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ABHIDHARMA

Introdução

Sob a perspectiva da prática pode ser dito que o Budismo consiste de três
ensinamentos superiores, (adhisikkha): a ética, (sila), o desenvolvimento da mente
ou meditação, (bhavana) e a sabedoria, (pañña). Todos esses três elementos são
essenciais para alcançar a libertação do sofrimento. Apenas um ou dois deles não
será o bastante. Em linhas gerais, pode ser dito que a doutrina Budista contida
no Tipitaka,ou ‘três cestos’, está organizada de modo a correlacionar-se com esses
três elementos essenciais. Assim o primeiro ‘cesto’ da Disciplina, (Vinaya),
corresponde ao ensinamento da ética, os Discursos, (Sutta), correspondem aos
ensinamentos de meditação enquanto que o terceiro ‘cesto’, o Ensinamento mais
Elevado, (Abhidhamma), corresponde aos ensinamentos da sabedoria. Com base
nesse modelo, aqueles que têm como meta o objetivo máximo do Budismo
deveriam, além do cultivo da ética e da meditação, aprender também algo do
Abhidhamma. O estudo do Abhidhamma permite a formulação de um estrutura
filosófica prática que poderá ser empregada para vários fins: a investigação das
experiências na prática da meditação de insight e a interpretação dos ensinamentos
contidos nos outros dois ‘cestos’, os Suttas e o Vinaya, cuja exegese num nível
avançado é guiada pelos princípios do Abhidhamma.

O Abhidhamma possui a reputação de ser um ensinamento denso e difícil, talvez


derivado do fato de, originalmente, nas sociedades Budistas tradicionais apenas
monges e monjas estudarem-no, enquanto que as pessoas leigas se contentavam
com os Suttas e algumas narrativas do Vinaya. O Vinaya diz respeito ao Buda e à
comunidade monástica. Abrange a história das suas vidas e da comunidade,
incorporando os julgamentos éticos feitos pelo Buda de acordo com cada situação
individual que conforme o caso resultava numa regra de conduta para toda a
comunidade. Os Suttas são os discursos proferidos pelo Buda e pelos seus discípulos
mais graduados dirigidos a audiências específicas. O Abhidhamma apresenta os
ensinamentos contidos nos suttas num formato abstrato, estruturado, com uma
aparência altamente técnica, empregando esquemas ou matrizes para representar a
totalidade da natureza da mente e matéria. O Abhidhamma consiste de 7
livros: Dhammasangani, Vibhanga, Dhatukatha, Puggalapaññatti, Kathavatthu,
Yamaka e Patthana, cada um deles com o seu respectivo
comentário: Atthasalini, (do Dhammasangani), Sammoha-vinodani, (do Vibhanga),
ePañcappakarana-atthakattha, (os demais cinco livros). Todos os comentários foram
obra de Acariya Buddhaghosa, o mais eminente dos comentadores do Cânone em
Pali. Buddhaghosa era um monge hindu que foi para o Sri Lanka no século V da era
cristã para estudar os antigos comentários compilados em Cingalês que haviam sido
preservados no Mahavihara, o Grande Monastério que era o centro da ortodoxia
Theravada em Anuradhapura. Com base nesses comentários, Buddhaghosa compôs
novos comentários no idioma internacional do Theravada, atualmente conhecido
como Pali. Esses comentários, compostos com refinamento e coerência doutrinária,
não são obras originais que expressam o pensamento de Buddhaghosa mas versões
editadas e sintetizadas dos comentários antigos. Esses comentários antigos não
sobreviveram ao desgaste dos anos. A obra prima de Buddhaghosa, o
Visuddhimagga, é na verdade uma obra de “Abhidhamma na prática” e os capítulos
14-27 constituem um compêndio resumido da teoria do Abhidhamma como
preparação para a meditação de insight.

A Origem do Abhidhamma

O Tipitaka ou Cânone em Pali foi compilado durante os três grandes concílios que
ocorreram na Índia depois da morte do Buda. O primeiro concílio ocorreu em
Rajagaha três meses depois do Parinibbana do Buda. Nesse concílio se reuniram 500
monges arahants liderados pelo Ven. Mahakassapa, onde foram recitados todos os
ensinamentos do Buda. A recitação do Vinaya pelo Ven. Upali foi aceita como o
Vinaya Pitaka; a recitação do Dhamma pelo Ven. Ananda ficou estabelecida como o
Sutta Pitaka. Cem anos após o Parinibbana do Buda houve o segundo concílio em
Vesali. O terceiro concílio ocorreu em Pataliputra duzentos anos depois do
Parinibbana do Buda e nesse concílio o Abhidhamma foi recitado. Mas essa
explicação não é suficiente para dar resposta à questão sobre como surgiram esses
textos. Ao contrário dos suttas e dos relatos das regras monásticas no Vinaya, os
livros do Abhidhamma não trazem qualquer informação quanto à sua origem. Os
comentários, no entanto, atribuem essa dissertação ao próprio Buda. O Atthasalini,
que traz o relato mais explícito, menciona que o Buda concretizou o Abhidhamma na
noite da sua iluminação e que a investigação em detalhe foi realizada durante a
quarta semana após a iluminação. Depois disso, durante o sétimo retiro das chuvas o
Buda ensinou o Abhidhamma para as divindades do Paraíso de Tavatimsa que incluía
uma divindade que havia sido antes a sua mãe. Como demonstração de gratidão
para com a sua mãe, que havia falecido sete dias depois do seu nascimento, o Buda
ensinou o Abhidhamma durante três meses, para que aquela divindade pudesse
alcançar a libertação final. A cada manhã, durante esse período, ele voltava ao plano
humano para a sua refeição diária quando então ensinava os métodos ou princípios
da doutrina que ele havia tratado para o seu discípulo principal Sariputta. A
elaboração detalhada dos ensinamentos do Abhidhamma a partir dos princípios
gerais definidos pelo Buda é atribuída a Sariputta que teria transmitido esses
ensinamentos aos seus discípulos diretos. O Anupada Sutta (MN 111) relata uma
análise detalhada dos processos mentais feita pelo Ven. Sariputta. Muitos outros
suttas como por exemplo o Madhupindika Sutta (MN 18) e
o Uddesavibhanga Sutta(MN 138) também ilustram situações em que o Buda
transmite um ensinamento de forma sumária cabendo aos seus discípulos mais
próximos analisar aquilo que foi dito de forma resumida. Sob o ponto de vista
Theravada o esquema exposto pelo Abhidhamma é considerado como pertencendo
ao domínio dos Budas, ou seja, não é a invenção do pensamento especulativo ou
discursivo, ou um mosaico de hipóteses metafísicas, mas a exposição da verdadeira
natureza da existência tal como foi compreendida por uma mente que penetrou a
totalidade das coisas tanto nos seus níveis mais profundos como no seus maiores
detalhes. Dado esse caráter, o Abhidhamma expressa do modo mais perfeito possível
o conhecimento onisciente do Buda. É a manifestação de como as coisas são,
compreendidas pela mente de um Buda, organizadas de acordo com os dois marcos
principais dos seus ensinamentos: o sofrimento e a cessação do sofrimento. Nos
países Theravada como o Sri Lanka, Myanmar e Tailândia, o Abhidhamma é
altamente apreciado e reverenciado como o pináculo das escrituras Budistas. Como
exemplo da estima que o Abhidhamma desfruta, o rei Kassapa V do Sri Lanka (séc. X
da era cristã) ordenou que todo o Abhidhamma fosse inscrito em placas de ouro e o
primeiro livro decorado com gemas preciosas.

No entanto, nos círculos acadêmicos existem opiniões distintas quanto à origem do


Abhidhamma, e baseados em estudos comparativos dos diversos textos disponíveis é
traçada uma rota alternativa para os textos canônicos. A palavra abhidhamma
aparece nos suttas, mas em contextos que indicam que era um assunto de discussão
entre os monges, ao invés de um ensinamento transmitido pelo Buda. Algumas
vezes a palavra abhidhamma é encontrada junto com abhivinaya e podemos supor
que os dois termos se referem respectivamente ao tratamento analítico,
especializado, da doutrina e da disciplina monástica. Um outro fator que os
acadêmicos contemporâneos consideram ter sido uma semente no desenvolvimento
do Abhidhamma é o uso de certas listas mestras para representar a estrutura
conceitual dos ensinamentos do Buda. Com o propósito de facilitar a memorização e
visando auxiliar nas explicações, os especialistas na doutrina dentro da Sangha com
freqüência formulavam os ensinamentos sob uma forma esquemática. Esses
esquemas, que se baseavam nos conjuntos numéricos que o próprio Buda usava com
regularidade como armação para expor a sua doutrina, não eram mutuamente
exclusivos mas se combinavam e mesclavam de modo a permitirem a sua integração
em listas mestras que se assemelhavam a diagramas em forma de árvore. Essas
listas mestras eram chamadasmatikas, ‘matrizes,’ e a habilidade exigida para o seu
uso era algumas vezes considerada como uma das qualidades de um monge erudito.
Para ser competente no uso das matikas era necessário conhecer não somente os
termos e suas definições, mas também a sua estrutura subjacente e o arranjo
arquitetônico que revelavam a estrutura lógica interna do Dhamma. Uma fase inicial
do Abhidhamma pode ter consistido da elaboração dessas listas mestras, uma tarefa
que exigiria um conhecimento abrangente dos ensinamentos e capacidade para um
raciocínio com precisão técnica rigorosa.

Mesmo para os não Budistas que não consideram ter sido o Buda um ser onisciente,
mas apenas um eminente e profundo pensador, parece ser improvável que o Buda
não pudesseter ciência das implicações filosóficas e psicológicas dos seus
ensinamentos, mesmo que ele não falasse sobre isso desde o princípio para todos os
seus discípulos. Considerando a inegável profundidade do Abhidhamma, parece mais
provável que pelo menos os seus ensinamentos básicos derivam daquela intuição
profunda que o Buda chamava samma sambodhi, a Perfeita Iluminação. Parece,
portanto, plausível que a tradição Theravada atribua a estrutura e os elementos
básicos do Abhidhamma ao próprio Buda. Uma questão totalmente distinta, é claro, é
a origem da literatura ordenada do Abhidhamma tal como a conhecemos hoje. Os
textos do Abhidhamma, que foram apresentados no terceiro concílio em Pataliputra,
que constituíram o núcleo original do Abhidhamma Pitaka do Theravada, podem ter
continuado a evoluir por alguns séculos mais. No primeiro século antes da era cristã
o Abhidhamma Pitaka, juntamente com o restante do Cânone em Pali, foi registrado
em forma escrita pela primeira vez no Alokavihara no Sri Lanka. Essa versão
aprovada oficialmente marca o ponto terminal do desenvolvimento dos textos
canônicos do Abhidhamma Pitaka no Theravada.

Um outro elemento, que com freqüência é ignorado, é que ao fazer uma análise
comparativa do Abhidhamma com o Sutta Pitaka, são encontrados muitos suttas, em
particular no Samyutta Nikaya, que contêm uma quantidade considerável de análises
típicas do Abhidhamma. São discursos que fazem uso da linguagem sob a
perspectiva da realidade última, (paramattha), empregando estrita terminologia
filosófica e explicando a experiência como processos condicionados desprovidos de
uma entidade ou substância permanente; como exemplo, os suttas que tratam dos
cinco agregados, os dezoito elementos e os seis meios dos sentidos (khandhas,
dhatu, ayatana).

A Filosofia do Abhidhamma

Agora, em que sentido o Abhidhamma pode ser chamado de filosofia? Façamos a


grosso modo uma divisão da filosofia em fenomenologia e ontologia e vamos
caracterizá-las de modo sucinto da seguinte forma: a fenomenologia lida, como o
nome implica, com os “fenômenos”, isto é, com o mundo da experiência interno e
externo. A ontologia, ou metafísica, investiga e busca a existência e a natureza de
uma essência, ou princípio último, que dá suporte a todo o mundo dos fenômenos.
Em outras palavras, a fenomenologia investiga as questões: O queacontece no
mundo da nossa experiência? Como isso acontece? A ontologia por outro lado, insiste
que a questão “como” não pode ser respondida sem a referência a uma essência
eterna que dá suporte à realidade, podendo essa essência ser concebida como
imanente ou transcendente. Com freqüência neste caso, a pergunta “como” é
transformada em “porque”, assumindo a premissa tácita de que a resposta tem que
ser encontrada fora da realidade tal como ela se apresenta. O Abhidhamma, sem
dúvida, pertence à primeira dessas duas divisões da filosofia, isto é, a
fenomenologia. Mesmo o termo dhamma, tão fundamental no Abhidhamma, que
inclui as “coisas” corporais bem como materiais, pode muito bem ser interpretado
como “fenômeno”. Portanto, o Abhidhamma não é uma filosofia especulativa mas
descritiva. Com o objetivo de descrever os fenômenos o Abhidhamma emprega dois
métodos complementares: a análise e a investigação das relações, (ou
condicionalidade), dos fenômenos.

Os dois livros mais importantes do Abhidhamma são o Dhammasangani e


o Patthana-pakarana. O Dhammasangani é a classificação da existência em três
categorias últimas empíricas: consciência, (citta), fatores mentais, (cetasikas), e
mentalidade-materialidade, (nama-rupa). Nele é encontrada a análise sistemática
dos agregados, (khandhas), bases ou meios, (ayatana), e elementos, (dhatu).
O Patthana-pakarana é o maior volume compreendendo seis partes. Nele é
encontrado o modelo das relações condicionadas, uma das quatro principais
aplicações da doutrina da origem dependente. Essas quatro aplicações são:

As quatro nobres verdades

Os doze elos da cadeia do vir a ser

O modelo das relações condicionadas

A lei de kamma

O Dhamasangani é em essência um livro que contém classificações e definições dos


termos empregados no Abhidhamma. Seu enfoque é analítico, dissecando e
categorizando as experiências de acordo com os seus constituintes últimos ou
dhammas. O Patthana usa o método da síntese e mostra como todos esses
fenômenos estão relacionados e condicionados.

O Abhidhamma também pode ser considerado como uma sistematização das


doutrinas contidas ou implícitas no Sutta Pitaka. Essas doutrinas são formuladas no
Abhidhamma numa linguagem mais precisa, estritamente filosófica ou
verdadeiramente realista, descrevendo as funções e processos desprovidos dos
conceitos convencionais e irreais que assumem a existência de um agente, de uma
identidade, de uma alma ou substância.

Paramattha – a Realidade Última

De acordo com a filosofia do Abhidhamma existem dois tipos de realidade – a


convencional, (sammuti), e a última, (paramattha). A realidade convencional é o
referencial do pensamento conceitual comum e modos de expressão convencionais.
Isto inclui entidades como seres vivos, pessoas, homem, mulher, animais e os
objetos aparentemente estáveis que constituem o quadro que percebemos como
sendo o mundo. O Abhidhamma defende que essas noções em última análise não
possuem validade pois os objetos que elas representam não existem por si mesmos
como realidades irredutíveis. A sua existência é puramente conceitual, não real. Eles
são o produto de fabricações mentais, não realidades com uma substância inerente.

A realidade última, por outro lado, são os dhammas: elementos irredutíveis da


existência, as entidades últimas resultantes da correta análise da experiência. Esses
elementos são o nível de redução mais elementar dos fenômenos passíveis de serem
experimentados. São os verdadeiros constituintes da complexa multiplicidade das
experiências.

Nos suttas, em geral, o Buda analisa um ser ou indivíduo sob a forma de cinco tipos
deparamatha, os cinco agregados: matéria, sensação, percepção, formações mentais
e consciência. No Abhidhamma a realidade última é organizada em quatro
categorias. As três primeiras – consciência, fatores mentais e matéria – abrangem
toda a realidade condicionada. Os cinco agregados mencionados nos suttas se
encaixam dentro desses três grupos. O agregado da consciência, (viññana,) está
representado no Abhidhamma pela consciência, (citta), sendo que a palavra citta em
geral é empregada para se referir aos diferentes tipos de consciência que se
diferenciam de acordo com os seus fatores mentais concomitantes. Os três
agregados intermediários são incluídos no Abhidhamma dentro do grupo de fatores
mentais, (cetasika), os estados mentais que surgem juntamente com a consciência e
que desempenham diferentes funções. O Abhidhamma enumera 52 fatores mentais:
os agregados da sensação e percepção são considerados cada um como um fator; o
agregado das formações mentais, (sankhara), é subdividido em 50 fatores mentais.
O agregado da matéria é idêntico ao grupo da matéria no Abhidhamma. No
Abhidhamma a matéria está dividida em 28 tipos de fenômenos materiais.

A esses três tipos de realidade condicionada é adicionada uma quarta realidade que é
incondicionada. Essa realidade que não está incluída nos cinco agregados é Nibbana,
o estado de libertação final do sofrimento inerente aos estados condicionados.
Portanto, no Abhidhamma existem ao todo essas quatro realidades últimas:
consciência, fatores mentais, matéria e Nibbana.

Análise da Consciência

Um dos principais componentes do Abhidhamma é a análise e classificação da


consciência. A mente humana, tão evanescente e tão elusiva, foi submetida a um
escrutínio abrangente, meticuloso e imparcial. A abordagem adotada é de uma
rigorosa fenomenologia que descarta a noção de que na mente pode ser encontrada
qualquer tipo de unidade estática ou substância imanente. No entanto, essa
psicologia tem um fundamento básico na ética e um propósito soteriológico que
impede que a análise realista e não metafísica da mente acabe implicando em
conclusões de materialismo ético ou amoralismo teórico e prático. O método de
investigação empregado no Abhidhamma é indutivo, estando baseado
exclusivamente na observação introspectiva imparcial e sutil dos processos mentais.
O Buda conseguiu reduzir o processo de cognição aos seus distintos momentos de
consciência, que dada a sua sutileza e o seu caráter evanescente, não podem ser
observados diretamente por uma mente que não esteja treinada em meditação. Na
mente de cada ser ocorrem distintos tipos de estados mentais benéficos, hábeis ou
saudáveis, e prejudiciais, inábeis ou insalubres. Cada estado mental saudável tem o
seu correspondente oposto insalubre. Da mesma forma como as criaturas
microscópicas numa gota d’água só se tornam visíveis com o uso de um microscópio,
os processos acelerados e de curta duração da mente só são reconhecidos com o
auxílio de um instrumento preciso para o escrutínio mental – uma mente aprimorada
pelo treinamento metódico em meditação. O Anupada Sutta (MN 111) mencionado
acima, relata que o Ven. Sariputta, depois de emergir dos jhanas, analisou as suas
realizações meditativas de acordo com os seus respectivos fatores mentais
constituintes. Essa análise pode ser considerada como precursora da análise mais
detalhada proporcionada pelo Dhamasangani.

O Abhidhamma e o Mestre do Dhamma

Na tradição Theravada a familiaridade com o Abhidhamma é considerado requisito


indispensável para aqueles que querem ensinar o Dhamma. As características do
Abhidhamma que são de particular importância para alguém que queira ensinar o
Dhamma são as seguintes: a organização sistemática do material doutrinário contido
no Sutta Pitaka; o emprego do raciocínio metódico e ordenado; a definição precisa
dos termos técnicos e sua delimitações; o tratamento de vários temas e situações da
vida diária sob a perspectiva da realidade última, (paramattha); a maestria do
conteúdo doutrinário.

O Conhecimento do Abhidhamma é Indispensável?

Freqüentemente surge a questão sobre a compreensão do Abhidhamma, se ela é


necessária para o completo entendimento do Dhamma e para alcançar a libertação.
Mesmo no Sutta Pitaka muitos métodos são ensinados como ‘portas’ para a
compreensão e penetração das mesmas Quatro Nobres Verdades. Nem todas são
necessárias para alcançar o objetivo último, Nibbana, nem todas são adequadas na
sua totalidade para todos os tipos de indivíduos. Na verdade, o Buda ensinou
diversas abordagens possíveis e deixou por conta dos seus discípulos fazerem as
suas escolhas pessoais de acordo com as suas inclinações, circunstâncias e nível de
maturidade. O mesmo princípio se aplica ao Abhidhamma, quer seja no seu conjunto
ou aspectos individuais. Talvez, a melhor explicação da relação entre o Abhidhamma
e os suttas tenha sido formulada pelo Venerável Pelene Vajiranana Mahathera nestes
símiles: “O Abhidhamma é como uma lente de aumento poderosa, mas a
compreensão obtida dos suttas é o próprio olho, que realiza a ação de ver. Ou, o
Abhidhamma é como um frasco de remédio cujo rótulo contém uma análise exata e
detalhada do medicamento; mas o conhecimento adquirido dos suttas é o
medicamento em si, que por si só é capaz de curar a doença.”

Abhidhammattha Sangaha

Este trabalho, e em particular os compêndios da consciência, fatores mentais,


matéria e processo cognitivo, estão baseados no Abhidhammattha Sangaha que é
um livro escrito por Acariya Anurudha. Muito pouco é conhecido sobre o autor do
livro, nem mesmo o seu país de origem ou o período exato em que ele viveu.
Acredita-se que o livro tenha sido composto por volta do séc. XII da era Cristã. No
entanto, a obra que ele compôs é um trabalho de mestre contendo um resumo da
essência do Abhidhamma com uma apresentação que favorece o seu estudo. Esse
livro é hoje o padrão empregado pelos estudantes ao iniciar seus estudos do
Abhidhamma em todo o mundo Theravada.

Referências:

Gostaria de enfatizar que este trabalho representa apenas a compilação e edição dos
textos elaborados por eminentes autores que possuem conhecimento e erudição
neste tema muito mais amplo que o meu. Quaisquer deficiências neste texto devem
ser atribuídas a mim e os méritos devem ser atribuídos aos autores mencionados
abaixo. (Michael Beisert)

The Abhidhammattha Sangaha – A Comprehensive Manual of Abhidhamma, Acariya


Anurudha, Bhikkhu Boddhi,(General Editor); Buddhist Publication Society, 1993.

Abhidhamma Studies, Venerable Nyanaponika Thera; Budhist Publication Society,


1998.

The Psycho-Ethical Aspects of Abhidhamma, Rina Sircar; University Press of America,


1999.

The Great Discourse on Causation – The Mahanidana Sutta and Its


Comentaries, Bhikkhu Boddhi; Buddhist Publication Society, 1995.
Philosophy and Psychology in the Abhidharma, Herbert V Guenther; Motilal
Banarsidas Publishers, 1991.

Nota:

Os termos em Pali kusala e akusala têm sido traduzidos geralmente como hábil,
benéfico, e inábil, prejudicial respectivamente. Neste trabalho optei por empregar
respectivamente saudável e insalubre. A idéia de empregar esses termos alternativos
foi de oferecer uma nova opção que permita aos leitores ampliar a compreensão
desses termos em Pali. Os termos saudável/insalubre parecem oferecer uma opção
com uma carga menor de conteúdo ‘moral’ do que benéfico e prejudicial, e também
indicam de uma forma mais intuitiva aquilo que vale a pena e o que não vale a pena.

I. Compêndio da Consciência (Citta)

O primeiro capítulo do Abhidhammattha Sangaha é dedicado à análise de citta,


consciência, a primeira das quatro realidades últimas. A palavra em Pali citta é
derivada da raiz citi, que significa cognição, conhecimento. Os comentários
definem citta de três formas: como agente, como instrumento e como atividade.
Como agente, citta é aquilo que conhece ou percebe um objeto. Como
instrumento, citta é aquilo através do qual os fatores mentais, (cetasikas), que a
acompanham conhecem ou percebem um objeto. Como atividade, citta é em si
mesma nada mais que o processo de cognição de um objeto. A terceira definição, em
relação à pura atividade, é considerada como a mais adequada das três: isto
é, citta é fundamentalmente um processo de cognição ou de conhecimento de um
objeto. Não existe um agente ou instrumento que possui em si mesmo uma
identidade separada do processo de cognição. As definições como agente e como
instrumento são para refutar a idéia incorreta daqueles que crêem que um eu ou ego
permanente seja o agente ou instrumento da cognição. Aquilo que realiza o ato da
cognição não é um eu mas sim a consciência ou citta, e esse ato de cognição é
necessariamente impermanente, marcado pelo surgimento e cessação.

Para elucidar a natureza de qualquer realidade última ou fenômeno, os comentários


em Pali sugerem quatro dispositivos que são: (1) a sua característica, (lakkhana),
isto é, a qualidade que mais se destaca no fenômeno; (2) a sua função, (rasa), a
realização de uma tarefa concreta ou de um objetivo; (3) a sua manifestação,
(paccupatthana), a forma como o fenômeno se apresenta na experiência; (4) a sua
causa mas próxima, (padatthana), a principal condição da qual o fenômeno depende.

No caso de citta, a sua característica é conhecer um objeto, (vijanana). A sua função


é ser o precursor dos fatores mentais, (cetasikas), no sentido de que os preside e
está sempre acompanhada por eles. A sua manifestação – a forma como se mostra
para o meditador – é como um contínuo de processos, (sandhana). A sua causa mais
próxima é a mentalidade-materialidade, (nama-rupa), porque a consciência não pode
surgir só, com a completa ausência de fatores mentais, (cetasikas), e fenômenos
materiais.

Aquilo que normalmente tomamos por consciência é na verdade uma série de cittas,
atos momentâneos de consciência, que ocorrem numa sucessão extremamente
rápida, que não podem ser detectados pela mente comum.

Classificações da Consciência (Citta)

Existem vários princípios para a classificação de citta.

O primeiro deles toma por base o plano, (bhumi), da consciência. Existem


quatro planos da consciência. Três são mundanos: a esfera sensual, a esfera da
materialidade sutil e a esfera imaterial; o quarto plano é supramundano. A palavra
esfera e plano estão conectadas, porém não têm o mesmo significado. As esferas da
consciência são categorias para classificar tipos de cittas, os planos de existência são
reinos ou mundos nos quais os seres renascem e nos quais vivem. No entanto uma
relação clara existe entre as esferas da consciência e os planos de existência: uma
esfera da consciência em particular compreende aqueles tipos de consciência que são
típicos do plano de existência correspondente e que freqüentam aquele plano,
tendendo a surgir ali com mais freqüência. Contudo, a consciência de uma esfera em
particular não está atada ao plano correspondente, e poderá surgir em outros planos
de existência também; por exemplo, cittas da esfera da materialidade sutil ou da
esfera imaterial podem surgir no plano sensual e cittas da esfera sensual podem
surgir nos planos da materialidade sutil ou nos planos imateriais. Mas, apesar disso,
a conexão existe no sentido de que a consciência duma esfera é típica do plano que
possui o mesmo nome.

Consciência da esfera sensual, (kamavacaracitta): A palavra kama significa ambos, a


sensualidade subjetiva, isto é, o desejo por prazeres sensuais, e a sensualidade
objetiva, isto é, os cinco objetos sensuais externos – formas visíveis, sons, aromas,
sabores e tangíveis. O kamabhumi é o plano da existência sensual que compreende
onze reinos – os quatro estados de privação, o reino humano e os seis paraísos
sensuais.

Consciência da esfera da materialidade sutil, (rupavacaracitta): a esfera da


materialidade sutil é a consciência que corresponde ao plano de existência da
materialidade sutil, (rupabhumi), ou a consciência que está ligada aos estados de
absorção meditativa conhecido comorupajjhanas. Os rupajjhanas são assim
chamados porque em geral são alcançados através da meditação da concentração
num objeto material, (rupa), que pode ser uma kasina ou partes do próprio corpo,
(por ex: a respiração). Esse objeto se torna a base sobre a qual os jhanassão
desenvolvidos. Os estados de consciência exaltados que são alcançados com base
nesses objetos são chamados rupavacaracitta, consciência da esfera da
materialidade sutil.

Consciência da esfera imaterial, (arupavacaracitta): a esfera imaterial é a


consciência que corresponde ao plano de existência imaterial, (arupabhumi), ou a
consciência que está ligada às absorções imateriais – os arupajjhanas. Ao meditar
para alcançar os estados meditativos desprovidos de forma, que se encontram além
dos rupajjhanas, é necessário descartar todos os objetos conectados com a forma
material e focar apenas em algum objeto não material, tal como o espaço infinito,
etc. Os estados de consciência exaltados que são alcançados com base nesses
objetos são chamados arupavacaracitta, consciência da esfera imaterial.

Consciência supramundana, (lokuttaracitta): a palavra lokuttara, supramundana, é


derivada de loka=mundo, e uttara=além, transcendente. Podem existir três
conceitos de “mundo”: o mundo dos seres vivos, o universo físico e o mundo das
formações, isto é, a totalidade dos fenômenos condicionados, materiais e mentais. A
noção de mundo relevante neste caso é o mundo das formações, isto é, todos os
fenômenos mundanos incluídos como parte dos cinco agregados do apego. Aquilo
que transcende o mundo condicionado é o elemento incondicionado, Nibbana. Os
tipos de consciência que diretamente alcançam a realização de Nibbana são
chamados lokuttaracitta, consciência supramundana. Os outros três tipos são
chamados lokiyacitta, consciência mundana.

O segundo princípio de classificação, que desempenha um importante papel


na filosofia do Abhidhamma, é descrito de acordo com o tipo ou natureza,
(jati), da consciência.

Com relação à sua natureza, a consciência pode ser dividida em quatro classes:
insalubre, saudável, resultante e funcional. A consciência insalubre, (prejudicial,
inábil, akusalacitta), é a consciência que é acompanhada pelas três raízes insalubres
– cobiça, raiva e delusão. Esse tipo de consciência é chamada de insalubre porque
ela prejudica a saúde mental, é passível de crítica sob o ponto de vista ético e produz
resultados dolorosos. A consciência saudável, (benéfica, hábil, kusalacitta), é a
consciência que é acompanhada pelas três raízes saudáveis – não-cobiça ou
generosidade, não-raiva ou amor bondade, e não-delusão ou sabedoria. Esse tipo de
consciência favorece a saúde mental, não é passível de crítica sob o ponto de vista
ético e produz resultados prazerosos.

Tanto as consciências saudáveis como as insalubres produzem kamma, ação volitiva


ou intencional. Aquelas cittas ou estados de consciência que surgem através do
amadurecimento ou fruto de kamma são chamadas de resultantes, (vipaka). Estas
constituem uma terceira classe de citta distinta das duas primeiras, uma classe que
compreende tanto os resultados de kamma saudável como insalubre. Deve ser
compreendido que ambos os kamma, saudável e insalubre, e os seus resultados, são
puramente mentais. Kamma é a ação intencional volitiva associada
às cittas saudáveis ou insalubres; os seus resultados ou frutos são outrascittas que
vivenciam a maturação de kamma.

A quarta classe de consciência é chamada em Pali de kirya ou kriya, interpretado


como ‘funcional.’ Este tipo de consciência não produz kamma, nem é resultado
de kamma. Ela envolve atividade, mas essa atividade não é capaz de
produzir kamma.

Tanto as consciências resultantes, como as funcionais, não são saudáveis, nem


insalubres. Ao invés disso, elas são classificadas como indeterminadas, isto é,
estados de consciência que não podem ser determinados com base na dicotomia
saudável/insalubre.

A tabela abaixo resume a classificação das cittas de acordo com o seu tipo, ( e são
89 tipos), conforme discutido até agora:

CITTAS MUNDANAS 81

1.Cittas da Esfera Sensual 54

1.1 Cittas Insalubres 12

Com raiz na Cobiça 8

Com raiz na Raiva 2

Com raiz na Delusão 2

1.2 Cittas sem raiz 18

Resultantes – insalubre 7

Resultantes – saudável 8

Resultantes – funcional 3

1.3 Cittas Belas da Esfera Sensual 24

Esfera sensual – saudável 8

Esfera sensual – resultante 8

Esfera sensual – funcional 8

2.Cittas da Esfera da Materialidade Sutil 15

Materialidade Sutil – saudável 5

Materialidade Sutil – resultante 5

Materialidade Sutil – funcional 5

3.Cittas da Esfera Imaterial 12

Esfera Imaterial – saudável 4

Esfera Imaterial – resultante 4

Esfera Imaterial – funcional 4

CITTAS SUPRAMUNDANAS 8

Cittas supramundanas saudáveis 4

Caminho do entrar na correnteza 1

Caminho do retornar uma vez 1

Caminho do não-retorno 1

Caminho do Arahant 1

Cittas supramundanas resultantes < 4


Fruto do entrar na correnteza 1

Fruto do retornar uma vez 1

Fruto do não-retorno 1

Fruto do Arahant 1

1.1 Cittas Insalubres (akusalacittani)

Ao analisar as consciências insalubres o Abhidhamma primeiro as classifica de acordo


com a sua raiz, (mula, hetu), mais proeminente, quer seja cobiça, (lobha), raiva,
(dosa), ou delusão, (moha). De acordo com o Abhidhamma a cobiça e a raiva são
mutuamente exclusivas: elas não coexistem na mesma citta. A terceira raiz, delusão,
está presente em todos os estados de consciência insalubre. Existem, no entanto,
estados de consciência em que apenas a delusão surge sem estar acompanhada de
raiva ou cobiça. A tabela abaixo mostra os doze tipos de cittas insalubres:

Raiz Sensação Associada ao/à Dissociada de Estimulada

1 Cobiça Alegria Entendimento Não


Incorreto

2 Cobiça Alegria Entendimento Sim


Incorreto

3 Cobiça Alegria Entendimento Não


Incorreto

4 Cobiça Alegria Entendimento Sim


Incorreto

5 Cobiça Equanimidade Entendimento Não


Incorreto

6 Cobiça Equanimidade Entendimento Sim


Incorreto

7 Cobiça Equanimidade Entendimento Não


Incorreto

8 Cobiça Equanimidade Entendimento Sim


Incorreto

9 Raiva Desprazer Aversão Não

1 Raiva Desprazer Aversão Sim


0

1 Delusão Equanimidade Dúvida


1

1 Delusão Equanimidade Inquietação


2

(a) Consciência com raiz na Cobiça (lobhamulacittani)

A palavra em Pali, lobha, inclui todas as variações de cobiça, desde a paixão mais
intensa e avareza até o apreço e o apego sutil. A consciência com raiz na cobiça está
dividida em oito tipos com base em três princípios de dicotomia. O primeiro é a
sensação concomitante, (vedana), quer seja uma sensação de alegria ou
equanimidade; o segundo é a presença ou ausência do entendimento incorreto; o
terceiro é baseado na consideração de se a citta é estimulada ou não estimulada. Da
permutação dessas três distinções surgem oito tipos de consciência mostrados na
tabela acima.

Acompanhada pela alegria, (somanassasahagata): A palavra somanassa, alegria,


é derivada de su=prazeroso e manas=mente; significando assim, literalmente, um
estado mental prazeroso. Toda consciência é acompanhada por algum tipo de
sensação que pode ser corporal ou mental; prazerosa, dolorosa ou
neutra. Somanassa é uma sensação mental, ao invés de corporal, e é prazerosa, ao
invés de dolorosa ou neutra. Equanimidade, (upekha), neste caso quer dizer uma
sensação neutra, uma sensação mental que não se inclina nem para a alegria, nem
para a dor.

Associada ao entendimento incorreto, (ditthigatasampayutta): A


palavra ditthi quer dizer entendimento e se não estiver acompanhada do
prefixo samma, (correto), em geral se refere ao entendimento incorreto. O
entendimento incorreto acompanha a consciência com raiz na cobiça sob a forma de
idéias, crenças, convicções, opiniões, racionalizações. O entendimento incorreto, do
qual a consciência surge, pode reforçar o apego provendo a consciência de uma
justificativa racional, ou o entendimento em si pode ser um objeto de apego. Quando
a consciência está dissociada do entendimento incorreto significa que ela está
desacompanhada de qualquer justificativa proporcionada pelo entendimento
incorreto.

Estimulada, (sankharika): ou instigada, induzida, a partir do exterior ou do interior.


O estímulo pode ser corporal, verbal ou puramente mental.

(b) Consciência com raiz na Raiva (dosamulacittani)

Existem dois tipos de consciência nesta classe, distinguidas como estimuladas ou não
estimuladas. As consciências com raiz na raiva surgem apenas com a sensação de
desprazer, (domanassa), uma sensação mental desagradável. Essa sensação
acompanha apenas a consciência com raiz na raiva. Ao contrário da consciência com
raiz na cobiça, a consciência com raiz na raiva não surge associada ao entendimento
incorreto. Embora o entendimento incorreto possa motivar atos com base na raiva,
de acordo com o Abhidhamma, o entendimento incorreto não surge simultaneamente
com a raiva, na mesma citta, mas antes, num tipo diferente de citta. A consciência
com raiz na raiva está associada à aversão, (patigha). Patigha inclui todas as
graduações de aversão, do ódio violento até a sutil irritação.Patigha significa em
termos literais “golpear contra,” indicando um atitude mental de resistência, rejeição
ou destruição.

Embora o desprazer e a aversão estejam sempre juntos, as suas qualidades devem


ser distinguidas. O desprazer é a experiência de uma sensação desagradável, a
aversão é a atitude mental de má vontade ou irritação. Em relação aos cinco
agregados, o desprazer é incluído no agregado da sensação, (vedanakkhandha),
enquanto que a aversão é incluída no agregado das formações mentais,
(sankharakkhandha).

(c) Consciência com raiz na delusão (mohamulacitta)

Esta última classe de consciência insalubre compreende aquelas cittas nas quais as
outras duas raízes – cobiça e raiva estão ausentes. Somente a delusão está
presente. Este tipo de consciência está sempre acompanhada pela equanimidade,
por isso uma sensação mental agradável ou desagradável não surge em relação a
um objeto. Existem dois tipos de consciência nesta classe, uma associada à dúvida,
(perplexidade, ceticismo, indecisão), e a outra associada à inquietação, (distração
mental, agitação).

De acordo com o Abhidhamma, a inquietação é encontrada em todos os doze tipos


de consciência insalubre mas nas primeiras onze cittas a sua força é relativamente
mais fraca e a sua função é secundária. Já neste último tipo de citta a inquietação se
torna um fator preponderante.

Exemplos:

Os oito tipos de consciências com raiz na cobiça podem ser exemplificados da


seguinte forma, (de acordo com a numeração da tabela acima):
1 Com alegria, um menino, com a idéia de que não existe mal em roubar,
rouba espontaneamente uma maçã de uma feira.
2 Com alegria, um menino, tendo a mesma idéia, rouba uma maçã estimulado
por um amigo.
3-4 Igual a 1 e 2, exceto pelo fato de que o menino não tem nenhuma idéia e
age por impulso.
5-8 Estas quatro são semelhantes a 1-4, exceto pelo fato de que o roubo é
cometido com uma sensação neutra.

Os dois tipos de consciências com raiz na raiva podem ser exemplificados da


seguinte forma:

9 Com raiva um homem assassina um outro num ataque espontâneo de ódio.


10 Com raiva um homem assassina um outro depois de ter premeditado.

Os dois tipos de consciências com raiz na delusão podem ser exemplificados da


seguinte forma:

11 Uma pessoa, devido à delusão, duvida da iluminação do Buda ou da eficácia


do Dhamma.
12 Uma pessoa é tão distraída que não é capaz de focar a mente em qualquer
objeto.

1.2 Cittas sem Raiz (ahetukacittani)

A palavra ahetuka significa sem raiz e caracteriza aqueles tipos de consciência que
estão desprovidos dos fatores mentais chamados hetu, raízes. Esses tipos, dezoito
no total, não contêm nenhuma das três raízes insalubres – cobiça, raiva e delusão,
nem contêm nenhuma das raízes saudáveis – não-cobiça, não-raiva e não-delusão.
Como a raiz é um fator que ajuda a determinar a estabilidade
numa citta, as cittas que não possuem raiz são mais fracas do que aquelas que as
possuem. As cittas desta classe se classificam em três grupos: resultantes
insalubres, resultantes saudáveis e funcionais. A tabela abaixo mostra os dezoito
tipos de cittas sem raiz:

Tipo Sensação Citta

1 Resultante – Insalubre Equanimidade Consciência no olho

2 Resultante – Insalubre Equanimidade Consciência no ouvido

3 Resultante – Insalubre Equanimidade Consciência no nariz

4 Resultante – Insalubre Equanimidade Consciência na língua

5 Resultante – Insalubre Dor Consciência no corpo

6 Resultante – Insalubre Equanimidade Receptora

7 Resultante – Insalubre Equanimidade Investigadora

8 Resultante - Saudável Equanimidade Consciência no olho

9 Resultante – Saudável Equanimidade Consciência no ouvido

10 Resultante – Saudável Equanimidade Consciência no nariz

11 Resultante – Saudável Equanimidade Consciência na língua

12 Resultante – Saudável Prazer Consciência no corpo

13 Resultante – Saudável Equanimidade Receptora


14 Resultante – Saudável Alegria Investigadora

15 Resultante - Saudável Equanimidade Investigadora

16 Funcional Equanimidade Advertência das Cinco Portas

17 Funcional Equanimidade Advertência da Mente

18 Funcional Alegria Produtora de Sorriso

(a) Consciência resultante insalubre (akusalavipakacittani)

Compreende sete tipos de consciência que resultam de kamma insalubre. Esses tipos
de consciência não são insalubres em si, trata-se de consciências resultantes
produzidas porkamma insalubre; a palavra insalubre qualifica não esses estados de
consciência em si, mas o kamma do qual elas nasceram.

Consciência no olho (cakkhuviññana): Os primeiros cinco tipos de consciência


resultante, em ambas as classes, insalubres e saudáveis, são aqueles baseados na
matéria sensível,(pasada), do olho, ouvido, nariz, língua e corpo. Esse tipo de
consciência surge com base no fenômeno sensitivo de cada órgão do sentido, (veja
o III. Compêndio da Matéria – Fenômenos Sensitivos para mais detalhes). A
sua função é a simples cognição dos seus respectivos objetos. No caso de resultantes
insalubres, os objetos são desagradáveis ou indesejados. No entanto, o impacto do
objeto nos primeiros quatro sentidos é fraco, então a sensação associada é neutra,
isto é, equanimidade. Mas no caso da consciência resultante insalubre no corpo, o
impacto do objeto na faculdade do corpo é forte e dessa forma a sensação associada
é dolorosa.

Consciência Receptora (sampaticchanacitta): Quando um objeto sensual causa


um impacto ou colide com uma faculdade do sentido numa das cinco portas dos
sentidos, exemplo, uma forma visível no olho, primeiro surge uma citta que adverte
para o objeto. Imediatamente depois disso, surge a consciência no olho que vê o
objeto. Esse ato de ver dura apenas um momento mental. Imediatamente em
seguida, surge uma citta que compreende ou “recebe” o objeto que foi visto pela
consciência no olho. Essa é a consciência receptora que resulta do mesmo tipo
de kamma que produziu a consciência no olho.

Consciência Investigadora (santiranacitta): Esta consciência surge


imediatamente após a consciência receptora. A sua função é investigar ou examinar
o objeto. Esta consciência, bem como a consciência receptora, surge apenas nos
cinco meios dos sentidos e ambas são resultado de kamma passado.

(b) Consciência resultante saudável (kusalavipaka-ahetukacittani)

Compreende oito tipos de consciência que resultam de kamma saudável.

(c) Consciência funcional (ahetukakiriya-cittani)

Este tipo de consciência não é resultado de kamma. Elas realizam tarefas que não
possuem potencial para gerar kamma. São, portanto, tipos de consciência que não
são nem resultado de kamma, nem produzem kamma.

Advertência nas cinco portas (pancadvaravajjanacitta): Quando um objeto


sensual causa impacto ou colide com uma faculdade do sentido numa das cinco
portas dos sentidos, antes que a consciência apropriada possa surgir, por exemplo a
consciência no olho que vê uma forma visível, uma outra consciência precisa ter
surgido primeiro. Essa consciência é a advertência nas cinco portas, que possui a
função de advertir, avisar, fazer observar o objeto que esteja se apresentando numa
das cinco portas dos sentidos.

Advertência na mente (manodvaravajjanacitta): Este tipo de consciência pode


surgir ou num processo cognitivo que esteja ocorrendo nas cinco portas dos
sentidos, ou num processo que esteja ocorrendo na porta da mente. Em cada caso a
sua função é distinta. Quando ocorre nas cinco portas é denominada consciência
determinante. A sua função é determinar ou definir o objeto que foi percebido pela
consciência nos sentidos. A consciência determinante vem em seguida à consciência
investigadora. Depois que a consciência investigadora examinou o objeto, a
consciência determinante o discrimina. Quando na porta da mente, este tipo de
consciência desempenha a função de advertência para o objeto que está surgindo na
porta da mente.

Nota: Depois de estudar o IV. Compêndio dos Processos Cognitivos, as


descrições das consciências resultantes e funcionais ficarão mais claras.

1.3 Cittas Belas (sobhanacittani)

Esses tipos de consciências são denominadas de belas porque estão acompanhadas


de fatores mentais, (cetasikas), belos. (Veja o II. Compêndio dos Fatores
Mentais – Fatores Belos). Deve ser entendido que o belo, (sobhana), possui uma
extensão mais ampla do que o saudável, (kusala). O belo inclui todas
as cittas saudáveis, e também inclui as cittasresultantes e funcionais que possuem
fatores mentais belos. Além das cittas da esfera sensual, (24 no total),
as cittas belas compreendem também todas as cittas da esfera da matéria sutil, da
esfera imaterial e supramundanas.

(a) Cittas saudáveis da esfera sensual (kamavacara-kusalacittani)

A tabela abaixo mostra os oito tipos de cittas saudáveis da esfera sensual:

Sensação Conhecimento Estimulada

1 Alegria Associada ao Não

2 Alegria Associada ao Sim

3 Alegria Dissociada do Não

4 Alegria Dissociada do Sim

5 Equanimidade Associada ao Não

6 Equanimidade Associada ao Sim

7 Equanimidade Dissociada do Não

8 Equanimidade Dissociada do Sim

As cittas saudáveis da esfera sensual estão divididas em oito tipos com base em três
princípios de dicotomia. O primeiro princípio é a sensação concomitante, que em
quatro casos é alegria, (somanassa), isto é, uma sensação mental prazerosa; e nos
outros quatro casos é a equanimidade, (upekha), isto é, uma sensação mental
neutra; o segundo é a presença ou ausência de conhecimento; e o terceiro é
baseado na consideração de se a citta é estimulada ou não estimulada.

Associada ao conhecimento, (ñanasampayutta): o conhecimento significa ver


as coisas como elas na verdade são. Na consciência associada ao conhecimento, a
palavra ñana se refere ao fator mental da sabedoria, (pañña-cetasika), que também
representa a raiz da não-delusão, (amoha). A consciência dissociada do
conhecimento não contém o fator da sabedoria, mas ela não envolve a
ignorância, (avijja), ou a delusão, (moha), que estão presentes somente
nas cittas insalubres.

Estimulada, (sankharika): ou instigada, induzida, a partir do exterior ou do


interior. O estímulo pode ser corporal, verbal ou puramente mental.

Com raízes, (sahetuka): As quatro cittas saudáveis associadas ao conhecimento


possuem todas as três raízes saudáveis; as quatro dissociadas do conhecimento
possuem como raízes a não-cobiça ou generosidade e a não-raiva ou amor bondade,
mas lhes falta a não-delusão.

Exemplos:

Os oito tipos de consciências saudáveis da esfera sensual podem ser exemplificados


da seguinte forma, (de acordo com a numeração da tabela acima):

1 Alguém com alegria pratica um ato generoso, compreendendo que isso é


uma ação saudável, de modo espontâneo sem ser estimulado.

2 Alguém realiza a mesma boa ação, com compreensão, depois de


deliberação ou estímulo de alguém.

3 Alguém com alegria pratica um ato generoso, sem ser estimulado, mas sem
a compreensão de que essa é uma ação saudável.

4 Alguém com alegria pratica um ato generoso, sem compreensão, depois de


deliberação ou estímulo de alguém.

5-8 Esses tipos de consciência seguem os exemplos acima, mas com uma
sensação neutra no lugar da alegria.

Esses oito tipos de consciência são denominados saudáveis porque elas inibem as
contaminações e produzem bons resultados. Elas surgem em seres
mundanos, (puthujjana),e seres em treinamento, (sekha), – nobres discípulos nos
três primeiros estágios do caminho espiritual – sempre que eles praticarem ações
corporais e verbais saudáveis e sempre que gerarem estados mentais saudáveis
relacionados com a esfera sensual. Essas cittas não surgem em arahants, cujas
ações estão desprovidas de potencial de kamma.

Os demais tipos de cittas da esfera mundana, (materialidade sutil e


imaterial), bem como as cittas supramundanas, não serão discutidas neste
trabalho.

II. Compêndio dos Fatores Mentais (Cetasika)

O segundo capítulo do Abhidhammattha Sangaha é dedicado à análise de cetasika,


fatores mentais, a segunda das quatro realidades últimas. Os cetasikas são
fenômenos mentais que ocorrem em conjunção imediata com citta ou consciência e
assistem citta realizando tarefas mais específicas no ato completo da cognição. Os
fatores mentais não surgem sem citta, nemcitta pode surgir segregada dos fatores
mentais. Mas embora ambos sejam funcionalmente interdependentes, citta é
considerada como fator primário porque os fatores mentais ajudam na cognição do
objeto na dependência de citta, que é o principal elemento cognitivo. A relação
entre citta e os cetasikas é comparada com aquela de um rei e o seu séquito.
Embora alguém diga “o rei está vindo,” o rei não vem só, ele sempre vem
acompanhado do seu séquito. De modo semelhante, sempre que uma citta surge, ela
nunca surge só, pois está sempre acompanhada pelo seu séquito de cetasikas.

Os cetasikas compartem quatro características em comum:

1. surgem junto com a consciência

2. cessam junto com a consciência

3. possuem o mesmo objeto que a consciência

4. possuem a mesma base que a consciência

Os Cinqüenta e Dois Fatores Mentais

O Abhidhamma reconhece 52 fatores mentais que estão classificados em quatro


categorias:
7 universais

6 ocasionais

14 fatores insalubres

25 fatores belos

A tabela abaixo lista os 52 fatores mentais:

1. Variáveis sob o ponto de vista ético

1.1 Universais

(1) Contato

(2) Sensação

(3) Percepção

(5) Unicidade num único ponto

(6) Faculdade vital

(7) Atenção

1.2 Ocasionais

(8) Pensamento aplicado

(9) Pensamento sustentado

(10) Decisão sustentado

(11) Energia

(12) Êxtase

(13) Aspiração

2. Fatores Insalubres

2.1 Universais insalubres

(14) Delusão

(15) Ausência de vergonha moral

(16) Destemor moral

(17) Inquietação

2.2 Ocasionais Insalubres

(18) Cobiça

(19) Entendimento Incorreto

(20) Presunção

(21) Raiva

(22) Inveja

(23) Avareza

(24) Ansiedade

(25) Preguiça

(26) Torpor

(27) Dúvida

3. Fatores Belos

3.1 Universais belos

(28) Convicção
(29) Atenção Plena

(30) Vergonha moral

(31) Temor moral

(32) Não-cobiça

(33) Não-raiva

(34) Neutralidade mental

(35) Tranqüilidade do corpo mental

(36) Tranqüilidade da consciência

(37) Leveza do corpo mental

(38) Leveza da consciência

(39) Maleabilidade do corpo mental

(40) Maleabilidade da consciência

(41) Manuseabilidade do corpo mental

(42) Manuseabilidade da consciência

(43) Proficiência do corpo mental

(44) Proficiência da consciência

(45) Retidão do corpo mental

(46) Retidão da consciência

3.2 Abstinências

(47) Linguagem correta

(48) Ação correta

(49) Modo de Vida correto

3.3 Ilimitados

(50) Compaixão

(51) Alegria altruísta

3.4 Não-delusão

(52) Faculdade da sabedoria

1. Variáveis sob o ponto de vista ético (aññasamanacetasika)

As primeiras duas categorias de fatores mentais – os sete universais e os seis


ocasionais – são denominados aññasamana que é interpretado como “variável sob o
ponto de vista ético.” Literalmente, a expressão quer dizer “comum aos demais.”
As cittas não-belas são chamadas de “outras” (añña) em relação às cittas belas, e
as cittas belas são chamadas de outras em relação às cittas não-belas. Os
treze cetasikas das duas primeiras categorias são comuns, (samana), a ambos
os cetasikas, belos e não-belos e assumem a qualidade ética transmitida para
a citta pelos demais cetasikas, particularmente pelas raízes, (hetu), associadas.

1.1 Universais (sabbacittasadharana)

Esses sete universais são os cetasikas comuns a todas as consciências. Estes fatores
desempenham as funções cognitivas mais rudimentares e essenciais, sem as quais a
consciência de um objeto seria absolutamente impossível.

(1) Contato, (phassa): A palavra phassa é derivada do verbo phusati que significa
“tocar,” mas o contato não deve ser compreendido como o mero impacto do objeto
na faculdade do sentido. Ele é na verdade o fator mental através do qual a
consciência mentalmente “toca” o objeto que tenha surgido, dessa forma dando
início a todo o evento cognitivo.
(2) Sensação, (vedana): Sensação é o fator mental que sente o objeto: é o tom
emocional com o qual o objeto é experimentado. Assim, vedana é um tipo de
julgamento, não sob a forma intelectual mas sob um critério subjetivo de aceitação,
rejeição ou indiferença. A natureza da sensação em si não pode ser definida porque
toda definição tem que ser dada intelectualmente e o intelecto e as sensações não
são comensuráveis. Dessa forma as sensações possuem um certo caráter autônomo,
indicado pelo símile de um rei que devido àvirtude da sua nobreza, habilidade e
maestria, saboreia e desfruta de toda a refeição preparada por outros, e já que cada
cozinheiro esteve apenas parcialmente envolvido na preparação da refeição, eles não
são capazes de se dar conta disso. Ou seja, vedanadesfruta o sabor do objeto de
forma plena e completa. A palavra em Pali vedana não significa emoção, (que é um
fenômeno complexo envolvendo vários fatores mentais concomitantes), mas a
qualidade emocional básica de uma experiência, que pode ser prazerosa, dolorosa ou
neutra.

(3) Percepção, (sañña): O sufixo “ñña” pode ser interpretado como conhecimento
enquanto que “sa” significa juntar/reunir ou seja “juntar aquilo que conhecemos.” A
característica desañña é perceber as qualidades de um objeto. A sua função é fazer
uma marca ou sinal como condição para perceber, numa outra ocasião, que “é a
mesma coisa,” ou, a sua função é reconhecer aquilo já que havia sido percebido
antes. Ela se manifesta ao interpretar o objeto através das marcas ou sinais que
foram compreendidos. O seu procedimento se compara ao do carpinteiro que
reconhece os tipos de madeira pelas distintas marcas que fez nelas.

(4) Volição ou intenção, (cetana): Cetana, que possui a mesma raiz que citta, é o
fator mental que está relacionado com a realização de um objetivo ou de um
determinado resultado. Sua função é estimular ou dirigir os demais cetasikas numa
certa direção. Pode ser comparado a um comandante numa batalha, que ao começar
a lutar, estimula os seus comandados a lutarem também, assim ao realizar a sua
tarefa em relação ao objeto, cetana faz com que oscetasikas associados também
cumpram o seu papel. Volição ou intenção é o fator mental mais significativo na
geração de kamma.

(5) Unicidade num único ponto, (ekaggata): a unificação da mente no objeto.


Embora este fator ganhe proeminência nos jhanas, onde ele funciona como um fator
de jhana, o Abhidhamma ensina que o germe da capacidade para a unificação da
mente está presente em todos os tipos de consciência, até mesmo nos mais
rudimentares. A sua função é fixar a mente no seu objeto. A sua característica é a
não-distração.

(6) Faculdade vital, (jivitindriya): Existem dois tipos de faculdade vital, a mental, que
vitaliza ou mantém os fenômenos mentais associados, e a física, que vitaliza ou
mantém os fenômenos materiais. A sua função é fazer com que os fenômenos
ocorram.

(7) Atenção, (manasikara): A atenção é o fator mental que tem a responsabilidade


de advertir a mente para o objeto, fazendo com que ele se torne presente para a
consciência. A sua característica é a condução dos fatores mentais associados para o
objeto. A sua função é unir os fatores mentais associados ao objeto. A atenção é
como o leme de um barco, que o conduz ao seu destino, ou como um condutor de
uma carruagem que conduz os cavalos, (fatores mentais ), ao seu destino, (o
objeto). Manasikara deve ser diferenciado de vitakka: enquanto que o primeiro dirige
os seus concomitantes em direção ao objeto, o último os aplica ao
objeto. Manasikara é um fator cognitivo indispensável presente em todos os estados
de consciência; vitakka é um fator especializado que não é indispensável para a
cognição.

1.2 Ocasionais (pakinnaka)

Os seis cetasikas deste grupo são semelhantes aos universais por serem fatores
variáveis sob o ponto de vista ético, que assumem a qualidade moral
da citta, determinada por outros fatores concomintantes. Eles diferem dos universais
por serem encontrados apenas em tipos particulares de consciência, não em todas.

(8) Pensamento aplicado, (vitakka): Nos suttas, vitakka é com freqüência usado
como sinônimo para pensamento, mas no Abhidhamma ele é usado de um modo
tecnicamente mais preciso significando o fator mental que aplica a mente ao objeto.
A sua característica é dirigir a mente para o objeto. Vitakka pode ser comparado a
uma pessoa que tem amizade ou é parente do rei e estabelece uma conexão entre o
rei e uma outra pessoa que quer se encontrar com ele. Quando é cultivado através
da concentração, vitakka se torna um dos fatores de jhana, (inibindo o obstáculo da
preguiça e torpor), é a absorção da mente no objeto. Vitakka também é
chamado sankappa, e sammasankappa, (pensamento correto), é o segundo
elemento do Nobre Caminho Óctuplo.

(9) Pensamento sustentado, (vicara): A palavra vicara em geral significa


investigação, mas neste caso significa a sustentação da mente no
objeto. Vicara também é um fator de jhana,(inibindo o obstáculo da dúvida), e tem
como característica a pressão contínua sobre o objeto no sentido de examiná-lo. A
sua função é a sustentação dos fatores mentais associados ao objeto. Os
comentários empregam vários símiles para mostrar a relação
entre vitakka evicara. Vitakka é como uma abelha mergulhando em direção a uma
flor, enquanto que vicara é a abelha zumbindo em volta da flor. Vitakka é como a
mão que segura uma peça de metal manchada, vicara é como a outra mão que limpa
a peça. Ou vitakka é como a ponta de um compasso fixa no meio da folha de papel
enquanto que vicara é a ponta que desenha o círculo.

(10) Decisão, (adhimokkha): A palavra adhimokkha significa literalmente a


deliberação da mente em relação ao objeto. Assim foi interpretada como decisão ou
resolução. Possui a característica da decisão. É comparada a uma pilastra de pedra
devido à sua decisão inabalável em relação ao objeto.

(11) Energia, (viryia): Viriya é o estado ou a ação de alguém que tenha vigor. A
energia tem a natureza da perseverança. A energia suporta e mantém os demais
fatores associados e não permite que eles esmoreçam. Da mesma forma como
pilastras novas de madeira não permitem que a casa desabe ou como reforços numa
batalha permitem que o exército do rei derrote o inimigo.

(12) Êxtase, (piti): Piti é derivado do verbo pinayati significando “refrescar” e pode
ser explicado como o deleite ou prazer em relação ao objeto. Piti se diferencia
de vedana por ser uma sensação agradável intensa com distintos estímulos no corpo
físico. A tradução mais freqüente é êxtase, que é uma qualificação adequada quando
ele é um dos fatores de jhana,mas que pode não ser suficientemente ampla para
capturar todas as suas nuances. Os comentários distinguem cinco graus de piti que
surgem ao desenvolver a concentração: êxtase menor, êxtase momentâneo, êxtase
como uma ducha, êxtase que causa elação e êxtase impregnante. O êxtase menor
pode fazer subir os pêlos do corpo. Êxtase momentâneo é igual a lampejos de
relâmpagos. Êxtase como ducha atravessa o corpo como ondas do oceano. Êxtase
que causa elação pode fazer o corpo levitar. E o êxtase impregnante que inunda todo
o corpo como numa inundação que enche uma caverna. Este último é piti tal como
se apresenta em jhana. Como um fator de jhana, piti inibe o obstáculo da má
vontade.

(13) Aspiração, (chanda): Chanda significa o desejo de agir, isto é, realizar uma ação
ou lograr um resultado. Aqui foi traduzido como aspiração para diferenciar do desejo,
(tanha), e cobiça, (lobha). Estes dois últimos são sempre insalubres, (inábeis),
mas chanda é um fator variável sob o ponto de vista ético, que quando combinado
com concomitantes saudáveis pode funcionar como o desejo virtuoso de lograr um
objetivo digno.

2. Fatores Insalubres (akusalacetasika)

2.1 Universais Insalubres

(14) Delusão, (moha): Moha é um sinônimo de avijja, ignorância. A sua


característica é a cegueira mental ou o desconhecimento (aññana). A sua função é
não penetrar ou encobrir a real natureza do objeto. A sua manifestação é a ausência
do entendimento correto ou como obscuridade mental. A sua causa mais próxima é a
atenção sem sabedoria, (ayoniso manasikara). Moha deve ser vista como a raiz de
tudo aquilo que é insalubre.

(15, 16) Ausência de vergonha moral ou de cometer transgressões, (ahirika), e


ausência de temor moral ou de cometer transgressões, (anottappa): A característica
da ausência de vergonha de cometer transgressões é a falta de auto-respeito, aquilo
que nos refreia de cometer atos que colocariam em risco o respeito que temos por
nós mesmos; a característica da ausência de temor de cometer transgressões, é a
falta de temor dos resultados de kamma desfavoráveis e da crítica e da punição
imposta por outros. Ambas possuem a função de praticar ações insalubres. A sua
causa mais próxima é a falta de respeito por si mesmo e pelos outros,
respectivamente.

(17) Inquietação, (uddhacca): Inquietação, (ou agitação), possui como característica


a intranqüilidade, como a água agitada pelo vento. A sua função é fazer com que a
mente fique desequilibrada.

2.2 Ocasionais Insalubres

(18) Cobiça, (lobha): Cobiça, a primeira raiz insalubre, abrange todas as graduações
de desejo egoísta, anseio, ligação sentimental e apego. A sua característica é
agarrar-se ao objeto. A sua função é grudar, como a carne que gruda numa frigideira
quente.

(19) Entendimento Incorreto, (ditthi): Ditthi neste caso significa ver de modo
incorreto. A sua característica é a interpretação das coisas sem sabedoria. A sua
função é pressupor. A sua manifestação é a crença ou interpretação incorreta.

(20) Presunção, (mana): Presunção tem a característica da arrogância. A sua função


é a auto-exaltação. A sua manifestação é o orgulho.

(21) Raiva, (dosa): Dosa, a segunda raiz insalubre, compreende todas as graduações
da aversão, má vontade, raiva, irritação, aborrecimento e animosidade.

(22) Inveja, (issa): A inveja tem como característica o ciúme do sucesso dos outros.
A sua função é estar insatisfeito com o sucesso dos outros. Ela se manifesta como
aversão a isso.

(23) Avareza, (macchariya): A característica da avareza é ocultar o próprio sucesso.


A sua função é não tolerar compartí-lo com os outros.

(24) Ansiedade, (kukkucca): Kukkucca é a preocupação, remorso, arrependimento


com relação a coisas feitas de modo incorreto e coisas corretas que foram
negligenciadas. A sua característica é o arrependimento. A sua função é causar
tristeza em relação ao que foi feito e ao que não foi feito. Ela se manifesta como
remorso.

(25) Preguiça, (thina): Preguiça é a indolência ou entorpecimento. A sua


característica é a falta de energia. A sua função é dissipar energia. Ela se manifesta
como o afundamento da mente. A sua causa mais próxima é a atenção sem
sabedoria em relação ao tédio, entorpecimento, etc.

(26) Torpor, (middha): Torpor é o estado deprimido dos fatores mentais. A sua
função é oprimir. A sua causa mais próxima é a mesma da preguiça.

Preguiça e torpor sempre ocorrem em conjunto e são opostos à energia. A preguiça é


identificada como a enfermidade da consciência e o torpor como a enfermidade dos
fatores mentais. Como um par, eles constituem um dos cinco obstáculos que é
superado pelo pensamento aplicado, (vitakka).

(27) Dúvida, (vicikiccha): Neste caso significa dúvida espiritual, sob a perspectiva
Budista, a incapacidade de depositar confiança no Buda, Dhamma e Sangha e no
treinamento Budista. Ela se manifesta como indecisão e a toma de vários partidos. A
sua causa mais próxima é a atenção sem sabedoria.

3. Fatores Belos (sobhanasadharana)

Os fatores mentais belos estão subdivididos em quatro grupos, sendo que o primeiro
inclui dezenove cetasikas que estão sempre presentes em todas as consciências
belas.

3.1 Universais Belos

(28) Convicção, (saddha): O primeiro dos cetasikas belos é a convicção, fé, certeza,
reverência, respeito, que possui a característica de depositar fé ou confiança. A sua
função é aclarar, como uma substância que clarifica a água e faz com que a água
barrenta se torne clara; ou colocar-se a caminho, como alguém que se ponha a
caminho para cruzar uma correnteza. Ela se manifesta como não obscuridade, isto é,
a remoção das impurezas da mente e de todos os obstáculos.

(29) Atenção Plena, (sati): A palavra sati é derivada de uma raiz que significa
“memória,” mas como fator mental significa presença de espírito, estar atento ao
presente, ao invés da faculdade da memória em relação ao passado. A sua
característica é a não vacilação, isto é, não se afastar do objeto. A sua função é a
ausência de confusão ou não-esquecimento. A sua causa mais próxima é a
percepção intensa ou os quatro fundamentos da atenção plena.

(30, 31) Vergonha moral ou de cometer transgressões, (hiri), e temor moral ou de


cometer transgressões, (ottappa): Hiri equivale à vergonha de cometer
transgressões ou o auto-respeito, aquilo que nos refreia de cometer atos que
colocariam em risco o respeito que temos por nós mesmos; ottappa equivale ao
temor de cometer transgressões que produzam resultados de kamma desfavoráveis
ou o temor da crítica e da punição imposta por outros. A sua causa mais próxima é o
auto-respeito e o respeito pelos outros, respectivamente. Esses dois estados são
chamados pelo Buda de guardiões do mundo porque eles protegem o mundo
evitando que ele caia na imoralidade desenfreada.

(32) Não-cobiça, (alobha): A não-cobiça tem como característica a ausência de


desejo na mente, ou de não aderência ao objeto, como uma gota d’água numa flor
de lótus. A sua função é não segurar e a sua manifestação é o desapego. Deve ser
compreendido que a não-cobiça não é a mera ausência de cobiça, mas a presença de
qualidades positivas como a generosidade e a renúncia também.

(33) Não-raiva, (adosa): A não-raiva tem como característica a ausência de


ferocidade, ou não-oposição. A sua função é remover o aborrecimento ou remover a
febre. A não-raiva compreende qualidades positivas como amor bondade, gentileza,
amizade, etc.

Quando a não-raiva aparece como qualidade sublime de amor bondade, (metta), ela
tem como característica a promoção do bem estar dos seres vivos. A sua função é
dar preferência ao bem estar dos outros. A sua manifestação é a remoção da má
vontade. A sua causa mais próxima é ver os seres como passíveis de serem amados.

(34) Neutralidade mental, (tatramajjhattata): É um sinônimo para


equanimidade, (upekkha),não como uma sensação neutra, mas uma atitude mental
de equilíbrio, desapego e imparcialidade.

Os próximos doze cetasikas universais se encaixam dentro de seis pares, cada um


contendo um termo que se aplica ao “corpo mental”, (kaya), e outro que se aplica à
consciência, (citta). Neste contexto o corpo mental é a coleção
dos cetasikas associados, chamados de corpo no sentido de agregação.

(35, 36) Tranqüilidade, (passaddhi): Tem como característica acalmar as


perturbações no corpo mental e na consciência. Deve ser considerado como o oposto
das contaminações, inquietação e ansiedade, que causam aflição.

(37, 38) Leveza, (lahuta): Tem como característica aplacar o peso no corpo mental e
na consciência. Ela se sua manifesta como não- indolência. Deve ser considerada
como o oposto das contaminações preguiça e torpor que causam peso.

(39, 40) Maleabilidade, (muduta): Tem como característica aplacar a rigidez no


corpo mental e na consciência. Ela se manifesta como não-resistência. Deve ser
considerada como o oposto das contaminações das idéias incorretas e presunção,
que criam rigidez.

(41, 42) Manuseabilidade,(kammaññata): Tem como característica aplacar a falta de


manuseabilidade no corpo mental e na consciência. Deve ser considerada como o
oposto dos demais obstáculos que criam a falta de manuseabilidade no corpo mental
e na consciência.

(43, 44) Proficiência, (paguññata): Tem como característica a saúde do corpo mental
e da consciência. A sua manifestação é como a ausência de deficiência. Deve ser
considerada como o oposto à falta de convicção que provoca a insalubridade do
corpo mental e da consciência..

(45, 46) Retidão, (ujjukata): Tem como característica a integridade do corpo mental
e da consciência. Deve ser considerada como o oposto à hipocrisia e à fraude que
criam a desonestidade no corpo mental e na consciência.

3.2 Abstinências (virati)

Os viratis são três fatores mentais belos responsáveis pela abstinência deliberada de
conduta imprópria através da linguagem, ação e modo de vida. Na consciência
mundana, osviratis operam apenas no momento da existência da abstenção de uma
conduta imprópria e para a qual tenha surgido uma oportunidade. Quando uma
pessoa se abstém de atos impróprios, sem que tenha surgido uma oportunidade para
praticá-los, este não é um caso de virati, mas de pura conduta moral (sila).

(47) Linguagem Correta, (sammavaca): Abstenção deliberada da linguagem


incorreta: linguagem mentirosa, linguagem maliciosa, linguagem grosseira e
linguagem frívola.

(48) Ação Correta, (sammamammanta): Abstenção deliberada da conduta corporal


imprópria: matar, roubar e conduta sexual imprópria.

(49) Modo de Vida Correto, (samma-ajiva): Abstenção deliberada do modo de vida


incorreto: lidar com venenos, substâncias embriagantes, armas, escravos, animais
para abate.

3.3 Ilimitados (appamanna)

Existem quatro atitudes em relação aos seres vivos chamadas de ilimitadas porque
elas se aplicam a todos os seres vivos, e dessa forma possuem uma abrangência
potencial ilimitada. Os quatro estados ilimitados são amor
bondade, (metta), compaixão, (karuna), alegria
altruísta, (mudita),e equanimidade, (upekkha). Esses quatro também são chamados
de moradas divinas, estados divinos ou brahmaviharas.

Embora sejam reconhecidos quatro estados ilimitados como as atitudes ideais em


relação aos demais seres, apenas dois – compaixão e alegria altruísta – estão
incluídos comocetasikas neste grupo dos ilimitados. Isso se deve ao fato de, como foi
visto, o amor bondade ser uma forma do cetasika adosa, não-raiva, e a
equanimidade ser uma forma do cetasika tatramajjhattata, neutralidade da mente.
Enquanto a não-raiva e a neutralidade da mente – fatores que suportam o amor
bondade e a equanimidade – estão presentes em todas ascittas belas, os dois fatores
do grupo dos ilimitados, (alegria altruísta e compaixão), estão presentes apenas nas
ocasiões em que as suas funções individuais são exercidas.

(50) Compaixão, (karuna): Tem como característica promover a remoção do


sofrimento dos outros. A sua função é não ser capaz de tolerar o sofrimento dos
outros. Ela se manifesta como não crueldade.

(51) Alegria altruísta, (mudita): Mudita tem como característica o contentamento


com o sucesso dos outros. A sua função é não ter inveja do sucesso dos outros. Ela
se manifesta como a eliminação da aversão.

3.4 Não-Delusão (amoha)

(52) A faculdade da sabedoria: Pañña é sabedoria ou a compreensão das coisas tal


como elas na verdade são. É aqui chamada de faculdade porque exerce
predominância na compreensão das coisas como elas na verdade são. No
Abhidhamma, os três termos – sabedoria, (pañña),conhecimento, (ñana) e não-
delusão, (amoha) – são usados como sinônimos. A sabedoria tem como
característica apreender as coisas de acordo com a sua característica intrínseca. A
sua causa mais próxima é atenção com sabedoria, (yoniso manasikara).

A seguir o Abhidhammattha Sangaha detalha as associações e combinações dos


fatores mentais. Essa análise não faz parte do escopo deste trabalho. No entanto, a
título de ilustração daremos alguns exemplos abaixo.

Tomando os exemplos mencionados no Capítulo I. Compêndio da Consciência,


vejamos quais são os fatores mentais envolvidos num momento de consciência:

Com alegria, um menino, com a idéia de que não existe mal em roubar,
rouba espontaneamente uma maçã de uma feira.

Citta: Raiz na cobiça, com sensação de alegria, associada ao entendimento


incorreto, não estimulada

Cetasikas: Variáveis Universais - Todos; Variáveis Ocasionais - Todos; Insalubres


Universais – Todos; Insalubres Ocasionais:Cobiça, (18), e Entendimento Incorreto,
(19) .

Com raiva, um homem assassina um outro num ataque espontâneo de ódio.


Citta: Raiz na raiva, com sensação de desprazer, associada à aversão, não
estimulada

Cetasikas: Variáveis Universais - Todos; Variáveis Ocasionais: Pensamento


aplicado, (8),Pensamento sustentado, (9), Decisão, (10), Energia, (11), Aspiração,
(13); Insalubres Universais – Todos; Insalubres Ocasionais: Raiva, (21), Inveja,
(22), Avareza, (23), Ansiedade, (24).

Alguém com alegria pratica um ato generoso, compreendendo que isso é


uma ação saudável, (benéfica, hábil), depois de deliberação ou estímulo de
alguém.

Citta: Com sensação de alegria, associada ao conhecimento, estimulada.

Cetasikas: Variáveis Universais - Todos; Variáveis Ocasionais - Todos; Belos


Universais –Todos; Abstinências, Ilimitados, Não delusão – Todos.

Para finalizar este compêndio, vale a pena lembrar alguns aspectos importantes
destacados pelo Venerável Nyanaponika Thera no seu livro Abhidhamma Studies.

Um momento de consciência pode ser inferido de uma lista de fatores mentais, e


estes à primeira vista podem dar a impressão de serem partes rígidas, justapostas
como num mosaico. Na verdade, os fatores mentais apresentam uma estrutura mais
sutil e complicada de relações e correlações dinâmicas, tanto sob o ponto de vista
interno, dentro do mesmo momento de consciência, como externo, com outros
momentos de consciência. Sob a perspectiva interna, a multidão de fatores coopera
no sentido de alcançar um objetivo comum, quer seja mundano ou espiritual. Sob o
ponto de vista externo, um estado de consciência, com os seus respectivos fatores
mentais, tem conexões com consciências do passado e do futuro através da sua
natureza condicionada e condicionadora, (algo que será explorado em mais detalhe
no Capítulo V. Compêndio da Condicionalidade).

Além disso, os fatores mentais podem apresentar distintos graus de intensidade no


seu funcionamento. Por exemplo, a unicidade em um único ponto, que é um dos
fatores mentais universais, pode variar em intensidade, desde os níveis mais baixos
das consciências insalubres, nas quais a unicidade se caracteriza como mera
estabilidade, até os estágios mais elevados de consciência em que a unicidade pode
ser cultivada de modo deliberado como um fator de absorção meditativa, (jhana),
ou, dando ênfase à sua qualidade libertadora, a unicidade pode ter o caráter do
elemento da concentração correta, (do Nobre Caminho Óctuplo), e pode ser
desenvolvida até o nível de concentração de acesso com o propósito de insight,
(vipassana).

III. Compêndio da Matéria (rupa)

A palavra em Pali para matéria, rupa, é explicada como sendo uma derivação do
verbo ruppati, que significa “ser deformado, perturbado, golpeado, oprimido,
partido.” Os comentários afirmam que a matéria é assim denominada porque ela
está sujeita a alterações devido a condições físicas adversas tais como frio e calor,
fome e sede, moscas e mosquitos, vento e sol, etc.

O Compêndio da Matéria está dividido em cinco partes: 1. Enumeração, 2.


Classificação, 3. Origem, 4. Agrupamento e Modos de Ocorrência (sendo que este
último não será abordado neste trabalho).

Enumeração dos Fenômenos Materiais(rupasamuddesa)

O Abhidhamma enumera 28 tipos de fenômenos materiais que estão agrupados em


duas categorias: os quatro grandes elementos essenciais e os fenômenos materiais
derivados deles. Os quatro grandes elementos são os elementos materiais primários:
água, terra, fogo e ar. Esses são os constituintes fundamentais inseparáveis da
matéria e que em suas várias combinações fazem parte da composição de todas as
substâncias materiais, da menor partícula até a maior montanha. Os fenômenos
materiais derivados são como o próprio nome diz derivados ou dependentes dos
quatro grandes elementos. No total, os fenômenos materiais derivados são 24 em
número. Os grandes elementos podem ser comparados com a terra e os fenômenos
derivados com os arbustos e árvores que crescem na dependência da terra.

O conjunto dos 28 tipos de fenômenos materiais está dividido em dois grandes


grupos: um grupo é o da matéria produzida de forma concreta, que possui natureza
intrínseca e assim é passível de contemplação através do insight. E o outro, sendo
mais abstrato em sua natureza, é denominado como matéria produzida de forma
não-concreta. Abaixo encontram-se relacionados os dois grupos dos fenômenos
materiais:

Matéria Produzida de forma concreta Matéria não concreta

I. Grandes elementos essenciais VIII. Fenômeno limitante

1. Elemento Terra 19. Elemento do espaço


2. Elemento Água

3. Elemento Fogo

4. Elemento Ar

II. Fenômenos Sensitivos IX. Fenômeno da comunicação

5. Sensibilidade no olho 20. Manifestação Corporal

6. Sensibilidade no ouvido 21. Manifestação Verbal

7. Sensibilidade no nariz

8. Sensibilidade na língua

9. Sensibilidade no corpo

III. Fenômenos Objetivos X. Fenômenos Mutáveis

10. Formas visíveis 22. Leveza

11. Sons 23. Maleável

12. Aromas 24. Manuseável

13. Sabores

Tangíveis (= 3 elementos: terra, fogo, ar)

IV. Fenômenos Sexuais XI.Características da Matéria

14. Feminilidade 25. Produção

15. Masculinidade 26. Continuidade

27. Decadência

28. Impermanência

V. Fenômeno do Coração

16. Base do Coração

VI. Fenômeno da Vida

17. Faculdade vital

VII. Fenômeno nutricional

18. Alimento

Matéria Produzida de forma concreta (nipphannarupa)


Estes dezoito tipos de fenômenos materiais enumerados acima podem ser agrupados
como:

matéria que possui natureza intrínseca porque cada tipo possui uma natureza
objetiva distinta, tal como a dureza no caso do elemento terra, etc.;

matéria que possui características reais porque eles possuem as três marcas:
impermanência, sofrimento e não-eu;

matéria produzida de forma concreta porque eles são diretamente produzidos por
condições como kamma, etc.;

matéria material porque eles possuem a característica essencial da matéria de estar


sujeita à deformação;

matéria para ser compreendida através do insight porque eles devem ser
empregados como objetos do insight através da contemplação das três marcas.

(I) O elemento terra é assim chamado porque, como a terra, ele serve como
suporte ou fundação para os fenômenos materiais coexistentes. O elemento terra
tem a característica da dureza.

O elemento água ou fluidez, é o fator material que faz com que as diferentes
partículas da matéria fiquem coesas, evitando que elas se espalhem.

O elemento fogo tem a característica do calor, a sua função é amadurecer os


outros fenômenos materiais. Tanto o calor como o frio são os modos como o
elemento fogo é sentido.

O elemento ar é o princípio do movimento e da pressão. A sua função é causar o


movimento dos outros fenômenos materiais.

Em conjunto, os quatro elementos estão suportados pelo elemento terra, unidos pelo
elemento água, mantidos pelo elemento fogo e distendidos pelo elemento ar.

(II) Fenômenos sensitivos são os cinco tipos de matéria localizada em cada um


dos cinco órgãos dos sentidos. A sensibilidade deve ser distinguida do órgão em si,
que é o que lhe dá suporte. Aquilo que convencionamos chamar de olho, no
Abhidhamma, é chamado de o composto do olho, um composto de vários fenômenos
materiais. Entre eles está a sensibilidade no olho, a substância sensível na retina que
registra a luz e a cor e que serve como base física e porta para a consciência no
olho. Uma descrição semelhante se aplica ao ouvido, nariz, língua e corpo, exceto
que no corpo a sensibilidade se estende a todo o corpo e serve para registrar as
sensações tangíveis.

(III) Fenômenos objetivos são os cinco campos sensoriais, (objetos tangíveis), que
servem como suporte objetivo para a respectiva consciência nos órgãos dos
sentidos.

(IV) Fenômenos sexuais são as duas faculdades que possuem as características do


sexo feminino ou do sexo masculino. A sua manifestação são as marcas, sinais e
características femininas e masculinas.

(V) Base do coração: Uma base é o suporte físico para a ocorrência da consciência.
A base do coração serve como o suporte físico para todos os tipos de consciência,
exceto aqueles originados nos cinco meios dos sentidos, que tomam os fenômenos
sensitivos como sua base.

(VI) Faculdade vital: é a contrapartida material da faculdade vital mental. Vida ou


vitalidade é chamada de faculdade porque possui uma influência dominante sobre os
seus adjuntos. A faculdade vital tem a característica de manter os tipos de matéria
coexistindo no momento da sua presença. A sua função é fazer com que eles
ocorram.

(VII) Alimento tem como característica ser uma essência nutritiva, (ou em outras
palavras, todo alimento pode gerar energia). Sua função é dar sustento ao corpo
físico.

Matéria não concreta (anipphannarupa)

Os tipos de matéria contidos neste grupo são designados como não concretos porque
eles não surgem das quatro causas para a origem da matéria, (veja abaixo – A
Origem da Matéria), mas existem como modalidades ou atributos da matéria
concreta. O Abhidhammattha Sangaha traz mais detalhes deste tipo de matéria mas
isto não será objeto deste trabalho.

2. Classificação da Matéria (rupavibhaga)

A matéria pode ser única:

Toda matéria é desprovida de raiz, (delusão, aversão, cobiça), porque não está
associada com as raízes saudáveis, insalubres ou indeterminadas, a associação com
as raízes está limitada aos fenômenos mentais. Toda matéria possui condições
porque ela surge na dependência de quatro causas, (veja abaixo– A Origem da
Matéria). A matéria está sujeita às contaminações, porque pode se tornar um objeto
das quatro impurezas,(asavas). A matéria é condicionada e mundana porque não há
matéria que transcenda o mundo dos cinco agregados. Toda matéria é da esfera
sensual: embora a matéria exista no plano da matéria sutil, ela pertence, por sua
natureza, à esfera sensual porque é o objeto do desejo sensual. A matéria não
possui um objeto, pois ao contrário dos fenômenos mentais, a matéria não é capaz
de perceber um objeto. A matéria não pode ser abandonada, tal como as
contaminações que são abandonadas através dos quatro caminhos supramundanos.

A matéria pode ser múltipla:

Os cinco tipos de fenômenos sensitivos são considerados como internos, todos os


demais são externos, (esta é uma definição técnica do Abhidhamma, embora outros
fenômenos materiais ocorram dentro do corpo, apenas os cinco fenômenos sensitivos
são classificados como internos). Os cinco fenômenos sensitivos mais a base do
coração são considerados bases dos sentidos. Os cinco fenômenos sensitivos mais os
dois meios de manifestação são considerados como portas dos meios dos sentidos.
Uma base é o suporte físico para a ocorrência da consciência. Uma porta é o canal
através do qual as cittas e os cetasikas de um processo cognitivo ganham acesso ao
objeto. Embora as cinco primeiras bases coincidam com as cinco primeiras portas,
isto é, a sensibilidade nos órgãos dos sentidos, uma base não é idêntica à porta já
que ambas desempenham papéis diferentes na origem da consciência.

Os quatro grandes elementos mais os quatro derivativos – cor, aroma, sabor e


essência nutritiva - são conhecidos como matéria ou fenômenos materiais
inseparáveis porque eles estão sempre em conjunto e estão presentes em todos os
objetos materiais, dos mais elementares aos mais complexos. Os outros tipos de
fenômenos materiais podem estar presentes ou não e por isso são considerados
como separáveis.

3. A Origem da Matéria

Os fenômenos materiais podem se originar de quatro formas: de kamma, da


consciência, da temperatura e do alimento.

1. Kamma: se refere à volição, (cetana), presente em estados de consciência


saudáveis ou insalubres. Existem vinte cinco tipos de kamma que produzem
fenômenos materiais: as dozecittas insalubres da esfera da sensualidade, as
oito cittas saudáveis da esfera da sensualidade e as cinco cittas saudáveis da esfera
da materialidade sutil. As cittas saudáveis da esfera imaterial geram o renascimento
no plano imaterial e dessa forma não produzem fenômenos materiais originados de
kamma. Dezoito tipos de fenômenos materiais são produzidos por kamma: os oito
fenômenos materiais inseparáveis nos nove grupos produzidos por kamma, (veja
abaixo – Agrupamento de Fenômenos Materiais); os cinco tipos de fenômenos
sensitivos; as duas faculdades sexuais; a faculdade vital da matéria; a base do
coração; e o espaço.

2. Consciência: existem vários fenômenos materiais produzidos pelos distintos


estados de consciência: os fenômenos materiais que ocorrem a partir do surgimento
do primeiro momento de consciência, após a consciência de renascimento; na
manutenção das posturas corporais; na manifestação verbal e corporal; no sorriso ou
no riso.

3. Temperatura: começando com a consciência de renascimento, o elemento fogo


interno presente nos grupos materiais formados a partir do kamma se combina com
o elemento fogo externo e começa a produzir fenômenos materiais orgânicos
originados do calor. Depois disso, o elemento fogo, presente em todos os fenômenos
materiais, produz fenômenos materiais orgânicos nascidos do calor ao longo de toda
a existência. Externamente, a temperatura ou o elemento fogo também produz
fenômenos materiais inorgânicos tais como as transformações climáticas e
geológicas.

4. Alimento: o alimento produz fenômenos materiais a partir do momento em que é


engolido.

4. O Agrupamento de Fenômenos Materiais

Os fenômenos materiais não ocorrem de forma isolada mas em combinações ou


grupos conhecidos como rupakalapas, sendo que existem 21 grupos enumerados,
(abaixo encontram-se relacionados apenas 14 grupos a título de exemplo). Todos os
fenômenos materiais num grupo surgem juntos e cessam juntos.

Grupos que se originam do kamma: a faculdade vital, junto com os oito


fenômenos materiais inseparáveis, juntamente com o olho formam o grupo do olho.
Da mesma forma com o ouvido, nariz, língua, corpo, feminilidade, masculinidade e
base do coração. Os oito fenômenos materiais inseparáveis mais a faculdade vital é o
grupo vital. Esses nove grupos se originam de kamma.

Grupos que se originam da consciência: Os oito fenômenos materiais


inseparáveis junto com a manifestação corporal formam o grupo da manifestação
corporal; junto com a manifestação verbal mais o som formam o grupo da
manifestação verbal.

Grupos que se originam da temperatura: O grupo dos oito inseparáveis; o grupo


do som.

Grupos que se originam do alimento: O grupo dos oito inseparáveis.

IV. Compêndio do Processo Cognitivo


(Vithisangahavibhaga)

Este capítulo trata da dinâmica da consciência tal como ela ocorre no processo
cognitivo. Todas as cittas em qualquer processo cognitivo ocorrem numa dada
seqüência de acordo com as leis da natureza. A ocorrência da consciência fora do
processo cognitivo, isto é, nas ocasiões do renascimento, bhavanga e morte estão
fora do escopo deste trabalho.

Enumeração das Categorias

No compêndio do processo cognitivo devem ser compreendidas seis classes


compostas de seis elementos cada uma:

(i) seis bases


(ii) seis portas
(iii) seis objetos
(iv) seis tipos de consciência
(v) seis processos
(vi) apresentação dos objetos de seis formas

Seis bases e Seis portas: naqueles planos de existência onde ocorre a


materialidade, ascittas e os cetasikas surgem na dependência de uma condição
chamada base, (vatthu). A base é um suporte físico para a ocorrência da
consciência. Embora as primeiras cinco bases coincidam com as cinco primeiras
portas, uma base não é idêntica a uma porta, já que desempenha um papel diferente
no processo da origem da consciência. Uma porta é um canal através do qual
as cittas e os cetasikas de um processo cognitivo obtêm acesso ao objeto; uma base
é um suporte físico para a ocorrência de cittas e cetasikas. A base do coração serve
como o suporte físico para todos os tipos de consciência exceto aqueles originados
nos cinco meios dos sentidos. Bhavanga (1) é a porta da mente.
Seis objetos: Cada consciência, juntamente com os seus fatores mentais
associados, necessariamente toma um objeto, pois a consciência em si consiste em
essência na atividade da cognição de um objeto. Em Pali duas palavras são usadas
para caracterizar um objeto. Uma é arammana que deriva de uma raiz com o
significado de “deliciar-se com.” A outra éalambana derivada de uma raiz totalmente
distinta que significa “agarrar-se a.” Portanto, o objeto é aquilo com o qual a
consciência e os seus concomitantes se deliciam ou no qual se agarram. No
Abhidhamma são reconhecidos seis tipos de objetos que correspondem aos seis
sentidos.

Seis tipos de consciência: os seis tipos de consciência são: consciência no olho,


consciência no ouvido, consciência no nariz, consciência na língua, consciência no
corpo, consciência na mente.

Seis processos:

De acordo com as portas os processos cognitivos são:

(i) o processo conectado com a porta do olho


(ii) o processo conectado com a porta do ouvido
(iii) o processo conectado com a porta do nariz
(iv) o processo conectado com a porta da língua
(v) o processo conectado com a porta do corpo
(vi) o processo conectado com a porta da mente

Ou, de acordo com a consciência os processos cognitivos são:

(i) o processo conectado com a consciência no olho


(ii) o processo conectado com a consciência no ouvido
(iii) o processo conectado com a consciência no nariz
(iv) o processoconectado com a consciência na língua
(v) o processo conectado com a consciência no corpo
(vi) o processo conectado com a consciência na mente

O processo cognitivo conectado com as portas deve ser coordenado com a


consciência correspondente.

Os seis processos cognitivos: A palavra vithi tem o sentido literal de rua, mas
aqui é empregada com o sentido de processo. Quando as cittas surgem no processo
de cognição de um objeto nas portas dos sentidos ou na porta da mente, elas não
ocorrem de forma aleatória ou isolada, mas como fases numa série de eventos
cognitivos discretos, cada um conduzindo ao seguinte numa ordem regular e
uniforme. Essa ordem é chamada cittaniyama,a ordem do processo da consciência.
Para que um processo cognitivo ocorra, todas as condições essenciais têm que estar
presentes. Para cada tipo de processo as condições essenciais são as seguintes:

Para um processo na porta do olho:

(a) sensibilidade no olho (cakkhuppasada)


(b) objeto visível (ruparammana)
(c) luz (aloka)
(d) atenção (manasikara)

Para um processo na porta do ouvido:

(a) sensibilidade no ouvido (sotappasada)


(b) som (saddarammana)
(c) espaço (akasa)
(d) atenção

Para um processo na porta do nariz:

(a) sensibilidade no nariz (ghanappasada)


(b) aroma (gandharammana)
(c) elemento ar (vayodhatu)
(d) atenção

Para um processo na porta da língua

(a) sensibilidade na língua (jivhappasada)


(b)sabor (rasarammana)
(c) elemento água (apodhatu)
(d) atenção

Para um processo na porta do corpo

(a) sensibilidade no corpo (kayappasada)


(b) objeto tangível (photthabbarammana)
(c) elemento terra (pathavidhatu)
(d) atenção

Para um processo na porta da mente

(a) a base do coração (hadayavatthu)


(b) objeto mental (dhammarammana)
(c) bhavanga

Os seis tipos de processo cognitivo são divididos em dois grupos: os processos que
ocorrem em cada uma das cinco portas físicas; e os processos que ocorrem
exclusivamente na porta da mente. Como os processos nas cinco portas físicas
também emergem de bhavanga, estes são chamados de processos com portas
mistas já que envolvem ambas, a porta da mente e a porta de um órgão físico dos
sentidos. Os processos que ocorrem apenas na porta da mente são então chamados
de processos na porta da mente já que eles emergem debhavanga sozinhos, sem a
participação de uma porta dos sentidos. Como será visto mais adiante, os primeiros
cinco processos seguem um padrão uniforme apesar das diferenças nas faculdades
sensoriais através das quais eles ocorrem, enquanto que o sexto compreende uma
variedade de processos cuja única semelhança é que eles ocorrem independentes
das portas dos sentidos externas.

Apresentação dos objetos de seis formas: Isto significa a forma como um objeto
se apresenta para a consciência numa das seis portas, ou a ocorrência de estados de
consciência a partir da apresentação de um objeto. A apresentação de um objeto nas
cinco portas dos sentidos é analisada de quatro formas: muito intenso, intenso, leve
e muito leve. Na porta da mente existem duas alternativas: claro e obscuro. As
palavras intenso e leve não são usadas com referência ao objeto em si, mas em
relação à força do seu impacto na consciência. Que tão distinta é a impressão que o
objeto provoca. Por exemplo, se um objeto visível, com grande dimensão, se
apresenta na porta do olho, mas se a matéria sensível no olho for débil ou se a luz
for fraca, o objeto não irá criar uma impressão distinta e dessa forma irá cair na
categoria leve ou muito leve. Ou se por outro lado, uma forma pequena ou sutil
impacta o olho e devido à força da matéria sensível e à intensidade luminosa o
objeto criar uma impressão distinta, irá cair na categoria intenso ou muito intenso.
Dessa maneira, os termos qualificativos indicam não a característica do objeto em si,
mas o número de cittasque ocorrem no processo cognitivo que surge, do momento
em que o objeto impacta a porta do sentido, até o momento em que a apresentação
do objeto para a consciência cessa. O mesmo princípio se aplica à apresentação dos
objetos na porta da mente como claro e obscuro.

O Processo nas Cinco Portas dos Sentidos

O tempo de duração de uma citta, no Abhidhamma, é denominado um momento


mental, (cittakkhana). Essa é uma unidade temporal com duração extremamente
curta, os comentários dizem que bilhões de momentos mentais ocorrem num piscar
de olhos. No entanto, apesar da sua curta duração, cada momento mental consiste
de três submomentos – surgimento, (uppada); presença, (thiti); e
dissolução, (bhanga). Dentro do espaço de um momento mental, surge uma citta,
esta realiza a sua função e depois se dissolve, condicionando a citta que segue de
imediato. Desse modo, através da seqüência de momentos mentais, o fluxo da
consciência segue sem interrupção como as águas de um rio.

Os fenômenos materiais também passam por esses três estágios de surgimento,


presença e dissolução, mas neste caso, o tempo requerido para que esses três
estágios sejam completados é igual ao tempo necessário para que
dezessete cittas surjam e desapareçam.

O quadro abaixo ilustra o processo cognitivo completo ocorrendo na porta do olho


para um objeto muito intenso:

Um processo completo na porta do olho


----------------- Etapas de um processo cognitivo ----------------

Fluxo de Bhavanga

1 *** Bhavanga passada

2 *** Bhavanga vibrando

3 *** Bhavanga suspensa

4 *** Advertência na porta do olho

5 *** Consciência no olho

6 *** Recebimento

7 *** Investigação

8 *** Determinação

9 *** Javana

10 *** Javana

11 *** Javana

12 *** Javana

13 *** Javana

14 *** Javana

15 *** Javana

16 *** Registro

17 *** Registro

Fluxo de Bhavanga

Nota: Os três asteriscos ao lado do número de cada processo representam os três


momentos de surgimento, presença e dissolução

Quando não há um processo cognitivo ativo ocorrendo, o fluxo de bhavanga segue


ininterrupto até o momento em que um objeto dos sentidos entra por uma das
portas dos sentidos, nesse exato momento uma citta de bhavanga ocorre, conhecida
como bhavangapassada, (atita-bhavanga). Num processo com um objeto muito
intenso, o objeto surge simultaneamente com o momento de surgimento de atita-
bhavanga. Portanto, este processo cognitivo tem a duração completa dos dezessete
momentos mentais. No caso de um objeto intenso, depois que o objeto surgiu,
duas ou três cittas de atita-bhavanga transcorrem até que o impacto do objeto faça
com que a bhavanga vibre dando seqüência ao processo. Mas como o objeto e a
porta do sentido têm a duração de apenas dezessete cittas, neste caso não há
espaço para que as cittas de registro ocorram. No caso de um objeto leve, de
quatro até oito cittas de atita-bhavanga irão transcorrer sendo que os javanas
(2) não irão surgir, mas a citta de determinação irá ocorrer duas ou três vezes,
depois do que o processo irá decair para a bhavanga. No caso do objeto muito
leve, de dez a quinze cittas de atita-bhavanga irão transcorrer e em seguida ocorre
a vibração da bhavanga sem que surja o processo cognitivo.

Regressando ao processo com um objeto muito intenso, depois de atita-


bhavanga segue a vibração de duas cittas de bhavanga, sendo que a segunda
interrompe ou suspende o fluxo de bhavanga. Depois disso, com o surgimento
da citta de advertência da porta do sentido, o fluxo de consciência dá início ao
processo cognitivo.

A conexão do processo cognitivo descrito até agora com as “seis classes com seis
elementos”, descritas acima na Enumeração das Categorias, pode ser compreendida
da forma descrita a seguir. Quando uma forma visível impacta a sensibilidade no
olho, então, suportada pela base do olho, surge a consciência no olho tomando como
objeto a forma visível que impactou o olho. Para a consciência no olho, a
sensibilidade no olho é a base e a porta, a forma visível é o objeto. As
outras cittas no processo – a advertência na porta do sentido, recebimento,
investigação, determinação, javanas e registro – são estados de consciência na
mente. Elas tomam a mesma forma visível como objeto e a sensibilidade no olho
como porta, mas elas surgem com o suporte da base do coração. Para todas
as cittasenvolvidas no processo, a bhavanga também é considerada uma porta já
que todo o processo emerge da bhavanga. Dessa forma, todos os processos que têm
origem nas portas dos sentidos são considerados como processos com duas portas, a
sensibilidade material como uma porta distinta, (de acordo com cada órgão do
sentido), e a porta da mente ou bhavangacomo uma porta comum. Os antigos
mestres do Abhidhamma ilustram o processo cognitivo que ocorre nas portas dos
sentidos com o símile da manga. Um certo homem foi dormir ao pé de uma
mangueira. E nisso, uma manga madura se desprendeu do galho e caiu ao solo
passando perto da orelha do homem. Despertado pelo ruído, ele abriu os olhos e viu;
em seguida esticou o braço, agarrou a fruta, apertou-a de leve e cheirou. Depois
disso, ele mordeu um pedaço da manga e engoliu-o desfrutando do seu sabor, em
seguida ele voltou a dormir. Enquanto o homem dormia ao pé da árvore equivale ao
momento de ocorrência dabhavanga. O instante em que a manga madura se
desprende do galho e passa perto do ouvido equivale ao instante em que o objeto
impacta um dos órgãos dos sentidos. O momento em que ele desperta equivale à
consciência de advertência dirigindo-se ao objeto. O momento em que ele abre os
olhos para ver equivale à consciência no olho desempenhando o seu papel de ver. O
momento em que ele estica o braço equivale à consciência de recebimento
recebendo o objeto. O momento em que ele aperta de leve a fruta equivale à
consciência de investigação. O momento de cheirar a manga equivale à consciência
de determinação. O momento de comer a manga equivale ao javana de
experimentar o sabor da fruta. Engolir a fruta apreciando o seu sabor equivale à
consciência de registro tomando o mesmo objeto da etapa de javana. E o homem
voltando a dormir equivale ao retorno à bhavanga.

Deve ser observado que todo o processo cognitivo ocorre sem que exista um eu ou
sujeito por detrás dele como um agente que experimenta ou controla o processo,
uma “consciência” que se encontre fora do escopo do próprio processo.
As cittas momentâneas exercem elas mesmas as funções necessárias para a
cognição, e a unidade do ato cognitivo deriva da coordenação entre as cittas por
meio da lei de interconexão condicionada. Dentro do processo cognitivo
cada citta surge de acordo com a lei natural da consciência, (cittaniyama).Elas
surgem na dependência de uma variedade de condições, incluindo
a citta precedente, o objeto, a porta e uma base física. Tendo surgido, ela realiza a
sua função única dentro do processo e depois se dissolve tornando-se uma condição
para a citta seguinte.

O Processo na Porta da Mente

O processo independente na porta da mente ocorre quando qualquer um dos seis


objetos entra no âmbito da cognição inteiramente por conta própria, não como
conseqüência de um processo numa das portas dos sentidos. Pode ser colocada a
questão sobre como um objeto pode entrar no âmbito da porta da mente,
independentemente de um contato sensorial. Ledi Sayadaw menciona várias fontes:
através daquilo que foi percebido diretamente antes ou através da inferência daquilo
que foi percebido diretamente antes; daquilo que foi aprendido por meio do relato
verbal ou através da inferência daquilo que foi aprendido através do relato verbal;
por conta de crença, opinião, raciocínio ou aceitação de uma idéia com base na
reflexão; pelo poder de kamma, poderes psíquicos, distúrbios dos humores do corpo,
compreensão, realização, etc. A mente que tenha sido alimentada com esse tipo de
input de experiências passadas é extremamente suscetível à influência destas. Ao
encontrar um objeto sensual qualquer, aquele objeto pode disparar num único
momento mental ondas que se estendem a muitos milhares de objetos que foram
experimentados antes. O contínuo mental, sendo constantemente excitado por essas
influências causais, está sempre buscando uma oportunidade para emergir
da bhavanga e obter a cognição clara do objeto.

Quando um objeto claro entra na porta da mente, a bhavanga vibra e é suspensa.


Então a consciência de advertência na porta da mente se volta para o objeto,
seguida de sete momentos de javana e dois de registro, depois do que o processo
cognitivo regressa para abhavanga. No caso de objetos obscuros os dois
momentos de registro não ocorrem sob nenhuma circunstância.

O Procedimento de Registro

Os objetos sensuais se dividem em três classes: os indesejáveis, moderadamente


desejáveis e os extremamente desejáveis. De acordo com a filosofia do Abhidhamma
a distinção na qualidade dos objetos faz parte da natureza intrínseca do objeto, não
é uma variável determinada pelo temperamento e preferências do indivíduo. O fato
de uma pessoa experimentar um objeto, seja ele indesejável, moderadamente
desejável ou extremamente desejável, é governado pelo kamma passado. Dessa
maneira, o objeto experimentado oferece a oportunidade para que o kamma mature
sob a forma de estados de consciência
resultantes, (vipakacitta). As cittas resultantes estarão de acordo com a natureza do
objeto. Através da força de kamma insalubre o ser encontra um objeto indesejável, e
dessa forma ascittas resultantes serão geradas pela maturação daquele kamma
insalubre. Neste caso ascittas: da consciência nos sentidos, da recepção, de
investigação e de registro, são necessariamente resultantes
insalubres, (akusalavipaka). Por outro lado, um objeto moderadamente desejável ou
extremamente desejável é encontrado através da força de kamma saudável, e as
cittas resultantes no processo cognitivo serão geradas pela maturação daquele
kamma saudável.

Deve ser observado que enquanto que as cittas resultantes, (consciência nos
sentidos, recepção, investigação e registro), são governadas pela natureza do objeto,
as javanas não o são, e variam de acordo com o temperamento e inclinações de
quem as experimenta. Mesmo se o objeto for extremamente desejável,
as javanas podem ocorrer sob a forma de indiferença. E até mesmo é possível
que javanas acompanhadas pela aversão e desprazer surjam em relação a um objeto
extremamente desejável, ou que em relação a um objeto indesejável
ocorram javanas sob a forma mais apropriada para um objeto desejável. Assim, um
masoquista pode responder à dor física com cittas com raiz na cobiça e
acompanhadas pela alegria, enquanto que um monge dedicado à prática meditativa
poderá contemplar um corpo em decomposição com cittas saudáveis acompanhadas
pelo conhecimento e alegria.

Introdução >> III. Compêndio da Matéria >> V. Compêndio da


Condicionalidade

Notas:

[1] Bhavanga: A palavra bhavanga significa fator, (anga), da existência, (bhava),


isto é, a condição sine qua non da vida e tem a característica de um processo,
literalmente um fluxo ou correnteza. As Bhavangacittas surgem e desaparecem
continuamente durante a vida, sempre que não estiver ocorrendo um processo
cognitivo ativo. Quando um objeto impacta uma das portas dos sentidos,
a bhavanga é suspensa e o processo cognitivo relativo ao objeto que surgiu segue a
sua seqüência natural. Imediatamente após a conclusão daquele processo cognitivo,
novamente a bhavanga sobrevém e continua até que o próximo processo cognitivo
ocorra. [Retorna]

[2] Javana: é um termo técnico do Abhidhamma que é melhor não traduzir. O


sentido literal da palavra é correr velozmente. São várias cittas idênticas,
normalmente sete, que “correm velozmente” em direção ao objeto no sentido de
agarrá-lo. O estágio de javana é o mais importante sob o ponto de vista ético, pois é
neste ponto que as cittas saudáveis ou insalubres têm origem, ou seja, o ponto da
formação de kamma.[Retorna]
V. Compêndio da Condicionalidade
(Paccayasangahavibhaga)

Depois de haver explicado os quatro tipos de realidade última e as suas categorias, o


Abhidhammatha Sangaha aborda no Compêndio da Condicionalidade a análise das
relações entre esses elementos em termos de estados
condicionadores, (paccayadhamma), e estados
condicionados, (paccayauppannadhamma), vinculados por meio de forças
condicionadoras,(paccayasatti).

Os estados condicionados: os estados condicionados são os


fenômenos, (dhamma), que surgem na dependência de condições, isto é, todas
as cittas, todos os cetasikas e todos os fenômenos materiais.

Os estados que são a sua condição: Uma condição é um estado que tem eficácia
no surgimento ou persistência de outros estados. Isso significa que uma condição,
quando estiver operante, irá causar o surgimento de outros estados a ela conectados
se ainda não tiverem surgido, ou, se já tiverem surgido, irá manter a existência
deles. Todos os fenômenos condicionados, bem como Nibbana, estão incluidos na
categoria de estados condicionadores.

E como eles estão relacionados: Isto se refere aos vinte quatro tipos de forças
condicionadoras que operam entre os estados condicionadores e os estados
condicionados. Essas forças condicionadoras são analisadas no Compêndio da
Condicionalidade.

O Compêndio da Condicionalidade está dividido em duas partes:

O Método da Origem Dependente

O Método das Relações Condicionais

O Método da Origem Dependente é caracterizado pela ocorrência de um estado na


dependência de um outro, enquanto que o Método das Relações Condicionais se
refere à eficácia causal específica das condições.

O Método da Origem Dependente

O termo “origem dependente” é um composto de paticca, na dependência de,


e samuppada,surgimento, origem. Essa expressão em geral se aplica à fórmula dos
12 elos que com freqüência é encontrada nos suttas. A origem dependente é em
essência o relato da estrutura causal do ciclo de existências demonstrando as
condições que mantêm a roda do nascimento e morte e que faz com que ela gire de
uma existência para outra. Nos Comentários, a origem dependente é definida como o
surgimento de efeitos na dependência de uma conjunção de condições. Isso significa
que não existe uma causa única capaz de produzir um efeito, e nem somente um
efeito surge de uma determinada causa. Ao invés disso, existe sempre uma coleção
de condições dando origem a uma coleção de efeitos. Quando, na fórmula tradicional
é declarado um estado como uma condição para outro, isso é dito para identificar a
condição principal dentre uma coleção de condições e relacioná-la ao efeito mais
importante dentro de uma coleção de efeitos. [1]

O Método das Relações Condicionais

Este é o método desenvolvido no Patthana, O Livro das Relações Condicionais que é


o sétimo e último livro do Abhidhamma Pitaka. Em contraste com o método da
origem dependente, que trata apenas dos estados condicionadores e dos estados
condicionados e a estrutura do seu surgimento, o método do Patthana também lida
com as forças condicionadoras, (paccayasatti).Uma força, (satti), é aquilo que tem o
poder de ocasionar ou realizar um determinado efeito. Assim como o ardor do chile é
inerente ao chile e não pode existir sem ele, do mesmo modo as forças
condicionadoras são inerentes aos estados condicionadores e não existem sem eles.
Todos os estados condicionadores possuem a sua força particular, e é essa força que
permite que eles causem o surgimento dos estados condicionados. O Patthana traz
uma relação de 24 condições com uma explanação detalhada das várias formas
através das quais essas condições inter-relacionam os fenômenos materiais e
mentais enumerados noDhammasangani, o primeiro livro do Abhidhamma Pitaka.
Para entender de forma apropriada o ensinamento das relações condicionais contido
no Abhidhamma é essencial entender os três fatores envolvidos em qualquer relação
em particular: (1) os estados condicionadores,(paccayadhamma), fenômenos que
funcionam como condições para outros fenômenos, quer seja produzindo-os,
suportando-os ou mantendo-os; (2) os estados condicionados,
(paccayauppannadhamma), pelos estados condicionadores, os fenômenos que
surgem e persistem através da assistência proporcionada pelos estados
condicionadores; (3) a força condicionadora da condição, (paccayasatti), o modo
particular através do qual os estados condicionadores funcionam como condição para
os estados condicionados.

O significado de Patthana é causa proeminente ou principal. Cada ação tem uma


causa. Existem dois tipos de efeitos: direto e indireto. De acordo com Ledi Sayadaw,
no seu livro ‘Manuals of Buddhism,’ efeito direto quer dizer efeito primário ou atual;
indireto quer dizer efeito conseqüente ou secundário. Desses dois tipos, apenas o
efeito direto é referido como inelutável, pelo fato dele nunca deixar de surgir quando
a sua causa apropriada estiver estabelecida ou vier à tona. E o efeito indireto deve
ser compreendido como falível, já que ele poderá ou não surgir mesmo que a sua
causa esteja plenamente estabelecida. Portanto, a causa inelutável é assim chamada
com referência ao efeito inelutável. Por conseguinte, apenas a causa inelutável ou
principal é explicada no Patthana, e daí o seu nome. Para exemplificar, digamos que
a cobiça surja num homem que deseje obter riquezas. Sob a influência da cobiça ele
vai para a floresta onde limpa um pedaço de terreno e estabelece um plantio e se
empenha no trabalho. No final das contas, como resultado do seu trabalho ele obtém
muito dinheiro com o qual ele atende as necessidades da sua família e realiza muitos
atos meritórios dos quais ele irá obter recompensas em existências futuras. Neste
exemplo, todos os estados mentais e materiais que coexistem com a cobiça são
chamados de efeitos diretos. Além desses, todas as conseqüências, resultados e
recompensas que serão desfrutados mais tarde são chamados de efeitos indiretos.
Desses dois tipos de efeitos apenas o primeiro é tratado no Patthana, enquanto
que o segundo é tratado nos discursos do Sutta Pitaka. É necessário entender que
todas as coisas que ocorrem, acontecem, têm lugar ou produzem mudanças, são
apenas os efeitos diretos e indiretos, resultados, conseqüências ou produtos dessas
vinte quatro relações ou causas.

As Vinte Quatro Relações Condicionais

1. Condição de raiz (hetupaccaya)

2. Condição de objeto (arammanapaccaya)

3. Condição de predominância (adhipatipaccaya)

4. Condição de proximidade (anantarapaccaya)

5. Condição de contigüidade (samanantarapaccaya)

6. Condição co-nascente (sahajatapaccaya)

7. Condição de mutualidade (aññamaññapaccaya)

8. Condição de suporte (nissayapaccaya)

9. Condição de suporte decisivo (upanissayapaccaya)

10. Condição pré-nascente (purejatapaccaya)

11. Condição pós-nascente (pacchajatapaccaya)

12. Condição de repetição (asevanapaccaya)

13. Condição de kamma (kammapaccaya)

14. Condição de resultado de Kamma (vipakapaccaya)

15. Condição de alimento (aharapaccaya)

16. Condição de faculdade (indriyapaccaya)

17. Condição de jhana (jhanapaccaya)


18. Condição de caminho (maggapaccaya)

19. Condição de associação (sampayuttapaccaya)

20. Condição de dissociação (vippayuttapaccaya)

21. Condição de presença (atthipaccaya)

22. Condição de ausência (natthipaccaya)

23. Condição de desaparecimento (vigatapaccaya)

24. Condição de não desaparecimento (avigatapaccaya)

(1) A condição de raiz se refere aos seis cetasikas chamados de raízes, (mula,
hetu), pois dão força e estabilidade aos fenômenos que eles condicionam, da mesma
forma que as raízes de uma árvore dão força e estabilidade a ela. Os estados
condicionados são: os estados mentais associados a cada raiz e os fenômenos
materiais co-nascentes. Os fenômenos materiais co-nascentes são aqueles
originários de kamma no momento da consciência de renascimento e aqueles que se
originam das cittas durante o curso da existência. Três raízes – cobiça, raiva e
delusão são exclusivamente insalubres. As outras três – não-cobiça, não-raiva e não-
delusão são saudáveis.

(2) A condição de objeto é um fenômeno que serve como uma condição para
as cittas ecetasikas ao ser tomado como objeto por elas. Todos os tipos
de cittas, todos os tipos decetasikas, tudo que é caracterizado como um conceito,
pode ser tomado como objeto. Na verdade, não existe uma única coisa que não
possa se tornar um objeto para a mente. Resumindo, a condição de objeto pode ser
de seis tipos: forma visível, som , aroma, sabor, objeto tangível e um objeto
puramente mental.

(3) A condição de predominância é de dois tipos, de objeto e co-nascente. Uma


condição depredominância de objeto é qualquer objeto ao qual a mente dá
importância especial. Esta condição é quase idêntica à condição de número (9),
diferindo apenas no que diz respeito às forças envolvidas. Uma condição
de predominância co-nascente é um dos quatro fatores – desejo (de realizar),
energia, consciência e investigação – que assumem um papel dominante
condicionando os fenômenos mentais e materiais co-nascentes. Apenas um dos
fatores pode assumir esse papel de predominância numa determinada ocasião e
apenas nos javanas. Como analogia, esta condição se compara a um monarca
universal que em relação à sua influência e autoridade não tem rival e governa com
domínio absoluto.

(4) e (5) As condições de proximidade e contigüidade possuem significados


quase idênticos. Ambas se referem a qualquer citta e seus respectivos cetasikas em
relação à capacidade deles de fazer surgir no contínuo da consciência a citta com os
seus respectivos cetasikas que vêm imediatamente em seguida.

(6) Uma condição co-nascente é um fenômeno que ao surgir faz com que outros
fenômenos surjam junto, como a chama de uma vela que faz a luz, cor e calor
surgirem simultaneamente.

(7) Uma condição de mutualidade é um fenômeno que auxilia um outro por meio
de estímulo e estabilização mútua, semelhante a um tripé, onde cada perna auxilia
as outras duas permitindo que o tripé fique em pé. A relação de mutualidade é um
tipo específico de co-nascença, de modo que todos os fenômenos que funcionam
como condição mútua também funcionam como condição de co-nascença. Dessa
forma, em qualquer citta, todos os fatores mentais são tanto condições co-nascentes
como de mutualidade para todos os demais. O mesmo se aplica a cada um dos
elementos primários, (materiais), em relação aos demais, e aos fenômenos mentais
e materiais na relação entre si no momento da consciência de renascimento.

(8) Uma condição de suporte é um fenômeno que auxilia outros fenômenos


servindo como suporte ou fundamento do qual eles possam depender; da mesma
maneira que se diz que a terra suporta as árvores ou uma tela suporta uma pintura.
Por exemplo, as cinco bases internas são condições de suporte para as suas
respectivas cittas e cetasikas nas portas dos meios dos sentidos. Da mesma forma
com a base do coração em relação às cittas e cetasikasque a tomam como base
física durante o curso da existência.
(9) Uma condição de suporte decisivo é um fenômeno que auxilia um outro
servindo como uma forte causa para o seu surgimento. Por exemplo, a raiva pode
ser um suporte decisivo para um assassinato, a cobiça para o roubo, a fé para a
generosidade, a meditação para o desenvolvimento da sabedoria. Para ilustrar a
diferença entre a condição de suporte e a condição de suporte decisivo vamos tomar
o exemplo do arroz cozido. Para obter o arroz cozido é necessário primeiro ter o
arroz. Assim, as sementes, um pedaço de terra e a chuva são os elementos
primários para produzir arroz, e essa dependência primária é a condição de suporte
decisivo. Mas uma vez que o arroz tenha sido obtido, só é necessário depender da
panela, combustível, fogo, água e do cozinheiro para cozinhar o arroz. Essas são as
condições de suporte.

(10) Uma condição pré-nascente é um fenômeno que surge antes de um outro e


se mantém presente auxiliando este último no seu surgimento. Assim, os cinco
objetos dos sentidos e as cinco bases internas são condições pré-nascentes para as
suas respectivas cittas e cetasikas, e a base do coração para
as cittas e cetasikas que a tomam como base física durante o curso da existência.
Como o Sol que surge antes do mundo e que proporciona luz e calor para os seres
que vêm em seguida.

(11) Uma condição pós-nascente se refere a cittas e cetasikas quanto ao


seu funcionamento como condição para a preservação e fortalecimento dos
fenômenos materiais do corpo que já tenham surgido, juntamente
com cittas anteriores. Como a chuva que cai mais tarde promove o crescimento da
vegetação que já existe.

(12) Uma condição de repetição se refere a fenômenos que auxiliam e fortalecem


os fenômenos sucessivos através do poder da repetição. Como quando uma pessoa
economiza dinheiro desde a infância, ela assim terá mais conforto na velhice porque
a mesma coisa foi feita de modo repetido. Esta condição se aplica aos fenômenos
mentais saudáveis, insalubres e funcionais quando estes servem como condição para
o fenômeno mental sucessivo que tenha a mesma qualidade ética. Esta função
condicional é exercida por cadajavana em relação à javana seguinte no mesmo
processo de consciência, (cittavithi).

(13) A condição de kamma possui dois aspectos. Primeiro, na condição de kamma


assíncrono existe um espaço temporal entre os estados condicionadores e os estados
condicionados. O estado condicionador é uma volição saudável ou insalubre do
passado. Os estados condicionados são as cittas, cetasikas e fenômenos materiais
resultantes originados dekamma, tanto ao longo da existência como na consciência
de renascimento. Segundo, a condição de kamma co-nascente onde a volição faz
com que os seus fatores concomitantes desempenhem as suas respectivas tarefas e
estimula os fenômenos materiais apropriados.

(14) A condição de resultado de kamma se refere a fenômenos mentais


resultantes de kamma passado e a certos tipos de fenômenos materiais. São
fenômenos produzidos a partir da maturação de kamma e dessa forma não são
fenômenos ativos, mas passivos. No processo cognitivo, nas cinco portas dos meios
dos sentidos, as cittas resultantes não desempenham o papel de cognição do objeto.
É apenas na fase dos javanas que o esforço de cognição clara do objeto é feito e é
apenas nesta fase que as ações são realizadas.

(15) A condição de alimento se refere a quatro fatores assim chamados porque


eles “alimentam” o organismo psicofísico: comida, contato, volição e consciência. A
comida é o alimento para o corpo físico, os outros três são o alimento para a mente.
E neste caso, são as condições para os fenômenos mentais e materiais co-nascentes.

(16) A condição de faculdade se aplica a vinte fenômenos mentais e materiais


designados como faculdades porque eles dominam e dirigem os estados que caem
sob a sua influência. Essa condição é comparada a um grupo de ministros, cada um
com liberdade para controlar e governar a sua área específica, mas sem interferir
nas áreas dos demais. Assim, por exemplo, as cinco faculdades sensoriais físicas
servem como condição de faculdade para os fenômenos mentais que se originam
através delas; a faculdade da mente e as cinco faculdades espirituais – convicção,
energia, atenção plena, concentração e sabedoria – servem como condição de
faculdade para os seus fenômenos mentais e materiais originados pela consciência.
(17) A condição de jhana se refere a sete fatores mentais assim chamados pois
eles intensificam e concentram a citta à qual pertencem. Como um arqueiro que
segura o arco com firmeza e dirige a flecha para o objetivo.

(18) A condição do caminho se refere a doze fenômenos mentais assim chamados


pois eles proporcionam um meio para alcançar um destino específico ao fixar a
volição naquele caminho. Existem vários caminhos que podem conduzir ao
sofrimento ou à felicidade. Os oito fatores do caminho óctuplo são os mais
proeminentes porque conduzem à cessação do sofrimento.

(19) A condição de associação se aplica aos fenômenos mentais co-nascentes que


auxiliam uns aos outros através da sua associação por terem uma base física
comum, um objeto comum e um surgimento e cessação simultâneos. Pode ser
comparado a uma xícara de chá que consiste das folhas de chá, açúcar, leite e água
quente. Quando todos os ingredientes estão bem mesclados, o sabor não pode ser
diferenciado como sendo o chá, açúcar, leite e água separadamente.

(20) A condição de dissociação é uma condição na qual o estado condicionador é


ou um fenômeno material que auxilia um fenômeno mental presente, ou um
fenômeno mental que auxilia um fenômeno material presente. É como uma mistura
de água e óleo, eles permanecem separados embora estejam juntos. Assim, no
momento do renascimento a base do coração e os agregados mentais surgem
simultaneamente, sendo cada um uma condição de dissociação para o outro, por
conta das características particulares que os distinguem como fenômenos mentais e
materiais.

(21) A condição de presença se refere a um fenômeno que é uma condição para


outros fenômenos através da sua presença ao lado deles. Por exemplo, na presença
de um mestre eminente sentimos uma forte motivação para o caminho espiritual.
Inclui as condições 6, 7, 8, 10 e 11, bem como outras ocasiões em particular onde
esta condição tenha relevância.

(22) A condição de ausência se refere a fenômenos mentais que através da sua


cessação permitem que o fenômeno mental imediatamente a seguir possa surgir.
Esta condição é idêntica em conotação às condições 4 e 5.

(23) A condição de desaparecimento é idêntica à condição 22.

(24) A condição de não desaparecimento é idêntica à condição 21.

As Relações Condicionais e a Origem Dependente

O Patthana não submete a fórmula da origem dependente ao seu sistema de


relações condicionais, mas os comentários, tendo sempre em vista a precisão
máxima na sua exegese das formulações contidas nos suttas, aplicam o método das
relações condicionais a cada um dos pares de fatores do ciclo da origem dependente.
Essa análise é desenvolvida de modo completo no Capítulo XVII do Visuddhimagga.

Para ilustrar como os tipos de condicionalidade se aplicam à origem dependente,


tomemos o seguinte enunciado:

“Com a consciência como condição surge a mentalidade-materialidade.”

No momento da concepção a consciência de renascimento surge juntamente com os


seus fatores mentais associados, sendo que ambos são suportados pelo óvulo recém
fertilizado. Essa célula consiste de uma variedade de fenômenos materiais, sendo
que o mais importante é a base do coração. Como a consciência e os demais
fenômenos mentais que compõem a “mentalidade” surgem e cessam
simultaneamente, a consciência é uma condição para a mentalidade nas condições
co-nascente, suporte, associação, presença e não desaparecimento. Visto que, como
co-nascente a sua eficácia condicional é recíproca, ela também está relacionada à
mentalidade por meio da condição de mutualidade, e também como uma condição
resultante de kamma porque todos resultam do mesmo kamma passado responsável
por gerar o renascimento. Como alimento, a consciência é uma condição de alimento
para os seus fatores mentais associados, e como faculdade da mente ela é para eles
uma condição de faculdade. Dessa forma se obtém as nove condições mencionadas
nos Comentários. Em qualquer ocasião em que uma consciência surgir como
conseqüência da concepção, essa consciência será uma condição para a mentalidade
dessas mesmas nove formas.
Com relação à materialidade, os Comentários dizem que, no renascimento, a
consciência é uma condição para a materialidade da base do coração de nove
formas. Oito delas são idênticas às formas mencionadas acima através das quais a
consciência é uma condição para a mentalidade, sendo a única diferença a
substituição da condição de dissociação pela condição de associação. Essa mudança
se faz necessária dada a definição desta última como aplicável apenas a fenômenos
mentais co-nascentes, e a primeira como aplicável apenas a fenômenos mentais e
materiais co-existentes. Para os demais tipos de materialidade surgindo no momento
da concepção, a consciência de renascimento é a condição de todas as formas
descritas acima, exceto da mutualidade; pois embora os fenômenos sejam co-
nascentes, a sua eficácia condicional um em relação ao outro não é totalmente
recíproca. A consciência carmicamente ativa da vida passada, responsável pelo
presente renascimento, é uma condição para a materialidade produzida por kamma
apenas numa direção, como uma condição de suporte decisiva.

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