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QUEM É DA FAMÍLIA?
REFLEXÕES SOBRE PARENTESCO E MOBILIDADE
Who’s in the family? Reflections on kinship and mobility
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Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Bolsista FAPESP processo n. 2016/14055-0. Boa Vista, RR, Brasil.
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Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF), na Universidade Federal de
Roraima (UFRR). Boa Vista, RR, Brasil.
REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, v. 25, n. 49, apr. 2017, p. 249-265 249
Quem é da família? Reflexões sobre parentesco e mobilidade
Introdução
O presente exercício analítico traz como referencial etnográfico e teórico o
cruzamento de duas experiências de pesquisa envolvendo distintos fenômenos
migratórios em contexto transnacional3. As famílias, nestes cenários, tornam-se
projetos constantemente construídos e reavaliados, atualizando práticas
diferentes de proximidade e distância entre “pessoas consideradas da família”.
O primeiro referencial apresenta a concepção de “família” e as relações de
parentesco desenvolvidas entre viajantes de várias nacionalidades radicados(as)
em Alto Paraíso de Goiás, interior do Brasil. O segundo, as relações familiares
transnacionais estabelecidas por brasileiros(as) que trabalham na fronteira entre
Brasil e Venezuela, especialmente nas localidades de garimpos. Pode-se dizer
que pessoas se colocam em movimento atendendo alguma transformação ou
necessidade de transformação. Alguns buscam ouro, trabalho, sobrevivência
nos garimpos da Venezuela, enquanto que outros procuram bem-estar
espiritual, afirmação de um estilo de vida “alternativo” e afetividade em cidades
do interior do Brasil.
Foi preciso encontrar um princípio de simetria para comparar e
compreender as diferentes condições de vida migrante. Temos uma busca
de melhoria das condições de vida material (no caso do garimpo/ trabalho
transfronteiriço) e também uma busca de melhoria das condições de vida
espiritual (no caso dos alternativos). A chave para encontrar uma equivocação
entre os dois contextos e que norteará o artigo é a experiência de “família” que,
apesar das discrepâncias, se mostra esclarecedora de determinadas recorrências
no tocante às migrações humanas, como a circulação de coisas e trabalho,
importantes na manutenção e na criação de “relacionalidades”, expressas em
vínculos duradouros de lealdade e afetividade4.
O material de campo analisado é oriundo de uma tese de doutorado5 e
de uma dissertação de mestrado6, defendidas em 2013. Apesar das pesquisas
abordarem realidades discrepantes como as “comunidades alternativas” e
os “garimpos”, a revisão dos dados coloca em evidência uma fértil analogia
entre as duas etnografias. As “famílias”, com suas diferenças, existem enquanto
causa e efeito da mobilidade. Enfatizamos, por meio da comparação, que
os deslocamentos de pessoas oportunizam transformações nas relações de
parentesco, assim como as relações de parentesco condicionam os processos
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Agradecemos o incentivo e as críticas de Anna Catarina Morawska Vianna, professora do PPGAS/
UFSCar, na realização desta “experimentação etnográfica”.
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CARSTEN, Janet. Cultures of Relatedness: new approaches to the study of kinship.
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SANTOS, Sandro. A família transnacional da Nova Era e a globalização do (((amor))) em Alto
Paraíso de Goiás, Brasil.
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VASCONCELOS, Iana. Articulações familiares transnacionais: estratégias de cuidado e manutenção
familiar na fronteira Brasil/Venezuela.
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Alto Paraíso de Goiás (6.885 hab., Censo 2010) localiza-se a 200 km ao norte de Brasília. É
destino turístico pelas cachoeiras e biodiversidade do Parque Nacional da Chapada dos
Veadeiros. Além disso, a cidade é a “terra prometida” para inúmeros projetos engajados com o
despertar para uma Nova Era. Transitavam pela cidade, em 2011, 260 indivíduos com quem o
pesquisador conviveu, sendo eles 140 brasileiros e 120 estrangeiros de trinta e sete bandeiras
diferentes, com idades que vão dos 17 aos 70.
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As interpretações e informações são provenientes da pesquisa durante seis meses em 2013 na
cidade de Santa Elena de Uairén e também de dados coletados durante período de 09 a 16 de
abril de 2011 no âmbito do projeto de pesquisa Migração e Relações de Trabalho na Fronteira
Pan-Amazônica, financiado pelo CNPq/Edital CHS 2009-2011 coordenado pela profª Francilene
Rodrigues nas localidades de garimpos Las Claritas, Km 88 e Icabarú, ocasião em que foram
aplicados 80 questionários a 53 homens e 27 mulheres.
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CARSTEN, op. cit.
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STRATHERN, Marilyn. Kinship at the core: an anthropology of Elmdon.
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Nesta pesquisa, garimpeiro ou “minero”, como são chamados na Venezuela, são aqueles que
se reconhecem como tal e que, direta ou indiretamente, estão ou estiveram envolvidos na
atividade de mineração e que associam essa atividade com seu modo ou estilo de vida.
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MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva.
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LOBO, Andrea. Tão Longe, Tão Perto: famílias e ‘movimentos’ na Ilha da Boa Vista de Cabo Verde.
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social, p. 60.
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-
estrutural, p. 150-151.
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SANTOS, op. cit., p. 42.
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VASCONCELOS, op. cit., p. 88.
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BRYCESON, Deborah, VUORELLA, Ulla. The transnational family: new European frontiers and
global net workings.
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RIBEIRO, Gustavo. A condição da transnacionalidade.
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Ibidem.
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THOREAU, Henry David. Walden ou a vida nos bosques.
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revestida de lona nas laterais são comumente habitadas por cônjuges e seus
filhos(as) pequenos(as).
Também as mulheres estão empenhadas no envio de proventos às
suas famílias distantes. As remessas são encaradas, cobradas e realizadas de
diferentes maneiras entre homens e mulheres. Para as mulheres o envio de
bens representa, além da ajuda financeira, uma forma de compensação pela
transferência temporária dos trabalhos dos cuidados com os filhos para outras
mulheres da família.
Envio um pouco de dinheiro. Mas mando todo mês pelo meu pai que faz
corrida aqui, rancho, porque aqui as coisas são mais em conta e compro
tudo que as minhas filhas precisam. Ajuda a minha mãe e assim ela me
ajuda com as meninas. (mulher, 29 anos, natural do Ceará, 5 anos na
fronteira Brasil/Venezuela)25
25
Ibidem, p. 78.
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O “rancho” é a compra mensal de alimento e itens básicos para subsistência da unidade
doméstica.
27
Ibidem, p. 78.
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Ibidem, p. 68.
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STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a
sociedade na Melanésia, p. 40.
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Local de comércio sexual, geralmente situado próximo os centros comercias do garimpo.
Trabalho majoritariamente desempenhado por mulheres.
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e receber trabalho, etc. Pelo observado em Alto Paraíso, a família ganha vida
no intercâmbio de prestações materiais e espirituais. No contexto da mineria,
as relações de familiaridade são derivadas da consanguinidade e perpetuadas
pelas eventuais remessas que os garimpeiros enviam às suas mães, esposas,
irmãos e filhos como cumprimento de suas obrigações de parentesco. Em
ambos os casos é possível observar que a continuidade das famílias se dá por
meio das obrigações assumidas pelos indivíduos.
Sentir-se fazendo parte de alguma família é assumir obrigações com as
outras pessoas que participam deste agrupamento. Sentir-se parte da família
é fazer parte da vida de outras pessoas, seja colaborando cotidianamente no
projeto alternativo, seja enviando uma parcela de sua sorte no garimpo para
a casa distante. Pode-se dizer que as obrigações, livremente assumidas, tanto
perpetuam vínculos familiares, quanto fabricam o parentesco. A manutenção
do vínculo é promovida pela distribuição e retribuição de prestações das mais
diversas naturezas.
O dar, nas realidades alternativa e garimpeira pode ser relacionado à ideia
de Mauss, para quem “apresentar uma coisa de si a alguém é apresentar algo de
si. [...] Aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual,
de sua alma”31. A coisa dada (seja dinheiro, trabalho, presentes) concretiza a
presença, a condição de estar dentro da família, tanto no caso do garimpeiro
distante de seus parentes, como no caso dos alternativos quando inventam seus
novos laços de parentesco.
A natureza da reciprocidade, sob a ótica de Mauss, está nesse
compartilhamento de substância e essência. Aquilo que é dado, deve ser
recebido (percebido) e, em momento oportuno, retribuído porque pertencente
ao outro. Dar, receber e retribuir são “livres obrigações”. Condições de
participação numa dada malha de relacionamentos, assumidas de pleno acordo
pelos participantes, porque legitimadas pelas convenções sociais.
Uma forma específica de reciprocidade, a hospitalidade (que abrange em
muitos casos a comensalidade), é uma importante via de produção de novos
parentes. A hospitalidade pode ser pensada como uma abertura à alteridade,
condicionada por limites da própria concepção de humanidade em questão.
Entre os alternativos, dar a casa e receber o trabalho de um irmão que não
tem onde ficar e que sabe cozinhar, é uma transação bem comum. Quem
dá a casa, não espera necessariamente a contrapartida imediata, mas esta é a
condição para se fazer parte da família. Deve-se entrar no circuito de trocas
espontaneamente, retribuindo a hospitalidade com algum dom. A família dos
alternativos pode ser caracterizada pela rápida incorporação do “estrangeiro” à
vida cotidiana. Espera-se que este assuma sua posição de membro da família e
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figura paterna eventualmente é substituída por outro homem que não tem essa
substância compartilhada. Nesse caso, extingue-se a aliança com a ex-esposa
e com os filhos, sugerindo um deslocamento de foco da consanguinidade,
revelando também neste contexto o impacto das “relacionalidades” – à
medida que as relações de proximidade não são delimitadas apenas pelo
parentesco genealogicamente organizado, mas são construídas com base no
estabelecimento de laços de afinidade e lealdade duradouras.
O valor da doação para as famílias dos garimpeiros é tão estimado como
no caso dos alternativos. As doações (de perto e/ou de longe) criam e mantém
laços de parentesco no enfrentamento aos desafios de uma vida de mobilidade.
A hospitalidade dos alternativos permite a existência de uma família distribuída
globalmente, enquanto que as remessas dos garimpeiros desde a Venezuela
alimentam seus laços consanguíneos com as famílias no Brasil. Daí a importância
do parentesco para pensarmos mobilidade.
A metáfora da família e as relacionalidades a ela associadas, oferecem um
caminho para comparar diferentes redes e processos migratórios. A relação com
uma família tem efeito sobre a condição de gente do garimpeiro, pois amplia
e/ou fortalece a noção de ser humano no ambiente do garimpo – diferenciada
dos bichos que não teriam família. Já para os alternativos é a extensão da noção
de quem faz parte da família que amplia a condição de humanidade – não
há separação entre humanos e não-humanos. Ambos se constituem como
humanos em relação às suas famílias e em relação à mobilidade. Enquanto uns
querem se afastar da natureza por meio da afirmação de uma família, expressão
da origem diferenciada (um lugar para voltar), outros querem se aproximar da
natureza, reivindicando uma origem comum (um lugar para ir).
Bibliografia
BRYCESON, Deborah; VUORELLA, Ulla. The transnational family: new European
frontiers and global networkings. New York: Berg, 2002.
CARSTEN, Janet. Introduction. In CARSTEN, Janet (ed.). Cultures of Relatedness:
new approaches to the study of kinship. Edinburgh: CambridgeUniversity Press,
2000, p. 1-36.
CARSTEN, Janet. After Kinship. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
LOBO, Andréa. Tão Longe, Tão Perto: famílias e ‘movimentos’ na Ilha da Boa Vista
de Cabo Verde. Brasília: ABA Publicações, 2002.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. In MAUSS, Marcel. Antropologia e
Sociologia. São Paulo: Cosac Naify (1925) 2003, p. 183-314.
RIBEIRO, Gustavo Lins. A condição da transnacionalidade. In RIBEIRO, Gustavo
Lins. Cultura e Política no mundo contemporâneo. Brasília: Editora UnB, 2000,
p. 93-129.
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http://dx.doi.org/10.1590/1980-85852503880004914
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