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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

•• Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

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•• O Antropólogo como Nativo: etnografia sobre a produção do
•• relacionamento etnográfico (vVilliam Crocker e os Ramkokamekra-
Canela) .

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•• Rodrigo Theophilo Folhes
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•-•'.,
.,., Rio de Janeiro

••' 2004

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.•• ,
Disponível para download em
http://www.etnolinguistica.org/tese:folhes-2004
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••• Folhes, Rodrigo Theophilo .
O Antropólogo como Nativo: etnografia sobre a produção do relacionamento

•• etnográfico (William Crocker e os Ramkokamekra-Canela) /Rodrigo Theophilo Folhes. -

•• Rio de Janeiro: PPGSAJIFCS/URFJ, 2004 .

•• 149 p .

•• Bibliografia.

•• !. Sociedades indígenas - Brasil - Maranhão 2. Antropologia - Trabalho de campo 3 .

•• Etnografia 4. Ritual antropológico

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•• II

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•• Quando o rio nasce,

•• Lá na serra.
Quando o rio nasce,

••
Lá na serra.
Óia ainda é bem pequeno,
É primavera.

•• Quando o rio nasce,


Lá na serra.
Quando o rio nasce,
•• Lá na serra
Toma força pra crescer,

•• A só. E nos apega.


Quando o rio nasce,

••
Lá na serra.
Quando o rio nasce,
Lá na serra

•• Seu destino é o mar, iôiô


Que lhe espera.
(Ponto de Jongo)
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•• Em memória

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do "irmão" Stéfano Mendes
Paulino (1977-2003) .

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•• III

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•• Para

•• Todas as mulheres da minha família, pela

•• determinação e carinho com que nos fizeram


homens .

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•• IV


~:
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Resumo

•• Pretendo neste estudo discutir o fazer antropológico por meio de um relacionamento

•• etnográfico sui generis entre o antropólogo norte americano William Crocker e os


Ramkokamekra-Canela. Os caminhos que me conduziram na escrita dessa dissertação se

•• encontram na contemporaneidade das perspectivas antropológicas aliadas ao novo processo


histórico ao qual as sociedades indígenas brasileiras vêm se defrontando, particularmente os

•• índios Canela (o que era urna questão de terras desdobrou-se para urna expectativa

•• generalizada com relação à questão de autosustentabilidade por meio de "projetos"), assim


como na eventualidade da pesquisa de campo .

•• Apesar do enfoque geral da pesquisa contrapor-se aos estudos recorrentes, quando


se fala em grupos Jê, minha intenção é, justamente, tomar o fascínio exercido pela estrutura

•• sociocultural desses povos enquanto descrições antropológicas, e discutir a totalização do

•• termo campo. Com base na etnografia de um ritual antropológico, procurei pensar a questão
da prática etnográfica, em relação a uma dinâmica de processos sociais concebidos por

•• distintos personagens, sem os quais não seria possível a realização do trabalho de campo, e
das teorias que constroem (ou moldam) a forma de conduzir uma etnografia. Desse

•• complexo de representações e significados procedo a uma análise que parte do princípio

•• que a etnografia se faz no "estar lá" e no "estar aqui'', parafraseando Geertz. Assim, ao
descrever e analisar a produção de um relacionamento etnográfico o faço a partir de um

•• espaço-tempo onde todos os agentes sociais são sujeitos na apreensão de uma "cultura" .
Dentro desse contexto, meu interesse residiu tanto em "corno escreve o antropólogo",

•• quanto em "como trabalha o antropólogo" .

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•• V

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•• Abstract

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•• My intention in this essay is to debate the anthropologic action through a sui generis

•• ethnographic relationship ofthe north american anthropologist William Crocker with the
Ramkokamekra-Canela. The roads that drove me in this thesis were the current

•• anthropologic perspectives beside the new historie process which the native brazilian

••
society are living through, specially the Canela people (what was previously a land matter,
became a selfproviding case by projects), and the field investigation .

•• In spite of the general research focus be controversial to the studies around, when
talking about Jê groups, my intention is, exactly, taking the fascination exerted by the
•• social cultural structure of these people whereas anthropologic descriptions, and discuss ali

•• the senses of the term field. Based on the ethnography of a anthropologic ritual, I started
thinking about the ethnographic practice, relationed to a social process dynamics concepted

•• by distinct persons, without whose it would not be possible to realize the field work, and
the theories that construct ( or mould ) how to conduct an ethnography. From this variety

•• of acting and senses I make an analysis starting on the concept that ethnography is made on

•• "being there" and on "being here", mentioning Geertz. Thus, when I describe an
ethnographic relationship, I do it from a time-space where and when ali social agents are

•• subj ects on cultural assimilation process. In this context, my interesting is on "the way the
anthropologist writes", and on "the way the anthropologist works" .

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•• VI

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•• Agradecimentos

•• O resultado final deste trabalho teve em sua trajetória o reconhecimento de pessoas

•• que, por razões distintas, foram de suma importância afetiva, intelectual e material. Nesse
processo sou grato a todos que me ajudaram e confiaram na minha iniciação acadêmica .

•• Certamente, algumas pessoas deixarão aqui de serem lembradas, menos pela importância

•• do que pela ocasião .


Em primeiro lugar, agradeço ao professor Marco Antonio Gonçalves, na qualidade

•• de orientador, pelo apoio e estímulo intelectual, contribuindo para minha formação em


Antropologia e interesse pelos povos indígenas .

•• Neste trabalho, contei com o apoio fundamental da professora Elizabeth Maria

•• Beserra Coelho que, por seu movimento atuante em prol das causas indígenas, abriu portas
burocráticas para meu encontro com os Ramkokamekra-Canela. Sou muito grato por sua

•• assistência e companheirismo .
Aos professores José Reginaldo dos Santos Gonçalves e Elsje Lagrou pelos

•• proveitosos comentários feitos na qualificação. O primeiro contribuindo de forma mais

••
direta na minha formação acadêmica .
A Peter Fry pelo estímulo e discussão no momento inicial de minha pesquisa, assim

•• como por despertar-me o interesse pela Antropologia nos anos de graduação .


A construção desta etnografia pôde tornar-se viável graças a William Crocker, pela

•• gentileza de me deixar acompanhar seu trabalho com os canelas. Compartilhou suas

••
experiências pessoais e etnográficas, demonstrando sempre sua atenção e respeito, mesmo
sabendo que se tratava de um jovem etnógrafo. Conhecê-lo foi, antes de tudo, um

•• aprendizado .
A Julio César Melatti pela intermediação com William Crocker.

•• Agradeço ao CNPq, pelo apoio financeiro, mediante bolsa de estudos, durante um


ano e meio do curso .

•• A Claudinha e Denise do PPGSA pela paciência com meus enrolos burocráticos e

•• constantes troca de endereço .


A Marilda Torrano Paranho Lopes, pela revisão do texto .

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•• VII

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•• Aos amigos da turma de mestrado. Agradeço a Luís Alberto Couceiro, homoso
tricolor, que discutiu com interesse e sensibilidade este trabalho. A Roberta Guimarães,

•• Mareio Villar, Maurício Sianes, Elizete Ignácio, pelo companheirismo e troca de


informações .

•• A Gustavo Pacheco, pelo empréstimo do MD, durante a VIII Reunião da ABANNE,

•• possibilitando a gravação das músicas rituais do Pepjê. E a Edmundo Pereira, pela edição
dos CDs .

•• No lvlaranhão, a Agostinho Marques, Beth Bittencourt, Juliana Manhães, Cláudio


Costa, Julio César Braga que ofereceram além, de sua hospitalidade, a oportunidade de

•• desfrutar da riqueza cultural maranhense, em todos os seus sabores, performances e cores .


Em Barra do Corda, a Genildo e Ribamar, pela oportunidade que me deram de
•• conhecer o universo indígena. Ao Núcleo de Apoio Local Canela-FUNAI, na pessoa do Sr.

•• Raimundo Martins Franco, pelo apoio ao meu trabalho .


No Ceará, sou muito grato ao professor Edson Vicente (Cacau), quem me ensinou

•• as sutilezas e a responsabilidade social e humana ao lidar com o Outro .


A meus pais e respectivos cônjuges, padrinhos, avós, tias-avós e irmãos, por tudo .
•• Vanessa, minha companheira, sou muito grato pela paciência, carinho e inestimável

•• ajuda para a realização desta pesquisa. A seus pais, pelo grande apoio. E ao Bento, pelo
aluguei do computador e a escassez de minha presença na participação de suas fantasiosas

•• brincadeiras .
Aos sempre presentes amigos, Guilherme Lemos, Lúcio Braga, Anderson Costa,

•• Iara G. de Bulhões, Tiffany Klaim, Fabrício Batista e Juliana Loureiro pelo apoio

•• fundamental ao longo de nossos anos de convivência. Sem eles não teria sido possível me
tomar antropólogo .

•• O agradecimento especial vai para os Canela, principalmente para Francisquinho


Tep-hot e toda minha família de batismo que foram muito receptivos a minha presença,

•• tomando prazerosos os momentos em convívio e de inestimável valorização humana .

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VIII

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•• Sumário

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•• Prólogo: Entrando em Campo X

•• Introdução XIX

•• Capítulo I
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•• Crocker para além dos canelas 1

•• Capítulo II
•• Diaristas e Assistentes de pesquisa de Crocker 32
••
•• Capítulo III
•• Crocker em campo 67
••
•• Considerações finais 113

•• Referências bibliográficas 117

••
••
• IX

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•• Prólogo

•• Entrando em Campo

•• Chego pela primeira vez na Aldeia Escalvado, em abril de 2001. Por essa época,

••
estava assistindo como ouvinte a disciplina de Etnologia Brasileira, oferecida na graduação
do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), ministrada

•• pela Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho. Nos dias que precederam o Dia do Índio
(19 de abril), conheci, no pátio desta universidade, dois índios, vendendo artesanato. Um

•• deles se identificou como índio Cariri e o outro como índio Canela 1• Estavam ali não só
para vender artesanato de seus grupos indígenas, como para divulgar suas respectivas

•• culturas nas escolas de ensino fundamental de São Luís. Curiosidades daqui e dali, não

•• tardou para que me convidassem a acompanhá-los nas palestras escolares. Após duas
semanas de encontros nesta cidade, recebi o convite para visitar a aldeia de ambos .

•• A aparente tranqüilidade de conhecer as aldeias se contrapôs à dificuldade de


consegmr autorização do órgão indigenista oficial. Por sorte, a professora Elizabeth

•• mantinha boas relações com a Ajudância da FUNAI, em Barra do Corda, e seu

•• administrador, o índio guajajara Dilamar Pompeu. Após o contato entre eles, Dilamar me
recebeu querendo saber quais eram minhas intenções em visitar as aldeias. Expliquei que

•• estava fazendo um trabalho para o curso de Etnologia Brasileira, ministrado pela professora
Beta (como é conhecida por todos), e que recebi o convite através dos próprios índios .

•• Assim, consegui a autorização para ficar alguns dias entre os Ramkokamekra-Canela, e

••
também com os guajajara na aldeia Ingarana, cujo "cacique" era o sogro de Genildo .
Durante os dias que passei na casa de Ribamar, tomei os primeiros embates em

•• relação ao convívio direto com os índios canela. Ribamar vivia com sua família em Barra
do Corda e me alertava sempre que possível sobre como os canela lidam com os kupen e,

•• 1
A trajetória desses dois índios é muito interessante. Genildo foi militante durante muitos anos do movimento

•• indígena pernambucano, acabou casando-se com uma índia Guajajara e mora atualmente em Barra do Corda.
Ribamar se criou na cidade do Rio de Janeiro e trabalhava na empresa de ônibus Cidade do Aço, quando um
motorista lhe indagou se tinha algum parentesco com os índios de Barra do Corda. Durante toda sua vida foi

•• chamado de "índio" por seus colegas, tendo pouca informação sobre suas origens. Decidiu ir atrás do seu
passado e acabou parando na Aldeia Escalvado, onde supostamente há trinta anos (sua idade) uma índia
grávida havia saído da aldeia, imagina-se rumo ao Piauí, e nunca mais retornou. Ribamar acabou casando

•• nesta aldeia e hoje vive na cidade de Barra do Corda com três filhos, mesmo assim não se livrou do estigma,
agora revesso .

•• X

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@
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•• por sua vez, os cuidados que deveria ter na aldeia, principalmente em relação a índios

•• alcoolizados. Tomou-se uma preocupação para ele, e conseqüentemente para mim, saber
quem me receberia na Aldeia Escalvado, uma vez que pretendia ficar em uma casa na

•• aldeia e não no posto da FUNAI. A casa de Ribamar, na cidade, ficava a poucos metros da

•• Casa do Índio Canela2. Este lugar abriga todos os Ramkokamekra que, por ventura,
necessitem estar na cidade: estudantes e seus núcleos familiares; famílias que estão com

•• parentes internados ou precisando de maiores cuidados médicos; índios que estão prestando
algum serviço para FUNAI, FUNASA, ou prefeitura; aposentados, pensionistas e

•• transeuntes em gera!3. Foi assim que uma família deste lugar se ofereceu para me receber

••
em sua casa, aliviando minhas expectativas .
Com a autorização em mãos e uma família certa para me acolher, bastava esperar

•••
por uma vaga no transporte para a aldeia. Novamente Ribamar me alertou para tomar
cuidado. Questionou se não seria melhor ir com ele nos próximos dias até a casa de seu
sogro na Aldeia Velha, um dos lugares de dispersão dos índios para a produção da roça4 ,

•• aproveitando que nessa época estão todos espalhados pela TI Kanela, cuidando de seus

•• plantios. Cheguei a ficar um pouco confuso com esse episódio, pelo fato de observá-lo de
maneiras distintas: ou Ribamar estava querendo trazer mais um integrante para sua família,

•• de modo a ampliar a rede intrafamiliar, e com isso assegurar maiores beneficias a seu
sogro; ou estava realmente preocupado com a minha segurança e bem estar. Sem entrar em

•• juízos de valor, retifiquei meu desejo de conhecer a Aldeia Escalvado e que tomaria os

••
devidos cuidados. Mesmo assim, tendo já uma família se oferecido para me receber (isso
acontece com qualquer pessoa que chegue ou vá para a aldeia), Ribamar tomou o cuidado

••
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••
2
A Casa do Índio Canela foi doada por Crocker, no intuito de oferecer melhores condições aos índios, no
caso de permanecerem por pouco tempo na cidade. Já existia no local urna precária residência que, segundo
Raimundo Roberto, deixava a desejar quanto ao nível de higiene. Em 2001, quando estive por lá, já existiam

•• algumas poucas casas particulares (habitadas por índios) em torno dessa grande casa. Já em 2003, pude
perceber um grande número de casas alugadas, também próximas à Casa do indio Canela. Uma possível
explicação seria o aumento das assistências prestadas aos índios, tais como: auxílio maternidade, bolsa escola,

•• vale gás, etc. A casa de Ribamar, que na verdade pertence ao seu sogro, também foi doada por Crocker .
3
É interessante observar que, na cidade de Barra do Corda, as diferentes etnias indígenas constituíram suas
moradias em diferentes localidades da cidade, mantendo os laços de suas diferenças .

••
4
Atualmente chamam esses lugares de "setores de roça''. Acredito ter sido criado esta categoria em razão do
incremento de projetos voltados para a atividade agrícola, pelo administrador Raimundo Franco .

•• XI ·

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de me informar e de me assegurar que aquela seria urna boa família, pois o chefe dela era
"crente" 5.
No dia 23 de abril de 2001,parti rumo a Aldeia Escalvado junto com o chefe do PI

•• Canela e alguns índios na carninhonete da FUNAI. Começavam neste momento os

•• antecedentes da minha dissertação .


***

•• Inicialmente, toda relação que desenvolvi na aldeia foi através da família que me
adotou. Para tanto, minha relação etnográfica foi, antes de tudo, uma relação familiar (sem

•• pretensos essencialismos), tendendo entre os limites individuais, dentro de um grupo, e

••
meus limites enquanto kupen. Quando me refiro a limite individual, o faço em relação ao
comportamento esperado frente às regras sociais em curso que, a priori, um estrangeiro

•••
pode quebrar. Não precisava realizar nenhum trabalho, como buscar água, pegar lenha,
caçar, cozinhar, enfim, nada que precisasse produzir para o meu sustento (é esperado pela
família adotiva que se traga mantimentos, principalmente carne, mas não chega a ser

•• nenhuma obrigação). Nesse sentido, desfrutava aparentemente de certas transgressões o que

•• não significa dizer que não estavam sendo notadas, principalmente, se levarmos em conta
que eu estava sendo mais observado do que observador, não só pela família adotiva, corno

•• por todos da aldeia .


A princípio, em 2001, eu não tinha uma pesquisa preestabelecida. Como

•• conseqüência, o desenvolvimento da minha iniciação na aldeia, assim corno o lugar onde

•• me estabeleci e os papéis sociais dos membros de minha nova família (principalmente pelo
contato que pude estabelecer com um dos responsáveis pelo andamento cerimonial e

•• político da aldeia), foram fundamentais para a episteme deste trabalho .


Francisquinho Tep-hot foi quem me recebeu na aldeia, após ler um bilhete que me

•• apresentava corno seu futuro "neto". Seu genro e filha, que me adotaram, não puderam ir

••
comigo à aldeia, por causa de um sério agravamento no estado de saúde de minha "irmã",
internada no hospital da cidade - motivo pelo qual se encontravam em Barra do Corda.

••
•• 5
Se buscasse por coincidências que tivessem me levado a pesquisa atual, diria que aqui estaria wna grande
ocasião. Primeiro porque o sogro de Ribamar é Raimundo Roberto Kaapêltlik, e segundo porque o crente em

•• questão, é Francisquinho Tep-hot. Ambos, principais assistentes de pesquisa de Crocker. Este último, um dos
grandes responsáveis pelo meu atual interesse de pesquisa .

•• XII

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••
•• Isso equivale dizer que, ao invés de conviver com minha família nuclear, convivi a
maior parte do tempo da primeira visita aos Ramkokamekra, com a linha materna e seus

•• maridos, da qual a primeira se originou. A necessidade de ênfase a este fato se dá porque,


apesar de serem eles correspondentes da minha família extensa, poderia eu facilmente não

•• participar de suas reuniões alimentares e notívagas, uma vez que as famílias extensas se

•• reúnem com mais frequência durante as atividades de roça e durante as diversas "festas". É
principalmente ao lado da fogueira, durante a alimentação, o momento onde tudo é

•• conversado, combinado e resolvido entre as unidades familiares, compostas pelas filhas da


mulher do sogro, genros e filhos .

•• Numa análise apressada - que me perdoem os ''.jêlogistas" - poderia dizer que não é

•• muito dificil entender a noção Ramkokamekra de "família", composta pela linha de


descendência materna, e os aspectos de nomeação do dualismo Jê. Porém, para o que se

•• presta esta análise, diria que o meu deslocamento na aldeia, em relação aos domínios
familiares - entenda-se até onde permaneço em outras unidades familiares e na presença de

•• quem - foram pontos positivos (a posteriori) para um bom relacionamento. Frases como

•• "você não anda por aí à toa, do outro lado da aldeia" foram usadas em meu favor quando
necessário .

•• Notem que uma casa pode ter várias famílias nucleares, ou mesmo apenas uma .
Minha inxê (mãe) já havia saído da casa de sua mãe, e começava a formar o seu próprio

•• domínio familiar através da constituição de genros, indispensável para a sobrevivência

••
familiar. Na casa de Tep-Hot havia quatro núcleos familiares, conseqüentemente quatro
genros para ajudá-lo nas tarefas diárias .

•• Foi neste ikhre (casa), que durante uma das reuniões noturnas dessa unidade
familiar, vim estranhar a presença de um gravador que funcionava repetitivamente,

•• reproduzindo as cantigas tradicionais Ramkokamekra (Tep-hot é um dos principais


cantadores da aldeia) e músicas do gênero sertanejo, principalmente forró, muito popular

•• nesta região. Porém, meu estranhamento não se deu pela audição das músicas em si, e sim

•• por ver que o mesmo gravador era usado por Francisquinho Tep-hot para gravar seu próprio
depoimento. É dentro deste contexto, que venho descobrir a origem e a função deste

•• gravador para aquele índio e para o seu receptor: o antropólogo William Crocker.

••
•• XIII

••
e
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•• A minha segunda viagem para a Aldeia do Escalvado, neste mesmo ano, teve o
intuito de acompanhar uma das "festas" do ciclo de iniciação dos jovens canela. Permaneci

•• por 21 dias na aldeia, acompanhando a festa do kêtwuajê, onde fiquei bastante


impressionado com a complexidade e participação ritual, característica dos grupos Jê .

•• Embora amplamente descrito por diferentes antropólogos, não foi menos impactante. Ao

•• voltar para o Rio de janeiro, procurei o professor Marco Antônio Gonçalves, para lhe contar
as minhas experiências de campo. Este mostrou-se interessado e me incentivou a prestar

•• prova para seleção do mestrado do PPGSAJIFCS!UFRJ. Restava pouco tempo para


escrever um plano de estudo a ser apresentado neste programa e, como já disse, havia

•• ficado bastante impressionado, para não dizer encantado (assim como grande parte

•• daqueles que vão estudar os Jê) com o ritual de iniciação. Fato esse que me fez propor, para
o plano de estudo, uma relação entre mito e rito nos Ramkokamekra-Canela .

•• Com a entrada neste programa e passada a euforia ritualística, em ambos sentidos,


pude rever meus dados e voltar a depositar meu interesse, com a ajuda do meu orientador,

•• na relação do Crocker com os Canela. Marco Antônio me emprestou o livro, The Canela

••
(Eastern Timbira), !, onde pude começar a pesquisar o modelo de etnografia empreendida
pelo Crocker 6• Logo em seguida, levantei a bibliografia deste autor, no Museu do Índio, no

•• intuito de desenvolver minha pesquisa. Após tomar conhecimento do material etnográfico


de Crocker, fiquei particularmente interessado no colecionamento de cultura realizado por

•• ele, através de infindáveis registros, contrapondo-se ao movimento de Tep-hot em começar


a instituir um acervo sonoro .
•• • ••
•• O retorno à aldeia em 2003, ao contrário das outras duas vezes em 2001, teve um

•• objetivo (aparentemente) especifico 7 : levantar dados a respeito da estrutura de


documentação e produção de raro acervo etnográfico, empreendido pelo antropólogo

•• \Villiam Crocker com os índios Ramkokamekra. O intuito era perceber como ele

•• estabeleceu esta relação etnográfica, desde a segunda metade do século passado, com seus

•• 6
Mais tarde esse antropólogo enviou um livro para mim e outro para o professor Marco Antônio. Este, por
sua vez, o cedeu para a biblioteca do IFCS .

••
7
Somente quando escrevia a dissertação, pude definir com maior clareza o tema a ser trabalhado, uma vez
que não esperava ter um encontro etnográfico com o Sr. William Crocker.

•• XIV

••
!!!
••
••
••
•• assistentes de pesquisa. Tinha como proposta entender o colecionamento de cultura
realizado por este antropólogo, e a visibilidade deste empreendimento pelos índios. Porém,

•• tomava a cultura como um bem "patrimoniável" por ambos sujeitos .


Na qualificação, procurei explorar o engendramento entre o "sujeito" e o "objeto",

•• propondo situar a alteridade discursiva, em face do crescente movimento de valorização da

•• cultura indígena junto à sociedade nacional, onde a cultura apareceria, também, como um
bem patrimoniável, tanto para o antropólogo, vinculado a esquemas e tipologias

•• museográficas, quanto para os índios, interessados na reprodução de sua cultura por meio
de "projetos". Todo esse cenário convergiu para o interesse na relação, já muito debatida,

•• do antropólogo com o nativo e, conseqüentemente, nas implicações das práticas do


primeiro. Encaminhei a discussão, em parte, acerca do envolvimento entre pesquisador e
•• pesquisados. Deste modo, percebia que o fazer antropológico não estava sendo visto em

•• descontinuidade com seu objeto de estudo. O que o antropólogo faz, no sentido de


"colecionamento de cultura", seu objeto também faz (por diferentes significações) .

•• Cheguei a Barra do Corda em fins de maio, ainda sem a autorização para entrar na

•• aldeia. Optei por não pedi-la diretamente por Brasília, em função dos entraves burocráticos
que são de praxe em órgãos públicos brasileiros e também por já ter visitado aquela aldeia

•• duas vezes e possuir uma família de batismo. Pensava, naquele momento, no


desencadeamento da Constituição de 88, particularmente sobre a tutela dos índios. Portanto,

•• eles poderiam muito bem aceitar ou não a minha presença na aldeia (mais tarde vim

•• perceber que a questão não é bem assim). Pelo sim, pelo não, semanas antes de chegar à
aldeia, realizei contatos com a professora Beta, em São Luís, que me apresentou a um de

•• seus alunos, que estava fazendo campo com os Canela. Esse rapaz, filho de um indigenista
da FUNAI, mantinha boas relações com os funcionários do recém criado Núcleo de Apoio

•• Local dos Kanela - NALK-FUNAI. Lá, me apresentou a "Chefe NAL Kanela Substituta",

•• Maria Lúcia Rocha de Araújo que me concedeu a autorização, após o esclarecimento da


intenção da minha pesquisa e a constatação de que já havia estado entre os Ramkokamekra.

•• Ainda em Barra do Corda, encontrei por sorte, com minha família adotiva. Estavam
em uma casa alugada bem próximo a "Casa do Índio Kanela". Tive, na ocasião, a primeira

•• experiência do lamento entoado pelas mães e avós, após o reencontro com seus filhos. Esse
tipo de choro é característicos dos grupos Jê .
••
•• XV

••
••
••
••
• ••
Novamente, fui para a aldeia, sem a presença do meu núcleo familiar, e mais uma
vez em função de problemas de saúde, só que agora com meu "irmão" Prefet. Este rapaz
estava recluso na aldeia durante o ritual de iniciação do Pepjif. Foi eleito pelo conselho

•• prokãm mã (classe de idade mais velha, socialmente ativa, formada exclusivamente pelos

••
homens da metade harâncatejé, responsáveis pelas decisões políticas e cerimoniais da
aldeia) como líder do grupo iniciado, chamado por eles de me capõn cate (comandante do

•• grupo). Estava na cidade por causa de vômitos de sangue, ocasionados, segundo eles, pelo
treinamento da corrida de tora .

•• Ao chegar na aldeia fui recepcionado por meus "pais", genros de Tep-hot, onde foi
demonstrado grande contentamento com minha volta. Já era noite, por isso não tive tempo

•• de fazer parte da reunião no centro do pátio. Como é sabido, entre os grupos timbira, os

•• homens, posicionados conforme seus lugares na estrutura social, fazem reuniões ao


amanhecer e ao entardecer no centro da aldeia. Sempre que alguém chega na aldeia,

•• principalmente se for kupen ou "parente" (como chamam membros de outros grupos


indígenas), deve prestar esclarecimentos sobre sua visita, assim como, possivelmente, falar

•• sobre coisas que tem feito, o que tem observado, como está o "governo do Brasil", qual

•• "chefe" que te mandou, como está a família, etc .


Naquele momento, os Ramkokamekra estavam ocupados com o registro de carteiras

•• de identidade, CPF e título de eleitor. Organizavam-se em grupos para irem a Fernando


Falcão tirar esses documentos 9 • Para variar, uma tarefa nada fácil de se concretizar, menos

•• pela organização interna do que pelos enganos de funcionários da FUNAI, prefeitura e até

•• mesmo dos funcionários dos cartórios que, pelo desconhecimento da grafia canela, erraram
ou deixaram incompletos quase todos os registros de nascimento, aumentando a burocracia .

•• Por conta deste episódio, só fui chamado a participar da reunião no pátio dois dias após
minha chegada .

•• Paralelamente, foi interessante notar que durante esses dois dias muitos acreditavam

••
que eu estava trabalhando para a FUNAL Afinal de contas, havia chegado na aldeia pela
caminhonete do órgão indigenista, que trazia um boi para ser distribuído para a

•• 8
9
Este é o segundo momento de internação do ritual de iniciação dos jovens Canela .
Nas ultimas eleições conseguiram eleger um vereador Ramkokamekra. Estavam querendo agora eleger mais

•• dois novos vereadores, um representante para cada metade da aldeia. Apesar de não estarem nada satisfeitos
com a atuação do vereador, ter um representante índio compondo as reuniões políticas dos !wpen (não-índio)
é visto com grande entusiasmo .

•• XVI

••
~ ~
~:,.
••
••
••
•• comunidade, em troca da realização de um projeto de seleção de mitos canela, no intuito de
servir corno livro didático bilíngüe, na escola indígena do Escalvado e Porquinhos

•• (Apaniekra-Canela). Nesse episódio, houve muitas confusões. A primeira delas foi a


quantidade de carne que não atendia à comunidade corno um todo (o que é praticamente

•• impossível), nem mesmo a todos os prókãm mã; em decorrência disso, aqueles que se

•• sentiram atingidos levantaram a questão do porquê somente os "contadores de estórias"


ganharam· a carne, urna vez que esse tipo de prática não atendia à sua tradicional divisão

•• entre as metades no centro do pátio. A segunda foi a relação que fizeram deste projeto da
FUNAI comigo, o que poderia causar alguns desentendimentos em razão das tensões

•• políticas locais. E a terceira, e certamente não a última confusão, os critérios qualitativos do

•• projeto, em relação ao tempo, apenas urna semana, e a falta de urna metodologia específica
que, em se tratando da FUNAI, não é novidade nenhuma .

•• Muitos índios vieram reclamar comigo, principalmente o antigo cacique Zé Pedro


Preto, dizendo: que isso não era assim, e que estória era essa de Ramkokame!O'a, se eles

•• nem sabiam de onde tinha saído esse nome 10; que as leis do mehim (índio) não eram assim,

•• tinha que dividir para todo mundo. Enfim, comecei minha pesquisa já sendo confundido
corno "empregado" da FUNAI - cheguei reahnente a acompanhar a pesquisa e auxiliar,

•• dentro do possível, o pesquisador contratado - e o que é pior, suscitando desconfianças


sobre a minha pessoa .

•• Dois dias depois da minha chegada fui chamado para falar no pátio. Aquele
primeiro embaraço sornou-se ao lembrete do Júlio César Melatti sobre os cuidados que
•• deveria tomar para que os índios, assim como os "brancos", "amigos ou não", não

•• interpretassem minha presença com alguém que estivesse ali para fazer um "inquérito
administrativo", ao invés de urna pesquisa sobre o Crocker 11 , o que me fez pensar bem

•• sobre o que iria falar. No entanto, essa não foi a questão, pois estavam menos interessados
sobre o que eu realmente fazia ali, do que em saber sobre corno poderia ajudá-los na

•• captação de recursos para diversos projetos. Isso, acredito eu, deve-se em parte ao meu

•• Este índio me dizia que eles eram m~e Mortumre, e Põkamekra. Crocker (1973:81) menciona,em nota, que
10

•• muito freqüentemente os índios se autodenominavam '~mol-tum.le", mas não menciona nada a respeito do
termo Põkamekra.
11
Ao buscar cantata com Crocker, no intuito de noticiá-lo sobre minha pesquisa, me comuniquei primeiro

•• com Melatti, pois é ele o atual responsável pelas autorízações necessárias à permanência do Crocker na
aldeia. Melattí foi de grande ajuda para uma melhor aproximação minha com Crocker .

•• XVII

••
e
••
••
••
•• envolvimento com Francisquinho e a visibilidade das outras lideranças nesta relação. Tep-
hot sempre fazia questão de mostrar para mim (e para todos) o que estava fazendo pelo seu

•• povo, as preocupações que tinha em relação ao futuro, assim corno buscava a todo o
momento saber sobre "projetos" .

•• De qualquer forma, já era notório que iria fazer urna contraproposta a eles, até

•• mesmo em função da imparcialidade do administrador local, Raimundo Franco, em propor


aos antropólogos alguma ajuda, e lembrá-las aos índios - o que não chega a ser nenhuma

•• injustiça.
Mas não foi diante deste bom ímpeto administrativo que se pautou minha relação

•• para com os supostos Ramkokamekra. Desde minha primeira visita, era sabido,

•• principalmente pelos prókãm mã e minha família extensa, os poucos recursos que possuía .
Posso dizer que também sabia sobre corno articulavam, a grosso modo, o pagamento da

•• estadia, ou o turismo etnográfico. Durante o campo de 2003, obtive maiores recursos para
levar bens materiais aos índios, em função da bolsa do CNPq. Mesmo assim, em

•• comparação com muitos antropólogos, eram bem limitados. Atendi, unicamente, a urna

••
parcela da minha família extensa, entre homens e mulheres, e nem mesmo ao conselho dos
prokãm mã pude dar respaldo. Mesmo que eles tenham entendido minhas limitações, ora ou

•• outra isso poderia ser (e era ) usado contra mim .


Corno forma de estabelecer um mecanismo de controle e ajustamento de nossas

•• relações, me comprometi a ajudá-los na elaboração de projetos culturais pensados por Tep-


hot. Contava, portanto, com o apoio do "Major" da aldeia, o próprio Tep-hot, e alguns

•• outros membros dos prokãm mã, curiosamente também ligados a minha família de batismo .

•• No que concerne a minha pesquisa em si, pelo menos a princípio, pareciam não
entender muito bem, nem tão pouco demonstraram muito interesse por ela, até porque

•• acredito não ter sido muito claro em relação ao que pretendia atingir com a pesquisa, talvez
por conta das suposições de Melatti, talvez por eu mesmo não ter clareza de sua

•• objetividade, na época.

••
••
••
•• XVIII

••
e
••
••
••
•• Introdução

•• Cai a tarde, os núcleos familiares se reúnem. Comida dividida ao lado da


fogueira. Alguns genros se deslocam para sua família de origem. Entre

•• cochichos, risadas e conversas esparsas, um pequeno gravador funciona


exaustivamente nas mãos do sogro. Uma corriqueira situação na Aldeia

•• Escalvado, entre os índios Ramkokamela·a-Canela, no cerrado maranhense,


toma-se um instigante motivo de reflexão, em face de um conhecido
•• instrumento de uso: o gravador .

•• Poderia ser qualquer gravador, mas não era. Poderia ser qualquer música,
mas não era. Poderia ser qualquer pessoa, mas não era. Como corolário, a

•• noite calma seguia até presenciar a outra natureza do instrumento. Um


pouco mais afastado da fogueira, o mais velho deste ikhre hlú (localidade da

•• família extensa), à qual eu também fazia pai1e por batismo, gravava seu

•• próprio depoimento por pouco mais de meia hora. Seu nome, Francisquinho
Tep-hot Canela. Essa foi uma entre tantas outras noites que se seguiram,

•• onde não só escutávamos as canções Ramkokamekra, como Tep-hot se


mostrava apreensivo quanto ao futuro das cantigas cerimoniais. A todo
•• momento buscava saber sobre projetos, associações e, principalmente, em

•• como eu poderia ajudá-lo na concepção de um projeto que consistisse na


gravação de um CD, no intuito das cantigas não morrerem junto com ele.

•• Este poético relato tem a intenção de situar o leitor em dois âmbitos, ora

•• considerados distintos, ora considerados parte de um mesmo processo, pelo qual, esta

•• dissertação irá dialogar: descrição e relacionamento etnográfico. Este último quase nunca
dimensionado pelos fatos (e interpretações), ao primeiro. Muitas águas já se passaram

•••
diante dos desbravamentos antropológicos e ao lado das clássicas leituras antropológicas,
muitas críticas se sobrepuseram, em consonância ao tempo histórico, sem contudo
deixarmos de realizar etnografia .

•• Lá se vão quase cem anos, desde o lançamento de Os Argonautas do Pacifico

•• Ocidental (1922), quando Malinowski já se preocupava com o futuro da etnografia, que


acabara de se consagrar como ciência, por meio da proposição de teorias antropológicas em

•• XIX

••
•e
••
••
••
•• descrição etnográfica. Dizia ele, no prefácio desse livro: "A etnografia está numa situação
penosamente ridícula, para não dizer trágica: no momento exato em que começa a pôr

•• ordem no seu trabalho, a forjar os seus próprios instrumentos e a empreender a tarefa que
lhe é cometida, o material de seu estudo dissolve-se com uma rapidez desesperante''. A sua

•• inquietação, pois, era com o objeto, não com o sujeito e a abordagem metodológica

•• utilizada pelo antropólogo para conhecer a comunidade que estuda. Imaginava-se, até Lévi-
Strauss diria (este quase sempre considerado um caso à parte), que a cultura, enquanto foco

•• da observação antropológica estava fadada ao desaparecimento. As interligações dos


sistemas comerciais, dos meios de comunicação, de uma economia globalizada pelo

•• "sistema mundial", onde as territorialidades e os sistemas culturais estariam se

•• homogeneizando, era uma preocupação que acompanhava os antropólogos modernos e, a


seguir, pós-modernos, movimentando assim grandes debates que circunscrevem a atitude

•• ou "imaginação antropológica". O que podemos perceber, a partir dos anos 60, é que a
lógica de integração entre teoria e prática começa a ser contestada por uma mudança de

•• perspectiva do objeto para o sujeito, justamente pela mesma preocupação com o futuro da
etnografia (ocidental por excelência) - o pensamento filosófico começa a aparecer, por essa
•• época ainda mais orientado à idéia de ciência do que de discurso .

•• Em principio dos anos 70, essa preocupação se mostrou mais latente a partir do
entendimento da cultura como texto, pelo conceito de "descrição densa" (símbolo da

•• "antropologia interpretativa") proposto por Geertz, e posteriormente, relacionada


diretamente ao texto etnográfico, pelos antropólogos do Writing Culture, sobre o mesmo
•• prisma da relatividade das teorias explicativas. Estava também em jogo, neste momento,

•• uma politização da disciplina que via, no relacionamento etnográfico, uma relação desigual
de conta/os, não só enquanto "meio ideológico de vitimização", quanto de enunciação de

•• discurso. Por esse lado, se tomava um problema epistemológico. É dentro desse


"estranhamento da autoridade etnográfica" que muito se tentou "dar voz" ao Outro, seja

•••
pelo regime discursivo, onde o antropólogo parece se colocar como interlocutor de seus
informantes, seja pelo regime polifônico, este uma "utopia da autoria plural" .

•• No quadro epistêmico descrito, o sujeito (até anos 60) não está implicado no
discurso, a linguagem utilizada é mais gramatical e fonológica. Após esse período (anos

•• 70), percebe-se que a linguagem passa a ser o texto, deixando de ser a gramática, aparece o

•• XX

••
•e
••
••
••
•• símbolo, o que interessa é o significado e não o significante. O discurso do sujeito é
homo lógicamente o discurso do nativo, o nativo também textualiza. A presença do sujeito é

•• mais visível, está lendo sobre "os ombros do nativo". No momento seguinte (anos 80), a
linguagem deixa de ser semântica e passa a ser pragmática, deixa de ser texto e passa a ser

•• o discurso, deixa de ser o símbolo e passa a ser o índice (conecta o discurso às condições de

•• produção). Implica-se a noção do diálogo. É bom termos em "mente" que no século XX a


linguagem foi "a morada do ser", por isso, vai servir como a grande fonte metafórica,

•• sobretudo, para as ciências carentes de pai, tal como as ciências sociais, em geral, e
antropologia, especificamente .

•• A partir de Malinowski onde as formas de explicação do mundo ganharam requintes

•• específicos e epistemológicos, as diversidades sócioculturais floresciam como perspectivas


de trabalhar e renovar as teorias sociais. A teoria, como abstração, tem em seu debate a

•• tentativa de mostrar a sua própria disciplina, enquanto níveis axiológicos, a capacidade


explicativa que elas contém. Nesse sentido, a lógica de formulações teóricas toma

•• pressupostos epistemológicos variáveis. Os caminhos de representação do outro foram

•• moldados a partir de certas correntes e pressupostos oscilando, ou ainda propondo uma


terceira via entre as dicotomias clássicas como: natureza e cultura, teoria e prática, dado e

•• construído, fenomenológico e epistemológico, ciência e não-ciência, oral e escrito,


cognição e ideologia, e várias outras. Atualmente, existe um diálogo de paradigmas, onde

•• nenhum paradigma parece ser totalmente autónomo. O pêndulo agora é atemporal, mas ao
mesmo tempo histórico, não há mais uma hegemonia clara. Ao abrigar estilos bem
•• diferenciados, por conta de diversos fatores que envolvem tanto aspectos subjetivos de

•• pesquisadores e pesquisados, quanto objetivos, de orientação teórica e procedimentos de


pesquisa, assim como a momentos históricos específicos, tende-se a uma ambigüidade que

•• expressa, por um lado, a riqueza dos conceitos antropológicos e, por outro, críticas que
sustentam que existem "tantas antropologias quanto antropólogos" (Peirano, 1995). Essa

•••
situação de otimismo e vulgarização refletiu-se em uma determinada época entre os
antropólogos provocando grandes debates a respeito da validade das práticas etnográficas,

•• movimentando o confronto entre teoria e prática .


O que resulta de tudo isso é que hoje percebemos que as culturas não se

•• extinguiram, pelo contrário, adquiriram estratégias de preservação e continuidade, menos

•• XXI

••
•e
••
••
••
•• por seu caráter de estabilidade, do que pelas transformações que são suscetíveis a todos nós
- como é o caso que acabamos de ver pela história da produção de conhecimento em

•• antropologia. A idéia de que as culturas estariam em fase de extinção mediante o avanço


dos processos de "transculturação" acompanha a disciplina, como vimos, desde sua

•• institucionalização, cientificamente legitimada pelo trabalho de campo. Como prerrogativa,

•• o conceito antropológico de cultura nunca foi de consenso geral para as escolas em


antropologia .

•• O fato é que, independentemente dos caminhos que o antropólogo irá tomar, este
quase nunca consegue se livrar da etnografia, salvo a ideologia das instituições de fomento

•• de bolsas de pesquisa que delimitam cada vez mais o pesquisador em concentrar-se em suas

•• '\rarandas" .
...
•• Dentro desse panorama, "exótico", se considerarmos como Bacherlard (1970) que
deve-se contradizer o passado para rejuvenescer-se intelectualmente, diria que o "futuro da

•• etnografia se encontra, nem tanto à "natureza") nem tanto à "cultura", mas no constante
11

••
repensar de tudo aquilo que foi formulado, no caso aqui em questão da etnologia brasileira,
para assim almejarmos dinamizar as dicotomias de nossa disciplina, entre o "dado" e o

•• "construído", de forma a estar sempre respirando novos ares .


O ponto de partida, se assim posso dizer, deste trabalho não se encontra no estudo

•• de sociedades, de grupos sociais, nem de lugares específicos, tentando-se marcar uma


especialização e, portanto, reincorporar domínios culturais e disciplinares estabelecidos .

•• Nesse sentido, sem ter qualquer convivência longa com o(s) objeto(s), considero esse

•• trabalho significativo por si próprio. Por outro lado, ele se estabelece por questionamentos
advindos do "estar aqui", a partir da minha iniciação epistemológica na antropologia, em

•• relação ao "estávamos lá", a saber: eu, V!illiam Crocker, os índios canela, os "assistentes de
pesquisa", a FUNAI, o "patrão" e demais agentes sociais .

•• Compreendo o "estar aqui", no sentido Geertziano da expressão, portanto, através

•• de um processo desenvolvido, não só a partir das vicissitudes do campo, como da escrita


desta dissertação, onde outras tradições antropológicas foram incorporadas à especificidade

•• da pesquisa, para fornecer um suporte narrativo a minha reflexão. Entretanto, compreendo


o "estávamos lá", sobretudo, a partir de uma negociação de significados. Uma dimensão

••
•• XXII

••
e
••
••
••
•• que, muito embora alguns antropólogos pretendessem atingir, através do esclarecimento das
condições concretas de pesquisa, ficou relegada a subjetividade do par pesquisador-

•• pesquisado. Também não acredito que tenha esgotado esse esclarecimento aqui, porém
tentei, sempre que possível, recuperar os diversos agentes sociais, em situação etnográfica.

•• Esta dissertação deve ser entendida como um esforço em discutir o fazer

•• etnográfico, visto em sua totalidade. Para tanto, levarei em consideração as relações sociais
desenvolvidas no âmbito da pesquisa, sem a qual não seria possível desenvolvê-la. O

•• trabalho surgiu a partir da observação sobre a utilização de instrumentos de campo, usados


por antropólogos, em situação de transferência de significados entre os índios

•• Ramkokamekra-Canela. Sendo assim, esse instrumento pode ser considerado o marco

•• inicial para o desenvolvimento desta pesquisa. É por intermédio de um gravador (bastante


conhecido por "nós" e por "eles") que venho tomar conhecimento do antropólogo William

•• Crocker e seu longo relacionamento com os índios Ramkokarnekra .


William Crocker, culturalista à moda antiga, formou (e ainda forma) gerações de

•• "assistentes de pesquisa", através de uma incrível empresa antropológica. A estrutura criada


para levar a cabo sua ambição de entender a "aculturação" canela me animou a discutir
•• etnografia pela etnografia. A principal justificativa para isso talvez se deva ao fato de poder

•• ter tido a chance de acompanhar suas práticas de trabalho de campo, in loco, e não apenas
seus textos. Assim, apesar de tomar esse campo a partir das perspectivas de Geertz (2002) e

•• Silva (2000), como uma totalidade subjacente à interpretação e à escrita, acredito


acrescentar a esse debate a observação de um ritual antropológico, o trabalho de campo .
•• Procurei, portanto, não fechar a discussão, somente enquanto produção empírica (e

•• os comentários particulares decorrentes dela), ou somente enquanto produção textual. Os


dois lados que entendo fazer parte de um mesmo processo serão postos em análise,

•• tentando perceber como os distintos personagens a concebem .


Nesse processo fui instigado por dois questionamentos. O primeiro se deu ainda no

•• começo de minha pesquisa sobre o quê poderia contribuir aos estudos dos grupos Jê,

•• conseqüentemente à etnografia indígena brasileira, tendo como objeto, um dos mais


representativos especialistas nesta área, o que, por sua vez, levou-me a outra questão,

•• estabelecida ao escrever este trabalho e em conversas com meu orientador sobre quão
enfeitiçado esses especialistas, ou 'jêologistas", estavam em descrever personagens

••
•• XXIII

••e
••
••
••
•• culturais, através de suas complicadas e quase ilegíveis estruturas socioculturais,
continuando uma história da produção antropológica iniciada por Nimuendajú 12 • A segunda

•• questão seria: como assumir meus limites diante da correlação aqui proposta entre
descrição e relacionamento etnográfico? Como propor uma antropologia reflexiva, a partir

•• da interpretação dos textos existentes e da própria prática etnográfica, ou seja, em tomar o

•• antropólogo tal qual (uma), e na aldeia? Por fim, a quem devo convencer neste trabalho:
William Crocker, os Canela, eu, a FUNAI, CNPq, PPGSA, a banca, uma vez que todos

•• esses agentes sociais me inquiriram o resultado final da pesquisa .


Os três capítulos que compõem essa dissertação permeiam essas questões da

•• seguinte forma. O primeiro capitulo, "Crocker para além dos Canela", se objetiva pela

•• tensão interpretativa resultante dos comentários que faço a respeito do aparato retórico do
Crocker para com a objetividade que estabelece. Pelas suas descrições do "estive lá"

•• procurei interpretar o seu "estar aqui", sobretudo quando da aparição de seus assistentes de
pesquisa no texto. Este capítulo é dividido em duas partes, acompanhando fases idealizadas

•• de pesquisa, pelo próprio antropólogo. Ainda existe uma terceira e uma quarta fase, e esta
última não será aqui objeto de investigação direta, mas, sempre que possível, utilizo-a como
•• recurso comparativo ou interpretativo para as outras fases em questão. Compreenderia o

•• trabalho de campo de Crocker entre os anos de 1991 e 2001. As três primeiras fases dizem
respeito ao trabalho de campo realizado entre os anos de 1957 e 1979. A parte final do

•• capítulo focaliza a magia do universo Jê, contudo, sem entrar em detalhes comparativos
entre os pesquisadores que por ela se "enfeitiçaram". O interesse é mostrar as influências

•• das pesquisas do Projeto Harvard-Brasil Central nas pesquisas de campo de Crocker pós-

•• 1966. Isso porque, como já afirmei, não tive a pretensão aqui de me tomar um ''.iêologista" .
Como estratégia particular, optei por não trazer a discussão da terceira fase neste capítulo,

•• para que a análise não se distanciasse muito do compromisso desta dissertação .


Em "Diaristas e assistentes de pesquisa de Crocker", tomo o processo de seleção

•• dos assistentes de forma a entender a estrutura criada neste relacionamento etnográfico, e

•• qual a utilidade dessa estrutura para ambos sujeitos. Os caminhos utilizados seguiram o

•• 12
À exceção do fluxo de tentativas de variações sobre o mesmo tema (o teatro e os personagens sócio-
culturais Jê) destaco os trabalhos de José Reginaldo Santos Gonçalves (1981) e o de Isabel Giannini Vida!
(1991) que se situam na contemporaneidade de suas etnografias sobre os Jê, trabalhando em outro registro e

•• com outros conceitos .

•• XXIV

••
e
••
••
••
•• empreendimento pedagógico do duplo processo de apreensão cultural, formulado pelo
antropólogo, mas apreendido por ambos (pesquisador e pesquisados), e dado em diferentes

•• contextos de significação. No último capítulo, discursos diferenciados tomam a cena,


marcando o grande jogo de interesses que perpassam uma pesquisa de campo, levando-se

•• em consideração o momento histórico ao qual o grupo observado está inserido. Somente

•• depois de tudo isso ter sido "colocado à mesa'', sem que se findem os arranjos políticos, a
pesquisa se desenvolve. Nesse sentido é que eu pude "observar o Crocker observando''.

•• Procurei apresentar o processo de produção do relacionamento etnográfico não estando


fechado em si mesmo, marcando o fato de que os interesses e visões culturais possuem suas

•• estratégias próprias, que estão sempre se atualizando .

•• Apresentados os contextos paradigmáticos da Antropologia, com relação à pesquisa


e à produção teórica, assim como, a motivação que me levou à pesquisa, passemos a uma

•• breve caracterização do objeto em questão e dos sujeitos envolvidos nesse processo .

••
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•••
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'I
•• 1

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••
•• Capítulo 1

•• Crocker para alén1 dos canelas

•• Sem dúvida alguma, os estudos etnográficos sobre os grupos Jê ganharam fôlego

•• após a publicação das três monografias de Nimuendajú 13 (encomendadas pela Universidade


de Berkeley), na primeira metade do século passado. The Eastem Timbira, a última delas,

•• serviu de interesse especial para o antropólogo William Henry Crocker, após tomar

•• conhecimento deste autor, no Hanbook of South American Jndians (editado por J. Steward) .
Por essa época, já havia estado no México - conhecido local de treinamento antropológico

•• americano - realizando trabalho de campo nas comunidades indígenas de Dzitas e Chan


Kom, sob orientação de Robert Redfield (Universidade de Chicago) e Alfonso Villa Rojas 14

•• (Universidade do ]\,léxico). Tomou-se Mestre pela Universidade de Stanford, tendo como

••
orientador George D. Splinder que já trabalhava com processos psicológicos e
socioculturais sob a égide da aculturação. A pesquisa consistiu em avaliar, através do

•• estudo de casos em documentos pessoais, fatores na vida de indivíduos, indígenas


americanos, africanos e esquimós que os levaram ao conservacionismo, à mudança ou

•• desvios. Após esse período, almejou dar continuidade a seus estudos com algum grupo
indígena latino americano que já possuísse literatura etnográfica, e que tivesse o mínimo de
•• contato com o cristianismo e influências norte-americanas, a fim de fazer um reestudo

•• cultural. É particularmente na busca deste objetivo que escolheu a monografia The Eastem
Timbira como simulacro antropológico .

•• A preferência pela obra de Nimuendajú se deu, segundo Crocker, pelo esmero,


abrangência e requinte etnográfico do sistema sociocultural dos índios Canela. Visualizou

•• 13

•• Torna-se imprescindível, antes de esboçar qualquer referência a antropólogos que dedicaram boa parte de
sua vida profissional ao estudo de grupos Jê, aludir ao trabalho do etnólogo Curt Nimuendajú que, entre os
anos de 1905 e J945, visitou mais de quarenta povos indígenas, produzindo urna extensa obra, de relatórios de

•• viagem a monografias, sem ter assumido, entretanto, qualquer função acadêmica. Sendo considerado, mesmo
assim, o grande precursor da etnografia brasileira.
14
Este antropólogo realizou trabalho de campo (100 meses) por45 anos entre algumas localidades Maya,

•• mais precisamente em Yucatan e Chiapas. Talvez daí tenha surgido a inspiração de Crocker por tanto tempo
de pesquisa, tendo acrescentado uma dose a mais de continuidade, por ter se dedicado a um único grupo
indígena, em uma única aldeia. Para perspectivas de longo tempo de pesquisas, ver Foster (1979). Era ele o

••
recordista em tempo de pesquisa em um único vilarejo (Tzintzuntzan), cerca de 31 anos. Hoje em dia Crocker
já superou essa marca .

••
••
e
••
••
••
•• nesta obra, um perfeito modelo para realizar o "study of change". Começou neste momento
a duradoura relação entre William Crocker e os índios Canela, sobretudo, os

•• Ramkokamekra .
Em nosso encontro na Aldeia Escalvado, Crocker distinguiu três etapas, ou fases, de

•• pesquisa das 10 viagens a campo, entre 1957 e 1979. Ao longo desses anos, considerou ter

•• • realizado uma "pesquisa geral", de 1957 a 1966; uma pesquisa aos moldes do projeto
Harvard- Brasil Central (HCBP), porém com "soluções diferentes", entre os anos de 1966 e
1975; e o que considerou seu objeto privilegiado de análise: a "grande pesquisa sobre

•• estrutura êmica", desenvolvida em 1978 e 1979 .


Seguirei a análise diacrônica das primeiras duas fases em questão, de forma a tornar

•• minha redação mais próxima dos axiomas descritivos de Crocker, contudo sem ter a

•• pretensão de tentar resolver quaisquer desdobramentos que deles suscite. A sincronia será
restabelecida na última parte desta dissertação, como tentativa de dialogar com a práxis

•• antropológica. Esta opção foi tomada para não tornar o atual capítulo repetitivo e distante
das práticas etnográficas que pude acompanhar em campo .

•• A base documental utilizada aqui provém em grande parte da bibliografia, advinda

•• de artigos, simpósios e conferências e o principal livro que compõe as publicações


realizadas por Crocker ao longo de suas pesquisas de campo. O meu trabalho de campo,

•• entre o mesmo grupo indígena no ano de 2003, assim como as conversas realizadas com
este antropólogo, também trazem suporte para as interpretações aqui descritas, urna vez que

•• o objetivo principal desta dissertação é revelar a situação etnográfica do relacionamento

•• entre Crocker e seus assistentes de pesquisa, muito embora tenha que ampliar aqui os
pressupostos desta relação, a fim de estimular a reflexão do fazer etnográfico, enquanto

•• produção de conhecimento. Para tanto, trabalhos análogos onde reflexões paradigmáticas


em antropologia foram desenvolvidas (Sahlins, 1979; Clifford, 1998; Geertz, 2002)

•• serviram de inspiração especial.

••
••
••
•• 2

••
•e
••
••
••
•• O olho que vê é o órgão da tradição .

•• O primeiro contato direto de Crocker com os canelas aconteceu em 1957, graças à

•• mediação de Charles Vlagley com Eduardo Galvão e Heloísa Alberto Torres, os quais
facilitaram as autorizações necessárias, junto ao SPI, para a realização da pesquisa. De sua

•• partida em Washington à Aldeia do Ponto (velho) foram necessários três meses de estadia
na cidade do Rio de janeiro, São Paulo e Belém, esperando pela permissão. Durante esse

•• tempo aprofundou seu conhecimento na língua portuguesa, assim como os laços de


amizade profissional com antropólogos brasileiros e estrangeiros que realizavam pesquisa
•• com grupos indígenas no Brasil.

•• É preciso entender que os "brasilian colleagues", tais como Darcy Ribeiro, Roberto
Cardoso de Oliveira, Herbert Baldus, Harald Schultz, Egon Schaden, entre outros, estavam,

•• também, à época, interessados nas mudanças sociais e culturais dos povos indígenas
brasileiros, cada qual tentando sobrepor um termo que se tornou corrente na Antropologia,

•• sobretudo nos EUA em fins do século XIX, chamado de aculturação 15 , no qual William

•• Crocker estava profundamente interessado .


Entre os anos de 1957 e 1960 passou 24 meses junto aos grupos Ramkokamekra e

•• Apaniekra (Canela), no intuito de concluir seu doutorado na Universidade de Wisconsín 16 •


Assim que terminou sua formação foi selecionado pelo Smithsonian Institution como

•• assistente curatorial para Etnologia Sul-americana no Departamento de Antropologia do

•• Museu Nacional de História Natural desse mesmo Instituto, com sede em Washington,
D. C.. Fato esse que transfere, em parte, seus suportes financeiros de pesquisa da

•• 15
O conceito de aculturação marcou um an1plo debate na literatura antropológica, onde termos correlatos a

•• esse conceito foram sendo criados como meio de melhor especificar as temidas mudanças culturais. Para o
conieço da problematização do termo ver (memorandum fot the study of acculturation. IN: Arnerican

•• Anthropologist. 1936. V. 38, pp. 149-152), resultado de urna subcomissão do Conselho de Pesquisa de
Ciências Sociais dos EUA, composta por R. Redfield, R. Linton e i'v1. Herskovits; para ver o

•• desencadeamento desses debates no Brasil ver Baldus (1937, 1964a); Wagley (1943, 1951, J955a); Galvão
(!955a, 1957, 1966',1979)); Schaden (1955, 1963, 1965); Ribeiro (1955a, 1962b, 1968, 1970), Oliveira

•• (1960a, 1963, 1978), Dicionário das Ciências Sociais, pp.18-20, 495-498 .


16
Em 1957, realiza trabalho de campo entre os meses de agosto a dezembro; em 58, de abril a outubro; depois

••
retoma em junho de 1959 ficando até agosto de 1960. Sua tese de doutorado, intitulada, A 1nethodfor
Deriving The1nes as Applied to Canela Indian Festival Materials é defendida em 1962 .

•• 3

••
~
••
••
••
•• Universidade de Wisconsin (1957-1960) para o Smithsonian (1963- até os dias de hoje). No
primeiro período, além do University Wisconsin 's James Campbell Goodwill Traveling

•• Fellowship, contava com o apoio de uma empresa farmacêutica, Smith, Kline and French,
em colaboração com a American Anthropologica/ Association, para o estudo das plantas

•• medicinais indígenas. Esse estudo ao que parece consistia apenas em levar componentes de

•• nossa flora para análise. Segundo me relatou, levava espécimes do cerrado para estudos,
nos anos de 57 e 58. Porém, em seu retomo à aldeia no ano de 1959, um dos períodos de

•• maior permanência em campo (treze meses), não menciona nenhuma informação segura,
em seus textos, sobre qualquer apoio institucional 17 •

•• Mantinha com o Museu Goeldi urna relação de "apadrinhamento", sob os cuidados

•• de Eduardo Galvão, em função das obrigatoriedades de pesquisas científicas em solo


brasileiro, tendo sempre que dar informes e relatórios sobre o andamento de seus trabalhos .

•• Não pesquisei até onde era o grau de comprometimento que mantinha para com essa
instituição, todavia nela se concentra grande parte da cultura material canela existente em

•• museus brasileiros, levados por Crocker. Será, também nesta instituição, o primeiro artigo

••
publicado por este antropólogo (em português), como relatório, sobre os índios canelas .
Para entender a relação que estabelece entre os canela e o propósito de sua pesquisa,

•• se faz necessário, antes de tudo, procurar entender a relação que estabelece com a
Antropologia, notadamente, a Antropologia Cultural Americana. Nesse sentido, é

•• claramente perceptível sua ligação aos pressupostos de interação sócio-culturais, onde o


conceito de cultura parece estar intimamente associado aos problemas das continuidades
•• das sociedades. Dentro desses pressupostos, era imprescindível ao pesquisador entender a

•• língua do nativo, seu sistema simbólico e de significados, os modelos cognitivos, condutas


e comportamentos sócio-culturais; e, para isso, se fazia necessário um longo tempo de

•• convívio com seus informantes, de forma a realizar o "estudo do homem" em todos os


aspectos sócio-culturais que lhe dizem respeito .

••• Crocker teve grande formação em Psicologia que, segundo ele, foram essenciais
para o estudo de socialização, empreendido no começo de sua pesquisa, assim como, para o

•• especial estudo semântico de palavras-chaves e conceitos do sistema sócio-cultural canela.


Igualmente importante para ele foram os estudos aculturativos - principalmente após seu

•• 17
Na tese de doutorado especifica somente os anos de 57 e 58, e no apêndice 1 do livro de 1990, menciona

•• 4

••
A•
••
••
••
•• retomo das Filipinas, em função da Segunda Guerra Mundial, e posteriormente, a sua ida
para o México, primeiro para o estudo da língua hispânica, e a seguir através de Villa Rojas

•• -, sociologia holística e de sistemas culturais. Disse-me que os trabalhos de Kroeber, Ruth


Benedict, e principalmente Margareth Mead foram essenciais para sua formação. Todos

•• esses, interessados (principalmente o primeiro) em demonstrar que foi graças à cultura que

•• o homem distanciou-se do mundo animal, mais especificamente, das ciências naturais, e do


determinismo biológico no comportamento humano .

•• A dificil tarefa de empreender aqui, se não uma biografia, ao menos a


contextualização histórica e epistêmica de sua obra (um pecado capital para muitos

•• antropólogos), por meio da sustentação de certos instrumentos analíticos, fez com que eu

•• procnrasse bases comparativas para me anxiliar nesta descrição. Em princípio, tomarei de


empréstimo a descrição de Sahlins, numa anterior análise comparativa entre a "lógica

•• prática" e a "significativa", num esforço interpretativo dos paradigmas teóricos de Crocker.


Paradigma esse, ao meu ver, associado, em parte, ao paradigma de Boas, quando Sahlins

•• descreve que, "a carreira antropológica de Boas pode ser caracterizada como um processo

••
no qual o axioma original, a construção humana da experiência, foi transposto do nível
psicológico para o cultural" (Sahlins, 1979:81) .

•• Entretanto, parece que a compreensão de que a "ação humana" é mediada pelo


"projeto cultural", expresso pela relação tradição e linguagem, foi aos poucos sendo

•• aguçado e reformulado por Crocker. Crocker vai para campo, em 1957, querendo estudar as
modificações dos padrões culturais e sistema de valores, em virtude de possíveis processos
•• de inovação 20 anos depois da última passagem de Nimuendajú entre os Timbiras orientais .

•• Assim dizia ele:

•• Goals of my early field research (1957-1960) were to study


acculturation, change and conservatism through time, and the processes of

•• innovation. The major orientation toward long term research became evident

•• only in 1964. This diachronic orientation was appropriate because my position


at the Smithsonian Institution emphasized field research and facilitated such a

•• long term point of view. ( ... ) Consequently, my particular interests evolved

•• que recebeu a ajuda dessas duas instituições para seu primeiro período de pesquisa (1957-60) .

•• 5

••
e
••
••
• •• into a focus on how one sociocultural system operates in relation to a larger

•• one - synchronically and diachronically - rather than on kinship, South


American national or tribal studies, or the cross-cultural comparison of the

•• origins ofvarious cultural traits (Crocker, 1990: xv) .

•• Muito embora Crocker esclareça que somente em 1964 a perspectiva diacrônica

•• "bateu a sua porta", pela possibilidade de empreender uma pesquisa continuada por longo
tempo, suas práticas de pesquisa em fins dos anos 50 já iam de encontro com a premissa

•• Boasiana, de que o pesquisador deve estudar uma sociedade como uma totalidade complexa
e em seus próprios termos, sem abandonar a linha temporal, o "particularismo histórico" .
•• Porém, como afirma, sem ter por pretensão descobrir a origem de traços culturais, e daí

•• realizar comparações com diferentes povos. Para Crocker, as funções cognitivas seriam
fatores determinantes na constituição da pessoa, ou seja, da cultura. Contudo, sem querer

•• estabelecer uma distinção entre periodos, deixarei esse assunto um pouco mais para adiante
e comentarei o período compreendido ao doutoramento, por conseguinte, ao inicio da

•• citação anterior. É digno de ressalva o fato de que, na citação, ele parece deixar claro que,

•• apesar de ter sido compelido a fazer alguns estudos em prol da ação de outros agentes de
pesqmsa, nunca abandonou seu interesse particular sobre a interação de sistemas

•• socioculturais .
A primeira viagem de Crocker para a Aldeia do Ponto 18 - antiga moradia dos

•• Ramkokamekra - não deixa em nada a desejar às primeiras expedições etnográficas

•• patrocinadas pelos grandes museus do mundo, tal qual seu baluarte, Nimuendajú. Todo seu
equipamento e os presentes destinados aos chefes canela e a seus futuros familiares

•• seguiram de São Luis para Barra do Corda de barco pelo Rio Mearim, enquanto ele seguiu
de vôo comercial para Barra do Corda. Lá chegando esperou por seu material e, após

•• contatos pessoais necessários para a continuação de sua pesquisa, continuou a viagem com

•• destino à aldeia. Não existiam estradas até lá por aquela época, por isso, a viagem
demorava a partir de Barra do Corda, calmamente, em tomo de três dias, em montaria de

•• 18
Quando Crocker chega pela primeira vez em campo, os Rarnkokamekra-Canela tinham-se apartado e

•• formado duas aldeias: Ponto e Baixão Preto. Só viriam a se unir novamente no retomo ao cerrado pós-
movimento messiânico e quase seis anos de "exílio" em terras guajajaras. Para ver possíveis razões do cisma
canela, ver Crocker (1978, 1990) .

•• 6

••

@.
••
••
••
•• mulas. No entanto, Crocker conseguiu uma caminhonete emprestada com missionários
desta cidade e forçou caminho pelo cerrado adentro, com a ajuda dos índios para realizar

•• picadas e atravessar córregos, fazendo a primeira ligação a motor entre os vilarejos e a


Aldeia do Ponto (velho). A chegada deste antropólogo na aldeia ainda está na lembrança de

•• muitos índios. Sobre esse episódio, Zé Ramos contou que "o Crocker velho foi o primeiro

•• de fazer estrada de motor pros índio, de primem não tinha estrada não, era só mato de
chapada". Mesmo assim, Crocker mencionou que ainda fez quatro viagens em montarias de

•• mula entre 1957-60 .


Sua locomoção variou bastante nas diversas viagens realizadas para a aldeia, entre

•• os anos de 1957 a 1979, não só por conta de desenvolvimentos tecnológicos e o aumento

•• demográfico nos sertões do Brasil, mas principalmente em razão de políticas de Estado, que
interferiam nos transladas aéreos para a aldeia. Em 1971, por exemplo, realizou um vôo

•• direto de Washington para Porquinhos (Apaniekra), com escala em Belém e Barra do


Corda, em 26 horas de viagem. Considera esse fato um recorde para antropólogos

•• americanos em viagem para aldeias indígenas brasileiras .


Crocker havia estudado bastante a monografia de Nimuendajú, portanto tinha um
•• "conhecimento acumulado" que lhe possibilitou uma familiarização com a organização

•• social dos índios canela 19 . No entanto, dizia, ao escrever sobre o assunto (1990), sentir falta
de maiores dados sobre a língua canela. Ao longo de suas pesquisas foi desenvolvendo

•• intensivamente os fonemas e a gramática canela com seus "assistentes". No começo,


solucionou o problema do desentendimento da língua, através de um interprete tradutor,

•• que acompanhava o trabalho junto a seus primeiros assistentes de pesquisa. Estes últimos

•• eram, em sua maioria, índios mais velhos, conhecedores da tradição, e por conseguinte
capazes de lhe informar os princípios primeiros da experiência humana, tal qual

•• preconizado por Lévi-Strauss, e por muitos antropólogos americanos20 .

•• 19
É interessante notar seu posicionamento em estar o mais próximo possível daquela cultura. Por exemplo,
costumava chamar seus assistentes para as reuniões, nos anos 60, conforme a tradição local: através da

••
anunciação vocal, sendo escutado por todos na aldeia .
20
Ao refletir sobre o intercâmbio entre Antropologia e História, como "suporte ao enfoque da retórica dos
relatórios de identificação" de terras indígenas, Lima utiliza o trabalho de Bruner (1986) sobre a concepção

••
da narrativa e seus três principais aspectos, a saber, a estória, o discurso e o contar, onde refletia sobre a
produção etnológica acerca da mudança cultural dos índios norte-americanos, destacando que: "dos anos
1930-40 até o início dos anos 70 a estória dominante na etnologia norte-americana tratava os nativos como

••
sendo oriundos de um passado idealizado como glorioso, um presente de decadência e desestruturação e um
futuro sinônimo de assimilação (aliás, este sendo o termo chave da estória). No que concerne à organização

•• 7

••
i!!!!l
••
••
••
•• Ainda nesse período, a definição sobre o conceito de assistentes de pesquisa não
estava bem formulada, muito embora fizesse referência em seus textos, vez ou outra, a

•• "especiais" informantes. Podemos entender que a omissão dos informantes no texto era, até
esse período, lugar comum, não só nos trabalhos escritos de Crocker, como nas descrições

•• etnográficas de uma forma geral. A primeira formulação deste antropólogo a esse respeito -

•• possivelmente influenciado pelos novos paradigmas antropológicos - só aparece em seu


primeiro livro The Canela (Bastem Timbira), !: an ethnographic introduction (1990),

•• assim como as implicações a respeito do conceito de assistentes. Nele, define os assistentes


de pesquisa da seguinte forma:

•• The term "informant" carries a pejorative connotation. Consequently,

•• it is preferable and certainly more respectful to use the expression "research

•• assistant". In any case, when certain individuais work for an ethnologist for a
period of two years or more, they are not just informants; they have become

•• research assistant. Rather than discriminative between individuais who


answered only an occasional few questions and those who spent hundreds of

•• hours over a number of years facilitating the collection of field data, the

•• expression "research assistant" is used here for every Canela and Apanyekra
individual who gave any significant help to this research effort (Crocker,

•• 1990:7) .

•• De fato, acredito que Crocker tenha realmente um grande respeito para com seus
"assistentes de pesquisa'', não só pelo empenho e dedicação desses indivíduos aos serviços

•• prestados, como também pela amizade e reciprocidade estabelecida durante todos esses

••
anos. Porém, acredito que a ideologia que perpassava esse relacionamento, enquanto
científicidade da Antropologia, era, para Crocker, transcendida à especificidade da aldeia .

•• O ideal pelo qual emana este longo convívio consagra o contato, menos entre o antropólogo
e a cultura estudada, a saber, os próprios indivíduos canela, do que o contato entre uma

•• sociedade tradicional e uma sociedade moderna, que avançava cada vez mais para o interior

•• da etnografia propriamente dita, procurava-se realizar a reconstituição de uma origem, de uma cultura
indígena intocada. Apesar da preocupação com a extinção cultural dos grupos indígenas, a assimilação


parecia inevitável e indiscutível: era tarefa urgente da antropologia descrever essas tradições "autênticas"
antes que elas desaparecessem" ( Souza Lima, 1998a: 232-233) .

•• 8


••
~
••
••
••
•• do Brasil. Ora, o afã em documentar uma cultura, se não em extinção, ao menos em
processo de transformação, era muito presente na Antropologia, à época de formação de

•• Crocker. Ao documentar as mudanças ocorridas nas "sociedades tradicionais" e de tentar


reconstituir o passado (quase sempre idealizado) daquela cultura, era quase sempre o autor

•• quem se colocava no texto, como aquele que denuncia ou anuncia aquilo que o nativo não

•• era capaz de perceber. Isso é muito presente, por exemplo, nas monografias de
Nimuendajú. Não é a toa que Crocker as tome como referência total e absoluta .

•• Assim, eu poderia fazer do comentário de Maybury Lewis a respeito de


Nimuendajú, a própria correlação entre este inestimável etnógrafo e Crocker. Dizia ele, em

•• encontro oferecido pelo Departamento de Antropologia da USP, ao ser convidado para falar

•• de sua trajetória intelectual:

•• Nimuendaju era um romântico. Para ele, as sociedades que estudava


estavam de certo modo deformadas pelo contato com os brancos. Ele

•• escreveu um livro enorme sobre os Timbira Orientais, com dados


riquíssimos, mas sempre com aquela queixa constante de que o sistema
•• estava mudando dada a influência do mundo dos brancos, estava se

•• deturpando, se afastando cada vez mais do que devia ser antigamente .


Tratava-se, para Nimuendaju, sempre da busca de uma organização social

•• anterior, mas eu me perguntava se era realmente possível essa reconstrução .


Os seus livros continham frases que apontavam um estado de aculturação,

•• um colapso no funcionamento dos sistemas tradicionais. Assim, Nimuendaju

•• idealizava um passado quando defrontado com os dados que obtinha do


presente (São Paulo, 26 de outubro de 2001 ) .

••
•• Crocker apostou nessa reconstrução, principalmente em documentar esse colapso, e
não é a toa que realiza esse processo até os dias de hoje. A estrutura que criou para efetivar

•• essa documentação é o que o distingue de Nimuendajú, e o aproxima de um psicologismo

••
antropológico vindo desde Boas. Se tomarmos a suposição, como disse anteriormente, de
que o "nativo" poderia fornecer ao antropólogo seus sistemas culturais pelo processo

••
•• 9

••
•• ~1
••
••
•• inconsciente de seus discursos, estaríamos começando a entender a estrutura de campo
criada por Crocker em como pensar a respeito do pensamento dos Outros .

•• Crocker dedica a primeira parte deste livro a descrever "The Field Situation", desde
processos burocráticos para obtenção das permissões necessárias, passando pelos meios de

•• transportes utilizados, até os aforismos e análises psico-históricas de seus assistentes. O

•• objetivo que propõe ao capítulo é "provides a view of the fieldwork practices and
exposures" (Idid, 3). Assim em sete sub-capítulos pretende situar o leitor no entendimento

•• de sua experiência enquanto vivência entre os canelas; suas estratégias para um bom
relacionamento em campo; as vantagens e desvantagens em se trabalhar com aqueles dois

•• grupos indígenas específicos; os equipamentos de campo utilizados; o processo de

•• aprendizado da língua; a utilização de práticas etnográficas em consonância com seus


assistentes, e a especialização de cada um deles; assim como, mostrar brevemente pessoas

•• não-indígenas que foram importantes para sua pesquisa ao longo desses 22 anos de trabalho
de campo (1957-79) .

•• Para tanto, é neste livro que encontramos, pela primeira e única vez, descrições da

••
produção do relacionamento para com os canelas, principalmente de seus primeiros e
"especiais assistentes de pesquisa". Ainda que não seja possível observar "relatos nativos",

•• no entanto, os informantes ganham nome próprio e destaque no texto. Em suas palavras,


"the most complete account of my field work techniques, and should be of interest to

•• scholars and students" (Ibidem,3) .


Outro ponto que merece breve comentário é que, apesar de dizer que essa expressão

•• - assistentes de pesquisa - atende a ambos grupos Canela, em nenhum momento menciona

•• seus assistentes de pesquisa entre os últimos. Os Apaniekra atendiam aos anseios de urna
perspectiva comparativa intercultural canela (observados principalmente em contrastes

•• ecológicos), quiçá, entre os Timbiras orientais, por serem muito próximos culturalmente .
No entanto, enfrentou problemas com esse grupo, e o relacionamento que já não era tão

•• intenso (apenas 15% do tempo de trabalho de campo), nem muito amigável, como deixou

•• subentendido em nosso encontro e também em poucas passagens no livro, encerrou-se por


completo em 197521 • Este conceito de assistente está, por conseguinte, intimamente ligado

•• 21
Crocker chega a dar algumas dicas sobre a dificuldade que encontrou para se trabalhar com os Apaniekra .
A principal delas estaria no termo que classificou como "begging", para os canela, "hapan tsà nâ", onde "this

•• expectation of a substantial "return" from me was justified through the "acculturation contract" set up by their

•• 10

••
••
••
••
•• à dinâmica que Crocker imprimiu em sua pesquisa, ou seja, como procurou apreender do
nativo "os germes originais do pensamento" (Sahlins, 1979:71) .

•• As questões envolvidas neste tipo C:e suposição tiveram implicações diretas no


tratamento dado aos informantes. Primeiro, porque Crocker entende que a qualidade
•• simbólica da cultura está mais claramente expressa nos grandes "festivais" canela22 . Neles

•• estariam contidos diversos mecanismos culturais que ligam o individuo a sua sociedade,
tais como o desenvolvimento de sua personalidade, suas práticas sexuais 23 , etc., entendidos

•• como sub-sistemas de um sistema sociocultural total. Para tanto, pensar em como a ação
orgamza a experiência ia além de uma observação participante, aos moldes

•• malinowskianos .

•• Logo que chegou à aldeia Crocker foi convidado pelos prókãm mã a participar do
ritual de iniciação dos jovens canelas. Chega a mencionar (1990) que não era cobrado dele

•• nenhuma participação para obter provisões alimentares, no entanto, era cobrado dele, assim
como tinham feito com Nimuendajú, sua participação nas festas. Em determinado

•• momento, percebeu que não conseguiria obter grandes informações somente participando e

•• observando os rituais, mesmo que seu aprisionamento fosse bem mais fluido do que de
outros iniciados. Para isso, Crocker contou com a percepção nativa de seu papel como

•• etnógrafo. Considera que em 1959 após ter participado dos internamentos do Pepyê e
Pepcahàk, seu papel como etnógrafo, assim como, ser um "membro da tribo" estava

•••
estabilizado. Descreveu que o principal ajudante de Nimuendajú, "the older Kaapêlruk",
entendeu qual era o seu papel ali, quando o liberou do internamento do Khêêtúwayê,

•• dizendo para os prókãm mã que ele (Crocker) não queria estar participando de toda festa,
mas sim que, o que ele realmente desejava era tirar fotos 2+. O comentário se deu, segundo

•• culture hera A\vkhêê bet\veen the Indian and the civilizado 11 (Crocker, 1990:31). Esta condição também era
referida aos Ramkokarnekra, porém tomada com muito mais afinco pelos Apaniekra.

•• 22
Em sua página na \Veb, Crocker escreve que os "Canela festivals, \Vhich are really pageants sometimes
lasting several rnonths, portray the Canela \Vay oflife as \Vell as most oftheir beliefs, values, and roles"
(2001).

•• 23
Para a relação entre o intercurso sexual extramarital, corno sub-sistema para a compreensão do sistema
sociocultural total, ver Crocker (1964, 1994); para a perspectiva desta relação a fatores aculturativos, ver
Crocker (1968, 1972, 1977, 1979, 1984a, 1990, 1994).

•• 24
Tiveram duas situações, uma anterior e outra posterior, a esta reunião dos prókã111 111ã, onde foi cobrado de
Crocker o registro fotográfico, fato que se contrapunha ao que diziam no seu tempo de "graduate school" .
Isso, para ele, era comprobatório da visibilidade e expectativas que tinham sobre o papel dos etnógrafos.

•• Quando acompanhava o rito funerârio da sogra de Kaapêlttik, este lhe inquiriu a respeito do porque não estava
tirando fotos. Crocker se disse surpreso, tendo em vista seu comportamento americano de respeito aos
familiares. Pôde então tirar fotos de todos os ângulos possíveis, sem se sentir incomodado, assim disse: "I

•• 11

••

••
••
••
•• Crocker, em função da hesitação em responder se queria participar corno preso, de mais um
dos ciclos de iniciação canela. Reflete esse fato corno o marco do entendimento de seu


••
trabalho, por parte dos índios, e corno resolução dos problemas advindos de participar e
observar cerirnônias no começo de suas pesquisas:

•• This recognition of rny status as an ethnologist made it possible to

•• record the festivals far more intensively. The older Kaapêltlik, a principal
helper ofNirnuendajú's, understood that role (Ibid, 28) .

•• Os termos desse reconhecimento lembram o relativismo cultural de Boas, onde a

•• cultura era pensada "corno um conjunto de comportamentos, cerirnônias e gestos

•• característicos possíveis de registro e explicação por um observador treinado" (Clifford,


1998). Acontece que o processo de apreender o "espírito da cultura" através de urna lógica

•• de integração e observação participante, escrevendo para um publico leigo, corno foi


legitimado por Malinowski, não sustentava um maior conhecimento da "estrutura êrnica de

•• pensamento". Em busca desse objetivo, que necessariamente, segundo o autor, não estava a

•• priori estabelecido, começa a formar seu seleto grupo de assistentes de pesquisa. Corno já
foi observado, percebe-se claramente que em suas primeiras publicações, a respeito das

•• mudanças culturais ocorridas desde a época de Nirnuendajú, em nenhum momento se refere


à dinâmica que teve com seus assistentes. Não só em função de paradigmas objetivistas,

•• corno também pelo fato dos estudos de aculturação, ligados a modelos cognitivos, estarem

•• ainda em fase embrionária para este autor, resguardando-se apenas a análise das mudanças
quantitativas dos "padrões socio-culturais", em detrimento das análises qualitativas, visto

•• ser essas muito pouco perceptíveis. A não ser na estrutura social, onde esclarece que "urna
mudança qualitativa maior é o desaparecimento da exogamia das metades, que estava em

•• vias de se extinguir já ao tempo de Nirnuendajú" 25 (Crocker, 1958:4) .


Depois de 24 meses de campo, "vivendo corno membro de urna fanúlia canela, em
•• urna casa canela" (1961:69) reforçou o argumento de que o "grau de continuidade e

•• record the rite as the farnily expected me to, as an ethnologist fulfilling his role" (Ibid, 28). Crocker parece

•• deixar subentendido que todos dispunham de um papel individual e coletivo na aldeia, por isso, também,
tinham eles a percepção do papel do etnógrafo, enquanto kupen na aldeia .
25
Os desdobramentos desta suposição serão encontrados no capítulo precedente desta dissertação .

•• 12

••
ê •
••
••
• •• estabilidade cultural é alta", por isso, suas observações (para aqueles que estão

•• interessados na monografia de Nimuendajú) caminharam no sentido de relatar as


mudanças, mais em termos quantitativos do que qualitativos .

•• A preocupação em estabelecer métodos para a análise dos dados qualitativos e


quantitativos, "culturalmente e socialmente orientada", foi sua principal preocupação na
•• tese, defendida em 1962. Intitulada A lvfethod for Deriving 17zemes as Applied to Canela

•• Indian Festival Materiais, esta tese se debruça sobre a metodologia do trabalho de campo .
Realiza uma espécie de levantamento sobre como vinham sendo apresentadas as

•• representações do "outro" nas Ciências Sociais, notadamente em Antropologia, para


formular um novo método a partir de sua experiência com os festivais (rituais) Canela .

•• Trabalha com o conceito de três autores, Ruth Benedict, Opler e Kluckhorn, e a termo de

•• comparação, Bateson, Belsham e Yatsushiro, de modo a ampliar o conhecimento sobre os


conceitos qualitativos e assim estabelecer tal método para o estudo de sistemas culturais .

•• Contextualiza isso da seguinte forma:

•• ln a world in which mechanization and standardization have become

•• goals in themselves and quantity and size are valued. It is not remarkable
that the social sciences have reflected this trend. Quantitative methods are

•• highly regarded, while qualitative approaches are less appreciated. Whereas


quantitative ways of relating data have been termed scientific, qualitative

•• treatrnent has too often been thought of as being necessarily intuitive and,
therefore, non-scientific. Whether or not any qualitative work can be
•• considered scientific depends on the definition of science. Because of search

•• terminological difficulties, it will merely be maintained herein that


qualitative approaches can be oriented along objective lines, and that insofar

•• as their reliability and validity are reasonably well demonstrated, they can be
considered as making contributions to knowledge which are advantageous
•• for the investigators in the social science to employ. Whereas quantitative

•• studies are necessary for measuring the more intricate cultural and societal
relationships, the qualitative (structural and processual) aspects must be

•• reconstructed first so that valid q~antitative measurements can be made .

•• 13

••

••
••
••
•• Seen from this point of view, the im;iortance of the qualitative approaches
can be appreciated. ln keep whit such an orientation, the purpose of this

•• dissertation is to make a contribution to knowledge in the area of qualitative


concepts and methods which are pertinent to the study of sociocultural

•• systems (Crocker: 1962: 4-5) .

••
•• O paradoxo de uma disciplina que nasce vendo seu objeto de estudo extinguir-se,
era muito presente por essa época, assim como a discussão sobre a validade cientifica dos

•• métodos
movimentos
etnográficos. Mas,
de independência
diferentemente do
das colônias e,
estruturalismo Levistraussiano,
a seguir, os movimentos
os
de

•• transnacionalização, de globalização que despertavam a inquietude daqueles que

••
pretendiam colocar as culturas no mais alto padrão de preservação, e que, para tanto,
queriam tomá-las estáticas e avessas à história, era para alguns culturalistas americanos,

•• situações em que seria mais interessante pe:isar qual seria o resultado da interação desse
contato. E, acredito que, para Crocker, em particular, pensar em como os modelos

•• cognitivos operam em relação ao contato entre sistemas culturais distintos. Por isso, a
necessidade de se criar um método para defmir a "funcionalidade essencial das

•• regularidades [culturais] de uma sociedade", que são pensadas por ele, na tese, através do

•• termo "themes" - introduzido por Opler em 1945, e ampliado por ele para suas intenções -
visto como um conceito qualitativo que lhe auxiliaria na observação e descrição das

•• mudanças .
Sobre esse período, considero sua tese de doutorado uma grande lacuna, em respeito

•• a suas ambições teórico-metodológicas de pesquisa. Talvez isso seja uma suposição

•• precipitada da minha parte, mas me pergunto porque, em nenhuma publicação posterior,


sequer faz alguma menção a esta tese. Infelizmente, não cheguei a fazer esta pergunta a ele,

•• pois no momento de nosso encontro ainda não havia lido esta tese, nem tampouco, havia
reparado o seu total esquecimento, tanto em pequenos artigos, quanto em sua maior

•• publicação em 1990. O fato é que em nenhum outro momento estabelece um diálogo para

••
com a teoria antropológica. Em nenhum outro momento dialoga em suas descrições, teoria
e prática. Nicholas Thomas (1991), Sperber (1992), dentre outros, talvez o parabenizariam

•• por estabelecer a distinção entre o "modelo canônico de tratar questões teóricas

•• 14

•e •
••
••
••
•• totalizadoras" e "análises locais de eventos exóticos" - etnografia de um lado, antropologia
de outro . Podemos também levar em consideração que ao sair da academia e adentrar no

•• Srnithsonian Institution, corno curador cientifico, abandonou (ou ao menos deixou de lado)
as questões teóricas para apresentar somente os dados em si, grosso modo, retornando seu

•• lado boasiano. Quando questionado a respeito, me afirmou, que as teorias mudam ao longo

•• do tempo, os volumes não, permanecem na história independentemente da teoria, por isso


procurava se ater exclusivamente em seus dados etnográficos
26
• "In this sense one can

•• envision a role for this rnonograph rnuch like its acknowledged predecessor Nirnuendajú's
The Eastern Timbira. There is a generosity of spirit revealed in the organization as welL

•• The presentation rnainly airns to enhance the work as a reference to the ernpirical material it

•• contains rather than to celebrate the author's own erudition. This is a book perhaps destined
to be reread rather than read, as was (and is) Nirnuendajú's original rnonograph and the

•• early publications ofthe Bureau oflndian Affairs" (Fisher, 1992:3) .


Nesse sentido, me dizia que considerava ter se livrado da competição característica

•• entre professores acadêrnicos, e da necessidade que esses enfrentam em ter que escrever
com pouco tempo de conhecimento do seu objeto de pesquisa. Acrescentou que, apesar do

•• Srnithsonian jamais ter interferido em suas pesquisas, ele pode ter sido influenciado pela

•• mentalidade do museu, ao fazer coleções de fitas, filmes, manuscritos, artesanato, etc .


Entretanto, é curioso que, em 1966, ficou compelido a seguir suas pesquisas conforme os

•• estatutos do HCBP, no intuito de "fazer coisas paralelas para competir", e em seu primeiro
livro, apresentar seus informantes. Podemos até reconsiderar o primeiro caso por seguir as

•• mesmas linhas de pesquisa de Nirnuendajú, salvo a questão das metades exógarnas e

•• sociedades masculinas. Já para o segundo caso, urna das respostas possíveis se encontra no
"estar aqui", como veremos adiante .

•• Cabe ainda um comentário a respeito de sua tese que pode ser muito fortuito, no
sentido de revelar a posição dos informantes em sua pesquisa. Ao estabelecer que os

•• componentes culturais podem ser referidos corno "thernes", entendido corno um sub-

•• 26
Ao definir meu objeto de pesquisa, no começo do mestrado, fui incentivado pelo professor Peter Fry, que
ministrava o curso de metodologias de pesquisa, junto à professora Bila Sorj, ambos do PPGSA-IFCS-UFRJ,

••
a me corresponder com Vlilliam Crocker, de forma a esclarecer minha pesquisa para ele. Após um primeiro
cantata com Júlio César Melatti (responsável por suas autorizações de pesquisa atualmente) para saber a
melhor maneira de comunicar-nos, retomou minha carta através do meu orientador, esclarecendo, entre

••
•• 15

A
••
••
••
••
•• sistema primário ao sistema sociocultural total para o entendimento de suas regularidades,
Crocker trabalha com três relatos a respeito de um dos festivais de iniciação canela, o

•• pepjê. O primeiro considera um relato tradicional - estabelecendo-o, portanto, como


paradigma de um comportamento ancestral - fornecido por Nimuendajú em "The Scaring of

•• the Initiates" (1946)- observado na festa de iniciação de 1933 -, e os outros dois oriundos

•• de seu "testemunho" e de questões levantadas aos "participantes e circunstantes" do ritual.


Menciona que esse material foi analisado em 1958 e, posteriormente, em 1960, a partir das

•• mesmas questões levantadas anteriormente; no segundo momento, contou com a ajuda do


"chefe canela, Alcy kapelfik" - que havia feito parte do mesmo ritual testemunhado por

•• Nimuendajú - e mais sete "canela men", representativos de suas classes de idade .

•• A intenção era resolver a discrepância entre os três relatos, reportando práticas


antigas ("back as far as 1900") e práticas do presente, como também entre "ideal (reported)

•• and real (observed) behavior" (Ibid, 149-193). Seria, mais ou menos, perceber a relação
entre o comportamento esperado (oferecido pelo discurso) e o comportamento na prática

•• (oferecido pela observação). Para tanto, os informantes, além de servirem como modelos de

••
performance interpretados, faziam a intermediação dos dados de Nimuendajú para com as
suas próprias observações (será que poderíamos ver aqui alguma semelhança para o que

•• viria ser a "antropologia interpretativa"?).Crocker ressalta que as inconsistências entre


essas três performances foram resolvidas através do questionamento dos informantes "in

•• order to include one version of the data which was most in keeping with the traditions of

••
the Canela ancestors" (Ibid, 191), segundo ele, pouco discrepantes .
Antes dessa análise quantitativa, pode-se observar que em detrimento às críticas

•• referente ao sujeito indeterminado nas narrativas etnográficas, ele apresenta, no texto, uma
clara indicação das condições em que se encontrava o narrador27 . Que pode ser mais bem

•• confirmado, em análise semelhante a anterior, na descrição dos seus procedimentos de


pesqmsa:

••• When there were differences in the opinions of the informants as to

•• which behavior was the most traditional, the relative reliability of the

•• muitas outras coisas, que era mais etnógrafo do que etnólogo, ou seja, era mais empírico do que teórico. Se é
que se pode separar esses campos .
27
Refiro-me particularmente a Marcus e Cushman (1982), no tocante ao "especialista nativo" .

•• 16

••

@
••
••
••
•••
informants or groups of informants was assessed according to the
researcher's knowledge ofthe experience with them so that the most reliable
version could be included (Ibid, 151) .

••
•• Embora Crocker se livre das críticas da "presença não intrusiva do etnógrafo no
texto" se colocando na ação, como corolário, estabelece uma outra ao sustentar o domínio

•• do pesquisador sobre o "comportamento cultural canela", a partir de sua retórica descritiva,


comprometida pela mudança, principalmente cognitiva.

•• Passado a fase de doutoramento, e a conseqüente entrada como assistente curador


na Smithsonian, Crocker inaugurou uma nova fase de fundamental importância prática para

•• a continuação de seu relacionamento com os índios canelas. Em 1963, veio ao Brasil para

•• apresentar trabalho no encontro da ABA, em São Paulo, e ficou sabendo, por Herbert
Baldus, que os jornais noticiaram o conflito dos fazendeiros locais com os índios

•• Ramkokamekra-Canela28 • Ficou muito interessado na questão e conseguiu autorização para


retomar à aldeia, através da D. Heloísa Alberto Torres, diretora do Conselho Nacional de

•• Proteção aos Índios, e do encarregado do SPI em São Luís, Olimpio M. Cruz, interessados

•• em saber o que realmente tinha acontecido. Relatava Crocker:

The Indian service personnel had told me about the stolen cattle and

•• the rancher' s attack, but no one knew about the messianic movement that

•• had caused the thefts. Thus it was a great surprise to me when my old Canela
friends and research assistants told me about the dancing and the predictions

•• of Khêê-khwey. Little by Little it became obvious that the Canela had had a
full scale and very dramatic messianic movement. Khêê-khwey was by now

•• thoroughly discredited because of the deaths. She had predicated that if the

••
ranchers attacked to avenge the appropriation of their cattle, Awkêê would

•• 28
Realizei uma breve pesquisa nos arquivos do SPI, no Museu do Índio, e pude ver algumas dessas notícias
da época. Existem vários comunicados entre setores do SPI e Ministério da Agricultura, então responsável
pelos povos indígenas no Brasil, notificando que "bandoleiros armados de fuzis atacaram o aldeiarnento dos

•• referidos índios, incendiando sua aldeia, havendo vítima a lamentar entre os silvícolas. ( ... )A situação, ali, é
tensa, e a qualquer momento poderá haver novos ataques" (Carta de Walter Velloso - chefe substituto da
SOA-SPJ -, para o Ministro, em 11-07-63). Estava à procura de documentos (cartas, relatórios, etc.) que

•• recuperassem outras situações de campo de William Crocker, por indigenistas ou qualquer outro agente
social, no período 1957 até a extinção do SPI em 1967. Mas, infelizmente, não dispunha de mais tempo para
me aprofundar nesta pesquisa.

•• 17

••

••
••
••
•• divert the bullets so that none of his people would be wounded or killed
(Crocker, 1990:76) .

••
•• No apêndice deste mesmo livro, Crocker descreve que este foi o momento mais
fascinante de sua pesquisa, pela casualidade de sua lenta descoberta, proporcionada pelos

•• relatos de seus assistentes 29 • Chegou na nova localidade dos canelas após dois dias do
acontecido, passando duas semanas entre eles 30 . Este evento, realmente, era um prato cheio

•• para Crocker pôr em prática seu interesse pelas mudanças, em função da mudança
geográfica do cerrado para a mata seca, em terras dos índios guajajara31 • Retoma a campo
•• em fevereiro de 1964, em sua quinta viagem, ao encontro dos índios Rarnkokamekra-

•• canela. Os resultados desses estudos aparecem, primeiramente, no Simpósio sobre a Biota


Amazónica, no ano de 1966, em Belém, e no primeiro Encontro de Estudos Brasileiros

•• (através do convite de Egon Schaden), realizado em São Paulo, em 1971.

••
Tanto em um quanto noutro caso, suas suposições recaíram em determinar "os
vários fatores" que contribuíram para a "não aceitação" dos canelas ao novo me10

•• ecológico que foram obrigados a permanecer. A recusa deste grupo indígena em


permanecer na nova localidade - que não era tão diferente assim, segundo os estudos

•• climáticos e culturais realizados por Crocker-, para este antropólogo, teve um caráter
profundamente psicológico, que, aliado a outros fatores "extra-culturais", fizeram com que

•• retomassem, a partir de 1966, para suas terras de origem. Crocker esclarece no texto do

•• último encontro, que sua metodologia consistiu na identificação de fatores em categorias


ecológicas, fornecidas pelos relatos de seus informantes 32 • Então, cada fator identificado era

••
••
29 Semelhante situação aconteceu com Melatti entre os índios Krahô, ver Mellatti (1972, 2002a)
30
Essa estadia no campo é descrita no livro (1990), já o artigo (1972) menciona cinco meses.
31 Crocker poderia agora sustentar "o que seria o desenho mais comum do índice de etnografias, isto é,

•• geografia, parentesco, economia, política e religião" (Marcus e Cushman, 1982:31 [in: Lima: 1998:228]) .
32
"All influences on forest-staying or savanna-retuming can be seen as being inorganic, organic, dimensional,
or cultural in nature, and can be included in the following, sometimes overlapping1 logical categories: (A)

•• Mineral (excluding water), (B) Water, (C) Climate, (D) Catastrophies, (E) Flora, (F) Fauna, and lhe
dimensional relationships, (G) Spacial and (H) Temporal, which may be cultural or non-cultural. The purely
cultural influences can be seen as being extra or intra-societal. ln this analysis the significant Extra-societal

•• categories are: (!) Hinterlanders,(J) Barra do Corda people, (K) lndian Protection Service Personal, (L)
Guajajara lndians, and (M) Greater City People. The intra-societal categories will be sub-divided as: (N)
Technological, (O) Sociological, and (P) Psychological. (Logica!ly, the next category might be Biological,

••
followed by Chemical and Physics, to the extent that these approaches to the study of nature can be divided. It
should be obvious, however, that these categories are not pertinent to the analysis since men organically and

•• 18

••
••
••
••
•• descrito e discutido amplamente "to bring out its relationship to the forest stay temporary
balance and cerrado retum" (Crocker, 1973: 71) - neste artigo aparece (em nota) pela

•• primeira vez a prática de pesquisa com os assistentes-ou! (descrito a seguir) .


Graças em grande parte ao paradigma de aculturação e sua nova posição de

•• antropólogo curador do Smithsonian, o relacionamento etnográfico entre Crocker e os

•• canelas foi sendo viável, não só pelos recursos particulares e financiamentos de instituições
americanas de fomento à atividade científica, como por arranjos políticos junto às

•• instituições brasileiras (Museu Goeldi, Museu Nacional, SPI, FUNAI, CNPq, dentre
outras), e principalmente, pelo tratamento dado a seus "assistentes de pesquisa". Ao

•• retomar a campo em 64, com o apoio da Wenner-Gren Foundation for Anthropological

•• Research e da National Science Foundation, institucionalizou um "conselho de assistentes" .


Quer dizer, transformou sua metodologia etnográfica numa empresa antropológica. A partir

•• desse momento, conjugou assistentes-in e assistrentes-out, em seu ambicioso projeto

.- etnográfico, criando o "Manuscript Writing Program". Os primeiros atendem aos seus

••
anseios de pesquisa em campo, enquanto os segundos, numa análise limitada, o mantém
informado do cotidiano e das "fofocas" na aldeia; numa análise mais abrangente, ajudava -

•• a partir da introdução das traduções da língua canela para o português, em 1966 -, a


"conhecer bem as palavras deles, procurando saber em português e em inglês o que quer

•• dizer essas palavras" 33 , assim como criava condições para que os assistentes pudessem se
expressar livremente, sem influências externas (as suas próprias e, principalmente do SPI) .

•• Tudo isso contribuía para "organizar melhor o pensamento deles"; e para, além disso, servir

•• como estratégia de continuidade de pesquisa (não mencionado pelo autor). Para qualquer
um dos casos eram criteriosamente escolhidos para serem assistentes de pesquisa.

•• O desenvolvimento de "crónicas pessoais", intuito primeiro do programa citado


acima, foi, ao longo dos anos, aumentando o número do séquito de "diaristas" de Crocker34 ,

•• até sua interrupção no final dos anos 70, e retomada do processo nos anos 90. O objetivo

•• inorganically are essentially the sarne \Vherever they are, so there can be no contrasts) (Crocker:1972). Na
terceira parte desta dissertação descreverei como formula essas categorias com seus assistentes .
33 Pequeno trecho da primeira conversa formal com Crocker, dia 10-08-04 .

•• 34
Existe um pequeno e importante comentário a fazer entre "diaristas" e "assistentes de pesquisa". Todo
"diarista" é um assistente de pesquisa, porém por critérios diferentes. Nem todos diaristas fazem parte do
"conselho dos assistentes de pesquisa", estes últimos costumam variar em função do tópico proposto à análise

•• pelo Crocker, e dialogam entre si -que convencionei chamar de assistentes-in. O que não acontece com os

•• 19

••
A •
••
••
••
•••
deste programa, segundo seu criador, era deixá-los à vontade para o que quisessem falar e
escrever, em relação a sua vida particular e aos acontecimentos na aldeia35 • Para cada
manifestação de capacidade individual, percebida e avaliada por Crocker (chegou a fazer

•• alguns testes, anteriormente, como "Rorschach", sem muito resultados 36 ), em se expressar e


escrever, era destinada uma tarefa. Assim, alguns escreviam somente em Português, outros

•• somente em Canela, e outros traduziam seus relatos da língua Canela para o Português. A

•• mesma coisa aconteceu a partir de 1970, com as gravações. Durante 16 anos (1964-1979),
mais de 78.400 páginas de diários foram escritos pelos "assistentes de pesquisa" canela,

•• 708 horas de fita de diário nativo (1970-1979), 88 horas de audições políticas, 72 horas de
material verbal infantil, 148 horas de gravações musicais, 120.000 pés de filme 16 mm, e

•• mais uma infinidade de outros registros. Ainda hoje a coleção desses registros continua,

•• após a interrupção de onze anos em função de políticas locais do órgão indigenista oficial.
Entretanto, não existe até agora nenhuma sistematização desses materiais etnográficos,

•• reiniciados em 1991.
Apesar desse modo de conduzir a pesquisa assemelhar-se com os trabalhos

•• etnográficos do Bureau of American Ethnology, onde, segundo Lévi-Strauss, ao mesmo

•• tempo em que conduzia suas próprias investigações, o Bureau soube encorajar os indígenas
a se tornarem seus próprios lingüistas, filólogos e historiadores (Lévi-Strauss, 1993:64)37 ,

•• Crocker, indagado a respeito, disse que não eram coisas correlatas, pois as técnicas do
Bureau eram antigas e ultrapassadas e colocou-se como "mais moderno que essas pesquisas

•• anteriores" .

•• assistentes-out, que são livres para falar sobre quaisquer eventos que vivenciaram aquele dia, co-existindo
urna espécie de segredo em seus relatos - ver capítulo seguinte.

•• 35
Apesar de Crocker dizer, em nossas conversas, que não sabe bem como começou seu método de "'diários
nativos", cabe ressaltar que sua dissertação de mestrado continha as bases desse método. Ao fazer um estudo
de caso e probabilidades entre indígenas americanos, africanos e esquimós procurava entender (por métodos

•• sócio-psicológicos) o conservacionismo, a mudança e os distúrbios desses indivíduos. Assim, ao introduzir o


"Diary Program" o faz com o intuito de que relatassem seus acontecimentos individuais e de como viam os
acontecimentos, vivenciados na aldeia e fora dela. Tanto em sua monografia, quanto nas entrevistas comigo

•• em campo, Crocker coloca que sempre os deixou à vontade para expressarem livremente o que quisessem,
sem nenhum tipo de interferência sua. Os capítulos seguintes abordarão melhor os desdobramentos desta
prática etnográfica

•• 36
"Some other psychological perception tests were administered in the late 1950s. They were given to me by
psychologist for experimentation in the tribe, and were oriented to test for various aspects o subject-perceived
closure and non-closure. The results \vere not reliable dueto unsatisfactory communication" (Ibid, 34).

•• 37
Crocker (1990) menciona, provavelmente na mesma conferência citada a cima, que Lévi's-Strauss o
motivou a continuar seu «program of manuscript vvritting" quando disse da importância de extensivos relatos
pessoais escritos por nativos de várias partes do mundo na reconstrução futura de suas "cultural fabric" .

•• 20

••

••
••
••
•• A partir desse entendimento, no qual a autoridade etnográfica de Crocker passa a ser
dividida com seus assistentes - mas, não em teoria, e sim na prática - gostaria de passar

•••
para a segunda fase, estabelecida por esse antropólogo, ao longo desses anos de pesquisa .

Nimuendajú, HCBP, Crocker: três aspectos de um mesmo deslumbramento?

••
•• O convite feito pelo professor David Maybury-Lewis para participar do seminário
Pan-Gê na Universidade de Harvard viria mudar um pouco o foco das pesquisas de William

•• Crocker nos anos que se seguiram. O projeto Harvard-Brasil Central ou o "projeto Jê"
como se referiu Da Malta (1987:236) perdurou entre os anos de 1962 e 1967. Consistiu em

•• uma iniciativa conjunta de Maybury-Lewis e Roberto Cardoso de Oliveira -

•• particularmente interessados na frente de expansão, para o primeiro, e contato interétnico,


para o segundo - em ampliar os estudos sobre as "sociedades dialécticas" do Brasil central,

•• através da investigação dos aspectos da organização social e do parentesco, iniciados por


Nimuendajú, por meio de uma antropologia comparada. Este projeto38 contou com a

•• participação de pesquisadores brasileiros e americanos, entre eles: Roberto da Malta, sobre

•• os Apinajé, Júlio César Melalti, com os Krahô, Roque Laraia, com os Xerente (trabalhou
mais com a frente de expansão brasileira que entrava em contato com os Xerente, ficando a

•• cargo de Maybury-Lewis e sua esposa o trabalho com os índios) - todos do Museu


Nacional -, Terence Turner e Joan Bamberger, entre os Kayapó, Jean Carter Lave, com os

•• Krikati, e Christopher Crocker, com os Bororo (este grupo foi incluído, mesmo existindo

••
diferenças classificatórias dos lingüistas, pelas semelhanças culturais com os grupos Jê);
ainda Dolores Newton, Ceei! Crocker e o próprio Maybury-Lewis .

•• Sem entrar na questão de método, os trabalhos resultantes dessa parceria foram de


grande valia para as perspectivas etnográficas amerindias 39 , menos pelo caráter exaustivo

•• das descrições da estrutura social desses povos, do que pelo enriquecimento do debate que
se travou nos anos seguintes (é bem verdade que, no tocante ao projeto, esse debate não
••
••
38
É importante destacar que havia outros dois projetos, concomitantes a este, em curso no Museu nacional: O
estudo Comparativo das Sociedades Indígenas do Brasil, de 1961; e o Projeto Áreas de Fricção Interétnica, de
1962. Para uma contextualização histórica deste período, ver Melatti (2002a), Maybury-Lewis (2002a,

•• 2002b) .
39
Sobretudo sobre a construção de pessoa, ver Carneiro da Cunha (1978), Lopes da Silva (1984) e Viveiros
de Castro (1984, 1992)

•• 21

••

••
••
••
•• consegum atingir os objetivos esperados em termos de análises comparativas e de
publicações), assim como da criação, em 1968, do Programa de Pós-Graduação em

•• Antropologia Social (PPGAS), no próprio Museu Nacional, no Rio de Janeiro .


É dentro desse contexto que William Crocker se vê tentado a aproximar sua

•• pesquisa ao diálogo entre os ''.jêologistas", uma vez que, os canelas também faziam parte da

•• mesma família lingüística. Foi convidado por Maybury Lewis a participar do primeiro
seminário realizado em Harvard, contando com a participação de todos os pesquisadores

•• envolvidos no projeto. Neste seminário ampliou sua rede de contatos, principalmente com
Christopher Crocker, Roberto da Malta, Júlio César Melatti e Dolores Newton. Considerou

•• que foi, através desses encontros, que "a very significant shift toward kinship and other

•• relationships systems was brought to my field studies. I am deeply grateful to the Harvard-
Brazil group for their training and stimulation. The division of my fieldwork orientation

•• into the earlier (pre- 1967) and the later (post- 1968) phases is due to our contact and
exchanges in 1966" (Crocker, 1990:xvii) .

•• Em sua sexta viagem a campo, realizada entre o seminário sobre a Biota

••
Amazônica, organizado pela Associação de Biologia Tropical, com a colaboração do
extinto Conselho Nacional de Pesquisa do Brasil (hoje CNPq), no Museu Goeldi, em junho

•• de 1966 e o Congresso de Americanistas em Mar De! Plata, Argentina, em setembro do


mesmo ano, Crocker começou a enfatizar, de forma mais sistemática, o sistema de

•• parentesco canela e outros "relationship system" 4º, nas reuniões com seus assistentes de
pesqmsa.

•• Em termos de publicação, os artigos onde podemos perceber melhor o diálogo que

•• tentou estabelecer com os resultados do HCBP, são: em menor escala, "Estória das Épocas
de Pré e Pós Pacificação dos Ramkókamekra e Apaniekra-canelas" (1978); e os mais

•• diretos, "Canela "Group" Recruitment and Perpetuity: Incipient "Unilineality"?" (1977),


"Canela Kinship e Matrilineality" (1979) - este em livro dedicado a estudos brasileiros,

•• fomentados pela relação com Charles Wagley ; e, principalmente, "Canela Marriage:

•• Factors in Change" (1984) - escrito no "exílio". Neles, Crocker segue o mesmo intuito das
pesquisas do HCBP, entretanto, menos focado em rever as concepções construídas por

•• 40
Em nota Crocker esclarece que "the Harvard-Central Brazil scholars associated \vith Professor David

••
fvfaybury-Le\vis use the expression, "relationship system" to include other terminological systems thanjust
the consaguineal and affinal ones" (Crocker,1990:366) .

•• 22

'~

:
••
••
••
•• Nimuendajú, às quais já era de seu interesse, e mais interessado em análises sobre
estruturas sociais. De qualquer forma, todos esses pesquisadores (mesmo que Crocker não

•• tenha realizado um agenciamento tão especifico das identidades sociais, como entre os
pesquisadores do HCBP), mantiverain o mesmo "feitiço", pela rebuscada elaboração

•• institucional do principio dualista Jê. Não é a toa que Crocker chega a afirmar que

•• Nimuendajú era etnográficamente acurado em certos caminhos, mas muito mal


compreendido em outros (Crocker, 1977:259)41 •

•• Apesar do terceiro artigo possuir uma narrativa mais descritiva e genealógica, e o


segundo e o último serem mais incisivos nas terminologias de parentesco, portanto mais

•• complicados, todos fazem revista aos conceitos de Nimuendajú, ao mesmo tempo em que

•• estabelecem diferenças com os resultados até então divulgados das pesquisas com os outros
grupos Timbira, em função do histórico de contato e da localização geográfica e ecológica,

•• particular dos canelas. Entretanto, em "Canela Marriage", parece estar mais à vontade para
com as pesquisas já realizadas e publicadas por seus colegas, o que lhe permitiu tratar do

•• assunto, a partir de suas premissas diacrónicas. Posicionando-se de forma mais enfática,

•• inicia seu artigo da seguinte maneira:

Ethnologists have not usually utilized diachronic materiais in

•• resolving synchronic problems, or even for adding the perspective oftime to

••
their ethnologies, either because they lacked earlier pertinent studies of
sufficient substance or because they simply have not tried to reconstruct the

•• past, believing such attempts to be unreliable. For this study, focused on the
institution of marriage, however, the earlier monograph of Nimuendajú is

•• available, and I have specialized in developing techniques for reconstructing

••
certain aspects oftribal life reaching back as far as 1900 for some trends, and
earlier for others. Many of these changes, though included as relevant to the

•• institution of marriage, are also pertinent to other institutions both in the two

••
41
Neste artigo, apresentado em versão preliminar no encontro da AAA, em Toronto, 1972, Crocker contesta
alguns dos dados de Nimuendajú. Contudo, sem deixar de ser, para ele, o marco pelo qual deveria pautar seus
estudos aculturativos. De fato, não devemos considerar que Crocker tenha perdido a crença em Nimuendajú,

•• como o "pai" da etnografia Jê. Até porque suas descrições sobre a organização social Canela se assemelham
bastante às descrições de Nimuendajú, talvez, por isso, considere indispensável para todo etnógrafo, ler as
monografias deste autor. Vlilliam Fisher (1992) ao comentar o livro de Crocker (1990) reforça este argumento

•• da seguinte forma: "It is this tradition ofNimuendajú and his monographic treatment ofthe Bastem Timbira
that Iooms as the silent interlocutor, forebear, and partner to Crocker's new book" .

•• 23

E
••
••
••
•• tribal societies analyzed here as well as in closely related tribes being
researched by other ethnologists. This paper should serve to clarify certain

•• trends and changes among the Canela as we11 as among these other culturally

••
related societies, or at least to offer altemative materials for debate (Crocker,
2002:1, [1984]) .

•• O ponto principal, para Crocker, da diferença de suas argumentações em relaçao aos

•• resultados dos outros jêologistas se estabelece a partir das terminologias de parentesco .

•• Crocker reinterpreta as "transmissões paralelas" de Scheffler e Lounsbury ( 1971 ), enquanto


caminhos alternativos às terminologias Crow e Omaha, para se adequar à situação canela42 ,

•• que pode ser tanto matrilateral, quanto patrilateral, denotando "two mirror-image
terrninological relationship system that largely characterize Canela kinship (cosanguineal

•• and affinal)" (Crocker, 1990:370). Acredita assim ter encontrado "soluções diferentes" em

•••
relação a seus colegas do HCBP, muito embora contenha a mesma lógica complicada de
tentar decifrar a estrutura social de "culturas exóticas". E como não poderia deixar de ser, o
faz sobre os princípios primeiros que acompanham toda a sua descrição etnográfica -

•• independentemente do contato com outras antropologias -, qual seja, o que resulta de um


sistema cultural indígena em contato com a civilização. Observemos o trecho:

••
•• The really important question of this paper pertains to where the
Canela were going in terms of evolving or deculturating processes and

•• structures. As an hypothesis still to be tested, since most of the pertinent

•• 42
"Crow-Omaha principies, where most pertinent to lhe Canela, stress the MB/ZS terminological
equivalences (through linking relatives), while the parallel-transmission rules emphasize uterine and agnatic
line extensions or reductions (through linking relatives). Among the Ramkókamek.ra, however, the kinship

•• ideology is more emphatic in its relationship to matri filiation than to avuncular replacement, so the parallel-
transmission rules seem more pertinent. Moreover, a technical advantage ofthe parallel transmission rules lies
in their closer "fit" to the empirica l data. For instance, a person's spouse's cross sibling's spouse is a spouse

•• (WBW = W, HZH = H), just as a parent's cross sibling's spouse is a spouse (or an affine, if ego and alter are
ofthe sarne sex: ô'MBW = W, ~ FZH = H; ~ MBW = ~BW, ô'FZH = ô'ZH). These kin types are never
addressed as consanguineal relatives, as they are in Crow and Omaha Type-III on one side ofthe paradigm,

•• unless they actually are such "blood" relatives by birth, which does occur quite frequently. (Obviously, the
reciprocais ofthese affinal kin types follow the sarne form.) The really greater advantage of
paralleltransmission's better "fit" is found in the reduction ofthe very long affinal kin types crossing one or

•• even three marriage bonds. Uterine and agnatic line terminological equivalences, through linking relatives, do
exist, depending on certain known priorities, wherever ego and alter are further-linked (two links away or

•• 24

••

••
••
••
•• comparative and ecological data are just being assembled, I am temporally
favoring the point of view that it is more likely that the Canela were

•• evolving toward matriliny when contact condition began to bring about their

••
deculturation and acculturation. Perhaps, if their economic support base had
been considerably improved and certain values radically changed, the

•• ownership of materiais, and possibly of land, would have become more


rewarding so that the "occasional" "ritual lineages" could have become full-

•• time domestic lineages. On the other hand, the "ritual lineages" may actually
be vestigial "time-marks" of earlier, far more complex structures .
•• Thus, if we take the point of view that the Timbira tribe numbered

•• severa! thousand, as some early reports offer, and that the Canela had-full
Crow matrilineal structures from which they have deculturated since contact,

•• I would have to ask the various Omaha-type terminological equivalences are


still in evidence, and why the Omaha-oriented female name transmission

•• system could still being existence?

•• If on the other hand, lhe Timbira had developed in keeping with the
basic "matriline-patriline" equations I have found to be so fundamental to

•• the structuring of the Canela relationship systems, then the Crow/Omaha


mixture does make sense (Crocker, 1977:269-270) .

••
•• Deixa clara a hipótese sobre a qual a mudança histórica ("intra-cultural") - período
que chama de "great river" 43 - não se completou, digamos assim, em virtude do contato

•••
("extra-cultural") com os "civilizados", por isso seu questionamento sobre "evolução" e
"deculturação" para tratar dos sistemas classificatórios como "incipient unilineality" .
Saindo um pouco dessas grandes questões, sobre o que há de mais "primitivo" nos

•• canelas, que tanto lhe interessa, por sua vez, entrando no debate que mais me apraz, é

•• importante observar que na descrição desses textos - aqui tomados como representativos do
período de campo entre 1966-1975 (com exceção do ultimo artigo) - a construção da

•• more), and involve cross collaterals ar include a marital bond, provided that certain subcategory tenns can be
recognized correctly as being par! oftheir principal caíegory, semantically (Crocker, 2002:25, [1984 ]).

•• ·i3Crocker (1978) descreve, a partir do "etno-conceito" da evolução da própria história canela, três períodos
distintos: o primeiro, nomadismo e caça - natureza; o segundo, origem do kupen (branco) e cultivo - cultura; e
o terceiro, aculturação e dependência .

•• 25

••

1

1
••
••
••
•• narrativa deste autor, ainda não faz nenhum questionamento mais específico sobre como
trabalha sua experiência em termos da situação etnográfica e de suas práticas de pesquisa .

•• O que há de mais significativo neles, em relação à análise que proponho, é o que toma mais
legítima a conclusão de seus dados. Assim, suas narrativas se apóiam na objetividade dos

•• informantes, tal qual podemos notar no trecho a seguir:

•• It is now clear that Ramkókamekra informant kinship specialists can

•• reckon their kin system more extensively in general depth (in one longhouse,
seven generations) and in the number of matrilines included in a kin unit (in

•• the largest longhouse, between twenty and thirty lines) than has been

•• recognized by current anthropological Gê specialists. The Ramkókamekra


infonnant kinship specialists even have a word with which to distinguish

•• what would be a person's "lineage" (lc'We: a part of any whole) - ar his/her


father's, mother's father's "lineage" - which groups together the proper

•• cross-generation kinship terms and persons almost exactly as they can be

•• found in certain classical matrilineages (see Eggain 1950:23-24) (Crocker,


1979:238; grifo meu) .

•• Esta aparição é paradigmática, no sentido de que assegura o estabelecimento de

•• fontes seguras de informação - tal qual os informantes privilegiados de Raymond Firth,

••
Robert Lowie, e outros descritos por Clifford (1998) -, legitimando seu trabalho de campo,
sem relacionar seu processo de pesquisa ao texto, do qual ele faz parte. O mesmo acontece,

•• no primeiro artigo já descrito, apresentado em versão preliminar, na 10" Reunião da


Associação Brasileira de Antropologia, realizada em Salvador, Bahia, em 197644 •

•• Entretanto, é interessante que neste texto ele enaltece ainda mais a capacidade intelectual de
seus informantes, "escolhidos pela boa memória e superior capacidade de entender as

•• atividades de seus ancestrais" (Crocker, 1978:2), subentendendo a sua capacidade anterior

•• da escolha de seus informantes. Adjetivos não foram poupados em sua descrição, tais
como: "informantes experimentados", "informante inteligente", "nossos informantes",

•• "inteligentes grupos de informantes"; notificando até mesmo discordâncias (em nota),

•• 44
Esse texto foi traduzido, do inglês para o português, pelo arqueólogo Edgar Pires Ferreira .

•• 26

••
••
••
••
•• distinções, crenças e consensos entre eles. Ao registrar seu método nesse texto, esclarece
que fez uma criteriosa "seleção de pensamentos do grupo de informantes", dos mais de 100

•• mitos e contos de guerra "registrados, traduzidos e discutidos" por seus informantes, muito
embora deixe transparecer que, se não fosse sua presença lá, um profissional treinado 45 , de

•• nada valeria o registro dessas "etno-crenças". Na transcrição abaixo, podemos perceber a

•• semelhança entre seu estilo e o género literário de Nimuendajú e, como conseqüência, notar
o porquê de seu interesse nas estórias de pré-pacificação, como parte de um "sistema

•• operativo sócio-cultural" que não se modifica, portanto, contraposta às estruturas cognitivas


das estórias de pós-pacificação, que envolveriam outros sistemas culturais .

••
••
Estas estórias são normalmente contadas em público, com o
pressuposto de que o ouvinte conhece todas as complexas circunstâncias que

•• um ingênuo forasteiro só pode imaginar. Os infonnantes muitas vezes se


referem a pontos específicos focalizados por famosos contadores de estórias

•• já falecidos, para validar suas narrações, e procuram repetir somente os


contextos tradicionais sem introduzir-lhes inovações. Ademais, em nosso

•• caso, compreenderam que mais nos agradava um "eu não sei" do que uma

•• suposição (Crocker 1978:2-3, grifo meu) .

•• Primeiramente, nota-se a distinção que estabelece, possivelmente para com relatos


de missionários, viajantes, etc., colocando-se como um "profissional treinado". Ao mesmo

•• tempo, estabelece para com seus informantes uma outra distinção, a saber: que ele (nativo)

•• sabe o que está falando, mas eu (antropólogo) tenho que ir além do que ele diz que sabe,
pois, suponho, que ele não sabe que "o pensamento é resultado de uma manipulação

•• intencional de formas culturais" (Geertz, 2002:225). Sob outro ponto de vista, se tomarmos
as discussões apresentadas acima, junto com o pressuposto de Clifford (1998:50-51) que os

•• • etnógrafos têm geralmente evitado atribuir crenças, sentimentos e pensamentos aos


indivíduos, mas não têm hesitado em atribuir estados subjetivos a culturas. Diria que

•• 45
Em artigo anterior, Crocker já havia chamado a atenção para a importância do treinainento do pesquisador,
nas ciências sociais, para o entendimento de outras formas de representação, notadamente, a psicologia.

•• Assim dizia: it seemed quite impossible to me that ifa person not trained in the social sciences \Vere to be left
in this community for some period oftime, he \VOuld not be able to identify very much ofthe religious system
(1963:164) .

•• 27

••

A
••
••
••
••
Crocker realiza as duas coisas: tanto atribuiu crenças aos indivíduos, tal como "os
informantes crê em que ... ", quanto atribuiu, na grande maioria das vezes, a ajuda da

•• interpretação para "divulgar a sua compreensão de uma cultura" (Sperber:l981:33)


frases como "os canelas agora pensam... ", "os Ramkokamekra-canelas tem a tendência ... ",
46
, com

•• ou " Acreditam os R-canelas, mas não os A-canelas que ... ", só para citar exemplos deste

•• texto. Entendo, contudo, que o antropólogo deve tender a algum modelo de escrita, para
representar, interpretar ou inventar, como diria Roy Wagner (1981), aquilo que ele observa,

•• escuta e fala, e depois escreve. Se o problema da "tradução cultural" é intrínseco à


etnografia, em termos de sua alteridade, então, em qualquer tentativa de se interpretar ou

•• explicar outro objeto cultural, sempre fica um resíduo de diferença que é parcialmente


criado pelo próprio processo de comunicação etnográfica (Marcus, 1994a) .

•• Talvez, o fato de eu estar problematizando a questão da presença do autor e de seus


informantes no texto se deva, em grande parte, menos em como entendo a objetividade das

•••
narrativas etnográficas, e mais na preocupação de Crocker em seu primeiro livro, após
muitos anos de pesquisa, em descrever, não só seus métodos e a importância de seus
assistentes neste processo, como também em mostrar brevemente as "condições concretas

•• da pesquisa antropológica". Nesse sentido, além dessa postura ser de fundamental

•• importância para o que me proponho nesta dissertação, acredito também que esta
preocupação possa residir nas críticas à neutralidade do "sujeito real" nos textos

•• etnográficos, empreendidas sobretudo no começo dos anos 70, após a quebra do paradigma

-·•
do estruturalismo, e, no caso americano, na ascensão do movimento "writing culture" -
surgido a partir das mudanças dos departamentos de humanidades das universidades

•••
americanas - pelos chamados antropólogos pós-modernos. A pergunta que me cabe é:
mesmo que Crocker tenha me revelado que sua posição, como curador cientifico, o tenha
afastado da teoria antropológica, na prática, acredito que mesmo um curador para assuntos

•• de Etnologia Sul-americana de um grande museu não fica alheio às discussões que o


cercam, até porque este antropólogo - ou etnógrafo, como queira - não deixou de freqüentar
••
••
46
É digno de nota, esclarecer que Clifford utiliza o mesmo autor para fazer semelhante tipo de comentário,
porém gostaria de estender esse comentário através de um outro. Sperber ao fazer sua crítica afirma que as
«crenças não se observam", daí as conseqüências de sua interpretação pelos etnógrafos (relativistas), faz

•• também urna outra suposição, que vai de encontro a Crocker, ao dizer que se "quisermos uma definição mais
precisa da noção de crença, é aos psicólogos que é necessário pedi-la" (Ibid, 78). Vale lembrar que Crocker
tem na psicologia seu arauto antropológico (ver nota anterior) .

•• 28

••

••
••
••
•• e apresentar trabalhos, em encontros de Antropologia. Levando isso em consideração, será
que se esse tipo de debate, sobre a justificação do que se escreve, não tivesse sido percebido

•• por Crocker, enquanto rumos da Antropologia, teria ele se preocupado em descrever seu
processo de pesquisa com seus assistentes? Da mesma forma que os debates decorrentes do

•• HCBP fizeram com que ele se preocupasse em se adequar às linhas de pesquisa sobre os Jê,

•• por que não pensar que os debates à cerca da representação política e epistemológica do
antropólogo fossem também motivos de preocupações deste autor.

•• Infelizmente não dispomos de bases comparativas anteriores, em termos de livros,


somente através de artigos, visto que Crocker só veio a lançar seu primeiro livro em 1990, e

•• um outro menor quatro anos depois, em parceria com sua esposa Jean Crocker, o qual

•• pouco nos informa a respeito do relacionamento etnográfico. Menciona no prefácio de seu


primeiro livro o seguinte:

•• Some field researchers write very little about how they carried out

•• their ethnological fieldwork. Co!leagues today, however, want to know

••
about field experiences in order to facilitate their assessment of a
publication. In tribal ethnology, because communication is almost always

•• uncertain, we often do not use random sampling, questionnaires, and other


sociological and statistical techniques. Length of time in the field, close

•• familiarity with the ecological setting, close rapport with the people
(especially with certain key infomzants), anda consistent focus on improving

•• communication are the ethnologist's techniques for enhancing relative

•• objectivity, reliability, and the validity of field data (Crocker, 1990:xvi;


grifos meu) .

•• Essa tangente sobre o questionamento da relação entre sujeito e objeto demonstra

•• que estava aparentemente familiarizado com as criticas sobre as descrições da produção de

•• conhecimento nos textos etnográficos. A experiência de campo à qual Crocker se refere em


muito se aproxima das críticas estabelecidas neste período, e que por sua vez pode ser

•• pertinente ao relacionamento etnográfico a que me refiro, assim como ao estabelecimento

••
•• 29

••
••
••
••
•• de uma presença autora! no texto, lembrando Geertz, e, ainda, o lugar do objeto na
descrição etnográfica.

•• Pedindo uma licença discursiva, Geertz, quando argumenta que "os antropólogos
estão imbuídos da idéia de que as questões metodológicas centrais envolvidas na descrição

•• etnográfica têm a ver com a mecânica do conhecimento" - aqui expresso pela "close

•• familiarity" e "close rapport" -, para tanto ligando-as "à problemática do trabalho de


campo, e não à problemática do discurso" (Geertz, 2002:21); e quando Clifford menciona

•• que "esses indivíduos se tornaram informantes valorizados porque entenderam, muitas


vezes com grande sutileza,o que implica uma atitude etnográfica diante da cultura" - no

•• caso os "key informantes"; e quando pretendo situar o leitor na relação entre o sujeito e o

•• objeto, pesquisador e pesquisados, nas descrições de Crocker, mesmo tendo-o relacionado à


produção de conhecimento, acredito estar mesclando tanto a problemática do trabalho de

•• campo, quanto a problemática do discurso. Pois, se pensarmos que quando se textualiza é


que se apreende os processos culturais (seguindo aqui a formulação Writing Culture), ao

•• descrever o relacionamento etnográfico nesta dissertação, seja como se apresenta nos

•• trabalhos escritos, seja no seu processo err,pírico, minha intenção é refletir sobre esses
campos que se apresentam distintos, na grande maioria dos casos .

•• Por fim, tentando ampliar possíveis respostas ao questionamento acuna, me


atreveria a três rápidas suposições que se cruzariam. A primeira delas diz respeito à espera,

•• pela apreensão da totalidade do sistema cultural canela, nas palavras de Crocker, da "visão

••
global dos canelas". Ao ser perguntado por que tanto tempo para escrever um livro, disse
que esperava para ter uma visão mais geral, não considerava que estava suficientemente

•• entendido para escrever qualquer coisa. Somente nos anos 70, como me informou, é que
começou a se considerar capaz para realizar tal tarefa. Mas, tendo formalizado esta idéia,

•• considerou-se pronto, somente no final de 79, após mais uma longa permanência em
campo. A segunda, ligada a anterior, deve-se ao seu afastamento da aldeia por onze anos, e

•• ao pensamento de não voltar a fazer pesquisa de campo entre os canelas (o que será

•• comentado em outras partes desta dissertação). Fato esse que o forçou a escrever com mais
fôlego a mudança do sistema sociocultural total, que não poderia mais observar. No início

•• da sistematização de seus dados, no começo dos anos 80, teve um impedimento no processo
de escrita, em função de problemas da separação de sua segunda esposa, agravados por

••
•• 30

••
••
••
••
•• problemas judiciais na família. A partir de 1984 é que começou realmente a escrever o que
viria a ser "o primeiro volume de uma série em potencial". Comentou que ainda gostaria de

•• escrever mais dois livros: um sobre as festas canelas, mais precisamente sobre a "estrutura
êmica das festas"; e o outro que descreve as mudanças ocorridas neste grupo indígena,

•• desde 1890 até os dias de hoje. A terceira, e última, se interpolaria às outras duas, e se

•• ligaria diretamente à pergunta realizada, que residiria no surgimento da critica posicional de


enunciação do discurso etnográfico, onde a dimensão textual da etnografia, enquanto

•• condições de produção das descrições, ganha requintes criticas, sobretudo a partir dos anos
70 e 8047 . Por isso, também a necessidade de descrever seus assistentes, em conformidade

•• com os procedimentos de pesquisa .

•• Situar William Crocker dentro desta "epopéia antropológica" foi a maneira


encontrada, enquanto "instrumento conceituai", para dar conta de minhas pretensões de

•• discutir uma empresa antropológica de quase meio século, através do discurso e da prática.

••
••
••
••
••
••
••
••
••
47
No caso de \Vil liam Crocker, embora muito das discussões dos ''pós-modernos" se fizessem notar (com
certo esforço), seria importante percebermos que, apesar dessas criticas e posicionamentos da Antropologia
pós anos 60, sobretudo nos EUA, Inglaterra e França, se deram em contextos políticos específicos, onde o

•• grau de comprometimento desses autores (Assad, Appadurai, Said, etc) foge um pouco de nosso
entendimento, enquanto pesquisadores brasileiros, particularmente se tomarmos como base as pesquisas
amerindias. Contudo, muito desse movimento não se bastava simplesmente em denunciar o sistema colonial,

••
colocando-se do lado dos nativos, onde o nativo antes era pura imaginação antropológica, mas de evocar as
condições materiais e históricas da produção antropológica .

•• 31

e
••
••
••
••
•• Capítulo II
Diaristas e assistentes de pesquisa de Crocker
••
•• Desde Malinowski (1922), o fazer antropológico debate-se, através do conceito da
observação participante e da coleta de informações entre o discurso do observado, a priori,

•• subjetivo, e o regime discursivo do observador, a posteriori, objetivo. Toma-se

•• fundamental ao pesquisador de campo a convivência prolongada e o cantata íntimo com


seus infonnantes, usar a língua nativa e fornecer sempre que possível explicações

•• científicas da cultura estudada. Os informantes, os interlocutores e/ou os assistentes de


pesquisa são, dessa maneira, ora pensados como locus privilegiado de análise, ora como

•• plataforma para a sustentação de um problema teórico o qual o antropólogo pretende

•• desenvolver. Como consequência, encontrar no campo pessoas capazes de negociar


informações e seus significados de categorias nativas, e fornecer a você uma espécie de

•• tradução delas para as suas próprias, tornou-se uma das grandes engrenagens de nossa
disciplina. Mais recentemente, a Antropologia resolveu problematizar os caminhos e as

•• escolhas que o pesquisador, ao longo de sua estadia com o "outro", negligenciou ao

•• legitimar seu trabalho de campo através do texto etnográfico, assim como, se preocupou em
estabelecer uma certa "responsabilidade social do cientista" .

•• Em fins dos anos 50, o antropólogo William Crocker começou aquilo que seria um
dos maiores envolvimentos entre sujeito e objeto na história da Antropologia. Tomarei

•• como marco deste relacionamento o momento em que, ao sistematizar uma prática

••
etnográfica para o entendimento dos múltiplos sentidos do sistema cultural canela, elaborou
um grupo de assistentes de pesquisa, de forma a apreendê-lo cognitivamente. É por esse

•• caminho tênue e complicado, cheio de tessitura e garimpagem, de universos simbólicos


aflorados e atualizações culturais em curso, que todos nós, pesquisadores de campo,

•• experimentamos, que tentarei dialogar aqui. Tarefa de difícil aceitação por parte de
antropólogos - até recentemente, pelo menos - pela inversão clássica do habitus

•• antropológico ("nós" x "eles"), mas de g:-ande contribuição para o entendimento das

•• relações criadas entre o observador e os observados, e demais agentes sociais ao longo do


fazer etnográfico. Levando em consideração que o papel de sujeito, na relação de produção

••
•• 32

~.!

••
••
••
•• de conhecimento, não cabe somente ao antropólogo, mas também a seu objeto, este capítulo
objetiva apresentar os assistentes de pesquisa de Crocker, procurando mostrar como e

•• porque viraram assistentes; qual a participação deles nas pesquisas deste antropólogo; qual
a reflexão que fazem de seu trabalho e, conseqüentemente, da Antropologia; o que

•• representam na passagem da tradição oral para a tradição escrita, e a importância desses

•• sujeitos para a aldeia e para Crocker.


Na busca de esmiuçar essa produção do relacionamento antropológico e o sentido

•• desta troca, meus interlocutores, como não poderia deixar de ser, foram, em sua maioria, os
próprios assistentes de pesquisa de Crocker. Alguns já eram conhecidos da minha p.rimeira

•• passagem por lá, mas pouco conversamos a respeito, outros conheci em razão dessa

•• pesquisa e outros não tive a oportunidade de "trocar figurinhas", seja por motivo de
falecimento, quanto por deslocamentos contrários ao tempo de pesquisa .

•• Para início de conversa, acredito ser imprescindível entendermos as categorias que


marcam a relação entre ambos, pois na medida em que avançava nas conversas com os

•• assistentes de pesquisa de Crocker, era notório perceber os campos semânticos pelo qual as

••
representações entre eles se pautavam, tanto para o antropólogo, quanto para o "research
assistent council". O cuidado que terei ao descrevê-las é de não tomar o "nativo" um pobre

•• e inocente coitado, e o antropólogo um "lobo mau" - essencializações estas que tanto


marcaram pesquisas recentes-, mas antes entendê-las enquanto ordens de significação de

• ••
uma empresa antropológica que se implanta numa rede já formada de significações. E que,
para tanto, se estabelece por distintos padrões de relacionamento, que serão aqui pensados

•• menos por determinantes aculturativos, ou qualquer coisa parecida, do que por estratégias
oriundas de seus próprios campos culturais .

•• A minha estratégia, em particular, para este capítulo, será, sempre que possível,
utilizar trechos das entrevistas com os assistentes como suporte narrativo e tentativa de dar

•• voz, se assim posso dizer, aos "empregados" de Crocker, para se fazer notar o

••
entendimento deles neste processo de transformações compartilhadas. Em busca deste
diálogo, também utilizarei, como fonte, as entrevistas realizadas com Crocker em campo. E

•• como recurso aos vácuos desta transmissão de conhecimento, me apoiarei em sua obra de
maior fôlego, The Canela (Eastem Timbira), 1: an ethnografic introduction, de forma a

•• complementar a narrativa .

•• 33

••
@•
••
••
••
•• "Patrão" como categoria (não) nativa

••

Em âmbito geral, a palavra patrão é intrínseca à relação de trabalho entre

•• empregador e empregado. No caso Ramkokamekra, os canelas tomam de empréstimo essa


categoria da sociedade envolvente, para se referirem ao tipo de troca que estabelecem com

•• os kupen 4 8, de maneira geral


Estima-se que a introdução desta categoria por eles, tenha se firmado antes mesmo

•• da presença de Crocker e após a chegada da primeira família do extinto SPI 49, em 1938. É

•• nesse periodo, segundo informações apresentadas pelos assistentes a Crocker, que


aprendem técnicas de cultivo extensivo e criação de animais de pequeno porte, como

•• galinhas e porcos, com os indigenistas do SPI, chamados, por eles, de "chefe" ou "patrão" .
Vem também desta época o incremento dos primeiros comércios com os regionais, e, por

•• conseguinte, das suas relações de produção. Gradativamente foram tomando conhecimento


do valor comercial dos bens de consumo e do dinheiro necessário para consegui-los 50 .
•• Desde os primeiros cantatas com o antropólogo William Crocker, guardados na

•• memória de muitos índios Ramkokamekra ainda vivos, dentre os quais, mantendo, alguns
deles, uma ligação intensa por todos esses anos, a relação de patrão apesar de ser anterior a

•• sua chegada se estabelece por outros princípios, por outra ordem de significados do que

••
havia com o órgão indigenista. Até porque, se consolida por outras estratégias de
relacionamento. No tocante à relação que desenvolveram com Crocker, não poderia

•• analisá-la sem o cuidado de percebê-la enquanto processos sociais 51 em construção,


resultado de disputas entre pessoas, grupos e segmentos sociais. Nesse sentido, o próprio

•• 48
Para Nimuendajú (1946) esta palavra veio a designar o "branco" civilizado, mas que teria sido

•• originalmente aplicada a todo grupo não timbira; para Azanha (1984) este termo provém daquele que da
"Forma Timbira" não apresenta nada de reconhecível.
49
Crocker ao se dedicar a descrever os processos aculturativos, aos quais sofreram os canelas, desde os

•• primeiros artigos menciona a influência do SPI neste ?rocesso, particularmente, quando da implementação do
Posto Indígena na aldeia. Para a mudança cultural em virtude do SPI, ver Crocker (1961, 1967, 1972, 1977,
1979a, 1984, 1990). Para uma interessante análise histórica e etnográfica de semelhante processo envolvendo

•• indígenistas do SPI e os índios (tikuna), ver Oliveira (1977, 1999a) .


5
° Caberia ressaltar que era uma estratégia política comum do SPI a integração dos índios à sociedade
brasileira, estabelecida muitas vezes pelo incremento das atividades produtivas.

••
.
51
Para a problen1atização da relação social como uma atividade de conhecimento, ver Strathem (1987, 1999),
onde a autora propõe uma teoria relacional do conhecimento, pois, se o conhecimento é uma relação social, a
relação do antropólogo com seu objeto é intrínseca e não extrínseca .

•• 34


••
••
••
•• Crocker a toma como um modelo comparativo já existente. Diz ele, referindo-se á forma de
pagamento daqueles que começaram a escrever "diários nativos":

•• The base pay was calculated to be double what a regional backlander

•• would pay another backlander to work as unskilled labor on his farmer, but

•• lhe time employed was set at two hours a day for writer (more than needed)
instead oflhe usual eight spent by lhe hired hand (Crocker, 1990:39) .

•• Mesmo sendo o tratamento "patrão"/"empregado" anterior a Crocker, não sei até

•• onde ele pode ter influenciado, ou ter sido influenciado, para ser chamado de patrão
colocando estes termos de comparação para os índios 52, ou seja, tomando como base o
•• pagamento assalariado de trabalhadores rurais da região. Isso porque, segundo me relatou,

•• tinha a preocupação de não exceder a economia da região, e, ao mesmo tempo, permitir que
seus assistentes não precisassem sair do convívio da aldeia para serem explorados fora dela .

•• Não se pode negar que, por essa época, já existiam "empregados" indígenas trabalhando

••
para o recente posto do SPI, como também muitos índios trabalhavam para fazendeiros
instalados na região de Barra do Corda, desde o início do século XIX, quando foram

•• considerados "pacificados"53 • Raimundo Beato, um dos atuais assistentes de Crocker me


contou que, até os anos 80, era comum eles trabalharem como "diaristas" para alguns

•• fazendeiros locais, e que era muito comum serem enganados .


O fato é que Crocker, já nas primeiras incursões entre os canelas, formou um grupo

•• de assistentes de pesquisa. Esse grupo, depois de sua partida da aldeia em 1960, já era visto

•• como seus "empregados" pelos outros índios, por terem sido seus "diaristas". Quando eu
conversava com seu primeiro "writer" (retomarei a esta categoria mais à frente), perguntei

•• a ele como começou seu trabalho. Este me esclareceu que a intenção de escrever para o
americano partiu dele próprio, mas após observar que Raimundo Roberto Kaapêlt:Uk (do

•• primeiro grupo de assistentes) já era "empregado do Crocker". Por isso, começou a

•• 52
No inicio de sua pesquisa com os canelas, Crocker também se interessava pelo estilo de vida dos regionais.

•• Chegou a fazer alguns censos sócio-econômicos com eles, mas com o acirramento das relações entre índios e
fazendeiros deixou de manter cantata com os últimos para que não houvesse problemas na continuação de sua
pesquisa.

••
53
Quem melhor oferece relatos dessa época é Francisco de Paula Ribeiro (1841 1 1848, 1874), sobretudo sobre
as frentes de expansão .

•• 35

••
-~
••
••
••
•• escrever para ele54 • O próprio Kaapêltlik pediu ao Crocker, em 1958, para ser seu
"empregado", já tendo percebido, enquanto trocas simbólicas, a existência desta categoria

•• pelo SPI no qual chegou a exercer alguma atividade - mas foi afastado pelo administrador
António Gato, em virtude de seu aprisionamento como "chefe do batalhão" (me capõn

•• catê), nos longos ciclos de iniciação masculina. Crocker diz assim:

•• During my four to five months with the Canela in 1957 I did not have

•• any "empregados" (employees); as they say; that is, any research assistants
with whom I met on regular basis. My first research assistant of this kind

•• was the younger Kaapêltlik [= Kaapêl], who had been away - out in the

••
world (no mundo) - during my stay in 1957. In 1958, this younger
Kaapêltlik, carne to me a number oftimes, asking to become my empregado,

•• but I could not just see how I could use him a regular basis (Crocker,
1990:43) .

•• Deve-se considerar que o próprio sistema político canela favorecia este tipo de

•• conduta, uma vez que era quase como uma obrigação individual dos "chefes" serem os

•• interlocutores do seu povo com os kupen 55 , não obstante, em conseguir vantagens em favor
de seu grupo. O que se espera de um "bom" me capõn cate, interpretando Raimundo

•• Roberto, é que ele faça negociações e busque por alianças em prol de seu "batalhão", por
conseguinte, em prol de sua aldeia. Por isso, não acho que seja coincidência que grande

•• parte dos assistentes de Crocker façam parte de uma linha de descendência de "chefes",

•• como é o caso do "velho Kaapêltlik" e do "jovem Kaapêltlik"; ou de chefes nomeados pelos


prókãm mã, como é o caso de Tep-hot e outros; ou ainda, aqueles que buscam prestígio

•• individual por uma boa relação de comunicação com os kupen, para serem eleitos pelos
prókãm mã e a comunidade a fim de exercer algum tipo de liderança na aldeia, como é o

•• caso de Raimundo Nonato (atual vereador), Beato (candidato a vereador nas próximas

•• 54 Utiliza o material deixado por Crocker antes de sua última partida da aldeia, para escrever. Cabe ressaltar

••
que este tipo de atividade escrita para a aldeia, à época, e ainda hoje, era vista como sinónimo de prestigio por
quem o executasse.
55 Crocker refere-se a esse fato mencionando que "the chiefmanages all externa! relations (\vith backlanders,

the Indian Service, and visitors, \Vhether from other tribes or from cities), and is the final voice in the \vell-

•• developed judicial system" (Crocker, 1990: 17).

•• 36

••
••
••
••
•• eleições e membro da próxima classe de idade a formar o conselho dos prókãm mã) e o
atual cacique Severo. Este tipo de comportamento parece ter sido percebido por Crocker,

•• tanto que, ao relatar a história de seus "assistentes especiais", ora ou outra menciona certas
características político-sociais dos indivíduos canelas em relação ao seu grupo, por

•• exemplo, quando ainda descrevia o "jovem KaapêltUk" .

•• He was trying to reinstate himself in the eyes of the Canela through

•• obtaining employment from me. He also needed funds because his position
of leadership required that he be generous with his followers and provide

•• them with lunches when they carried out group work under his direction

•• (Crocker, 1990:43) .

•• Nenhum dos assistentes que entrevistei chegou a menc10nar diretamente essa


relação de "empregado" como articulador político, todavia podemos até pensar que isso se

•• deva a um tipo de discurso que supostamente não interessaria aos antropólogos tomar
conhecimento, ou até mesmo uma incapacidade metodológica minha em querer botar o
•• carro na frente dos bois e inquirir determinados questionamentos em busca de supostas

•• verdades e novas tartarugas 56 . O fato é que a acepção linguística, "patrão", é muito evidente
entre os assistentes de pesquisa que trabalham com Crocker, desde o início de sua pesquisa,

•• principalmente por Raimundo Roberto. Muitas vezes, quando conversava com eles, se
referiam a Crocker como "americano velho" ou "Crocker velho", mas a maioria das vezes
•• era tratado como "patrão". Durante o acompanhamento de sua pesquisa de campo em

•• agosto de 2003, Crocker comentou que essas categorias foram mudando ao longo dos anos
de pesquisa, em função de novas percepções dos 'de fora'. Cita o exemplo de Raimundo

•• Nonato que depois de presenciar, em 2001, auxiliares de pesquisa de universidades


brasileiras, chamando-o de "professor", adotou esta categoria, quando antes era de "chefe" .

•• Tentava me mostrar que isso não tinha uma relação direta de subjugação pela relação de

•• traball1o assalariado, mas antes pela absorção de um novo vocabulário .

•• 56
Refiro-me ao capítulo do livro de Silva (2000), onde a partir de uma citação de Geertz (1978:39) sobre uma

•• história Indiana, conclui que "não se trata de submeter a "lógica da pesquisa" à "lógica do nativo" (ou vice-
versa) e nem de tentar fazer coincidir os interesses desses dois universos, desconsiderando suas posições" .

•• 37

••
e
••
••
••
•• Vale ainda destacar, que, além desta nomeação dada a Crocker, pude observar que
chamavam determinadas pessoas da cidade (aquelas que ficavam de posse de seus cartões

•• de aposentadoria e demais seguros sociais) de "patrão". Eram em tomo de cinco


personagens locais que manipulavam bondosamente o dinheiro desses índios, quase sempre

•• trocados por mantimentos e demais bens de consumo duráveis e não-duráveis. Isso se os

•• índios já não estivessem endividados, por conta de elevadas taxações mercantis e de juros .
Perguntei a um índio o que ele achava desse relacionamento. Tive como resposta o

•• seguinte: eles são kupen, bicho sabido. Índio tá vendo, Funai tá vendo, tá todo mundo
vendo, mas ninguém faz nada. Tá todo mundo que to, tá todo mundo calado, quando vê,

•• pronto!

•• \Vriter, translator e recorder: a pertença sobre os significados com

•• que os indivíduos canelas exteriorizam seu mundo .

•• (... ); they also made clear that different

••
individuais viewed their culture in different ways .
Charles Wag!ey, 1987 (ln: Crocker,1990) .

•• Individuals consume cultural symbolic forrns in the


construction of their systems of meaning, and in terms

••
O\VTI

oftheir unique biographies and personal histories of


intrapsychic strategies and practices. The contexts in \Vhich

•• individuals fashion, speak and live their \vorld-vie\VS may


be seen to be ontologically internal to themselves (Overing

•• and Rapport, 2000; [cf. Rapport, 1995])

•• Em 1964, Crocker introduziu uma prática de pesquisa que se realiza até os dias de

•••
hoje, chamada "Canela Diary Program", conjugando, a partir de então, assistentes-in e
assistentes-ou/, em sua pesquisa voltada para o futuro. O principal argumento deste
programa era permitir que seus executores expressassem livremente os acontecimentos

•• pessoais e os da aldeia, cotidianamente. Porém, não atribuiu a introdução deste método a si


próprio. Segundo ele, ao retornar no referido ano, descobriu que Marcelino Hàwpuu, "a

•• natural ethnologist", por sua livre e espontânea vontade, continuou a escrever sobre os

•• 38

••
•e
••
••
••
•• assuntos ocorridos na aldeia - naquele momento passavam por um movimento messiânico -
mesmo sem a sua presença, guardando esse material para vendê-lo quando retomasse. Só

•• que, em meios à "revolução" (corno se refere Marcelino), ocorerrarn sucessivos ataques de


fazendeiros vizinhos motivados pelos constantes abatimentos de gado pelos índios - nessa

•• época não existia limites fisicos delimitando a ten·a dos brancos e a terra dos índios, o

•• gado andava livremente até mesmo por entre a aldeia - e de certos temores dos sertanejos,
ocasionados pelos avisos dos índios de que os índios iriam para as cidades e os brancos

•• iriam para o mato. Em urna dessas investidas, os manuscritos de Marcelino foram


incendiados junto com sua casa57 • Em razão desta perda, Crocker resolveu criar o

•• "Manuscript-Writing Program" .

•• Como em todas as atividades de pesqmsa que desenvolveu entre os canelas,


primeiro fez uma espécie de capacitação e formação dos seus candidatos a assistente .

•• Assim, três índios foram selecionados para esta atividade: Marcelino Hàwpuu, o jovem
Francisco Romão Pu?tô e o jovem Raimundo Roberto Kaapêltlik- dos três, somente Pu?tô

•• não cheguei a conhecer, em virtude de seu falecimento. Todos já haviam sido seus

••
informantes em viagens anteriores, relativas ao período de pré-doutoramento, o último mais
corno intérprete do que corno "assistente". Em razão de suas "habilidades",

•• "personalidades" e "interesse pessoal" foram selecionados por Crocker para desenvolver o


"manuscrípt-writing prograrn". Para tanto, deveriam escrever em português o que achassem

•• relevante ser dito, em relação as suas atividades diárias e aos eventos ocorridos na aldeia. A
esse respeito relatou que,
••
•• The diarists were free to choose their own subjects. The diary wríting
was an informal projective test; it was rnost important not to tell the writers

•• what to do other than to give them the required number of page to fill with
their personal thoughts and major tribal events. These were the two subjects

•• of concem to me and therefore the only points of instructions to them

••
(Ibid,1990:37) .

•• 57
"His manuscripts \Vere bumed as a result ofthe July 10 attack on the Aldeia Velha village, during \Vhich
three Canela \Vere killed. These \Vritings would have been invaluable as records ofthe movement. This loss

••
•• 39

••
e
••
••
••
•• Crocker descreveu que sua não interferência nos manuscritos deveu-se ao fato
desses índios, por já terem participado de suas pesquisas anteriores, estarem "direcionados

•• pela natureza dos primeiros contatos" (ibid, 37), então, já sabiam o que lhe interessava.
Assim, em 1966 inaugurou uma outra fase nos "diários nativos". Raimundo Roberto

•• Kaapêltlik deveria agora escrever na língua canela e traduzir para o português - atividade

•• que somente ao longo dos anos foi sendo executada, segundo Crocker, com melhor
eficiência. No temos a formação de seu assistente:

•• Special work was necessary to improve Kaapêl's writing abilities,

•• because he had no conception about writing phonemically in his own

•• language. By the 1960's I was writing Canela almost phonemically in a


script provided by Kenneth L. Pike (1947). Kaapêl, about 28 in 1960,

•• leamed this system with some difficulty because it was hard for him initially
to conceive that letters are arbitrary symbols expressing a range of sounds .

•• When he intemalized this idea, he became an excellent and very precise

••
phonemic writer and was able on severa! occasions to quickly use news sets
of symbols to agree with the changes in the orthography of the SIL linguistic

•• in 1968, 1971, and 1974. [... ] At first he tried to translate Canela words into
Portuguese quite literally, word for word, using the sarne word order and

•• sometimes even translating individual syllables. Little by little he leamed to


translate who!e phrases and sentences freely into what he considered to be

•• good Portuguese (i.e., good Maranhão backland Brazilian). He did not

•• achieve this writing skill until the early 1970's. Later, he became very
capable at working with aura! material that required the translation of a

•• general idea, paragraph by paragraph, such as translating myths and war


stories. For this process, he would listen to on tape in Canela and translate it

•• onto another in Portuguese (Ibid, 37-38) .

•• Crocker parecia querer transformar Raimundo Roberto em Muchona, principal

•• informante de V. Turner (1967). Assim, este jovem índio tomou-se "writer" e "translator",

•• \Vasa factor in my motivating Hà\vpUU and others to \Vrite manuscripts on a regular basis" (Crocker,

•• 40

••
••
•••
•• e corno tal, desfrutava de maiores prestígios do que os outros. Ele já havia ajudado Crocker

•• no começo dos anos 60 corno tradutor ("translator-interpreter") junto aos velhos índios, em
pesquisa sobre as memórias que esses velhos tinham da primeira e segunda década do

•• século XX. Teve urna trajetória de vida marcada pelos rearranjos tradicionais de seu povo,

•• onde era necessário conhecer o outro corno forma de sobrevivência. Rearranjo, nesse caso,
significa dizer novos atores sociais envolvidos, notadarnente, a presença constante do órgão

•• indigenista, que apoiava as saídas dos índios para centros civilizados, como meio de se
educarem e prosperarem para a integração nacional. Começou a tornar conhecimento da

•• escrita pela professora Nazaré no posto do SPI, em 1944, mas ganhou o mundo e foi
estudar e trabalhar em São Luís entre 1950 e 1954, por orientação de Rondou, que "mandou

•• o encarregado, administrador aqui em Barra do Corda e do São Luís, pediu as criança

•• estudar São Luís pra poder ajudá-lo mais tarde, o povo dele. Aí o povo não qué. Não qué
ir, não qué ir, aí eu ... Aí eu falei de ir embora pra lá" (Kaapêlruk, x/06/04) .

•• Em 1970, com o sucesso do programa, mais dois índios foram incluídos corno
"writer": Kaprêêprek e o jovem Tep-hot. O primeiro, da classe de idade subsequente a de

•• KaapêltUk e Tep-hot, portanto membro da outra metade chamada de kheycatejê, assim

•• corno os demais, saiu de sua Á.Tin (aldeia) e estudou em conventos católicos de Barra do
Corda e Montes Altos, próximos aos Krihti. Depois foi para São Luís, onde serviu às

•• Forças Armadas Brasileira. Kaprêêprec era considerado por Crocker corno um dos

,. ••

assistentes mais inteligentes que formavam o conselho. Mesmo assim, não atendia
categoricamente a seus conceitos lingüísticos, pelos seguintes motivos:

Although Kaaprêêprek wrote daily manuscripts for me, he received

•• more extensive linguistic training frorn Jack Popjes during the 1970's. His
Portuguese has better than the younger Kaapêlruk's, especially in grarnrnar,

•• but the latter could analyze materiais more critically and indicate the shades
of meaning of words and concepts far better. Kaaprêêprek wrote diaries and
•• rnade tape cassettes for me frorn 1970 to the end ofthe prograrn in 1979; but

•• he did not translate or serve as a regular research assistant in my groups


because ofhis youth (Ibid, 84) .

•• 1990:37) .

.
••
,


41

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••
••
•• Tep-hot também se aventurou mundo afora, mas diferentemente de seu hapin

•• (amigo informal) Kaapêlt:Uk, não obteve bons resultados. Foi para a Bahia e, lá chegando,
seu "patrão" queria levá-lo para São Paulo, possivelmente corno mão de obra barata, mas

•• seu irmão o roubou (como reforça em trecho não transcrito) e retomaram para a aldeia. Em

•• seu relato não só percebemos o contexto local de se aventurar mundo afora para fortalecer
seu grupo quando de sua volta, prática comum entre os grupos canelas, corno também

•• perceber que essas saídas se adequavam às políticas das ações indigenistas de integração
nacional.

••
•• Eu: Você aprendeu a escrever e ler aonde?
Tep-hot: Estudei época do primeiro chefia, lá no ponto velho,

•• encarregado que tive lá .


Eu: Quem era?


•••
Tep-hot: Que estudei através do, a dona Nazaré. Estudei com o
senhor Doca, que estive em chefia nosso. Eu estudei com Arão, outras
pessoa lá que tive o chefe, chefiando, época do Olimpo Cruz, acho que 57,

•• por aí assim, 58, por aí..


Eu: Olimpo Cruz era ...

•• Tep-hot: O branco .
Eu: Era o administrador?
•• Tep-hot: Hum, hum. Era o chefe, chefe que tinha corno esse, o chefe

•• Roberto. Então, nós estudarno, o grupo desse estudarno lá também. Naquela


época que estava o Cândido Rondon que governava a tribo toda do Brasil, aí

•• naquelas época nós estudava, chegava uniforme, tudo pra nós lá: camisa,
calça, tudo chegava.

•• Eu: Uniforme?

•• Tep-hot: Hum, hum .


Eu: Para estudar?

••
••
•• 42

~

••
••
••
•••
Tep-hot: Sim. Aí nós estudava. É Raimundo Roberto, esse grupo
nosso, José Abílio, Abilinho, estes nosso grupo que são prókãm mã. Depois
me estudei também quase quatro meses lá em Bahia, Salvador.

•• Eu: Colégio normal?

••
Tep-hot: Sim, aí outro chegou me atrapalhou, me trouxe, me
roubaram eu lá, de lá. Aí, pronto .

•• Eu: Você foi pra lá porque?


Tep-hot: Eu fui também sai daqui, porque pra me educar mais, é. Aí,

•• não tive mais, aí saí. Aí, cheguei lá na Bahia, outra dona, a índia que mora já
dentro do banco me ensinou: "rapaz, lá na agricultura tem um homem bom,

•• que te recebe, te dá tudo. Você chega lá você fala com ele". Pessoa de São

•• Paulo, pessoa de agricultura, pessoa do rádio .


Então, quando nós chegamo lá, aí eu me falei para ele. Ela me

•• ensinou, a dona: "olha, você chegando lá, você vai chamar esse nome: Papai
Diogo". Ela me ensinou, me ensinou assim. Quando me cheguei Já, aí na

•• presença dele: "ei, o que você vem fala?". Eu aí respondi para ele: "papai

•• Diogo eu me saí da aldeia, sai da minha tribo, eu vim só atrás de escola,


quero que você me consigne escola para mim estudar e aprender. É só isso!

•• Eu não veio atrás de calça, nem camisa, nem sapato, nem nada. Eu só vim
atrás de aula de escola. Quero que você me consiga dessas coisa". Ele achou

•• bom. Perguntaram ao finado meu irmão: "ê José Moraes o quê que você vem

•• fala aqui pra mim?". "Ah, meu irmão já disse a você que ele veio atrás de
estudo, eu também vim atrás dele, e agora ele vai ficar e vocês vamo

•• consegui escola a ele. Aí, pra você consegui o ferramenta para mim. Tá
bom?" Só perguntaram nós dois. "Tá bom."

•• Pois ele conseguiu escola, no outro dia eles ... aí falei para ele: ê papai

••
Diogo me consegue um relógio para mim, eu quero me aprender vê horário,
tá bom? "Tá bom." Outra noite aí ele conseguiu escola( ... )

e
•• Seguindo por essa linha, durante o início do processo educacional dos canelas, no
mesmo ano de 1970 foram selecionados dois, dos cinco índios já participantes, para iniciar

••
•• 43

...,•
••
••
••
•••
a terceira e última categoria deste programa: "recorder". Os escolhidos, Kaapêl e
Kaprêêprec, passariam a fazer diários gravados, cada um conforme suas especialidades .
Receberam gravadores para falar quatro horas por mês, duas fitas cassetes de 120-minutos .

•• Crocker, ao descrever a relação com seus assistentes (1990), trabalha muito com as

•• questões de personalidade e percepção do que significava para esses dois indivíduos,


principalmente Raimundo Roberto, narrarem fatos verídicos, ao invés de se adequarem ao

•• senso comum canela de "contar lorota" para os kupen. Busca nos dados de Nimuendajú
ajuda na construção da verdade das narrativas de seus assistentes, em suas palavras dizia:

•• When I was checking Nimuendajú's (1946) monograph, "The

•• Eastem Timbira" and found that some items were inconsistent with what

•• Kaapêl knew, he assumed that Nimuendajú's helpers had "lied" to the


author. This was a point I had work hard to establish - that they most not lie

•• - because it is a Canela custom to tell outsiders lies. This way of giving


information ("lying") was more ftm for them; and outsiders, they thought,

•• could not really understand Canela matters anyway. Kaapêl did not want to

•• be in this shameful position himself later on when someone else carne to the
Canela with my book. Thus, he decided that he had to tell me the whole truth

•• and began to insist that other Canela research assistant do the sarne (Crocker,
1990:44) .

••
••
Os "recorders" eram uma complementação ao "Manuscript-writing program", uma
vez que gravavam o que escreviam, variando conforme a capacidade individual de cada

•• um. Nos dois casos, não eram tão livres assim, tendo em vista que atendiam a certas
especificações, tais como "falar sobre suas vidas pessoais e sobre as atividades na tribo,

•• dando razões quando possível" (Ibid:39), ou, quando falavam na língua materna, usar
expressões já conhecidas por Crocker, para que este pudesse compreender.
•• Durante os anos que se seguiram, os assistentes-ou/, participantes do programa de

•• diários nativos, foram oscilando entre as categorias writer, translator, recorder, conforme os
anseios e experiências de Crocker, em conformidade com a disciplina de trabalho mantida -

•• em diversas situações, alguns candidatos a assistente venderam, quebraram, trocaram ou

•• 44

t •

1, ' :
••
••
••
•• deram os materiais de pesqmsa. Houve casos, em que fatos decorrentes de outras
atribuições trabalhistas, como cursos preparatórios para magistério indígena e consequente

•• contratação pelo Estado para exercer o magistrado na Aldeia Escalvado (esses mais
recentes), assim como problemas visuais ou outros agravantes de saúde, e afastamento da

•• aldeia por tempo prolongado foram responsáveis pelo corte do programa.

•• Em 1979 eram doze os diaristas contratados, sendo que quatro escreviam somente
em canela, três escreviam somente em português, e cinco deles faziam a tradução. Esse

•• número foi sendo acrescido a partir de 1975, momento em que suas pesquisas ganharam um
fôlego extra até sua interdição em 1979. Em 1978 incluiu no programa a primeira mulher

•• que lhe rendeu, segundo afirma, ótimas contribuições sobre o comportamento


"extramarital"58 • Crocker não chegou a descrever seu relacionamento com esses novos
•• assistentes. Também não cheguei a arguí-lo sobre este fato, mas acredito que deva ter

•• achado que já havia desprendido tempo suficiente para mencionar este tipo de
relacionamento, cabendo a descrição daqueles que foram seus "special research assistants" .

•• Durante os anos 80 este programa foi suspenso graças à atuação de um


administrador da FUNAI local59 e antropólogos brasileiros contrários à presença de
•• estrangeiros em terra indígena60 • Após 11 anos de paralisação desta atividade, Crocker a

•• retoma em 1991, aumentando paulatinamente o número de participantes desde então. Os


assistentes atuais com quem pude conversar descreveram a si próprio, na maioria das vezes,

•• como me harkwa prol xá, ou seja, aqueles que gravavam estórias .


De todos os assistentes citados até aqui, somente Marcelino não faz mais parte do

•• programa de diários nativos atualmente. Conversando com Crocker, quando estávamos em

•• 58
Em "Canela Relationships with Ghosts: This-Wordly or Otherwordly Empowerment" (1993), Crocker
n1enciona que sua principal "informante" era xamã - como informa ser pouco característico entre os canelas

•• cm função dos severos resguardos alimentares e sexuais -,entretanto, não foi possível saber se era essa a
mesma mulher participante do "diary program", em virtude dela aparecer como um sujeito oculto nos textos
deste autor-" ... on of my best female informants ... ".

••
59
O relato do cacique Severo mostra a arnbigüidade deste evento em relação aos dois patrões. Dizia ele que o
administrador "melhorzinho que a gente achou foi um melhor pessoa que teve na administração, foi o
Canralho, não sabe? Ele é uma pessoa briguento, uma pessoa violenta, não sabe? E é uma pessoa que também

•• entrava com coragem pra defender o índio, mas com esse defensor dele, ele só fez fazer adversário, todo
mundo de Barra do Corda não gostou e, aí ele saiu da administração" (Severo, 31/07/04). Crocker me disse
que o Carvalho ficava fazendo perguntas aos índios, do tipo: "você ama mais o Crocker do que eu?" .

••
60
Em conversa com a professora Elizabeth Coelho da UFlvlA, ela me esclareceu que este fato deve ser
considerado a partir do contexto político brasileiro da época, onde ideologias nacionalistas atuavam em
consonância com a abertura político-partidaria nos anos 80. Não sei atê onde pode haver alguma ligação 1 mas

••
•• 45

~ .....•
I' . •
••
••
••
•••
campo, disse-me ele em tom de desabafo, que tinha um débito muito grande com ele por
tantos anos de dedicação a seu trabalho. Contudo, não explicou direito o porquê do
encerramento dos serviços deste índio. Deixou crer que era em função de sua idade e

•• conseqüentes problemas de saúde. O mesmo acredita Marcelino, quando perguntado a

•• respeito .
É também neste período de retornada do programa que pouco, ou quase nada foi

•• publicado a respeito de suas pesquisas 61 , ou seja, a produção de conhecimento em forma de


acervos cresce inversamente proporcional à produção de conhecimento antropológico,

•• destinados tanto para público especializado, como para um público mais amplo .

••
Esclareceu-me que não sofria uma cobrança muito grande para publicar artigos ou livros,
em função da sua posição de curador cientifico, ao invés de ser professor de alguma

•• instituição. Motivo esse que me leva a crer ainda mais que o grande colecionamento de
cultura parece estar adequado ao pensamento de salvaguardar, a futuras gerações, as

•• transformações (narrativas) de uma cultura indígena, característico de pesquisas


antropológicas aliada aos grandes museus .

•• Como pudemos ver, Crocker mantém um conselho de assistentes de pesquisa

•• quando está dentro e fora de campo. Uma empresa antropológica poucas vezes vista na
história da Antropologia, levando-se em consideração o tempo de pesquisa, a estrutura

•• político-financeira para sua continuação e, de acervo etnográfico altamente diversificado .


Quando está trabalhando na aldeia, ou quando recebe notícias diárias, mesmo fora dela,

•• seus assistentes se intitulam "diarístas" ou "empregados" desta empresa. Dizia-me que não

•• • gostava muito quando se referiam a si mesmos corno empregados, mas procurava entender
o que significava esta categoria para eles. Por exemplo, segundo ele, "empregado" também
era utilizado para reportar os indivíduos que prestavam serviços a Maria Castelo Khêê-

•• khwey - responsável pelo movimento messiânico de 1963. Entendi que essa sua
comparação levava-o a crer que a concepção nativa desta categoria era bem diversificada e

•• se adequava ao contexto específico de lógicas distintas. Se for isso, acredito estar em

•• paralelo com seu pensamento; no entanto, devemos tomar o cuidado de perceber qne Maria


naquela época, segundo Crocker me relatou, tinha na cidade de Barra do Corda um coronel como seu braço
direito, e que politicamente era contrário ao "delegado" Carvalho.

•• 61
A não ser o livro em companhia de sua atual esposa Jean Crocker1 11ze Canela: Bounding through Kinship,
Ritual, and Se."!;, "destinado a despertar o interesse de estudantes universitários para os temas etnológicos"
(ISA, 2002), mas pouco se referindo a seus assistentes,


~;
46

i
••
••
••
•• Castelo estava invertendo as lógicas nativas, digamos assim, uma vez que os índios iriam se
tornar brancos e os brancos se tomariam índios, ao fim de sua profecia.

•• De qualquer forma, o material etnográfico fornecido pelos writers, translators e


recorders foi antes um recurso de continuação prolongada de pesquisa e sustentabilidade

•• etnográfica, enquanto dependências criadas, por um lado, e desejos psico-históricos por

•• outro, do que bases para publicações - se é que isso pode ser considerado importante neste
caso. Crocker (1990) menciona que, a partir desse material, podem ser desenvolvidos

•• biografias e auto-biografias, análises psicológicas e processos aculturativos .

•• Assistentes de pesquisa em foco

•• Um pré-requisito essencial para o funcionamento da estrutura criada por Crocker na

•• formação de seus assistentes de pesquisa, foi a introdução da escrita, pelo SPI, na antiga
Aldeia do Ponto. O lema "educação e trabalho", impulsionado pelo positivismo que regia a

•• ideologia do órgão indigenista, encontrava respaldo na execução da científicidade, por

•• ambos agentes sociais. Grande parte dos estudantes indígenas, formados na primeira turma
de alfabetização e aqueles que estudaram em conventos e escolas afastados da aldeia, foram

•• assistentes de Crocker em algum momento de sua pesquisa.


Crocker menciona (Crocker, 1990:36) que até o começo dos anos 50 existia pouca

•• coisa publicada, até mesmo por Nimuendajú, sobre o vocabulário e ortografia canela, e,

•• mesmo acreditando (com grandes ressalvas) que não precisaria de um bom entendimento da
língua para se fazer um bom trabalho de campo, sentiu-se compelido a procurar entendê-la,

•• visto que era comum a não compreensão do português por parte dos canelas - e de certa
forma, por parte dele também .

•• É particularmente nesta busca pelo entendimento de expressões culturais distintas e

••
reforço de uma "comunicação eficiente e segura" que parece nascer o conceito de
assistentes de pesquisa, entendido como aqueles indivíduos que o ajudam na compreensão

•• de um sistema cultural, por meio de "categorias êmicas de pensamento", e que, para tanto,
quanto melhor fosse seu entendimento da língua nativa e, por sua vez, quanto melhor fosse

•• o entendimento dos nativos da língua portuguesa, melhor seria a produção de conhecimento


etnográfico desses índios e melhor seria descrita e sistematizada a mudança cultural por
••
•• 47

••
••
••
••
•• eles vivida. Dentro desta linha, a introdução de cartilhas na aldeia parecia servir a seus
propósitos - diacronia e cognição. Se pegarmos os critérios utilizados por ele para um

•• indivíduo se tomar um membro de seu conselho, veremos que a fluência oral e escrita da
língua portuguesa foram os balizadores de suas atividades de pesquisa, mas não os únicos .

•••
O cacique Severo me contou assim:

•• Eu: Você acha que o fato de você ter estudado, de ter aprendido a ler
e escrever ...

•• Severo: Bom, esse negócio aí acho que foi muito meio dificil de eu
aprender, sabe? Não foi fácil pra mim não, mas até que eu tentei, até eu

•• chegar aprender de ler e escrever, sabe? Até a minha professora mesmo foi

•• brigar comigo: "Ei burro, não sei o que lá, você tem que estudar direito"!
Fiquei calado lá escutando só dele. O diutado que eu fazia, eu fazia mal

•• ditado, respondia mal a pergunta dele, mas depois aprendi a fazer ditado,
aprendi a responder a pergunta dela. Aí eu fui ganhando até chegar num

•• ponto que eu estava mesmo ganhando nota 1O dela, mas quando ela também

•• começou de paquerar com chefia de posto, aí chefia de posto foi lá e


cancelou esse trabalho dela. Aí ela viajou e eu fiquei uns três ano sem

•• professora. Aí eu me dei de pensar em casar com essa véia que eu tenho, aí


foi que cortou tudo .

•• Eu: Parou né?

••
Severo: Parou com tudo .
Eu: Mas de qualquer forma foi pelo aprendizado que o senhor teve

•• de escrever que possibilitou você a tá trabalhando com o Crocker? 62


Severo: Foi. Eu acabei de aprender com esse trabalho aí.

•• Eu: Agora, todos os que sabiam ler e escrever trabalhavam pra ele?
Severo: É trabalhava pra ele. Não, não! Não é tudo, não é tudo. Ele

•• escolhia qual pessoa que era certo pra ele trabalhar pra ele. Ele fazia muita

•• coisa. Chamava a pessoa, agrupava a pessoa, aí cada pessoa ele perguntava


sobre as coisa, sobre alguma histórica, sobre quem é que sabe viver, quem é

••
••
....• 48

·e
.
••
• ••
•• que sabe contar mais histórica, quem é que tem mais entendimento, quem é

•• que sabe mais falar de português. É assim. Foi com essa sabedoria foi que
ele catou as pessoa pra trabalhar.

•• Eu: Ele reunia todo mundo?

•• Severo: Reunia, reunia. Chamava todo mundo, a aldeia pra ... cada
dia ele chamava as pessoa pra ver quem é que tem experiência pra trabalhar

•• com ele .

•• Essa experiência para Crocker se traduzia na procura de "especialistas" nos assuntos


de interesse da pesquisa que tivessem uma boa "articulação", sem ter "vergonha" de

•• expressar-se. Muitas vezes, perguntava para alguns indivíduos se já haviam trabalhado com

•• Crocker, e era comum receber respostas como: não, ele nunca se interessou histórica
minha; nunca procuro meu serviço de trabalha pra ele; crocker velho é homem sabido só

•• dá de trabalha pra ele se tiver entendimento da histórica .


Sua estratégia se concentrou na formação de um grupo de assistentes, pois além das

•• informações serem acrescidas de várias narrativas, como veículo de sustentação das

•• argumentações, e formar ali uma espécie de laboratório do comportamento canela, foi


também para ele uma alternativa de se adequar ao sistema cultural canela de formar sempre

•• grupos. Assim, podemos dizer que a relação que fundamenta os laços de reciprocidade
entre o antropólogo e o nativo, se dá, para ambos, através de uma dinâmica de

•• incorporações desejadas. Incorporações essas entendidas menos como um sincretismo, do

•• que, talvez, como estratégias para a "atualização da tradição" (Oliveira, 1999) .


No caso dos Ramkokamekra, possuem uma valorização sociocultural onde ser um

•• bom corredor, ser um bom curandeiro, ser um bom "chefe", ocorre, primeiramente, pela
formação de um grupo de indivíduos de idades próximas, ao qual Nimuendajú chamou de

•• classes de idade ("age-sets"). Crocker denomina essas "age-sets" como a principal unidade
social ativa - que, por sua vez, forma uma sociedade masculina63 que escolhe seus

••
•• 62
Corno optei em transcrever as entrevistas literalmente como foram pronunciadas, mantive os mesmos erros
cometidos por mim na fala, quando da passagem oral para a escrita .
63
Crocker questiona duas das nove "unidades sociais" apresentadas por Nimuendajú (1946:77). Para o


••
primeiro, afirma que não existe e provavelmente nunca existiu metades matrilineares exogâmicas, para tanto,
todas as metades da estação chuvosa são todas não-exogârnicas. 1'Hmuendajú, segundo Crocker, se enganou
ao considerar que um homem ao se casar do "outro lado da aldeia" significaria que os canela se dividiriam em


':t
49

Ll• ....
~
••
•••
•• "comandantes" para funções políticas e cerimoniais, conforme uma atividade que o

•• destaque em relação aos outros, estando desde o início dos ciclos de iniciação sendo
percebido e aguçado pelo conselho dos prókãm mã. (formado unicamente pela metade

•• harancatejê, através da transmissão de nomes) e que precisa estar a todo momento

••
merecendo seu lugar de comandante para manter seu "posto''. Se considerarmos isso como
um dos suportes dos padrões comportamentais dos canelas, talvez fosse interessante

•• perceber que trabalhar para Crocker (entenda-se: ser um bom assistente), e antes disso
procurar entender a língua do kupen como forma de reforçar sua identidade, faz parte, não

•• de uma transformação, mas de importantes mecanismos de adequação e sobrevivência do

••
sistema cultural canela .
Não cheguei a organizar nenhum questionário para a realização de entrevistas com

•• os antigos e atuais assistentes de Crocker, até porque o diálogo estabelecido entre perguntas
e respostas é sempre um constructo entre pesquisador e pesquisado. No entanto, cheguei a

•• formular tópicos de debate, onde a questão do incremento educacional, através de ações


indigenistas e a absorção de Crocker por essas pessoas, foi uma espécie de ponto de partida

•• para o desenvolvimento das entrevistas com meus interlocutores-assistentes .

•• O primeiro assistente com o qual conversei, e também com o qual mais me


relacionei, foi Francisquinho Tep-hot, por motivos já declarados 64 • Além do mais, Tep-hot

•• parecia ser o mais convicto assistente de pesquisa, no sentido de deixar isso mais evidente
ou mais perceptivo para qualquer um. Crocker menciona que mesmo antes de se tornar seu

•• assistente regular, Tep-hot já gostava de escrever na beira do pátio, era uma questão de
prestígio para ele65 . Desde adolescente começou a ajudar Crocker, contudo este início de
•• relacionamento se deu, em grande parte, em função de seu parentesco com esse

•• metades exógarnas. Necessariamente a casa para onde ele migra ao se casar não está em par oposto a sua.

•• Outro ponto é que possuem muitas outras sociedades masculinas, do que as seis apresentadas por
Nimuendajú, em virtude da herança do "ritual matrilineal", onde o que importa é a relação de transmissão e
não os nomes (Crocker, 1979:234-235). Sobre as mudanças em relação às unidades sociais canela ver,

•• também, Crocker (1961, 1972b, 1977,1990). No entanto, Nimuendajú acreditava que essas metades exógamas
deviam fazer parte do passado canela, ou seja, eram originais desta sociedade, e que com as transformações
sofiidas geraram esse complexo sistema, que tanto seus futuros seguidores se debruçaram. Crocker, muito

•• embora colocasse essa classificação em dúvida, parecia acreditar nas suposições de Nimunedajú.
64
65
Ver Prólogo .
"A special mernory ofTep-hot is the image ofhim sitting on the edge ofplaza \Vriting his manuscripts in

•• full vie\V of everybody else. Kaapêl did this something as \Vell, but nane ofthe other \Vriters choose to \Vrite
so consistently in such conspicuous places. I used to \Vonder why Tep-hot needed to proclaim his status and
abilities so obviously because everybody kne\V \Vhich people \Vere \vriting for me" (Crocker, 1990:40) .

•• 50

••

••
••
••
•• antropólogo, recomendado, segundo Crocker, pela irmã Tehôk para acompanhá-lo nos
primeiros dias. Nesta época, Tep-hot já havia completado os ciclos de iniciação de sua

•• classe de idade, mas tinha sido recolocado no ciclo de iniciação da classe de idade posterior
como kô- tum re (espécie de "cabo", conforme dizia ele), por orientação dos prókãm mã, e

•• para tanto era considerado por Crocker muito jovem para ajudá-lo de forma mais sistêmica

•• em suas pesquisas. Na entrevista com Tep-hot, ele fala sobre a ajuda prestada a Crocker,
nessa época, mas reitera que não era em forma de "trabalho" .

•• Eu: Então, quando o Crocker chegou aqui o senhor já sabia escrever.

•• Tep-hot: Já, alguns já.


Eu: Ele é da família do senhor, né?

•• Tep-hot: Família nossa .

•• Eu: Ele é o quê, seu tio?


Tep-hot: Irmão. Irmão da minha irmã Dominga.

•• Eu: O senhor começou a trabalhar para ele logo no começo?


Tep-hot: Não .

•• Eu: Mas ajudava ele?

•• Tep-hot: Alguma coisa, mas não foi trabalhando. Ai veio, veio, veio,
aí comecei a trabalhar com ele. Acho que depois, pode ser 70, 78, tipo pra

•• . 66 .
. 70 , 78 , pra ca' assim
dep01s...

•• Apesar de ser considerado, por este antropólogo, como seu "primeiro assistente de

••
pesquisa especial", somente em 70 tornou-se membro do "diary manuscript" e começou a
participar de eventuais "work group sessions". Ao fazer parte dessas sessões, é que Tep-hot

•• considera estar trabalhando para Crocker, pelo fato de ser agora diarista, conforme
podemos notar na continuação da entrevista.

••• Eu: E o senhor começou a trabalhar fazendo o quê com Crocker?

•• Tep-hot: É mesmo falando sobre as coisa .


Eu: Escrevendo? 67

•• 66
Entrevista realizada no dia 17/08/03 .

•• 51

••

••
••
••
•• Tep-hot: Sim.
Eu: Em português ou ...

•• Tep-hot: Sim português, alguns. Aí foi indo, foi indo, foi indo,
aquelas época pagava só, acho que bem R$5,00, porque naquelas época o

•• ordenário da gente era pequeno. A gente vem trabalhando, trabalhando,

•• trabalhando, até ... primeiro eles trabalha com esse Raimundo primeiro, e este
Marcelino e o Francisco Romão, três pessoa deste que trabalhava com ele,

•• época que ele chegou. Depois nós lava fora ainda .

•• Em 75 Crocker incluiu Tep-hot como "translator" e, diferentemente dos passos de

•• Kaalpêltlik, aprendeu a escrever na língua canela após a chegada do missionário canadense


Jack Popjes, do Summer Institute of Linguistic (SIL), chamado por eles de Prejaka, que

•• aprendeu e desenvolveu a escrita canela na aldeia, durante os 22 anos que permaneceu por
lá (1968-1990), com a finalidade de escrever e popularizar a bíblia entre os grupos

•• Timbira68 •

•• Eu: O senhor começou de trabalhar escrevendo em Português .

•• Tep-hot: Foi .
Eu: Quando que começou a escrever na língua?

•• Tep-hot: Depois pra cá, pouco tempo pra cá, em ... a gente começou
ler este livro que Prejaka fez, aí a gente sabemos .

•• Eu: O senhor aprendeu a escrever na língua como?

•• Tep-hot: É isso, através do escrito deste .

•• 67
Possivelmente a resposta de Tep-hot se referia ao '\vork group sessions", porém na hora da entrevista
estava mais interessado no "diary program", uma vez que não tinha a menor idéia de que viria à encontrar o

•••
Crocker e observar suas reuniões de trabalho, por isso, interpolei com a pergunta: ''Escrevendo?"
68
O casal Jack e Josephine Popjes foram responsáveis por diversas publicações para o aprendizado na lingua
canela, tais como: "Lendas e Contos Canela-Krahô"; "'Dicionário temático"; "Ortografia"; mais outras quatro
cartilhas, "'introduzindo todos os símbolos ortográficos básicos da língua canela-krahô"; dois volumes
contando estórias sobre higiene e saúde e dois falando sobre os pássaros e remédios da região (esses somente

•• escritos na língua canela), Todos publicados entre os anos de 1982 a 1988. Em 1990 sai a publicação de
"seleções da bíblia sagrada", contendo um panorama dos livros históricos, poéticos e proféticos do antigo
testamento e a maior parte do novo testamento, com o título de '<Pahpãm Jarl."lva" (estória de deus). Crocker

•• me disse que manteve uma relação mútua com Jack Popjes, pois o ajudou no entendimento fonêmico e
Popjes, por sua vez, o ajudou muito, e a seus assistentes, na gramática.

•• 52

••

••
••
••
•• Eu: Do Prejaka?
Tep-hot: Hum,hum. E finado Getúlio .

•• Crocker?
Eu: Aí depois que aprendeu com Prej aka que começou a escrever pro

•• Tep-hot: foi, foi feito assim. Foi .

•• Essas perguntas eram feitas, no sentido de entender os processos de formação de

•• assistentes, realizados não só por Crocker,como por outros agentes sociais em contato na
aldeia. O processo de meu questionamento foi realizado a partir das observações de leitura

•• do primeiro livro (1990) de Crocker. Para tanto, tinha o intuito de revelar mais do que o par

•• pesquisador-pesquisado pudesse suscitar, tentando perceber outros agentes nesse processo,


que, no caso em questão, se restringia à voz do pesquisador. Dando prosseguimento às

•• classificações entre seus assistentes, particularmente a Tep-hot, Crocker menciona que:

•• during the winter of 1979, he initiated an interesting process. He

•• asked me to lend him a tape recorder so that he could approach the older
sing-dance leaders. He wanted them to sing for him in the evenings so that

•• he could recorded and then learn their songs (Crocker, 1990:40) .

•• Crocker aceitou seu pedido, mas desde que gravasse também para ele. No entanto,

••
somente em 1993, segundo Crocker, com a retomada do programa, Tep-hot começou a
trabalhar também como "recorder". O interessante é que utilizou um dos símbolos de

•••
qualquer antropólogo: o gravador (em especial aquele utilizado pelos assistentes de
pesquisa e pelo próprio Crocker), primeiramente, com diferentes significados, documentar
as músicas rituais de seu povo, no intuito de aprendê-las mais rápido, antes que os

•• cantadores mais velhos morressem 69 . Naquele periodo, Tep-hot já era me hõn pahhi inkrer

•• cate (chefe cerimonial do seu grupo de idade) e queria tornar-se me hacrã hõn pahhi inkrer
cate (chefe cerimonial da aldeia). Reinventou, dessa forma, a utilização do pequeno

•• gravador como reforço ontológico à transmissão de conhecimento, transformando a


tradição em prol de sua continuidade .

•• 69
I-1oje, um forte apelo para formulação de projetos ligados à cultura imaterial.

•• 53

••

••
••
••
•• Se pensarmos que Francisquinho, em sua trajetória individual e suas funções
coletivas, fazia parte do primeiro grupo de índios a ingressar no universo das letras,

•• valendo-se dela como prestígio 70 na aldeia, não é dificil imaginar que o gravador utilizado
por eles para "gravar a histórica do [seu] povo" para o kupen, também poderia ser para ele

•• um ótimo recurso de aprendizagem frente à tradição oral. O gravador é percebido, então,

•• como um instrumento que lhe possibilitaria aprender o maior número de cantigas num
menor espaço de tempo, visto que poderia escutar as cantigas sempre que quisesse ou

•• pudesse, sem precisar estar procurando a toda hora os velhos cantadores, que não se
encontram reunidos na aldeia principal ao longo de boa parte do ano, como também um

•• meio lúdico de constante aprendizado. O interesse em procurar os velhos para aprender as

•• cantigas faz parte da organização social dos canelas. No entanto, Francisquinho agregou um
valor a mais quando resolveu gravar as cantigas dos principais cantadores, antes mesmo de

•• utilizar o gravador aos moldes de uma pesquisa antropológica .


Arriscaria-me a traçar um paralelo entre Crocker e Tep-hot neste ponto, pois me

•• parece que ambos, apesar de terem distintos conceitos de cultura, utilizam o mesmo

••
instrumento em um processo de documentação voltado para o futuro. O pnme1ro
interessado na mudança cultural ("study of change") do segundo, através de sua "life

•• history", e este, por sua vez, interessado na manutenção ou preservação de sua própria
cultura, com a ajuda de um dos símbolos culturais do antropólogo e, principalmente, como

•• uma atualização de suas próprias manifestações culturais .


Não sei se é conveniente para esta discussão a idéia de metaforização 71 , proposta
•• por Roy Wagner (1972, 1977) - talvez por se tratar de outro culturalista interessado em

•• propor uma teoria semiótica da significação -, mas se pensarmos que o valor dado à cultura

•• °
7
Crocker em diversas passagens de sua monografia (1990) menciona essa relação de prestigio, por conta da
n1elhor interlocução com os brancos. Fato que pude observar, com reservas, ainda hoje .

••
71 Para ele a "metaforização" seria um processo criativo de transformação de significados. Todo símbolo

possui urna multiplicidade de significados que coincide e entrelaça-se com significados de outros símbolos.
Esses significados podem ser definidos para um ou outro propósito, usados cm um ou outro contexto

•• (Schneider, 1977:493). O processo criativo não seria alvo somente do antropólogo, mas também de seu objeto .
A "invenção da cultura" por símbolos, e não só símbolo, pois para ele símbolos e pessoas e.Yistem em uma
relação de 111ediação u1n co1no o outro (\Vagner, 1981), não estaria condicionada apenas a quem deseja

••
observar. Aliás, esse processo de achar que somente o antropólogo é quem observa, para muitos foi explicado
pela condição do etnocentrismo ocidental europeu, que via no "outro 11 um instrumento passivo de análise.
Assim a 1netaforização de uma cultura é expressa também pelo seu revés. A invenção de uma cultura por

•• símbolos é usada da mesma forma pelos dois lados componentes de um mesmo processo. Sobre a relação da
metáfora em noções de cultura, ver (Gonçalves, 1990) .

•• 54

••
e
e
••
••
•• material sempre teve um papel muito importante para a idéia de preservação e

•• patrimonialização cultural, e de uns anos para cá percebe-se uma valorização da cultura


imaterial como pressuposto, não só de identidades coletivas, mas de capital comercial,

•• pode-se perceber também o processo de transformação de significados, ora do antropólogo,

•• ora do nativo; o que faz com que, nos dias de hoje, Tep-hot tente cooptar, principalmente
antropólogos, para realizar um projeto que consista em dar subsídios para montar um

•• acervo das músicas tradicionais, acompanhado de livros e imagens dos rituais, de forma
que os jovens tenham material educacional de sua própria cultura à disposição: "também

•• como eles tem lá, eu também tem que ter aqui" .

••
Dentro dessas resignificações (pelo processo de inserção de diferentes agentes
sociais, no caso aqui, o do antropólogo) parece haver um mediador que reside no

•• alinhamento entre práticas etnográficas e práticas sociais, como por exemplo, quando Tep-
hot se refere à importância da gravação que faz para Crocker e como gostaria que isso

•• complementasse a sua própria realidade .

•• Eu: Qual a importância que o senhor dá a esse tipo de gravação?

••
Tep-hot: Qual tipo de importância!?
Eu: É, qual importância tem essa gravação? Se tem alguma

•• importância.
Tep-hot: Gravação eu acho importante mesmo é pra gente como tipo

•• registro, é o tipo, é o tipo ... é fundamental como eu falo, que temo aqui uma

••
cópia, temos algum local certo sobre isso, temo uma fita lá, saído primeira
cópia pode ser segunda cópia fica aqui para não perder completamente. Esta

•• que também me preocupo, porque a gente gravando só na cabeça tão se


desaparecendo, de vez em quando, de cada vez perdendo. Olha finado

•• Manuel Diogo, esta pessoa eles entendia várias cantiga, mas quando eles
faleceram, pronto. Como finado Agostinho Roberto, ele sabe bem para

•• animar pra cantor, mas eles faleceram, pronto. Agora nós, ninguém sabia

•• como eles sabe. Sabe! Mas não como ele. Esta é minha preocupação, por que
ele não deixou, por isso, me preoci.:pa. A gravação é importante, é coisa

•• simples, mas tem que ter um local certo, tipo sede dele, tipo ... é ... tipo garage

•• 55

••

••
••
••
•• dele, tipo armazém dele armazenando, é coisa assim, e saindo. Primeiro tem

que ter isto .
72

•• O que significaria para Crocker um arquivo etnográfico de relatos cotidianos

•• (contendo o binômio cultura e personalidade) sobre a natureza do evento que fosse possível

••
a futuras gerações acadêmicas estudá-lo, seria também para Francisquinho a possibilidade
de iniciar a formação de um arquivo de propriedade imaterial de seu povo quase (e não só)

•• como um ideal de conhecimento incorporado73 - tanto pelo seu sistema cultural quanto do
"outro" - com o conhecimento de registro - que auxiliaria na continuação da transmissão de

•• conhecimento cerimonial, antes unicamente oral e restrito à vivência dos rituais - a ser
utilizado pelos próprios índios (através de estratégias para continuação de sua tradição). Por
•• isso, anseia pela cópia dos registros 74 . Não pretendo com isso traçar uma relação

•• contingente entre Crocker e uma "imagem cultural" que Tep-hot está a ponto de construir75 ,
visto ser esse um processo mais amplo, que vai além do grupo indígena Ramkokamekra, e

•• que atinge as populações indígenas no Brasil como um todo - até porque, segundo Tep-hot
me disse, ele não tem conhecimento sobre o destino e utilização das gravações feitas por

•• Crocker. Mas, em todo caso, a interpretação etnográfica que supostamente caberia ao

•• antropólogo, em virtude de suas técnicas de pesquisa, aqui expresso no "diary program",


em busca de representações nativas, foi para o nativo, também, objeto de sua auto-

•• representação, porém pela prática etnográfica, e não pelo discurso cientifico, visto ser o
segundo pouco conhecido entre os Ramkokamekra .

•• Crocker, em uma de nossas entrevistas, comentou que o grande mérito para ele do

•• "diary program" foi ter contribuído para o crescimento intelectual de seus assistentes,
através do processo de escrita e tradução dos manuscritos ao longo dos anos. Dentre os

•• vários exemplos, cita o próprio Tep-hot. Para ele, Francisquinho no começo de suas
pesquisas não tinha capacidade de fornecer trechos de cantigas, e hoje, pelo contrário, é um

••
••
72
Entrevista realizada no dia 29/05/2003 .
73
Tomei de empréstimo essa relação entre conhecimento incorporado com conhecimento de registro, pelo
comentário feito pela professora Elsje Lagrou, se valendo de P. Clastres, ao trabalho intitulado "Instrumentos

•• de campo na perspectiva Ramkokamekra", apresentado na V Jornada Interna dos Alunos do


PPGSA/IFCS/UFRJ, em novembro de 2003.
74
O fato é que nunca chegou a pedir isso para Crocker. Quando questionado a respeito, disse que agora é que

•• está percebendo essas coisas .


75
Como bem me alertou Tânia Stoltze Lima, sobre o mesmo trabalho mencionado em nota acima .

•• 56

••
••
••
••
•• ótimo professor da língua canela. Antes, precisava ficar escutando diversas vezes a mesma
cantiga e ir acrescentando lentamente novas frases ou versos. Acredito que esse exemplo

•• não é muito comprobatório desta teoria, pois, em se tratando de músicas rituais, por
exemplo, muitas vezes não existe a dissociação por parte de seus executores de trechos

•• exclusivos para registro, nem tampouco de seu entendimento por partes. Em todo caso,

•• procurei explorar um pouco a questão do incremento intelectual, mesmo antes da entrevista


com Crocker, por ele já ter mencionado esse fato em sua monografia (1990). E na maioria

•• das entrevistas com os seus assistentes e, mesmo em conversas informais, fica bem
evidente a "vantagem" que tiveram em relação aos outros índios de seu grupo que não

•• • participaram da mesma tarefa, confirmado aqui por Francisquinho Tep-hot, no que diz
respeito à importância do seu interesse particular em aprender, por isso se tomou me hõn

•• pahhi inlo-el cate, motivo de sua crítica aos jovens em não procurá-lo para aprender as
músicas rituais .

•• Eu: Mas por quê te ajudou?

•• Tep-hot: É por que foi como eu disse, me conheci, me aprendi e fiz

•• aprendagem, porque também fui interessado sobre essas educação. Se não


for, se eu não enteressados, se eu não procurado, eu ficava jeitinho como

•• outros meu grupo que são conselho, que são prókãm mã. Eu ficava como
jeito deles, e aí recebe só mesmo do meu velhíssimo, aí eu fica mesmo do

•• jeitinho como eles, mas nada disso. Por causa dessa educação minha, a

•• leitura que me leva ainda recebe mais um troquinho, e serve muito para mim
sustentar minha esposa, sustenta minha família, sustenta minha neto, pra

•• isso, muito melhor.

•• No depoimento de Raimundo Beato, essa questão se mostra mais pelo movimento

••
histórico em que ambos os sujeitos estão inseridos, mas, qual seja, não deixa de situar seu
trabalho dentro da perspectiva de Crocker de mudança cultural.

•• Eu: Você acha que esse trabalho, esse tipo de trabalho, no caso, você

•• fala sobre o dia-a-dia na aldeia, né? Você acha que ... não só esse tipo de

•• 57

••
~
••
••
••
•• trabalho, mas aqui mesmo de você tá falando comigo, você acha que isso
tem alguma importância pra você?

•• Beato: É, eu quero dizer que nós começamos de século passado, e os

••
índios vivia sem português, então, eles tem esse rumo, eles tem essa
habilidade de melhorar, sem ter um branco aqui dentro entendeu? Então, eles

•• conseguiram isto. Então, sempre pra mím é uma coisa, é o mundo que está se
transformando, assim andando. Hoje você nasce com nada, mas depois que

•• você nasce você vai trabalhar, você vai conseguir, você vai levando a vida, e
assim é bonito ali. Então, antigamente os canela não fazia isto, ele vivia e

•• saí, saí aculá vinha ali, chegava pra sua casa dois meses ou três meses, assim

••• antigamente os canela fazia, então, quando nimuen ... Kô-?kaypo trabalhou
com pesquisa com os canela ele já acharam muito bonito ali, o
comportamento sobre como é que se vive, era união, era coisa importante .

•• Mas, então, mudou muito essa questão, por isso que nós fala sobre esse povo

••
sempre dia-a-dia, os costumes que estão desenvolvendo, tá melhorando
alguma coisa. Então, é isso que a gente faz .

•• Eu: Isso ajuda você em alguma coisa? A pensar melhor sobre sua
cultura aqui, o fato de você está gravando, né? Falando sobre si e sobre seu

•• povo, ou seja, falando sobre sua própria cultura ...


Beato: Isso. É , comunidade .

•• Eu: Você acha que isso é bom?

•• Beato: Eu acho que isso pra ele lá, pra ele senti que o povo tão
querendo também melhorar, então, isto a gente também tá trabalhando .

•• Nos dois depoimentos fica implícita a ordem de significados que caracteriza a

•• representação de um ator social para seus assistentes. No primeiro discurso, aparece o

•• "patrão" como altemati''ª econômica, e depois aparece o "patrão", enquanto resignificação


ontológica e profissionalismo de trabalho. Não que um ou outro significado não apareça em

•• discursos de um mesmo assistente, mas é interessante observar como essa ordem de


significação é pensada pelos assistentes de pesquisa canela no que concerne ao

•• relacionamento entre eles .

•• 58

••

••
••
••
•• Da mesma forma, quando eu disse anteriormente que Tep-hot não sabia do destino
das gravações para o Crocker, não quer dizer que não faça suas representações sobre ela,

•• utilizando-as, até mesmo, como meio de me colocar como articulador de seus anseios de
"nativo" e minha responsabilidade de antropólogo que não foi, a principio, colocada a seu

•• "patrão''. Seguindo suas estratégias, dizia:

•• Tep-hot: A co!Sa que me procura é me projetar, projetar o tipo

•• projeto, só pra dessa cultura, só pra dessa tradição, para puder manter, pra ter
mais segurança. Um projeto de recurso pra sobre só mesmo para o tradição,

•• para mim mostrar, para mim mostrar, para mim ensinar os jovens, os jovens

••
aquele que vem também conhecer e também possive pra eles também
perceber. E a moça também, a moça me cu pr 'y, também será perceber

•• alguns, alguns ajuda que ... perceber alguma coisa. Eu sei que não vamos
deixar de perder. Eu me imagino isso .

•• Eu: Bom, no seu caso, então, o senhor está preocupado com o futuro .
Tep-hot: Com o futuro, isso ...
•• Eu: certo. E dentro dessa sua preocupação com o futuro, o senhor

•• acha, por exemplo, que gravando CD's, gravando, falando sobre a tradição ...
até mesmo o papel dos antropólogos aqui, como o senhor vê tudo isso?

•• Tep-hot: Agora, o papel do antropólogo, o papel do antropólogo que


eu vejo, que eu vejo, mas como eu falo deste desejo assim, ele tem um papel,
•• mas esse papel é pra gente lê, papel pra gente vê, papel pra qual motivo, qual

•• novidade, qual a histórica. Este é sobre o papel do antropólogo. Eu gostaria


de ver assistência, como eu falei, projeto pra vir mesmo diretamente

•• passando para a nossa mão direto, nada a FUNAI, nada. Claro a FUNAI
pode ser, mas deve ser pelo através nosso diretriz. Este que me imagino .

••
•• Notem que o papel ao qual eu me refiro não seria, a priori, o mesmo papel ao qual
ele se refere. No entanto, ambos possuem representações semelhantes, ao conter na resposta

•• o princípio norteador da pergunta. Ao mesmo tempo, ele contextualiza o modernismo e o


pós-modernismo, grosso modo, do fazer etnográfico, fazendo representações distintas entre

••
•• 59

••
••
••
••
•• eu e Crocker. Tep-hot entende que para Crocker ele realiza um tipo de gravação para ajudá-
lo na consecução de um livro a respeito da história canela. Isso é uma coisa. A outra seria a

•• nova percepção que estaria fazendo da antropologia, onde eu estaria ali não só para fazer
minha pesquisa, como também para ajudá-lo em seus projetos. Resignificando, agora sim, o

•• papel dos antropólogos, ao qual me referia na pergunta .

•• Procurei, sempre que possível, explorar, nas entrevistas, a percepção deles sobre a
Antropologia, seus métodos e o destino dos dados que fornecem a partir do relacionamento

•• que tiveram com Crocker e seus trabalhos como assistentes de pesquisa. No tocante à
utilidade de seus depoimentos diários, a grande maioria de seus assistentes sabe que esse é

•• o meio pelo qual o antropólogo ganha o seu pão de cada dia, todavia não possuem uma

•• visibilidade muito clara a respeito disso. Parecem tratar esse assunto, concernente ao
Crocker, como uma relação estritamente trabalhista, fazendo lembrar muitas vezes, em uma

•• visão mais sociológica, o fetichismo da mercadoria de Marx, onde o trabalhador, em razão


da divisão social do trabalho, não tem o conhecimento do produto final que ajuda a

•• produzir. Vejamos o que o cacique Severo presume de seus dados:

•• Eu: E você sabe pra onde vai essa ...

•• Severo: Bom, essa minha gravação está indo para Estados Unidos,
tem uma pessoa certa que tá chegando a quarta-feira por aqui. Pela ordem

•• dessa pessoa que eu tô fazendo essa gravação, ganhando um salário meio


baixo, eu podia ganhava mais que esse salariozinho. Podia ganhar menos R$
•• 800,00, menos R$ 1.500,00 ou R$ 2.000,00 mesmo, porque você sabe que o

•• dinheiro, o valor desse real tá muito fraco, mesmo que se tá com


2.000,00 dentro de duas horas pra três horas você não sabe pra onde foi que
R$

•• sumiu esse dinheiro, esses R$ 2.000,00. Com R$ 250,00, R$ 150,00 você tá


na mão e dentro de um minuto ou dois minuto você não sabe pra onde foi

•• que correu esse dinheiro. E denlrn desse trabalho já conta as palavras que

•• você vai colocar em um minuto; e quantas estórias que você vai fazer dentro
de duas horas e meia; e quantas palavras e quantas frases? É muita coisa. E

•• se eu me cobrar cada palavra, uma porcentagem, quanto é que eu iria cobrar?


Era milhões de pouco .

••
•• 60

••
e
••
••
••
•• Eu Tô fazendo essa minha ajuda com maior prazer, com maior
carinho. É, porque eu sou um cara também que gosta de ajudar, que os outro

•• ajuda a gente, é .
Eu: Mas você sabe qual é o destino, o que é que ele faz com essas

•• fitas?

•• Severo: Bom, eu pelo menos, sobre esse negocio aí eu não sei dizer,
mas de eu senti sobre essa minha fita talvez que ele tá fazendo alguma coisa

•• com este histórica. Acho que ele tá fazendo um livro, ou tá fazendo um


imagem através dessa gravação. Quem sabe que ele tá fazendo um filme!?

•• Quem sabe que ele tá fazendo uma histórica lá!? Fazendo um livro e

••
imprimindo pra negociar lá no museu. E ... é uma coisa assim. Eu não sei
colocar, mas de pensar eu me penso assim .

•• Sem maiores problematizações a respeito, deve-se levar em conta a ressalva de que

•• existe uma relação criada desde o princípio do "Manuscript-writing Program" que


estabelecia o comprometimento de ambas as partes em manter segredo sobre aquilo que era

•• relatado. Inclusive uma das pertinências da escrita em canela para Crocker era que ele

•• poderia obter informações a respeito do relacionamento deles com os indigenistas do SPI,


sem que essas narrativas se tomassem preocupantes para quem os escrevesse, e para ele

•• próprio, por conta do desconhecimento da língua canela pelos kupen. Com exceção de Tep-
hot e um pouco de Raimundo Roberto, seus assistentes procuram escrever ou falar quando

•• estão sozinhos, de forma a manter esses relatos confidenciais. Posso também pensar que, ou

•• levam até hoje esse confessionismo para quem os interroga, no caso eu, ou realmente não
se interessam por saber o que é feito de seus relatos cotidianos, desde de que haja uma troca

•• já pré-estabelecida.
Como adenda, uma das grandes admirações dos canelas em relação a Crocker, é de

•• saber que ele é "chefe do museu grande lá do americano", e, desse modo, o responsável por

•• mostrar a "beleza" da cultura canela para muitas outras pessoas, através de exposições,
livros e filmes. Esse tipo de pensamento pode ter sido reforçado, no inicio dos anos 90, pelo

•• convite feito por Crocker para Raimundo Roberto e Beato participarem de uma Conferência
Interamericana nos EUA, representando os povos tradicionais do Brasil. Lá conheceram o

••
•• 61

•..•
•• 1

••
••
•••
National Mnseum of Natural History (NMNH), da Smithsonian Institution, em
·washington, DC, onde puderam ver a exposição permanente dos canelas. Beato também
teve a oportunidade de conhecer, nesta viagem, a reserva indígena dos Cheyenne, em

•• companhia de uma antropóloga americana (que não tive o cuidado de anotar seu nome),
ficando impressionado com os "civilizados" índios americanos. Como corolário, muitos

•• índios canela escutaram as estórias desses dois assistentes sobre o museu, os índios

•• americanos, costumes alimentares, vestuário, tecnologia etc .


Beato é certamente o assistente de Crocker que tem um posicionamento mais critico

•• em relação aos antropólogos, ao mesmo tempo que é um dos mais cobiçados informantes
por todos aqueles que vão para a aldeia realizar trabalho de campo. Possui uma grande

•• desenvoltura narrativa na língua portuguesa, em comparação com os demais, e grande

•• percepção sobre o interesse antropológico. Crocker chega a afirmar que o grande mérito do
projeto dos alemães, entre os anos de 1990 e 1997, na Aldeia Escalvado, foi o projeto

•• Beato 76 . Durante dois anos passou três meses por ano estudando prótese dentária na
Alemanha com bolsa de estudo oferecida pela organização alemã, Deutsche Missions

•• Gememschaft. Chegou a ter um consultório na cidade de Barra do Corda, mas foi afastado
em função de políticas paternalistas do administrador Dilamar77 . Não chegou a terminar o
•• ginásio, mas formou-se professor indígena pelo curso de magistério indígena em

•• Imperatriz, Maranhão. É o atual presidente da Associação de Pais e Mestres dos canelas,


associação composta por outros presidentes das diversas etnias indígenas do Maranhão. Foi

•• escolhido pela comunidade a concorrer a eleição para vereador a se realizar este ano,

••
justamente pela sua habilidade em lidar com os kupen, fato, aliás, nem sempre muito bem
visto por alguns mehim, que, segundo ele, o acusam de "doido''. Jvlas reluta ele:

•• Beato: Isso é o que eu quero. Eu quero entrar nessa questão de

•• conhecimento do homem branco é por causa disso. É o processo, é


democracia, mas a gente tá atrás disso. Nos não vamos parar de procurar
•• sempre, enquanto mais eu ficar como pai muito besta. Mas eu tenho meu

•• 76
Crocker me disse que por essa época as pessoas da aldeia falavam em "partido do Crocker" e "partido dos
alemães", em referência aos "empregados" de ambos.

•• 77 "( ... )O Dilamar me mandou sair do emprego, nunca mais me ajudou, fiquei fora. Botou o irmão dele, hoje
tá sendo con10 dentista. lvlandou ele pra Terezina, mandou ele para São Paulo pra estagiar, cadê eu? Eu perdi
totalmente, aí eu ... ". En1 entrevista realizada no dia 19/08/03 .

•• 62

••

••
••
••
•• filho que vai formar com seu estudo, vai fazer doutorado. É esse pessoa que
vai lutar, eu quero ver a luta dele escrevendo na UNICAMP, até com o

•• próprio governo pode entrar, que nós somos também outro mundo com
indioma muito diferente. O governo deve saber também que existe a

•• comunidade canela, mas até agora tá abafado, tá muito abafado. A ajuda vem

•• de quem? A ajuda vem ... agora começou a ajuda, pouco ajuda. A culpa foi
da FUNAI, consegue recurso, aplica errado, nunca vai dar certo, como eu tô

•• falando do açude. E aí quero completa que você tá pronto também para


ajudar o povo Canela, por que? Porque você já tem conhecimento, porque

•• você tá sentindo, você tá vendo, e isto é o que eu quero com vocês, falando
de antropólogo só .
•• EU: Não interessa o antropólogo que vem aqui estudar sua cultura,

•• interessa o antropólogo que vem fazer alguma coisa.


Beato: Isso, alguma coisa que deve levar essa questão também. Por

•••
isso, que o Bill tem muitos anos. Agora eu comecei com ele, colá no pé dele
e dizer: rapaz! tem que fazer, muito tempo você trabalha com o povo. Ele:
•• "tá bom". Faz? "faço". É agora que começou .

•• Eu: É como se ele soubesse também do ...


Beato: Se o Raimundo soubesse, era naquele tempo nós tava rico .

•• Sabe o número de pessoas naquele tempo? Trezentas pessoa moço .


Comprava quatro boi, dava pra levar Y., dava pra levar uma banda. Mata

•• hoje quatro boi pra tu levar uma banda, nem a metade, nem 1 kg também,

•• 1.5 00 pessoa aproximadamente .

•• Beato torna bem claro para mim seu posicionamento diante da antropologia que
prefere e os possíveis caminhos para se tornarem auto-sustentáveis. Diante de seu

•••
questionamento, tento traçar, então, distinções entre possíveis antropologias. 1v1as refuta
muito bem, colocando que, antigamente, os índios não tinham um questionamento muito

•• sólido, se assim posso dizer, sobre o fazer antropológico; entretanto, agora, com maior
consciência sobre seus interesses, o faz. Por caminhos diferentes, mas entendimentos

••
•• 63

••
•...
•• 1
•• 1

••

••
semelhantes, o cacique Severo também esclarece como seria para ele a conduta do
antropólogo .

•• Eu: O quê que você acha do trabalho de antropólogos? Você acha

••
importante a presença de antropólogos aqui na aldeia? Esses anos todo de
trabalho com os antropólogos o quê que o senhor acha?

•• Severo: Bom, esse tipo de trabalho de antropólogo ...


Eu: Qual a importância que o senhor dá?

•• Severo: O tipo de trabalho de antropólogo eu acho muito melhor,


mas ainda eu acho mais ainda bom, bem esclarecido, que um dos

•• antropólogo pode chegar por aqui, entrar com a gente e mostrar o

•• abertamento dos trabalho que anda fazendo. Aí com esse trabalho que faz
abertamento pra gente, a gente também tem de incluir, tem que acompanhar

•• ajudando ele pra gente fazer um futuro, o histórico. Pra gente fazer o futuro
trabalho, para quê? Para a gente também ajudar dumas pessoa que chega

•• aqui queria ajudar com a gente e a gente também tem de ajudar dessas

•• pessoa que tá com vontade de ajudar essa comunidade. Isso que eu vê, que
eu me imagina, eu precisa, sabe? Não que as pessoa chega aqui: "Ah, eu sou

•• antropologia, sou antropólogo, vou fazer minha pesquisa tal, tal, tal". Faz e
rapidamente dentro de dois minuto, três minuto, ele sai daqni, escapa daqui,

•• aí lá de fora chega notícia: "ah, rapaz, esse aqui, esse antropologia chegou

•• aqui, fizeram aqui e foi lá e deu jeito, não sei o quê, esqueceram da gente e
ele com foto da gente, com histórico da gente fazendo livro, fazendo aquela

•• carta, fazendo aquela vendagem de foto lá na rua, ganhando dinheiro através


de foto da comunidade, da população. Isso aí é um processo, eu não acho

•• que essas coisa aí não é futuro, mas para chegar aqui acompanhar a gente,

••
pra fazer tudo o que tá acontecendo, tudo o que tá mostrando, isso é uma
pessoa de futuro que chega aqui para fazer esse trabalho. Eu me gosta mais

•• dessas pessoa que faz essa coisa aqui, pra fazer o futuro .

••
•• 64

••

Além da questão de que o antropólogo deve tornar muito claro para a comunidade o
que será seu objeto de análise, e mais do que isso, como será o posicionamento ético deste
perante seus objetivos 78 , fica evidente, neste debate, aquilo que assegura a Crocker, sob o
ponto de vista da representatividade pessoal, e não estritamente financeira, sua permanência
na aldeia durante todos esses anos, ou seja, a continuidade do relacionamento entre aquele
que pesquisa e aquele que torna possível a pesquisa. Isso é, sem dúvida, um dos grandes
problemas relacionados à ética antropológica para qualquer nativo, sejam religiosos de
terreiros de umbanda e candomblé, foliões de festas do Divino, trabalhadores, estivadores,
prostitutas, empresários, pescadores, metalúrgicos, índios, enfim, o fato de realizar
pesquisas temporárias é motivo de grandes consternações por parte da comunidade que
estabelece com o antropólogo relações múltiplas, desde uma simples amizade a "membro
da família".
Em função de seu tempo de pesquisa, Crocker representa para muitos índios a
expressão do significado nativo para "crocker velho". Tendo ele se tornado velho em
companhia daquela sociedade, recebeu, com ele, a importância de passar para os mais
jovens a história dos canelas. E como essa historia é normalmente contada, a partir do
interesse dos mais jovens, muitos de seus atuais assistentes e outros jovens índios, o
interrogam sobre como era no "tempo dos primeiro". Nesse sentido, espero, também, que
não se incomode por tê-lo como meu "assistente de pesquisa", prática a qual sempre
privilegiou, no entendimento dos mais velhos.
Para concluir, tomo mais um comentário do "cacique" Severo ao fim de nossa
entrevista, que pode resumir não só o entendimento do trabalho do antropólogo, como das
articulações necessárias para tal empreendimento. Distintas representações de poder, ao
qual o antropólogo está inserido, perpassam pelo funcionamento da estrutura local e o
simbolismo desta relação.

Severo: (... ) Separa, reserva uma hora aí para a gente conversar mais, e você
ouça essa minha gravação e estuda com esse negócio aí, o que é que você vai achar
dentro dessa minha gravação. Se eu gravei certo, as coisa que eu me gravei errado

78
Destaco, também que seu discurso está se baseando em um fato ocorrido no ano de 2002, onde se cogitou a
possibilidade de um antropólogo carioca, estar se beneficiando de imagens gravadas da festa do peixe, sem ter
realizado uma "contrapartida" que atendesse o interesse de todos.

65
••
••
••
•• você pode descartar. Das coisas que eu foi dizer certo você pode estudar comigo,
que você tá com a gente. Vamo dar um apoio também, pelo uma forma que você ta

•• merecendo, que você tem esse ... acho que você merece mesmo de chegar por aqui
pra gente ver. Sei que você tá fazendo este trabalho sobre de alguma coisa mas,

•• você pode de fazer que você chega onde você adquiriu de ver. E, agente vamo

•• levando por aí que: já falei com Franco, ai o Franco me falou e colocou de tudo para
mim, que "não, que ele ta lá, e a gente tão com ele" .

•• As pessoa que não entende muito bem fica nessa reclamação, porque não é
só esse índio que vem reclamar dele não. Mas, tem muita gente que tá reclamando

-4
• também do próprio prefeito, próprio governo, próprio presidente da república. Olha

•• tem autoridade maior que reclamado presidente da república no TV. E, ele fica
ouvindo, fica vendo pessoa reclama dele. E esse índio não, esse índio é menos

•• experiençado do que das pessoa que tem mais experiençado, que reclama do
presidente da república. E, ele vai reclamar também do antropólogo que chegou

•• aqui já mostrando o ... querer mostrar a nossa imagem, o nosso retomo. E o índio

•• vem reclamar. Isso ai é uma besteira, uma coisinha falsa que ele anda fazendo. É
ruim que eu reclama dele, dizer na vista dele "olha Rodrigo você tá fazendo isso,

•• isso, e não tá, não tem a saída. E você tá fazendo isso calado, só com esse
assinaturinha de Núcleo,dentro daí de Barra do Corda, você não tem direito,então,

•• vai. Pode retomar, voltar. É ruim que os liderança reclamasse assim. Mas, as pessoa
que não são líder vão reclamar? Aí maioria das liderança não vai correr atrás dessas

•• coisa.

•• Eu falei com Franco. Franco foi dizer pra mim: "não, tudo bem, ele tá lá. No
dia que ele quiser ir embora, tudo bem pode ir. Mas, eu só quero que ele volte pra

•• nós, pra essa aldeia, pra ele mostrar o trabalho dele e se valorizar por si mesmo .
Quem sabe que daqui uns dias ele pode até trabalhar com a gente, com esse trabalho

•• que ele tá iniciando. Ninguém sabe. Ninguém sabe. Só deus sabe. Talvez que daqui

•• um dia ele pode até ser o coordenador daqui". Desse trabalho é pelo apoio de quem?
Pela população, pela comunidade. É.

••
••
•• 66

••
llt
••
••
••
•• Capítulo III
Crocker em campo
••
•• James Clifford, em entrevista concedida a José Reginaldo Gonçalves (IFCS/UFRJ),
quando esteve no Brasil para participar do seminário Sinais de Turbulência, promovido

•• pela Coordenação Interdisciplinar de Estudos Culturais (CIEC/UFRJ), em dezembro de


1994, disse que sua escolha pelo "indigenophile" Maurice Leenhardt em seu primeiro livro,
•• Person and Myth foi "realmente um acontecimento casual", pois "nunca havia ouvido falar

•• dele". Sem pretensas comparações, minha ligação a esta pesquisa, particularmente ao


senhor William Crocker, também ocorreu de forma (duplamente) casual. Não em uma

•• biblioteca, mas em uma aldeia indígena, a partir da observação de um depoimento gravado


por um velho índio. Este índio era "diarista" de "Crocker velho". Foi assim que vim saber

•• deste antropólogo norte-americano; antes disso, também nunca tinha ouvido falar dele. A

•• diferença é que Leenhardt, já estava morto quando Clifford tomou conhecimento dele, já no
meu caso, como diz o ditado, "quem é vivo sempre aparece" .

•• Poucos dias após meu retorno à aldeia, no mês de julho, recebi a notícia de que o
responsável indireto pela inspiração desta pesquisa chegaria dentro em breve. Agradeci a

•• Malinowski, como quem agradece a um santo padroeiro (mesmo sem se identificar muito

•• com ele), por contar com a sorte de juntar meus objetos-sujeitos (Crocker e os canelas) em
campo. Não esperava encontrar com o senhor William Crocker, justamente, na aldeia79 .

•• Com certeza, o anúncio de sua chegada me animou bastante - posso dizer o mesmo sobre os
meus receios - e fez com que eu procurasse obter dados relativos a sua empresa

•• antropológica mais precisamente. No entanto, vim aprender com o velho etnógrafo - pois

•• acho que não foi aleatório o período preterido para chegar à aldeia - que no mês de julho
poucos dados se pode obter, além da observação-participante do ritual em andamento. Não

•• poderia dizer o mesmo sobre estudos que objetivassem perceber as articulações para a
execução da festa, tanto internamente, a partir das deliberações dos prókãm mã e demais

•• lideranças, quanto externamente, em negociações com a FUNAJ, políticos e fazendeiros


locais, antropólogos, etc .

••
••
•• 67

••
e
•• 1

••
••
•• Pouco consegui avançar neste período em relação a minha pesquisa, porém em
muito me rendeu a relação com eles 80 , corno também me fez perceber que a transmissão de

•• conhecimento, que eu esperava conseguir, no sentido da pesquisa proposta, é bem diferente


da dinâmica da transmissão de conhecimento por eles adotada. Quanto mais se

•• considerarmos que nossa interlocução se baseava em princípios de oportunidade e livre

•• predisposição em atender a meus anseios de pesquisa. Dentro desse contexto, era muito
difícil realizar entrevistas formais com os assistentes de Crocker, no periodo onde todos

•• estavam voltados para o que mais lhes interessava: a consecução da "festa" do pepjê. E para
mim, naquele momento, seria importante realizá-las corno forma não só de ampliar as

•• questões anteriormente debatidas e gravadas, mas também, corno meio, de ter um melhor

•• entendimento da relação desenvolvida entre os sujeitos, para melhor entrevistar o Crocker.


Muitas vezes me sentia consternado em tirar alguns desses assistentes de suas

•• atividades rotineiras, para me dar entrevistas, pois, apesar de se mostrarem solícitos a


minha pesquisa, sempre esperam de urna maneira ou de outra alguma resposta concreta e

•• objetiva desta ajuda. No meu caso, a troca foi estabelecida através da gravação das músicas

••
rituais da festa em andamento e, posteriormente, na participação de um projeto cultural.
Procurava estabelecer sempre uma relação informal, anterior a qualquer gravação com os

•• interlocutores-assistentes. Certamente, era mais fácil realizar entrevistas formais com


aqueles com os quais mantinha algum grau de parentesco. Entre eles, o primeiro grupo de

•• assistentes de Crocker: Marcelino, Raimundo Roberto e Tep-hot.


Mesmo assim, à época de sua chegada, ainda sentia falta de maiores informações

•• referentes, por exemplo, ao periodo nebuloso pelo qual ele estava proibido de entrar na

•• aldeia. Através de um processo aberto pelo administrador local de Barra do Corda, no final
dos anos 70, Crocker precisou sair da aldeia às pressas pois, caso contrário, correria o risco

•• de ser preso pela polícia federal, segundo veio me confessar mais tarde. Esta situação
inusitada permaneceu um tanto quanto obscura para mim, porque, em algumas entrevistas

•• com os assistentes, não ficou claro a interrupção do "diary program", corno Crocker havia

•• 79
Já havia me correspondido com Crocker e, em resposta a minha carta, ele deixou claro que viria ao Brasil

••
no final do ano e que gostaria de me encontrar, por isso não esperava me deparar com ele no meio do ano e
em plena Aldeia Escalvado.
80
Principalmente, por ter gravado quase todas as principais sequências rituais desta festa, de forma a

••
possibilitar o início de uma espécie de audioteca própria para a aldeia Escalvado. Está foi a contrapartida para
realização de minha pesquisa .

•• 68

••
e
••
••
••
•• dito, nem tampouco ficou esclarecido esse acontecimento nas narrativas dadas a mim pelos
índios 81 • Aliás, desconversaram sempre que possível, como Crocker após sua chegada

•• também o fez 82 •
Em relaçao aos canelas, em principio, pensei na confusão ou desapego às datas,

•• característico deles, principalmente pelos mais velhos, visto que poucas vezes conseguem

•• precisar determinado acontecimento a uma data específica. Isso, sem dúvida, tomava mais
trabalhoso apurar, de fato, se continuaram ou não prestando algum tipo de assessoria a

•• Crocker (poderia com maior facilidade apurar o tempo em função, por exemplo, de classes
de idade ou chefes passados, mas não consegui desenvolver isso em campo). Entrevistas

•• concedidas por Raimundo Roberto, Tep-hot e Severo não chegaram a esclarecer bem o
intercurso da pesquisa de Crocker, mas foi possível perceber a incompatibilidade entre
•• meus interlocutores, além de perceber que o andamento do trabalho de campo não estava

•• circunscrito somente ao par pesquisador-pesquisado .

•• Eu: Nos anos 80 não deixaram mais o Crocker vir para cá, não foi?
Tep-hot: Não .
•• Eu: Carvalho, acho?

•• Tep-hot: Foi Carvalho que fez algum atrapalho deles .


Eu: Aí vocês continuaram de trabalhar ou ficaram sem trabalhar para ele?

•• Tep-hot: não, continua a trabalhar.


Eu: Continuou a fazer o ...

•• Tep-hot: Hum, hum. Daqui mesmo eu mandava trabalho .

•• Eu: Você conheceu o Crocker há quanto tempo?

•• Severo: Ah, acho que ... Eu conheci ele desde 77 para cá.

•• 81
Minha intenção de inicio era concentrar-me sobre o programa de diários nativos, uma vez que era uma
prática etnográfica que era realizada sem a presença do antropólogo, e em notar a representação que faziam

••
deste trabalho. Contudo, depois do nosso encontro etnográfico, foi possível observar como Crocker
desenvolve suas pesquisas quando está na aldeia, ampliando meu campo de interpretação.
82
Ao reler a carta enviada por Crocker {praticamente quando este capitulo estava escrito), deu para perceber

••
claramente que nela já continha sua postura de não mencionar o acontecido. Ao descrever alguns problemas
que teve com funcionários do SPI durante suas pesquisas, dizia ele que "during my long field\vork in 1978-9,
\Vhen pre-M.A. anthropology studcnts \Vere involvcd \Vith regional FUJ\fAI agents \Vho had tumed the heads
ofcertain Canelas against me. Since everyone involved is still alive, 1 \VÍll not give you this story" (carta de

•• 11/04/2003) .

•• 69

••
e
••
••
••
•• Eu: Foi quando você começou a trabalhar?
Severo: Hum, hum. Foi quando comecei de trabalhar com ele, mas é assim. Eu me

•• trabalhei um pouco com ele, aí eu foi ... desistiu. De segunda vez, eu comecei outra vez,
parece que foi em 80, até ... Por aí assim, chegou um aflito contra ele, aí todo mundo que

•• trabalhava para ele desistiu, todo mundo. Aí passou o tempo, quando ele retomou para cá,

•••
aí a gente continuou também( ... )

Acho pouco provável que Crocker tenha continuado seu programa por essa época,

•• no entanto manteve contato com os acontecimentos da aldeia através do missionário Jack


Popjes, do Instituo Lingüístico Wycliffe Bible Translator, ligado ao Surnrner Institute of

•• Linguistics (SIL) que lhe fornecia, quando possível, informes realizados pelos próprios

•• índios. Talvez por isso, alguns de seus assistentes por terem realizado esses informes,
acreditam que não cessaram seu trabalho para Crocker. Não pude caminhar muito neste

•• sentido, até por que ele está mais claro para mim, neste momento em que estou escrevendo,
do que quando estava em campo. Assim corno, infelizmente, também não foi possível, em

•• virtude de limitações financeiras de pesquisa, ir à FUNAI-Brasília fazer um levantamento

•• dos documentos referentes a este episódio. Em se tratando de Crocker, todo e qualquer


assunto que possa comprometer sua pesquisa com os canelas, principalmente questões

•• políticas, ele prefere não comentar, não distanciando-se de seus métodos .


O ponto a que pretendo chegar é, partindo de urna reflexão sobre a produção de

•• conhecimento de Crocker, problematizar um estilo de etnografia, como meio de mostrar o

••
intricado processo de produção do relacionamento etnográfico, tendo em vista as raras
descrições, por parte dos antropólogos que fazem trabalho de campo, mais especificamente

•• com grupos indígenas, desta situação de cantatas. Não obstante ser meu objetivo, neste
capítulo; descrever o antropólogo William Crocker em campo, procurei aqui não encerrar a

•• discussão no par pesquisador/pesquisado, antes percebê-lo enquanto um dos processos de


articulação entre os diversos agentes sociais que lidam com os povos indígenas, portanto,
•• que não estão fechados em si mesmos .

•• Como a intenção deste capítulo é relatar a casualidade de um encontro etnográfico,


raramente descrito em uma etnografia indígena, irei num primeiro momento descrever o

•• processo de chegada de Crocker na aldeia e, em seguida, acrescentar a interpretação de um

•• 70

••
•e
••
••
••
•••
etnógrafo trabalhando em campo com seus assistentes de pesquisa, onde a observação-
participante foi seguida por mim em sua plenitude litúrgica .

•• Caiu na rede é peixe: jari, Aukêê, kupen .

•• À medida em que se aproximava o dia da chegada de Crocker, as expectativas de

•• todos aqueles que convivem de alguma forma (tratados como "personagens genéricos" nos
textos etnográficos), seja direta ou indiretamente, com os índios da Aldeia Escalvado

•• cresciam. Era muito nítido ver que não eram somente os índios quem o esperava;

•• personagens imutáveis da TI Kanela, como comerciantes ambulantes que circunvizinham a


área, estavam ávidos por sua presença; fazendeiros a todo instante vinham à aldeia; o

•• administrador local da FUNAI e representantes da Gerência regional da FUNAI-MA e da


FUNASA também o aguardavam inquietos; missionários; professores indígenas e não-

•• indígenas; políticos; enfim, eram muitos os interessados em sua chegada, inclusive eu .


Duas casas foram preparadas na aldeia para acomodá-lo. Uma delas, já sabido por

•• mim, estava sendo toda emboçada (com barro) para atendê-lo, com preparo de um quarto

•• com porta e janela de madeira, e um banheiro externo (o único na aldeia que era fechado,
naquele momento). Esta casa já existia e estava situada, na aldeia, conforme a espacialidade

•• da família extensa que o adotou. Por esses dias, toda a parentela de mães de Crocker já
havia morrido, sendo sua irmã Dominga, que o recebeu, como o ente mais próximo da linha
•• materna83 • A outra casa que estava sendo preparada era a de um de seus assistentes atuais e,

•• a principio, pensei que estivesse sendo reformada por sua própria conta, mas, depois da
chegada de Crocker, vi que era para atender ao seu acompanhante, um vizinho de sua casa

•• em V/ashington84 •

•• 83
J\,To verbete, contido na \veb da socioambiental escrito por \Villiam Crocker e específico aos índios
Rarnkokamekra, ao descrever a vida familiar deste grupo indígena relata que "uma mulher- com suas irmãs,
mãe, avó e filhas - mora no círculo da aldeia em uma área definida em relação ao nascer do sol, sempre na

•• mesma posição nas sucessivas localidades para as quais se transfere a aldeia. Suas primas, que descendem da
mesma mulher ancestral por linha feminina (primas paralelas), moram em casas adjacentes ao longo do
círculo da aldeia. Se forem da mesma geração, ela as trata por "irmãs", de "filhas" e "filhos". O arco de casa

•• contíguas em que essas mulheres vivem é chamado de ''casa comprida" (ikhre lin't). (... )O parentesco é
reconhecido bilateralmente, apesar da ênfase matrilateral. Não existem clãs. Só há um certo número de
linhagens isoladas e cerimônias para transmitir o direito de desempenhar certos papéis'' (ISA, 2002).

••
84
Foram poucas as vezes que Crocker permaneceu em campo sozinho. Disse-me que trouxe este
acompanhante a pedido de sua esposa, receosa de seu estado de saúde. Em 2001, seu filho, Myles Crocker, o
acompanhou como fotógrafo e ainda contou com os serviços de dois alunos da UFB para ajudá-lo em um

•• 71

••
•e
••
••
••
••
No dia 6 de agosto, por volta de 15:30hs, o som de fogos de artificio anunciavam ao
longe a sua chegada e, prontamente, o "comunicador" da aldeia cantava no pátio seu

•• retomo. O estrondo dos fogos foram-se aproximando e com ele duas caminhonetes
adentraram à aldeia, passaram à frente da casa da minha família, e, na sequência, uma

•• centena de índios seguiam em sua direção. Como não poderia perder aquele momento, corri

••
também atrás do fluxo e das caminhonetes. No caminho alguns índios me diziam, "ê que
chegou o homem que ajuda os índio, rapaz". Em poucos instantes uma grande concentração

•• se formava em frente à casa onde ele permaneceria. Muitos cumprimentos se seguiram,


inclusive os meus, até o lamento das mulheres de sua família 85 • Fiquei ali por um bom

•• tempo até seu material ir sendo descarregado das caminhonetes. Cama, antenas, malas,
caixas, telefone, painéis solares, bateria, fios, e diversos outros materiais. Logo depois, seu

•• acompanhante foi conduzido por aquela que seria a sua nova família adotiva, e o

•• agrupamento, formado em sua maioria por jovens, mulheres e crianças, foi se dissipando,
permanecendo apenas sua família. Fui embora e os comentários continuaram a serem ditos

•• para mim, "o americano velho chegou e vai dar presente pra todos da comunidade'',
"Crocker velho ajuda muito nós, ele é muito bom pros índio" .

•• Essas frases soltas me deixavam intrigado, pois poderiam estar sendo proferidas na

•• intenção de traçar alguma comparação com a minha pessoa que, objetivamente, em nada
ajudou a comunidade. Mas também poderiam ser apenas comentários, feitos em razão das

•• expectativas que giravam em tomo de sua presença na aldeia. Preferi acreditar na segunda
hipótese, no sentido de entendê-la em relação à importância do outro (branco) e não só aos

•• padrões de representação e auto-representação decorrentes do envolvimento de uma

•• situação etnográfica, quer seja de expectativas e crenças, como também, e a partir dela,
notar possíveis alterações de uma mesma narrativa mítica, no caso em questão, aquela que

•• descreve (e condiciona) o relacionamento entre kupen e mehim .


Sem me aprofundar muito neste ponto das narrativas míticas, mas antes sobre as

•• expectativas, horas mais tarde pude notar que aquelas frases faziam parte apenas de uma

••
pequena parcela das expectativas em tomo de sua chegada, afloradas e expostas na reunião

censo, que realiza desde 1960 (os que possuem referência em publicações são de 1960, 19641 1966, 1969,

•• 1970, 1975 e 1979). Também neste ano conheceu Jonaton Júnior, filho de um indigenista da PUNA! e aluno
de Ciências Sociais da UFMA, morador de Barra do Corda, dando-lhe uma bolsa para realizar pesquisas com
os Canela (Apaniekra e Ramkokamekra). Este financiamento, ao que tudo indica, continua até os dias de hoje.

•• 85
Para maiores comentários a respeito, ver Vidal (1997a) .

•• 72


••
1

••
••
•• do pátio. Era grande o quórum no pátio à espera do ilustre parente kupen. No epicentro,
encontravam-se as lideranças: cacique, major, vereador (mais novo posto a formar as

•• lideranças), prókãm mã, conselho dos velhos; ao redor, os homens pertencentes às


"sociedades masculinas", posicionados aparentemente de forma aleatória86 .
•• Quando Crocker chegou ao meio do pátio foi oferecido a ele uma cadeira e, de um a

•• um, os mais velhos índios foram ao seu encontro dar-lhe os cumprimentos por seu retomo .
Após essa calorosa recepção por parte das lideranças, um silêncio se fez para que todos

•• pudessem ouvir o que Pep (seu nome de batismo em Canela) tinha a dizer. Crocker, então,
discorreu (poucas frases na língua Canela) sobre sua felicidade em estar novamente ali com

•• eles, uma vez que estava entre amigos e familiares, sentindo-se em casa na aldeia. Contou

•• como estavam seus filhos, ex-mulheres, sua mulher atual, (todos estiveram na aldeia e,
consequentemente, também foram batizados) e netos; como estavam e o que faziam .

•• Revelou que já estavam todos cientes de que, quando ele morrer, quer ser enterrado na
aldeia. Depois apresentou seu acompanhante David que também mostrou seu

•• contentamento de estar em tão nobre lugar. Em seguida, apareceu no pátio Franco,

•• administrador da NAL-Kanela, João Canso da Gerência Regional da FUNAI-MA, Agnaldo


da FUNASA, acompanhado da nova médica (e seu marido), residente de São Luís, e

•• Jonaton Júnior, auxiliar de pesquisa de Crocker.


Neste momento, a fala de Crocker foi interrompida, sendo dada a palavra para

•• Franco. Este demonstrou todo seu entusiasmo em estar diante de tão importante pessoa, um

••
pesquisador do mais alto gabarito, e que tinha o prazer de recebê-lo em sua gestão à frente
do mais novo pólo da FUNAI, exclusivo aos índios Canela. Aproveitou a oportunidade e

•• mencionou os projetos que havia conseguido para o benefício dos índios canelas, como o
trator e a luz elétrica, a ser instalada em breve, assim como o projeto de piscicultura, da

•• padaria para atender aos estudantes na cidaée e, dos "setores de roça", para dar condições
de plantio para todo o ano às famílias. Todos os projetos esbarravam nos poucos recursos

••
••
86
Confesso que nesse dia não me ative ao posicionamento dos homens no pátio conforme seus sistemas de
metade (mesmo por que esse não era muito meu interesse), contudo a visibilidade dos lugares específicos das
subdivisões de cada urna das metades (três para cada metade) se faz notar com mais facilidade em períodos de

•• festa. E esse dia em especial estava sendo um dia festivo para eles por estarem recebendo a visita de Crocker,
do administrador local da FUNAI, do diretor executivo da Associação de Saúde Canela, uma médica recém
contratada e apresentada a eles aquele dia, e mais dois antropólogos (eu e Jonaton). Para ver detalhes das

•• "unidades sociais" Ramkokamekra, Nimuendajú e Lowie (1937), Nimuendajú (1946), Crocker (1972b,1973,
1979,1990), Gordon Jr. (1996) .

•• 73

••
e
•• '1
••
••
•• existentes, então, gostaria de saber do "ilustre professor" se poderia contar com seu apoio
para efetivar esses projetos .

•• Como a noite já havia caído, acharam melhor terminar a reunião e recomeçá-la na


manhã do outro dia. O cacique Severo, então, declarou primeiro em canela e depois em

•• português sobre a felicidade que todos estavam sentindo em receber na aldeia todas aquelas

•• lideranças, "chefes", agradecendo a pahpam ("deus") por tê-los enviado. Em meio ao


término da reunião, Zé Diogo me dizia que "esse homem velho ajuda muito os índio, ele

•• compra tatu, compra veado, compra perdiz, compra artesanato, dá presente pra todos os
conselho. Ele já falou que trouxe, dá dinheiro pra todo mundo aqui. Trouxe projeto

•• também, amanhã ele vai falar". Logo após, o maracá soou, convocando a cantoria no pátio

•• e ao redor dele, pela rua central, perdurando por pouco tempo .


Anteriormente à chegada de Crocker na aldeia, procurei atentar para como os

•• índios, não só seus assistentes, mas os canelas em geral, classificavam o Crocker. Tentava
levantar a história dele pelos índios, por exemplo, como e quando chegou, com quem

•• morava, com quem trabalhava, como vivia, etc. O discurso mais comum era que se tratava

•• de um homem muito bom para os índios e muito rico. O primeiro predicativo me atraia
mais do que o segundo, pelo poder de revelação que poderia suscitar. Ser rico simplesmente

•• não era bem a questão, antes era mais interessante e mais difícil apurar o que representava
ser bom para os índios, sem levar em consideração o lado mais óbvio do poder econômico

•• que pautava a pesquisa de tantos anos. Diferentes gerações viram Crocker chegando na
aldeia, conseqüentemente diferentes discursos eram gerados, não só em termos individuais,

•• mas também em relação à classes de idade. Contudo, mudavam apenas a organização, ou

•• seja, categorias e conceitos e, talvez influenciado pelas descrições míticas dos mais velhos
sobre Aukêê, muito me fez associar os modelos narrativos (associação esta, pensada por

•• mim com maior pertinência no momento de sistematização dos dados e escrita desta
dissertação) .

••• Era comum, por exemplo, os mais velhos se referirem a ele como um enviado de
Rondon, de Aukêê - herói mítico - ou de Nimuendajú, ou mesmo de qualquer outro

•• "chefe", corno imperador, presidente e demais correlatos. Um índio, pertencente ao


"batalhão" de Raimundo Roberto, me disse que Crocker primeiro andou por todo o Brasil

•• atrás deles e não achou, foi embora; depois retomou e ficou sabendo onde era a Aldeia do

•• 74

••

@
••
••
••
•• Ponto (antiga aldeia), pelos kupen de Barra do Corda, nesse tempo chegou a pé, pois não
tinha estrada, tal qual Rondon e Nimuendajú. Um outro integrante do mesmo grupo contou

•• que Crocker chegou por lá procurando pelos canelas, substituindo Nimuendajú, mas
levaram-no para os Guajajara; lá chegando, Crocker haveria dito que queria trabalhar era

•• com os Ramkokamekra-Canela, saindo de lá e achando-os no Ponto. Zé Ramos disse-me

•• que Crocker foi enviado pelo "chefe grande", para ajudar os índios que estavam sofrendo
muito. Diversos relatos demonstravam a importância dada àquele que vem de fora, que ora

•• esta presente, ora não está, cuja forma, ou o corpo, se transmuta em Rondon, Nimuendajú,
D. Pedro II (Crocker, 1962), não importando a época, mas o significado - o mesmo

•• acontece com as descrições do mito de Aukêê atualmente, onde diversas vezes referiam-se

•• a Aukêê como Pedro Álvares Cabral, em narrativas feitas a mim .


Se "na mitologia, os valores mais gerais da sociedade, do cosmo e seu princípios

•• estruturantes se condensam, apresentando-se na forma de um discurso organizado"


(Gonçalves, 200la) seria interessante pensar que, apesar de Crocker mencionar que "os

•• canela já tiveram mais de cem mitos, mas hoje eles não acreditam plenamente neles, com
exceção de alguns que acreditam no mito de Awkhêê" (ISA, 2002), eles não se esvaíram de
•• todo, pois têm a sua sobrevivência garantida na forma de outros corpos, de outras narrativas

•• (mesmo sem a crença atual em Aukêê). Uma "diferença construída" daqueles mesmos
discursos organizados de outrora, entre "nós e os outros" .

•• De fato, as narrativas sobre Crocker permutam o sistema simbólico canela, pois


sempre se volta para aquele que veio em favor dos índios, precisamente os índios canelas,

•• aquele que veio ajudar ou mesmo salvar os índios de sua condição. É exatamente isso que

•• nos conta o mito de Aukêê 87 , muito embora, e até por conta da interpretação do mito, não
desejarem mais matar seu herói. Tomando-se dessa forma "civilizado" - como preconizava

•• Aukêê. É também a respeito desse mito que se insurge o movimento messiânico dos
Ramkokamekra em 1963 88 . A relação com Nimuendajú é descrita por Crocker (1990) ao

••
••
87
Para a descrição do mito, verNimuendajú (1946), Crocker (1962, 1978, 1990), Melatti (1972), Carneiro da
Cunha (1978).
88
Para a descrição do movimento messiânico dos Ramkokamekra ver Crocker (1967, 1972, 1976, 1990);

••
Carneiro da Cunha (1973, 1978, 1986, 1993); Brigitte Ertle-Wahleu (1969/72). Para uma comparação entre os
movimentos messiânicos dos krahô e Ramkokamekra ver lv1elatti (1972). Todos três autores utilizam como
fonte os textos publicados por Crocker. Este, por sua vez, me informou que já era para ter sido lançado um

••
livro a respeito desse movimento messiânico, deixado aos cuidados de uma antropóloga inglesa, que, por
razoes que desconhece, não foi até hoje publicado .

•• 75

e
••
•• l
••
••
•• relatar seus primeiros dias na aldeia. Dizia ele que os índios haviam pensado que ele era
sobrinho do Nimuendajú, sendo recebido muito bem entre eles. Logo, tratou de desfazer o

•• engano, mas ao que parece ainda hoje muitos fazem a ligação entre ambos pesquisadores .
Voltando ao pátio, a rotineira reunião matinal dos homens começou sem a presença

•• de Crocker, sendo discutidos por Francisquinho Tep-hot os problemas referentes à

•• educação escolar indígena e o inexistente ensino das tradições canela na escola da Aldeia
Escalvado 89 . Logo a seguir, Crocker chegou ao pátio, onde Franco que o esperava retomou

•• a discussão do projeto sobre a criação de peixes em cativeiro. Segundo ele, faltava apenas
um apoio para reforçar a estrutura da base da barragem e, indagou se, por acaso, Crocker

•• poderia ajudar a comunidade canela. Crocker respondeu que o problema não incidia

•• simplesmente na estrutura, mas na continuação do projeto, no sentido das garantias que ele
teria para que o projeto continuasse, uma vez que "o problema é dos índios pegarem os

•• peixes antes que os peixes cresçam''. Sobre esse mesmo projeto, um dos assistente de
pesquisa de Crocker - diria que hoje é o principal deles - me diria mais tarde:

••
•• (... ) Eu não queria ficar com raiva, mas um dia ele vai sair, com
certeza, por que agora tô notando essa construção de açude, essa barragem

•• que ele fez, já foi três vezes o concerto dela, a quarta vez agora. Vamo vê se
segura esse inverno que tá vindo. É dinheiro moço! Vinte mil reais, trinta mil

•• reais, só concertando, não tem produto. Qual o objetivo desse trabalho? Quer

••
dizer que tá sujando a comunidade? A comunidade recebe esse dinheiro,
manda você aplicar nesse açude, acaba o dinheiro, você bota o nome dele lá

•• pra quem tá nomeando o dinheiro. É muito errado! Fez primeira vez, errou .
Segunda vez, não deu? Terceira vez não faz mais. Tem dinheiro? Vamo

•• fazer alguma coisa, vamo fala, vamo discuti que tem dinheiro e tal, tal, tal. E
justifica pra quem tá nomeando, mas ele não faz isso90 •
••
•• 89
Basicamente, dialogam primeiramente sempre na língua nativa, porém Tep-hot fazia sua argumentação em
português, provavelmente em função da minha presença, e assim fortalecer os laços preteridos para a

•• execução do projeto de gravação de CD, para atender a escola, assim como de aproveitar a presença de
Franco e sustentar meu compromisso, não só com eles, como também com a FUNAI.
90
Entrevista concedida em 19/08/03. Crocker, dias depois, esclareceu para mim que se o projeto não fosse

•• muito bem sustentado e que se não contasse com a presença de "brancos' 1 para coordená-los, dificilmente
daria certo. Pois, ao menor sinal de problemas alimentares, matariam todos os peixes, assim como fizeram

•• 76

••
e
••
••
••
•• Podemos notar aqui os diversos interesses que perpassam o cotidiano de uma aldeia

•• indígena e as inconstâncias suscetíveis a qualquer agente ligado a ela, como prerrogativa, a


dificuldade, muitas vezes, encontrada pelos antropólogos em lidar com diferentes

•• expectativas, como também em perceber o jogo de interesses que está por trás de alianças

•• dentro ou fora da aldeia. Por exemplo, a maneira como cheguei na aldeia Gá descrita) e meu
próprio deslocamento nela após a chegada de Crocker levantaram muitas suspeitas em

•• diversos índios, por acompanhar o trabalho éeste antropólogo em seu quarto durante o dia
e, à noite, fazer entrevistas com ele sem a presença de ninguém - aliás, achava estranho

•• esse respeito individual aos espaços internos da casa, pois ainda não havia presenciado isso

•• na aldeia. Diversas vezes me perguntaram se eu estava trabalhando para o Crocker, se eu


também era diarista e coisas do tipo. Explicações que tinham que ser feitas primeiramente

•• na informalidade de uma conversa (em família muitas vezes) e depois levadas ao pátio, na
presença de todos. Portanto, as expectativas em relação a você, pesquisador ou não, são a

•• todo o momento criadas e recriadas. Ao mesmo tempo, esses percalços faziam aumentar
meu interesse pela pesquisa, a fim de investigar como Crocker estabelecia essas alianças
•• com eles, suas redes, com a FUNAI local, com os comerciantes e fazendeiros ao redor da

•• TI Kanela, para continuar a sua pesquisa.


E o momento das reuniões no pátio são extremamente tensos - essa, em especial,

•• por contar com a participação de uma complexa articulação de sentidos por seus agentes -,
no sentido da sua exposição ao jogo de interesses dos diferentes campos, no contexto

•• Bourdieuano do termo. Será ali que todos tomarão conhecimento de suas intenções,

•• propostas, ou o que quer que seja, firmando seus compromissos, não só com os índios, mas,
principalmente, com os demais agentes. Nesse momento é que será dada a concessão

•• legitima ao seu trabalho de campo - obviamente, observando que, essa legitimidade, mesmo
sendo importante, também é fluida em função do jogo político de cada momento .

•• Assim, a reunião da manhã foi apenas uma introdução a essas questões, que

•• perdurariam por todo o dia. Depois da fala de Franco seguiram-se as pró-argumentações de


Crocker, através da confirmação de seu apoio a um projeto para os Ramkokamekra, mas

•• salvo a comprovação das devidas funcionalidades e orçamentos. Aproveitou para garantir

•• com outros projetos anteriores, como, por exemplo, as quinhentas cabeças de gado doadas pelos alemães para

•• 77

••
•• l
••
••
•• seu compromisso em ajudar aquela aldeia, mas o fez através de seu amigo David, urna vez
que, afirmava que era ele quem mantinha boas relações com urna instituição que poderia

•• ser de grande ajuda para os canelas, a Interarnerican Foundation ("esse sim um grande
projeto") 91 ; também deixou claro a questão dos problemas burocráticos para transações

•• financeiras entre Brasil e Estados Unidos que o impedia de movimentar grandes

•• quantidades de dinheiro, assim corno em abrir uma conta bancária no Brasil. Sustentou que
tinha poucos recursos em mãos e que para conseguir urna nova quantia teria que esperar por

•• mais trinta dias, segundo as regras bancárias brasileiras .


Mais a frente, em entrevista, Crocker me relatou que foi somente a partir de seu

•• retorno à Aldeia Escalvado, em 1993, que foi dada a ele a responsabilidade de realizar
projetos com os canelas. Disse que nunca havia pensado em fazer projetos, porque era
•• proibido pelas leis dos órgãos indigenistas anteriores e tornou um susto com essa nova

•• situação, segundo ele, Dilamar (administrador da Ajudância da FUNAI, em Barra do Corda


- hoje específico aos índios guajajara) foi muito contundente: "tem que ter projetos, quais

•• são seus projetos?" 92 •


Seguindo a enxurrada de propostas e soluções, foi a vez do "antropólogo" Agnaldo,

•• funcionário da FUNASA e diretor executivo da Associação de Apoio a saúde Kanela -

•• AASKAN, chorar suas mágoas e apresentar um projeto já aprovado - em favor das boas
maneiras - que consistia na construção de 100 banheiros ao redor da Aldeia Escalvado 93 • A

•• reunião terminou com todo mundo querendo mostrar seu empenho em favor dos índios,
enquanto esses, já cascorados de boas intenções, apoiavam todos e desacreditavam em

•• todos também. Sempre ao fim das reuniões, principalmente noturnas, os prókãm mã

•• continuam reunidos, não mais ao centro do pátio, mas no lado que concerne a sua metade
harãncatejê, para conversar e delimitarem suas intenções .

••
••
••
criação extensiva do gado, nos anos 90 .
91
Fiquei sabendo por um informante (no sentido literal da palavra) que no final do ano passado um
representante desta instituição, em São Luís, desta instituição foi visitar a Aldeia Escalvado .
92
Vale destacar as mudanças ocorridas na legislação brasileira, sobretudo a partir da constituição de 1988,

•• que pautaram novas ações e políticas indigenistas. Um dos principais debates a esse respeito encontra-se na
recente trilogia organizada por Sousa Lima & Barroso-Hoffmann (2002) .
93
O mesmo informante, mencionado em nota anterior, também me anunciou que as obras de construção dos

•• banheiros já estavam em andamento .

•• 78

••
•• 1
••
••
•• De lá fui acompanhar, sem ser convidado, a reunião (particular) 94 , marcada por
Franco ao Crocker no Posto Indígena, onde mais uma vez o administrador informava ao

•• "professor" sobre os projetos em andamento e aqueles que estavam à espera de incentivos,


buscando senão pressionar, ao menos sensibilizar Crocker, para que apoiasse

•• financeiramente os projetos. Falou de experiências negativas em promover projetos

•• agrícolas, envolvendo toda a comunidade e que, portanto, estavam articulando "setores de


roça", que atenderiam às famílias extensas. Falou, também, do projeto de construir uma

•• padaria na cidade de Barra do Corda, com capacidade para fazer 2000 pães diários e que
fosse gerida pelo próprios índios, mas encontrava dificuldades para a compra do

•• maquinário e construção da casa. Esse projeto, segundo o administrador, visaria minimizar

••
o problema dos estudantes que ficam ociosos na cidade, podendo futuramente entrar num
processo de marginalização. São 43 estudantes canelas, na cidade de Barra do Corda, dentre

•• os quais 34 Ramkokamekra. Vinte deles fazem curso de informática, oferecido pelo Estado
do Maranhão .

•• No prosseguimento da conversa, Franco volta atrás e menciona que o equipamento


já foi comprado em Terezina, o curso de treinamento será realizado em parceria com o

•• Estado do Maranhão, mas ainda faltava construir o prédio onde funcionaria a padaria.

•• Passou a palavra a Agnaldo que discorreu sobre a péssima estrutura de atendimento aos
doentes canelas na cidade de Barra do Corda, e da necessidade de se construir um novo

•• polo de saúde, onde fosse possível atender aos dois grupos Canela; precisaria, pois, de, pelo
menos, um terreno para a construção deste pólo, quiçá a casa .

•• Bem, por sua vez Crocker reiterou sua posição de que apoiaria financeiramente

•• algum projeto, visto sua relação com a aldeia e achava que era o mais justo a fazer. Mas só
daria seu apoio à comunidade Ramkokamekra e não aos Apaniekra, pois, desde 1975, não

•• voltou mais em Porquinhos. Sua ligação, dizia ele, se restringia aos Ramkokamekra e
gostaria que fosse muito bem esclarecido para a comunidade que era ele quem estaria

•• apoiando o projeto de sua escolha, de forma a não haver nenhum mal entendido sobre sua

••
participação. Quanto a outros projetos, disse mais uma vez que seu amigo David mantinha
um bom cantata com a IAF e que algo poderia ser efetivado em parceria com esta

•• instituição, desde que fosse alguma coisa grande, que desse visibilidade. David falou um

••
94
Parecia ser uma prática comum de Franco realizar reuniões no PI-Canela com a presença de pessoas

•• 79

• 1

~
••
••
••
•••
pouco sobre como funcionavam os projetos apoiados pela IAF e como os Ramkokamekra
poderiam se enquadrar nele. Inclusive, tentou me colocar como a pessoa que poderia ajudar

•• os índios nesse projeto, por eu ser brasileiro 95 •

••
Foi dada a palavra novamente a Franco. Este comentou sobre a intenção de se criar
uma biblioteca na NAL-Kanela, e quem sabe até um "museusinho". Para isso, precisaria

•• que fosse doado material de pessoas que já houvessem desenvolvido pesquisas com os
canelas. Aproveitou a oportunidade e reiterou que contava comigo, junto ao compromisso

•• firmado, para que lhe enviasse o resultado de minhas pesquisas, ou seja, a dissertação. João
Canso falou que o Núcleo, a partir de uma nova postura da FUNAI, estava tentando criar
•• uma política indigenista específica e diferenciada (expressão que virou jargão das ações

•• indigenistas), e que, para tanto, estava querendo apoiar-se nos estudos antropológicos .
Crocker explicou que, ao longo de suas pesquisas, sempre forneceu material para diversas

•• instituições no Brasil, até mesmo como compromisso firmado, como por exemplo, com o
Museu Nacional, no Rio de Janeiro e Museu Goeldi, em Belém. Assim eles poderiam entrar

•• em contato com essas instituições, sobre quaisquer materiais de seus interesses .

•• Muitas vezes, enquanto eles falavam, Crocker olhava para mim, como quem quer
perguntar: e aí, o que é que você acha? E eu, por outro lado, pensava: "sai dessa que eu

•• quero ver". Mas o que estava somente nos devaneios da reunião projetava-se concretamente
na habilidade de Crocker em se colocar sempre em segundo plano, deixando outros sujeitos

•• na linha de frente. Lembro da conversa que tivemos, dias mais tarde, a respeito de um filme

•• produzido e filmado por Steven Schecter, nos verões de 1975 e 1979, e posteriormente em
1997, sob a sua supervisão que foi vendido pelo Schecter, segundo Crocker, à National

•• Geographic e Discovery Charme!, em 1999. Crocker se dizia arrependido de sua


participação nesse filme, pois "não foi uma coisa muito correta o que fizeram. O filme se

•• tomou exagerado e sem perspectiva etnográfica". Perguntei a ele o que os índios ganharam
com a venda dos filmes. Informou-me que, quando chegaram em 1997, para fazer as
•• filmagens, trouxeram gado e muitos presentes e que ele mesmo não ganhou nada com a

•• especificas. Pude observar pelo menos duas delas, onde me senti um tanto quanto constrangido de participar.

••
95
O Sr. David criou muitas expectativas em relação a projetos, financiamentos, melhorias de vida, etc. (como
diversos indivíduos que por lá aparecem), sem contudo querer responsabilizar-se diretamente por qualquer
uma delas. Tentou em variados momentos me empurrar seus projetos salvadores, criando muitas vezes

•• situações indesejadas. Estava muito impressionado com a situação dos pobres índios. Espero que suas boas
intenções não se percam em sua única passagem entre os canelas .

•• 80

••
e
••
••
••
•• produção dessas imagens. Tentou explicar que o curador de filmes da Smithsonian não
ficou de acordo com ele e que o cinegrafista Schecter, que trabalhava para Smithsonian,

•• mas que naquele momento já tinha uma empresa própria, Schecter Film Inc., agiu como um
produtor e não como um etnógrafo e quis ganhar dinheiro com o filme 96 • E disse que eu,
•• como brasileiro, poderia abrir processo contra a National Geographic e Discovery Cbannel,

•• mas não que estivesse querendo incutir isso na minha cabeça.


Com certeza, uma das estratégias utilizada por Crocker em permanecer por tanto

•• tempo fazendo trabalho de campo com o mesmo grupo foi essa estratégia de se colocar
como estrangeiro e de não poder fazer muita coisa (em função até dos diversos agentes

•• sociais: fazendeiros, políticos, missionários, órgão indigenista etc.). Esta semelhança com

•• jari9 7, de certa forma, contrasta com as representações que os índios fazem dele, como
aquele que deve ajudar o índio .

•• Além do "ponto de vista do nativo", não ficou muito evidente, para mim, se
Crocker, como estrangeiro, preferia não se envolver na dinâmica sócio-política de sua

•• produção de conhecimento etnográfico, ou se essa era uma estratégia utilizada por ele para

•• não ter nunca a sua imagem envolvida em qualquer conflito e, dessa forma, poder
prosseguir com seu grande sonho: documentar o processo histórico das mudanças culturais

•• de um grupo indígena por mais de cem anos. O mesmo aconteceu em relação a uma de suas
pesquisas feitas no campo em 2003 - que será especificado mais à frente - a qual preferiu

•• não aprofundar, pois isso poderia trazer algum problema para ele .

•• Trazendo à discussão, mais uma vez, ao herói mítico Aukêê, seria interessante
notar, a título de comparação, que este também nunca está envolvido diretamente na ação,

•• não é ele o messias. Como descreve Melatti, ao comparar o movimento messiânico entre
krahô e Ramkokamekra,

•• (... ) convém notar que esses heróis não são tomados como messias
•• nos caso craô e canela e sim outros, não constantes de suas mitologias:

•• "Chuva", no primeiro caso; e a irmã de Auke, no segundo. Se a crença no


retomo do herói não constitui condição necessária desses movimentos, nem

•• 96
Crocker contou que no Congresso de Americanistas de?, Terence Turner o contestou muito por ter perdido

•• o controle sobre as imagens produzidas .


97
Peixe muito liso, difícil de segurar, cantado em cantigas do ritual de iniciação do Pep-jê.

•• 81

••
e
•• l
••
••
•• por isso deixaram de se apoiar num mito, a partir do qual foram elaboradas
suas doutrinas. Sem dúvida, o mito de Auke inspirou os dois movimentos,

•• ainda que não prometesse o retomo do herói. Convém notar, entretanto, que
este mito se formou estimulado pela situação de contato interétnico; desse

•• modo, o mito não seria apenas uma condição, mas uma primeira fase do

•• movimento (Melatti, 1972) .

•• "Pegando um gancho" com a análise de Melatti, talvez possamos fazer um esforço


de reflexão (sem pretensos exageros) e pensar que o relacionamento - o contato interétnico

•• - entre Crocker e os canelas pode estar associado a uma das condições do mito, ou seja,

•• liberar o herói de qualquer responsabilidade. A responsabilidade é do índio que não aceitou


a troca por ele estabelecida, a saber, uma nova identidade, baseada na condição de

•• civilizado, tal qual o mito é interpretado por eles .


Beato considera que seus "tios" ficaram muito passivos diante das contrapropostas

•• oferecidas por Crocker, até anos mais recentes. Numa clara releitura do mito, considera que

••
os mais velhos se acomodavam em receber (obrigatoriamente) provisões e equipamentos
dos kupen, sem se preocupar em caminhar com as próprias pernas. Por isso, agora almeja e

•• cobra de Crocker, como me informou, projetos que criem condições para eles se
autosustentarem .

•• Crocker (1990) utiliza o termo "begging" para demonstrar a crença dos canelas em
obter tudo de graça dos kupen. Este era para ele, "um modelo de comportamento cultural",

•• um "nivelador socioeconômico" que considerava uma grande desvantagem no começo de

•• sua pesquisa, pois era alvo de acusação caso não atendesse aos pedidos, sendo chamado por
eles de hõõtse (sovina). Este tipo de comportamento era, para este antropólogo, mais

•• agressivo entre os Apaniekra do que entre os Ramkokamekra, principalmente entre os


meses de setembro a dezembro (período de entressafra) e considerava que políticas

•• paternalistas, do SPI de Rondon, também ajudaram a criar expectativas semelhantes em

•• relação a sua pessoa. Neste livro, chegou a associar este "modelo de comportamento
aceitado culturalmente" diretamente ao mito (assim como, em sua tese de doutorado,

•• embora o faça por outros caminl10s não associados a este termo), proveniente da situação

••
•• 82

••
e
••
••
••
•• de contato interétnico, como disse Melatti. Todavia, ao mencionar esse mito na página do
Socioambiental, disse que

•• "ele [Aukêê] intimou os canela a escolher entre seu mundo,


•• representado pelo arco e a flecha, e o mundo dos brancos civilizados,

•• representado por uma arma de fogo. Os canela escolheram o arco e flecha e,


por conseguinte, uma posição subordinada no mundo dos brancos. Assim, os

•• sertanejos passaram a ter de ajudar os Canela e lhes dar tudo de graça. Em


troca, os canela devem respeito, deferência e obediência aos brancos. Esta é

•• a razão pela qual vários canela, hoje, ainda esperam receber alimento e

•• equipamentos de presente dos brasileiros citadinos, estrangeiros e ONGs, ao


invés de apelarem aos seus próprios esforços para a solução dos problemas

•• que enfrentam" (ISA, 2002) .

•• Tecendo uma relação com a reunião do final da tarde no pátio, a terceira deste dia,

•• Beato mesmo contestando uma nova postura de relacionamento entre kupen e melzim, não
consegue separá-la por completo de tais heranças. Assim que Franco e João Canso

•• terminaram suas colocações, onde tentavam alertar os indios sobre o contágio da AIDS,
sem no entanto atingirem seus objetivos, seja pelo distanciamento da questão, seja pela

•• pouca clareza dos discursos 98 , Beato pediu a palavra. Disse que estava feliz por eles
estarem ali, na reunião do pátio, junto às lideranças, discutindo os problemas com os índios,
•• se preocupando com eles, coisa que Dilamar (o antigo administrador) não fazia. Mas o que

•• estavam pedindo para os índios ajudá-los a tomar decisões isso era trabalho deles, era
responsabilidade deles, eles é que tinham que tomar conta dos índios, "a FUNAI que é

•• nossa mãe, nosso pai ( ... ) a responsabilidade é de vocês, vocês é que são responsável". Essa

•• 98
Logo após a reunião no PI-Canela, esses dois agentes me esclareceram que havia a suspeita de um caso de
AIDS entre os canelas, que estava para ser confirmado daqui a poucos dias pelo laboratório em Barra do
Corda. Estavam preocupados em como passar isso para os canelas e buscavam a participação de médicos,

•• antropólogos e pessoas envolvidas para lidar com esse delicado assunto. Esta preocupação se tornou latente
quando de seus discursos, que recaíram exclusivamente sobre a evitação total do relacionamento com os
brancos, seja dentro ou fora da aldeia, sem contudo especificar o entendimento na área da saúde. A palavra

•• '"problema" permeava assim todo e qualquer contato com o branco, partindo para discussões sobre o
distanciamento da FUNAI e suas políticas errôneas ao longo desses anos. Mas que havia como recuperar o
tempo perdido, através da participação deles nesse processo, de buscar um melhor entendimento do mundo do

••
•• 83

••
e
••

••
•• postura toma ambígua o relato há pouco descrito, como também reforça tanto a herança das

•• políticas indigenistas de anos anteriores, quanto a posição subordinada dos índios no


mundo dos brancos, à qual Crocker se referia. Este autor também menciona o poder de

•• subserviência, em 1960, dos Canela por conta da percepção da baixa posição política em

•• relação ao governo brasileiro .

•• "By 1960, lhe Canela saw lhemselves as being on lhe lowest rung of
lhe social and política! ladders oflhe Brazilian world. Their chief obeyed lhe

•• resident Indian Service agent, who obeyed the Barra do Corda agent, whose
line of aulhority proceeded up lhrough lhe Maranhão state service official,
•• lhrough lhe president of lhe Indian Service in Rio de Janeiro (or later

•• Brasília), to lhe President of Brazil. The Canela saw lhe arder as being
martial, which implied due obedience. As a result of lheir perceived low

•• status, Indian Service agents, backlanders, Barra do Corda residents, and


some large-city people simple walked into canela houses uninvited. They

•• would dominate lhe conversation and treat canela house owners as lesser

•• beings (bichos do mato: beasts of-lhe fores!). The outsiders assumed vast
superiority over lhe Canela, who accepted their subservient position

•• unquestioningly. In 1975, na enlightened Indian Service representative form


Brasília addressed lhe Canela in lheir circular plaza, reffering to lhem as

•• gente (people). A perceptive young Canela asked if Indians were really,

•• indeed, gente? Was not lhe representative mistaken? The man from Brasília,
Dr. N ey Land, then calmly presented lhe Canela with a new concept: lhat all

•• human beings, including Indians, are people" (Crocker, 1990: 17) .

•• Agora eles não são só "gente". São gente-participativas, que precisam deliberar,

••
para o órgão indigenista, políticas as quais não faziam, até então, parte de seu domínio, por
erro de ações indigenistas passadas, como disse o Sr. João Canso. Durante essa mesma

•• reunião, Agnaldo aproveitou o discurso de Beato para fortalecer ainda mais a posição deles
como os verdadeiros "amigos dos índios", em contraposição aos outros kupen que só

•• índio e suas reivindicações. É interessante notar, como uma reunião voltada para se discutir a AIDS toma mil

•• 84

••
•e
••
••
••
•• querem se aproveitar deles. Por isso, a necessidade de que atendam aos conselhos que
estavam dando. Para tanto, a participação deles era de fundamental importância, para

•• definirem as ações a serem tomadas .


Seguindo por esse caminho, Franco, em nome da comunidade, relatou novamente os

•• projetos para Crocker, acrescentando um outro, em função dos problemas relativos ao uso

•• (ou ao mando) dos cartões de aposentadoria. A idéia seria criar um galpão ou armazém na
aldeia, para atender a demanda de compra de alimentos, por parte daqueles que

•• movimentavam a economia atual no local. Quer dizer, queria que Crocker "bancasse" a
última etapa de um processo primeiro que seria articular a participação dos envolvidos, com

•• capacitação e esclarecimento sobre a melhor maneira de começar a produzir excedentes

•• para venda, etc .


Como era de se esperar, criou-se um burburinho muito grande na reunião. Crocker,

•• novamente, disse que, de imediato não teria como apoiar nenhum projeto, pelas
dificuldades encontradas em transações bancárias, e uma nova quantia só seria possível daí

•• a trinta dias, quando ele não estaria mais presente na aldeia. Afirmou, porém, que apoiaria o

•• projeto da padaria e os projetos de roça, pois eram mais visíveis para ele, mediante todos os
custos devidamente colocados em papel. Reiterou a participação de seu amigo David,

•• através da IAF, passando a palavra para que ele explicasse mais uma vez do que se tratava .
Em seguida, me chamaram para que explicasse novamente meu trabalho na aldeia e

•• quais eram minhas intenções. Expliquei que estava fazendo uma pesquisa sobre o

••
relacionamento deles com os antropólogos, mais especificamente com Crocker. E também,
como contraproposta, tentaria captar projetos que fossem relacionados a sua cultura

•• tradicional, no caso em questão a gravação de suas músicas rituais, com textos explicativos
bilíngües, de forma a servir como material educacional para a escola situada na própria

•• Aldeia Escalvado. Depois, chamaram Jonaton que falou sobre seu trabalho junto a Crocker
e, logo após, pediram a Edgar, outro personagem local, que tinha chegado há pouco na

•• aldeia, também se manifestasse .

•• Levantou-se, e sem maiores explicações, dirigiu-se a Crocker, em tom bem


agressivo, inquirindo-o "como e quando iria ajudar os índios na roça? que a fome tem

•• pressa!". Colocava-se, ora como índio, ora como funcionário da FUNAI, ora como "amigo

•• e urna configurações de estabelecimento da mesma estrutura de assistencialismo e manutenção de poder.

•• 85

••
e
•• ··1

••
••
•• dos índios", cobrando de Crocker uma participação rápida. Crocker, meio sem entender,
assustado, de certo, colocou mais uma vez o empecilho financeiro para agir

•• instantaneamente. Edgar, por sua vez, se posisionava como uma pessoa que ajudava os
índios no que podia, mas não tinha como ajudar todo mundo. Queria que Crocker pagasse o

•• "motonero" (que utiliza serra elétrica) para ajudar na "broca", uma vez que a FUNAI não

•• permitia o uso de serra elétrica pelos índios. Colocou-se à disposição para ficar dois dias
em cada roça para ajudar no que fosse preciso - qualquer semelhança populista era mera

•• coincidência. Entre risadas aqui e acolá, por parte dos participantes da reunião, introduziu
em seguida o assunto dos bois. Traria o gado naquela mesma hora, se assim o americano

•• quisesse, pelo preço de R$3,50 o quilo, por conta do óleo que gastaria para buscar os bois .

•• Pronto, estava armada a confusão. Criou-se nesse momento uma movimentação por
parte de todos, aumentando a pressão em torno de Crocker. Cheguei para perto dele; falava

•• para mim e para Jonaton que não queria fazer negócio com aquele homem que só estava ali
para explorar os índios. Sem pensar muito em quem explorava quem, entre todos aqueles

•• atores sociais, demonstrei meu apoio a ele, e disse que realmente não seria bom ceder a
pressão daquele senhor99 • Após muita confusão, ficou decidido que no amanhecer do outro
•• dia, Raimundo Nonato, atual vereador indígena, compraria os bois, em Fernando Falcão por

•• R$3,00 o quilo .
Procurei observar, nessa seção, as expectativas e os arranjos internos e externos à

•• aldeia, quando da chegada de Crocker. Essa configuraçao estabelece objetivamente, alguns


detalhes das características atuais do processo de relacionamento entre (e não só) Crocker e

•• os Ramkokamekra, configurado, sobretudo, ao jogo de exposições públicas das reuniões no

•• pátio da Aldeia Escalvado, e aos compromissos finnados. É importante perceber que as


tensões decmrentes dessas reuniões estão articuladas com o novo processo histórico ao qual

•• as sociedades indígenas brasileiras vêm-se defrontando, a saber: o novo lugar jurídico dos
povos indígenas no Direito Brasileiro. Palavras como associação, projetos, financiamento,

•• recursos, capacitação e outras ganharam complicadas dimensões, nem sempre positivas,

•• perpassando pela maioria dessas reuniões, justamente, por serem entendidas como de

•• 99
Edgar era chamado pelos índios de "patrão". Dias depois dessa reunião fiquei sabendo que além de ter a
posse de vários cartões de "perícia" e dos aposentados, era ele também quem gerenciava os "motoneros" que

•••
tanto queria que Crocker financiasse. Esse grande amigo dos índios, de vez em quando levava mercadorias
para vender na aldeia.

86

••
'-.,---•
••
••
••
•• grande importância para o futuro dos canelas e, em respeito às suas devidas diferenças -
como promulga a constituição de 88 - para tanto, ligando-se de alguma forma, aos

•• antropólogos que por lá chegam, estão ou estiveram.


Através das narrativas dos presentes, apresentei as diversas articulações necessárias
•• para a feitura do trabalho etnográfico. Minhas interpretações e seus limites devem ser

•• entendidos nesse processo de sobrevivência, aliado à institucionalização da sociedade


indígena perante as leis da sociedade nacional, porém não estando restritos a esses

•• contratos. Procnrei analisá-los conforme o posicionamento de cada um desses agentes em


uma situação etnográfica específica, quando possível, sob a perspectiva indígena do

•• relacionamento entre kupen e mehim, expresso pelo mito de Aukêê .

•• Com certeza, minha pesquisa não tinha alcançado essa dimensão até ter a sorte ou o
azar, não sei, de poder observar um etnógrafo trabalhando em campo. Sendo assim, não tive

•• como deixar de perceber os arranjos internos e externos de uma pesquisa que transcende a
relação com seus assistentes, dentre os quais muitos desempenham esse habitus por quase

•• 50 anos. Até então eu tinha conhecimento de "antropólogos como nativos", a partir da

•• produção final de suas pesquisas, ou seja, o texto etnográfico. Com Crocker, estou tendo a
possibilidade de fazer uma meta-prática etnográfica, no amplo sentido do termo

•• "campo" 1 ºº. Mesmo que esse campo não abarque a sua pesquisa como um todo, ela é
significativa em função de uma metodologia sistematicamente aplicada e apreendida que

•• emoldnra não somente uma faceta etnográfica, mas a produção de conhecimento da

•• "empresa Crocker" .

••
••
••
•• 100
Utilizo esse termo meta-prática etnográfica em contraposição a "metaetnografia", pois entendo que os
autores que utilizaram-na fizeram a partir da critica à literatura etnográfica. A minha intenção aqui é de

•• justamente trazer essa discussão diretamente para o campo, entendido em sua totalidade como bem informa
Vagner Gonçalves da Silva , onde o termo campo não se restringe especificamente ao trabalho de campo, mas
também engloba todo o processo de pesquisa, trabalho de campo e texto (silva, 2000:27) Entendendo que a

••
etnografia se faz no "estar lá" e no "estar aqui", parafraseando Geertz, tomo um ocasional encontro
etnográfico como caminhos da escrita antropológica .

•• 87

••
••
••
••
•• Observando Crocker observando
••
•• No livro O Antropólogo e sua Magia, Vagner Gonçalves da Silva, ao procurar
discutir a presença do antropólogo no campo, dedica um de seus capítulos à discussão da

•• questão de gênero em pesquisas etnográficas sobre as religiões afro-brasileiras,


especificamente, no candomblé. Este capítulo recebe o nome de "observando Alice

•• observando". A Alice em questão é a antropóloga americana Ruth Landes, quem, segundo

•• o autor, foi a primeira mulher a fazer pesquisa etnográfica em terreiros brasileiros, mais
especificamente na Bahia. A tensão resultante de sua condição de gênero e a de

•• pesquisadora foi descrita por essa antropóloga no livro A Cidade das Mulheres (1967),
onde relata que se sentia a própria "Alice no País das Maravilhas", num Brasil tropical e

•• provinciano, ou seja, uma estranha.

•• Ao nomear esta seção, parafraseando Silva, o faço a partir de duas premissas: na


primeira, não estarei discutindo a presença do antropólogo no campo, com outros

•• antropólogos e a partir de seus textos, através de um amplo "diálogo etnográfico". Mesmo


que também busque resgatar as relações cultivadas em campo pelo antropólogo, que são

•• teoricamente desvencilhadas, para se construir um modo objetivo de investigação. A

•• segunda, que seria mais uma complementação à primeira (mas que também marca a
distinção entre elas), reside na afirmação de que estarei realmente observando Crocker

•• observando. Por isso, como disse anteriormente, estarei realizando aqui uma etnografia de
uma etnografia, ou como anseiam os conceitos, uma meta-prática etnográfica - a despeito

•• de, quando possível, também me utilizar das descrições sobre seu relacionamento com o

•• grupo no qual realiza a pesquisa.

Colocando a questão nestes termos, ou seja, ampliando as indagações dos chamados

•• pós-modernos, principalmente aqueles que impulsionaram a coletânea Writing Culture,

•• sobre o processo de produção das representações antropológicas, viso especificar o trabalho


de campo de um sujeito ímpar para a história da etnografia indígena brasileira, que, por sua

•• vez, através de sua praxis, se liga à história da antropologia cultural e museográfica


americana .

••
•• 88

l•

••
••
••
•• No segundo dia após sua chegada, Crocker começou de fato a reunir seu conselho
de assistentes de pesquisa. Desde o princípio, mostrou-se muito solícito e aberto aos meus

•• interesses, prontificou-se a marcar horários para entrevistas após suas reuniões de trabalho,
assim como em me deixar assisti-las, sem mesmo precisar pedir de antemão permissão para

•• essas atividades. Dizia que gostaria de deixar tudo muito claro para mim e qualquer dúvida

•• era só procurá-lo. Fiquei surpreso por tamanha cordialidade, mas ao longo de minha
convivência com ele pude notar as reservas que tinha em relação a minha pesquisa, ao

•• colocá-lo como "nativo". Mencionou, por exemplo, em nossa primeira entrevista a


improbidade de querer crescer na carreira antropológica através da critica acirrada a

•• antropólogos, citando como exemplo, as críticas à obra de Margaret Mead. Também não

•• me permitiu gravá-lo com receio de que eu viesse a descontextualizar trechos das


entrevistas e, desse modo, ele poderia ficar mais à vontade para responder às questões por

•• mim formuladas .
Havia programado minha saída da aldeia, mais ou menos, no período em que

•• Crocker chegou. Poucos dias antes, me recuperava de uma grave infecção intestinal (meu

••
diagnóstico) que me deixou em contato, por sete dias, com toda sorte de curandeirices dos
canelas (algum dia escreverei sobre este acontecimento) e fez aproximar-me do kruinõ (que

•• me perdoem todos os não-essencialistas e dexotizantes da antropologia - meu nome de


batismo), pela atenção dispensada 24 horas por minha família adotiva. Como não poderia

•• deixar de acompanhar o dia-a-dia desse antropólogo na aldeia, contei mais uma vez com a
ajuda e compreensão de minha família adotiva, uma vez que não tinha mais nenhum tostão

•• furado e já estava endividado até a alma. As provisões estavam restritas, em decorrência de

•• minha família nuclear não ter-se dedicado ao plantio na roça, pois estavam na cidade; além
do mais ela só dispunha de um genro para ajudar nas tarefas diárias .

•• Consegui permanecer por mais 18 dias na aldeia, após a chegada de Crocker,


acompanhando de perto sua pesquisa, até sua festa de aniversário que finalizou meus

•• últimos dois dias na Aldeia Escalvado, em grande festa 101 • Seu cronograma era de dois

•• meses de permanência na aldeia, o que me impedia estruturalmente de acompanhá-lo


integralmente. Sendo assim, a narrativa aqui pretendida apesar de não se basear na

••
••
101
Crocker completou seus 80 anos na aldeia, onde foi realizada uma grande festa em sua homenagem .
Obviamente, que as provisões alimentares e gastos extras foram patrocinadas por ele .

•• 89

..••
,.,,...
••
••
••
•• totalidade da estada deste antropólogo na aldeia apresenta importantes contribuições para a
etnografia de um ritual antropológico .

•• O trabalho de campo de Crocker, em 2003, tinha por objetivo realizar cmco


pesquisas, entre as quais, classificadas por ele, de três "pesquisinhas" e duas "pesquisas

•• maiores". Seriam elas:

•• 1. Vingança

•• 2. Relação económica
3. Ampliação dos verbetes on-line da página da Socioambiental

•• 4. "Types" ("estudo sociológico de tipos de vida")

••
5. Estórias

•• O conselho de assistentes-in, como já foi descrito, é um grupo maleável e sua


fluidez está diretamente ligada às categorias propostas à análise. Por exemplo, Crocker, no

•• primeiro dia de trabalho, esclarece para todos os seus assistentes, daquele dia, o que vai
trabalhar com eles durante sua permanência na aldeia~ vide a lista das pesquisas acima - e

•• explica o porquê ou o quê pretende de cada uma das pesquisas, para formular categorias

•• que atendam às suas especificações. A partir das categorias 102 , formuladas com seus
assistentes, recolhe exemplos que as contemplem e, desses exemplos, são escolhidos outros

•• assistentes, que representariam uma espécie de tipo ideal da categoria requerida, o qual
especificaria detalhadamente o caso em questão. Seu interesse principal, como me

•• informou, residia na quarta pesquisa, por se tratar de um convite para a publicação, em

•• colaboração com sua esposa, de um artigo 103 em um livro de antologias (não cheguei a
anotar o nome) a ser entregue até o dia primeiro de dezembro. Também, por este assunto

•• ser um dado novo para ele, chamou para formar esse grupo, os três novos jovens diaristas
escolhidos, Ângelo, Eduardo e Fabiana.

•• 102
O conceito de categoria foi muito difundido por Mauss, enquanto um modo de se totalizar todos os

•• princípios de significação. No caso, Crocker parece utilizar-se do mesmo conceito, para também explorar as
diversas significações,enquanto dimensões fisiológica, psicológica, política, social, cultural, cosmológica,
moral, etc que os relatos podem fornecer. No entanto, sua construção da lógica do discurso nativo se

•• aproxima mais dos precursores da antropologia simbólica ou cognitiva: Goodenough e Schneider .


103
Definiu este artigo, como uma extensão de seu último livro (um "pós-capítulo"), publicado em 1994 e com
reedição em 2003 (no livro existe um erro tipográfico, que apresenta a reedição como sendo de 2004),

••
•• 90

••
•• -
••
••
•• Em anos anteriores, o processo de escolha de seus diaristas, aqueles cujo trabalho
residia em escrever sobre as atividades cotidianas da aldeia e a sua própria, era realizado

•• sob a batuta da ortodoxia do conhecimento escrito e da capacidade crítica em descrevê-la .


Sendo assim, testava a capacidade individual que cada um tinha em escrever,

•• primeiramente em português, desenvolver as idéias, e ser responsável para executar este

•• trabalho com afinco. Também estava em análise a relação social do individuo com o grupo,
a saber: não beber bebida alcoólica, ter um compromisso social com a sua aldeia, não

•• gostar de mentir, entregar todo mês os "diários nativos" ao seu homem de confiança na
cidade de Barra do Corda 104. O cacique Severo dá uma pista sobre como entende o processo

•• de seleção de Crocker, e mais ainda de como entende a noção de "assistente de pesquisa" .

•• Eu: Você tem algum outro trabalho aqui? Você trabalha para a FUNAI

•• ou outros trabalhos?
Severo: Eu não me faço ... eu não sou colaborador da FUNAI, eu não

•• sou contratado, mas eu trabalho para uma pessoa lá dos Estado Unidos,
chamado William Crocker. Sou ajudante dele. Faço um pesquisa, parte de

•• pesquisa, sabe?

•• Eu: Quantos anos você já faz?


Severo: Eu tô com mais de vinte anos que eu trabalho pra ele .

•• Eu: Bastante tempo .


Severo: É, bastante tempo .

•••
Eu: E por que você acha que ele te escolheu para trabalhar?
Severo: Bom! Ele me escolheu que talvez que ele achou até eu ... , que o

•• sentimento dele sentiu a minha sentido que fez bom pra eu apresentar pra ele, aí
ele fez, viu pra ser ajudante dele. Porque uma pessoa que serve pra uma outra,

•• ele deve procurar também ajudar, sabe? Assim foi que ele fez comigo, porque
sempre eu sou um cara que não gosta de violência, eu sou um cara que também

•• chamado The Canela: Bounding Through Ritual, Kinship and Sex, onde o divide com sua esposa Jean

•• Crocker.
104
Este homem, chamado Júlio Álvares Tavares, faz a intermediação entre Crocker e seus assistentes. É ele
quem fornece e recolhe os materiais destinados à pesquisa e os envia para Crocker nos EUA, assim como

•• efetua o pagamento dos mesmos. Anteriormente, até o final dos anos 70, Crocker possuía outro homem de
confiança que nunca lhe cobrou nada para fazer este serviço. Segundo ele, o Sr. Jaldo era um homem muito
rico e afeito às descobertas científicas- era farmacêutico .

•• 91

••

r•
••
• ••
•• não gosta de boato, sou um cara tarobém que quando falo, falo mesmo, eu sou
um cara que não anda desviado, sabe? Eu sou um cara que tarobém não anda

•• mentindo, eu não gosto de pessoa de mentirosa não, não sabe? Entre do que eu,
o meu professor mandar em mim .. ., eu não gosto de tá pulando na frente de

•• meus coordenador, sabe? Alias, é!? Uma coisa assim. Sou uma pessoa de

•• confiança, eu me cumpro, que quando você me mandar eu faço do teu jeito, eu


faço aqueles trabalho que você me manda, então, eu tenho que andar pra onde

•• você me colocou. Aí, tem que andar do jeito que você me mandou. Por isso que
William Crocker acharam que .. ., eu não sou muito honestidade mas, eu sou

•• pessoa que gosto de atender, sabe? 105

•• Para a seleção daqueles três jovens ao "diary program", Crocker me informou que,

•• pela primeira vez, por não conhecer bem a juventude da aldeia, realizou uma bateria de
testes, algo em tomo de dez páginas entre vinte e sete candidatos 106, quando esteve por lá

•• em 2001. os testes consistiam na explicação por escrito do por quê querer participar do

••
prograroa? Qual o interesse em tomar-se um membro do prograroa? Dez foram
selecionados e tiveram que passar por outro teste, onde escreveram cinco páginas,

•• explicando o que tinharo feito naquele dia. Ao final escolheu Ângelo Cararopei, Eduardo e
Fabiana ("neta" de Raimundo Roberto), que não participou da primeira seleção, mas foi

•• incorporada ao segundo teste por aconselhamento 107.


Crocker estabeleceu uma rotina ao "work group" que lembra o dia-a-dia de qualquer
•• funcionário público. De segunda a sábado das 8:00 às 17:00 hs, com intervalo de uma hora

•• a uma hora e meia para almoço 108 • Em função dessa carga trabalhista, por exemplo, não tive

•• 105
Entrevista realizada no dia 31/07/03. Esse trecho da entrevista também reforça alguns aspectos da análise
do capítulo anterior sobre a questão da mentira nos depoimentos e sobre as representações da categoria

•• "patrão" .
106
Segundo ele, não esperava um número tão alto de candidatos, nem tampouco serem todos jovens, quando
anunciou esse teste no pátio. Contudo, em sua carta me dizia que selecionou esses novos diaristas para "to

••
cover points ofview ofthe young''.
107
Ao longo das entrevistas, Crocker deixou escapar algumas vezes que pesou na escolha um sentimento de
justiça, principalmente, no caso do Carampei, que foi o "ator" principal de um dos três filmes exibidos no

••
Discovery Channel e National Geographic, onde é enfocada sua trajetória de criança à vida adulta .
108
Vale lembrar que os "diaristas'', que compõem o '\vork group", necessariamente não são os mesmos
diaristas que fazem parte do "Diary Program". Dificilmente trabalham a semana toda, em função da mudança

••
dos mesmos a partir das categorias propostas e tambér.i pelo compromisso desses assistentes em outras
atividades, seja para com sua farrúlia, seja para com a aldeia, seja para com outros trabalhos, como a FUNAI,

•• 92

••
••
••
••
•• a oportunidade de entrevistar os assistentes de Crocker, quando ele estava em campo, uma
vez que, os assistentes, quando saiam do trabalho, estavam cansados e não muito dispostos

•• a passar por semelhante processo; ou, quando não estavam participando das reuniões
tinham que ir para a roça, pois era a época da "broca" (uma das etapas que antecede o

•• plantio), que exige um grande empenho e deslocamento da família; ou ainda, quando

•• possivelmente se encontravam na aldeia, eu estava acompanhando o trabalho do conselho


de assistentes. Nesse período, consegui realizar somente duas entrevistas, com um pouco de

•• insistência, sem contudo chegar ao objetivo pretendido, em razão das circunstâncias de


campo - que, nesse caso, configurava-se na presença constante de membros da equipe de

•• Crocker, como David 109 •

•• Neste primeiro dia, na parte da manhã, participaram do "work group": Crocker,


obviamente, Jonaton Júnior - seu bolsista brasileiro - David, Beato, Juliana, Fabiana e eu .

•• Estes ajudavam Crocker a formular categorias que fossem "tipos representativos" de certos
"estilos de vida" existente entre eles e apontar indivíduos que se encaixassem neste perfil.

•• Então, foram formuladas, neste dia, oito categorias:

•• I. "Homem que fez roça e agora foi estudar"

•• II. "Homem que estuda e nunca fez roça"


III. "Mulheres que estudam na faixa de 16 a 20 anos"

•• IV. "Mulher que não estuda, não é casada, mas apoia o parente que estuda"
V. "Esposas dos estudantes"

•• VI. "Estudantes que tem emprego"

•• VII. "Homens abaixo de 15 e mulheres abaixo de 13 que estudam na cidade"


VIII. "Mulheres solteiras sem atividade na cidade"

•• Como podemos perceber, todas essas categorias são relativas a atividades extra-

•• aldeia, ou seja, fica claro que pretendem observar a expansão dos Ramkokamekra para a

•• FUNASA, escola etc. i'v!uitas vezes trabalhavam em meio expediente, ao preço de R$10,00 e R$15,00

••
expediente completo .
109 Hoje percebo que poderia ter explorado melhor este aspecto, em notar o discurso deles na presença de

pessoas ligadas a Crocker. !vfas, naquele momento, me sentia pouco à vontade em realizar semelhante tarefa .

••
Com certeza é mais fácil pensarmos no que poderia ser feito quando se "estar aqui" do que quando se "estar
lá" .

•• 93

~

••
••
••
•• cidade e seus novos "estilos de vida" - o que também servirá de ap010 para sua
"pesquisinha" de número 2 - em virtude do deslocamento dos jovens para a cidade em

•• busca da educação formal brasileira. Cheguei a contestar algumas vezes com ele a categoria
"types", de forma a repassar mais claramente o que queria para seu grupo - estava

• •• realmente fazendo urna observação-participante - visto a confusão inicial. Porém Crocker


parece ter formulado urna didática muito interessante, pois, apesar de seus objetivos serem

•• expostos em português, e paradoxalmente, encontrar ainda certas dificuldades de tradução,


ti
a corno o que quena · dºizer com "types nl!O , exernp ]ºfi . -
1 ica certas s1tuaçoes e pessoas

•• passadas, na língua canela, para reforçar o entendimento. Além do mais, parece contar
sempre com uma espécie de orientador indígena. Grosso modo, se fosse levar a acepção

•• trabalhista ao pé da letra, diria que entre os assistentes existe um especialista nativo ("group

•• organizer"), que não se relaciona diretamente a encargos hierárquicos, mas sim à


capacidade de entendimento e interlocução entre pesquisador e pesquisados. Isso ficou bem

•• evidente na leitura de seus textos (atél990) com Raimundo Roberto e, agora em campo,
com Raimundo Beato, cujo treinamento para se tomar um especialista-assistente se diferiu

•• do assistente anterior (retomarei a este ponto mais à frente) .

•• Ficou acertado, neste momento, que só iriam aprofundar esta pesquisa sobre
"types'', nos próximos dias. De fato, ele a retornou logo após finalizar a pesquisa sobre

•• vingança. Cronologicamente, isso ocorreu em meu último dia observando Crocker


observando. Nele, Crocker começou a formular perguntas para os estudantes, em tópicos de

•• parentesco, grau escolar, funcionalidade da educação, lugar da cultura, etc. Notem que a

•• formulação das perguntas era instigada por Crocker a seus assistentes. Procurava extrair
deles perguntas que ligassem os estudantes a sua cultura corno, por exemplo: que serviço

•• pensa em fazer na aldeia depois? Corno ajudará o povo no caminho melhor? (perguntas
feita por Juliana); será que um dia largará de seu povo para ficar na cidade grande?

•• (Crocker); se tivesse estudos da 6ª a 8ª série na aldeia preferiria estudar aqui ou na cidade?


Acredito que seja através da formulação deste questionário, a ser respondido pelos "tipos-
•• ideais", que considera esta pesquisa um "estudo sociológico de tipos de vida" .

••
•• 1
'°Semelhante prática foi adotada por Margareth Mead, que segundo Clifford (1998:28), a partir de suas
práticas de pesquisa, curtas e sem maiores aprofundamentos da língua nativa, focava seus estudos sobre
"infância" e "personalidade", como um funcionamento de "tipos" para uma síntese cultural.

•• 94

••
•.
••
••
••
•• A questão dos estudantes era bem polêmica, pois inevitavelmente elas remetiam a
situaçao dos índios aos problemas sociais oriundos de qualquer cidade: contato com álcool,

•• violência, prostituição e outras mazelas. Por não poder acompanhar esta pesquisa, não sei
como Crocker se posicionou diante desses problemas, visto sua maleabilidade a questões de

•• enfrentamento. Em todo caso, fica notório seu fôlego em continuar percebendo as

•• mudanças culturais dos Ramkokamekra .


Como corolário, diacrõnico, procurava sempre fazer as pesqmsas respeitando a

•• organização social do povo canela e apoiando-se na importância da tradição oral pelos mais
velhos. Marcelino, seu primeiro assistente, por exemplo, acompanhou por diversos dias as

•• reuniões, sem contudo estar participando diretamente do foco privilegiado das pesquisas
que propunha Crocker. Segundo ele, a presença de Marcelino funcionava mais como um
•• articulador entre o passado e o presente, para facilitação do processo de análise, e como

•• forma de respeito a ele, por tantos anos de dedicação as suas pesquisas. Ao iniciar a
segunda pesquisa (relação económica), começou perguntando ao Marcelino como era

•• escoada a produção para os kupen quando era moço 111 e, ao longo da narrativa desse
assistente, ele ia fornecendo categorias das relações comerciais daquela época, para os mais
•• novos fornecerem a ele categorias atuais, comparando sempre passado e presente - foco

•• privilegiado de análise - através do resgate da memória e fortalecimento do debate .


Para mim, essa prática era muito interessante, visto que surgiam muitas questões

•• que eu só vim a saber por estar participando do seu conselho de assistentes. Informações
como: a relação dos antigos encarregados do posto e os chefes da aldeia com os períodos de

•• fartura ou fome; os movimentos messiânicos 112; os atuais problemas referente às festas, em

•• contraposição aos períodos de roça, que segundo Beato, começaram quando Pedro

•• 111
No final dos anos 40, segundo Crocker, a economia canela tornou-se deficiente, dependendo de apoio
externo para se manter. Os canelas passaram a depender significativamente dos alimentos fornecidos pela

•••
agência indigenista e praticar o sistema de "meia" com os moradores, trabalhando em suas terras para ficar
com metade da produção. No inicio de 1990, no entanto, as roças passaram a suprir alimento suficiente para
sua sobrevivência, sem necessidade do sistema de parcerias, que encaravam como experiência humilhante
(com a implementação de projetos ajudados pelo próprio Crocker). Eles continuam, no entanto, a sofrer de
"meia fome" durante os magros meses que vão de setembro a dezembro. As roças começam a produzir em

•• janeiro, encerrando o estado de meia-fome, e o ápice da produção se dá com a colheita de arroz no mês de
maio.
112
Crocker me disse durante essa conversa que houve três outros casos de messianismo. Em 80 com

•• Raimundo Roberto e em 84 com i'vlirandinha. Em 99 houve um "messianismo contrârion, buscando a tradição


com o mesmo Raimundo Roberto, que tinha sonhado com a sogra dizendo que era para ele liderar seu povo
para que eles não acabassem .

•• 95

••

••
••
••
•• Gregório perdeu a força de chefe, porque foi confrontado, levando os prókãm mã a não
organizar direito as festas e colocar como me capõn caté índios muito jovens,

•• enfraquecendo muito os Canela; foi desse tempo também que foi criado o cargo de
"major" por Pedro Gregório. Enfim, em se tratando de ter um antropólogo como nativo

•• foram diversas as vantagens que tive no entendimento dos metanativos. Crocker, de vez em

•• quando, parava para me ensinar a linguística canela, relação de etnômios, diferenças


dialetais entre os Apaniekra e Ramkokamekra. Por fim, era para mim também uma aula .

•• Essa segunda pesquisa Crocker deixou ao encargo de Jonaton e Tep-hot, David e


Severo. Consistia em uma série de perguntas formuladas na reunião com os assistentes,

•• tentando "entender a economia atual da aldeia". Ressaltou o cuidado que deveriam ter para

•• que não desconfiassem que estava fazendo uma investigação, pois não era essa sua
intenção. Tentei formular perguntas (com o apoio de David) junto ao grupo, mas Crocker

•• preferiu abolir perguntas referente à posse dos cartões de aposentadoria e "pericia",


temendo represálias a sua permanência na aldeia. Jonaton, no entanto, me contou que

•• muitos índios falavam para ele com quem estavam os cartões mesmo sem perguntar.
Interessante, que essa pesquisa também se apoiava em questionários, mas Crocker não a
•• considerava um "estudo sociológico", possivelmente, em função da presença dos chefes de

•• "setores de roça", participando das sessões de trabalho (descrito a seguir) .


Mais uma vez Crocker se valia do entendimento do sistema cultural canela e

•• organizou essas entrevistas de acordo com a circulação das metades na aldeia. Assim, Tep-
hot pertencente da metade harãncatejé circularia no sentido leste-oeste e Severo, da metade

•• kheycatejé, circularia pelo sentido inverso 113 , conforme o deslocamento tradicional dessas

•• metades na aldeia. Este tipo de prática que a principio pode ser pensada como um exagero
ou mesmo exotismo reforçava a ligação dele com os índios canela pelo reconhecimento das

•• tradições deste povo. O que de fato, para os canelas ultrapassa o simbolismo das relações e
atinge uma pertença de grupo .

•• Após a formulação das categorias para a "pesquisinha atual"- aposentadoria,

•• perícia, pensões, salários, auxílio maternidade, bolsa escola e vale gás - e das perguntas a
serem realizadas em todas as casas, pelo grupo de Jonaton, Crocker buscou por

•• informações a respeito dos "setores de roça'', para saber se alguma produção foi vendida

••
•• 96

••
••
••
••
•• durante a última colheita. Ainda sobre a primeira parte, chegou a me convidar para
participar de fato da pesquisa, como um de seus auxiliares, digamos assim, mas agradeci o

•• convite e preferi ficar apenas observando. Foram levantados sete setores entre maiores e
menores, o que corresponde ao número de famílias envolvidas, e seus chefes' 14• São eles:

••
•• Setores de roça
Pac-re (Aldeia Velha)
Chefe
Raimundo Roberto
••• Wôôkrô (Aldeinha)
Ken cuà-re (Gaierinho)
Mirandinha
Zé Pedro Preto

•• Cô pahke-ti (Dois Riacho)


Hii põ-re (Lagoinha) Aristides

•• Capra jatui-re (Estaleiro)

•• Roh tik-re (Sussuarana)

•• Cada um desses chefes foi chamado para participar do grupo de trabalho. Pude
acompanhar somente os relatos de Raimundo Roberto e Aristides, ambos seus diaristas que

•• mencionavam possíveis vendas ou trocas da produção de seus setores. O primeiro contou

•• que nunca vendeu, nem arroz, nem farinha, nem nada para os kupen, só para os índios que
precisavam; mesmo assim, trocava mais do que vendia
115
• Vendeu foi "manaíba" (talo da

•• mandioca), oito carrada por R$640,00 e uma carga de burro por R$20,00, no portão de
Aldeia Velha - uma das entradas da T.I Kanela - para o pessoal das localidades próximas

•• de Bacuri, Buriti e Brejinho. Depois revelou que vendeu mais sete cargas de burro, mas que

••
não era ele que levava para vender, era os kupen que vinham comprar, e que Tomazinho
vendeu mais quatro cargas de burro e quatro sacos de farinha a R$20,00 cada, entre

•• novembro e dezembro de 2002. Durante essa conversa Raimundo se queixava da invasão


do gado dos fazendeiros na terra indígena e disse que, possivelmente, foi o próprio vereador

•• 113
Para a análise dos prefixos das metades canela, ver Nimuendajú e Lowie (1937); Crocker (1958, 1962,

•• 1978, 1990) .
11 4
Os espaços em branco do quadro, significam que os nomes dos chefes de setores não foram formulados
enquanto acompanhava a pesquisa.

••
115
Raimundo Roberto possui em sua casa na Aldeia Escalvado, uma espécie de armazém, onde vende ou
troca arroz, farinha, bala , chiclete, biscoito, chocolate, açúcar, sal, cigarro, etc. É considerado por muitos na
aldeia como um homem rico.

•• 97

••
•.
••
••
••
•• Raimundo Nonato, que é da aldeia e diarista de Crocker, quem deu a ordem para botarem o
gado lá dentro. Dizia ele que o gado do kupen estava destruindo suas roças e que deu um

•• aviso para o fazendeiro : "ou você cuida de tirar o gado ou a bala come, ou você come a
bala" .

•• Muitas vezes durante essas reuniões afloravam as tensões internas, os atritos e as

•• divergências entre eles mesmos. Raimundo Roberto queixava-se a todo o momento das
lideranças atuais que nada faziam pelo povo: "tá todo mundo calado, todo mundo fraco" .

•• Num sentido mais amplo, quando a pesquisa de número 1 for descrita, veremos que mesmo
em se tratando de casos antigos, relacionados a "categorias êmicas de vingança",

•• apareceram muitos outros conflitos e o meio pelo qual são resolvidos internamente nos dias

•• de hoje .
Aristides nada vendeu nem trocou na produção de seu setor, contudo vendeu 20.000

•• kg de "fava danta" (cuhcà ti-hy) compradas da comunidade por R$0,15 e vendidas em


Fernando Falcão por R$0,20, onde, por sua vez, eram revendidas a empresa farmacêutica

•• Merk. O transporte utilizado foi o próprio caminhão da comunidade - doado pelos alemães
quando fizeram pesquisa na aldeia nos anos 90 - sendo ele mesmo o motorista, profissão

•• • para a qual é contratado pela FUNAI. Quando estive na aldeia em 200 l , eles já vendiam
essa espécie de leguminosa para os kupen de Fernando Falcão. No entanto, os últimos

•• vinham buscar a fava na aldeia, e mais a trocavam por outros produtos do que compravam.
No dia em que o caminhão ia buscar o montante, levavam carne, cigarro, bala, açúcar, café

•• e, para variar, cachaça escondida (apesar da proibição dos prókãm mã), como meio de

••
troca. O preço da fava naquela época também era de R$0,20 o quilo .
Dificilmente um canela desmente ou interfere no discurso de outro, principalmente

•• quando dirigido a um kupen; então, era interessante observar que ali naquele "work group",
que muitas vezes lembrava uma terapia de grupo ou mesmo um confessionário - termo

•• utilizado por Crocker, quando perguntado sobre a dimensão dos gravadores para seus
assistentes, principalmente por Raimundo Roberto - essas interferências eram mais fluidas .

•• Não sei se a palavra certa seria interferência, talvez fosse mais propício falar em

-· • adequações, visando o entendimento do antropólogo, sobretudo por parte de Beato. E,


particularmente nesta pesquisa sobre vingança, onde eram lembrados "casos" para a

•• formação de categorias e, a partir dessas categorias, fornecerem exemplos concernentes a

•• 98

••
•..
••
••
••
•• elas, assuntos teoricamente esquecidos voltavam à tona para aquele grupo . Um dos
participantes, quando da discussão sobre vinganças atuais em relações extras conjugais 11 6,

•• colocou em público, pela primeira vez, segundo ele, que presenciou sua mulher com outro
homem. Disse que ficou muito nervoso, mas não se vingou agressivamente, preferiu fazer

•• resguardo grande e correr muito de tora pesada, para mostrar a ela que era melhor que ele .

•• A principio, não queria dizer quem era o índio, uma vez que continuava seu amigo e era
parente de Juliana (uma das assistentes de pesquisa). Então, ela poderia achar que ele tava

•• guardando coisa ruim na cabeça sobre ele, daí falaria para a pessoa em questão e esse
começaria a pensar coisa ruim também. Mas, ao final acabou revelando quem era .

•• As categorias formuladas atendiam a um passado recente, como também a um

•• passado longínquo; no entanto, tinham a intenção de perceber a estrutura narrativa atual.


Marcelino, como já foi mencionado, era o principal responsável para a formulação de

•• exemplos antigos de algumas categorias. Até onde acompanhei a pesquisa, foram


selecionadas cinco categorias das quais apenas a última não tive a oportunidade de

•• participar. São elas:

•• I. Brincadeira

•• II.
III.
Vingança de malícia (dentro da lei)
Vingança de malícia (contra lei)

•• IV.
V.
Morte
(não cheguei a anotar esta categoria)

••
•• Marcelino mais uma vez introduziu os exemplos sobre tipos de vingança através de
contos passados. Narrou cerca de seis estórias que continham algum tipo de vingança

•• como, por exemplo, a do guerreiro Krowti que viu sua aldeia se apartar por conta de uma
briga; aí Krowti cresceu brabo e guerreiro e sempre que outros índios dessa aldeia

•• apareciam ele matava. Até que ele matou um cantador famoso e suas duas irmãs ficaram

•• muito triste, e resolveram se entregar para Krowti também matá-las. Quando elas foram se

••
116Crocker escreveu alguns artigos sobre o relacionamento extra-conjugal dos canelas ( 1962, l 964a,
197 1a, 1971 b , I 984a). Segundo ele, até os anos 60 era muito comum esse tipo de relação entre eles, mas em
função do contato com os regionais,missionários e igreja, de uma forma geral, vêm perdendo esse costume.

••
Muitos índios mais velhos se queixavam comigo que hoje os jovens não seguem mais as leis dos
primeiro, onde não tinha o problema de namorar com a mulher de seu ikwzõ (amigo informal) .

•• 99

••
••
••
••
•• entregar para Krowti, os tios da irmãs do cantador o mataram. Daí a aldeia se juntou
novamente (versão simplificada) .

•• Apesar de Crocker ter interesse nas estórias passadas, utilizava essas narrativas no
intuito de ambientar o grupo e, então, procurar por exemplos que levassem em

•• consideração as categorias. Porém, se examinarmos o artigo "Estórias das Épocas de Pré e

•• Pós-Pacificaçao dos Ramkókamekra e Apãniekra-Canelas ", veremos que o pesquisador já


reforçava a tese de que fatos históricos podem ser encontrado em mitos e contos, a partir de

•• outras fontes, tal qual a "estrutura cognitiva" e "outras evidências complementares". Propõe
a correlação de duas categorias, a "histórica" e a "etno-conceitual", pela relação com a

•• "realidade objetiva" e a "reconstituição do que é acreditado pelo povo", na oralidade .

•• Assim, indo atrás das estruturas cognitivas, o exercício do grupo passava a ser a
formulação de exemplos que contemplassem pessoas daquela aldeia, que houvessem se

•• acometido de vingança, não entre mehim e kupen, ou vice-versa, mas entre os "índio
próprio" (como dizia o caricato Preu). Beato disse a ele que brigas internas não existem

•• mais, por causa do kupen, adversário forte com quem precisam se preocupar 1n Crocker,

••
então, mencionava as brigas de casal e corno isso era resolvido antigamente e ainda como
lidam com esse problema hoje. Para isso, lembra de chefes anteriores e casos que

•• presenciou, em que o chefe não era chamado para questões não resolvidas entre famílias .
Marcelino intercede contando que antigamente os índios novos dormiam escondido com a

•• índia até o dia em que resolvia se casar, aí depois da reunião do pátio, quando todos iam
para casa ele ficava sozinho no pátio e logo mais ia para casa da mulher. Aí todos sabiam

•• que tinha casado; caso houvesse algum problema eram os tios deles quem resolviam, o

•• conselho dos gueireiros não se metia; Depois da pacificação trocaram annas por
conselhos. Crocker acredita que os horários das reuniões do pátio, matinal e vespertino, se

•• deve ao período de guerras intertríbais .


Passamos o dia todo em discussões sobre como os índios canelas se referem a tipos

•• específicos de vingança, sem contudo Crocker conseguir qualquer exemplo significativo

•••
sobre esse assunto. Diversas suposições foram colocadas, sobretudo por Beato, que colocou

117
É uma narrativa comum dizer que os canelas não são de briga, que todos vivem em paz, mas a questão não
é bem assim. Apesar de possuírem uma coesão interna muito grande, até para se protegerem das ameaças dos

•• kupen, como disse Beato, sempre existem tensões internas envolvendo até violência física, mesmo que não se
queira falar nelas. Presenciei algumas situações, em função do consumo excessivo de álcool, mas certamente
só foi possível por mim escutar esses relatos acompanhando as '\vork group sessions" .

•• 100

••

••
••
••
•• a educação, aos moldes do "branco", como o grande responsável pela diminuição de
brincadeiras de mau gosto; que hoje não existe mais o respeito do hapin (amigo formal) não

•• poder passar o outro na corrida de tora, assim como do mehõnpahhi.

•• Crocker aproveitava as conversas que fugiam ao seu propósito para ir relatando-me


quais eram seus interesses naquela pesquisa. Dizia ele, que ela não estava sendo feita a

•• partir de seu próprio pensamento e sua preocupação residia em como outros antropólogos a
analisariam. Mais de uma vez especificou isso para mim, colocando que sua inquietação era

•• com o leitor, aquele que possivelmente o criticaria por não estar relacionando uma ou outra
categoria nas suas descrições - preocupação marcada pelas minúcias da constituição de um

•• todo. Dessa forma, ao pensar em descrever a vingança entre os canelas teria que buscar

•• todos os tipos de vingança pelos quais os índios se defrontam em seu dia-a-dia. Esta
pesquisa, em especial, já havia sido abordada por ele, em parte, no filme "Mending Ways"

•• de 1998, e em um congresso no Chile, onde se comprometeu com os presentes em explorar


mais essa questão - chegou a consultar anotações feitas neste congresso, durante a

•• pesquisa, para saber se estava alcançando todos os objetivos formulados naquela reunião. É

•• nesse sentido, suponho eu, que ele classificou suas pesquisas em "pesquisinhas" e
"pesquisas grandes'', onde essa última terá uma repercussão acadêmica. Nota-se que existe

•• uma tensão muito grande por parte de Crocker sobre aquilo que ele vai colecionar,
deixando a cargo de futuras gerações, e aquilo que ele vai botar na roda, ou seja, a

•• publicação de textos. Disse-me que já estava cansado desses congressos e que só retornaria

•• a frequentá-los caso fosse uma ocasião muito especial (lembremos que Crocker completou
80 anos na aldeia) .

•• Seguindo ainda seus comentários, me perguntou se eu saberia lhe informar qual a


diferença entre pensamento ético e pensamento êmico. Não sei por que, mas me lembrei na

•• hora, do tão debatido artigo de Geertz, chamado "Do ponto de vista dos nativos", no qual,

•••
ao discorrer sobre o desvelamento do "semicamaleão'', Malinowski, após a publicação do A
Diary in the Strict Sense of the Term, relembra o conceito do psicanalista Heinz Kobut
sobre "experiência-próxima" e "experiência-distante", para exemplificar essa questão e

•• aproveitar para mostrar o seu sarcasmo sobre tais distinções, pois o que importava mesmo
era "descobrir que diabos que eles acham que estão fazendo" (Geertz, 1997: 87-89). No

•• entanto, respondi a Crocker que não sabia do que se tratava, de forma a ouvir suas

•• 101

••

••
••
••
•••
categorias êmicas de pensamento. Me respondeu que o pensamento ético é o do
antropólogo quando acha que é uma coisa, por seu próprio caminho, e o pensamento êmico
é o do próprio índio, por isso privilegia o pensamento êmico em suas análises. Esse tipo de

•• pensamento foi muito discutido por Goodenough e Schneider, considerados os precursores

•• da antropologia simbólica ou cognitiva. A descrição de uma cultura em termos "emics", na


qual se poderia apreender uma cultura através de sua língua foi o que motivou as reflexões

•• de Goodenough (1957, 1970), na tentativa de formular uma ciência geral da cultura .


Schneider (1977), por sua vez, propôs outra relação para com os símbolos e os significados,

•• que não se reduzisse aos silogismos da crença de um povo. Seu interesse recaiu em uma

•• metalinguagem (Wagner reformulará esses conceito, pela abordagem da metáfora - em seu


sentido cultural 118), propondo uma equivalência entre crença e cultura. É interessante que

•• Crocker, apesar de estar dentro desse contexto, em nenhum momento se refere a qualquer
um desses autores em seus textos .

•• Continuou a me relatar que é preciso estar há muito tempo em um grupo indígena

••
(mesmo que seja para não subjetivar esse pensamento no texto). Aproveitou para me alertar
que é preciso estudar muito estas distinções, antes de completar o mestrado. Quis mostrar

-~·
• nesse comentário, de forma delicada suponho, sua preocupação anterior sobre eu ser muito
jovem e, portanto, com pouca experiência para falar de seu trabalho.

•• Este tipo de conduta me faz, agora (ao escrever), retomar o cognitivista, mas anti-
empirista, Sperber (sem, contudo, ter alguma ligação com este antropólogo), ao encontrar

•• um ponto positivo no trabalho de Malinowski - em sua crítica contundente a este autor, e

•• particularmente na união entre etnografia e antropologia - e associar seu comentário à


postura epistêmica de Crocker. Dizia ele,

•• (... ) que há de inovador no trabalho de Malinowski é o ideal que

•• proclama: cortar com a sociedade européia, viver na sociedade indígena

•• apenas com o objectivo de aprender a conhecê-la, observar a vida social


participando nela tão intimamente quanto possível e tanto tempo quanto

•• necessário, estudá-la sobre todos os seus aspectos, sem esquecer os mais


triviais, sem perder uma oportunidade para recolher dados de qualquer

•• 118
Para uma interessante exegese desses autores, ver Gonçalves (1990) .

•• 102

••

••
••
••
•• espécie, enfim, procurar, acima de tudo, apreender o ponto de vista dos
indígenas e compreender a sua visão do seu mundo (Sperber, 1992:14) .

•• Voltando ao campo, antes que me lembrasse, mais uma vez, das ironias do velho

•• Geertz, seu conterrâneo, Crocker retoma seus trabalhos rendendo-se a ética, contando casos

•• de Nimuendajú, para aflorar os pensamentos êmicos de seu grupo e, assim, "levar a cabo
seus objetivos científicos, filosóficos, ou práticos" (Geertz, 1997: 88). Apesar de nesse dia

•• seu conselho de assistentes de pesquisa não ter progredido muito nos exemplos, já estavam
ali encaminhadas, as bases das discussões a serem desenvolvidas. Dois dias depois, durante

•• a reunião com seu grupo, antes que eu saísse (estava me sentindo mal e com febre), Crocker

•• me informou sobre seus métodos (parecia estar achando importante descrevê-los para
mim). Já havia observado-os, com restrições, mas para efeito de interpretação nada melhor

•• que ouvir dele (êmicamente). Crodker utiliza três vias de cadernos de campo, onde, na
primeira são escritos apenas os dados crus, dos primeiros relatos livres; a segunda

•• desenvolve esses dados com a explicação mais detalhada dos exemplos das categorias; por

•• último, ao fim do dia, quando possível, grava suas idéias a respeito dos exemplos
descri tos 119 •

•• Neste mesmo dia, o grupo começou a fornecer as narrativas que lhe interessava.
Hawpúu contou (após a explanação de Crocker de como se dava a deliberação dos

•• problemas da aldeia à época de Nimuendajú e mesmo antes dele) que a resolução dos
problemas intra e extra familiar se dava pelo me capõn catê, diferindo de hoje, quando tudo

•• é resolvido no pátio, e que agora surgiram punições com dinheiro, como por exemplo, o

•• caso do neto de Raimundo Roberto que puxou o outro da bicicleta, machucando-o. Os tios
matemos de cada um dos envolvidos se entenderam mediante o pagamento de R$ 250,00,

•• por parte de quem causou a ação. Este exemplo foi muito discutido pelos participantes, a
pedido de Crocker, para que ele entendesse todo o processo (todos os exemplos são

••• exaustivamente discutidos até que se tenha certeza de seu entendimento. Às vezes tinha a
impressão de que demorava muito a entender, mas possivelmente fazia parte de suas

•• técnicas de pesquisa: uma etnografia da busca de narrativas produzindo significado) .

•• 119
Crocker ( 1990) descreve sistematicamente todos os materiais utilizados em campo, até 1979, desde o tipo
de papel e caneta, utilizado nas primeiras viagens, até os gravadores, fitas, câmeras, filmes e máquinas
fotográficas .

•• 103

••

••
••
••
•• Com este exemplo, Raimundo Roberto foi convidado por Crocker para participar
da reunião seguinte, a se realizar no outro dia. Lá, ele explicou a situação e corno teve que

•• apartar a briga mediante o pagamento. Uma estória complicada, pois criava uns bois e
então ficou acertado pagar com um boi, mas um membro da outra família já estava
•• devendo a ele uma parte do pagamento de um boi anterior, só que não se importaram e

•• sem seu consentimento pegaram, mataram e comeram seu boi. Durante todo seu
depoimento, mais urna vez, Raimundo reclamava, para Crocker, da perda de identidade

•• indígena de seu povo 120 • Aproveitou também para dizer que hoje quando um homem vê o
outro com sua mulher ele cobra dele urna quantia em dinheiro, diferentemente dos tempos

•• passados. Mas isso é vingança? Perguntava Crocker.

•• A busca de indicadores e símbolos nas narrativas corno transmissores de


significados era por Crocker muito bem articulada e metodicamente explorada. A

•• serniologia grupal que desempenhava era primeiramente bem dissecada em português,


desenvolvendo os fatores significativos da ação e reação do evento (no caso, entendimento

•• ou não das partes). Após essa sistematização - enaltecida pela teoria da ação - feita não

•• apenas em uma sessão, mas ao longo de várias delas, ele buscava as expressões nativas do
confronto, ou do sentimento do confronto. Como ele mesmo me disse, na língua canela

•• existe urna única palavra para "n" situações, necessitando-se entender o contexto em que
ela é dita. Já havia dedicado-se intensivamente a diversos aspectos do sistema cultural

•• canela, tais corno língua, cultura material, socialização, demografia, parentesco, religião,
festas. Faltava aprofundar os modelos cognitivos, "organizing principie of the Canela
•• sociocultural system", pois, caso contrário, não estaria fazendo justiça a seu objeto, a sua

•• pesquisa ou a profissão da antropologia (Crocker, 1990:322) .


A idéia de um mecanismo causal, criando uma conexão de sentido pela densidade

•• dos signos e rede de significados, parece aproximar Crocker da antropologia cognitiva


(através do significado atribuído pelos nativos ao sistema classificatório), notadarnente por

•• influências Weberianas (sem, contudo, serem afirmadas), do qual Geertz também se

•• aproxima, só que menos pela hermética (da antropologia cognitiva) e mais pela
hermenêutica, o que não chega a ser as preferências declaradas, digamos assim, de Crocker.

•• 120
Era comum ouvir na aldeia o discurso ambíguo de que os índios estavam perdendo a identidade por estar

•• andando na aldeia vestidos com blusa. Ao mesmo tempo reclamavam da condição social do índio que não
tinha roupa para vestir. Ambigüidade ou estratégia?

•• 104

••
e
••
••
••
•••
Contudo, os dois antropólogos se aproximam pelo viés da semiótica - à luz do saber local,
principalmente, se tomarmos como caminhos comparativos a citação de Geertz em "A Arte
como um Sistema Cultural". Diz ele:

••
•• O que desejamos é que os poderes analíticos da teoria semiótica -
sejam esses os de Peirce, Saussure, Lévi-Strauss, ou Goodman - não sejam

•• utilizados em uma investigação de indicadores abstratos, e sim no tipo de


investigação que os examine em seu habitat natural - o universo cotidiano

•• em que os seres humanos olham, nomeiam, escutam e fazem (Geertz, 1997:

••
179) .

•• Mesmo me parecendo que lhe interessava mais o significado e não o significante, tal
qual Geertz e diferentemente de Lévi-Strauss, durante uma de nossas entrevistas lhe

•• perguntei a respeito do que achava do Estruturalismo, particularmente no tocante à

••
Linguística, e quais as consequências dessa corrente em seu modo de conduzir as pesquisas .
Limitou-se a mencionar que considerava o Estruturalismo muito fechado à História - "não

•• consegue observar as mudanças ao longo do tempo". Nesse caso parece aproximar-se de


Sahlins, onde o interesse não é o sentido, mas o sentido na prática (simbólica), processando

•• o acontecimento pela estrutura e pensando a diferença da ação por essa estrutura, onde se
destaca não mais a permanência, mas sim, a mudança (Sahlins, 1981). Não consegui

•• aprofundar esse ponto com ele, mas disse que tinha a intenção de fazer um trabalho

•• parecido com o do Buell Quain121 , que se suicidou entre os Krahô, todavia não foi possível
devido às diferenças entre os grupos .

•• Apesar do fato de sua resposta não atender a minha pergunta, longe do que possa
parecer, é altamente significativo, para as discussões que se colocam, ter o antropólogo

•• como nativo. Se, conjuntamente, estou tomando como "objeto" o antropólogo e os canelas,

•• sobretudo os assistentes de pesquisa do primeiro, poderia eu separar os discursos dos


nativos, ou seja, tirar a intencionalidade do discurso do nativo antropólogo, uma vez que,

• •• 121
Crocker ao falar sobre seu aprendizado da língua canela relata que "Olive Shell (1952) reconstructed a
posthumous grarnmar left by Buell Quain, but it contains a considerable numbre ofunresolved fieldwork

•• altematives, \Vich make it difficult to study. ln addition, the level ofits presentation is elementary"(Crocker,
1990: 36) .

•• 105

••
r •
••
••
•• como preconizava Goody ( 1977), o que pode ser escrito não é o que pode ser falado, sem

•• fazer o mesmo com o nativo indígena? Se tomasse a separação radical entre natureza e
cultura - como pretende Bourdieu, Geertz, o próprio Crocker, e outros - valendo-me da

•• diferença epistemólogica entre o regime discursivo do observador e o discurso do

•• observado, tomando como base que, "do ponto de vista do nativo", existe uma
diferenciação cientifica e ontológica, como pensar essa relação, sendo o nativo

•• (antropólogo) também produtor de conhecimento? Como, então, processar a obtenção de


conhecimento, através de uma dinâmica de perguntas e respostas, onde o meu intuito é

•• observar Crocker observando?

••
A primeira coisa que merece ser dita é que eu não estava formulando perguntas que
atendessem a respostas desejáveis ou concretas - deixo isso a cargo dos racionalistas. Em

•• decorrência disso, e as outras premissas se constróem a partir dela, estava sendo difícil para
mim, em campo articular a relação que Crocker desenvolvia com seus assistentes (o que

•• mais me importava até o momento de nosso encontro) com seus pressupostos


epistemológicos, fato que somente ao escrever esta dissertação pude me dar conta com mais

•• facilidade. Mesmo assim, tentei tecer o máximo possível de suas influências e condutas

•• antropológicas, a partir do que percebia na participação de suas sessões de trabalho, por


exemplo, naquilo que diz respeito à formação pedagógica e à totalização dos princípios de

•• significação das narrativas de seus assistentes. Todavia, acredito que, durante as conversas,
não consegui dar continuidade à linha metodológica que pretendia, por razões sutis de

•• minhas técnicas de obtenção de conhecimento .

•• Com os meus nativos indígenas - que me perdoe o Geertz pela.figura de linguagem


ocasional - utilizei o gravador, como fonte primordial de coleta de dados. Com Crocker

•• isso não foi possível, uma vez que o mesmo não me autorizou gravar as entrevistas. Uma
outra dificuldade foi formular questões para quem eu não esperava encontrar. Mesmo que

•• não tivesse organizado uma espécie de questionário, para conversar com seus assistentes, já

•• tinha algumas informações necessárias para um melhor aproveitamento em campo, e, com


Crocker, isso não foi possível - não pretendo aqui me redimir, antes informar as condições

•• metafisicas da pesquisa.
Além do mais, não tive como tecer muitas relações epistêmicas, uma vez que ele se

•• considerava afastado da academia. Sua posição como "pesquisador-curador" o distinguia da

•• 106

••
•e
·••
••
••
•• carreira académica, expressa pela vinculação a departamentos e linhas de pesqmsa
estabelecidas. Desconhecia - pelo menos assim se colocava - as discussões em antropologia

•• dos principais antropólogos americanos pós-modernos, notadamente aqueles que


encabeçaram o Writting Culture (James Clifford, George Marcus, e outros), por exemplo .

•• Disse-me que à época de sua formação, nos anos 50, em Stanford e Winsconsin, a

•• Antropologia não tinha objetividade, não era considerada ciência, a subjetividade entrava
em tudo; era, portanto, a "antropologia como arte" - o que de fato retoma a história da

•• própria etnografia, não só nos EUA, com em França, sobretudo, em se tratando de


pesquisas para o Trocadéro e Musée de l'Homme 122 . Talvez, por isso, procurasse objetivá-

•• la, como ele mesmo disse, pelas influências de Kroeber, Benedict, e, principalmente,

•• Margaret Mead .
Para tanto, a pesquisa sobre vingança apesar de ter sido a que por mais tempo

•• acompanhei, não foi por mim observada em sua totalidade, o que, certamente, para
Crocker, já deve estar condenada ou quem sabe faltando muitos elos de ligação. O que

•• também é uma verdade. Contudo, minha pretensão aqui não é atingir nenhuma totalidade

•• das pesquisas realizadas, pois, se assim o quisesse, teria que ter, pelo menos, mais duas
reencarnações como antropólogo, para dar conta de todo o material etnográfico que

•• Crocker obteve em 4 7 anos de trabalho de campo. Acredito já ser grande minha pretensão
de discutir o fazer etnográfico, pautado num caso específico de um relacionamento

••• etnográfico .
Em meu último dia, acompanhando a pesqmsa de número 4, Crocker já tinha

•• • levantado algumas expressões nativas sobre vingança e procurava entender a diferença


entre elas. Para isso, retomava os exemplos (casos), devidamente anotados nas sessões
anteriores, para saber qual expressão nativa se adequava ao caso examinado. Assim,

•• confrontava expressões de confronto e vingança mais brandas e mais corriqueiras, como,

•••
hah pan xã nã, com outras que resolveriam a reação vingativa, como m-e te capa (agrado),
ou m-e hamrõ xà (pagamento), no intuito de buscar outros sentidos à expressão. Em amji
mã apa, disse que eu poderia notar pelos exemplos, que eram usados tanto para

••••
brincadeiras entre ikunõ, como para vingança a outras tribos; portanto, era preciso entender
o contexto .

•• 122
Para ver a relação entre arte e ciência no período entre guerras na França, Clifford (1998:132-178). Para

-·•• 107

~1
. ~
••
••
••
•• Crocker dedicou boa parte do tempo de suas pesquisas, nos anos 50, 60, e 70, mas
principalmente nas duas primeiras décadas, a estudar os processos de socialização dos

•• canelas. Além de suas observações, tomadas possíveis graças ao convívio intra-familiar


com as suas duas famílias adotivas (Ponto e Baixão Preto), realizou extensas discussões

•• com seus assistentes, que cobriam o "field of socialization" (Ibid, 157), considerando que

•• uma das vantagens em se estudar as "family lines" se deu pela característica dos canelas de
não serem "migratory hunting and gathering people" (Ibid, 29). Assim, em uma pesquisa de

•• longo tempo, poderia acompanhar o processo de amadurecimento das crianças à vida


adulta, e estes gerando novas crianças, o que realmente fez (o filme "Mending Ways",assim

•• como, um dos três filmes da série vendida para o Discorery e National Geographic

•• acompanhavam o processo de socialização de uma criança até a vida adulta). A criança


como paradigma do "outro", acompanha há bastante tempo, as abordagens antropológicas .

•• Nesse sentido, Crocker parece estar em consonância com o relativismo cultural, onde
"Mead (1928) and Benedict (1938) both employed children and youth in an argument in

•• favor of privileging the influence of culture over biology. Hence less adolescent stress and

•• more altruistic (nurturant-responsible) behavioral were to be found in 'others cultures' than


in the competitive and egoistic (self-seeking) West (Rapport and Overing, 2000:29) .

•• De fato, Crocker, ao discutir as "Forces of Socialization'', tema de um sub-capítulo


sobre Organização Social (1990), dividiu a análise em três grupos de idade: crianças,

•• adolescentes e adultos e procurou analisar o lugar das "'forces' (that is, the outside
influences, pressures, and facilities) that (!) restrict or discipline (i.e., limit), (2) reward or
•• positively motivate (i.e., attract), or (3) activate or help (i.e., equip) the individual to

•• develop in the socially desirable pattems. Thus, I see the individual moving through life
reacting to (1) the restricting and restraining forces, (2) the facilitating and rewarding

•·- pressures, and (3) the aids provided and her or his own personal abilities. Reality is more
complex. This simplifícation was adopted for heuristic purposes (Crocker, 1990: 156) .

•• Em meio a essas discussões, e após o esclarecimento de que as crianças já nascem

•• com suas "personalidades imanentes" (mas não o comportamento, que é construído, ao


invés de ser dado), em outro sub-capítulo, "Psychological "polarities", Values, and

••
•• relação entre teorias antropológicas e museus, ver Gonçalves (1995, 2001) .

•• 108

••
r••
••
••
•• Behavioral Orientations" , descobriu que seus assistentes costumavam responder a suas
questões por meio de "paired" (suas aspas) opostos .

•• My research assistants and 1 also found that besides conspicuous

•• paired oppositions, there are also conspicuous paired polarities that are

•• "complementary" in their relation ship to each other (Crocker, 1990:184) .

•• A pesquisa que estava fazendo sobre vmgança parece se ap01ar bastante nesta
descoberta participativa sobre "valued orientations", com suas complementaridades ou

•• polaridades opostas. E, mais ainda, no amadurecimento dessas questões com seus

•• assistentes, na busca por "unique expressions reflecting deep and basic cognitive patterns",
realizadas em 78 e 79. Nesta pesquisa, Crocker pôde ir além do dualismo tradicionalmente

•• mencionado na literatura antropológica e descobrir triades 123 , onde debruçou boa parte de
seus esforços no capítulo que considera o mais importante, por tratar de seu interesse pelas

•• "categorias êmicas de pensamento", intitulado "Canela Structural Patterns". Por isso,

••
alertou-me na reunião com seus assistentes, sobre o contexto, uma vez que um determinado
número de expressões "change from opposition to complementary with a change in their

•• context" (ibid, 326). Nesse sentido, parece se aproximar mais uma vez de Geertz (1989,
2001 ), pois, para ele, o fenômeno é posicional, depende do contexto. O fenômeno é relativo

•• ao seu contexto
É importante registrar que a história diacrônica dos canelas, que Crocker tanto

•• procura demonstrar, está em simultaneidade com suas percepções sobre as representações

•• que os mesmos, ou seus assistentes, fazem sobre seu sistema sociocultural, assim como o
entendimento, cada vez maior de seu grupo (conselho de assistentes), em relatar para ele o

•• seu próprio modus vivendi. A primeira pessoa do singular aparece em sua descrição,
basicamente como o norteador do processo de pesquisa; o "nós" liga-se ao amadurecimento

•• epistêmico do par pesquisador-pesquisados, e daí, então, retorna ao 'T', responsável pela

•• construção da narrativa. As representações de seus assistentes não ficam relegadas a notas

•• 123
O modelo de triades se liga à pesquisa sobre vingança pois, para Crocker, pode servir para resolver
situações de distúrbios na comunidade. Para o autor, "their festivals and social forms reflect this compelling

,. ••
need through triads instead of dualities, because triads as a pattern, especially in the modifying configurations,
make the resolution ofproblems more feasible and likely" (ibid, 337) .

, ..•
109


~•
••
••
••
•• de pé de página ou prefácios, até porque raramente são nomeadas, contudo " ... os
assistentes de pesquisa... " aparecem corno participantes daquilo a que se propôs estudar, a

•• saber: a mudança cultural, expresso pelo próprio processo cognitivo de seus assistentes, em
tornar seus relatos metodologicamente apreensíveis. Coloca em diversos momentos de sua

•• monografia o crescimento intelectual de seus assistentes de pesquisa, principalmente

•• Raimundo Roberto, não só pelo trabalho de traduções do "diary program", mas também
pelo trabalho particular de formação desses assistentes - tese confirmada em nossas

•• conversas, onde declarava os pontos positivos por ter proporcionado esta "evolução" a eles .
Sobre a pesquisa de modelos cognitivos escrevia:

••
•• With our council of research assistants, Kaapêl and J explored the
Canela versions of many \Vestem concepts and their related expressions,

•• such as duty, obligation, free will, chance, probability, degrees of certainty,


space, time, cosrnology, sou!, seasons, years, infinity, human beginnings and

•• endings, and perceptual ordering of certain sociocultural sectors. None of

•• these concepts were completely articulators for any research assistant, so


they had to be debated in detail, sometimes for days. I found my self

•• interested in retuming again and again, however, to the study of the


perceptual structuring of sociocultural sectors (ibid, 322; grifo meu) .

••
•• Neste trecho, Crocker divide com Kaapeluk sua "autoridade etnográfica", através
"do interesse compartilhado pelos símbolos tradicionais (ocidentais primeiramente), as

•• etimologias e os significados esotéricos" (Clifford, 1998:51; interdição minha) e, mais


especificamente, o empreendimento pedagógico de seus assistentes - Muchona (Turner,

•• 1967) aqui começa a ganhar um concorrente à altura. Ainda sobre o dualismo, menciona
que exemplos eram facilmente identificados por seus assistentes, alguns deles já haviam

•• sido até discutidos porNimuendajú (1946:84), entretanto:

•• (... ) the paired Canela items that are "traditional" and, therefore,

•• articulatory are relatively few. The study of the items that research assistants
could articulate in these early stages of the study would not take the scholar

••
•• 110

A
••
••
••

•• very far into lhe structuring of lhe various "sociocultural sectors" .

• ••
Consequently, for lhis sort of study to be of significance, it was necessary to
work wilh groups of research assistants until lhey could articulate lhe

••
principies behind the traditional examples very easily. The next step was to
apply lhese principies to olher sociocultural sectors, looking for pairings of

•• bolh lhe complementary and lhe oppositional kinds .


At first, this kind of research ran strongly against lhe feelings of the

•• younger Kaapêltllk because I had trained him to give me only traditional


information (mam m-e nkêtyê m-e nkaakaa tsà khôt: early pi. uncle lheir

•• brealh thing following: according to lhe ancestors' beliefs), lhat is, what lhe

•• Canela "folk" do say lheir ancestors did say about specific topics. He
objected, strongly insisting lhat I was asking him for material lhat was not

•• traditional and lherefore not correct (i?khay-nã) from his ancestors' point of
view. I told him lhat we still were using his ancestors' ancient principies, if

•• not what lhey said, but lhat now we were applying these sarne principies to

•• other topics lhat had not been talked about by lhem. I further explained that
because we were using lheir principies, these new materiais were just as

•• much in keeping wilh his ancestors' way of "brealhing" as lhe old materiais .
He accepted lhis explanation and helped teach lhe procedure to the olher

•• research assistants (Crocker, 1990:324) .

•• Depois de todo um longo processo vivido por Crocker para apreender o modelo

•• cognitivo canela e, por sua vez, pelo fato de ter empreendido um semelhante processo
apreensível por seus assistentes em relatá-lo, é que torna possível obter "lhe deep meanings

•• and ranges of lhe semantic fields of almost any Canela expression" (ibid, 322). Me parece,

••
entretanto, que ainda hoje Crocker está à procura de como se processam essas expressões,
pelo fato de seu ambicioso projeto basear-se na história da estrutura cognitiva, pela

•• mudança cultural. Seu empenho nesta empreitada é tão acentuado que nunca estabelece
"definitive presentations", uma vez que, se pensar como Sahlins, em Historical lvfetaphors

•• e lvfythical Realities (1981 ), onde a história é organizada por estruturas de significação, e


tomar ao pé da letra o questionamento de como a reprodução de uma estrutura torna-se a

••
•• 111

••
r; .-· -·~"'''""f/:.~~~·7~~~··~';i>~·<:;.,...'-"'.c'"i9J@'-"'''~%9S17'·ê*I"";$i ~ZJ4kh~'.1'.[~itt'T'';>,";'.'?'~'··~··1
••
••
•• sua transformação, podemos pensar que procura fazer o avesso da crítica de Crapanzano

•• (1986a) à descrição etnográfica. Para este autor, "the ethnographer does not reconize the
provisional nature of his presentations" .

•• Assim, William Crocker passeia pela roda viva das representações (modelos
cognitivos) Ramkokamekra e da antropologia até os dias de hoje .

••
••
••
••
••
••
•••
••
••
••
-·•• •
•••
••
••
•• 112


~
••
••
••
•••
Considerações finais

O texto etnográfico, como representação do campo e das relações que nele se dão, pode ser, portanto,

•• menos o resultado ''final'' de uma pesquisa, e mais um meio para a melhor compreensão dos valores do outro,
considerando o fato de que estes valores são interpretados por alguém que também não se despe de seus

•• próprios valores e subjetividades, e fala para terceiros, desconhecidos, de modo generalizante, ainda que
"cuidadosamente". Quem escreve, sobre o quê, e para quem, são os principais elementos de uma etnografia

•• que considere os aspectos visíveis e invisíveis do trabalho antropológico e seu papel de crítica cultural.
Vagner Gonçalves da Silva (2000:183-184) .

•• A proposta de descrever um particular relacionamento etnográfico por uma

•• totalização do termo campo foi um exercício antropológico que suscitou um grande


estranhamento para todos envolvidos nesse processo. A mim, primeiramente, por ter que
•• estar o tempo todo refletindo sobre minhas práticas e minha escrita, no momento em que

•• proponho "observar Crocker observando", entrando no


(meta)conceitos. A julgar pelos meus limites quanto às dimensões que compreende um
perigoso terreno dos

•• relacionamento etnográfico e a complexa relação dessa situação para a academia, acredito


que meu esforço foi no sentido, já proposto por Silva (2000), de ampliar o diálogo entre

•• pesquisador e pesquisados, a respeito da própria pesquisa etnográfica. Entenda-se nesse

•• caso, a etnografia Jê .
Em relação a William Crocker, a não autorização para gravar nossas entrevistas já

•• fala por si, o que ele presumia de minhas intenções. Contudo, mostrou-se sempre muito
sensível a meus questionamentos e a minha participação, junto a seu conselho de

•• assistentes. Estes, por sua vez, me colocavar.:i no campo de suas representações, conforme

•• seus interesses particulares, a saber: ajudar na execução de projetos culturais. Em outro


sentido, viam com desconfiança o fato de eu estar acompanhando o trabalho de Crocker e

•• realizando entrevistas com ele .


As entrevistas com esses assistentes, futuramente, ainda podem ampliar a idéia

•• substantiva do arquivo de "crônicas pessoais", mostrada aqui, pelo fato desses indivíduos

•• terem gravado para Crocker o que eu estava fazendo na aldeia. O registro de suas atividades
cotidianas contém, certamente, não só a minha passagem, como a de diversos agentes

••
•• 113

1 •
••
4i,
••
••
•• sociais que por lá estiveram. Nesse sentido, a intenção da prática de arquivos proposta por

•• Crocker pode vir a ganhar vida, enquanto caminhos possíveis de pesquisa.


A dimensão desses relatos, em relação à profusão das narrativas, possui um

•• atenuante que reside na posição da estrutura social de quem fala. Os "chefes" cerimoniais e


políticos têm maior credibilidade para falar o que quiserem, enquanto detentores de um

•• "atuar", legitimado pelo próprio conselho prókãm mã, atual ou passado, dependendo da
formação de sua classe de idade. É justamente no sentido de atuar em prol de seu grupo que

•• • deve ser entendida a participação desses indivíduos no trabalho de Crocker (principalmente


os assistentes-out), e não somente pelas escolhas desse antropólogo. Disso resultam as
estratégias particulares de cada sujeito na execução de suas atividades, que por sua vez

•• ligam-se ao caráter de atualização da tradição, visto por perspectivas diferentes entre

•• pesquisador e pesquisados. Grosso modo, talvez, o primeiro interessado mais na "perda"


(passado) e os outros mais interessados no "ganho" (futuro) .

•• A articulação entre esses domínios foi mais bem percebida quando Crocker chegou
na aldeia. A experiência de acompanhar um antropólogo em suas atividades diárias foi

•• extremamente reveladora, não só pela observação das estratégias particulares entre os

•• agentes sociais envolvidos e as alianças feitas para tornar possível a transmissão de


conhecimento, como pela oportunidade de acompanhar uma metodologia sistematicamente

•• apreendida. Não menos interessante foi perceber como se articulam as representações que
os "assistentes de pesquisa" fazem do seu trabalho .

•• Descrever como o antropólogo trabalha, contribui também para entendermos como

••
se modelavam as pesquisas com os grupos Jê, principalmente pelo viés da antropologia
cultural (cognitiva) americana. Esta particular situação etnográfica m.otivou, assim, um

•• instigante repensar de cânones antropológicos. Principalmente, através da relação de pensar


o "nativo", no sentido de sua significação (pensamento e ação). Ser um aprendiz de

•• antropólogo, neste duplo sentido apresentado, pode ser considerado um ponto positivo para
pensar sobre a equivalência entre antropologia e etnografia.
•• Reconheço, tal qual Peirano (1997), que realizar "histórias teóricas" tem o intuito

•• de iluminar dados etnográficos novos, sem que se desconheçam os paradigmas que


acompanham a disciplina. Certamente, esse foi o intuito nesta dissertação. Fisher (1992)

•• colocou muito bem que o trabalho de Crocker precisa ser entendido dentro de urna tradição

•• 114

••
. •
'---
A
r•
r, •
••
••
•• da "ethnology of native Americans", da qual Nimuendajú e Lowie se destacavam. E diria
mais ainda: foram de suma importância para o desenvolvimento da etnografia no Brasil.

•• Considerando que Nimuendajú não é um etnógrafo comum, assim como Crocker também
não, de muito vale para as pesquisas etnográficas descrever aquilo que se perde entre a

•• abordagem metodológica e a apresentação de seus dados. Assim, estou de acordo que o

•• trabalho do antropólogo exige que os procedimentos sobre o entendimento das sociedades e


sobre o "outro'', sejam explicitados e criticados pela reflexão teórica e pela pesquisa de

•• campo (Barbosa, 2003) .


As maneiras de estabelecer uma conversação entre descrição e relacionamento

•• etnográfico indicam possibilidades de como essas ligações podem ser construídas. A ênfase

••
na retórica e no estilo, colocadas, sobretudo no primeiro capítulo, antes de esquecer o
motivo principal do empreendimento: o de conhecer o outro da maneira mais fiel possível

•• (Roth, 1989 [cf. Lagrou, 1994a]), pelo contrário, teve a intenção de reforçá-lo. Como
discutir relacionamento etnográfico sem discutir seus textos? Se etnografia se faz no "estar

•• lá" e no "estar aqui'', como descrever o trabalho de um antropólogo sem levar em

••
consideração esses dois domínios? Sem dúvida, pude entender melhor a organização e a
complicada elaboração do primeiro livro de Crocker, pelo fato de ter acompanhado seus

•• métodos de pesquisa e concluir que suas descrições são muito fiéis a sua prática de
pesquisa, justamente pelo que se propõe: documentar uma cultura indígena pela mudança,

•• principalmente por meio de "lifeways" .


Dessa forma, segui a trajetória de seus assistentes tentando perceber como esse

•• processo se engendrava para ambos sujeitos. A passagem de uma cultura ágrafa,

•• intimamente ligada à oralidade, para a escrita foi importante tanto para pesquisador, quanto
para pesquisados que viram neste processo meios para a atualização de seus interesses. Para

•• tanto, nota-se a grande seriedade desses diferentes agentes, na realização de seus trabalhos .
É evidente que esse empenho está relacionado à ordem de significado para a qual distintas

•• visões de mundo se intercruzam. O mito de Aukêê é um bom exemplo de como se articula

•• essa ordem de significado pela idéia de "culturas aparentemente partilhadas" (Oliveira,


1999). Crocker buscava totalizar a significação das experiências indígenas pelo paradoxo

•• tradição-modernidade para compor um paradigma de aculturação. No entanto, acredito não


ter conseguido formular muito bem esse quadro em função da não homogeneização dos

••
•• 115



1:•
••
•• canelas na perspectiva da "aculturação". Talvez, por isso, a necessidade de tantos anos de

•• pesqmsa .
Dimensionar, à guisa de conclusão, o prazer, os limites, acertos e erros que tive em

•• realizar esta pesquisa está longe de se tomar uma tarefa fácil, visto a complexidade das
relações criadas nesse processo. Tentei, ao longo deste trabalho, descrever um encontro
•• etnográfico sob o ponto de vista de seu próprio relacionamento. Os caminhos e as escolhas

•• que tomaram esse relacionamento observável devem ser entendidos como resultados de
processos sociais, ou seja, de disputas entre pessoas, grupos e agentes sociais, em

•• momentos distintos. Assim, meu interesse reside tanto em "corno trabalha o antropólogo'',
quanto em "corno escreve o antropólogo" .

•• Wa ha ma apu mõ.

••
••
••
••
••
••
••
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. ••

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••
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•• 116

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