Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
CAMPINAS,
2015
i
ii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
CAMPINAS,
2015
iii
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624
iv
ABSTRACT
vii
Through primary sources we have discovered that this novel was conceived within an
intimate relation with the press. Instead of following a traditional path, a literary work
that uses a newspaper as a publication vehicle, Filomena Borges arose from the
newspaper itself; the press had more than a supporting role - it was a source from which
the novel gathered form and content. Because it had a feuilletonistic character it was
disregarded by literary history, being considered only as a minor book within Azevedo’s
work. Its only function would be, therefore, entertainment. Nonetheless by recovering
the novel coeval critic and the repercussions, we have found out that it had another
meaning that was lost in time: political. Since it included D. Pedro II as a character, and
by putting him in an unseemly situation, Aluísio Azevedo has divided the contemporary
critics within the emperor’s detractors and defenders. It was thus revealed the novel
political feature, which has been used as an intervention on the political debate. The
criticism around the novel could be understood throughout the comparison with other
works of the period and other aspects of the author’s procedure as well as the procedure
of Gazeta. From this reconstitution, the themes presented in the novel, such as marriage,
travels and politics were able to be explained in a more adequate matter regarding the
criteria of its time.
viii
SUMÁRIO
Introdução ..................................................................................................................................... 1
Capítulo 1 - Preparação ............................................................................................................... 11
1.1.a Os primeiros estalos ....................................................................................................... 11
1.2.a As aparições ................................................................................................................... 21
1.2.b Filomena sai das “Balas” e vai para as folhas: “Um encontro, um leque, um cartão” ... 26
1.2.c Filomena, mulher de imprensa ....................................................................................... 28
1.2.d Filomena nas páginas policiais....................................................................................... 32
1.2.e Filomena no Maranhão ................................................................................................... 33
1.3.a Adiamentos ..................................................................................................................... 34
1.3.b Os últimos estalos .......................................................................................................... 36
1.3.c Anúncios......................................................................................................................... 40
1.3.d Prefácio .......................................................................................................................... 41
Capítulo 2 – Circulação, recepção, repercussão .......................................................................... 45
2.1 Circulação ......................................................................................................................... 45
2.1.a O folhetim................................................................................................................... 45
2.1.b Edições em livro ......................................................................................................... 47
2.2 Recepção ........................................................................................................................... 55
2.2.a A polêmica.................................................................................................................. 55
2.2.b A. de B. F. no Brazil................................................................................................... 63
2.2.c Outras críticas ............................................................................................................. 69
2.3 Repercussão....................................................................................................................... 75
2.3.a Anúncios ..................................................................................................................... 75
2.3.b Carnaval ..................................................................................................................... 80
2.3.c Filomena vai aos teatros ............................................................................................. 82
2.4 Uma hipótese de fechamento ............................................................................................ 93
Capítulo 3 – Crítica do romance Filomena Borges ..................................................................... 99
3.1 Crítica recente ................................................................................................................... 99
3.1.a Prefácios ..................................................................................................................... 99
3.1.b Crítica acadêmica ..................................................................................................... 107
3.2 O casamento .................................................................................................................... 108
3.3 Aventuras e sensações ..................................................................................................... 125
3.4 Cenas políticas ................................................................................................................ 140
3.5 O fim de Filomena .......................................................................................................... 155
Conclusão .................................................................................................................................. 157
Referências ................................................................................................................................ 163
Fontes primárias .................................................................................................................... 165
Sítios consultados .................................................................................................................. 165
ix
x
AGRADECIMENTOS
xi
Aos capiais, por viverem o sonho: Miguel, Renan, Rodrigão e Bussunda.
Xerife, Sandro e Pupi pelas risadas. E ao Thomaz por nos receber anualmente em sua
casa.
Ao Caconde, pela referência, e à Letícia pela chefia.
Aos eventos: ESPEA, SETA, SEL, Semana de História, Colóquio PPLB.
Ao basquete da LHU. Dá-lhe dá-lhe!
xii
Introdução
Parte I
1
Cf. ARARIPE JÚNIOR, T. A. Araripe Júnior: Teoria, crítica e história literária. (org. Alfredo Bosi).
Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: Edusp, 1978; CÂNDIDO, A. Sílvio Romero: teoria, crítica e história
literária. Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: Edusp, 1978; VERÍSSIMO, J. José Veríssimo: Teoria, crítica e
história literária. (org. João Alexandre Barbosa). Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: Edusp, 1977.
2
PEREIRA, L. M. História da literatura brasileira: prosa de ficção: de 1870 a 1920. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988; SUSSEKIND, F. Tal Brasil, qual Romance? Rio de Janeiro: Achiamé,
1984.
3
Cf. ALMEIDA, L. T. Literatura Naturalista, Moralidade e Natureza. 2013. Tese (Doutorado em Teoria
e História Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas.
Campinas, 2013; FANINI, A. M. R. Os romances-folhetins de Aluísio Azevedo: Aventuras periféricas.
2003. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2003; MENDES, Leonardo. O retrato do imperador:
Negociação, sexualidade e romance naturalista no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; PORTO, A.
G. Novelas sangrentas: literatura de crime no Brasil (1870-1920). 2009. Tese (Doutorado em História) –
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009.
1
A “alienação” proviria tanto da maneira conservadora como os temas teriam
sido tratados nas obras, como da preferência pelo “modelo francês”. Essa questão é de
suma importância, primeiro porque a ideia de “importação” se baseia numa visão
dualista, que contrapõe nacional e estrangeiro como se contrapõem subdesenvolvido e
desenvolvido, nesta ordem respectiva, relacionando um termo a outro: nacional-
subdesenvolvido, estrangeiro-desenvolvido.4 É uma visão que relega ao Brasil a
condição de atrasado e, por extensão, à literatura brasileira a condição de influenciada
por literaturas centrais, no caso do século XIX, principalmente a francesa. Um segundo
ponto de importância é o do possível sentido político da obra de Azevedo. Aos olhos de
alguns pesquisadores do século XX, pautados também por essa visão de
subdesenvolvimento, os romances do maranhense seriam conservadores e atuariam no
sentido de manutenção do status quo. Neste trabalho, procuramos tratar sua obra como
filiada à geração 1870, pois tem um sentido de crítica às bases do Império, seguindo os
passos do grupo heterogêneo, mas combativo, daquela geração.5 Cabe dizer que não
esperamos fazer de Aluísio Azevedo um revolucionário, muito menos um “homem à
frente de seu tempo” – o que tencionamos é tratar de maneira adequada sua atuação
política através da literatura.
Costuma-se fazer uma divisão na obra do autor: de um lado ficam os
romances considerados naturalistas; de outro, o restante. Dá-se um peso muito maior à
porção naturalista, que acabou sendo responsável pela canonização; a “não naturalista”
ficou fadada ao esquecimento. Geralmente essa divisão acompanha uma marca
qualitativa: as primeiras seriam boas, ou no mínimo aceitáveis; as últimas, ruins,
indignas de história literária. O interesse em “resgatar” estas últimas é recente e
acompanha o estudo menos pejorativo que se faz do naturalismo atualmente.
Nesse ponto, adotamos, a partir de Mérian, a visão de que não há cisão clara
na obra de Azevedo.6 De fato, há uma continuidade, que é política, e um projeto estético
que vai se alterando aos poucos até culminar nas obras mais bem acabadas, como O
4
OLIVEIRA, Francisco. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Estudos Cebrap, São Paulo, v. 2,
p. 3-82, 1972.
5
ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e
Terra, 2002.
6
MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo: Vida e Obra (1857-1913). 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional; Garamond, 2013.
2
cortiço. Há estudos que mostram como as primeiras obras preparam as últimas.7 É
importante ponderar que o projeto declarado pelo escritor maranhense, de adequar o
público nacional ao romance naturalista em pequenas doses, liga-se à sua tentativa de
constituir uma imagem pública como grande autor naturalista, quando, na realidade, ele
foi um autor muito híbrido.
Sobre a ideia de que a primeira metade da obra é primordialmente romântica
e a segunda primordialmente naturalista, talvez o problema seja outro: a primeira parte
está mais ligada à imprensa, a segunda menos, publicada diretamente em livro numa
época em que o autor já se distanciara da atividade jornalística. Ainda assim, o caráter
combativo e mesmo paródico das obras persiste. O que dá unidade à obra é, portanto,
seu caráter polêmico e combativo.
E é justamente a parte “esquecida” da obra que está muito ligada à
imprensa, do modo como apresentaremos a seguir.
7
MARQUES JÚNIOR, Milton. Da ilha de São Luís aos refolhos de Botafogo. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 2000.
3
Em sua primeira passagem pelo Rio, no final da década de 1870, Azevedo
atuou principalmente como caricaturista, participando de periódicos ilustrados como O
Mequetrefe. Sua intenção, naquele momento, era conseguir estudar pintura na Europa,
sonho que nunca veio a realizar. A morte do pai o forçaria a voltar a São Luís, onde
passaria a atuar na imprensa como cronista e polemista, participando ativamente das
discussões da época na Pacotilha e em outros periódicos. Depois da publicação de Uma
lágrima de mulher e de O mulato, obra muito polêmica, ele regressou ao Rio, onde
ficaria até que sua carreira diplomática o fizesse viajar pelo mundo, já no final do
século.
De volta à capital, o maranhense passou a viver das letras. O período de
1881 a 1885 marcou o auge da sua produção folhetinesca e de sua participação na
imprensa. Seria uma obviedade afirmar que uma coisa está ligada à outra, mas a relação
é mais íntima do que parece. A importância da imprensa para esses romances é central:
ela não foi só veículo, foi também matriz.8
É muito famosa a relação entre Casa de pensão e o “caso Capistrano”,
ocorrido alguns anos antes no Rio de Janeiro. A pesquisa sobre Filomena Borges
revelou que existem relações ainda mais íntimas. Ao contrário de Casa de pensão,
Filomena Borges não se inspirou em um “caso real”: para promover este romance,
Aluísio Azevedo e a Gazeta de Noticias criaram a história de uma mulher que teria
distribuído cartões de visita a boa parte do Rio de Janeiro. A partir da discussão sobre
quem seria essa mulher, retratada como se fosse real, criou-se grande expectativa no
público. Azevedo prometeria, então, contar a “história real” daquela mulher misteriosa
em folhetins, publicados pela Gazeta entre dezembro de 1883 e janeiro de 1884.
Nesse processo de composição diária e coletiva, há trocas entre o romance e
seu suporte, a imprensa, que afetaram determinantemente não só seu conteúdo, mas
também sua forma. Os romances publicados de maneira seriada foram intimamente
afetados pela porosidade entre imprensa e literatura.9
8
THÉRENTY, Marie-Ève. La Littérature au Quotidien: Poétiques journalistiques au XIXe siècle. Paris:
Éditions du Seuil, 2007.
9
Ibidem.
4
comediógrafo e, apesar de não ter obtido destacado sucesso no ramo, participou
ativamente da vida teatral da capital. Essa atividade, aliada à de jornalista e folhetinista,
garantiu ao maranhense o sustento e uma série de relações pessoais muito importantes:
as amizades e parcerias com atores e atrizes, empresários e dramaturgos.
Ele adaptou dois de seus romances para os palcos, O mulato e Filomena
Borges, e escreveu uma dezena de peças, muitas delas em colaboração com o irmão
Artur ou com Emílio Rouède.
Seu teatro também tem a marca da polêmica. Além do escândalo de A flor-
de-lis, foram feitas apropriações abolicionistas de outras peças, como O mulato e
mesmo Filomena Borges, que a princípio não teria uma relação explícita.10
Essa atuação cultural ampla deve ser levada em conta no estudo do autor.
Ele foi um homem bastante inserido no seu meio cultural, que por sua vez não era
isolado: a literatura, o teatro, a imprensa brasileira estavam inseridos no âmbito
transnacional. É levando em conta esse mundo de relações diversificadas e de atuação
política pronunciada que estudamos a obra deste autor.
Mas o que é, afinal, a época ou o meio cultural em que se insere Aluísio
Azevedo? É, como sugere a história literária, tempo da voga realista/naturalista? Ou,
como sugerem as pesquisas mais recentes, um tempo de convivência entre aquela
literatura moderna que se ensaiava fazer no Brasil e uma grande quantidade de
romances franceses, publicados e lidos nos periódicos, muito vendidos em livros e
acessíveis nos gabinetes de leitura e bibliotecas? O que estava sendo encenado nos
teatros?
Estas questões são fundamentais para o modo como esta pesquisa foi
realizada. É através delas que esperamos dar a Filomena Borges uma história e uma
interpretação mais afinadas com os critérios e preocupações de seu próprio tempo,
levando em conta a relação essencial desse romance com a imprensa. O principal meio
de circulação literária no século XIX foi a imprensa.11 A afirmação, ainda que destinada
a dar conta da França, mais propriamente de Paris, adequa-se ao Brasil, mais
propriamente ao Rio de Janeiro.
10
V. Capítulo 2 da dissetação.
11
KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain. (orgs.) La
civilisation du journal: Une histoire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011.
5
Trajetória da pesquisa
12
Ela está muito bem conservada, consideradas a idade e a qualidade da edição popular.
6
responsável por isso. O fato de a obra nascer do próprio jornal em que será publicada
faz com que ela já venha carregada de características desse suporte.
Sua produção é periódica, aparecendo de tempo em tempo até se tornar
romance-folhetim; coletiva, pois envolve um grande número de escritores e colunas
dentro da Gazeta e mesmo outros periódicos em contribuição polifônica;13 baseia-se na
rubricité,14 por seu envolvimento íntimo com a série “Balas de estalo”, filiando-se a um
público e o fidelizando; e é atual, articulando assuntos políticos e culturais coetâneos e
vendendo a história de uma mulher “real”, de “carne e osso”, contemporânea dos
leitores.
Ao mesmo passo, o jornal que lhe serve de suporte conta com traços do
ficcional, fazendo questionar o que é real ou não; é irônico, contestando as fronteiras do
que é sério e do que é satírico num jornal de grande circulação e tom pretensamente
neutro; e baseia-se na conversação e na escrita íntima, tomando muitas vezes o tom
anedótico para se aproximar dos leitores.
Partindo das teses de Thérenty, tomamos como uma das hipóteses do
trabalho, portanto, que o jornal é meio, fonte e modelo de Aluísio Azevedo ao compor
Filomena Borges. Defenderemos que, através da obra, o autor debate o seu contexto
social e o cotidiano carioca, posicionando-se politicamente em articulação com o
periódico que serve ao romance de suporte e matriz.
13
Polifonia é usada, aqui, de acordo com Thérenty. THÉRENTY, Marie-Ève. op. cit.p. 62-70.
14
Termo para o qual não encontramos tradução. Refere-se às colunas dos periódicos e das características
decorrentes dessa organização de conteúdo: “la rubrique, c’est-à-dire l’espace régulièrement assigne à
l’intérieur du quotidien à un certain type de nouvelle ou d’écriture, est l’instrument clé de ce système”.
Ibidem. p. 78.
7
publicado, demonstrando que não fez sucesso; 2) a recepção crítica coetânea, revelando
diversos pontos além do literário, como o comércio e a política; por fim, demonstramos
que, 3) apesar da falta de sucesso comercial e literário da obra, ela repercutiu com força
considerável no seu contexto. Discutimos também a apropriação comercial e política do
romance.
No terceiro capítulo, discutimos, através de críticas acadêmicas e prefácios,
como o romance tem sido visto recentemente, para comparar essa apreciação com a do
passado e apresentar uma nova possibilidade de interpretação, pautada nas referências
do próprio período. Para tanto, relacionamos os romances e referências levantados nos
capítulos anteriores com o romance Filomena Borges.
Parte II
8
“Balas de estalo”: paternidade coletiva
9
nas páginas daquele que se tornou um dos maiores e mais populares
jornais da corte, a Gazeta de Notícias. Contando com a assídua
colaboração do dono deste jornal, a série tratou de muitos assuntos
polêmicos e importantes para o período. Crítico ferrenho do poder da
igreja naquela sociedade, Ferreira de Araújo definiu os parâmetros
gerais da série a partir das críticas e discussões que já travara anos
antes no jornal O Mosquito. A diferença era que em seu novo jornal
ele decide fazer isso em grupo, e assim nasce “Balas de Estalo”.16
16
RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e humor nos últimos anos da monarquia: A série “Balas de
Estalo” (1883-1884). 2005. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. p. 27.
10
Capítulo 1 - Preparação
17
Lulu Sênior, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 07/10/1883. p. 2. ed. 280.
18
Para a identificação dos pseudônimos, seguimos o trabalho de Ana Flávia Ramos (eles são
identificados na nota 21 de sua dissertação). RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e humor nos últimos
anos da monarquia: A série “Balas de Estalo” (1883-1884). Dissertação (Mestrado em História) –
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.
19
Os autores da coluna se referem a seus textos como balas, como se eles fossem balas de estalo.
20
Aqui começam as referências à prostituição, que só seria proibida para estrangeiros. A ironia do
cronista sobre o assunto é bastante grande.
21
Conto publicado pelo pseudônimo na Gazeta de Noticias alguns dias antes. “Por conta”, Gazeta de
Noticias, 05/10/1883. p. 1. ed. 278.
22
Provérbio francês que significa algo como “quanto mais, melhor”.
23
Como exemplo, transcrevemos o trecho em que Lulu Sênior cita parte de um poema de Tomas Ribeiro:
“... a propria camisa, / Ficando risonho e nú”.
11
Eu estou resignado com a minha sorte, e ha muito me convenci de que
n’esta terra um homem não póde ser bonito, bem feito, elegante,
espirituoso, intelligente e illustrado como eu, sem fazer estalar de
raiva os outros homens e arder em brazas as mulheres.
24
Não há consenso sobre o pseudônimo Décio: ele poderia ser usado tanto por Demerval da Fonseca
como por Montaury, um repórter da Gazeta. BERGAMINI JUNIOR, Atilio; TATIM, Janaína. Machado
de Assis no tabuleiro das Balas de Estalo. Organon, Porto Alegre, v. 28, n. 55, p. 33-53, jul./dez. 2013.
25
Décio, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 08/10/1883. p. 2. ed. 281.
26
Neste trabalho, para a identificação das pessoas referidas nos periódicos, cruzamos os dados
encontrados na Gazeta de Noticias e de seu Almanak com os dados dos sítios da Câmara dos Deputados e
do Senado Federal (para os políticos) e do sítio Literatura Digital (projeto do Núcleo de Pesquisa em
Informática, Literatura e Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina), que contém um catálogo
com dados biobibliográficos.
27
Dr. Furquim Werneck, médico. Na época da discussão, pudemos encontrar algumas referências a ele
nos jornais: era associado ao Sr. Aguiar num estabelecimento farmacêutico que vendia “líquidos
milagrosos”; era presidente do Club Internacional de Tiro ao Alvo; anunciava um livro de sua autoria, em
colaboração com o Dr. Feijó Filho: “Questão médico-legal; Defloramento, documentos oficiais e sua
análise”. O que parece mais interessante na perspectiva deste trabalho, no entanto, é a tentativa de se
fundar uma instituição, o Asilo Furquim. O Dr. Caetano Furquim de Almeida, pai de Furquim Werneck,
morreu e deixou um prédio em Vassouras para que se fundasse a instituição. Participaram da coleta de
doações tanto o filho quanto Ferreira de Araújo.
28
Dr. Pedro Paulo, médico, “operador e parteiro”. Décio aproveita as opiniões dos doutores para alfinetar
Maciel e Penna: Francisco Antunes Maciel, ministro dos negócios, e Affonso Penna, ministro da
agricultura, comércio e obras públicas. Eles são apresentados como “inimigos das acumulações”.
12
lavadeira, criada e moça de recados, que conheceu em Viena.29 Já Lopes Cardoso30
afirma que Filomena “é uma filante de mais”. Belarmino,31 o chefe de polícia da corte,
especula que ela possa ser uma “futura proprietaria de casa de alugar quartos!” e que
possua nomes tão sibilinos quanto provocantes.32 Faro & Lino33 consideram a
“possibilidade de uma litterata que os tomará por editores”; Cotegipe34 acredita que ela
é a “chave do mysterio em que se envolveu durante todo o anno uma desconhecida que
assistiu imperturbavel a todas as sessões do senado – ou do Sr. Corrêa35 – com um
pesado véo sobre o rosto”. O chefe da Igreja Positivista, Miguel Lemos36 “cuida ter
descoberto a unica competencia para o papado – ou a papança – do positivismo”; o
médico Freire37 avista uma “estrangeira recem-chegada, que se prestará facilmente a
deixal-o inocular n’ella o seu microbio” e o Club Beethoven38 “pensa em requerer uma
verificação de sexo, afim de certificar-se de que esta mulher não é realmente algum
homem, e de que não seja capaz de tocar alguma cousa no seu primeiro concerto
classico”.
29
A acumulação de funções da senhora portuguesa de Viena é uma brincadeira com os decretos dos
ministros citados, que vetavam a acumulação de cargos públicos – outro assunto muito discutido na
imprensa.
30
Antonio Lopes Cardoso. No ano de 1883, lutava pela patente do querosene inexplosivo. Tinha um
irmão, Manuel Lopes Cardoso, redator e proprietário do Diario de Noticias da Bahia. Tinham mãe
portuguesa. Algum dos dois escreveu uma comédia representada no teatro Novidades, Russinho
(referência no jornal simplesmente a Lopes Cardoso; o que nos leva a crer que é Antonio na referência de
Décio é que ele morava na corte e era uma das pessoas que figurava nos jornais).
31
Belarmino Peregrino da Gama e Mello merece mesmo um artigo. Ele se envolveu em várias polêmicas
no ano de 1883. Era mal visto pela Gazeta de Noticias, que começa o ano criticando a censura ao
carnaval, por conta dos carros representando D. Pedro II e o ministro da guerra. Um pouco depois, ele
pede recursos para melhoria das cadeias, em resposta à cobrança do presidente da comissão sanitária. Pelo
visto, era também um dos responsáveis por liberar as peças para encenação, e Lulu Sênior o repreendeu
pela demora em aprovar O nihilista (que passaria a se chamar A vigança à um nihilista). Já próximos da
citação por Décio, dois textos chamam bastante atenção: no dia 30 de setembro, uma aparente notícia com
formato de narrativa policial retrata a ineficiência de Belarmino no caso de Loquin, antigo traficante de
notas falsas e agente de polícia que se prostitui no Rio; no dia 5 de outubro, vários textos contam casos de
corrupção policial. Então aparece a referência a ele no meio da discussão de Filomena, que liga a figura
da mulher à cafetinagem, prostituição e corrupção (novamente). Em outubro, ele será demitido em razão
do caso Apulco de Castro.
32
A referência aos nomes Filomena e Borges vem do cronista: Filomena é indecifrável e provocante. No
caso, o recurso às palavras é um duplo chiste, tratando da ineficiência da polícia em decifrar os casos e da
prostituição.
33
Faro & Lino, livreiros e editores. Publicarão a primeira edição de Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo,
em 1884.
34
João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, senador.
35
Manoel Francisco Correa, senador.
36
Miguel Lemos, chefe da Igreja positivista do Brasil.
37
Dr. Domingos José Freire, médico. Elabora uma vacina para febre amarela, segundo ele causada
unicamente pelo micróbio cryptococco xanthogenico (sic).
38
Club Beethoven. Clube musical fundado por Roberto Kinsman Benjamin, funcionou de 1882 a 1889.
Aparentemente o clube não aceitava mulheres.
13
Todas as referências mencionadas acima têm duplo sentido: enquanto
discutem a definição de Filomena, provocam diversas celebridades da época. Esse
procedimento é recorrente na série: o tema principal, Filomena Borges, é usado para
comentar vários temas secundários. Da mesma forma que Lulu Sênior incluiu no texto
inicial uma crítica à prostituição, aqui são incluídas discussões sobre diversos tópicos
que ocupavam os jornais da época. Critica-se, sob tom de descrença e descrédito, a
medicina e a ciência (médicos, positivismo); o Estado, o governo e a polícia (senadores,
ministros, Belarmino); a mulher, a prostituição, o estrangeiro.
Seguindo o texto, o cronista Décio afirma ser o único a ter opinião formada
sobre Filomena: “é um D. Juan de saias, uma mulher perigosa”,39 afinal, “diante da
nevrose amorosa de Filomena, deste seu hysterismo sem limites, não ha feio possivel”.
As senhoras, portanto, deveriam suspeitar de seus maridos, “por mais conselheiro-
henriques40 que elles sejam”; os chefes de família deveriam proibir os filhos de 16 a 21
anos de sair à rua desacompanhados de uma (ou mesmo duas) amas secas. Ora, essa
mulher, “insaciavel”, “caprichosa e voluvel”, quer conhecer tudo, acumular
experiências, estando, consequentemente, “fadada a promover o escandalo n’esta
capital”.
As provocações também se direcionam para as letras:
Ella ha de possuir o Sr. Taunay,41 que dizem ser o moço mais bonito
da nossa litteratura; e no dia seguinte terá o prazer extravagante de ser
possuida pelo Sr. Hudson,42 que não passa por ser o Apollo de
Belvedere da nossa poesia.
39
O tom da afirmação é cômico, mas interessante, porque vai construindo a personagem.
40
Henrique Francisco D’Avila, conselheiro do Império e ministro da Agricultura. No período, era
senador. Infelizmente não há informação suficiente para entendermos totalmente a piada.
41
Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay, então deputado por Santa Catarina, político, militar,
romancista. Usava o pseudônimo Sílvio Dinarte. Sua família era muito ligada a D. Pedro II. DEL
PRIORE, Mary. Visconde de Taunay: cadeira 13, ocupante 1 (fundador). Rio de Janeiro: Academia
Brasileira de Letras; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2011.
42
Otaviano Hudson, poeta, responsável pela coluna de poesia satírica “Musa do povo” no Jornal do
Commercio.
14
quanto literário: os colunistas do Jornal são associados a um grupo mais antigo da
literatura nacional, ligado ao Império, ao passo que a Gazeta se pretende mais moderna.
Para um leitor atual, essas disputas podem parecer pessoais, mas elas devem ser
matizadas, já que as polêmicas eram um recurso comum na imprensa da época.43
Para finalizar sua crônica, Décio faz uma provocação bem-humorada: ele
conjetura que Filomena não fará muito sucesso entre os membros da série, e a desafia a
abraçar Lulu Sênior em menos de três dias (que seriam necessários para dar-lhe a volta).
As falsas polêmicas e as provocações eram comuns entre os autores das “Balas”, e é
justamente através delas que se vai construindo a imagem pública de Filomena Borges,
até então uma misteriosa senhora sobre a qual muito pouco se sabia.
43
Mais adiante, veremos que Taunay frequentava a livraria de Faro & Lino com os “inimigos” da Gazeta.
Hudson já havia contribuído com a Gazeta na década anterior.
44
Zig-Zag, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 09/10/1883. p. 2. ed. 282.
45
Peça de Manuel Pinheiro Chagas. É um grande sucesso de público e crítica desde a década de 1870.
Henrique Chaves foi um dos primeiros a criticar a peça quando da sua primeira representação. Henrique
Chaves, “Comunicado”, Diario do Rio de Janeiro, 10/01/1870. p. 1. ed. 10.
46
Betim Paes Leme: chefe dos correios. É muito citado na imprensa, sendo retratado como uma espécie
de herói.
47
Repete preocupação com os nomes que teve Décio. Lá, eles eram sibilinos e provocantes e teriam
motivado a opinião de Belarmino.
15
não é de miudezas. Quando trata de expedir cartões, fal-o aos
milhares.48
Ela, que apenas com o nome já seria tão conhecida quanto o Hudson,
deveria, para o cronista, revelar mais informações para se tornar tão conhecida quanto a
“Musa do povo”,49 por mais que ela não fosse uma musa; se ela fosse parteira, “como
affiança Mme. Durocher”,50 far-se-ia necessário também revelar o número do telefone.
O tom do texto é de revolta e mau humor. O autor começa por dizer que não
escreverá sobre Filomena, que não se importa em saber quem é ela – e ainda assim gasta
uma boa parte da coluna tratando do assunto. Isso pode ser explicado pelo perfil do
pseudônimo, que faz o papel de mal-humorado na série.
48
O problema parece ser o D. Juan ser mulher.
49
“Musa do povo”. Coluna de poesia satírica assinada por Hudson no Jornal do Commercio.
50
Madame Durocher, célebre parteira.
51
“É a tal cousa”, Corsario, 09/10/1883. p. 3. ed. 4. A coluna “Seção humorística” era anônima, mas
possivelmente escrita pelo redator, Apulco de Castro. Acreditamos que sua função fosse polemizar
comicamente com outros jornais e colunas.
52
Brincadeira com a passagem francesa do texto de Lulu Sênior. Aqui, em tom aportuguesado, temos:
quanto mais gordos, menos nos divertimos no amor.
16
A brincadeira se dá em torno de “Por conta”, conto de Lulu Sênior
publicado na Gazeta um pouco antes do fenômeno Filomena.
O tom do texto anônimo, polêmico e agressivo, não surpreendente muito se
consideramos o seu veículo de publicação, o Corsario, pasquim provocativo a ponto de
custar a vida de seu redator dentro de alguns dias.53
53
Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
54
Lélio, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 10/10/1883. p. 2. ed. 283.
55
Não encontramos a notícia, descrita assim: “em um municipio do sul o agente do correio foi achado em
alcance do valor de 14:000$.”
17
96,56 e pede ao colunista que interceda em favor dela, para que seu nome pare de ser
comentado. Lélio afirma não poder garantir isso, dada a paixão de Lulu Sênior.
Notamos aqui que uma nova versão de Filomena surge nas páginas das
“Balas de estalo”. Se a primeira, de Lulu Sênior, Décio e Zig-Zag, caracteriza-a como
uma mulher sedutora, misteriosa, portanto atraente e perigosa, a versão de Lélio
distingue-a como uma mãe de família, viúva,57 sincera, aberta, incomodada e ofendida
com a notoriedade que alcançava seu nome. A primeira é disputada pelos três cronistas;
a segunda é por Lélio protegida.
Apesar da discordância entre os quatro, há um ponto em comum: a visão da
extravagância feminina. Se nos três primeiros ela está explícita nos textos e no diálogo
que estabelecem entre si, no texto de Lélio ela é marcada pelo primeiro parágrafo da
coluna, que anuncia o primeiro assunto:
56
A título de curiosidade, procuramos pelo nome do suposto marido e pela rua na Hemeroteca Digital,
concentrando a busca nos Almanaques, mas nada encontramos – o que já era esperado. Resta saber se o
local significa alguma coisa socialmente ou se é referência a algo ou alguém.
57
Na XIX Semana de História, realizada entre 10 e 12 de setembro de 2013 no campus de Franca da
Unesp, a prof.ª Daniela Magalhães da Silveira nos chamou atenção para a possibilidade de que ser viúva
moça, na época, poderia conter sentido negativo: virar cocotte.
18
A personagem Filomena Borges vai sendo construída coletivamente, dentro
de uma discussão periódica e atual que se dá no interior de uma coluna. Ela nasce,
portanto, como personagem midiática, nos termos de Marie-Ève Thérenty.58
Sua formação segue o movimento comum das “Balas de Estalo”: Lulu
Sênior, o chefe, lança a pauta, que será comentada pelos outros cronistas; Décio, o
médico, apresenta o problema dentro da ciência; Zig-Zag, o cético, desconfia; Lélio, o
empulhador, define, ao mesmo tempo em que dissimula, com seu desejo de desfalcar.59
Restava, porém, explicar de onde a personagem viera, para que, por quais
motivos – os determinantes de seu caráter. Tal papel coube a Aluísio Azevedo, que
entrou na discussão no dia 11 de outubro.60 Na primeira página da Gazeta de Noticias
foi publicada uma carta de sua autoria, datada do dia 4 do mesmo mês. O título,
“Philomena Borges”, marca a primeira vez em que o nome aparece com destaque, em
caixa alta, justamente na primeira página do jornal (é inclusive o primeiro texto da
edição, logo abaixo de “Expediente”).
A carta foi precedida por uma pequena apresentação, que enfatiza a
ansiedade geral do público por desvendar quem seria a dona daquele nome:
58
THÉRENTY, Marie-Ève. La Littérature au Quotidien: Poétiques journalistiques au XIXe siècle. Paris:
Éditions du Seuil, 2007.
59
Essa interpretação foi auxiliada pela prof.ª Ana Flávia Cernic Ramos, também na XIX Semana de
História. Coincidentemente, apresentamos neste evento comunicações com títulos e resumos muito
semelhantes. Ela publicou, nos anais, um artigo que reconstituiu o processo de que ora tratamos. Cf.
RAMOS, Ana Flávia Cernic. Philomena Borges: uma leitora de folhetins sob o olhar de Aluísio Azevedo.
In: XIX SEMANA DE HISTÓRIA DA UNESP HISTÓRIA, LEITURA E CULTURA MIDIÁTICA,
2014. Franca. Anais... p. 346-355.
60
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/10/1883. p. 1. ed. 284.
19
de fato, seria a maior culpada pelas fortunas que destruiu. A explicação se dá também
como uma espécie de defesa de Filomena Borges:
20
as determinações desse caráter, que já começaram a ser por ele descritas. Há que se
destacar ainda que Filomena, na versão do autor, não é o melhor modelo de mãe de
família, o que, de certa forma, rebate a versão de Lélio.61 Assim, Azevedo resume e
concentra as definições anteriores: a mulher é concreta, mas se une à sua abstração,
mantendo a marca de mistério e sedução; ao mesmo tempo, ela também é detestada e
temida.
Note-se, na continuação do capítulo, como a caracterização das “Balas” se
repetirá em outros textos, que apresentaremos a seguir. Todos eles são desdobramentos
dessa discussão inicial, agora acrescida fortemente do caráter comercial que esse
romance toma.
1.2.a As aparições
61
Apesar de se poder considerar que a referência à viúva ironize o “mãe de família”.
62
“Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/10/1883. p. 2. ed. 284. O texto aparece nas “Publicações a
pedido”. A toilette que descreve “acha-se à venda no grande armazém de fazendas, modas, confecções e
armarinho ‘Au Boulevard’, largo de S. Francisco de Paula”.
63
“Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 14/10/1883. p. 2. ed. 287. Importante notar que a cafetina
“mudou de sexo” na Alfaiataria Estrela do Brasil para escapar da polícia.
64
O vestir-se de homem, e sua possível relação com o teatro (D. Juanita, Morgadinha...) e com o
romance, ficará por ser discutido mais a fundo.
21
Nossa hipótese é que não passam de propagandas para as vendas de roupas
citadas, exemplos ótimos do caráter comercial que o nome vai ganhando. Essa hipótese
se fortalece quando encontramos outras referências a Filomena, que se tornam cada vez
mais comuns até a publicação do folhetim.
Aproveita-se a curiosidade e o mistério em torno do nome para chamar
atenção para diversos eventos. No anúncio abaixo, há uma possível relação entre o
nome e a excentricidade que passa a acompanha-lo, ainda mais se o leitor teve acesso à
versão de que Filomena seria uma mulher da alta sociedade, bem vista em Paris. À
mulher perigosa das “Balas”, soma-se a mulher chic dos boatos e anúncios:
65
Esta notinha foi publicada na primeira página, entre notícias.
22
Gazeta de Noticias, 13/10/1883. p. 3. ed. 286.66
O anúncio da polca tem um formato tão absurdo que motiva a correção, que
aparece dias mais tarde, duas vezes na mesma página:
66
Não encontramos o que haveria nesta esquina. Possivelmente seria uma loja com uma vitrine bastante
atrativa, aproveitando-se da situação. A nota encontra-se na sessão de anúncios.
67
Donna Juanita, opereta com música de F. Suppé e libreto de F. Zell e R. Genée.
68
Pretendemos, futuramente, estudar com maior profundidade uma possível relação entre a opereta, a
personagem midiática, Filomena Borges, e o romance Filomena Borges. Isto não foi possível aqui pela
dificuldade de acesso ao texto da tradução portuguesa de Eduardo Garrido.
23
Gazeta de Noticias, 02/12/1883. p. 4. ed. 336.69
Uma nota neste estilo tem a óbvia função de informar, mas também pode
ajudar a preencher espaços vazios na página de anúncios. Seja como for, a Gazeta de
Noticias já era um jornal sustentado pelos anúncios e pelas publicações a pedido, o que
torna ainda mais intrigante a presença relevante de Filomena Borges nos dois espaços.
A misteriosa senhora serve para vender roupas, partituras, e também para chamar
atenção para festas:
Mais tarde, será publicado, também na sessão dedicada aos anúncios, o tão
falado cartão:
69
Há duas notinhas iguais na mesma página. Elas poderiam cumprir uma dupla função: informar e ajudar
a preencher o jornal.
70
Filomena poderia, afinal, não ser uma mulher tão perigosa, frequentando festas religiosas.
71
O cartão é repetido em várias edições, nos anúncios.
24
Para manter cativados os leitores, os seguintes “Avisos” foram publicados
em diversas edições:
Figura 7 - Aviso
A repetição desse tipo de nota, que promete que ela estará em tal evento, ou
que aparecerá em tal momento, dá a entender que ela nunca apareceu em nenhum.73 O
que, por sua vez, não impediu que seu nome circulasse também por outros meios, como
na homenagem que lhe prestam os Tenentes do diabo:74
72
Aviso repetido em diversas edições.
73
Só nos jornais, conforme defendemos a seguir.
74
Uma das três grandes sociedades carnavalescas do período. Cf. PEREIRA, Leonardo Affonso de
Miranda. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2004.
25
Gazeta de Noticias, 09/12/1883. p. 3. ed. 381.75
1.2.b Filomena sai das “Balas” e vai para as folhas: “Um encontro, um leque, um
cartão”
75
Anúncio repetido em várias edições.
76
Geralmente relacionada ao vestir-se de homem, como na Morgadinha.
77
Pseudônimo não identificado.
26
correio.78 Na narrativa, um marido conta três eventos em que o ciúme de sua esposa é
despertado. No primeiro ela se ressente pelo encontro dele com um amor do passado
durante um baile; no segundo, por achar um leque na sua gaveta, que ela supõe ser de
outra; no terceiro, por achar um cartão, também na sua gaveta, com o nome: Filomena
Borges. Para se livrar dessa situação, o marido lhe mostra a Gazeta de Noticias:
O marido resistiu à conquista, mas, como já vimos, não são todos os homens
que resistem ao charme da moça. Dentre os conquistados, destaca-se um, que resolve se
declarar por meio da imprensa, coincidentemente o lugar onde ela é mais facilmente
encontrada:
Figura 9 – M.
78
J.A., “Um encontro, um leque [e] um cartão”, Brazil, 14/10/1883. p. 1-2. ed. 78. O mesmo folhetim
será reproduzido dois dias mais tarde na Gazeta de Noticias. J.A., “Um encontro, um leque e um cartão”,
Gazeta de Noticias, 16/10/1883. p. 1-2. ed. 289.
27
Gazeta de Noticias, 18/10/1883. p. 3. ed. 291.79
79
O trecho, encontrado nas “Publicações a pedido”, lembra os galanteios de Lulu Sênior, apesar de não
ter o tom irônico daqueles.
28
Estranhamente, na mesma época em que Lulu Sênior, principal responsável
pelo fenômeno na imprensa, se diz cansado de Filomena Borges em uma de suas “Balas
de Estalo”, ela passa a aparecer “pessoalmente”, assinando publicações.
É importante citar esse trecho, pois ele será retomado quando formos tratar
da crítica:
O mandarim Tong-King-Sing
I
Estudar o que ha por cá
Vem da China o mandarim;
Antes de ir para Pekim;
Ninguem sabe onde elle irá.
Vem da China o mandarim;
Estudar o que ha por cá.
II
É bom letrado e faz versos,
Tem diversos pergaminhos;
Cita às vezes pedacinhos,
De Bellegarde e diversos.
Tem diversos pergaminhos,
É bom letrado e faz versos.
III
Não guarda nada no buxo!
Diplomata de rabicho,
A palavra n’um esguicho
Vem-lhe aos labios, de um repucho!...
Diplomata de rabicho,
Não guarda nada no bucho.
IV
80
Montaury, repórter da Gazeta de Noticias. Possível responsável pelo pseudônimo Décio das “Balas de
Estalo”.
81
Um dos temas favoritos de Lulu são a sogras: ele adora fazer piadas com elas. RAMOS, A. F. C. op.
cit. p. 39.
82
Lulu Sênior, “Balas de estalo”, Gazeta de Noticias, 19/10/1883. p. 2. ed. 292.
29
No bello idioma chinez
Não se entende o que elle diz;
O Lafayette já quiz,
Dizer-lhe a coisa em francez.
Não se entende o que elle diz,
No bello idioma chinez.
V
Hei de dar ao chim um chá,
Se a missão levar ao fim.
Antes de ir para Pekim
Relatar o que ha por cá,
Se a missão levar ao fim...
Hei de dar ao chim um chá.83
83
Filomena Borges, “O mandarim Tong-King-Sing”, O Mequetrefe, 30/10/1883. p. 7. ed. 325.
84
Chegamos a imaginar que a Filomena pudesse ser, de algum modo, uma representação do próprio
Mandarim – ideia que abandonamos. Há uma ampla discussão, na época, sobre a imigração chinesa e a
visita do mandarim aquece e acentua os debates.
85
AZEVEDO, Artur. O Mandarim. In: Teatro de Artur Azevedo II. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de
Artes Cênicas, 1985. p. 265.
30
Figura 10 – Lucros e perdas
31
Ela toma, assim, parte de sua mãe, a Gazeta de Noticias, nas polêmicas com
Carlos de Laet e o jornal rival.86
Figura 12 - Cadáver
Ou morre!
Seria mais uma propaganda da Estrela do Brasil se utilizando da fama e do
interesse pelo nome? Possivelmente. Mas Filomena entrará mais contundentemente no
mundo das narrativas criminais.
Na mesma Gazeta de Noticias, foi publicada em 4 de dezembro uma notícia
instigante.88 Sob o título de “Caso singular”, conta-se que uma possível ladra, ricamente
vestida, estuda as portas e fechaduras na madrugada, e é pega pela polícia. “Na estação,
diante do respectivo commandante, a illustre desconhecida levantou o veu e... caso
singular: Não era Philomena Borges!”
Essa incursão pelo mundo do crime liga duas facetas de Filomena que já
vinham circulando: 1) perigosa e 2) ricamente vestida. Anteriormente, ela serviu de
86
Esses dois textos foram publicados na sessão “Publicações a pedido”. Encontramos o folhetim
“Microcosmo” assinado por C. de L., Carlos de Laet, mas não achamos referência ao nome Philomena
(nem nos “Avisos” ou “Publicações a pedido”). A crítica a Lucros e perdas não foi encontrada, como a
“Musa do povo”, que não vimos como coluna nesses meses (outubro, novembro e dezembro de 1883).
87
Texto encontrado em “Publicações a pedido”.
88
“Caso singular”, Gazeta de Noticias, 04/12/1883. p. 1. ed. 338. A mesma notícia é reproduzida no
Correio Paulistano, 06/12/1883, agora com o título “Não era Filomena Borges!”, p. 1, ed. 8193.
32
pseudônimo para uma cafetina húngara; no futuro, servirá como apelido para um rapaz
preso pela polícia.89
O nome da célebre mulher é usado como chamada em anúncios, como
pseudônimo em poema e polêmica, como personagem em uma suposta notícia.
Participa, assim, de diversos processos de ficcionalização do cotidiano que acontecem
simultaneamente no jornal.
Figura 14 - Petrópolis
Eloy, o heroe (Artur Azevedo), “Cartas Fluminenses”, Pacotilha, 03/12/1883. p. 2. ed. 327.
89
“Augusto Cordeiro é conhecido no mundo de suas relações por ‘Philomena Borges’ e da policia como
notavel vagabundo. Por possuir estes predicados foi preso ante-hontem.” Diario Portuguez, 09/07/1885.
p. 2. ed. 238.
33
É importante destacar que essa nota de Artur Azevedo terá um efeito na
análise do final do romance. Não sabemos se Aluísio Azevedo realmente foi a
Petrópolis, mas isso revela duas coisas: o desejo de levar os personagens do romance até
lá; e a construção do escritor-jornalista, cara aos naturalistas, que vai atrás dos fatos para
retratá-los fielmente.
Além disso, a grandeza de “occupa [...] a attenção de meio Rio” é marcante:
seria só retórica ou realidade? Se considerarmos que o jornal “constrói” a realidade em
certa instância, faz pouca diferença; para todos os efeitos, Filomena já prende a atenção
de meio Rio.
1.3.a Adiamentos
Figura 15 – Enfermidade
90
“Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 30/11/1883. p. 1. ed. 334.
34
Gazeta de Noticias, 02/12/1883. p. 1. ed. 336.
91
“Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 08/12/1883. p. 1. ed. 342.
92
Os originais franceses foram publicados no Journal pour tous, periódico francês que circulou no Brasil,
chegando a ter versão nacional. Uma das pesquisadoras do grupo, Izenete Nobre Garcia, estuda os
chamados jornais-romance, definição na qual se encaixa o Journal. Infelizmente, não pudemos descobrir
ainda se a versão em português dos contos foi feita para essa edição nacional do jornal ou se poderia ter
sido feita especialmente para a Gazeta. Na versão em português, trocou-se o título “Le but de ma vie” por
“Minha prima Laura – versão”.
Charles Narrey, “Le but de ma vie”, Journal pour tous, 10/07/1867; 13/07/1867; 17/07/1867. ed. 1020,
1021, 1022.
Louis Bailleux [?], “Le vampire”, Journal pour tous, 17/07/1867; 20/07/1867. ed. 1022, 1023.
35
Gazeta de Noticias, 13/12/1883. p. 1. ed. 347.
93
Lulu Sênior, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 08/12/1883. p. 2. ed. 342. Seria “réclame à
americana” o puff de que tratam os franceses? THÉRENTY, Marie-Ève. Médiatisation et création
littéraire. In: KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain.
(orgs.) La civilisation du journal: Une histoire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau
Monde, 2011. p. 1507.
94
Lulu Sênior, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 10/12/1883. p. 2. ed. 344.
36
Ele narra um exemplo que sucedeu “ainda hontem”: enquanto tomava um café na Faro
& Lino95 saboreando “pacificamente a bella prosa do Joaquim Serra96”, Filomena
aparece e aponta Azevedo como o culpado por tudo, por ter prometido o romance de sua
vida. O autor argumenta que o romance vem a favor dela, em sua defesa, e que ele não o
escreveria se o nome dela “não estivesse espalhado por todo o Rio de Janeiro!” A
discussão deflagra uma crise histérica, sob a qual Filomena agarra Lino e obriga-o a
dançar uma valsa! Segue uma cena cômica em que o Faro cai no Veríssimo,97 que se
assusta e esbarra no Alencar Araripe,98 pisa no calo de Silvio Dinarte99 e cai nos braços
de Lopes Cardoso.
Como no texto de Décio, Azevedo faz referências a diversas personalidades
do Rio em meio a essa narrativa: além dos diretamente envolvidos, algumas pessoas
apareceram para ver a confusão e outras são citadas na conversa com Filomena.
Os curiosos são: Luiz de Andrade,100 Clapp,101 Victor Meirelles,102
Vasques,103 Pacheco fotógrafo,104 Valentim Magalhães,105 Emílio Rouède,106 padre
Antonio Manuel,107 Salustiano Sebrão,108 “a bella romancista” D. Adelia,109 Urbano
Duarte,110 Duque-Estrada,111 Artur Azevedo, Silvestre de Lima,112 Heller do
Sant’anna,113 Manuel Carneiro,114 Navarro da rosa,115 França Junior,116 Casella – sujeito
95
Livraria contemporânea de Faro & Lino.
96
Joaquim Serra, literato maranhense.
97
Verissimo do Bom-sucesso, descrito lendo um almanaque Antonio Maria, era poeta e jornalista.
98
Alencar Araripe, possivelmente o pai de Tristão de Alencar Araripe Júnior.
99
Sílvio Dinarte, pseudônimo do Visconde de Taunay.
100
Luiz de Andrade, escritor.
101
João Clapp, fundador da Confederação Abolicionista.
102
Victor Meirelles, pintor.
103
Francisco Vasques, ator.
104
Pacheco, fotógrafo.
105
Valentim Magalhães, advogado e colunista da Gazeta de Noticias. No período, é responsável pela
coluna “Notas à margem”, assinando como V.
106
Emílio Rouède, artista polivalente. Escreveria, em parceria com Aluísio Azevedo, duas peças: Venenos
que curam e O caboclo.
107
Padre Antonio Manuel.
108
Salustiano Sebrão, jornalista.
109
Adélia Josefina de Castro Fonseca, poeta, ou Adélia Camargo, romancista.
110
Urbano Duarte, dramaturgo e jornalista.
111
Pela idade, provavelmente se refere a Gonzaga Duque, o autor de Mocidade Morta.
112
Silvestre de Lima, poeta, jornalista (Gazeta da Tarde), abolicionista. Mais tarde, coronel.
113
Jacinto Heller, então empresário do Theatro Sant’Anna.
114
Poderia se tratar de Manuel Carneiro de Sousa Bandeira, pai de Manuel Bandeira, irmão mais velho do
acadêmico Souza Bandeira.
115
Navarro da rosa, possível apelido de Joaquim Navarro.
116
França Junior, dramaturgo.
37
de suíças ruivas da Camisaria Especial,117 Madame Durocher, “emfim quasi todo o Rio
de Janeiro”.118
Depois de todo esse alvoroço, finalmente aparecem os socorristas: Dr. Pedro
Paulo acode, Montaury chama um carro e se dispõe a acompanhá-la mais o Dr. Josino
de Brito.119
Nas justificativas de Azevedo para Filomena, são citados: “Dr. Antonio
Cardoso de Menezes,120 que me falou da vida privada de V. Ex.”; “Filinto d’Almeida,121
que a conhece muito bem”; “Dr. Macedo de Azevedo,122 que a tratou de uma
pneumonia”; “Alberto de Oliveira,123 que já lhe offereceu versos”. Seriam estes
responsáveis, também, por compor a personagem? Antonio Cardoso de Menezes e
Filinto de Almeida parecem conhecê-la bem; Macedo de Azevedo teria sido seu
médico, possivelmente cuidando de suas enfermidades recentes; Alberto de Oliveira
teria sido fisgado, como Lulu Sênior e M., ou seria ele o autor do poema publicado com
a assinatura de Filomena Borges?124
Azevedo pretende que a carta demonstre a Lulu Sênior as consequências de
suas pilhérias. No fim, provoca, desafiando o interlocutor a fazer da carta uma “Bala de
estalo”: seria o cúmulo da maldade.
117
A camisaria especial parece ter sido um estabelecimento importante e conhecido – há muitos anúncios
nos jornais que a utilizam como ponto de referência: “ao lado da Camisaria especial”.
118
Note-se que “quasi todo o Rio de Janeiro” inclui quase exclusivamente homens, à exceção de D.
Adelia, definida como “bella”, e Mme. Durocher, parteira.
119
Dr. Josino de Brito, médico.
120
Dr. Antonio Cardoso de Menezes. Formado em direito em S. Paulo, compunha música para o teatro,
tendo se apresentado no Club Beethoven entre 1882 e 1889.
121
Filinto de Almeida, jornalista e poeta, futuro marido de Júlia Lopes de Almeida.
122
Dr. Macedo de Azevedo, médico.
123
Alberto de Oliveira, poeta.
124
Mais importante que descobrir quem era ou como se relacionava cada um dos citados, é notar que eles
povoavam a imprensa da época, aparecendo em anúncios e crônicas variadas, sendo, portanto, conhecidos
do público.
125
Lulu Sênior, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 17/12/1883. p. 2. ed. 351.
38
personalidade amanhã, quando o Aluizio começar a publicar a
veridica historia da heroina.
126
Dr. Moncorvo, médico.
39
textos e os periódicos que lhe servem de veículo, percebe-se a tentativa de fazer parecer
que, como dito na Pacotilha, a mulher ocupava a “attenção de meio Rio”.
1.3.c Anúncios
Dado o esforço mercadológico narrado até aqui, esses anúncios não têm
muita elaboração – aparentemente nem seriam mais necessários. Aquele que contém a
data foi publicado diversas vezes, podendo exercer a função acessória de preencher a
página, já destacada anteriormente.
127
Há alguns anúncios iguais espalhados pelas páginas.
40
Se nos parece que Filomena Borges ocupou a atenção de muitos dos leitores
de periódicos, entretendo-os e provocando-os, criando uma ansiedade pelo romance,
não foram todos que se divertiram com a brincadeira do réclame:
Figura 19 - Cacetação
1.3.d Prefácio
128
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges – antes de principiar”, Gazeta de Noticias, 17/12/1883. p. 1-2.
ed. 351.
129
E, note-se, receberá. V. Capítulo 2.
41
- Talvez seja por isso mesmo! N’esse caso ha excesso de fidelidade e
a cousa parece falsa. Às vezes um retrato a oleo é mais verdadeiro do
que uma photographia.
- Ora essa!...
- Parece-te uma asneira o que acabas de ouvir, mas não é, acredita!
Nada é tão inverossimil como a propria verdade, quando ella se
apresenta com toda a brutalidade de seu peso.
- Estás metaphysico, homem!
O leitor mais cético parece ligado à visão estética antiga – o assunto da arte
é o belo. A questão se coloca dentro do debate da arte moderna: ela deve ser baseada na
observação e na verdade, trazendo à tona tudo aquilo que se vê. O cético teria uma visão
conservadora ou estetizante.
42
que encontrei alli fizeram-me pensar... Acredito que em tudo aquillo
ha uma intenção muito accentuada, ha a intenção de...
- É inutil continuares! Já sei do que me vais fallar, e a esse respeito
temos conversado!
Qual seria sua tese? Divertir basta? Quando eles vão chegar a discutir a
intenção, há um corte muito sugestivo na conversa: provocação ou suspensão?
Finalmente, a ideia central do texto aparece:
Discorda-se sobre a função que o romance deveria ter, não sabemos ao certo
sua intenção; mas sua pretensão é clara: não desagradar. O autor quer, ao mesmo
tempo, vender e se firmar como literato, evitando se indispor com público ou crítica. É
por isso que ele escreve um prefácio na defensiva, finalizado da seguinte maneira:
130
Mesmo que tivéssemos descoberto quem eram, não teríamos tido acesso à correspondência para
explicar a referência.
43
Julio Alberto Machado131, que não teve o menor escrupulo em
aproveitar aquelle nome para título de um romance de sua folha, e,
outrosim, ao velhaco que publicou ha pouco tempo um detestavel
fasciculo intitulado: Philomena Borges, a mulher demonio.
O publico que evite as contrafacções e desconfie das Philomenas que
não trouxerem o seguinte carimbo:
Aluizio Azevedo.
131
Pesquisamos o jornal Provinciano: jornal agricola, commercial, litterario e noticioso na sessão de
periódicos raros da Biblioteca Nacional. Ele era publicado em Paraíba do Sul, RJ, sendo propriedade de
F. X. Paes Leme e Julio Alberto Machado. Em 1883, mudou o subtítulo para órgão conservador. A
escassez de edições conservadas não permitiu que constatássemos a publicação de um plágio.
44
Capítulo 2 – Circulação, recepção, repercussão
2.1 Circulação
2.1.a O folhetim
45
conteúdo, então não parece defensável uma hipótese de destaque menor – talvez, pelo
contrário, haja um destaque maior por se tratar de uma edição de domingo.
Há duas edições da Gazeta do final de 1883 que estão ausentes tanto na
Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional Digital quanto no Arquivo Edgard
Leuenroth da Unicamp, portanto não pudemos consultá-las: edições 361 e 362, de 27 e
28 de dezembro de 1883 – folhetins 10 e 11, respectivamente.
Quanto ao conteúdo dos folhetins, os cortes não respeitam necessariamente
os capítulos, ou vice-versa. A princípio, eles seguem uma lógica de terminar em
“(Continua)” apenas se quebram um capítulo; no fim da publicação, todos terminam
desta maneira. Era um modo de reforçar a continuidade do romance e pode ter sido uma
forma de manter ainda mais cativados os leitores, que poderiam se desesperançar com a
ausência da nota. Além do corte por edições, o autor usava um espaço maior entre
alguns parágrafos, fazendo divisões dentro do mesmo capítulo. O primeiro capítulo
apareceu completo no primeiro folhetim. Depois disso, os cortes não coincidem mais
com os capítulos, necessariamente.
Um dos pontos levantados pela crítica coetânea, como veremos a seguir, é o
do fim do romance. As críticas apontam que Aluísio Azevedo teria cortado a história,
interrompendo-a de maneira brusca, especulando alguns motivos. Para os leitores atuais,
talvez o corte não fique claro, mas para os leitores corriqueiros de folhetins do século
XIX a questão surgiu com clareza.
Para iniciar uma discussão sobre esse ponto, situemos Filomena Borges
dentro do histórico da sessão Folhetim da Gazeta de Noticias, conforme a tabela a
seguir:
46
* Minha Prima 5 13/12/1883 17/12/1883
Laura
Aluizio Philomena 27 18/12/1883 13/01/1884
Azevedo Borges
A. Mathey A Brazileira 56 14/01/1884 09/03/1884
F. du Margot 90 10/03/1884 08/06/1884
Boisgobey
Alexis Bouvier O Filho de 85 09/06/1884 01/09/1884
Antony
Alexis Bouvier O caminho do 52 02/09/1884 23/10/1884
crime
Eugenio O Paio em Pé 108 24/10/1884 08/02/1885
Chavette
NOTA: recuperamos apenas os folhetins publicados entre o final de 1882 e o início de 1885,
dando conta dos dois anos da publicação de “Philomena Borges”.133
133
A listagem dos folhetins da Gazeta de 1875 a 1940 pode ser consultada no livro Rodapé das
miscelâneas, de Yasmin Nadaf. A lista, apesar de excluir obras que não estão no rodapé, como O Ateneu,
mostra uma prevalência grande dos franceses sobre os brasileiros, sobretudo no século XIX. NADAF,
Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas. O folhetim nos jornais do Mato Grosso (séculos XIX e XX). Rio
de Janeiro: 7Letras, 2002. p. 397-402.
47
Figura 20 – Anúncio de venda do livro
134
Repetido em 31 de janeiro, 01 e 02 de fevereiro, todos na segunda página.
48
Gazeta de Noticias, 25/06/1884. p. 3. ed. 177.135
135
Repetido em 19 de julho de 1884, 17 de agosto de 1884.
49
Gazeta de Noticias, 25/06/1884. p. 3, ed. 177.
50
as outras categorias são: “leitura de gabinete particular” (que inclui Naná e O artigo
47), “romances de Camillo Castello Branco” e “varietas delectat”.136
No final de 1884, o livro estará entre as opções de prêmio de assinatura.
Caso o assinante optasse pelo pacote de seis meses, receberia como brinde somente o
Almanak da Gazeta de Noticias; caso comprasse um ano, ganharia o Almanak e mais
um dos romances de uma lista que continha a maior parte daqueles títulos da
“Bibliotheca da Gazeta de Noticias”.137
A “Bibliotheca...” já havia crescido, incluindo as novas publicações do
jornal, Margot e O filho de Antony:
136
Gazeta de Noticias, 14/07/1886. p. 6. ed. 195.
137
Gazeta de Noticias, 18/11/1884. p. 1. ed. 323.
51
Gazeta de Noticias, 25/11/1884. p. 6. ed. 330.
52
Gazeta de Noticias, 11/10/1885. p. 5. ed. 283.
138
Gazeta de Noticias, 31/08/1885. p. 3. ed. 242.
53
O livro Filomena Borges não foi um sucesso de vendas. Não fica claro se há
mais de uma impressão nesse período, mas o título está disponível desde o seu
lançamento até dois anos e meio mais tarde.
A falta de sucesso comercial do livro também pode ser defendida pelo seu
padrão de edições seguintes. Filomena Borges não tem vida própria; sua sobrevivência
dependeu das outras obras de Aluísio Azevedo, com suas publicações integrando as
obras completas do autor, salvo raras exceções.
Vejamos na tabela a seguir a lista das primeiras edições:
139
Não encontramos a segunda edição do romance. Pela consulta às obras disponíveis no sítio da
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, constatamos que ela dataria do período de 1895 a 1897. A
edição de 1895 de Livro de uma sogra, editada por Domingos de Magalhães, anunciava Philomena
Borges como “Edição esgotada”. A edição de 1897 de Pégadas pela editora Garnier traz uma listagem
das obras de Aluísio Azevedo, incluindo uma nova edição de Philomena Borges. Garnier deve ter
publicado a nova edição entre 1895 e 1897, portanto. AZEVEDO, Aluísio. Livro de uma sogra. Rio de
Janeiro: Domingos de Magalhães, 1895; Idem. Pégadas. Paris; Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-
Editor, 1897.
54
lacuna, apesar de explicável pela perda de interesse no naturalismo, não deixa de
demonstrar a falta de interesse nesse romance em específico.
2.2 Recepção
Sob o aspecto comercial, o livro Filomena Borges não foi bem sucedido.
Teria ele sido bem recebido?
2.2.a A polêmica
140
V. Capítulo 1.
141
Chapéu na Folha Nova, notícia no Publicador maranhense, menção no folhetim de Ony no Diario do
Brazil, notícia por Eloy na Pacotilha. O anúncio e o folhetim serão comentados ainda neste capítulo.
142
Czr Ony, “Às quintas-feiras”, Diario do Brazil, 17/01/1884. p. 3. ed. 14.
55
Especula-se, portanto, três razões para o fim do romance, que se supõe
adiantado. Teria ele sido interrompido por censura imperial, problemas comerciais ou
falta de talento?
A condução do texto não deixa dúvidas de que trata o romance em termos
negativos. O autor sugere que “a Bohemia do vintem está de luto” pela morte de
Filomena Borges, assassinato este “cometido em plena sociedade, à face da literatura,
acobertado pela policia do elogio proprio.” Ele liga o romance a dois grupos: a
“Bohemia do vintem”143 e o “elogio proprio”.144 O ataque, então, direciona-se menos à
obra literária que aos grupos a ela associados.
O próprio Ony, uma semana antes, destacou a presença do imperador no
romance, escrevendo em seu folhetim “Às quintas-feiras”: “me acompanheis em um –
viva – enthusiastico áquele que até já entrou sorrateiramente, como bom padrinho
burguez e sahio colleccionador de botocudos, pelas alamedas typographicas da –
PHILOMENA BORGES: Viva o Imperador!”145
Surgem, nos textos do Diario, dois problemas que acompanharão a recepção
crítica do romance: a questão política, pautada pela presença do imperador e marcada
pelas posições dos periódicos; e, a partir destas posições, a questão literária, dividindo
dois grupos distintos pelas opiniões estéticas e pelas posições midiáticas – elogio mútuo
e lira de Apolo. Acompanhando paralelamente as duas pautas, sempre aparecerá a
questão do dinheiro e da literatura comercial, já destacada por Ony na expressão
“Bohemia do vintem”.
143
Boêmia do vintém provavelmente se refere aos grupos da Gazeta da Tarde e da Gazetinha, jornais dos
quais participaram Artur e Aluísio Azevedo.
144
Na realidade, como veremos a seguir, esses dois grupos são praticamente um só.
145
Czz Ony, “Às quinta-feiras”, Diario do Brazil, 10/01/1884. p. 2. ed. 8.
56
Após elogiar ambos os autores e fazer a ressalva de que estes trabalhos não
representam o melhor dos jovens escritores, o texto se debruça sobre cada um dos
livros. Sobre Aluísio Azevedo, diz ainda que tem o mérito de “ser um operario activo
das lettras que à custa de seus proprios exforços conseguiu vencer a indifferença
publica”. Sobre Filomena Borges, cujo primeiro capítulo considera bom, acrescenta que
tem boa linguagem, por mais que não prenda o leitor “senão por uma curiosidade vaga
de saber-se onde irá parar tudo isso: - uma mulher doida casada com um imbecil, a
percorrerem ambos séca e méca, ella sem saber onde irá e elle sem saber afinal o que
ella quer.” O crítico destaca que as cenas são desconexas e sem objetivo, culminando na
morte da mulher antes do marido, o que para ele constituiu um erro: “sem se lembrar
que a Philomena pouco tempo antes tinha escripto uma carta que foi publicada na
Gazeta e o proprio Sr. Aluizio o dissera tambem pela mesma Gazeta, que ella era viuva
e ainda viva, muito apoquentada da curiosidade publica desde que uns indiscretos
cartões de visita andavam a propalar-lhe a existencia.” Por fim, destaca como pontos
positivos a imaginação, a vontade e o talento do jovem escritor, que deve perseverar e
triunfar.146
Os destaques do Brazil demonstram, primeiro, que a saga de Filomena na
Gazeta foi acompanhada, tornando-se um ponto de referência e comparação para o
romance. O bibliógrafo cobra que a história da heroína no romance acompanhe os traços
publicados anteriormente no jornal; seu resumo, muito coeso, mostra a sua compilação
e leitura daquelas diversas versões, misturando Aluísio Azevedo e Lélio. Por outro lado,
o romance, como as versões midiáticas da vida de Filomena, teria falhas e incoerências
internas que incomodam o bibliógrafo e não seguem, segundo ele, o sucesso do
primeiro capítulo. O final é criticado tanto na incoerência externa quanto interna.
Alguns dias mais tarde, talvez incomodado pelo dito sucesso de crítica,
talvez pressionado pelo seu jornal, o mesmo crítico anônimo assinou sob o pseudônimo
F.F. um folhetim intitulado “A proposito de Philomena Borges”.147
O folhetinista começa depreciando o romance, que, contando com muitos
anúncios e promessas, não teria alcançado o resultado esperado: “afinal tudo se
146
“Bibliographia”, Brazil, 23/01/1884. p. 2. ed. 19.
147
É o próprio autor que permite a identificação: “Já em outro logar desta folha disse o mais que pensava
da Philomena Borges e de seu autor...”. F.F., “A proposito de Philomena Borges”, Brazil, 27/01/1884. p.
1. ed. 23.
57
converteu em muita fumaça e nenhum effeito”. Para rebuscar o estilo, usa em seguida a
expressão latina “mons parturiens, mus”, traduzível como “a montanha gemeu, mas
pariu um rato”. Segundo o crítico, o réclame não bastaria para obter mérito, nem o
“côro de louvores a modo de ouverture ruidosa de peça magica” que teria acompanhado
a obra. Faltaria para Aluísio Azevedo tanto bom gosto quanto bom senso, termos muito
sugestivos que começam a revelar a motivação do texto.148
O folhetinista argumenta que criticar Azevedo é expor-se à inimizade de seu
grupo e à acusação de integrar a “Nova Lyra de Apollo”, associação literária que o
próprio crítico liga ao imperador. Ele contrapõe, então, dois grupos literários rivais: a
“Nova Lyra de Apollo” e o “elogio mutuo”. Segundo ele, a fama de Filomena Borges e
o silêncio e a complacência dos críticos mais ferozes sobre o romance de Aluísio
Azevedo se deveram ao pertencimento do escritor ao grupo do “elogio mutuo”.
Exposto o problema dos grupos, da filiação literária e da propaganda, todos
intimamente ligados, F.F. chega ao cerne de seu texto. O problema central de Filomena
Borges, para ele, é o ataque que se faz ao imperador. Azevedo teria atacado o monarca
“por ser moda, para não sahir fóra do tom”.
Incomoda-o tanto o reclame do romance quanto o retrato que Azevedo fez
do imperador. O que motiva a crítica, segundo o modo como o texto se desenvolve, é a
presença do imperador – caso contrário, escreve o crítico, ele a deixaria no silêncio
como fizeram os elogiadores mútuos, para que não tivessem que falar mal.
F.F. faz a ressalva de que nunca recebeu “de Sua Magestade o menor favor,
o mais banal cumprimento, nada lhe pedi e nada lhe devo”... A preocupação em
demonstrar a falta de comprometimento com D. Pedro II faz coro com o aspecto
político do texto, elucidado nos próximos argumentos.
Incomoda o crítico que D. Pedro II tenha sido retratado como um
conquistador maniqueísta:
[...] sabe bem que Sua Magestade não é o Lovelace que pintou em seu
romance, nem cynico a ponto de requestar a propria afilhada: sabe
bem que Sua Magestade nunca fez intervir na politica do paiz a
influencia das alcovas; outros o terão feito e o diz a voz publica, mas
d’elle ainda não ousou tanto nem o Corsario; porque pois assim o
148
Bom gosto e bom senso nos termos de uma brochura que circularia na época. Possivelmente, refere-se
à questão do realismo em Portugal. Em todo caso, os sentidos tomam outras formas na discussão que
apresentamos.
58
disse e descreveu o autor da Philomena e descreveu o chefe da nação,
que além de outros titulos ao nosso respeito é quasi um sexagenario, e
sexagenario que não ridicularisa a velhice procurando occultar os
estragos da idade?
Não seria ato de coragem criticar um sexagenário indefeso; não seria ato de
coragem criticar o imperador; segundo a moda dos tempos, seria ato de coragem
defendê-lo. Esta defesa se dá em dois campos: o pessoal, que nega a possibilidade de
atitudes indecorosas por parte do “bom velhinho”; e o político, que nega a prática do
apadrinhamento. Defender o imperador, aqui, não é meramente ato de coragem, como
quer fazer parecer F.F., mas é ato político, que revela uma posição favorável ao
monarca e, por conseguinte, a seu governo.
Interessante notar também que o crítico não descarta o gosto pelo escândalo,
um dos possíveis fatores do sucesso do romance: “si tivesse levado mais longe as scenas
do Imperador, não faltará quem lh’o repita, o successo seria mais estrondoso.”
Incomoda tanto pela postura indecorosa, desrespeitosa, quanto pela postura
política de apadrinhamento decorrente de sedução. As duas posições, moralistas, são
também políticas, pois vêm em defesa da pessoa Pedro de Alcântara e do monarca D.
Pedro II.
59
S. S. disse que: ‘Mons parturiens, mus...
E, eu pergunto:
- Então... onde está... o ‘rato’?
Porque, ha muita gente que o suppõe... encruado !...
E, obrigado a S. S. pela resposta que se dignar mandar-me. 149
149
Quincas Junior, “Apanhados”, Diario do Brazil, 30/01/1884. p. 2. ed. 25.
150
Aluísio Azevedo, “A proposito de Philomena Borges”, Gazeta de Noticias. 30/01/1884. p. 3. ed. 30.
151
Tentamos completar o texto para permitir a leitura.
60
gosto; afirma que a crítica fez silêncio e grande estrondo; e defende que é honesto e
covarde.
Enquanto alguns críticos liam Filomena Borges como parte da Gazeta e de
seus propósitos políticos, Aluísio Azevedo tentou se esquivar, reivindicando que lessem
o romance como uma unidade em si e considerassem-no um autor independente dos
editores. Assim, além do campo de lutas políticas, há um campo de lutas para definir
qual o papel do escritor (e do crítico) em meio a editores e jornalistas. Deve ser marcada
a jogada dupla: na escrita, Azevedo defendia a separação; mas na prática, participara da
divulgação.152
De maneira indecorosa, Azevedo finaliza o texto desafiando F.F. para um
duelo, depois de acusá-lo de ser pretensioso: “pretende arvorar-se campeão de Sua
Magestade”.
A ferocidade da réplica motiva uma tréplica curta em que F. F., agora
assinando como Felix Ferreira, recusa-se a acompanhar Aluísio Azevedo no “terreno da
injuria”, mas aceita o duelo.153 Este é prontamente dissuadido pelo adversário num curto
quarto texto.154
A brutalidade que os ataques foram ganhando pode hoje parecer banal,
porém, relevando-se o exagero, ela demonstra a tensão política e literária em que o
romance se inseriu.155
A discussão travada pelos três escritores envolve mais que um simples
joguete de lógica e argumentação. Os periódicos a que eles recorrem influem
decisivamente no curso da polêmica, e suas posições conflitantes em outros campos se
estendem para a literatura.
O Brazil era declaradamente o jornal conservador; o Diario era tido como
jornal liberal; a Gazeta como jornal crítico ao Império.
O Brazil – Orgão do partido conservador iniciou suas atividades em 16 de
julho de 1883, encerrando-as em 06 de junho de 1885. Reivindicava-se abertamente
como defensor das causas do partido conservador, criticando o governo liberal e os
152
O autor já havia se armado contra as acusações de publicitário no texto que serviu de prefácio ao
folhetim. Cobrar um romance pela sua publicidade não seria válido como crítica. V. Capítulo 1.
153
Felix Ferreira, “A proposito de Philomena Borges”, Brazil, 31/01/1884. p. 2. ed. 26.
154
Aluísio Azevedo, “A proposito de Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 01/02/1884. p. 2. ed. 32.
155
Também, em parte, a boêmia “juvenil” em que viviam os escritores?
61
outros periódicos do Rio de Janeiro, principalmente o Diario do Brazil e a Gazeta de
Noticias.
O Diario do Brazil surgiu em 1881. Como não tivemos acesso à primeira
edição, recorremos então à primeira de 1882. Nela, repetem-se trechos do programa de
1881. Um deles declara a opinião política do jornal:
No entanto, o jornal era tido pelos seus pares como ligado ao partido liberal.
O Brazil serve de exemplo, escrevendo no começo de 1884: “diz o governo que o
partido liberal tencionou fundar um jornal politico (o pobre do Diario do Brazil não
vale nada!) que defendesse a causa do partido”.157 A provocação junta-se a muitos
outros textos criticando o rival, no início do mesmo ano.158
A Gazeta de Noticias, por sua vez, foi ainda mais radical na defesa de sua
imparcialidade. Em seu primeiro número, de 2 de agosto de 1875, lê-se: “Não sendo a
Gazeta de Noticias folha de partido, apenas tratará de questões de interesse geral,
acceitando n’esse terreno o concurso de todas as intelligencias que quizerem utilisar-se
das suas columnas.”159 Ela tenta passar a imagem de jornal neutro e, mais importante,
de “interesse geral”. Este aspecto é essencial para as intenções comerciais da folha que
então surgia, e que, segundo a literatura acadêmica, modernizará o periodismo
brasileiro.160
156
Diario do Brazil, 01/01/1882. p.1. ed. 1.
157
“Corrupção”, Brazil, 11/01/1884. p. 1. ed. 9.
158
Há pouca informação bibliográfica sobre esses dois jornais. O Brazil começou com tiragem de 5000
exemplares; no início de 1884, ela já havia subido para 8000; no início de 1885, imprimem-se 10000
exemplares. O jornal conservador era vendido de maneira avulsa por 40 réis; no início de 1883, sua
assinatura anual custava 16$000, semestral 8$000; no início de 1885, a edição avulsa tem o mesmo preço,
mas as assinaturas foram barateadas: 3$000 pelo trimestre, 6$000 pelo semestre. O Diario do Brazil
praticava preços semelhantes: 40 réis avulso, 10$000 anual, 6$000 semestral (1881); em 1884, a
assinatura anual passa a 12$000. Informações mais precisas sobre os proprietários e redatores dos dois
jornais políticos estão por pesquisar.
159
Gazeta de Noticias, 02/08/1875. p. 1. ed. 1.
160
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. As
primeiras edições da Gazeta fazem piada dos programas de jornais e de partidos. O folhetim da primeira
edição, assinado por Bob, foi iniciado de maneira bastante enfática: “Ha uma cousa muito tola em todos
os jornaes que começam: o programma.” Bob, “Folhetim”, Gazeta de Noticias, 02/08/1875. p. 1. ed. 1.
62
Não acreditamos que tenha havido qualquer tipo de neutralidade por parte
de qualquer um dos periódicos. Havia, dentre os responsáveis pela redação e
composição, heterogeneidade considerável, mas há um sentido político por trás da
atuação de cada uma das folhas. Esse quadro é composto e, simultaneamente, ajuda a
compor a discussão sobre Filomena Borges. As folhas mais conservadoras, ligadas ao
Império, atacaram o romance de Aluísio Azevedo, enquanto as folhas críticas ao
Império apoiaram. Ou seja, as diferentes opiniões sobre o romance demonstram a
polarização política entre os periódicos; e a apreciação do romance depende e é
composta por esse posicionamento político, que não deve ser desconsiderado na análise.
Nossa hipótese, portanto, é que há uma estreita relação entre literatura e política. A
crítica literária e a crítica à ordem política estão articuladas, sendo que a posição do
periódico repercute a sua posição no jogo político.
2.2.b A. de B. F. no Brazil
161
Pseudônimo ainda não identificado. A dificuldade é grande, por só termos as iniciais e pela assinatura
não se repetir no periódico, ao menos nos meses que cercam esse conjunto de críticas.
162
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges I”, Brazil, 02/02/1884. p. 3. ed. 28.
63
havia revelado. O livro pode ter corrido de “mão em mão”, mas ainda assim foi
relegado ao esquecimento, provável destino de seu concorrente Filomena Borges, não
tivesse Azevedo logrado sucesso com outros romances e alcançado o cânone da
literatura nacional.
A segunda crítica é publicada na edição seguinte do jornal. Ela faz coro aos
comentários de Felix Ferreira, aproveitando-se da imagem que ele usara: a montanha
pariu um rato. Incomoda o crítico o “barulho infernal” que transformou Filomena em
“assumpto de conversas, de anedoctas e de debiques”. Volta a aparecer, portanto, a
crítica ao reclame, bem resumida no parágrafo seguinte:
A anciedade foi geral e todos querião ler, mais que decepção!... Foi
uma ouzadia avivar d’este modo a curiosidade litteraria para um livro
que como Philomena não tem escola nem arte e quando muito
representa uma collecção de palavras sem grammatica e de idéas sem
nexo. Nota[-]se em Philomena a falta completa de espirito o mais
vulgar. Seus personagens são verdadeiros monstros. Philomena é um
impossivel; Borges é uma mentira; não ha na creação uma Philomena
nem um Borges e João Touro... Touro é quem o descreveu.
E demais, onde se permitiu apparecer nas paginas de um romance
personagens com os proprios nomes, que eles vivos na nossa
contemporaneidade trazem? Pois o autor de Philomena não achou
uma alusão qualquer, e para fazer imaginar este ou aquelle individuo,
foi preciso trazel-o com o nome por extenso?
163
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges II”, Brazil, 03/02/1884. p. 2. ed. 29.
64
O texto é finalizado com um ataque ao próprio escritor, taxado de
romancista medíocre e presunçoso por ter criticado Oscar de Amaral. A. de B. F.
também recomenda que Aluísio Azevedo arranje outra profissão, porque se fosse viver
de literatura, morreria de fome ou abandonaria a atividade. É importante notar que o
escritor maranhense pode ter sido o primeiro romancista profissional da literatura
brasileira, apesar de ter mantido a profissão por pouco tempo, vindo a se tornar
funcionário público depois de menos de duas décadas de escrita.
O terceiro texto torna ainda mais interessante esse descompasso entre o
Aluísio Azevedo canônico e o escritor jovem de 1884. Apesar de não lhe negar
inteligência, A. de B. F. nega tendência literária ao maranhense por uma razão que hoje
soa impossível, de acordo com as características sacramentadas pelas histórias literárias:
“Falta-lhe absolutamente a qualidade essencial ao romancista; o Sr. Aluizio não é
observador e si tem pretenções a isto não faz estudos necessarios.”164
Neste trecho, o autor se concentra em acusar Azevedo de presunção por
querer “esmagar [...] um moço que modestamente apresentou-se com dous livros na
mão” pelas críticas que fez na Gazeta.
Faz então um elogio a Helena, livro de versos de Oscar de Amaral,
ponderando sua pouca idade e a dificuldade em se fazer poeta, processo que levaria
tempo e estudo. O livro seria incorreto, mas demonstraria o talento do jovem escritor.
Em seguida, elogia brevemente Horacio e o texto termina.
Dois dias mais tarde, vem a público a quarta parte da crítica. É um texto
com mais voltas, mas segue a tônica dos últimos – o ataque a Aluísio Azevedo e a
defesa de Oscar de Amaral. Sua linha parte do que seria o axioma de crítica, “a
litteratura deve dar a medida de uma época”, para recomendar ao maranhense o estudo
de seu meio e a leitura de Zola e Daudet: “Zola, diz-nos De Amicis, não inventa seus
personagens, vai buscal-os no mundo real.” Outra interessante citação que marca a
grande diferença entre a visão atual de Azevedo e a visão da época sobre ele, motivada
por Filomena, além de outras literaturas. Oscar de Amaral, por sua vez, seria um grande
estudioso e leitor de literaturas as mais afastadas, como a inglesa e a alemã.165 É
importante destacar que A. de B. F. segue o padrão naturalista de crítica, mostrando que
164
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges III”, Brazil, 05/02/1884. p. 2-3. ed. 30.
165
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges IV”, Brazil, 07/02/1884. p. 2. ed. 32.
65
a diferença entre os grupos pode ser mais política que propriamente estética,
adicionando complexidade à discussão: não haveria, assim, correspondência direta entre
opiniões políticas, econômicas e estéticas, compondo grande heterogeneidade.166
O texto seguinte seguirá nessa linha, e A. de B. F. mostrará toda sua
erudição. Citando escritores da Polônia, Finlândia, Rússia, Boêmia, que formariam uma
“brilhante constellação litteraria”, o crítico dá ao autor brasileiro mais opções de leitura
e estudo, esperando ouvir futuramente: “a minha Philomella, digo a minha Philomena é
um romance impossivel, é uma ulcera litteraria que precisa do ferro em brasa da critica
e de desinfecção immediata.”167
Eu, já não exigia que o Sr. Aluizio fosse um creador, mas ao menos
que fosse um photographo, que nos désse photographias parecidas,
mas que agarrasse em producções alheias para engastal-as n’um livro
seu, oh! não é decente!
166
A ideia da heterogeneidade está presente em Angela Alonso, apesar da autora não entrar na discussão
estética, que sugerimos a partir dela. Cf. ALONSO, A. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do
Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
167
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges V”, Brazil, 08/02/1884. p. 3. ed. 33.
168
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges VI”, Brazil, 09/02/1884. p. 2-3. ed. 34.
66
Há um intervalo maior entre a sexta e a sétima partes. Esta foi publicada em
13 de fevereiro, voltando à discussão do reclame. Depois de acusar os literatos
brasileiros de conhecer pouco e mal a literatura, A. de B. F. conta uma anedota:
169
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges VII”, Brazil, 13/02/1884. p. 3. ed. 37.
170
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges VIII”, Brazil, 14/02/1884. p. 3. ed. 38.
67
Em oposição, os comentários sobre Horacio têm tom positivo:
171
Ao menos entre os críticos. Mais uma adição à heterogeneidade: o crítico parece ser monarquista e
abolicionista, defendendo o naturalismo na literatura. Para a visão tradicional de história literária, isto
seria contraditório; este trabalho, em conformidade com o de Alonso, mostra que não. Cf. ALONSO, A.
op. cit.
68
Por fim, surge novamente o boato sobre o cancelamento do romance:
Eu vou deixar o livro do Sr. Aluizio. Não sei se perdi meu latim; só
tive, porém, em mira mostrar que elle era o menos competente de
todos os escrevinhadores para dar um golpe em qualquer produção
litteraria. É bom ser-se conhecido, e o Sr. Aluizio hoje o é; dou-lhe os
parabens. Já não é pouco! Falla-se que a Gazeta de Noticias foi quem
lhe apressou o terminar o seu Philomena; a Gazeta fez bem, aquillo
devia acabar o mais depressa possivel.
O autor de Philomena deve estar envergonhado de sua notoriedade, é
por isso que cala-se depois de ter atacado; comprehendi que não gosta
que se falle mais em si e satisfaço-lhe fazendo hoje estas ultimas
considerações.
Sou um desconhecido nas lettras, é verdade; mas por isso não deixo de
ser um de seus cultores e um admirador constante das bellezas da arte
e dos que a sabem cultivar com talento e aproveitamento.
Não faço parte do elogio mutuo, se é que elle exite.
69
Atarefado no magisterio particular, não disponho de tempo senão para
empregal-o na cultura da arte e das lettras.
Vivo, portanto, arredado do grande centro onde a mocidade congrega
suas forças para as guerras da actualidade.
O campo de batalha, vastissimo, perdendo-se ao longe, sem limites,
vae infelizmente absorvendo os grandes espiritos.172
172
Alfredo de Paiva, “Notas da actualidade”, O Mercantil, 09/02/1884. p. 3. ed. 11. O texto tem
assinatura datada de 01/02/1884.
70
Dando nova feição ao romance, descreveu scenas com bastante
naturalidade, com primor e elegancia.
Foi bastante correcto e accentuou perfeitamente sua individualidade
litteraria.
Está visto que o Sr. Aluizio é talhado para o romance.173
173
Alfredo de Paiva, “Notas da actualidade”, O Mercantil, 16/02/1884. p. 3. ed. 13. O texto tem
assinatura datada de 10/02/1884. Outro subitem desse texto trata da educação feminina.
174
Literatos e críticos franceses célebres. Janin, o “príncipe da crítica”, e Planche são mais conhecidos
pelo trabalho crítico; Chateaubriand é mais conhecido pelo trabalho literário. Sobre a crítica nos
periódicos franceses, ver: MELMOUX-MONTAUBIN, Marie-Françoise. La critique littéraire. In:
KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain. (orgs.) La
civilisation du journal: Une histoire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011.
p. 937-952.
175
Alfredo de Paiva, “Notas da actualidade”, O Mercantil, 20/02/1884. p. 2-3. ed. 14. O texto tem
assinatura datada de 12/02/1884.
71
A “verdadeira critica, [a justa,] desprendida de todas as paixões, de todos os
interesses e rivalidades, é que póde fazer realçar tanto o merito como os defeitos das
alheias producções”, portanto, seria aquela que deveria ser perseguida.
Por mais que Alfredo de Paiva fizesse uma avaliação positiva do romance,
ele também cobrava mais decoro: “Philomena Borges é um bom romance com alguns
defeitos, taes como os de haver o autor introduzido a pessoa do chefe do estado na sua
obra sob seu verdadeiro nome.” E, por fim, invocava os escritores “á união de classe!” e
“á fraternidade litteraria!”.
Novamente aparece o problema do fim do romance e dos puffs, que aqui são
também responsabilizados pelo insucesso do romance.
Mequetrefe – “desillusão”
176
Pseudônimo provável de Julio Dast. V. próxima nota.
177
Se Alter o predisse, ele provavelmente é o mesmo autor da “cacetação antes do parto”, Julio Dast. V.
Capítulo 1.
178
Alter, “Livros a ler”, Revista Illustrada, 09/02/1884. p. 7. ed. 371.
72
N’O Mequetrefe de 20 de fevereiro de 1884 foi publicada uma crítica
bastante diversa das outras apresentadas. Sob o título “Philomena Borges” em negrito
há uma ressalva entre parêntesis, em letras menores: “(Não é critica)”. No entanto, o
texto é uma das críticas mais interessantes do romance, colocando-se ao lado de Alfredo
de Paiva como pareceres positivos.
Assinado por “O mequetrefe”,179 o texto elogia o escritor maranhense e
destaca dois aspectos: a educação da protagonista e o paralelo possível entre Filomena
Borges e Dom Quixote. Quanto ao primeiro tema, “o mequetrefe” escreveu:
179
Pseudônimo não identificado.
180
O mequetrefe, “Philomena Borges: não é crítica”, O Mequetrefe, 20/02/1884. p. 3-6. ed. 335.
73
ainda tinha contato e amizade com os responsáveis por aquela folha, o que nos faz
conjecturar que as opiniões expostas por ela possam ter sido sugeridas por ele ou ter
recebido o seu aval, se não escritas por ele.
Daí surge uma questão interessante: seria possível estender a comparação,
relacionando a desilusão de Azevedo como folhetinista malsucedido, possivelmente
censurado, e a de sua personagem?
Considerações
74
2.3 Repercussão
Filomena Borges, nome que passou a ser conhecido por todo o Rio de
Janeiro, tornou-se romance, desdobrou-se em crítica política e revelou um grande
aparato comercial e uma grande polarização política, tinha peso demais para morrer de
desilusão. A montanha preparada pela Gazeta de Noticias não pariu apenas um rato, o
romance; pariu mesmo uma ninhada: anúncios, adaptações, menções.
O romance pode não ter tido muito sucesso como folhetim nem como livro,
mas o reclame da Gazeta, este sim teve muitos efeitos. É deles que trataremos aqui.
Filomena Borges repercutiu de maneira intensa e abrangente nos meses posteriores ao
seu lançamento, tornando-se peça, teatro, chapéu, tecido; para generalizar através de um
termo caro ao comércio, tornou-se mercadoria.
O nome, o livro e o folhetim se desdobraram em outras mercadorias; ao
contrário do que gostariam de imaginar os críticos da época, a literatura também era
mercadoria.
2.3.a Anúncios
Era de se esperar que uma obra tão antecipada quanto Filomena Borges
mantivesse o ritmo da publicidade após seu lançamento em folhetim e consequente
publicação em livro. Montanha que foram os anúncios, o rato que deles sai parece ter se
multiplicado com velocidade: para um romance medíocre, mesmo ruim, com possível
pouca aceitação do público, Filomena Borges repercute com bastante força em diversas
áreas.
Em processo semelhante àquele da criação da personagem na imprensa, em
que ela saiu das crônicas e apareceu por todos os espaços do jornal, o romance sairá do
folhetim e romperá a barreira literária, demonstrando relações íntimas entre literatura,
imprensa, teatro e a comercialização de todos eles.
Música/moda
75
Uma das primeiras apropriações comerciais de Filomena Borges, após o
término do folhetim, é musical. A Lyra do Povo anuncia a “polka Aluizio, Philomena e
o Borges”:
76
“Tangões e gambiarras”, Gazeta da Tarde, 23/01/1884. p. 2. ed. 19.
77
O Programma-Avisador, 29/05/1885. p. 2. ed. 297.
78
Gazeta de Noticias, 05/05/1884. p. 3. ed. 127.
79
usado em referências de vestuário.182 Também durante a publicação do folhetim, há um
anúncio na Folha Nova, 23 de dezembro de 1883, que vende “ditos de palha, a
Philomena Borges.................. 1$200”. A prática de usar nomes de personalidades
para comercializar mercadorias, parece ter sido comum, já que encontramos também
chapéus a Lafayette.183
2.3.b Carnaval
182
Estrela do Brasil, Au Boulevard.
183
Gazeta de Noticias, 31/12/1883. p. 3. ed. 365. Anúncio da Chapelaria Aristocrata, que também vende
chapéus Victor Hugo, Maciel, Abolicionista.
184
V. Capítulo 1.
185
“A terça-feira de carnaval”, A Folha Nova, 27/02/1884. p. 1. ed. 460.
80
foram transformados em carros alegóricos: D. Juanita e O Mandarim, conforme os
trechos seguintes do mesmo anúncio:
O relato d’A Folha Nova “confirma” o desfile – agora não estamos mais no
campo das suposições e puffs. Outros assuntos, como a greve dos urbanos e a vacina da
febre amarela, também foram incorporados ao desfile. A Terça-Feira Gorda, como era
chamada, era o dia de carnaval mais aguardado por aqueles que acompanhavam as
grandes sociedades carnavalescas, e seus desfiles contavam com carros de ideias que
faziam referência aos grandes acontecimentos recentes.
Tais desfiles também se inseriam no contexto das lutas políticas, incluindo
um esforço civilizador que, de acordo com Leonardo Pereira, agradava aos literatos do
grupo de Aluísio Azevedo. Nesse sentido, os carros não só comentavam os temas
relevantes do cotidiano, mas tinham intenção de instruir, levando uma mensagem
civilizadora que condizia com as opiniões políticas daquele grupo:
Os carros de crítica, que na maior parte das vezes faziam alusões aos
principais acontecimentos políticos do período, ironizando acidamente
81
a polícia da Corte e as grandes figuras dos gabinetes imperiais, tinham
ainda outros alvos freqüentes: as práticas e costumes difundidos entre
os grupos iletrados da Corte, que são condenados e satirizados nos
préstitos das grandes sociedades. Ao criticar e atacar tais práticas,
lançavam sobre o público mensagens pretensamente civilizadoras –
que, tendo por fim o extermínio de determinadas tradições, eram em
geral apoiadas com entusiasmo pelos literatos do período.186
Esses desfiles tinham, portanto, caráter político eminente. Isso era festejado,
por exemplo, por Valentim Magalhães, integrante do grupo de literatos identificado por
Pereira; e criticado por Carlos de Laet, segundo o historiador um dos poucos literatos
“infelizes” com o uso político do desfile. Dentre os temas, destacavam-se o
abolicionismo, sempre presente da década de 1880.187
186
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro
do século XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. p. 127.
187
Ibidem.
82
Romances eram convertidos em peças. Este fato nada incomum no século
XIX, exemplificado de maneira célebre por A dama das camélias, de Alexandre Dumas
Filho, permite à literatura uma sobrevida nos palcos, representação após representação.
Um romance de sucesso pode vir a ampliá-lo; um romance sem sucesso pode vir a obtê-
lo. A adaptação teatral é especialmente relevante se considerarmos que o público do
teatro é mais abrangente que o público do romance: os espetáculos não eram caros e não
exigiam leitura.
Filomena Borges, romance comercial por excelência, não escapará a essa
lógica. A mercadoria folhetim, convertida em mercadoria livro, é também transformada
em mercadoria espetáculo. A celebridade do nome da personagem e do título do
romance foi, deste modo, aproveitada.
No dia 27 de janeiro de 1884, uma nota na Gazeta de Noticias anuncia o
início dos ensaios de uma “nova comedia em um acto, sob o titulo de Philomena
Borges, que é o mesmo do ultimo romance de Aluizio Azevedo.” Ainda segundo a nota,
que apresenta as notícias do Teatro Príncipe Imperial, “é uma peça de actualidade, e, se
fôr boa como nos affirmam, fará sem duvida carreira longa.”188 A “carreira longa” é
menos uma aposta e mais um chamariz para a peça, que estreará no teatro onde a revista
O Mandarim causava grande estardalhaço. A revista de Artur Azevedo e Moreira
Sampaio contribuía, ela mesma, para a publicidade de Filomena Borges, romance e
peça. Pelas relações pessoais, não é de se estranhar que a comédia em um ato tenha
conquistado espaço no palco desse teatro.
A autoria, hoje reconhecida como de Aluísio Azevedo, era considerada
anônima pelo periódico O Mequetrefe:
188
Gazeta de Noticias, 27/01/1884. p. 3. ed. 27.
189
“Os theatros”, O Mequetrefe, 10/03/1884. p. 7. ed. 337. As edições de O homem (1887), O Coruja
(1889), O cortiço (1890), A mortalha de Alzira (1894), Livro de uma sogra (1895) e Pégadas (1897)
disponíveis na Brasiliana apresentam a peça como parte da obra do autor. Considerando-se que são
edições em vida, achamos confiável a atribuição da autoria a Aluísio Azevedo, vista por exemplo em João
Roberto Faria. FARIA, João Roberto. Teatro de Aluísio Azevedo e Emílio Rouède. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. XIII, nota 2.
83
Este comentário é de 10 de março, posterior, portanto, à primeira
representação da peça, ocorrida em 18 de fevereiro. O anúncio do Teatro Príncipe
Imperial dá mais detalhes:
84
Gazeta da Tarde, 08/03/1884. p. 4. ed. 56.
190
Raquel Pereira Leite desenvolve atualmente uma pesquisa de iniciação científica sobre Eduardo
Garrido como mediador cultural entre França, Portugal e Brasil.
85
A Folha Nova, 07/03/1884. p. 4. ed. 469.
86
Hontem fui assistir no Principe à primeira representação de uma
comedia que tem por titulo o nome da heroina do ultimo romance do
Sr. Aluizio Borges.
Detestavel!...191
191
Rorbas Folaca, “Chispas”, Brazil, 20/02/1884. p. 3. ed. 43.
192
“Theatros e...”, Gazeta de Noticias, 20/02/1884. p. 2. ed. 51.
193
Uma crítica do Diario do Brazil diz, por exemplo, que a peça tem “pouco merecimento”. “Salões e
bastidores”, Diario do Brazil, 20/02/1884. p. 3. ed. 40.
87
Correio Paulistano, 18/04/1884. p.2. ed. 8299.
194
Sobre a Companhia de Braga Júnior, acompanhar o trabalho de Renata Romero Geraldes (até a revisão
final deste trabalho, sua monografia não estava disponível).
88
Correio Paulistano, 13/05/1884. p. 3. ed. 8320.
195
O texto da peça não foi encontrado durante esta pesquisa.
89
Gazeta de Noticias, 31/01/1884. p. 4. ed. 31.
O teatro, situado na Rua Formosa, n. 176, por vezes referida como Rua
General Caldwell, abrigava uma empresa de bonecos automáticos com repertório
variado: Fausto, Salteadores da Floresta Negra, Um marquez por meia hora, Uma
vespera de reis,196 D. Juanita, O filho do Inferno,197 A sogra. Seu preço bastante
acessível sugere um divertimento popular, frequentado por famílias, como afirmava O
Espectador: “o theatro automatico Philomena Borges continua a ser ponto de distracção
ás[?] famílias.”
196
Comédia de Artur Azevedo.
197
Haveria relação com Eduardo Garrido e sua A filha do Inferno? Possível paródia?
90
Artur Azevedo alertava, no entanto, contra os “perigos” do teatro
automático no Rio de Janeiro. O crítico e dramaturgo não frequentava o Theatro
automático Philomena Borges, mas descreveu da seguinte maneira um espetáculo que
acompanhou no outro Theatro automático:
O Pavilhão Americano
198
Artur Azevedo, “A festa da Glória”, Gazeta da Tarde, 06/06/1884. p. 2. ed. 131.
199
Como perseguira A flor-de-lis, referida no texto, que será tratada no próximo capítulo.
91
Gazeta de Noticias, 08/03/1884. p. 6. ed. 68.
92
Gazeta de Noticias, 22/03/1884. p. 4. ed. 82.
200
“Theatros e...”, Gazeta de Noticias, 01/04/1884. p. 2. ed. 92.
93
espetáculo em benefício do diretor da companhia, “que generosamente concedeu
metade dos lucros para a liberdade de um escravo, d’entre os sete apresentados
n’aquella occasião”.201 Os atores e atrizes do Theatro Philomena Borges participaram da
festa nacional de 25 de março, doando prendas;202 e o mesmo teatro montou
representação em homenagem à emancipação no Ceará:
201
“Theatros e...”, Gazeta de Noticias, 01/04/1884. p. 2. ed. 92.
202
“A festa nacional de 25 de março”, Gazeta da Tarde, 26/03/1884. p. 2. ed. 71.
94
Os autores e artistas teatrais também integravam aquela geração que, além
de trazer novas propostas jornalísticas e estéticas, lutava por uma renovação política.
Apesar de não haver necessariamente correspondência direta entre ideias politicamente
“progressistas” e “modernidade” estética e jornalística, muitos deles se envolveram
diretamente na luta abolicionista, articulando a atividade nos jornais e teatros, espaços
coletivos por excelência.
Há íntima relação entre os jornalistas, os artistas teatrais e as mais diversas
organizações abolicionistas, como a Confederação Abolicionista. Na época da
repercussão de Filomena Borges, as conferências abolicionistas vinham sendo
substituídas por matinées, e a frequência dos espetáculos que libertavam escravos era
grande e crescente. Andrea Marzano, ao discutir a relação entre o ator Vasques e o
abolicionismo, levanta:
203
MARZANO, Andrea. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro (1839-1892). Rio
de Janeiro: Folha Seca: FAPERJ, 2008. p. 76.
204
Gazeta de Noticias, 17/10/1884. p. 6. ed. 322.
205
FARIA, João Roberto. op. cit. p. XIV.
95
O maranhense, que também marcava presença em outros eventos
abolicionistas, agradava a parte do público favorável à libertação. No entanto, não
foram só alguns folhetinistas que não gostaram da adaptação. O leitor deve estar se
perguntando qual a postura do próprio monarca, D. Pedro II, frente às repercussões do
romance e da personagem de Aluísio Azevedo e da Gazeta de Noticias. Até agora, neste
trabalho, ele sempre apareceu como objeto, nunca como sujeito. Uma fofoca, publicada
na Gazeta da Tarde um pouco antes da estreia cênica de O mulato, permitirá
conjecturas:
206
D. Quixote, “Atravéz da semana”, Gazeta da Tarde, 13/10/1884. p. 1. ed. 239.
207
A flor-de-lis era uma adaptação de Droit du Seigneur, de Burani e Boucheron. LEVIN, Orna Messer.
Aluísio Azevedo: cadeira 4, ocupante 1(fundador). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2013. p. 19.
208
FARIA, João Roberto. op. cit. p. XII.
96
Ele era antes causa política e, como fazem parecer as relações entre Filomena e os
teatros, pode ter tido sentido comercial. Há alguns anúncios que se aproveitam da
emancipação cearense, como se aproveitaram da celebridade do romance de Aluísio
Azevedo.
Emília Viotti da Costa dá à questão um tratamento que nos parece bastante
adequado. Ainda que trate de uma elite, composta por Joaquim Nabuco e Luiz Gama,
entre outros, ela faz uma reflexão que pode ser estendida aos artistas boêmios:
209
COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 8ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2008. p. 109-110.
97
A questão do modo como a queda do gabinete Zacarias é tratado no
romance fica para o próximo capítulo. Nele, pretendemos articular o contexto literário,
midiático e político que traçamos nos dois primeiros capítulos para melhor entender a
obra no seu contexto de produção e circulação. Também discutiremos as críticas mais
recentes, que se distanciaram da análise histórica que aqui propomos.
98
Capítulo 3 – Crítica do romance Filomena Borges
3.1.a Prefácios
210
AZEVEDO, Aluísio. Philomena Borges. 1ª ed. Rio de Janeiro: Typ. Gazeta de Noticias, 1884.
211
A partir da consulta às obras digitalizadas na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, apuramos que
esta edição foi publicada entre 1895 e 1897. V. nota da Tabela 2.
99
Há em todos os seus livros, se excluirmos Uma lágrima de mulher,
porque pensado e escrito sob o domínio da escola romântica, um traço
invulgar de técnica, de originalidade, de ‘savoir faire’, qualidades
essas que raramente encontramos reunidas em qualquer dos outros
nossos romancistas.212
212
NOGUEIRA DA SILVA, M. (s/ título) In: Philomena Borges. 3ª ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet &
Cia., 1938. p. 5-6.
213
MOTA, Artur apud NOGUEIRA DA SILVA, M. op. cit. p. 6.
214
Ibidem. p. 5.
215
V. Capítulo 2.
100
preocupa o homem: a paisagem [...] quase não existe nas páginas de Philomena
Borges.”216 Aluísio Azevedo, que seria um “doublé de comediógrafo”, fez “um romance
para rir, para distrair, para matar as horas de tédio. Um romance que pode estar nas
mãos de toda a gente. Desde os ‘vieux-garçons’ até as ‘jeunes-filles’. Todos encontrarão
nas suas páginas motivos de prazer.”217 Além de cômico, o romance seria popular.218
Essa visão é muito justa, consideradas as condições de publicação do original na Gazeta
de Noticias. O romancista buscou agradar um público amplo, um público de grande
jornal diário, usando para tanto recursos cômicos.
Ainda de acordo com N.S., Filomena Borges seria uma fantasia “feita com
trechos da vida real”, desfilando tipos característicos da corte do segundo reinado e
mostrando com humor os defeitos do mundo político. Portanto, o romance não seria tão
somente fruto da imaginação do autor; ele teria se baseado, também, em tipos da época
por meio da observação.
O texto nos faz refletir: seria defensável levantar a hipótese de um jogo
duplo por parte de Aluísio Azevedo, em que, de um lado, o autor escreveria segundo o
gosto do público e, de outro lado, “tiraria sarro” desse gosto? Também é significativa a
pergunta com que Nogueira da Silva conclui seu texto: “o que significa o romance na
obra de Aluízio”?219
101
ruim. Entre os pontos altos estariam O homem, O Coruja, O cortiço, enquanto os baixos
seriam A condessa Vésper, Girândola de amores, Livro de uma sogra, entre outros.
Jean-Yves Mérian contesta essa visão, já pela inconsistência editorial: Candido se
utiliza da ordem de edição em livros, confundindo as datas de publicação dos
romances.221 Nosso trabalho segue a linha de Mérian: considerando o contexto de
publicação e circulação de Filomena Borges, sabemos que ele foi provavelmente
encomendado pela Gazeta de Noticias, e era folhetinesco por visar a agradar a um
grande público; pode-se dizer que o autor falhou nesse sentido, mas daí a dizer que
havia desajuste em sua personalidade já é um exagero.222 O mais adequado parece ser
defender o plano da obra, também a partir de Mérian: Aluísio Azevedo procura adequar
o público ao romance moderno, tornando seu nome conhecido enquanto se mantém e se
estabelece como escritor.
É importante destacar que a visão que se tem da obra de Aluísio Azevedo
em geral influencia as leituras e análises dos romances em particular. Nos prefácios,
encontramos duas visões distintas: Nogueira da Silva iguala, procura continuidade223;
Antonio Candido busca rupturas, vê instabilidade. Neste sentido, Filomena Borges seria
queda; no outro, não necessariamente – faria parte de um todo, de um plano, de um
projeto literário. Nossa pesquisa aponta para esta última visão, apesar de aproveitar
ideias da análise de Antonio Candido.
Prefácios geralmente enaltecem os romances dos quais tratam. Nesse
sentido, Candido passa a buscar os pontos positivos do romance. Como Artur Mota, ele
rebaixa o padrão para encontrar essa positividade: “Abordado com intuitos modestos,
revela-se leitura bastante divertida. Um divertimento vertiginoso, que se sustenta quase
sempre, ou pelo menos quase até o fim, graças ao ritmo vivaz da composição e à
221
MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo: Vida e obra (1857-1913). 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional: Garamond, 2013. p. 431.
222
É notável a comparação feita com Balzac e Dostoiévski: “Não me impressiona a alegação de que os
escrevia [os romances] por motivos não-literários; por necessidade financeira, por exemplo. Esta é
quando muito um favor, mas não se pode erigir uma explicação de mecanismo tão complexo; por
necessidade Balzac e Dostoievski foram levados a concretizar algumas das suas obras-primas.”
CANDIDO, Antonio. Introdução. In: AZEVEDO, Aluísio. Filomena Borges. 7ª ed. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1960. p. 1.
223
Depois dele, mais recentemente, Mérian, Marques Júnior e Fanini. MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit.
MARQUES JÚNIOR, Milton. Da ilha de São Luís aos refolhos de Botafogo. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 2000. FANINI, Angela Maria Rubel. Os romances-folhetins de Aluísio Azevedo:
Aventuras Periféricas. 2003. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Setor de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.
102
concentração em tôrno dos dois personagens centrais.”224 Um foco importante da
análise são os tipos diferentes das personagens centrais: João Borges e Filomena, o
primeiro num “movimento incessante” para agradar a mulher, a última vivendo uma
“fantasia delirante”. A “espinha do romance” seria a “curva das duas vidas”. O caráter
sonhador e fantasioso de Filomena recebe grande destaque, e ela é comparada à
Madame Bovary e a Dom Quixote. A última comparação já foi vista em crítica d’O
Mequetrefe,225 mas a primeira é nova. Ora, não seria Filomena Borges um resquício
romântico? Aproximar a protagonista a uma personagem feminina forte e realista é
significativo. No entanto, a protagonista de Aluísio Azevedo parece ter decepcionado
Candido, pois o personagem “poderia ter resultado bastante rico e profundo”.226 O
Coruja seria, em contraposição, exemplo de boa construção de personagens.
Outro aspecto muito relevante na análise de Candido é a defesa da falta de
coerência técnica que marcaria o romance. Não obstante a predominância cômica, o
autor oitocentista teria misturado diversos tipos de texto, enumerados na tabela a seguir:
224
CANDIDO, Antonio. op. cit. p. 2.
225
V. Capítulo 2.
226
Ibidem. p. 4.
103
Não que seja inviável um livro coerente a partir dessa variedade, que
se encontra noutros de alta qualidade e equivale à própria vida. [...]
Em Philomena Borges, porém, isto se tornou impossível pela ausência
de integração. Daí parecer, o tempo todo, hesitante entre a pantomima
e o drama, entre o sério e o verdadeiro cômico. A estas lacunas,
devemos somar o eventual provincianismo de concepção e de
expressão, que nos aproxima muitas vêzes da literatura barata, - com a
piada vulgar, a tinta facilmente empastada, o descuido no alinhavo de
episódios que se amontoam.227
227
Ibidem. p. 5.
228
V. Capítulo 1. Aluísio Azevedo. “Philomena Borges”. Gazeta de Noticias, 17-12-1883. p. 1-2. ed. 351.
229
Neste trabalho, ao contrário do texto de Candido, “barato” não tem sentido pejorativo. Cf. EL FAR,
Alessandra. op. cit.
230
CANDIDO, Antonio. op. cit. p. 5.
231
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 439.
232
V. Capítulo 2.
104
dois primeiros capítulos desta dissertação permitiram recuperá-los em parte, para que
possamos analisar o romance levando em conta esse descompasso.
Quanto à função da leitura do romance, Candido prossegue, defendendo que
ela deva ser o:
É possível que Candido não negasse de todo a tese de Mérian;235 afinal, ele
percebe que os interesses em Filomena podem ser vários e que os temas trabalhados ali
estão presentes nos outros romances, ainda que a escolha das palavras “domadas” ou
“polidas” dê um sentido que nos parece pejorativo. Também parece negativa, no texto
de Candido, a presença do “germe” naturalista no romance. É um sentido invertido: para
Mérian, presença do germe naturalista nos folhetins mostra continuidade, portanto, é
positiva; para Candido, a presença da personalidade de Aluísio nos naturalistas também
mostra continuidade, mas negativada: ele deve domá-las para que o romance seja bom.
A divergência entre Candido e Mérian a respeito das características da obra
de Aluísio Azevedo desdobra-se em questões específicas para Filomena Borges: o
brasileiro dá mais ênfase ao cômico, na composição multifacetada do romance e na sua
função de divertimento; o francês foca na crítica, no caráter híbrido
233
CANDIDO, Antonio. op. cit. p. 5-6.
234
Ibidem. p. 6.
235
Ou de Milton Marques Jr.
105
(naturalista/folhetinesco) e na sua função de crítica social e política. A posição de
Mérian fica clara na seguinte passagem:
236
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 429-30.
237
MARTINS apud MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 430.
238
Vimos que o “prefácio” de Aluísio à Filomena Borges não foi incluído nas edições em livro do
romance, constando apenas em O Touro Negro. AZEVEDO, Aluísio. O Touro Negro. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1961. Sobre o assunto, ver também Milton Marques Júnior e a exclusão ou atenuação
dessas discussões nas edições revisadas. MARQUES JÚNIOR, Milton. op. cit.
239
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 431.
240
Ibidem. p. 431.
106
Candido quanto ao quadro geral da obra de Azevedo, mas a crítica do último ao
romance é muito relevante e bastante adequada ao entendimento da obra, da maneira
como vamos expandir e articular.
Acreditamos que o adequado seja considerar o humor e o divertimento, e a
crítica e a política como dois lados da mesma moeda, compondo o mesmo romance, que
tentava agradar simultaneamente críticos modernos e leitores sedentos por folhetins
românticos.241 Só assim entenderemos o romance Filomena Borges levando em conta
seu contexto de publicação e circulação.
241
V. Capítulo 1, prefácio de Aluísio Azevedo na Gazeta.
242
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 439.
107
audiência leiga, não especialista. Essa diversão, no entanto, é crítica,
pois o próprio discurso do cômico é sempre um discurso indireto, ou
seja, ridiculariza um outro. O que está entronizado, oficializado,
convencionalizado é mostrado em suas dimensões históricas e isso o
dessacraliza como discurso natural, estável, sempre igual a si mesmo.
O riso irrompe de dentro do sério, mostrando-lhe as fraturas. Aluísio
Azevedo se utiliza do romantismo dos heróis e de suas situações,
exacerbando, inflacionando e esse exagero se apresenta como
caricatural, revelando-se crítico243
Neste caso, divertir não vem separado de criticar. Fanini concebe o cômico
como fator próprio de crítica em Filomena Borges. Esta tendência estava presente no
jornal em que o romance circulou inicialmente, a Gazeta de Noticias, e nas séries a que
esteve ligado, mais propriamente as “Balas de Estalo”. Ana Flávia Ramos destacou, em
sua dissertação de mestrado, como a série “Balas” articula humor e crítica política,
seguindo o que seria a linha editorial da Gazeta de Noticias.244 Este novo jornal,
moderno, procurava veicular suas críticas aliadas à comicidade para comunicar-se com
um público maior, mais amplo.
Se for possível concordar com as teses de Mérian e de Fanini, de que o
romance de Aluísio Azevedo é híbrido no sentido de mobilizar romantismo folhetinesco
e naturalismo na mesma narrativa, é possível afirmar que também poderia hibridizar
humor e crítica, coisa muito comum nos jornais da época, principalmente na Gazeta de
Noticias, jornal no qual foi publicado e para o qual foi escrito o romance Filomena
Borges.
3.2 O casamento
243
FANINI, Angela. op. Cit. p. 125.
244
RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e humor nos últimos anos da monarquia: a série “Balas de
estalo” (1883-1884). 2005. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.
245
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. RIBEIRO, Luís Filipe. O Sexo e o Poder no Império: “Philomena
Borges”. Luso-Brazilian Review, vol. 30, n. 1, “Changing Images of the Brazilian Woman: Studies of
108
Filomena, a personagem que empresta o nome ao título do romance, é filha
de D. Clementina e um conselheiro do Império. Seu pai, já falecido no começo do
romance, deixou a família em dificuldades financeiras por sua mania de grandeza. Daí
decorre o primeiro problema: casar Filomena. O casamento salvaria a família da ruína e
deixaria sossegada D. Clementina. Em busca de um noivo, elas devem frequentar os
salões e organizar recepções em sua casa, sempre ocultando as dificuldades por que
estavam passando. A empreitada é facilitada e possibilitada pela ajuda do padrinho de
Filomena, D. Pedro II. Note-se que, já no início do romance, o autor nos apresenta a
relação de proteção entre o imperador e a família de Filomena.
Dotada de um pragmatismo extremo, D. Clementina educa a filha sobre que
maridos procurar e como se portar com eles, rendendo trechos muito significativos,
como o seguinte:
Female Sexuality in Literature, Mass Media, and Criminal Trials, 1884-1992” (Summer, 1993), p. 7-20.
University of Wisconsin Press.
246
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 18/12/1883. p. 1. ed. 352.
109
tola que não pense sobre isso antes do casamento – não será uma
esposa, será uma escrava!247
247
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 18/12/1883. p. 1. ed. 352.
248
V. Capítulo 2, crítica da sessão “Bibliographia”.
249
V. Capítulo 2, críticas de A. de B. F..
250
Romance de Adolphe Belot publicado originalmente no folhetim do Le Figaro em 1869. Foi um
grande sucesso, com diversas edições em livro. No Brasil, será traduzido em 1878 sob o título Espoza e
virgem, enaltecendo o caráter escandaloso da narrativa. Em Portugal, Pinheiro Chagas traduziu o mesmo
romance, intitulando-o Amigas e peccadoras.
110
mais na occasião em que, tentando segurar Philomena pela cintura
para lhe dar o primeiro beijo, ouviu-lhe dizer com um repellão
energico: - Deixe-se d’isso, homem!
E ainda cresceu, muito mais, quando, depois que a madrinha a deixou
só no quarto, elle – o noivo – querendo recolher-se ahi, levou com a
porta no nariz e ouviu ranger um forrolho [sic] que a fechava por
dentro.
- Ora esta! resmungou o Borges, sem saber o que devia fazer.
E bateu, a principio devagarinho, depois mais forte, mais forte ainda.
Só resolveu abandonar o posto, quando Philomena lhe gritou da cama:
- Com effeito! O senhor não tenciona acabar com isso?! Vá dormir,
creatura, e deixe-se de imprudencias! Se espera que eu lhe abra a
porta, perde o seu tempo... Boa noite!
- Bonito! disse o pobre noivo, cruzando os braços.251
251
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 18/12/1883. p. 1. ed. 352.
252
BELOT, Adolphe. Mademoiselle Giraud ma femme. 53ª ed. Paris: E. Dentu, Éditeur, 1878. p. 53.
253
Romance de Paul de Kock publicado originalmente em 1826, com numerosas edições até a década de
1880. Apesar de não termos encontrado na imprensa muitas referências a este romance, o autor era
amplamente conhecido pelo público.
111
sonhos e fantasias. Em M. Dupont, a mocinha, Eugénie, ama e jura fidelidade ao jovem
Adolphe, embora seja casada com o velho Dupont, que repugna. Em Mlle. Giraud, a
mocinha, Paule, tem um relacionamento secreto com sua melhor amiga, Mme. de
Blangy, que a impede de se entregar ao marido.
As núpcias aparecem como um costume bárbaro na voz de Filomena, na voz
do narrador-personagem de Mlle. Giraud, conjeturando a opinião da esposa, e na voz do
narrador de M. Dupont:
254
Aluísio Azevedo, Gazeta de Noticias, 19/12/1883. p. 1. ed. 353.
255
BELOT, Adolphe. op. cit. p. 66-7.
112
aime celui auquel elle vient de s’engager; quelle doit donc être la
situation de celle qui se voit livrée à um homme qu’elle deteste!256
256
KOCK, Paul de. M. Dupont ou la jeune fille et sa bonne. Paris: Gustave Barba, Éditeur, 1842. p. 268-
9. Há, no mesmo romance, duas outras cenas significativas: a do casamento forçado (p. 241) e a fala de
Eugénie sobre o direito do marido (p. 276).
257
Há um capítulo justamente com este título: “XXI Qui fait voir qu’il ne faut pas épouser une fille
malgré elle”. KOCK, Paul de. op. cit. p. 272.
258
KOCK, Paul de. op. cit. p. 285-6.
113
A reclamação com a sogra não funciona, já que ela quer que sua filha
comande a própria casa, seguindo seus passos e a educação que recebeu.259 Não obtendo
sucesso junto à família da esposa, Dupont recorre às autoridades, envolvendo-se em
mais uma cena cômica. Depois de ter de esperar pelas reclamações dos outros, o senhor
tenta formular sua queixa ao comissário. A conversa se conduz por mal-entendidos, que
levam o comissário a citar o código civil. Dupont se interessa por este, principalmente
na parte que diz que as mulheres devem obediência aos maridos.
Por mais que a queixa de Dupont não tenha efeito prático no romance e não
solucione seu problema, ela é possível. Não é o que acontece em Mlle. Giraud, em que
M. de Blangy, marido da amiga e amante de Paule, Mme. de Blangy, afirma não poder
recorrer às autoridades:
259
O que aproxima muito D. Clementina de Madame Moutonnet, a mãe de Eugénie.
260
BELOT, Adolphe. op. cit. p. 202.
261
Ibidem. p. 215.
114
ajuda do marido desta, que também a leva para longe. A viagem dos casais não é bem
sucedida, pois termina com a fuga das amantes, que se reencontram e vão morar juntas
num lugar isolado. Desse modo, a resistência de Filomena Borges é a mais destacada,
porque altera o marido, apesar de não poder romper com o casamento forçado ou com o
direito do marido sobre ela, imposições externas maiores e mais fortes que não têm
possibilidade de serem rompidas no romance.
Ribeiro foi o crítico que mais destacou o tema do casamento em Filomena
Borges, que ele apresenta também como relação de poder. Já no seu título fica clara a
discussão que ele faz: o sexo como poder. Ele compara Filomena Borges a Senhora,
defendendo que haveria inversão de papéis em ambos, ponderadas as diferenças:
262
RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit. p. 17.
115
Discordamos que não haja amor verdadeiro entre Filomena e Borges, já que ele vai se
intensificando no miolo do romance, resultando na entrega completa da mulher ao
marido no capítulo XII, “Amor de Philomena”. Aqui a comparação com Mlle. Giraud
também auxilia o entendimento. Neste romance, Paule não está no comando. Ela acata
as decisões do marido, como visto acima, mas nunca se entrega: sua resistência é
complexa. Filomena, por sua vez, tem uma resistência mais ativa, agressiva,
transformadora.
Outros romances que foram comparados a Filomena são Madame Bovary e
O primo Basílio.263 É realmente muito interessante a comparação entre eles, pelas
proximidades e distâncias. As três mocinhas têm educação parecida, são sonhadoras,
fantasiosas:
263
Madame Bovary já apareceu. O primo Basílio é inédito. É Ribeiro que afirma que eles são raízes do
problema centra de Filomena Borges. Ibidem.
264
Ibidem. p. 10.
265
O grande sucesso que o romance de Eça de Queirós obteve no Brasil devia estar ainda fresco na
memória dos leitores de Filomena Borges. Também existe uma relação, passível de sugestão, entre o
romance português, o romance brasileiro e Mlle. Giraud: todos causaram escândalo. Há de se notar,
entretanto, que o escândalo dentro de Filomena Borges é mais leve. Talvez seja esta uma das razões do
pouco sucesso do romance; ou o fato do escândalo envolver a figura do monarca, o que, conforme visto
no capítulo 2, gerou bastante discórdia.
116
para o romance: o que permitiria à personagem tal atuação? A possibilidade já está
concebida em M. Dupont, em que a mãe diz que fez o marido a seu jeito; mas não foi
praticada por aquela mocinha, que já tinha um amor anterior e não tinha interesse em
fazer funcionar seu casamento. Filomena é quem colocará em curso tal plano:
266
Ibidem. p. 15.
267
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 435.
268
“- Tu enlouqueceste, homem de Deus?! Não vês que vais fazer uma reverendíssima asneira?! Não vês
que aquillo não é mulher que te convenha?! Não desconfias, pedaço d’asno, que aquella sirigaita e mais a
raposa da mãi estão a farejar-te os cobres?!... Não comprehendes que ellas te querem porque tens para
mais de quinhentos contos de réis?! Ora vai por um caustico n’essa nunca! [sic]”. Aluísio Azevedo,
“Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 18/12/1883. p. 1. ed. 352.
269
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 29/12/1883. p. 1. ed. 363.
117
[Barroso] – Sou, graças a Deus! sou! respondeu o Barroso estirando-
se na cadeira. Lá a minha Eva não é nenhuma senhora que metta vista,
lá isso não é!... Ao contrario, coitada! não serve para se haver com
etiquetas e ceremonias; porém, no que se diz – arranjo de casa, doçura
de genio, tratamento do filho e mimos cá com o nhô-nhô... n’isso não
quero que haja segunda! Meiguice alli! Ella é incapaz de uma rezinga!
Sempre a mesma! Sempre! Além d’isso muito asseiada, muito amiga
de arrumar e activa, activa que faz gosto! Ainda ha pouco tempo
ficámos tres dias sem criada. Pois, filho! acredita que a Sabina
arregaçou as mangas, metteu-se na cozinha, agarrou-se a uma
vassoura, e, tantas voltas deu, tanto virou, que a criada não fez falta!
Foi preciso que eu ralhasse para a ver socegar um instante! Não! como
dona de casa não quero que haja outra!... mas também pódes ver de
que maneira a trato!...270
Com Barroso, temos a perspectiva do marido que põe a mulher a seu jeito:
“- Mas por que não a pões a teu geito, filho?” pergunta Barroso a Borges. “- Pol-a a meu
geito!... ella foi quem me poz ao seu. Foi ella que me torceu a seu bel prazer!”, responde
Borges, marido vencido e torcido pelo amor que tinha pela mulher.271 O mesmo amor
não pode ser visto na relação de Barroso, que elogia na esposa justamente a condição de
mulher-escrava da qual tentaram fugir Filomena e Eugénie.
Mas o casamento de Barroso não foge à tensão. O diálogo entre os amigos
ocorre antes do baile de fantasias que os Borges oferecem quando do primeiro retorno
ao Brasil. Barroso aceita o convite para o baile, onde ele encontra um João Borges
totalmente diferente: o amigo que procurara seu ombro para chorar e questionar seu
casamento, perto da mulher, no ambiente de sua casa e de seus amores, era um homem
feliz. Quando Barroso volta para sua casa, extremamente incomodado com a postura de
Borges (“A mulher faz d’elle o que quer.”272), ele discute com a mulher. O assunto, a
princípio o casamento dos Borges, se desdobra em uma discussão sobre as relações de
poder entre marido e mulher. A cena se precipita com o desmascaramento de Barroso e
de seu casamento:
270
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 30/12/1883. p. 5. ed. 364.
271
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 29/12/1883. p. 1. ed. 363.
272
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 31/12/1883. p. 1. ed. 365.
118
visita, ou quando preciso de um vestidinho mais assim ou de um
chapeu mais assado, você nunca está pela cousa!
- Porque não sou doudo! respondeu o Barroso com máu modo. –
Estaria bem servido se te fosse a fazer todas as vontades! – a estas
horas não teria onde cahir morto!
[...]
Empurrando-a: - Vai-te, peste! Vocês são todas a mesma sucia! E
ainda ha quem dê os homens como culpados das patifarias das
mulheres!...273
- E são! respondeu Sabina. E são! E fazem ellas muito bem! Era do
que você precisava para não ser bruto!
[...]
- Não mates a criança! rugiu o Barroso, puxando a mulher pelo braço
e fazendo-a cahir por terra. Ella não tem culpa que a accordasses tu
com os teus berros!
- Dou! posso dar! retorquiu Sabina, esganiçando-se. É meu filho! não
é seu!
- Não é meu, cachorra?!
[...]
Algumas horas depois dormiam profundamente nos braços um do
outro.
- Vivemos como Deus com os anjos!... balbuciava elle sonhando a
conversa que tivera com o Borges no Passeio Publico. – Meiguice
alli!... Mas tambem podes vêr que maneira a trato!...
Ah! hypocritas! hypocritas!274
273
Justamente o que fez Aluísio Azevedo na carta à Gazeta sobre Filomena Borges. V. Capítulo 1.
274
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 31/12/1883. p. 1. ed. 365.
119
trancado de sua mulher. Cecília aceita ajudá-lo quando o patrão promete arranjar-lhe o
casamento com Roberto. Os planos vão mal, os criados são demitidos e o patrão deixa
Cecília desamparada.275 A diferença de classe fica evidente; para classes diferentes,
possibilidades de casamento diferentes. Também há certo moralismo, que se vai
revelando aos poucos. Cecília se entregou ao parceiro antes do casamento, ficando
entregue às vontades dele. O sexo é mesmo instrumento de poder neste romance:
275
Borges, que até então não apresentava traços viciosos, é bastante impiedoso nas demissões.
120
- Mas vamos lá. Conta o que houve entre vocês, tu e o basbaque do
patrão!...276
276
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 23/12/1883. p. 3. ed. 357.
277
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 441.
278
Ribeiro identifica, nos diálogos entre D. Clementina e Filomena, “a possibilidade de modificação de
uma pessoa pelo trabalho, consciente e sistemático, de outra”. RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit. p. 13.
121
personagens. Ambrosina (Memórias de um condenado), Olímpia
(Mistérios da Tijuca) e Filomena Borges foram educadas da mesma
forma, leram os mesmos escritores românticos, sonharam com as
mesmas aventuras. Aluísio insiste longamente sobre as consequências
dessa educação, que não prepara as mulheres para assumirem os
papéis de esposas e mães que ele via para seus personagens
femininos.279
122
polêmicos no começo dos anos 1880. Os mais progressistas queriam
obter do governo a instauração de um sistema de educação inspirado
pelo que se fazia na França. A inspiração vinha de Jules Ferry e
Ferdinand Buisson, os apóstolos da educação laica, obrigatória e
gratuita. Os primeiros decretos nesse sentido foram assinados pelo
imperador em 1879, mas o grande debate só começou em 1882. Os
pareceres do jovem deputado da Bahia, Rui Barbosa, provocaram
debates apaixonados no Parlamento. Para ele como para o imperador,
a questão do ensino era um problema político tão primordial como a
abolição da escravidão. Rui Barbosa considerava que “a ignorância
popular, mãe da servilidade e da miséria”, era a responsável principal
das desgraças do país. Ele chamava os parlamentares a assumir a
responsabilidade de instaurar no país um “grande serviço de defesa
nacional contra a ignorância.”282
Mas será ella porventura a maior culpada de tudo isso, será ella a
unica responsavel pelo mal que fez, e pelas fortunas que destruiu?!
Não caberá alguma parte d’essa culpa à nossa sociedade, aos nossos
costumes, à nossa educação, e finalmente ao triste meio onde cresceu
e palpitou essa desventurada e formosa creatura?!
As mulheres são fatalmente aquillo que os homens decretam que ellas
sejam.284
Philomena Borges é um produto legitimo dos vicios e da covardia de
seus pais.
Se não a educassem no falso luxo; se não lhe ensinassem todas as
miserias de uma pobreza sem coragem e sem dignidade; se não a
vendessem ao primeiro noivo rico e brutal que a desejou; Philomena
Borges seria talvez n’este instante o melhor modelo das mãis de
família.285
282
Ibidem. p. 458.
283
Sobre modernização e moralização em Aluísio Azevedo, ver Mérian. Ibidem. p. 460-2.
284
Esta opinião será debatida pelas personagens do romance, Barroso e Sabina, durante sua violenta
discussão: “- Vai-te, peste! Vocês são todas a mesma sucia! E ainda ha quem dê os homens como
culpados das patifarias das mulheres!... - E são! respondeu Sabina. E são! E fazem ellas muito bem! Era
do que você precisava para não ser bruto!”. Gazeta de Noticias, 31/12/1883. p. 1. ed. 365. A opinião do
autor e da personagem feminina contrasta de maneira interessante com a seguinte passagem de Mlle.
Giraud, na voz de Paule: “Le plus souvent, j'en suis persuadée, ce ne sont pas les hommes qui perdent les
femmes; ce sont les femmes qui se perdent entre elles.” BELOT, Adolphe. op. cit. p. 242.
285
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/10/1883. p. 1. ed. 284.
123
Mãe de família que ela nunca chegará a ser, ao contrário de Sabina. O que a
impede? Sua educação. É esta educação que faz crescer seu temperamento sonhador e
excêntrico, mas também é ela que permite que Filomena, de novo ao contrário de
Sabina, não seja criada de seu marido, uma mulher-escrava.
124
como problema o casamento forçado de Eugénie com Dupont; o problema é resolvido
com a morte de Dupont e o casamento entre Eugénie e Adolphe. Mlle. Giraud tem
como problema o casamento “não concretizado” de Adrien e Paule; tenta-se resolvê-lo
com a “correção” da homossexualidade. Ao final, tem-se o arrependimento da mocinha
e uma tragédia. Em Filomena Borges, este problema se concentra na primeira parte,
nestes cinco primeiros capítulos, para, em seguida, ser substituído por outros, que
veremos a seguir.
O fio narrativo, portanto, é a oposição entre os temperamentos antagônicos
postos em contato através de um casamento arranjado. Para Fanini, uma das linhas
narrativas do romance seria a busca por celebridade;286 defenderemos e apropriaremos,
alternativamente, a busca por sensações.
286
FANINI, Angela. op. cit. p. 134.
125
Eles devem ir a Portugal para receber o título que Borges encomendara, a pedido da
esposa, e estendem o passeio por outras partes da Europa. Esta primeira viagem é a
solução para o primeiro problema intransponível do romance: as vias legais e as vias
violentas não servirão para Borges, então resta a ele jogar conforme as regras da esposa.
A viagem os leva para sítios marcantes dos ideais de Filomena, a Itália de
Nápoles, Veneza e Gênova. Até chegarem a este objetivo, eles passam pela França,
Suíça, Mônaco, Nice, em uma narrativa muito rápida. Ao chegar a Nápoles, a esposa
sonhadora descobre que nada era como em sua imaginação, uma quebra total de
expectativa:
126
Que lhe mostrassem as belas scenas napolitanas, que ella vira em
pequena nas lytographias coloridas! Que lhe apontassem os bem
conhecidos e muito pittorescos pescadores napolitanos, com as suas
calezones, a perna de fóra, a sua facha e o seu gorro vermelho, o seu
amoleto ao pescoço.287
Com o apoio do marido, este estado deixará de ser sombrio e passará a ser o
motor do restante do romance. Somos levados, então, a partir dessa consciência, para
dentro de um folhetim rocambolesco. O autor, ao incutir na personagem essa percepção,
arma a sequência do romance e prepara a paródia e a piada, presentes nos próximos
acontecimentos da viagem. O primeiro deles é um clichê dos folhetins e dos romances
de sensação, o rapto. O próprio recurso de intitular um capítulo com esta referência é
um chamariz importante (o capítulo VII se chama “O rapto”). No entanto, um leitor
habituado aos raptos de mocinhas mais comuns poderia sentir um estranhamento ao ler
a seguinte passagem:
287
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 25/12/1883. p. 1. ed. 359.
288
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 25/12/1883. p. 1. ed. 359.
127
ameaçadores e trágicos; não seria capaz de supor que se tratava de
raptar uma donzella, mais que ninguém senhora de seu nariz.
Philomena, ébria de prazer com a idéa de ser furtada, palpitante de
comoção, fez a trouxa em segredo e retirou-se ao quarto, pretextando
incommodos para dissimular os seus projectos de fuga.
À meia noite chegava o terrivel grupo dos conspiradores,
acompanhando o coche, que devia conduzir o precioso fructo
d’aquella empresa delicadissima. Borges separou-se de seus
companheiros, mudo e sombrio. E, com o passo firme, a mão armada,
penetrou resolutamente no jardim da casa em que estava a mulher.
Não foi difficil, porque felizmente, o portão se achava apenas
encostado.
Ao chegar debaixo de certa janella, tirou da algibeira um pequeno
assobio de metal e apitou devagarinho. A janella abriu-se logo, e, ao
doce clarão da lua, apareceu o vulto romantico de Philomena, toda de
branco, os cabelos soltos, os braços nús.289
O segmento do rapto não será tão fácil, permitindo à cena certa emoção.
Apesar da sensação, destaca-se o caráter cômico e irônico. A forma como é conduzida a
descrição faz piada com a narrativa folhetinesca e sensacional. Do mesmo modo, o
autor faz pilhéria da repercussão dos acontecimentos nos jornais após a primeira
tentativa frustrada de rapto por Borges:
289
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 26/12/1883. p. 1. ed. 360.
128
padre, hidalgo portuguez, cuyo nombre nos abstenemos de publicar
por motivos faciles de compreender.
La bella nina, que casi fue victima de tanta atrocidad, hallase, a sua
ruego, depositada em casa del oficial S. D. José Muñoz, hasta que el
competente juiz decida de sua destino.
Debido al delicado estado de natural sobre-excitacion nerviosa, la
señorita aludida aun no ho podido explicar los pormenores del crimen
del cual fue objeto.
El malvado desapareció, pero la policia emplea todos los médios para
alcarzarlo y cremos que sus esfuersos no seran defraudados.
A medida que nos lleguem nuevos pormenores los transmitiremos a
nuestros lectores.”
Outros jornaes iam mais longe. Um chegou a fazer engenhosas
considerações sobre o facto estranho de se achar “desacompanhada
n’um hotel já por si suspeito (o dono do hotel era federalista e o jornal
apoiava o governo) uma senhora tão distincta, tão bem tratada e com
todas as apparencias de donzella! Não estaria ahi a ponta de algum
importante enigma politico?... Em épocas de revolução é preciso
desconfiar de tudo e de todos!...”
Estas noticias excitaram a curiosidade geral. Não faltou quem deixasse
de enxergar no mysterioso homem da escada um malhechor ordinario,
como diziam algumas folhas, e attribruir-lhe fins de grande alcance
politico.290
O botocudo intrigava muita gente: - Seria crivel que uma mulher, tão
formosa e tão lucida, tivesse por marido aquella besta do Alto
Amazonas?!... O monstro seria de facto seu amante, ou ella o
conservaria como um simples reclame?!...
290
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 26/12/1883. p. 1. ed. 360.
129
E os commentarios reproduziam-se entre os frequentadores do Cirque
d’hiver à proporção que Philomena ia se tornando conhecida e sendo
cada vez mais desejada e menos condescendente.
[...]
Entretanto o nome da original e formosa brazileira derramava-se por
Pariz, invadindo as redacções das folhas, os salões, os atteliers, os
boulevards, os cafés, as corridas, os foyers de todos os theatros, as
mansardas das tristes costureiras e o quinto andar dos magros
estudantes.
Attribuiram-lhe anecdotas, inventaram-lhe legendas, fizeram-lhe
canções e triolets, publicaram-lhe a biographia em pequenas revistas
theatraes.
E o mundo inteiro a viu, a admirou, em caricaturas, em fotografias, em
chrommos, em caixinhas de phosphoros, em bustos de gesso, em
nervosos grevins de terre cuite. E por toda a parte appareceram
chapéus, fazendas, penteados à PHILOMENA BORGES. Seu nome
serviu de titulo a casas de negocio; suas toillettes serviram de modelo;
suas phrases foram repetidas, publicadas, decoradas, traduzidas em
todas as linguas.
Quando ella terminou a longa excursão que fez pelo norte da Europa,
possuia em dinheiro e em joias mais do que o necessario para viver
tranquillamente o resto de sua vida.291
291
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 06/01/1884. p. 1. ed. 6.
130
Philomena, cujos bailes, de tão luxuosas e originaes, ainda se
conservavam na memoria de toda a gente!
E as discussões reproduziam-se, cada qual mais disparatada.292
292
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 07/01/1884. p. 1. ed. 7.
293
AZEVEDO, Aluísio. Aluísio Azevedo: ficção completa em dois volumes. (Org. Orna Messer Levin).
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. v. 1. p. 1054. Pelo fato das edições n. 361 e 362 da Gazeta de
Noticias não estarem disponíveis nem na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, nem no Arquivo
Edgard Leuenroth da Unicamp, citamos as passagens correspondentes da obra completa.
294
Ibidem. p. 1059.
131
Se as passagens e os capítulos anteriores estabeleciam um diálogo com a
imprensa, muito evidente para os leitores da época, a viagem do casal pelo Oriente
estabelecerá um novo diálogo com as viagens do imperador. Mesmo se não houvesse
referência expressa ao padrinho, os leitores já teriam suficientes elementos para pensar
numa relação; com a declaração aberta da personagem, fica clara a intenção do autor.
O “almoço no tesouro de Atréus” havia acontecido de fato. Ele foi noticiado
pela Gazeta de Notícias de 6 de fevereiro de 1877: “Depois foi visitar o tesouro d’Atreu
onde foi servido o jantar. Esta refeição no meio d’aquella sombra mysteriosa, em um
edificio subterraneo que tem proximamente 40 seculos de existencia interessou
immenso o imperador.”295
O narrador aproveita a passagem para chamar atenção para a futura aparição
de D. Pedro II no romance. Como não costuma fazer esse tipo de intervenção, o trecho
fica ainda mais destacado. Essas referências a D. Pedro II seriam muito evidentes para
os leitores da época.
As viagens do imperador eram um tema muito em voga nas décadas de 1870
e 1880, período em que ele realizou três grandes viagens para o exterior. A primeira, em
1871, num contexto complicado de intensificação da crítica à escravidão e à monarquia,
levou D. Pedro II à Europa e ao Oriente Médio, motivando piadas dos portugueses Eça
de Queirós e Rafael Bordalo Pinheiro. Em 1876, sob pretexto de doença da imperatriz,
D. Pedro II seguiu para sua segunda viagem, agora incluindo também destinos
americanos (Estados Unidos, Canadá). A primeira viagem durou dez meses; a segunda,
dezoito. Apesar do tempo prolongado das viagens e das sucessivas piadas que elas
inspiraram, o monarca manteve sua postura discreta e burguesa, de negar-se por vezes a
295
Gazeta de Noticias, 06/02/1877. p. 1. ed. 36. As fontes eram os jornais franceses, e os acontecimentos
teriam se dado no dia 25 de novembro. Ainda na mesma notícia, reportava-se: “Em seguida foi vêr o
museu de antiguidades pre-historicas, formado pelos resultados das escavações do doutor e admirou
principalmente uma enorme massa de representações de Juno com fórmas diversas. Foi depois a Argus e
a Napolis, voltou outra vez por Mycenas para tornar a vêr o museu e as escavações, e seguiu por Corintho
para Athenas.” A forma de descrever a viagem é muito semelhante à narrativa de Aluísio Azevedo.
Também é significativa a passagem do imperador por Nápoles no mesmo trecho, traçando outra relação
com Filomena Borges. O imperador estaria visitando as escavações do Dr. Schliemann. O interesse
arqueológico da heroína azevediana, despertado justamente neste período de sua viagem, aproxima a
afilhada ficcional do padrinho real.
132
um tratamento diferenciado, o que, segundo Lilia Schwarcz, auxiliava na construção da
sua imagem pública.296
296
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
297
MÉRIAN, Jean-Yves. p. 433-4.
133
Aluísio Azevedo, O mequetrefe, 06/07/1877. p. 2. ed. 105.
[1] O Barão é un petit bon homme, chic, terno, sabe calçar um par de
luvas e envergar uma casaca
[2] O Barão começou de sentir o fastio dos homens que não têm o que
fazer, uns tedios ideais que só se curão com uma boa viagem.
[3] A imaginação do senhor Barão era já um vulcão: Noutes
hoffmannicas, dias à Theophile Gautier; só via fantasmas, diabos e
mulheres. Estava quasi doudo.
[4] Em delirio o nosso heroe lembrava certo heroe de certa lenda
hespanhola.
[5] Resolveu viajar para se distrahir, e saudoso despede-se da pátria,
abraça os amigos e chora!... Coitado!
134
Com Hoffmann e Gautier298 na cabeça e com delírios de Dom Quixote, esta
representação do imperador se assemelha muito à personagem Filomena Borges. Ao
contrário da heroína, no entanto, o monarca deve pensar no que dizer em sua viagem:
135
[20] Porem um pouco infeliz!.. Do primeiro tiro morreu o cão, teve o
Barão medo de morrer do segundo e...
[21] Deixou-se de caçadas; pençou na ida para a bella França
[22] E foi. Atravessou o Pas de Callais nas costas de um porco alado.
Abençoado porco!
[23] Que o levou para junto das diaphanas dançarinas. Ah! parisienses
que poserão em dança os miolos do Barão. Está elle abismado,
fascinado, está mesmo pelo beiço.
[24] Já não é o mesmo Barão! Nada de barbas a ingleza! Venha o
bigodinho pintado e chic
[25] com que se possa entrar nos bailes carnavalescos e matar de
amores meio Pariz
136
[34] Onde tomarao-no pelo esperado messias. Pobre Barão! viu-se em
um cortado! A iducação da lua não é das melhores e o Barão soffreu
tudo
[35] Até obrigarão-no a uzar os costumes do paiz, e rasparam-lhe as
barbas criadas na Turquia, e lavaram-lhe a cara e vestiram-no de uma
especie de pierrot
[36] Para consolação encontrou, passeiando pela lua um seu amigo
velho
[37] O Barão engordou tanto na lua quem nem se mover podia.
Engordou até nos miolos!
[38] O seu bom amigo, condoendo-se daquelle estado de gordura,
soprou-o dentro de uma bolha de sabão.
[39] E o Barão no elher [ether?] criou raios e revolucionou o mundo
planelario [planetário]
[40] Finalmente o gordo cahiu na rua do Ouvidor, com grande
pandega dos janotas. Viva o gordo pellado!!
[41] Criada nova barba, vestida nova casaca, o que se lucrou com a
viagem do Barão? Algumas arrolas de gordura de mª e uns contos de
rª de menos
Aluísio Azevedo assinou a caricatura com o nome completo, o que não era
comum; seus outros desenhos eram assinados somente com o primeiro nome, enquanto
os colegas caricaturistas geralmente usavam uma rubrica. É um ponto importante,
porque a publicação de Filomena Borges gerou, como vimos, reações exaltadas e até
uma possível censura por parte do próprio imperador. As caricaturas, por sua vez,
chegam a ser mais violentas e diretas, mas não suscitaram reações tão fortes. Será que
elas suscitavam reações, mas ainda não conseguimos encontra-las? Será que a tiragem e
circulação menor das folhas ilustradas resultavam num escândalo de menor alcance do
que o de algo publicado na grande Gazeta de Noticias? Será que a ausência da
referencia nominal a D. Pedro II isentaria a caricatura de culpa?
De todo modo, esta caricatura de Azevedo demonstra que as viagens em
Filomena Borges não são, para o autor, recurso sem propósito. Ele articula, deste modo,
a história de Filomena à crítica ao Império que ele vem formulando no romance. Ela
começa com uma das bases imperiais, o casamento patriarcal, e segue com viagens que
ao mesmo passo parodiam romances folhetinescos e sensacionais, muito em voga com o
público, e fazem referência crítica à figura do imperador. Apesar da relação entre
Filomena e seu padrinho, sugerida pela comparação entre a caricatura acima e o
romance, não defenderemos aqui a alegoria, porque não há formalização suficiente para
tanto. Por outro lado, a relação com as viagens do imperador politiza as aventuras de
Filomena.
137
Se pudermos confiar nas anedotas que contam que Aluísio Azevedo
desenhava seus romances antes de escrevê-los, seria tentador afirmar que ele desenhou a
segunda parte de Filomena Borges nesta caricatura, mas há outros elementos que não
podem ser desconsiderados na análise deste trecho do romance. Antes de concluir a
discussão da caricatura, é importante destacar que as descrições do imperador dentro do
romance se aproximarão de caricaturas:
299
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 09/01/1884. p. 1. ed. 9.
300
SCHWARCZ, Lilia. op. cit. p. 424.
301
Fanini defende a infelicidade e o desgosto do casal pelo Brasil, visão que procuro negar. FANINI,
Angela. op. cit. A rejeição de Borges não se seguirá, revelando certa inconsistência no romance.
138
para se entregar ao marido. O baile de máscaras que serviria para comemorar a obtenção
do título acaba servindo para mostrar aos leitores a ruína do casal, condição que
impulsionará uma nova virada na narrativa. Entre a volta ao Brasil e a revelação da
ruína, Borges mostra outras resistências à sua transformação nos desabafos com
Barroso. Por outro lado, é justamente no capítulo em que a ruína é revelada que
Filomena mostra-se finalmente entregue ao marido.
Este trecho do romance se assemelha muito às narrativas de sensação,
estudadas por Alessandra El Far em Páginas de sensação. Gênero de maior visibilidade
no universo de livros destinados ao “povo”, essas narrativas sensacionais eram
constituídas por saídas do cotidiano, emoções imprevisíveis; o caráter sensacional,
quando não destacado no próprio título da obra, era evidenciado pelos editores.302 A
pesquisadora inclui o romance que ora discutimos nessa categoria:
302
EL FAR, Alessandra. op. cit. p. 113-114.
303
Ibidem. p. 116. A fonte que a autora utiliza para afirmar que o romance era anunciado como de
“sensação” é o Jornal do Commercio de 15/10/1891 (nota 9).
304
Ibidem. p. 122.
139
É evidente que, para Azevedo, seria interessante conquistar a repercussão e
esse público amplo, mas talvez ele não tenha tido habilidade para cativar como gostaria.
Além das emoções imprevisíveis e do esforço editorial, sem deixar de
considerar o interesse pela polêmica, outros pontos aproximam Filomena Borges da
narrativa de sensação. O casamento é tematizado da mesma maneira, propondo uma
moral que procura fortalecer os laços entre marido e esposa para evitar o adultério, os
filhos bastardos, a prostituição, as “anomalias sexuais”, evitando assim o
enfraquecimento da estrutura familiar. A defesa do maior respeito ao indivíduo e suas
escolhas, permitindo o casamento por qualidades individuais, não por caprichos ou
ambições, é traço comum entre os romances de sensação, Filomena Borges, M. Dupont,
Mlle. Giraud. O rapto, as privações, as misérias, a existência infeliz, o ritmo incessante
da narrativa,305 todos estão presentes no romance de Aluísio Azevedo.
No entanto, o romance não segue a sequência comum aos romances de
sensação: ordem, desordem, restabelecimento (moral). Não há, em nenhum momento,
uma quebra da “ordem”; há diversas “fugas” em busca de sensações novas. A excursão
pela Europa e pelo Oriente é um fato novo e extraordinário, longe da rotina... Fosse
como as narrativas de sensação, Filomena Borges teria um restabelecimento moral da
ordem, que nunca chega nem a estar exatamente estabelecida, sem que, por outro lado,
haja inversão ou carnavalização. A esposa e o marido buscam sensações, aventuras, e é
nesse sentido que aproximamos o romance azevediano daquele tipo de narrativa.306
305
Ibidem. p. 178.
306
Ainda dentro da discussão de Filomena Borges como narrativa quixotesca de aventuras e sensações,
recomendamos a análise de Yasmin Nadaf em Rodapé das miscelâneas. A autora fez uma comparação
entre o romance de Aluísio Azevedo e Tartarin de Tarascon, de Alphonse Daudet, publicadas em
sequência no folhetim do periódico mato-grossense O Republicano. Cf. NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé
das miscelâneas. O folhetim nos jornais do Mato Grosso (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7Letras,
2002. p. 162-164.
140
sustento da família. (capítulo XIV, “Miséria”) Borges revela, aqui, sua opinião sobre o
dinheiro:
Fanini defende que Borges seria o porta-voz do autor.308 Apesar de, nesta
passagem, João Borges cumprir esta função, ela já havia sido cumprida por Filomena no
diálogo do costume bárbaro, por exemplo.309 De acordo com Mérian, o dinheiro é um
problema comum nos folhetins de Aluísio Azevedo, em que as personagens vivem um
mundo maniqueísta e imoral, entre a fortuna e os infortúnios da riqueza e da ruína. A
fala de Borges desmascara esse mundo para o leitor.
O novo trecho do romance traz de volta o Urso, cão São Bernardo de
Borges, que representa um respiro de alívio e esperança. O casal e seu cão entram para o
307
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 03/01/1884. p. 1. ed. 3.
308
FANINI, Angela. op. cit. p. 137.
309
A voz do autor ficará mais evidente na última parte do romance, utilizando-se do narrador, de João e
de Filomena para expressar seus pontos de vista.
141
circo, onde obtêm uma escalada de sucessos até conquistar a própria companhia e
excursionar pelo Brasil, pela América Latina e depois pela Europa. Mais uma vez
chamamos atenção aos títulos dos capítulos: “Coisas extraordinárias”, em seguida
“Segredos de bastidor”, deixando clara a noção de sensação e as referências ao teatro.
É o teatro, portanto, que leva o casal à sua segunda viagem pela Europa. Ele
já havia aparecido no início do romance, como um dos primeiros caprichos de
Filomena. Esta gostaria de montar um teatrinho na própria casa, o que arma o pretexto
para a comicidade do “triângulo amoroso” Barradinhas, ator metido a galã, Filomena e
João Borges. A esposa atuaria como par romântico do ator, que tentava se aproveitar da
situação para obter alguma coisa; João, que suspeitava desde o princípio, segue o
sedutor e surpreende-o no momento em que ele se aproveitaria de estar só com
Filomena.
Mais à frente, quando o teatro volta novamente ao romance, permite
situações mais diversas. Para Fanini, o trecho da excursão teatral se relaciona com uma
discussão azevediana sobre centro e periferia, nacional e estrangeiro.310 Parece, por
outro lado, que o que ele faz é uma provocação autoirônica sobre o teatro em geral. O
romancista participava muito ativamente da vida teatral carioca, a princípio elaborando
os cenários, depois escrevendo e adaptando as próprias peças. Suas preocupações
teatrais eram semelhantes às suas preocupações romanescas. Azevedo reclamava do
público nacional, que, segundo ele, preferiria os gêneros ligeiros aos moralizantes:
Não é sem sentido que o casal Borges alcance estrondoso sucesso através de
gêneros baixos e populares. Eles não são artistas trágicos ou dramáticos; não são nem
310
FANINI, Angela. op. cit. p. 130-133.
311
Aluísio Azevedo, “Litteratura – Nosso theatro”, Gazeta da Tarde, 08/11/1882. p. 2. ed. 256.
142
artistas propriamente cômicos. Sua companhia é circense, e apresenta-se primeiro numa
“barraca de saltimbancos”, ainda no Brasil; depois, na França, em circos e vaudevilles.
Sua cena não é nada elaborada. Borges, figura hercúlea, luta com o Urso disfarçado de
urso. Filomena desfila seus dotes naturais em danças sensuais. Novamente, o corpo da
personagem feminina fica em evidência, causando sensação e escândalo por onde passa.
É uma tirada de Azevedo: para agradar a esse público, música, dança, violência,
sensualidade, aspectos que, contraditoriamente ou não, ele sempre dominou em sua arte,
como adaptador de opereta, escritor de comédias, romancista etc.
143
- Ah! balbuciou Philomena, tornando-se mais cortez, porque havia já
suspeitado quem vinha a ser aquella incognita visita. – É elle, com
certeza... pensou de si para si.
Mas n’esse momento o Borges acabava de entrar na pequena sala e,
no seu papel de botocudo, foi assentar-se a um canto, sem mais
ceremonias.
- Tomo a liberdade de apresentar-lhe meu marido, disse Philomena,
mostrando-o ao duque.
O selvagem monologou alguns sons gutturaes e sem sentido e encarou
a visita, franzindo as sobrancelhas.
- Ainda não conseguiu se familiarisar com as línguas estranhas,
explicou Philomena.
E, percebendo no duque um gesto de contrariedade:
- Pode conversar à vontade em portuguez; Burucululu não entenderá
uma palavra do que ouvir. Só eu posso me fazer comprehender por
elle, graças ao pouco que sei do Tupy.
- Mas como foi a senhora, tão bonita e tão delicada, descobrir esse
monstro para seu marido?... quiz saber o fidalgo.
- Devo-lhe a vida!... respondeu Philomena – Se não fosse esse bravo
indigena, teria sido devorada pelos seus compatriotas n’uma
lamentavel excursão que fiz ao Alto Amazonas.
- Ah! E sabe o que o levou a salval-a?
- O amor, creio eu. Este pobre monstro viu-me de longe entre os seus
companheiros, correu-me aos pés, ajoelhou-se, em seguida tomou a
minha defesa, matou os que me queriam fazer mal, carregou commigo
para um logar seguro, e desde esse instante segue-me como um cão. É
de suppor que me tomasse por alguma divindade!... Pelo menos, assim
me leva a crer o respeito religioso que elle me tributa!
- Ah!
- De resto, não tem absoluta consciencia do que faz – é uma especie
de bicho! Não sabe a razão por que apparece em publico; não
comprehende nada do que o cerca. Uma occasião, perguntei-lhe, por
curiosidade, que effeito lhe produzia Pariz e, pela resposta que deu,
conclui que o tolo se suppõe n’uma existencia de além tumulo, julga-
se no paraizo de sua religião.
- Como assim? Perguntou o duque, intrigado.
Philomena apressou-se a explicar:
- É que, na occasião de defender-me de seus companheiros,
Borucululu ficou muito ferido e, ao chegar a Manáus, accometteram-
lhe febres tão fortes, que o fizeram delirar tres dias consecutivos. Pois
bem, o toleirão imagina que sucumbiu à molestia e que voou logo às
mansões sideraes, onde eu represento para elle a venerada carnação do
poder altissimo e da suprema divindade!
- De sorte que elle se julga já falecido?... Perguntou o duque com
interesse.
- Em plena bem aventurança eterna. Julga-se uma alma do outro
mundo. Pariz, que é o eden terrestre dos estrangeiros, para elle,
coitado! é nada menos que o paraiso celeste!
- É singular!
- Singular e extremamente commodo para mim, proseguiu a brasileira,
gozando do effeito que as suas palavras produziam na visita – Imagine
o Sr. Duque que o facto de meu marido julgar-se morto faz com que
elle não tenha commigo a menor exigencia e submeta-se
144
humildemente ao que eu lhe ordene. Entretanto é o meu guarda, é a
minha defesa; quando o sinto ao meu lado, não tenho a receiar
qualquer aggressão, venha ella de um leão das salas ou de um leão das
florestas!
- É muito singular! repisou o duque, reconsiderando com um ar de
pasmo a grossa e taciturna figura do Borges acocorado ao canto da
sala. Sim, senhora! Está garantida!
- Ah! perfeitamente garantida! Já vê o Sr. Duque que eu não poderia
encontrar melhor marido em parte alguma do mundo!
- Elle então não consente que lhe toquem sequer com o dedo?...
perguntou o louro, fazendo um ar de desgosto.
- Experimente! disse Philomena, faça que me vai prender o braço.
O duque estendeu a sua mão calçada de luva da Escocia e fez que ia
tocar no carnudo braço da artista.
O Borges ergueu-se logo e, movendo lentamente a cabeça para os
lados, com movimentos de urso velho, principiou a rondar em torno
dos dous, farejando.
- E se eu me arriscasse a dar-lhe um abraço?... perguntou o duque.
- Deus o defenda! Nem é bom pensar n’isso! Burucululu seria capaz
de estrangulal-o no mesmo instante! Não queira experimentar, que eu
não respondo pelas consequencias! [é genial, sedução e ameaça...]
- E não havia meio de estar um momento em sua companhia, sem a
presença d’esta alimaria!?
- Pode haver, mas é muito arriscado! Elle tem um faro mais subtil do
que o de qualquer cão de caça!... Iria descobrir-me no inferno, se no
inferno eu tivesse me escondido!
- E porque não se desfaz a senhora de semelhante bruto?! No fim de
contas deve ser aborrecido supportar eternamente este orangotango.
- Se lhe estou dizendo, Sr. Duque, que o demonio do bicho tem faro!
- Era fazer presente d’elle ao museu zootechnico de França, em nome
do Imperador de seu paiz, que é um sabio. E com isso a senhora ainda
prestaria um relevante servico à biologia. Se quiser eu me encarrego
de remettel-o à comissão que recebe os donativos. [grande piada com
sapiência do imperador e com insapiência de todos, que não percebem
a farsa!]
- Não! disse Philomena, por ora não. Mais tarde pode ser que aceite o
seu offerecimento.
- Pois, quando quizer, estou às suas ordens, acrescentou a ilustre
visita, erguendo-se e tomando a mão de Philomena para depor um
beijo.
Mas o Borges afastou-o da mulher, mettendo-se entre os dous
grosseiramente.
- Este animal não me deixa por o pé em ramo verde! pensou o fidalgo,
sahindo contrariado, depois de cortejar a brasileira.
Borges acompanhou-o até fóra da porta e, ao voltar para junto da
mulher, disse-lhe esta:
- Conheces?
- Quem? Este typo? Não!
- Oh! o D. Luiz, homem!
- Que D. Luiz?
- O D. Luiz de Portugal.
- Ora essa!
- Pois é elle!
145
- Queira Deus que estas brincadeiras não te venham a dar na cabeça!...
observou o botocudo.
- Deixa-te de receios! Meu selvagem – e vem d’ahi, que já deu o
segundo signal para principiar o espectaculo!
(Continúa.)312
312
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 05/01/1884. p. 1. ed. 5.
313
Infelizmente não tivemos acesso ao texto original para uma comparação. Há um relato na imprensa
que permite compreender melhor a “pequena historia” d’A flor-de-lis:
“Quando, ha alguns annos, a opera-comica franceza foi submetida à aprovação do nosso Conservatorio
dramatico, D. Censura, frazindo o sobr’olho, recusou-a redondamente como imoral, e nunca mais se falou
n’isso. Só ultimamente é que, para aproveitar a partitura de Leon Vasseur, os dois irmãos Azevedo
decidiram, evitando os pontos prohibidos do libreto francez, escrever o libreto óra se representando que o
Conservatorio approvou sem lhe achar espinha.
Ha, entretanto as espinhas, ao que parece; e o facto único de S. M. o imperador se retirar do espectaculo
com toda a familia e comitiva, no fim do primeiro acto, só póde ser explicado por uma forte divergencia
entre a corôa e D. Censura. Consta-me, de resto, que D. Censura completamente ausente na primeira
representação, foi hontem ao Sant’Anna, de tesoura em punho e disposta a cortar tudo quanto possa ter
irritado a petuitaria imperial.” Daniel J, “Chronica theatral”, Revista Illustrada, 28/10/1882. p. 6. ed. 320.
A partir da segunda representação, o texto da peça teria sido alterado.
146
dois “nobres” é Catarina: ela é a mulher ideal para o Alcaide, e o Capitão acredita que
ela possa ser seu filho por ter visto, marcada em sua espádua, uma flor; seu filho teria
uma flor-de-lis nas costas. Catarina, ingênua, está inclinada a aceitar a proposta do
Alcaide, sem entendê-la por completo. Seu noivo, Beija-flor, tenta dissuadi-la, sem
explicar, entretanto, a razão. Para o público já ficou claro: o Alcaide quer se aproveitar
sexualmente da mocinha; a intenção verdadeira do Capitão ainda é nebulosa.
O segundo ato se passa numa festa no palácio, onde o Alcaide tentará tomar
Catarina de seu noivo à força. A Condessa, por um lado, e o Capitão, por outro,
impedirão que o plano do tirano tenha sucesso. O jovem casal consegue fugir, mas uma
grande confusão é armada. O terceiro ato, cujo cenário é uma floresta, traz o amor do
jovem casal consumado religiosa e carnalmente (fora de cena, decerto). O Capitão,
encontrando-se finalmente com a Condessa, descobre que Catarina não pode ser seu
filho, pois ele era homem, tinha vinte anos e uma flor-de-lis gravada, não um girassol,
como a mocinha, que tinha apenas dezesseis anos. É ela quem junta os pontos,
identificando Beija-flor como o filho do caso adúltero entre o Capitão e a Condessa! O
rapaz seria açoitado a mando do Alcaide, mas o castigo é interrompido pelo Físico, que
reconhece a flor-de-lis.314
Ainda mais interessante que o enredo da peça é o acontecimento ocasionado
pela sua primeira representação. Estreando no Theatro Sant’Anna em 27 de outubro de
1882, o espetáculo contou com a ilustre presença da família real. Ao final do primeiro
ato, o cortejo imperial abandonaria o teatro, gerando grande repercussão. O motivo seria
a falta de decoro da peça (ou uma enxaqueca do imperador). Alguns órgãos da imprensa
defendiam os irmãos Azevedo, sem muita convicção, enquanto outros os recriminavam.
O próprio Aluísio, irmão mais novo e então menos conhecido, é quem responde à
polêmica na Gazeta da Tarde:
314
AZEVEDO, Artur. A flor-de-lis. In: Teatro de Artur Azevedo II. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de
Artes Cênicas, 1985. Clássicos do Teatro Brasileiro 8.
315
Aluísio Azevedo, “Litteratura – A flor de liz”, Gazeta da Tarde, 03/11/1882. p. 2. ed. 252.
147
Mas, afinal, o que teria incomodado tanto D. Pedro II naquela peça? Teria o
monarca identificado uma relação entre a sua figura e a do Alcaide? Haveria na peça
referências às suas amantes? Um leitor que não conheça a peça pode perguntar: o que há
nela de indecoroso? Abusos sexuais de um “nobre”, insinuações ao ato sexual de um
casal, adultério. As cenas finais do primeiro ato mostram, no palco, o Alcaide agarrando
a inocente Catarina, que nada entende:
316
AZEVEDO, Artur. op. cit. p. 126-7.
148
próprio bem. O interesse de Filomena no padrinho não é sexual, mas político; o
interesse do Alcaide em Catarina é eminentemente sexual.
Poderia, deste modo, Filomena Borges ser entendido como extensão ou
resposta à polêmica de A flor-de-lis? Uma fofoca da época permite pensar que sim:
Já citado anteriormente, este texto ganha novo sentido. Pelo visto não era
absurdo considerar que o imperador teria ficado ofendido com os textos de nobreza
indecorosa de Aluísio Azevedo. Filomena Borges e A flor-de-liz, dentro de seu contexto
de circulação e produção, politizam-se, desconstruindo a imagem oficial de D. Pedro II
junto das caricaturas e de outras intervenções de cunho cômico. Uma associação com
um galã, ainda mais “fora de época”, afetava a persona pública do monarca: “Apesar de
ter tido uma vida amorosa bastante repleta, a imprensa e os relatos não exploram essa
imagem, insistindo, ao contrário, no retrato de um monarca sereno, moralmente elevado,
acima das questões mundanas, ou seja, a negação formal de seu pai.”318 Fica a sugestão
de um rei amante, mundano, carnal.
Não é por acaso, portanto, que a “Suprema exigencia”, o último capricho de
Filomena, seja uma incursão pela política. Ela impulsionará o casal para a fase final do
romance, que se passa em Petrópolis. A cidade de Pedro havia sido visitada e estudada
317
D. Quixote, “Atravéz da semana”, Gazeta da Tarde, 13/10/1884. p.1. ed. 239. Esse pseudônimo é
marcante: seria o próprio Aluísio Azevedo ou algum amigo? Não pudemos descobrir.
318
SCHWARCZ, Lilia Moritz. op. cit. p. 383.
149
por Aluísio Azevedo enquanto escrevia o romance, se pudermos nos fiar na palavra de
Artur Azevedo.319
As impressões de cada membro do casal sobre Petrópolis são bastante
distintas:
- Mas, João, vem cá, repara que estás no Brazil e lembra-te de que
aqui os empregos de confiança do governo, sejam eles de que genero
for, nada têm que ver com as aptidões individuaes de quem os vai
desempenhar! Que diabo! Não vês ahi todos os dias ministros da
319
V. Capítulo 1.
320
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 08/01/1884. p. 1. ed. 8.
321
No fim deste folhetim, surge a primeira referência a negros no romance de maneira bastante violenta:
“- Isto, quando a mim, classificou elle finalmente, em confidencia com o Guterres – cheira-me assim a
mulata fôrra com pretenções a cocotte.” Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias,
08/01/1884. p. 1. ed. 8.
150
guerra, que não conhecem patavina do militarismo? Não vês que os
ministros da agricultura não sabem para que lado fica a lavoura; que o
ministro do imperio, a cargo de quem está a instrucção publica, já faz
muito quando sabe ler e escrever correctamente?... Não vês que o
ministro da fazenda não pesca nada de economia politica; que o da
pasta de estrangeiros não entende cousa alguma de politica
internacional! E assim o da marinha! e assim todos eles! e assim todo
o mundo! Oh!322
322
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 10/01/1884. p. 3. ed. 10.
323
“- Em politica, meu amigo, disse o outro – verdadeiro é só aquillo que nos convem.” Aluísio Azevedo,
“Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 09/01/1884. p. 1. ed. 9.
324
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 10/01/1884. p. 3. ed. 10.
325
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11.
326
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11.
151
Mas o narrador faz questão de tirar a culpa do imperador:
O Imperador!...
Pobre homem! bem longe estava elle de merecer as accusações que
lhe faziam a respeito da afilhada!
Que estivesse impressionado pela gentil creatura, pode ser, mas é que
o diabrete arranjava as cousas de tal geito, que o bom monarcha não
conseguia ir alem de seus desejos, se é que os tinha.
Por mais esforços que empregasse, se os empregava, fugia-lhe por
entre os dedos, com desculpas banaes, como por exemplo a da
circumstancia de ser sua afilhada, deixando o coração do soberano
ainda mais abrasado e ancioso, o que é possivel, porque
desgraçadamente os imperadores são feitos da mesma carne fresca e
titilante de que se formam as outras creaturas suceptiveis ao amor..327
327
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11.
328
A questão ideológica em Filomena Borges foi discutida por Ribeiro. Cf. RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit.
329
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 10/01/1884. p. 3. ed. 10.
152
De repente, finaliza-se o capítulo da seguinte maneira: “Cassou-se
imediatamente a nomeação do conde, e, à noite, quando este teve occasião de ver o
amo, notou-lhe na physionomia um certo ar de má vontade. [parágrafo] Lá se ia por
agua abaixo o prestigio do Borges e mais da mulher.”330 A virada é tão repentina quanto
relacionada às recusas de Filomena ao imperador.
No penúltimo capítulo, “Dissolvem-se as ultimas illusões”,331 os Borges
perderam totalmente o apadrinhamento, o “empenho”, perdendo assim todo o poder:
Ou seja, nunca passou pela cabeça de Filomena trair o marido; ela jogava
com o poder de sedução e conduzia deste modo o imperador, que, ao não ver atendida
sua vontade (no caso, sexual), desfaz os laços. A história é muito semelhante, nesse
sentido, à “proposta indecente” da peça adaptada pelos irmãos Azevedo. A proposta de
D. Pedro II fica nas entrelinhas: se tivesse Filomena, as vantagens prosseguiriam; como
ela se recusa a “poluir o contrato”, cessam as proteções e está traçada a falência final do
casal.
Desfeita a proteção, acaba tudo. O fim da proteção é anterior à queda do
Gabinete, o que enfraquece a leitura de correspondência.333 Não se pode afirmar com
certeza que a queda de Filomena marca o fim de uma era, seja do romantismo, seja do
conservadorismo da elite imperial. Do modo como funciona a política dentro do próprio
romance, o casal poderia continuar atuando normalmente na política com o novo
330
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11.
331
A virada dos capítulos é ruim, apressada.
332
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11.
333
A leitura da nova ordem é de Fanini. FANINI, Angela. op. cit. p. 123.
153
gabinete. O real problema foi perder a proteção do imperador.334 Por mais sedutora que
possa parecer a leitura de correspondência, ela não se aplicaria, portanto. O
apadrinhamento é mais importante no romance, já que é essa prática que garante o
casamento de Filomena, depois sua ascensão social; quando o apadrinhamento se perde,
a coisa acaba mal.335
A crítica política de Filomena Borges, portanto, se desdobra em três partes:
1) crítica ao casamento; 2) desconstrução da imagem do imperador; 3) crítica da política
imperial: apadrinhamento, poder moderador. Esta dimensão política crítica do romance,
esquecida durante boa parte do século XX, foi levantada por Mérian, seguido por
Ribeiro e Fanini, que também politizaram a obra, e agora conta com a contribuição
deste trabalho. É uma maneira adequada de leitura, e um dos motivos pelos quais o
romance foi provavelmente concebido.
Ele se relaciona, assim, com as opiniões políticas da Gazeta. A coluna
“Cousas Politicas”, especializada no assunto dentro daquele periódico, atinha-se a
comentários noticiosos sobre as atividades políticas e legislativas imperiais. Coube às
outras sessões do jornal a crítica mais aberta, posto que cômica, das instituições
imperiais. Falava-se mais livremente nesses outros espaços, mais literários.336 Pelo
menos era o que esperavam Aluísio Azevedo e Ferreira de Araújo, que acabaram
decepcionados. Fosse nas “Balas de estalo”, fosse no “Folhetim”, espaço ao qual
pertenceu principalmente Filomena Borges, mas ao qual a obra não se ateve, como visto
nos capítulos anteriores.
Seja visto como exagero,337 positividade338 ou originalidade,339 o
posicionamento político através da literatura foi a opção que tomou Aluísio Azevedo
para sua luta política.
334
O próprio 5 de janeiro de 1879, a queda do Gabinete, é referido no romance como “talvez precipitado
justamente pelo soberano”. Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 12/01/1884. p. 1.
ed. 12.
335
Nesse sentido, podemos voltar a relacionar Filomena Borges e o teatro. Os críticos da época cobravam
o auxílio de D. Pedro II, o que motiva o texto da fofoca de D. Quixote na Gazeta da Tarde, citado
anteriormente.
336
RAMOS, Ana Flávia Cernic. op. cit. V. Capítulo 2 daquela dissertação, “‘Cousas Políticas’ e ‘Balas de
Estalo’”.
337
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 466-7.
338
FANINI, Angela. op. cit.
339
RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit. p. 11.
154
3.5 O fim de Filomena
Por fim, Filomena é abatida por uma melancolia intensa que a levará à
morte. Como D. Quixote, o que mata a heroína é a desilusão. É comum na literatura de
Aluísio Azevedo a morte das protagonistas, como é comum nas obras que relacionamos
com Filomena Borges: Emma, Luísa, Paule.
Dois aspectos são muito relevantes. O primeiro é que, apesar da morte das
mocinhas ser comum,340 o final de Filomena Borges não agradou aos críticos da época.
O segundo é que, se a atuação de Filomena é tão escandalosa e criticada, sua “punição”
ou rendição não a isentam da culpa que os críticos lhe impõem. A resignação da
personagem é marcante: “- Não, meu amigo, não! Eu irei para onde quiseres; tenho
obrigação de acompanhar-te.... respondeu Philomena em voz baixa, fazendo esforços
para conter as lagrimas.”341 Filomena não se limita a ceder às vontades do marido,
desculpando-se de modo enfático:
Para uma senhora de vontade tão forte, de tantos sonhos e de imaginação tão
fértil, a morte por uma só desilusão parece mesmo não fazer sentido. É o problema de
armar todo o romance sobre as fantasias da personagem título: tudo é possível, mas tudo
parece falso; caberia qualquer solução, mas muitas seriam ruins. Daí resulta tanto a
desarticulação entre as partes, quanto o estranhamento causado pelo desfecho. Devemos
considerar, é claro, a possibilidade de Azevedo querer dar mais relevância à desilusão
política; o que não isenta, ainda assim, o final de sua marca apressada e mal articulada.
340
Apontado por Ribeiro como “imprimatur típico do gênero”. RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit. p. 19.
341
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 12/01/1884. p. 1. ed. 12.
342
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 13/01/1884. p. 3. ed. 13.
155
Tabela 5 - segunda parte, primeira viagem
Folhetim Capítulo(s) Título(s) Data
8 VI Primeira desillusão 25/12/1883
9 VII O rapto 26/12/1883
10 VII, VIII O rapto (cont.), Emfim [ED. FALTANTE] 27/12/1883
11 IX Vôos altos [ED. FALTANTE] 28/12/1883
12 X De volta a pátria 29/12/1883
13 XI Qual dos dous maridos será o mais infeliz?... (cont.) 30/12/1883
14 XI, XII Qual dos dous maridos será o mais infeliz?... (cont.), 31/12/1883
Amor de Philomena
15 XII, XIII Amor de Philomena (cont.), Novas torturas 01/01/1884
156
Conclusão
Filomena Borges nos parece, hoje, desarticulado. Talvez isso pudesse servir
como elogio, consideradas as contribuições e inovações do romance modernista. Mas
não é. Desarticulação, no caso desse romance, seria tida como defeito de composição.
Não seria possível pensar, por outro lado, que, como romance, Filomena
Borges foi composto da mesma maneira que o jornal, canalizando diferentes vozes,
opiniões, ideais, notícias, concepções sobre os mais variados temas, unidos pela
atualidade? E que, se pudéssemos pensar desta maneira, o romance poderia ter se
utilizado dos mesmos recursos que o jornal que lhe serviu de veículo, de base e de
matriz? Como a Gazeta de Noticias, Filomena Borges discute os temas coetâneos de
maneira cômica, focalizando a crítica ao império e às suas bases em meio a uma
discussão literária. A desarticulação do romance pode ser, nesse sentido, nada mais que
a própria forma de sua articulação, que segue o modelo de um jornal. O jornal é, por
excelência, montado a partir de fragmentos.343
Vimos, nos periódicos, o esforço coletivo para a construção da personagem
Filomena Borges, um lance publicitário a princípio elaborado pela Gazeta de Noticias,
que saiu de controle e foi apropriado por outros periódicos e para outros fins, muito
ligados ao comércio. O processo parece ter chamado atenção razoável dos leitores e
possíveis consumidores da época. No entanto, isso conspirou contra o romance. Seu
reclame criou uma enorme expectativa, que, para infelicidade de Aluísio Azevedo, ele
não soube atender. O insucesso comercial do romance deveu-se, em muito, a este
aspecto; e o insucesso de crítica também esteve a ele relacionado. Os críticos coetâneos
leram o romance tomando por base e levando em conta a construção coletiva da
personagem, convencidos ou confundidos pelas diversas possibilidades que a mulher
misteriosa tinha na imprensa. Aqui, outro dos motivos para o fracasso: a personagem
que aparecia nos periódicos poderia ter resultado mais interessante que a personagem do
romance. A mulher sedutora, vendida no jornal, não teria sido suficientemente
sexualizada no romance? O escândalo que se ligava à sua imagem não teria tido o curso
esperado na narrativa? O aproveitamento político da heroína teria incomodado mais o
público geral que as folhas ligadas ao Império?
343
THÉRENTY, Marie-Ève. La Littérature au Quotidien: Poétiques journalistiques au XIXe siècle. Paris:
Éditions du Seuil, 2007. p. 89.
157
Nos termos do próprio escritor maranhense, podemos pensar as diferenças
entre a expectativa do público e da crítica. O público esperaria um folhetim para
diversão; o autor entregou uma narrativa híbrida, 1) com o problema do casamento à
francesa, 2) as viagens e aventuras à moda de sensação e 3) uma sátira política, muito
ligada à busca por sensação e às referências indecorosas. A crítica esperaria um
romance sério, naturalista; o autor entregou uma mistura entre cômico e político,
parodiando os recursos folhetinescos e sensacionais para satirizar o Império. A
expectativa sobre Filomena Borges deve também ser considerada. Esperar-se-ia uma
personagem extraordinária, sensual, misteriosa; mas Azevedo entregou uma senhora,
apesar de sedutora, séria, sem escândalo e sexualidade explícita.
Por que, afinal, o romance não teria agradado? Por ter frustrado todas as
grandes expectativas? Por ter explicitado mais a política que o apelo sexual? Parece que
sim.
158
da figura Filomena Borges. A intervenção se estendeu do casamento à imagem do
imperador, passando pelo teatro, enfim, constituindo-se como crítica ao Império.
A leitura do romance no jornal permitiu perceber o sentido da sátira política,
que pretendia contribuir para a mudança da ordem política através de uma mensagem
folhetinesca, popular, cômica. Conciliaram-se, deste modo, os projetos da Gazeta e de
Aluísio Azevedo.
O romance não durou, portanto, pois seu valor era menos literário, mais
político e comercial.
O que procuramos fazer foi uma história cultural desse romance, tratando a
literatura em termos mais gerais e levando em consideração a grande relevância da
imprensa na literatura do período; evitamos, deste modo, a tradição de se pensar através
do cânone, recuperando o contexto de produção e circulação da maneira mais completa
possível.
Resta, por fim, uma questão. Por que, nas edições em livro, o autor não
alterou a obra, como fez com os folhetins anteriores (Mistérios da Tijuca e Memórias de
um condenado)? Por achá-la ruim, indigna, ou por achar que ela havia cumprido seu
papel? Dedicá-la a Ferreira de Araújo mostrava uma divisão de paternidade/autoria? É
possível.
As tabelas a seguir possibilitam a comparação entre os folhetins e a primeira
edição em livro:
159
9 VII O rapto 26/12/1883
10 VII, VIII O rapto (cont.), Emfim [ED. FALTANTE]*** 27/12/1883
11 IX Vôos altos [ED. FALTANTE]*** 28/12/1883
12 X De volta a patria 29/12/1883
13 XI Qual dos dous maridos será o mais infeliz?... (cont.) 30/12/1883
14 XI, XII Qual dos dous maridos será o mais infeliz?... (cont.), 31/12/1883
Amor de Philomena
15 XII, XIII Amor de Philomena (cont.), Novas torturas 01/01/1884
16 XIII, XIV Novas torturas (cont.), Miséria 02/01/1884 3
17 XIV Miséria (cont.) 03/01/1884
18 XV Coisas extraordinarias 04/01/1884
19 XVI Segredos de bastidor 05/01/1884
20 XVII Suprema exigencia 06/01/1884
21 XVIII Celebridades 07/01/1884 4
22 XVIII, XIX Celebridades (cont.), Petropolis 08/01/1884
23 XIX, XX Petropolis (cont.), Volta-se à dansa 09/01/1884
24 XX Volta-se à dansa (cont.) 10/01/1884
25 XXI, XXII Torniquetes, Dissolvem-se as ultimas illusões 11/01/1884
26 XXII, Dissolvem-se as ultimas illusões (cont.), Paquetá 12/01/1884
XXIII
27 XXIII Paquetá (conclusão) 13/01/1884
*contagem corrigida **nossa divisão ***indisponíveis na Hemeroteca Digital e no AEL
Tabela 9 – 1ª edição
Capítulo Título Paginação
I Flores de laranjeira 5-11
II O ferrolho 12-17
III Começam as provações 17-24
IV Veremos quem vence 24-35
V * -
VI Primeira desillusão 35-39
VII O rapto 39-44
VIII Emfim 44-46
IX Vôos altos 46-49
X De volta a patria 49-52
XI Qual dos dous maridos será o 52-59
mais infeliz?....
XII Amor de Philomena 59-63
XIII Novas torturas 64-67
XIV Miseria 67-72
160
XV Coisas extraordinarias 72-75
XVI Segredos de bastidor 75-78
XVII Suprema exigencia 78-82
XVIII Celebridades 82-86
XIX Petropolis 86-90
XX Volta-se á dansa 90-95
XXI Torniquetes 95-98
XXII Dissolvem-se as ultimas 98-101
illusões
XXIII Paquetá 101-104
* Atribuímos a falta do capítulo V a uma falha editorial, não a um corte autoral.
Não houve alteração significativa. Nos casos estudados por Milton Marques
Júnior, Azevedo não teve apenas a preocupação em remodelar a linguagem; a própria
estrutura de capítulos foi bastante alterada. Não foi o caso de Filomena Borges.
Respondendo à questão que restou, parece-nos que Aluísio Azevedo
concordaria, afinal, que Filomena Borges é obra efêmera, como sua matriz, a “mãe”
Gazeta de Noticias, de Ferreira de Araújo. Assim, ela pertenceu a seu tempo, teve seus
efeitos, depois se esvaiu, perdendo sentido do mesmo modo que Filomena Borges, sua
protagonista, perdeu o sentido ao serem desfeitas suas últimas ilusões.
161
162
Referências
ALMEIDA, Leandro Thomaz de. Literatura Naturalista, Moralidade e Natureza. 2013.
Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2013.
ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império.
São Paulo: Paz e Terra, 2002.
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Araripe Júnior: Teoria, crítica e história
literária. (org. Alfredo Bosi). Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: Edusp, 1978.
AZEVEDO, Aluísio. Aluísio Azevedo: ficção completa em dois volumes. (Org. Orna
Messer Levin). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.
________________. O cortiço. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, Livreiro-Editor, 1890.
________________. O Coruja. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, Livreiro-Editor, 1889.
________________. O homem. 3ª ed. Rio de Janeiro: Typ. de Adolpho de Castro Silva
& Comp., 1887.
________________. Livro de uma sogra. Rio de Janeiro: Domingos de Magalhães,
1895.
________________. A mortalha de Alzira. Rio de Janeiro: Fauchon & C.ª, 1894.
________________. Pégadas. Paris; Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1897.
________________. Philomena Borges. 1ª ed. Rio de Janeiro: Typ. Gazeta de Noticias,
1884.
________________. Philomena Borges. 3ª ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1938.
________________. Philomena Borges. 4ª ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1943.
________________. Philomena Borges. 5ª ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1952.
________________. Philomena Borges. 5ª ed. São Paulo: Livraria Martins Editora
S.A., 1954.
________________. Philomena Borges. 6ª ed. São Paulo: Clube do Livro, 1955.
________________. Filomena Borges. 7ª ed. São Paulo: Livraria Martins Editora,
1960.
________________. O Touro Negro. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961.
AZEVEDO, Artur. A flor-de-lis. In: Teatro de Artur Azevedo II. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional de Artes Cênicas, 1985. Clássicos do Teatro Brasileiro 8.
_______________. O Mandarim. In: Teatro de Artur Azevedo II. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional de Artes Cênicas, 1985. Clássicos do Teatro Brasileiro 8.
BELOT, Adolphe. Mademoiselle Giraud ma femme. 53ª ed. Paris: E. Dentu, Éditeur,
1878.
BERGAMINI JUNIOR, Atilio; TATIM, Janaína. Machado de Assis no tabuleiro das
Balas de Estalo. Organon, Porto Alegre, v. 28, n. 55, p. 33-53, jul./dez. 2013.
CANDIDO, Antonio. Introdução. In: AZEVEDO, Aluísio. Filomena Borges. 7ª ed. São
Paulo: Livraria Martins Editora, 1960.
________________. Sílvio Romero: teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro:
LTC; São Paulo: Edusp, 1978.
CORRÊA, Alfredo Augusto. Philomena Borges. Polka Lundu. 1 partitura. Piano.
Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_musica/mas194667/mas194667.pdf. Acesso:
05 jan. 2015.
COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 8ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
DEL PRIORE, Mary. Visconde de Taunay: cadeira 13, ocupante 1 (fundador). Rio de
Janeiro: Academia Brasileira de Letras; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2011.
163
KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT,
Alain. (orgs.) La civilisation du journal: Une histoire de la presse française au XIXe
siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011.
KOCK, Paul de. M. Dupont ou la jeune fille et sa bonne. Paris: Gustave Barba, Éditeur,
1842.
EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação – Literatura popular e pornográfica no Rio
de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
FANINI, Angela Maria Rubel. Os romances-folhetins de Aluísio Azevedo: Aventuras
periféricas. 2003. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2003.
FARIA, João Roberto. Teatro de Aluísio Azevedo e Emílio Rouède. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Abril, 2010. (Clássicos Abril
Coleções; v. 3)
LEVIN, Orna Messer. Aluísio Azevedo: cadeira 4, ocupante 1(fundador). Rio de
Janeiro: Academia Brasileira de Letras; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2013.
MARQUES JÚNIOR, Milton. Da ilha de São Luís aos refolhos de Botafogo. João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2000.
MARZANO, Andrea. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro
(1839-1892). Rio de Janeiro: Folha Seca: FAPERJ, 2008.
MENDES, Leonardo. O retrato do imperador: Negociação, sexualidade e romance
naturalista no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo: Vida e Obra (1857-1913). 2ª ed. Rio de Janeiro:
Fundação Biblioteca Nacional; Garamond, 2013.
NOGUEIRA DA SILVA, M. (s/ título) In: Philomena Borges. 3ª ed. Rio de Janeiro: F.
Briguiet & Cia., 1938.
NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas. O folhetim nos jornais do Mato
Grosso (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2002.
OLIVEIRA, Francisco. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Estudos Cebrap,
São Paulo, v. 2, p. 3-82, 1972.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras: literatura e folia no
Rio de Janeiro do século XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira: prosa de ficção: de 1870 a
1920. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988.
PORTO, Ana Gomes. Novelas sangrentas: literatura de crime no Brasil (1870-1920).
2009. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009.
QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. São Paulo: Abril, 2010. (Clássicos Abril Coleções;
v. 14)
RAMOS, Ana Flávia Cernic. Philomena Borges: uma leitora de folhetins sob o olhar de
Aluísio Azevedo. In: XIX SEMANA DE HISTÓRIA DA UNESP HISTÓRIA,
LEITURA E CULTURA MIDIÁTICA, 2014. Franca. Anais... p. 346-355.
______________________. Política e humor nos últimos anos da monarquia: a série
“Balas de estalo” (1883-1884). 2005. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2005.
RIBEIRO, Luís Filipe. O Sexo e o Poder no Império: “Philomena Borges”. Luso-
Brazilian Review, vol. 30, n. 1, “Changing Images of the Brazilian Woman: Studies of
164
Female Sexuality in Literature, Mass Media, and Criminal Trials, 1884-1992”
(Summer, 1993), p. 7-20. University of Wisconsin Press.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos
trópicos. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Mauad, 1999.
SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual Romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
VERÍSSIMO, José. José Veríssimo: Teoria, crítica e história literária. (org. João
Alexandre Barbosa). Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: Edusp, 1977.
THÉRENTY, Marie-Ève. La Littérature au Quotidien: Poétiques journalistiques au
XIXe siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2007.
Fontes primárias
Almanak da Gazeta de Noticias
O Apostolo
Brazil
Correio Paulistano (SP)
Corsario
Diario do Brazil
Diario Portuguez
Diario do Rio de Janeiro
Le Figaro (Fr)
A Folha Nova
Gazeta da Tarde
Gazeta de Noticias
Jornal do Commercio
Journal pour tous (Fr)
O Mequetrefe
O Mercantil
Pacotilha (MA)
O Programma-Avisador
Publicador Maranhense (MA)
Provinciano
Revista Illustrada
Sítios consultados
Câmara dos Deputados
http://www2.camara.leg.br/
Hemeroteca Digital Brasileira
http://hemerotecadigital.bn.br/
Internet Archive
https://archive.org/
Literatura Digital
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/
Senado Federal
http://www.senado.gov.br/
165