Vous êtes sur la page 1sur 8

O ofício de professor de filosofia

As notas que se seguem foram apresentadas numa mesa redonda, promovida pela
AFIPE, na PUC. Conservam, inteiramente, o tom coloquial da apresentação.

1. Gostaria de agradecer o convite e começar lembrando a importância da AFIPE

(Associação dos Filósofos, Professores e Estudantes de Filosofia da Região

Metropolitana de Belo Horizonte). Tenho certeza de que essa Associação é o

resultado de um longo trabalho, com origem nos distantes anos 70, desenvolvido

por um sem número de pessoas. Cito, na PUC, a professora Sílvia Contaldo e, na

UFMG, a professora Telma BIrchal e o professor Marcelo Pimenta. Gostaria,

igualmente, de me referir a uma professora, que já está entre nós, a quem a

bandeira da presença da Filosofia no ensino médio sempre foi muito cara. Ela a

defendeu com doses iguais de competência, dedicação e carinho. Trata-se da

professora Sônia Viegas, falecida em 1989.

2. Como a Sílvia me pediu, escolhi o caminho do depoimento, do relato de uma

experiência, mais ou menos longa, como professor de filosofia. Esta foi, e ainda

é minha ocupação, agora em menor monta. Após tanto tempo de aulas de

filosofia, não sou capaz de imaginar nenhum outro ofício no qual eu viesse me

sentir mais próximo de mim mesmo e ao qual eu terminasse por dever tanto.

Entretanto, nem o gosto nem a gratidão pelo ofício garantem que sejamos bons

professores de filosofia ou que possamos apresentar boas razões em favor do seu

ensino.

3. Começo por um poema de Orides Fontella, 1940/1998 (poeta paulista, formada

em filosofia, professora primária, várias vezes premiada pela sua poesia):

1
Iniciação

Se vens a uma terra estranha

curva-te

se este lugar é esquisito

curva-te

se o dia é todo estranheza

submete-te

- és infinitamente mais estranho.

4. Se eu me pergunto o que, segundo penso, nos conduz à filosofia, a resposta não

é outra senão essa estranheza de que fala o poema. Estranheza, um insistente

sentimento onde se acotovelam as sensações de exílio, de excesso, de espanto,

de perplexidade. Não é este, a estranheza, o traço mais constitutivo da condição

humana? Não filosofaríamos, não se filosofaria, se este descolamento, tão

dolorido, não estivesse presente na nossa humana condição. Estranheza que,

com o cotidiano, tentamos, inevitável e inutilmente, normalizar. Vemo-nos, não

há como escapar, diante de muitas situações limites, todas sinalizadoras desta

estranheza: a imponderabilidade da morte, a grandiosidade da natureza, o desejo

de justiça, a reverência diante da beleza, a perplexidade diante de um gesto

criador, a intensidade do amor, a busca da verdade, o eterno recomeço da vida.

Tudo isto funda o nosso ofício.

5. Permanece a estranheza, e ainda solicita de nós, provocativamente, alguma

resposta. De tudo isso, o que podemos saber, o quanto podemos decifrar?

2
Alguma coisa, certamente. Mas não muito. O que, aliás, é uma passagem

clássica de Platão: estamos a meio caminho entre a ignorância e o conhecimento,

não pertencemos a nenhum dos dois extremos, ambos consoladores. Ou

podemos nos valer, igualmente, de Pascal: sabemos muito para sermos céticos,

sabemos pouco para sermos dogmáticos. Daqui, amor ao saber, desejo de saber,

e não saber.

6. Bom, mas se este sentimento é constitutivo da condição humana, se é dele que

brota a filosofia, não deveríamos observar um cultivo mais universalizado da

filosofia? A nossa humanidade, por si só, não nos tornaria, a todos, filósofos?

Não passaríamos, sem dificuldade, da vivência à busca de compreensão? Não

bastaria viver para querer compreender? Não é bem assim. Nem a compreensão

parece tão desejável e nem o interesse pela filosofia é generalizado. E mais, bem

mais: uma certa suspeita, ora mais paciente, ora mais impaciente, paira, a todo

tempo, sobre os que se dedicam à compreensão, pelo menos a esta compreensão

mais ambiciosa que chamamos filosofia.

7. Parece, então, que isto que constitui a condição humana, esta curiosa herança a

nós destinada, sem qualquer indicação de remetência, não basta para que nos

tornemos, de imediato, filósofos. De um lado, este mesmo conjunto de situações

limite é enfrentado por outros meios: religião, mito, senso-comum, ciência, etc..

E este é o padrão da quase totalidade das civilizações. Por outro lado, este

conjunto pode mesmo ser evitado, através de manobras sedutoras como a

distração ou a adesão a formas variadas de ceticismo. Todos esses casos, quase

sempre, podem ser vistos como uma estratégia contra a sensação de

descolamento.

3
8. Então, o que mais faz de alguns de nós filósofos, estudiosos da filosofia,

estudantes de filosofia? E, indo além, o que caracteriza a filosofia, esta área da

qual nos tornamos professores? Ou ainda, o que ensinamos a toda essa gente

que, por motivos variados, estuda filosofia, desde a obrigatoriedade curricular

até uma escolha mais refletida?

9. Voltando um pouco atrás. A mim me parece que o que distingue a filosofia é,

falando de uma maneira muito geral, uma luta contra a imediateidade. O que é

imediateidade? Toda forma de ajustamento, toda forma de adequação, toda

resolução, todo acabamento. Não importa de onde ela venha: da religião ou da

ciência, do mito ou do senso-comum, da política, da chamada vida prática ou do

ceticismo. Imediateidade é, em última instância, morte, anulação da diferença

constituidora do humano. Portanto, não é surpreendente que a filosofia possa ser

vista como um enfrentamento das mortes evitáveis. Para dizer com os gregos:

contra o movimento da banalização, dessa espécie de entropia, é preciso manter

o espaço do espanto, da admiração.

10. A religião, na hora mais decisiva, prescinde da razão, a ciência interrompe

abruptamente sua marcha, o mito já é uma resposta, o senso-comum está preso

no círculo do cotidiano, o ceticismo sequer começa a marcha. Portanto, cada um

à sua maneira é uma forma de interrupção, isto é, de imediateidade.

11. Mas se esta é a fonte, se esta tem sido, em muitos casos, a fonte, um já longo

acervo se constituiu sobre esta fonte. Trata-se da tradição tão múltipla da história

da filosofia, isto é, os que, antes de nós, reagiram ao cenário acima descrito com

as armas de uma razão sempre inacabada, sempre em elaboração. Esta tradição

nos entrega os instrumentos: temas, conceitos, doutrinas, impasses, problemas.

Um poderoso acervo de recursos está diante de nós, nele somos treinados, ele é

4
matéria de que nossa razão é feita. Não existe filosofia duradoura, conseqüente

ou pública à margem deste acervo.

12. Mas aqui, uma vez mais, corremos o risco da imediateidade: podemos nos tornar

espectadores da história da filosofia, leitores, argutos, é certo, mas apenas

leitores da história da filosofia. Seríamos, nesse caso, como que arqueólogos

diante de uma profusão de dados, de um excesso de textos: cabe-nos, nesta

perspectiva, reconstituir, para usar uma expressão já antiga, a ordem das razões

de um pensamento. Oferecer a lógica reconstruída da lógica em uso de um

pensamento, pensamos pensamentos. Mas isto pode ser tudo? Certamente que é

importante saber o que, de fato, teria dito Platão ou Descartes. Mas ainda mais

importante é saber se o que disseram estes filósofos é verdade. Recusar esta

etapa do caminho é, num certo sentido, emudecer os autores. Platão não

escreveu movido pela paixão de ser compreendido, escreveu, suponho,

interessado em dizer a verdade. Cabe a nós examinar o grau de sucesso na

consecução desta meta por parte de Platão.

13. Rejeitando a tradição, outra imediateidade nos espreita: nos restringirmos à

filosofia dos nossos dias, historiadores da filosofia mais do que contemporânea.

Imaginamos, então, que as questões que, exclusivamente, merecem nossa

atenção são as apresentadas pela filosofia contemporânea. Nesse caso

prescindimos da história, aderimos à última palavra. Como no caso da moda,

quanto mais recente, melhor.

14. Num e noutro caso, capitulamos. Se perdermos a história, perderemos todo um

universo de caminhos possíveis; perderemos outros tantos caminhos se nos

restringirmos à filosofia contemporânea. Penso que o mais recomendável é

tomar os argumentos, todos, não importando de qual etapa da filosofia

5
provenham, e examinar sua adequação ao problema em exame. Assim, o Teeteto,

a Investigação acerca do Entendimento Humano e o último artigo publicado na

Mind, são tentativas diversas, de valor a ser examinado, de equacionar questões

no campo do conhecimento. É preciso insistir que os problemas excedem os

textos, a cada um deles e a todos.

15. Mas este é o nosso cenário, o que fazemos em sala de aula, o que ensinamos?

Aqui me atenho mais a um depoimento.

16. Acho que devemos ensinar, antes de tudo, o respeito à complexidade da

condição humana, marcada por iguais doses de dor e maravilhamento. Penso que

devemos lutar contra toda forma de simplificação, mesmo a que prometa a

pacificação de nossas dores ou a felicidade. Mesmo que seja compreensível,

diante da amplidão da dor humana, a existência de tantos profetas, de tantos

guias, toda solução final é, sempre e tragicamente, uma amputação. Mesmo que

seja desejada, quase que universalmente desejada.

17. Também me parece que devemos insistir no valor da racionalidade. Não de uma

racionalidade fria, fechada sobre si mesma ou acabada, mas do valor desta

infinita disposição de compreender, deste desejo, sempre por satisfazer, de

compreender de que falava Aristóteles. Desta compreensão que é desafiada,

desmentida, mas que, por fim, se amplia e se enriquece diante de cada ato

específico de compreensão. Não vejo nenhum outro instrumento tão libertador,

seja do ponto de vista pessoal, seja do ponto de vista público, como o exercício

da racionalidade. Não é isto o que dizia Sócrates? Uma vida não examinada não

pode ser vivida enquanto vida humana.

18. A quem devemos ensinar filosofia? Nas nossas salas, não desobedecemos

Sócrates? Não espalhamos, como maus agricultores, sementes ao vento? Não

6
seria melhor falar a uns poucos escolhidos? Mas não é preciso obedecer Sócrates

sempre. Por mais custoso, ou mesmo sem sentido, que isto nos pareça, e a mim,

parece, é preciso supor que qualquer dos nossos alunos pode aprender o que nós

queremos ensinar. Num certo sentido, somos, potencialmente, todos, vá lá, quase

todos, amantes da filosofia. Cada um de nossos alunos, cada uma de nossas

salas, subdivide-se em duas: o aluno de hoje e o aluno possível, a sala de hoje e

a sala possível. Esta passagem do que é dado para o possível é a face mais

cotidiana de nossa esperança.

19. Diante de outras possibilidades profissionais, o nosso oficio vale a pena? Não

devemos ouvir a advertência de que a busca das pessoas, em sua imensa maioria,

visa outros fins? De novo, é de Sócrates que nos lembramos: os atenienses não

teriam razão em condená-lo? Não temos sorte de receber uma condenação mais

suave, a de um certo desprezo educado? Não merecemos este desprezo?

20. Ou devemos ouvir este daimon que insiste em nos dizer que, contra toda

evidência, estamos no caminho certo? Que ao invés de cedermos à tentação, ou

à porta ampla, devemos celebrar a singularidade humana? Que esta fome de

sentido, mesmo que para sempre insaciada, é que nos humaniza? Certamente

que não se trata de uma tarefa fácil. É mais fácil quando o aviltamento tem o

rosto sombrio da miséria ou da opressão. Mas o que fazer quanto o aviltamento

tem o rosto sorridente da satisfação?

21. Não nos resta senão uma aposta. É o que penso: uma defesa de um humanismo

corajoso, renovado, um pouco cético, mas não muito, prospectivo e, onde for

possível, bem humorado. Devemos continuar a combater, com as armas

possíveis a cada um de nós. Socorro-me de Jean-François Mattei, A Barbárie

Interior, que nos lembra que, sob a aparência da desesperança, é o

7
Ressentimento o adversário a ser enfrentado. Ressentimento que, à maneira de

um Apocalipse secular, exibe quatro faces:

1. o desconhecimento da beleza de uma obra, isto é, a ignorância.

2. a denegação do que é elevado ou a recusa da excelência, isto é, a

pretensão.

3. a incapacidade de realizar um gesto criador, ou seja, a impotência.

4. a vontade confusa de destruição, isto é, a regressão.

22. Mas, enfim, uma vez mais com Platão, lembremo-nos: “É necessário,

pois, a propósito disso, fazer uma das coisas seguintes: não perder a ocasião de

instruir-se, ou procurar aprender por si mesmo, ou, então, se não se for capaz de

uma nem outra dessas ações, ir buscar em nossas antigas tradições humanas o

que houver de melhor e menos contestável, deixando-se assim levar como sobre

uma jangada, na qual nos arriscaremos a fazer a travessia da vida, uma vez que

não a podemos percorrer, com mais segurança e com menos riscos, sobre um

transporte mais sólido: quero dizer, uma revelação divina” (in Reale, G. História

da Filosofia).

Ricardo Fenati

Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

Vous aimerez peut-être aussi