paradigmático desta confrontação de
realidades distintas passou-se na casa de Sara, No entanto, quando Sara retrata os seus amigos
quando foi necessário contratar uma empregada e conhecidos da sua faixa etária, muitas vezes,
doméstica para ajudar Cândida: estes contrastes também se evidenciam, de uma
É verdade. Sim. Desde 74, assistimos gradual- forma preocupante “por ser mais cómodo” marido
mente a grandes transformações. Um exemplo e mulher não terem que competir um com o ou-
o pessoal doméstico. Tem sido rápida a sua tro, já que “será só um a correr para o escritório”,
extinção. enquanto que a “mulher é só moldá-la aos
electrodomésticos e às receitas de Pantagruel.”
A Idalina arranjou trabalho na fábrica de Saca- (ibidem: 32, 33)
vém, decretando aos berros que não servia a Este é o modelo que Guilherme, seu companhei-
senhores, que essas coisas terminaram. Mala ro, idealiza numa mulher, subserviente e que seja
feita, apareceu metida nuns jeans muito aper- esposa e mãe, ocupando-se da família, enquanto
tados que ninguém lhe tinha visto. A substi- ele, devido a motivos profissionais, está sempre a
tuta dela, a Dores, que já custou a encontrar, viajar. No entanto, Sara, que durante algum tempo
[…] foi sol de pouca dura. Em pouco meses, se acomoda à presença de Guilherme e se deixa 379
passou-se para a caixa de um supermercado, vencer pelo prazer carnal que este lhe proporciona,
o Pão de Açúcar, e falava daquilo como quem toma a decisão de romper com esta relação por
vai sentar-se num cadeiral em Buckingham não se rever no modelo de mulher que este dese-
Palace. ja. Aliás, Sara, que na adolescência fez um aborto
Com a Dores ficou a Cândida em estado de clandestino, reivindica o direito de rejeitar a mater-
choque, e assim continua. (ibidem: 19) nidade, o que ainda hoje gera alguma controvérsia.
Aliás, no romance, encontramos, pelo menos,
A recusa de Idalina e de Dores de servirem dois exemplos, que Sara critica, de mulheres
como domésticas, ofício reminiscente a um regime jovens como ela, que também integravam esta
senhorial, trocando por outros trabalhos, não por geração da liberdade, da libertação do corpo e da
questões remuneratórias, que nem são evocadas sexualidade, mas, que tentaram aprisionar homens
no texto, mas pela libertação da submissão ao se- numa relação, através de uma gravidez, sem se
nhor da casa. Aliás, o episódio entre Cândida rapi- aperceberem que era a si próprias que estavam a
damente resvala para o papel da mulher, não só na tentar agrilhoar (ibidem: 32, 174).
sociedade, mas na família, invocando a autoridade
Assim, a libertação de Sara de uma relação su-
religiosa como fundamentação, que foi sempre a
focante representa a gradual libertação da mulher
principal aliada da ordem patriarcal:
portuguesa, no seu lento percurso e na sua apren-
Não, a Cândida não apoia o novo contexto so- dizagem. No diário, a liberdade reflete-se também
cial, e muito menos a revolução feminista: ‘ A ao nível linguístico, através de vocabulário informal,
minha mãe era um cravo perfeito, quinze filhos do uso de calão, mas também da abordagem dire-
e obediência cega ao meu pai’. ta e frontal de tabus sociais. A própria diluição de
fronteiras entre o real – o suposto diário de Sara – e
Coitada da minha velha Cândida! A Dores ain-
a ficção – a sua conversão em romance, desafia as
da ouviu esta, e desagradou-lhe a compara-
convenções literárias. De facto, este romance faz a
ção. Era daquelas que não precisava de muita
apologia da liberdade a vários níveis, que o próprio
bibliografia: ‘Um cravo perfeito? Ó senhora
formato diarístico consubstancia, pela ausência de
Cândida, cravos só os do 25, que eu até gosto
códigos formalizantes e de estruturas rígidas.
deles, mas a sua mãe viveu longe destes tem-
pos.’ […] Assim, a ficção diarística apresenta inúmeras
potencialidades na representação do universo fe-
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
minino. O diário permite, não só retratar a condição SILVA-BRUMMEL, Fernanda (2002). «O diá-
da mulher, mas como esta a vivencia e a concep- rio de ficção na narrativa de Olga Gonçalves». In
tualiza no seu íntimo. Este livre acesso à voz interior BRAUER-FIGUEIREDO, M. Fátima Viegas, HOPFE
da mulher potencia também a crítica e a denúncia (orgs.). Metamorfoses do eu : O Diário e outros
sociais, a dúvida e a reflexão sobre as convenções Géneros Autobiográficos na Literatura Portuguesa
estabelecidas. O diário, como um tear prolífico, tem do Século XX. Frankfurt: TFM – Verlag Teo Ferrer
urdido telas magníficas de afirmação feminina, por de Mesquita, pp. 187-195.
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Dissertação de Mestrado.
VII 381
NIKETCHE – Subalternidade
e Poder: Falar e Agir
Anabela Gonzaga Penas
Agrupamento de Escolas Josefa de Óbidos. Portugal
(Professora efetiva do Ensino Básico e Secundário no Agrupamento de Escolas Josefa de Óbidos.)
cionais, que conferem uma posição de inferiori- ainda sente o fardo das desigualdades impostas
dade e de conformismo, face a um casamento de pela lei, pela tradição e pela mentalidade: «desdo-
submissão. A mulher vê a sua existência confinada bra-se em fêmea, progenitora, educadora, domés-
ao serviço da casa, dos filhos e dos demais. Ao tica e figura pública, entre outros “papéis” sociais»
debruçarmo-nos sobre a condição feminina, não (Laranjeira 2007; 527). Não é fácil “escrever no
podemos alhear-nos de toda uma linha de pensa- feminino”, todavia, como em África a escrita ainda é
mento, que perpassou ao longo dos séculos e que poder, a escritora africana pode ser “porta-voz” da
permanece hoje. Sintoma de uma herança cultural subalternidade feminina.
e mental, que remonta à génese, a mulher, sujeita à Quando se usa a expressão “escrita feminina”,
supremacia masculina, parece ainda condenada à considera-se o discurso que «representa um uni-
subalternidade. verso ficcional visto, vivido e sentido por uma mu-
Mergulhar no universo feminino de Paulina lher, a revelação de uma vida no feminino» (Rainho
Chiziane, através da leitura da obra Niketche, Uma e Silva 2007; 520). Quando se utiliza o enunciado
história de poligamia, significa imergir num proces- “escrita feminista”, fala-se de um discurso que «re-
so de escrita feminina e averiguar de que forma a sulta de uma espécie de evolução cultural e revela
autora, através dum discurso no feminino, integra um leque de estratégias discursivas (…) passando
a nação; permite escutar a voz de Rami e a voz pelo questionamento e pela denúncia de valores
das mulheres moçambicanas; consente analisar opressores da liberdade de identidade, impostos»
o caminho traçado e percorrido por Rami, para (ibidem; 520-521). Caberá pensarmos se em Nike-
ultrapassar a condição de subalternidade. A escri- tche se aplicam estas duas conceções de escrita.
tora retrata o universo feminino, aborda a questão A obra, escrita por uma moçambicana, o que
do amor, da paixão, da traição e do sofrimento pressupõe a priori a revelação de uma experiência
e espelha o modo como a mulher moçambicana distinta da dos homens e específica de um deter-
ganha voz e atua, para edificar a sua própria iden- minado contexto, tem como narradora a prota-
tidade cultural e / ou nacional e de que modo essa gonista Rami. Esta mulher vive em Maputo (meio
edificação está condicionada pelo poder masculino urbano) e, após duas décadas de casamento cris- 383
dominante. tão, descobre que o marido Tony é informalmente
polígamo. Saturada da sua ausência como esposo
e pai, parte à sua procura e confronta-se com mais
A escrita feminina: tomar a palavra, integrar a
quatro mulheres, vários filhos e muitas interroga-
nação
ções. A partir desse momento, Rami vai realizar um
Numa cultura hegemonicamente masculina, que percurso de conhecimento: questiona a situação
submerge a mulher na sombra, caberá analisar a em que vive e tenta fundamentá-la; toma consciên-
possibilidade de alguém, condenado à subalterni- cia da sua inserção numa sociedade de contradi-
dade, tomar a palavra. Gayatri Spivak, com base ções, entre um passado com tradições ancestrais
no exemplo da colonização da Índia pela Inglaterra, e um presente submetido a ideais coloniais; analisa
reflete sobre a oportunidade do subalterno ter voz e o papel e a condição das distintas mulheres do seu
de ter espaço de expressão natural. Toma a ace- país; questiona e denuncia o sistema que a rodeia;
ção de “subalterno”, não só como o oprimido, mas programa e executa um processo de vingança;
como não participante no circuito do imperialismo realiza uma descoberta da sua identidade. Embora
e defende que os subalternos não podem falar, presa na teia da tradição, Rami simboliza a regene-
porque, se o fizerem, deixam de o ser. Em relação ração: verbaliza o seu inconformismo e a sua rebel-
à mulher, com um exemplo da cultura indiana, o dia; evidencia capacidade de iniciativa e sustenta a
sati, sutee1, sustenta que se encontra duplamente urgência da mudança.
na obscuridade, porque não se autorrepresenta
Se atendermos às conceções de “escrita fe-
fora dos contextos patriarcal e pós-colonial (Spivak
minina” e “escrita feminista” citadas previamente,
2009).
Niketche é um exemplo de discurso no feminino,
A posição de Spivak motivou a nossa reflexão com tendência feminista; contudo, mais relevante
sobre a escrita feminina, visto que a literatura será reconhecer que a obra rompe com o silêncio
criada por mulheres, em sociedades pós-coloniais e dá corpo à voz, com base nesse mesmo silêncio.
(que poderiam ser vistas como “subalternas”), tem Ao refletir sobre os valores sociais, históricos e
encontrado a sua voz, fazendo-se ouvir. Admite-se culturais que aprisionam Rami, a narrativa torna-se
uma evolução considerável, mas a mulher africana o percurso praticável, em que o sujeito feminino
1 sati, sutee – ritual do suicídio da viúva na pira funerária do seu marido, cria a sua própria subjetividade, pois, na luta pela
para salvar o seu próprio corpo em reencarnações futuras.
VII Texto, género e linguagem: as potenciais marcas do feminino
sobrevivência, reinventa a sua própria identidade. pode causar alguma perplexidade a um leitor não
Esta nova abordagem, oferecida em Niketche, moçambicano; porém, a apropiação da língua de
destrói a visão tradicional, que ficciona na ótica colonização, como instrumento de expressão literá-
dos dominadores, sem pesar a dos oprimidos. Esta ria, é uma porta de entendimento e sintoma da sua
obra é como um corpo que ganha vida e que «não perceção de que assim pode ser mais amplamente
se quis mais esconder, mas gritar a sua diferença e escutada. Terceiro, destacamos a convivência dos
seu modo muito próprio de, encenando-se, enfren- costumes da sociedade africana com a moderni-
tar a política do silêncio» (Padilha 2007; 486). dade. Rami, exemplo do processo de aculturação
Consciente de que a escrita, que busca dar ocorrido no território africano, ao descobrir a trai-
visibilidade a problemáticas que afetam a mulher, ção do seu marido e o seu relacionamento amo-
promove uma cultura de equidade e uma cidadania roso com quatro mulheres de diferentes zonas do
participativa, Paulina escreve Niketche, uma narra- país, indaga respostas nos costumes antigos, mas
tiva moçambicana, escrita por uma moçambicana, não se consegue abstrair da sua condição, pelo
sobre a mulher moçambicana, incidindo sobre os que são notórias oscilações e inseguranças nas
paradigmas da sociedade moçambicana machista, suas escolhas: «Ah, meu bom Deus! Este bruxo es-
a repressão e a violência contra a mulher, a situa- tragou o meu momento (…) Fiz de tudo (…) Come-
ção das esposas dentro da poligamia e as solu- cei a frequentar em segredo uma seita milagrosa.
ções possíveis para atenuar os dramas femininos. Fiz-me baptizar no Rio Jordão (…) Fiz banhos de
Num país em que o domínio da escrita é quase farinha de milho. De pipocas. De sangue da galinha
unicamente masculino, Chiziane percorreu um lon- mágica. Soltei pombos brancos…» (ibidem; 66-67)
go caminho até ao reconhecimento. Convirá ouvir a Vive um casamento católico; porém, sujeita-se aos
sua voz, legitimando a criação literária: «Olhei para ritos ancestrais, quando, sabendo que Tony está
mim e para as outras mulheres. Percorri a trajec- vivo, aceita a condição de viuvez e o consequente
tória do nosso ser, procurando o erro da nossa levirato: «Olho para o Levy com olhos gulosos. Ele
existência. Não encontrei nenhum. Reencontrei na será o meu purificador sexual, a decisão já foi to-
384 escrita o preenchimento do vazio e incompreensão mada e ele acatou-a com prazer. Dentro de pouco
que se erguia à minha volta. A condição social da tempo estarei nos seus braços, na cerimónia do
mulher inspirou-me e tornou-se meu tema. Colo- Kutchinga». (ibidem; 220) Quatro, constatamos a
quei no papel as aspirações da mulher no campo criação de um espaço ficcional que deixa de ser
afectivo para que o mundo as veja, conheça e re- um retrato para ser uma reflexão. Há uma escolha
flicta sobre elas. Se as mulheres não gritam quan- simbólica das protagonistas, que abandonam o
do algo lhe dá amargura da forma como pensam e perfil das mulheres moçambicanas, com uma vida
sentem, ninguém o fará da forma como elas dese- apagada, e que dão lugar às que não deixam de
jam» (Rainho e Silva 2007; 519) Infere-se que, como estar ligadas à pátria e às tradições, mas que têm
mulher, sente, questiona e fala sobre mulheres. força para exteriorizar os seus sentimentos e para
Todo o ser humano é fruto do meio cultural em que superar a sua condição de subalternidade, espe-
foi sociabilizado e Paulina não é exceção: conviveu rando ser encaradas pelos homens com um “novo
com os valores tradicionais moçambicanos e os olhar”. Rami e as suas rivais, cada uma na sua
oriundos da tradição europeia; fá-los conviver em especificidade, lutam quotidianamente pela sua so-
Niketche; harmoniza tradição com modernidade. brevivência: «Atravessaremos o mar com a nau dos
Primeiro, salientamos a convivência da tradição nossos olhos porque saberemos navegar até ao
oral no texto literário. Não assumindo a sua condi- além-mar e levaremos a mensagem de solidarieda-
ção de romancista, mas afirmando-se contadora de e fraternidade às mulheres dos quatro cantos do
de estórias, a escritora reclama as suas raízes na mundo» (ibidem; 292).
tradição oral, ao incluir no discurso pequenas histó- Com base nos paradigmas moçambicano e
rias de tonalidade oral, apesar de Niketche apre- europeu assimilados, Chiziane apela à mudança
sentar as características de um romance, segundo consciente. Molda figuras femininas, que, pelo
o cânone ocidental. Segundo, realcemos o convívio poder da voz e da ação, se soltam das amarras
entre a língua portuguesa e os elementos linguís- do passado e do presente, criam a sua identidade
ticos da cultura autóctone. A escolha de um vocá- e gritam a sua independência: redefinem a vida,
bulo bantu - Niketche2 - como título do romance reescrevem os seus destinos e o da nação.
2 Originária da Zambézia e de Nampula (região norte de Moçambique)
niketche é uma dança, que constitui uma espécie de expressão autêntica
da feminilidade moçambicana, numa parte do país onde o mundo familiar é da região sul, dominada pelo patriarcalismo, espaço de origem da protagonis-
essencialmente matriarcal, estabelecendo-se um contraponto com a tradição ta (Chiziane 2002; 160-161).
Texto, género e linguagem: as potenciais marcas do feminino VII
A voz que dá voz: uma por todas Tony, homem de estatuto social elevado, pouco
Em África, os escritores de língua portuguesa, apto para a vida conjugal e social. Por conseguinte,
impedidos de falar e atraídos pela luta de liber- pela voz de Rami, são atacadas diversas ques-
tação, acreditavam que, após a independência, tões masculinas, discutidas ideologias machistas
poderiam quebrar o silêncio; porém, a voz da e desaprovadas posturas viris, todas agenciadas
mulher criadora persistiu muda, porque votada à por Tony, mas generalizadas aos machos do sul
inferioridade. Quase duas décadas após a inde- do país: «Tende piedade de todos os homens que
pendência de Moçambique, Chiziane publicou o cometeram os crimes mais hediondos em nome
seu primeiro livro e tornou-se numa das vozes que da tradição e da cultura» (ibidem; 202). Ciente da
desvendam a força da mulher moçambicana para poligamia informal do marido e da sua condição
vencer resistências. Em Niketche, Rami é a voz: de subalterna, tal como as suas rivais, afirma a sua
eleita protagonista e narradora das suas estórias, crença de alterar a situação: «Eu não desisto desta
é uma subalterna, inserida na elite intelectual, que luta» (ibidem; 71). Constatamos que, para além
se torna agente denunciador. O seu discurso está de uma atitude subversiva, que passa por querer
construído de modo a que se aproprie da voz, dizer, dar a pensar que não diz, mas dizer, Rami
questione, denuncie, reflita, construa a sua identi- estabelece diálogos com o seu espelho, as rivais,
dade e induza a mulher moçambicana a mudar. o marido, a mãe e a tia, através dos quais vai ter
O romance, pelas suas especificidades, permite oportunidade de mergulhar na sua origem feminina
uma análise desmistificada da condição de Rami e de descobrir-se como mulher.
e de todas as que vivem como ela. Logo no início, Se, no início, convivemos com uma Rami cuja
incomodada pela ausência do marido, confessa batalha era calar as angústias e cuja existência
o seu sofrimento: «Entro num delírio silencioso, era nula [«Quero libertar a raiva de todos os anos
profundo. Rajadas de ansiedade varrem-me os de silêncio (…) hoje quero existir» (ibidem; 20)], ao
nervos como lâminas de vento (…) Sou uma mulher longo do texto, aferimos que vai obtendo poder
de bem (…) Uma revolta interior envenena todos os pela voz, com que açoita Tony [«A minha linguagem
caminhos. Sinto vertigens. Muito fel na boca. Náu- é mais dura que uma rajada de granizo. Chicoteia. 385
seas. Revolta. Impotência e desespero» (ibidem; Eu dizia tudo sem rodeios» (ibidem; 228)], chegan-
12). Paralelamente ao relato da sua saga, comen- do a roubar-lha [«Ele não fala. Murmura e a sua voz
ta as realidades femininas que lhe são próximas: se escuta doce e melódica como o assobio dos
«Olho para todas elas. Mulheres cansadas, usadas. pinhais» (ibidem; 236)] e a destruí-lo com uma frase
Mulheres belas, mulheres feias. Mulheres novas, [«- O filho é do Levy!» (ibidem; 336)]. Ao invés do
mulheres velhas. Mulheres vencidas (…) Vivas por que defende Spivak, que invalida a subalternidade,
fora e mortas por dentro, eternas habitantes das quando se tem voz, apesar da máscara ficcional,
trevas» (ibidem; 14). De igual modo, conta expe- Rami ganha-a e tenta reconfigurar a cidadania
riências alheias, opina sobre elas e infere. Lembre- moçambicana.
mos uma história contada pela mãe, a propósito Com a independência de Moçambique (1975),
da morte da tia de Rami, devido a uma moela de iniciou-se a descolonização, que não implicou um
galinha: «A história tem sobre mim um efeito tera- corte total com a presença do colonizador, mas
pêutico, a minha dor torna-se insignificante (…) Ai que originou questões tão graves quanto o período
mãe, obrigada por me contares esta história! Agora colonial, porque, primeiro, menosprezou a cultura
consigo ver que não sou a única que sofre e que autóctone e, depois, negou os valores apreendidos
no mundo há problemas muito mais graves que o como sendo inteiramente seus. Niketche surge
meu (…) Mães, mulheres. Invisíveis, mas presen- neste contexto. Chiziane vai problematizar os anos
tes (…) Mulheres de ontem, de hoje e de amanhã, subsequentes ao período pós-independência, sem
cantando a mesma sinfonia, sem esperança de esquecer o seu objetivo de «representar lugares
mudanças» (ibidem; 103). Rami usa a palavra para esconsos por onde caminha a condição subal-
vivificar situações, sentimentos e intenções; logo, terna da mulher» (Mata 2007; 437). Analisemos
o discurso é intenso, comovente e apela à reflexão as reconfigurações sofridas pelas mulheres e a
do leitor, sobretudo pelo tom dramático, com tona- forma como as tradições locais sobreviveram ao
lidade oralizante. novo modelo social. Numa sociedade aculturada,
Em demanda de respostas para questões que a mulher necessita de sofrer um novo processo de
envolvem a mulher moçambicana, seria difícil não autorreconhecimento, para encontrar o seu espaço
considerar o homem. Em Niketche, a figura mas- social, visto que está estigmatizada pelo encontro
culina que se contrapõe a Rami é o seu marido com a outra cultura e, ainda mais grave, pela perda
VII Texto, género e linguagem: as potenciais marcas do feminino
do modelo da tradição ancestral que aprendeu a 171). Porém, independentemente das suas origens,
seguir. todas elas, de algum modo, acabam por ser vítimas
Em Niketche, a voz das mulheres moçambica- dos sistemas do passado e do presente, que as
nas vai ouvir-se à medida que o trajeto de Rami coíbem de agir.
vai sendo traçado, facultando uma reflexão sobre Paulina, através de Rami, dá voz às mulheres
os sentimentos partilhados por uma comunidade. moçambicanas vítimas da crueza da vida, explo-
Rami, entre a tradição e os sistemas impostos, radas sexualmente, da diversidade de mundos e
personifica todas as mulheres aculturadas que culturas e da poligamia. Propicia uma análise sobre
perdem o seu espaço e a sua identidade: «Preci- os traumas da colonização3, mas em especial incita
so de um espaço para repousar o meu ser (…) Na a refletir sobre a condição da mulher de Moçam-
terra do meu marido sou estrangeira. Na terra dos bique e não só [«Há milhões de milhões em todo o
meus pais sou passageira (…) Não sou nada. Não mundo» (ibidem; 246)], a qual precisa ter espaço de
existo em parte nenhuma» (Chiziane 2002; 92). O atuação e direitos reconhecidos, ou seja, descobrir
seu casamento seguiu o padrão europeu (mono- o seu espaço no seio de uma sociedade de pres-
gamia), mas o seu marido age em consonância supostos patriarcas.
com o modelo ancestral: «Poligamia é o destino
de tantas mulheres neste mundo desde os tempos
sem memória (…) Praticam uma poligamia tipo O poder da palavra: discurso e ação
ilegal» (ibidem; 94). Rami procura justificação para Num país como Moçambique, em que a taxa
esta realidade, que não é só sua, para perceber o de analfabetismo é ainda muito elevada, incidin-
papel da mulher «na Moçambique urbana e con- do, a nível social, no sexo feminino, ter o poder da
temporânea» (Dutra 2007; 312). Durante o percur- palavra é privilégio de uma minoria, sobretudo se
so de autognose, redescobre valores ancestrais for mulher. Rami é mulher, tem estatuto social, é
aliados à poligamia, que legitimam as contradições instruída e cosmopolita, mas subalterna. Chizia-
sociais reais: «Preparou a moela cuidadosamente ne não escolhe arbitrariamente a sua narradora-
386 e guardou numa tigela. Veio o gato e comeu (…) -protagonista: através da voz de Rami, revela o seu
O homem sentiu-se desrespeitado e espancou-a posicionamento e alerta para a condição feminina
selvaticamente» (Chiziane 2002; 102); «Eram famí- moçambicana, pelo que, face à sua situação, Rami
lias verdadeiras, onde havia democracia social (…) questiona-se em frente ao espelho, o seu interlocu-
Tínhamos o nosso órgão (…) onde discutíamos a tor.
divisão do trabalho, decidíamos quem iria cozinhar Ao longo da diegese, aparece verbalizada a obe-
(…) Participávamos na feitura da escala matrimonial diência de Rami, o que não é casual: existe inter-
(…) E ele cumpria à risca» (ibidem; 73); «Diz que a rogação e busca de mudança, mas a condição de
grandeza de um homem se afirma pelo número de subalternidade não desaparece. A submissão e a
filhos que tem. Que a poligamia é a natureza do anulação são assumidas como dado adquirido, sin-
homem (…) Que um homem que se preze tem que toma do relacionamento com Tony, porque abdica
ter pelo menos três mulheres» (ibidem; 115). de si própria, para o satisfazer: «Obedecer, sempre
Ao conhecer as suas rivais, Rami vai engrande- obedeci. As suas vontades sempre fiz. Dele sempre
cer o conhecimento do seu país e reconhecer a cuidei. Até as suas loucuras suportei (…) Sacrifiquei
heterogeneidade de culturas que o caracteriza. De os meus sonhos pelos sonhos dele, a minha vida»
distintas regiões, afluíram à capital e foram con- (ibidem; 16). A servidão adquire uma feição social:
quistadas por Tony, o “pentágono”. Pela voz desta «culpam as mulheres de todos os infortúnios da
metáfora nacional, são desvendados as histórias de natureza. Quando não chove (…) Quando há cheias
vida, os segredos, as formas de viver e de conviver. (…) Quando há pragas e doenças, a culpa é delas
Através delas, Rami revela a grande disparidade (…)» (ibidem; 38). A submissão alarga-se à família,
cultural entre norte e sul, sobre questões como a que a sujeita ao levirato, em nome dos costumes
relação homem / mulher, o amor e a felicidade, a li- dos antepassados: «Invocaram a tradição e a reli-
berdade sexual, os ritos de iniciação, a morte. Rami gião e mandaram-me calar a boca. (…) Fizeram-me
constata que no norte, onde impera o sistema ma- isto porque sou viúva» (ibidem; 215).
triarcal, as mulheres são iniciadas na arte do prazer Apesar da subalternidade assumida, vivendo o
sexual, aceitam o concubinato, encaram o homem dilema do casamento monogâmico com um ma-
como “pão”. Por oposição, «No sul, as mulheres rido polígamo, Rami inicia um processo de ques-
são exiladas no seu próprio mundo, condenadas a
morrer sem saber o que é o amor e vida» (ibidem; 3 Atente-se na mulher da Zambézia, mãe de cinco filhos, marcada pela
história (Ibidem, p. 277).
Texto, género e linguagem: as potenciais marcas do feminino VII
tionação, no sentido de entender as razões para a Amar uma vez na vida? Tretas. Só as mulheres,
poligamia e o modo como ela a afeta. Essa atua- eternas palermas, engolem esta pastilha. Os ho-
ção, operada frente ao espelho, aufere um cunho mens amam todos os dias (…) Todos os homens
pessoal, que se alarga ao social. Do ponto de vista são polígamos (…) Eu não desisto desta luta (…)
pessoal, Rami faz daquele objeto um confidente, Hei-de apanhá-lo nem que esse seja o último acto»
que interroga sobre a sua condição de mulher, (Chiziane 2002; 71). Para acionar o novo plano,
sobre a beleza, qual madrasta da Branca de Neve Rami procede a uma redescoberta do sistema po-
e sobre as aulas com a conselheira de amor, para ligâmico e de tudo o que implica por parte do ho-
tentar segurar Tony. Ao analisarmos os diálogos mem e das respetivas mulheres e une as esposas
com o espelho, percebemos que ele é a “voz” do de Tony. Essa união permite-lhe o convívio, a par-
inconsciente e que simboliza o autorreconhecimen- tilha das angústias e a descoberta de qualidades
to de Rami, mulher aculturada, que incorpora as que ignorava ter, como a coragem, a força, o poder
culturas tradicional e ocidental. Quanto à interroga- e a capacidade de amar e amar-se. No fundo, apa-
ção social, Rami inquire a sociedade moçambicana nhadas no abismo de uma relação poligâmica, feita
e os estatutos que certificam o sistema patriarcal; à medida do polígamo, as mulheres obrigam-no a
denuncia o sistema colonial e a Igreja, por des- respeitar a instituição nos seus direitos e deveres:
truírem a ancestralidade; indaga a aceitação da «É preciso inverter a ordem das coisas (…) Somos
poligamia como garante de um estatuto. Olhando cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma mão
para o exemplo de submissão de Rami e para a (…) Não estaremos tão desprotegidas e poderemos
sua capacidade de questionar-se e de questio- segurar o leme da vida e traçar o destino» (ibidem;
nar a sociedade moçambicana do período pós- 107). Essa inversão traduz-se num conjunto de
-independência, Chiziane «actualiza um discurso ações surpreendentes e devastadoras para Tony:
que inclui o questionamento e a denúncia, dando a apresentação das rivais e dos filhos à família de
voz e criando espaços de reflexão ao sujeito que Tony, no seu aniversário, perante os convidados
é “silenciado”, tendo como intuito apelar à mulher e consequente reconhecimento; a exigência e a
moçambicana para uma mudança consciencializa- concretização dos lobolos; o incentivo, o apoio 387
da» (Mata 2007; 437). financeiro, o incremento, o sucesso dos negócios
Chiziane, empenhada nas problemáticas pró- das mulheres e a sua independência económica; a
prias das relações entre homens e mulheres, pois exigência e a incapacidade dos deveres conjugais;
perceciona a subalternidade da mulher moçambi- a realização dos parlamentos conjugais, dirigidos
cana, poderia cingir-se a uma análise das condutas por Rami, para discutir a escala conjugal, regular
masculina e feminina; todavia, o romance apresen- o serviço ao marido, escolher novas mulheres; a
ta-se como «uma diatribe aberta e descomplexada, realização de uma orgia para pôr Tony à prova; a
mas acutilante, que se transforma numa espécie contestação do divórcio por Rami; a permissão da
de farra hedonista, burlesca e simbólica sobre as concretização do levirato, apesar da viuvez irreal; o
causas profundas do mal-estar feminino» (Laran- casamento monogâmico de Lu com Vítor; o anún-
jeira 2007; 532). Em rigor, Rami, não só conta a cio do casamento de Mauá; a notícia da existência
sua trágica história, como aperfeiçoa e subverte de um marido português para Ju; a gravidez de
os saberes ancestrais, premedita uma vingança Rami por Levi. Todos estes factos conspiratórios
astuciosa e direciona as ações para envolver Tony levaram à ruína de Tony e ao engrandecimento das
numa “teia nacional”, que o derruba do trono. mulheres.
Convicta de que existe para servir Tony e ser O Tony prepotente caiu na “teia” da poligamia,
maltratada e traída, Rami desabafa a sua fúria e, que ele próprio criou, e terminou destruído pelo
como esposa legítima, atua, a partir dos conselhos envelhecimento e pela perda da virilidade. Ao invés,
femininos, para segurar o marido. Esta estratégia Rami, a empreendedora de toda a trajetória, de
consiste em conhecer as rivais e tentar derrubá-las; mulher traída e abandonada passa a rainha de
ter aulas com uma conselheira de amor; recorrer à uma sociedade poligâmica, a líder das esposas;
magia, à feitiçaria e à religião; porém, toma cons- tira o poder ao marido, derruba-o do trono e toma
ciência de que as suas adversárias também sofrem a coroa de rainha: «Tu és a mulher sobre todas
e de que nada valeu o plano. Impotente para pren- as mulheres do universo» (ibidem; 288). Ao derru-
der Tony, Rami esboça uma alternativa, que passa bar Tony, símbolo da ocidentalização do homem
por desafiar toda a “teia” criada por ele e apanhá-lo moçambicano, a obra de Paulina chama a atenção
nela: «Acabei de aprender a lição da vida. Histó- para toda essa problemática e mostra como é es-
ria de um amor só, um amor imortal? Balelas! (…) sencial a mulher aprender, falar e agir, para conci-
liar a tradição com a modernidade, pois só dessa
VII Texto, género e linguagem: as potenciais marcas do feminino
Referências Bibliográficas
CHIZIANE, Paulina (2002), Niketche, uma história
de poligamia, Lisboa, Editorial Caminho, 4.ª edição,
pp. 334.
DUTRA, Robson (2007), «Niketche e os vários
passos de uma dança», in Inocência Mata e Laura
Padilha (org.), A mulher em África – Vozes de uma
margem sempre presente, s/l, Edições Colibri, 309
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Resumo: O delito será tratado, neste artigo, não somente no seu sentido
para tratar
jurídico, mas também, num sentido mais amplo, metafórico, tendo em vis-
ta a abordagem de sua incidência na literatura bíblica e na ficção. Estará formatação
no horizonte desta análise, a especificidade da relação entre o crime e o
feminino no livro de Judite, da Bíblia hebraica, e no conto “Os langores de
Holofernes”, de Deana Barroqueiro. Essa especificidade – a do assassina-
to cometido por mulheres – se traduz a partir, ao que parece, do postulado
de que as mulheres que matam o fazem para exercer a justiça, ou seja,
acima de tudo, a assassina é, nesses textos, aquela que mata para vingar uma
violência, um outro crime, na maioria das vezes, que tem um agente masculino
como autor. A capacidade da mulher de revidar faz, assim, migrar sua prover-
bial condição de vítima para a de agente.
amor e aceita unir-se a seu marido à maneira dos Judite, nunca teria existido; Nabucodonosor jamais
animais. Ele prossegue nessa lista de acusações governou a Assíria e viveu por volta de 600 a. C.
contra as mulheres, acrescentando, também, os quando Israel, enquanto nação, não existia. Para
epítetos de adivinhas ímpias e lançadoras de mau- Levine, o livro foi escrito entre 200 a 100 a.C. Nesse
-olhado que se servem de malefícios, de poções e período, os judeus foram proibidos de estudar a
de encantamentos para provocar, principalmente, a Torá, de praticar ritos e rituais, como a circuncisão,
esterilidade e a impotência. por exemplo, além de outros usos e costumes, por
Na contemporaneidade, e na ficção, alguns cri- ordem do governo grego na Palestina.
mes de mulheres, no entanto, não seriam puníveis Em 167 a. C., os judeus se revoltaram e teve
porque são feitos em nome do Estado, da nação, início a Guerra dos Macabeus contra o exército
da pátria. Para além da “garra policial”, então, grego. Esse é, para Levine, o pano de fundo da his-
alguma justiça é aplicada.” A mulher que mata em tória de Judite. Para ela, os leitores da Torá sabiam
nome da pátria é, na ficção, perdoada e se torna de todos os detalhes que contestam a veracidade
uma espécie de heroína, assemelhando-se, e por- do relato e isso não era importante. A questão, por-
que não dizer, elevando-se, desse modo, à condi- tanto, de inclusão desse livro na tradição judaica
ção do homem. seria que Judite simboliza Israel que vence o inimi-
go com astúcia, não com força. Tal sabedoria não
Para Ludmer, é incomum nos textos bíblicos, como é o caso do
episódio da morte do gigante Golias pelo franzino
As que matam não recebem justiça por razões
Davi, por exemplo.
médicas, ou porque nem sequer se suspeita delas
porque são mães ou virgens, ou porque diante da O enredo, como todos sabem, começa com
justiça fazem uma farsa da verdade. Ou porque a vingança de Holofernes, general do imperador
usam as ervas da exaltação e a morte, ou porque assírio, Nabucodonosor. Este havia enviado uma
são representantes de Deus e do pai, ou porque mensagem à Pérsia, Cilícia, Damasco, Líbano e a
são a alegoria da justiça. De todas as justiças: a tantos outros reinos até aos que habitam além do
390
privada, a sexual, a religiosa e a do pai, e também a Jordão até Jerusalém, convocando-os a lutar com
justiça social, a econômica e a política. ele contra Arfaxad, rei dos medos, em Ectabana.
Porém, todos menosprezaram a mensagem do
Assim, uma das formas de se matar, nessa es-
imperador e não se aliaram a ele. Apesar disso,
pécie de alegoria da justiça, é decapitar o inimigo.
Nabucodonosor é vitorioso e convoca Holofernes,
Tal ato pode ser visto como uma vingança e, simul-
general de seu exército, seu imediato, ordenando-
taneamente, uma aplicação da justiça. Na Bíblia,
-lhe que varresse a terra para encher os abismos
Judite corta a cabeça de Holofernes, que oprimia
com os seus corpos feridos e os rios inundar com
o povo israelita e Davi a de Golias, que afrontava
os seus cadáveres. Deixando, pois, Nínive, como
o exército de Israel. Salomé ordena a decapitação
gafanhotos, invadem, saqueiam, incendeiam, pas-
de João Batista que, enquanto profeta, aponta os
sam a fio de espada.
erros da família real que comete crimes, delitos e
transgressões sem ter quem lhes oponha. Os israelitas, que habitam a Judeia, ouviram
o que Holofernes fizera ne ficaram aterrorizados.
Holofernes convoca o seu exército e a todo o
Judite seu povo, para avançar contra Betúlia, ocupar as
A presença do livro de Judite no conjunto de margens da montanha e fazer guerra contra Israel.
livros que compõem a Bíblia não é unanimidade. Então, o ânimo dos israelitas se abateu, porque os
Presente na Bíblia católica, mas ausente da hebrai- inimigos cercaram a cidade e não havia como fugir:
ca e da protestante, a história da bela viúva que, Esgotaram para os habitantes de Betúlia todas
segunda a narrativa, se mantém casta após a mor- as vasilhas de água, e as cisternas se esvaziaram.
te do marido, hoje, pode ser lida como a exaltação Não tinham água para matar a sede um só dia, pois
da virgindade, da pureza sexual, da viuvez casta, a água era racionada. As crianças desmaiavam, as
mas, durante séculos, a história foi fonte de inspi- mulheres e os adolescentes desfaleciam de sede.
ração, presente na tradição, à resistência contra os Caíam nas ruas e nas saídas das portas da cidade,
inimigos do povo de Israel. e não havia mais força neles.
Para a teóloga Amy-Jill Levine, “não há dúvida Judite, cujo marido, Manassés havia morrido, há
de que Judite é uma personagem fictícia”. Essa três anos e quatro meses, na colheita da cevada
tese é baseada no fato de que o relato “erra” o ouve que os israelitas estão a ponto de se entre-
tempo e o local da história. Betúlia, a cidade de gar. Diz o relato bíblico que ela era muito bela e de
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
aspecto encantador. Seu marido deixou-lhe ouro, relato bíblico acrescenta que ela calçou sandálias,
prata, servos, servas, rebanhos e campos e ela colocou colares, braceletes, anéis, brincos, toas
administrava tudo com segurança. Além disso, ela as joias, embelezando-se a fim de seduzir, não só
era temente a Deus. Holofernes, mas todos os homens que encontras-
Mandou Judite chamar os anciões da cidade e se no seu caminho. Judite, com sua extraordinária
repreendeu-os dizendo: beleza, se dirige, com sua serva, à tenda de Ho-
A morte de nossos irmãos, a deportação do lofernes que cerca, com seu exército, a cidade de
país, a devastação da nossa herança recairão Betúlia.
sobre nossas cabeças não nações onde formos Os homens de Holofernes se admiraram de
escravos, e seremos objeto de escândalo e de tamanha beleza e se perguntavam “Quem despre-
escárnio diante dos nossos dominadores, porque zaria um povo que tem mulheres como esta? Não
a nossa servidão não será conduzida com benevo- é bom ficar um só homem deles. Os que ficassem
lência, mas o senhor nosso Deus a converterá em poderiam seduzir toda a terra”.
ignomínia. Admirados, eles a conduzem à presença de Ho-
Como é possível perceber, a cidade de Betúlia lofernes que repousava em seu leito, sob um mos-
torna-se, metonimicamente, Israel. Nessa fala de quiteiro de púrpura, bordado a ouro com esmeral-
Judite evidencia a sua preocupação nacional. O das e pedras preciosas. O soldado, vitorioso, não
sentido tribal ou familiar, muitas vezes evocado na está mais em campo, mas retirado, gozando das
Bíblia, assume proporções de país, de nação. Mor- regalias de sua posição e, portanto, desarmado.
te, deportação, devastação e servidão são preocu- Sua espada, o leitor saberá depois, jaz pendurada
pações dessa mulher que administra bem os seus em um dos balaústres de sua cama.
negócios, diferentemente dos líderes. Por isso, ela O coração de Holofernes é arrebatado por
os chama, exorta-os e avisa: Judite. Possuído de um intenso desejo, o general
Farei algo cuja lembrança se transmitirá aos oferece um banquete e espreita um momento para
filhos de nossa raça, de geração em geração. Esta seduzi-la. Previdente, Judite, ao contrário do gene- 391
noite ficareis à porta da cidade. ral, havia preparado sua própria comida e levado
Os líderes, evidentemente, concordaram com em um alforje, mas, sem despertar suspeitas, res-
tudo o que Judite propõe. Esta se prostra com o ponde: “Beberei, sim, senhor, porque nunca, desde
rosto por terra, põe cinza sobre a cabeça, cobre-se o dia em que nasci, apreciei tanto a vida como
com pano de saco e em alta voz clama ao Senhor. hoje”. A ambiguidade de sua fala passa desaperce-
Sua oração é uma espécie de reivindicação em que bido ao general. O relato bíblico afirma que, toman-
as antigas interferências de Deus no destino do do o que a serva lhe havia preparado, ela bebe e
povo judeu é lembrado: come diante dele. Fascinado, Holofernes bebeu
tanto vinho “como nunca bebera antes em nenhum
Senhor, Deus de meu pai Simeão, em cuja mão
dia, desde que nascera”. Note-se a duplicação da
puseste uma espada para vingança contra os
“apreciação” de Judite com a “embriaguez” de
estrangeiros que desataram o cinto de uma virgem,
Holofernes. Ela antecipa sua vitória, ele caminha,
para sua vergonha, que desnudaram sua coxa para
bêbado, para a armadilha.
sua confusão, e profanaram seu seio, para sua
desonra; porque disseste: ‘Não será assim’; e eles Deixada sozinha na tenda com Holofernes,
o fizeram. Judite contempla o seu inimigo caído em seu leito,
afogado em vinho. De novo ela invoca o “Deus de
Por isso, acrescenta, “dá a minha mão de viúva
toda força”, avança para o balaústre, desembainha
o ímpeto que pensei”, “quebra sua arrogância pela
o sabre do general. Em seguida, aproxima-se do
mão de uma mulher” e “dá-me palavra e astúcia
leito, pega a cabeleira de Holofernes e golpeia duas
para ferir e matar”. Desse modo, o discurso de
vezes o seu pescoço, separando sua cabeça do
Judite é permeado do desejo de livrar o seu povo,
corpo. Dá a cabeça para sua serva, que a joga no
mediante a palavra e a astúcia, ou seja, mediante
alforje que veio com a comida de Judite. As duas
o discurso e a inteligência que pode, também, se
saem juntas, como era de costume, atravessam o
referir a outras armas como a sedução.
acampamento e chegam até Betúlia sem ninguém
Segue-se a preparação para a realização do as interpelar.
seu intento. Não antes sem retirar o pano de saco
O povo exaltado, inclina-se e adora a Deus, di-
que vestia, despojar-se do manto de viuvez, lavar-
zendo, a uma só voz: “Bendito sejas, ó nosso Deus,
-se, ungir-se com excelente perfume, pentear os
que hoje aniquilaste os inimigos de teu povo! De
cabelos e colocar sobre a cabeça um rico turbante,
forma lírica, o agradecimento a Judite afirma que
bem como se vestir com um vestido de festa. O
I Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo
Deus a conduziu para “cortar a cabeça” dos chefes gor” pode significar tanto uma qualidade do que
dos inimigos, por isso, ela é “bendita”, mais do que é sensual, uma voluptuosidade, quanto qualidade
“todas as mulheres da terra”. Nesse sentido, todos ou estado do que é mórbido. Holofernes é, assim,
os ardis, que poderiam servir para incriminá-la, duas vezes vitimado no conto de Barroqueiro. Ele
passam à categoria de inteligência e astúcia e o as- é punido por sua lascívia e por sua condição de
sassinato de Holofernes, uma questão de Estado, soldado cheio de si que, em vez de estar junto aos
torna-se mérito para Judite. Os soldados inimigos seus comandados, repousa entre almofadas de
fogem ou são mortos pelos judeus que recebem púrpura.
uma injeção de ânimo saem vencedores na luta. Wander Melo Miranda em “A liberdade do pas-
A louvação a honra e a manutenção da pureza tiche” chama a atenção para uma “vocação” ou
(sexual) sugerem que suas “astúcias” sedutoras “tentação” a que sucumbe, com prazer e angús-
não passaram de promessas de sexo que não tia, a ficção contemporânea. Para o crítico, essas
foram cumpridas. Falsas promessas para enganar questões põem em cena a condição de copista do
o arrogante Holofernes que julgava que, tê-la em escritor. Entre duas dimensões, a da leitura e a da
sua tenda significava tê-la em suas mãos. O enredo escrita, o texto se estabelece entre “pais sábios e
demostrou o contrário. As estratégias de sedu- autoritários” e a possibilidade de reinvenção. Para
ção de Judite revelam sua habilidade para não se Miranda,
deixar enganar, para negociar com vantagens; sua O que resta a eles, de novo, senão a pilhagem
esperteza, manha, sagacidade e habilidade de dis- e o pastiche ao infinito de estilos os mais varia-
simular e usar artifícios enganadores. Longe des- dos – eruditos ou populares – para que o silêncio
se contexto de guerra e fé, ou seja, no campo da seja vencido, para que histórias possam ainda ser
religião e da defesa da nação, vale todas as armas contadas?
e armações. A capacidade de Judite de enganar, A “pilhagem” e o “pastiche”, como estratégia de
de dar volteios na imaginação de Holofernes, sem construção literária, podem ser vistos, no conto de
contudo, segundo o relato, ceder às suas investi- Barroqueiro de forma muito explícita. Na sua apre-
392 das, contrasta com a palavra “retamente”, com que sentação à coletânea, a autora afirma
Ozias a saúda. Talvez seja esse o maior paradoxo,
Fiquei prisioneira daqueles textos pelos fios
simular e dissimular.
da memória que retomaram os percursos quase
O epílogo dessa história contém uma lição mo- esquecidos da minha infância e adolescência de
ral, social e religiosa. Após adorar a Deus diante do sólida formação católica, embalada pelos contos
Templo com o povo, Judite volta à Betúlia. Muitos, maravilhosos da Sagrada Escritura, cegamente
assegura o narrador, a pretenderam, mas ela não aceitos por mim até à idade dos treze anos, a que
conheceu homem algum durante todos os dias de se seguiram tempos de duvidar e de descrer.
sua vida, desde a sua viuvez. Aos cento e cinco
Prisioneira, portanto, de textos que podem ser
anos, deu liberdade à sua serva e, antes de morrer,
considerados, segundo a acepção de Miranda, ou
repartiu seus bens entre todos os parentes próxi-
seja, “sábios e autoritários”, que são os textos bí-
mos do marido e de sua família. Por muito tempo,
blicos, além de outros como a História das Antigui-
após sua morte, não houve quem inquietasse os
dades e de relatos arqueológicos, a autora segue
filhos de Israel.
“notas, explicações e comentários minuciosos”
de estudiosos incansáveis para uma interpretação
2.1 Judite de Deana Barroqueiro circunstanciada dos livros sagrados.
Na ficção, a história de Judite é recontada em Ainda na apresentação, Deana Barroqueiro arre-
inúmeras representações. Pinturas, peças, ópe- mata:
ras e literatura desdobram o mito de Judite e sua Senti, então, uma vontade imensa de reescrever
vingança. O conto “Os langores de Holofernes”, algumas dessas histórias, sob um outro ângulo, o
de Deana Barroqueiro, por exemplo, faz parte da de um cronista daquele tempo, um pouco céptico,
coletânea Contos eróticos do Antigo Testamento, sem crenças em Baal, Marduk ou Jahweh, interes-
publicado no Brasil em 2006. Antes de comentar o sado em recriar os espaços geográficos, ambien-
texto, propriamente dito, destaco o título do con- tais, sociais e étnicos, segundo os testemunhos
to que, como se pode observar, aparentemente que chegaram até nós das placas de argila em
desloca para o general assírio o ponto de interes- escrita cuneiforme de Ur e de Nínive ou hieroglífica
se. Judite, no entanto, reina absoluta na narrativa. do Egito, desdivinizando as lendas e procurando
A ambiguidade e o plural do vocábulo “langores” uma explicação mais real e prosaica para os acon-
acentua esse deslocamento. Em português, “lan- tecimentos, de acordo com essa sociedade de
Literatura e autoria feminina: vozes, percursos e modos de ver o mundo I
Trovadorismo, Mulheres
e Dança da Ratoeira:
registros culturais açorianos
na Ilha de Santa Catarina
Sumaya Machado Lima*1
(Brasil)
Em 2010, iniciamos um projeto sócio-cultural na vigor, quando homens desfilam travestidos de mu-
comunidade Caeira, no Saco dos Limões, um bair- lheres e concorrem a prêmios (evento denominado
ro de Florianópolis. O objetivo primordial era apoiar pela comunidade de “desfile das passarinhas”).
a Associação dos Moradores, através da rememo- Mas na faixa etária entre 55 e 80 anos, a maioria é
ração de seu patrimônio imaterial, que vem sendo composta de mulheres, a sua lembrança era das
construído há cerca de quase um século. Entre- festas de quermesses e da dança da ratoeira.
tanto, muito de sua memória estava se perdendo De acordo com depoimentos de moradores,
com o falecimento dos mais antigos moradores. essa dança estava adormecida na comunidade.
Percebemos que as histórias sobre a sua funda- Bem poucos jovens e alguns adultos tinham ouvido
ção, seu desenvolvimento, bem como a atualização falar a respeito, ao passo que os idosos sempre
de seu perfil perpassavam por, pelo menos, duas tinham alguma história para contar a respeito da
manifestações culturais, que o IPHAN (Instituto do ratoeira. A nossa preocupação, como coordenado-
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) denomina ra do projeto, foi incentivar que os idosos do Grupo
de festas religiosas e festas populares. Alegria1 relembrassem essa manifestação cultural,
Ao levantar dados e entrevistar moradores já que sua memória era também advinda da vivên-
sobre o que os fortalecia no sentido de grupo e de cia. Assim pedimos que tocassem a melodia da
pertencimento de sua comunidade, entre aqueles ratoeira, dançassem, cantassem e declamassem
da faixa etária de 25 a 50 anos, era comum que se para que a registrássemos em áudio, em texto, em
lembrassem de sua festa carnavalesca ainda em foto e em teatro2.
* SUMAYA MACHADO LIMA é Professora graduada em Letras pela Univer-
sidade Federal de Juiz de Fora, Minas. Mestre em Estudos Literários pela 1 O Grupo Alegria é uma associação de idosos do Caeira do Saco dos
Pontifícia da Universidade Católica do Rio de Janeiro e Doutora em Teoria Limões, cujos participantes nos concederam várias entrevistas (registramos
Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina. Sua linha de pesquisas aqui o nosso agradecimento).
compreende estudos de gênero, cinema e cultura. Atualmente é gestora e 2 Parte dos resultados dessas ações do projeto, que desejou registrar um
produtora de projetos sócio-culturais. Contato: sumaya_lima@yahoo.com.br pouco da memória desse bairro, pode ser encontrada no livro impresso Retra-
tos, no livro digital Memórias, no sítio www.patrimoniocaeira.com.br
II Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo
Outras representações
do feminino
VIII Outras representações do feminino
400
Outras representações do feminino VIII
401
A epígrafe queirosiana, extraída das Farpas é nos mostra que ela é obrigada a fazer uso de valo-
bem representativa da ideia que o escritor Eça res masculinos1 para ampliar seu campo de ação,
de Queirós possuía sobre a condição da mulher o que se configura como uma “violência suave, in-
portuguesa no século XIX, época em que os papéis sensível, invisível às próprias vítimas, que se exerce
sociais masculinos e femininos estavam fundados essencialmente pelas vias puramente simbólicas
em fronteiras que demarcavam a esfera pública da da comunicação e do conhecimento” (BOURDIEU,
esfera privada. No entanto, convém esclarecer que 2002, p. 6).
ser mulher no século XIX, não significa apenas viver Ao final do século XIX, nada ilustra melhor a
num período de absoluta submissão. Afinal, esse moderna mentalidade que se impõe do que as
século assinala também o nascimento do feminis- revistas e jornais que circulam pela sociedade e
mo. que a caracterizam como um resultado da ação
Mas o que está por trás da desigualdade entre humana mais transparente e mais consciente de
os papéis sociais? Depois de detetar como sendo si. Algumas revistas incentivavam seus leitores a
o maior defeito da doutrina de Hobbes o fato de refletir sobre o mundo circundante em processo
que o autor do Leviatã viu na sensualidade o efeito de modernização. Este é, sem dúvida, o caso da
negativo do pouco uso da razão, Rousseau argu- Revista de Portugal, que rompeu com a tradição ao
mentou que desse ponto de vista ele deixara de ver igualar mulheres — Isabel Leite, Maria Amália Vaz
que o mesmo que é considerado efeito negativo do de Carvalho e Alice Moderno — e homens como
pouco uso da razão também pode ser considerado autores de textos2. Tal facto é relevante por si só e
como a causa positiva que impede o seu abuso talvez explique a preferência de algumas mulheres
(ROUSSEAU, s/d, pp 26,53). Nós acreditamos que pela invisibilidade, como foi o caso de Maria Amália
o mesmo argumento pode ser usado a favor dos Vaz de Carvalho, que lançou mão do pseudónimo
valores femininos, na medida em que se deteta no “Junius” na Revista de Portugal.
inconsciente da sociedade, especialmente na era
da comunicação, uma violência simbólica contra a 1 Nesse sentido assinalamos a crítica de Miranda de Andrade na sua análise
mulher que ultrapassa os limites do seu “pequeno sobre a Revista de Portugal: “ A pena brilhante, culta e … máscula de Isabel
mundo moral”. Referimo-nos ao espaço social da Leite”.(1953, p.47)
mulher, cuja moderna participação nos jornais e 2 No Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro (1851-1932), nomes de
revistas do século XIX, como a Revista de Portugal, mulheres colaboradoras aparecem no índice “Senhoras”, ao passo que os dos
homens em “Autores”
VIII Outras representações do feminino
conselho, foi apontar uma esperança” (idem, p.152). alegria./Tenho todos os motivos menos um de ser
Cabe destacar, nesse texto, que o jornalismo é triste./Mas o cálculo das probabilidades é uma
entendido como uma força de revitalização da vida pilhéria.../Abaixo Amiel!/E nunca lerei o diário de
pública. Maria Bashkirtseff (BANDEIRA, 1955, p. 171).
Ainda no terceiro volume da Revista de Portugal, A última contribuição de Isabel Leite para a Re-
Isabel Leite regressa à crítica literária com o artigo vista de Portugal foi a tradução de dois poemas do
“O Jornal de uma Princesa Russa”, onde analisa e romântico alemão Heine, uma referência nos dois
resume a obra de Maria Bashkirtseff (1858-1884), lados do Atlântico, sendo, a propósito, o autor do
jovem aristocrata russa que publica um longo poema “O Navio Negreiro” (Das Sklavenschiff, de
diário. Isabel Leite enumera no seu texto os des- 1853/54), onde ele retrata a condição dos prisionei-
gostos de Maria; a separação de seus pais; o seu ros de um navio negreiro aportado no Rio de Ja-
desejo de ser rica e conhecida; o fato de não saber neiro. No Brasil, Heine foi lido por autores seminais
o que é o amor; os desafios da pintura; os desafios como Castro Alves, Machado de Assis e Tobias
da doença; por fim, a aproximação da morte em Barreto, o qual se notabilizou por sua admiração
plena juventude. Chama a atenção em sua análise pelo pensamento alemão, cujo estudo ele promo-
que a descrição pormenorizada das característi- veu em profundidade entre literatos e acadêmicos.
cas físicas vem acompanhada de referências ao Em Portugal, Heine exerceu influência considerá-
vestuário e a notas como “a vaidade foi neste caso vel sobre a geração coimbrã. Jaime Batalha Reis,
um ingrediente de bom êxito” (idem, p. 539). Ora, no seu prefácio às Prosas Bárbaras, aponta esta
temos aqui, como sinal dos tempos, uma evidência evidência:
da assimilação de valores masculinos na significa- A maior influência nesse período sobre Eça de
ção da verdade dos factos. Afinal, luxo e vaidade Queirós — a de Heine — foi também consi-
são fatores estruturantes da sociedade de consu- derável sobre alguns dos seus mais ilustres
mo, como observa Gilles Lipovetsky: contemporâneos e amigos: vê-se nas poesias,
O século XIX sistematizou e institucionalizou mais tarde reunidas por Antero de Quental
403
esta preeminência feminina na ordem do sob o nome de Primaveras Românticas. (REIS,
parecer, da moda e do luxo. (…) A partilha das 2010, pp. 22-23)
aparências caras já não obedece unicamente
Resta, ainda, esclarecer uma questão. Afinal,
à divisão de classes, mas também à dos géne-
quem foi a misteriosa Isabel Leite? Pouquíssimas
ros. (…) A era moderna democrática nascente
referências encontramos na entrada do Dicionário
é acompanhada por um despojamento mas-
de Mulheres Célebres, que a classifica como uma
culino dos sinais de aparências dispendiosas
mulher muito culta, que residiu em Lisboa e na
e, simultaneamente, de uma consagração sem
Argentina, acrescentando, como detalhe, uma ob-
igual dos símbolos resplandecentes do femini-
servação sem dúvida assaz importante para nós:
no. ‘Vitrina’ do homem, a mulher, por intermé-
“Usava o cabelo cortado, muito curto, caso raro
dio do vestir, torna-se responsável pela exibi-
naquele tempo. Pôs termo a existência com um
ção pecuniária e estatuto social do homem.
tiro”. (OLIVEIRA,1981,p.687).
(LIPOVETSKY, 2012, pp. 82-83)
Se a nota de Isabel Leite pode ser considerada
um efeito negativo da submissão a valores mas- Amália Vaz de Carvalho
culinos, também é verdade que o mesmo pode Na edição crítica dos textos queirosianos da
ser considerado como causa positiva que inci- Revista de Portugal, indica-se os autores que uti-
tou a leitura de obras femininas como a de Marie lizavam pseudónimos, e o nome de Maria Amália
Bashkirtseff, tanto em Portugal como no Brasil. Vaz de Carvalho está assinalado com um ponto
De facto, encontramos alguns testemunhos dos de interrogação. No entanto, nos dicionários de
dois lados do Atlântico que comprovam que o livro pseudónimos consultados, o nome da escritora
de Bashkirtseff alcançou um grande êxito junto encontra-se sempre acompanhado pelo pseudóni-
ao público. Em Portugal, podemos citar Florbela mo “Junius”. Assim, consideramos que a autoria do
Espanca: “O Diário de Maria Bashkirtseff é qual- texto “Os poetas do norte” é de Maria Amália.
quer coisa de profundamente triste, de tragicamen- Maria Amália Vaz de Carvalho foi uma intelectual
te humano. Só não compreendo naquela grande com grande impacto no final do século XIX, sendo
alma o medo da morte.” (ESPANCA, 1982, p. 43) de assinalar que a sua obra pode ser vista por di-
No Brasil, Manuel Bandeira escreveu: “Uns tomam versos aspetos: ora como alinhada com os inte-
éter, outros cocaína./Eu já tomei tristeza, hoje tomo resses masculinos; ora sendo considerada como
VIII Outras representações do feminino
vasão árabe da Península Ibérica, Jimena, a espo- go, como o homem que não resistiu aos encantos
sa de Cid, a rainha Santa Isabel ou Inês de Castro da pérfida sedutora que desperdiçou a sua honra
em Portugal), mas concentrar-nos-emos mais nas e levou em perigo a Península Ibérica. A Cava no
representações femininas que se põem reduzir a romanceiro português não é abordada com muitos
uma determinada “categoria tipo” (noivas, espo- pormenores, uma vez que este romance é mais
sas, filhas irmãs, santas e finalmente as “donzelas frequente nas suas versões espanholas. No roman-
guerreiras” que nos pareceram to interessantes ceiro popular português o episódio dos amores da
que deram o título a este trabalho. Entre as noivas Cava e do rei D. Rodrigo, que causaram a perdição
e esposas distinguir-se-ão basicamente os protó- da Espanha não parece ser tão importante, sendo
tipos das amadas fiéis que são capazes de ficar a dedicada maior atenção à penitência do rei, que
aguardar chorando pelo regresso do seu amado da passa a sua velhice no recolhimento de uma ermi-
guerra durante vários anos, ou de ir à procura dele da. Como este episódio diz mais respeito à história
pelo mundo sem acreditar na sua morte, ganhando da Espanha, é natural que neste país haja mais
a recompensa merecida no fim do romance e sen- versões do romance popular. Para a interpretação
do tomadas como exemplo da virtude e da fé cristã correcta deste romance e da personagem feminina
e as adulteras e traidoras, que por isso são mortas nele, o leitor deve enquadrar o seu pensamento no
ou difamadas publicamente. imaginário medieval e entender o código da honra
masculina e feminina, o sistema feudal e patriarcal
que valorizava muito o poder do homem e parecia
As mulheres como personagens históricas sempre culpar a mulher. Não se sabe, porém se
vistas pelo prisma do romanceiro ibérico neste romance a culpa pela destruição da Espanha
Mesmo que a época medieval seja visivelmente é efectivamente da Cava e das suas capacidades
marcada pela divisão dos papéis sociais baseada sedutoras ou da fraqueza e incapacidade do rei D.
na divisão dos géneros masculino e feminino, a Rodrigo de dominar os seus impulsos.
mulher no romanceiro desempenhava um papel im- A próxima mulher histórica que será mencio-
portante, tanto na sua criação e transmissão, com nada neste trabalho é Jimena, a esposa de Cid o 409
na qualidade de personagem. A importância que se Campeador, representada como quem se debate
pode dar ao protagonismo da mulher no romancei- entre o amor pelo pai, a vingança de reclama e
ro popular poderia explicar-se pela possível auto- o amor por Cid, que foi o causador da morte do
ria feminina de alguns romances. No romanceiro seu pai. Todas estas características tornam-na
ibérico, no ciclo dos romances históricos aparece uma personagem profunda e complexa, que não
a personagem da bela cava, filha do conde Julião se pode reduzir apenas à categoria de boa filha
e amante do último rei godo D. Rodrigo, vista no ou esposa fiel. Alguns versos caracterizam-na de
imaginário popular espanhol como uma mulher “brava” e “furiosa”, outros vêem nela exemplo da
fatal e sedutora, por cuja beleza o rei se tornou fé e das virtudes cristãs. No romanceiro português
traidor. O romanceiro espanhol nela vê tanto todas não se lhe dedica a atenção que ela merece, sendo
estas imagens como a de uma “mulher sem ventu- o Cid o herói nacional espanhol e a sua esposa
ra”, que é muito desgraçada pela sua beleza e que também faz parte de todo um imaginário ligado a
traz desgraça aos outros. No romanceiro popular ele. Em Portugal, uma espécie de equivalente de
português, a personagem da Cava quase não se Jimena seria a D. Inês de Castro, conhecida pela
vê, sendo dedicada muita atenção mais à penitên- sua história de amor com o rei D. Pedro, que se
cia do rei D. Rodrigo que passa a sua velhice como debatia também entre a lealdade ao seu país e os
ermitão. Dos seguintes versos ver-se-á a imagem sentimentos pelo seu amado e amante. Na tradi-
que o povo tinha dos amores ilícitos entre Cava e ção peninsular tanto os “romances velhos” como
D. Rodrigo: os da tradição oral moderna tratam do tema dos
Si dicen quién de los dos amores de D-Pedro e D. Inês de Castro. Todos eles
La mayor culpa ha tenido abordam a morte de D. Inês, a possibilidade da
Dicen los hombres: la Cava existência dos filhos entre os amantes, a vingança
Y las mujeres: Rodrigo de D. Pedro pela morte da sua amada. o imaginário
ibérico vê nela ao mesmo tempo adúltera e vítima
(Menéndez Pidal,op.cit.44)
e por isso no romanceiro popular da Espanha e de
Aqui está clara a divisão dos públicos com base Portugal a personagem dela ter duas formas de ser
no seu género, sendo as mulheres as que defen- encarada: a muito negativa, como falsa e traido-
dem a Cava, vendo-a como vítima do poder mas- ra, exemplo da transgressora de regras da moral
culino e os homens os que estão a favor de Rodri- pública medieval e a grande apaixonada cujo amor
VIII Outras representações do feminino
não cabe numa sociedade bem hierarquizada e com o qual se enfatiza a impossibilidade de elas vi-
muito cruel com aqueles que se atrevem a agir de verem sem o seu noivo, sendo apresentadas como
forma esperada. constantes no amor, leais, corajosas e mulheres
A última mulher histórica que abordaremos nesta cuja morte heróica merece ser cantada nos poe-
parte da investigação será a rainha Santa Isabel, mas populares.
mais presente no imaginário português, conheci- A categoria das esposas no romanceiro tradi-
da pelo seu milagre das rosas e pela sua grande cional ibérico torna-se muito mais complexa, uma
fé cristã e comportamento virtuoso. O romanceiro vez que se pode dividir em dos subcategorias: as
popular português glorifica-a como exemplo do esposas fiéis e as infiéis. A infidelidade feminina na
altruísmo que mostrava em relação aos pobres, da Idade média era muito mal vista uma mulher que
abnegação e do amor cristão, tal como pela sua não guarda a fidelidade ao marido é sempre vista
grande devoção a Deus e á Igreja católica. como calculada, traidora, adúltera, que deve ser
morta ou castigada no fim. No imaginário espa-
nhol o assunto aprofunda-se ainda mais com a
As mulheres como noivas, esposas e amantes figura do marido enganado, que frequentemente
no romanceiro popular ibérico é visto como fraco e ridículo, e comportamento
Uma vez que na época medieval o estado civil adúltero da sua mulher é quase justificado. O tema
era uma das marcas muito importantes da mu- da mulher malcasada é muito antigo na tradição
lher e do seu papel social, nesta parte do traba- oral da Europa ocidental, já que entre os nobres e
lho abordaremos as mulheres como namoradas, membros da realeza a maior parte dos casamen-
noivas, esposas e amantes vistas pelo prisma do tos eram combinados e baseados nos factores da
romanceiro popular ibérico. Como namoradas elas linhagem ou estatuto social. Nestas situações o
muitas vezes não têm nomes e são apresentadas adultério é quase a única solução que uma mulher
como “belas infantas” que têm os cabelos doirados infeliz tem para a sua posição. A tradição popular
e que os penteiam com um pente de prata fina, espanhola e portuguesa costuma mencionar o
410 embelezando-se para o seu amado, num ambiente período de sete anos da infelicidade matrimonial
de eterna primavera na natureza. Como tais são da mulher após o qual o aparecimento do amante
ideais da beleza e da fidelidade, são objectos de é quase um remédio e a forma de ela se vingar
sonho do seu namorado e então ele sonha um belo do marido que não ama, denunciando a temática
“soñito de alma mia” (Menéndez Pidal,op.cit.62), complexa dos casamentos combinados e reivin-
consistindo esse sonho em abraçar a amada. Tanto dicando o seu direito de amar e ser amada. As
na Espanha como em Portugal elas reduzem-se ao mulheres propositadamente infiéis como no ciclo
estereótipo da dama idealizada. Como noivas são sobre D. Bernardo da França, presente nos dois
conhecidas como fiéis ao seu noivo, mas também países ibéricos são as que abrem as portas do
pela gravidez ilegítima com ele. Desta forma dos castelo ao seu amante sendo descalças e vestidas
amores dos noivos da “hermosa Jimena”, irmã apenas de uma camisola de dormir, mostrando-se
do rei D. Afonso o Casto e do conde de Saldanha assim como pouco cuidadosas com a sua honra e
nasce Bernardo del Carpio, no romanceiro tradicio- desejosas de sentir o prazer do amor carnal quanto
nal espanhol e no romanceiro tradicional português antes, sem ter que despir muita roupa.
os amores clandestinos entre o criado Gerineldo Quando a infiel é a própria rainha, pode acon-
e a sua amada infanta são defendidos a pesar da tecer que a sua filha seja testemunha da desonra
espada que o rei tinha posto na cama entre eles. do bom rei, e é chantageada pela mãe a guardar
Estas histórias de amor têm uma determinada segredo, o que filha honesta, como protótipo
simpatia pelas mulheres que infringiram as regras de uma boa donzela se recusa a fazer e a rainha
da moralidade cristã medieval e das regras do bom merece o seu castigo. Existem também romances
comportamento de damas que delas se exigia. na tradição espanhola ou portuguesa em que o rei
Apesar de não terem preservado a sua virgindade, perdoa a rainha e mata o seu amante. Com esta
elas são corajosas, defendem o seu amor e por atitude mostra-se mais o carácter nobre do rei e a
isso, mesmo que estejam encerradas numa alta bondade da sua filha, do que propriamente qualqr
torre ou ameaçadas de morte, elas não são vistas qualidade de arrependimento da rainha. A morali-
completamente como transgressoras ou pecado- dade medieval nestes casos põe no primeiro plano
ras, dando-se-lhes o direito de recuperarem a sua o respeito da autoridade real e conjugal, a infalibi-
honra casando no fim dos romances com o seu lidade masculina e a sua superioridade sobre uma
amado. Muitas vezes recebendo a má notícia da mulher pouco exemplar. Por vezes a sua infideli-
morte do seu noivo elas também caem mortas,
Outras representações do feminino VIII
As mulheres que fazem o papel de filho varão salienta-se que ela veio virgem e continua a sê-
no romanceiro popular ibérico -lo enquanto “o filho do rei como asno /atrevido
Um outro tipo de filhas conhecidas pela sua ficou”. Na melhor das hipóteses a menina permite
coragem no romanceiro tradicional ibérico são as ao príncipe que a siga e que case com ela, uma vez
“donzelas guerreiras”, que nascem como sétimas que ele foi o único que a reconheceu e que teria o
ou terceiras meninas numa família sem descen- direito à sua “recompensa” merecida.
dentes masculinos. Num perigo de guerra ou numa
situação em que é necessário salvar a honra do Conclusões
pai, velho rei, a filha mais nova decide assumir o Após termos analisado as personagens femini-
papel do filho varão que o rei não tem e de ir e nas no romanceiro tradicional ibérico do ponto de
fazer a guerra. Após ter cortado o cabelo, aperta- vista da sua existência na história, da perspectiva
do o peito e disfarçado todos os demais sinais da do seu estado civil (noivas, esposas, viúvas), do
feminilidade, a donzela consegue enganar todos seu lugar na família (irmãs e filhas) e da sua santi-
durante três ou sete anos, menos o filho do rei da dade, chegou-se à conclusão de que o imaginário
terra em que ela se encontra. O rapaz apaixona-se popular ibérico (o espanhol e o português) não
por ela por causa dos seus olhos, que são o único varia demasiado nas ideias que tem sobre a mulher
sinal que a revela. No romance espanhol sobre Don medieval na sociedade, sendo os mesmos com-
Martín esta paixão descobre-se nos versos: “Los portamentos considerados como vícios e pecados
ojos de don Martín son de mujer, de hombre no” (o adultério. a sedução, a traição) e por outro lado
e no romance português trata-se dos versos: “os como virtudes (honra, fidelidade, religiosidade, cas-
olhos do D. Varão, são de mulher, de homem não”. tidade e coragem) são igualmente valorizadas nos
Nalgumas variantes deste romance menciona-se o dois espaços culturais, sendo as cristãs superiores
nome “Dom Martinho”, que claramente testemunha às mouras. No último caso propagam-se os valores
a origem espanhola do romance. A ideia de uma da Reconquista cristã, pondo-se o cristianismo por
filha assumir as responsabilidades do filho varão cima do islão. As visões da mulher e do feminino
412 está bastante difundida também nos Balcãs, o que no romanceiro popular ibérico correspondem com-
mereceria um outro estudo mais pormenorizado. pletamente às visões dos mesmas assuntos na Eu-
A menina que assumiu o papel do rapaz também ropa medieval toda, tendo porém um ligeiro colori-
é reflexo dos antigos mitos clássicos e orientais, do local, que faz com que o romanceiro espanhol e
com um ligeiro toque local na história. Embora em português sejam são atuais ainda hoje em dia.
nada se distinga da coragem e força física mas-
culinas (no uso das armas, do cavalo, na destreza
com a qual faz a guerra, o príncipe apaixonado Referências bibliográficas:
não consegue ter sossego por causa da beleza CORREIA; João David Punto (1986) O Essencial
feminina dos olhos da donzela guerreira. A sua sobre o Romanceiro Tradicional, Imprensa Nacional
conselheira na tarefa de descobrir o sexo natural - Casa da Moeda, Lisboa
do “Dom Varão” é a mãe que sabe quais seriam os ________________(2003) Romanceiro Ora da
comportamentos típicos de uma mulher em várias Tradição Portuguesa,, Edições Duarte Reis, Lisboa
situações (colher flores, comer couves, senta-se HOUTS, Elisabet van (ed.) (ed.) (2001) Medieval
na cadeira baixa, as formas de partir o pão, não Memories, Men, Women and the Past, Longman,
se despir facilmente na presença de um homem London
desconhecido). A menina guerreira faz exactamen- LABARGE, Margaret Wade (1986) La mujer en la
te tudo o que se esperaria de um homem, mas os Edad Media, Nerea, Madrid
seus olhos continuam a delatá-la. No momento NOGUEIRA, Carlos (2002), O Essencial sobre o
de ter de se despir , ela como uma boa e honra- Cancioneiro Narrativo Tradicional, Imprensa Nacio-
da virgem, inventa que tem de ir para o seu reino nal - Casa da Moeda, Lisboa
porque os seus pais estão a morrer. O príncipe
PIDAL, Ramón Menéndez (1986), Flor Nueva de
permite-lhe que regresse respeitando o seu luto e
Romances Viejos,Espasa-Calpe, Colcción Austral,
apenas então revela-se a verdadeira identidade do
Madrid
“dom Varão”, e o romance pode ter vários fins: na
versão espanhola Don Martín após a tarefa cum-
prida cm sucesso pede à sua mãe que lhe prepare
a roca porque “tem vontade de fiar”, assumindo-
-se de novo como completamente satisfeita com
o seu papel de mulher. Nas versões portuguesas
Outras representações do feminino VIII
A Representação do Feminino
nas Crônicas de Luiz Fernando
Veríssimo e David Coimbra1
Camilla Compagnon2 e Sibila Rocha3
Centro Universitário Franciscano – Santa Maria – RS, Brasil
com o que ocorre dentro (interpretação desse fato). traduzindo o cotidiano de forma opinativa e, por-
As representações são a essência do processo tanto como alavanca na produção de sentidos.
comunicacional, onde cada associação possui uma
visão civilizada que pode variar entre sua cultura e
crenças. De acordo com Alsina (1989), o jornalismo 2.3 A CRÔNICA: UM GÊNERO JORNALÍSTICO
é um dos lugares privilegiados para construção Um dos gêneros que mais traduzem as repre-
da realidade, afinal, trata-se do espaço onde se sentações culturais no jornalismo é a crônica: um
produzem sentidos a partir dos fatos ocorridos. gênero híbrido entre jornalismo e literatura que
Segundo ele, o jornalista age sobre a realidade trabalha com ficção do cotidiano e vem ganhando
social, na medida em que elabora e determina o destaque no jornal impresso diário devido às suas
que merece ou não um status noticioso. A notícia é características acessíveis de leitura. Ela se constrói
“uma representação social da realidade cotidiana da análise de comportamentos e acontecimentos
produzida institucionalmente que se manifesta na contemporâneos com toques e temperos ficcio-
construção de um mundo possível” (p. 18). nais, vindos da literatura.
Seguindo essa linha, Soares (2009) vai além e Por possuir a qualidade de um dispositivo hí-
revela que a pesquisa da representação no jorna- brido, a crônica, além de expressar o cotidiano e
lismo e em sua cultura midiática, tem como foco reproduzir os fatos ou impressões pessoais sobre
mais recorrente de investigação as representações o mundo, é responsável pela criação de referencia-
da mulher, de minorias e de etnias, embora, em lidade jornalística e literária. O que define a crôni-
princípio, qualquer assunto possa ser objeto de ca no jornal é a sua capacidade de compreender
estudo. Para ele, as representações desempe- várias expressões estéticas, como a linguagem ci-
nham papéis distintos nos três grandes gêneros da nematográfica, poética, radiofônica, sem reduzir-se
cultura midiática: a ficção, a persuasão (publicida- apenas à literatura (PEREIRA, p. 28). Trata-se de
de comercial, propaganda política) e a informação uma linguagem leve, envolvente e que transmite, na
(jornalismo). Soares (2009) também conceitua que maioria das vezes, uma mensagem clara e direta.
414 as representações, aplicadas ao campo da comu- É fundamental analisar a crônica dentro do
nicação midiática, resultam em uma síntese entre âmbito jornalístico e a partir deste, notar como ela
os fatores racional-cognitivo, social e técnicos amplia seus significados denotativos ou conotati-
envolvidos no processo, permitindo a superação de vos rompendo algumas barreiras estéticas impos-
antagonismos entre abordagens, como, por exem- tas pela linguagem jornalística padrão.
plo, aquele que confronta, de um lado, as análises “[...] a crônica determina novas relações com
das mensagens e, de outro, a recepção, buscando os gêneros jornalísticos, não se limitando a
estabelecer o momento da produção de sentido. informar ou opinar; mas construindo novos
“As representações seriam consideradas significados na própria articulação entre várias
como constituídas de redes de interação entre linguagens que o cronista exercita para ex-
pessoas e artefatos (mensagens), nas quais o plicar as representações de seu mundo ao
polo individual só é possível na presença dos leitor”. (Pereira, 2004, p.32).
polos social e o material. Uma concepção dis- A crônica está na fronteira entre narração literá-
tributiva considera as representações mentais, ria e informação jornalística da realidade. Segundo
os processos sociológicos e as representa- Santaella (1996), ao recriar a realidade, a crônica
ções mediáticas como instâncias que incidem abre campo para uma visão crítica que necessita
umas sobre as outras e retroagem, de forma da criatividade para vir à tona. Neste sentido, crítica
dinâmica.” (Soraes, 2009, pg. 22) e criatividade encontram-se e reforçam-se na
Nesse sentido as representações sociais no crônica jornalística. Atualmente, a crônica possui
campo do discurso jornalístico assumem um posi- lugar fixo no jornal e o cronista é como se fosse
cionamento de protagonistas das práticas vigentes um amigo íntimo com quem o leitor conversa e
da sociedade. A representação, compreendida compartilha opiniões, troca experiências do dia-
como um processo midiático estabelece identida- -a-dia. Wellington Pereira (2004) entende que no
des individuais e coletivas. Os discursos e os siste- jornalismo a crônica pode ser definida como um
mas das representações sociais constroem a rea- gênero de autonomia estética que abriga as várias
lidade de maneira recorrente, a partir das quais os manifestações da linguagem, cuja característica
indivíduos podem se posicionar. Um dos discursos principal é reescrever os acontecimentos cotidia-
privilegiados desta fluidez é a crônica jornalística, nos de forma que os seus significados não sejam
que une o factual e a ficção num discurso híbrido, impostos ao leitor (PEREIRA, 2004, p. 164).
Outras representações do feminino VIII
O autor da crônica pode se colocar no centro transparente e possui uma materialidade simbólica
da narrativa e escrever sobre suas percepções em significativa em sua discursividade. Assim, relacio-
relação a um tema qualquer ou também, pode ser nando a história da linguagem com a da produção
um texto em que o autor cria personagens e conta de sentidos, os estudos dos discursos trabalham
uma narrativa, uma pequena história. As crônicas a forma material que é a forma caracterizada por
do Luis Fernando Veríssimo e do David Coimbra produzir sentidos. “Os sentidos não estão só nas
nos servem como exemplo. palavras, nos textos, mas na relação com a exterio-
ridade, nas condições em que eles são produzidos
e que não dependem só das, intenções dos sujei-
3. METODOLOGIA tos” (ORLANDI, 2003, p.30). A análise do discurso
3.1. NATUREZA DA PESQUISA não considera apenas a produção de sentidos nos
A pesquisa possui caráter qualitativo, pois é textos verbais, mas também nos não-verbais. A
caracterizada pela interpretação dos dados, con- imagem, que igualmente é fonte de significados, é
siderando que há uma relação dinâmica entre o integrada ao texto, mantendo funções semânticas
mundo real e o sujeito, que não pode ser traduzido próprias.
em números.
A pesquisa qualitativa envolve o uso e coleta de 3.3. OBJETO EMPÍRICO
uma variedade de materiais empíricos, tais como: Tem-se como objeto empírico crônicas publica-
estudo de caso, experiência pessoal, introspecção, das por David Coimbra e Luiz Fernando Veríssimo
história de vida, entrevista, artefatos, textos e pro- no jornal Zero Hora entre o período de julho de
duções culturais, textos observacionais, históricos, 2005 a agosto de 2010. Para as crônicas selecio-
interativos e visuais — que descrevem momentos nadas foram escolhidas três categorias de análise:
e significados na vida dos indivíduos. Entende-se, feminilidade, sexo e profissão. Essas categorias,
contudo, que cada prática garante uma visibilidade por representarem a essência feminina, permitem
diferente ao mundo levando assim, a pesquisa qua- investigar como o universo feminino é representado 415
litativa a ser vista como um campo de investigação na perspectiva de cada um dos autores.
que atravessa disciplinas, campos e temas. O foco
da abordagem está nos processos, nos seus signi-
ficados e efeitos de sentido. 3.3.1. DAVID COIMBRA
David Coimbra formou-se em jornalismo pela
PUC-RS em 1984 e trabalhou como assessor de
3.2. TÉCNICAS DE PESQUISA
imprensa da Livraria e Editora Sulina, redigindo
As técnicas de análise discursiva constituem em resenhas de livros, entrevistando autores, acompa-
ferramentas metodológicas que viabilizam a obser- nhando escritores em suas visitas ao Estado. Atual-
vação e identificação dos elementos que compõe mente é diretor executivo de Esportes e colunista
e dão sentido aos produtos midiáticos. O estudo de Zero Hora, além de comentarista da TVCOM,
contou com uma análise baseada na desconstru- onde participa do Café TVCOM. Participa também
ção de enunciados e de relações sociais dadas a do Programa de debates Sala de Redação, na
partir de uma construção da realidade, ou seja, da Rádio Gaúcha.
capacidade do homem de comunicar-se e de se
inserir em sua realidade social e política, a partir de
crônicas jornalísticas. A análise de discurso é muito 3.3.2 LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO
utilizada para analisar textos da mídia e as ideolo- Luis Fernando Verissimo nasceu em Porto Ale-
gias que os engendram. gre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor
Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Institu-
Segundo Pinto (2002, p.27), “a análise de dis- to Porto Alegre, tendo passado por escolas nos
curso não se interessa tanto pelo que o texto diz Estados Unidos quando morou lá, em virtude de
ou mostra, pois não é uma interpretação semân- seu pai ter ido lecionar em uma universidade da
tica de conteúdos, mas sim em como e por que Califórnia, por dois anos. Como jornalista iniciou
diz o que mostra”, ou seja, para o autor, a análise sua carreira no jornal Zero Hora, em Porto Alegre,
discursiva tende a se focar no objeto concreto da em fins de 1966, onde começou como copydesk,
linguagem e na interpretação da maneira como os mas trabalhou em diversas seções (“editor de
conteúdos foram enunciados estruturalmente. Na frescuras”, redator, editor nacional e internacional).
análise de discurso, a linguagem não é considerada Participou também da televisão, criando quadros
VIII Outras representações do feminino
para o programa “Planeta dos Homens”, na Rede bra conota o espaço onde mulher e filhos ficam de
Globo e, mais recentemente, fornecendo material “clareira”, com uma atitude de aguardo com intuito
para a série “Comédias da Vida Privada”, baseada de agradar o homem. Uma submissão feminina e
em livro homônimo. sexual “com pouca roupa no corpo rijo de fêmeas”.
Esta submissão é apontada na categoria femini-
lidade quando o autor se refere ao final da narrativa
3.3.4. JORNAL ZERO HORA
como “aquela festa”. O percurso gerativo deste sig-
Foi fundado em 4 de maio de 1964 servindo de no permite ler nas entrelinhas uma grande entrega
porta-voz do Regime Militar (1964-85). Sua anti- das “fêmeas” para os machos. Ou seja, ele insinua
ga sede localizava-se na Rua Sete de Setembro, que “ninguém é de ninguém” ressaltando que nos
centro de Porto Alegre. Em 1969, foi inaugurada a tempo de hoje a fidelidade e a igualdade do contro-
sede na Avenida Ipiranga, no bairro Azenha, onde le da mulher sobre o homem é negativo. Há, nesta
permanece até hoje. Em 1996 a edição e produção categoria uma exacerbação da submissão femini-
do jornal passam a ser totalmente digital. Em 19 de na sobre o seu homem, ou seja, uma crônica que
setembro de 2007, entrou no ar o website Zero- aponta dados machistas de tempo anteriores.
Hora.com, que apresenta notícias atualizadas 24
horas por dia, sete dias por semana, mais a versão [...] “Esse era o Paraíso. Não sou eu quem o
impressa do periódico. afirma; é a Bíblia. Adão e Eva eram caçadores
e coletores. Eram nômades a vagar alegre-
mente pela vasta área do Jardim do Éden.
4. RESULTADOS E SISTEMATIZAÇÃO DE Eram, como já disse, felizes. O que aconteceu
DADOS para que tudo se transformasse? Aconteceu
4.1. A FEMINILIDADE que a mulher fez o homem mudar. A história
está toda lá, nas entrelinhas da lenda do Gê-
A feminilidade se refere às características e com-
nesis. Quer ver? Prova número 1: o que signifi-
portamentos considerados por uma determinada
ca a maçã do conhecimento que Eva oferece a
416 cultura por ser associados ou apropriados a mulhe-
Adão? Resposta: significa a Civilização. Eva, a
res. No dicionário Aurélio, encontramos a definição
mulher original representando todas as mulhe-
de feminilidade como a “qualidade, caráter, modo
res originais, convence Adão, o homem origi-
de ser, de viver, de pensar, próprio da mulher.”.
nal representando todos os homens originais,
Na crônica “Túnel do tempo: A culpa é das a se civilizar. O que, então, tem de fazer Adão?
mulheres”, David Coimbra singulariza a mulher dos Tem de trabalhar, o que, além de ser um
primórdios da seguinte forma: apanágio da Civilização, é um castigo divino.
[...] “Quando voltavam para a clareira onde Deus, claramente, desgosta da Civilização.
haviam deixado as mulheres e os filhos, elas, Queria o homem no Paraíso, nu, desocupado
as mulheres, os esperavam com muitos frutos e feliz.” [...] (crônica de David Coimbra, publica-
e raízes na panela e pouca roupa no corpo rijo da pelo jornal Zero Hora no dia 25 de agosto
de fêmeas habituadas a longas caminhadas. de 2010)
Os homens se sentavam em torno da fogueira,
Na continuidade, o cronista sinaliza uma trans-
narravam suas aventuras, agora com deta-
formação no modo de vida primitivo, a partir da
lhes aumentados de façanhas e heroísmos,
mulher. A mulher, em toda sua suposta reclusão,
e depois era aquela festa. Ninguém era de
é o gancho que levará o homem a um processo
ninguém. Não existia monogamia, não existia
de aquisição de valores culturais, sociais e tec-
casamento, não existia fidelidade, não existia
nológicos, ou seja, o ato de civilizar-se. Quando o
isso de mulher ficar fuçando no celular do
autor diz “que a mulher fez o homem mudar” ele
homem para descobrir quem ligou na noite an-
deixa evidente a intenção de que Eva seduziu Adão
terior. [...] (crônica de David Coimbra, publica-
com objetivos além da percepção do mesmo. Até
da pelo jornal Zero Hora no dia 25 de agosto
mesmo o “Deus” é representado como oposto à
de 2010)
ideia do início da “civilização”. Estas estratégias
Nesta crônica, David Coimbra situa a mulher linguageiras conotam, na categoria feminilidade,
nos primórdios do tempo e retrata a mesma, de que é este ser, chamado mulher, que aponta para
acordo com os comportamentos relacionados às o homem uma visão mais ampla da sociedade,
culturas mais antigas. Nesta época, mulheres eram aqui chamada de “civilização”. Com isso o universo
consideradas menos importantes que os homens e feminino é exposto como único e além da com-
a grande disparidade de direitos era notória. Coim- preensão do homem que prefere manter-se “deso-
Outras representações do feminino VIII
posa e amiga, elas ainda são mulheres a maior revelando o envolvimento da mulher com o futebol,
parte do tempo. É nessa hora que elas se sen- uma área claramente designada ao público mascu-
tem o próprio amor encarnado e voltam a ser lino. Apesar da descrição designada à personagem
anjos. E levitam. Algumas até voam. Mas os Tríssia em “Tudo”, Coimbra possui como carac-
homens não sabem disso. E nem poderiam. terística em suas narrativas, uma apelação para o
Porque são tomados por um encantamento lado sexual da mulher e tenciona a retratar o lado
que os faz dormir nessa hora” [...] (crônica de físico do corpo feminino como prioridade, ao falar
Luiz Fernando Veríssimo, publicada pelo jornal da mesma.
Zero Hora no dia 21 de junho de 2009) No mesmo sentido da inserção da mulher no
Neste texto, o autor permite inferir que as mulhe- campo profissional, encontramos no autor Luiz Fer-
res fazem sexo com amor e amor com sexo, o que nando Veríssimo em sua crônica “Meu camarim” a
as torna mulheres superiores, ao representar este seguinte descrição:
modo de ser como “mulheres-anjos”, capazes de [...] “Três tenistas russas. De saiote. Uma mas-
voar e levitar. Mostra ainda as diferenças existentes sagista sueca e uma tailandesa que trabalhem
entre o modo de fazer sexo do homem e o encan- em conjunto. Uma, a parte de baixo, outra, a
tamento do sexo feminino. parte de cima.” [...] (crônica de Luiz Fernando
Veríssimo, publicada pelo jornal Zero Hora no
dia 5 de março de 2012)
4.3. PROFISSÃO
A inserção da mulher dentro do mercado de Ao citar essas mulheres, o cronista mostra a
trabalho tem se mostrado cada vez maior a partir ocupação de um cargo que, antigamente, por se
de uma combinação de fatores econômicos, cul- tratar da área esportiva, era voltado ao gênero
turais e sociais. Um dos grandes fatores para essa masculino. Apesar de citar a profissional “tenista”,
massiva inserção feminina é a maior diversidade de o autor se refere também à vestimenta utilizada
funções que as mulheres têm ocupado. Hoje em pelas profissionais da área, o “saiote”. Aponta a
418 dia, a mulher atua nas mais diferentes áreas e cir- presença de duas massagistas como mulheres
cula até mesmo em profissões que, por um deter- capazes de desempenhar funções profissionais e,
minante cultural, eram consideradas estritamente ao mesmo tempo, prazerosas.
masculinas. Nessa categoria, a crônica chamada “Outra
O cronista David Coimbra em sua crônica carta da Dorinha”, de Veríssimo retrata uma mulher
“Tudo”, apesar de não evidenciar o papel da mulher mais atual, que foge aos padrões do ponto de vista
dentro do trabalho para a sociedade, gera um perfil feminino na antiguidade:
dessa mulher profissional da descrição de suas [...] “continua ativa à frente do seu grupo de
atitudes: debate e pressão, as Socialaites Socialistas,
[...] “Tríssia era uma mulher sofisticada. A que pregam a implantação no Brasil do so-
psicóloga do clube. Alta, morena clara, ela não cialismo no seu último estágio, que é a volta
andava; deslizava pelo mundo a um palmo ao tzarismo.” [...] (crônica de Luiz Fernando
do chão. Jamais levantava a voz, jamais fazia Veríssimo publicada pelo jornal Zero Hora em
um gesto brusco, jamais se alterava. Era uma 16 de janeiro de 2012).
rainha. Por isso detestava aquele falastrão. Nesta crônica o autor se refere a um grupo de
Natan sentia a repulsa de Tríssia e se mantinha debates, controlado por mulheres, referente ao
à distância. Até porque Tríssia não dava con- campo político. Ele cria mulheres elegantes (so-
fiança a homem nenhum. Nenhum! Tríssia não cialaites) que “pensam” temáticas voltadas para
precisava de homens. Tríssia era soberana.” igualdade dos direitos (socialismo). A aparente
[...] (crônica de David Coimbra, publicada pelo contradição discursiva produz um sentido de enga-
jornal Zero Hora no dia 03 de julho de 2005) jamento social e político de mulheres que mesmo
O autor descreve a psicóloga Tríssia como uma belas enquadram-se na luta por direitos iguais. Nas
mulher que evidencia seus valores a partir da sua entrelinhas, o autor não exclui a mulher/beleza de
atitude ao falar ou andar. Coimbra utiliza de elo- uma profissão voltada para aspectos cidadãos.
gios como “uma rainha”, remetendo à profissional No gênero profissão, ambos os autores retratam
Tríssia características soberanas e exemplares. Na um realocamento da mulher na sociedade. Está
mesma crônica, David Coimbra ainda cita mulhe- subentendido nos textos que elas circulam nos cir-
res em outros cargos profissionais como o de [...] cuitos sociais, profissionais e culturais com legitimi-
Lívia, a secretária do Departamento de futebol [...] dade e competência sem “descer do salto”.
Outras representações do feminino VIII
420
Outras representações do feminino VIII
Profissões no Feminino:
a Enfermagem no Estado Novo
Helder Manuel Guerra Henriques
Instituto Politécnico de Portalegre/Escola Superior de Educação CEIS20 – UC/ C3I, Portugal
Resumo: Este artigo tem como objectivo nuclear compreender como se cons-
truiu uma “identidade genderizada” da enfermagem no Estado Novo?! Preten-
demos discutir, por um lado, a enfermagem como um “projecto pessoal” de
mobilidade socioprofissional no feminino no interior daquele regime político.
Por outro lado, apresentaremos a ideia da enfermeira – modelo e os principais
requisitos que deveria cumprir. Para o efeito recorreremos aos teóricos da
História e da Sociologia das Profissões, bem como à literatura produzida no
domínio da História da Enfermagem. Do ponto de vista metodológico, utiliza-
remos a análise sóciohistórica, e a respectiva triangulação dos dados, numa
perspectiva diacrónica. O corpus documental define-se pela imprensa espe-
cializada, legislação, manuais de enfermagem, material de arquivo de institui-
ções escolares, entre outros. Em conclusão, assumimos, por um lado, que a
enfermagem construiu a sua jurisdição profissional de acordo com um projec-
to político, com características próprias, a partir de uma prática credencialista
assumida pelas escolas de enfermagem. Nestas instituições escolares proce-
dia-se ao recrutamento e à socialização das alunas-enfermeiras com vista ao 421
alinhamento das futuras enfermeiras com os valores defendidos pelo Estado
Novo. Por outro lado, mostraremos a importância desta actividade profissional
como um “projecto” de mobilidade social que as mulheres encontraram para
conquistar uma maior autonomia pessoal.
A autora desfaz a questão principal em que muitos a perspetiva histórica mostra que os grupos de
estudos relacionados com a problemática em aná- mulheres que assumiam tarefas relacionadas com
lise têm assentado, nomeadamente no facto destes o ato de cuidar, á medida que nos aproximamos e
tomarem o género como um atributo ou uma cara- relacionamos com a contemporaneidade, foram es-
terística constante, isto é natural, acompanhando tabelecendo estratégias, negociações ou conflitos
uma lógica discursiva masculina que tem influen- com outros grupos ou com o Estado, na tentativa
ciado a sociedade. A este propósito salienta o se- de afirmar a sua identidade e construir jurisdições
guinte: No pensamento social, a dominância sim- profissionais próprias (ABBOTT, 1988).
bólica do masculino resulta, portanto, da estreita De acordo com Lucília Escobar até à revolução
interrelação entre a representação do “ser homem” industrial, quem prestava cuidados de saúde tam-
e a do “ser indivíduo”. É precisamente, porque no bém fazia muitas vezes prescrições de tratamentos
processo de construção social do género mas- (ESCOBAR, 2006: 40). O aumento do poder de
culino e feminino se confunde o masculino com o compra e o crescimento da classe média possi-
indivíduo que (…) o comportamento dos indivíduos bilitaram o pagamento desses cuidados. A autora
do sexo masculino é aparentemente caracterizado refere que:
pela distintividade, o que faz com que a identidade
masculina seja vivida e percebida enquanto singu- Conservar homens, mulheres e até crianças
laridade “real” que obscurece a sua origem coletiva com uma boa saúde, visando a rendibilização
(AMÂNCIO, 1993: 127-140). máxima das suas potencialidades de trabalho,
De acordo com a autora, é preciso reconceptua- passou a ser um assunto de interesse geral a
lizar os discursos relacionados com a construção nível das cidades e de muitos países industria-
social dos géneros que circulam na sociedade de lizados; importava tratar mas também prevenir
um modo atribuído e natural (AMÂNCIO, 1994: 33). a doença e promover a saúde (ESCOBAR,
A propósito desta premissa defendemos a neces- 2006:4).
sidade de se compreenderem as diferenças num O aumento das possibilidades económicas, alia-
422 quadro alargado onde as Ciências Sociais e Hu- das a um processo de escolarização dos conhe-
manas devem assumir destaque. Neste contexto cimentos científicos, nomeadamente da medicina,
o Estado assume um papel ativo na divisão social provocou, gradualmente, o afastamento das mulhe-
do trabalho e, muitas vezes, promove a construção res não qualificadas do domínio da saúde, levando
de identidades profissionais genderizadas, como a efeito um fechamento e uma demarcação nos
aconteceu com a enfermagem portuguesa. cuidados de saúde por parte dos médicos. Anne
As ocupações ou profissões estabelecem com Witz é perentória nesta análise quando refere que
o Estado nexos que importa analisar, uma vez que o fechamento correspondeu a uma estratégia de
podem constituir a porta de entrada para o alarga- afastamento das mulheres em relação ao exercício
mento de uma visão masculina com que a socie- da medicina e; a demarcação, constituiu o momen-
dade se tem identificado. A compreensão sobre as to em que os médicos, nomeadamente na Ingla-
atividades que as mulheres e os homens ocupam terra (Medical Registration Act), definiram quais
é um eixo de análise da maior importância. Não é eram as suas competências e quais as tarefas que
de forma inocente ou natural que, por exemplo ao deviam encontrar-se subordinadas a si, consoli-
longo do Estado Novo, as questões de género esti- dando um domínio profissional próprio com auto-
veram presentes nos discursos políticos da época nomia. A partir deste momento, as mulheres foram
refletindo-se na divisão do trabalho na sociedade. colocadas num papel secundário e muitas vezes
Da relação entre a dimensão teórica e prática esquecido pela perspetiva histórica. Witz defende
que acabamos de apresentar vamos continuar a que o “Medical Registration Act de 1858, selou o
problematizar as questões de género, no interior destino das mulheres no interior da profissão médi-
de um regime político com caraterísticas próprias, ca moderna. A mulher não tinha acesso ao registo
tendo como objeto de estudo o ensino e o exercí- médico” (WITZ, 1992: 83) impossibilitando o seu
cio da enfermagem em Portugal. exercício1. No caso português apenas no final da
centúria de oitocentos encontramos uma mulher a
frequentar o curso de medicina na Universidade de
1. A mulher e o ato de cuidar: uma perspetiva
Coimbra.
histórica
1 Pamella Abbott et al. (1998: 9) defendem que as mulheres desafiaram a
Ao longo do devir histórico a mulher foi associa- dominação masculina e desenvolveram estratégias para conseguir legitimar o
da ao ato de cuidar, como uma dimensão natural seu status profissional havendo, desde logo, resistência por parte dos homens
e atribuída em diferentes períodos. Por outro lado, e, inclusivamente, de algumas mulheres.
Outras representações do feminino VIII
Anne Witz realça que, também, a enfermagem ou uma filha; o ato de cuidar formal, isto é espe-
tentou registar o seu “Nurse Act”, desde a década cializado, deve ser interpretado de outro modo,
de 70, do século XIX, o que veio a acontecer ape- porque obedece a princípios racionais. Desde logo,
nas no século seguinte. Este foi um processo com torna-se necessária uma formação especializada
muitos avanços e recuos. O objetivo estratégico era em instituições específicas que formem para aque-
alcançar o “self-government” da atividade e do gru- le trabalho, no caso da enfermagem, associadas à
po. Como salienta: A campanha longa e amarga figura do Estado. Apenas deste modo se alcança a
por um sistema de registo da enfermeira, ao abrigo cientificidade e o reconhecimento social necessá-
do Estado-patrocinador, ocorreu entre 1888, quan- rios, á constituição de uma jurisdição profissional
do a Associação de Enfermeiros Britânica formada (ABBOTT, 1988).
com o objectivo de obter o Status legal de uma Todavia as atividades que assumem o seu
profissão, e 1919, quando o “Nurse Act” foi aprova- campo de trabalho no interior do ato de cuidar,
do. Este processo foi descrito como “A guerra dos como a enfermagem ou o trabalho social, também
trinta anos”, por Abel-Smith (1960) (1992: 128). têm as suas potencialidades, uma vez que lidam
Esta conflitualidade no processo que Anne Witz diretamente com as pessoas e ajudam a moldar o
descreve, associado à enfermagem e à prestação caráter do Ser Humano, a estruturar contextos so-
de cuidados, inscreve-se num quadro alargado ciais e culturais e são capazes de construir os seus
dos processos de escolarização e de credenciação próprios objetos de estudo (ex. “o mau paciente”,
da enfermagem com o objetivo de constituir uma “o bom paciente”, etc…) encontrando formas de
jurisdição própria, individualizada e com autonomia intervenção sobre os mesmos. É este processo
onde as questões de género também influenciaram que as “caring professions” são capazes de de-
a constituição da enfermagem enquanto atividade senvolver de uma forma especializada, a partir de
profissional. instituições escolares próprias, criando ritmos de
No caso da enfermagem existiu uma clara tenta- intervenção normalizadores da própria sociedade
tiva de alcançar maior prestígio e reconhecimento que interessam ao Estado. É esta capacidade de
social, ao longo do século XX, através da procura decidir o que é ou não solucionável, através de um 423
constante de um domínio académico e profis- caminho teórico-prático, que define um expert, por
sional assente numa determinada cientificidade exemplo em enfermagem, e possibilita a constru-
que haveria de se verificar apenas na 2ª metade ção do seu domínio profissional: os cuidados de
de novecentos no caso português (HENRIQUES, enfermagem. Não é tarefa simples delimitar os
2012). Segundo Pamela Abbott et al. o processo contornos do grupo das/os enfermeiras/os. Existe
de cientificidade da enfermagem não foi fácil, dado até uma certa tradição em não considerar a enfer-
que quando falamos de cuidados devemos reco- magem como uma profissão (ETZIONI,1969) uma
nhecer que este conceito pode dividir-se em duas vez que, segundo alguns autores, se constrói do
partes: por um lado, contém uma componente ponto de vista identitário na dependência de outros
emocional; por outro, uma componente prática e saberes como a medicina (FREIDSON, 1986).
física (corporal). A enfermagem teve muitas dificul- De facto, o problema da definição da enfer-
dades em afirmar-se como um saber consolidado, magem como uma “profissão estabelecida”, tal
tal qual a medicina, porque o entendimento social como os médicos ou os advogados, decorre em
sobre a atividade, constituída maioritariamente por grande parte da dificuldade da definição da sua
mulheres, era diferente em relação ao da medicina. área de intervenção do ponto de vista dos Saberes
Na perspetiva desta autora, o ato de cuidar era que mobiliza com autonomia. Este tem sido um
“geralmente visto como uma experiência positiva debate que, pelo menos desde a década de 70,
de um estado interior emocional” associado às ganhou uma enorme relevância e contribuiu para
mulheres, o que dificultava o processo de cientifi- a definição de caminhos que visaram, no fundo, a
cidade desejado pelo grupo das enfermeiras. Era clarificação e reconhecimento de uma determinada
“necessário distinguir entre “preocupar-se com” e identidade profissional inscrita num quadro alar-
“cuidar de” (ABBOT, 1998: 10). Esta é uma das cha- gado das questões políticas e de género. Todavia,
ves para compreender a importância dos grupos uma profissão não pode ser interpretada como
ocupacionais no desenvolvimento deste tipo de algo atribuído ou natural. Pelo contrário, devemos
tarefas. Apesar da maioria dos cuidados informais olhar para as dinâmicas processuais que impli-
serem realizados, naturalmente e com sentido de cam a definição e a construção do estatuto de
dever moral, por elementos femininos não especia- profissional. É importante realçar as estratégias de
lizados, por familiares por exemplo como a esposa desenvolvimento profissional que os grupos foram
VIII Outras representações do feminino
construindo de modo a reforçar-se a si mesmo. No tica, e neste sentido o trabalho que podem desen-
mesmo sentido também é importante compreender volver “naturalmente”” (1998:8).
os processos axiológicos que os grupos desenvol- Em Portugal a visão apresentada anteriormente
veram funcionando como uma forma de coesão e também se aplica. Sobretudo quando analisamos o
socialização profissional ou, ainda, a capacidade papel socioprofissional da mulher entre as décadas
dialogante inter e intra grupal (HENRIQUES, 2012). de 30 e 70 do século passado.
Lígia Amâncio refere que ao longo da histó-
ria “os homens se opunham ao desempenho de
uma profissão por parte das mulheres, e que elas 2. A Enfermagem no Estado Novo: uma política
partilhavam esta posição, sobretudo no caso de de espirito
mulheres com filhos pequenos, uma vez que os A educação, a saúde e a assistência social
cuidados com as crianças e as tarefas domésticas emergiram como atividades ocupacionais relacio-
eram consideradas atividades exclusivamente fe- nadas com a mulher fazendo parte, simultanea-
mininas” (AMÂNCIO, 1994: 33). A autora prossegue mente, de estratégias possíveis de emancipação
a sua interpretação realçando que “existia também social e individual do género feminino. Quando
consenso quanto às profissões para as quais era Marie-Françoise Colliére (1989) defende que existia
reconhecida competência às mulheres, as pro- uma obrigação moral das mulheres ao nível dos
fissões ligadas à saúde e assistência social, que cuidados do corpo, da alimentação, do cuidado
indicavam um prolongamento para a esfera pública das crianças ou da ajuda aos mais velhos, remete-
da sua função no âmbito da família” (AMÂNCIO, -nos para um conjunto de discursos construídos
1994: 70). historicamente no sentido de prolongar o mundo
Segundo Marie-Françoise Colliére, a enferma- doméstico para o espaço público e, assim, delibe-
gem é bem o reflexo desta prática de prolonga- radamente dar uma certa sensação de emancipa-
mento dos cuidados domésticos para uma esfera ção e de autonomia ao público feminino, através
de ação pública que constitui um campo discursivo da ideia de vocação que mais não é que um dis-
424 criado pelo universo masculino e aceite natural- positivo de seleção, controlador e disciplinador da
mente pelas mulheres (1989). Esta ponte que se própria mulher à entrada para o mundo do trabalho
estabeleceu entre o papel social da mulher e a público.
prática dos cuidados do corpo e da alma é secu- No início da década de 30, do século XX, An-
lar, conventual, religiosa e Cristã. A forte influência tónio de Oliveira Salazar concedeu uma série de
moral cristã ao longo da História da enfermagem entrevistas a António Ferro. Nessas entrevistas foi
terá contribuído para associar a noção de cuidar abordado o assunto relacionado com as questões
à de serviço e de dever. Estava-se próximo da de género e do lugar que a mulher ocupava na
ideia de Vocação, por um lado, e muito próximo sociedade que estava em processo de edificação.
da ideia de vocação religiosa, por outro. Quan- A este propósito Salazar respondeu do seguinte
do as enfermeiras se referem a uma «filosofia de modo: Temos que distinguir. A mulher solteira que
enfermagem», os filósofos falam em «religião de vive sem família, ou tendo de sustentar a família,
enfermagem»”(RIBEIRO, 1995: 42). acho que devem ser dadas todas as facilidades
A ideia de vocação, do nosso ponto de vista, legais para prover o seu sustento e ao sustento
pode ser considerada como um dispositivo que dos seus. Mas a mulher casada, como o homem
permite a articulação entre o sentido doméstico casado, é uma coluna da família, base indispensá-
atribuído à vida da mulher e a domesticidade da vel duma obra de reconstrução moral. Dentro do
mulher na esfera pública constituindo este o ca- lar, claro está, a mulher não é uma escrava. Deve
nal de ligação e de escrutínio entre o privado e o ser acarinhada, amada e respeitada, porque a sua
público. função de mãe, de educadora dos seus filhos, não
é inferior à do homem. (…)Deixemos, portanto, o
Em Suma, os grupos ocupacionais que prestam
homem a lutar com a vida no exterior, na rua…E a
cuidados foram vistos como a “franja das profis-
mulher a defendê-la, a trazê-la nos seus braços no
sões” até há pouco tempo. Isto é, situavam-se, no
interior da casa. Não sei afinal qual dos dois terá o
entender de alguns autores, quase sempre, numa
papel mais belo, mais alto e mais útil…. (SALAZAR
zona de fronteira face às profissões “estabeleci-
IN FERRO, 1978 (ED. ORIGINAL 1933): 156 E 157)
das”. Pamela Abbott et al. defendem que a ativi-
dade dos “grupos que cuidam”, maioritariamente A transcrição apresenta a ideia que Salazar tinha
femininos, tem sido vista “como uma extensão do para os elementos do género feminino, distinguin-
trabalho que espera as mulheres na esfera domés- do entre mulheres solteiras e casadas. Às mulheres
solteiras devia ser dado o impulso para poderem
Outras representações do feminino VIII
integrar o mercado de trabalho em áreas relacio- moral irrepreensível e que tomassem a atividade
nadas com a educação ou o assistencialismo. O como um verdadeiro sacerdócio, numa lógica
lugar das mulheres casadas seria o de assumirem de obediência e submissão quer ao Estado ou a
as suas funções familiares, no interior do seu lar outros grupos profissionais. Também a questão do
e apresentando-se como exemplo para os seus casamento evidencia este problema. Entre 1942 e
filhos, auxiliando-os sempre que necessário. De 19634 a enfermeira hospitalar não podia oficialmen-
acordo com António de Oliveira Salazar, o lugar te casar-se ou constituir família. Esta medida servia
que a mulher ocupava na sociedade portuguesa principalmente para motivar as mulheres a assumir
estava bem definido e não deveria ser contestado a enfermagem como a sua missão a que deviam
uma vez que esta era a “base indispensável duma dedicar todo o seu tempo sem possuírem qualquer
obra de reconstrução moral” (idem). vínculo que as afastasse da “religião da enferma-
No que diz respeito à enfermagem é possível gem”.
encontrar muitas vezes interessantes considera-
ções provenientes das mais altas instituições po-
3. A Enfermagem como projeto de emancipa-
líticas do Estado. Em 1947, por exemplo, falava-se
ção social e profissional
da importância da mulher no seio desta atividade e
do “espírito de missão” que lhe competia enquanto O Estado Novo favoreceu a entrada dos elemen-
enfermeira: tos do género feminino na educação e na área dos
cuidados sociais ou de saúde. Todavia, embora
O curso oferecia vantagens evidentes e a ga- este caminho fosse caraterizado pela submissão
rantia do ingresso certo e imediato nos qua- a princípios do Estado Novo e de outros grupos
dros hospitalares, mas ainda não se criou sufi- profissionais, as mulheres conseguiram alcançar
cientemente no espírito, das nossas raparigas uma determinada autonomia que de outra forma
o gosto e o entusiasmo pela enfermagem e a dificilmente alcançariam. Além de se constituir a
consciência de que a profissão de enfermeira, oportunidade para sair de casa e modificar a sua
que também é um sacerdócio, será sempre condição de doméstica, verifica-se que a entrada 425
estimada e respeitada no mundo moderno, no mercado de trabalho controlado pelo Estado
como uma missão nobre, bela e socialmente constituiu uma forma de alcançar maior autonomia
útil2. sobre as suas próprias vidas e conquistar alguma
independência face aos seus destinos “naturais”,
Os valores presentes na transcrição anterior, incluindo independência do ponto de vista mone-
ajudam a definir os processos de construção das tário.
identidades profissionais, neste caso associada à Quando analisamos o caso particular da Escola
enfermagem portuguesa. Estes valores são indi- de Enfermagem de Castelo Branco, percebemos
cadores variáveis do modo como uma atividade que esta instituição escolar constituiu uma opor-
se procura identificar, ou que a identifiquem, numa tunidade de vida para um conjunto alargado de
determinada época. Lesley Mackay defende, sobre jovens mulheres. A análise que fizemos entre o
a ideia de vocação, que esta foi construída quase momento anterior à entrada na escola e o momen-
sempre acompanhada pela ideia de disciplina e de to posterior à sua saída, permitiu evidenciar que a
obediência, constituindo uma “inevitável neces- maioria das mães que enviava as suas filhas para
sidade (…) na enfermagem” (1998: 65) segundo aquela instituição escolar era doméstica, o que
o modelo profissional médico. Salienta que “esta permite falar de um projeto de mobilidade social e
combinação entre a obediência e a disciplina pode profissional numa sociedade fechada, controlado
ter ajudado a produzir uma força de enfermagem pelo Estado e muito genderizada no que diz respei-
estática, não questionadora. Isto é, uma força de to ao trabalho.
trabalho que sabe qual é o seu lugar na equipa de
As escolas de enfermagem que se foram es-
saúde (…)”(idem).Estas questões podem ser objeti-
palhando pelo país ao longo do século XX cons-
vadas com a política assumida pelo Estado Novo, a
tituíram um nicho que permitiu a muitas mulheres
partir de 1942, quando legislou3 para que a entrada
conquistar alguma autonomia e reconhecimento
nas escolas de enfermagem fosse preferencialmen-
pessoal e socioprofissional. Consequentemente, a
te de elementos do género feminino, de preferência
própria atividade foi adquirindo junto da sociedade
mulheres solteiras ou viúvas, de comportamento
maior credibilidade social. Estes aspetos confir-
2 Cf. Debates Parlamentes – Câmara dos Senhores Deputados de mam-se e tornam-se ainda mais visíveis a partir da
25/03/1947, pp. 1044 [Consultado no dia 31 de Março de 2009].
3 Decreto – lei nº 31.913 de 12 de Março de 1942 [Realça a importância do 4 Decreto-lei nº 44.923 de 06 de Março de 1963 [Termina a obrigatoriedade
recrutamento de enfermeiras viúvas e sem filhos]. de recrutamento de enfermeiras hospitalares solteiras].
VIII Outras representações do feminino
reforma do ensino da enfermagem de 1965, que sions – an Essay on the Division of Expert Labor,
abriu caminho para uma valorização socioprofis- Chicago/London: The University of Chicago Press.
sional da atividade e permitiu, de certo modo, a ABBOTT, Pamela e MEERABEAU, Liz (1998),
constituição de carreiras próprias de enfermagem “Professionals, Professionalization and the Caring
(1967)5. Gradualmente, o universo escolar, também Professions” in ABBOTT, Pamela e MEERABEAU,
se foi caraterizando por um conjunto alargado de Liz, The Sociology of the caring professions, 2ª ed.,
enfermeiras-monitoras que caraterizaram o ensino London/New York: Routledge, pp. 1-19.
da enfermagem principalmente a partir da déca- ABBOTT, Pamela e MEERABEAU, Liz, The So-
da de 60, consolidando-se na década seguinte. ciology of the caring professions, 2ª ed., London/
Algumas mulheres também se tornaram diretoras New York: Routledge. ABBOTT, Pamela e WALLA-
das escolas de enfermagem (Escola de Enfema- CE, Claire (1998), “Health Visiting, Social Work, Nur-
gem Bissaya Barreto – Enfermeira Delmina dos sing and Midwifery: a History” in ABBOTT, Pamela
Santos Moreira) e trabalharam junto dos serviços e MEERABEAU, Liz (1998), op. cit., pp. 20 – 53.
centrais (Fernanda Resende) nas décadas de 60 e
ABREU, Wilson Correia de (2001), Identidade,
70 (HENRIQUES, 2012). No caso das enfermei-
Formação e Trabalho – Das Culturas Locais às
ras hospitalares alcançaram principalmente maior
Estratégias Identitárias dos Enfermeiros, Coimbra/
autonomia financeira o que acabou por dar um
Lisboa: Formasau/Educa.
novo ímpeto às suas vidas pessoais e no interior da
sociedade permitindo alcançar uma forma de vida AMÂNCIO, Lígia (1994), Masculino e Feminino –
diferente, embora enquadrado no regime político, A Construção Social da Diferença, Porto: Edições
daquela que era proposta inicialmente por António Afrontamento/CES.
de Oliveira Salazar. AMÂNCIO, Lígia (1993), “Género – Represen-
tações e Identidades”, Sociologia – Problemas e
Práticas, nº14, pp. 127-140.
Considerações Finais AMENDOEIRA, José (2006), Uma Biografia
426 Em suma, tudo isto resulta de um conjunto Partilhada da Enfermagem: A Segunda Metade do
alargado de negociações, conflitos e dependências Século XX, Coimbra: Formasau.
que aos poucos foram aproveitados pelas mulhe- COLLIÉRE, Marie – Françoise (1989), Promover
res e que lhes permitiu assumir uma intervenção a Vida – Da prática das Mulheres de Virtude aos
pública, ainda que controlada, mas a sentirem Cuidados de Enfermagem, Lisboa: SEP.
fazer parte de um projeto de mobilidade pessoal,
DELICADO, Ana, BORGES, Vera e DIX, Steffen
social e profissional tornando-as mais realizadas;
(Orgs.) (2010), Profissão e Vocação – Ensaios sobre
muito embora numa sociedade caraterizada funda-
grupos profissionais, Lisboa: Imprensa de Ciências
mentalmente pelas relações patriarcais instituídas.
Sociais.
Este exemplo serve, apenas, para nos inscrever na
problemática das questões de género num quadro DUBAR, Claude e LUCAS, Yvette (éds.) (1994),
onde as mulheres, ao longo do século XX, assu- Génese & Dynamique Des Groupes Professionnels,
miram uma estratégia social que passou pela sua Presses Universitaires de Lille.
própria valorização através de projetos profissio- ESCOBAR, Lucília (2004), O Sexo das Profissões
nais (LARSON, 1979) ainda que, a maior parte das – Género e Identidade Socioprofissional em Enfer-
vezes, segmentados como aconteceu no caso da magem, Col. Biblioteca das Ciências Sociais, Porto:
enfermagem em Portugal. Nada do que apresenta- Edições Afrontamento.
mos neste texto aconteceu naturalmente, pelo con- ESPINEY, Luísa d` (2003), “Formação Inicial/For-
trário tudo foi construído de acordo com interesses mação Contínua de Enfermeiros: Uma Experiência
individuais, de grupo, da sociedade e do Estado. de articulação em Contexto de Trabalho” in CANÁ-
A Enfermagem é um bom exemplo desta realidade RIO, Rui (Org.), Formação e Situações de Trabalho,
difícil enfrentada pelas mulheres portuguesas. 2ª ed., Porto: Porto Editora, pp. 169 – 188.
ETZIONI, Amitai (1969), The Semi-professions
and their organisation, New York: Free Press.
Referências Bibliográficas
FREIDSON, Eliot (1986), Professional Powers: A
ABBOTT, Andrew (1988), The System of Profes-
Study of the Institutionalization of Formal Knwo-
5 Decreto 46448, nº 160, de 20 de Julho de 1965 [Reforma do ensino ledge, Chicago/London: The University of Chicago
da enfermagem, entre outros aspectos altera condições de admissão aos Press.
cursos].
Decreto-Lei nº 48166 de 27 de Dezembro de 1967 [Constitui as carreiras de HENRIQUES, Helder Manuel Guerra (2012),
enfermagem hospitalar, saúde pública e de ensino]. Formação, Sociedade e Identidade Profissional dos
Outras representações do feminino VIII
digital)3. Julgo importante destacar que a revista trabalhos, publicado em 1981, revisado e reeditado
Seleções se mantém no Brasil desde 1942 e teve em 2009, oferece determinada visibilidade sobre tal
nas décadas de 50 e 60 uma repercussão estron- relação podendo ser localizado na obra de Dul-
dosa. Sobre os números da revista, um fato curioso cília Schoeder Buitoni (2009) intitulada Mulher de
é que, segundo o Instituto Verificador de Circulação papel: a representação da mulher pela imprensa
– IVC, a revista Seleções do Reader’s Digest, em feminina.4Na obra a autora debruça seu olhar sobre
2004, mais de 60 anos após sua entrada no Brasil, a representação da mulher na imprensa feminina
ainda ocupava a segunda posição dentre as revis- brasileira, desde o século XIX até os dias atuais.
tas mensais mais vendidas. É preciso dizer ainda, Através da análise de textos selecionados dos dife-
que a revista Seleções não é uma publicação diri- rentes estágios percorridos pela imprensa feminina
gida especificamente ao público feminino, sendo brasileira, a autora buscou captar a imagem da
considerada como uma revista de variedades e de mulher construída pela imprensa especializada.
informações em geral. Os estudos da autora enfatizam as articulações
Dentre as edições selecionadas para análise, na existentes entre os mecanismos de divulgação, a
edição de janeiro de 1960, encontrei um artigo que sociedade e o feminino, propondo que tais articu-
identifico como emblemático para tecer minhas lações estariam impondo uma imagem que é um
reflexões sobre as representações da mulher que produto já preparado por um “certo horizonte” de
eram estampadas na revista, no período recortado. expectativa marcadamente “ideológico”. Ou seja,
Por isso o escolhi, para iniciar esse artigo. Trata-se para a autora, representa-se “aquela mulher” que a
de matéria intitulada “A honra de ser mulher”, escri- sociedade dirigida pelos homens espera ver repre-
ta por uma poetiza, esposa e mãe - Phyllis Macley, sentada.
ao qual retornarei, mais adiante.
Com essa breve introdução delineio o propósito Sobre as ferramentas teóricas
do estudo ora apresentado, o qual busca proble-
Entendendo o sujeito – seja ele homem, mu-
matizar as reapresentações de gênero, em espe-
lher, criança, jovem, idoso – como construído 429
cial, as marcações identitárias referentes à mulher
socialmente, através das redes de poder, filio esta
que estariam presentes em uma revista de pro-
pesquisa a uma perspectiva pós-moderna, que
cedência norte americana, mas em circulação no
desconfia dos saberes totalizantes – as grandes
Brasil. Para tanto, examino vinte edições da revista
narrativas ou metanarrativas – que buscam expli-
Seleções do Reader’s Digest que circularam no
car a estrutura e o funcionamento do universo e
Brasil entre as décadas de 1950 e 1960.
do mundo social através de grandes teorias (Silva,
Para dar conta, mesmo que parcialmente, da 1999).
minha proposta de incursão sobre a revista Sele-
A partir desses pressupostos, utilizo esse cam-
ções e as representações de gênero ali presentes,
po de estudos na vertente das análises textuais,
conto com o aporte dos Estudos Culturais, que,
nas quais todos os artefatos culturais são tidos
articulado aos Estudos de Gênero, permite trazer
como textos produzidos através de processos de
contribuições valiosas no sentido de problematizar
construção social. É importante destacar, tam-
a conjuntura das desigualdades vivenciadas pelas
bém, que considero como instrumental teórico em
mulheres. As discussões de gênero promovem um
minhas análises do discurso algumas contribui-
redirecionamento significativo destas questões,
ções do referencial de Michel Foucault. Segundo
permitindo lançar um olhar sobre as relações so-
essa perspectiva é preciso trabalhar arduamente
ciais e a formação das identidades, a fim de pro-
com o próprio discurso, deixando-o aparecer na
blematizar as situações de igualdade/desigualdade
complexidade que lhe é particular. Ou seja, há uma
que se estabelecem, sempre, em relação ao outro.
necessidade constante de tentar desprender-se de
Isto implica dizer que uma análise de gênero focali-
um longo e eficaz aprendizado que muitas vezes
za a relação entre os gêneros – vistos como cons-
nos faz olhar para os discursos como um conjunto
truções culturais do sexo - em contextos sociais e
de signos, cujos significantes se referem, de forma
culturais específicos.
fixa, a determinados significados.
A relação entre revistas e a mulher vem sen-
Já os estudos de Gênero, associados às pers-
do evidenciada desde há algum tempo. Um dos
pectivas teóricas citadas anteriormente, enfatizam
3 Conforme informações veiculadas na imprensa, a revista do Reader´s Di- “a construção social e histórica produzida sobre
gest conhecida no Brasil como Seleções, permanece em circulação com uma as características biológicas” (Louro, 1997, p. 22).
base atual de 400 mil assinantes. Disponível em: http://oglobo.globo.com/
economia/mat/2010/02/23/reader-digest-sai-da-concordata-nos-eua-opera- 4 BUITONI, Dulcília Schroeder. Mulher de papel, a representação da mulher
cao-no-brasil-pode-ser-beneficiada-915924800.asp Acesso em 02/02/2010. na imprensa feminina brasileira. São Paulo: Ed. Summus, 2009.
VIII Outras representações do feminino
agências de publicidade em outros países era uma (FRAISSE & PERROT, 1991). Segundo os autores,
das suas mais importantes fontes de captação de essa representação totalizante vai se desfazendo
divisas, e, em conjunto divulgar também a integra- no decorrer do século XIX e a identidade feminina
ção pan-americana e os ideais norte americanos passa a assumir uma multiplicidade de papéis: a
de família, patriotismo, individualidade e progresso. mãe, a trabalhadora, a celibatária, a emancipada,
Estudos de Buitoni (2009) e Töpke (2007)11 nos etc.
oferecem um panorama contextual da década de Essa multiplicidade levou a sociedade à dis-
1950 e 1960 no Brasil. Em 1950 com a chegada da cussão de novos temas concernentes à mulher,
televisão ao Brasil há uma maior ênfase em acon- que passaram então a ser matérias obrigatórias e
selhamentos sobre os cuidados com a beleza da constantes nas revistas do século XX. Várias maté-
mulher. Os problemas físicos devem ser dissimula- rias discutindo temas referentes à multiplicidade de
dos e a publicidade mostra o sofrimento da mulher papéis e posições sociais podem ser localizadas
que não é bela e que por essa razão teria dificulda- em diversas edições de Seleções; a exemplo disso
des em encontrar um marido. No final da década encontrei algumas matérias, como por exemplo:
a beleza começa a aparecer como um “direito”. Jane Froman, um exemplo de coragem (Seleções,
Na década de 1960 dá-se início ao movimento de agosto de 1953); Mademoiselle em Hollywood (Se-
“libertação” da mulher. No governo JK, ela entra no leções, agosto de 1953); Polícia de saias (Seleções,
mercado de trabalho. A TV dissemina novos mo- junho de 1958) Posfácio ao casamento (Seleções,
delos de feminino (uso de anticoncepcionais, lei do julho de 1960); A freira médica de Formosa (Sele-
divórcio, etc). Fala-se na construção de uma beleza ções, outubro de 1960); Maternidade aos quarenta
autêntica. A mulher que é feia seria assim, porque anos (Seleções, maio de 1963); Pílula ou não? (Se-
não se esforçaria suficientemente para tornar-se leções, março de 1968) dentre outros.
bonita, portanto ela não se amaria. A partir da década de 30, a normalização da
É oportuno, então, considerar neste estudo, o sexualidade feminina dentro do casamento foi
papel da publicidade, que inserido no conjunto de contemporânea à consolidação do processo de
432 instâncias culturais, é concebido como mecanis- industrialização na Europa e nos Estados Unidos e
mo de representação, ao mesmo tempo em que à responsabilização das mulheres pelas compras
opera como constituidor de identidades culturais. E da casa. Enquanto estas se tornavam o público
nesse sentido, de acordo com Sabat (1997), muito alvo da indústria alimentícia, de eletrodomésticos
mais do que seduzir o/a consumidor/a, ou induzi- e cosmética, a publicidade ganhou força social,
-lo/a a consumir determinado produto, tais pedago- passando a interferir nas escolhas, preferências e
gias e currículo culturais, próprias da publicidade, necessidades de consumo.
entre outras coisas, estariam produzindo valores Matérias veiculadas em edições de Seleções
e saberes; regulando as condutas e os modos que circularam entre as décadas de 1950 e 1960,
de ser; fabricando identidades e representações; através de artigos ou mesmo através de matérias
constituindo, assim, certas relações de poder. publicitárias, ilustram tal situação.
No artigo intitulado Uma criatura sem par: a
Mulher: da função social ao “consumo” avoada (Seleções, fevereiro de 1950, p. 61) é pos-
sível identificar certa “apologia” a situações de
Fraisse e Perrot (1991)12 argumentam que as
mulheres reconhecidas como “fúteis”, por serem
normas estabelecidas no início do século XIX
“avoadas”, engraçadas e consumistas, apenas
seriam normas coletivas que definem uma função
preocupadas com os vestidos das outras mulhe-
social à mulher, a de esposa e de mãe, regula-
res que entram na festa. De forma semelhante,
mentando o direito da mulher em função dos seus
encontro na mesma edição, em Como são as
deveres, o que caracterizaria finalmente as mulhe-
americanas? uma narrativa que apresenta mulhe-
res como um grupo social cujo papel e comporta-
res que gastam grandes somas em dinheiro com
mento deve ser uniformizado, e portanto, idealizado
tratamentos de beleza, penteados e correção de
11 Denise Rugani Töpke, da Faculdade de Comunicação Social do Rio de formas para melhorar a aparência ou acentuar o
Janeiro, nos apresenta, em sua Dissertação de Mestrado intitulada “Miss sex appeal. Ao mesmo tempo em que a revista
anos dourados: as representações da mulher nos anúncios da Seleções do apresentava narrativas que ironizava e/ou critica-
Reader’s Digest” um interessante estudo em que toma como corpus de aná-
lise vinte anúncios – de higiene e beleza – da revista Seleções que circularam
va tais perfis femininos, difundia representações
na década de 1950. de uma mulher diferenciadamente marcada pelo
12 FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle. Introdução: ordens e liberdades. estilismo hollywoodiano. Isso tudo descrito como
In: FRAISSE, Geneviève & PERROT, Michelle (orgs.). História das mulheres no fazendo parte do desejo de ser mais femininas,
ocidente – o século XIX. São Paulo, SP: Afrontamento, 1991. v.4.
Representações da mulher na literatura de autoria masculina ou feminina: a (des)construção do estereótipo II
conforme aparecia em alguns textos enaltecendo a presença dos astros de Hollywood que povoavam
feminilidade. Esse “novo” estado de ser da mulher suas páginas. Mira (2003), citando o estudo de
alinhava-se ao “novo” que impregnaria as mais Meneghelo, no qual a autora enfatiza o modo como
variadas matérias, o que podemos reconhecer já se materializaria o elo entre cinema e revista, argu-
em seus títulos, nos quais é possível localizar o menta que tais modos estariam expressos na:
“novo” como constantemente presente, vejamos: [...] maneira de se viver, de arrumar a casa,
Última novidade em pintura de casas (Seleções, de conquistar o amor, de se vestir, de viajar,
dezembro de 1961); Novos usos para os átomos de ter uma família. Felicidade, simplicidade,
“neuróticos” (Seleções, dezembro de 1961); A nova glamour e sofrimentos são desenrolados
professora (Seleções, agosto de 1964); Nova era da como em um novelo no “depois dos filmes”
madeira (Seleções, novembro de 1953); Novidades pelas publicações, fotos, músicas. Os modos
em borracha (Seleções agosto de 1953); Nova ope- de ser hollywoodianos são vários, e longe de
ração para corações doentes (Seleções, novembro estarem isolados para o momento do “tempo
de 1957); dentre outros. Nas matérias publicitárias, dos sonhos”, estão altamente cotidianizados.
um outro exemplo, encontramos slogans exaltando Percebe-se como o cinema norte-americano
igualmente o “novo”, expresso da seguinte manei- efetivamente tem seus canais interacoplados,
ra: As novas maquillage para os olhos de Helena de maneira a promover a formação de um
Rubinstein (Seleções, janeiro de 1960); as novas re- gosto e de uma moral, agenciando processos
ceitas de Maizena (Seleções, janeiro de 1960); a sua de subjetivação. (MENEGHELO apud MIRA,
chance depende de um novo Westclox (Seleções, 2003: p. 31)14
novembro de 1957); conheça o novo modelo da
Walita (Seleções, junho de 1955); nova embalagem
das Sardinhas Coqueiro, novo sabor para seus pra- A beleza tornava-se “fundamental”, e a indústria
tos (Seleções, fevereiro de 1953); Exclusivo! Novo cosmética aproveitou-se da representação femini-
Chevrolet (Seleções, fevereiro d e1963); Nova es- na criada pelo cinema para, através das promes-
cova York (Seleções, outubro de 1960). Juntamente sas publicitárias, adentrarem a vida das mulheres. 433
com o “novo”, alguns anúncios incorporavam o Quando da entrada de Seleções no Brasil, em
termo “moderno”, como por exemplo: Frigidaire, 1942, os cosméticos eram raramente anunciados.
modernos aperfeiçoamentos, novos detalhes de Gradativamente a partir de 1944 observa-se uma
qualidade (Seleções, março de 1963); Insuperáveis intensificação na sua presença. Exemplifico com
e modernos eletrodomésticos Lorenzetti (Seleções, a propaganda de alguns produtos: produtos da
março de 1963); dentre outros. marca Michel, em que se pode ler: Batons, rouge,
Buitoni (2009) nos dirá que o termo “moder- pó de arroz realçam a formosura. Não é verdade?15;
no”, que passa a ser utilizado pela imprensa de no anúncio do creme Pond’s, presença constante
um modo generalizado estaria representando o nas revistas a partir de 1943, lê-se: A arte de ser
“novo”13, contudo, esse “novo” não seria vanguar- mulher... educada, fina, impondo-se como valor ar-
da, não inovaria. Seria sim, o novo que não perten- tístico e intelectual, a Eva moderna não se descuida
ce à arte e sim ao consumo. Assim, a partir desse de ser mulher... Normalmente são peças publicitá-
enfoque, e em especial, no final da década de 1940 rias ilustradas com fotografias – ao estilo hollywo-
e início da de 1950 a mulher estaria sendo instada a diano, de mulheres identificadas como sendo da
renovar-se dia a dia, da cabeça aos pés. A mulher, “elite” americana e brasileira.
então, não pode ser bela, sensível, alegre por si No início da década de 195016 o merchandising
só. Ela só conseguirá essas qualidades se “tiver” explícito e admitido do Reader’s Digest passa a
determinados objetos. Para “ser” ela precisa “ter” introduzir em suas edições – ora localizado nas
(BUITONI, 2009, p. 196). primeiras páginas, ora no meio, ora nas últimas
Estudos da área da comunicação apontam para paginas –, matéria assinada por Nancy Sasser.
o efetivo interacoplamento entre a indústria cine- Inicialmente ocupando duas páginas, a matéria
matográfica norte-americana e as revistas – entre vai ganhando mais espaço na revista, atingindo
as décadas de 1940 e 1950 –, na promoção de cinco páginas, e poderia ser caracterizada como
um gosto e de uma moral, através da constante contendo uma mistura de contato “direto” com
13 Conforme Buitoni(2009) o “novo” surge idealmente na década de 1900 14 MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revista: a segmentação da
(a mulher é o novo bom que há nas coisas), para começar a se delinear mais cultura no século XX. São Paulo. SP. FAPESP, 2003.
claramente na década de 1930 (a nova mulher, profissional independente) e ir 15 Seleções do Reader’s Digest, tomo V nº 27 – abril de 1944.
crescendo nas etapas seguintes, 1940, 1950. Sendo que o termo “moderno” 16 É possível encontrar essa seção nas edições da revista Seleções que
passa a ser bastante utilizado. circularam até o final da década de 1960.
VIII Outras representações do feminino
leitores, conselhos e, mais especialmente, publici- panheira da mulher”, conversando com ela sobre
dade. Nancy Sasser era uma personagem criada seus problemas cotidianos. Muito provavelmente a
para responder às dúvidas das leitoras sobre como criação e inserção da coluna de Nancy Sasser, na
resolver problemas de casa, com os filhos, assun- revista Seleções, como vimos no parágrafo ante-
tos de beleza e utensílios para o lar. Conforme nos rior, estaria imbricada em aspectos conjunturais de
explica o publicitário Edeson Ernesto, que traba- um momento que propiciariam seu sucesso.
lhou nos escritórios do Reader’s Digest, no Brasil, Inúmeros outros olhares e análises podem
nesse período. ainda ser realizados nesse material, mas, devido
aos limites propostos para esse trabalho, encami-
Eu mesmo cheguei a escrever algumas no- nho sua finalização.
tinhas para a Nancy Sasser. Era uma tabela
paga, aberta, assumida, e eu acho que até Encaminhando o necessário fechamento
estava escrito “Informe publicitário”, e a Nancy
As análises aqui apresentadas, sem a pretensão
Sasser dava conselhos. “Se você tem proble-
de serem únicas, ou mesmo serem esgotadas,
ma com o cabelo, se a roupa enruga e não
sendo, portanto, singulares, permitem pontuar
passa, se esse está queimando, se está dando
alguns dos discursos sobre a representação da
brilho, ou se o chão precisa encerar e eu não
mulher que estariam presentes na revista Seleções
sei”, ela explicava tudo. Então, o anunciante
que circulou no Brasil no período recortado para
dava as referências e nós lá no Reader’s Di-
esse estudo.
gest fazíamos. Seriam quase dicas. As cartas
eram verdadeiras: “Experimentei tal coisa, As análises empreendidas no material permitiu
quero agradecer à senhora.” Essa Nancy fazer breves reflexões sobre as diversas repre-
Sasser já existia nos Estados Unidos. Seria a sentações da mulher que circulavam na revista, no
tia Chiquinha, a vovó Estela. As cartas eram período, intermediadas e constituídas pela cultura,
voluntárias. O Reader’s Digest vendia espa- abrangendo tanto imagens tradicionais, ligadas à
434 maternidade, ao cuidados com a casa, à sedução
ço como se fosse publicidade, mas era uma
sessão de quatro, cinco páginas. Isso aí foi feminina, quanto representações que apontam
a primeira maneira aberta de merchandising. para novas identidades. Essa “nova identidade”
Não tinha logotipo nem ilustração nem nada. seria aquela que estaria sendo interpelada por
Era texto. Só que eram textos em blocos. Não nuances dos discursos feministas. O estudo,
contava uma história toda e enfiavam os anún- identificou, também, o quanto a publicidade pode
cios, feito novela de televisão.17 ser considerado com um dos agenciadores de tais
representações e o consumo como um dos produ-
tos desse agenciamento.
O contato direto com os leitores através de car- Finalizo essa escrita com um excerto extraído do
tas, muito provavelmente, encontre semelhanças artigo de Phyllis McGinley, da própria revista anali-
em alguns modelos de merchandising, conside- sada, que deu origem às reflexões deste trabalho,
rados “inovadores”, adotados pela imprensa, na o qual aborda “A honra de ser mulher”:
França e, posteriormente introduzida nos Estados
Unidos, no início da década de 1940. Mira (2003)
nos explica que a revista Confidences, seria um [...] Carregamos os terríveis fardos de igual-
desses exemplos. Confidences foi uma revista dade, e nossos ombros vergam um pouco
que provocou uma verdadeira catarse na França, porque a igualdade é apenas nominal. As
pelas respostas que dava a correspondências que mulheres, sustento eu, não são iguais aos
recebia de seus leitores – na década de 1940. Tal homens senão na responsabilidade. Também
fórmula de contato com os leitores teria sido ele- não somos inferiores a eles, nem mesmo
mento principal a ser incorporado na publicação de superiores. Somos simplesmente uma raça
revistas. A revista Confidences conforme a autora diferente. É outra corrente que pulsa em nosso
caracterizava-se por não considerar mais a mulher sangue[...] (Phyllis McGinley – Seleções, janeiro
como uma boneca a ser vestida ou meramente de 1960, p. 88).
mãe de família, mas teria se tornado “uma com-
Intriga-me pensar sobre quais seriam os discur-
17 COELHO, Edeson Ernesto. Edeson Ernesto Coelho (depoimento, 2004). Rio
de Janeiro, CPDOC, ABP – Associação Brasileira de Propaganda, Souza Cruz, sos sobre a representação da mulher que estariam
2005. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/historiaoral/arq/Entrevista1213. nos subjetivando hoje.
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Outras representações do feminino VIII
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VIII Outras representações do feminino
Com certeza vivemos outros e novos tempos, Na esteira desse pensamento, visualizamos,
e o movimento feminista parece atravessar um também, a obra de Lispector destinada a imprensa
necessário e importante período de amadure- feminina. Considerando esse recorte, existiam dois
cimento e reflexão. O que não se sabe é como estilos de jornalismo definidos: o “tradicional”, que
retornará na próxima onda. Aliás, nem mesmo propagava a ideia de que a mulher ainda deveria se
é possível saber se haverá outra onda, que dedicar às atividades vinculadas ao lar e à família, e
formato e dimensões poderia ter. o “progressista”, defensor dos direitos das mulhe-
res. Essa imprensa feminina de cunho progressista
foi, tardia e primeiramente, realizada por homens,
O lugar que a mulher passa a ocupar na socie- a guisa de exemplificação, o Jornal de Senhoras
dade em virtude do movimento feminista se re- editado em 1852, no fito de fazer com que o sexo
flete em setores como a crítica literária, até então masculino passasse a visualizar e respeitar o novo
destinada quase em sua totalidade ao domínio lugar do feminino que se organizava na sociedade
masculino. As mulheres passaram a escrever tanto ocidental. Paulatinamente, essa imprensa fomenta-
literatura quanto crítica literária sem temer a rejei- dora de um olhar libertário para o universo feminino
ção masculina típica de outros tempos. Há, a partir também será elaborada por mulheres.
dessa nova crítica, o resgate da produção literária
Entretanto, moda e dicas de como se vestir bem
feminina esquecida até então, o que resultou, no
sempre foram temas do universo literário feminino,
Brasil, na descoberta de obras de inúmeras es-
porém, na escrita de Lispector, essas questões
critoras do século XIX nunca antes citadas pela
se elaborarão no fito de deslocar esses lugares
crítica.
comuns mediante a crítica aos costumes sociais,
Nas primeiras décadas do século XX a lista de viabilizando a equidade entre homens e mulheres.
escritores reconhecidos traz pouquíssimos nomes Com efeito, a década de 50 do século XX corres-
de mulheres; já a partir dos anos de 1970 há uma ponde a um momento de intensa produção da
modificação neste quadro, pois escritoras como imprensa feminina no Brasil, haja vista ser desejo
438 Cecília Meireles e Raquel de Queiroz, reconhecidas da mulher brasileira, que já conseguira o direito
nacionalmente, fazem com que diversas outras ao Ensino, discutir as questões relacionadas ao
mulheres sejam inseridas no mercado editorial. Por ambiente doméstico, mas, sobretudo, problemati-
sua vez, foi Clarice Lispector quem abriu “uma tra- zar os dilemas sentimentais (des)construídos frente
dição para a literatura da mulher no Brasil, gerando essa (re)formulação social.
um sistema de influências que se fará reconhecido
Mediante uma linguagem simples e acessível
na geração seguinte”, como destaca Lúcia Helena
a todos os tipos de leitoras, Clarice se valerá dos
Viana (1995, p. 172).
pseudônimos Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka
Não há intuito de classificar a obra de Clarice Soares para ultrapassar o trivial e o corriqueiro,
Lispector como feminista, mas, sim, de mostrar presentes no cotidiano das mulheres brasileiras,
que há um questionamento de diversos valores conduzindo-as ao lugar da emancipação feminina.
patriarcais, apontando outro caminho ficcional É dessa perspectiva da (des)construção do senso
baseado na conscientização do ser humano, mas comum em direção a outro lugar para o feminino
valorizando o universo feminino marcado pela que passaremos à leitura da seção “Aulas de sedu-
repressão diante de uma sociedade guiada por ção”, da obra O Correio Feminino (2006), de Clarice
preceitos dos homens. Então, segundo Zolin (2005, Lispector. Faz-se mister sublinhar que a obra em
p. 280) “são narrativas que questionam, por meio questão corresponde a reunião das crônicas clari-
de discurso irônico, o modelo patriarcal em que a ceanas publicadas nos jornais Correio da Manhã,
mulher fica reduzida ao que o espaço privado pode O comício e Diário da Noite.
lhe proporcionar”.
Ao atentar para a escritura de Clarice Lispector,
Tais questões podem ser observadas na cole- é notório o alto grau de introspecção aliado ao
tânea de contos Laços de família (1998), em que processo de epifania e de fluxo de consciência.
algumas narrativas são representativas desses Sua literatura sempre foi observada como retrato
questionamentos acerca da relação mulher-socie- do cotidiano feminino em diversas implicações
dade. Os contos “Amor” e “A imitação da rosa”, rotineiras, suscitando, em suas personagens, a
são bons exemplos do enquadramento da mulher conscientização, mesmo que momentânea, de seu
na vida familiar e de como esta é responsável pelo papel enquanto mulheres, tanto em família quanto
massacre de anseios e desejos, aprisionando a em sociedade.
consciência crítica e legando à mulher a obediência
Além dessa literatura encontrada em contos,
a regras basilares da família patriarcal brasileira.
Outras representações do feminino VIII
romances, pulsações, ficção e novela, Clarice Lis- “Descobrindo o próprio ‘sex-appeal’”, podemos
pector, como já mencionado, dedicou-se à escrita observar as sutilezas de discursos que perpassam
de crônicas para o público feminino em páginas de a atitude feminina aliada à valorização da mulher,
alguns jornais brasileiros. A decisão de assinar com indicando uma possível postura feminista. Em
pseudônimos, revela inicialmente o temor de que momentos como o apontado na crônica “Qualida-
tais textos não fossem entendidos e aceitos pelo des para tornar a mulher mais sedutora”, Clarice
público de seus livros, uma vez que o teor era bem Lispector afirma que
diferente daquele encontrado em seus escritos já
conhecidos.
Os tempos modernos trouxeram a emancipa-
Segundo Aparecida Maria Nunes (2006, p. 7-8): ção da mulher em quase todos os campos.
Eis um grande bem. No entanto, muita con-
Clarice tinha consciência de que não podia fusão se faz em torno disto e o que se vê é
esquecer o perfil do público para quem dava que muitas representantes do sexo feminino
conselhos utilitários e ensinava a refletir sobre entendem que ser emancipada e ter persona-
cenas domésticas e do universo da mulher. A lidade marcante é imitar os homens em todas
ficcionista sabia também que tinha de mane- as suas qualidades e defeitos. (LISPECTOR,
jar uma linguagem mais despojada e adotar 2006, p. 100).
um discurso calcado na estética da impren-
sa feminina, construída no tom de conversa
Nesse sentido, perceptível o destaque dado ao
íntima, afetiva e persuasiva. [...] Assim, seguin-
novo papel que a mulher estava assumindo na so-
do disfarçadamente a natureza dos textos da
ciedade, não mais aquela submissa e dependente
imprensa feminina, Clarice publicará algumas
do homem, mas capaz de trilhar os próprios cami-
narrativas, sob a forma de conselhos, receitas
nhos e segui-los, sem que houvesse preocupação
e segredos. Textos esses que seguem o pa-
com discurso arcaico da supremacia masculina.
radigma da imprensa feminina, bem ao gosto 439
do status quo. Porém, a página de jornal, ao se Ao mesmo tempo em que Clarice Lispector
tornar espaço de diálogo, aproximando a colu- apresenta a suas leitoras a posição dessa nova
nista de sua interlocutora, através do fio con- mulher na sociedade, ela afirma que a feminilidade
dutor “a mulher e o espaço em que vive”, em é algo fundamental para a arte da sedução que
alguns momentos, poderá se transformar em se configura, também, por outros fatores como
pretexto para a escritora iniciar a leitora. Ao a alegria e a delicadeza dos gestos, das atitudes
conquistar seu público pelo tom de confidente e das palavras. Além disso, observa-se a ênfase
e conselheira, Clarice Lispector, valendo-se dada à personalidade, pois a mulher que pretende
dos “pequenos textos inofensivos” sobre o ser sedutora não pode se impor com gritos e com
comer, o vestir, o enfeitar-se, instiga sua leitora exigências, mas moldar uma personalidade ao lado
a refletir sobre as duas realidades em que se de seu companheiro, ajudando-o, incentivando-o e
estrutura a realidade: o mundo das simulações compreendendo-o.
e o da verdadeira natureza das coisas. Aliar um discurso feminino a uma postura apa-
rentemente feminista parece contraditório, mas é
importante ressaltar que Clarice Lispector não se
No capítulo da obra em estudo, Clarice Lispector preocupa em levantar bandeiras defendidas pelas
apresenta métodos da sedução a suas leitoras. O feministas, mas apenas mostrar a autonomia femi-
estilo elaborado é claro, didático e, quase sem- nina frente a uma nova estrutura familiar advinda
pre, as informações são tratadas como verdades da evolução e das conquistas adquiridas ao longo
inquestionáveis. As possibilidades descritas para de anos, conquistas essas que não fazem mais da
que a mulher não apenas se sinta, mas se apresen- mulher um ser submisso e sem destaque na família
te sedutora são diversas: trato na aparência física, e na sociedade.
personalidade cativante, alegria, delicadeza, femini- É possível entrever que, a todo o momento, a
lidade, postura corporal, tons a serem utilizados em autora procura despertar em suas leitoras as duas
roupas, como se perfumar, entre outros, sempre posturas, a de mulher atraente e sedutora e a de
na busca de ensinar e despertar em suas leitoras a mulher autônoma e consciente de seu papel, pois
arte da sedução. é fundamental que “A mulher deve ser primeiro
Em crônicas como “Sedução e feminilidade”, que tudo feminina” (LISPECTOR, 2006, p. 100). Há
“Qualidades para tornar a mulher mais sedutora”, momentos de críticas a mulheres que veem nessa
VIII Outras representações do feminino
autonomia feminina um motivo para perder a femi- DELEUZE, G; GUATARI, F. Mil mesetas – ca-
nilidade e buscar se igualar ao homem fisicamente pitalismo y esquisofrenia. Valencia: Pre-textos.
e em gestos, como observado neste trecho da crô- p.9-32.
nica “Sedução e feminilidade”: “Muitas mulheres FUNCK, S. B. Da questão da mulher à questão
modernas adotam atitudes masculinizadas, pala- do gênero. In. FUNCK, S. B. (org.)Trocando ideias
vreado grosseiro, liberdade exagerada de lingua- sobre a mulher e a literatura. Florianópolis:
gem ou de maneiras, e julgam que isso é bonito, UFSC, 1994, p 17-22.
que vão encantar os homens.” (LISPECTOR, 2006, HARVEY, D. Condição pós-moderna. 12 ed.
p. 95). São Paulo: Loyola, 2003. 352p.
Em crônicas como “A cor do glamour”, “Perfu- HOLLANDA, H. B. Os estudos sobre a mulher
me, a mais antiga das armas”, “O perfume deve e a literatura no Brasil: uma primeira avaliação. In:
anunciar a presença da mulher”, “O mistério do COSTA, A. O.; BRUSCHINI, C. (org.) Uma questão
perfume”, “Perfume e veneno”, “Frascos”, “Como de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos; São
se perfumar”, entre outras, Clarice Lispector abor- Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 54-92.
da a atitude de se perfumar e como transformar
LISPECTOR, Clarice. Correio feminino. (org.)
esse ato rotineiro em uma arma de sedução. Para
Aparecida Maria Nunes. Rio de Janeiro: Rocco:
tanto, ela critica os excessos, demonstra os melho-
2006.
res locais para se aplicar o perfume, explica qual o
melhor tamanho de frascos, comenta sobre o tipo _______. Laços de família. Rio de Janeiro:
de perfume e os melhores horários para usá-lo, Rocco, 1998.
entre diversas outras dicas a serem seguidas por PIGLIA, R. Teses sobre o conto e Novas teses
suas leitoras para se aprimorar a arte da sedução. sobre o conto. In: Formas breves. Tradução de
Clarice também aborda outros assuntos em suas José Marcos Maria de Macedo. São Paulo: Com-
crônicas, apontados como fundamentais no desen- panhia das Letras, 2004. p. 89-114.
volvimento e aprimoramento da sedução feminina, TADIÉ, J. O romance no século XX. Lisboa:
440 a saber: a importância da autenticidade da mulher Publicações Dom Quixote, 1992. 208p.
para criar seu próprio método de sedução; a arte VIANA, L. H. Por uma tradição do feminismo na
de seduzir em outras épocas da história e os mé- literatura brasileira. In: SEMINÁRIO NACIONAL
todos utilizados pelas mulheres desses tempos; o MULHER E LITERATURA, 5, 1993, Natal, Anais...
fato de ser irresistível sem possuir beleza; o fato do Natal: UFRN, Universitária, 1995, p. 168-174.
homem moderno não buscar apenas uma mulher ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica feminista. In: Teoria
bonita; o tema do amor relacionado à idade; dicas literária: abordagens históricas e tendências
de cultura geral; a utilização de cores; atitudes contemporâneas. organização Thomas Bonni-
e gestos utilizados pelas mulheres; entre outros ci, Lúcia Osana Zolin. 2 ed. rev. e ampl. Maringá:
temas desse universo. Eduem, 2005, p. 181-203.
Como podemos notar, em suas crônicas des- _______. Literatura de autoria feminina. In: Teo-
tinadas às “Aulas de sedução”, Clarice Lispector ria literária: abordagens históricas e tendências
perpassa as diversas facetas da mulher na socie- contemporâneas. organização Thomas Bonni-
dade, destacando-a como um ser emancipado ci, Lúcia Osana Zolin. 2 ed. rev. e ampl. Maringá:
do homem. Apesar dessa nova postura, a autora Eduem, 2005, p. 275-283.
afirma a necessidade dessa mulher não perder
sua feminilidade. Para tanto, as dicas dadas neste
capítulo estão naquilo que está aparente e su-
bentendido na mulher; em seus gestos, atitudes
e posturas; na busca de um único aprendizado: a
arte da sedução.
Referências Bibliográficas
CAMPOS, M. C. C. Palavras da crítica. Rio de
Janeiro: Imago, 1992.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo
milênio. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. 144p.