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Para

Rocío
IL COMMENDATORE
PENTITI!

DON GIOVANNI
NO!

MOZART, DON GIOVANNI (1787)


Sumário

ABERTURA

PRIMEIRO ATO. Il DISSOLUTO PUNITO
Cena I. Sobre como um pombo estragou meu primeiro aniversário e a ingratidão dos
lobinhos
Cena II. Sobre como alguns shedim erraram sua maldição e minha mãe se uniu aos
alienígenas
Cena III. Sobre como desmontar um violino com uma serra elétrica e ser comunista e
anticomunista em uma tarde
Cena IV. Sobre como apareceu meu Watson-com-saia-hippie e o judeu canalha que
inventou o FMI
Cena V. Sobre a natureza assassina dos genes e as guerras travadas em família
Cena VI. Sobre como limpar seu nome da infâmia e a extinção dos profetas
Cena VII. Sobre como alguns banhistas conseguiram quebrar o Planeta Terra S.A. e a
persistência dos vírus
Cena VIII. Sobre as muitas vidas dos cadáveres e como formar um time de tênis com
comunistas
Cena IX. Sobre como montar uma bomba H com bônus lixo e como cantar a três um
dueto de La Bohème
Cena X. Sobre como influenciar pessoas e trair seus amigos e os corvos que aninham no
coração


SEGUNDO ATO. L’OCCASIONE FA IL LADRO
Cena I. Sobre como visitar Washington à noite e arrastar um cadáver pela lama
Cena II. Sobre como dois economistas conseguiram a pedra filosofal e dois economistas
estrelaram a luta do século
Cena III. Sobre como se apaixonar por uma espiã e engordar com uma dieta de rancor
Cena IV. Sobre como furar uma bolha erótica e a guerra dos mundos
Cena V. Sobre como reconhecer dentes ruins e como encurralar um espião com uma
abóbora
Cena VI. Sobre como formar um casamento perfeito e esbofetear delicadamente seu
Mestre
Cena VII. Sobre como ganhar perdendo e perder ganhando e como montar um pequeno
álbum de família
Cena VIII. Sobre como reconstruir o mundo em um hotel de luxo e a plácida
aposentadoria dos espiões
Cena IX. Sobre como uns gêmeos se apoderaram do mundo e como usar seu filho como
escudo
Cena X. Sobre como investir em bens imóveis sendo comunista e naufragar sem salva-
vidas


TERCEIRO ATO. L’INGANNO FELICE
Cena I. Sobre como salvar o mundo com esparadrapo e como comercializar com vento
Cena II. Sobre como se aquecer no inverno moscovita e como se tornar milionário com
cupons
Cena III. Sobre como ser inteligente e bonito o transforma em herói e ser inteligente e
bonita a transforma em puta
Cena IV. Sobre como atrasar a verdade por meio século e por que Babel caiu
Cena V. Sobre como sobreviver ao fim do mundo
Abertura

Na manhã de 23 de abril de 2011, a secretária colocou na minha escrivaninha um


pacote enviado por correio simples, sem remetente e com carimbo de Colombo, dentro do
qual se alinhavam uma carta e um manuscrito intitulado Memorial da fraude
assinados por J. Volpi. Imaginei que estava diante de uma brincadeira de mau gosto ou
de uma provocação de algum autor malicioso da agência (pensei em dois ou três nomes).
Como qualquer nova-iorquino, eu tinha acompanhado com certo interesse a história de
Volpi, um investidor de Wall Street e mecenas de ópera que, segundo uma reportagem do
Times de outubro de 2008, fraudara seus clientes, em uma espécie de esquema Ponzi,
em um montante aproximado de 15 bilhões de dólares: uma cifra bem menor que os 65
bilhões espoliados por Bernard Madoff, mas suficiente para creditá-lo como um dos
grandes criminosos financeiros da Grande Recessão iniciada naquele ano. Só que,
enquanto Madoff foi condenado a cento e cinquenta anos de prisão depois de confessar o
desfalque, Volpi, diante de sua iminente detenção, fugiu do país sem que haja até agora
qualquer indício sobre seu paradeiro.
Em sua carta, ou na carta escrita em seu nome, Volpi me pedia (quase exigia) que
eu lesse sua autobiografia e, caso apreciasse seu “inegável valor documental e literário”,
decidisse representá-lo. Seu tom altivo e imperioso — um tom que, segundo a imprensa,
sempre caracterizou suas intervenções públicas — me repugnou, mas, mesmo assim,
solicitei a S. Ch., então vice-diretora da agência, que me apresentasse uma avaliação.
Com um ceticismo idêntico ao meu, ela tentou se livrar da tarefa e a delegou a um
assistente. Quero que você mesma analise, exigi sem contemplações.
No sábado seguinte, enquanto eu e minha mulher estávamos jogando bridge com
um célebre autor de romances policiais e sua mulher, S. Ch. ligou para me dizer que ou
o manuscrito era obra de Volpi ou de alguém que o conheceu muito de perto: sem a
menor dúvida, eu devia dar uma olhada nele o quanto antes. Na segunda-feira devorei
mais de um terço do manuscrito antes de aceitar que era obrigado a informar sua
existência às autoridades. Quando finalmente marquei o número do FBI, tinha chegado
ao final, obcecado em usar luvas de látex para não arruinar as possíveis marcas
espalhadas pelas páginas.
Ao final de algumas semanas os especialistas chegaram à mesma conclusão: o texto
continha uma avalanche de dados que somente Volpi poderia conhecer; se o financista
fugitivo não era o autor, devia pelo menos ter participado da redação, talvez auxiliado
por um ghost-writer. Infelizmente o texto não oferecia pistas que levassem a localizá-lo
ou a identificar seu hipotético cúmplice. E, com certeza, não continha nenhum rastro
legível.
Ao término de um processo chatíssimo, um juiz federal determinou que o
manuscrito fosse considerado parte do patrimônio de Volpi e o anexou aos bens que o
procurador estava encarregado de alienar, a fim de ressarcir suas vítimas. Tanto Leah
Levitt, a segunda esposa de Volpi (que só conseguiu o divórcio três anos depois de seu
desaparecimento), quanto sua filha Susan concordaram em entregar os previsíveis ganhos
gerados pelo livro ao fundo destinado a atenuar os danos perpetrados pelo autor. Depois
de um leilão travado no âmbito da Feira do Livro de Frankfurt de 2012, Memorial da
fraude encontrará seu caminho para a publicação graças ao entusiasmo de inúmeras
editoras.
Por que Volpi enviou seu livro a uma agência estritamente literária em vez de se
dirigir a uma especializada em obras de não ficção? Embora tenhamos chegado a nos
cruzar em algum evento beneficente em Nova York ou a descer as escadarias do Lincoln
Center, eu e Volpi nunca tivemos a oportunidade de conversar e jamais houve qualquer
relação pessoal entre nós. A resposta, acho, está em outro lugar: sua lendária soberba,
causadora de sua vertiginosa ascensão e drástica queda, o impedia de se imaginar entre os
milhares de best-sellers dedicados ao colapso financeiro e preferia considerar que seu lugar
era ao lado dos treze prêmios Nobel e vinte e dois Pulitzer vigentes em nossa lista de
autores.
A verdadeira questão é, na realidade, por que decidi representá-lo ou, para ser mais
preciso, administrar os direitos da sua autobiografia. Eu gostaria de observar que Volpi
— ou seu ghost-writer — é dono de um estilo que superou minhas expectativas (embora
seja inútil compará-lo com outros escritores da agência). Mas além das falhas formais,
poucas vezes se pode ouvir a voz de um autor que, alheio a qualquer prudência ou senso
ético, se atreve a esmiuçar com tamanha falta de vergonha o desastre financeiro desses
anos. Além disso, Volpi narra a história de seu pai, um economista de origem russa que
durante a Segunda Guerra Mundial e os acordos de Bretton Woods trabalhou como
assistente de Harry Dexter White no Departamento do Tesouro. Obcecado em elucidar
sua identidade, Volpi nos reconstitui um episódio da nossa história política e moral que,
hoje mais do que nunca, não deveria ficar no esquecimento.
Sua história é, afinal, a história em primeira pessoa de uma geração que, presa
entre o risco e a ganância, lançou o mundo em um dos maiores desastres econômicos e
humanos dos últimos tempos. Como chegou a dizer um analista, nunca tão poucos
fizeram tanto contra tantos. O protagonista destas páginas, talvez um sósia ou
doppelgänger do verdadeiro Volpi, se arrisca a falar — a cantar — por eles.
A.W.
Nova York, 2 de dezembro de 2012
Primeiro ato
Il dissoluto punito
Cena I. Sobre como um pombo estragou meu primeiro
aniversário e a ingratidão dos lobinhos

CAVATINA DE JUDITH

Uma metade brilhante e a outra opaca, como se alguém tivesse despedaçado a


lua com um estilete. Seu pai permaneceu longos minutos diante da janela, com os
olhos bem abertos, obcecado pelo claro-escuro. Tinha voltado a acordar às cinco da
madrugada — seu relógio parou às 5h23 — como todos os dias, desde que nos
deixou. Ao distinguir os primeiros reflexos da alvorada, Noah voltou a se deitar na
cama. Corrijo: um catre bichado, à deriva nas tábuas do piso; em volta, duas caixas
de madeira faziam as vezes de mesas e cadeiras. Seus únicos pertences: uma dúzia de
livros, duas fotografias e o triste estojo com seu violino. Contemplei-o assim tantas
vezes, filho: um corpo sem alma ou com uma alma que só retornava ao corpo depois
de vários minutos de extravio. Quando seu pai recuperou a consciência, estava
amanhecendo. Só alguns raios de sol lambiam aquela pocilga; com sorte, perto das
dez um fio de luz entraria pelas persianas e exibiria a sujeira da cama e das cobertas.
Ao longe se distinguia a algazarra dos pássaros, os malditos pássaros que teimam em
cantar quando clareia.
Noah se dirigiu ao banheiro, um quadrado minúsculo com uma privada
carcomida pela ferrugem. Cenário lamentável, filho, mas foi seu pai quem o
escolheu quando abandonou nossa vida em comum. Não digo que nossa
convivência fosse fácil, mas pelo menos no apartamento de Park Slope tínhamos
conseguido nos manter à margem dos falatórios. No pior dos casos poderíamos ter
ido para outra cidade ou outro estado, mas Noah nem sequer considerou minha
sugestão. Girou a torneira, e um jato de água se precipitou sobre a imundície.
Imagino que se despiu rapidamente, agitado por uma pressa repentina: seu corpo
estava cada vez mais esquelético, as costelas rasgando os flancos, o umbigo saltado e
o crânio com entradas até o cocuruto (quando jovem seu cabelo preto enlouquecia
as secretárias). Na sua idade outros homens conservam uma aura juvenil ou pelo
menos certo vigor no olhar, mas no caso do seu pai os anos em Washington lhe
arrebataram toda a energia, e a água morna mal diluiu seu despertar.
Uma vez, fora do chuveiro, deve ter se olhado no espelho, um cristal com a
prata desencaixada da moldura que lhe devolveu sua decadência. Noah sempre
odiou esse ritual matutino, constatar que cada vez se parecia menos com quem tinha
sido no passado. Deslizou com destreza a navalha pelo pescoço e pela mandíbula:
nem uma gota de sangue. Retornou ao cubículo, remexeu em uma das malas que
ainda não tinha esvaziado e achou sua última camisa limpa. Eu mesma a tinha
engomado sem saber que ele ia nos deixar. Impossível adivinhar se me agradeceu por
isso ou se finalmente sentiu minha falta. Enfiou a cueca, as calças, a camisa e os
suspensórios. Além disso, ainda teve tempo de se pentear e borrifar uns traços de
loção na nuca. Para quê? Talvez só por costume, um reflexo que carece de
propósito.
Sentou-se na cama e abriu um grosso tratado de economia. Não exija
explicações, meu filho. Um livro didático como outro qualquer — os colegas dele
me confirmaram isso —, um compêndio escolar despretensioso. Talvez tenha relido
algum capítulo ou procurado um dado entre as páginas. Como saber? Fazia meses,
repito, que seu comportamento tinha deixado de ser o que chamamos de normal.
Palavra estúpida. Vejamos esta: previsível. Previsível para quem o acompanhou
durante duas décadas, para quem tinha compartilhado suas incontáveis desventuras
e escassas alegrias, para quem dormiu com ele diariamente, para quem o conhecia
como ninguém. Mais que reservado, Noah era impenetrável, mas não confunda esta
expressão com misterioso ou enigmático. Há homens abertos e homens fechados, e
seu pai pertencia ao segundo grupo. Uma caixa-forte dentro da qual guardava
apenas ideais e bons sentimentos.
Estava havia muitos anos triste, desolado. Como não ia estar? Havia consagrado
sua vida ao Tesouro, a lutar pelo seu país, e de repente não restava nada pela frente.
Isso eu entendo. Mas a melancolia não justifica que fosse embora de um dia para o
outro, muito menos no meu estado. Depois de vinte anos, fugiu de mim, alugou
aquela pocilga no Queens e se fechou lá como se estivesse em uma prisão ou uma
sinagoga. O que esperava? Que eu o resgatasse? Que clamasse justiça em seu nome?
Que implorasse sua volta? Você me conhece: eu não imploro nada a ninguém.
Quando teve o descaramento de voltar para casa, depois de duas semanas, se limitou
a pegar seu violino, seus papéis e seus livros. Outra vez não deu explicações. Preciso
ir. Só isso. E foi embora para o Queens.
Imagino que seu pai ainda estava folheando o tratado de economia ou
novamente com a mente em branco, quando um chiado na janela chamou sua
atenção. Ao virar o olhar distinguiu um pombo que lutava para libertar uma das
asas, presa entre o vidro e a madeira. Levantou-se e se aproximou do animal que
batia as asas enlouquecidamente. Noah levantou o batente, mas, em vez de alçar
voo, o pombo ficou ali, paralisado, com uma asa meio quebrada e o olhar dolorido.
Imagino que os pombos também demonstrem dor no olhar. Seu pai deve tê-lo
contemplado durante um tempo sem saber o que fazer, comovido pela fragilidade
da criatura. Com certeza pensou que tinha obrigação de salvá-la. Deu-lhe um
pequeno empurrão. Nada. Depois outro. Nada. Então deve ter imaginado que o
melhor seria levar o bicho para dentro, estancar a ferida, alimentá-lo com bolachas,
esperar que melhorasse pouco a pouco, talvez lhe servisse de companhia. Inclinou-se
sobre o parapeito e tentou apanhar o corpinho. O animalzinho deve ter interpretado
mal suas intenções e se equilibrou desajeitadamente na cornija. Noah tomou
impulso e esticou o braço. Talvez tenha estremecido de vertigem ao ver os onze
andares que o separavam da calçada. Ou tropeçado no parapeito em um último
esforço para resgatar a avezinha. A verdade é que, quando o primeiro transeunte deu
com o corpo espatifado na calçada, seu pai ainda conservava um chumaço de penas
na mão.

RECITATIVO

Com mais ou menos palavras, este é o relato de Judith sobre a morte do meu
pai e, como se pode perceber, nunca lhe faltaram palavras. Eu devia ter uns quatro
ou cinco anos quando ela desfiou pela primeira vez diante de mim o episódio e,
mais do que da intromissão do pombo, me lembro do seu tom venenoso, que não
reproduzi com justiça, do seu olhar de aço cravado sobre minha timidez e seus
dedos traçando círculos no ar (as unhas vermelho-vivo), sem o mínimo vestígio de
tato ou de pudor, até que uma de suas palmas, elevada à altura da cabeça, estalava
contra sua gêmea reproduzindo o ranger dos ossos do meu pai no cimento. Às vezes
Judith prolongava sua divagação sobre a miséria, a insônia ou as leituras de seu
falecido marido; outras, adornava o incidente com uma pátina um pouco mais
patética ou mais ridícula (ou as duas coisas), e outras se empenhava em me
demonstrar que a desgraça tinha sido totalmente culpa do meu pai, mas em
nenhum caso omitia apontar que, fora o caráter esquivo, o azar e sua fuga repentina,
Noah era um bom homem, dizendo-o com doses iguais de comiseração e desprezo.
Acontecia assim.
À noite, depois de me cobrir com o edredom, como se fosse me contar um
conto de fadas, ou na hora do almoço, acompanhando um gefilte fisch com khren,
Judith reconstruía os fatos sem admitir perguntas da minha parte. Graças a esta
tática, durante anos a única coisa que eu soube sobre meu pai foram os traços de
caráter exaltados no seu infeliz encontro com o pombo: uma bondade terna para
com os animais e talvez para com as pessoas, certo desinteresse ou descuido para
com os fetos, uma clara propensão à infelicidade e uma afeição pela música clássica
que contrastava com sua vulgar profissão de economista. Impossível tirar da minha
mãe detalhes não incluídos neste relato ou pedir uma prova fotográfica: com uma
única exceção, todas as fotografias dele foram perdidas na mudança posterior ao
enterro, justificava-se ela. Ninguém deveria estranhar que meu pai fosse
praticamente nada para mim: um nome pronunciado a contragosto e a sensação de
ignorar a origem de 50% dos meus genes.
Anos depois, um aproveitador disse que meus conflitos com a autoridade
tinham origem na ausência de uma figura paterna durante a infância. Sublime
tolice: Judith cumpria perfeitamente com a tarefa. Seu gosto pelo gim e pelos
charutos cubanos, suas maneiras ariscas e brutas, sua linguagem de caminhoneiro e
seu gosto pelas brigas, de preferência com pancadas, com quem ousasse contradizê-
la ou enganá-la, bastavam para demonstrar que era mais viril do que qualquer
homem. Ao longo destas páginas voltarei ao seu duplo temperamento de carcereira e
dama da caridade, por enquanto me contentarei em afirmar que, apesar de sua
magreza e da brevidade de sua estatura — aos doze eu já a ultrapassava —, minha
mãe não só conseguia encher um cômodo com sua presença, mas uns três ou quatro
andares. Não pretendo me enfurecer com ela (não ainda). Lembro-me dela como
um terno gnomo judeu, não isento de uma beleza arrepiante, capaz de dobrar um
exército ou de impor sua vontade a uma turma de valentões. Serei mais justo: uma
mulher que se forjou desde pequena — o insaciável clichê da pobreza, pai adúltero e
mãe depressiva — e que não se permitiu se curvar ou se arrepender nem sequer
diante da morte.
Até os quinze ou dezesseis anos, a orfandade, condição que me permitia me
colocar à altura dos infelizes que guardavam as bandeiras ou os corações púrpuras
para entregá-los às mães em cerimônias tão solenes quanto hipócritas, nunca me
feriu. Impossível me gabar de que meu pai fosse um herói morto em combate, como
os dos meus colegas de escola, mas os professores, comovidos pelo meu desamparo,
me reservavam uma benevolência da qual sempre consegui me aproveitar (ao mesmo
tempo que os odiava por me concedê-la). Para o bem ou para o mal, Noah não
interveio na minha educação: uma grande vantagem comparada com os estragos
produzidos na autoestima dos meus colegas pelo contato cotidiano com os idiotas
que os haviam engendrado. Um bom pai, na minha opinião, é aquele que foge dos
filhos o quanto antes.
De Noah Volpi, reitero, nada além do sobrenome. Esse Volpi que na Polônia
se escrevia Wołpe e que depois nós dois arrastamos nesta nação fundada por
bandidos e fanáticos. Pelo menos até que deixei de ser um estúpido desajeitado e me
transformei no único Volpi de que se fala hoje em dia: o Volpi cujo nome vocês,
meus insossos semelhantes, meus podres irmãos, meus curiosos leitores, certamente
terão ouvido amaldiçoar durante os quinze minutos de fama (já alguns anos, para
falar a verdade) em que, acompanhado por fotos de duvidosa procedência, ocupou
um espaço na internet, nos telejornais e nesses moribundos pasquins provincianos,
os jornais. Volpi, o conhecido filantropo e homem de negócios, fundador e
principal acionista do JV Capital Management, um dos fundos de hedge mais
pujantes do início do século XXI, segundo a Bloomberg e a MSNBC; Volpi, o
infatigável benfeitor do Met, da New York City Opera, da Filarmônica de Nova
York, da Juilliard School of Music, do Festival de Salzburgo, do Mariinsky e do
Covent Garden; Volpi, o inquilino habitual dos tabloides e das páginas sociais da
Grande Maçã Podre; Volpi, o estelionatário que, desde outubro de 2008, se
encontra em paradeiro desconhecido depois de defraudar seus investidores em 15
bilhões de dólares: número evidentemente inverossímil. Este sou eu, senhoras e
senhores, distintos membros do júri, e de fato escrevo estas páginas em Paradeiro
Desconhecido, uma doce aldeia costeira que, ao contrário do que eu imaginava, não
conta nem sequer com banda larga (um fugitivo da Interpol não deveria revelar estes
detalhes).
Por que me atrevo a aborrecê-los com meu relato? Soberba? Sem dúvida.
Arrependimento? Nenhum. Autojustificação? A mínima. Digamos que a culpa é do
velho Noah, esse homem que me abandonou quando eu estava para nascer para
depois topar com um pombo e se atirar da altura de onze andares; esse homem que
jamais me acompanhou e que minha mãe se esforçou para apagar da minha
memória; esse homem que foi muito mais que um burocrata desempregado e muito
menos que um personagem secundário na minha história, e na burlesca história que
se concluiu com outra queda, a do Lehman Brothers. De modo que, no final das
contas, devo a esse fantasma mais que um espúrio sobrenome judeu-polonês. Na
solidão de quem tem que peregrinar fugindo de um confim a outro do planeta,
descobri que algo mais poderoso e inextrincável nos une. Noah foi um reticente
símbolo do seu tempo e eu do meu. Ele, do auge do capitalismo. Eu, da sua queda.
E, como pela primeira vez em décadas disponho de uma infinita quantidade de
tempo livre (excetuando a melhor opinião dos guardiões da lei), aceito a
responsabilidade de ser um velho cartógrafo decidido a unir esses dois pontos no
mapa.

CORO DOS DONOS DO MUNDO

Dizem que, justo antes de as ondas fugirem da costa para voltar em uma
diabólica pancada, como aconteceu durante o tsunami que destruiu a costa asiática
em 2004 (cuja magnitude só apreciei no ensurdecedor início de Além da vida, em
que Clint Eastwood se lança em um lamentável espiritismo), o céu se torna
aveludado e luminoso, desprovido de manchas e de nuvens, habitado por uma
luminosidade que, segundo os meteorologistas, é a única antecipação da catástrofe.
Assim se viveu a densa primavera de 2008: uma temporada de abulia e apatia,
morosa e triste, em que apenas uns poucos arautos do desastre, escondidos nas
margens do nosso sistema financeiro (por exemplo, na arcádia dos campi),
vociferavam diante de auditórios semivazios suas profecias segundo as quais não
estávamos diante de uma era de exuberância irracional, nas palavras do Grande
Guru Greenspan, mas de uma bolha de sabão que não demoraria a estourar na nossa
cara. Invejosos. Iludidos. Mentecaptos. As coisas que a gente tinha que ouvir da
boca desses ressentidos. Uma bolha imobiliária? Bobagem. Era claro que nem Ribini
nem Rabini nem nenhum de seus colegas harvardianos ou oxfordianos sabiam do
que estavam falando. Não tiveram oportunidade de examinar os dados oficiais? Nos
Estados Unidos nunca existiu uma bolha imobiliária. Nunca. Elas brotaram de vez
em quando, talvez em lugares específicos como o sul da Flórida, por causa da
especulação de quadrilhas de judeus aposentados. Os bobalhões deveriam ter
destilado suas estatísticas: este grande país, tomado em seu conjunto, nunca sofreu
uma crise no setor imobiliário. O melhor era ignorar ou sossegar os lunáticos e nos
concentrar em administrar aquela irracional e prazerosa exuberância.
Não estou exagerando. Leiam os jornais e ouçam as declarações feitas ao longo
daqueles meses de calma insignificância. Primavera de 2008, incluindo o início do
verão. Descobrirão aqueles que muito em breve iriam se transformar nos impostados
heróis ou nos efêmeros vilões da nossa vil tragicomédia. Todos repetiam o mesmo
mantra: não há com o que se preocupar, o crescimento se manterá, a inflação está
controlada, superaremos este baque e seguiremos em frente. Empresários. Políticos.
Especuladores. Banqueiros. Professores. Funcionários do Tesouro e do Federal
Reserve, do FMI, do Banco Mundial e da ONU. Greenspan, Clinton e Bush filho,
Paulson e Bernanke, Geithner e os CEOS dos nossos pilares financeiros. Como uma
plêiade de cidadãos comuns, como vocês, meus leitores. E eu próprio. Todos nós
mantínhamos a mesma fé, ou isso era o que dizíamos: desta vez será diferente, os
alarmes são falsos, os temores infundados, podemos continuar nos endividando — e
nos enriquecendo — sem trégua, que os mercados, fortes como touros, saberão se
autorregular.
Sem dúvida havia alguns sinais preocupantes, as hipotecas dispararam,
ninguém era capaz de calcular o que aconteceria se deixassem de pagá-las, o
consumo diminuía, mas o capitalismo preconizava a destruição criativa. No pior dos
casos, algumas poucas empresas e instituições de crédito acabariam liquidadas, como
durante o fracasso das pontocom; o preço dos imóveis cairia um pouco e o dos
empréstimos subiria levemente: em todo caso, uma reorganização necessária, um
mínimo ajuste antes da retomada do crescimento. Agora, ex post, é fácil dizer: não
foi assim. Um tsunami. Uma onda que, sem o menor aviso, nem sequer aquela
perturbadora claridade do firmamento, arrasou com todas as nossas certezas — e,
pior ainda, com as nossas fortunas. Não fomos irresponsáveis. Não fomos
predadores nem ambiciosos. Só tivemos azar.
Eu adoraria invocar essas desculpas, acreditar seriamente nelas como Greenspan
e Bush filho, como Paulson e Bernanke, como Geithner e os CEOS dos nossos pilares
financeiros. Reduzir meu arrependimento e minha vergonha — não pelos despejos e
pela pobreza de milhões, mas pela minha imperícia — e moderar a raiva diante das
minhas perdas. Só que, diferentemente desses fidalgos, eu não continuarei fingindo.
Não me move um ataque de honestidade, que meu público jamais admitiria, mas
minha recusa a ser um dos bodes expiatórios de quem agora bate no peito. No
esquema deles, eu sou um criminoso, e eles, por sua vez, apenas cometeram um
erro. Eu sou uma chaga do sistema, aquele que julgam necessário perseguir por meio
mundo como se fosse um torturador ou um criminoso de guerra, enquanto eles, os
funcionários e professores em quem depositamos nossa fé e nossa confiança,
precisam apenas pedir uma desculpa. Deverei ser caçado como um cão ou
exterminado como um rato; eles, em compensação, depois de abaixar um pouco as
carecas e exibir umas condolências apressadas diante de suas vítimas, seus milhões de
vítimas, foram reinstalados em seus cargos de diretores — ou outros equivalentes —
e voltaram a embolsar seus bônus milionários.
Não, senhores, não pretendo tolerar isso. Esta é minha defesa por escrito. Sim,
eu fraudei uma centena de investidores. Sim, entre eles havia recursos de pensões,
universidades, hospitais, dezenas de fundações artísticas e humanitárias. Sim,
enganei meus amigos e os amigos dos meus amigos. Sim, pus em risco meus sócios e
minha família. Sim, sou um canalha e um ladrão, um digno herdeiro de Charles
Ponzi. Sim, aceito que me comparem com Bernie Madoff (exceto, por favor, no
penteado), embora sua fraude supere a minha em dez vezes. Sim, sou um monstro,
um demônio, um perigo para a sociedade. Mas os que me apontam com seus
indicadores flamejantes, enquanto contemplam de seus escritórios o skyline de
Manhattan, saboreando um conhaque ou mordiscando um charuto, não são, juro
pela minha mãe, muito melhores.

TRIO

— Isso foi o que ele nos disse.


A voz de Susan deve ter soado como um gemido. Imagino-a com a mesma
roupa que horas antes eu tinha elogiado: a saia grená com uma abertura até as coxas,
a camisa de seda bege, o casaquinho D&G tão sexy. O corpo muito magro,
ligeiramente arqueado, os lóbulos das orelhas e o pescoço já sem adornos — alguém
teria lhe recomendado esconder as joias para acentuar sua fragilidade —, o rosto
maquiado com delicadeza, o cabelo preso em um discreto coque e as mãos, suas lisas
mãos, tremendo. Diferentemente de Isaac, ela não estava ali por sua vontade ou por
um ressentimento aquilatado com os anos. Seu porte altivo, a brevidade de suas
respostas e o volume de seus lábios demonstravam que só tinha ido à delegacia de
polícia porque não lhe restara outro remédio. A princípio resistiu. “Não há outra
opção? Não poderíamos esperar um pouco até avaliar a gravidade da situação?”
Proíbo que a julguem! É falso que estivesse do meu lado, que questionasse
minha culpa ou buscasse mitigar minhas faltas e meus crimes: simplesmente odiava
a ideia de se confessar com uns vulgares agentes do FBI, como em um filme de
gângsteres — ela, que pagava setecentos dólares por sessão para um analista do
Upper East Side —, e só se deixou arrastar até essa pocilga depois que o irmão
ameaçou implicá-la nas turvas falcatruas do seu pai, querendo sublinhar o dela, não o
dos dois.
Isaac, tão propenso ao histrionismo desde criança (podia chorar por horas sem
que nada o acalmasse), gemia e gesticulava para acentuar sua indignação, como se
seus grunhidos fossem demonstrar sua inocência. Coitadinho. Quase me comovem
suas costas encurvadas e sua expressão rígida, sinais do pânico que devia estar
dilacerando-o. Do seu ponto de vista ele tampouco tinha alternativa. Tinha que se
mostrar implacável, sem nenhum traço de piedade para quem o maltratara desde
criança. Era o que achava: que, quando eu lhe dei as costas em algum momento
entre os quatorze e quinze anos — quase não me lembro do incidente —, condenei-
o a uma vida de antidepressivos e terapias. Não havia maneira de rebater essa
injustiça primitiva: nenhum carro esporte, nenhuma viagem à Índia ou ao Himalaia
e nem sequer uma insinuação de desculpa conseguiram aplacá-la. Desde então ele
tinha acertado na hora de me julgar. Outros achavam que eu era corrupto e
egocêntrico, mas também generoso e atencioso (Susan, a primeira); em
compensação, Isaac sabia que minhas virtudes eram um disfarce para tirar proveito
de quem se colocasse na minha frente, incluindo minha família. Contra todos,
talvez contra o universo — e sempre atiçado pela mãe —, ele nunca se deixou
deslumbrar. E agora que a verdade se revelava, ele se sentia finalmente reabilitado.
— Espero ter entendido bem — murmurou um dos agentes. — Seu pai acaba
de lhes confessar…
— Às 10h17 da manhã — interrompeu Isaac.
— Às 10h17 da manhã seu pai chamou vocês ao escritório dele para revelar que
seu gigantesco fundo de investimentos se estruturava em uma falácia. Que suas
contas estão deficitárias. E que o montante das perdas chega a… — o agente
consultou sua caderneta e engoliu em seco — … 10 bilhões de dólares.
— Isso mesmo — confirmou Isaac.
Os agentes (imagino-os gordos e morenos, vestidos com capas de chuva puídas
e gravatas de três dólares: os estereótipos da TV) devem ter se entreolhado sem
esclarecer se estavam diante de um casal de loucos, ainda por cima gêmeos quase
idênticos, ou de uma das acusações mais surpreendentes de suas carreiras. Um deles
pediu licença e se levantou para consultar seus superiores.
— Posso fumar? — perguntou Susan ao agente 1.
Imagino a impaciência da minha filha diante daqueles dois brutamontes, sua
beleza posta em questão pelo inchaço das pálpebras.
— Infelizmente não.
— Posso sair um pouco?
— É claro — o policial deve ter esboçado um risinho —, você não é a acusada.
Algumas horas mais tarde, quando Isaac roía as unhas e Susan já tinha
maltratado os pulmões com vários maços, os servidores da lei finalmente deram
crédito à denúncia e se apressaram a solicitar, em caráter extraurgente, um mandado
de prisão com meu nome.
Tempo é dinheiro, mas dinheiro compra tudo. Inclusive tempo.
Assim que Isaac e Susan deixaram o meu escritório naquela manhã, dando uma
sonora pancada na porta, entre lágrimas e recriminações, depois de me jogar na cara
as passagens que tinha reservado para eles — a dela rumo a uma bela ilha do Caribe;
a dele com destino a um resort no Pacífico —, empreendi minha própria via de
fuga, seguindo um itinerário diferente do que tinha revelado a eles. Dei as últimas
instruções a Vikram, que as cumpriu resmungando, demos um abraço mais curto do
que eu teria requerido e tomei o elevador de serviço para pegar o carro que me
esperava na rua de trás.
Seja como for, é a sorte, essa probabilidade contra a qual diariamente nós, os
especuladores, nos batemos, o que nos afunda ou nos resgata. Naquela manhã quase
não havia trânsito no Holland Tunnel. Não revelarei minha rota de fuga (nunca se
sabe se terei que voltar a utilizá-la) e me conformarei com mostrar que, quando o
juiz finalmente liberou a ordem de apreensão contra mim, às 14h30, eu já estava
bem longe do Sonho Americano.
Não quero cometer o pecado de cinismo: aquele foi o pior dia da minha vida.
Sei que minha palavra não vale nada, mas espero que minhas palavras transmitam
pelo menos um pouco do desespero, da raiva, do medo, da preocupação e do amor
— sim, amor — que me escaldavam enquanto fugia. Eu queria salvá-los e levá-los
comigo. A principal missão de um pai não é tirar seus filhos do perigo? Talvez no
passado não o tivesse feito, ou não o suficiente, sem dúvida cometi uma infinidade
de erros, nunca fui um amigo ou um modelo de conduta para eles, sempre
privilegiei meu próprio bem-estar frente ao deles, mas agora buscava me redimir.
Queria fugir, é óbvio. Não tinha saída. Ficar significava cem ou duzentos anos atrás
das grades. E também queria dar aos meus filhos a oportunidade de uma vida em
outro lugar. Infelizmente, o imbecil do Isaac se deixou levar pelo ressentimento e
arrastou a irmã no seu caminho de má vontade e cegueira.
— Não consigo acreditar, papai — balbuciou Susan quando lhes confessei o
estado das nossas finanças. — Deve ser um erro, os contadores, a crise, você não…
Tive que detê-la. Por uma vez ela e o irmão mereciam a verdade.
Tudo começou há uns dez anos, eu disse. Não foi intencional, pelo menos no
início. Topei com um desses percalços que todos os homens de negócios sofrem.
Nada aconteceria se conseguisse passar capital de um fundo para o outro. O
mercado se recuperaria em alguns dias, e o deslize ficaria no esquecimento. E assim
foi. Um pecado menor. Depois me vi em outro percalço e foi fácil repetir a jogada.
Pouco a pouco se transformou em costume. Não é hora de contar como funcionava
o esquema, basta admitir que acabei perdendo o controle, como quando uma
represa transborda, e já não consegui nadar contra a corrente.
— Mas os dividendos que você pagava aos clientes nunca deixaram de ser
extraordinários — interrompeu Isaac.
— Era a única maneira de continuar atraindo capitais. Recuar teria despertado
todo tipo de suspeitas e precipitado a catástrofe.
— A catástrofe já aconteceu.
Meu Brutus tinha razão. Mas esta é a natureza dos esquemas Ponzi e, se me
permitem a arrogância, do universo: as coisas duram enquanto duram. Tudo tende
ao caos. E depois se acaba. É uma lei inexorável. Uma lei que, aliás, sempre levei em
conta. A partir do momento em que o caixa dois se converteu numa segunda vida
para minha empresa, entendi que só poderia aspirar a prolongar as aparências.
Comecei uma existência transitória, marcada por uma inextrincável fragilidade,
dirigida conscientemente ao desastre. Quando o Lehman caiu, soube que meu
tempo tinha acabado. Afinal de contas, a morte paira sobre todos nós. Mas eu tinha
somado outra: a do dia em que Leah e meus filhos descobrissem que eu não era
quem dizia ser.
— Vocês não sabem quantas vezes acordei à meia-noite, todo suado,
imaginando o momento em que me veria obrigado a lhes mostrar o que sou. Não
peço que me entendam, nem tenho a desfaçatez de exigir que me perdoem. A única
coisa que desejo é que nos mandemos daqui e que nós três encaremos este revés em
família. Por favor, venham comigo.
— Virarmos fugitivos? — disparou Isaac. — Não somos criminosos.
Aceito que não foi um bom discurso, mas tinha que fazer tudo o que estivesse
ao meu alcance para levá-los. Susan, eu disse então, pronunciando seu nome com a
maior doçura, Susan, me ajude a convencer seu irmão. Devia apelar para os seus
sentimentos e conseguir que me apoiasse. Uma estratégia infame, eu sei, mas tinha
que tentar.
— Não há outra opção? Não poderíamos esperar um pouco até avaliar a
extensão do estrago? — disse você com sua vozinha quebrada.
Isaac te lançou um olhar animal, desesperado.
— Você vai defendê-lo? Percebe o que está fazendo? Ele pretende nos dividir,
irmã, como sempre. Você é a boa, e eu, o rebelde. Você, a queridinha, e eu, o
ingrato. Não entre no jogo dele.
O que você podia fazer entre dois fogos? Desde pequena se viu obrigada a atuar
como árbitro nas nossas disputas, a matizar as injúrias e as desqualificações, a
moderar as inconveniências, a buscar uma mínima cordialidade entre nós. Até que
um dia, incapaz de suportar tanta pressão, você quebrou, e seu corpinho, privado de
alimento, quase não conseguiu resistir. Quando superou a doença nos advertiu de
que não voltaria a atuar como mediadora entre nós, que não iria perder o juízo por
nossa culpa, que parássemos de envolvê-la nas nossas rixas. E agora eu voltava a lhe
pedir — exigir — que intercedesse por mim diante do seu irmão e me ajudasse a
salvá-lo.
Isaac não cedeu.
Jogou na mesa os maços de dinheiro, os passaportes e os dados das contas
offshore, as passagens de avião e os endereços dos nossos contatos em cada escala do
trajeto. E te arrastou pelo braço para a porta sem deixar que se despedisse de mim.
Nunca o perdoarei por ter arrancado você dos meus braços, por me impedir de
te dar um último beijo.
Maldito seja, Isaac.
O resto eu já contei. Liguei para o Vikram, o instruí brevemente, desci pelo
elevador de serviço, peguei o carro na rua de trás e escapuli para sempre, ou isso
espero.
Procurei salvá-los, meus filhos, mas vocês resistiram. Como poderia obrigá-los?
Enquanto saltava de um lugar a outro do planeta, com meu nome inscrito em um
lugar privilegiado nas listas dos mais procurados da Interpol, quis acreditar que
vocês estariam a salvo, que por alguma razão — um mágico plano da sorte —
ficariam à margem das suspeitas, que se corressem a me denunciar à polícia, como
fizeram naquela manhã, nada de mal lhes aconteceria. Pensamento mágico.
Autoengano. No fundo eu sabia que, se ficassem, estariam sempre ameaçados.
Primeiro, por esta raça de chacais que são os jornalistas e, depois, pelos próprios
agentes do FBI que anotaram com suposta diligência os seus primeiros depoimentos.
A verdadeira morte me fulminou no dia em que, depois de longas semanas sem
notícias do Ocidente, recolhi do chão um sujo exemplar do Herald onde aparecia
uma foto de vocês:

E, embaixo dela, a seguinte legenda: “Isaac e Susan Volpi, filhos do especulador


que fraudou seus clientes em 15 bilhões de dólares, foram formalmente acusados de
cumplicidade no desfalque do pai, foragido desde 2 de outubro de 2008”.
Como não ia ser o pior dia da minha vida?
Cena II. Sobre como alguns shedim erraram sua maldição e
minha mãe se uniu aos alienígenas

ÁRIA DE JUDITH

É claro que eu não acreditava neles, meu filho, mas minha avó afirmava tê-los
sentido enquanto revoavam sobre sua cabeça nas noites de lua cheia, lá no shtetl,
pouco antes que os cossacos chegassem. “Irradiam uma luz escura”, repetia a anciã
rangendo as mandíbulas. “Sutis como libélulas, habitam as sombras do porão e as
tocas das toupeiras; se alimentam das escamas que se soltam da nossa pele quando
dormimos. Sabe o que me disseram, Judith? Que eu alcançaria a idade para ver as
asas dos homens.” As outras crianças corriam ao perceber suas verrugas, seu xale
com fedor de queijo rançoso, o cravejar da sua bengala nos degraus. Nesta altura já
morávamos no Brooklyn e, pouco antes de ficar cega, chegou a ver um aeroplano. A
coitada morreu quando eu ainda não tinha cinco anos. Mas ainda me lembro do
calor infernal do cemitério, da sonífera melopeia do rabino, da ausência de lágrimas
no meu rosto. Não voltei a pensar nessas delicadas criaturas até muitos anos depois,
quando finalmente fiquei grávida.
Quando nos conhecemos, seu pai tinha me avisado: “Se há uma coisa de que
tenho certeza é que não quero somar mais infelicidade a esta terra”. Foi a única
condição que ele impôs ao nos casarmos: nos manter estéreis, filhos sem filhos. O
que posso te dizer? Eu estava apaixonada por Noah, aquele jovem frágil e cheio de
projetos; sua severidade e seus ressentimentos só acentuavam meu desejo. Disse que
concordava, eu ainda era muito jovem e buscava o amor, um amor desesperado,
como poderia saber que um dia meu corpo — não meu espírito, meu corpo —
exigiria quebrar essa promessa? Durante os primeiros anos de casamento me atrevi a
mencioná-lo algumas vezes, mas sua teimosia não admitia concessões. O que o tinha
levado a abominar a ideia de ser pai? Impossível questioná-lo: Noah, eu já lhe disse,
era insensível. “O passado não importa, é mentira que dependamos desse peso”, me
dizia. “Só importa o futuro, e no futuro não pretendo me tornar responsável pela
dor de quem nem sequer me pediu a vida, este presente de grego.”
Minha cumplicidade resultou em resignação, depois em obrigação. Deve ser
verdade que as mulheres são governadas pelos instintos. Apesar de não provir de
uma família educada como a dele, mas de um ambiente de comerciantes rústicos, eu
me considerava uma garota intelectual, em perpétua rebeldia frente aos preconceitos
da época. Não vá me pintar na sua cabeça como uma dona de casa resignada
passando lençóis ou temperando almôndegas. Se parti o lombo trabalhando como
vendedora foi para pagar a escola noturna e cavar um futuro à minha medida. Tinha
lido tantos livros quanto o seu pai, ou até mais, e me inspirava nas obras de Emma
Goldman e das sufragistas. Nunca me considerei inferior aos homens e, junto com
aqueles de ideais mais igualitários, eu também tentei melhorar um pouco o mundo.
Não posso dizer que fosse infeliz, mas, quando fiz trinta e cinco, um mal-estar
difuso no ventre e nos seios me invadiu. Um vazio. Apesar da sensibilidade que te
caracteriza, filho, você nunca conseguirá entender: eu mesma demorei muito para
perceber que a natureza dobra qualquer ideologia. Serão os hormônios ou o que
você quiser, um uivo nas vísceras que se traduz em uma voz infantil que perfura os
ouvidos da gente. Não é uma loucura, juro que ouvi sua voz, sua exigência de
nascer, nas minhas entranhas.
Quis conversar com Noah sobre o que estava acontecendo comigo, mas ele,
imerso nas suas próprias inquietações — eram os anos da guerra —, não me deu a
mínima atenção. Imaginei que minha batalha estivesse perdida. Procurei outras
distrações, me dediquei a cuidar dos órfãos, até pensei em adotar um daqueles
infelizes que tinham sido abandonados. Mas o seu grito dentro de mim se tornava
cada vez mais agudo, mais insuportável. Vencemos os nazistas e os japoneses, e
nossa vida se tornou incerta e frustrante, o que só fez aumentar minha vontade de te
conceber enquanto seu pai era vítima de todo tipo de calúnias. Depois de ser
promovido na organização que ele mesmo havia ajudado a construir, do dia para a
noite, foi destituído de seu cargo. Depois de uma vida inteira consagrada ao serviço
público — a perseguir o bem, a brigar pelos interesses de sua pátria —, só conseguiu
um cargo de consultor em uma esfarrapada empresa nova-iorquina. Sei que ele
precisava mais do que nunca de mim, mas eu precisava mais de você.
Como tomei a decisão? Não parei para pensar, nem planejei maliciosamente,
juro. Seu pai saiu muito cedo naquela manhã, tinha um encontro com não sei quem
em Nova Jersey — nunca falava comigo sobre seu trabalho —, e eu fiquei na cama
até bem tarde. Sentia-me aflita, a ponto de sufocar; corri para o banheiro e vomitei
na pia. E então os vi ali, separados na parte de cima do estojo de primeiros socorros:
os preservativos que Noah guardava cuidadosamente (e que, desde que os problemas
aumentaram, quase não tínhamos usado). Não hesitei nem medi as consequências; a
partir desse momento já não agia sozinha; eu gostaria de dizer que nesse momento
se forjou uma aliança entre nós dois, entre o você que estava a ponto de nascer e o eu
que o ajudaria a conseguir isso.
Quando seu pai chegou naquela noite, com a fadiga e o mau humor que lhe
haviam grudado na alma, lhe servi um uísque e implorei que conversássemos sobre o
que estava acontecendo conosco. Para minha surpresa, acabamos conversando com a
mesma desenvoltura de antes da guerra. Desculpei-me por ter me mostrado tão
distante e não apoiá-lo quando mais precisava. Uma verdadeira sedução. Preparei
outros dois drinques e, quando nós dois já estávamos um pouco altos, puxei-o pela
mão e o levei para o quarto. Despimo-nos e eu mesma lhe coloquei o preservativo
(economizo os detalhes). O preservativo que, pela manhã, eu havia furado com uma
tesoura. Confesso que nunca me arrependi desse estratagema, e me concentrei em
esperar a hora em que pudesse comprovar se tinha funcionado.
Talvez por uma íntima vergonha ou um atavismo, resisti a consultar um
obstetra e decidi visitar Charna, uma velha parteira do mesmo shtetl da minha avó
que tinha emigrado para a América. Lembrava que anos atrás minha mãe tinha me
levado ao seu pequeno apartamento no Harlem para consultá-la sobre um assunto
que não quis me detalhar (eu teria uns quinze anos). Batemos na porta, ela nos
recebeu com uma expressão de aborrecimento e nos levou ao seu quarto: uma cama
cercada por uma galeria de rostos camponeses. Não sei o que aconteceu na sala —
reconheci algumas rezas em hebraico e, ao sair, distingui uma chama e a fumaça de
uma vela —, mas minha mãe, que naqueles dias se mostrou mais agitada do que de
costume, esboçava um lânguido sorriso. “Você pode acreditar ou não, Judith”, me
disse na rua, “mas esta mulher é uma santa.”

Meus avós no shtetl.


Com seus quase noventa anos, Charna era uma figura imponente, com
olhinhos como brasas e a esmagadora vitalidade de seus noventa quilos. Ao que
parecia seu humor não tinha melhorado: abriu a porta com a mesma cara
carrancuda que eu lembrava da outra vez. A única diferença perceptível eram as
gengivas peladas e os lábios que se franziam para dentro da boca como se ela fosse
engoli-los.
— O que deseja? — exclamou em iídiche.
— Eu sou…
— Sei muito bem quem você é, Judith Farbstein.
Baixei o olhar.
— Entendo — acrescentou. — Espere um segundo.
Ergueu o volume do corpo com certa agilidade, se retirou para a cozinha e
voltou com um ovo, um breviário e algumas velas. Sentou-se na minha frente e as
acendeu; em seguida me mandou apagar as luzes. Colocou as mãos polpudas sobre
as minhas.
Fechou os olhos e ficou em silêncio.
— Estão aqui — murmurou com voz áspera.
— Quem?
— Cale a boca — repreendeu-me. — Eles estão te ouvindo. Aqui, à sua volta.
Você não pode vê-los, mas eles, sim, podem te ver. Seguem sua família desde o
shtetl.
Entendi o que dizia. Os shedim. As criaturas que revoavam ao redor da minha
avó na lua cheia. Sutis como libélulas.
— Não tenha medo. Rodeiam você e seus ancestrais há gerações, aprenda a
conviver com eles, aguce o ouvido e ouça seus sussurros.
Pegou o ovo e o colocou sobre a chama, recortado na escuridão como uma
minúscula lua oblonga, e Charna examinou as filigranas que transluziam desde seu
interior.
— A resposta que dão à sua pergunta é sim — opinou. — Serão gêmeos.
Fiquei muda.
— Há algo mais — acrescentou. — Um deles será bom, e o outro mau. Eles
dizem que você deve saber disso.
Pegou o livro de preces e me instruiu para que a acompanhasse. Não me
lembro do que disse mais sobre os shedim, minha impressão era a de que buscava
apaziguá-los. Embora obviamente eu não acreditasse — nem acredite — nessas
superstições, não conseguia tirar as palavras dela da cabeça e os soluços me
venceram. Charna tentou me consolar com certo ar maternal. Soltei-me de seu
abraço, coloquei algumas notas na mesa, agradeci e fui embora correndo.
Por semanas não consegui apagar da minha cabeça aquele corpinho duplicado
dentro de mim. Até seu pai, que nessa altura parecia se preocupar somente com ele,
notou minha angústia e perguntou o que estava acontecendo comigo. Disse a ele:
estou grávida. Percebi que se esforçava para conter a ira e tentava se mostrar
razoável. Como é possível? E como você sabe? Simplesmente sei. Você foi ao
médico? Não. Então? Simplesmente sei, repeti. E uma coisa pior: são gêmeos. Você
não vai semear mais uma vida neste mundo de merda, Noah, mas duas.
Seu pai não conseguiu mais se controlar; deu um murro na parede — depois
precisou colocar uma tipoia — e saiu correndo para a rua. Mas era um bom homem
e voltou depois de alguns minutos, me pediu desculpa e me mandou ir ao médico.
Não me atrevi a lhe contar sobre minha visita à velha Charna, não falei sobre os
shedim nem contei o pior, que segundo ela um dos filhos seria bom e o outro, mau.
Como uma pessoa viciada na racionalidade e nas leis da história, como o seu pai,
iria dar crédito a uma predição tão maluca?
“Você está de nove semanas”, confirmou o especialista, mas insistiu em que no
meu ventre se ouvia um único coração e, portanto, só havia um feto. Nada de
gêmeos. Eu resisti a confiar no diagnóstico, tinha certeza de que estava errado.
Apesar dos violentos resmungos do seu pai, que de qualquer maneira não demoraria
a nos abandonar, só deixei de acreditar em Charna e na maldição dos shedim na
noite em que você nasceu.
O parto demonstrou que, finalmente, eles tinham se enganado: só você
habitava o meu ventre, meu filho. Não havia o menor vestígio de um irmão
perverso. Foi tudo uma loucura, o desvario de uma mulher afligida pela solidão,
pela incerteza e pelo desejo. Em meio ao desassossego, as coincidências parecem
profecias. É curioso que finalmente você tenha engendrado gêmeos, mas este já é
outro tempo, a era do progresso e dos avanços da ciência, do ultrassom e das viagens
à lua, não há nada com o que deva se preocupar.

RECITATIVO

Ah, minha mãe.


Embora suas ideias pressagiassem o raivoso feminismo dos anos 1970 — ou,
agora que penso, talvez justamente por isso —, Judith garantia que as leis de
herança eram uma porcaria; achava que a evolução era um estratagema masculino,
concebido com o único fim de tirar metade dos filhos de suas únicas proprietárias
legítimas, as mulheres. Quem viu os x e os y dentro das nossas células?, zombava,
enquanto Crick e Watson se transformavam naquilo que ela mais odiava ao lado de
Nixon, Hoover, o papa e qualquer milionário, incluindo os Kennedy. Segundo ela,
o caráter infantil se molda graças à imitação, essa cópia silenciosa e ineludível que
tem início quando a mãe embala a criança no colo e sorri para ela. “Os homens
permanecem sempre ausentes”, explicava, “e está correto que seja assim. Não
entendo estas mulheres que se queixam de trocar fraldas ou esterilizar mamadeiras
enquanto seus maridos discutem política ou se entorpecem de cerveja na frente da
televisão. Deveriam ficar felizes de que essas diversões primitivas os afastem de suas
crianças.”
Ah, minha mãe.
No meu caso mal escondia seu regozijo por carecer de concorrência: depois da
prematura morte do meu pai — lembro-lhes, comovidos leitores, que eu nasci duas
semanas depois da queda dele —, ela foi meu único modelo. E se esforçou para que
assim fosse. Não posso garantir que abraçasse o celibato, mas nenhum homem
voltou a cruzar nossa porta. Sua particular teoria psicológica nos condenava a nos
parecer como duas gotas de água; desde que tive uso de razão, este foi seu único
objetivo, seu heroico desejo: transformar-me no seu duplo, moldar-me à sua
imagem e semelhança. Ela devia ser minha deusa e eu, sua criatura; ela, meu Zeus, e
eu, sua Atena; ela, o rabino de Praga, e eu, o seu Golem; ela, o doutor Frankenstein,
e eu, o seu (atraente) monstro.
Venceu em muitos aspectos: na nossa postura equivalentemente deselegante,
em como mordemos o lábio inferior ao nos zangarmos, na nossa paixão comum
pelas loiras de Hitchcock e pelas histórias de fantasmas, no ódio que professamos
aos ricos, aos imbecis e aos pacatos (imaginem quando alguém reúne todos estes
atributos, algo um pouco mais frequente do que se imagina), na nossa incapacidade
para nos manter em silêncio e no prazer que nos proporcionam as fofocas e as
revistas de celebridades, na nossa repulsa aos ovos quentes, aos gatos siameses e aos
fisiculturistas e nesse egoísmo íntimo e denso, invisível aos nossos olhos, que
domina cada um dos nossos atos.
As cópias, infelizmente, nunca são perfeitas. E olhem que, por carinho ou por
medo, eu me esforcei para imitar até os vestígios de iídiche do seu sotaque do
Brooklyn e em manter, como ela, uma mínima esperança no gênero humano.
Impossível. Desde criancinha exibi alguns traços diferenciais que Judith procurava
extirpar como tumores cancerígenos: minha predileção pelos tons pastéis, enquanto
ela adorava os ocres e os vermelhos; um temperamento mais competitivo do que ela
julgava saudável; minha afeição por Nabokov, pelos coleópteros e pela Fórmula 1;
certa malícia que ela achava perigosa (e estava certa); minha paixão pelos gibis e
pelos desenhos animados; e, acima de tudo, minha mania de colecionar.
Compartilhávamos, isso sim, a desconfiança em relação a Freud e à psicanálise,
de modo que não impingirei a vocês, pacientes leitores, um sem-fim de histórias
sobre a minha infância e seus abismos para que vocês extraiam insípidas conclusões
sobre minha tendência à fraude e à fuga. Sempre detestei nas biografias aquela
ordem cronológica que nos obriga a julgar a vida como um caminho reto e
iluminado que comunica a escuridão do útero com o negrume do túmulo. Que
falácia supor que sempre fomos os mesmos ou que as causas da nossa perdição se
inscrevem nas cicatrizes do passado! Quando me aprofundo nas memórias de um
maestro ou de uma estrela de cinema, começo minha leitura quando estes
ultrapassaram a casa dos vinte, economizando centenas de páginas abarrotadas de
papinhas e torturas escolares.

Judith Farbstein, minha mãe, quando jovem.

Fazendo justiça a esses princípios, tentarei resumir minha infância — toda a


minha infância, desde meu nascimento até os doze — em dois episódios. Será
suficiente? Desenham com um único traço a relação com a minha mãe. E ainda me
doem. Só peço que não os interpretem em termos simbólicos!
Eu devia ter uns sete ou oito anos, e toda vez que ia ao banheiro levava comigo
um pedaço de papel-alumínio desses que se usam para embrulhar sanduíches; uma
vez ali, depositava uma amostra do meu cocô no alumínio antes de me sentar na
privada. Purgados finalmente meus intestinos, não puxava a descarga, para me
assegurar de não ser interrompido, e me concentrava em analisar minhas
imundícies. Um pesquisador nato! Intrigava-me a relação entre os alimentos que
consumia e a consistência, a cor ou o cheiro da merda que produziam, e perseguia
vestígios visuais ou olfativos dos espinafres do jantar, do macarrão do almoço ou dos
corn flakes do café da manhã, certo de que realizava progressos cruciais para o avanço
da ciência. Anotava minhas descobertas em uma caderneta de capa nacarada, em
cujas páginas indicava a hora e o dia de cada evacuação, traçava esquemas e quadros
comparativos e, em uma escala de 10 a 1, avaliava a solidez e consistência do
material, assim como sua pestilência (para outros, pois eu era imune aos eflúvios),
além de anotar minha hipótese sobre a origem animal ou vegetal de cada produto.
Por último, dobrava com cuidado o papel-alumínio até formar uma bolinha que
depois escondia em uma prateleira secreta no fundo do armário.
Sei que para muitos meu hobby parecerá insano ou que tentarão explicar com
ele minhas perversões. Meu temperamento analítico e minha paixão pelos detalhes,
virtudes que foram de enorme utilidade nos meus esforços posteriores, me
orgulham. Quem poderia afirmar que, se continuasse com as minhas pesquisas, não
teria me transformado num químico ou num nutricionista famoso? Ou que não
teria podido fundar uma nova disciplina, a merdologia, e publicar dezenas de artigos
e livros acadêmicos sobre o tema? (Meus clientes teriam agradecido.)
Ah, minha mãe.
Judith não estava interessada no progresso da ciência. Um dia, quando voltei
do colégio e me dirigi ao armário com uma nova variedade de cocô para a minha
coleção, todas as amostras tinham desaparecido. Não restava o menor rastro delas,
inclusive seu leve fedor tinha sido adoçado com desinfetante. Minha mãe não me
disse nada. Eu sabia que ela era a culpada pelo furto, mas não me atrevi a denunciá-
la, e ela se defendeu com uma calculada indiferença para com as minhas penas. Não
me repreendeu nem me perguntou nada naquela noite e, embora eu tenha me
recusado a jantar e depois não tenha dito praticamente nenhuma palavra, não me
repreendeu como das outras vezes. Quando me deitei, se limitou a colocar um copo
de leite e alguns biscoitos ao lado da minha cama. Até cheguei a duvidar de que
alguma vez tivesse armazenado aquelas bolinhas prateadas e, nos enganosos
pântanos da memória, ainda hoje não poderia jurar que as tive. Em compensação, a
sensação de ter sido traído — pior: despojado — por Judith me acompanhou por
vários anos. Suponho que pelo menos essa raiva é autêntica.
Ah, minha mãe.
Pouco a pouco esqueci o episódio, até que Judith se uniu aos alienígenas.
Segundo as informações que eu colhia nos suplementos ilustrados dos domingos, os
extraterrestres já se encontravam entre nós, suas escamas gordurosas e seus olhos
viperinos permaneciam escondidos debaixo de falsas peles brancas e falsos sorrisos
amigáveis. Por mais que a gente se empenhasse em desmascará-los, possuíam uma
fórmula que lhes permitia copiar nossa aparência; só ao morrer, especialmente nas
mãos de um justiceiro ou um policial, se revelava sua natureza de répteis, então sua
carne ardia espontaneamente e suas caudas de lagarto se agitavam, espasmódicas, até
virar cinzas. A lição era muito simples: era preciso estar sempre atento, suspeitar de
amigos e vizinhos, qualquer um deles podia levar no seu interior uma dessas
criaturas.
Depois de várias tardes suportando seu gelo — deixava de falar comigo toda
vez que minhas notas não preenchiam suas expectativas —, me convenci de que
Judith era um deles. Estudei seu comportamento por semanas, espiava-a quando
dormia e vigiava os componentes da sua dieta (diziam que necessitavam de muito
açúcar), sem chegar a um diagnóstico preciso. E se minha verdadeira mãe tivesse
sido abduzida e substituída por uma lagartixa de plástico? Escondido, a ouvia
murmurar ao telefone palavras incompreensíveis, talvez produto de sua cacofônica
língua extraterrestre.
Sabia que em uma das gavetas da cômoda escondia um pequeno cofre e
imaginei que guardasse dentro dele os planos de sua nave ou as instruções para
assassinar nossos líderes. Se quisesse mesmo salvar a minha vida — e garantir a
sobrevivência dos humanos na Terra —, teria que arrombar esse cofre e entregar seu
conteúdo às autoridades. A missão não era simples, Judith tinha me proibido de
entrar no seu quarto e se mostrava sempre receosa e vigilante. Minha única
oportunidade consistia em aproveitar seu banho noturno. O plano era arriscado: se
decidisse abrir a porta de forma intempestiva, eu ficaria à mercê de suas presas.
Preparei-me durante semanas, medindo os minutos que passava debaixo d’água:
entre 7 e 12, dependendo do seu cansaço. Fiz dois ensaios e me preparei para a data
decisiva.

Eu, quando criança.

Era uma terça-feira, lembro porque neste dia ela costumava visitar o túmulo do
meu pai, e parecia particularmente cansada. Devorei correndo minha omelete e me
refugiei no meu quarto, teoricamente para terminar meus deveres. Ela leu um pouco
e finalmente se trancou no banheiro. Eu não podia perder nem um segundo, entrei
em silêncio no seu quarto e, cuidando para que não rangesse, abri uma gaveta atrás
da outra sem achar o cofrinho. De repente, quando voltei a olhar, minha mãe estava
na minha frente, pequenina e ameaçadora. Seus olhos projetavam uma aura
avermelhada, como todos os lagartos. Estava perdido.
— É isto o que está procurando? — perguntou com voz calma, mostrando o
cofre que segurava nas mãos (deveria dizer: garras).
— Não — balbuciei.
Primeiro me deu uma lição sobre a privacidade e o respeito aos segredos dos
outros; depois me deu duas sonoras palmadas (senti as escamas sob a pele rugosa das
palmas) e me confinou no meu quarto até segunda ordem. Quase senti alívio: pelo
menos não tinha me devorado.
Mas sua vingança posterior não teve limite. Quando voltei do colégio no dia
seguinte, me pediu que lhe mostrasse minha coleção de gibis. Trêmulo, lhe mostrei
minha ampla variedade de super-heróis e vilões — meus favoritos eram os que se
dividiam entre uma existência cotidiana vulgar, não muito diferente da minha, e
outra cheia de aventuras e perigos —, e ela exigiu meus tesouros mais apreciados:
meus gibis de óvnis e extraterrestres. Displicentemente, Judith folheou um exemplar
de Túnel do tempo, meu preferido. Pensei que o derreteria com sua visão de raios
laser. Mas, em vez disso, mandou colocar todos os gibis em uma mala de couro.
Chorei em silêncio, consciente de que não teria coragem para fugir e me unir à
resistência. Judith me levou a um orfanato e, a fim de me mostrar o valor do
desprendimento e a perversidade da avareza, me obrigou a doar minha coleção de
gibis, dezenas de exemplares acumulados ao longo dos anos. Nunca descobri se ela
era uma invasora extraterrestre ou só uma mãe severa e implacável (hoje acho que
tinha essas duas naturezas). Do que não há dúvida é de que seus métodos de ensino
não obtiveram os resultados que desejava: obrigar-me a renunciar às minhas posses
mais queridas não me transformou em uma pessoa melhor, não me tornou mais
sensível diante da desventura ou da pobreza, não me impulsionou a ser caridoso ou
dadivoso. Ao contrário: se depois doei milhões a todo tipo de causas filantrópicas foi
somente para lavar minha imagem ou diminuir o montante dos meus impostos.
Nessa tarde, enquanto voltávamos de metrô para casa, jurei que algum dia seria
dono da maior coleção de gibis de alienígenas do mundo. Cumpri isso. Com certeza
a polícia a expropriou sem perceber o valor sentimental — e, não nos enganemos,
econômico — que essas revistinhas tinham para mim.
Ah, minha mãe.

DUETO

Eu não podia prever a reação de Judith — embora nessa época eu fosse um


deus, minha clarividência tinha limites — quando decidi visitá-la na suntuosa
residência para idosos nos subúrbios de Orlando, onde cinco anos antes eu mesmo a
tinha confinado. Aos seus oitenta e sete parecia tão lúcida e aguerrida quanto fora
quando jovem; segundo sua enfermeira — uma sulista sardenta, com um leve
estrabismo que a tornava encantadora —, minha mãe era uma dor de cabeça
maravilhosa que, embora não despertasse a imediata simpatia das colegas, incitava
admiração pela fortaleza de seu espírito e pela severidade de seu caráter. Em outras
palavras: autoritária e insolente, resistia a cumprir normas e horários, teimando em
impor sua autoridade às demais anciãs, aliás não tão dóceis quanto sugeriam seus
andadores e suas pílulas. Por que venci minhas resistências e em pleno voo pedi a
Matt que, em vez de me levar a Londres, à apresentação inaugural do Covent
Garden — Les contes d’Hoffmann com o impetuoso Rolando Villazón como
protagonista —, desviasse o rumo para o sul da Flórida como se fosse um assunto de
vida ou morte? Não tenho resposta. Estava havia meses ruminando a possibilidade
de falar com ela, de confrontá-la até o final, de colocá-la contra a parede.
— A verdade, meu filho? — zombou durante nossa última briga. — A esta
altura você já deveria saber que cada um tem a verdade que merece.
Custa imaginar que aquela velhinha enrolada em um foulard cor de ameixa, as
bochechas empoadas com esmero, a cútis de menina e as mãos, essas sim,
manchadas e ossudas (a única prova de sua condição extraterrestre), fosse capaz de
dobrar um quarentão célebre por suas explosões e rompantes, mas bastava que ela
elevasse alguns decibéis o tom para que o órfão aterrorizado dentro de mim se
rendesse ao seu capricho. Nesse dia abandonei correndo sua casa de Vermont — o
ermo onde teimou em se instalar —, me sentindo como um cachorro espancado.
Em represália, aludi à sua incipiente senilidade e a obriguei a se mudar para esse
cemitério de elefantes na Flórida, o último lugar do mundo que uma mulher
alérgica ao sol e aos aposentados teria escolhido. Os seis anos de distância e de
silêncio (me esforcei para não ligar nem sequer no aniversário dela) pareceram
adoçá-la, ou pelo menos não fingiu estranheza ao saber da minha visita. Também
não me jogou na cara o meu esquecimento ou a minha frieza, me recebeu com um
meio sorriso e me deu um abraço apertado. Trocamos duas ou três banalidades
sobre sua saúde e o clima, que para ela se tornava irrespirável, e recomeçamos nossa
batalha.
— O que quer saber? — disse, mais soberba do que resignada. Seria a mesma
até o final.
— Quem era Noah.
Ao longo dos últimos vinte anos eu tinha investido dezenas de milhares de
dólares para pesquisar isso. Mas ainda restavam lacunas, vazios, interstícios, ou pelo
menos eu devia considerá-los como tais para que ela e somente ela tivesse
oportunidade de preenchê-los. Por mais absurdo que pareça, eu solicitava sua última
palavra. Sua sentença. Como se, além dos arquivos e dos testemunhos, as cartas e os
fólios judiciais, os relatórios secretos e os segredos roubados — tudo isso que
felizmente se compra com dinheiro —, só ela pudesse confirmar a autenticidade das
minhas pesquisas e recompor a ordem das peças. Ordenou que a acompanhasse ao
jardim, se instalou em uma curva sob as árvores e pediu uma jarra de chá gelado à
enfermeira. Sentei-me diante dela em uma desconfortável cadeira de metal.
— Não quer nada?
Neguei com a cabeça.
Minha mãe no asilo.

— Você devia tomar um refresco — insistiu. — O calor está apenas


começando, e uma longa história te espera.
Um traço impertinente, como se antecipasse sua vitória, brilhava nos seus
olhos. Por que depois de tanto tempo queria me agradar? Por que abdicava de um
silêncio tão bem guardado? Antecipava a proximidade do seu fim e queria aproveitar
a última oportunidade para se justificar? Esta explicação me pareceu, naquele
momento, a correta. Acreditei na sua boa-fé. Não tinha, provavelmente, outro
remédio.

CABALETTA DE JUDITH

Seu pai parecia um vagabundo. Eu trabalhava como vendedora em uma loja de


roupas, e todas as tardes ele parava diante da vitrine, apenas dez ou vinte segundos,
o suficiente para que eu reconhecesse os traços finos, o cabelo emaranhado ou o
chapéu de feltro nos dias invernais, os óculos redondos, o pequeno bigode como
uma linha de sombra entre o nariz aquilino e a linha dos lábios. Não chamou minha
atenção por sua atitude, nem porque visse em seu olhar algum resquício de astúcia
ou de desejo; foi a mera frequência de suas aparições, sua regularidade tenaz e
irremediável, o que deve ter se fixado na minha memória.
Quando finalmente se atreveu a entrar na loja, eu o confundi com um familiar
ou um conhecido. Cumprimentou-me de modo cortante ou mais propriamente
contido e me pediu um cachecol. De que cor, perguntei. Ficou mudo, como se fosse
a questão mais espinhosa. Não sei, murmurou, não pensei. Ri na cara dele,
francamente, sem malícia, curiosa diante da severidade de seu semblante. Fui até o
depósito e voltei com um longo de tricô alaranjado, a cor mais berrante que
encontrei só para provocá-lo. Não sei, murmurou. Por que não experimenta?,
propus com desenvoltura e o coloquei em volta do pescoço dele. Não estava
flertando, ou apenas o mínimo dentro do que uma moça deve tentar; sua reação
entre assustada e surpreendida me divertia. Fica ótimo!, exclamei. Tirou algumas
notas da carteira e levou o cachecol exatamente como eu o tinha colocado. Pensei,
com certo gosto de tristeza, que ele não voltaria a parar diante do balcão.
Na segunda-feira entrevi de novo seu rosto melancólico do outro lado do vidro
e o cachecol em volta da garganta. Sorri para ele e o cumprimentei com a mão; ele
demorou a reagir e finalmente levantou o braço. Continuamos essa dança muda por
semanas, cada um do seu lado do vidro, como se essa translúcida fronteira nos
condenasse a habitar mundos paralelos. Fora esses instantes de silêncio cúmplice, ele
não se intrometia nos meus pensamentos; eu estava muito ocupada com minhas
tarefas e com chegar a tempo à escola noturna para me interessar pela apagada
presença daquele homem que, com suas idas e vindas, me parecia muito mais um
fenômeno natural do que um namorado ou um pretendente.
Meus pais em 1952.

Em uma dessas tardes (acho que a menstruação me enlouquecia) não consegui


me conter ao vê-lo ali, com seu tímido cumprimento habitual, e saí para confrontá-
lo. O vento me deu uma bofetada. Puxei-o pelo braço e o conduzi ao vestíbulo. Ele
me observava desconcertado, eu diria que morto de medo.
— Me convide para ir ao cinema — minha frase soou mais como uma ordem
do que como uma proposta.
— Não sei — titubeou —, hoje não…
— Amanhã então.
Concordou e foi embora correndo.
No dia seguinte chegou pontualmente ao nosso encontro. Mas me advertiu
que, antes de me levar ao cinema — eu morria de vontade de ver Mulher satânica,
com Marlene Dietrich —, daríamos um passeio. Pegamos o metrô, fizemos várias
baldeações e finalmente descemos em uma área do Bronx que eu nunca tinha
visitado.
— O que estamos fazendo aqui?
Noah (só então me revelou seu nome) deu de ombros e eu apertei seu braço.
Caminhamos por ruelas devastadas, infestadas de mendigos e prostitutas, crianças
imundas e armazéns com muros e paredes pichados, vidraças quebradas e latas
repletas de lixo. O saldo da Grande Depressão. Minha família, como você sabe,
estava longe de ser rica, mas o bairro do Brooklyn onde cresci não mostrava aqueles
estragos ou eu não tinha sabido vê-los. Lembro a você que eu tinha dezoito anos;
seu pai, trinta e quatro. Ou seja: eu era uma mocinha cheia de ilusões e, apesar dos
tempos ruins, ainda acreditava no sonho americano; tinha experimentado a pobreza,
certamente, mas nessa altura o destino dos outros não me preocupava, e sim
progredir por mim mesma, prosseguir meus estudos e talvez formar uma família.
Noah, por sua vez, não podia ser mais rigoroso nem solene. No nosso primeiro
encontro me levava para ver a miséria da urbe, o desânimo que prevalecia nos
bairros pobres. Reconheço que não soltou nenhum sermão, nada de discursos nem
chantagens lacrimogêneas. Não era seu estilo. Simplesmente queria deixar claras suas
prioridades, gostava de sair comigo, mas primeiro, antes de mim e antes dele
mesmo, estava sua simpatia pelos abandonados.
Seu idealismo me obrigou a vê-lo de outra forma, como se naquele dia tivesse
me revelado a parte mais profunda da sua alma (essa alma em que, como eu soube
depois, ele não acreditava). Compartilhei sua preocupação e sua ânsia de justiça ou,
no meu egoísmo adolescente, pelo menos me esforcei para me mostrar solidária, o
que não me impediu de exigir dele, no final dessa primeira lição de consciência
social, que cumprisse sua palavra. Se me acompanhou ao cinema a contragosto, não
demonstrou; ao constatar minha teimosia (ou as feições duras da Dietrich), esboçou
um dos poucos sorrisos espontâneos de que me lembro nos seus lábios.

RECITATIVO

Ao longo de sua inesgotável cabaletta, Judith não me permitiu interrompê-la; se


eu tinha teimado em rastrear sua história, agora só restava deixar que a contasse à
sua maneira. Impossível convencê-la a acelerar o ritmo; toda vez que eu
demonstrava minha impaciência, mudando de posição, dando um suspiro ou
espiando as mensagens do meu telefone, ela me lançava um dos seus olhares laser ou
me recriminava diretamente dizendo que, se eu não estava disposto a ficar quieto e
atento, ela não tinha o menor interesse em continuar com o relato.
— Uma história como a nossa fica incompreensível se não for contada desde o
começo — insistia. — Para nos julgar com equilíbrio você precisa conhecer as
sutilezas, os detalhes.
Tirei o som do celular, pedi um copo de água à enfermeira e tentei manter a
compostura.
Entre o episódio do cinema e o primeiro beijo transcorreram, segundo ela,
vários meses. Meses de trabalho social e filmes em preto e branco, como se o
compartilhamento de seus respectivos interesses fosse a forma de se seduzir e unir
para sempre.
— Graças a ele aprendi a me preocupar com os outros e a me opor a qualquer
forma de injustiça — resumiu. — Quanto a mim, ensinei-o a explorar suas
emoções.
Poucas vezes a vi rir assim, com o olhar imerso no passado. Não ponho em
dúvida sua nostalgia daquela época dourada, mas sua felicidade, se a teve, não
obedecia a motivos tão românticos.
— Ficamos noivos em maio de 1937 — revelou mais adiante. — Foi então que
finalmente me desfiz do Spencer.
— Spencer?
— Meu namorado.
— Quer dizer que durante esses meses idílicos você tinha outro namorado?
— Uma mulher tem obrigação de cuidar de todas as suas opções —
repreendeu-me Judith, orgulhosa de suas conquistas juvenis. — Eu gostava do
Noah, mas precisava averiguar o que havia por trás do seu silêncio.

CABALETTA DE JUDITH (REPETIÇÃO)

Seu pai — o nome original era Noe, parece — nasceu, acho, em 1901, em um
lúgubre apartamento no gueto de Cracóvia, ou pelo menos era isso que ele contava,
pois seus pais o tiraram de lá aos três anos, e eles o relembravam como um lar
arejado e luminoso. Os Wołpe vinham de uma estirpe de alfaiates e curtidores
transformados em pequenos comerciantes. Não se pode dizer que era uma família
rica, pois nesse caso não se justificaria sua emigração americana, mas tampouco
eram miseráveis e, o que é mais relevante, o pai era um homem ilustrado: um
antissocial amante da história e da literatura que, apesar da condição de ferreiro,
chegou a reunir uma pequena, porém nobre, biblioteca.
Quando eu o obrigava a mergulhar nas suas origens, Noah se referia ao pai com
uma mistura de admiração e amargura; ao que parece era um homem tão miserável
quanto expansivo e tão meticuloso quanto irascível, que podia passar horas lhe
contando histórias mitológicas ou açoitá-lo sem piedade pela mais insignificante
falta. Certa noite, remexendo em suas gavetas, vi uma fotografia do velho. Sentado
diante de um aparador de carvalho e algumas porcelanas em sua casa de Nova
Jersey, com sua jaqueta preta e seus óculos ovais — e certa aridez no semblante —,
era idêntico ao seu pai: o mesmo olhar inquisitivo, as mesmas orelhas pontudas e o
mesmo bigodinho. Da mãe sei ainda menos. Uma mulher marcial e reservada, tão
distante e áspera quanto o filho.
Como sempre lhe disse, a única coisa que importava para Noah era a música;
ele nunca teria expressado isso desta forma, pois na maturidade a desprezou como
uma maldição ou um estorvo. Eu acho que, depois da morte de Harry e de sua
injusta demissão do Fundo, a música o fazia pensar no destino que não tinha
seguido, neste destino que, se não fosse por seu escrúpulo e seus medos, teria lhe
proporcionado mais satisfações do que sua fracassada missão de funcionário. Deus
tinha lhe concedido um dom sem limites: um ouvido absoluto. Você herdou o
talento musical do seu pai, embora não se possa comparar com o dele, com aquela
faculdade que lhe permitia distinguir cada nota como outros apreciam as cores. Um
ato de magia. Quando estávamos começando a sair eu lhe indicava a primeira coisa
que ouvia, um miado, o apito de uma fábrica, um grito entrecortado, a buzina de
um carro; seu pai não hesitava e dizia dó ou ré sustenido. Nem sequer se orgulhava. É
como se pedisse que me dissesse se as folhas de uma árvore de bordo são vermelhas
ou se a superfície da lua é branca, qual é o mérito?
Seu avô descobriu esta virtude muito cedo e, com sua mania de perfeição e sua
queda pela arte, permitiu que estudasse violino com um dos tios. Embora não fosse
um Mozart ou um Beethoven, Noah, ao que parece, era capaz de interpretar as
obras deles desde os onze. Agora que você é fã dos concertos e da ópera, entenderá
melhor o que digo. Seu pai encontrou refúgio nos pentagramas; não tirava notas
baixas na escola — destacava-se em matemática —, mas sua habilidade com o
violino era tão incrível que seus novos professores lhe auguraram um futuro de
solista. Aos doze deu seu primeiro recital e recebeu críticas entusiasmadas.
— E o que aconteceu então? — perguntei ao seu pai quando completamos um
mês de namoro.
— Um acidente na mão esquerda — respondeu. — Aos quatorze. Nada
terrível, duas falanges fraturadas. Disseram que depois de um tempo eu voltaria a
tocar se fizesse os exercícios. Mas nessa altura eu já tinha outros interesses.
Nunca confiei na explicação dele. E quais podiam ser esses interesses? Ele se
recusou a aprofundar o assunto. Anos mais tarde, conversando com um dos poucos
amigos que lhe restavam de Nova Jersey, Daniel Arensky — um economista do
Tesouro, robusto e impertinente, que flertava comigo embora eu nunca tenha
chegado a simpatizar com ele — me revelou que essa história era apenas
parcialmente verdadeira. Não tinha sido um acidente: durante uma briga com o pai,
cuja natureza Arensky desconhecia, este tinha fechado uma porta nos dedos dele.
Exatamente como você está ouvindo. Que tipo de pai faria uma coisa dessas?
Imediatamente perguntei a Noah sobre a revelação de Arensky. Ele negou o que o
amigo disse: seu pai nunca o teria machucado, teria que esclarecer isso para Daniel.
Muitos anos depois, pouco antes de nos deixar, Noah voltou a sentir saudade
da sua malograda profissão de violinista. Um dia me confessou que a briga com o
pai tinha acontecido e que a causa havia sido mesmo a música. Seu avô tinha
orgulho do talento do filho, mas, desde que Noah começou a dar recitais em
público, a relação deles se deteriorou, raramente assistia aos concertos e evitava
qualquer menção às suas obras ou compositores favoritos. Seu avô achava que a
música era um passatempo louvável, inclusive apaixonante, mas que devia se manter
assim: um passatempo. Pagara as aulas de Noah para impressionar os parentes ou
para que o garoto passasse um tempo divertido com uma partita de Bach ou uma
sonata de Brahms, mas antes e depois devia se consagrar à única coisa que valia a
pena: sua honesta profissão de comerciante. O velho Volpi não tinha emigrado da
Polônia para Nova Jersey, não tinha realizado uma infinidade de trabalhos infernais,
não tinha economizado para estabelecer seu negócio de ferramentas e nem tinha
progredido até transformá-lo em um empório — três filiais no estado — para que
seu único filho o deixasse apodrecer pela estupidez de embarcar em uma carreira de
músico ambulante.
“Em Cracóvia há garotos com o mesmo talento que você até embaixo das
pedras”, repreendeu-o. “Não nego que a arte pode ser uma alegria, mas há coisas
mais sérias, mais adultas. Um homem, um verdadeiro homem, se esforça para
progredir por seus próprios meios, sem confiar seu futuro a um dom passageiro. A
sociedade é um terreno hostil, meu filho, em que uns competem contra outros e só
os que perseveram são recompensados. Continue tocando seu violino, ninguém
impede isso, mas lembre-se de que é sua obrigação garantir que o negócio familiar
prospere e se multiplique. Não saímos do gueto para virar trovadores, mas para
encontrar um lugar digno no Novo Mundo. Entenda, Noah: nossa obrigação é criar
empregos, crescer, expandir o mercado; você deve se concentrar nisso, o resto é pura
vaidade. Imagino que não vai querer me decepcionar e muito menos decepcionar a
sua mãe. Você é a nossa esperança. Atualmente, as Lojas de Ferragens Volpi
constituem um dos pilares da comunidade judaica de Nova Jersey; quando Deus me
chamar, quero ter certeza de que as deixarei em boas mãos.”
— E então fechou a porta nos seus dedos? — perguntei.
— É óbvio que não. Meu pai era um homem bom — exasperou-se Noah. —
Eu mesmo fiz isso. Só assim conseguiria vencer a tentação, abandonar a ideia de ser
solista e me conformar com o destino que meus pais tinham planejado para mim.
Acho que, se tivesse tido coragem, Noah teria chegado a ser um grande solista,
como Heifetz ou Menuhin, garotos judeus que contaram com o apoio necessário
para desenvolver seu talento. Agora não importa mais. Além de possuir esse controle
sobre suas próprias emoções, seu pai era um rapaz brilhante que podia se destacar
em outros âmbitos. Já lhe disse isso: era um gênio para a matemática e, já afastado
das distrações da música, logo se tornou o primeiro da sua classe. Dizem que entre o
contraponto e o cálculo não há grande distância, você pode me desmentir. Seja
como for, no caso dele a transição se operou de maneira quase natural, sem lugar
para remorso ou amargura. Frente a esse universo de números e teoremas, tão
bonito para Noah quanto um contraponto barroco, seu avô nada tinha a objetar.
Que para o seu pai o mundo real não importasse era um segredo que ele agora
reservava para si próprio; perdido no irreverente terreno dos números, voltava a se
sentir a salvo. E, o que era melhor, sem que ninguém questionasse sua entrega.
Ao terminar o secundário, Noah ganhou uma bolsa para estudar na Faculdade
de Nova Jersey, onde teve aulas de cálculo e matemática avançada e, para continuar
fingindo certa disposição prática, de administração e contabilidade. Algumas tardes,
visitava as lojas de ferragens para colocar em ordem as finanças; a tarefa não ocupava
mais do que algumas horas. O conflito renasceu, como era previsível, no final desses
cursos; graças às suas notas, seus professores lhe prometeram outra bolsa, desta vez
para um doutorado em Columbia. Isso significava se mudar para Nova York, terra
de malfeitores e boêmios, uma coisa que o pai dele nunca aprovaria. Uma nova
disputa esteve a ponto de colocá-los em confronto, mas uma súbita trombose enviou
seu avô ao cemitério, aos sessenta e três anos. Noah pensou em assumir a
administração do negócio; a mãe, uma mulher apagada e cuidadosa que até então
tinha guardado silêncio diante dos dilemas do filho, mandou-o ir para Nova York
estudar seu doutorado.
— É o que você quer — advertiu. — Quando se formar, voltará para cá e me
ajudará com as lojas de ferragens.
Noah se matriculou então em Columbia, disposto a se especializar em
economia, disciplina que combinava sua paixão pelos números e pelos planos
imaginários com a devoção pelos problemas cotidianos que o Velho teria lhe
imposto se ainda estivesse vivo. A mãe morreu pouco depois de Noah se instalar na
Big Apple. Livre de rédeas, passou o controle do negócio familiar a um primo e se
concentrou nos estudos.
Quando começou a passear na frente da nossa vitrine, já fazia alguns anos que
Noah entrara para o Federal Reserve de Nova York, na rua Liberty, como assistente
financeiro. Um trabalho que não o entusiasmava, mas que tampouco detestava (e
preferia não comentar comigo). Dali poderia desenvolver uma sombria e ascendente
carreira de banqueiro.
De onde vinha o compromisso social que distinguiu sua atuação pública, já
que, segundo o retrato que tracei, seu pai parecia bem pouco preocupado pelo seu
entorno? Direi: a Grande Depressão o transtornou. Durante os anos no Federal
Reserve de Nova York descobriu a dor alheia graças às longas caminhadas pelos
subúrbios da cidade. A partir de então nunca mais fechou os olhos diante da penúria
de seus semelhantes. Por isso era cada vez mais incômodo para ele trabalhar em uma
instituição que não aliviava essa miséria. Você acha errado que um homem encontre
a dignidade e se identifique com os pobres? Que alguém sensível e inteligente como
o seu pai saia de si mesmo para se colocar no lugar de quem sofre?
Assim que apareceu uma oportunidade — já estávamos namorando havia
vários meses —, aceitou o cargo que um antigo professor lhe oferecia na
Administração de Seguros Agrícolas criada por Roosevelt. Seu pai era um idealista.
Seu pai queria melhorar o mundo. Isso constitui uma traição ou um pecado? Como
outros jovens de sua geração, confiava em que as reformas do New Deal ajudariam a
atenuar a pobreza de milhões. Quando me detalhou no que consistiria seu trabalho,
juro que senti uma imensa alegria. O Federal Reserve não era um lugar para ele,
para nós.
— Você gostaria de me acompanhar? — me perguntou em uma cafeteria da
Terceira Avenida.
Outra mulher poderia ter sentido que essa proposta carecia de romantismo,
mas eu me senti lisonjeada. Também acreditava em Roosevelt e no New Deal e em
um futuro promissor. Casamos no grande templo situado no número 17 da Eastern
Parkway, acompanhados por alguns poucos familiares (meus). Dois dias depois,
tomamos o trem para Washington, onde alugamos um minúsculo apartamento no
Dupont Circle. Aqueles foram, sem dúvida, os melhores anos do nosso casamento.
DUETO

Ouvi a aborrecida monodia de Judith sem olhar o relógio, sem me impacientar


e sem interrompê-la, exatamente como ela tinha exigido. Olhei para ela com
severidade, tentando capturar um sinal indesejado que me permitisse entender por
que estava fazendo isso, o que havia em seu coração enquanto derramava essas
palavras, enquanto me enjoava com a comovente história do seu compromisso com
a sociedade e com meu pai. Só quando pronunciou a última frase, pouco antes da
hora do almoço — a enfermeira não demoraria a trazê-lo —, me atrevi a sorrir. Já
disse: graças aos detetives e às minhas pesquisas, aos arquivos e aos interrogatórios,
nessa altura eu não conhecia toda a verdade sobre o meu pai, mas o suficiente.
Ergui-me e cravei meus olhos nos dela.
— Mãe — sussurrei —, por que hoje, depois de tantos anos, você teima em
repetir essas mentiras?
Cena III. Sobre como desmontar um violino com uma serra
elétrica e ser comunista e anticomunista em uma tarde

CAVATINA

Meus dedos tropeçavam nas cordas como um atrofiado exército de autômatos;


indiferentes às ordens do seu general — um anão resguardado nas brumas de meu
crânio —, hesitavam ou se detinham cedo demais ou tarde demais, confundindo o
ritmo e desmanchando a harmonia, corcundas e doentios. Nunca aprenderiam!
Tinha roubado infinitas horas de beisebol com os amigos, de imitar o salto triplo de
Fred Astaire sobre um muro do colégio (ou pelo menos tentando) e de
escarafunchar gibis de extraterrestres nos sebos, a fim de obter um mínimo aplauso
da madame Scarparelli. Em vão. As notas fluíam limpamente no meu cérebro como
contas multicoloridas, providas de forma, volume e peso, mas meus músculos não
respondiam às minhas fabulações.
— Não, não, não! Da capo!
A voz de madame Scarparelli interrompeu a pulcra versão da Partita nº 2 que
fluía no meu cérebro e me devolveu à versão desafinada, infestada de notas falsas e
estridências, erros de tempo e modulações enganosas, que surgia dos meus dedos.
— Não, não, não! Da capo!
Bach, esquartejado.
Que adiantava insistir na farsa? Embora a música me proporcionasse as maiores
alegrias, ao lado dos gibis e do dinheiro, eu carecia do talento ou da humildade para
me tornar seu lacaio. Segundo madame Scarparelli, eu tinha talento — assim dizia
com suas falsas vogais italianas — e só me faltava perseverança. Falso! Naquela
época eu me entregava à música sem trégua, desde que voltava da escola não fazia
mais que estudar a mesma partitura. Não, não tinha talento!
Embora Judith tivesse escondido quase toda a biografia do meu pai, nunca
cansou de me esfregar na cara seu talento musical e seu ouvido absoluto: suas
maiores virtudes. Desde os seis anos, me obrigou a tomar lições de coro e solfejo —
você tinha uma voz de soprano tão bonita, elogiava — e, quando fiz sete anos, me
deu de presente meu primeiro violino e meu primeiro arco. Na sinistra batalha que
ainda travava com o fantasma de seu marido, minha mãe queria me ver derrotá-lo
no seu próprio território.
— Você, sim, terá meu apoio — Judith insistia nesse meu que a distanciava de
seu falecido sogro.
Todos os sábados, na hora do almoço, colocava no toca-discos o concerto de
Tchaikóvski — sob o selo amarelo da Deutsche Grammophon, o semblante
gordinho de David Oistrakh —, em uma espécie de sinistra cerimônia espírita.
— Seu pai exigiu que o enterrássemos com esta obra, mas não me atrevi a pedir
isso ao rabino. Não sabe o quanto me arrependo. A tola canzonetta ainda me arranca
lágrimas.
Contra a minha vontade, Judith conseguiu que a música se instalasse no centro
da minha vida. Na primeira vez que me arrastou à Filarmônica, dirigida por
Leonard Bernstein, me augurou uma experiência inesquecível, e confesso que não se
enganou. Imediatamente acrescentei esse impetuoso maestro, judeu e ambicioso
como eu, à minha lista de super-heróis, atrás apenas do Batman e do Homem-
Aranha.
Anos depois adquiri meu primeiro disco: o Concerto para piano nº 1, de
Brahms, com Glenn Gould (outro deus) como solista. Antes de passar à música,
Bernstein pega o microfone e explica que, embora a concepção artística do
canadense fosse incompatível com a sua, o acompanhará pelo respeito que merece
como artista. Que dupla demonstração de humildade e de arrogância! Depois, e até
sua morte em 1990, me esforcei para assistir a todos os concertos de Lenny —
devorei seus programas de televisão e ainda flutuam na minha cabeça os ritmos de
Wonderful town e West side story —, disposto a atravessar o oceano rumo a Tel Aviv,
Londres, Viena ou Amsterdã para ouvi-lo e degustar seus pulinhos no pódio.
Quando finalmente o conheci, em 1983, ao término de uma eletrizante Quinta de
Shostakovich, só soltei sua mão quando o aperto se tornou embaraçoso.
Ao longo dos anos acumulei uns cinco mil vinis que, se as autoridades não
dilapidaram, ainda devem estar empoeirando no meu apartamento da Park Avenue
(ao lado de trinta mil CDs). Como qualquer neurótico, essa coleção me provocou
tanta felicidade quanto amargura: um dos meus passatempos favoritos consistia em
limpar cada LP com um pano antes de devolvê-lo à estante, onde ocupava um lugar
preciso segundo uma rigorosa ordem de compositores e números de opus. A
desgraça sobrevinha se, ao ouvir um quarteto de Schubert ou um noturno de
Chopin, a agulha de diamante escorregasse: então não só minha ansiedade se
tornava insuportável, como também economizava até comprar outro volume
idêntico para substituir o avariado (não tenho palavras para agradecer aos pioneiros
da tecnologia digital por me aliviar destas manias). Imaginem então, piedosos
leitores, a frustração de um garoto como eu ao constatar que, apesar de sua devoção
pela música, não era capaz de executar nem sequer um vulgar estudo de Kayser, que
dirá uma partita de Bach.
— Não, não, não! Da capo!
Alta e magra, com o cabelo platinado, madame Scarparelli dissimulava mal seus
quarenta anos. Nunca combinamos: em seu olhar de raposa brilhava uma chispa de
condescendência, mesmo de pena, em relação às minhas pobres execuções. Seus
gritinhos em staccato ou seus sorrisos sem graça nunca me animaram: toda vez que
eu despedaçava um compasso ou destruía alguma nota, ela me jogava na cara os
esforços da minha mãe para pagar as aulas.
— Non bene, non bene — me repreendia no seu italiano do Brooklyn.
Mil vezes pensei em atirar o violino pela janela e chutá-lo até que rangesse em
mil pedaços: comporia um concerto para violino e serra elétrica e no final cravaria as
lascas em cada orifício da madame Scarparelli. Ela deve ter intuído meus devaneios
assassinos, porque um dia pousou as falanges sobre o meu ombro e me disse que não
havia mais nada a fazer. Nessa semana a bruxa avisou à minha mãe que não me
daria mais aulas, mas Bobby Anderson, seu assistente, ficaria feliz de prosseguir com
minha educação. Judith se indignou.
— É melhor assim, mãe — acalmei-a. — Não aguento mais aquela bruxa.

RECITATIVO

Embora Lars fosse da minha idade — eu tinha feito treze em março, ele faria
no final de julho —, devia ter o dobro do meu peso e me ultrapassava em dez
centímetros; como seus pais, oriundos da Noruega, mastigava um inglês
macarrônico que provocava riso na Escola de Música do Brooklyn. Antes de
admirar seu nariz reto, o quadrado de sua mandíbula ou a força dos seus bíceps, tive
a oportunidade de ouvi-lo em segredo; ele tomava aulas de violoncelo no cubículo
vizinho e, apesar da cortiça isolante das paredes, era impossível fugir do som pastoso
que extraía das cordas. Abandonei minhas partituras e espiei pela fresta da porta:
aquele jovem corpulento, de pele quase translúcida, olhos de carvão e respiração
ofegante balançava os antebraços em lânguidas arcadas. Em sua maneira desajeitada,
o Cisne de Saint-Saëns se transformava em um traço tão suave quanto efêmero.
Depois disso não desperdiçava uma oportunidade de espiá-lo. Assim que o
professor Anderson me deixava sozinho, constrangido diante da minha ausência de
progressos, me esticava na janelinha. Era incrível que aquele rapaz tosco e
musculoso, que com facilidade teria passado por um arruaceiro ou um jogador de
futebol, fosse dono de tamanha musicalidade e sutileza. Não consegui a coragem
necessária para falar com ele; se eu fosse ele, pensava, não me interessaria me
relacionar com um aluno tão medíocre. Conformei-me de admirá-lo de longe, certo
de que nunca me acolheria no seu círculo de amigos. Depois constatei que Lars era
um cara solitário, pois, embora uma flautista magrinha costumasse persegui-lo, ele ia
embora acompanhado apenas pelo seu cello. Ao terminar a aula decidi segui-lo a
alguns passos de distância. Lars não pareceu perceber minha presença e continuou
em direção à entrada do metrô. Só quando o vi desaparecer na soleira de um
descascado edifício no Queens, empreendi o caminho de volta ao Brooklyn.
— Você também mora em Flushing Meadows? — soltou no dia seguinte.
— Não — gaguejei —, costumo visitar uma tia.
Quando estávamos saindo da escola, Lars me perguntou, com um leve tom de
brincadeira, se naquela tarde também iria visitá-la. Embora tivesse jurado guardar
silêncio — minha verborragia tinha me feito perder vários amigos —, confessei a
verdade no caminho e logo me vi lhe contando a história de Judith e meu falecido
pai violinista. Ele me contou que o pai dele era cozinheiro e que sua mãe tinha
estudado piano em Oslo, mas abandonara a carreira para cuidar dele e da irmã
(também pianista). Em seguida se despediu de mim com um aperto de mão
impróprio de um virtuoso.
Ao chegar em casa, não dissimulei minha excitação. Tenho um novo amigo,
me gabei para Judith, violoncelista. Ela me elogiou, esperando que pudesse me tirar
da influência dos garotos do nosso bairro, e disse que o convidasse para jantar
conosco. Foi Lars quem me convidou à sua casa; sua mãe nos serviu uns sanduíches
e, no final, sua irmã, uma loira tão comprida e branquela quanto ele, de uns vinte
anos, propôs que tocássemos juntos. Eu disse a ela que não estaria à altura e
detestaria estragar a noite. Ela insistiu. Sentamo-nos na sala, onde em um dos cantos
resplandecia um descascado piano vertical, acomodamos suportes e partituras e
fizemos uma primeira leitura de um trio de Schubert. Embora o talento de Lars
superasse o de Ellen (e obviamente o meu), ela marcava o ritmo e as entradas. No
começo os nervos me traíram, mas a cumplicidade dos irmãos Omdal me devolveu a
confiança e consegui acompanhá-los sem tropeçar muito. Embora eu estivesse a
anos-luz de sua precisão e seus fraseios, eles me ajudaram a melhorar as articulações
e dar precisão às arcadas. Ao concluir o último movimento, sua mãe aplaudia.
Judith me advertiu de que, se quisesse que meus amigos voltassem a me
convidar, devia ensaiar muitas horas por minha conta. Descuidei das obras que
devia apresentar no recital do trimestre e me concentrei nas peças que Lars, Ellen e
eu tínhamos escolhido.
— Já sei como chamaremos nosso trio — anunciei. — Trio Omdal.
— Não é o seu sobrenome — riu Lars.
— Trio Omdal é perfeito.
Incorporamos ao nosso repertório alguns trios de Beethoven — até nos
arriscamos com o Fantasma —, um de Brahms e outro de Schumann. A sra. Omdal
nos incentivou a montar um programa completo e a oferecer nosso primeiro
concerto público. Achei uma loucura, mas Lars e Ellen se entusiasmaram.
Escolhemos os três trios do opus 1 de Beethoven e nos demos até maio para prepará-
los: então anunciaríamos na escola a estreia do Trio Omdal.
Embora eu quisesse passar mais tempo a sós com Lars, o trio impunha a
presença da irmã. Eu simpatizava com Ellen — afinal a ideia de tocar juntos tinha
sido dela —, ela sempre era cortês e doce comigo e, apesar de ser dois anos mais
velha que nós, preferia nossa companhia à de suas amigas, mas sem se dar conta
atrapalhava meu convívio com seu irmão. Quando Lars propôs que nos
encontrássemos a sós em uma cafeteria, imaginei que ele talvez sentisse algo
parecido. Depois de pedir uns milk-shakes, me lancei a comentar as distintas versões
discográficas dos trios que apresentaríamos no nosso recital.
— Sinto muito — soltou finalmente, sorvendo as bolhas rosadas. — Em maio
terei uma audição com Fournier e o professor exigiu que eu me concentrasse nisso.
— Ótima notícia! — menti o melhor que pude. — Adiar a estreia do Trio
Omdal até o verão.
— Se tudo correr bem, irei para Genebra em junho.
Terminamos nossas bebidas em silêncio.
— Você pode continuar vindo à nossa casa — acrescentou antes de descer para
o metrô. — Talvez possa ensaiar algumas sonatas com Ellen, você sabe o quanto ela
lhe aprecia.
Continuei visitando sua casa à noite, às vezes líamos uma obra nova, outras ele
me deixava com a irmã e se trancava no quarto. Em vez de demonstrar minha
amargura, propus a Lars que encontrássemos maneiras de relaxar antes da sua
audição. Fomos duas vezes ao cinema, mas depois preferimos nos refugiar na minha
casa, onde passávamos horas ouvindo Casals, Rostropovich e o próprio Fournier.
Na noite anterior à audição o convenci a comemorar antecipadamente. Eu
gostaria de atribuir a mim o mérito do seu fracasso, mas isso não me compete: a
responsabilidade foi toda dele. Bebeu além da conta, mais do que nunca. Quando o
depositei em sua casa, mal conseguia parar de pé. Sua mãe nos repreendeu e tentou
mudar a audição para outra data. Impossível.
Lars compareceu diante de Fournier com umas olheiras arroxeadas, afligido por
uma insidiosa enxaqueca. Segundo todos os presentes, tocou bem, inclusive muito
bem, em especial a sarabanda da segunda suíte de Bach. O aristocrate du violoncel o
felicitou e lhe augurou uma grande carreira. Mas não o levou para Genebra.
Embora Lars e eu continuássemos nos encontrando escondido da sua mãe
(nessa altura a mulher me detestava), nossas reuniões musicais se espaçaram pouco a
pouco. E, como era previsível, o Trio Omdal nunca estreou. Anos mais tarde,
quando olhava o programa de um concerto da Sinfônica de Buffalo — não tinha
encontrado nada melhor para fazer depois de me reunir com uns clientes do que
assistir a algumas toscas interpretações de Quadros de uma exposição e da suíte de O
pássaro de fogo —, vi o nome de Lars Omdal entre os integrantes da orquestra. Seu
suporte era o penúltimo.

CABALETTA

Ayn foi o meu primeiro amor. Corrijo: a primeira mulher por quem me
apaixonei. Uma relação, como se costuma dizer, complicada. Primeiro, porque ela
tinha sessenta e quatro anos e eu dezesseis. E, segundo, porque ela não estava a par
do meu encantamento. Ayn Rand. Um amor à primeira vista: assim que entrei em
seu universo de ingratos e rebeldes confrontados com a perversidade de politiqueiros
e burocratas, muito antes de descobrir os belos ângulos de sua mandíbula, a firmeza
de suas maçãs do rosto ou a serenidade de suas pupilas, reconheci uma alma gêmea.
O maltratado exemplar de A revolta de Atlas que resgatei de um sebo, ou que,
melhor dizendo, me resgatou, se transformou na minha Bíblia. E a exilada russa,
que então ainda perambulava pelos cafés nova-iorquinos (morreria em 1982), foi
minha Guia.
Foi Ayn quem, em uma noite ardente de leitura inesgotável, às escondidas de
Judith e seus preconceitos, me alertou contra o Estado e seus tentáculos. Graças a
ela descartei qualquer sentimentalismo esquerdista e decidi superar John Galt, o
herói que foge da mediocridade e cria uma comunidade de empreendedores nas
montanhas do Colorado. Essa distopia, tão próxima da ficção científica que me
fascinava nessa época, me deu uma lição crucial: somente os que estão dispostos a
defender a autonomia individual e a fugir dos braços do governo merecem ser
chamados de homens livres. Toda essa ladainha sobre defender os deserdados à custa
dos bem-sucedidos e todos esses discursos lacrimogêneos a favor da redistribuição
dos impostos e da intervenção do Estado nas finanças não passavam de subterfúgios
para justificar o totalitarismo. Ayn os tinha sofrido na própria pele quando os
bolcheviques despojaram sua família de suas legítimas propriedades hasteando esses
princípios falsamente igualitários.
Como todo amor atormentado, o meu foi clandestino: Judith nunca teria
aprovado minha paixão por essa mulher que era o avesso dela. Não poderia dizer
que naqueles anos, início dos anos 1970, minha mãe fosse uma revolucionária ou
uma ativista — seu trabalho como secretária não lhe deixava tempo para comícios
—, mas não perdia a oportunidade de insultar Nixon, Ford e os republicanos em
geral, nem de culpar os “obscuros interesses econômicos” ou “o complexo militar-
industrial” de todo o mal que sucedia no planeta. Minha rebelião adolescente, se é
que posso chamá-la assim, se produziu apenas nesse mínimo âmbito ideológico;
diferentemente dela (ou do meu pai), eu não estava disposto a ser parte da massa
anônima e proletária que eles tinham defendido. Como qualquer homem livre, eu
não considerava que o dinheiro fosse um utensílio do diabo. Ao contrário: só o
dinheiro me concederia essa liberdade que Ayn tinha me ensinado a defender frente
às quimeras progressistas.
Minha paixão pelo risco se iniciou, suponho, com as brincadeiras infantis.
Comecei me lançando em patinete de ladeiras cada vez mais empinadas e terminei
apostando quantias estratosféricas, pelo menos para os meus parâmetros
adolescentes, em longas noites de pôquer com a minha turma. Depois descobri que,
mais do que ganhar, me importava ganhar quando arriscava tudo, mesmo à custa de
remexer na bolsa de Judith para saldar minhas dívidas. Felizmente não me
transformei em um jogador profissional ou num destes vagabundos que saem
tropeçando dos cassinos e perdem fortunas nos caça-níqueis porque, mais ou menos
aos dezessete, topei com o livrinho Como comprar ações?, de um tal Louis Engel, e
suas páginas me arrancaram desse lúgubre destino. Além de responder de maneira
simples a perguntas como “quanto custa uma ação?” ou “como fazer negócios com
um broker?”, o texto era um tratado escrito para que o obscuro mundo da Bolsa, até
então dominado por uma elite lenta e doentia, fosse uma prática comum em cada
lar americano. De repente soube para onde dirigir meus impulsos: não ao decadente
território do blackjack ou da roleta, mas ao mundo das ações.
Minha primeira experiência no pregão da Bolsa de Valores de Nova York
equivaleu ao meu primeiro orgasmo. Aquele vaivém maluco, aquele pandemônio de
ligações e vozes cacofônicas, aquela sensação de urgência e de ousadia, de espera e de
perigo, era o mais belo espetáculo que eu já tinha visto. Uma coreografia cósmica.
Desejei apostar o máximo em um toma lá, dá cá, enfrentar o mercado como se fosse
uma fera selvagem e experimentar a comoção de vencê-lo ou a agonia de me ver
destroçado por suas garras. Ainda hoje, entorpecido nesta ilha pedregosa, meu
coração salta ao rememorar aqueles tempos de abundantes lucros e perdas
sangrentas. A maior parte de vocês, prudentes leitores, nunca entenderá o que
significa se entregar de corpo e alma ao risco: é retroceder à pré-história e sofrer a
espera diante de um predador desconhecido. O mercado: esta fera desconcertante e
perigosa. Esse inimigo feroz e implacável. Confesso que desde os dezoito, e até que
fui obrigado a deixar para trás minha vida inteira, nunca parei de brigar com o
mercado. Não é isto o que no fundo distingue um empreendedor de um picareta?
Quando lhe anunciei que tinha sido aceito na NYU e que meu interesse
principal seriam as finanças, Judith me olhou desolada, como se eu tivesse lhe dado
algo parecido com uma punhalada pelas costas. Como era possível que seu único
filho passasse para o lado do inimigo? O que tinha feito de errado? De nada me
serviu animá-la com minhas prosaicas ideias sobre a mão invisível de Adam Smith,
pois Ayn a tinha derrotado de maneira clara e contundente. A partir desse dia minha
mãe não voltou a falar comigo sobre economia ou política e praticamente se
desinteressou dos meus estudos. Ayn, em compensação, continuou sendo minha
Guia. A exilada russa me conduziu pela mão até seus incômodos aliados, Hayek —
com quem nunca simpatizou de todo —, Friedman e a Escola de Chicago. Se com
seus romances e ensaios minha namorada tinha me feito ver que o Estado é o
problema e não a solução, com O caminho para a servidão Hayek me demonstrou
que o Estado jamais disporá do conhecimento de todos os indivíduos, e por isso sua
intervenção na economia constituirá sempre uma ameaça para as nossas liberdades.
Por último, Friedman — um duende capaz de pronunciar as piores maldições com
voz de veludo — me ensinou que as grandes vantagens da civilização, em
arquitetura ou pintura, ciência ou literatura, jamais vieram de um governo
centralizado, e me animou a lutar contra as restrições que os demagogos impõem
aos mercados.
Friedman também me encaminhou para as teorias de um de seus discípulos,
Eugene Fama, e sua hipótese dos mercados eficientes: um assunto muito mais
próximo dos meus interesses práticos. Segundo sua teoria, o preço de uma ação
reflete em termos bastante exatos seu verdadeiro valor. Em outras palavras: em uma
sociedade livre, os distintos agentes econômicos não demorarão a dispor da mesma
informação (sobre certa empresa, por exemplo), que se expressará no mercado pela
única via possível: a alta ou a baixa do preço de suas ações. Se for permitido que a
informação flua com absoluta transparência, os preços refletirão o verdadeiro valor
das ações. Animado por estas ideias, reiniciei meus investimentos na Bolsa com
apostas mais ou menos conservadoras em blue chips. Meus dividendos, como era
previsível, mal superaram a inflação. Mais adiante me inclinei por algumas start-ups
e outras companhias promissoras, esperando achar minha galinha dos ovos de ouro.
O tolo sonho dos jovens. Desse jeito nunca chegaria ao meu primeiro milhão antes
dos trinta.
Em 1973, enquanto eu dava meus primeiros passos na Bolsa, dois fanáticos dos
mercados eficientes, ambos eminentes professores de Chicago, o matemático Fischer
Black e o economista Myron Scholes (auxiliados depois por Bob Merton),
elaboraram uma equação que iria ter um inimaginável impacto sobre o nosso
sistema financeiro (e sobre a minha própria vida).
A fórmula é a seguinte:


Como não pretendo que abandonem prematuramente este livro, queridos
leitores “anuméricos”, tentarei não enredá-los com derivações matemáticas.
Amparados na hipótese dos mercados eficientes, Black, Scholes e Merton
descobriram que esta fórmula permitia calcular a volatilidade das opções.* Sei que
tudo isso soa incompreensível para os ouvidos leigos, então peço que guardem
somente a consequência extrema desta ideia. Teoricamente, a fórmula Black-Scholes
permitia eliminar o risco nas operações realizadas com opções. Permitam-me repetir
isso: eliminar o risco. O sonho de todo apostador, a fantasia de qualquer investidor.
Como alguém como eu não ia ficar apatetadamente fascinado? Nos anos seguintes,
não faria outra coisa além de arrancar as possibilidades desta fórmula. Ayn Rand,
meu primeiro amor, a aristocrata russa que desconfiava tão ferozmente do Estado,
tinha me conduzido ao meu segundo e mais definitivo amor: as opções e os
derivativos financeiros.

CORO DOS MANIFESTANTES

Os corpos se estendiam pela Quinta Avenida como uma marejada: braços para
o ar, ombros e torsos nus, pernas de calças tempestuosas, coxas acaloradas, quadris
ziguezagueantes. O espetáculo compensava com vantagens os desconfortos, os
apertões e o mau cheiro no metrô, as advertências da minha mãe, o medo de topar
com algum conhecido da NYU. Não me movia, evidentemente, o menor afã
ideológico, ou por acaso alguém me imagina como um hippie histérico diante das
atrocidades da guerra, subitamente aflito por algumas crianças vietnamitas banhadas
com napalm? Se compareci, foi só porque Norman — sempre tão devoto das causas
nobres — insistiu que eu caminhasse ao seu lado no protesto, e eu não me atrevi a
decepcioná-lo. Depois de perder Lars, aquele garoto um tanto lento e agradável que
tinha nascido e crescido no mesmo bairro do Brooklyn que eu, tinha se
transformado no meu novo ídolo. Sem ser bonito, tinha uns olhos cor de mel pelos
quais era impossível não ficar hipnotizado e, na minha opinião, tinha um único
defeito, pelo menos para quem não achava que a riqueza é vergonhosa: aquele
compromisso social um tanto jactancioso, aquela vontade de denunciar até as mais
recônditas injustiças do planeta. Felizmente, o incômodo progressista era
compensado com sua conversa afável e ardilosa e um súbito interesse pela minha
pessoa que desconcertava tanto sua turma quanto a mim.
No dia em que nos conhecemos, Norman me convidou para umas cervejas
com outros rapazes do bairro, um bando de esfarrapados que na melhor das
hipóteses acabariam como zeladores ou vendedores da Coca-Cola. De todos eles,
Norman era o único que tinha frequentado o college, embora se esforçasse para
dissimular seu sucesso acadêmico como se fosse um estigma no seu expediente
proletário. Sair com seu grupo não se parecia em nada com conversar com meus
colegas da NYU, e digo isso no bom sentido. Talvez nenhum daqueles trogloditas
roçasse o QI de um rato almiscarado, e sua maior aspiração consistiria em se
empanturrar de cachorros-quentes no estádio dos Jets, mas pelo menos não fingiam
a sofisticação dos músicos ou dos universitários com quem eu tinha convivido até
então e que no fundo eram tão primitivos quanto eles.
Os trogloditas, por sua vez, deviam me considerar um mariquinha que além do
mais era, ou tinha sido — eu teria preferido não revelar isso —, violinista. Aqueles
selvagens me olhavam com uma mistura de gozação e pena só atenuada pelo afeto
que seu líder me dispensava. O que eu obtinha de uma horda de perdedores como
aquela? Nada, com certeza. Mas essa ausência de expectativas me permitia baixar a
guarda, enquanto na NYU devia me manter sempre alerta para não corroer a imagem
de dureza que eu ansiava construir para mim. Lá não apenas era obrigado a ser frio e
implacável como a fingir isso sem descanso: um tubarão em tempo integral. Com
Norman e seus camaradas, pelo contrário, não incorrerei na banalidade de dizer que
podia ser eu mesmo, mas pelo menos podia relaxar um pouco, crente de que nenhum
daqueles perdedores se transformaria em meu rival nos negócios.
A manifestação contra a guerra devia parecer tão exótica para os cavernícolas
quanto para mim, mas tampouco queriam decepcionar Norman e estavam dispostos
a passar um tempo divertido ao lado dele, como quando esgotavam suas energias no
basquete ou se enchiam de pipocas diante de uma baboseira do Jerry Lewis. De
modo que me vi de repente ali, não apenas como parte daquele desfile cheirando a
suor e esperanças, mas diretamente encabeçando-o, conduzido por obra do acaso à
frente de suas colunas. Confesso que a experiência não me desgostou: a febre juvenil
dos cantos e palavras de ordem, a maioria impraticáveis ou dementes, me contagiou
de modo natural e não demorei a somar minha voz ao coro que protestava contra o
imperialismo, o complexo militar-industrial e os abusos da CIA. Ao meu lado,
Norman vociferava e me olhava de esguelha, satisfeito com os progressos
revolucionários do seu pupilo.
Embora tivesse decidido me especializar em economia, nessa altura eu não
tinha lido uma única linha de Marx ou de Engels, e muito menos de Lênin ou de
Mao, o trapaceiro da moda, mas estava convencido de que suas ideias eram, na
melhor das hipóteses, fantasias. Pensava — e ainda penso — que uma sociedade em
que o Estado aspira a controlar e fiscalizar toda a atividade econômica está
condenada à barbárie e à paralisia. Dito isso, tampouco me considerava um
encarniçado defensor da nossa democracia, que me parecia — e ainda me parece —
uma plutocracia mascarada em que as manobras de uns poucos impõem candidatos
e programas. Só que na hora de escolher entre um sistema e outro não tinha dúvidas
de que, pelo menos para mim (não sabia se para outros, por exemplo, os camaradas
de Norman, mas sem dúvida para mim), o livre mercado oferecia melhores
oportunidades, enquanto, em uma nação centralizada, com sua multidão de
burocratas e agentes secretos, eu nunca conseguiria uma vida confortável.
Resumindo: não via nenhuma contradição entre acompanhar Norman na sua
passeata anticapitalista, desprezar o capitalismo e me considerar eu mesmo um
capitalista convencido.
Meu horror foi enorme quando na manhã seguinte me vi na primeira página
do Post sob uma manchete que deplorava a falta de patriotismo da juventude
americana. Não havia dúvida: aquele rapazinho de aparência agradável, com o
punho levantado e a boca aberta (para insultar um policial, segundo me lembro), era
eu. O que devia fazer agora? Enterrar-me embaixo da cama até que esquecessem o
incidente? Assim que entrei na sala de aula, me pareceu perceber os insidiosos
cochichos e rumores sobre a minha pessoa. Tentei passar despercebido e evitei
participar das discussões — tinha me distinguido por minhas perguntas
impertinentes e minhas brincadeiras escatológicas —, mas Jim O’Connor, um
irlandês obtuso e teimoso, republicano militante, não demorou a me expor.
— Talvez nosso camarada possa nos ilustrar como encarar o conflito vietnamita
— disse de repente.
Durante todo o semestre eu não cansara de expressar meus veementes pontos
de vista sobre a guerra do Vietnã, tinha dito que se tratava de uma intervenção
ineludível e não economizara insultos contra aqueles que, na nossa intimidada
sociedade do conforto, faziam o jogo dos vermelhos. Meu perfil era o de um
anticomunista raivoso. Que diabos fazia então à frente de uma passeata contra essa
“luminosa ação das nossas tropas”, segundo minha expressão semanas antes? Tentei
sair pela tangente, balbuciei duas ou três desculpas mais ou menos inofensivas, inseri
uma bobagem sobre o humor dos irlandeses e finalmente fiquei calado, esperando
que a desajeitada contrição diminuísse as gozações contra mim. Os olhos de Jim se
encheram de sangue, como acontece com os zumbis dos filmes, enquanto suas
presas se dirigiam para a minha jugular. Imaginei que se aproveitaria da minha
incongruência, esmagaria minha falta de convicções e nos regalaria com um
patriótico sermão contra a hipocrisia. Nada disso. Da sua boca brotou uma acusação
inesperada.
— Mas, enfim — sorriu —, o que se pode esperar de alguém cujo pai era
comunista?
O professor Graystone se apressou a nos solicitar calma e ordenou a Jim que
me pedisse desculpas. O anão obedeceu, mas o estrago estava feito. Apertei sua mão
na frente de todos, como exigiria qualquer manual de comportamento, mas, como
indicam as regras não escritas de qualquer sala de aula, esperei-o na saída. Assim que
distingui seus traços simiescos, me joguei em cima dele, gritando como um pele-
vermelha. Mais ágil que eu, Jim se esquivou da minha investida e acabei de cara
contra uma árvore. O baixinho passou reto e partiu me mostrando seu peludo dedo
médio.
Naquela noite não cedi às pressões de Judith para lhe contar o ocorrido. Tinha
prometido a mim mesmo guardar aquela afronta em segredo até que o tempo a
desbotasse e deixasse de me doer. Por que o silêncio? Uma primeira resposta: eu
tinha vinte anos. Nessa idade a gente se sente mais vulnerável e desprotegido que
nunca. E provavelmente não queria ouvir o que minha mãe poderia me revelar.
Nenhum dos meus colegas voltou a tocar no assunto, sepultado entre os milhares de
insultos trocados diariamente nessas penitenciárias voluntárias, e eu recuperei a paz.
Alguns anos depois do incidente, enquanto devorávamos um suculento
tcholent, me atrevi a perguntar à minha mãe se Noah tinha sido comunista. Sua
resposta — vocês já devem imaginar — foi um histérico não.
Inútil transcrever a briga que se seguiu: todas as rixas familiares são monótonas.
Judith continuou negando com veemência, às vezes com desespero. O seu pai nunca
foi comunista. Repetiu isso várias vezes, como se rezasse. Disse que ele tinha sido um
bom homem, um patriota, como sempre. Finalmente, no entanto, esclareceu uma
coisa: inocente ou não, meu pai tinha sido acusado de ser comunista. E não por um
oligofrênico como Jim O’Connor, mas pelo Comitê de Atividades Antiamericanas
do Congresso. Em meio às suas queixas histéricas, Judith deixou escapar — ou
talvez tenha soltado de propósito — que meu pai não tinha pedido demissão do
Fundo Monetário Internacional, como ela sempre me dissera, mas que o expulsaram
de lá por seu suposto passado comunista.
Minha mãe e eu paramos de nos falar até a cerimônia de formatura, quando
finalmente entendi suas razões. Eu também não queria que dissessem que meu pai
tinha sido comunista e nem sequer que tinha sido acusado de ser (mesmo que fosse
mentira). Minha vida de empreendedor estava apenas começando, por que
contaminá-la com esse lastro? Como Judith durante tanto tempo, eu também quis
me esquecer do meu pai. De sua culpa ou de sua inocência. Minhas preocupações,
já disse, eram outras: ganhar meu primeiro milhão antes dos trinta.
Duas décadas mais tarde, quando estava ajudando Judith a transportar seus
pertences para Vermont — o inóspito lugar onde me convenceu a lhe comprar uma
casinha —, o fantasma do meu pai voltou a me perseguir. Em uma das caixas
descobri, carcomidos pelos cupins e pelo esquecimento, seus cadernos de trabalho.
Assim que abri o primeiro deles — de 1937 — soube que não conseguiria me
desligar de sua história. Além disso, nessa altura já figuravam na minha conta vários
milhões.

* Uma ação é um valor presente; uma opção, um valor futuro. Se eu compro uma ação, compro parte do valor
de uma empresa. Se adquiro uma opção, adquiro a possibilidade de comprar ou vender uma ação (ou um bônus
ou uma divisa ou qualquer outro ativo subjacente) mais adiante. A opção confere o direito, mas não a obrigação,
de comprar ou vender algo enquanto dura o plano estipulado no contrato.
Cena IV. Sobre como apareceu meu Watson-com-saia-hippie e
o judeu canalha que inventou o FMI

DUETO

O que fazer com aquelas páginas? Eram um legado ou uma advertência? Ainda
me pergunto por que, depois de mergulhar pela primeira vez em seus diários, decidi
não continuar como um amável órfão, alheio às aventuras ou desventuras do
homem — este recalcitrante reprodutor — que despencou de uma janela um mês
antes do meu nascimento, mas um filho cada vez mais ansioso para desencavar sua
memória. O paradoxo de que um investidor de Wall Street tivesse sido concebido
com a ajuda de um agente comunista era suficientemente apavorante, mas minha
repentina obsessão por Noah não podia se reduzir a esse simples impulso de
curiosidade intelectual. Não pretendo expor aqui os mecanismos que me obrigaram
a persegui-lo (vocês conhecem de sobra minha repulsa à psicanálise), de modo que
me limitarei a confessar que a perspectiva de que meu pai não fosse apenas o pobre-
diabo pintado por Judith, e sim uma figura mais ambígua, mais complexa, inclusive
mais obscura, deve ter me seduzido irremediavelmente. A História com h maiúsculo
nunca tinha sido um dos meus fortes, sempre me interessei mais pelo futuro e suas
apostas do que pelas brumas do passado, de modo que a única solução foi contratar
uma jovem historiadora, formada em Princeton, para que colaborasse nas “minhas
pesquisas”, como ela as chamou com um tom de ironia.
Desde nossa primeira entrevista, Leah Levitt — vinte e sete anos, tão naïve
quanto lida, democrata, vegana, judia, mas sem as presunções de Rachel ou de
minha mãe — me pareceu a colaboradora ideal. Estava havia vários anos
trabalhando em uma tese de doutorado sobre os acordos de Bretton Woods e,
conforme exibia na exposição de motivos que me enviou, conhecia as maracutaias
do Departamento do Tesouro nos anos 1930 e 1940 como a palma de sua mão.
Assim que entrou no meu escritório — não deixei de reparar na sua blusa ampla,
suas sandálias e seus jeans —, lhe mostrei os diários de Noah como uma isca.
— Então, vai me ajudar a entender o que significam? — perguntei.
Leah tinha um desses sorrisos tímidos que mascaram certa rabugice. Franziu o
nariz coberto de sardas que contrastava com a transparência da sua tez.
— Eu adoraria — hesitou —, mas ainda não sei se…
— Tenho certeza de que este material servirá para sua tese, srta. Levitt. Embora
eu não entenda totalmente as implicações, consigo perceber que se trata de uma
visão única do Tesouro exatamente na época que lhe interessa.
— Noah Volpi foi assistente de White durante vários anos — confirmou ela.
— Seu diário deve ser um documento fascinante.
Não precisei pressionar muito para que aceitasse minha oferta: a quantia que
ofereci pelos seus serviços devia triplicar o valor da bolsa que recebia como estudante
da pós-graduação.
Quando voltamos a nos encontrar no meu escritório, Leah apareceu com uma
sainha multicolorida e sandálias puídas: uma anomalia em meio aos yuppies que
pululavam ao nosso redor. Fechei a porta e pedi à minha secretária que ninguém nos
interrompesse. Servi-me um uísque com gelo e ofereci outro a Leah, mas ela preferiu
um insosso copo de água. Sem nenhum preâmbulo estendeu o diário do meu pai
sobre a mesa com seus dedos finos e longos e suas unhas sem pintar cortadas rente
(em algum momento notei que as roía).
15 de maio de 1937
Harry presidia os trabalhos. Desde o começo o notei mal-humorado. De
repente James Watts desandou a enaltecer Chamberlain, que segundo as notícias
acabava de invocar a guerra ao pactuar com Hitler.
“O conflito foi evitado”, enfatizou Watts ao léu, “isto é o mais importante, não
acham?”
Todos nós olhamos para Harry: sua testa e suas bochechas ficaram vermelhas.
Começou a suar. Durante uns dois minutos, se esforçou para aplacar a ira, até que
explodiu: “Para você o Chamberlain pode ser um herói, mas para mim é um
covarde e um traidor!”.
Como Harry se atreveu a pronunciar esse insulto em uma reunião
intersecretarial? Watts não podia acreditar. E isso foi apenas o começo. Disse que, se
não agíssemos logo, todos nos transformaríamos em cúmplices da barbárie. Que
nossa prudência se voltaria contra nós. E que, por culpa dos papagaios isolacionistas,
Hitler logo seria o dono de metade da Europa e então seria impossível freá-lo.
Watts não conseguia acreditar que o principal assessor do secretário
Morgenthau o tivesse chamado de papagaio. Depois de alguns instantes de paralisia,
levantou-se da mesa.
“Aonde pensa que vai?”, interrompeu-o Harry.
Watts respondeu que achava inadmissível aquele tratamento e que não tinha
mais nada a fazer ali. Harry não se rebaixou a lhe oferecer uma desculpa; puxou-o
pelo braço e o obrigou a voltar para sua cadeira.
“Continuemos de onde estávamos”, repetiu.
“Isso não ajudará a melhorar nossa relação com a Secretaria de Estado”, alertei
Harry no final da reunião.
“Para mim tanto faz”, repreendeu. “Alguém tem que dizer a verdade.”


— Esta é a primeira entrada do diário — apontou Leah. — Noah Volpi tinha
chegado ao Departamento do Tesouro algumas semanas antes, no final de março de
1937, por decisão expressa de Harry Dexter White, que acabava de ser nomeado
diretor-assistente de Pesquisas e Estatísticas pelo secretário Henry Morgenthau.
Antes, seu pai havia atuado como assistente financeiro na Administração de Seguros
Agrícolas. Conforme averiguei, seu trabalho ali, como jovem e entusiasta seguidor
das políticas do New Deal, chamou a atenção dos círculos progressistas de
Washington e, graças à recomendação de George Silverman, um funcionário do
Fundo de Pensões de Ferrovias muito próximo de White, este não hesitou em
contratá-lo no Tesouro.
— Não sabia nada disso — confessei envergonhado.
— Não descobri nenhum documento de interesse assinado por Noah durante
sua etapa na Administração de Seguros Agrícolas — revelou. — Memorandos,
ofícios, acordos e anotações manuscritas que, se de algo dão conta, é de sua perícia
burocrática: os preços do trigo, da cevada, do milho ou os incentivos aos pequenos
agricultores não iluminam suas áreas obscuras. Apoiada nesse conjunto, apenas me
atreveria a concluir que seu pai era um funcionário minucioso, talvez com um
excessivo zelo para com as minúcias da linguagem (às vezes há três ou quatro versões
de uma mesma carta cheia de círculos em vermelho). Em compensação, no seu
diário do Tesouro não se restringe a descrever as reuniões de trabalho, mas
incorpora numerosos comentários críticos sobre a política interna do governo, o
estado da guerra e seus superiores, colegas e rivais em outras áreas. Desde que se
incorporou à equipe de White, Noah Volpi integrou-se a uma das tarefas que mais
preocupavam seu chefe naqueles meses, a chamada questão da China. Enquanto
Hitler aparecia como uma ameaça para a paz na Europa, o Japão hostilizava, da
Manchúria, Chiang Kai-shek. O gabinete de Roosevelt se dividia então em dois
grupos: os isolacionistas, encabeçados pelo secretário de Estado, Cordell Hull,
obstinados em manter o país fora de qualquer conflito estrangeiro, e os
intervencionistas, capitaneados por Morgenthau e White, que advogavam uma
drástica resposta às provocações japonesas e alemãs. Veja estas entradas.
18 de maio de 1937
O secretário Morgenthau não está disposto a ceder frente a Hull. Seu repúdio à
Alemanha só fez aumentar, em grande parte devido às suas conversas com Harry.
Insistiu e várias vezes na necessidade de aplicar sanções contra os agressores. O
presidente hesita, freado pela opinião pública; ninguém quer ver o país envolvido
em um novo confronto. As pessoas acham que não somos obrigados a salvar o
mundo o tempo todo, muito menos quando apenas começamos a sair da crise. Aos
olhos da maioria, a perseguição aos judeus é um mal menor.
8 de junho de 1937
“Boas notícias”, anunciou Harry esta manhã. “O secretário Morgenthau quer
que procuremos uma forma de conceder um empréstimo à China sem violar as
disposições do Congresso. O que acham?”
“Entrevejo uma possibilidade”, aventurou-se Harold Glasser. “Nosso governo
não reconheceu uma situação de beligerância entre a China e o Japão. Conceder um
empréstimo à China, nestas condições, não violaria as leis de neutralidade.”
“Os empréstimos precisam ser aprovados pelo Congresso”, respondeu Frank
Coe. “Os republicanos vão se opor.”
“E se nos amparássemos na Lei da Compra de Prata?”, sugeri.
“Formule”, me apressou Harry.
“Como você sabe, a lei permite comprar prata até certo limite, a fim de
equilibrar nossas reservas. Talvez pudéssemos encontrar um preço justo e estender
um pagamento em dólares, adiantado, ao governo chinês.”
“Um empréstimo disfarçado”, apontou Coe.
“Justo o que necessitamos”, entusiasmou-se Harry.
18 de junho de 1937
“Chiang também é um ditador, mas seu poder não se compara ao de Hitler ou
Mussolini”, confiou-me Harry durante o almoço. “Mas somos obrigados a apoiá-lo.
As tropas japonesas iniciaram o avanço para o centro do país e, se ele não receber
ajuda imediatamente, o destino de todas as democracias do planeta estará
ameaçado.”
8 de setembro de 1937
“A União Soviética e a China acabam de assinar um pacto de não agressão”,
nos informou Harry. Pela primeira vez em muito tempo, parece de bom humor.
“Sabem o que isso significa? Que as negociações entre a URSS e a Alemanha
cambaleiam. O Japão é nosso inimigo natural, assim como a China e os soviéticos.
Se a situação se mantiver assim, talvez seja possível articular uma grande aliança.”
5 de outubro de 1937
O discurso que Roosevelt pronunciou em Chicago sob o título de Quarentena
para os agressores surpreendeu a todos. Obrigado a não transgredir as leis de
neutralidade, o presidente deixou clara a virada que nossa política externa
experimentará. A mensagem foi contundente: a partir de agora nosso governo fará o
impossível para auxiliar seus aliados. A China, em primeiro lugar. Apesar de certas
dificuldades técnicas, a compra adiantada de prata se consolida.
25 de maio de 1938
Hoje o secretário Morgenthau tornou pública a nomeação de Harry como
diretor da nova Divisão de Pesquisa Monetária. Transformou-se no braço direito do
secretário. Até seus rivais entendem dessa maneira. A poucas horas do anúncio,
Harry ligou para o meu escritório. E, com um tom imperioso, se limitou a dizer que
contava comigo.
25 de junho de 1938
Nesta manhã Harry compareceu pela primeira vez ao Grupo das 9h30, o
conselho de guerra do secretário Morgenthau. Apenas seus íntimos são convocados
ao seu sancta-sanctorum. Segundo Harry, todos lhe dispensaram boas-vindas
cordiais, mas ele preferiu não fazer nenhum discurso. Na realidade o invejam, pois a
Divisão de Pesquisa Monetária se transformou no coração do Tesouro.
30 de setembro de 1938
Harry tinha razão. Chamberlain é um covarde e o acordo de Munique uma
vergonha. Em vez de conter a guerra, entregar os Sudetos a Hitler só vai aumentar
sua ambição. Agora o ditador sabe que ninguém se atreverá a lhe pôr limites.


— Mais adiante — Leah molhava o dedo com a língua para virar as páginas do
diário —, seu pai deixa clara a posição que compartilhava com o chefe: um repúdio
total à Alemanha nazista e a necessidade de ajudar a China na luta contra o Japão:
4 de novembro de 1938
O secretário Morgenthau pediu a Harry uma carta para solicitar ao presidente a
aprovação do projeto de compra de prata da China. Trabalhamos no rascunho até o
amanhecer. A ideia central consiste em desacreditar Hull, empenhado em fechar
acordos comerciais com outros países, demonstrando que a melhor maneira de
contribuir para a vitória da democracia é mediante um apoio inequívoco à China.
7 de dezembro de 1938
Hoje finalmente foi anunciada a compra de prata da China por um total de 25
milhões de dólares. Nossa pequena vitória.
17 de dezembro de 1938
A inimizade entre o Tesouro e o Departamento de Estado cresceu a partir da
aprovação do empréstimo à China. Hull acusa Morgenthau de se intrometer em
assuntos de sua competência, enquanto este não está disposto a ceder em assuntos
de política econômica externa. Mas a sorte está lançada, o presidente decidiu seguir
as recomendações do Tesouro — ou seja, as de Harry.


— Como se percebe nestas páginas — Leah ruborizou —, Noah Volpi
comemora a vitória do Tesouro frente ao Departamento de Estado como se fosse
uma vitória pessoal. A posição de Morgenthau, e portanto a de White e sua equipe,
só se reforça nos anos posteriores. Enquanto grandes setores do país tentam manter
a neutralidade, eles pensam que Hitler é a quintessência do mal. Daí vem a decisão
de se aproximar da União Soviética:
22 de março de 1939
Harry trabalha agora no dossiê soviético. Em primeiro lugar quer que a URSS se
comprometa a cobrir suas dívidas oficiais e privadas com os Estados Unidos, o que
lhe custará em torno de 15 ou 20 bilhões por ano; em segundo, recomenda que lhe
concedam um empréstimo de 250 milhões, com taxa de juros de 8% pagáveis em
dez anos. O crédito poderá ser empregado para financiar a compra de 150 milhões
em produtos americanos: algodão, maquinaria, manufaturas e couros. Segundo
Harry, o efeito do empréstimo será muito benéfico para a nossa economia e ao
mesmo tempo contribuirá para atrair os soviéticos para a nossa órbita. Infelizmente,
Hull continua atacando-o.


— Isso quer dizer que a equipe do Tesouro estava a favor de uma aliança com
os russos? — perguntei.
— Não, não exatamente — o sorriso de Leah não escondia certa
condescendência. — White queria negociar com os russos porque achava necessário
articular uma frente comum contra o Eixo. Mas depois, em agosto de 1939, o Pacto
de Não Agressão Germano-Soviético acabou com sua estratégia. Todos os esforços
do Tesouro se concentraram então em ajudar a Grã-Bretanha. Em 1940, Roosevelt
autorizou o início de um acordo de empréstimo e arrendamento com Churchill.
Segundo Noah — aqui Leah fez uma pausa —, não se importa que o chame de
Noah, certo?
— É claro que não, continue.
— Segundo Noah, as negociações com os britânicos não foram fáceis.
Enquanto os britânicos esperavam uma ajuda desinteressada, Morgenthau e White
não queriam entregar recursos em troca de promessas. Os dois achavam que o
Império Britânico era uma potência anacrônica que agia como rival comercial dos
Estados Unidos, e esta desconfiança fica clara o tempo todo. No seu diário, Noah
não economiza severos juízos contra os ingleses:
3 de dezembro de 1940
Harry aspira a matar dois coelhos com uma cajadada só: apoiar a Grã-Bretanha
durante a guerra e garantir que, ao término, esta não consiga manter suas aspirações
coloniais.
11 de março de 1941
Depois de longos meses de idas e vindas entre o Tesouro, o Departamento de
Estado e a Casa Branca, o presidente anunciou nesta manhã a assinatura do Acordo
de Empréstimo e Arrendamento com os ingleses. Em resposta às críticas
republicanas, Roosevelt se valeu de um exemplo rural para explicar seu
funcionamento. “Se eu emprestar minha mangueira ao meu vizinho para que
apague o incêndio que há em sua casa, não espero que uma vez apagado o fogo me
pague os quinze dólares que a mangueira vale, mas que a devolva intacta.” Ao que o
senador Robert Taft, de Ohio, replicou: “Emprestar equipamento militar é como
emprestar chiclete: ninguém espera que o vizinho o devolva depois de usá-lo”.
Piadas à parte, o Acordo representa uma grande vitória para o Tesouro, embora
agora caiba ao Departamento de Estado se encarregar de sua operação.


— A inesperada invasão nazista de junho de 1941 voltou a transformar a União
Soviética em uma potência aliada — esclareceu Leah. — Só então White retomou a
ideia de auxiliar a URSS com um acordo de empréstimo e arrendamento semelhante
ao assinado com a Grã-Bretanha.
— Não era muita insistência da parte dele?
— Agora pode parecer estranho que a equipe de White dedicasse tantos
esforços para apoiar os soviéticos, mas, de acordo com os cadernos de Noah, em
nenhum momento sua determinação parecia ter outro motivo além da luta contra o
Eixo. Em todo caso, seu pai nem sequer participou das negociações com os russos,
pois se encontrava concentrado no cenário oriental.
— E que fazia ali?
— O secretário Morgenthau estava decidido a intensificar o apoio econômico à
China, mas sem entrar em conflito com os japoneses. A pedido dele, Noah
apresentou a White um projeto que incluía não apenas a assinatura de diversos
tratados comerciais com o Japão, mas também a possibilidade de reconhecer seu
domínio na Manchúria em troca do encerramento das hostilidades contra a China.
Mas, diante da intransigência japonesa, a Secretaria de Estado dirigiu um telegrama
ao Japão exigindo a retirada de suas forças. Frente a este ultimato, o primeiro-
ministro Tojo se inclinou pela guerra, e em 7 de dezembro a marinha imperial
japonesa atacou Pearl Harbor. No mesmo dia em que Roosevelt declarou guerra ao
Japão, Noah informou este movimento crucial no Tesouro — o dedo indicador de
Leah deslizou linha a linha pelo diário do meu pai:
8 de dezembro de 1941
Depois dos brutais acontecimentos de ontem, meu estado de ânimo oscila do
choro à raiva. Mas não há tempo para parar. Morgenthau nos convocou para uma
reunião de urgência pela manhã bem cedo.
“Com o objetivo de limitar qualquer atrito entre nós”, advertiu, “e para tornar
minha vida um pouco menos difícil nestas circunstâncias, decidi outorgar a Harry
White o status de subsecretário. Não posso nomeá-lo subsecretário neste momento,
mas quero lhe conferir este status como se fosse, e ficará encarregado dos assuntos
internacionais em meu nome.”
A satisfação foi praticamente unânime. Nestes momentos de naufrágio,
ninguém melhor do que Harry para coordenar nossos esforços.
“Quero que tudo se concentre em um único cérebro”, concluiu Morgenthau,
“e quero que este cérebro seja o de Harry.”
15 de dezembro de 1941
Hoje apareceu a notícia na disposição 43 do Departamento do Tesouro: “A
partir desta data, o sr. Harry Dexter White, assistente do secretário, assumirá
completa responsabilidade em todas as matérias do Tesouro que tenham que ver
com relações exteriores. O sr. White servirá como vínculo entre o Departamento do
Tesouro e a Secretaria de Estado, atuará como assessor do secretário do Tesouro em
política externa e assumirá responsabilidades na gestão e operação do Fundo de
Estabilização, sem prejuízo de suas atribuições prévias. O sr. White responderá
diretamente ao secretário”.


— Além de continuar com as tarefas próprias da Direção de Pesquisa
Monetária — prosseguiu Leah —, agora também corresponderia a White
administrar as relações econômicas com as nações aliadas e operar os empréstimos
para financiar o esforço bélico. Da noite para o dia se transformou no segundo
homem do Tesouro e em um dos funcionários mais poderosos do governo
Roosevelt. Uma semana depois de Pearl Harbor, Morgenthau pediu a White que
pusesse em andamento um Fundo de Estabilização Interaliado que estabelecesse as
bases de um acordo econômico no pós-guerra. Foi então que o novo subsecretário
começou a trabalhar no documento mais importante de sua carreira, o chamado
Plano White, que em longo prazo seria a base do sistema de Bretton Woods.
Infelizmente, os cadernos de Noah param aqui. A última entrada, de fevereiro de
1942, aparece truncada, o que sugere a existência de um caderno posterior.
— Como lhe disse, este diário apareceu por acaso entre as coisas da minha mãe,
e ela não acredita que algum outro tenha se conservado — esclareci.
— Que pena!
— Me desculpe por perguntar isso, srta. Levitt, mas quem era exatamente
Harry Dexter White?
— Muito boa pergunta — Leah mordeu o lábio inferior. — Estou há cinco
anos estudando os acordos de Bretton Woods e ainda não poderia dizer quem era
exatamente Harry Dexter White — a seguir tirou algumas anotações da mochila e as
estendeu diante de mim. — White nasceu em Boston em 1892 e morreu em
Fitzwilliam, New Hampshire, em agosto de 1948. Foi educado em Boston e serviu
na França como oficial do Exército dos Estados Unidos durante a Primeira Guerra
Mundial. Estudou em Stanford e em Harvard, onde obteve um doutorado e
lecionou economia. Estudou no Lawrence College, em Wisconsin, uniu-se ao
Departamento do Tesouro em 1934. Rapidamente ganhou a confiança do secretário
do Tesouro. Em 8 de dezembro de 1941, no dia seguinte ao ataque japonês a Pearl
Harbor, White obteve o status de subsecretário do Tesouro. Alguns meses depois,
no início de 1942, White desempenhou papel fundamental na formulação da
política americana para antecipar a ordem financeira internacional do pós-guerra.
Ao lado de John Maynard Keynes, foi a figura dominante na Conferência de
Bretton Woods, quando nasceu o Banco Internacional para a Reconstrução e o
Desenvolvimento e o Fundo Monetário Internacional, do qual foi o primeiro
diretor executivo da delegação dos Estados Unidos. Quando o Fundo começou seus
trabalhos, em maio de 1946, White presidiu a primeira reunião do Comitê de
Diretores Executivos.
— Parece bem impressionante.
— Depois de pouco mais de um ano, White renunciou ao Fundo, deixou
Washington e conseguiu trabalho em Nova York como consultor financeiro —
Leah não conseguiu evitar que sua voz vacilasse. — Em setembro de 1947, White
sofreu um grave ataque cardíaco e um segundo enfarte provocou sua morte, em
Fitzwilliam, em agosto de 1948.
— Pois o retrato que você fez parece justificar a admiração que meu pai lhe
dispensava — me surpreendi. — O que poderia ser mais honroso e estimulante do
que colaborar de maneira tão estreita com o responsável pela articulação do sistema
econômico vigente até nossos dias?
Leah fez uma careta, como uma adolescente que de repente descobre as
infidelidades do pai.
Harry Dexter White no Tesouro.

— Infelizmente, o papel dele na história não é tão fácil de esclarecer —


admitiu. — Em novembro de 1953, quase cinco anos depois de sua morte, o então
procurador-geral Herbert Brownell declarou que Harry Dexter White tinha sido um
espião russo. Pouco depois, o ex-presidente Truman revelou que, no final de 1945 e
início de 1946, sérias acusações de espionagem haviam sido formuladas contra
White, mas que fora praticamente impossível prová-las com as evidências então
disponíveis. À espera dos resultados de uma investigação secreta, permitiram que a
nomeação de White no Fundo seguisse seu curso. Mas, quando a necessidade de
manter segredo chegou ao fim, White foi de imediato afastado do cargo. Em
declarações posteriores diante do Congresso, o procurador-geral Brownell
considerou que havia provas conclusivas da cumplicidade de White com os
soviéticos.
— White foi acusado de ser espião soviético! — exclamei.
— Isso mesmo.
— Se estou entendendo bem… Leah… isso significaria que o criador do FMI e
do Banco Mundial foi um espião comunista!
Diante do silêncio atônito da jovem, me limitei a soltar uma gargalhada.
Cena V. Sobre a natureza assassina dos genes e as guerras
travadas em família

RECITATIVO

Rachel foi atrás de mim. Digo isso sem vaidade, sabendo que este capítulo
causará um grande desgosto a ela. Para agradá-la, confessarei que naquela altura
tinha olhos celestes, tez azeitonada e pernas infinitas. (Hoje a distinguem um olhar
opalino, uma pele estragada pelas manchas e pernas cadavéricas.)
Como eu, Rachel também tinha começado um MBA em Pittsburgh, mas,
diferente da maior parte dos nossos colegas, não vinha do campo das finanças, mas
da física, e acabava de concluir um doutorado em Cornell.
Uma das vantagens — ou desvantagens — de ganhar destaque em uma escola
de negócios, inclusive em um lugar tão lamentável quanto Pittsburgh, é a aura
erótica que o dinheiro irradia. Não coloco em dúvida minha elegância nem minha
atitude nesses anos, mas, se comecei a me ver rodeado ou assediado por um tanto
deplorável coro de mênades não foi por minha imagem nem por minhas maneiras
de cavalheiro, mas sim por minha condição de estrela ascendente no mundo das
opções.
Rachel, ruiva; Gabrielle, morena; Tamara, loira. As Panteras se, em vez de
escolher pelas curvas, Charlie tivesse preferido as circunvoluções da massa cerebral.
Uma, extrovertida e ardilosa; outra, dura e sibilina; a terceira, mais para insossa,
esmagada pelas outras.
Um bar no centro de Pittsburgh.
O que comemoravam? Um aniversário, o Dia do Trabalho, o Natal, sei lá.
Quatorze estudantes de MBA se embrutecendo com shots de vodca. Um após o
outro, em uma maratona etílica.
Oito mulheres e seis homens. Entendem o que digo? Oito amigas competindo
por seis homens. Até a morte.
Que diabos eu estava fazendo ali? Às vezes a gente não consegue dizer a tempo
que não, e depois é tarde demais para fugir. De modo que ali estava eu, tentando
escapar das harpias, esperando ser um dos dois machos que sairiam ilesos da sua
luxúria. Não era tão simples. Rachel, Gabrielle e Tamara tinham decidido que eu
seria sua presa. Por quê? Porque uma delas gostava de mim, e como boas amigas as
outras tinham decidido infernizá-la.
A gente pode desviar dos socos no fígado até certo ponto; depois, com a
consciência flutuando em uma dose de aguardente, os reflexos entorpecem, os
neurônios se paralisam, e se perdem o bom gosto e as maneiras.
Gabrielle me beijou primeiro; Rachel não quis ficar atrás. Eu beijei Tamara só
para provocar as outras duas. Um passatempo perigoso.
Queria ir para casa o quanto antes.
Não irá até que nós digamos, ameaçaram. E voltaram a me beijar.
Uma delas — adivinhem qual — propôs que fôssemos ao seu apartamento.
Um loft bem bonito em Greenwich Village. Mais álcool. E um baseado.
Depois de várias rodadas de afagos, Gabrielle e Tamara desabotoaram as blusas
e se tocaram nos seios: rotundos e morenos os da primeira, minúsculos e rosados os
da segunda. Teriam feito isso outras vezes? Sua destreza demonstrava experiência.
O melhor da noite foi a cara de Rachel, casualmente a menos bêbada, que não
parecia estar a par das preferências das amigas. Não digo que tenha se assustado —
uma garota de vinte e oito anos, em meados dos anos 1970, não se assustava com
quase nada —, mas se paralisou além da conta. Quando Gabrielle e Tamara tiraram
as saias e as calcinhas e entrelaçaram suas pernas em tesoura, convidando a nos
juntarmos a elas, Rachel e eu já tínhamos parado de nos beijar havia algum tempo.
Olhávamo-nos atônitos sem saber o que fazer.
Eu disse que tinha que ir embora.
Rachel disse que ela também.
Ofegantes, Gabrielle e Tamara se queixaram de que Rachel me quisesse só para
ela. E continuaram entregues uma à outra.
Acompanhei Rachel à sua casa.
Não me convidou para subir. (Eu tampouco teria aceitado.)
Uma loucura típica da idade e da época. Teria bastado esquecer para sempre o
deslize e tutti contenti. Em vez disso, Rachel me ligou e me convidou para um
drinque. Pensei que talvez pudéssemos transformar aquele interlúdio pornográfico
em uma relação profissional: seu talento matemático era justo o que o meu novo
projeto requeria. Talvez pudéssemos fazer negócios.
No bar resumi meus planos: ela poderia traçar os modelos matemáticos que eu
necessitava e, em troca, eu a tornaria minha sócia. Torceu o nariz, decepcionada.
Mas aceitou.
Durante mais de um ano formamos um time invencível. Seus números
funcionavam, e começamos a ter lucros à altura dos nossos sonhos.
O que posso dizer como desencargo de consciência? No início de 1978,
quando esses fatos ocorreram, ela tinha dois anos a mais que eu. Era esperta, era
simpática, vinha de uma boa família do Meio-Oeste, era inclusive
convencionalmente bonita. Todos diziam que formávamos um casal perfeito.
Aconteceu o que tinha que acontecer. Outra bebedeira, os dois a sós dessa vez.
O pretexto, festejar uma boa operação. Levou-me à sua casa e transamos. Segundo
ela, sem compromisso: dois jovens liberais que, além disso, são sócios.
Depois de seis semanas ela descobriu que estava grávida.
De gêmeos.
Implorei que abortasse.
Rachel se recusou.
Deixamos de nos ver durante um tempo. Primeiro a odiei. Depois, forçando
minha racionalidade, quis ver uma saída, o escudo perfeito para sobreviver no
implacável quadrilátero de Wall Street, e implorei seu perdão.
Rachel se fez de difícil apenas o tempo imprescindível para uma garota de sua
classe. Casamo-nos no Grande Templo da Eastern Parkway, no mesmo lugar onde
Judith e Noah contraíram matrimônio.
Minha mãe se recusou a comparecer.

SERENATA

Kevin, amor da minha vida, fogo das minhas kadeiras, kilométrico Keeevin,
meu pecado, minha alma… gostaria de escrever isso, mas não pretendo somar o
plágio à lista de crimes que pesa contra mim. Rachel tinha insistido em me
apresentar aos seus pais, o sr. e a sra. Reynolds: ele, dono de uma fábrica de
tratamento de águas em Connecticut; ela, vaporosa dona de casa e filantropa. Resisti
até o último minuto até que, como sempre naquela época, acabei cedendo. Pegamos
o carro e nos dirigimos para a leitosa mansão familiar cuja parte traseira se abria para
um pequeno lago.
Seus pais me receberam com um excesso de atenções. Eu não me imaginava
como um pretendente do gosto deles, mas Rachel tampouco era uma menina.
Quando lhe perguntei por que não se comprometeu anteriormente, respondeu que
sua dedicação aos estudos sempre a impediu de conhecer alguém que valesse a pena.
Depois fiquei sabendo que, aos vinte e três, um namorado a deixara plantada na
véspera do casamento — cara esperto! — e seu coração nunca se recuperara
totalmente. Enfim, os Reynolds precisavam com urgência de alguém capaz de se
ocupar de sua prole.
Ofereceram-me uma taça de champanhe e passamos para a sala. Tudo brilhava:
os quadros vanguardistas, as maçanetas das portas, os cristais, o couro das poltronas,
como se tivessem polido cada detalhe para a minha visita. Interrogaram-me sobre os
meus sonhos — afinal aquilo era um exame — e eu não quis decepcioná-los tão
cedo, falei sobre a Bolsa e o mercado, sobre Wall Street e meu interesse pelas
opções, sobre o par que sua filha e eu formaríamos no amor e nos negócios. O sr.
Reynolds sorriu. A sra. Reynolds, em compensação, se mostrava impaciente e arisca
(talvez efeito dos barbitúricos), como se desde aquele instante tivesse detectado uma
falha oculta em mim. Tem alguma coisa que não me agrada nesse rapaz, deve ter
repetido a Rachel até o dia do casamento.
Na sala de jantar nos aguardava uma longa mesa de estilo vitoriano, e dois
serviçais uniformizados — só para evitar o clichê, não eram negros — serviram a
sopa de lagosta e o peru assado, o usual em uma típica família americana. Resisti
com estoicismo à bateria de perguntas graças ao borgonha que o sr. Reynolds vertia
com devoção. Justo quando tínhamos terminado o assado apareceu Kevin, sujo e
despenteado, se desculpando pelo atraso. A irmã lhe dirigiu um olhar de
recriminação e a mãe lhe ordenou que se lavasse; quando o coitado se sentou à mesa,
nós já enjoávamos com uma empedrada mousse au chocolat. A beleza vulgar de
Rachel e a um tanto bobalhona da sra. Reynolds se transmutavam em uma beleza
suave e melancólica no rapaz. Não resisti à tentação de lhe perguntar sua idade:
treze, grande número.
Para quebrar o gelo lhe perguntei sobre seus hobbies, e o meu Tadzio
suburbano respondeu com um ritmo monótono e temeroso: nenhum.
— A única coisa que interessa a Kevin são seus brinquedos bobos e seus gibis
— o contradisse Rachel.
— Que tipo de gibis?
Contei que eu era um grande amante dos quadrinhos e que possuía uma
coleção nada desprezível de super-heróis e invasões alienígenas. Os senhores
Reynolds me olharam com surpresa e a irmã com certa repulsa. Kevin me
perguntou se gostaria de ver alguns dos dele. Rachel insistiu em tomar o café na
varanda e demorou horas ali, mencionando uma infinidade de designers de moda e
arquitetos — uma enxurrada de nomes ilustres nos seus lábios —, empenhada em
boicotar minha incipiente amizade com seu irmão.
— Você tem mesmo todos esses gibis? — perguntou Kevin.
— Se você quiser, um dia pode vir conosco para que dê uma olhada neles.
E, sem acrescentar mais nada, corri para seu quarto, decorado como cenário de
Guerra nas Estrelas. Na colcha e nos travesseiros, no abajur e até no papel de parede,
dançavam as silhuetas de Darth Vader, Luke Skywalker, Han Solo e R2-D2, que
por sua vez estavam presentes, em distintos tamanhos e tipos, como bichos de
pelúcia e bonecos de plástico. Talvez a coleção de gibis de Kevin não se comparasse
com a minha, embora possuísse dois ou três títulos nada desprezíveis, mas sua
paixão pela saga de George Lucas me deixou estarrecido. Tinha modelos em escala
de uma dúzia de naves espaciais, uma gigantesca Estrela da Morte e, ao longo de
quatro estantes, um amplo repertório de jedis e stormtoopers em miniatura.
— Mas falta o Yoda.
Sentei-me na cama, ao lado dele, intimidado diante daquele aplicado
colecionador. Não sei quanto tempo permaneci ao seu lado, conversando sobre o
destino de Luke e a língua dos wookiees (Chewbacca também era um de seus
personagens favoritos), mas, quando ouvimos as passadas militares de Rachel,
soubemos que nossa cumplicidade tinha chegado ao fim. Ela insistiu em que eu
descesse para degustar um último drinque com seus pais e voltou a dirigir um olhar
de recriminação ao irmão.
Algumas semanas depois Kevin finalmente viajou a Nova York, fomos ao
cinema e ao McDonald’s e depois a uma loja de brinquedos, e insisti em lhe
comprar uma Millennium Falcon de quase um metro de comprimento. Uma vez no
meu apartamento lhe mostrei minha coleção (apenas uma mínima parte da que
obtive com os anos) e passamos o resto da tarde rememorando frases de filmes de
ficção científica.
Pouco depois do casamento, com Rachel já inchada como um hipopótamo, seu
irmão nos visitou pela última vez. Depois de esgotar o sábado em busca de
carrinhos, fraldas, chocalhos, mamadeiras e casaquinhos, voltamos para casa, onde
eu tinha preparado uma surpresa para Kevin: o VHS de Guerra nas Estrelas. Rachel
disse que estava esgotada e foi dormir.
Por volta das quatro da madrugada Rachel nos encontrou largados nas
poltronas e sonolentos, com uma manta nos cobrindo do frio. Minha noiva lançou
um grito histérico, ordenou a Kevin que fosse dormir e exigiu que eu a
acompanhasse — sim, agora mesmo — ao quarto. Pela manhã acordou com um
humor de cão, tomamos o café da manhã em silêncio e depois acompanhamos
Kevin ao seu trem.
Nunca mais me permitiu ficar a sós com o irmão. Kevin e eu ainda nos
encontramos em algumas reuniões familiares, sempre sob a vigilância da perua da
mãe deles, e chegamos a trocar algumas cartas. Só isso. Jamais urdi um plano para
assassinar os Reynolds e obter sua guarda, jamais cheguei a tocá-lo, jamais rocei sua
pele, nem sequer naquela noite, suavemente, por debaixo da manta.
Hoje sei que, ao fazer vinte e três anos, durante um jantar de Ação de Graças
na casa do lago, Kevin revelou aos pais que saía com um rapaz de trinta e quatro. Sei
que o sr. Reynolds deixou de falar com ele e que a sra. Reynolds fingiu não entender
o que dizia. Sei que, muito a contragosto, Rachel prometeu apoiá-lo. E sei que,
como outros membros do seu clã, Kevin também amaldiçoa meu nome.

DUETO

Nasceram no mesmo dia, 24 de fevereiro de 1979, na mesma hora, com apenas


seis minutos de diferença. Susan, às 11h13; Isaac, às 11h19. (Certifiquei-me de que
os registros do hospital fossem precisos para anular o ridículo medo de Rachel de
uma troca dos bebês.) Impossível diferenciá-los, com exceção da ligeira rachadura
que a pequena tinha no púbis e do enrugado volume encravado no meio das pernas
do varão. Os dois pareciam horríveis. Quando a enfermeira insistiu em que os
pegasse, um nojo irrefreável me invadiu. Devolvi-os assim que segurei seus
corpinhos fofos e enrugados, tão parecidos com os diabólicos fetos que ilustram a
propaganda antiaborto. Com os olhos inchados, o cabelo oleoso e os lábios
ressecados, Rachel os olhava da cama com idêntica desconfiança. Esse duplo repúdio
terá selado seus destinos? Poderiam atribuir à nossa repulsa original a razão de seus
traumas e complexos, os demônios escondidos no medroso caráter da minha filha e
a insatisfação de que meu filho padece desde criança? Não sei o que argumentar a
nosso favor, pois, se um recém-nascido oferece uma imagem por si pouco feliz, os
dois juntos, tão iguais, pareciam monstruosos: os mesmos olhinhos meio fechados,
os mesmos pezinhos rechonchudos e perfeitos, as mesmas panças proeminentes, os
mesmos cabelos crespos e abundantes, o mesmo cheiro. Rachel não só resistiu a
pegá-los nos braços, também se negou a amamentá-los: achava a alimentação
mamífera — e por uma vez eu concordava — própria de camponeses europeus. O
médico de plantão nos explicou que essa repulsa era normal: o choque de dar à luz
um filho, e nesse caso gêmeos, demora semanas para desvanecer, e inclusive
mencionou o grotesco termo baby blues. Rachel e eu nos resignamos, mas ao longo
dos meses nossa conjunta depressão pós-parto não teve nenhuma melhora. Betty, a
babá, cuidava das crianças, encerradas nos seus bercinhos gêmeos, o mais afastado
possível do nosso quarto, enquanto nos refugiávamos debaixo dos lençóis cobertos
com uma avalanche de sitcoms e programas de concursos.
Às vezes, açoitado pela insônia, parava para observá-los com uma mistura de
curiosidade e aversão; parava ao lado dos berços, constatando sua respiração tensa e
simultânea, seus enjoos em dueto, seus sincrônicos vaivéns, como se suas peles
tivessem sido modeladas com uma substância gelatinosa que se molda pouco a
pouco ao recipiente, até que acordavam e seus gritos me faziam proteger-me entre os
lençóis, enquanto uma sonolenta Betty tentava apaziguá-los (mesmo acordada,
Rachel nem sequer se esforçava em levantar). Não demorei a constatar que os
gêmeos ganhavam peso dia a dia, que seus ossos, músculos e cérebros se reforçavam
pouco a pouco, cada vez mais exigentes e detestáveis. O primeiro traço humano que
distingui nas criaturas foi o mais puro afã de competição. Às vezes Betty os colocava
no mesmo berço, umas vezes no azul de Isaac, outras no rosa de Susan, e
infalivelmente o proprietário das mantinhas se lançava, com sua ira fresca e
embrionária, a expulsar o invasor: ao que parece a propriedade privada não foi uma
invenção do neolítico, como supõem os marxistas, mas uma característica imanente
à nossa espécie. Por mais doces e inocentes que sorrissem no álbum de família, com
suas camisetas da Disney e seus chocalhos coloridos, Isaac e Susan estavam sempre
em estado de guerra. Os dois lutavam para definir seu território e seus brinquedos e
conseguir a atenção dos adultos, como se suas rudimentares consciências
percebessem que irremediavelmente quando um ganhava o outro perdia.
Quando se começa a amar um filho? Os pais normais, ou os mais hipócritas,
respondem invariavelmente que desde o começo, como se uma febre carnal brotasse
de repente nas nossas células diante da imagem de suas bochechas e babas. Mentira.
É óbvio que Rachel e eu acabamos amando nossos filhos, mas só depois de um lento
período de adaptação, quando finalmente nos acostumamos à sua presença
ameaçadora, quando aprendemos a resistir aos gritos e chantagens, quando
descobrimos que o maior ato de egoísmo se reduz a amar essas cópias imperfeitas de
nós mesmos. Sabemos que o revestimento de inocência e desamparo que os recém-
nascidos possuem é apenas um disfarce evolutivo, uma máscara com a qual nos
obrigam a mimá-los, a nos sacrificar por eles, a satisfazer seus desejos totalitários e
fascistas: a ternura é a irônica medida de sua vitória. E mesmo assim a gente acaba
precisando deles e amando-os, por achar que são a única coisa que pode justificar
nossas vidas em bancarrota. Depois de um ano de nascidos, Isaac e Susan já
demonstravam os traços de caráter que haveriam de defini-los: ele, raivoso e
intolerante, sempre disposto a fazer uma birra e se agarrar nos cabelos da irmã (sem
remorsos aparentes); ela, que também não era nenhum anjinho, dona de uma
segurança íntima em sua beleza que a levava a se dar bem. Os irmãos são cúmplices
e inimigos embora não saibam ou calem isso, companheiros de viagem destinados a
se imitar e ajudar tanto quanto a se bater pelo afeto ou pela aprovação de seus
progenitores. Sua condição gêmea reforçava esta condenação, unidos por um
vínculo impossível de se expressar com palavras, como se conseguissem se
comunicar por telepatia ou mediante uma obscura linguagem de sinais. E, ao
mesmo tempo, era possível perceber entre os dois um ódio apenas comparável ao
que outros reservam para os piores inimigos: se adoravam e se criticavam como os
personagens daquele filme em que dois fugitivos encadeados um ao outro precisam
fugir juntos embora no fundo se detestem.
As afinidades são eletivas? Quero dizer, será que a gente escolhe um favorito a
partir de uma identificação racional, ou isto é produto de um mal-entendido
químico ou psicológico? Outra vez os pais mais normais ou mais hipócritas jurarão
diante da Bíblia que amam os filhos com a mesma intensidade e que, além das
sutilezas ou dos vínculos que se acentuam à medida que crescem, seus corações não
distinguem entre eles. Talvez ocorra assim em outras famílias (duvido), mas no meu
caso, pelo menos desde que me acostumei à ideia do que é ser pai, soube que Susan
seria a minha preferida, ou talvez esteja pecando por ingenuidade e tenha sido ela
quem me escolheu. Por outro lado, Isaac e eu nunca combinamos. Como iria gostar
dele se se comportava como um idiota grosseiro e gritão, sempre zangado com o
mundo e em especial comigo? Bastava que o pegasse um pouco, acariciasse sua testa
ou lhe fizesse um carinho para que ele gemesse e esperneasse até que Betty ou a mãe
o resgatasse das minhas mãos. Em contraste, Susan sorria para mim sem descanso,
não digo que desprovida de sedução, e conseguia que eu a cobrisse, quem poderia
imaginar, com todo tipo de carinhos. Na nossa relação se destacava esse
componente físico, pois precisávamos nos tocar e abraçar.
Como os preços das ações, as relações familiares perseguem o equilíbrio e,
diante da cumplicidade que Susan e eu dispensávamos um ao outro, Rachel
derramou todo o seu incipiente amor materno em Isaac, como se desde esses
primeiros anos ele fosse vítima de uma injustiça, e eu fosse um criminoso por não
adorá-lo. Estabeleceram-se assim dois times irreconciliáveis, dois casais em
confronto e rivais: de um lado, Rachel e Isaac, unidos no seu ressentimento; e de
outro, Susan e eu, sempre serenos e livres de culpa.
Quando a relação entre mim e Rachel começou a se deteriorar, a oposição entre
os lados ficou mais azeda, mas, para ser sincero, acho que minha ruptura com
Rachel se cozinhou desde o próprio dia do parto. Assim que sofreu as primeiras
contrações me culpou por sua desgraça; me fez chamar um táxi às pressas (eu nunca
aprendi a dirigir) e, enquanto a bolsa arrebentava no banco de trás do carro,
alfinetou alguma coisa sobre divórcio. Eu atribuí o desplante às perturbações de seu
estado, e ela não voltou a tocar no assunto nas semanas subsequentes, mas, assim
que a situação se estabilizou, ou assim que vislumbramos como deveria ser nosso
futuro, ela transformou a exigência em uma ladainha inesgotável, diante do mais
mínimo desacordo. Se eu saía de viagem, Rachel exigia o divórcio; se me esquecia do
aniversário de sua mãe ou de uma festa com suas amigas, exigia o divórcio; se Isaac e
Susan se arranhavam, exigia o divórcio; se respondia às suas provocações com as
minhas habituais descargas de ironia, exigia o divórcio; e se a olhava em silêncio,
também exigia o divórcio.
Eu não era o que se pode chamar de um irresponsável, trabalhava de sol a sol,
comprava-lhe joias e vestidos de alta-costura, levava-a aos melhores restaurantes e
clubes de Manhattan, cumpria até o menor dos seus desejos e inclusive me esforçava
para satisfazê-la uma vez por semana, o que mais podia pedir? Segundo ela, eu
escondia um lado negro que a fazia se sentir abandonada. Talvez fosse assim, mas,
enquanto eu cumprisse com minhas obrigações, por que se metia com os últimos
lampejos de privacidade que me restavam? Rachel não se importava com o tempo
que eu passava em família, mas com o que eu roubava para mim. Preocupavam-lhe
minhas infidelidades? O pior é que quase não existiram: eu me sentia tão abatido
que nem sequer perseguia aventuras esporádicas. De vez em quando, e sempre no
escritório, me aliviava diante de alguma imagem lúbrica ou em uma hotline
qualquer, operações que eu qualificaria de terapêuticas, para suportar tanto o
estresse de uma esposa histérica e exigente quanto os altos e baixos que abalaram a
Bolsa naqueles meses.
Depois a refrega se centrou nos filhos. Rachel me recriminava pelo excesso de
atenção que eu dava a Susan, um dardo equivocado diante do meu desinteresse por
Isaac e por ela própria. Você a mima demais, ela não se separa de você nem por um
segundo, você a está estragando. Não sei o que a irritava mais, se a insônia da criança
para se manter ao meu lado ou a hostilidade que nossa filha lhe dedicava, e não sei o
que me ofuscava mais, se os ataques de Rachel ou a estratégia vil e subterrânea que
utilizava para transformar Isaac em seu aliado. A acumulação de injúrias,
repreensões, maus humores, insultos e chantagens (com suas correspondentes
desculpas lacrimosas) aniquilou minha paciência e eu mesmo vi o divórcio como
única saída.
Quando expus isso foi o dilúvio. Como se ela jamais tivesse dito a horrenda
palavra, Rachel me acusou de fugir sem tentar salvar nosso casamento. Implorou
que esperasse algumas semanas e prometeu fazer um último esforço para nos
reconciliar; enquanto isso contratou um detetive e um escritório de advogados,
cujos sócios lhe prometeram que, se eu insistisse na separação, o preço seria o mais
alto. Só há uma guerra mais cruel do que a travada entre irmãos: a dos pais que se
separam com ressentimento. Nenhum dos outros combates que travei, contra meus
antigos chefes, contra meus antigos empregados, contra a SEC (sigla americana da
reguladora Securities and Exchange Commission), contra a imprensa ou contra os
tribunais, se compara em crueldade ao que devo ter travado contra Rachel. Não
digo que ela seja pérfida ou estúpida, ou que tenha sido a única responsável pelas
nossas escaramuças, pois no caso dela a maldade e o rancor obedecem a um impulso
incontrolável. Como não disponho de magnanimidade para perdoá-la — seu
veneno ainda me repugna —, me limitarei a dizer que ela me inspira mais pena que
desprezo, já que a vida de Rachel há muito perdeu qualquer sentido.
Seus rábulas honraram sua palavra e lhe entregaram minha cabeça. Não apenas
me resignei a lhe pagar uma pensão descomunal — meu futuro hipotecado —,
como a ressarcir as custas judiciais, tudo isso enquanto meu fundo de investimentos
afundava irreversivelmente. Mas o mais doloroso foi ter que optar a cada quinze dias
entre ameaçá-la (em vão) e suplicar de joelhos que me permitisse ver meus filhos. Os
termos da sentença não lhe importavam: alguém como você, dizia já sem pudor,
nunca será uma boa influência, se eu não quis tornar isso público foi para não deixar
o assunto ainda mais vergonhoso, de modo que se alegre por eu deixar você ficar
com eles algumas horas. Duas horas a cada quinze dias, e isso no melhor dos casos,
pois com frequência eu ia buscá-los em um sábado ou um domingo e não os
encontrava. Sempre recusou que Isaac e Susan passassem uma noite comigo,
imaginem umas simples férias.
— Você não sabe como cuidar deles, têm que estar de volta às nove.
— E se eu me recusar?
— Direi tudo o que sei de você à imprensa, querido.
Que inquietante foi a lenta e minuciosa lavagem cerebral que os meus
pequenos sofreram! Rachel não apenas se assegurou de escondê-los de mim durante
o período mais transcendente do seu desenvolvimento, como infundiu neles uma
incurável desconfiança com relação a mim e aos homens em geral. Susan e Isaac
nunca deixaram de me ver como um desconhecido que, sempre agarrado ao
telefone, não encontrava nada interessante para contar. Embora eu os enchesse de
balas e brinquedos, essa anestesia logo deixou de surtir efeito, e nossos encontros se
tornaram tão insossos que eu mesmo pensei em interrompê-los. Não foi necessário:
aos seis anos Isaac disse para a mãe que não gostava de ficar comigo, ou foi isso que
a víbora me disse.
Por alguns meses renunciei a qualquer contato com eles, mas a pausa só serviu
para que Rachel dispusesse de um novo argumento contra mim. Quando mudei de
ideia e voltei para buscar Susan aos domingos, notei nela aquele traço de desilusão
que nunca mais desapareceria dos seus olhos. Mais tarde minhas represálias
econômicas conseguiram que Isaac voltasse a fazer parte de nossos passeios; ele nos
seguia sem reclamar, docilmente, mas por dentro me odiava por impor minha
presença e afastá-lo, mesmo que fosse por alguns instantes, da doentia proteção que
a mãe lhe dispensava. Depois do divórcio Rachel pediu demissão do cargo de
consultora e, depois de algumas tentativas desinteressadas, decidiu não se reintegrar
ao mercado de trabalho. Ser mãe exige tanto quanto qualquer emprego, justificava-
se, e na verdade fez da maternidade uma prisão de tempo integral, para infelicidade
dos meus filhos.
Amedrontados e acanhados, os dois eram os melhores alunos de suas classes; a
mãe aplaudia suas notas 10 como se fossem provas de sabedoria, quando apenas
confirmavam sua falta de vontade própria. Nessa altura Susan tinha se transformado
em uma adolescente bonita e espigada, um tanto fria; tinha um namorado da sua
idade desde os doze, um recorde no seu grupo que conservaria até os dezessete;
andava sempre na moda, com seus jeans e vestidinhos combinados, enquanto exibia
sua condição de capitã do time de basquete. Isaac era o contrário dela: nervoso e
avoado, a gozação dos colegas. Seus olhos grandes e intensos lacrimejavam ao menor
contratempo, e mais de uma vez a mãe o viu destripar sua própria coleção de aviões
e naves espaciais em ataques provocados pela sensação de que o universo estava
contra ele.
Nossa guerra produziu, assim, dois jovens desanimados e tristes, dois alunos-
modelo, dois escravos. Dois cordeirinhos a caminho do matadouro que, fora do
ambiente protegido da sua escola privada, nunca conseguiriam sobreviver em campo
aberto. Em umas férias de primavera embarquei-os em um avião e, sem avisar a
mãe, os matriculei em um acampamento em Montana. Quando fui buscá-los, Susan
estava com os braços cobertos de arranhões, enquanto Isaac tinha resistido até o fim
à pressão dos monitores, se recusando a participar de qualquer atividade em grupo.
Não, jamais sobreviveriam na selva.
Como foi então que, aos quatorze, Isaac acumulou força para enfrentar
primeiro a mãe e depois a mim? Talvez tivéssemos subestimado a carga de rancor
que nosso filho acumulava nas vísceras. A culpa foi, nada mais previsível, de uma
garota — Samantha, uma menina de dezessete anos loucamente apaixonada pelo
meu descendente. Dominada pela rivalidade ancestral entre as mulheres, Rachel o
proibiu de vê-la: não é para você, é muito velha, ponto final. A simbiose entre mãe e
filho parece ter se rompido, e ele não conseguiu achar melhor aliado que seu pai,
ligou para mim (algo insólito); jurou que Sam o amava, que ele amava Sam, e que
necessitava que eu encobrisse seus encontros. Que melhor oportunidade para ganhar
sua confiança? Então, por que, em vez de ajudar Isaac e sua namoradinha, traí os
dois? Talvez porque eu também visse uma garota de dezessete como uma vampira,
porque os negócios me distraíssem ou porque não tenha achado importante o
primeiro romance do meu filho, uma bobagem que mais cedo que tarde esqueceria.
Disse a Isaac que marcasse com Sam no meu apartamento e, quando os dois
estavam ali, Rachel e eu aparecemos de repente: os pegamos nus, grosseiramente
deitados um sobre a outra. Ela com muita dificuldade conseguiu se cobrir, mas ele
permaneceu imóvel, como se a visão do seu sexo duro fosse nosso castigo. Meu gozo
diante da decepção de Rachel se desvaneceu assim que olhei o rosto do meu filho:
nem surpreso nem aflito, oco, transparente. Perdi-o nessa tarde?
Isaac nunca deixou de me fazer pagar por isso. Nunca deixou de me condenar
às vezes com palavras e às vezes com seus atos incendiários ou cáusticos, como se
depois dessa prova não houvesse retorno e toda a sua vida adulta, com sua avalanche
de desventuras e tombos, se resumisse nesse único episódio, nesse revés que eu lhe
tinha infligido. Em minha opinião, só as mentes obtusas ficam fixadas em um
instante e lhe atribuem uma desgraça continuada. Tudo isso aconteceu quando Isaac
tinha quatorze anos. Como achar que seu azarado destino se forjou nessa falta de
empatia, nesse erro de um dia do qual sem dúvida me arrependo?
Susan manteve, nesse transe, uma lúcida neutralidade. Ela também se sentia
asfixiada pelas pressões da mãe, mas, diferente do irmão, não estava disposta a
confrontá-la. Manteve-se prudente e contida, preocupada apenas com seu mortiço
namoradinho, continuou sendo a primeira da classe e não teve dificuldade para ser
aceita em Columbia. Aparentemente sua vida era saudável, tranquila, normal. Ao
entrar no college terminou com o namoradinho, conseguiu outro — o sinistro Terry
— e continuou fascinada pela moda e pelos esportes (agora o tênis), até que um dia
seu corpo, naturalmente sutil e delicado, começou a encolher. Susan se transformou
em um espírito que se desprende tetricamente da carne. Por que renunciou à
comida e começou a devorar a si mesma? Nenhum psicólogo soube responder, ela
dizia ser mais ou menos feliz, ou pelo menos tão feliz ou infeliz quanto a maior
parte de suas amigas, e também não entendia a súbita perda de peso. Chegou o dia
em que seus bracinhos pareciam fios de linha e a pele que os cobria, pergaminhos.
Não consegui conter as lágrimas ao vê-la no hospital. Quis culpar Rachel pela
tragédia: você colocou na cabeça dela essas ideias sobre a magreza das modelos e o
horror à gordura. Era injusto, pois, se alguém a contagiara, havia sido sua época,
uma geração esmagada pelas revistas de celebridades e os contornos sem relevo das
putinhas de Hollywood.
Até hoje não sei como se salvou. Rachel insiste em que a clínica e seus cuidados
a resgataram, eu não acredito nisso. Susan nunca voltou a apreciar a comida como
antes — a gordura igualada com o pecado —, mas pelo menos conseguiu recuperar
vários manequins e, até antes de seu divórcio, se conservou relativamente saudável.
Susan nunca me contou a causa de suas tonturas ou desmaios, e nem à mãe. Depois
de ter alta, fez um MBA em Chicago, continuou acumulando vestidos, bolsas e
sapatos de grife, continuou jogando tênis e se casou com o bronco com o qual
procriou — de novo a maldição — duas gêmeas: Audrey e Sarah.
CONCERTANTE

A própria Bíblia anuncia cruelmente: faça o que fizer, depois de sete anos de
vacas gordas, sucederão sete anos de vacas magras. As pessoas gostariam que não
fosse assim, imaginar que dessa vez será diferente, que a tragédia não deverá se
repetir ou que acontecerá em um futuro distante, mas não há salvação. Resumo
meus anos de vacas gordas. Criei meu próprio fundo de hedge; comecei a obter
dividendos que, se não eram espetaculares, pelo menos prosseguiam em rota
ascendente; casei-me com Rachel; mudamos para um apartamento, alto e luminoso,
no Upper West Side; nasceram Susan e Isaac; veraneamos no lago de Como, em
Santorini, na Côte d’Azur, em Aspen, em Paris; comprei um Camaro para mim, um
New Yorker para Rachel e um 4x4 para os nossos passeios familiares; e minha conta
bancária alcançou sete dígitos. Depois, no início dos anos 1980, a recessão
deslanchou, e eu, que me achava muito esperto e invencível, perdi 800 mil dólares
de repente; vendi o Camaro e o 4x4 e deixei de veranear em hotéis de luxo. Rachel
me massacrou com o divórcio, ficou com o apartamento alto e luminoso no Upper
West Side e com o New Yorker.
De repente me vi sem um dólar, sem trabalho, sem família e na rua. E a crise
dos anos 1980 não foi nem uma pálida antecipação da atual. O que a gente pode
fazer quando acha que tudo está perdido? Felizmente a juventude é resistente, desde
que se conservem certos vínculos, certas amizades, acesso a certas esferas, nessa idade
ainda é possível se reinventar, esquecer o fracasso ou pelo menos imaginar que foi
culpa de uma maré de azar e começar de novo.
Em Pittsburgh, Brian Donovan nunca se distinguiu por sua perspicácia, cultura
ou inteligência; obteve seu MBA com as melhores notas, mas suponho que essa é
mais uma prova de imbecilidade. Ainda por cima a natureza não lhe havia
abençoado com um único traço físico atraente, e muito menos excepcional: nariz
padrão, cabelo castanho-escuro, olhos castanho-claros, lábios finos, compleição
mediana, traseiro padrão (e aqui me detenho). O protótipo da normalidade. Assim
eram seus gostos: os Yankees, os Cowboys, os BigMac, Duran Duran, Charles
Bronson, Farah Fawcett. Com uma única e notável exceção. Eu.
Por que aquele nova-iorquino prototípico cismou comigo? Não tenho ideia. Só
me lembro de que certa noite, na festa de um colega, Brian colocou a mão na minha
coxa. Tirei-a dali com a maior delicadeza, atribuindo o mal-entendido ao pó branco
que flutuava em suas narinas. Fiquei afastado o resto da noite procurando evitar sua
companhia. Ele me ligou duas ou três vezes — não sei quem lhe deu meu número
— e eu inventei um pretexto atrás do outro para não me encontrar com ele, mas
Brian não se cansou de insistir. Reconheço que pelo menos demonstrava certo
estilo, bancando o macho, sem que suas propostas soassem impertinentes demais.
Quando nos formamos, ele encontrou emprego em um Grande Banco de
Investimento — o contrário do que eu procurava: risco e autonomia — e não voltei
a saber dele.
Pouco depois do divórcio, topei com Brian em um antro nas proximidades da
Washington Square. Custou-me reconhecer seus traços normais e seus olhos
normais e sua figura normal atrás do penteado de duzentos dólares, dos óculos
Armani, do Zegna, do Rolex. Convidou-me para um drinque e se gabou de que
acabava de ser promovido no seu Grande Banco de Investimentos. Antes que ele
pudesse me perguntar sobre minha própria sorte no trabalho, me aproximei de seu
ouvido e sussurrei o que ele sempre quis ouvir de mim. Seu apartamento, na
Broadway com a 82, era tão insosso quanto o dono.
Duas semanas depois começou minha carreira no J.P. Morgan.
Cena VI. Sobre como limpar seu nome da infâmia e a extinção
dos profetas

ÁRIA DE HARRY DEXTER WHITE (E CORO DE CONGRESSISTAS)

Enquanto se encaminha para a sala de sessões, com um passo marcial que


surpreende a si mesmo, os golpes de luz o cegam: os flashes que saltam daqui para lá
enquanto um torvelinho de vozes, ou talvez a mesma voz repetida ao infinito, exige
que dirija seu olhar para a direita ou a esquerda como se lhe importasse que ângulo
do seu rosto os tabloides reproduzirão na manhã seguinte. Harry Dexter White
finge não ver nem ouvir seus perseguidores, abre caminho entre a multidão e entra
nos corredores do Congresso até o lugar que lhe reservaram na primeira fila. É 13 de
agosto de 1948, e o ar-condicionado quase não livra do mormaço matinal. White
veste terno de listras, colete preto e gravata combinando, mas por uma vez gostaria
de afrouxar a camisa contra as normas de etiqueta que sempre respeitou. Ofegando,
ocupa seu lugar e fixa o olhar no do congressista John Parnell Thomas, que preside
os trabalhos.*
Não transcorreu nem um ano desde o ataque que o prostrou na cama por três
meses — e apenas um ano e meio desde que renunciou ao Fundo Monetário
Internacional —, mas White sente que começou a recuperar o vigor. O calvário teve
início quando ainda estava convalescendo; em 12 de outubro de 1947 um delegado
federal ligou para sua casa e sem a menor delicadeza o intimou a comparecer diante
de um grande júri. O motivo? Responder às acusações que uma mulher anônima —
o World Telegram a chamava de “rainha dos espiões vermelhos” — e um sinistro
delator comunista tinham feito contra ele. Alegando a doença do marido, a sra.
White conseguiu adiar o depoimento, mas este finalmente se realizou em 25 de
março. Harry desmentiu os falatórios contra ele, certo de que isso seria suficiente.
Afinal, quando tinham incomodado um alto funcionário do governo devido às
calúnias de uma louca e de um traidor?
A “rainha dos espiões vermelhos”, que a imprensa marrom pintou como uma
Mata Hari sensual e perigosa, finalmente se revelou uma grosseira de rosto
camponês e penteado anacrônico, nada sexy e um tanto gordinha, com o pouco
glamoroso nome de Elizabeth Bentley. E o delator, Whittaker Chambers, um
amargurado e obeso colunista da Time que, como qualquer desertor, transbordava
sua febre anticomunista em todos os seus artigos. Durante seu comparecimento
diante do Subcomitê de Investigações do Senado, foi ela quem primeiro acusou
White de ter feito parte de seus contatos. A antipática afirmou que se tratava de um
dos elos mais apreciados da trama de espionagem que ela controlava e não hesitou
em associá-lo com o círculo clandestino travado em torno de Nathan Gregory
Silvermaster, antigo economista chefe da Divisão de Análise Econômica do
Departamento de Comércio.
Quando as insídias dela foram confirmadas por Whittaker Chambers, White
não teve outro remédio senão dar as caras. Ele mesmo insistiu em comparecer diante
do Comitê de Atividades Antiamericanas para acabar de uma vez com as calúnias.
Talvez por isso seu rosto, embora severo, irradie um fulgor inusitado. White passou
a noite inteira polindo a declaração que lerá dentro de alguns instantes, o resumo de
uma vida consagrada a um único esforço: servir à causa da paz e da justiça que para
ele sempre foi a causa da sua pátria.
Os vitrôs filtram um brilho aquoso que colore o semblante de White com uma
aura ao mesmo tempo plácida e guerreira. Assim que o oficial solicita que se levante
e jure que dirá a verdade e nada mais que a verdade, o fundador do Fundo
Monetário Internacional pronuncia cada frase com ênfase, mais uma prova da
superioridade moral que o assiste frente aos seus caluniadores. Depois de repetir seu
nome e seus dados gerais, o oficial lhe pede que esclareça seu cargo atual.
— Agora sou algo assim como um consultor econômico e financeiro.
Desde que se viu obrigado a deixar o Fundo, White assessora diversas empresas
privadas e governos estrangeiros, entre eles o Banco do México. Completado este
primeiro trâmite, White solicita a vênia do presidente para ler a declaração que traz
no bolso. Este inclina a cabeça, e o arquiteto de Bretton Woods se aferra à folha de
papel com mãos trêmulas. Em compensação sua voz, um tanto nasalada, nunca
vacila.
Harry Dexter White comparece ante o Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso.

— Eu mesmo solicitei comparecer diante deste comitê, e o comitê acatou


amavelmente minha solicitação — começa. — Li nos jornais as acusações
formuladas contra mim por certa srta. Bentley e certo sr. Whittaker Chambers.
Compareço diante dos senhores porque é importante que a verdade seja conhecida
por este comitê e pelo público, e estou pronto para responder da melhor maneira às
perguntas que o comitê queira me formular.
White pega um copo de água, dá um gole rápido e, com um tom cada vez mais
moderado, prossegue seu discurso.
— Queria declarar, em princípio, que não sou e nunca fui comunista e nem
sequer estive perto de sê-lo; que não me lembro de ter conhecido uma srta. Bentley
ou um sr. Whittaker Chambers, nem pelas fotografias que me foram mostradas nem
por ter me encontrado com eles no passado. Segundo a imprensa, estas testemunhas
afirmam que eu as ajudei a conseguir postos-chave para pessoas que eu sabia
envolvidas em atividades de espionagem a fim de ajudá-las em seu trabalho. Esta
acusação é inequivocamente falsa. Não existe nem existiu base alguma para ela. Os
princípios nos quais acredito, e pelos quais vivi, me impedem de agir com
deslealdade ou contra os interesses do nosso país e por isso quero informar ao
comitê quais são as minhas crenças.
Depois de uma pausa dramática, White introduz o coração de sua defesa.
— Meu credo é o credo americano. Acredito na liberdade de religião, na
liberdade de expressão, na liberdade de pensamento, na liberdade de imprensa, na
liberdade de crítica e na liberdade de movimento. Acredito na igualdade de
oportunidades e no direito de todo indivíduo de desenvolver suas capacidades da
melhor maneira. Acredito no direito e no dever de todo cidadão de trabalhar para
alcançar uma medida cada vez maior de segurança política, econômica e emocional
para todos. Oponho-me à discriminação em todas as suas formas, seja em termos de
raça, cor, religião, convicções políticas ou status econômico. Acredito na liberdade
de escolher nossos representantes no governo sem que intervenham as armas, a
polícia secreta ou a polícia de Estado. Oponho-me ao uso arbitrário e sem restrições
do poder ou da autoridade contra qualquer indivíduo ou grupo. Acredito no
governo da lei, não no dos homens, e em que a lei está acima dos homens e não
deve haver nenhum homem acima da lei.
O público aplaude a sinceridade do ossudo funcionário que, ao defender com
tamanha galhardia os valores democráticos, demonstra a vontade dos republicanos
de desprestigiar seus rivais.
— Para mim estes princípios são sagrados — enfatiza White. — Vejo-os como
o substrato elementar do nosso modo de vida americano e acredito que são
realidades vivas, e não simples palavras no papel. Este é o meu credo. Estes são os
princípios pelos quais trabalhei. Em conjunto, são os princípios pelos quais estive
disposto a lutar no passado e continuo disposto a defender em qualquer momento,
inclusive ao preço da minha vida se for necessário. Isso é tudo o que tenho a dizer.
Estou pronto para as suas perguntas.
Os aplausos fazem a sala vibrar, e J. Parnell Thomas, cada vez mais parecido
com um mastim, chama à ordem.
Restaurado o silêncio, outro membro do comitê pede a White que aponte
quais, entre os acusados de espionagem pela srta. Bentley, colaboraram com ele na
Divisão de Pesquisa Monetária do Tesouro.
— Coe, Glasser, Ullmann, Adler, Volpi e a sra. Sonia Gold trabalharam para
mim em uma ou outra ocasião — responde White. — Currie, Silverman e
Silvermaster são bons e velhos amigos.
Ali aparece, de repente, o nome do meu pai: um sobrenome entre outros na
lista de pessoas de confiança de Harry Dexter White que, segundo Bentley e
Chambers, fazem parte de uma rede clandestina a serviço da União Soviética.
— E não acha estranho que oito ou nove pessoas, todas elas suspeitas de
espionagem, tenham trabalhado para o senhor ou sejam seus amigos?
— Acho desconcertante — defende-se White —, mas não estranho. O
Tesouro é um dos maiores departamentos do nosso governo e requer gente
talentosa. Necessitávamos dos melhores profissionais, e acho que sou um bom juiz
para avaliar sua competência neste campo.
Devido à fragilidade de sua saúde, White solicita uma pausa. Finda essa,
Parnell Thomas e seus comparsas voltam à carga. Do olimpo do estrado, protegidos
por sua condição de representantes populares, os canalhas o metralham sem o
respeito que merece um criador de instituições e sem a piedade que corresponderia a
um doente. White confessa conhecer de perto os outros acusados e confirma que
costuma jogar pingue-pongue com Silvermaster e que sua esposa e a sra. Silverman
às vezes saem para fazer compras. Nunca renega seus amigos, elogia as virtudes de
cada um e sustenta que nunca suspeitou que albergassem simpatias comunistas.
Parnell Thomas lhe pergunta então como um homem com uma doença cardíaca
pode ser tão afeito aos esportes. Com um sorriso, White responde que o enfarte o
abateu apenas no ano anterior e que antes disso teve oportunidade de ganhar várias
partidas. A resposta desata a gritaria geral e Parnell, corando, se estira na poltrona.
Questionado depois sobre se, caso estivesse a par das simpatias comunistas dos seus
colaboradores, os teria contratado no Tesouro, lança um terminante não.
— Posso entender e simpatizar com a ideia de que, se existir a mínima suspeita
de que alguém seja comunista, não ocupe uma posição no governo nem possua um
cargo em que possa obter qualquer informação confidencial. Mesmo que não
houvesse provas contundentes, a mera suspeita bastaria.
White teria que ser um grande ator ou um cínico de primeira para pronunciar
essas palavras se de fato fosse comunista… E obviamente o criador da ordem
capitalista do pós-guerra não o é. Não pode sê-lo.
Se seu comparecimento diante do Comitê de Atividades Antiamericanas na
sigla em inglês HUAC — House Un-American Activities Committee tivesse sido um
jogo de beisebol, na nona intervenção a equipe de White estaria vencendo por 7 a 1
os representantes do povo. Suas frases afiadas não apenas desarmam os congressistas
como os fazem assumir papel de ridículo. Toda vez que White conclui uma defesa,
o público o ovaciona; falta pouco para que se produza um apito contra o pitcher dos
congressistas, que gostariam de sair correndo para os vestiários. Pelo menos até que
o mais jovem deles, Richard Nixon, um rebatedor emergente provido de um nariz
descomunal, empunha o taco e, em vez de questionar as supostas convicções
comunistas de White, se concentra em uma questão mais espinhosa.
— Tem certeza, sr. White, de que não conhece o sr. Whittaker Chambers?
— Já disse que não me lembro dele — este se defende. — Isso foi há doze ou
quinze anos. Devo ter me encontrado com cinco ou dez mil pessoas nos últimos
quinze anos, mas não me lembro dele. É possível que nos tenhamos visto e que
tenha falado com ele por alguns segundos.
— No caso de que tivesse se encontrado com este indivíduo, sr. White,
digamos três ou quatro vezes, se lembraria dele?
— Quanto mais vezes o tivesse visto, mais provável seria que me lembrasse.
Depende de onde tivesse acontecido e do tipo de conversa que tivéssemos. Precisaria
pensar. Três ou quatro vezes, não sei.
— Supondo que se viram três ou quatro vezes, seu testemunho continuaria
sendo que não se lembra?
— Meu testemunho seria o mesmo. Não me lembro dele. É possível que alguma
vez tenha topado com um sujeito como ele em uma das dúzias de conferências,
coquetéis ou festas a que compareci.
— Supondo que topou com este indivíduo quatro vezes e que chegou a falar
com ele, se lembraria?
— Suponho que sim, deveria supor, mas não tenho certeza.
— E o senhor não quer afirmar então que, se tivesse se encontrado com ele três
ou quatro vezes, seria capaz de se lembrar?
— Não me lembro de ter me encontrado com ele.
— E não se lembra de alguém chamado Carl nesse período?
— Não, não me lembro. Do que, sim, me lembro, em compensação, julgando
a partir de minhas anotações, é que o cavalheiro disse que me conhecia e que me
convenceu, ou tentou me convencer, a entrar ou abandonar (não me lembro com
precisão) o Partido Comunista ou um círculo de comunistas. Disso sem dúvida eu
me lembraria. E posso confirmar, sem a menor dúvida, que não pode ter sido assim.
— Segundo seu testemunho isso não ocorreu entre 1935 e 1937.
— Não me lembro de ter me encontrado com este indivíduo.
— Sinto muito, não ouvi — lança Nixon. — O senhor o quê?
— Disse que não me lembro de ter me encontrado com este indivíduo. Só
repito o que disse antes…
— Em outras palavras, o ponto que quero esclarecer é se o senhor declara, para
que conste em ata, que em nenhum momento um homem chamado Carl discutiu
com o senhor o fato de que ele ia abandonar o Partido Comunista e que tampouco
propôs ao senhor, digamos, que deixasse de ser amigo do Partido Comunista.
Poderíamos colocar nestes termos?
— Da primeira afirmação de fato não me lembro. Da segunda com certeza me
lembraria, e a resposta é não.
O diálogo parece extraído de uma comédia de Beckett ou Ionesco. O público
reunido naquele 13 de agosto de 1948, incluindo a maior parte da imprensa, fica
com a impressão de que White se defendeu com destreza, demonstrando sua
inocência “com a sabedoria de um velho mestre” — como escreve um repórter do
Boston Traveller — e, depois de dobrar os membros do grande júri, agora derrota de
forma ainda mais contundente os abutres do HUAC, incluindo Nixon.
A audiência termina à 1h25 da tarde e White, tenso e fatigado, embarca no
trem de volta para Nova York. Tira da pasta seu velho exemplar de A sociedade e a
solidão, de Ralph Waldo Emerson. Mas, sem conseguir se concentrar, prefere folhear
o Times depositado no banco ao lado. Uma aguda dor no peito, mais parecida com
um vazio do que com um tamborilar, o obriga a se dobrar sobre si mesmo como
uma criança de colo. Conta mentalmente, um, dois, três… até dezoito, e a vertigem
finalmente desaparece. Hoje não, pensa. Um táxi o deixa no seu apartamento.
Prefere não assustar sua mulher e se limita a fazer um breve resumo da audiência.
Ela prepara um jantar leve para ele, e White vai para a cama, mas não pega no sono
até o amanhecer.
Pela manhã bebe uma xícara de chá e mastiga uma madalena antes de se dirigir
ao consultório de seu médico acompanhado pela mulher. O doutor lhe formula as
perguntas de rotina, o ausculta e conclui que o estresse do dia anterior deve ter
debilitado seu coração. Recomenda um repouso prolongado, uma dieta saudável e
muita paz. Irritado porque confirma o que ele já sabe, o velho se despede com um
aperto de mão. Os White se dirigem então para a Penn Station com a ideia de
chegar à sua casa de Blueberry Hill no meio da tarde. Já no vagão, enquanto
conversa com a mulher sobre o livro de Emerson, o buraco volta a se abrir em seu
peito. Um, dois, três, quatro… vinte, vinte e um, vinte e dois.
— Malditos médicos! — resmunga White.
Sua mulher lhe oferece os comprimidos e tenta confortá-lo.
O caminho até a casa de campo é terrível, White cambaleia, se sufoca, mal se
mantém de pé. Demônios! Seu humor é pior que sua saúde. A sra. White entra em
contato com o dr. Emerson — coincidência onomástica —, que não demora a
comparecer diante de sua cama. O velho médico o acalma, inclusive o faz rir com
uma de suas anedotas picantes (tratou metade de Fitzwilliam) e lhe recomenda não
se levantar durante todo o dia.
— Como ele está, doutor?
Emerson prefere não assustar a sra. White e explica que seu marido precisa se
recuperar da experiência no Congresso. Quatro horas mais tarde a vertigem
reaparece. Um, dois, três… vinte e oito, vinte e nove, trinta… White tirita, escravo
de seus nervos. O dr. Emerson reaparece, receita outros comprimidos, volta a lhe
recomendar calma, calma e paciência, mas suas últimas anedotas já não lhe
arrancam nem sequer um sorriso.
— Ligue para mim se acontecer alguma coisa — adverte à sra. White em um
sussurro.
Quando, depois de poucas horas, ela entra no quarto do marido, Harry Dexter
White já não respira. Permanece ali, lívido e sereno, com os olhos entreabertos e as
mãos sobre o peito, como uma múmia ou um profeta.

* Segundo Leah, depois de sua passagem pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, J. Parnell Thomas (1895-
1970) seria condenado por corrupção e encarcerado durante 18 meses.
Cena VII. Sobre como alguns banhistas conseguiram quebrar o
Planeta Terra S.A. e a persistência dos vírus

RECITATIVO

Fomos nós? Mesmo? Não que me tenha feito a pergunta com muita insistência,
nem que tema um ataque de nervos caso minha intuição se confirme — a esta altura
já deveriam reconhecer meu desprezo pela culpa —, mas quando paro para pensar,
por exemplo, enquanto recebo uma massagem tailandesa ou traço estas linhas à
sombra de um coqueiro, não deixo de me surpreender com isso que soa como um
relato fantástico ou, quase melhor, de ficção científica. Se o velho Aristóteles estiver
certo (e, acreditem, sempre está) e a causa da causa for causa do causado, devo
reconhecer que, por mais inverossímil que pareça, nós somos os culpados. É óbvio
que não fizemos isso sozinhos, foi necessária a participação prolongada de milhares,
talvez milhões de vontades cúmplices — ou ambiciosas e sedentas, ou cegas e
estúpidas — ao longo de três quinquênios: políticos irresponsáveis, banqueiros
perversos, burocratas internacionais sem escrúpulos, acadêmicos e investidores tão
embrutecidos por Hayek e Friedman quanto eu e, obviamente, um número
incontável de cidadãos anônimos, tão ingênuos quanto avaros (é muito provável,
querido leitor, que você seja um deles), mas em todo caso a ideia original nos
pertence: a semente ou o disparador da hecatombe. Como os cientistas loucos de
um filme para adolescentes, fomos nós que incubamos o agente patogênico — a
mortal cepa DRV4, ou seja, divida o risco com a velhinha do 4 — que não tardaria a
fugir do nosso laboratório até se transformar em uma epidemia que transmutaria em
zumbis um número inverossímil de vítimas no Norte e no Sul, nos países
desenvolvidos e no Terceiro Mundo: essa praga que deveria destruir tantos destinos
quanto a peste negra. Sim, fomos nós. E, para nos desligar da nossa sinistra
invenção, não basta alegar que depois fomos mais prudentes que outros bancos, que
uma vez criado o monstro resistimos a utilizá-lo em nosso favor, que inclusive
quisemos alertar, ainda que timidamente — timidamente!, que eufemismo! — sobre
os perigos da nossa criatura, sobre a fome descontrolada ou a raiva destrutiva que
estava escrita em seus genes. Não basta nos desligar dos estragos posteriores: a ideia
foi nossa, ponto. Temos o copyright da catástrofe. Segundo conta a lenda, quando
J. Robert Oppenheimer ficou sabendo que seu bebê finalmente tinha aterrissado em
Hiroshima, balbuciou: “Eu sou a morte”. Para lhe fazer eco, em um tom sem
dúvida menos arrepiante, me corresponderia acrescentar: “E nós somos a crise”.
CORO DOS BANQUEIROS

O buliçoso sol da Flórida tinha dado lugar a um entardecer refrescante,


lubrificado com vários litros de piñas coladas e mojitos que se esgotavam como se
cada drinque não custasse 25 dólares (afinal por conta do banco). Se alguém tivesse
estudado com ânimo zoológico os veranistas — a idade média não excedia os vinte e
oito anos —, nunca teria adivinhado sua verdadeira profissão e muito menos que se
encontravam, pelo menos oficialmente, em uma reunião de trabalho. Assim que
chegaram ao faraônico Hotel Boca Raton, um bloco cor de flamingo estendido ao
longo de 150 hectares — a maioria escolheu junior-suites de 350 dólares por noite
—, depois de fatigantes horas de viagem em business class de Nova York, Londres ou
Tóquio, esses garotinhos se apressaram a se livrar de seus Hermès e seus Armanis, se
enfiaram em coloridos trajes de banho, pingaram seus corpos com bronzeadores da
Lancôme (as barrigas tanquinho justificavam o trajeto) e mergulharam na piscina ou
se abandonaram nas poltronas para tostar as pálidas carnes. Trabalho? De fato,
rudes proletários do mundo: trabalho. Um paparazzo sem escrúpulos ou um
ressentido do sistema poderia achar que estavam aproveitando férias ou uma
esticada de fim de semana, mas os jovens prodígios só estavam recarregando energias
para se consagrar às tarefas que tínhamos reservadas para eles e pelas quais não
deveriam receber menos de um quarto de milhão de dólares por ano.
Eu acabava de completar quarenta anos e, depois de Pete Voicke, o teimoso
alemão que dirigia a área de mercados globais, era o oficial mais veterano da equipe.
Desde que os derivativos financeiros se tornaram apetecíveis em princípios dos anos
1990, até alcançar 1,7 trilhão de dólares em 1994, o J.P. Morgan tinha perseguido
todos os formados do MIT, de Chicago ou Harvard que cruzaram seu caminho com
o objetivo de explorar ao máximo um negócio que, apesar de tão bons prognósticos,
apenas começava a dar seus primeiros passos.
Resumindo, Voicke, Pete Hancock — o espigado inglês que estava a cargo do
departamento de swaps — e eu éramos os únicos quarentões, e portanto nos cabia o
papel de babás dos garotos. E olhe que os integrantes da nossa equipe precisavam de
nós: como se fossem spring breakers, sua intenção era espremer em uma tarde todos
os prazeres que seu autocontrole lhes vedava em suas respectivas sedes. Para
começar, alguém alugou um ônibus para levá-los ao mais excitante clube de
striptease do estado, um dos poucos onde as garotas faziam vista grossa quando você
deslizava o indicador lá por baixo delas.
Indiferente a tão suculentos atrativos, permaneci na minha rede com a enésima
margarita da tarde, dedicado a observar as braçadas de quem tinha preferido a
umidade da piscina à daquelas lúbricas samaritanas.
— Meus sapatos!
O uivo animal me arrancou do torpor. Uma horda de rapagões, até o nariz de
tequila e testosterona, comemorava sua façanha com cantos de guerra. Enquanto
isso, Pete, em sua faceta de monstro-da-lagoa-verde, emergia penosamente das águas
com o cabelo emaranhado, os olhos avermelhados, um semblante que mal disfarçava
sua raiva, a camisa branca grudada ao peito (os mais luxuriosos zombavam de seus
mamilos inchados), a gravata transformada em pano de chão, as bombachas e os
sapatos reduzidos a couro imprestável. As risadas deviam se ouvir a milhas de
distância.
Pessoas menos familiarizadas com os costumes dos gigantes financeiros —
como a maior parte dos senhores, leitores em vias de desenvolvimento — poderiam
se escandalizar não apenas com a conduta pueril dos nossos empregados como com
sua desfaçatez para fazer uma brincadeira de mau gosto com um superior. Isso só
significa que vocês desconhecem as regras de urbanidade que vigoram nos campings
corporativos. Se o temperamento americano tende por si só a desfazer as hierarquias
com uma linguagem amigável e afável — o que não impede quem tem a autoridade
de exercê-la sem misericórdia —, essas escapadas de verão reinventavam os antigos
carnavais da Idade Média, um tempo único em que se apagam as fronteiras e tudo
se permite, inclusive jogar seu chefe na piscina. Com este espírito esportivo nas
costas, Voicke exibiu seu melhor sorriso e, fazendo um gesto obsceno para os
agressores, se dirigiu à sua suíte para se trocar.
Não tinham passado nem cinco minutos do ataque quando aqueles heroicos
guerreiros, gráceis e suarentos como Aquiles, elegeram sua vítima seguinte: Vikram
Kureishy, um bonito analista financeiro de vinte e oito anos. Só que, diferentemente
de Pete, o especialista em riscos tentou resistir à agressão da manada. Conseguiu
durante uns dez segundos. Depois o valente deu um grito queixoso e começou a
soluçar como um bebê. Os outros só pararam de fustigá-lo quando viram o rio de
sangue que escorria do nariz torcido do rapaz. Insisto: a etiqueta recomenda ser cool
em qualquer circunstância, privilegiar a camaradagem frente a qualquer
inconveniente, então depois de uma tensa pausa — eu mesmo constatei o corte em
seu nariz —, Vikram cobriu o ferimento com um guardanapo e murmurou um
desbotado vão me pagar por isso antes de se dirigir à enfermaria.
O incrível era que a técnica funcionava: exatamente como previam nossos
especialistas em recursos humanos, a baderna gerava um ambiente de cooperação
impossível de alcançar nos cubículos do J.P. Morgan. Bastava conceder um pouco
de liberdade aos rapazes, fazê-los acreditar que eram os donos do mundo por um dia
(talvez fossem), convencê-los de que pertenciam a um time de futebol mais que a
um dos bancos de investimento mais importantes do planeta para que suas
resistências viessem abaixo e surgisse entre eles uma ternura insuspeitada — em
Londres ou NY, para não falar de Tóquio, se matavam por uma promoção — e se
mostrassem dispostos a compartilhar suas ideias e a assimilar o fértil feedback dos
rivais. O que importavam alguns milhares de dólares jogados fora, um nariz partido,
meia tonelada de ossos de frango empilhados nos quartos, três mil dólares de
hambúrgueres debitados na minha conta — que espertos! —, três senhoritas
chateadas pelos impertinentes ataques dos rapazes, dois carrinhos de golfe
encalhados na lavanderia ou um minibar jogado de um terceiro andar se é para
deixar feliz um exército de gênios dispostos a conquistar o mundo às ordens do J.P.
Morgan?
Ao constatar os rostos bem barbeados, os olhares brilhantes e o clima de
expectativa que se respirava na manhã seguinte em um dos salões de conferências do
Boca Raton, ninguém poderia imaginar que horas atrás os rapazes se arrastaram
pelos tapetes depois de languescer nos braços de uma piranha. Eu me sentei ao lado
de Vikram — o nariz coberto com esparadrapo — e deixei que, como de costume,
Pete Hancock conduzisse os trabalhos. Ao vê-lo de perto, constatei satisfeito que
ficaria calvo muito antes de mim.
Com seu sotaque britânico mal diluído, iniciou a sessão com uma torrente de
perguntas que o atormentavam havia várias semanas:
— Como lançar uma nova onda de inovação em derivativos financeiros?
Poderíamos aplicar seus princípios a outras áreas de negócio? O que acham dos
seguros? E dos empréstimos e do crédito?
Aos trinta e um anos, Pete Hancock era um dos maiores gurus em derivativos
financeiros de Wall Street. Suas perguntas não eram retóricas: se alguém que tinha
sido capaz de contribuir decisivamente para que os benefícios dos derivativos
financeiros rondassem os 12 trilhões naquele ano — para que façam uma ideia, mais
do que o conjunto da economia americana — se atrevia a sugerir que tinha chegado
a hora de perseguir a Nova Grande Coisa, isso significava que estávamos perdendo
terreno. Conhecendo Pete, não sairíamos dali até que alguém propusesse uma
resposta inteligente às suas perguntas.

INTERLÚDIO

Queridos e simples mortais: como adivinho seus olhos avermelhados e


espantosamente abertos, sintomas inequívocos de frustração e sobressalto, me vejo
obrigado a fazer um parêntese para tentar explicar, em poucos parágrafos —
antecipo sua imperícia matemática —, o que são os Derivativos Financeiros.
Embora fiquem com um pouco de dor de cabeça, sei que me agradecerão a vida
inteira por isso. [Se por acaso você conhece as sacanagens desses instrumentos
financeiros, significa que você é, sim, querido leitor, mon semblable: um dos
culpados pelo naufrágio do Planeta Terra S.A. e, portanto, está autorizado a pular
impune este trecho.]
Imagine, curioso leitor, que você é dono de uma sex shop em um momento em
que as perspectivas de negócio lhe parecem pouco favoráveis. E suponhamos que eu
sou proprietário de um bordel e também estou tomado pelo pessimismo. Por
alguma razão, eu acho que as sex shops têm melhores perspectivas de prosperar do
que os clubes libertinos. Você pensa o contrário. Neste caso eu lhe proponho um
trato: trocar nossos ganhos durante, digamos, um ano, no qual eu assumirei os
lucros ou as perdas da sua sex shop e você as do meu bordel. Os negócios não
mudam de mãos. Esta permuta é conhecida no nosso jargão como swap. O primeiro
e mais simples dos Derivativos Financeiros.
Ficou claro, leitor? Espero que sim, porque o jogo se complica.
Agora imagine que a troca não se realiza com os lucros dos nossos antros, mas
com bens de todo tipo (do preço da soja ao do barril de petróleo), ou com bônus
submetidos a taxas de juros variáveis, ou inclusive com divisas. Da noite para o dia
todos os grandes bancos de investimento, encabeçados pelo J.P. Morgan, se
concentraram em aplicar o mesmo princípio a todos os tipos de operações. A
concorrência se tornou brutal. Ao nos esforçar para oferecer produtos cada vez mais
rentáveis, estes se tornaram cada vez mais abstratos e intrincados. As permutas
começaram a ser feitas a partir de coisas tão intangíveis quanto o ar, de cuja sorte
dependiam monstruosas somas de dinheiro.
Graças aos derivativos financeiros, as finanças se transformaram em ciência
espacial. Para calcular as fórmulas requeridas para cada um deles, os banqueiros
tiveram que contratar matemáticos puros, engenheiros navais e astrofísicos, muitos
deles recém-chegados da Rússia, da China ou da Índia (como Vikram), os únicos
com a formação necessária para compreender suas filigranas matemáticas. Todos os
meninos travessos que nessa tarde se sentavam ao meu lado na piscina do Boca
Raton pertenciam a esta espécie. Nós os apelidamos de quants por gozação, mas
depois eles reivindicaram este mote com orgulho: afinal, nossos lucros dependiam
dos seus intraduzíveis gráficos. Infelizmente, o âmbito das finanças não está
protegido pelas leis da propriedade intelectual, e as inovações de gênios como
Hancock e os seus estavam sendo grotescamente pirateadas pelos nossos
competidores, com a consequente diminuição de benefícios para o J.P. Morgan. Daí
a necessidade de encontrar a Nova Grande Coisa que nos catapultasse novamente à
vanguarda da inovação financeira.

RECITATIVO

— Bem-vindos a Plutão.
Com essa frase Pete tinha nos convocado a imaginar uma nova onda de
Derivativos Financeiros.
Descrever em uma ordem cronológica medianamente compreensível o que
aconteceu então na Mesa-redonda do Boca Raton excede meus dotes narrativos. A
ansiedade e a energia de Pete catalisavam a ressaca e o entusiasmo às vezes
exacerbado dos rapazes. Se algum deles se atrevia a balbuciar uma proposta, e esta
não era fundamentada com esmero, Pete, incapaz de perder tempo com
banalidades, o ridicularizava. Então os quants voltavam a mergulhar nos algoritmos
e teoremas, praticamente sem levantar a cabeça. Pete buscava reanimá-los com uma
breve provocação ou um elogio à sua inteligência estratosférica, colocava os pontos
nos is e resumia os caminhos abertos; os jovens captavam a mensagem, tomando
café com as mãos tremendo, e apontavam uma possível saída aqui e outra lá, um nó
que era necessário desfazer ou um atalho que não tínhamos considerado. O
redemoinho de argumentos e contra-argumentos simulava um parto ou uma
batalha, como se depois de tantas idas e vindas aquelas mentes plurais se unissem em
um único cérebro.
Graças a esta soma de talentos, estilos e personalidades, finalmente uma
Pequena Ideia abriu caminho entre nós. No início a observamos à distância, com
desconfiança, como quando um pescador vislumbra a ponta de uma aleta e imagina
o gigantesco volume do dourado sob a água. Depois um e logo outro se atreveram a
expressar em voz alta seu entusiasmo, moderado pelas dúvidas dos mais céticos, até
que chegamos a um consenso involuntário: sim, você não está enganado, sim, é uma
Boa Ideia, boa não, muito boa. Tem certeza? Sim, observe-a deste ângulo e do
contrário. Você tem razão. E se estivermos errados? E se for inviável ou as
reguladoras não admitirem? Não, veja bem, não tema. Você tem razão, sim, sempre
tem. É uma Ideia Brilhante, muito brilhante, eu disse, e agora não a deixem ir,
agarrem-na, finquem seus arpões nela, por favor não a soltem, agarrem-na já!
— Bingo! — soltou Pete, com os olhos fora das órbitas e a calvície brilhando
de suor.
Sua exclamação, tão inglesa, devia ser entendida de outro modo: sim, senhores,
esta é a Nova Grande Ideia:
— Por que não usamos os derivativos para negociar o risco associado com os bônus e
os empréstimos corporativos?
Foi isso que sugeriram. Em linguagem comum: por que não permutamos o
risco implícito em qualquer dívida?
Qualquer um sabe que um dos maiores perigos do nosso sistema reside em que
os devedores não cumpram com suas obrigações. Se os bancos são os motores da
economia é porque recebem dinheiro em forma de depósitos que depois canalizam
em empréstimos empregados para todo tipo de coisas, desde comprar uma casinha
(na verdade uma hipoteca) até construir um centro comercial ou fundar uma
pontocom. Mas sempre existe o risco de que quem recebe o dinheiro não consiga
ressarci-lo, juntamente com os respectivos juros, ao término do prazo combinado de
antemão. A Nova Grande Ideia consistia em criar um novo tipo de swap que
reduzisse, ou diretamente eliminasse, o risco de calote.
Como? Valendo-nos, outra vez, do princípio geral das permutas. Criando um
instrumento que amparasse este risco e depois trocando-o no mercado de derivativos
financeiros. A proposta soava tão louca, e tão bonita, que todos nós achamos que
tínhamos olhado o sol de frente.

CORO DOS BANQUEIROS

Algumas semanas depois da nossa convivência em Boca Raton, Blythe Masters,


uma esperta inglesinha que fazia parte da equipe de Pete, encontrou a maneira de
colocar em prática a Nova Grande Ideia, transformando-a na galinha dos ovos de
ouro.
Um dos melhores clientes do J.P. Morgan era a gigantesca petroleira Exxon.
Como talvez se lembrem, um de seus cargueiros, o infame Exxon Valdez, encalhou
no Alasca em 1990 provocando um monstruoso desastre ecológico (e a previsível ira
do Greenpeace). Para reparar os gigantescos danos, a Exxon necessitava que o J.P.
Morgan lhe concedesse uma linha de crédito de 5 bilhões de dólares. Não tínhamos
alternativa, sob o risco de perder sua suculenta conta, mas isso significava abrir um
enorme rombo (nunca melhor dito) nos nossos livros contábeis. Foi então que a
Nova Grande Ideia imaginada no Hotel Boca Raton veio ao nosso socorro.
— E se encontrássemos alguém que queira comprar a linha de crédito da
Exxon em troca de uma comissão? — expôs Blythe.
Brilhante! Muito brilhante!
Finalmente encontramos esse sócio: o Banco Europeu para a Reconstrução e o
Desenvolvimento (Berd). De repente todos poderiam ganhar se conseguíssemos dar
vida ao primeiro swap de dívida da história.
Se assinássemos o acordo, a Exxon obteria seus 5 bilhões de empréstimo. O
Berd obteria uma suculenta comissão. E nós, no J.P. Morgan, já não teríamos que
desembolsar essa enorme soma, que agora poderíamos destinar a outros fins.
Digeriram o prodígio?
Tínhamos conseguido eliminar o risco. Ou, segundo os mais céticos, pelo
menos dividi-lo entre os três participantes do acordo.
A operação era tão original e nova que nem sequer existia um nome para
designá-la. Nós o inventamos: Permuta de Descumprimento Creditício ou CDS
[Credit Default Swap].
Nossa menina dos olhos.
CDS.
Nosso vírus assassino.
CDS.
Porque, quando poucos anos mais tarde, as CDS contraíssem núpcias com as
hipotecas subprime, nossa invenção acabaria se tornando uma arma de destruição em
massa. Mas, nessa altura, isso não importava.
— Que grande festa a do Boca Raton! — Foram as últimas palavras que
sussurrei ao Pete durante a comemoração do acordo com o Berd. — Temos que
repeti-la no ano que vem.
Cena VIII. Sobre as muitas vidas dos cadáveres e como formar
um time de tênis com comunistas

DUETO

A repentina morte de White, apenas dois dias depois do seu comparecimento


diante do Comitê de Atividades Antiamericanas, suscitou o imediato ceticismo dos
fanáticos das teorias da conspiração, muitos dos quais estavam incrustados no
próprio governo de Eisenhower. Segundo as matérias reunidas por Leah, havia
quem suspeitasse que White tinha sido assassinado pelos soviéticos para evitar que
acusasse seus cúmplices; outros, em compensação, sugeriam que o FBI de J. Edgar
Hoover poderia ter sido o responsável por sua morte: frente ao escândalo que
poderia julgar uma figura tão proeminente do governo, era melhor eliminá-lo de
uma vez por todas.
— Para desmentir esses boatos, um jornalista do Boston Traveller, Charles E.
Whipple, entrevistou o velho dr. Emerson, que sustentou que “sem a menor dúvida
White morreu devido a um ataque cardíaco” — esclareceu Leah. — Os serviços
funerários de White foram realizados em 19 de agosto na capela de J.S. Waterman
& Sons, presididos pelo rabino Irving Mandel (e não Mandell, como escreve o
Washington Post), com a presença de umas trinta pessoas. O corpo de White foi
cremado no cemitério de Forest Hills, em Jamaica Plain, ao sul de Boston, não
muito longe de onde ele nasceu.
White tinha sido — não havia dúvida — o capitão da equipe. Tinha chegado a
hora de conhecer os jogadores. Ordenada e minuciosa, Leah me entregou a folha de
White no Tesouro: uma útil lista de nomes de personagens do drama. Em muitos
casos faltavam dados aqui e ali, havia lacunas que talvez jamais chegassem a se
dissipar, mas era o mais parecido com um relato de família com que eu podia
contar.
NATHAN GREGORY SILVERMASTER. Nasceu em Odessa, em 1898, foi educado na
China e depois emigrou para os Estados Unidos. Estudou na Universidade
Americana de Washington e se doutorou em Berkeley com a tese “O pensamento
econômico de Lênin antes da Revolução de Outubro”. Em 1935, entrou para a
Administração de Seguros Agrícolas, mas a partir de 1942 gozou de uma licença
para colaborar com a Comissão de Economia de Guerra. Costumava jogar pingue-
pongue e tênis com Harry White. Depois das acusações contra ele, deixou
Washington em companhia de sua esposa Helen e, junto com Ludwig (Lud)
Ullmann, montou um negócio de construção em Harvey Cedars, Nova Jersey.
Morreu em 1964, sem que nenhuma acusação contra ele fosse provada.
ABRAHAM GEORGE SILVERMAN. Nasceu na Polônia, em 1900, emigrou para os
Estados Unidos e obteve a cidadania em 1921. Estudou em Boston, Stanford e
Harvard. Entre 1933 e 1935 ocupou diferentes cargos públicos e em 1936 tornou-se
diretor do Birô de Investigação e Informação da Comissão de Pensões de Ferrovias.
Entre 1942 e 1945 atuou como chefe da Equipe de Material e Serviços da Força
Aérea. Ao término do conflito voltou ao Tesouro para assumir a Comissão de
Refugiados de Guerra. Acusado de atuar como correio entre dois grupos de
espionagem ativos na administração Roosevelt, compareceu diante do Comitê de
Atividades Antiamericanas (HUAC) várias vezes. Em 12 de agosto de 1948, declarou
sob juramento: “Nunca entreguei documentos secretos a nenhuma pessoa
desautorizada”. Morreu em 1973 sem que fossem provadas as acusações contra ele.
HAROLD GLASSER. Nasceu em Chicago, em 1905, filho de imigrantes judeus da
Lituânia. Estudou na Universidade de Chicago. Trabalhou no setor privado e na
academia antes de ingressar no Tesouro em 1936. Em 1938, passou a se reportar a
White, que não demorou a promovê-lo a subdiretor da Divisão de Investigação
Monetária. Ao término da guerra tornou-se subdiretor do Escritório de Finanças
Internacionais do Tesouro e assessor do secretário na Comissão de Governadores do
Banco Mundial. Depois das acusações contra ele, voltou para a iniciativa privada.
Atualmente mora em uma residência para idosos perto de Chicago.
VIRGINIUS (FRANK) COE. Nasceu em Richmond, Virginia, em 1907. Estudou na
Universidade de Chicago. Entrou no Tesouro em 1939 e entre 1940 e 1942 atuou
como subdiretor da Divisão de Pesquisa Monetária de White. Em 1945, ascendeu a
diretor quando seu chefe foi nomeado subsecretário. Em Bretton Woods foi
assistente administrativo de White. Confiscaram seu passaporte no final de 1949 e o
proibiram de viajar em 1953. Embora nunca tenha reconhecido que agiu como
espião, foi morar na China a convite do governo desse país. Outro homem de
White, Solomon Adler, seguiu-o pouco depois. Morreu em Pequim em 1980.
SOLOMON ADLER. Nasceu em Leeds, em 1909, estudou em Oxford e depois se
mudou para os Estados Unidos. Em 1936 se incorporou à Divisão de Pesquisa
Monetária do Tesouro, onde manteve estreita relação com White e se transformou
em um de seus assistentes durante a reunião de Bretton Woods. Elizabeth Bentley o
acusou de ser o responsável por fotografar documentos confidenciais que ela enviava
aos soviéticos. Depôs diante do HUAC em 1950. Pouco depois lhe retiraram seu
passaporte, e ele se mudou para a Inglaterra e mais tarde se uniu a Frank Coe na
China, onde atuou como conselheiro econômico do governo, ajudou a traduzir as
obras de Mao para o inglês e escreveu A economia chinesa. Atualmente mora em
Pequim com sua segunda mulher.
WILLIAM LUDWIG (LUD) ULLMANN. Nasceu em Springfield, Missouri, em 1908, e
se formou em Harvard. Em 1937 se incorporou à Administração de Seguros
Agrícolas. Amigo dos Silvermaster, comprou com eles uma casa na capital. Em 1939
se uniu à Divisão de Pesquisa Monetária. Costumava jogar tênis com White. No
início da guerra trabalhou para o Pentágono e em 1943 retornou ao Tesouro.
Acompanhou White à reunião de Bretton Woods. Depois das acusações contra ele,
fundou uma empresa imobiliária com Silvermaster. Atualmente mora em Beach
Heaven, Nova Jersey. Sua fortuna está calculada em 8 milhões de dólares.
Em seguida, Leah me entregou a ficha de Noah Volpi. Embora parco, o
relatório revelou aspectos insuspeitados de meu pai. O mais insólito: também
costumava jogar tênis com White e seus amigos.

Meu pai jantando com seus colegas do Tesouro. (e. 1945).

— Depois de ser acusado por Elizabeth Bentley e Whittaker Chambers de ter


sido espião comunista — resumiu minha jovem amiga —, seu pai se viu obrigado a
comparecer diante do HUAC em 28 de agosto de 1948, apenas alguns dias depois da
morte de White. Como muitos de seus colegas, negou todas as acusações e recorreu
à quinta emenda para não se autoacusar. Depois de abandonar seu cargo no governo
atuou como consultor financeiro em uma pequena empresa em Nova York. Em
1951 confiscaram seu passaporte. E em 1953, pouco depois que o procurador
Bromwell voltou a vincular White com a espionagem soviética, caiu de um nono
andar — assim me garantiu Leah: nono, não décimo primeiro — e ao que parece
morreu imediatamente.
Acompanhando as fichas sobre a equipe de White no Tesouro aparecia outro
perfil, talvez mais inquietante por se tratar de uma figura de primeiro escalão na
administração Roosevelt. Embora eu tivesse ouvido falar alguma vez de Alger Hiss,
só quando Leah me falou dele me dei conta de que seu caso, retomado em dezenas
de livros e documentários, se vinculava estreitamente com o de White e o do meu
pai.
ALGER HISS. Nasceu em Baltimore em 1904. Estudou na Johns Hopkins e
obteve o título de advogado em Harvard. Em 1933 se incorporou ao Departamento
de Justiça e foi membro da equipe jurídica da Agência de Ajuste Agrário
(Agricultural Adjustment Administration), uma das instituições fundamentais do
New Deal. Em 1936, passou à Secretaria de Estado, junto com seu irmão mais
novo, Donald. Em 1944, foi nomeado diretor do Escritório de Assuntos Políticos
Especiais e secretário executivo da Conferência de Dumbarton Oaks. Participou da
Conferência de Ialta e atuou como secretário-geral da Conferência das Nações
Unidas de San Francisco. Em 1946, deixou o governo e foi nomeado presidente da
Fundação Carnegie para a Paz Internacional. Depois das acusações de Chambers,
compareceu diante do HUAC em 5 de agosto de 1948, mas, diferentemente dos
outros acusados, negou todas as acusações e entrou com um processo por difamação
contra Chambers. Hiss foi acusado de perjúrio e, depois de se submeter a dois
julgamentos, foi condenado a cinco anos de prisão. Passou três anos na Prisão
Federal de Lewisburg. Depois de sua libertação em 1954, cassaram sua licença de
advogado. Hiss mora nos arredores de Boston e ainda se declara inocente.
— Então todos eram espiões — concluí sem conseguir acreditar.
— Acho que não devemos tirar conclusões precipitadas. — Nessa altura já nos
tratávamos por você e Leah tentou me tranquilizar. — Dos oito acusados, só Hiss
foi condenado, e não por traição, mas por perjúrio. Transcorreram quase quarenta
anos desde então e não foram encontradas provas conclusivas contra nenhum dos
outros. Alguns fugiram do país, mas a maioria teve vidas mais ou menos normais, e
um deles, Glasser, até se transformou em um rico empresário. Naquela época os
republicanos viam espiões em toda parte. Lembre-se de que eram os tempos de
McCarthy e da Ameaça Vermelha. Nada disso prova que seu pai tenha sido um
espião.
— Você não acha suspeito que duas testemunhas diferentes tenham acusado
tantos membros do Tesouro ao mesmo tempo? — Banquei o advogado do diabo.
— Um grupo de indivíduos que não apenas trabalhavam juntos, mas também se
reuniam socialmente, acusados de espionagem.
Detectei certa ternura no olhar de Leah.
— Você mesmo disse isso há pouco. Acha mesmo que os arquitetos do nosso
sistema capitalista eram espiões russos?
— Soa inverossímil, mas que interesse Bentley e Chambers teriam em acusá-los
se não fosse verdade?
— Boa pergunta. — Um brilho inquietante sulcou o turquesa dos seus olhos.
— Por isso agora nos cabe investigar quem eram esses dois espertinhos.
Cena IX. Sobre como montar uma bomba H com bônus lixo e
como cantar a três um dueto de La Bohème

CORO DE BANQUEIROS

Era a guerra.
De nossas trincheiras no J.P. Morgan enfrentamos o inimigo sem medo,
contivemos suas investidas, desmantelamos a resistência e finalmente não deixamos
pedra sobre pedra. Os reguladores da SEC eram, obviamente, os vilões.
Para qualquer investidor — e qualquer paladino do liberalismo — eles eram
pouco menos que bandidos ou saqueadores: caipiras toscos e elementares que,
metidos em ternos da Macy’s (provavelmente de ofertas 3 por 1) e gravatas da Tie
Rack, e entorpecidos em suas baias burocráticas, não faziam mais que ruminar seu
descontentamento e imaginar como acabar conosco.
A caricatura não evita uma grande dose de verdade, pois, enquanto eles sofriam
para pagar as contas de luz ou de telefone, nós esbanjávamos em joias, perfumes e
champanhe; enquanto eles se casavam com suas namoradinhas do Meio-Oeste, nós
entrávamos nos haréns do jet set; enquanto eles dirigiam ramblers desengonçados,
nós voávamos em maseratis; enquanto os filhos deles eram brutalizados nas
remelentas escolas públicas, os nossos se exercitavam em competições de polo ou
hóquei nos campos ou pistas de gelo de suas academias privadas. Como não iriam
nos detestar?
A natureza do livre mercado nos tinha colocado nos lados opostos da cadeia
evolutiva: do lado de cá, não propriamente os melhores, mas os mais aptos, os que
sabiam crescer, desafiavam as convenções e se elevaram como donos do mundo; e do
outro lado, aqueles miseráveis, os que se conformavam com seus risos e dissabores
cotidianos, os que se resignavam a mendigar seus salariozinhos de merda, os que se
resignavam ao commuting e dali forjavam regras e barreiras só para nos atormentar.
Desmancha-prazeres. Invejosos. Comunistas!
No começo dos anos 1990, o mercado de derivativos tinha alcançado um
primeiro boom: pequenos bancos, recursos de pensões e até médias empresas se
lançaram em massa atrás dos novos produtos financeiros que garantiam exorbitantes
dividendos. O J.P. Morgan os tinha criado para diluir o risco, mas nossos
imitadores os usavam como fichas de cassino, alavancando seus investimentos a
níveis nunca vistos.* Até que o vento mudou de direção. Em 4 de fevereiro de 1994,
o Grande Guru Greenspan, Sumo Sacerdote do Federal Reserve, acordou com a
ideia de elevar as taxas de juros de 3% para 3,25% para esfriar a superaquecida
economia americana.
Parabéns, sr. Greenspan: em um abrir e fechar de olhos o senhor conseguiu que
o preço dos bônus despencasse e que o mercado de derivativos estivesse prestes a ir
para o lixo. Dezenas de bancos, empresas e recursos de investimento roçaram a
bancarrota: Gibson Greetings, Procter & Gamble, Mead Co., Askin Capital
Management, Paine Webber e um longo et cetera. De repente havia muita gente
irritada. Realmente irritada.
Aqui uma (insípida) lição de história: sempre que sobrevém uma crise, os
abutres cheiram a carniça, abandonam seus ninhos, abrem as asas negras e os bicos:
“Nós avisamos desde o começo, blá-blá-blá, os derivativos são daninhos, blá-blá-blá,
é necessário dar-lhes um basta”. Os reguladores precisavam de um bode expiatório, e
o Escritório Geral de Contas (GAO: General Accounting Office) publicou um estudo
de 196 páginas exigindo intervenção.
Imediatamente entraram em ação esses vagabundos que só quando já há várias
crianças afogadas apontam a urgência de tapar o poço: os políticos. Congressistas
democratas e republicanos, hidra bicéfala e amorfa, apresentaram quatro diferentes
iniciativas para regular os derivativos financeiros. Se uma delas prosperasse, os
bancos de investimento perderiam trilhões. Felizmente a mais antiga democracia do
planeta conta com instrumentos para que os capitalistas defendam seus interesses
(que, não me entendam mal, são os verdadeiros interesses da nação): os lobbies.
Mark Brickell e eu fomos encarregados pelo J.P. Morgan de sensibilizar os
congressistas sobre a importância de não colocar travas na opinião pública a este
novo e brioso mercado. Achávamos que a proposta de regular os derivativos,
dissemos a todos que quiseram ouvir, era um severo atentado contra a liberdade.
Não sei quantas ligações e cafés, almoços e jantares de cortesia fizemos ao longo
daquelas frenéticas semanas em Washington. Jornalistas puxa-sacos, políticos
esquivos, colunistas sindicalizados, gordos âncoras de notícias, medrosos agentes do
governo e avessos proprietários de estações de rádio e televisão tinham que entender
que, se freássemos o mercado de derivativos mediante leis inoportunas, a economia
sofreria uma parada brusca. Erros, sem dúvida, haviam sido cometidos, mas o
mercado de derivativos era perfeitamente capaz de se regular por si próprio.
Depois de uma interminável série de viagens a Washington, Nova York,
Londres e Tóquio, a balança pouco a pouco começou a se inclinar para o nosso
lado. O ponto de inflexão se deu quando Lloyd Bentsen, secretário do Tesouro de
Clinton (este lúbrico encantador de serpentes, teoricamente tão socialista), declarou
em maio de 1994 prévio acordo com seu chefe:
— Os derivativos são instrumentos perfeitamente legítimos para controlar o
risco. — Derivativos não é um palavrão. Devemos ser muito cuidadosos em não
interferir no mercado de forma incorreta.
Pouco depois, o Grande Guru Greenspan o apoiou:
— A legislação dirigida a regular os derivativos não pode substituir uma
reforma mais ampla, mas, na ausência desta reforma, poderia aumentar os riscos no
nosso sistema financeiro ao criar um regime regulatório ineficaz que diminuísse a
disciplina de mercado.
Tradução: regular era pior do que não regular.
No final do ano, as quatro iniciativas apresentadas no Congresso tinham sido
descartadas.
Reguladores, 0 — J.P. Morgan, 4.

INTERLÚDIO

Nosso próximo objetivo: dinamitar os Acordos de Basileia.


Eu me explico. Depois de uma exaustiva rodada de deliberações — como reza
o clichê jornalístico —, em 1988 o Comitê de Basileia tinha publicado as regras
sobre o montante mínimo de capital que os bancos de investimento deviam
armazenar em suas reservas. Quatro anos mais tarde, o G-10 aceitou estes infames
requisitos e uma centena de nações se apressou a apoiá-lo.
O Basileia I (depois haveria um errático Basileia II, mas isso não nos compete)
classificava os ativos dos bancos segundo o nível de risco, dos mais seguros — os
bônus de dívida soberana dos Estados Unidos — aos chamados bônus lixo. E
estabelecia uma regra de ouro: os bancos de investimento, como o J.P. Morgan,
eram obrigados a conservar pelo menos 8% dos ativos de risco em suas reservas.
Como apontou nosso CEO, Dennis Weatherstone, um britânico fino e
delicado, para o J.P. Morgan isso supunha congelar quantias inauditas: 8% do
capital de risco era uma enormidade que, por culpa do Basileia, se manteria inútil.
— Imaginem o que poderíamos fazer se houvesse outra forma de contabilizar o
risco — sugeriu certa manhã.
Weatherstone era uma mistura de raposa e esquilo: tão escorregadio quanto a
primeira e tão avarento quanto o segundo. Todos os dias, às 16h15 em ponto, nos
mandava enviar-lhe um relatório exaustivo sobre o nível de risco de cada área do
banco. Logo achou o relatório insuficiente e formou um grupo de trabalho dedicado
a medir o risco que o banco experimentava todo dia. Depois de árduos meses de
trabalho, os quants encontraram uma maneira de calibrar esse risco em uma única
cifra.
VaR. Value at Risk
Acrônimo de “Valor de Risco”.
Uma estimativa, com 95% de certeza, de quanto dinheiro o banco poderia
perder diariamente.
— E por que não 100%? — perguntarão vocês.
— Porque não vale a pena quebrar a cabeça pelos desprezíveis 5% restantes,
formados apenas pelos mais insólitos cenários de desastre — era a resposta dos
quants.
O sistema se baseava em observar o comportamento do banco nos anos
anteriores e predizer quanto dinheiro poderia ser perdido se houvesse um repentino
abalo do mercado. Para garantir que essa informação não fosse utilizada de forma
leviana, só os altos funcionários do J.P. Morgan tinham acesso ao número mágico.
Não contávamos com que no longo prazo o VaR se revelaria uma invenção tão
eficaz que todo mundo se esqueceria de que era uma simples projeção aproximada e
não uma profecia inevitável.
Graças aos prodígios do VaR, agora os atores de Wall Street conseguiam prever
o comportamento dos derivativos sem necessidade de que o governo se preocupasse
conosco. A estimativa era, sim, de 95%, mas nessa época de euforia e grandes
esperanças, quem teria podido prever que os malfadados 5% pudessem chegar a
acontecer? As probabilidades de um cataclismo eram menores do que as de que um
meteorito caísse na sua cabeça e em seguida um raio o partisse em mil pedaços!
Ao combinar o VaR com a última das nossas inovações financeiras, obtivemos a
arma mais poderosa jamais inventada por Wall Street.
BISTRO.
Acrônimo de... que importa?
Weatherstone tinha exigido que encontrássemos a forma de incrementar o
mercado de derivativos, de impulsioná-lo até a lua.
BISTRO era a resposta.
Nós, os membros da equipe de derivativos do J.P. Morgan, comandada então
por Bill Demchak, tivemos a ideia de negociar dezenas de operações de risco
simultâneas, criando derivativos a partir da soma destas.
— Se montarmos pacotes que combinem empréstimos de alto risco com outros
mais seguros — sugeriu Bill —, os segundos compensarão os primeiros.
— E o pacote parecerá mais apetecível do que nunca — completei.
BISTRO era a resposta.
Pense, desconcertado leitor, em um bolo de aniversário dividido em pedaços,
de modo que cada um contenha várias hipotecas com distintos níveis de risco
(distintas camadas de geleia, por assim dizer): a possível dívida da framboesa ficará
compensada com a certeza do pêssego. E pense depois, atônito leitor, que o J.P.
Morgan poderia obter lucros gigantescos vendendo o risco presente em cada pedaço
de bolo por meio de um derivativo financeiro.
Bingo!
A ideia era vender pedaços de bolo com distintos níveis de risco. O nível mais
alto, que geraria mais benefícios, denominamos junior; o nível médio, mezzanine; e
o nível mais baixo, senior.
Se acontecessem perdas pela falta de pagamento de certo número de hipotecas,
estas começariam a ser compensadas com os seniors, a seguir com os mezzanines e,
em casos de fato inimagináveis, com os juniors.
Segundo este esquema, o J.P. Morgan poderia vender o risco de cada operação.
Assim, quem comprasse um pacote de derivativos (CDS) de nível junior teria maior
risco e maiores lucros; se optasse por um mezzanine, estes se localizariam em um
nível médio; e, se se inclinasse por um senior, seus benefícios seriam mínimos,
embora praticamente seguros (pelo menos teoricamente).
Por último, sugerimos criar companhias dedicadas a comprar estes pacotes de
hipotecas, conhecidos no jargão financeiro como Veículos para Propósitos Especiais
(SPV: Special Purpose Vehicle), localizados em lugares tão acolhedores quanto as
Ilhas Cayman. Em troca de uma pequena taxa, cada SPV garantiria o J.P. Morgan
frente ao risco de um pacote de empréstimos, e por sua vez a SPV cobriria o Morgan
em caso de não pagamento. Enquanto isso a SPV venderia pequenas fatias de risco
aos investidores para financiar o assunto todo.
Sei que tudo isso parece engenharia espacial, e era mesmo.
Forjada a teoria, passamos à prática.
— E se começarmos com uma quantia modesta? — perguntou Bill.
— Digamos… 10 bilhões de dólares em investimentos de risco? — respondi.
— Bonito número, Volpi.
Segundo as nossas estimativas, se o J.P. Morgan utilizasse o esquema BISTRO
não requereria mais que 700 milhões de dólares para cobrir esta exorbitante quantia.
Dez bilhões reduzidos a 700 milhões, percebem?
Não foi fácil convencer as agências de qualificação, mas finalmente a Moody’s
percebeu as vantagens do negócio: dois terços do pacote obtiveram uma fabulosa
nota aaa, enquanto só um terço mereceu uma desprezível nota ba2.**
Em dezembro de 1997, durante uma coletiva de imprensa que deveria abalar os
alicerces do sistema financeiro global, o J.P. Morgan anunciou ao mundo sua nova
criação. Em Nova York fazia um dia frio e ventoso com uns poucos reflexos
prateados no céu.
— Com os senhores, amigos da imprensa, o grande, o magnífico, o imbatível
BISTRO — anunciou Bill Demchak.
Em menos de uma semana o banco reuniu os 700 milhões de dólares para pôr
o prodígio em andamento.
Tínhamos conseguido!
— O que exatamente?
Eliminar de um único golpe enormes quantidades de risco dos nossos livros
contábeis.
Acordos de Basileia, 0 — J.P. Morgan, $ 10000000000 USD.

DUETO

Nosso vírus não demorou a se expandir.


No final dos anos 1990, os CDS montados sob o modelo BISTRO tinham sido
retomados por centenas de bancos em todo o planeta, sempre desejosos de liberar de
seus livros contábeis grandes quantidades de risco — e de capital. No J.P. Morgan,
maquiamos incontáveis acordos para instituições creditícias japonesas e americanas,
e muito em breve dois gigantes, Crédit Suisse e Paribas, anunciaram seus próprios
derivativos tipo BISTRO. A partir daí a epidemia se tornou incontrolável. Os
membros da equipe de derivativos estavam estupefatos; nós percebíamos os encantos
da nossa criatura, mas nunca previmos que fosse se multiplicar com tamanha
velocidade.
Qualquer outro banco teria nos recompensado com bônus milionários, mas
esta não era a cultura financeira do J.P. Morgan. Para nossos chefes nós não éramos
os reyes del mambo,*** mas funcionários que mereciam uma compensação moderada
e razoável. Pete foi nomeado diretor financeiro e chefe de riscos do banco, a apenas
alguns passos do novo CEO, Sandy Warner; Blythe se tornou chefe do mercado de
derivativos de crédito e eu me responsabilizei pelos empréstimos de alto nível. Não
sei quanto embolsariam, mas os membros da minha equipe, Krishna, Vikram, Ted e
eu, junto com muitos outros brokers e quants que contribuíram decisivamente para
a criação do BISTRO, mal chegamos a depositar meio milhão em nossas contas.
Vocês, carentes leitores, acharão uma quantia inalcançável, mas em outro lugar o
montante teria sido quatro vezes maior.
Como qualquer prostituta, não demorei a ser tentado por indecorosas ofertas
da concorrência, do Lehman Brothers ao Goldman Sachs. Embora tenha gostado do
cortejo, finalmente recusei: não por uma absurda fidelidade à empresa, em que
nunca acreditei, mas pela oportunidade de pertencer ao grupo de derivativos do J.P.
Morgan. Éramos nós que encabeçávamos a revolução financeira em Wall Street.
Além das afinidades e dos temperamentos de cada um, a sensação de transformar o
mercado nos convertia em um grupo sólido e compacto, disposto a levar às últimas
consequências as hipóteses do modelo BISTRO. Não estou exagerando: passávamos o
dia inteiro juntos, oito horas nos nossos escritórios e outras tantas nos restaurantes,
bares e clubes ou nas mesas de jogo de Atlantic City, às quais costumávamos nos
lançar nas sextas-feiras à noite.
Um último episódio fechou aquela era de Grandes Descobertas Financeiras.
No final de 1998, o Bayerisches Landesbank nos solicitou um novo tipo de
operação BISTRO: os alemães queriam se livrar do incômodo risco que representavam
os 14 bilhões de dólares em empréstimos hipotecários presentes nos seus livros. A
proposta me pareceu ótima, mas Krishna não demorou a expressar suas dúvidas.
— Até agora sempre soubemos qual é o estado das dívidas que empacotamos e
vendemos — explicou — e qual é a correlação entre elas: podemos calcular as
probabilidades de que a dívida de umas repercuta em outras, gerando uma cadeia ou
uma espiral. A possibilidade de uma catástrofe é mínima, mas não inexistente. O
problema é que no mercado hipotecário não temos nem ideia de qual pode ser o
grau de correlação.
— Será desprezível, não? — intervim.
— Bastaria que fosse um pouco mais alto do que imaginamos — Krishna me
olhou com dureza — para que o risco aumentasse em uma proporção exponencial.
Krishna Varikooty e Vikram Kureishy eram os dois geniozinhos indianos da
nossa área; tinham desembarcado nos Estados Unidos para cursar doutorado em
matemática, mas, em vez de se transformar em cientistas nucleares, várias
instituições financeiras brigaram para contratá-los como se fossem estrelas do
futebol. Enquanto Krishna era soberbo e complicado e não perdia uma chance de
exibir sua erudição estatística, Vikram era delicado e calado, o que não evitava uma
ambição tão acentuada quanto a do seu compatriota. Krishna e eu colidimos desde
o começo, talvez porque logo percebi que seu “amigo” não chamava minha atenção
apenas pelos seus talentos matemáticos.
O assunto das hipotecas dividiu a equipe de derivativos do J.P. Morgan em
dois grupos: os que acreditavam que elas eram uma consequência natural do modelo
BISTRO e os que se recusavam a se arriscar com elas.
— É impossível determinar a correlação — repetia Krishna, com seu hálito de
curry e coentro. — Entende o que eu digo? Não podemos saber o que aconteceria se
um grupo de hipotecas caísse. Quantas delas arrastariam outras hipotecas, seguros,
bônus, derivativos? É impossível calcular isso sem uma tremenda margem de erro.
— O mercado imobiliário se manteve estável na América desde o início do
século — repeti a cantilena que todos nós conhecíamos. — Por que iria vir a pique
da noite para o dia? E se sofrermos antes uma invasão extraterrestre?
Bill, que até então tinha se mantido imparcial, se levantou de sua cadeira e
tomou a palavra. O mago dos derivativos de seguros com certeza apoiaria minha
posição.
— Desta vez estou com Krishna — decidiu. — Não quero ficar sentado em
uma bomba-relógio.
De todos os presentes, só Vikram apoiou minha posição. Felizmente, os
teimosos teutões do Bayerisches Landesbank não deram o braço a torcer e nos
advertiram de que, se não os ajudássemos, buscariam um sócio mais flexível. A
contragosto, Bill aprovou a operação.
Apesar das desavenças que a operação tinha gerado entre nós, decidimos
comemorar o acordo, com a óbvia exceção de Krishna, afligido por um repentino
mal-estar intestinal. Quando adentrei nas sombras do Bull and Bear, um dos nossos
bares favoritos, Vikram já estava ali, escarrapachado em uma poltrona. Sentei-me ao
seu lado e pedimos duas tequilas. Não paramos de beber e conversar, sem tirar os
olhos um do outro (ou assim quero lembrar agora). Compartilhamos nossa
decepção: o J.P. Morgan tinha perdido o pulso que o transformara no laboratório
nuclear de Wall Street. De repente Bill se tornou medroso e pusilânime. Não
conseguíamos aceitar que nosso líder, o rei dos derivativos e artífice dos swaps, dos
CDS e do BISTRO, recuasse de modo tão vulgar. Era como se, depois de ter conduzido
nossa nave além das estrelas, nos obrigassem a voltar. Nada aconteceu nessa noite
entre mim e Vikram — nada físico, quero dizer —, mas surgiu entre nós uma
correlação que em breve mudaria o rumo das nossas vidas.
Depois da assinatura com o Bayerisches Ladesbank, Bill autorizou somente
mais um acordo com derivativos hipotecários. Depois de criar este novo mercado, o
J.P. Morgan renunciou terminantemente a investir nele. Eu não conseguia digerir
essa derrota. Enquanto o J.P. Morgan se encolhia, nossos concorrentes da vida toda,
Goldman Sachs, Lehman Brothers, Merrill Lynch e Bear Sterns, menos paralisados
por falsos preconceitos éticos, acumulavam milhões.
Em janeiro de 1999 recebi uma ligação de John Meriwether, o lendário
investidor de Wall Street. Chegaram aos seus ouvidos os boatos de que eu já não me
sentia à vontade no J.P. Morgan, e ele me convidou para trabalhar no Long-Term
Capital Management, o fundo de hedge que havia fundado com Bob Merton e
Myron Scholes, que acabavam de receber o prêmio Nobel de Economia. (Sim, os
mesmos da fórmula Black-Scholes.)
Não hesitei.
O Fundo dos Gênios, fundado em 1994, tinha obtido lucros inverossímeis
durante seu primeiro quinquênio de operações e, embora naquele momento
atravessasse uma turbulência por culpa da crise asiática — o motivo pelo qual minha
experiência com os derivativos era tão atraente para eles —, colaborar com eles era
uma dessas oportunidades que só se apresentam uma vez na vida. Impus apenas uma
condição: que me permitissem levar comigo um dos meus homens de confiança.
Nessa mesma noite convidei Vikram para jantar, certo de que sua resposta seria
positiva. Nenhum dos dois imaginava os laços que haveriam de nos irmanar a partir
de então e muito menos que, sem perceber, estávamos abordando um barco em
chamas.

* Alavancar significa, em termos simples, pedir dinheiro emprestado para fazer um investimento e ficar
submetido a níveis muito sensíveis de movimentos nos preços. (N. A.)
** A nota mais alta concedida pela Moody’s é aaa; ba2 entra no campo dos bônus lixo.
*** Em espanhol no original. (N. T.)
Cena X. Sobre como influenciar pessoas e trair seus amigos e os
corvos que aninham no coração

RECITATIVO

Hoje foi um grande dia. Finalmente Vikram está ao meu lado. (Na verdade
descansa no quarto, moído pelo jet lag e pelo sexo intempestivo.) Enquanto ele
dorme, eu me afogo com outro gim-tônica contemplando o negror do oceano.
Sempre odiei o mar e seus contornos, essa superfície plácida ou aguerrida cujas
profundezas nos enganam. Quando criança minha mãe me arrastava para as
pedregosas praias de Long Island e eu não me atrevia nem sequer a molhar os pés,
temeroso diante das fauces das moreias e dos dentes das piranhas que deslizavam a
alguns centímetros da minha pele e do meu medo. Que paradoxo sobreviver nas
suas margens!
Segundo uma tradição dos aborígenes locais — estes apolos pardos, de sorrisos
anônimos e músculos de ilustrações de anatomia —, quando há uma discrepância
entre dois homens, a disputa deve ser resolvida pelo mar. Os rivais partem para a
costa norte, célebre pelos cardumes de tubarões, e os dois devem entrar na água até
que só se vejam suas cabeças, encrespadas boias à deriva. Os inocentes, afirmam os
xamãs, nunca serão mordidos. Assim que as ondas se tingem de vermelho,
descobrem qual deles mente e qual diz a verdade. A menos, imagino, que as
famintas deidades marinhas devorem os dois infelizes ao mesmo tempo.
Esse sugestivo suplício, não muito distante do julgamento divino medieval e
dos nossos atuais julgamentos legais, resume uma das nossas paixões seculares, como
descobrir o que escondem os olhares limpos ou turvos de nossos familiares, amigos e
vizinhos, suas expressões corteses ou raivosas, seus elogios sibilinos ou seus grosseiros
ataques. Você afirma ser inocente. Eu digo o contrário. Começa então o jogo ou o
desafio.
Julgamentos e procedimentos, audiências e acareações, desbaratamento de
provas e depoimentos de testemunhas: uma complexa trama legal que, em minha
opinião, resulta quase tão precisa quanto o sincero veredito dos tubarões.
Afinal, em um ou outro caso nos corrói uma lacerante certeza, a de que é
provável que nunca cheguemos a discernir quem diz a verdade. Essa verdade que,
como afirmam os filósofos — e a minha mãe —, nos está vetada de antemão. No
máximo podemos nos conformar com esse sucedâneo que os rábulas chamam de
“verdade judicial”, essa verdade adjetivada que, se formos sinceros, em nada se
distingue da especulação.
Como diabos saber que uma pessoa está mentindo?
Como diabos saber que aves aninham no coração dos nossos semelhantes?
Estamos condenados à sombra. À mesma enervante opacidade dos oceanos. A
ir para a cama, como eu estou fazendo, ansioso para me resguardar junto ao corpo
morno do meu amigo, com um buraco no estômago.

CAVATINA DE ELIZABETH BENTLEY

Do outro lado da calçada, protegida do impertinente sol estival sob uma


marquise, está há mais de uma hora observando os semblantes dos que entram e
saem do edifício. A maioria homens sozinhos, entre trinta e cinquenta anos, com a
altivez de quem sabe o que busca; alguns casais com enormes pacotes nas mãos; uma
família com duas crianças, uma delas banhada em lama (e lágrimas); dois idosos; e,
pelo menos no que vai da manhã, apenas três mulheres mais ou menos da sua idade.
Elizabeth olha para a direita e para a esquerda, se afasta alguns passos e muda o
ponto de observação. Esmerou-se em tomar precauções — dois ônibus com direções
contrárias, um corte pelo meio da praça, o desvio através de um armazém e uma
cafeteria e incontáveis voltas na quadra, para não mencionar o chapeuzinho e os
óculos escuros —, mas reconhece que eles são muito espertos e não se atreveria a
jurar que ninguém a seguiu. Não seria melhor voltar para casa e esperar,
simplesmente esperar, que nada aconteça? Não tem alternativa. Se se arrepender
agora, amanhã virão atrás dela.
O que diria Yasha se a visse ali, prestes a renegar da fé que os uniu? Se
envergonharia ou a animaria a seguir em frente? Sempre lhe preocupou seu futuro,
sempre cuidou dela, preparou-a para sobreviver mesmo nas circunstâncias mais
adversas. Talvez no início parecesse decepcionado, mas acabaria aplaudindo sua
ousadia: nunca teria desejado para ela uma sorte como a da pobre Juliet, cujo
apartamento ficou vazio com os restos do jantar ainda em cima da mesa. Elizabeth é
obrigada a cruzar a soleira desse edifício mesmo que seja apenas para acabar com
seus pesadelos. Ontem à noite voltou a sonhar com a mesma cena: triste e
abandonada diante do pelotão de fuzilamento, vê uma mulher com os olhos
vendados. Juliet ou ela própria? Talvez uma mistura das duas. Uma mistura que se
desvanece quando a vítima, antes de cair metralhada, dirige o indicador para
Elizabeth, agora escondida na tribuna, e a repreende com uma voz cavernosa: morro
por sua culpa. Basta! Não mais! São muitos meses de incerteza, de ameaças e
chantagens, de imaginar este dia: o dia em que finalmente abandonará a vida dupla
que a tortura há anos, a aposta que a levou a servir a deus e ao diabo ao mesmo
tempo. E por quê? Por algumas ideias nas quais, para ser sincera, nunca acreditou de
todo? Pelo amor de um homem que já não é senão um cadáver apodrecendo
debaixo da terra?
Elizabeth toma impulso e se lança em direção ao edifício, seu coração retumba
como uma estrondosa marcha fúnebre. Tenta se certificar de que ninguém a
observa: impossível. Apressa o passo, aperta a bolsa contra o corpo, toma ar e entra
nas trevas do vestíbulo. Deslumbrada, atropela um transeunte. Caminha então para
o elevador e se coloca entre um sujeito suarento e uma gorda de amarelo. Elizabeth
já decidiu sua próxima jogada: subirá ao sétimo andar, onde localizou uma agência
imobiliária, e depois descerá dois andares pelas escadas de serviço.
Enquanto sobe — preocupa-a a calculada indiferença desses desconhecidos —,
a cara redonda de Peter se crava em sua memória. Como pôde ter sido tão boba?
Sua única justificativa: naquelas úmidas semanas de abril ela era um animal
encurralado, e Peter se aproveitou de sua fraqueza. Elizabeth acabava de se mudar
para o Hotel Saint George, em Brooklyn Heights, obrigada a desalojar seu
apartamento porque eles achavam que já não era seguro. Além disso, tinham exigido
que entregasse todos os seus contatos ao novo chefe de estação e renunciasse ao seu
posto na U.S. Service & Shipping, a empresa que Yasha e ela tinham montado com
tanto zelo.
Peter deve ter percebido seu desamparo quando seus olhares se cruzaram no
lobby do Saint George; Elizabeth, por sua vez, ficou deslumbrada com os olhos
azuis, os rubros contornos das costeletas, o tórax de gorila. Ele se aproximou,
decidido, e conseguiu arrancar seu primeiro sorriso em semanas. Peter — Peter
Heller, disse que se chamava — acabava de chegar a Nova York para assuntos de
negócios, talvez ela pudesse lhe recomendar um lugar para jantar. A isca funcionou.
Elizabeth disse que conhecia um italiano a poucas quadras, Peter a convidou a
acompanhá-lo — se não tiver, madame, outro compromisso —, e ela não hesitou.
Triste e enlevada, tampouco hesitou na hora de abrir a porta do quarto para ele. E
agora nem sequer se lembra do que aconteceu depois! No café da manhã, Peter
contou que era advogado e tenente da Guarda Nacional. Durante uma semana não
se separaram e ela quis ver no misterioso viajante um sinal. Deixaria para trás seu
emprego no World Tourists e no U.S. Service & Shipping, romperia todo contato
com eles, se casaria com o cavalheiresco e doce Peter Heller e se mudaria com ele
para o Maine ou para a Califórnia.
Sua vida estava prestes a recuperar a normalidade quando seu imaginário noivo
desapareceu. No Saint George lhe disseram que o sr. Heller tinha pagado a conta e
ido embora sem deixar nenhuma mensagem. Elizabeth exigiu examinar o quarto
dele — subornou um mensageiro e o encontrou vazio e impecável —, voltou aos
restaurantes, bares e lojas que tinham percorrido juntos, esperou sua ligação até a
meia-noite e finalmente vasculhou a lista telefônica em busca do seu nome. Havia
um único Peter F. Heller. Depois de perguntar como tinha conseguido o número,
uma voz mal-humorada desligou.
Peter apareceu no hotel três dias depois e, sem se desculpar, explicou que tinha
sofrido um acidente e que estivera internado no Hospital Naval, onde o trataram
maravilhosamente graças à sua profissão. “Que profissão?”, perguntou ela, perplexa.
“Não deveria lhe dizer isso”, respondeu ele em tom misterioso, “sou espião do
governo.” Que brincadeira era essa? Elizabeth se arrepiou: o mais provável era que
Peter fosse um deles — não seria a primeira vez que tramavam uma intriga desse tipo
—, destinada a lhe arrancar informação. Esforçou-se para continuar como se não
estivesse acontecendo nada até que certa madrugada lhe confessou, chorando, que
ela era espiã comunista e temia por sua vida. Ele quase se divertiu ao acalmá-la.
Elizabeth não teve outro remédio senão contar a cena ao seu contato russo.
Albert lhe ordenou terminar com Heller de maneira delicada e decidida — não
podemos nos arriscar a que na verdade seja um homem de Hoover — e lhe
recomendou que se preparasse para viajar a Moscou. Elizabeth não estava disposta a
fugir sem os papéis em ordem: Yasha a havia prevenido sobre a sorte dos agentes
requeridos por Moscou. Suas opções se esgotavam, se se recusasse terminantemente
a viajar, eles não demorariam a considerá-la perigosa e, se Peter fosse mesmo um
agente do FBI, talvez o governo já estivesse a par das suas atividades e logo apareceria
uma patrulha no Saint George para prendê-la. Elizabeth preferiu tomar a iniciativa,
se apresentar na delegacia de polícia por sua própria vontade e tentar averiguar quais
eram as intenções de Peter.
Enquanto desce os degraus rumo aos escritórios do FBI de New Haven —
achou mais prudente ir a esta pequena delegacia de polícia em sua cidade natal do
que à central de Nova York —, Elizabeth sente que um raio divino guia seus passos,
ou pelo menos isso é o que dirá depois aos abutres da imprensa: “De repente
entendi que tinha estado mergulhada na ignomínia e que nada justificava a mentira
e as dissimulações”. Elizabeth ajeita os babados da blusa e gira o trinco. Já não há
volta.
— Quero falar com o agente de plantão — as palavras encalham na garganta.
A recepcionista a observa de cima a baixo — Elizabeth usa um vestido azul com
petúnias brancas e rosadas, um colar de prata e o bendito chapeuzinho — e lhe
indica a sala de espera. Elizabeth pensa em Yasha e se ergue; em seguida relembra o
cabelo ruivo de Peter e volta ao seu lugar.
— Sua vez, senhora — indica a jovem.
Elizabeth entra no escritório do agente Edward Coady. À primeira vista parece
um sujeito íntegro: jovem, com o olhar ambarino e a rudeza de um guardião da lei.
Ele lhe faz um gesto para que se sente e lhe oferece um cigarro. Elizabeth aceita e,
escudada atrás da fumaça, estuda seu interlocutor.
— Meu nome é Elizabeth Bentley, de New Haven, e devo apresentar uma
queixa contra o tenente Peter Heller, da Guarda Nacional de Nova York. O sr.
Heller afirma ser um espião do governo. Decidi vir ao FBI quando ele me perguntou
se eu também era espiã.
Coady acha que é mais uma dessas donas de casa que, para evitar a abulia dos
subúrbios, se imaginam protagonistas de um filme de gângsteres.
— Sou a vice-presidente da U.S. Service & Shipping, uma empresa
transportadora dedicada ao envio de cartas e pacotes para a Rússia — continua a
mulher. — O sr. Heller me garantiu que meu posto poderia ser útil ao governo.
Para dizer a verdade, agente Coady, não tenho certeza de que ele seja um espião, isso
é o que me inquieta e por isso me atrevi a vir até o senhor.
Alguma coisa não bate, pensa Coady: não se trata da típica lunática, açoitada
por delírios de grandeza, disposta a inventar qualquer absurdo para chamar a
atenção, mas também não acha que o motivo da visita seja denunciar o tal Heller.
Nunca ouviu esse nome e também não se lembra de nenhuma investigação em
torno de qualquer srta. Elizabeth Bentley.
Tomando cuidado para não revelar outros dados, conta como conheceu Peter
(sem mencionar a primeira transa), descreve sua aparência (lindos olhos azuis,
costeletas e cocuruto ruivos, corpo de leão), resume suas conversas e insiste em que
ela não tem nada a esconder, é somente uma cidadã preocupada com alguém que se
faça passar por agente federal, algo que certamente deve constituir um delito ou
uma falta, não é, agente Coady?
— Pelo menos poderia me confirmar se Heller trabalha para os senhores?
— Acho que não estou autorizado a compartilhar esta informação, srta.
Bentley. Mas a manteremos informada sobre os avanços do caso.
Elizabeth quase não contém sua decepção: depois de se arriscar a vir até aqui
não conseguiu nenhuma pista. A atitude reservada do agente Coady a faz pressentir,
em todo caso, que Heller não é um dos seus. Seguindo um caminho diferente do
que tomou para chegar, Elizabeth volta para casa, disposta a aproveitar o fim de
semana em New Haven.
O agente Coady escreve seu relatório com relutância: réu: tenente Peter Heller;
falsa identidade; espionagem, e o envia aos escritórios de Nova York. Ali, o agente
especial Frank Aldrich examina os arquivos e comprova que, como seu colega
supunha, nenhum agente do FBI responde pelo nome de Peter F. Heller: deve ser
um caso de usurpação de identidade. Em suas conclusões, Aldrich recomenda dar
seguimento ao assunto, mas sem nenhuma ênfase particular.*
Elizabeth volta a Nova York e, desobedecendo às instruções de Al, comparece à
U.S. Service & Shipping como todas as manhãs. Seu chefe a recebe de braços
abertos, pois não suporta a substituta que eles escolheram. Elizabeth demora no
escritório, o único lugar do mundo onde se sente segura. As noites em Saint George
são frias e mudas desde que Heller não a acompanha, por que afinal ia querer voltar
para o seu quarto sem graça?
Elizabeth chega com vinte minutos de atraso à sua nova reunião com Al.
Tendo virado três dry martínis, suficientes para se sentir liberada e exatos para não
cambalear diante dele. Al é um russo hipócrita e grosseiro, como todos; primeiro
finge ser cortês, pergunta por sua saúde e elogia seu chapéu, e sem pausa a
repreende. Insiste em saber todos os detalhes de sua relação com Heller e lhe
pergunta se já conseguiu se livrar dele.
— Deve deixar seu trabalho e desaparecer por um tempo — Al aperta seu
antebraço. — É muito perigoso continuar aqui. Precisamos esclarecer quem é
Heller.
Elizabeth se recusa.
— Podemos lhe adiantar uma quantia para que você monte um pequeno
negócio em outro lugar — insiste Al. — Talvez uma chapelaria…
Ela volta a se recusar.
— Depois de um tempo poderá voltar a trabalhar. Então lhe atribuiremos três
ou quatro contatos para que os dirija. E tudo será como antes.
Elizabeth perde a compostura e faz uma careta.
— Estou farta de brincar de esconde-esconde — soluça.
— Tudo bem, tudo bem. Talvez possamos lhe conseguir emprego em uma
escola russa em Washington.
Elizabeth não se importa se depois de alguns dias seu cadáver aparecerá no
esgoto, hoje não vai se deixar massacrar. Não, senhor.
— Quero continuar na companhia.
— Isso está fora de discussão — explode Al.
— Todos os russos são uns filhos da puta — grunhe Elizabeth e se assusta com
suas próprias palavras. — E você não é exceção. Quer me manipular como se fosse
uma boneca, como se eu não valesse nada, mas não conseguirá. Sou cidadã
americana e não vou me deixar manipular por um sujeito fedendo a vodca como
você.
Al lhe pede que baixe a voz: que a mulher esteja bêbada não a torna menos
perigosa. Agora terá que informar seu comportamento a Moscou.
— Os senhores só se preocupam com o que acontece na sua maldita Rússia —
ela é um turbilhão. — Yasha me avisou. Afinal ele também não se sentia bem com
os senhores, se não tivesse morrido, não sei o que teria feito… Heller me pediu que
colabore com ele, e eu ainda não lhe disse o que vou fazer...
— Não precisamos chegar a isso — Al suaviza o tom.
Uma vez sozinha, Elizabeth recupera de repente a sobriedade e a prudência.
Como se atreveu a ameaçá-lo, droga? Tremem-lhe as pernas e as costas suam. E
agora, o que vai fazer? Tomar um trem para o fim do mundo? Volta ao seu quarto,
cambaleando, vomita no banheiro e sem tirar a roupa cai no sono.
Elizabeth Bentley.

Enquanto se dirige à U.S. Service & Shipping no dia seguinte, dá com uma
horrível notícia nas primeiras páginas dos jornais matutinos: Louis Budenz, até
então chefe de redação do Daily Worker — e antigo agente secreto como ela —
abandonou o comunismo e se converteu à fé católica. O desgraçado sabe quem ela é
e qual foi seu papel durante os últimos anos, se ele colaborar com o FBI muito em
breve ela se verá atrás das grades.
Em 16 de outubro de 1945, Elizabeth vai ao seu encontro com o agente
especial Aldrich para ratificar a denúncia contra Heller. Em vez de ir até o doentio
edifício do FBI em New Haven, toma o metrô rumo ao gigantesco bloco da Corte
Federal em Manhattan. Sobe a escada correndo e chega ao escritório de Aldrich
resfolegando.
No novo depoimento, Elizabeth contradiz tudo o que declarou diante do
agente Coady.
— Peter é um sujeito sem escrúpulos. Desconfio que seja um agente russo. Me
mandou ficar calada e não revelar o que sei graças ao meu trabalho na U.S. Service
& Shipping. Seu tom era ameaçador, agente Aldrich. Não me sinto a salvo. Preciso
de proteção.
O agente especial, um sessentão prestes a se aposentar, não tem a paciência de
seu predecessor.
— Graças ao meu trabalho, agente Aldrich — continua Elizabeth —, tive
oportunidade de conhecer dezenas de comunistas russos e americanos, e travei laços
com pessoas das quais suspeito, sim, agente Aldrich, das quais suspeito de que na
verdade trabalham para os soviéticos.
— Ah, sim? E poderia me proporcionar alguns nomes, srta. Bentley? —
pergunta ele, incrédulo.
Ela avalia suas opções. Não pensa trair ninguém. Não ainda.
— Earl e William Browder. E Jacob Golos.
Os Browder são dirigentes históricos do Partido Comunista dos Estados
Unidos, até um agente prestes a se aposentar como Aldrich sabe quem são. Mas, ao
mencionar Yasha, seu antigo amante, a seu falecido esposo, Elizabeth sente que
cruzou uma fronteira sem volta.
— E também Louis Budenz — acrescenta Elizabeth, tirando seu ás da manga.
— Mas não sei por que estou lhe contando isso, agente Aldrich, pois tenho certeza
de que você está a par de tudo. Sei muito bem que o FBI me segue desde 1941.
Aldrich se convence de que é uma louca: o nome Elizabeth Bentley não figura
em nenhum expediente do FBI.
— Tem alguma prova, srta. Bentley?
— Receio que não.
Aldrich lhe garante que dará prosseguimento a sua denúncia e promete entrar
em contato com ela o mais breve possível. Na verdade tem outros planos: se
aposentar e abandonar para sempre esse trabalho de loucos.
Pouco antes de entregar o distintivo, o agente especial Aldrich finalmente
encontra um tempo para escrever seu relatório. Antes de enviá-lo faz uma breve
ligação para o agente especial Edward Buckley, o novo encarregado do assunto.
— Se não estiver louca varrida — avisa-o —, talvez esta mulher possa se tornar
uma boa informante.
Sai Aldrich, entra Buckley: um homenzarrão com uma paciência e uma
sagacidade de que seus antecessores carecem. Desde que recebe o expediente não
para de discar o número de Elizabeth. Cada vez mais apavorada, ela se nega a
atender. Até que um último incidente a faz mudar de ideia: agora eles não apenas a
perseguem e a ameaçam, mas pretendem destruí-la.
Depois de examinar os livros contábeis da U.S. Service & Shipping,
descobriram um furo de 15 mil dólares e querem que ela os devolva. Uma loucura!
Elizabeth não tem este dinheiro, não fez nenhuma transação obscura, é outra
manobra deles para encurralá-la. Diante deste novo desplante, eles não hesitam em
lhe fazer ver, desta vez sem eufemismos, que sua vida está por um fio.
Em 6 de novembro o telefone volta a tocar no quarto de Elizabeth. Ela atende.
Depois de meia hora ouvindo seus argumentos, o agente especial Buckley lhe pede
que se encontre com ele na estação de metrô de Foley Square às 16h30; ela deverá
usar uma jaqueta preta e levar um exemplar do Times debaixo do braço. Finalmente
alguém a leva a sério! Elizabeth segue as instruções, e Buckley a conduz através de
um labirinto de escadas e elevadores até seu escritório no terceiro andar do Edifício
Federal.
Em 8 de novembro, o escritório do FBI em Nova York envia um telex urgente a
J. Edgar Hoover, em Washington:
PARA O DIRETOR URGENTE. RÉ: ELIZABETH TERRILL BENTLEY. EM SETE DE
NOVEMBRO DE MIL NOVECENTOS E QUARENTA E CINCO A MENCIONADA
COMPARECEU VOLUNTARIAMENTE À DIVISÃO DE CAMPO DE NOVA YORK ONDE ALE
[SIC] PROPORCIONOU INFORMAÇÃO RELATIVA A UM CÍRCULO DE ESPIONAGEM
RUSSA A QUE ESTAVA FILIADA E QUE ATUALMENTE SE ENCONTRA EM OPERAÇÃO NO
PAÍS.

Diante do agente especial Buckley e de seu colega Don Jardine, Elizabeth


conta, se não toda — como boa jogadora de pôquer reserva várias surpresas para o
futuro —, pelo menos boa parte da história. Seu depoimento se prolonga por oito
horas e enche 31 páginas de expediente. Depois comparece diariamente no mesmo
escritório, escoltada por um impávido agente em traje civil, até completar uma
declaração que alcança 107 fólios. Elizabeth não economiza os nomes com que se
encontrou ao longo dos oito anos de sua carreira como espiã: além de seus contatos
diretos, que só conhece por seus codinomes — Al ou Bill —, menciona, entre
muitos outros, Silvermaster, Silverman, Glasser, Ullmann, Currie, White. Oitenta
espiões soviéticos incrustados nos mais altos escalões do governo.

CAVATINA DE WHITTAKER CHAMBERS

Quando começou a duvidar? Ou sempre o fez e procurou aplacar suas dúvidas


e adormecer sua consciência? Se há uma coisa que não consegue explicar é como se
manteve tanto tempo entre eles, como desprezou as incoerências e as contradições,
como teimou em acreditar cegamente. Havia dezenas de indícios, de chamadas de
atenção, de avisos: o mistério e a fidelidade a toda prova, as condenações contra os
dissidentes, as confissões infamantes, o culto à personalidade, mas ele não soube ou
não quis ver tudo isso. Hoje, quando finalmente deixou para trás esse amontoado de
simulações e mentiras, Whittaker Chambers ainda se fustiga. Sabe que o mais
perigoso do comunismo é sua capacidade de sedução, seu palavreado em torno da
igualdade e da justiça, estas chamas revolucionárias que atraem os espíritos mais
nobres e ingênuos, ou aqueles que se sentem ansiosos de humanidade e aventura —
como ele próprio —, e os convencem a mudar o mundo pela força e a se prostrar
sob os dogmas de alguns poucos. Só depois de ter imergido no pântano do
marxismo, só depois de envolver seus amigos e de se emparedar nessas turvas
convicções, só depois de atravessar esse purgatório ideológico, conseguiu se colocar
do lado da luz. Hoje não duvida: ali se escuda o mal, o mal absoluto, o pior dos
perigos para a América.
Chambers não esconde sua responsabilidade na manobra: ele próprio foi parte
do plano, um ator secundário, mas relevante, um elo imprescindível na hora de
montar essa vasta conspiração contra a democracia e o governo. Impossível apagar
esse passado. Embora procure limpar seu nome e se separar da merda, ser fiel aos
seus novos princípios e à sua nova ética, foi um criminoso e nada anulará
completamente seus delitos; caso chegue diante de um júri, seus caluniadores não
hesitarão em jogar isso na sua cara. Reconforta-o acreditar que, se se esforça para ser
prudente, não é só por causa do pânico: se já traiu sua pátria, não iria querer trair
também seus antigos camaradas, seus iludidos companheiros de viagem. Sem dúvida
estão errados, e ele fará o impossível para demonstrar suas falácias, mas não está
disposto a que os persigam e encarcerem; preferiria pagar ele próprio as
consequências, encarar a previsível condenação pelo seu silêncio.
Como se não bastassem os remorsos, lhe preocupa o futuro de Esther e das
crianças. Se planejou com tanto cuidado sua fuga do comunismo, se se escondeu
por semanas no sítio e se dispôs a padecer frio, fome e miséria, se sua ruptura com o
aparelho clandestino foi praticamente imperceptível até que encontrou um emprego
capaz de protegê-lo — graças à aparição de Henry Luce —, foi para não expô-los
nem às represálias nem à ignomínia, para não sujá-los com sua lama.
O anúncio do Pacto de Não Agressão Germano-Soviético foi a mais amarga
confirmação de suas ideias: Stálin finalmente exibiu a deformidade de seu caráter,
permitindo que Hitler se apoderasse da Polônia em troca de uma parte do bolo.
Esse é o Pai dos Povos? O defensor dos desamparados? O Guia que conduzirá os
trabalhadores rumo a um luminoso futuro? Farsante! Tirano! Estar com a razão não
o reconforta: as probabilidades de que os dois ditadores levem a melhor existem. A
América precisa estar alerta, muito alerta.
— O perigo não é só para o país, mas também para você — advertiu-o Don.
— Assim que os russos troquem informação com seus novos aliados, os nazistas
ficarão a par do círculo de espionagem no qual você mesmo colaborou. Imagine se
divulgarem isso. Você pode acabar na cadeia.
Chambers não esconde sua ansiedade, padece de taquicardias e seu corpo se
transformou em uma massa inerte.
— Vou tentar um encontro com Roosevelt — insiste seu amigo. — Você
precisa lhe contar o que sabe, talvez ele possa lhe conceder algum tipo de
imunidade.
Isaac Don Levine talvez seja o anticomunista mais furioso com que Chambers
já topou; conhece meio mundo em Washington e é amigo pessoal do secretário do
presidente. Honrando sua palavra, Don visita seu amigo na capital e consegue
interessá-lo. Mas passam duas semanas e nada acontece.
Chambers continua escrevendo seus febris artigos para o Times — as
encomendas de Luce são cada vez mais relevantes e ele voltou a tomar as rédeas do
jornalismo — até que certa tarde Don informa que, devido ao estado de emergência
provocado pelo Pacto, Roosevelt não poderá recebê-lo; em seu lugar o fará o
subsecretário de Estado, Adolf Berle, um homem correto, de sua total confiança.
Embora Chambers preferisse falar com o presidente, encontrar-se com Berle não o
incomoda: seu ódio contra os vermelhos é bem conhecido.
Durante o caminho para Washington, Chambers continua se torturando.
Embora deteste se tornar um delator, o risco que a espionagem soviética representa
para seu país não lhe deixa outra saída: ainda ontem as tropas de Hitler cruzaram a
fronteira polonesa e a Luftwaffe não parou de bombardear as principais cidades do
país eslavo. Com os dedos suarentos, cada dia mais parecidos com salsichas,
Chambers pega um punhado de amendoins e o leva à boca; embora o médico tenha
lhe proibido as gorduras e os carboidratos, não consegue se controlar. Enjoado, joga
o saquinho no lixo e desce à plataforma.
Antes do encontro, Chambers dá um longo passeio pelo Mall: nunca a Casa
Branca lhe pareceu tão luminosa. Se antes representou para ele um símbolo do
imperialismo, agora a contempla com devoção. No vestíbulo do Hay-Adams, Don o
recebe com um abraço e os dois tomam um táxi rumo à mansão de Berle em
Woodley Oaks, a alguns passos da Catedral Nacional.
Berle os recebe às oito em ponto exibindo olheiras arroxeadas; desde o anúncio
do Pacto Germano-Soviético mal dormiu duas ou três horas por dia. Beatrice, sua
esposa, os convida para os aperitivos e depois os conduz à enorme sala de jantar
estilo francês. A conversa se centra na iminência da guerra, no descaramento de
Hitler, na insensatez de Stálin e no papel que a América deve desempenhar no
conflito. Enquanto Don e Berle se envolvem em uma conversa veemente e animada
— devemos ser árbitros ou participantes? —, Chambers devora o veado sem
pronunciar nem uma palavra. Terminado o pudim, a sra. Berle os conduz à pérgola
que domina o amplo jardim dos fundos (no passado a mansão foi habitada por dois
presidentes) e se retira para os seus aposentos. Chambers recusa o café oferecido por
um serviçal e pede um uísque com soda.
— Como já lhe contei, Adolf — Don rompe o gelo —, Whit pertenceu a um
grupo de simpatizantes comunistas do qual acabou se distanciando. Nessa condição,
precisa compartilhar com o presidente, por seu intermédio, informação que só posso
qualificar como urgente e especial.
Aos quarenta e quatro anos, Berle aparenta sessenta. A pressão fez estragos no
viço de sua pele.
— Os Estados Unidos podem entrar em guerra em menos de quarenta e oito
horas, senhores — lamenta. — Todas as agências do governo precisam estar
completamente limpas.
O álcool praticamente não liberou Chambers de sua inquietação; agora que
precisa falar, engasga, gagueja e um desagradável fio de suor desce por suas costas.
Sabe que deve ir ao ponto, mas não evita uma longa divagação sobre a natureza
daninha do comunismo, os perigos que implica para a alma, a estrutura do Partido
Comunista dos Estados Unidos, os grupos clandestinos nascidos à sua sombra
(menciona siglas incompreensíveis) e as distintas organizações de espionagem
soviética presentes no país.
Frente à complicação do relato, Berle junta as peças e entrevê a magnitude da
ameaça. Os nomes que Chambers desfia não lhe são desconhecidos: os irmãos Alger
e Donald Hiss e Laurence Duggan, do Departamento de Estado; o assessor especial
do presidente, Lauchlin Currie; ou o alto diplomata Noel Field, agora lotado na
Liga das Nações. Chambers menciona também um grupo infiltrado na Defesa e
outro no Tesouro, embora sem mencionar ainda sobrenomes concretos.
Depois de duas horas de conversa, Berle conduz seus convidados à biblioteca,
onde continua fazendo anotações até a meia-noite.
— Não esperem resultados imediatos — explica a Levine e a Chambers
enquanto os acompanha até a saída. — O assunto é delicado e deve ser mantido no
mais absoluto sigilo.
De volta para o Hay-Adams, Chambers não tem certeza de que Berle tenha
acreditado nele, ou não totalmente. Seu talento para julgar as pessoas — uma das
principais habilidades de qualquer espião que se preze — não falha: o subsecretário
acha que o quadro pintado pelo colunista do Times deve conter boas doses de
verdade, mas resiste a acreditar que todos esses homens, com os quais ele colaborou
ombro a ombro, alguns dos mais inteligentes e dedicados funcionários de sua
geração, pertençam a uma rede de espionagem russa.
O colunista, por sua vez, cuidou para não revelar que possui provas irrefutáveis
que permitiriam condenar os traidores. Não quis sequer mencioná-las, primeiro
porque não está disposto a que seus antigos camaradas sejam acusados judicialmente
— a única coisa que busca é que sejam afastados de seus cargos — e, segundo,
porque esses documentos, guardados por sua mãe na sua casa no Brooklyn,
constituem a única carta com que ele poderia negociar no caso de ser indiciado.
Whittaker Chambers.

Chambers não se engana: a hora das denúncias públicas não chegou. Durante
os primeiros anos da guerra, os Estados Unidos mantêm uma difícil neutralidade e,
depois da traiçoeira invasão alemã à União Soviética de 1941, esta passa a se
transformar em uma potência amiga: não interessa a ninguém perseguir ou julgar
uma rede de espiões russos. Consciente de ter perdido a batalha, Chambers
concentra sua luta em outra frente: seus artigos no Times. Com uma pluma cada vez
mais mordaz, esgota suas energias em açoitar o comunismo e os democratas que
simpatizam com ele ou o defendem. Somente em março de 1945, quando o curso
da guerra parece garantido e os ressentimentos entre os Estados Unidos e a União
Soviética se aguçam, Chambers recebe a ligação de Raymond Murphy, oficial do
Departamento de Estado que investiga as denúncias de espionagem.
Chambers se tornou célebre como um ágil e venenoso articulista, escalou até o
topo do Times, acolhido por Luce como seu homem de confiança, e sofreu um
enfarte que o obrigou a renunciar a esse ritmo de vida extenuante. Murphy viaja à
sua casa de campo em Westminster, onde Chambers o recebe em um estado
lamentável, mas sem parar de fumar um cigarro atrás do outro. Durante duas horas
repete a mesma coisa que disse a Berle em 1939; a diferença dessa vez é que Murphy
escreve um memorando que logo circulará nos mais diversos ambientes políticos de
Washington.
Enquanto a Guerra Fria se torna um confronto ineludível, em 1946 os
republicanos conseguem a maioria do Congresso e imediatamente acusam os
democratas, inclusive Truman, de proteger os simpatizantes dos comunistas que
trabalham no governo. A ameaça vermelha se transforma na ordem do dia.
Sentindo-se com a corda no pescoço, Truman tira da manga novas leis de confiança
para os funcionários públicos e instrui o secretário de Estado, James F. Byrnes, a se
livrar de todos os elementos suspeitos. A eleição de J. Parnell Thomas, um
republicano raivoso e enérgico, como presidente do Comitê de Atividades
Antiamericanas, se transforma no tiro de largada da era da perseguição e suspeita
que mais tarde será simbolizada pelos grunhidos e desplantes do senador Joseph
McCarthy.
Neste novo ambiente, o memorando de Murphy desperta um repentino
interesse tanto entre os representantes populares quanto na administração Truman.
Entre 1946 e 1947, Chambers se encontra várias vezes com Murphy, bem como
com agentes do FBI e da comissão de lealdade impulsionada pelo presidente. Em
todas as vezes ratifica suas acusações, embora se negue a fazer denúncias específicas.
Interrogado expressamente pelo FBI, nega ter feito parte de qualquer rede de
espionagem e declara não possuir provas dos vínculos com os russos das pessoas que
tinha delatado.
Por que este escrúpulo? Chambers decidiu que sua cruzada não é contra
indivíduos específicos, mas contra o comunismo como força destruidora. Ele não
pretende destruir ninguém: se falou com Berle foi porque naquele momento achou
que a espionagem soviética representava um verdadeiro perigo para o país. Agora
que o conflito terminou, prefere se concentrar nos seus artigos em vez de se envolver
nas investigações do HUAC. Assim, quando a Ameaça Vermelha finalmente se
transforma em um assunto fundamental na vida americana, Chambers só se
interessa em desmantelar as turvas ideias que sustentam o marxismo.
Tarde demais.
A paranoia anticomunista que ele contribuiu para desatar se expande por toda
parte: políticos e jornalistas, ao que parece, não fazem outra coisa além de
desmascarar espiões.
Em 20 de julho de 1948 a bomba explode quando o World-Telegram publica
que uma “bonita loira”, antiga militante comunista, revelou ao FBI os nomes de uma
gigantesca trama subversiva incrustada no governo. A “rainha dos espiões
vermelhos” não é, como sabemos, nem loira nem bonita, e sim Elizabeth Bentley.
Em 31 de julho ela depõe diante do HUAC e repete a longa lista de nomes que
começou a recitar diante dos agentes especiais Buckley e Jardine no Edifício Federal
de Nova York. Quando Chambers vê as declarações da srta. Bentley na imprensa,
entende que não poderá mais continuar calado.
Em 1o de agosto de 1948, o chefe de investigações do HUAC declara à imprensa
que as acusações da srta. Bentley serão ratificadas por uma nova testemunha: uma
intimação para depor já foi enviada ao sr. Whittaker Chambers, colunista do Times
e antigo militante comunista. A bola de neve que ele mesmo colocou para rolar nove
anos atrás, quando foi jantar um cozido de veado na mansão do subsecretário Adolf
Berle, finalmente o alcança.

FINAL I

— Por que você mentiu para mim? — alfinetei Judith em seu abominável
retiro tropical.
Nessa tarde me pareceu mais escorregadia, mais irritante do que de costume.
Usava um vestido verde horrível e meias três-quartos de lã. Minha mãe cravou seus
olhos irisados, mal diluídos entre as rugas das pálpebras, nos meus. Aquele olhar.
Depois riu. Não um riso dos dela, maligno e malicioso, mais uma gargalhada feroz,
quase animal. Apaziguada pela tosse e pelo pigarro, desta vez não repetiu que cada
um tem a verdade que merece — sua linha de telenovela da outra tarde — e nem
sequer tentou se justificar. Tomou um gole de chá, limpou a garganta e lançou um
suspiro quase enternecedor.
— O que queria que eu dissesse? — sussurrou. — Que antes de morrer seu pai
tinha sido acusado de ser espião comunista? Percebe como soa ridículo?
Carregava nas costas muitos romances de Le Carré e muitos romancezinhos de
seus imitadores, muitos filmes de ação e muitas séries sobre agentes infiltrados —
para não falar de paródias tipo Agente 86 — para que uma trama desse tipo
resultasse já não verossímil, mas minimamente inquietante. Mas não tinha sido essa
a razão de seu silêncio. Nos anos 1960 e 1970 a ameaça vermelha ainda parecia ativa
e, embora o macarthismo tivesse caído em desgraça, as atividades encobertas da KGB
e da CIA continuavam se desenvolvendo em todo o planeta. E, afinal de contas,
Noah tinha sido acusado de espionagem e só sua morte acidental, que já não me
parecia tão acidental, o salvara de ir a julgamento e talvez à prisão.
— Só me diga uma coisa — desafiei-a. — Foi um acidente?
— O pombo.
— Como você sabe? Ele estava sozinho, ninguém o viu tropeçar.
— Por Deus, meu filho — me repreendeu como quando eu errava as divisões
na escola —, foi aquele estúpido pombinho.
Outra mentira.
— Apesar de sua timidez, Noah era decidido e valente, sempre preocupado
com as causas sociais. Ele conviveu naquela época com militantes comunistas? Sem
dúvida. Ele próprio foi um comunista? Duvido. Trabalhou para os russos?
Certamente não.
— Você também sabe isso?
— Ninguém o conheceu como eu — levou as mãos ao peito. — Só lhe
importava seu trabalho no Tesouro, tinha certeza de que estava contribuindo para a
criação de um mundo melhor. Como em tudo, o coitado se enganou.
— Por que nunca me contou nada disso?
— Fiquei viúva quando você nem sequer tinha nascido — enfatizou com
orgulho. — Meu marido tinha sido acusado de ser comunista, o pior insulto que
alguém podia receber nessa época. Acha que queria me lembrar disso? Reviver
aqueles anos de merda? Tinha que começar isso que os pregadores da televisão
chamam uma nova vida. Com você, filho. Ou, melhor, para você.
Contemplei-a ali, sob o ardiloso sol da Flórida, a cútis rugosa, as raízes brancas
que denunciavam a tintura castanha do cabelo, mas não consegui sentir pena ou
compaixão por aquela mulher.
— Nunca lhe interessou saber quem era ele? — provoquei. — Saber quem era
o seu marido? Averiguar se tinha mentido para você?
— Já estava morto, o que importava?
Judith alisou o vestido e tocou a campainha para que a enfermeira viesse buscá-
la. Seu rosto não demonstrava irritação nem fastio, nem sequer aborrecimento.
— E acha que você será capaz de descobrir quem ele era, meu filho? — Sua voz
era muito tênue. — Que você descobrirá quem era Noah Volpi? Que você
descobrirá a quem ele era leal?
Cambaleou ao se levantar da cadeira; a enfermeira a ajudou a se levantar.
Minha mãe continuava mentindo. Uma e outra e outra vez. Teimosamente. Até o
final.
É possível saber que aves habitam no nosso coração? No da minha mãe não se
aninhavam pombos, mas corvos.

* Leah esclareceu que, depois de algumas semanas, o FBI descobriu que Heller era um dom-juan de aldeia que
inventava histórias de espionagem para esconder seu casamento e seduzir mulheres desejosas de aventuras.
Segundo ato
L’occasione fa il ladro
Cena I. Sobre como visitar Washington à noite e arrastar um
cadáver pela lama

ÁRIA DO ESPIÃO

Onde deveria se elevar o lívido esboço da lua só se distingue um vazio tão


lúgubre quanto a ramagem que açoita o para-brisa. Os reflexos noturnos — a
piscada de uma lâmpada, o halo rosado de uma mansão na distância, a
fosforescência da névoa — não aliviam sua sensação de estar entrando numa toca.
Ao mudar o ângulo de visão nada melhora, e a brumosa ponta do obelisco parece
uma estaca cravada no coração da cidade. “Tem certeza de que ninguém está nos
seguindo?”, gostaria de perguntar pela enésima vez a Jim, mas sabe que o outro o
receberá com uma expressão sardônica. Que imbecilidade dar voltas pela capital em
companhia desse estrangeiro remelento! Embora ele mesmo tenha proposto este
sistema depois de marcar com Jim em frente a uma oficina mecânica, nas escadarias
do monumento a Lincoln, nos banheiros da Biblioteca do Congresso e na matinê de
um cinema de meia-tigela, agora se arrepende. Achou que assim conseguiria aplacar
seu nervosismo, mas o tremor nos joelhos ou o suor no colarinho não o abandonam.
Por isso teima em pegá-lo em lugares sempre diferentes e em deixá-lo depois de
meia hora — nunca mais do que isso — em alguma esquina pouco movimentada, o
mais longe possível do Tesouro. E nem assim se acalma. Faz caminhos cada vez mais
intrincados, ziguezagueia e faz voltas repentinas. “Aplaudo todas estas precauções”,
observou Jim, “mas bem que poderíamos tomar um café para aliviar o maldito frio.”
Deter-se é a chave para passar despercebido, pensa Advogado, e estremece ao se
lembrar da vez em que a polícia os parou. Quando percebeu o apito da sirene e os
brilhos azuis e vermelhos coloriram o volante, achou que estava perdido. Jim, em
compensação, se manteve impassível, inclusive mal-humorado, diante do guarda
que exigiu que baixasse o vidro. “Uma das luzes traseiras não está funcionando,
conserte o quanto antes”, repreendeu-o. Só isso. Antes que desse a partida, Jim quis
lhe dar uma lição: “O mais importante é conservar a calma”. Advogado ficou
furioso. “Estou farto deste jogo”, respondeu com o rosto congestionado. Baixando a
guarda, Jim lhe exigiu paciência, afinal de contas não tinha acontecido nada, e
lembrou-lhe a primazia da causa.
A causa. A razão secreta e inexpressável que o empurra a fazer esses passeios
noturnos e a redigir os relatórios quinzenais. O motivo pelo qual se submete a esta
ansiedade incontrolável. A causa, sim, a causa. Combater o nazismo. Buscar a paz
mundial e a amizade entre os povos. Reinstaurar a igualdade e a justiça. A maldita
causa que está a ponto de lhe arrebentar o coração e acabar com sua paz. Por que
diabos voltou a colaborar com os russos se anos atrás tinha se atrevido a abandoná-
los? Se seu temperamento não se dispõe a segredos e ardis, por que está de novo
aqui, com Jim como copiloto, prestes a tirar os documentos que guarda no bolso
interno do paletó? Por que não se ateve à sua palavra — ou se rendeu ao seu pânico
— e se conformou com sua abulia burguesa? Por que não lhe bastou cumprir as
tarefas oficiais e prosseguir com sua confortável rotina de burocrata? Porque, apesar
de tudo, Advogado acredita na causa.
À sua direita distingue as sombras do Mall e seu mal-estar aumenta. “Vamos
dar outra volta”, apressa-o Jim. Ele desvia o olhar para não vislumbrar o perfil
mortiço da Casa Branca. Quando adentram em uma área com jardins andrajosos e
barracos mal pintados — um bairro de negros, com certeza —, Jim começa o
interrogatório e lhe pergunta como foi a semana. Em outras palavras: o que você me
trouxe hoje. A condescendência do russo o irrita. Se está aqui, no seu próprio carro,
prestes a lhe confiar outro informe, é porque pretende ser coerente com seus
princípios, com as convicções que — embora ninguém suspeite — defendeu desde
jovem. Da última vez que deixou o trabalho clandestino não foi só por causa do
pacto que os russos assinaram com os alemães, mas também pela falta de
sensibilidade de seus agentes. Ele não merece ser tratado com essa arrogância, é uma
das figuras mais respeitadas do governo e arrisca tudo — tudo — ao colaborar com
os soviéticos. Ou acham que podem comprá-lo com um miserável tapete persa?
Ridículo. Se se arrisca é simplesmente porque quer.
“Não foi uma semana particularmente produtiva”, admite em um sussurro. E,
acendendo um cigarro, resume o estado das conversações com os britânicos, a difícil
situação da China, as prevenções do Departamento de Estado frente aos japoneses,
dados em sua maior parte públicos, mas que Jim entesoura como revelações de
primeira ordem porque aqui e ali, misturados com análises mais ou menos anódinas,
Advogado deixa escapar algumas pérolas, dados brutos que ninguém mais conhece,
números e orçamentos que farão as delícias dos seus chefes em Moscou. A noite se
mantém tensa e nebulosa, e os dois se envolvem em uma ríspida troca de ideias
sobre o desenvolvimento da guerra. Esta é a parte que Advogado mais gosta destes
encontros, quando, já livre de culpas, recupera a fibra professoral e se lança a
dissertar sobre política econômica. Às vezes se pergunta se não se arrisca apenas para
chegar à hora em que lhe permitem desenvolver seu vasto arsenal de ideias e
opiniões, e dá uma lição de política monetária como se aconselhasse o próprio Stálin
por um intermediário. Assume-se possuidor de uma verdade superior e nada o
agrada tanto quanto compartilhá-la, certo de que desta maneira influirá nas relações
que americanos e soviéticos manterão ao término do conflito. Um salvador? Mais
um facilitador. Um intermediário. Alguém capaz de arriscar sua reputação para ser
ouvido de um lado e do outro do oceano.
Jim o olha nos olhos, satisfeito. Aprecia a súbita veemência de Advogado, vê
nela uma prova de seu compromisso. Como todos os sujeitos deste tipo, precisa se
achar insubstituível para justificar suas mentiras e furtos. Jim foi repreendido várias
vezes por conceder uma margem de manobra tão ampla a este contato, por não
apertá-lo e não obrigá-lo a conseguir informação ainda mais delicada, mas o russo
sabe que deve agir com tato com Advogado, só assim ele conservará a calma e a
confiança para prosseguir com a missão. Afinal de contas ele é, como não se cansa
de dizer, um dos pilares do aparelho.
Concluída sua palestra magistral, Advogado lhe confia as laudas que escreveu
com uma caligrafia pequena e angulosa. Jim nem sequer as olha — terá tempo para
devorá-las em seu quarto — e as guarda no bolso da calça como se fossem notas
amassadas. “Onde lhe deixo?”, pergunta Advogado. Jim lhe dá algumas indicações, e
os dois se mantêm em silêncio durante a última parte do trajeto, tentando adivinhar
quem ganhou mais com a troca desta noite.
Conforme a despedida se aproxima, Advogado volta a sentir as mãos suarentas,
se sente vazio e esgotado. Furioso, promete a si mesmo que esta será a última vez,
que não voltará a ir a estes odiosos encontros, que não dará ouvidos às ligações de
Jim e dos seus, e novamente reconhece que já não consegue viver sem o torvelinho
que o agita toda vez que o russo embarca no carro e que já não pode renunciar à
ideia de que sua inteligência seja apreciada tanto em Washington quanto em
Moscou. Ao chegar à esquina indicada — a ponta do obelisco mal abre passagem
em meio à névoa —, Jim abre a porta e desce sobre a neve encardida. Nem sequer se
dão as mãos. Concluída sua missão, Advogado se prepara para retornar à placidez do
seu lar, à tenra acolhida de sua esposa, a esta outra metade de sua vida de que tanto
sente falta e que tanto o envergonha.

DUO

— O protagonista deste fantástico relato — explicou Leah — não era ninguém


menos que Harry Dexter White, então subsecretário em exercício do Tesouro. Ou
pelo menos era isso que as acusações de Bentley e Chambers sugeriam.
— A cena parece extraída de O terceiro homem — exibi minha erudição. —
Lembra a aparição de Orson Welles, aquele hipopótamo soberbo? A névoa espessa, a
cidade vazia e ameaçadora, o agente soviético sarcástico e implacável.
— Pois era assim que os republicanos queriam descrever White nos anos
posteriores à sua morte — Leah dá um gole minúsculo no seu copo, e me descubro
admirando seus lábios. — Nas eleições de 1952 o general Eisenhower esmagou o
democrata Adlai Stevenson e o candidato do Partido Progressista, Henry Wallace,
antigo vice-presidente de Roosevelt e velho amigo de White, e nomeou como vice-
presidente ninguém menos que Richard Nixon. O clima da nação não podia estar
mais rarefeito, a velha aliança com os soviéticos se rompera, Churchill acabava de
lançar seu discurso sobre a cortina de ferro, McCarthy tinha iniciado a caça às
bruxas, e quem não tremia diante da ameaça vermelha temia ser acusado de ser um
vermelho encoberto…
Desta vez nossa reunião não se realizava no meu escritório ou em uma asséptica
cafeteria do Midtown, mas diante de um Sancerre, umas ostras (para mim) e um
prato de folhas multicoloridas (para ela), em um pequeno restaurante francês na
Madison que à primeira vista não parecia o lugar mais indicado para uma reunião
de trabalho: uma salinha à meia-luz, com apenas oito ou nove mesas, todas com
pequenas velas acesas. A contragosto, Leah tinha abandonado os jeans e os suéteres
de gola alta e vestia uma blusa preta cujo amplo decote parecia incomodá-la. Soltou
o cabelo — uma mata pretíssima — e usava uns discretos brincos de prata nas
minúsculas orelhas. Sua maneira de disfarçar que o vinho tinha começado a lhe
entorpecer a língua me divertia.
— Embora os republicanos tivessem ganhado as eleições federais — explicou
—, acabavam de ser vencidos em Wisconsin e Nova Jersey, e as primárias da
Califórnia estavam muito perto. Por isso os membros do gabinete começaram a
utilizar todas as instâncias para atacar os democratas. Em novembro de 1953, o
novo procurador, Herbert Brownell, se dirigiu aos membros do Clube de
Executivos de Chicago e, depois de elogiar o FBI, passou a denunciar a administração
Truman por se recusar a agir contra os agentes comunistas infiltrados no governo.
E, como exemplo supremo deste descuido antipatriótico, mencionou o nome de
Harry Dexter White.
Surpreendeu-me a animosidade com que ela se referia aos republicanos. Não
que eu fosse um deles (na verdade os desprezo quase mais do que os democratas),
mas, desde que deixei o lar materno, não tinha convivido com alguém com posições
tão previsivelmente liberais. Achei que havia algo fascinante no desprezo que Leah
reservava aos poderosos e de repente me vi com minha mão sobre a dela. Em vez de
retirá-la, deixou-a ali, fria e imóvel.
— Para começar, Brownell enumerou todos os cargos ocupados por White no
Tesouro e no Fundo Monetário Internacional e ressaltou sua contribuição para os
acordos de Bretton Woods — Leah se limitou a levantar uma das sobrancelhas,
indiferente às minhas carícias. — E em seguida o acusou de entregar documentos
secretos aos russos para que estes os transmitissem a Moscou. Mas o pior, segundo
ele, era que os democratas sabiam que era espião comunista quando o nomearam
diretor executivo da delegação americana no Fundo Monetário Internacional.
— E como Truman reagiu?
Tentei lhe servir um pouco mais de vinho, mas ela me impediu libertando a
mão da minha e colocando-a sobre o vidro.
— Me dá sono — se desculpou.
— Isso acontece com a primeira taça — sorri. — Vai ver que, se tomar duas ou
três, o efeito será o contrário.
Sorriu, e pela primeira vez reparei nas suas presas de vampiro.
— Durante uma aparição na televisão, o presidente negou as acusações de
Brownell. — Apesar de seus esforços para se manter alerta, sua voz começava a
denunciar as flutuações provocadas pelo álcool. — Truman afirmou que, embora
White tivesse sido investigado pelo FBI, naquela altura era praticamente impossível
provar as acusações contra ele e garantiu que, se permitiu sua nomeação no Fundo
Monetário, foi porque se tratava de um cargo menos delicado que o de subsecretário
do Tesouro.
Afastando-se de seu roteiro, Leah se desculpou e se dirigiu ao banheiro
(imaginei-a molhando o rosto para despertar). Sem consultá-la, disse ao garçom que
não queríamos sobremesa nem café e pedi a conta. De volta, retomou seu relato
enquanto eu a conduzia pelo braço rumo à saída, onde o chofer já nos aguardava.
Nem sequer me perguntou para onde nos dirigíamos.
— No fim de novembro de 1953, Brownell e Hoover compareceram diante do
Subcomitê de Segurança Interna do Senado — as luzes da Park Avenue deslizavam
pelas janelas como vaga-lumes. — O procurador disse que suas palavras tinham sido
mal interpretadas e que jamais pretendera insinuar a deslealdade de Truman, mas
insistiu em que o ex-presidente se recusara a enfrentar a infiltração comunista por
considerar que se tratava de uma distração. Depois, no momento culminante da
audiência, Hoover sustentou que o FBI nunca recomendou que White fosse
nomeado no Fundo para prosseguir as investigações sobre ele e negou que tivesse
sido substituído no Tesouro por razões de segurança, como o presidente afirmara. E
rematou dizendo que White tinha estado a serviço dos soviéticos.
— Como Eisenhower reagiu?
— Com medo de colocar a instituição presidencial em xeque, prometeu que o
assunto dos comunistas no governo... hic... não se transformaria em um tema
central das próximas eleições e disse que não responderia nenhuma pergunta
relacionada com o caso White. Mas o chamado à concórdia durou pouco... hic....
Decididos a arrebatar a perseguição dos comunistas de McCarthy, os membros do
Subcomitê de Segurança Interna do Senado chamaram os supostos cúmplices de
White a depor: Frank Coe, Harold Glasser e Noah Volpi. Seu pai foi convocado em
20 de dezembro de 1953.
— Uma semana antes de seu encontro com o pombo — me surpreendeu a
falta de emoção com que pronunciei estas palavras.
Nessa altura nossos rostos estavam a alguns centímetros de distância no
elevador que levava ao meu apartamento. Quando entramos, Leah tirou os sapatos e
se sentou em uma das amplas poltronas da sala. Ofereci-lhe uma taça de
champanhe, que ela recusou com uma expressão de nojo.
— As bolhas não me caem bem.
Dando de ombros, enchi sua taça com vinho branco.
— O que poderia ter acontecido com o meu pai se ele não tivesse morrido? —
Me sentei ao seu lado e pousei minha mão em sua coxa. Mais uma vez, ela aceitou
meu avanço em silêncio, mais resignada do que excitada.
— É difícil responder a isso — balbuciou. — Por um lado, os Rosenberg
acabavam de ser mandados à cadeira elétrica. E, por outro, depois da morte de
Stálin, começara a se verificar certa distensão entre as duas superpotências. Pouco a
pouco as escaramuças entre republicanos e democratas se transferiram para campos
menos dramáticos do que a espionagem... hic... Truman logo voltou a ser
considerado um patriota, McCarthy acabou desprestigiado, Brownell caiu no
esquecimento e o nome de White desapareceu das primeiras páginas até se
transformar em uma nota de rodapé nos livros de história, embora já não como
fundador do FMI, mas como suposto espião comunista. Pelo menos enquanto sua
lealdade ou sua traição, da mesma forma que a lealdade ou a traição de seus
colaboradores, não importasse a ninguém...
— A ninguém exceto a nós — concluí.
Alguns segundos antes de dizer essas palavras, eu tinha começado a desabotoar
sua blusa. Seus seios minúsculos podiam ser confundidos com os de um rapaz.
Cena II. Sobre como dois economistas conseguiram a pedra
filosofal e dois economistas estrelaram a luta do século

PRELÚDIO

Pode-se fazer dinheiro do nada?


Os alquimistas medievais tentaram transformar chumbo em ouro por meio de
um misterioso mecanismo de transmutação. Para colocar este processo em
andamento, utilizavam um metal impuro, um princípio elementar — a pirita —
que, depois de ser limpo e purificado em almofarizes e retortas, alcançava um
estágio superior e começava a brilhar. Diferente de seus antecessores, nossos
modernos alquimistas financeiros renunciaram a qualquer matéria-prima e em vez
disso conjugaram etéreas fórmulas matemáticas para enriquecer à vontade.
Nem todos os cientistas, fique claro, são iguais. Quando um biólogo, um físico
ou um químico põe sua hipótese à prova, espera um resultado que, além de lhe
granjear a glória eterna, beneficie o resto da humanidade; já um economista, quando
constata o poder de suas ideias, simplesmente junta uma fortuna. Esta é a fábula de
dois prêmios Nobel de Economia que, confiantes de serem os caras mais espertos do
planeta, decidiram colocar em prática suas teorias sobre o valor das ações e a
eficiência do mercado… no mercado.
Seu objetivo? Criar milhões de dólares do nada.

CORO DOS INVESTIDORES

— Sempre ganhamos quando outros perdem — me instruiu meu novo chefe


antes de dar uma tacada na bolinha. — Esta é a natureza do nosso fundo e a chave
do nosso sucesso. Não devemos temer as turbulências e, sim, aproveitá-las em nosso
favor.
A lição de John Meriwether praticamente não me surpreendeu. Eu não tinha
entrado para o Long-Term Capital Management em um momento de naufrágio,
mas ainda assim tinha sido levado para lá para tentar reverter uma fase negativa
(dois trimestres de perdas depois de cinco anos de lucros inacreditáveis). Não nego
que ver J.M. (como o chamavam seus amigos e rivais) impecável junto aos seus
sócios prediletos, todos à vontade em seu imenso clube de golfe — confesso minha
aversão aos esportes —, me fazia sentir deslocado. Embora seu rosto afável e
arredondado, tão irlandês, e seu meio sorriso em uma boca desprovida de lábios
convidassem a confundi-lo com um padre ou um afável policial, duas profissões que
cogitou na adolescência, não me esquecia de que J.M. era o mítico fundador do
Grupo de Arbitragem do Solomon Brothers nem de que agora era o capitão do
fundo de hedge mais exclusivo do planeta.*
Segundo uma anedota repetida até o cansaço em Wall Street, J.M. era um
jogador patológico que não perdia uma oportunidade de apostar em partidas de
beisebol, corridas de cavalos ou nas eleições locais de Vermont ou Rhode Island, e já
chegara a perder 10 milhões de dólares em uma única partida de pôquer do mentiroso
(seu passatempo favorito), mas sua capacidade matemática, sua devoção à Virgem e
sua paixão pela vida familiar não se encaixavam nesse perfil de jogador desenfreado.
Sem dúvida era capaz de ganhar ou perder vários milhões em uma manhã, mas
nunca se deixava guiar por seus caprichos. Desde sua época no Solomon se gabava
de só contratar os traders que não viam o mercado como o reino do acaso ou do
nonsense, mas como uma austera disciplina intelectual.
J.M. tinha sido dos primeiros a incorporar ao ensebado meio financeiro freaks
provenientes dos mais altos níveis da academia, sujeitos tímidos e distraídos,
socialmente autistas, que sem seu apoio jamais teriam tido a oportunidade de
trabalhar — e enriquecer — em Wall Street. Com eles tinha formado sua célebre
equipe do Solomon, e muitos o tinham seguido, depois de sua momentânea queda
em desgraça no final da década de 1980, ao Long-Term (e até este reluzente campo
de golfe): Eric Rosenfeld, antigo professor da Escola de Negócios de Harvard;
Victor J. Haghani, um judeu iraniano educado na London School of Economics; e
o braço direito de J.M., Lawrence Hilibrand, com dois doutorados no MIT. Mas sua
maior conquista como caça-talentos tinha sido a contratação de dois futuros
prêmios Nobel: Robert C. Merton — filho do economista que inventou o termo
profecia autorrealizada — e Myron Scholes. Que melhor estratégia para atrair
capitais para o seu novo fundo do que incorporar dois dos mais admirados cérebros
econômicos do mundo? E que melhor maneira de aproveitar as ineficiências do
mercado do que acolhendo quem tinha demonstrado eficiência?
— Vou lhe confiar a coisa mais importante que aprendi no golfe e nos negócios
— alfinetou J.M. sem reparar na estupidez da sua última jogada. — A única coisa
que se necessita para que as perdas se transformem em lucros é tempo. Só isso.
Tempo.
Se o mercado fosse perfeito, como imaginavam Gene Fama e seus comparsas de
Chicago, seria impossível obter lucros com a insossa tarefa de negociar bônus, a
especialidade de J.M., pois os preços ficariam fixados em um único momento, sem
lugar para desajustes. Mas, como nossos mercados apenas tendem à perfeição sem
alcançá-la — algo que Merton e Scholes demonstraram —, os preços flutuam de
um mercado para o outro. Com o tempo a margem entre os bônus mais e menos
arriscados tende a convergir, mas enquanto isso é possível aproveitar as discrepâncias
e obter enormes dividendos. Essa era exatamente a definição de arbitragem que J.M.
praticava: a possibilidade de enriquecer com custo zero; a isso tinha se dedicado no
Solomon Brothers e a isso se dedicava agora, com mais energia, no Long-Term
Capital Management.
A grama, de um verde quase artificial, se estendia até o horizonte sob a luz do
meio-dia. Esse era o autêntico reino de J.M. Enquanto nos escritórios centrais do
LTCM em Greenwich, Connecticut, ele preferia passar o dia diante das telas,
sobrecarregado por seus brokers e seus traders, dando ordens para todo lado,
submetido à vertigem das flutuações, e só de vez em quando convocava uma reunião
em seu acolchoado escritório do segundo andar, todos os assuntos que na verdade
lhe importavam se resolviam aqui no campo de golfe.
Hilibrand, Rosenfeld e Haghani não demoraram a nos alcançar, perseguidos
por seus caddies, exultantes diante dos erráticos golpes de J.M. Mas este não se deu
por vencido, como não o tinha feito depois de deixar o Solomon. Desde então tinha
sonhado recriar seu Grupo de Arbitragem sem depender do capital de outros, e com
essa filosofia criou o Long-Term, um fundo de hedge diferente de todos os outros.
Embora concentrado no mercado de bônus, estava disposto a subir suas apostas em
uma medida vinte ou trinta vezes maior que a dos concorrentes.
— Droga! — exclamou J.M. ao observar que a bola tinha ido parar em umas
sebes, enquanto Hilibrand mal continha um risinho.
O caddie lhe entregou um novo taco e nós o vimos entrar, tenso e furioso, no
meio dos arbustos.
— J.M. apostou dez das grandes em que conseguiria — me confiou Haghani,
divertido. — Nunca o tinha visto falhar assim.
Enquanto um típico fundo de risco costuma começar suas operações com 20
ou 25 milhões de dólares, J.M. esperava reunir uns 2,5 bilhões; e, enquanto a maior
parte dos fundos concede cerca de 20% dos lucros aos seus sócios, J.M. prometeu
25 aos dele. Em troca, seus investidores eram obrigados a permanecer por um prazo
de três anos (daí o nome do Long-Term), de modo que, em caso de volatilidade
extrema, as reservas sustentariam o barco até que os ventos voltassem a ficar
favoráveis.
Desta vez J.M. deu uma tacada seca que não só arrancou a bolinha da sebe
como a fez voar até poucas polegadas do buraco 15. O sorriso se apagou dos rostos
de Hilibrand, Rosenfeld e Haghani.
— Quando tudo parece perdido — J.M. abanou o ar com sua viseira —, a
única coisa que se necessita, além de tempo, é de sorte…
Durante seus primeiros anos, o Long-Term tinha gozado de muita sorte;
quando, no início de 1994, o Grande Guru Greenspan decretou uma inesperada
alta nas taxas de juros em curto prazo, provocando uma severa instabilidade nos
mercados, J.M. se aproveitou do caos com astúcia. Da noite para o dia os bônus
americanos e europeus despencaram e inúmeros fundos caíram em falência.
“Ótimo, o melhor que pode nos acontecer é que nossos rivais joguem a toalha!”, foi
seu único comentário: o naufrágio ampliaria as margens dos bônus, justo o que o
Long-Term requeria. Aplicando esta estratégia, J.M. obteve 7% de lucros em um
único mês.
Em 1994, J.M. fez sua aposta mais arriscada em bônus do Tesouro dos Estados
Unidos, teoricamente os instrumentos financeiros mais seguros — e entediantes —
do planeta. Dotado com as fórmulas de seus gênios, calculou o risco da operação e
convenceu os bancos a lhe emprestar o dinheiro necessário. A beleza — não cabe
outra palavra — da manobra era inédita: dado que a quantia investida na venda de
alguns bônus era a mesma investida na compra de outros, e que todo o processo era
realizado com dinheiro emprestado, J.M. não teve que investir nem um centavo
próprio. No final, obteve um lucro de 15 milhões de dólares. Quinze milhões do
nada!
— Queridos amigos — sussurrou J.M. depois de atingir o buraco 18 à frente
de seus colegas —, vocês me devem umas cervejas. E 10 mil dólares cada um.
Meriwether deu uma gigantesca gorjeta ao caddie e, antes de se dirigir ao seu
carro, me apontou com o dedo.
— Precisa melhorar, Volpi — ordenou.
Haghani colocou seu pesado braço em volta do meu pescoço, como se nos
conhecêssemos a vida toda.
— Ele está falando sério — me repreendeu. — J.M. odeia quem não está à
altura dele no golfe. É melhor você praticar!

RECITATIVO

Desde o meu divórcio com Rachel eu tinha decidido não voltar a tocar, para
não falar em apertar, amassar ou penetrar, outro corpo feminino. Embora tentasse
me justificar argumentando a aparência um tanto andrógina de Leah, seu torso
esbelto, desprovido de protuberâncias alarmantes, suas panturrilhas musculosas —
de jogador de futebol, brincou ao se despir — ou seu nariz francamente masculino,
seria absurdo negar a atração que, pelo menos durante os culminantes instantes
prévios à cópula, sua lânguida beleza me provocou. Havia nela uma fragilidade
discreta, quase imperceptível, que contrastava com seu temperamento contestador.
Até o cheiro da sua pele, que me lembrou o cheiro dos recém-nascidos, reforçava
esse desamparo que (eu era o primeiro surpreso) de repente se tornava irresistível.
Isso não implicou que, uma vez estendidos na cama, mal conseguíssemos
contornar o desastre. Para começar, nunca suportei esses sexos depilados que
parecem moluscos frescos e, quando vi seu púbis impoluto, senti a urgência de fugir
de vez daquele mal-entendido. Só a paciência de Leah, que começou a dirigir nossos
vaivéns como se dirigisse uma banda de músicos de aldeia, me permitiu me
concentrar na transparência dos seus olhos e na vitalidade um tanto exagerada das
suas coxas, me lançando em um rápido orgasmo que depois me vi obrigado a
corresponder à custa de intumescer os nós dos meus dedos. O veredito final,
enquanto repousávamos depois da batalha com os olhos fixos no teto, era evidente
para ambos: nem nos esforçando a vida inteira conseguiríamos que nossos corpos se
acomodassem aos nossos desejos.
No entanto, ao acordar não me perguntei que diabos ela estava fazendo ao meu
lado, como me acontecia com frequência; tampouco quis expulsá-la
atropeladamente nem me apressei em me lavar para me livrar o quanto antes do seu
rastro. Contemplei-a enquanto dormia, encolhida sobre si mesma como se em seus
sonhos se protegesse do ataque de uma fera, e não me esquivei da tentação de cobri-
la. Quando finalmente despertou, atordoada e cega, lhe preparei um café sem açúcar
que ela bebeu em pequenos goles, delicadamente, enquanto eu acariciava suas
pernas nuas, envoltos na naturalidade de um casal que há anos repete o mesmo
costume matutino. Tentei adivinhar em sua cútis desbotada algum sinal de confusão
ou de arrependimento, mas Leah se apressou a tomar banho, se vestiu e se despediu
sem demonstrar outra emoção além da tristeza mais ou menos aprazível que um
coito aborrecido costuma provocar.
Passei a manhã inteira sem afastar da cabeça sua ágil nudez passeando do
quarto para o banheiro. O que tinha sido aquilo? Custava-me entender por que
tinha me esforçado para seduzi-la e por que ela não resistira. O melhor para os dois
seria fingir que nada tinha acontecido: um parêntese inofensivo entre dois adultos
que beberam além da conta. Talvez não fosse muito difícil contratar outra
historiadora capaz de me auxiliar nas minhas pesquisas, mas a sintonia com Leah
tinha sido tão reconfortante que eu resistia a despedi-la ou a arruinar nosso trabalho
em comum por culpa de um investimento erótico que — a esta altura era óbvio —
não me daria nenhum dividendo.
À tarde marquei com ela na escadaria da Biblioteca Pública de Nova York e,
aproveitando a tardia calidez do outono, propus que trabalhássemos em uma das
mesinhas ao ar livre do Bryant Park. Ela chegou alguns minutos atrasada — a
pontualidade não estava entre suas virtudes —, com os mesmos jeans rasgados nos
joelhos, uma camiseta clara e o cabelo preso em um rústico rabo de cavalo. Embora
outra vez não exibisse nem uma gota de maquiagem, parecia fresca e quase relaxada.
Desculpou-se pelo atraso e colocou a pasta repleta de papéis na minha frente.
Aplaudi que nossos encontros tivessem recuperado seu caráter profissional, ao
mesmo tempo que a ideia de não voltar a possuí-la entre os lençóis me doía.
Leah se estendeu sobre White e sobre Keynes, imaginando-os como pugilistas
em uma luta de boxe, mas eu quase não prestei atenção às suas metáforas. De
repente achei absurdo que ela remexesse sem pudor nos segredos do meu pai sem
que eu tivesse lhe perguntado nada sobre ela. Assim que concluiu sua comparação
entre os dois economistas, pedi que me falasse um pouco de si. Ruborizada, afirmou
que não havia muito o que contar (mentira: as mulheres adoram que alguém
demonstre interesse por seu passado, por mais horrível ou banal que seja) e começou
a resumir para mim seu errático itinerário sentimental.
Leah tinha nascido em um pequeno povoado na parte norte do estado de Nova
York e, exatamente como eu imaginava — não é preciso ser vidente para perceber as
cicatrizes do abandono —, provinha de uma família desestruturada da classe
operária. Sua mãe tinha engravidado aos dezoito, e aos vinte e cinco fugiu da
opressão do marido, um metalúrgico com acentuada propensão ao ciúme e, segundo
a filha, à psicose. Depois disso Leah tinha convivido com pelo menos seis pais
substitutos — de um motorista de ônibus que lhe acariciava a virilha a um professor
de primário alto e magro que lhe comprava Barbies de segunda mão —, como se sua
mãe tivesse posto em movimento um casting para descobrir os maiores fracassados
da região. Os vizinhos responderam a esta mania colecionadora com boatos segundo
os quais sua mãe era, além de ninfomaníaca, viciada em heroína (ela negava). Para
rebater esses excessos, Leah sempre foi uma menina bem-comportada e, apesar de
sua timidez recalcitrante, sempre ocupou os primeiros lugares de sua classe: daí as
bolsas que lhe permitiram estudar o college em Cornell e o doutorado na CUNY.
Resistiu, por outro lado, a me dar o mais mínimo detalhe de sua vida sentimental,
mas não deixou de insinuar que nesse item seus sucessos tinham sido mais para
magros (entendi que nulos). Segundo ela, seus únicos amores verdadeiros, pelo
menos até o momento, tinham sido seus cachorros, pelos quais sentia uma insana
devoção: do miserável dálmata que a acompanhou quando criança a Salinger ao
insuportável beagle com quem agora dividia seu apartamento.
Em compensação, me surpreendeu um pouco que me confessasse sua
dificuldade para fazer amigos. Segundo ela, não apenas lhe era difícil simpatizar com
os colegas e professores, que inevitavelmente achava néscios ou retrógrados, como
tinha protagonizado uma sonora briga com o chefe do departamento de história por
defender uma colega que, ao engravidar, tinha sido punida com a suspensão da
bolsa. Depois de ouvir essas vagas revelações entendi melhor seu ingênuo fraco pelos
democratas: pertencia àquela pequena porcentagem da população que acha que sua
ascensão social se deve à ajuda do Estado mais que à sua perseverança ou seu talento.
Não posso negar que a ideia de lhe mostrar a verdadeira natureza das coisas, e em
particular as vantagens do egoísmo, foi outro estímulo que me impulsionou a retê-
la. Em troca da sua ajuda cabia a mim demonstrar a esta jovem justiceira a
inutilidade de suas boas intenções.
Quando terminou seu relato, uma noite fresca e luminosa caiu sobre nós. Leah
consultou o relógio e disse que precisava ir. Automaticamente lhe propus levá-la à
sua casa. A princípio recusou, mas acabou subindo no carro quando Charles se
colocou diante dela e abriu a porta para ela como se fosse para uma princesa. Era
inevitável que ao chegar ao nosso destino (na parte norte do Harlem) se fizesse um
desses agrestes silêncios dos que já compartilharam fluidos, e perguntei se podia
subir com ela. Subimos os quatro andares e caímos no seu miserável loft onde a
escassos milímetros de distância se amontoavam a cozinha, a sala e a cama. Salinger
correu para me farejar e em seguida se agarrou de forma pouco educada à minha
perna direita. Se Leah não o tivesse trancado no banheiro, eu não teria tido outro
remédio a não ser ir embora.
Custava-me imaginar que uma pessoa pudesse passar tantas horas em uma caixa
de sapatos como aquela acompanhada por um cachorro. Depois de remexer na
despensa, Leah se desculpou porque só tinha chá e vinho orgânico para oferecer.
Optei pelo segundo: erro crasso. Era evidente que o único modo de aliviar a tensão
seria permitindo que outra vez nossos corpos se arriscassem a se encontrar. De
repente ela se despiu diante de mim, sem nenhum aviso prévio: os tímidos às vezes
não o são tanto. Se um dos dois esperava que o sexo melhorasse em relação à noite
anterior, a decepção deve ter sido imensa: dois orgasmos obtidos praticamente à
força em tempos descontínuos, mas, de forma imprevisível, dormimos abraçados até
a madrugada. Definitivamente, esse não ia ser o melhor investimento da minha
vida, mas às vezes os homens de negócios não são, como gostariam as teorias,
puramente racionais.

DUETO

Keynes vs. White. Primeiro round.


Neste canto, com calção azul e cinquenta e nove anos de idade, nascido na
pitoresca aldeia universitária de Cambridge, o campeão dos pesos pesados, damas e
cavalheiros, o único e inigualável lutador das Ilhas Britânicas, o mestre de gerações
de nocauteadores, especuladores e ministros, o celebradíssimo autor dos
incomparáveis e incompreensíveis volumes As consequências econômicas da paz e A
teoria geral do emprego, do juro e da moeda, com que nocauteou mais de um
adversário, o antigo membro da turma de Bloomsbury, senhoras e senhores, com
vocês o brilhante, o genial, o indiscutível, o soberbo Loooord John Maynard (favor
pronunciar à inglesa) Kaaaaaaaynz…
E no canto oposto, com calção vermelho (com certeza) e cinquenta anos de
idade, nascido na gelada e cosmopolita cidade de Boston, o ciclópico desafiante à
coroa mundial, damas e cavalheiros, o ardiloso e malandro representante dos
Estados Unidos da América, a estrela ascendente do boxe econômico mundial,
senhoras e senhores, o lutador surgido das quadras do secretário Morgenthau e do
presidente Roosevelt, o campeão do Departamento do Tesouro, o brilhante, o
indiscutível, o soberbo Haaaaarry Dexter Whiiiiiiiiiite…
Que luta teremos, amigos e amigas! A experiência contra a ambição, a técnica
contra a força, a sagacidade contra a malícia, a tradição contra a inovação, a nobreza
contra a burguesia, a cultura contra a civilização, a monarquia contra a democracia,
o sutil humor britânico contra a eficiência americana. Em dez rounds, que se
realizarão entre 1942 e 1945 nos dois lados do Atlântico, estes dois boxeadores se
enfrentarão pelo desejado Título Mundial dos Salvadores do Mundo. Só um
monopolizará a glória e as honras, damas e cavalheiros, só um se transformará no
Salvador do Planeta, senhoras e senhores, só um desenhará o plano econômico do
pós-guerra, amigos e amigas, só um será ungido como o criador da jaula econômica
que ainda nos encerra.
Conseguem vê-los lá, nos seus bancos, cercados por legiões de managers,
secretárias e assistentes que massageiam e abrilhantam seus cérebros com todo tipo
de unguentos e pomadas? No brilho do seu olhar se anuncia a expectativa diante da
ferocidade da luta. Já se levantam, saltam e aquecem os músculos, conscientes do
histórico momento. Agora o árbitro os chama ao centro do ringue, os dois atendem
a contragosto, se medem à distância e chocam as luvas em um tímido cumprimento.
Está tudo pronto, damas e cavalheiros!
Esta é a Luta do Séééééculo!
Como nos indica a voluptuosa jovem com seu cartaz à frente, hoje é 23 de
outubro de 1942, e tem início o primeiro assalto.
Cling!
RECITATIVO

Um lampejo arroxeado ilumina as nuvens por um instante, em seguida o céu


volta à escuridão e a aeronave balança a 25 mil pés de altura sobre o oceano. Harry
ainda não esquece o desconforto e o horror da travessia: oito horas de turbulências,
amarrado ao seu assento — uma pulga em uma caixa de fósforos —, suplicando
para que um caça alemão não atravessasse seu caminho. A apressada aterrissagem na
Escócia tampouco aliviou seu enjoo e, durante a inspeção de armamentos a que teve
que comparecer ao lado de Morgenthau, ainda não tinha recuperado o equilíbrio e
precisou se desculpar e correr para vomitar na pia. Depois disso o mal-estar
estomacal não lhe deu trégua. Ao longo das exaustivas reuniões com os oficiais do
Ministério de Fazenda, suas tripas não pararam de se retorcer, produzindo
embaraçosos estertores.
Hoje Harry se sente um pouco melhor — pela primeira vez em vários dias
evacuou corretamente —, embora ainda sofra com cólicas e acidez no esôfago. Que
ideia mais tola! É óbvio que seus padecimentos não têm origem nervosa! Embora o
embaixador Winant tenha marcado o encontro no último instante, a esta altura
White não teme se encontrar com Keynes. Os dois estão há semanas trabalhando
nos seus respectivos planos, e teria sido inconcebível não aproveitar a viagem à
Inglaterra para uma primeira troca de opiniões com o Mestre.
Na vez anterior em que se encontraram, muitos anos atrás, a presença do
britânico lhe produziu suores antecipados, mas as circunstâncias eram muito
diferentes. Em abril de 1935, quando Morgenthau o enviou em sua primeira missão
oficial à Europa, White estava praticamente começando sua carreira no Tesouro e,
embora fosse considerado um jovem ambicioso e promissor, não deixou de se sentir
em desvantagem frente a Keynes, o maior economista do planeta. Naquela ocasião
este o tratou com a educada displicência que White sempre odiou nos britânicos;
não poderia afirmar que o sábio tivesse sido cortante ou descortês, mas jamais
abandonou certo ar de superioridade frente ao imberbe colega americano.
Sete anos depois, White ainda sente um profundo respeito por Lord Keynes —
meses atrás o rei Jorge o nomeou barão por seus altos serviços à Coroa — e ainda
acha que se trata do maior economista vivo, mas agora ele é a voz do Tesouro nas
negociações econômicas sobre o pós-guerra. Assim, enquanto o Mestre empregará
toda a sua sagacidade para conservar os últimos privilégios do Império Britânico,
White lhe deixará claro que os Estados Unidos imporão suas condições. Talvez essa
desigualdade seja a parte mais apaixonante da luta que se aproxima: como os dois
reconhecem a disparidade dos meios com que contam, são obrigados a se envolver
em uma batalha cheia de sutilezas, armadilhas e cláusulas com letra pequena.
Mesmo em desvantagem, Lord Keynes é um adversário formidável, e White terá
que utilizar todos os seus recursos para derrotá-lo não apenas no plano dos fatos
(algo que dá como certo) como também no das ideias.
Segurando o ventre com as mãos, White ocupa uma cadeira ao lado de
Morgenthau, enquanto o resto da comitiva se acomoda nos lugares próximos e o
embaixador Winant anuncia a chegada dos britânicos. Depois dos cumprimentos
protocolares, Keynes ocupa um lugar na frente de White, mas se desvia em uma
melosa conversa com outro convidado. Harry tem a impressão de que o Mestre
envelheceu de repente, o bigodinho à la Chaplin embranqueceu, e o occipício
desponta entre os arbustos de cabelo como uma colina em um ermo. A pele das
mãos se tornou apergaminhada e as escuras bolsas sob os olhos denunciam certa
fadiga crônica, embora o brilho do olhar não tenha perdido o vigor. White sabe que
o cansado ator coadjuvante de uma opereta de Gilbert & Sullivan esconde dentro de
si um tigre de garras afiadas.
Um garçom distribui taças de vinho e canapés — apenas os capacetes de metal
na varanda e a patrulha militar parada na esquina da embaixada americana em
Londres lembram que a cidade sofre os cotidianos bombardeios nazistas —, e a
conversa flui de um assunto a outro, o que provoca o aborrecimento conjunto de
Keynes e White, igualmente intolerantes frente ao palavrório. Examinados de perto,
não se distinguem de dois caranguejos que, prontos para o ataque, se conformam
com abrir e fechar as garras. Keynes distribui pérolas de ironia — sobretudo ao se
referir, obliquamente, ao Plano White — e o americano brande duas ou três
observações severas e amargas, e igualmente oblíquas, sobre o Plano Keynes. Essas
primeiras escaramuças anunciam o início das hostilidades.
Pouco a pouco os outros convidados — incluindo Winant, que em sua
qualidade de árbitro apenas intercala duas ou três frases sobre competição — fecham
a boca e se sentam em seus camarotes. O primeiro golpe é dado por Lord Keynes: o
Fundo Monetário que White propõe não parece suficientemente grande para
resolver os desafios do pós-guerra, ao contrário da muito mais elegante e complexa
União Internacional de Compensação proposta pelo britânico. White recebe o
golpe, protege as partes baixas e escapa do clinch do britânico.
— O Congresso jamais aprovaria algo diferente — responde White sem
sarcasmo, como dizendo: as coisas são assim, eu sou apenas o emissário da realidade.
Harry Dexter White e John Maynard Keynes.

Lord Keynes brande sua taça, dá um pequeno gole e contempla com desdém o
adversário.
— A União Internacional de Compensação é sem dúvida uma ideia brilhante,
mais que brilhante — White empurra o oponente para as cordas —, muito
brilhante! Mas é politicamente inviável. Em outro mundo…
Um golpe baixo que o árbitro não sanciona. Keynes fica sem ar, mas não
demora a se recuperar enquanto se engasga com um sanduíche de salmão.
— Se algo pode bloquear a liberdade do Fundo Monetário — deixa escapar
Lord Keynes —, é que funcione por meio de empresas de capital. Imagino isso
como um polvo sem tentáculos. Em compensação, criar uma moeda de troca
universal garantiria a independência…
— O bancor? — zomba White.
— Ponha o nome que quiser — defende-se o inglês.
Uma gota de sangue escorre pela testa de White; não, não é nada grave, pode
continuar, não há necessidade de parar a luta. Para aliviar o mau bocado, o
americano mastiga um pepino japonês e se refresca com um gole de champanhe.
“Keynes, Keynes, Keynes!”, parecem uivar os fãs britânicos, formando uma
onda na sala de recepções da embaixada. Seu pugilista não os decepciona e mantém
o castigo.
— A Inglaterra jamais aceitará que as variações na mudança de moeda só
possam ser aprovadas por uma maioria de quatro quintos dos membros do Fundo
— exclama, desatando o aplauso dos seus. — Dado que nosso país é o que mais
investiu e sofreu na guerra, atravessará uma situação muito complexa ao término do
conflito. A Inglaterra necessita de completa liberdade para fixar o tipo de câmbio da
libra.
“Longa vida a Lord Keynes!”, gostaria de entoar a torcida.
White desvia o golpe no fígado e zomba do adversário com um risinho cuja
tradução aproximada seria: de fato, essa é a questão, Lord Keynes, ao término do
conflito a Grã-Bretanha será uma potência de segunda que não poderá decidir nada
de nada. É exatamente por uma consideração especial aos seus esforços que estamos
aqui hoje, pois preferiríamos lutar em outras ligas, com adversários do nosso peso.
Se eu fosse você, me limitaria a agradecer.
Se White pensa isso, prefere conceder um pouco de ar ao rival. Estamos apenas
no primeiro round e ele não quer humilhar o Mestre.
— Talvez devamos deixar esta conversa para depois…
Keynes, ofegando, não se rende.
— A Inglaterra tampouco concorda com a ideia de que os Estados Unidos
contem com a maior cota no Fundo. Isso significaria que poderia tomar todas as
decisões…
O público sofre um repentino ataque de ternura com a investida do britânico,
não resta dúvida de que é um pugilista de raça.
— Tampouco podemos voltar os ponteiros do relógio para trás — contra-ataca
White. — Seu plano procura retornar às condições anteriores à guerra…
A esta altura o velho Keynes se mostra exausto.
— Devemos prosseguir com essas conversações só entre nós, antes de convidar
os membros das outras nações aliadas — argumenta com firmeza. — Talvez um
pouco mais adiante possamos chamar os russos, para evitar suspeitas.
Desta vez White não ri, consciente, segundos antes do gongo, de que este será o
golpe definitivo.
— Receio muito, Lord Keynes, de que isso daria pé a todo tipo de suspeitas.
Nossos aliados poderiam achar que formamos uma camarilha anglo-saxã, e não
podemos permitir isso…
Como nos desenhos animados, o golpe de White faz com que o britânico veja
passarinhos ao seu redor. Por sorte o tempo se esgotou e Lord Keynes se aferra, de
pé, à sua última taça de champanhe.
Cling!

SERENATA

Devo confessar: tinha me apaixonado. Aguda, tola, febrilmente, pela primeira


vez na minha vida (talvez pela segunda, se contarmos o devaneio juvenil com Lars),
quando menos esperava. Quando menos precisava. E não por Leah Levitt, como
vocês poderiam ter imaginado, mas pelo dr. Allan Whiterspoon. Atrevo-me a
descrevê-lo? Imunologista residente no Hospital Monte Sinai, amante de Nietzsche
e Schopenhauer e exibido admirador de Puccini. Ainda estremeço ao lembrar como
se livrava da bata, se enrolava em um lençol e, com um meritório falsete, executava
primorosamente as duas árias de Liù antes de cair no chão, ferido de morte pelos
capangas de Turandot!
Também conseguia encarnar com o mesmo garbo Manon, Mimi, Tosca,
Magda e Minnie, e inclusive Lauretta e irmã Angélica. Às vezes me atrevia a
acompanhá-lo, e com minha patética rouquidão de barítono destruía os agudos de
Rodolfo, Cavaradossi, Jack Rance ou Calaf só para acolhê-lo nos meus braços. Para
aliviar um pouco a nostalgia, enumerarei seus defeitos: Allan não era bonito, pelo
menos à primeira vista — olhos castanhos, magro, embora não esquelético, muito
imberbe —, e era um nível mais afeminado do que consigo aguentar, de modo que
às vezes seus gestos e rebolados me enjoavam.
Alguns anos antes tinha notado seu rosto moreno e seus prematuros cabelos
brancos no vestíbulo do Met — em uma abúlica Carmen? —, mas não tive coragem
de abordá-lo durante o intervalo. Voltei a vê-lo de longe em outras ocasiões, mais
um entre os aficionados habituais da companhia, sempre sozinho e sempre com um
terno branco, até que uma noite, quando estava para começar o terceiro ato de uma
enfadonha Bohème, dirigiu-me um olhar penetrante do outro lado da sala.
Impossível não corresponder. Assim que as luzes se apagaram, levantou-se da sua
poltrona e se dirigiu sigilosamente para o meu lado.
— Esta apresentação está um horror — sussurrou ao meu ouvido.
Puxou-me pelo braço e eu o segui, excitado e atônito, até o banheiro dos
homens. As melancólicas frases de Rodolfo e Marcello ecoavam ao longe enquanto
ele baixava o meu zíper.
— Che gelida… — sorriu. — Se la lasci riscaldar.
Era noite de lua e a lua estava tão perto…
— Direi com duas palavras quem sou, o que faço, como vivo — cantarolou —,
quer? Quem sou? Sou Allan Whiterspoon. O que faço? Você está vendo. E como
vivo?
— Vivo — completei.
— Onde?
— Sozinho, sozinho, lá onde se avistam aqueles telhados — concluí enquanto
descíamos correndo as escadarias do Lincoln Center.
Charles nos levou para o meu apartamento, que distava anos-luz de ser uma
bianca cameretta. No tapete, diante da vidraça que nos oferecia o claro-escuro de
Manhattan, concluímos nosso dueto.
— Não vendo flores de papel, mas papéis, muitos papéis — confessei-lhe
enquanto arrancava suas calças.
— Não é poeta? E eu não sou a poesia?
— A poesia lírica do dinheiro — confessei. — J.P. Morgan.
— Achei que você era Mimi, mas é um marquesinho.
— Você gostaria de ser minha Musetta?
— Quando me’n vò…
Partiu depois de poucas horas, obrigado a chegar às sete da manhã no
consultório, mas recebi uma ligação dele no meio da tarde. Sem brincadeiras inúteis,
sem estratégias ocultas, sem duplas intenções.
— Hoje é sua vez de me visitar. Poderíamos ouvir a Butterfly da Scotto
enquanto eu preparo um… risotto — bancou o engraçadinho.
Os dotes culinários de Allan empalideciam comparados com suas habilidades
camerísticas, mas não foi difícil desculpar seu arroz pegajoso depois de ter degustado
a consistência al dente do seu sexo. Acho que ao longo dessas semanas não houve
uma única noite em que eu não acordasse em sua cama — algo que me negara a
consentir a todas as minhas conquistas anteriores —, tomado por um desses
impulsos químicos que só de vez em quando nos atingem. Embora algumas vezes
Allan tenha concordado em voltar para a minha casa, muito fria e impessoal para o
seu gosto, preferia me levar ao seu modesto refúgio no Meatpacking District, um
apartamento de dois cômodos decorado como um barco a vela com duas claraboias
incrustadas nas portas, corrimões e cordas de alumínio nos mezaninos e paredes
revestidas com madeira laminada. Como única decoração, ao longo da sala se
estendia uma linha de aquários vazios iluminados com um fulgor azul fosforescente.
Remexendo em suas estantes, constatei que sua coleção de óperas não rivalizava com
a minha, exceto no número de versões piratas das obras do gênio de Lucca. Sua
afeição marinha não estava muito longe do mau gosto, mas isso não me impediu de
navegar com ele noite após noite.
Passada a rutilante abertura, Allan e eu caímos no primeiro ato de uma ópera
romântica interrompida apenas pelos meus inadiáveis encontros com Leah. Ela não
achava minhas ausências suspeitas, o mundo das finanças tinha regras que fugiam à
sua compreensão de estudante de pós-graduação e, dada minha posição em Wall
Street, via as longas viagens de negócios como inevitáveis. Talvez o mais natural
fosse cancelar a precária intimidade que me unia a ela, mas eu não quis. Por pior
que seja, o sexo nunca é só sexo e, uma vez acostumado a Leah, não estava disposto
a renunciar à sua lucidez e à sua estimulante companhia. Se não outra coisa, aqueles
minutos de frustração erótica com ela me garantiam sua fidelidade intelectual. Aos
meus olhos, Allan e ela se complementavam perfeitamente, e gozar do fogoso
imunologista não me obrigava a renunciar à discreta especialista em Bretton Woods.
Confiava em que, se jogasse bem minhas cartas (e eu me gabava de ser um exímio
jogador), conservaria tanto a paixão que vivia com o desbocado fã de ópera quanto a
serena respeitabilidade que minha jovem amiga começava a conferir à minha vida
social.
Nessa altura Leah não apenas me acompanhava a todos os espetáculos,
concertos e festas a que eu comparecia na Grande Maçã Podre, como tinha me
atrevido a apresentá-la aos meus filhos. Contra o que previ, Isaac a recebeu com
uma educada indiferença que poderia ter passado por um tácito sinal de aprovação.
Em compensação, Susan, que não costumava questionar minhas decisões, logo viu
em Leah uma concorrente — as duas tinham praticamente a mesma idade — e lhe
dispensou aquela velada aversão com que as mulheres costumam se envenenar. Se
não criticava seu estilo (“de onde você a tirou, pai, de uma comunidade hippie?”),
zombava de seu sotaque ou, fingindo se interessar pelos seus estudos, a fazia parecer
uma acadêmica rígida e chata (talvez Leah fosse um pouco). Embora eu tenha lhe
implorado que me ajudasse a introduzi-la nos rígidos espartilhos do nosso mundo,
minha filha se negou redondamente, estava claro que nunca perdoaria sua soberba e
muito menos sua insultante juventude.
Introvertida mas não humilde, Leah respondia às provocações com ironias tão
sutis que minha filha dificilmente percebia as arestas. Observá-las se bicando como
duas gruas receosas era quase divertido e finalmente deixei de me meter nessas
batalhas, afinal teriam de aprender a conviver. Enquanto isso eu me vangloriava da
minha habilidade para gozar das minhas duas contas de negócios. A mesma
estratégia que regia minhas transações financeiras se aplicava à minha economia
sentimental. Se podia ter tudo, por que limitar a variedade do meu desejo?
Leah e Allan. Allan e Leah. Um equilíbrio perfeito.

* Embora tenham se iniciado em 1950, os fundos de hedge só recentemente se transformaram em instituições


centrais do nosso sistema financeiro. Diferentemente dos fundos mútuos, sempre operaram na sombra, pois não
precisam ser registrados na SEC. São uma espécie de clube dos ricos, formado segundo a lei por pelo menos 99
investidores, com uma participação de no mínimo 1 milhão de dólares, ou quinhentos se cada um investir pelo
menos 5 milhões. Suas pastas se mantêm ocultas, e eles estão autorizados a pedir emprestado todo o dinheiro
que quiserem sem nenhuma restrição.
Cena III. Sobre como se apaixonar por uma espiã e engordar
com uma dieta de rancor

ÁRIA DE ELIZABETH BENTLEY

Era uma vez uma moça pouco graciosa, solitária e insegura, criada no lar de um
vendedor de embutidos e de uma severa professora primária, que acabou se
transformando em espiã russa e depois em delatora. Embora eu imaginasse que o
retrato que Leah me fez de Elizabeth Bentley se pareceria com um romance de
mistério ou um film noir, acabou sendo uma vulgar história de amor (ou mais de
desamor).
1. Em que nossa heroína descobre como combater o mal de amor
Embora não seja a primeira vez que admira o corpo de um homem mais velho
(em sua louca vida italiana conheceu dezenas, no sentido bíblico do termo), o de
Mario lhe parece diferente: delicado, firme, juvenil. Seu orientador de tese tem vinte
anos a mais que ela, mas, enquanto ele conserva pernas sólidas, peitorais generosos e
um ventre praticamente plano, ela se envergonha das suas pernas finas, da sua pele
coberta de erupções e dos seus seios caídos. Se acabaram juntos, foi porque ela
costuma se comportar como preceptora e ele, em compensação, se descontrola como
uma criança. Pouco importa que o professore Casella seja um dos críticos literários
mais destacados de sua geração ou que seu nome figure entre os mais aguerridos
caluniadores do Duce na Toscana, Elizabeth não deixa de achar que é obrigada a
repreendê-lo como se fosse sua mãe e não sua amante.
Sim, amante. A futura aprendiz de Mata Hari adora balbuciar esta palavra.
Durante anos achou que nenhum homem prestaria atenção nos seus quadris de
matrona ou nas suas nádegas celulíticas, e que acabaria sozinha e amargurada, e em
compensação agora não conseguiria se lembrar dos nomes de todas as suas visitas
noturnas. Sua vida sentimental se iniciou muito tarde, pois, enquanto suas rivais de
Vassar escapavam com seus namoradinhos, fumavam e bebiam em segredo e
cortavam as saias para exibir as panturrilhas, ela se vestia como instrutora de
primário, recusava o álcool e só deu seu primeiro beijo aos dezoito, pouco antes de
perder a virgindade no navio que a conduziu pela primeira vez à Europa. Mas que
forma de dar a revanche! Depois de ruminar suas penas em New Milford e
Rochester, de afundar em intermináveis depressões e de se imaginar aborrecida e
incasável, seu ano na Itália lhe demonstrou que uma moça — qualquer moça — é
capaz de conseguir um homem, se de fato se propõe a isso. E foi o que fez desde que
chegou a Florença, constatar o poder do seu sexo. O que importa que suas colegas a
acusem de fácil, cadela ou puta? É melhor do que ser chamada de cerebral ou de
mulher estéril, como em Vassar, e ficar solteirona.
Elizabeth nem sequer precisou pedir a Casella que a ajudasse com sua tese, ele
mesmo prometeu que seu assistente se encarregaria de redigir o manuscrito. Não
que ela se sentisse incapaz de concluir o trabalho — afinal de contas fez toda a
pesquisa sobre o maldito poema —, mas prefere fazer amor com seu professor em
vez de estragar os olhos com estrofes medievais. Nossa heroína não se contém e
acaricia o sexo do amante, e este se espreguiça pouco a pouco. Elizabeth persiste
com a mão e em seguida com os lábios — orgulha-se de sua perícia —, e os
músculos faciais do militante antifascista desenham um espasmo. A jovem não pode
negar que Casella foi uma influência decisiva em suas ideias. Antes de conhecê-lo
chegou a flertar com um grupo mussoliniano — por culpa de outro galãzinho —,
mas agora se considera uma convicta militante revolucionária. Elizabeth não hesita
em engolir a semente do professore, limpa a boca com o dorso da mão e se aninha
em seu ombro.
— Acabo de receber uma notificação da universidade — diz de repente. —
Querem me expulsar!
Seu orientador de tese diz que fará tudo o que estiver ao seu alcance para apoiá-
la, mas essa generalidade não a tranquiliza.
— Prometa! — grita Elizabeth.
Em uma cena calcada em um tosco melodrama italiano, Elizabeth deixa o
apartamento de Casella e vai para o quartinho que aluga em Santa Croce, onde se
fecha durante as seguintes 72 horas. O professore a visita algumas vezes, e ela cospe
nele da janela. Esgotada, pega os comprimidos que trouxe consigo da América e joga
um punhado na garganta. Duas horas depois uma vizinha a descobre e a obriga a
vomitar na privada. Graças à rápida intervenção do cônsul americano, o assunto não
vaza para a imprensa e Elizabeth deixa a cidade do Arno sem nem sequer se despedir
de Casella. Debaixo do braço carrega o volume com sua tese. A mesma tese que, já
instalada em Nova York, apresentará com surpreendente êxito — mas não sem
suspeitas de plágio — na Universidade de Columbia.
2. Em que nossa heroína descobre as vantagens sexuais do comunismo
Elizabeth acorda pouco depois da meia-noite, espia pela janela de seu muquifo
no Upper West Side para checar se alguém a está vigiando — uma prática que o
camarada professor recomendou desde a primeira aula — e se detém para observar os
corpos entrelaçados de George e Hussein. Compara seus sexos como se fossem duas
espécies animais. Enquanto o do grego, rosado e carnudo, se encolhe depois da
cópula, o do iraquiano se alarga e se condensa. Qual prefere? Elizabeth (por
precaução mudou o sobrenome para Sherman) ainda não decide. Talvez George seja
melhor amante, consegue manter o mesmo ritmo sem cansar nunca, mas peca por
ser bruto e insensível; Hussein, em compensação, se mostra mais refinado, mas suas
manobras orais empalidecem diante das do rival.
Quem iria dizer que os três acabariam na cama? Isso sim é uma novidade para
Elizabeth, que durante anos sonhou com esta fantasia sem se atrever a realizá-la.
Conheceu George pouco depois de voltar da Itália, depois de se matricular a
contragosto na escola secretarial de Columbia. Ao término do segundo dia de aula
— a taquigrafia tinha arruinado seus dedos —, nossa heroína decidiu fazer uma
pausa em um bar de quinta categoria; ali topou com o grego que, ainda coberto com
seu macacão de pedreiro, empinava umas cervejas com outros cavernícolas. O nariz
reto, os olhos muito pretos, os braços peludos conquistaram Elizabeth; depois de
poucos minutos George já a convidava para um drinque e em meia hora mordiscava
seus mamilos no banheiro.
Quando jovem, Elizabeth nunca imaginou que um desconhecido, e muito
menos um cão suarento como George, fosse apalpá-la em um local público (e
púbico). Sua mãe teria tido um colapso se constatasse que a filha se transformou em
uma puta, e até suas colegas do Vassar College, teoricamente tão liberais, teriam se
escandalizado; em compensação, suas amigas do Partido não apenas aplaudem seus
desafios à moral burguesa como a animam a embarcar em aventuras cada vez mais
obscenas. Elizabeth tinha evitado se mostrar muito interessada pelas bebidas
alcoólicas ou pelos homens, e só quando Juliet zombou dela por não pedir um
segundo bourbon e a incentivou a se deitar com um tal sr. Smith em troca de cem
dólares, entendeu que uma verdadeira comunista não se detém diante de nenhum
preconceito.
Depois de poucas semanas Elizabeth conheceu Hussein, um estudante de
intercâmbio de Columbia, e abriu uma segunda frente. Apesar de suas precauções,
certa noite Hussein a descobriu trocando carícias com George. Surpreendeu-a se
ouvir propondo aos dois que ficassem para dormir com ela. E agora os três
repousam sobre os lençóis, as pernas morenas do iraquiano em cima das coxas
branquíssimas do grego, enquanto ela os admira como se formassem um tableau
vivant, uma obra de arte surgida de seu engenho.
Quem iria dizer que o comunismo seria uma festa? Quando finalmente disse à
amiga Lee que estava mesmo disposta a se filiar ao Partido, pensava em continuar a
carreira antifascista que tinha empreendido com Casella sem prever que a militância
lhe proporcionaria uma infinidade de encontros eróticos com outros agentes. Nos
últimos seis meses recebeu em casa (e na cama) uns vinte comunistas em busca de
refúgio. Talvez Juliet tivesse razão: o capitalismo sobrevaloriza o sexo. Que razão há
para loteá-lo e limitá-lo como se, pelo simples fato de se deitar com alguém, a gente
se agregasse ao seu patrimônio? Por enquanto sua atividade no Partido não tem sido
particularmente intensa, mas sua vida sexual nunca foi mais variada. Pena que Juliet
tenha desaparecido de repente. Elizabeth teria adorado lhe contar sobre o trio com
George e Hussein, com certeza ela teria vibrado.
3. Em que nossa heroína encontra o (vermelho) amor de sua vida
Elizabeth acorda pouco depois da meia-noite e contempla o entorpecido corpo
do seu amante sob a retícula filtrada pelas persianas. Nossa heroína observa o
maxilar largo e quadrado, o tórax simiesco, o abdômen proeminente e os pés de
ogro, em seguida ouve o sopro que vem de seus brônquios. Yasha se espreguiça,
sobressaltado, e ao abraçá-la quase lhe quebra os ossos. Não, Elizabeth nunca se
sentiu tão segura, tão protegida, tão — por que não dizer? — amada. Apesar da
estatura de gnomo, dos beiços caídos e da voz de baixo, Yasha é uma criatura tímida
e desamparada. Desde que irrompeu em sua vida — sob o tolo nome de Timmy —,
nossa heroína só pensa em se aninhar ao lado dele, ajudá-lo em suas tarefas, aliviar
seus sofrimentos. Depois de cruzar no Partido com tantos sujeitos toscos ou
grosseiros, foi uma bênção que Brown o escolhesse como seu agente de contato.
Em uma feliz coincidência, a Columbia tinha definido que Elizabeth fizesse seu
estágio na Biblioteca Italiana de Informação, um centro que, como nossa heroína
logo descobriria, se dedicava a difundir propaganda fascista. Consciente de que seu
trabalho ali poderia ser útil ao Partido, contatou Brown depois de uma longa
temporada de silêncio. Este lhe ditou o endereço de Greenwich Village onde
passaria para pegá-la. Quando o carro parou, Brown lhe ordenou ocupar seu assento
e, depois de apresentar-lhe o motorista, partiu para o metrô. O agente ao volante
não lhe causou boa impressão, seu casaco sujo e desbotado, sua juba empoeirada e
seu fedor ácido o faziam parecer um artista ambulante ou um mendigo (só depois
entenderia que esta era a aparência dos verdadeiros comunistas). Timmy dirigiu em
silêncio até chegar a um restaurante grego na rua 14. Durante o jantar nossa heroína
descobriu que o gnomo possuía uma mente viva e convicções de ferro, e Elizabeth se
viu conversando com ele com uma desinibição que jamais se permitiu. Timmy não
parou de pregar sobre o perigo que se abatia sobre a Europa por culpa do nazismo e
falou sobre a perseguição aos judeus e comunistas. Quando terminaram as
sobremesas, o gnomo lhe propôs dar um passeio de carro. De repente estacionou em
um descampado e, olhando para Elizabeth com severidade, lhe disse que a
Biblioteca Italiana de Informação era um lugar crucial para a causa.
— Você precisa permanecer lá a qualquer preço.
Depois de meses à sombra, alguém finalmente a tornava responsável por uma
missão relevante e talvez perigosa. Timmy lhe ordenou contatá-lo apenas por meio
de um intermediário e prestar atenção em cada um de seus passos.
— A partir de hoje você não é mais uma simples comunista, e sim um membro
do aparelho clandestino.
O melhor galanteio que alguém já tinha lhe feito. A partir de agora, Elizabeth
não poderia mais ir às reuniões do Partido e teria que abandonar os círculos
progressistas da cidade. Se encontrasse com algum companheiro, devia sustentar que
tinha rompido os laços com os comunistas. Seu único contato seria Timmy.
— Sei que não será fácil. Exceto por mim, agora estará completamente sozinha.
Seus antigos camaradas pensarão que você os traiu. Mas o Partido não lhe exigiria
este sacrifício se não fosse imprescindível.
Elizabeth se entregou devotamente à sua missão, chegava muito cedo à
Biblioteca, escapava para o escritório do diretor, bisbilhotava nas mesas e arquivos,
fazia anotações e tirava documentos que depois copiava em um caderno. A cada
quinze dias, se reunia com Timmy, sempre na hora do jantar, e fazia um relato de
seus feitos.
Depois de seis meses, o gnomo voltou a lhe propor um passeio de carro
noturno e pegou a Riverside Drive para o norte, sem parar e sem abrir a boca, até
Terrytown, a vários quilômetros de Manhattan. Embora os dois pressentissem o que
ia acontecer, gabavam-se de ser disciplinados militantes comunistas, não dois
pombinhos em uma escapada adolescente. O ocaso estendia uma urdidura de
nuvens sobre as montanhas e os flocos de neve se espalhavam sobre o para-brisa.
Timmy pegou a mão de Elizabeth e soltou uma frase tipicamente marxista-leninista:
“Eu te amo”. Depois desse arrebatamento de paixão revolucionária, esclareceu que
aquele não era um momento propício.
— Tudo seria mais simples se fôssemos dois simples militantes nos círculos do
Partido — queixou-se o gnomo. — Mas não somos camaradas, e sim agentes
clandestinos. Para nós as regras são muito rigorosas. Não podemos ter vidas
pessoais. Estamos proibidos de ter amigos e mais ainda de nos apaixonar. Segundo
os princípios comunistas, não podemos sentir o que sentimos. Eu vou te dar um
novo contato e em seguida desaparecerei da sua vida para sempre.
Elizabeth beijou Timmy até que o para-brisa se encheu de vapor.
— Ou talvez possamos manter nossa relação em segredo — propôs então
Timmy enquanto limpava o batom do pescoço.
O que pode ser mais excitante que ser espião e amante proibida de outro
espião? Timmy e ela continuaram marcando encontros em lugares públicos para
suas reuniões de trabalho e em lugares privados para seus prazeres duplamente
escondidos. Obcecado em torná-la sua discípula, o gnomo se aplicou em lhe ensinar
as mais sutis técnicas da espionagem. Nossa heroína sorri ao se lembrar das longas
noitadas em que ele a instruía sobre a codificação de mensagens, as táticas de seguir
alguém e de fuga ou as manobras para arrombar portas e gavetas com gazuas. Em
compensação, franze o cenho ao relembrar o dia em que descobriu por acaso que o
sobrenome de Timmy era na verdade Golos.
— Jacob Golos — gritou ele ao se ver descoberto.
Aplacada sua raiva, Yasha concordou em lhe contar sua história. Confessou-lhe
que era judeu e que tinha nascido na Ucrânia; que se filiou aos bolcheviques na
primeira hora e que aos vinte e cinco fugiu da Rússia, perseguido pelos fanáticos do
czar; que encontrou refúgio na América e retornou à União Soviética depois da
vitória da Revolução de Outubro; que voltou para os Estados Unidos em 1921 para
refundar o malfadado Partido Comunista; que trabalhou em Detroit e em Chicago
infiltrando-se nos sindicatos; que foi administrador da Sociedade Técnica de Ajuda
à Rússia Soviética, um disfarce para seus trabalhos de espionagem; e que atualmente
ocupava o terceiro escalão do Partido Comunista e atuava como diretor da Turistas
Mundiais, a companhia que tinha o monopólio das viagens à URSS e lhe servia de
cobertura. Por último, contou que há alguns meses era presa dos sabujos do FBI e do
maldito Comitê Dies, diante do qual se viu obrigado a depor. Essa era, pelo visto, a
causa de seus problemas de saúde. (Por outro lado, não revelou que seu sobrenome
não era Golos e sim Reizen, que tinha sido membro da Cheka, que morava com
outra amante na Washington Square e que tinha mulher e filha na Rússia.)
Quando terminou de ouvir o relato do amado, nossa heroína entendeu que seu
destino ficaria ligado ao do gnomo. E agora, enquanto se deixa envolver por seus
braços fortes e peludos, Elizabeth renova sua fidelidade a ele.
— Eu te amo, Yasha.
— Eu também te amo, Elizzzabettt — pigarreia Golos, e ambos se apertam um
contra o outro sob o halo turvo que atravessa as persianas.

ÁRIA DE WHITTAKER CHAMBERS

Diferentemente de Elizabeth Bentley, a carreira como espião e delator de


Whittaker Chambers nunca esteve ligada ao sexo, mas ao seu peso corporal.
Quando se filiou ao Partido Comunista era um robusto universitário que havia
torneado os músculos como carregador. Vinte anos mais tarde, já santificado pela
direita, mal conseguia se levantar da cadeira. Segundo Leah, sua transformação
ideológica era o perfeito correlato de sua metamorfose física.
1925. 155 libras (70 quilos)
— Onde posso encontrar um escritório do Partido Comunista? — Whittaker
franze o cenho. — Decidi me filiar.
Garlin Sender o olha quase com ternura. Sabe que há meses seu colega de
Columbia se dedica a devorar literatura comunista — os amigos fogem dele para
evitar seus sermões sobre The Soviets at work [Os sovietes trabalhando] —, mas o
imaginava menos ingênuo em termos políticos.
— O Partido Comunista não existe mais — revela Garlin. — No ano passado
foi declarado ilegal e seus membros se dispersaram por vários lugares. Alguns
criaram outro agrupamento, o Partido dos Trabalhadores da América, a única coisa
que me passa pela cabeça é colocar você em contato com eles.
Whit leu de cabo a rabo a enérgica pecinha de Lênin e sem muito esforço
poderia recitá-la de cor. Não acha que a leitura tenha sido uma revelação — sempre
deplorou a injustiça —, mas sim o estímulo que o fez se desiludir com a democracia.
Na Europa constatou as atrozes condições de vida de operários e camponeses, e
mesmo antes disso, durante os meses que passou escravizado na Engel & Hevenor
montando vias e dormentes, ele próprio foi vítima da exploração capitalista. Se em
algum momento se imaginou apolítico e tentou se consagrar às mais puras
variedades da poesia lírica, hoje sabe que a arte é apenas mais um instrumento de
controle social. Por isso abandonou Columbia: tinha imaginado que a prestigiosa
instituição seria um foco de revoluções, mas se revelou um hospício planejado para
mediocrizar os rebeldes, limar as asperezas dos críticos e formar os círculos que se
apropriariam do país. A fraternidade cristã a que aderiu em seguida, seguindo os
conselhos de Laha (sua invasiva mãe), tampouco lhe ofereceu um refúgio: a religião
não era o ópio do povo, mas sua tumba.
Furioso diante da passividade dos seus contemporâneos, Whit se refugia na
Biblioteca Pública de Nova York, um oásis onde se consagra a forjar suas bombas
literárias, mas nem uma única linha surge de sua pluma. Nosso herói folheia uma
revista, irritado diante da esterilidade de outra manhã, quando um sujeito baixo e
robusto, com um cachecol roxo enrolado no pescoço de touro, se aproxima
dissimuladamente dele.
— Você quer fazer parte?
Nosso herói fica na defensiva (repugna-lhe o hálito de café do intruso) e só
depois de um tempo entende a natureza do convite.
— Sim.
Sam o leva para fora do edifício e explica que o Partido aceitou recrutá-lo.
Whit o acompanha então a uma sala desmantelada no Lado Oeste, onde uma
pequena turba asfixiada em meio a volutas de fumaça discute em cinco idiomas que
diabos fazer com o planeta. O recém-chegado observa seus novos camaradas com
receio, decepcionado diante de sua pinta desajeitada e seus rios de melancolia.
Imaginou que integraria a guarda pretoriana da revolução, belos espíritos em corpos
ainda mais belos, e em vez disso vê esses esfarrapados.
Sam o acomoda entre dois sujeitos esverdeados e fracotes, talvez poloneses ou
tchecos, com enormes narizes semitas. Sobre o que estão falando nesse inglês de
sintaxe impossível? Sobre a luta de classes, o materialismo dialético, a ditadura do
proletariado? Incapaz de decifrar seus neologismos, Whit se joga em uma longa
argumentação sobre a decadência do Ocidente. Seus interlocutores viram a cara,
queixando-se em suas línguas orientais do seu inglês afetado.
Não passa um dia sem que Whit visite o lúgubre conciliábulo do Lado Oeste e,
ao mesmo tempo que exibe sua paixão pela retórica, ganha confiança nas incipientes
sutilezas do comunismo, em suas filias e suas fobias, seus dialetos, escolas e
variantes. Nas intervenções seguintes capricha em seus argumentos com uma
avalanche de citações marxista-leninistas. Aprovado seu período de experiência, em
17 de outubro de 1925 é batizado em uma discreta cerimônia na qual recebe seu
livro do Partido — seu número de filiação inscrito na capa —, carimbado e assinado
por Bert Miller, secretário de organização para o distrito de Nova York.
Transforma-se em pescador de almas.
1932. 175 libras (80 quilos)
— Instituições especiais?
— É uma demonstração de confiança — Bedacht o estimula com uma vozinha
aguda enquanto seu bigode grisalho salta e se encolhe. — Um prêmio.
— Mas qual é a tarefa clandestina? — Whit mostra os dentes estragados quase
com orgulho.
Em seus sete anos como militante comunista nunca ouviu falar dessas
instituições especiais. No máximo chegaram aos seus ouvidos rumores vagos, nunca
confirmados, de tarefas reservadas aos altos quadros do Partido, e agora Bedacht o
chama ao seu escritório do Centro dos Trabalhadores e não apenas confirma a
existência desse universo subterrâneo como o convida a se tornar um de seus
agentes. Enquanto fez parte dos quadros do Daily Worker e do The New Masses,
Whit nunca se acostumou às desconfianças, invejas e suspeitas que pareciam fazer
parte da natureza do Partido; finalmente sobreviveu à expulsão dos seguidores de
Lovestone, às acusações de ser trotskista disfarçado e às desqualificações por seus
textos literários, mas não se considera adequado para submeter-se à disciplina que
Bedacht lhe exige.
— Por que eu?
O antigo sapateiro explica que Moscou reconhece sua inteligência e valoriza
suas pretensões literárias, e explica que chegou a hora de demonstrar seu
compromisso. Deverá deixar seu posto como redator chefe no The New Masses,
esquecer seus artiguinhos e desaparecer no ar.
— Vamos espalhar o boato de que você foi expulso do Partido.
Whit finalmente terá oportunidade de fazer alguma coisa mais relevante que
inventar fábulas socialistas e desperdiçar seu talento em poemas e resenhas. Diante
do túmulo aberto de Richard, Whit prometeu declarar guerra ao capitalismo, um
sistema capaz de empurrar ao suicídio uma criatura doce e frágil como seu irmão,
mas seus textos não lhe parecem suficientes para cumprir a vingança. Só que não
pode aceitar de qualquer jeito, não tão rápido, não sem consultar Esther.
— Preciso pensar um pouco. — Suas bochechas ficam vermelhas como se fosse
um menino que precisa da aprovação da mãe para ir a uma festa.
Whit volta para casa com uma peônia e uns olhos lânguidos e enormes. Depois
de vê-lo mastigar uma coxa de frango por meia hora, Esther exige uma explicação.
Nosso herói para, titubeia de maneira infantil e estereotipada, como esta mulher é
diferente de suas esposas anteriores! Esposas. Assim era obrigado a chamar todas as
mulheres que precederam Esther, suas esposas comunistas. Gertrude foi a primeira,
uma viúva carnuda e desbocada; foi morar com ela por ordem do Partido e depois
convidou Bub Bang para morar com eles e, segundo os maledicentes, se revezar com
ela na cama. Com Ida, a segunda, que parecia feita de vidro, as coisas terminaram
quando ela engravidou e ele exigiu que abortasse. Nessa altura Whit já saía com
Esther. Com ela o acordo foi ainda mais ambíguo: em seu pequeno apartamento
conviviam com Mike e Grace Intrator, amigos próximos dos dois, o que não
demorou a incitar um novo falatório, que os quatro eram estranhos ou desviados,
que à noite se revezavam em todo tipo de posições. Apesar do seu jeito de menina
de rua, de seus casacos rançosos e desfiados, de suas meias úmidas e de suas unhas
escuras, Esther finalmente acabou se apaixonando por ele e exigiu um casamento
como Deus manda.
— Não!
Whit previa isso: comunista ou não comunista, Esther pensa agora em
babadores e bercinhos, em crianças correndo pelo jardim, no passeio com um
labrador no meio da tarde. O trabalho clandestino não é o melhor complemento
para uma família. Nosso herói queria expor a ela seus argumentos, falar de sua fé
revolucionária e da grandeza de seu destino, e não se atreve.
Whit volta a subir as escadas até o escritório de Bedacht no Centro dos
Trabalhadores. Rói as unhas, envergonhado de que sua mulher não tenha lhe dado
permissão para se unir ao aparelho clandestino.
— Sinto muito — Whit não levanta o olhar. — Você sabe como são as
mulheres: quando querem um filho, nada as detém.
O antigo alfaiate infla as bochechas, e seu bigode se eriça como uma escova.
— Tarde demais, Chambers, os arranjos já foram feitos. Você já não pode dar
para trás, entende?
Sim, entende. Whit avalia suas alternativas: dizer que sim e aguentar a irritação
de Esther ou dizer que não e ser castigado por Moscou. Definitivamente, más
notícias para quem aspira a ser pai de família.
— Vou falar com ela.
Bedacht aperta sua mão como se o cumprimentasse por seu casamento. Os dois
deixam o edifício e tomam o metrô até a rua 14, onde os espera John Sherman, um
de seus antigos colegas do Daily Worker, a quem Bedacht agora lhe apresenta como
Don. Nosso herói e seu contato caminham lado a lado diante das fábricas de
salsichas do bairro. Whit lhe formula uma bateria de perguntas, quer aproveitar essa
intimidade para se familiarizar com suas novas funções.
— Agora você é um clandestino — interrompe Don, detalhista. — Aqui eu
faço as perguntas e você responde. E você faz as perguntas e eu não respondo,
entendido?
Whit concorda.
— É melhor nos separarmos. — Don arregaça as mangas. — Nos vemos de
novo às seis em frente a esta mesma estação.
Nosso herói não resiste à tentação de comemorar o novo emprego com meia
garrafa de uísque; a imagem de Esther, furiosa e horripilante, sobrevoa sua cabeça.
Nessa tarde, ao lado de Don, tem sua primeira aula de espionagem. Os dois sobem
no metrô em vagões diferentes, descem na rua 110 e caminham para o norte em
calçadas opostas, margeiam a costa do East River e rodeiam o túmulo de Grant na
rua 123, onde um carro os pega. O motorista, a quem Don chama de Nick, um
homenzarrão de cabelo loiro e sotaque eslavo, conduz a conversa. Conhece o
expediente de Whit muito bem e o interroga sobre suas inclinações passadas, seu
vínculo com Lovestone, sua falta de disciplina e sua relação com os trotskistas.
— Talvez tenha cometido erros no passado — Whit morde o polegar —, mas
agora estou disposto a aceitar a linha do Partido.
Nick coloca sua mão sobre a grossa coxa do nosso herói.
— A partir de hoje, seu nome será Carl.
Eu sou Pedro e sobre esta pedra et cetera.
— Você deixará a redação do The New Masses e o Partido se ocupará de seus
gastos — indica Nick. — Don lhe entregará cem dólares todo mês. Se precisar de
mais, fale com ele. Obviamente, deverá comprovar todos os seus gastos.
Nick para em um beco, tira umas notas da carteira e as entrega ao nosso herói.
— Para que compre um terno decente.
Whit se despede desajeitadamente e se dirige rumo ao metrô: um enorme bebê
com seu bicho de pelúcia. Ao longo do caminho não lhe vem nenhuma fórmula
para explicar sua nova vida a Esther.
1935. 187 libras (85 quilos)
Pobre Hal, lamenta nosso herói. Hal Ware era, na sua opinião, o comunista
mais cuidadoso, ambicioso e incansável que poderia encontrar. Whit já estava havia
muitos anos atuando como correio — Verbindungsmensch, na língua franca dos
conspiradores de antigamente —, uma tarefa que não estava à altura de suas
expectativas, até que Hal o tornou responsável pela coordenação de um de seus
grupos mais ativos. Na verdade, lamenta não comparecer ao seu enterro, mas o
Partido ordenou a todos os agentes evitar qualquer ato público.
— Descanse em paz — murmura Whit (ou melhor, Carl).
Antes de Ware, o Partido era integrado por uma lamentável corte de
deserdados; graças aos seus esforços, em apenas dois anos seus tentáculos se
estenderam a uma dúzia de agências e organismos federais, incluindo o
Departamento de Agricultura, o Departamento de Justiça, o Departamento de
Estado e o Tesouro. Seus agentes deixaram de ser aqueles imigrantes de modos
camponeses e passaram a ser egressos da Ivy League e jovens de boas famílias. O
crash de 1929 foi o caldo de cultura para recrutar esses idealistas, a desigualdade e a
injustiça os dilacerava, e convencê-los a se unir à luta contra o imperialismo deixou
de ser uma tarefa absurda ou impossível.
Quando Carl retorna a New Hope, onde alugou uma casa para acomodar
Esther e a filha recém-nascida, fica sabendo que J. Peters decidiu dividir o círculo de
Ware em dois subgrupos e que ele continuará responsável pelos agentes de
Washington. Sua rotina se mantém, no entanto, inalterada. Todos os dias dirige
duas horas e meia de New Hope até Washington, onde se encontra com um de seus
contatos em um café, um cinema ou uma praça. Desliza os papéis que este lhe
entrega para um forro secreto de sua pasta e, depois de uma exaustiva série de dribles
e zigue-zagues, leva-os a uma casa segura em Baltimore. Mais uma hora de estrada.
Nosso herói fotografa os documentos com uma Leica e deixa os microfilmes
secando durante a noite. Dirige outras três horas até sua casa só para voltar a
Baltimore pela manhã para recuperar o material. Imediatamente empreende uma
nova viagem de duas horas a Nova York, onde ele mesmo o entrega a um russo
paranoico e irascível, de olhinhos como azeitonas.
Quebrado pela falta de sono, depois de alguns meses Carl acaba no hospital. A
espionagem, ele se convence, acabará matando-o. Graças a um empréstimo de Laha,
investe todas as economias em um sítio em Maryland, um pouco mais perto da
capital, e solicita uma redução de suas tarefas, argumentando que não apenas é
humanamente impossível como também estrategicamente perigoso concentrar
tantas responsabilidades em um único indivíduo.
— Imagina se me prendessem? O fluxo de informação poderia parar por
semanas.
A contragosto, o russo ordena que outro agente se encarregue de fotografar os
documentos, permitindo que nosso herói dedique mais tempo a ampliar sua rede, à
qual se incorporam — segundo seu posterior testemunho diante de um grande júri e
do Comitê de Atividades Antiamericanas — Silvermaster, White e vários de seus
colaboradores do Tesouro. Carl se transforma assim no eixo da maior trama de
espionagem jamais infiltrada em Washington.
1938. 200 libras (90 quilos)
— Nada mais?
Esta manhã de primavera quase não se distingue de outras: opaca, fria, sem
graça. Carl (ainda é Carl, pelo menos no que resta do dia) entrega a Felix os
documentos que acaba de compilar em Washington. Quando este acaba de
fotografá-los, devolve os originais aos donos.
Com uma exceção: desta vez Whit conserva os que considera mais relevantes
ou delicados, aqueles que poderiam ajudá-lo no futuro. E, em vez de dirigir rumo a
Nova York, onde o russo o espera com sua ansiedade habitual, Whit (de novo é
Whit) desvia para Maryland.
— Estão prontas?
Esther amarra o cinto na pequena Ellen e se senta no carro ao lado do marido.
— Então vamos.
Whit sempre suspeitou que o stalinismo fosse uma perversão ou um desvario,
mas o frenesi de suas tarefas secretas o fez fechar os olhos diante da demência do
tirano. A incessante perseguição de inimigos do povo — incluindo inúmeros
camaradas seus, como Bill e sua mulher —, as condenações ao exílio, as execuções
sumárias e as mortes misteriosas não lhe deixam dúvidas sobre a podridão que se
oculta sob a causa revolucionária. Ninguém em juízo perfeito poderia acreditar que
tantos e tão bons agentes fossem os parasitas capitalistas que depois confessaram
uma enxurrada de crimes horrendos. Esther o apoiou sem reservas, já está farta da
invisibilidade forçada, das mudanças, da insônia; farta de padecer a cotidiana
angústia de serem presos pelo FBI ou executados pelos russos.
Conforme seu sigiloso plano de fuga, Whit alugou um quarto na Old Court
Road, um conjunto residencial em Woodlawn, Maryland, e sua mulher se
encarregou de comprar um carro novo. Depois de deixar o russo plantado em Nova
York, a família Chambers empreende a longa viagem para o sul até Petersburg,
Virginia. No dia seguinte chegam a Sumter, na Carolina do Sul, e mais tarde a
Jacksonville. Finalmente alugam uma casinha em Daytona Beach e se trancam nela
durante duas semanas.
— Serão umas lindas férias — mente Whit à filha.
Aproveitando a reclusão forçada, termina uma tradução do alemão para a
imprensa universitária de Oxford, sua única remuneração prevista, e se prepara para
a parte mais brilhante do seu plano. Discretamente, os Chambers se lançam de volta
ao desmantelado quartinho da Old Court Road e uma semana depois alugam uma
casinha no 2610 da St. Paul Street, ao lado da Universidade Johns Hopkins. Um
golpe de astúcia! Embora a essa altura o russo — seu verdadeiro nome é Boris Bikov
e é o rezident do serviço de Inteligência Militar Soviética (GRU) nos Estados Unidos
— e seus capangas já tenham posto sua cabeça a prêmio, Whit e sua família
permanecem sãos e salvos no último lugar onde os russos pensariam em procurá-los.
Em Maryland, a poucas milhas de Washington e de seu passado como espião.
1948. 265 libras (120 quilos)
— E as crianças?
Na voz de Esther não há espaço para o sentimentalismo. Whit pega sua mão e
lhe dá um beijo.
— Devemos estar agradecidos por ter chegado tão longe em um ambiente de
paz e felicidade. — Nosso herói se deixa cair pesadamente em sua poltrona; depois
do enfarte do ano passado, já não resiste a mais de cinco minutos de pé.
Whit é obrigado a depor, não tem outro remédio.
Desde que a guerra terminou, não hesitou em se encontrar com uma infinidade
de investigadores do FBI e outros ramos do governo, concedeu intermináveis
entrevistas a repórteres e acadêmicos e se prestou a colaborar com senadores e
congressistas — e inclusive tolerou as insistentes ligações de McCarthy —, mas se
recusou a delatar seus amigos. Talvez sua saúde ruim tenha moderado sua
veemência; a única guerra que lhe importa, pensa, é contra o comunismo como
sistema de ideias, não contra seus seguidores. Não pretende que seus antigos
camaradas acabem na prisão, e é óbvio que ele tampouco quer acabar numa cela, só
que agora a realidade não lhe deixa alternativas.
Whit não sabe quem é essa loira misteriosa, “a rainha dos espiões vermelhos”
de que todos os meios falam, mas os nomes que a delatora pronunciou diante do
HUAC e diante da imprensa correspondem aos de muitos de seus antigos contatos, os
colaboradores de Ware e do aparelho clandestino de quem inúmeras vezes recebeu
documentos secretos para em seguida entregá-los aos russos. Com vários deles
compartilhou atividades sociais. Se o chamarem a depor terá que revelar tudo o que
sabe — bem, talvez não tudo.
Quando o telefone toca, Whit entende que sua sorte está lançada. O primeiro a
ligar é o correspondente do Times — o semanário em que ele mesmo trabalhou ao
longo dos últimos anos — no Congresso. Há alguns minutos, diz, o chefe de
investigadores do HUAC anunciou diante da imprensa que, a fim de confirmar as
acusações formuladas pela sra. Elizabeth Bentley contra distintos membros da
administração Roosevelt, expediu uma intimação para que uma nova testemunha, o
senhor, Chambers, deponha diante dos senadores e congressistas.
— No momento não tenho nada a declarar — responde nosso herói.
Primeira chamada, primeira.
Começa o circo.
Cena IV. Sobre como furar uma bolha erótica e a guerra dos
mundos

RECITATIVO

O que vou fazer com você? Embora Vikram ainda me tache de bárbaro e
condene meu mau gosto, desde esse dia odeio picante, curry de qualquer cor,
cúrcuma, cravo, canela, molho de tamarindo, molhos agridoces, sementes de
mostarda, folhas de limão kafir, cardamomos, macarrão de arroz, leite de coco,
coentro, todos esses refinamentos venerados igualmente por esnobes e novos ricos
na América. Meu mal-estar tampouco me levou a sentir falta dos plásticos
hambúrgueres ou das insondáveis salsichas americanas, sempre escondidas sob uma
capa vermelho-amarelada de origem imprecisa — Stephen e sua equipe, em
compensação, não saíam do McDonald’s —, mas meu estômago não aguentava
nem mais um prato de pad-thai, um novo rolinho de camarão ou outra salada de
mamão verde. Depois de oito dias me abarrotando com estes manjares por culpa
dos nossos anfitriões — destacados executivos com ternos de linho branco e gravatas
estampadas —, estava havia doze horas em uma dupla provação de vômito e
diarreia, submetido a doses cavalares de soro oral que me obrigavam a urinar a cada
suspiro.
Nunca entendi por que J.M. julgou imprescindível que eu comandasse essa
missão na Coreia do Sul, Malásia, Indonésia, Cingapura e Tailândia. Fazia semanas
que as moedas dessas nações despencavam, mais doentes que eu, sem que houvesse
remédio conhecido, já não para frear o desarranjo, mas para aliviar as náuseas de que
o Long-Term padecia por sua culpa. Como sempre acontece com as bolhas —
sempre é sempre —, tão parecidas com os cravos e as espinhas, crescem e incham até
que um belo dia o pus explode no meio da cara. Durante meses os bancos centrais
dos Tigres Asiáticos tinham mantido taxas de juros em níveis irresistíveis para os
investidores estrangeiros (o epíteto que nós, os chacais, preferimos), provocando um
azeitado fluxo de capitais para suas economias. Como era previsível, essa repentina
abundância fertilizou seus índices de crescimento e aprofundou a especulação com
suas divisas — para não mencionar os milhões exauridos por reguladores e
politiqueiros —, até que os fios se superaqueceram e a armação explodiu como um
desses fogos de artifício que tanto espantam os nativos sem que restasse aos líderes
outra saída senão chamar em seu auxílio os bombeiros do FMI. (Bombeiros que, me
desculpem por dizer isso, estão mais para piromaníacos.)
Enfim, não é minha intenção fatigá-los, impacientes leitores, com uma lição
sobre como as economias emergentes funcionam (ou deixam de funcionar). Basta
dizer que o LTCM tinha apostado milhões no baht e em outras moedas
impronunciáveis porque os modelos desenvolvidos pelos discípulos de Merton e
Scholes garantiram que a possibilidade de uma desvalorização era impensável —
impensável não: quase nula —, e J.M. me mandou empreender uma viagem de
Norte a Sul por essas “paradisíacas comarcas” a fim de averiguar por que afinal
nossas infalíveis fórmulas se equivocaram. Em poucas palavras: Vikram, Stephen e
eu deveríamos averiguar por que o alardeado Milagre Econômico Asiático fazia
tanta água quanto minha barriga.
Desanimado diante da minha incapacidade de me concentrar em outra coisa a
não ser em minhas necessidades físicas, traguei um vidro de antidiarreicos e,
acompanhado pelos meus subordinados — no início resistentes a esse tipo de
incursão —, iniciei minha peculiar exploração dos mercados orientais.
O que posso dizer exceto que as ruas de Bangcoc eram um paraíso para os
defensores do laissez-faire? O Estado, se existia, não intervinha nessa área do
mercado. Como se fosse o sonho completo da minha adorada Ayn Rand, ali os
empresários criativos triunfavam sem que a voz dos fracos perturbasse suas
conquistas. Os mais espertos se tornavam donos de bares, casas de jogo clandestinas
e clubes de prostituição; uns e outros competiam entre si sem que nenhuma
inconveniente autoridade freasse seu vigor capitalista. Quem recrutasse as garotinhas
ou garotinhos mais bonitos, mais infantis ou mais doces tinha tudo a ganhar: mais
clientes e mais investimento estrangeiro para o seu negócio.
Ao longo desses deliciosos dias mergulhei em uma pesquisa de mercado que
vomitou resultados nada surpreendentes: a proliferação de turistas e exploradores
dos mais longínquos cantos do planeta, com seus maços de dinheiro vivo — e
hormônios a toda — não tinha provocado uma alta significativa no preço dos
serviços prestados pelos trabalhadores do sexo, mas sim o aumento no número de
bordéis e prostíbulos, que logo colonizaram os pitorescos bairros adjacentes à zona
vermelha. Todo tailandês com um mínimo de inteligência se convenceu de que
essas microempresas eram o caminho mais direto para a riqueza, e milhares desses
visionários pediram emprestadas enormes somas de dinheiro (em geral a mafiosos e
estelionatários da pior categoria) a fim de construir mais desses templos de prazer.
Uma típica bolha. Uma bolha que, como todas as bolhas, ninguém quis ver.
“Achávamos que os clientes chegariam infinitamente”, confessou-me o aflito
dono do Clube Três Dragões em um inglês tosco, “não havia motivos para prever
uma repentina diminuição no número de visitantes estrangeiros.” É óbvio que não.
Tratava-se não apenas do mais antigo negócio do mundo, como também do mais
seguro e eficiente, ou pelo menos era o que aqueles capitalistas tropicais repetiam:
“Os europeus e os americanos podem se privar de qualquer coisa, menos de uma
xoxota”. E aqueles gênios das finanças lúbricas poderiam ter tido razão se não fosse
porque sua pequena bolha estava contida em outra maior, a bolha econômica
tailandesa, que por sua vez era parte da gigantesca bolha asiática.
Um belo dia, sem prévio aviso, os clientes escassearam. Primeiro lentamente e
depois de forma acelerada, as hordas de gordos turistas alemães, franceses ou
japoneses deixaram de descer de seus iates, aviões e limusines com suas bermudas
floridas, câmeras digitais e paus duros (e seus marcos, ienes, libras ou dólares),
provocando uma desoladora contração no mercado. E os milhares de espertinhos
que tinham solicitado empréstimos a mafiosos e estelionatários, certos de que
rapidamente nadariam em dinheiro e pagariam suas dívidas com juros? Alguns
acabaram no fundo da baía, com pesos amarrados aos tornozelos; outros se
transformaram em escravos dos agiotas; e outros ainda se refugiaram nos pântanos
do interior.
— Acham possível tirar uma moral deste relato de sexo e avareza? — perguntei
a Stephen e Vikram ao término do nosso périplo.
O indiano deu de ombros. O americano nem sequer se virou para me olhar.
— A lição não reside em moderar os impulsos, em não se deixar cegar pela
demência coletiva ou em evitar os mafiosos — instruí-os. — As bolhas sempre
estiveram e sempre estarão aí, multiplicando-se em um lugar ou em outro. O que
devemos fazer é tentar fugir delas no último segundo.
— Que lucidez! — zombou Stephen.
Aquela bolha erótica, tão parecida com a bolha econômica que a envolvia, se
transformou aos meus olhos no precedente das que continuariam agitando e
estimulando a economia do planeta nos quinquênios sucessivos (sobre a maior delas,
a imobiliária de 2001-2007, falarei mais adiante). Como informei a J.M. na minha
volta, o erro do LTCM tinha sido o mesmo daqueles rústicos donos de bordel.
Tínhamos detectado a bolha a tempo e tínhamos ganhado quantias exorbitantes
com ela, mas nossos galácticos teoremas não nos haviam prevenido sobre quando
abandoná-la.

DUETO

— Um genial, o outro apenas brilhante; um ousado e engenhoso, o outro


idealista e severo; um exuberante, o outro desconfiado; um aristocrático e
apaixonado pelas artes, o outro plebeu e afeito aos esportes de raquete — Leah
pintava seus personagens como se fizessem parte de sua família. — Se as diferenças
de temperamento entre Keynes e White eram imensas (apenas os unia o altíssimo
conceito que cada um tinha de si próprio), seus planos para o pós-guerra não
podiam ser mais divergentes.
Leah tirou os sapatos e se estirou no sofá como se estivesse em sua casa, dando
golinhos no chá de menta que ela mesma tinha preparado. Aos seus pés, Salinger
roncava estrondosamente como se quisesse me deixar clara sua presença na minha
sala.
— Keynes se refugiou em Tilton em setembro de 1941, pouco depois de ser
nomeado membro da corte do Banco da Inglaterra, para refletir sobre o destino
econômico do planeta — Leah resumia para mim o capítulo 4 de sua tese. — O
velho estava havia meses ruminando o assunto: quais são as falhas do padrão-ouro,
que problemas a Inglaterra enfrentará depois da vitória? Mas só na tranquilidade do
campo encontrou seu esquema ideal.
Um tanto indiferente à sua aula de história econômica, voltei a observar minha
companheira, certo de que era um ser de outro planeta. A testa ampla, coberta por
uma franja que a fazia parecer ainda mais infantil, dava lugar a uns olhinhos
espertos, encerrados em maçãs do rosto severas, a única parte do seu rosto que
mitigava a doçura de sua expressão. Ser uma dessas pessoas cheias de ideias sobre
como viver eticamente que não abundam no meio financeiro talvez fosse o que mais
me atraía nela. Nada estranho, pois, que na briga entre White e Keynes ela
escolhesse sem hesitar o lado do segundo.
— O principal objetivo da União Internacional de Compensação de Keynes
consistia em garantir o ajuste das nações credoras sem renunciar à disciplina das
devedoras — continuou, indiferente às minhas reflexões. — Segundo o projeto do
britânico, as transações internacionais deveriam ser negociadas por meio de contas
de compensação que os bancos centrais possuiriam em um novo Banco
Internacional de Compensações. Os bancos centrais poderiam comprar e vender
suas próprias moedas contra créditos e dívidas de suas contas, e os balanços se
expressariam em uma nova unidade de medida, o bancor.
Sair para comer com ela era uma experiência que oscilava entre a exploração
botânica e o dogma religioso. Sua compaixão pelo gênero humano se estendia ao
gado e aos porcos que eram marcados e depois degolados em sinistros complexos
industriais. Se não me convencia de ir a uns dos restaurantes que serviam sua
comida extraterrestre — falsos hambúrgueres e falsas coxas de frango feitas de ração,
grãos ou alfafa —, me cabia vê-la desconstruir os menus até inventar pratos
suficientemente puros para deslizar pelo seu trato digestivo.
— Cada banco central teria direito a uma quantidade idêntica de bancors na
metade do valor médio do seu comércio total nos últimos cinco anos — Leah
prosseguia com as explicações sem reparar nos meus bocejos —, e cada moeda
nacional possuiria uma taxa fixa, mas adaptável, de conversão à nova moeda. O
mecanismo permitiria manter um equilíbrio na balança de pagamentos entre os
países-membros. Os depósitos no banco seriam criados a partir de excedentes ou
déficits e se extinguiriam com sua liquidação. E, no giro mais elegante do plano
keynesiano, se no final do ano todos os países conseguissem um equilíbrio perfeito,
a balança de bancors se expressaria com um zero. Além disso, Keynes imaginou uma
polícia supranacional e uma instituição para a reconstrução e o desenvolvimento.
Infelizmente, este belo projeto nunca chegou a se realizar, boicotado por White.
— E assim dançamos! — zombei.
Eu adorava ouvi-la assim, com aquela veemência irrefreável que me resultava
tão surpreendente e tão alheia. Contra todas as previsões (e apesar da intromissão do
odioso Salinger), começávamos a formar isso que se costuma chamar, com extrema
pieguice, de um bom casal.
— Diferentemente de Keynes, White propôs a criação de duas instituições
paralelas, um Banco e um Fundo de Estabilização Interaliado — molhou o dedo
para virar as páginas da tese. — Mais realismo e menos utopia. Para começar, seu
plano não contemplava uma nova unidade bancária e propunha que o Fundo se
constituísse com assinaturas em ouro, moedas locais e instrumentos financeiros dos
países-membros, divididas segundo cotas proporcionais (que em boa medida seriam
decididas por ele próprio). Os recursos do Fundo ficariam à disposição dos países-
membros com problemas na balança de pagamentos. Em contrapartida, estes teriam
que ceder um pouco de sua soberania financeira e se submeter à supervisão do
Fundo. O Banco de Reconstrução e Desenvolvimento (o Banco Mundial) colocaria
os volumes de capital necessários para ressarcir os estragos da guerra mediante
empréstimos a longo prazo com baixas taxas de juros.
— Se estou entendendo bem — tentei ficar sério —, o plano de Keynes era
mais ambicioso e inovador que o de White, mas neste ficava claro que os Estados
Unidos imporiam suas decisões frente a uma potência de segunda ordem como a
Grã-Bretanha.
Leah esboçou um sorriso que me permitiu apreciar mais uma vez suas ternas
presas de vampiro.
— Se White era um espião comunista — concluiu finalmente —, devia fazer
parte de um tipo muito particular, mais interessado em garantir a supremacia dos
Estados Unidos no planeta do que em expandir as ideias de Marx.
Sua conclusão não conseguiu me tranquilizar, mas o grande relógio que
dominava a sala marcou meio-dia. Salinger acordou de sua letargia e Leah o pegou
no colo como se fosse um bicho de pelúcia. Era hora de suspender nossa conversa e
sair em busca de suas cenouras e nabos.

CORO DOS FILHOS MAL-AGRADECIDOS

Diante das atrocidades que nossos pais nos infligem — a primeira: nos arrancar
do nada para nos abandonar neste lodaçal — só restam dois caminhos: nos
distinguir deles de todas as maneiras possíveis, inclusive ao preço de frustrar nossos
talentos (como Isaac), ou exacerbar suas burradas e erros, convencidos de que sua
aprovação será a única medida do nosso mérito (como Susan). Eis aqui a pobre
dimensão do nosso livre-arbítrio, decapitar o Velho e nos dilacerar com cada golpe
do machado, ou imitá-lo e ficar reduzidos à condição de papagaios ou micos sem
vontade. Pode acontecer que alguém ache que está se opondo ao Pai e acabe
transformado em seu reflexo (como Isaac), ou que procure a bênção dele só para
liquidá-lo por vias mais truculentas (como Susan).
Embora Rachel tenha obrigado meus dois filhos, desde os doze ou treze anos, a
se humilhar diante de uma longa lista de terapeutas de seitas antagônicas — de
freudianos agressivos a mortiços lacanianos, sem esquecer dois delirantes seguidores
de Carl Gustav Jung —, a prova de que a terapia não passa de um sofisticado e
inútil jogo de salão é que nem Susan nem Isaac perceberam que, à força de se
atormentar a cada minuto por causa de sua conflituosa relação comigo,
transformaram sua relação comigo no centro de suas vidas. Pobre Rachel! Milhares e
milhares de dólares dilapidados para que, depois de vários quinquênios de
interpretar sonhos banais e balbuciar terríveis confissões, nenhum deles fosse capaz
de se manter sozinho. Infinitas horas desperdiçadas para concluir que eu sou o
culpado dos seus medos e fracassos sem que essa revelação lhes servisse para nada (e
ainda acusam os amos de Wall Street de defraudar milhares de inocentes!).
Obcecado em evitar meu exemplo a qualquer custo, Isaac se esmerou em obter
a medalha de pai perfeito, o que em seus termos significava tanto se meter em todos
os assuntos dos seus descendentes quanto consentir até o mais absurdo dos seus
caprichos. Não me cabe dúvida de que Tweedledee e Tweedledum — Dave e Joe
— se transformaram nessas abúlicas bolas de gordura porque, decidido a não ferir
sua sensibilidade, Isaac se recusava a lhes proibir as guloseimas e Coca-Colas que
deglutiam em quantidades industriais. “Os meninos não são imbecis nem
deficientes”, proclamava meu filho repetindo as teses de Kate, “os meninos são
pessoinhas.” E, apoiado nesta hipótese, tentou argumentar com eles desde que
tinham três anos. Sem entender que as crianças não passam de máquinas de desejos
— egoístas consumados —, tentava convencê-los a fazer isso ou não fazer aquilo
com argumentos que os pequenos pulverizavam com uivos ou birras. Frustrado o
diálogo, Isaac e a mulher se resignavam a satisfazer até os mais loucos pedidos que
exigiam, muito bojudos, os dois gordos. Graças a essa tática, estes não apenas
acumularam toneladas de gordura como também prodigiosas coleções de
brinquedos — uma de robôs, outra de dinossauros — que faziam eco às minhas
coleções de gibis e de discos. Mais adiante chegaram os video games e com eles a
dissolução da enternecedora vida familiar de que Isaac tanto se vangloriava.
Quando Leah e eu os visitávamos, Tweedledee e Tweedledum mal tiravam os
narizes do quarto, onde combatiam contra dragões e alienígenas ou acompanhavam
os incansáveis saltinhos de Luigi e Mario, seus únicos amigos verdadeiros. Vista à
distância, a ausência era bem-vinda, pois quando os idiotas deixavam o console,
começavam a se chutar as nádegas até que um acabasse choramingando no chão.
Em vez de castigá-los — nunca! —, os pais tentavam argumentar com eles e, com
paciência de detetive, investigavam quem tinha começado as agressões. Em vão!
Nessa altura Tweedledee e Tweedledum tinham deixado de responder ao
interrogatório e reiniciado seus tapas e bofetadas ou se escarrapachado na frente da
televisão (sua única fonte de prazer), indiferentes às inquirições do pai. Pobre Isaac!
Esforçando-se para fugir da minha indiferença só tinha conseguido criar seres tão
patéticos, mal-humorados e solitários quanto ele próprio.
O caso de Susan com as gêmeas era ainda mais preocupante, pois seu
temperamento arisco e a debilidade de seus nervos — no século passado sem dúvida
teria sido diagnosticada como histérica — nunca a prepararam para os desafios da
maternidade. Minha filha tratava Audrey e Sarah como se fossem duas inquilinas
que se instalaram em sua casa contra a sua vontade. Duas invasoras. Diferentemente
de Isaac, ela nunca as teria qualificado de pessoinhas e as contemplava com essa
mistura de ansiedade e confusão que as pessoas reservam aos anfíbios. Um pouco
mais crescidinhas, as gêmeas (loiras, pálidas, sinistramente idênticas) perambulavam
de um cômodo a outro nas pontas dos pés, ocupadas em brincadeiras cujas regras
Susan não se atrevia a esclarecer. Afetadas talvez por uma forma leve de autismo, e
estimuladas pela pasmosa cumplicidade dos monozigóticos, Audrey e Sarah se
bastavam a si mesmas e fugiam da mãe como de um monstro. Enquanto reservavam
todos os seus carinhos e bajulações para Terry, procuravam não se aproximar da
mãe, que tampouco fazia grandes esforços para atrair sua atenção, como se tivessem
vidas separadas que só se encontravam quando Terry organizava passeios ou sessões
de cinema aos domingos.
Quando elas fizeram sete ou oito anos, Susan começou a ver as gêmeas não
apenas com prevenção, mas também com algo próximo do medo. As pequenas
nunca fizeram nada terrível — suas travessuras jamais roçaram as de seus obesos
primos —, mas seu comportamento irrepreensível, seus risinhos em staccato, suas
brincadeiras arrevesadas e suas idas e vindas sigilosas convenceram a mãe de que
havia algo estranho nelas, algo detestável e inapreensível, e não lhe ocorreu melhor
ideia do que matriculá-las em dezenas de atividades extraescolares para afastá-las do
seu lado a maior parte do dia. Contra sua vontade, Audrey e Sarah se viram
obrigadas a comparecer a oficinas de costura e cursos de matemática, aulas de piano
e desenho e, o mais desagradável para duas garotas ajuizadas como elas, longos
treinos de futebol e lacrosse. Como se essa fosse a única forma de aliviar suas culpas,
Susan as arrastava de um lado a outro da cidade sem levar em consideração suas
queixas, seus nulos progressos aritméticos ou artísticos ou os hematomas que
exibiam nos braços e pernas no final dos campeonatos.
Ao contrário de Tweedledee e Tweedledum, as gêmeas nunca me pareceram
antipáticas, mas francamente interessantes. Certamente estavam longe de ser
encantadoras — Sarah só respondia com monossílabos e Audrey só parou de urinar
na cama aos onze —, mas possuíam uma calada inteligência que transparecia em
comentários irônicos e piadas de duplo sentido impróprios de sua idade. Impossível
deduzir se no fundo eram más, como Susan chegou a me confessar com horror, mas
sem dúvida possuíam uma tendência mais perceptível do que outras garotas a
criticar e ferir as criaturas de seu sexo. Incapaz de fazer frente às suas brincadeiras e
risinhos, Susan desistiu delas. Permitiu que o chofer as levasse às suas tristes aulas
vespertinas e que o pai fosse o único interessado em suas conquistas escolares,
enquanto ela só voltava para casa na hora do jantar. Terry, que nunca foi um
luminar, atribuiu as ausências cada vez mais prolongadas da esposa à péssima relação
que mantinha com as filhas, mas na verdade Susan tinha encontrado um sucedâneo
para o amor filial em outro lugar.
— Sinto muito, pai.
Nos olhos oliva da minha filha vibrava um tecido aquoso, mas as lágrimas
ainda não chegavam a escorrer pelo rosto. Tinha me chamado ao café da Morgan
Library e parecia mais nervosa do que de costume. Pisoteava sem parar e mordia as
pontas do cabelo com uma insistência que pressagiava um ataque de ansiedade.
Depois de trocar as habituais perguntas familiares, se fechou em um de seus
obstinados silêncios que eu não me atrevi a romper. O cappuccino esfriava diante
dela sem que tivesse dado nem um gole.
— Eu o amo — me confessou finalmente.
Era pior do que eu pensava. Susan não se conformara com enganar o marido,
algo previsível e até louvável dadas as escassas virtudes de Terry, mas tinha recorrido
uma e outra vez ao mesmo sujeito até acabar estupidamente apaixonada pelo
cretino. Como lhe explicar que a luxúria nunca precisa se misturar com o amor?
Será que não havia aprendido nada do pai? Eu teria aplaudido que colocasse chifres
em Terry, mas sem comprometer sua estabilidade ou arriscar seus sentimentos.
— Não posso fazer nada, pai — gemeu. — Eu o amo.
Sua expressão me lembrou dos seus caprichos infantis, as pupilas dilatadas, os
lábios entreabertos, a covinha no queixo. Como não lhe dar aquele enorme panda
de pelúcia, como não deixá-la viajar a Madri com as amigas, como não comprar a
BMW depois de sua formatura e como não manter seu escandaloso estilo de vida?
Mas isso era diferente.
— Então só lhe peço que se cuide — resignei-me.
Susan inclinou a cabeça, desconcertada, como se eu falasse com ela em uma
língua estrangeira, e voltou a mordiscar o cabelo.
— Ele é casado — sussurrou.
— Como?
— Milton.
Milton?
— E você o ama… — não contive a ironia.
Era terrível constatar os estragos que uma ideia estúpida (o amor) podia fazer
em um espírito débil como o da minha filha.
— E ele me ama — replicou, toda séria.
Não conseguia acreditar. Não queria acreditar.
— Bobagem — enervei-me. — Se amasse, estaria com você.
— Não quer se divorciar por causa dos filhos…
Dei um tapa na mesa.
— A única coisa que o Milton quer é transar com você. E você com ele —
exclamei. — E tudo isso estaria muito bem se você não andasse com histórias. Você
não deve deixar que uma ilusão de apaixonamento que não combina com sua idade
a cegue assim.
Relembrar esse episódio ainda me embrulha o estômago. Como Susan, uma
mulher inteligente ou pelo menos com um QI mais alto que a média, podia ser
vítima de um clichê tão vulgar? Seria verdade o palavrório sobre a inteligência
emocional? Neste quesito, ela deveria figurar entre os retardados.
— Não sei por que decidi lhe contar isso.
— Nem eu.
— Vou embora.
— Vá, vá com o seu Milton — gritei. — Se é que neste instante não está com a
mulher.
Alçando sua Louis Vuitton como se desse um passo de dança, Susan deslizou
vaporosamente para a saída. Obstinada a vida inteira em me agradar, finalmente
tinha me apunhalado pelas costas.

CONCERTANTE

Bem que eu gostaria de lhes dizer, pacientes leitores, que aconteceu durante um
acesso de loucura, um arrebatamento repentino ou uma incomum concessão ao
romantismo, mas vocês sabem que esse nunca foi meu estilo. Eu estava planejando
cuidadosamente havia meses, mais uma das decisões que alguém que aspira a um
lugar privilegiado na elite da Grande Maçã Podre precisa tomar. Da mesma maneira
que um investidor é obrigado a adquirir algumas ações cuja sorte imagina
promissora embora deteste o ramo ou as políticas da empresa que as emite, eu devia
dar esse passo para blindar minha imagem diante dos meus filhos e sócios e da
esfinge vulgar e insaciável que chamamos alta sociedade. Talvez Leah não tivesse
sido minha primeira escolha em outras circunstâncias — se não fosse pelas pesquisas
em torno do passado do meu pai dificilmente teríamos nos conhecido —, mas a essa
altura eu não estava disposto a perseguir um rosto mais bonito ou uma fortuna mais
suculenta. Apesar dos seus bons sentimentos, das suas convicções democratas, do seu
vegetarianismo militante e da sua chata fascinação pelos animais, a jovem
historiadora era ideal para os meus propósitos, uma mulher mais bonita e inteligente
que a média e que, fora sua obsessão por aumentar minhas doações filantrópicas,
não se metia nos meus negócios e se contentava em compartilhar apenas uma parte
marginal da minha vida cotidiana.
Muito consciente da nossa mútua aversão à breguice, num sábado a convidei
para jantar e, sem anéis nem declarações pomposas, lhe disse que o casamento seria
uma boa ideia para os dois. Vestida com mais solenidade do que de costume — com
certeza desconfiava de alguma coisa —, Leah abriu um sorriso que quase chegou a
me desconcertar, elevou sua taça e, quase gaguejando, me respondeu que sim, que
seria maravilhoso, que só me pedia que fosse uma cerimônia mais ou menos íntima
e não uma daquelas bacanais que os milionários costumam fazer. Prometi fazer o
possível para satisfazer suas exigências — na verdade, já tinha reservado um salão do
Plaza — e brindei com ela pela nossa felicidade futura. Nada de lágrimas, nada de
arrebatamentos: uma transação feliz, sem contratempos.
O único inconveniente? Allan, é claro.
Não sabia como lhe contar. Como explicar. Para um jovem da geração dele
(nascido em 1968), formado fora dos preconceitos da minha época, minha decisão
não só pareceria absurda, mas também triste e ridícula. Que necessidade de fingir e
esconder meus verdadeiros desejos? Infelizmente, meu mundo e seu mundo não
eram equivalentes. Provavelmente na sua condição de médico nova-iorquino ele
pudesse gozar de certa liberdade, mas eu não podia me dar ao luxo de ser afastado
desta parte odiosa da sociedade cujo apoio seria crucial para o meu futuro
econômico. Além disso, por um escrúpulo que hoje soa infantil, eu ainda não estava
disposto a me revelar diante dos meus filhos. Como eu disse, queria tudo ao mesmo
tempo. Allan e Leah.

Leah Levitt.

Durante os exaustivos preparativos para o casamento, preferi não dizer nada ao


meu amigo. Que razão havia para ensombrecer prematuramente nossas noitadas?
Continuei visitando sua casa duas ou três vezes por semana, me prometendo toda
vez que seria a última em que guardaria silêncio, só para calar de novo todas as
vezes. Na véspera do enlace com Leah — os convites tinham circulado entre
centenas de convidados — vi que não tinha alternativa e apareci em seu veleiro
perto das nove da noite. Allan tinha preparado um sole meunière e tínhamos previsto
ouvir a nova gravação de Turandot com Birgit Nilsson. Depois do sexo e do jantar
houve mais sexo e em seguida um silêncio imensurável. De repente Allan se
levantou da cama, se envolveu em um roupão granada e ficou parado na minha
frente, bonito e ameaçador.
— Os enigmas são três, a morte é um deles — exclamou.
— Como?
— A gente engana a si mesmo, nunca aos outros.
— Sinto muito de verdade — balbuciei.
— Você engana quem mais ama porque acha que quem te ama deve te
perdoar.
— Sinto muito, Allan. Eu ia te contar...
— Seu erro é maior porque nem sequer se dá conta de que é um erro — e me
apontou a porta.
— Sou um idiota, me perdoe.
— Agora sei o seu nome — rematou enquanto eu me vestia desajeitadamente.
Voltei a distinguir sua tez morena e seu cabelo prematuramente grisalho em
vários espetáculos do Met, mas nunca mais se dignou a falar comigo.
Cena V. Sobre como reconhecer dentes ruins e como encurralar
um espião com uma abóbora

RECITATIVO

Incrustadas na pele fofa do seu rosto, as olheiras o fazem parecer um campeão


de boxe castigado pelo desafiante; a pança ameaça expulsar o botão que a comprime,
enquanto os suspensórios, que com muita dificuldade seguram as calças, vibram
como cordas de violino. Para completar, quando Whit, sozinho, conseguiu se
levantar, por volta das sete, tropeçando na cômoda e no guarda-roupa — não
pregou o olho até o amanhecer — e se arrastou até o banheiro do seu amigo
McNaughton, um barbeado trêmulo lhe fatiou o queixo (a papada, diria eu) e
deixou amplas sombras pardas na nuca e nas bochechas. Sua pinta não inspira a
menor confiança, em vez de parecer um cidadão exemplar, um editor respeitável ou
um pecador arrependido, seus interrogadores verão um palhaço obeso ou um
orangotango sem forças.
É que sentado ali, diante do investigador chefe do Comitê de Atividades
Antiamericanas, Whit não se vê como o implacável açoite do comunismo que
publicava seus artigos no Times, nem como a reivindicativa consciência da América
evangélica, e nem sequer como um espião aposentado, mas como uma triste peça de
caça, um troféu exibido para galhofa da imprensa que lota a escadaria do Antigo
Prédio de Escritórios do Congresso.
Seu nervosismo, reconhece, não deriva apenas da severa prova a que terá que se
submeter, que determinará sua fama pública e sua passagem à história — embora
isso, segundo ele, não o interesse —, mas também das ameaças que voltarão a cair
sobre sua família quando revelar os nomes dos seus contatos e intermediários. Por
isso, assim que chegou ao apartamento de McNaughton, se jogou no chão em busca
de microfones e exigiu do anfitrião que fechasse as cortinas, trancasse as janelas e a
porta. Só então conseguiu se sentar para escrever a declaração que lerá nesta manhã,
embora depois não tenha sido capaz de pegar no sono nem sequer quando
McNaughton, farto de sua paranoia, colocou seu calibre 45 na mesinha de cabeceira
e garantiu que o usaria contra qualquer intruso.
Trêmulo, Whit entra na sala 226, onde será realizada a primeira sessão da
manhã, executiva e secreta, sem acesso ao público.
— O sr. Chambers traz consigo uma declaração que gostaria de ler antes de
começar o procedimento — esclarece McNaughton a Robert Stripling, o
investigador chefe do Comitê.
O musculoso Strip (assim gosta que o chamem) ajeita o topete e folheia os
papéis que Chambers lhe entrega.
— Isto é o que o senhor quer declarar?
Strip nem sequer lhe dá chance de responder e o leva para outra sala, onde uma
multidão de congressistas, senadores, secretárias, assistentes e taquígrafos os aguarda.
Depois de dar uma primeira olhada nos seus inquisidores, Whit pouco a pouco
recupera o controle e aloja sua enorme bunda na madeira do banco.
— O senhor é David Whittaker Chambers e jura dizer toda a verdade e nada
mais que a verdade? — Strip lhe estende a Bíblia.
— Juro. — A capa fica impregnada de suor. — E agora posso ler minha
declaração?
— Uma cópia já consta no expediente — Strip desliza um floreio com os dedos
—, se insiste poderá lê-la mais tarde.
O investigador chefe examina suas fichas, displicente.
— Diga, sr. Chambers, durante o tempo em que foi membro do Partido
Comunista, estava a par do círculo de espiões que então funcionava em
Washington?
Whit reage como costumava fazer quando era espião e mente como um
velhaco.
— Não, não estava.
— Não?
— Quero dizer que estava consciente da possibilidade de que uma parte do
aparelho clandestino pudesse ser desviada para tarefas de espionagem.
— Esclareça, sr. Chambers, sabia ou não sabia que o aparelho tinha sido criado
com fins de espionagem?
— Diria que sim, que esse era um de seus propósitos.
— E quem montou o aparelho?
— Não estávamos nos referindo a um aparelho hipotético?
— Quem era o chefe desse aparelho em Washington? — agora é John Rankin,
democrata do Mississippi, quem o encurrala.
— Estou tentando entender de que aparelho estamos falando — Whit insiste
em sua tática evasiva.
— Responda à pergunta.
— Só estou em condições de falar do grupo a que pertenci. Foi criado por
Harold Ware em 1938 ou 1939. Seu objetivo era colocar comunistas em postos-
chave do governo de onde pudessem influir na tomada de decisões ou fazer
mudanças de pessoal, ou, se julgassem conveniente, talvez realizar tarefas de
espionagem.
— Então admite que seu grupo tinha, sim, o propósito de realizar tarefas de
espionagem…
— Mas não desde o início.
A quem Chambers quer enganar? Prestou-se voluntariamente a este jogo, mas
agora faz trapaças; está decidido a acusar seus camaradas, mas não de maneira
frontal; pretende revelar suas conexões clandestinas, mas sem reconhecer totalmente
sua participação. Um equilíbrio muito instável. Para ganhar tempo, se lança em
uma intrincada divagação sobre a natureza teórica dos aparelhos clandestinos.
Irritados, Strip e os membros do Comitê exigem nomes, nomes e mais nomes.
— O cabeça do grupo era Nathan Witt, um advogado que trabalhava no
Conselho de Relações Trabalhistas. Entre os líderes também figuravam John Abt,
Lee Pressman e Victor Perlo. E Alger Hiss e seu irmão Donald. E Charles Kramer,
cujo verdadeiro nome era Krevitsky, acho. E Henry Collins.
Os membros do HUAC inclinam as cabeças em uníssono, como em um musical
da Broadway, mas na verdade já teriam ouvido todos estes nomes, dias atrás, da
boca de Elizabeth Bentley.
— Conhece Harry Dexter White? — Strip tira um ás da manga.
— Sim.
— Era membro deste grupo?
— Não.
— Era comunista?
— Não posso dizer que soubesse que fosse.
— Considerava-o amigo dos comunistas?
— Só alguns pensavam isso, como J. Peters.
— O senhor não?
— Eu não posso dizer se ele era comunista.
Dito isso, o Comitê não apenas julga que é hora de abrir as portas à imprensa
como também que, dada a relevância da nova testemunha, será melhor se transferir
para uma sala mais ampla no Novo Prédio de Escritórios do Congresso. O circo,
como o próprio Whit o qualificará em suas memórias, passa para a arena central.
Whit se esparrama em seu novo banco, rodeado de microfones, e volta a
colocar a mão pastosa sobre a Bíblia. Imediatamente lê as páginas que preparou, as
páginas que explicam seu precoce encantamento revolucionário, seu recrutamento
como agente, suas tarefas clandestinas, sua tomada de consciência, sua fuga, sua
conversão ao cristianismo e sua nova, vigorosa, fé em Deus.
— Há dez anos rompi com o Partido Comunista — sua voz se modera. —
Durante este tempo tentei viver uma vida de trabalho, temente a Deus. Ao mesmo
tempo combati o comunismo sem trégua, com atos e com a palavra escrita. Estou
orgulhoso de comparecer diante deste Comitê. A inevitável publicidade que este
testemunho implica obscureceu, e sem dúvida continuará obscurecendo, meu
esforço para me integrar à comunidade de homens livres, mas é um pequeno preço
que devo pagar se meu testemunho contribuir para que os americanos reconheçam
que se encontram ameaçados por uma secreta, sinistra e terrivelmente poderosa
força cujo propósito é escravizá-los. Queria chamar todos os antigos comunistas que
ainda não confessaram, e todos os homens no Partido Comunista cujos melhores
instintos não foram destruídos ou corrompidos, a que colaborem nesta luta
enquanto ainda há tempo.
Terminado seu testemunho, os membros do HUAC se lançam por mais carniça.
Dois episódios sobressaem na parte final de seu depoimento. Primeiro, quando o
fanhoso e narigudo congressista Nixon, calado e ausente ao longo da manhã, volta a
perguntar à testemunha por Harry Dexter White e este evita uma resposta direta. E,
segundo, quando conta como, pouco antes de deixar o aparelho em 1938, visitou
Alger Hiss, um bom amigo, em sua casa de Georgetown, para tentar convencer a ele
e sua esposa Priscilla a se afastarem do Partido.
— Nós três jantamos uns ovos fritos — Whit não economiza detalhes — e eu
tentei com todas as minhas forças convencê-los a me seguir, mas Hiss, nervoso e
contrariado, se recusou a romper. Quando nos separamos, começou a chorar.
— Chorar?
— Chorar — o timbre de Whit emite uma cantilena melancólica. — É que eu
estimava muito o sr. Hiss.

ÁRIA DE ALGER HISS (COM CORO DE CONGRESSISTAS)

Uma semana mais tarde, Alger Hiss desliza a aliança de casamento pelo anular
e a deposita na pia; ensaboa os pulsos e as palmas, uma, duas, mil vezes, com a
expressão imperturbável, alheia à imagem fria que aparece no espelho. Sua mente se
encontra tão longe dali, absorvida em outro universo ou no passado, que se sua
pulcra imagem desaparecesse de repente, como a de um vampiro, talvez ele não se
desse conta. Depois de enxugar as mãos com idêntico zelo, volta a colocar a aliança,
olha o relógio e se dirige à sala de sessões.
Sua elegância um tanto exagerada, seu porte altivo e os delicados indícios em
seu sotaque — culpa da educação em Harvard — não deixam lugar a dúvidas sobre
sua linhagem. Diferentemente de Chambers, desbocado e malvestido, Hiss se
mostra como o que sempre foi ou aparentou ser, um funcionário exemplar,
integrante da classe privilegiada que, à sombra de Roosevelt e do New Deal, resgatou
o país da bancarrota. Embora o berço privilegiado seja um mal-entendido — Alger
precisou cuidar de seus irmãos depois do suicídio do pai, um comerciante sem
muitos recursos —, o contraste com seu acusador é tão ostentoso que, para o bem
ou para o mal, os dois carregarão os estereótipos do ex-comunista patético e do
janota enrolador.
— Quero deixar claro que não sou e nunca fui membro do Partido Comunista
— declara Hiss com a voz aveludada de quem anos atrás encabeçou a Conferência
de Dumbarton Oaks. — Não apoio e nunca apoiei os princípios do Partido
Comunista. Não sou e nunca fui membro de nenhuma entidade filiada ao Partido
Comunista. Nunca segui as diretrizes do Partido Comunista de maneira direta ou
indireta. E, até onde consigo saber, nenhum dos meus amigos é comunista.

Alger Hiss (1950).

Strip solicita seu currículo, e Hiss enumera a exemplar lista de cargos que
acumulou ao longo de vinte anos no serviço público, de seu estágio com o lendário
juiz Oliver Wendell Holmes ao atual cargo de diretor executivo da Fundação
Carnegie (presidida por uma pessoa tão respeitada pelos republicanos quanto John
Foster Dulles). Visto assim, com todo o seu garbo e toda a sua eloquência, ninguém
poderia acreditar que se trata do mesmo revolucionário muito sensível descrito por
Whit em 3 de agosto. Ou será que Strip, algum dos congressistas ou senadores, ou
mesmo algum abutre da mídia, poderia imaginá-lo chorando depois que Chambers
tentou afastá-lo das garras soviéticas?
Em um momento culminante da audiência, Strip mostra a Hiss uma fotografia
recente de Whit e pergunta se o reconhece. Este a examina com o cenho franzido,
pegando-a com as pontas dos dedos como se fosse um excremento, antes de devolvê-
la ao investigador-chefe.
— Se este é um retrato do sr. Chambers, não tem uma aparência nada
incomum. — Alger levanta a sobrancelha. — Parece com muita gente. Inclusive se
poderia confundi-lo com o presidente deste Comitê…
Karl Mundt, com sua cara de baiacu, presidente em exercício do HUAC na
ausência de J. Parnell Thomas, é o único que não se soma ao coro de gargalhadas
que faz vibrar a sala.
— Não digo isso para bancar o engraçado — Alger recupera a solenidade —,
queria poder vê-lo cara a cara, acho que assim ficaria mais capacitado para dizer se
alguma vez o vi.
Uma formulação um tanto arrevesada, mas afinal efetiva. Como se estivesse
protegido por um escudo — sua venerabilidade e sua arrogância —, a bateria de
mísseis dirigida pelo HUAC explode no ar sem roçá-lo. Ao término da sessão um dos
interrogadores até pede desculpa pelo dano que o depoimento pudesse ter causado a
uma pessoa “a quem muitos americanos, incluindo vários membros do Comitê, têm
em tão alta estima”, e outro lhe dá um ostensivo aperto de mãos (Algie precisará
voltar a se ensaboar).
Aos olhos de todos os observadores, Hiss emerge da audiência como um fidalgo
injustamente difamado e Whit como um ex-espião rasteiro e mentiroso. Nixon é o
único que não solta a presa. Enquanto Mundt, Hébert e os outros integrantes do
Comitê se mostram cuidadosos ou diretamente envergonhados, ele vigia os deslizes
ou hesitações de Hiss com uma lente de aumento. Como congressista estreante será
bom demonstrar seu zelo anticomunista. O californiano acha que Hiss se
comportou com uma altivez insuportável, e sua maneira de negar Chambers — teria
sido tão fácil dizer não o conheço — é o fio que puxará até o final. E que melhor
aliado que Whit para reapresentar seu ataque?

RECITATIVO

O cenário é agora a Corte Federal em Nova York, na Foley Square, a que


comparecem Nixon e Whit, dois membros do HUAC e a equipe de investigação
liderada por Strip. Só que agora o Narigudo faz as perguntas.
— O sr. Hiss afirmou nunca ter ouvido seu nome, sr. Chambers. Usava outro
nome na sua época como agente clandestino?
— Naquela época me deram o nome de Carl.
— E ele nunca perguntou seu sobrenome?
— Teria sido impensável nos círculos comunistas.
— Por que tem tanta certeza de que Hiss era comunista?
— J. Peters me garantiu — Whit começa a relaxar — e eu mesmo vi. Várias
vezes obtive informação diretamente das mãos dele. É óbvio que não tinha uma
credencial do Partido, mas nunca duvidei de sua militância.
— Quão bem o conhecia?
— Diria que bastante bem. Fomos amigos. Nessa época seu nome era Hill ou
Hilly, e o de sua esposa Dilly ou Pross — Whit relembra os dez anos em que
pertenceram ao mesmo lado. — Priscilla foi casada antes com o editor Thayer
Hobson, de quem ela sempre falava mal, mas que pagava as contas de Timmy, o
pequeno filho dos dois. Os Hiss possuíam um belo cocker spaniel.
— Tinham algum hobby? — intervém Ben Mandel.
— Alger e Priscilla gostavam de ornitologia — Whit percebe a importância que
minúcias como esta adquirem. — Pelas manhãs iam ao Chesapeake, ao Canal de
Ohio e ao Glen Echo observar pássaros. Lembro-me de que uma vez estavam muito
emocionados por ter visto uma mariquita-protonotária.
— Alguma vez foi você hóspede dos Hiss?
— Sua casa era para mim uma espécie de quartel informal. Lembro-me de
diversos endereços em que moraram naqueles anos, sempre de maneira frugal. Não
tinham apreço aos bens materiais e estavam acostumados a comer pouco, acho que
jamais tomei um coquetel com eles. O sr. Hiss era um homem de grande
simplicidade, com uma enorme gentileza e doçura de caráter. Dirigia um velho Ford
estraçalhado, mas em 1936, acho, trocou-o por um Plymouth.
— E o que fez com o carro velho? — insiste Mandel.
— Deixou-o comigo. E depois, contra todas as regras do ambiente clandestino,
se esforçou para entregá-lo ao Partido para que pudesse ser utilizado por algum
militante pobre do Meio-Oeste ou de outro lugar.
— Muito obrigado, sr. Chambers — Nixon parece satisfeito. — Estaria
disposto a se submeter a um detector de mentiras?
— Se for necessário, certamente.
— Se sente tão confiante?
— Estou dizendo a verdade.
Emocionado por sua própria atuação, o Narigudo se esforça, visita John Foster
Dulles e o convence a não apoiar Hiss publicamente; encontra-se com jornalistas e
políticos republicanos que o animam a perseverar em sua cruzada; telefona sem
descanso para Strip, cujos investigadores demoram a confirmar as informações
fornecidas por Chambers; e até se dá tempo para assistir às sessões em que outros
acusados — Harry Dexter White, Lauchlin Currie e Donald Hiss — depõem diante
do HUAC. Finalmente, em 16 de agosto consegue que Alger se sente de novo no
banco.
— Nunca tive contato com ninguém chamado Carl — boceja Hiss,
acomodando-se no assento.
Nixon lhe mostra então uma fotografia de Whit jovem, ou seja, com uns trinta
quilos a menos (quase atraente). Desta vez Algie a examina conscienciosamente.
— A cara me é familiar. Por isso quero vê-lo de frente.
Nixon estala os dedos.
— O que eu não entendo — se enfurece Hiss — é por que Chambers e eu
somos tratados da mesma maneira quando eu levei uma vida pública impecável e
ele, por sua vez, é um comunista declarado. Além disso, li na imprensa que o
senhor, sr. Nixon, passou o fim de semana no sítio dele.
— Posso lhe garantir que nunca passei a noite com ele — desculpa-se Nixon,
incomodado.
(De fato, o Narigudo visitou Whit em seu sítio, mas não ficou para o jantar.)
— Posso lhe garantir que não temos nenhum acordo prévio com o sr.
Chambers — intervém Strip. — Ele afirma que passou uma semana em sua casa, sr.
Hiss, e nos cabe verificar isto. E posso lhe dizer que, ou ele se dedicou a estudar
minuciosamente sua vida, ou de fato o visitou nessa época.
— A questão não é se nos conhecíamos e eu não me lembro — explode Hiss
—, mas se tivemos a conversa que ele descreveu.
— Não sei qual de vocês está mentindo — intervém o senador Hébert —, mas
um dos dois é o melhor ator que a América já produziu!
A confusão aumenta quando, recuando ou dando uma reviravolta em seu
testemunho, Alger aponta que, pensando bem, lhe vem à memória ter alugado sua
casa durante uma semana para um sujeito que, obviamente, não se chamava Carl, e
muito menos Whittaker Chambers (nome horrível), mas George Crosley, um
sujeitinho que mastigava as palavras com voz de baixo, casado e com uma menina
pequena.
— E esse sr. Crosley ficou no seu apartamento, sr. Hiss? — Nixon sorri.
— Esse sr. Crosley, sim.
— Pode descrever a esposa de Crosley?
— Uma mulher medíocre, diria mesmo que muito medíocre, não acho que
seria capaz de reconhecê-la.
— E que estatura tinha esse homem?
— Era mais para baixo.
— Gordo?
— Não muito.
— E o que me diz de seus dentes?
— Tinha dentes muito ruins, esse é um dos detalhes que queria ver no sr.
Chambers. Aquele homem tinha os dentes estraçalhados, parecia nunca ter cuidado
deles.
— E que carro o sr. Crosley tinha? — irrompe Strip.
— Nenhum. Eu lhe dei o meu carro, um velho Ford. Não estava em muito
bom estado, mas tinha uma carroceria bastante ampla.
— O senhor deu seu carro a Crosley? — insiste Nixon.
— Exatamente.
— E comprou um novo?
— Um Plymouth sedã. Mas confesso que depois me arrependi e pedi ao
homem que me pagasse pelo carro — corrige Hiss. — Nunca fez isso, entregou-me
vinte ou 25 dólares e um tapete persa que ainda conservo, isso foi tudo. Em 1935
deixei de ver Crosley e não voltei a saber dele.
— O senhor acha que o sr. Crosley e o sr. Chambers são a mesma pessoa?
— Não poderia afirmar até vê-lo de frente.
— O senhor e sua família usavam algum apelido carinhoso nessa época?
— O meu era Hill ou Hilly. Chamávamos Priscilla de Pross ou Prossy e
Timothy, meu enteado, de Timmy ou Moby.
— Tinham animais de estimação?
— Um cocker spaniel.
— O que me diz de seus hobbies de então?
— O tênis e a ornitologia.
— E alguma vez viu uma mariquita-protonotária?
— Sim! — Alger se entusiasma, como se o pássaro revoasse diante dele. —
Aqui mesmo, no Potomac. Costumam vir para cá e aninhar nos pântanos. Bonita
cabeça, que ave maravilhosa!
O Narigudo e seus cúmplices queriam se abraçar de alegria.
— Muito bem, sr. Hiss — conclui Strip. — Haverá uma nova audiência em 25
de agosto, às 10h30, no Salão de Convenções do Congresso. Tanto o senhor quanto
o sr. Chambers serão chamados a testemunhar.
— Fico feliz de ter a oportunidade de confrontar o sr. Chambers.
Enquanto uns e outros se retiram, o Narigudo cantarola em voz baixa:
mariquita-protonotária, mariquita-protonotária, mariquita-protonotária…

DUETO (COM CORO DE CONGRESSISTAS)

Por que a repentina mudança de planos? Por que o congressista McDowell


disse a Hiss que o visitaria em seu escritório da Fundação Carnegie e agora o chama
ao seu quarto do Hotel Commodore? Assim que abre a porta, Alger percebe que
caiu em uma armadilha. A equipe de Strip reacomoda os móveis da suíte para
transformá-la em um tribunal em miniatura. Suspeitando de que Hiss poderia
recompor sua versão dos fatos, Nixon orquestrou esta sessão improvisada para
encurralar quem já não vê apenas como uma presa, mas como a pedra angular de
seu futuro político.
— Fique à vontade — indica McDowell a Hiss, apontando uma cadeira de
madeira. — Pode fumar se quiser.
Tanta amabilidade não esconde a natureza oficial da acareação. McDowell
toma o juramento, e o Narigudo inicia a ofensiva.
— Achamos que seria melhor esclarecer de uma vez por todas se o sr. Crosley e
o sr. Chambers são a mesma pessoa. — A voz fanhosa fere os ouvidos de Alger.
Hiss toma ar e se dirige ao congressista com olhar desafiante.
— Nesse caso quero que a sessão seja gravada. A caminho daqui soube do
falecimento de Harry Dexter White. Foi um grande golpe e não tenho certeza se me
encontro na melhor disposição para depor.
O Comitê tem as mãos manchadas de sangue, seus membros são os
responsáveis pela morte do antigo subsecretário do Tesouro, parece dizer. Mais
flexível que uma lontra, o Narigudo apenas engole em seco.
— Façam-no entrar.
Com passos lentos, plúmbeos e sonoros como o gigante de João e o pé de feijão,
Whit abre caminho do quarto vizinho e, circundando Hiss, que o olha sem vê-lo,
desaba em um sofá.
— Sr. Hiss — incita-os Nixon —, este homem é Whittaker Chambers.
Pergunto agora se o reconhece.
Algie titubeia. Para em frente de seu acusador e o examina palmo a palmo, da
testa ao dedão do pé.
— Posso falar com ele? — pergunta a Nixon, como se Whit fosse um aborígine
que precisasse de tradução simultânea. — Ou o senhor pode lhe pedir que fale
alguma coisa?
— Sr. Chambers, diga seu nome — concorda Nixon.
— Meu nome é Whittaker Chambers.
Alger se levanta e, como se examinasse um bicho-preguiça dissecado, escrutina
o rosto de seu acusador. O Gordo e o Magro: um obeso, baixinho, corado; o outro
muito alto, gélido, inexpressivo.
— Poderia abrir a boca? — desafia-o Hiss.
— Meu nome é Whittaker Chambers.
— Não, só lhe peço que abra a boca — Alger se vira para o Narigudo. — O
senhor sabe a que me refiro.
— Sou editor executivo do Times — Whit olha para o teto.
— Posso perguntar se a voz deste senhor, quando testemunhou contra mim,
soava como esta? — insiste Hiss.
— Sua voz? — repete Nixon.
— Poderia falar em um tom mais baixo?
— Leia alguma coisa, sr. Chambers — o Narigudo lhe entrega uma revista.
Whit fica paralisado, um Humpty Dumpty à beira do abismo.
— Você é George Crosley? — Alger o olha nos olhos.
— Não — responde Whit. — Mas o senhor é Alger Hiss, suponho.
— É óbvio que sou.
Pressionado por Nixon, Whit lê em voz alta um artigo da Time.
— Esta voz soa um pouco como a que me lembro de George Crosley — Hiss
se inclina para ele como um domador que introduz a cabeça na fuças de um leão —,
mas parece que seus dentes melhoraram ou passou por um extenso trabalho de
ortodontia.
— Um especialista arrumou meus dentes em 1944.
— Acho que este homem é George Crosley — resume Hiss —, mas há detalhes
que mudaram, além dos dentes. Permite que lhe faça algumas perguntas
diretamente?
— Vá em frente — replica Whit.
— Alguma vez você usou o nome de George Crosley?
— Não.
— Alguma vez alugou um apartamento na rua 29?
— Não.
— Não?
— Não.
— Alguma vez passou uma temporada, com sua esposa e filha, em um
apartamento na rua 29 de Washington quando eu morava com minha família na
rua P?
— Exatamente.
— Passou ou não passou?
— Sim, passei.
— Pode me dizer então como conciliar sua negativa anterior com esta
afirmação?
— Sem problemas, Alger. Porque eu era comunista e você foi comunista.
— Esta é sua resposta?
— Como testemunhei anteriormente, vim a Washington na qualidade de
funcionário do Partido Comunista dos Estados Unidos — sustenta Whit. — Eu
estava em contato com o grupo clandestino a que o sr. Hiss pertencia. O sr. Hiss e
eu nos tornamos amigos. Até onde lembro, o próprio sr. Hiss me ofereceu seu
apartamento e eu o aceitei agradecido.
— Senhor presidente — Alger se dirige a McDowell —, não preciso fazer mais
perguntas ao sr. Chambers. Agora tenho certeza de que se trata de George Crosley.
— E esta pessoa é Alger Hiss a quem se referiu no seu depoimento, sr.
Chambers?
— Sem dúvida.
Alger não aguenta mais. Pela primeira vez suas feições se decompõem, seus
olhos avermelham, sua segurança desmorona. Incontrolável, aponta Whit com o
indicador a escassos centímetros de suas bochechas.
— Queria convidar o sr. Chambers a repetir estas mesmas declarações sem a
presença deste Comitê e a prerrogativa de não poder ser acusado de difamação. —
E, dirigindo-se a ele, acrescenta com raiva: — Desafio você a que o faça e, ao diabo!,
espero que o faça quanto antes.
Prevendo uma briga, um dos membros da equipe de Strip detém o braço de
Hiss pela força.
— Não penso colocar a mão nele — grita Alger —, mas o senhor está me
tocando!
As sombras da tarde se abatem sobre o cômodo e o congressista McDowell,
presidente em exercício do HUAC, se apressa em dar por encerrada a acareação.

RECITATIVO

Sob um sol infernal e com a presença de cerca de 1200 pessoas, bem como das
sinistras câmeras de televisão — uma novidade —, o 25 de agosto é chamado pelos
tabloides de “O dia do confronto”.
Chambers vs. Hiss.
Ao entrar na sala, Whit reaparece com sua desleixada aparência de sempre,
despenteado e suarento. Hiss, por outro lado, ostenta um terno impecavelmente
engomado e um sorriso Colgate.
Não faz sentido reproduzir aqui as intervenções desse dia, que no essencial
reiteram os argumentos que cada um defendeu durante a sessão do Hotel
Commodore. Os dois reconhecem ter se conhecido em 1935 e afirmam que Whit
passou algumas semanas no apartamento de Hiss na rua 29 e que usou seu Ford; no
resto, prolongam seu desacordo.
Um episódio se destaca em meio a uma infinidade de minúcias: quando Nixon
pergunta, Chambers reafirma o que sentia por Hiss no passado.
— O sr. Hiss era seu amigo? — o Narigudo afunda o dedo na ferida.
— O sr. Hiss era o melhor amigo que cheguei a ter no Partido Comunista.
— Sr. Chambers, poderia encontrar em sua memória algum motivo pelo qual
acusar hoje o sr. Hiss?
— Que motivo poderia ter?
— Não sei, talvez o sr. Hiss tenha feito algo contra o senhor…
— Espalharam o boato de que meu testemunho se apoia em alguma desavença
passada, ou que faço isso por vingança ou por ódio. — Os olhos de Whit se enchem
de lágrimas. — Eu não odeio o sr. Hiss. Fomos amigos, mas agora estamos presos
na tragédia da história. O sr. Hiss representa o inimigo oculto contra o qual todos
nós lutamos e que eu combato. Testemunhei contra ele com remorso e compaixão,
mas no meio do perigo que se abate sobre a nossa nação, que Deus me ajude, não
teria podido agir de outra maneira.
Ao término do interrogatório, os membros do HUAC já não têm dúvidas: o
maior mentiroso que já pisou na América não é outro senão Hiss, que deverá
comparecer diante de um grande júri acusado de perjúrio.
Os advogados de Alger respondem apresentando uma queixa por difamação
contra Chambers nos tribunais de Baltimore e exigem uma indenização de 50 mil
dólares por perdas e danos.
O combate agora é corpo a corpo.

ÁRIA DE WHITTAKER CHAMBERS

Neste clima são realizadas as eleições de 2 de novembro de 1948, que, para


surpresa de absolutamente todos, voltam a outorgar a presidência e o Congresso aos
democratas. Ao ficar sabendo da notícia, Chambers julga que seus compatriotas
continuam sem perceber o perigo da conspiração comunista e, por isso, fica ainda
mais urgente demonstrar que Hiss é um falsário e que seus chefes democratas, com
Truman à frente, nada fizeram para desmascará-lo.
— Acha que falta alguma coisa neste assunto, não? — pergunta Whit ao seu
advogado, Richard Cleveland, enquanto examinam os argumentos que apresentarão
durante o julgamento.
— Acho.
— É porque de fato falta alguma coisa nisso — sussurra Whit. — A
espionagem, meu amigo. A espionagem.
Não posso dizer que Cleveland, o mastodôntico filho do presidente do mesmo
nome, tenha ficado boquiaberto, mas a confissão o desconcerta. Até agora Whit
nunca tinha empregado a palavra espionagem; durante as audiências diante do HUAC
se limitou a dizer que os dois tinham sido comunistas, que pagavam cotas ao Partido
e que Alger lhe emprestou seu apartamento e seu carro, mas nos anos 1930 nada
disso constituía crime. O Partido Comunista era uma organização legal e também
era legal militar nele, reunir-se em público ou em segredo, pagar cotas e
compartilhar casas e carros à vontade. Se o perjúrio de Hiss fosse comprovado, isso
só mostraria sua reticência em confessar seu passado diante do Comitê. A acusação
de espionagem transtorna o cenário: trata-se de um delito maior, imensamente mais
daninho para a reputação do acusado — e do acusador.
— Tem alguma prova concreta? — pergunta Cleveland.
— Infelizmente, sim.
Seu seguro de vida.
Como sabemos, pouco antes de abandonar o aparelho clandestino, Whit se
assegurou de arrancar vários documentos confidenciais de seus contatos e os colocou
nas mãos de Nathan Levin, sobrinho de Esther. Embora faça quatro anos que não o
vê, não hesita em ligar para ele. Pouco depois lhe envia um telegrama, avisando que
chegará ao seu apartamento no Brooklyn por volta da uma da tarde. O texto
contém apenas uma linha: POR FAVOR DEIXE MINHAS COISAS PRONTAS.
Quando Whit chega, Nathan se encontra em pleno almoço familiar e confessa
ao tio que não sabe a que se refere. Whit o lembra de que há dez anos lhe confiou
um envelope amarelo. Puxando pela memória, Nathan diz que acha que o deixou
na casa de seus pais. Quando os dois entram no banheiro dos senhores Levin, Whit
finalmente respira. Dentro de um pote de porcelana, coberto de teias de aranha e
poeira, aparece o velho envelope.
— Meu Deus, pensei que isso já não existiria!
De volta a Westminster, espalha o conteúdo sobre a mesa da sala de jantar:

1 folha de papel, aproximadamente 7 x 13 cm, com anotações;
4 pequenas folhas de caderno, cuidadosamente dobradas;
5 folhas de papel timbrado amarelo cobertas com anotações manuscritas nas
duas faces;
65 folhas datilografadas, 20 x 28 cm e 20 x 26 cm;
2 tiras de microfilme revelado, totalizando 58 quadros;
3 rolos de metal com microfilmes não revelados, selados com fita adesiva preta.

Uma bomba.
Consciente de que este material radioativo poderia destruí-lo junto com Hiss,
Whit devora a primeira coisa que encontra: ovos fritos, toucinho, batatas cozidas,
presunto, pão, geleia de amora, manteiga e um galão de leite. Toda essa comida não
o sacia, e depois de duas horas acende uma boca do fogão e prepara um
sanguinolento pedaço de carne. À tarde, outro suprimento de ovos fritos, toucinho,
manteiga e pão. Não dorme a noite inteira, dança e se revolve na cama. Esther se
mostra tão nervosa e agitada quanto ele.
Na manhã seguinte, Whit se dirige a uma reunião com os advogados de Hiss
no escritório de Cleveland, decidido a atravessar seu Rubicão.
— Estou pronto para apresentar os documentos no julgamento — anuncia
assim que chega. — São alguns manuscritos do sr. Hiss e outros textos
datilografados.
— Por que demorou tanto para oferecê-los? — pergunta William Marbury, o
advogado de Alger.
— Eu me sentia muito ansioso por razões de amizade e porque o sr. Hiss é um
dos homens mais brilhantes do país e não queria feri-lo mais do que o necessário —
e se apressa a mostrar as quatro anotações manuscritas e as 65 páginas datilografadas
(sobre o resto não diz nada).
Whit relaxa, como se tivesse emagrecido vários quilos de uma vez, e pela
primeira vez em anos se lança a contar com liberdade — matizemos: com certa
liberdade — a verdadeira natureza do seu trabalho clandestino. Fala sobre Bikov, o
agente russo que lhe servia de contato; sobre as intrincadas viagens que empreendia
entre Baltimore, Nova York e Washington para conseguir os documentos, fotografá-
los e devolvê-los aos remetentes; sobre a maneira como Hiss lhe entregava os papéis
(“mais de vinte vezes”, precisa) e sua estreita amizade com ele. Marbury, o advogado
de Alger, avalia o efeito devastador que os documentos terão sobre a queixa de
difamação; pior ainda, seu cliente poderia ficar sujeito a um processo criminal.
Uma vitória para Whit?
Uma vitória ínfima.
Embora as provas apoiem sua versão, seus caluniadores não demorarão a se
perguntar por que mentiu ao HUAC e por que só agora se atreve a apresentar as
provas. Além de tudo, segundo o Estatuto de limitações do governo, o delito de
espionagem prescreve depois de três anos, por isso Hiss só poderia ser acusado de
perjúrio.
Quando seus advogados mostram a Alger os papéis de Chambers, este
reconhece que se parecem com os documentos que recebia quando era assistente do
subsecretário Francis Sayre no Departamento de Estado e confirma a autoria das
anotações manuscritas.
— Mas não tenho a mínima ideia de como puderam chegar às mãos de
Chambers.
Em seu escritório do Congresso, Nixon se encontra tão deprimido quanto o
resto de seus correligionários. Tem certeza de que a vitória de Truman significará o
fim do processo contra Hiss. Decepcionado, prometeu à sua mulher um cruzeiro ao
Panamá e, quando Strip abre a porta sem se anunciar e diz que os dois devem viajar
imediatamente a Westminster para visitar Chambers, o Narigudo não hesita em
mandá-lo ao inferno.
— Estou de saco cheio deste caso. Não quero ouvir mais nada. Estou indo para
o Panamá.
Strip lhe conta que ao que parece Chambers confiou ao seu advogado provas
concretas das atividades de espionagem de Hiss.
— E acho que o filho da mãe ainda está escondendo alguma coisa.
Os dois chegam à casa de seu incômodo aliado perto das três da tarde. Whit os
recebe no celeiro, com a camisa xadrez — mais parece um lençol — coberta de cocô
de passarinho (de mariquita-protonotária?).
— Lamento, os advogados me impediram de falar com vocês.
“Agora se cala”, pensa Nixon. Strip, em compensação, acha que Whit está
louco para revelar seus segredos a eles.
— Deixei cair uma bomba — reconhece Chambers. — Mas não se compara
com a que cairá mais adiante.
— Isso quer dizer que você tem mais evidências? — pergunta Strip.
— Vocês conhecem um bom fotógrafo? Um verdadeiro especialista?
— Para quê? — irrita-se Nixon.
— Não posso dizer.
— Vamos embora daqui — esbraveja o Narigudo.
Na manhã seguinte Whit se levanta de bom humor: há semanas, talvez meses,
que não se sente tão bem. Nada mudou; de fato, nunca correu tanto perigo quanto
agora — a qualquer momento pode receber a intimação para comparecer diante do
tribunal acusado de perjúrio —, mas sente uma repentina paz interior. A paz de
quem não tem nada a perder.
Depois de ordenhar suas vacas e tomar café com Esther — cada vez mais
minúscula, mais invisível —, Whit decide dar um passeio por seus campos de
cultivo. O vento invernal açoita seu rosto e o limpa. Whit pega uma gorda abóbora
e a leva para a cozinha. Como se preparasse uma lanterna de Halloween, abre o
fruto com uma faca e extrai a polpa e as sementes, em seguida envolve os rolos com
os microfilmes em papel-manteiga e os coloca dentro. Concluído o trabalho,
devolve a abóbora à horta. Ali, na intempérie, sobre a terra erma e gelada, descansa
sua nova arma, sua bomba de hidrogênio.
Quando por fim entrega os documentos a Strip no dia seguinte, já não resta
mais nenhum segredo para revelar. Ou quase nenhum. Isso porque em uma pasta
guardada à chave no fundo de sua mesa repousa um último documento dos seus
anos como espião.
Algumas folhas manuscritas cuja letra não pertence a Hiss.
Um memorando confidencial do Departamento do Tesouro.
O autor? Quando depois de alguns dias Strip pergunta, ele pronunciará o
nome com perfeita clareza.
— Harry Dexter White.
Cena VI. Sobre como formar um casamento perfeito e esbofetear
delicadamente seu Mestre

DUETO

Sempre desconfiei ao constatar as intermináveis sessões de trabalho que Leah


compartilhava com Pam — uma historiadora da arte, ruiva natural, casada com um
executivo do Merrill Lynch — e a maneira como nos acomodávamos a uma rotina
sexual cada vez mais esporádica, ao perceber a vibrante obscuridade de sua voz e seu
cabelo sempre preso em um rústico rabo de cavalo, ao compartilhar sua devoção por
esta ou aquela atriz francesa ou italiana ou seus ácidos juízos sobre a brutalidade ou
o descuido masculinos, assim como ao ouvir várias vezes seus raivosos desabafos
contra as amigas de Pam, mas suas inclinações tinham ficado armazenadas em
alguma parte do meu cérebro como uma dessas certezas que a gente prefere não
trazer à luz. Se minha brilhante esposa preferia calar suas preferências, eu estava
decidido a respeitá-la: nunca bisbilhotei nas gavetas ou nos correios eletrônicos
alheios, já tenho que administrar os meus próprios segredos. Afinal de contas eu
também imaginava que ela estivesse a par dos meus ardis em um acordo que
acentuava a placidez da nossa convivência e evitava as rixas que costumam
envenenar a vida dos recém-casados. Talvez por isso tenha me surpreendido tanto
que, pouco antes de passar à nossa mesa no restaurante do Grand Tier do
Metropolitan para o jantar de gala posterior a uma sessão dupla de Il Tabarro e
Pagliacci com Pavarotti, Domingo e a grande Teresa Stratas (com uma aparatosa
encenação de Zeffirelli), Leah caísse em um choro copioso e expansivo, rompendo o
encanto da noite.
— Imagino que as lágrimas não são pela morte de Nedda — estendi-lhe um
lenço.
— Maldita Pam! — suspirou.
— Está acontecendo alguma coisa com ela? — embora adivinhasse o rumo que
a conversa tomaria, preferi seguir o roteiro do marido surpreso.
— Primeiro me liga o tempo todo e me quer à sua inteira disposição — ao
assoar o nariz, Leah provocou um estertor que respingou em duas velhas damas que
abriam caminho para suas mesas —, e depois desaparece, não atende o telefone, não
me dá explicações…
— O que posso lhe dizer? Nunca entendi as mulheres.
— Não é verdade…
Em troca de uma modesta contribuição de 35 mil dólares anuais, finalmente eu
tinha conseguido me transformar em um dos patronos do Met (a diretora executiva
inclusive tinha me convidado para almoçar nessa mesma semana) e a festa era a
oportunidade de estar lado a lado com meus novos colegas; o que eu menos queria,
em semelhante circunstância, era uma intriga doméstica.
— Conte o que está acontecendo.
— Preciso da sua ajuda — Leah franziu o nariz.
— Certo. Vou ser sincero. Na minha opinião, Pam deve ter outra amiga (ou
amigo) que lhe importa mais ou de quem gosta mais. Não quero ser rude, querida,
mas você é a segunda opção.
Minha mulher caiu no choro, mas desta vez foi diferente, mais racional e
calculado, se é que se pode dizer isso do choro.
— Em uma guerra a primeira coisa é checar que terreno estamos pisando —
sugeri.
— Você pode me ajudar?
Ao que parece, Leah tinha calculado tudo e só buscava uma maneira de me
enrolar (como Nedda a Canio), mas sua atitude não fez com que me zangasse com
ela. Tirando a cama, formávamos um bom casal, melhor que qualquer um dos que
eu frequentava no meio financeiro, por que então não deveria ajudá-la? Concordei.
Minha jovem esposa deteve os soluços, empoou o nariz e as bochechas, ajeitou
uma mecha e me puxou pelo braço.
— Se alguém notar que meu rímel escorreu, direi que “Vesti la giubba” me
comove irremediavelmente.
Que longe parecia ter ficado a jovem inocente que se apresentou para trabalhar
para mim alguns anos atrás. Não quero dizer que o contato comigo tenha chegado a
corrompê-la — continuava exibindo suas convicções liberais e à menor oportunidade
destrambelhava contra os republicanos —, mas seu horizonte moral tinha se
alargado.
Atravessamos o salão, cumprimentando a torto e a direito (aparentemente sem
que ninguém nos reconhecesse), até chegar aos nossos lugares no canto mais
afastado da mesa principal. Pavarotti, Domingo e Stratas fizeram sua entrada
triunfal e todos nos pusemos de pé para ovacioná-los. Que contrariedade estar tão
longe! Os cantores de ópera se apressaram a se colocar ao lado de Jim Levine e Joe
Volpe, diretor artístico e odioso superintendente do Met (que aliás tinha iniciado
sua carreira como contrarregra). Tentei manter a compostura e me dediquei a
conversar com meus vizinhos, dois médicos e o dono de uma empresa de inseticidas
ou perfumes, mas no fundo me sentia tão despeitado quanto Leah. Nesse instante,
enquanto os garçons serviam um banal clam chowder e os comensais exibiam sua
estudada erudição musical, prometi que em menos de um ano me transformaria em
outro tipo de estrela do mundinho operístico, em um mecenas que não apenas
poderia escolher onde se sentar, mas também onde acomodar todos os outros.
— Deixe isso comigo — sussurrei ao ouvido de Leah.

RECITATIVO

A lição da história, e especialmente da história do capitalismo, é sempre


idêntica: alguém descobre uma nova forma de se tornar rico com facilidade ou
rapidez (antes, uma nova invenção tecnológica; hoje, uma fórmula para prever o
comportamento dos mercados), utiliza-a várias vezes eficazmente, até juntar
milhões, depois começa a se sentir insatisfeito, entrevê novas estratégias para
aumentar sua vantagem, deixa-se levar pelos impulsos, perde de vista a realidade
comparada com suas metas, superestima sua astúcia, ignora ou menospreza os sinais
de perigo, se arrisca além da conta, começa a perder dinheiro e aumenta as apostas,
perde mais ainda, e mesmo assim não recua nem muda de ideia e, quando acha que
sua sorte está prestes a mudar, vem a falência. Sempre a mesma história. E ninguém
aprende.
J.M. tinha levado a mim e a Vikram ao Long-Term, o Fundo dos Gênios, para
devolver um pouco de prudência às suas estrelas, o impulsivo Haghani e o
impetuoso Hilibrand, para reinstaurar o senso comum entre aqueles donos do
mundo e tentar reverter as perdas que a empresa sofria de maneira cada vez mais
escandalosa. Sua iniciativa era correta, contratar pessoas capazes de insuflar um
pouco de ar puro nos rarefeitos escritórios de Greenwich e detectar por que, dada a
beleza e a precisão de suas fórmulas, não conseguiam conter a sangria.
Vikram e eu nos limitamos a cumprir nossa tarefa, examinamos as distintas
operações do LTCM e tentamos encontrar, mais que um responsável, uma explicação.
Haghani e Hilibrand se transformaram, irremediavelmente, em nossos maiores
caluniadores. É muito fácil encontrar uma falha ex post, diziam.
— É mais simples e prazeroso constatar por que alguém errou no passado do
que tomar uma decisão para o futuro, mas é para isso que nos pagam —
confrontou-os Vikram.
Questionar os modelos de Merton e Scholes não fazia parte de nossas funções.
Em todo caso, nos cabia detectar os investimentos que se afastassem do rigor
estabelecido pelos nossos prêmios Nobel. Depois de mergulhar em seus cálculos, ao
final de alguns meses Vikram encontrou uma primeira resposta. O sucesso do LTCM,
seu tremendo sucesso, era a principal causa de sua derrota. Em menos de um
quinquênio o fundo tinha gerado lucros exorbitantes, e de repente a questão tinha
sido que diabos fazer com o capital acumulado. Embora a maior parte do capital
tivesse sido reinvestida em novas operações de arbitragem conforme os padrões
ditados pelos gênios, tinha sobrado o suficiente para que Haghani, Hilibrand & Cia
caíssem na tentação de apostar enormes quantias aqui e ali, apoiados mais em suas
intuições do que em suas análises. Eles nunca admitiriam que suas decisões
respondiam mais aos seus colhões que às suas estatísticas e que as perdas eram um
típico produto da imprudência ou da húbris, disfarçariam a merda com números e
mais números, esperando que ninguém, e nós muito menos, percebesse que atrás do
suave perfume das fórmulas de Merton e Scholes se ocultava um arenque podre.
Exatamente como apontou Vikram, galvanizados por seus lucros e sua boa
sorte — o maior perigo para um especulador —, os sócios do Long-Term tinham
perdido a paciência e a razão. Anos atrás teriam passado semanas analisando os
dados da economia italiana para se lançar a favor ou contra seus bônus ou sua
moeda, mas em compensação agora ninguém tinha tempo nem sequer para reler um
relatório. Nessa altura, justo nessa altura, alguém pronunciou a palavra que deveria
definir o destino do LTCM: Rússia. A nova Cornucópia da Abundância, o novo
Paraíso do Capitalismo, o novo Eldorado. À primeira vista, os sócios demonstraram
entusiasmo pelo novo projeto de investimentos, afinal o presidente do banco central
russo, Serguei Dubinin, acabava de declarar que o rublo não se desvalorizaria, e os
bônus russos em um ano chegaram a pagar até 90% de lucro. As possibilidades de
brincar de arbitrar na gelada terra de Dostoiévski pareciam mais que animadoras.
Mas onde foram parar os números e os estudos exaustivos que caracterizavam o
LTCM até então?
— Esta decisão me deixa com a pulga atrás da orelha — confessei a J.M. em
uma reunião em Greenwich. — Os mequetrefes do FMI dizem que a Rússia é um
problema controlado pelo resgate de 22 bilhões de dólares que acabam de entregar a
Ieltsin. Não acredito nisso. Este dinheiro acabará nos bolsos dos oligarcas...
Não era necessário ser um especialista em política russa para chegar a esta
conclusão, mas Haghani desprezou nossa análise com uma expressão grotesca.
— As potências nucleares não podem falir, os Estados Unidos nunca
permitiriam. Então relaxe, Volpi! Além disso, deixe eu lhe dizer que nós também
contamos com um modelo para o muito improvável caso de um default russo.
— Uma fórmula capaz de prever o que aconteceria se a maior potência nuclear
do planeta não conseguisse honrar seus pagamentos? Está falando sério?
— Aqui nos apoiamos na experiência — Haghani não escondia sua
exasperação. — Se você não está disposto a tirar conclusões da experiência, então
pode ficar sentado de braços cruzados e não fazer nada.
Um erro de principiante: achar que no mundo das finanças o passado é um
bom termômetro do futuro. Quando duas horas mais tarde me atrevi a dizer a J.M.
que o raciocínio de Haghani colocava a firma em perigo, este me olhou como se eu
fosse um intruso ou um espião.
— São pessoas como ele que ganham dinheiro para o Fundo.
Quando se ouve um alerta sismológico é porque o epicentro do terremoto está
perto demais. Pelo menos no mundo financeiro: quando os sinais da crise são tão
óbvios que qualquer um pode percebê-los é porque não há para onde correr. Em
vista dos acontecimentos posteriores, não me atreveria a confirmar esta afirmação
(de outro modo não estaria embaixo deste asqueroso coqueiro), mas pelo menos
posso me gabar de que desta vez eu previ o tremor que se formava, a eclosão e o
torvelinho, e soube fugir a tempo. Como disse a Vikram, tinha chegado a hora de
deixar de servir a outros.

DUETO DA VINGANÇA

Minha intuição não estava errada: o álbum fotográfico que o detetive me


entregou, mais próprio da Hustler que da Playboy, não deixava margem para
dúvidas. Pelo menos três vezes por semana Pam se divertia com uma dominicana de
tetas aerostáticas, além de trepar com minha esposa nas segundas e quartas na hora
do chá. Impossível saber se havia um mínimo substrato de amor naquela ginástica
amorosa, ululantes invocações a Deus e muita esfregação de clitóris, segundo o
detetive. Atlética, odiaria dizer ninfomaníaca, Pam ainda tinha energia para
satisfazer o marido, o pulcro executivo do Citibank. Sem deixar de admirar seu
ímpeto, tive que compartilhar com Leah a voracidade da sua namorada. Com os
dedos crispados, minha mulher mergulhou em um choro que desta vez era agressivo
e vigoroso, cheio de rancor.
— E agora?
— E agora o quê?
— O que posso fazer?
— Esquecê-la.
— Não.
— Compartilhá-la.
— Também não!
A inclemente (e inútil) hidra do ciúme.
— Certo, deixe comigo — prometi outra vez.
Ainda me surpreende relembrar a cumplicidade que Leah e eu tecemos nessa
época, quando nós dois começamos a ficar a par de nossas respectivas aventuras
eróticas e a nos aconselhar ou consolar sem ressentimentos. E a nostalgia me aferroa
ao lembrar que, muito provavelmente, nunca voltarei a estar ao lado dela nem
brincarei com a pequena Becca, que nem sequer tem meu sobrenome e cujo
rostinho nunca contemplei.
O feio assunto de Pam foi resolvido de maneira drástica. Quando a dominicana
de tetas aerostáticas emergia de um bazar de bugigangas, coberta de anéis e
braceletes multicoloridos, alguém se ocupou de lhe oferecer uma boa quantia para
que embarcasse de volta à sua ilha ou pelo menos fingisse isso. Muito digna, a
mulata recusou. Então, como em Família Soprano, o valentão (eu o imagino
italiano, chimuelo e contundente, com uma mancha avermelhada no cangote) lhe
revelou que a alternativa era uma denúncia anônima ao Departamento de
Imigração.
Nunca voltamos a ter notícias da dominicana. E Leah e Pam ficaram mais
unidas que nunca.
Subornar ou chantagear uma imigrante ilegal, 20 mil dólares.
Que sua esposa sorria (e não estrague suas galas no Met) não tem preço.
Sem dúvida há coisas que o dinheiro compra…

RECITATIVO

Não foi uma coincidência nem um milagre, agora acho que a descoberta foi
parte de um plano maliciosamente traçado pela minha mãe. Abandonada na
residência para aposentados em Orlando, Judith continuava se exercitando como
uma manipuladora de marionetes capaz de fazer avançar ou retroceder nossas
pesquisas (como Leah continuava chamando) ao seu bel-prazer. Como se tivesse
sido resgatada do fundo dos mares — ou da sua memória —, de repente descansava
sobre a minha mesa, dentro de um grosso pacote do FedEx de uma polegada de
espessura, uma nova e insuspeitada coleção de diários do meu pai, desta vez
correspondentes ao período 1943-1945 (por que só estes anos?, perguntou minha
exigente mulher), que cobriam as negociações entre as delegações americana e
britânica sobre a política econômica do pós-guerra e os bastidores da Conferência de
Bretton Woods. Um presente que, em sua infinita benevolência, minha mãe me
fazia chegar sem admitir nenhuma pergunta sobre sua origem ou as razões de sua
repentina aparição.
Diferentemente dos cadernos anteriores, nestes a caligrafia de Noah se tornava
mais severa, como se ele estivesse se esforçando para manter a firmeza do pulso. Em
compensação, suas observações, tanto técnicas quanto humanas (para adjetivá-las de
alguma maneira) adquiriam um tom excessivamente minucioso na hora de detalhar
a negociação com os ingleses. Suas descrições dos meandros de Bretton Woods
fizeram as delícias de Leah — Noah teria sido um dos redatores dos acordos da
conferência —, mas me pareceram longas e chatas.
— Vamos nos concentrar em entradas que permitam observar a relação de
White e do meu pai com a União Soviética — pedi a Leah.
— Em minha opinião, White e seus subordinados queriam apenas dobrar os
britânicos — declarou. — Sem dúvida o subsecretário do Tesouro respeitava
Keynes, mas estava decidido a sabotar todas as iniciativas dele.
Embora o estilo de Leah continuasse sendo simples, nos últimos tempos tinha
se operado uma sutil transformação em sua imagem. Continuava usando um
mínimo de maquiagem, mas agora não hesitava em comprar produtos da L’Oréal
ou da Lancôme em vez das misturas orgânicas do Whole Foods. Continuava
gostando dos jeans e das sandálias, mas agora combinava Stella McCartneys, Jimmy
Choos e Manohlo Blahniks com peças trazidas da Colômbia ou da Índia. A única
coisa em que se mantinha inflexível era em sua fé vegana e na decisão de beber
apenas café e chocolate com etiquetas de comércio justo, a dose mínima de
compromisso social com que se pode saciar a culpa de uma consumidora nova-
iorquina.
— O que me diz deste trecho? — apontei uma página destacada com
marcador:
23 de outubro de 1943
Hoje acompanhei Harry em um almoço com o embaixador Molotov, um
homenzarrão com um inglês ruim e lábios estufados de ex-lutador. Enquanto nosso
convidado devorava suas ostras do Maine, Harry lhe deu uma palestra sobre as
negociações com os britânicos e os avanços do plano monetário para o pós-guerra.
Tenho certeza de que o curtido diplomata registrou cada uma das nossas palavras.
Harry lhe explicou os aspectos gerais do Fundo e não deixou de insistir em que a
presença da União Soviética no organismo era indispensável. Com uma cortesia
afetada, Molotov garantiu que enviaria toda a informação a Moscou e que esperava
uma resposta positiva pelo bem da cooperação entre as duas nações etc.
“O problema”, resumiu Harry, “é que os russos nunca lhe darão uma resposta
direta, tudo deve ser consultado mil vezes, é um pesadelo.”
— Devemos lembrar que, entre dezembro de 1943 e abril de 1944, White e
Keynes continuavam sua disputa à distância — resmungou Leah. — White
precisava publicar o quanto antes um acordo de princípios que servisse como base
para a conferência monetária que Roosevelt queria realizar antes do verão. Keynes,
por outro lado, não deixava passar um dia sem enviar um telegrama ao ministro da
Fazenda para reclamar do rascunho preparado por White. Afinal, além de algumas
pinceladas, praticamente não restou nenhum vestígio do ambicioso projeto
keynesiano no acordo, com exceção do nome escolhido para batizar o Fundo
Monetário Internacional, um termo cunhado pelo britânico frente ao mais ambíguo
e técnico Fundo de Estabilização Internacional empregado por White. Veja:
13 de fevereiro de 1944
A unitas foi definitivamente descartada. Winant, nosso embaixador em
Londres, confirmou isso ao secretário. Os britânicos perderam a última batalha e só
resta uma rendição sem condições. Do nosso lado, o presidente voltou a insistir em
que a conferência seja realizada durante o mês de maio. Só faltam algumas semanas!
E o pior é que eu e Glasser temos que organizá-la.
— Três meses mais tarde, os soviéticos voltam a entrar em cena — indico
outras duas entradas:
20 de abril de 1944
“Novamente sem notícias dos russos”, me confiou Harry. “Amanhã o secretário
Morgenthau anunciará o Acordo de Princípios, e Molotov continua sem nos dar
nenhuma resposta. Falei dez vezes com ele e continua dizendo que não estão seguros
sobre os princípios do Fundo. Se a resposta não chegar amanhã a esta hora, não sei o
que faremos.”
Tentei acalmá-lo, em vão.
21 de abril de 1944
Algumas horas antes que o secretário anunciasse o Acordo de Princípios,
finalmente chegou a resposta dos russos. Não foi uma adesão entusiasta, nem algo
parecido, mas pelo menos um pouco mais explícita que o silêncio prévio. Apesar de
não concordar em temas substanciais, dizia o telegrama, decidimos apoiar o plano
Morgenthau.
Não sei se com isso finalmente poderemos respirar.
— Outra vez não vejo nada estranho — de repente Leah se impacientava com
minha teimosia. — White precisava da anuência da URSS para continuar com os
preparativos da conferência. Uma vez confirmada a participação dos britânicos e dos
russos, Morgenthau pôde anunciar que esta se realizaria em julho. No entanto, é
verdade que a publicação do Acordo de Princípios não aliviou a tensão entre White
e Keynes. Milhares de pequenos detalhes (a data e o lugar da conferência, os
membros do novo comitê de redação, o número de países convocados) continuaram
a colocá-los de lados opostos. Só para dar uma ideia do seu humor, vou ler um
trecho desta carta de Keynes — minha mulher não hesitou em imitar as engalanadas
cadências características do sotaque britânico:
A ideia do dr. White em tudo isso se torna “cada vez mais peculiar”. Quarenta
e duas nações, que se transformaram em 43, foram convidadas para o 1o de julho.
Não poderão se comprometer nem tomar decisões finais porque tudo será ad
referendum. Não obstante, agora parece que nem sequer fingirão fazer qualquer
trabalho, pois tudo estará pronto antes que cheguem. Os jornais americanos
indicam que “a conferência começará em 1o de julho e pode se prolongar por
semanas”. A menos que seja uma errata, não é fácil adivinhar do que se ocupará essa
jaula de macacos todo este tempo. É previsível um agudo envenenamento alcoólico
antes que se conclua.
— Não parece muito satisfeito — admiti.
— Farto das críticas de russos e britânicos — Leah levou a mão à testa —,
Morgenthau finalmente anunciou a sede da conferência, o Hotel Washington de
Bretton Woods. Antes disso, White convocou uma reunião de especialistas do
Tesouro e da secretaria de Estado no Hotel Claridge de Atlantic City, em uma
espécie de ensaio geral do qual surgiriam as posições que os delegados americanos
defenderiam diante dos britânicos. Economizarei as descrições que seu pai faz do
encontro (um campo minado com a aparência de um piquenique familiar) para que
nos concentremos na última anotação de Noah sobre os soviéticos antes de ir para
Bretton Woods:
28 de junho de 1944
E os russos? Esta é a pergunta que todos nós fazemos todos os dias. O Harry
mal consegue dormir. Se virão, se não virão. Se virão dispostos a participar
totalmente, ou só como observadores. Se estão contentes, se estão encolerizados.
Depois de tudo o que fizemos por eles.
— Depois de tudo o que fizemos por eles — repeti. — Você não acha que esta
frase basta para documentar sua traição?
Cena VII. Sobre como ganhar perdendo e perder ganhando e
como montar um pequeno álbum de família

QUARTETO (COM CORO DE CONGRESSISTAS E DO PÚBLICO)

Um murmúrio percorre a lotada sala de audiências quando em 1o de junho de


1949 o casal desliza sobre o tapete vermelho. Com uma elegância ao mesmo tempo
ostentosa e comedida — ela usa uma delicada blusa de cetim; ele, um dos seus
infalíveis ternos de linho cinza-pérola —, Alger e Priscilla Hiss conservam o selo da
inocência. Pouco importa que tenham passado seis meses desde que ele foi
formalmente acusado de perjúrio, que metade do país o considere um espião e que,
em vez de assistir a uma comédia musical, seja obrigado a se defender no caso EUA
vs. Alger Hiss no tribunal da Foley Square, em Nova York.
Torcendo o nariz, o juiz Samuel Kaufman (um novato que não está nem há
um mês no cargo) se remexe na poltrona forrada de couro verde e dirige o olhar
para Tom Murphy, o promotor encarregado da acusação.
— Começamos, sr. Murphy?
Murphy, um elefante bojudo e irascível, não espera nem um segundo para se
colocar diante dos jurados agitando um maço de papéis.
— Estamos aqui para julgar o sr. Alger Hiss, que é acusado de ter mentido duas
vezes diante de um grande júri — estende a tromba na direção de um dos
camarotes. — Primeiro, quando afirmou que nunca entregou documentos do
Departamento de Estado ao sr. Whittaker Chambers, e depois quando garantiu não
ter voltado a ver Chambers depois de 1o de janeiro de 1937. A acusação, vossa
excelência, conta com uma única testemunha, o próprio Whittaker Chambers, que
está disposto a declarar como recebeu os documentos do sr. Hiss para depois
fotografá-los. E também confirmará que, em um esforço para acelerar o processo, a
sra. Priscilla Hiss se uniu à equipe de espiões, datilografando os documentos que seu
marido subtraía de seu escritório e levava para casa. Infelizmente — Murphy baixa a
voz —, embora nossos agentes tenham varrido a cidade de Washington de cabo a
rabo, a acusação não conta ainda com uma peça-chave de evidência, a máquina de
escrever Woodstock em que a sra. Hiss transcrevia os documentos. No entanto, o
governo possui provas suficientes para demonstrar a acusação.
Resfolegando, o promotor desloca seu volume para o lado oposto da sala, em
um balé que lembra o dos hipopótamos de Fantasia.
— Os membros do júri deverão examinar Chambers cuidadosamente — os
instrui —, observar sua conduta no banco, observar o tom do seu rosto,
esquadrinhar suas feições e movimentos porque, se finalmente vocês não
acreditarem em Chambers, então não teremos oportunidade de ganhar este caso.
Com um acusador destes quem precisa de defesa! Quase parece que Chambers
é o indiciado!
Depois de um recesso de cinco minutos, Lloyd Stryker, o advogado de Hiss,
apresenta seu cliente.
— Os dias dos fogos de artifício, da televisão e de toda a parafernália que
cercou este caso terminaram — Stryker avança em direção à bancada do júri. —
Depois de meses de ser objeto de uma brutal inquisição, Alger Hiss finalmente
chegou ao porto seguro da calma e da tranquilidade de uma corte de justiça. Acho
que meu colega, o sr. Murphy, tinha razão quando disse que a única coisa que
importa aqui é decidir a credibilidade deste homem, Whittaker Chambers.
Stryker se torna maniqueísta: pinta Hiss como um anjo e Chambers, mais que
como demônio, como um pobre-diabo, um vil comunista que várias vezes se negou
a apresentar a prova de suas denúncias e que, para evitar o processo por difamação
impetrado por Hiss, inventou uma trama de espionagem.
— Mas deixem-me acrescentar uma coisa — Stryker se dirige a Murphy. — O
senhor disse, sr. Murphy, que seus agentes varreram a cidade de Washington de
cabo a rabo e não conseguiram encontrar a máquina de escrever dos Hiss, é isso?
— Exatamente.
— Pois quero anunciar que nós a temos — e, tirando um coelho da cartola,
repete: — nós temos a Woodstock dos Hiss!
O público congela nas poltronas.
— O sr. Hiss foi uma vítima inocente da pessoa que então se fazia chamar
George Crosley, um homem aparentemente talentoso e agradável, bom conversador
e escritor iniciante. Infelizmente, naquela época não havia ninguém ao lado do sr.
Hiss para preveni-lo sobre este sujeito, como o farei agora diante dos senhores. Nos
países do Sul — o advogado arqueia as sobrancelhas —, onde ainda existem
leprosos, às vezes se ouve alguém gritando nas ruas um imundo, um imundo toda vez
que um leproso se aproxima. Eu diria o mesmo a vocês diante da proximidade deste
leproso moral. Um imundo, um imundo! Muito obrigado.
Apenas Murphy parece aplaudir que tinha chegado a hora do almoço.

RECITATIVO

Nada reconforta mais um homem de negócios do que um acordo transparente,


um pacto sem letras pequenas, um contrato sem faltas ocultas. Uma vez que Leah
mostrou suas cartas — desde sua revelação durante aquela festa de gala no
Metropolitan não parou de falar de Pam e mal ocultava o ciúme que padecia por sua
culpa —, a sólida relação que tínhamos forjado se tornou ainda mais sólida.
Tínhamos nos transformado em sócios de uma empresa que nos dava inúmeros
benefícios: a mim, sua paixão pelas nossas pesquisas e a simpatia que despertava nos
círculos onde éramos obrigados a nos mover; a ela, uma liberdade da qual nunca
antes tinha gozado — a liberdade que só o dinheiro concede —, que lhe permitiu se
doutorar na CUNY com as notas mais altas e se dedicar às causas sociais que, com
certo ceticismo, eu concordava em financiar. Encanamentos em El Salvador,
refeitórios infantis na Malásia, centros de acolhida na Nigéria e financiamento para
dezenas de sociedades protetoras de animais, estas ninharias que ajudam alguns
poucos e limpam a consciência dos ricos. Assim, enquanto ela se esforçava para fazer
alguma coisa positiva pelo mundo, eu espremia este mesmo mundo que aos meus
olhos seria sempre uma pocilga.
Pelo lado sentimental, nosso pacto nos proporcionava uma liberdade ainda
mais benéfica. Se no início nos era difícil detalhar nossas respectivas aventuras,
pouco a pouco nossas conversas eróticas se tornaram mais explícitas, desprovidas da
vergonha pequeno-burguesa de que não era fácil nos livrar. Só então Leah se atreveu
a me contar alguns detalhes do seu passado sentimental. Ao que parece, as mulheres
a atraíam desde menina, mas as ambíguas normas da camaradagem feminina sempre
mascaravam suas preferências. A primeira vez que beijou uma colega, teoricamente
para aprender as técnicas que depois deveria empregar com os garotos, lhe
confirmou por que em suas fantasias sempre apareciam seios enormes, poderosas
cadeiras e cabeleiras cacheadas. Embora nunca tenha repudiado os corpos
masculinos — chegou a ter dois ou três namorados mais ou menos sérios no college
—, preferia entrar nos buracos de seu próprio sexo. Seu acanhamento a impedia de
se aproximar das garotas de quem gostava de verdade — animadoras de torcida e
atrizinhas fúteis — e por muito tempo teve que se conformar com as sapatonas com
bíceps de lutadoras e crânios raspados que a seduziam depois de atordoá-la com
tequila. Não deixava de me surpreender que uma mulher radical e contestadora
como Leah sucumbisse aos estereótipos do show business, pois só a excitavam as
mesmas fêmeas de tetas mastodônticas, cinturas diminutas e bundas arrebitadas que
enlouqueciam os operários e mecânicos. (Com lábios inflados e quadris generosos,
Pam ocupava um lugar nessa espécie.) Outra excentricidade dela, justo o oposto da
minha: o pelo corporal lhe parecia uma prova insuportável de sujeira, e só apreciava
o contato com peles limpíssimas.
Esclarecida sua posição, logo lhe contei a história de Allan e revelei meu
próximo objetivo: Vikram Kureishy. No início minha escolha pareceu desconcertá-
la, mas acabou se entusiasmando com a ideia. Desde que trabalhávamos no J.P.
Morgan me atraíram as maneiras silenciosas do meu sócio indiano, sua ambição
lânguida e tranquila, o tom cinzento de seus olhos e lábios, mas não tinha me
atrevido a levá-lo para a cama não tanto por medo da rejeição, mas porque uma das
minhas escassas regras éticas (mais práticas) me levava a separar o sexo dos negócios.
Com seu talento financeiro e sua lealdade a toda prova, Vikram tinha se tornado
essencial para a minha estratégia, e não queria me arriscar a perdê-lo por uma banal
noite de luxúria. Nem sequer durante nossa viagem ao Sudeste Asiático tinha lhe
insinuado meus desejos; embora nós dois tenhamos usufruído dos prazeres locais —
vocês sabem a que me refiro —, cada um o fez por sua conta. Foi Leah quem me
animou a ir em frente, pois pressentia (com razão) que a união dos nossos corpos
acentuaria seu compromisso com a nossa causa.
Nessa mesma tarde disse a Vikram que precisava falar com ele e ficamos de nos
encontrar em um discreto bar no West Village. Ele quase não demonstrou surpresa
— um leve arqueamento da sobrancelha esquerda — quando lhe propus deixar o
Long-Term e fundar o nosso próprio fundo de hedge. Ele tinha pedido um martíni
de melancia ou algum outro destes coquetéis multicoloridos de que ele tanto gosta
(acho enjoativos) e o bebeu de uma vez. Pediu outro e voltou a engoli-lo de um
único gole enquanto afinávamos nosso plano de negócios. Nunca antes ou depois o
vi beber dessa maneira. Mesmo assim, quando deixamos o bar perto da meia-noite
só eu parecia sofrer os estragos do álcool, e só tinha me limitado a pedir três
aborrecidos uísques com gelo.
Fomos para o seu loft no Brooklyn, um estúdio mais amplo do que imaginei ao
vê-lo por fora, em um segundo andar, decorado com todos os clichês que
costumamos associar aos indianos, imagens de deuses e heróis mitológicos, vasilhas e
quinquilharias de cobre e aquele inconfundível cheiro de cúrcuma e incenso a que
então eu ainda não tinha me acostumado. Minha embriaguez não me impediu de
despi-lo em tempo recorde. Então Vikram me jogou na cama, de bruços, e amarrou
meus pulsos na cabeceira com uns cordões de seda que tirou de uma gaveta. Não
posso dizer que tenha sido o orgasmo mais intenso da minha vida, porque depois
me proporcionou muitos outros, mas sim o mais inesperado. Sem nenhuma
preliminar o senti dentro de mim, se sacudindo (e me sacudindo) com uma energia
que eu só poderia qualificar de brutal. Quando despertei na manhã seguinte com o
corpo dolorido, Vikram me serviu um café da manhã indiano e propôs o nome que
devíamos dar ao nosso fundo.
— JV Capital Management, é claro.
CORO DO PÚBLICO

— É ele, é ele! — murmura o público quando, depois de uma enxurrada de


enfadonhos testemunhos técnicos, Whit finalmente entra em cena.
Espremido em um terno preto que parece uma lúgubre barraca de campanha, a
testemunha estrela da promotoria parece humilhada, as olheiras se tornaram ainda
mais arroxeadas e um halo de resignação embota seu semblante. Nunca esteve tão
gordo, a culpa, a raiva e a fadiga o transformaram em um mastodonte aposentado.
Depois de jurar sobre a Bíblia, Whit volta a resumir sua história. Mais que falar,
cochicha, ora imerge em um silêncio denso e detestável, ora se perde em enroladas
digressões acadêmicas. Stryker o interrompe apresentando uma objeção atrás da
outra, decidido a expô-lo como uma alma má e conflituosa.
Murphy recupera a iniciativa e resume a trajetória comunista da testemunha
(dado que Hiss só é acusado de perjúrio, o juiz ordenou que não se estendesse sobre
as atividades dele no Partido). Prestando atenção para deixar escapar detalhes
escabrosos, estabelece a data em que Hiss e ele se conheceram em Washington e fala
sobre sua amizade, o apartamento e o Ford emprestados, os documentos que Hiss
lhe confiava, a inclusão de Priscilla no círculo.
Depois Murphy mostra a Whit um saco de celofane com um pacote de
documentos e microfilmes (os papéis da abóbora). A testemunha os identifica como
dele, reafirma sua amizade com Hiss e repete a melodramática sequência da
despedida, quando quis convencê-lo a renunciar à espionagem e este, segundo seu
testemunho, acabou chorando como uma criança.
— Era conhecido nessa época sob o nome de George Crosley? — interroga.
— Não me lembro, mas é possível. O que me vem repentinamente à memória
é nossa conversa daquele dia. Alger disse que era uma pena que eu abandonasse
nossa rede justo quando ele estava para subir no escalão do Departamento de
Estado. Antes de nos despedirmos me perguntou como passaria o Natal.
— E o que você lhe respondeu?
— Que imaginava um Natal muito triste. Então Alger entregou um pequeno
brinquedo de madeira como presente para a minha filha Ellen.
Sem se deixar impressionar por esta saída melodramática, Stryker ajeita as
calças e, com o desembaraço de um velho lobo do mar, se planta na frente de Whit.
— Não é verdade, sr. Chambers, que um comunista deve obedecer como
escravo às ordens do Partido mesmo se lhe indicarem que deve mudar de emprego
ou inclusive de marido ou de esposa?
— Exatamente.
— E a mesma coisa se o Partido lhe ordenar mentir, roubar ou sair à rua e
começar uma briga?
— Exatamente.
— Então não são todos os comunistas espiões, sabotadores e inimigos do
governo?
— Sim.
— E todos os membros do Partido eram traidores do nosso país, não é
verdade?
— Sim.
— E você traiu o nosso país?
— Sim.
— Para ocultar seu trabalho como espião, você mentiu nos depoimentos diante
do secretário Adolf Berle, diante do sr. Ray Murphy e diante do Comitê de
Atividades Antiamericanas?
— Exatamente.
— E quando compareceu pela primeira vez diante do tribunal e afirmou não
ter conhecimento de nenhum ato de espionagem, era uma resposta falsa ou
verdadeira?
— Falsa.
— Então você admite que deu um testemunho falso e cometeu perjúrio diante
do tribunal neste mesmo edifício e nesta mesma sala?
— Correto.
Saboreando seu triunfo, Stryker diz não ter mais perguntas e, depois de
consultar o relógio — são 13h58 —, solicita a Kaufman que a audiência seja adiada
até a próxima segunda-feira. Assim que o juiz bate na mesa com seu martelo, a
equipe de Stryker corre a cumprimentar seu chefe enquanto Murphy, no lado
oposto da sala, apenas aperta os dentes.

ÁRIA DE SUSAN

Uma foto de família.


Vistos à distância, sem se aproximar nunca a menos de alguns passos, pareciam
a família perfeita: o pai sereno e atlético com covinha no queixo e costeletas
recortadas que a gente só encontra nas séries dos anos 1980, Patek Philippe no pulso
e a atitude viril de um James Dean um pouco acima do peso. Com os braços
musculosos e peludos — a camisa arregaçada —, Terry abraça uma das gêmeas
(talvez Audrey), um primor de oito anos com marias-chiquinhas quase albinas, nariz
arrebitado e boquinha aberta em forma de rosa. À sua esquerda, sob a sombra de um
chorão, a outra gêmea (Sarah talvez), um pouco menos vaidosa que a irmã, abraça
seu ursinho de pelúcia. E finalmente, no canto direito da foto, um passo atrás, a
magérrima figura da mãe com a tez um tanto pálida, as mechas presas com um
arquinho, um jeans um tanto largo e aquele olhar que não se sabe se entusiasma ou
fere. Terry, Audrey, Sarah e Susan. Meu genro, minhas duas netas e minha filha. A
família que contratariam para um anúncio de pasta de dentes, cereais ou ração para
cachorro. A família dos contos com finais felizes para sempre.
Pena que essa imagem, tão amorosamente cultivada — Susan era especialista
em atenuar as asperezas cotidianas como se lhes aplicasse Photoshop —, fosse a tela
de uma infelicidade dilaceradora. Atrás dos dentes impecáveis e das pretensões de
dândi, Terry era grosseiro e brutal, algo sádico. Fora breves parênteses de calma,
Audrey (ou seria Sarah?) não parava de se queixar, noite e dia, de sua má sorte. Mais
introvertida, Sarah (ou Audrey?) era mordaz, quase má, e por pouco não tinha sido
expulsa da escola por rasgar a orelha de um colega. E Susan, já disse, Susan
permanecia tolamente apaixonada por Milton (o infeliz que faltava na foto).
Que direito tinha ela, então, de me julgar? De gritar comigo como se eu fosse
Terry, ou uma de suas filhas, ou o imbecil por quem se dizia apaixonada? Se a moral
sempre me pareceu um escudo para submeter os mais fracos e lavar as consciências
dos ricos, há poucas coisas que odeio tanto quanto a incongruência de quem se acha
irrepreensível e esconde vícios piores do que os que aponta com o dedo. Ou seja: eu
posso transar com Milton três vezes por semana, às escondidas do meu marido e das
minhas filhas, mas me escandalizo com meu pai por ter um acordo aberto, racional,
com dois adultos. Ou me faço de liberal e tolerante, e até me gabo de que meu
melhor amigo é gay, mas não suporto que uma das duas pessoas com quem meu pai
mantém seu civilizado acordo seja um homem.
Quando irrompeu no meu apartamento, perto das onze da noite, Vikram
estava tomando banho depois de uma tarde de sexo imprevisto. Para que disfarçar o
óbvio? Levei-a ao meu escritório e me fechei ali com ela. Sua pele parecia ainda mais
translúcida que de costume, matizada apenas pela expressão de desagrado — diria de
nojo — incrustada no semblante.
— Sim, é exatamente o que você está pensando — disse sem mais.
Susan praguejou. Esperei que se acalmasse e lhe ofereci uma taça de conhaque
que ela terminou em um segundo.
— E Leah? — murmurou como se de repente lhe importasse a opinião da
minha mulher.
— Leah tem suas próprias histórias.
Contive a raiva e tentei lhe explicar, como se fosse uma operação de somar,
nosso acordo, minhas razões e as razões de cada um de nós, a educada convivência
que se desenvolvia entre os três. Exigi que respeitasse nossas decisões e especialmente
que não dissesse nada ao irmão. Como única resposta, Susan cobriu o rosto e
afundou em um novo soluço.
— Pare de chorar — ordenei.
Sem me dizer por que tinha ido me procurar àquela hora, Susan retocou um
pouco a maquiagem e me disse que não era nada, nada importante, que podia
esperar. Quando escapulia a toda pressa para a rua, topou com Vikram. Com sua
calma habitual, meu amigo se limitou a sorrir para ela.

QUARTETO (COM CORO DE CONGRESSISTAS E DO PÚBLICO)

Diferentemente do que acontece nos trepidantes filmes de tribunais, os


julgamentos de verdade são tão insossos, lentos e enfadonhos quanto a tetralogia
wagneriana em um teatro de província (já Verdi, mesmo mal interpretado, nunca
deixa de me comover). Durante a maior parte do tempo nada interessante acontece
nos tribunais enquanto especialistas e testemunhas desfiam, a passo de tartaruga, os
indícios e provas. A situação só se anima quando, depois de semanas sendo
crucificado e ludibriado ou defendido e elogiado pela imprensa mercenária, Alger
Hiss finalmente sobe no estrado. Novamente vestido como um dândi. Novamente
sereno e arrogante. Novamente com as emoções (se é que as tem) ferreamente
controladas. Novamente bonito. Novamente crédulo em seu prestígio e sua lábia.
Novamente preparado para aguentar estoicamente a tourada. Alger, touro bravo.
— Sr. Hiss, o senhor é, ou alguma vez foi, membro do Partido Comunista? —
começa Stryke.
— Não sou e nunca fui.
— Ou companheiro de rota ou simpatizante dos comunistas?
— Não, sr. Stryke.
— Estas anotações são suas? — o advogado lhe mostra os “papéis de
Baltimore” que Whit entregou ao FBI.
— Sim, são.
— Alguma vez entregou documentos como estes ao sr. Whittaker Chambers?
— Não.
— Alguma vez em sua vida proporcionou, entregou ou transmitiu documentos
confidenciais, reservados ou secretos do Departamento de Estado a Whittaker
Chambers ou a outra pessoa?
— Não.
— Suas respostas diante do tribunal e do Comitê de Atividades Antiamericanas
foram honestas?
— Foram.
— E são agora?
— São.
Tomando-o pela mão — são suas palavras —, Stryker conduz Alger pelo
sinuoso caminho da sua vida, desde os primeiros estudos até esta infeliz provação,
permitindo-o rememorar mais uma vez seu irrepreensível expediente como
funcionário.
— Você datilografou os documentos exibidos como prova?
— Não.
— E sua esposa?
— É óbvio que não.
— Fez isso na sua presença ou sob seu conhecimento?
— Não, senhor.
— Invocou seu privilégio constitucional de não responder às perguntas do
Comitê de Atividades Antiamericanas ou do tribunal?
— Nunca.
— Cooperou com o FBI?
— Sempre. Eu estava tão interessado quanto eles em que se soubesse a verdade.
— E como explica a existência destas anotações manuscritas?
— No Departamento de Estado lidávamos com grande quantidade de papéis.
Às vezes o material era tão grande que eu escrevia bilhetes breves para que o
subsecretário Francis Sayre ficasse a par do conteúdo.
— E como estes bilhetes puderam chegar às mãos do sr. Chambers?
— Provavelmente um roubo — Hiss descruza as pernas. — Naquela época
praticamente não havia restrições para entrar no Departamento de Estado. Julian
Wadleigh, por exemplo, costumava aparecer sem avisar no meu escritório, ou no do
subsecretário.
— Quando foi a última vez que viu o sr. Chambers antes de ser acusado por
ele?
— Na primavera de 1936.
— Sr. Hiss, o senhor solicitou solenemente que o veredito seja inocente para
todas as acusações que lhe imputam, não é verdade?
— Exatamente — responde Alger sem piscar.
— E de fato não é culpado?
— Não.
(Olé!)
Ao término de um breve recesso, Murphy faz sua estreia. Planta-se na arena,
saca a espada diante da bancada dos jurados e, tentando se exibir a cada lance,
detalha o amontoado de inconsistências de Hiss: a Woodstock, o Ford, George
Crosley, as datas de uma coisa ou de outra. Fazendo o tipo matador, Murphy tenta
liquidá-lo de cara. Mais hábil ou mais sutil — advogado de Harvard, não de
Fordham —, este se esquiva e o enfurece. A cada lance, Alger responde com ar
professoral, às vezes petulante, às vezes sarcástico, e escapa do cerco com astúcia.
Murphy não para de exibir a dubiedade do acusado, mas, incapaz de feri-lo de
morte, se frustra e acaba como idiota.
Se Alger sai ileso da perseguição, Priscilla em compensação não escapa da raiva
de Murphy. Como se acusador e acusado fossem as duas caras da mesma moeda, a
esposa de Hiss parece tão frágil, tão insegura e tão nervosa quanto a mulher de
Chambers. Mas além do amor ou da devoção conjugal pelos maridos, nenhuma
delas nunca quis se ver nessa situação. Melindrosa, reticente, Priscilla nem sequer
quis ensaiar seu depoimento, a coitada carrega consigo as semanas que tinha sido
exibida ou execrada nos tabloides — há quem a acuse de ser a verdadeira espiã e
Alger, uma vítima —, abandonada pelos amigos e colegas, e não se sente capaz de
suportar a ruína moral e financeira que o julgamento lhes trará, mesmo se
ganharem.
Com tato, Stryker a guia através de sua contrastante biografia, a educação em
Bryn Mawr e em Yale, o infeliz casamento com o editor Thayer Hobson, a
separação, o vergonhoso aborto a que foi submetida depois (por culpa de outro
canalha) e o casamento com Hiss. Priscilla apoia o marido: nunca foram íntimos
dos seus inquilinos, nunca teve amizade com Esther, nunca socializaram nem foram
juntas ao pediatra. E obviamente nega ter datilografado ou entregado a Chambers
documentos do marido. Priscilla não chega a estourar, mas ao término do
interrogatório sua pele parece gasta e seus olhinhos embaçados. Seu coração está aos
cacos.

ÁRIA DE ISAAC

Outro clichê: o filho pródigo. Incapaz de aguentar sequer mais um segundo as


imposições do seu autoritário e anacrônico pai — cito-o —, aos vinte e dois anos
Isaac abandonou a universidade, encheu o corpo de tatuagens angélicas, deixou
crescer as unhas até que se encurvaram e escureceram, trocou as camisas Lacoste e os
tênis Nike por regatas de algodão e sandálias, encheu a boca de palavras como
carma, namasté e compaixão, colocou no ombro uma mochila com manuais de
autoajuda com vagos nomes orientais e desapareceu no Colorado em um
acampamento hippie, uma comunidade de hare krishna ou uma reserva de
indígenas americanos, não sei ao certo. Antes de ir embora me enviou uma carta
interminável, infestada de sinais de exclamação, maiúsculas, parênteses e erros de
ortografia — imagino que devidos à maconha ou outros eflúvios para abrir as portas
da consciência — na qual denominava seu GRANDE REPÚDIO.
Acho que não consegui decifrar mais de 10% de suas teorias, mas em resumo
era uma espécie de manifesto contra mim disfarçado de proclamação anticapitalista.
Isaac dizia que não estava disposto a ser outro “lobo de homens”, que renunciava à
“moral carnívora” e à “competição para esmagar os miseráveis”, que minhas ideias
individualistas estavam “corrompidas pelo vírus que levou os judeus aos campos de
concentração” e que minha defesa do livre mercado era uma tosca farsa “para
mascarar minha ânsia de lucro” (admito que nisso não estava errado) e, enfim, que
ele “não mancharia as mãos com o sangue dos fracos”. Fora dois bonitos parágrafos
sobre a vida dos astros e o tamanho do cosmos que quase chegaram a me comover, o
palavrório anticapitalista de sempre. Sua mãe me ligou para avisar que se acontecesse
alguma coisa ao rapaz eu seria responsável e pagaria muito caro. Me preocupei ou
me escandalizei? De jeito nenhum. Tampouco me senti particularmente ferido, nem
sequer quando meu filho me comparou com Al Capone e com Pol Pot.
Como era previsível, um ano e meio depois — quando se esgotaram suas
economias e se fartou da dieta de mato e arroz cozido —, Isaac voltou à civilização
que tanto desprezava, à sua vida com Kate e seus herdeiros, Tweedledee e
Tweedledum. Não era necessário pedir desculpas: seu tom raivoso e altivo na hora
de exigir que eu voltasse a lhe pagar a pensão e a depositar o dinheiro que eu lhe
devia “por tê-lo colocado neste asqueroso mundo” equivalia a uma admissão de
culpa. Seguindo o conselho bíblico, não o castiguei, não o repreendi e nem sequer
zombei do seu fracasso. Nem o recebi com os braços abertos, como nas pinturas e
gravuras da cena, mas assumi que meus pontuais depósitos no banco lhe seriam
mais úteis. Bem-vindo à casa, meu filho.
Quando finalmente concluiu seu MBA em finanças, Isaac peregrinou de um
lado para o outro do sistema financeiro sem encontrar seu lugar em nenhuma parte.
Sua paixão? Nenhuma. Não gostava de nada, nada o satisfazia, não havia um
emprego suficientemente bom para ele ou acabava descobrindo que os chefes e
colegas eram invariavelmente novilhos invejosos ou víboras incultas com quem
jamais saberia se entender. Eu consegui colocá-lo no escritório de derivativos do
Bear Sterns, onde durou três meses. O que acha então do Goldman Sachs? Seis
semanas. No Bank of America quebrou seu recorde: nove dias.
Deixei de recomendá-lo, e ele então vagabundeou por vários fundos de
investimento, uma consultoria para negócios emergentes, uma companhia de
seguros e, depois de se conceder outro ano de descanso — de quê? —, desembarcou
no Merrill Lynch… Durou ali um ano e meio, ao término do qual afirmou,
sabiamente, que o mundo dos negócios não era para ele. Sobrevivia dos depósitos
que eu colocava na sua conta: sua mulher, mais esperta que ele, tinha pedido uma
licença no departamento jurídico do Best Buy para criar Tweedledee e
Tweedledum.
Prevendo minha futura independência, em meados de 1998 pedi a Isaac que
iniciasse os trâmites legais para colocar em funcionamento o JV Capital
Management, nosso — meu — próprio fundo de risco. Nunca teria lhe dado a
gestão de uma conta, mas a ideia era mantê-lo entretido com os trâmites diante das
distintas instâncias federais e estaduais. Quando lhe sugeri alguns atalhos — o
habitual tráfico de influências que prevalece em nosso meio —, recusou
terminantemente. Ele era honesto e sempre seria, me advertiu, levantando o nariz.
Como vocês suporão, desconfiados leitores, não me orgulhei de sua consciência
imaculada nem de seus sólidos princípios. A quem, diabos, ocorreria se gabar de
uma moral irrepreensível, como Isaac, e ao mesmo tempo trabalhar em Wall Street?

QUARTETO (COM CORO DE CONGRESSISTAS E DO PÚBLICO)

Um último duelo entre o lagarto e o elefante.


— Whittaker Chambers é um perjuro confesso e reincidente, um mentiroso
cabal por aprendizado, treinamento, inclinação e preferência — começa Stryker,
percorrendo o parquê de um lado para o outro com seu terno cor ciano e uma
gravata-borboleta rosada de cavalheiro do século XIX. — Pior ainda, Chambers é um
inimigo da República, um blasfemo de Cristo, um falso crente em Deus que não
alberga o menor respeito pelo matrimônio ou pela maternidade, um homem sem
princípios e sem fé. Não há um único termo decente que eu possa utilizar para
descrevê-lo, a grosseria, a fraude e o crime marcaram sua alma a ferro…
E assim, sem parar, ao longo de quatro horas. Desqualificando cada prova e
cada indício. Desprezando cada testemunho contra o seu cliente. E elogiando Hiss
sem censura. Apontando-o como a vítima de uma grande conspiração.
— Isto não é um processo! Isto é uma infâmia! — Stryker toma ar e, ator
consumado, recupera a serenidade antes de incitar os jurados. — Se em alguma
medida os ofendi com meu discurso, peço que tomem isso contra mim, não contra
o sr. Hiss.
O letrado se vira então para o seu cliente.
— Alger Hiss, este longo pesadelo está a ponto de acabar. Descanse. Seu caso,
sua vida, sua liberdade estão em boas mãos. Obrigado, damas e cavalheiros.
Murphy, o elefante, não compete pelo Oscar: não tem os meios nem a
habilidade para um monólogo. Prefere se concentrar nas evidências que repete várias
vezes. A Woodstock. Os manuscritos de Hiss em posse de Chambers. As cópias
datilografadas. A Woodstock. Os manuscritos de Hiss em posse do Chambers. As
cópias datilografadas. A Woodstock. Os manuscritos de Hiss em posse do
Chambers. As cópias datilografadas.
— Se devo comparar o sr. Hiss com alguém, seria com Judas Iscariotes —
Murphy não evita o clichê. — Ele também tinha boa reputação. Era um dos Doze.
Estava perto de Deus, e sabemos o que fez. Whittaker Chambers talvez seja uma
serpente enroscada, mas Alger Hiss é o próprio Lúcifer, um dos anjos caídos. Que
nome se dá a um funcionário do governo que toma papéis deste governo e os
entrega a um espião comunista? Que nome se dá a esta pessoa? Um homem
brilhante como ele, que abusa de confiança, fede. Sob esta cara sorridente jaz um
coração negro e canceroso, o negro coração de um traidor.
Se o medidor de aplausos tivesse sido inventado nessa época, o discurso breve
de Murphy teria roçado o máximo.
Às 16h20, o juiz Kaufman solicita aos dez homens e às duas mulheres do júri
que se retirem para deliberar.
Às 22h30, o juiz Kaufman pergunta aos jurados se chegarão a um acordo em
um tempo razoável ou se necessitarão de um hotel.
— Não entrevejo um veredito imediato — confirma o porta-voz.
Escoltados por quatro agentes, os jurados são conduzidos ao Hotel
Knickerbocker.
Às 9h30 de 8 de julho, o júri volta para deliberar. Às 11h30, seus membros
entregam uma carta selada ao oficial do tribunal em que advertem que ainda não há
veredito.
Às 15h15 voltam a enviar um envelope ao juiz Kaufman: “O júri sente que não
pode chegar a um veredito”. Frustrado, ele os incita a continuar tentando.
Às 16h30, os jurados reaparecem, sonolentos e abatidos. O juiz novamente os
manda deliberar.
Às 17h50, o porta-voz anuncia que farão um último esforço.
Às 18h30, o juiz Kaufman pergunta aos jurados se querem fazer um recesso
para jantar.
Às 21h15, os jurados anunciam que não conseguem chegar a um acordo e ao
juiz Kaufman, resignado, não resta outra solução senão registrar que o processo
concluiu com um júri dividido.
Hiss não se alegra. E Priscilla agora sim está a ponto de desabar. Os dois
deixam a sala cambaleando.
O que significa isso?
Que não foram absolvidos.
Que o julgamento deverá se repetir.
Que um novo julgamento os espera.
Cena VIII. Sobre como reconstruir o mundo em um hotel de
luxo e a plácida aposentadoria dos espiões

ÁRIA DE NOAH

Imagino-o de pé, tenso e solitário no meio da praia, plantado na areia


pedregosa, admirando de longe a robusta arquitetura espanhola do Hotel Mt.
Washington, essa baleia branca coberta de janelinhas e acabamentos de estuque que
desponta sob o azul da meia-noite. Mais à frente se eleva o ziguezagueante contorno
da colina e, das copas dos pinheiros, um bando de gansos levanta seu voo rasante e
barulhento. Fora do hotel não há nem sequer uma avenida principal, ruas vizinhas,
lojas ou restaurantes, só o verdor do bosque e os caminhos percorridos por lebres e
cervos. Em compensação, dentro do edifício se esconde um microcosmo de salões
de beleza, barbearias, butiques de roupa, pistas de boliche e um formigueiro de
improvisados escritórios para satisfazer uma plêiade de funcionários com pretensões
(quase sempre de nações periféricas), taquígrafos e estenógrafos, repórteres e
assessores de presidentes e ministros.
Você é um dos artífices do que haverá de acontecer neste plácido canto de New
Hampshire a partir do dia seguinte. Junto com Harold Glasser, Frank Coe e o resto
da equipe do Tesouro, preparou a conferência com esmero, lubrificando as polias e
engrenagens da sofisticada maquinaria que o mundo adotará para se salvar da
recessão e da guerra. Bretton Woods também é obra sua, a herança mais perdurável
— me atreveria a dizer: a mais bem-sucedida — jamais surgida do cérebro de um
economista. No entanto, não te vejo satisfeito nem excitado; ao contrário, em sua
expressão percebo uma sombra de receio, um brilho de lucidez que te faz suspeitar
de que o sistema que criou sob as ordens de White com o objetivo de acabar com os
sobressaltos econômicos pode se transformar em uma camisa de força a serviço de
alguns.
Ao longo desses dias você teve que lidar com todas as delegações, indispostas
por causa do tamanho de suas cotas. Por razões de orgulho pátrio cada uma
pretende mais do que o Tesouro lhe atribuiu e do que o Congresso está disposto a
conceder. A China insiste em ter a terceira maior cota, assim como os russos — os
Estados Unidos terão a primeira e o Império Britânico, a segunda, isto nem se
discute —, a França e a Índia, a quinta, e as nações sul-americanas, a Austrália, a
Índia e a África do Sul aspiram a subir de escalão a todo custo. Outro tema
polêmico: White lhe disse que o voto deve ser equivalente ao montante das cotas,
mas as nações pequenas o advertiram de que não se conformarão em ser irrelevantes.
Mas o que mais o inquieta é a inclusão da União Soviética no sistema financeiro do
pós-guerra. Os britânicos não pararam de sugerir que a URSS poderia ficar à margem,
com seu maldito sistema de planejamento central e sua indústria ferreamente
controlada pelo Estado, mas nem White nem você estão dispostos a deixá-la de fora.
“O Fundo precisa da Rússia”, disse Harry mais de uma vez.
Em 1o de julho de 1944 os delegados se concentram no grande salão de baile
para a primeira sessão plenária. “Mais que de espera, o ambiente remete a uma festa
a fantasia”, escreve você em seu caderno. Depois da leitura da mensagem de boas-
vindas do presidente Roosevelt, os delegados da China, Tchecoslováquia, Brasil,
Canadá, Rússia e México embarcam em uma sucessão de discursos que lhe parecem
melodramáticos, hilariantes ou anódinos, antes que Morgenthau finalmente consiga
se dirigir à assembleia. “Nos campos de batalha do mundo inteiro”, pontifica o
secretário do Tesouro, “os jovens dos nossos países morreram juntos, morreram por
um objetivo comum. Não está longe de nossos poderes permitir que os jovens dos
nossos países vivam juntos para colocar suas energias, seus talentos e suas aspirações
a serviço do enriquecimento mútuo e do progresso pacífico.”
Os primeiros dias se esgotam com intervenções empoladas ou ridículas,
traduzidas de uma barafunda de línguas ao inglês — Babel com jargão de
economista —, o que diminui ainda mais o ritmo por si lento da conferência. Em 3
de julho são organizadas as distintas comissões e comitês segundo o plano de White,
que decidiu que as presidências das primeiras, praticamente honoríficas, recaiam em
estrangeiros, enquanto que as segundas fiquem somente a cargo dos secretários. A
você cabe negociar, entre outros, com os russos. Quase imediatamente começa o
extenuante toma lá, dá cá, para a atribuição de cotas. Harry lhe preveniu: “Deixe
que os delegados falem tudo o que quiserem, desde que não tenham nada o que
dizer. Separemos o verdadeiro trabalho do palavrório”.
Sua missão consiste em conduzir as discussões além da gritaria, traduzir as
escaramuças em avanços concretos e dirigir os delegados da forma mais sutil possível
para as metas planejadas em Atlantic City. Ao longo de duas semanas que lhe
parecem fatigantes, insensatas, muito brilhantes, observa como algumas das maiores
mentes financeiras do planeta se torpedeiam, se bicam, escorregam, se agitam, se
condensam, se dividem, se reconciliam e mais ou menos concordam sobre as bases
mínimas da divisão. Exatamente como White lhe disse, as controvérsias são
resolvidas nos bastidores, em reuniões de emergência entre os delegados dos países
afetados — mexicanos, indianos e franceses de modo recorrente — e os
representantes dos Estados Unidos.
O maior problema surge quando os russos, densos e inflexíveis, informam que
não estão dispostos a aceitar uma cota menor que a dos britânicos. No esquema de
White, as contribuições totais para o Fundo não podem superar 8 bilhões de
dólares, por isso ceder às pressões deles será praticamente impossível. Ainda por
cima, logo descobre que os soviéticos vazaram suas reivindicações para a imprensa.
Como trabalhar nestas condições? As exigências deles nunca param. Para a maioria,
a intransigência prova a falta de interesse em fazer parte do sistema de Bretton
Woods. “A Rússia quer utilizar o Fundo Monetário como um saco de guloseimas”,
queixa-se o congressista Walcott.
Diante desta inconveniência, Harry perde as estribeiras: “Não acho que esta
seja uma hipótese correta”, reclama. “A URSS tem vantagens que nenhum outro país
possui: uma grande produção de ouro, uma tremenda capacidade produtiva e, o
mais importante, é capaz de determinar por si mesma quando vender. Nenhum país
capitalista pode fazer isso porque sempre requer lucro. Então, quando a URSS nos
diz, com franqueza, ‘vamos usar este Fundo para comprar coisas porque esta é uma
época de necessidade e para isso serve um fundo de estabilização, e pagaremos de
volta depois de cinco, seis ou sete anos’, eu acho que se trata de uma operação de
estabilização equivalente à de qualquer outro país. Há uma tendência a apontar a
URSS com o dedo porque seus delegados dizem com franqueza o que outros países
farão de qualquer maneira. Como acham que a Polônia, a Holanda, a França, a
Bélgica ou a China se comportarão? Da mesma maneira. Se não o fizessem, seus
ministros da economia seriam uns imbecis.”
Apesar do palavrório de White, Walcott diz que chegou o momento de dar um
ultimato aos russos e você procure mediar dizendo que ainda há tempo para a
negociação. Seguindo seus conselhos, Morgenthau e White se reúnem em particular
com Stepanov, o subsecretário do Povo para o Comércio Estrangeiro da URSS, um
peso pesado que, para complicar ainda mais o assunto, não fala nem uma palavra de
inglês. As conversações demoram infinitamente. O russo insiste em conseguir uma
cota maior e uma redução de 25% de sua contribuição em ouro. Morgenthau se
escandaliza. O intérprete traduz: “O sr. Stepanov afirma que está encantado com a
ideia de apoiar a posição dos Estados Unidos, mas a URSS quer ocupar o lugar que
considera adequado aos seus cálculos”. Morgenthau resiste, e Stepanov se limita a
dizer que então pedirá instruções a Moscou, a desculpa eterna.
Depois de dois dias de silêncio, Harry lhe pede que volte a procurar o chefe da
delegação russa. Stepanov responde, altivo, que ainda não recebeu notícias de
Moscou. Arrasado, Morgenthau finalmente cede às reivindicações dele: “Toda a
conferência está parada por culpa dos russos”, Harry se queixa com você. “Eu estaria
disposto a considerar 1,2 bilhão de cota para a URSS, e que as moedas de ouro
recém-cunhadas não façam parte dos cálculos, algo muito melhor que a redução de
25% que eles propõem. Sabemos que a posição da Rússia é única, que eles fizeram
os maiores sacrifícios durante a guerra e sofreram uma grande devastação, mas, se
usássemos este critério, todos os países devastados exigiriam o mesmo tratamento.”
White lhe pede que leve a mensagem ao embaixador soviético. O intérprete
traduz suas palavras: “O sr. Stepanov quer lhe agradecer por sua boa vontade”, o que
você não sabe se interpreta como um voto de confiança ou uma brincadeira.
Embora nesta altura tenham conseguido quase tudo o que querem, os soviéticos
persistem em suas disparatadas exigências. Morgenthau, White e você se reúnem em
outra sala e depois de meia hora reformulam a cláusula para satisfazer aos russos.
“O sr. Stepanov se mostra de acordo com assinar”, traduz o intérprete, “mas,
sendo um assunto de tanta relevância, se não se respeitar a exata formulação que
propusemos, necessitará do aval de Moscou.” Chateados, vocês acabam cedendo
neste ponto. “O sr. Stepanov agradece sua boa disposição”, conclui o intérprete.
“Diga ao sr. Stepanov que será a última vez que agradece em Bretton Woods”, solta
Morgenthau. Superado este último inconveniente, está tudo pronto para anunciar o
sucesso das negociações.
Depois de duas semanas de cabo de guerra com os delegados das distintas
nações aliadas, em 17 de julho de 1944 o secretário Morgenthau, mais magro que
um burro faminto, finalmente anuncia a boa-nova: “Hoje nasceu o Fundo
Monetário Internacional”. Algumas delegações insistem em prolongar a conferência
para resolver de uma vez alguns assuntos, mas você manobra para que no final só se
combine um tempo para a reflexão e o descanso.
No seu diário você descreve os delegados russos como amáveis e cavalheirescos,
embora sempre pareçam estar entre a cruz e a espada. Certa vez White e você
organizam um jogo de vôlei entre os soviéticos e o time do Tesouro, que os senhores
perdem vergonhosamente. Nestas noites de calma também vai com alguns dos seus
colegas russos à Comissão IV, o nome que algum engenhoso deu ao clube noturno
onde os delegados mais jovens ou mais farristas (não é o seu caso) se embebedam até
a madrugada.
Enquanto isso, sua equipe redige a Ata Final da conferência, um documento de
96 páginas escritas com uma retórica que os advogados tornam ainda mais obscura e
indecifrável. O texto fica pronto para que os delegados o assinem ao término da
sessão de encerramento, programada para 22 de julho de 1944 às 9h45 da noite.
Durante o jantar de gala, Lord Keynes, pálido e frágil por causa de um enfarte
recente, praticamente se arrasta até sua cadeira enquanto os delegados o recebem de
pé. A seguir Morgenthau lê o telegrama de congratulações do presidente Roosevelt,
e Keynes toma a palavra para se dirigir pela última vez à assembleia.
“É uma honra para mim ter sido escolhido para apresentar diante dos senhores
a Ata Final”, diz Keynes com uma vozinha fraca, e você se retorce de orgulho. “Nós,
os delegados desta conferência, tentamos conseguir uma coisa muito difícil.
Tivemos que realizar ao mesmo tempo tarefas próprias do economista, do
financista, do político, do jornalista, do propagandista, do advogado e do estadista
— e até mesmo, penso, do profeta e do vidente. Demonstramos que um concurso
de 44 nações foi capaz de trabalhar em uma tarefa construtiva em um ambiente de
amizade e concórdia inquebrantáveis. Poucos achavam possível. Se formos capazes
de continuar em tarefas mais amplas do que esta, ainda há esperança para o mundo.
Agora nos dispersaremos para os nossos lares com novas amizades seladas e novas
intimidades surgidas. Aprendemos a trabalhar juntos. Se pudermos continuar assim,
este pesadelo, no qual muitos dos aqui presentes gastaram boa parte de suas vidas,
poderá ficar para trás. E a fraternidade entre os homens se transformará em algo
mais do que uma simples frase.”
Como presidente da conferência, Morgenthau faz o discurso de despedida, ao
término do qual uma banda se lança em uma dissonante interpretação de “The Stars
and Stripes Forever”. Quando Lord Keynes se levanta de sua cadeira, todos os
presentes entoam um jovial “Ele é um bom companheiro” frente ao qual você não
consegue esconder sua emoção. Em sinal de reconhecimento, White lhe dá um
tapinha nas costas. Finalmente chega a hora de os delegados se encaminharem para
o salão B para assinar a Ata Final.
Seu olhar, como o de White, não se concentra nos brindes e abraços que se
distribuem por todo lado, mas nas largas costas de Stepanov. Observa-o se erguer
com parcimônia e se certifica de vê-lo entrar no salão B. Contém a respiração
enquanto o chefe da delegação soviética aguarda sua vez, mas finalmente relaxa
quando o vê empunhar a caneta e firmar sua assinatura na Ata Final. Você
conseguiu! O árduo trabalho destes meses, destes anos, finalmente rende os frutos
que White e você esperaram. Se não persistisse neste autocontrole que minha mãe
sempre recrimina em você, por pouco ia querer se embebedar.
Infelizmente, a história de Bretton Woods não termina com este dia de festa.
Aos abraços e brindes se segue uma atenta leitura da Ata Final nas distintas capitais
do mundo, e os funcionários da fazenda ou das finanças não demoram a apontar
erros e lacunas. De volta a Tilton, o próprio Lord Keynes julga que o documento
que você redigiu é um amontoado de contradições, mas finalmente a Grã-Bretanha,
como a maior parte das nações aliadas, terminará por ratificá-lo antes que expire o
prazo em 31 de dezembro de 1945. Com uma notável — para os senhores
desoladora — exceção.
Contra o prometido, Stálin se nega a manter a palavra empenhada por
Stepanov e se recusa a incorporar a União Soviética ao sistema de Bretton Woods.
Depois de apenas alguns meses do final da guerra, a URSS e os Estados Unidos
entram em uma nova era de confrontação. E os homens que, como Harry e você,
fizeram o impossível para manter a aliança entre as duas potências muito em breve
se verão acusados de espionagem e traição.

ÁRIA DO SORBETTO (LEAH)

Desde que nosso jato se aproximou de Toluca — o simples nome inspirava


desconfiança — soube que desta vez Leah tinha ido longe demais. Que necessidade
tinha de me arrastar para aquele inferno subdesenvolvido que, segundo os
telejornais, era um dos lugares menos seguros do planeta? Não tinha encontrado
maneira de dissuadi-la. Quando lhe disse que nas mesmas datas tinha que fechar um
acordo em Seul, ela me disse que nunca me perdoaria se não a acompanhasse,
durante todos esses anos ela tinha me seguido por meio mundo, se integrara à
minha odiosa vida social e tinha perseguido infindavelmente os rastros do meu pai,
o mínimo que eu podia fazer era apoiá-la nesta iniciativa que era tão importante
para ela (no passado tinha resistido com sucesso a segui-la em suas aventuras
civilizatórias na Tanzânia, no Laos e no Nepal). Desta vez tinha metido na cabeça
que os cachorros mexicanos necessitavam urgentemente do seu auxílio e, depois de
me arrancar 2 milhões de dólares, se esforçou para construir um refúgio-modelo
para abrigá-los. (Dois milhões que Vikram somou em não sei que gastos que o JVCM
poderia descontar integralmente dos impostos.)
Sobrevoamos a capital — uma massa de smog e luzinhas — e em seguida
desviamos rumo a uma área de barracos e plantações de milho miseráveis até
aterrissar no aeródromo. Ali pegamos uma caminhonete mais parecida com um
tanque de guerra e, através dos vidros blindados, pudemos contemplar a idílica
paisagem de muros pintados com rostos de políticos e choças com tetos de zinco até
chegar ao povoado de nome impronunciável em que Leah e seus sócios tinham
instalado seu centro de acolhida. Segundo ela, nesses países do Terceiro Mundo os
animais de estimação padeciam os mais horríveis maus-tratos sem que as
autoridades fizessem nada para impedi-los. “Nem sequer há campanhas para que as
pessoas adquiram consciência dos direitos dos animais”, revelou Leah, me
mostrando uma pasta cheia de fotos de cachorros esquálidos e cobertos de sarna
perambulando em comércios e lugares públicos. “Ninguém cuida deles e muitos
morrem atropelados.”
Pobres animais! Mas cabia a nós a tarefa de melhorar suas vidas de cão? Na
opinião de Leah, não intervir seria (nem se ruborizou ao pronunciar o adjetivo)
desumano. Logo depois de conseguir o apoio de uma associação local — um grupo
de amadores que sobrevivia com muita dificuldade — e de molhar as mãos, com
exorbitantes subornos, de conhecidos funcionários municipais para conseguir as
licenças necessárias, minha mulher e seus sócios tinham montado o gigantesco
albergue para cachorros vira-latas em um antigo rancho a uns quarenta e cinco
minutos da cidade do México.
Sem parar de sacolejar, nosso veículo entrou em uma estrada de cascalho
rodeada de cactos e nopales. Só faltava um índio cochilando debaixo de um chapéu
enorme para ratificar todos os meus preconceitos. Alguns quilômetros à frente,
topamos com um enorme letreiro que anunciava: “Refúgio para Animais
Maltratados J. e L. Volpi”. Dois policiais armados com metralhadoras portáteis nos
abriram um portão de alumínio, e finalmente pudemos gozar de certa liberdade de
movimento. Imediatamente saiu para nos receber um homem um tanto baixo, sem
bigode, mas com uma pança descomunal que escapava entre a calça e a camiseta, a
quem Leah me apresentou como doutor Zavala.
Em um inglês idêntico ao do Ligeirinho, o administrador nos conduziu pelas
instalações vanguardistas, onde cachorros de todas as raças eram cuidados com um
profissionalismo e um esmero inéditos no país. Não havia jaulas, no sentido estrito
do termo, mas áreas livres onde não conviviam mais de dois ou três exemplares de
raças parecidas. Em nada se assemelhavam estes labradores, galgos e fox terrier aos
animaizinhos que Leah tinha me mostrado nas fotografias. “Só recebem alimento de
primeira, feito a partir de ingredientes 100% orgânicos”, vangloriou-se o dr. Zavala
com uma expressão de orgulho (ou talvez de resignada inveja). A seguir nos mostrou
a enfermaria, atendida por dois veterinários com o instrumental mais avançado —
trazido diretamente de Denver, gabou-se —, e a sala onde faziam as intervenções
cirúrgicas e os partos. Minha mulher pegou nos braços dois chorosos filhotes de
chihuahua (olhos saltados aderidos a corpos de roedor) que batizaram sua boa
vontade com uma boa mijada.
Leah tinha me prometido que a visita não duraria mais de uma hora, mas seus
hospitaleiros sócios tinham preparado um pitoresco banquete de boas-vindas para
nós. Quando nos sentamos à mesa, constatei, sem conter o riso, que os tacos que
nos tinham servido estavam recheados de uma coisa que chamavam “carnitas”:
pedaços de porco fritos em banha do mesmo animal. Decidida a não incomodar
nossos anfitriões, Leah não teve outro remédio senão comer aquele amontoado de
gorduras saturadas. Os locais não reparavam na contradição entre trabalhar para um
centro dedicado a defender os bichinhos e mastigar suas entranhas, talvez porque
para eles as únicas criaturas que mereciam proteção eram os ridículos bichos que sua
chefe mimava com tanto carinho. Quando finalmente voltamos para o jato, Leah
parecia abatida. Mas a experiência pelo menos teve efeitos positivos: em primeiro
lugar, minha mulher não voltou a me pedir que a acompanhasse em seus novos
projetos para salvar animais — ou, pior ainda, seres humanos. E, em segundo,
conheci o eficiente dr. Zavala, que, além de seus labores veterinários, logo se
transformou em meu sócio no muito mais lucrativo negócio de pesticidas que
montamos na região.

RECITATIVO

Vikram me lembrou da maldição chinesa que diz: ai de você se lhe couber viver
tempos interessantes. Eu rebati com outra melhor: ai de você se lhe couber viver
tempos divertidos. E olhe que aquele verão de 1998 foi muito! Os 90 se
transformaram na década mais louca do século desde os fabulosos 20 e os
promíscuos 60, a mais louca, a mais ridícula! Para onde quer que a gente voltasse o
olhar topava com um espetáculo hilariante, mais próprio de uma feira do interior ou
de um bar que da Broadway ou do Met. Ligava a televisão e aparecia nosso
presidente, meloso e alinhado, com seu nariz de batata e seu sotaque sulista, dando
uma lição de anatomia — ou de linguística? —, segundo a qual deslizar um charuto
na xoxota de uma roliça estagiária não podia ser considerado, imagine, um ato
sexual. Como eu admirava aquele descarado! Enquanto uns o execravam e outros o
defendiam com unhas e dentes, eu reverenciava sua verve histriônica, sua capacidade
para soltar desculpas com sua convicção de metodista, seu descaramento na hora de
mostrar arrependimento sem deixar de zombar de seus inquisidores! Que grande foi
Bill, mesmo sendo democrata! (Um democrata, acrescento, que serve melhor do que
qualquer republicano aos nossos interesses.)
E enquanto o líder do mundo livre se enrascava com um vestido ensopado com
seus fluidos, no outro lado do planeta, nos limites do antigo império comunista, o
bêbado corado e suarento que guiava seus destinos repetia várias vezes que o rublo
não ia se desvalorizar, não senhores, hic, nunca, jamais, hic, hic. Ieltsin proclamava
isso em alto e bom som cambaleando na sua dacha à beira do mar Negro, não muito
longe de onde veraneava meio parlamento, enquanto em Moscou os mercados
despencavam, o preço do petróleo caía 33%, a Bolsa de Valores detinha as cotações
por medo de um crash e as taxas de juros em curto prazo aumentavam em uns
200%.
A diferença entre os dois shows era que, enquanto o burlesque do nosso
comandante em chefe mantinha os sócios do Long-Term se mijando de rir, a
comédia etílica do camarada Ieltsin os conduzia a um estado que, para não soar
muito maldoso, qualificarei de pura histeria. O motivo? A monstruosa quantia que
tinham apostado na possível convergência de bônus ligados ao rublo. O Long-Term
experimentava uma dolorosa sangria desde agosto. E que ideia Haghani tinha tido
para contê-la? Já sabemos: colocar seu troco na Rússia. Investir milhões na antiga
terra dos czares, nos delegados comunistas e nos oligarcas sem escrúpulos. Por que
lá? Porque uma bela fórmula matemática previa uma insólita jogada dos novy russki?
Porque Ieltsin tinha lhe telefonado para garantir que o país ia às mil maravilhas?
Porque Scholes e Merton tinham demonstrado que a Rússia oferecia um risco
razoável? Não! Se Haghani jogou tudo nos bônus russos foi porque achou que era
um bom investimento. Para que então tantas fórmulas se no final os diretores do
LTCM iam se deixar levar por suas malditas intuições?
Só os ratos abandonam o navio quando este começa a fazer água. Ratos
inteligentes! Como Vikram e eu. Em 15 de julho nós dois apresentamos nossas
renúncias a J.M., tão inoportunas quanto irrevogáveis. Durante um instante ele
tentou nos dissuadir e depois ele, tão católico, começou a blasfemar. Resistimos à
pressão com integridade: não estávamos dispostos a afundar com ele. No final, J.M.
nos deu um reticente aperto de mão e nos mandou falar com seus advogados para
acertar os termos da saída. O que mais o preocupava era que assinássemos a cláusula
de confidencialidade que nos proibia de contar o que vimos dentro do LTCM. (A
mesma cláusula que, como vocês, perspicazes leitores, testemunham, agora rompo
descaradamente.)
Não posso dizer que Vikram e eu adivinhássemos a insólita derrota posterior.
Sem dúvida o fundo atravessava um mau momento, mas nem com toda a nossa
clarividência teríamos conseguido imaginar a rapidez da queda. Na segunda-feira 17
de agosto a Rússia fez o que Ieltsin garantiu que nunca faria (como acontece em
toda crise) e decretou uma moratória unilateral. A esta se seguiu a tão temida e
adiada desvalorização. E ainda assim nossos lúcidos colegas de Wall Street se
recusaram a ver o incêndio que já lhes calcinava as pestanas. “Não achamos que a
Rússia vá se transformar em um problema maior”, declararam apertando os colhões.
As potências nucleares não podem cair em default, tinha garantido Haghani. Mas
agora a Rússia, a maior potência nuclear do planeta, não só não conseguia honrar
seus compromissos, como anunciava isso com a maior desfaçatez.
Na quinta-feira 20 os mercados sofreram os primeiros altos e baixos, e na sexta-
feira 21 o Dow Jones perdeu 280 pontos antes do meio-dia para só recuperá-los
antes do fechamento. Diante de tamanha volatilidade, os investidores deixaram de
confiar nos mercados emergentes, cujas catástrofes sucessivas no México, Ásia e
Rússia os tinham feito perder fortunas, e se lançaram em massa nos bônus do
Tesouro.
— Merda!
Esta elegante expressão, na boca do funcionário do Long-Term que constatou
que a disparidade nos swaps tinha alcançado 78 pontos básicos (quando o normal
era um ponto), dava conta do nervosismo geral. Segundo os modelos dos gênios,
uma brecha semelhante era virtualmente impossível e só poderia ocorrer uma vez a
cada mil anos. A imperfeição residia, provavelmente, no advérbio. A cada minuto o
LTCM perdia milhões. O fluxo era tão vertiginoso que não havia um plano B para
contê-lo. Segundo os quants, o pior cenário para o fundo consistia em perder 35
milhões em um único dia, e só naquele 21 de agosto tinha deixado ir 553 milhões.
Pegos em suas plácidas férias na Suíça, Toscana ou Costa Azul, J.M. e seus sócios se
viram obrigados a voar de volta aos seus escritórios de Connecticut.
Naquele domingo os diretores do LTCM se fecharam para avaliar os danos
(melhor dizendo, para chorá-los). Todos sabiam que sua última opção consistia em
conseguir uma urgente injeção de capital, algo que não parecia fácil dadas as
condições do mercado. “As brechas sempre tendem a convergir”, repetia J.M. como
uma prece, decidido a resistir à catástrofe. Mas quem poderia resgatá-lo?
— Warren — propôs Rosenfeld, que conhecia o Mago de Omaha de outras
épocas. Depois de ouvir seu pedido, Buffet recusou. (Não por acaso é tão rico.)
Cada vez mais angustiados, os sócios do Long-Term se lançaram a perseguir
meio mundo: George Soros, Roberto Mendoza do J.P. Morgan, Herb Allison do
Merrill Lynch, Jamie Dimon do Treveller’s, Joe Corzine do Goldman Sachs, Jesus
Cristo e Papai Noel. Em vão. Os rios de capital, que antes irrigaram tão
generosamente seus cultivos, agora estavam secos.
Da comodidade da minha poltrona, a queda do LTCM não deixava de me
maravilhar. Em uma ironia sutil, o fundo de risco que mais rapidamente tinha
gerado lucros na história perdia dinheiro a uma velocidade que logo se faria
merecedora de um recorde no Guinness.
— Quanto perderam? — perguntei a J.M. quando me ligou em 29 de agosto.
Devia estar muito desesperado para procurar minha opinião.
— A metade — aceitou.
— Então está acabado.
— O que está dizendo? Ainda temos a outra metade, e o Soros…
— Sinto muito — frisei. — Uma vez que você perdeu a metade, as pessoas
pensarão que perderá a outra metade de uma hora para a outra. Colocarão o
mercado contra você, J.M. Não refinanciarão seus acordos. Você está acabado.
Em 2 de setembro, Vikram me mostrou a notícia divulgada pela agência
Bloomberg: o Long-Term tinha perdido 52% do seu capital.
— Os mercados sempre conspiram contra os fracos — resumi ao meu novo
sócio. — Depois de cinco anos se mostrando como o mais temido monstro de Wall
Street, agora o LTCM será devorado pelos rivais.
Merton, o grande Merton, entreviu na derrota o descrédito do seu modelo
financeiro e começou a chorar. E Scholes, o grande Scholes, quase desmaiou
enquanto recebia uma homenagem em Toronto, sua cidade natal. Só J.M. resistia:
nada mais repugnante, no nosso círculo, do que um homem desesperado que parece
um homem desesperado.
Em meados de setembro, as perdas do Long-Term subiam a 1,5 bilhão de
dólares. Uma proeza! Mas não era só isso, o desmoronamento de J.M. começava a
ser o de menos. Em seus cinco anos de trajetória, o Fundo dos Gênios tinha
realizado transações com todos os atores de Wall Street. Convertido em um núcleo
ardente a ponto de explodir, o Long-Term poderia devastar a economia de meio
mundo. Os prêmios Nobel estavam prestes a conseguir uma façanha inédita:
explodir o planeta em mil pedaços!

TRIO

Aproveitando a oportunidade de assistir a um Requiem de Verdi dirigido por


Barenboim, Leah e eu pegamos nosso jato — minha mulher já não se queixava
destes confortos essenciais — e durante o caminho para Chicago nos concentramos
em antecipar o interrogatório como se fôssemos dois repórteres de espetáculos
iniciantes indo entrevistar um ídolo pop. O que sabíamos então sobre Harold
Glasser? Muito pouco. Que seu último cargo no governo tinha sido de subdiretor
do Escritório de Finanças Internacionais do Tesouro e assessor do secretário
Morgenthau na Junta de Governadores do Banco Mundial; que, como White e seu
entorno, fora acusado em 1948 por Elizabeth Bentley de pertencer ao seu círculo de
espiões comunistas, e apesar disso nunca tinha sido formalmente acusado; que
depois de sua inoportuna saída do Tesouro aceitou vários postos mais ou menos
anódinos, mas não mal remunerados, em distintas empresas privadas; e, enfim, que
agora vivia em uma residência para idosos à beira do lago Michigan.
Junto com Lud Ullmann e Alger Hiss, Glasser era dos últimos contemporâneos
vivos do meu pai. Leah sugeriu ligar para o asilo para marcar uma visita, mas eu não
considerei sensato prevenir o antigo assistente de White da nossa chegada, e
aparecemos no imponente casarão de pedra sem avisá-lo. Uma ruiva gordinha se
limitou a nos entregar um caderno para que anotássemos nossos nomes (sr. e sra.
Barenboim), o parentesco com o interno (sobrinhos-netos) e nosso endereço, e
apontou o caminho para o terraço onde nosso tio entorpecia sob o raquítico calor do
outono.
— Sr. Glasser? — murmurou Leah com um sorriso pueril.
Embora na única fotografia dele que tínhamos visto não parecesse um exemplo
de esbeltez ou de atitude — o cabelo espaçado em um cocuruto oblongo, bochechas
empoladas e nariz de cebolinha —, os anos o tinham transformado em uma massa
de rugas sob as quais mal se entreviam dois olhinhos opacos. O ancião cochilava em
uma espreguiçadeira de metal com os braços em cruz, as pernas cobertas por uma
manta e o queixo manchado pela baba que escorria da tênue linha da boca. Ao
longe, a planície de água se estendia até o infinito. Leah o tocou levemente para
despertá-lo.
— Podemos conversar com o senhor, sr. Glasser?
Peguei duas cadeiras do jardim e as aproximei da maca.
— Conversar?
— Sobre o passado — eu disse sem saber por quê.
— Passado?
— Sobre os seus anos no Tesouro.
Ergueu-se com dificuldade, olhando para um lado e para o outro em busca de
ajuda, e fungou estrondosamente os mucos.
— O passado não existe — cravou os olhos em Leah —, senhorita…?
— Barenboim — atalhei.
— Estamos escrevendo um livro sobre Bretton Woods — Leah encarnava
habilmente seu papel.
— Bretton Woods — repetiu Glasser mecanicamente.
— Poderia falar sobre sua experiência ali? — insistiu Leah.
— Senhorita — o velho apertou as bochechas —, isso foi há séculos, que
importa agora?
— O senhor atuou como secretário de Harry White durante as negociações…
O nome de seu antigo chefe o fez agitar os dedinhos artríticos em um
movimento espasmódico.
— Harry, Harry… — por um instante o imaginei afligido por demência senil.
— Foi o responsável por tudo o que aconteceu lá, tudo. E veja como lhe pagaram.
Tínhamos tocado a corda correta.
— Por que diz isso?
— Sabia que tiraram o busto dele do vestíbulo do Fundo? Sabia? — Glasser se
agitou. — Ele criou essa instituição e os desgraçados jogaram seu busto no porão,
senhorita. Está ouvindo? No porão.
— Por que fariam uma coisa dessas? — Leah fingiu se escandalizar.
— Os desgraçados o mataram, senhorita — Glasser tinha perdido de vista
minha presença. — Seu coração não resistiu.
— Mas… — tentei intervir.
— Comunista! — o ancião prosseguiu seu relato cada vez mais severo e
indignado. — Como Harry ia ser comunista, senhorita? Era um homem de paz,
buscava a paz. Talvez fosse arrogante, muitos não suportavam seu mau humor nem
seus desplantes, mas era incapaz de trair o seu país. Sempre viveu conforme os mais
altos valores. Até que seu coração quebrou.
Pensei que o ancião ia começar a chorar, mas recuperou a integridade
imediatamente, rejuvenescido pela raiva.
— Ridículo. Quem poderia imaginar o Harry, o Harry mais do que qualquer
outra pessoa, deslizando pelas ruas de Washington para entregar informação a um
rato como Chambers? Ridículo! Se você o tivesse conhecido, senhorita — capturou
a mão de Leah com os dedos calosos e entorpecidos. — Tão, como dizer? Tão
perfeito. Um homem impecável, digo.
— Mas o senhor sabe que Chambers… — arguiu Leah.
— Aquele rato.
— Que Chambers…
— Não! Diga: que aquele rato…
— Que aquele rato apresentou diante do tribunal um documento confidencial
com a letra de White.
— Uma fraude! Aquele documento nada tinha de secreto. — Glasser começou
a tossir. — Qualquer um poderia tê-lo tirado da mesa dele. Wadleigh ou qualquer
outro.
— Mas…
— Por que iria mentir a esta altura, senhorita? — a tosse o agitava como um
furacão a uma folha de grama. — Harry morreu, ou melhor dizendo, o mataram, há
mais de quatro décadas. Ninguém mais se lembra e ninguém se incomoda, por que
ia querer defender um morto?
Uma enfermeira reparou na agitação de Glasser e se encaminhou até nós. A
conversa não duraria muito mais.
— Como pode ter tanta certeza, sr. Glasser? — perguntei.
Mais tosse. E mais silêncio. E a enfermeira a alguns passos.
— Como pode ter tanta certeza, sr. Glasser? — repetiu Leah.
O velho se enroscou, estremecido com cada expectoração. A enfermeira agitava
os braços para nós.
— Porque eu, sim, era comunista, senhorita. Por isso.
Quando Leah tentou formular uma nova pergunta, a pergunta crucial para as
nossas pesquisas, já era tarde demais. A enfermeira tinha chegado até Glasser com
uma cadeira de rodas e o conduzia apressada em direção à enfermaria. O alquebrado
vigia da residência não demorou a nos ameaçar para que deixássemos o recinto.
Glasser não se recuperaria desse ataque e morreria algumas semanas depois, em 16
de novembro de 1992. Sem nunca ter se arrependido.
Cena IX. Sobre como uns gêmeos se apoderaram do mundo e
como usar seu filho como escudo

DUETO

— Foi Marx quem afirmou que a história primeiro se apresenta como tragédia
e depois se repete como farsa. — Leah exibia sua erudição sem deixar de brincar
com as orelhas de Salinger. — No caso de Hiss aconteceu o contrário: à comédia de
erros do primeiro julgamento se seguiu o drama do segundo. Muitos dos atores
principais permaneceram em cena, como Chambers ou Murphy, mas Alger
prescindiu dos serviços de Stryker, talvez por obter um júri dividido em vez da
absolvição, e contratou um advogado de Boston, Claude B. Cross, com a ordem de
questionar não apenas a credibilidade de Whit e sua mulher, mas também a
evidência apresentada pela promotoria. O juiz Kaufman foi substituído pelo
veterano Henry W. Goddard, cujas simpatias republicanas não eram um segredo
para ninguém.
Havia vezes, como essa, em que eu gostaria de dissecar o maldito beagle. Pulava
sem parar e Leah, tão limpa para outras coisas, nem sequer reparava nos rastros de
baba e pelos que o animal espalhava pelo cômodo.
— Imagino que dessa vez o processo foi mais rápido — ironizei.
— Em 21 de janeiro de 1953, a porta-voz do júri tomou a palavra e declarou
Hiss culpado de perjúrio. Dois dias mais tarde, Hiss compareceu à Foley Square
para ouvir sua sentença. Goddard o condenou à pena máxima, cinco anos em uma
penitenciária federal por cada uma das duas acusações de perjúrio, que deveriam ser
cumpridas simultaneamente.
— Cinco anos.
— E aqui vem o mais interessante — Leah mordeu o lábio. — Em 26 de
janeiro de 1953, Richard Nixon apresentou diante do Congresso um discurso breve
intitulado: “O caso Hiss. Uma lição para o povo americano”, no qual insistiu em
afirmar que as administrações democratas tinham protegido dezenas de espiões no
governo. E, para reforçar seu argumento, tornou público o memorando de oito
páginas que supostamente Harry Dexter White entregou a Chambers para que, por
sua vez, o transmitisse aos russos.
— Suponho que agora me relatará o conteúdo.
Leah fez uma pausa dramática, usufruindo do suspense.
— O texto não tem paralelo entre os milhares de papéis que White deixou em
seus arquivos. — Leah examinava suas anotações, acariciava Salinger e levantava os
olhos para mim. — Mais do que de um verdadeiro memorando, o texto é um
rascunho ou aide de mémoire que cobre um período de 37 dias, entre 10 de janeiro e
15 de fevereiro de 1938. Segundo os especialistas que o estudaram, pode ser
produto de duas traições de datas diferentes, a primeira em 10 de janeiro e a
segunda em 19 de janeiro de 1938, o que talvez esclareça a redação um tanto
desconexa.
— E há nele alguma prova concreta de que White tivesse passado informação
confidencial aos russos?
— Os caluniadores de White sustentam que boa parte da informação do
memorando era secreta e que, sem dúvida, poderia ter sido de utilidade para os
nossos inimigos. Seus defensores, como o próprio filho de Harry, Nathan White,
afirmam que não tem nenhuma relevância. A única coisa certa é que não há forma
de explicar por que um texto desta natureza, feito por White em caráter de
subsecretário do Tesouro, acabou nas mãos de Chambers. Que a parte mais
significativa se refira aos esforços bélicos do Japão, cuja economia de guerra White
estudava nesses anos, parece confirmar que White decidiu compartilhar esta
informação com os soviéticos, em seu afã por estabelecer uma sólida aliança para
vencer as potências do Eixo.
Leah serviu algumas amêndoas em um prato e começou a dividi-las com o cão.
Nunca chegaria a entender sua relação com aquela besta insossa.
— O que continuo sem entender é por que ele fez isso — me levantei da
poltrona e comecei a dar voltas ao redor do cômodo. — Por que o subsecretário do
Tesouro, responsável pelo sistema de Bretton Woods, iria entregar informação
confidencial aos soviéticos? Por dinheiro?
— Você acha que todo mundo faz as coisas por dinheiro. — Leah zombou de
mim.
— E?
— White nunca se viu como espião. Nunca aderiu ao Partido Comunista.
Nunca foi um militante nem um lacaio. Um companheiro de caminho, se tanto. E
nem sequer isso: um homem cuja tremenda arrogância o levou a pensar que
conseguiria conciliar os interesses dos Estados Unidos e da União Soviética, a única
esperança que vislumbrava para uma paz futura.
— Essa é sua explicação? — me sobressaltei. — Que White traiu seu país por
causa de sua infinita vaidade?
— Pelo menos é uma parte da explicação.
— E o meu pai? Por que o fez?
Leah acariciou a cabeça de Salinger como se fosse a minha.
— Acho que devemos procurar a resposta para esta pergunta em outro lugar.

ÁRIA DE SUSAN

Terry percebeu os rastros da traição nas ausências da esposa, nas suas carícias e
abraços comedidos ou distantes, na sua indiferença ou na sua ânsia por agradá-lo?
Viu-a fugindo a um restaurante ou a um hotel de segunda ou seguiu seus passos em
uma das manhãs em que escapava cedo de casa? Ou foi uma intuição, uma estúpida
e infernal intuição? Ou contratou um detetive, coisa tão grosseira quanto inevitável
no nosso meio? Ou a seguiu ele próprio, acentuando sua humilhação e planejando
sua vingança? E desde quando? Desde que começou a aventura de Susan, um ano
atrás, ou nas últimas semanas, ou nos últimos meses?
Minha filha sempre se achou muito esperta (defeito de família), mas a verdade
é que nunca se caracterizou por sua discrição. Não me atrevo a sugerir que o
remorso ou a culpa a impulsionaram a se autoacusar — a conclusão do charlatão
que a psicanalisava —, e menos a dizer que merece o que lhe aconteceu, pois nem a
pior mãe mereceria um tratamento semelhante, mas seus descuidos são
imperdoáveis. Se tinha decidido colocar chifres no caipira e ainda por cima com um
dos sócios dele (fiquei sabendo disso mais tarde), teria que ter levado as precauções
ao extremo. Confiando na apatia que impregnava sua vida, Susan tinha certeza de
que Terry não desconfiava de nada e se recusou a perceber os sinais da fúria — sim,
fúria — que se acumulava no peito do marido.
Minha filha adoecia dos mesmos defeitos do nosso tempo: a má gestão e a
soberba. Recusou-se a avaliar os riscos, preferiu desconsiderá-los e evadi-los até que
já era tarde demais. Não entendo, não consigo entender por que se aferrou a esse
único amante — a aposta mais perigosa para uma pessoa casada — em vez de se
concentrar em uma cadeia de conquistas anônimas e inofensivas!
Susan e Terry nunca foram compatíveis, isso qualquer um teria podido
constatar. Desde o início formaram um casal inverossímil, não tanto por seus
atributos físicos — os dois poderiam ter sido modelos — quanto pelas vibrações
contrastantes que irradiavam, mas a convivência os tinha encurralado em uma
espécie de calma desprezível, uma tolerância cotidiana produto da inércia e da
letargia. Os dois se esmeravam em adoçar seus conflitos, em fazer como se fossem
um para o outro. Por isso o ocorrido foi pior, muito pior, do que em qualquer outro
desentendimento de casal, do que em qualquer outro divórcio, do que em qualquer
outra guerra matrimonial, não uma explosão repentina, mas um pesadelo friamente
articulado. Eu mesmo nunca acreditei que Terry — o loiro panaca do álbum de
família — fosse capaz de tamanha descarga de violência psicológica e muito menos
que fosse planejar seu golpe com tanta frieza.
Assim que vi Susan na porta do meu escritório, abatida e lívida, com as
pálpebras maltratadas pelo choro, acreditei antecipar o que ia me relatar, mas o que
me contou foi pior, muito pior, do que eu imaginava.
— Minhas filhas — deixou-se cair nos meus braços. — Minhas filhas…
A única regra essencial e inquebrantável para as mulheres é esta: nunca engane
o seu marido em sua própria cama. Nunca. Da primeira vez, Susan se deixou levar
pela urgência do desejo e, aproveitando que Terry tinha saído em uma viagem de
negócios, se apressou a enviar uma mensagem para Milton convocando-o. Embora
depois tenha tentado se desculpar dizendo que só pensava convidá-lo para um
drinque, desde que apoiou os dedinhos no teclado do celular sabia que acabaria
levando o amante aos mesmos lençóis que dividia com o marido. Tão imprudente
quanto ela, ou decidido a dessacralizar com seus humores o leito do sócio (e rival),
como qualquer macho no cio, Milton não hesitou em satisfazê-la. “Só esta vez”,
sussurrou minha filha ao seu ouvido como se fosse uma travessura. A ânsia de
conforto a fez renunciar aos hotéis do Queens ou de Long Island, sempre tão
anônimos e decadentes, tão longe dos seus gostos sofisticados, e toda vez que Terry
anunciava uma viagem a Connecticut, Maine ou Pensilvânia — sua firma se
dedicava ao fértil mercado hipotecário —, minha filha não hesitava em dispensar os
empregados.
Naquela terrível manhã Susan tinha voltado a ficar sozinha em casa. Terry
tinha saído cedo para Boston, a empregada informou estar com uma virose e as
gêmeas estavam na escola. Por que não aproveitar estas horas com Milton, aquele
eterno desocupado, sempre disposto a aparecer assim que ela estalava os dedos? O
impaciente chegou perto das dez, minha filha recebeu-o seminua e lhe ofereceu uma
taça de champanhe com suco de laranja. Ao que parece, ele imediatamente lhe
arrancou o sutiã acetinado e a calcinha transparente, que acabaram em cima da
mesinha, e carregou o leve corpo da minha filha até o quarto principal (detesto
imaginar isso).
Terry deve ter cronometrado os encontros com precisão milimétrica, ou nesse
dia gozou de uma sorte dos demônios. Quando abriu a porta de forma inoportuna,
Milton, felizmente, já não afundava o pau entre as nádegas da minha filha, nem
deslizava a língua pelo seu sexo, nem ela abria as pernas dele ou o masturbava com
seus dedinhos impecáveis, mas os dois ainda permaneciam um em cima do outro,
esgotados e nus, como dois atletas ofegantes. De mãos dadas com Terry, Audrey e
Sarah só conseguiram entrever os seios minúsculos e o pelo púbico da mãe por
alguns segundos, suficientes para odiá-la pelo resto da vida.
Terry fingiu surpresa, Susan e Milton se cobriram apressadamente, Susan ficou
histérica, as gêmeas correram para os seus quartos, Milton saiu de cena a toda a
velocidade (para não voltar nunca mais), e muito em breve o assunto ficou nas mãos
de uma legião de advogados.
Na audiência, Terry garantiu que Audrey ligou para ele do colégio porque
tinha se sentido mal e, diante do silêncio da esposa, se viu obrigado a voltar de
Boston. Nunca se comprovou que essa história fosse verdade. Com uma maturidade
inverossímil, as gêmeas confirmaram cada frase do pai. Embora eu tenha contratado
a melhor equipe de advogados, não havia muito o que fazer. A odiosa infidelidade
de Susan logo vazou para a imprensa de fofocas, minha filha perdeu a custódia e,
além disso, foi condenada a pagar pelo dano moral. Terry considerou irrisória a
quantia fixada e recorreu para obter um aumento.
No começo Susan conseguiu manter certo equilíbrio, mas depois de poucas
semanas de iniciado o processo sofreu uma nova crise nervosa e me vi obrigado a
interná-la em uma clínica. Intuindo sua ruína, Terry exigiu que uma assistente
social acompanhasse as meninas nas futuras visitas da mãe. Que tipo de homem
sacrifica as filhas para se vingar da esposa? Terry, o matreiro e aprazível Terry, era o
monstro que deveria ter sido afastado delas, não Susan. Mas seria eu quem me
encarregaria de que ele pagasse pelo dano infligido à minha filha e às minhas netas.

CABALETTA DE NOAH

Volto a imaginá-lo, pai, nos anos posteriores à guerra. Depois da euforia pela
vitória, as atrocidades do nazismo, os milhões de judeus assassinados, os campos de
concentração e a indiferença das potências ocidentais diante do massacre o
devastam. De que serve todo o esforço se finalmente ninguém teve coragem para
deter o holocausto? Ainda por cima, a nova rivalidade entre os Estados Unidos e a
União Soviética te deixa em uma posição cada vez mais frágil, mais incômoda. O
cenário se torna inseguro, infamante. Truman não é Roosevelt, e nem White nem
você simpatizam com suas políticas.
Em um estado próximo ao sonambulismo, você continua com os preparativos
para colocar em funcionamento o Fundo Monetário Internacional e, na condição de
assistente de White, comparece à primeira reunião de governadores do Banco e do
Fundo que se realiza em Savannah em março de 1946, onde se encontra pela última
vez com Lord Keynes. A falsa cordialidade de Bretton Woods voltou a se traduzir
em uma amarga troca de recriminações; o britânico já não esconde sua frustração
diante do poder que os americanos exibem, enquanto White se nota todo o tempo
distraído ou mal-humorado, praticamente alheio ao que acontece ao redor. Ainda
por cima, a conferência é presidida pelo juiz Vinson (em sua opinião, uma das
figuras mais desagradáveis do meio financeiro), o secretário do Tesouro que
substituiu Morgenthau, que se lança em um discurso hipócrita sobre as esperanças
incitadas pelas novas instituições financeiras, quando na verdade manobra para
colocá-las ao seu serviço.
Mais desiludido que vocês, Lord Keynes se vale de uma linguagem farta de
metáforas de dança para se referir aos perigos que espreitam as novas instituições
financeiras, estes gêmeos que ele denomina Maese Fundo e Miss Banco como se
fossem personagens extraídos de A bela adormecida, uma das coreografias favoritas
de sua mulher. “O pior que poderia acontecer aos gêmeos”, proclama o Economista
Mais Famoso do Mundo durante sua intervenção, “é que uma fada malvada, uma
Fada Carabina, os amaldiçoe. A maldição seria a seguinte: Vocês, irmãozinhos, se
transformarão em políticos. Seus pensamentos e atos serão guiados por uma arrière-
pensée: tudo o que decidam não será para seu benefício ou por seus méritos, mas
sim por outra razão. Se os gêmeos chegassem a se transformar em políticos, o
melhor que lhes poderia acontecer seria cair em um sono eterno.”
Irritado, Vinson acha que a analogia de Keynes é dirigida a ele e lhe sussurra ao
ouvido: “Não me importa que me chamem de malvado, mas não suporto que
ninguém me chame de Fada Carabina”. Pobre idiota, você pensa, ou eu acho que
pensa.
Apesar de todos os seus esforços para acalmar os ânimos, a rispidez entre todos
os atores da conferência se percebe até nos atos sociais, e ao longo dos dias seguintes
o britânico continua denunciando a submissão do Fundo e do Banco aos interesses
norte-americanos, enquanto o juiz Vinson, e em menor medida White e você (mais
obrigados pelas circunstâncias do que por convencimento) se asseguram de que
nossa Grande Nação controle os dois. Miss Fundo e Maese Banco. Como era
previsível, Lord Keynes volta a perder a luta, mas tampouco se pode dizer que a
conferência é um sucesso para Harry, que por razões que você e ele ainda
desconhecem não recebe o apoio oficial para ser nomeado diretor-gerente do Fundo
— a criatura que ele mesmo concebeu — e tem que se conformar com a posição de
diretor executivo da delegação americana.
“Recuso-me a trabalhar com o Gutt”, diz você a Harry, referindo-se ao
ministro das Finanças belga que ficou à frente do Fundo.
Igualmente abatido, embora quase não demonstre, White te oferece um posto
ao lado dele. Nenhum dos dois sente mais nenhum entusiasmo pelas instituições
que conceberam com tantos esforços. Mas Lord Keynes também não esconde sua
amargura. De volta a Washington, você abre os jornais e lê suas declarações: “Fui a
Savannah para encontrar o mundo e a única coisa que encontrei foi um tirano”.
Quem iria dizer que no final, só no final, White e ele coincidiriam em seus pontos
de vista? Porque os dois concordam que esse tirano não é outro senão os Estados
Unidos.
Mais lânguido do que nunca e incapaz de se interessar por qualquer um dos
temas que costumavam apaixoná-lo — a história, a botânica, mesmo a linguística
—, Lord Keynes se refugia em sua mansão em Tilton e só empreende entediantes
viagens a Londres quando não há outro remédio. Em 20 de abril vai a Firle Beacon,
acompanhado por Lydia e por sua mãe, onde ambos passeiam pelos brumosos
atalhos vizinhos.
Durante sua última caminhada, o Maior Economista do Mundo recita um
poema de Thomas Parnell, um colega menor de Swift e Pope, que termina com
estas palavras: “E o significado de tudo isso é: não se preocupe, sempre restará a
justiça divina”. Na manhã seguinte — um domingo de Páscoa —, Lord Keynes
sofre um violento ataque de tosse do qual já não se recupera. Seu corpo é cremado
em Brighton em 24 de abril de 1946, e Lydia espalha as cinzas em sua adorada
campina de Tilton. Você dá a notícia a Harry e o vê chorar em silêncio. E, quando
seu chefe vai embora, você também chora.

RECITATIVO

Ninguém parece se lembrar de que o naufrágio do Long-Term foi uma espécie


de anúncio ou prelúdio da hecatombe que hoje nos açoita. Todos os sintomas da
crise subsequente se concentravam, em pequena escala, ali: a avareza de um
punhado de gestores; a ausência de normas aplicáveis aos novos, sofisticados e
anárquicos instrumentos financeiros (leiam-se derivativos); a imprevisão ou a
ignorância de reguladores e políticos; e a infeliz e nunca vista interconexão entre os
distintos focos econômicos do planeta. De repente a queda de um minúsculo fundo
de risco — com sua cultura do segredo e sua férrea hierarquia, o LCTM nunca
chegou a se transformar em um gigante — tinha ameaçado o sistema financeiro no
seu conjunto. Se o Long-Term não tinha sido Grande-Demais-Para-Cair, tinha sido
Contagioso-Demais-Para-Cair.
— Um bando de gênios investe bilhões de dólares em apostas de altíssimo risco
— desabafei com Vikram naquele momento. — E, quando os mercados, sempre
ariscos, param de mimá-los, esses bilhões desaparecem, puf, pondo em xeque os
gênios, os bancos, Wall Street e a Terra inteira. E sabe como esses mequetrefes
solucionaram o problema? Com a medida mais irritante possível para qualquer
defensor do laissez-faire.
— Um resgate com recursos públicos? — Vikram se escandalizou o máximo
que um guru impassível como ele era capaz de se escandalizar.
— Isto já teria sido o cúmulo — rangi os dentes. — Mas sem a intervenção
direta do Federal Reserve os banqueiros não teriam soltado nem um dólar.
— Afinal quanto tiraram?
— Três bilhões e 625 milhões — no meu riso não havia lugar para o humor.
— Bankers Trust, Barclays, Chase, Crédit Suisse First Boston, Deutsche Bank,
Goldman Sachs, Merrill Lynch, J.P. Morgan, Morgan Stanley, UBS e Salomon
Smith Barney entregaram 300 milhões cada um. Société Génerale, 125 milhões. E
Lehman Brothers e Paribas, 100 milhões.
— O preço de não perder muito mais — filosofou meu amigo.
Não nego que às vezes sua equanimidade e seus silêncios me enfureciam. Sua
atitude arisca frente a esse mundo financeiro ao qual jamais se acomodou totalmente
me fascinava, mas sua resistência a dividir suas ideias ou sentimentos comigo me
irritava. Enquanto que a essa altura da nossa relação ele sabia tudo sobre mim, eu
ignorava se tinha irmãos ou se seus pais ainda viviam, onde tinha nascido ou quais
tinham sido seus amores no passado. Quando me atrevia a confrontá-lo, Vikram
dava um jeito de reconduzir a conversa para mim (e, prolixo e descarado como sou,
eu caía sempre). “Não há nenhum mistério”, soltou em outra ocasião, cansado dos
meus interrogatórios.
Talvez fosse verdade que para os indianos o tempo flui de maneira amorfa ou
circular e não em linha reta como no Ocidente, pois Vikram nunca sentia a pressa, a
urgência ou a ansiedade que costumam envenenar os habitantes usuais de Wall
Street. Para ele, as catástrofes eram apenas oportunidades e as reviravoltas da sorte,
caminhos a explorar. O único traço que não condizia com sua aparência de santo
era sua extrema avareza. (E olhem quem está falando isso.) Embora nessa altura
fosse rico, Vikram odiava gastar mesmo em objetos indispensáveis. Mais que austero
ou frugal — virtudes associadas à sua religião —, ele era isso que os médicos de
louco chamam acumulador. Seu maior prazer residia em contar os milhões
acumulados em suas contas, ao mesmo tempo que era incapaz de usufruí-los na
realidade. Como sócio, sua excentricidade era perfeita: quem não gostaria de ter
perto um gênio das finanças que não se concede luxos extravagantes e raras vezes
gasta um dólar a mais? Como companheiro de vida, por outro lado, sua
autocontenção era menos tolerável, porque eu não conseguia renunciar ao modo de
vida a que tinha me acostumado. Mas talvez no árduo equilíbrio entre a economia e
o gasto se encontrasse a medida do nosso sucesso conjunto.
— Em troca de sua generosa ajuda, os bancos receberão 90% do patrimônio do
Long-Term — revelei-lhe.
— E os sócios?
— Haghani, Hilibrand, Merton, Scholes e companhia ficarão sem nada.
— E o J.M.?
— Meriwether concebeu o Long-Term para se reivindicar depois de seus
fracassos anteriores. O pior para ele não é tanto a perda do capital quanto a
dimensão pública deste novo fracasso — concluí. — Mas você deve reconhecer que
se trata de um homem singular. Não duvido que logo se erguerá das cinzas.*
Enquanto o Long-Term naufragava, Vikram e eu montávamos as peças do
nosso futuro. Eu passava a manhã inteira fazendo ligações ou visitando possíveis
investidores, ele se dedicava ao planejamento financeiro do JV Capital Management.
Terminadas as tarefas de cada um, nos reuníamos em sua casa, onde nos
entregávamos aos jogos (quase diria rituais) que ele havia posto em andamento
desde a primeira vez que transamos. Só então sua aparente passividade indostânica
se transmutava em uma febre destruidora — não era casual que Kali a Negra nos
contemplasse de seu criado-mudo —, e ele usufruía tanto ao me submeter quanto
eu ao ser despojado (por algumas horas) do meu poder. Finalmente, o que mais me
surpreendia era que, versado nas sutis técnicas do tantrismo, Vikram nunca
ejaculasse, como se nem sequer no sexo se desse a oportunidade de desperdiçar.

Vikram Kureishy.
Essas semanas ficaram gravadas na minha mente como uma espécie de
arrebatamento erótico, e o fragor dos nossos corpos se transformou no melhor caldo
de cultura para o JV Capital Management. Leah tinha acertado ao afirmar que, ao
misturar nossos interesses sentimentais e econômicos, Vikram e eu estávamos
destinados a forjar uma união indestrutível. Mais além dos nossos enfoques
contrastantes, na cama e fora dela nos dirigíamos para o mesmo objetivo: colocar o
mundo aos nossos pés.

QUARTETO

O Alger Hiss de oitenta e sete anos que nos recebeu em sua casa nos subúrbios
de Boston não era o sóbrio e atlético Alger Hiss que tinha sido levado a julgamento,
nem o sóbrio e esbelto Alger Hiss da ficha policial, nem sequer o Alger Hiss
fotografado em dezenas de reportagens depois de sua libertação; mas, ao contrário
do que costuma acontecer com outros velhos, os anos não tinham erodido seu perfil
seco e apolíneo, e sim tinham acabado por poli-lo, permitindo que a acuidade das
maçãs do rosto e a contundência da testa, a profundidade das órbitas e a
proeminência do queixo — a fortaleza dos ossos — o transformassem em um Alger
Hiss prototípico, a essência ou o broto de todos os Alger Hiss que passaram ao
longo de quase um século de vidas tumultuosas.
No final de 1953, Hiss e seus advogados solicitaram um novo julgamento,
alegando que a Woodstock havia sido falsificada. Para provar tão estrambótica
teoria, seus advogados contrataram um construtor especialista que tinha conseguido
montar um modelo idêntico a partir de peças de segunda mão. Como não era fácil
argumentar que o obeso Chambers, com seus dedos gorduchos, tivesse sido capaz de
montar uma simples caneta, que dirá uma máquina de escrever, a defesa apontava o
próprio Comitê de Atividades Antiamericanas, ou mais provavelmente o FBI, como
responsável pela montagem. O caso deixava de ser o grotesco confronto entre dois
espiões e se transformava em uma gigantesca conspiração. Depois de deixar a prisão
em 1954, Hiss reiterou inúmeras vezes esta tese, que deixou plasmada em seu livro
In the Court of Public Opinion [Na corte da opinião pública].
Depois de alguns anos árduos e extenuantes, nos quais se viu obrigado a
trabalhar como vendedor em uma mercearia — e durante os quais acabou se
separando amargamente de Priscilla —, Alger recuperou sua licença de advogado
em 1975 e acabou gozando de uma vida mais ou menos plácida ao lado da segunda
mulher. Embora muitos de seus amigos tenham lhe virado a cara, nunca deixou de
receber demonstrações de simpatia por parte de centenas de ativistas liberais que o
consideravam a vítima emblemática da perseguição aos comunistas orquestrada por
Hoover e McCarthy.
Em 1975, Hiss e outros investigadores exigiram, apoiados na Lei de Liberdade
de Informação, que os “papéis da abóbora” fossem colocados à disposição do
público. Em julho daquele ano, o Departamento de Justiça aceitou revelá-los.
Constatou-se então que o primeiro rolo estava velado, que o segundo estava
praticamente ilegível (e continha apenas um relatório da Marinha sobre salva-vidas e
extintores) e o terceiro conservava os originais dos documentos apresentados contra
Hiss durante o seu julgamento.
Depois de quase quatro décadas de sua saída da prisão, a polêmica em torno do
caso não se esgotou. Leah tinha passado muitas horas examinando os depoimentos a
favor e contra ele, biografias oficiais e não autorizadas, estudos psicológicos (como o
estrambótico Friendship & Fratricide do dr. Meyer A. Zeligs), elogios hagiográficos e
desqualificações implacáveis.
O próprio Hiss não se manteve à margem da polêmica e desde meados dos
anos 1970 articulou uma campanha para se reabilitar. Parte essencial desse esforço
foi a publicação de Alger Hiss: the true story [Alger Hiss: a verdadeira história], do
jornalista John Chabot Smith, e sobretudo de Laughing last [Rindo por último], o
testemunho escrito por seu filho Tony como uma orgulhosa defesa do pai (sem
outra prova, segundo Leah, além de seu carinho filial). Em contraste, no mesmo
ano, um antigo partidário de sua causa, Allen Weinstein, publicou o livro Perjury
[Perjúrio], no qual, depois de anos mergulhando nos arquivos, desprezava suas
simpatias originais e o declarava culpado de espionagem.
Em 1978 Hiss e seus advogados apresentaram diante da Corte do Distrito Sul
de Nova York uma petição coram nobis, solicitando a anulação da sentença por
irregularidades no processo. Quatro anos depois, o juiz Richard Owens recusou a
coram nobis e declarou que o julgamento de 1950 tinha sido “justo de qualquer
ponto de vista”.
Em 1988 Alger publicou suas memórias Recollections of a life [Lembranças de
uma vida], em um último esforço para reafirmar sua versão dos fatos. Depois a
disputa começou a se apagar, embora para Alger e Tony Hiss — que o
acompanhava muito presunçoso e incisivo nessa tarde —, a luta estava longe de ter
terminado.
— Sr. Hiss, o senhor se sente reabilitado? — perguntou Leah, dando um gole
no chá que tinham nos servido.
A ampla sala, de impecável estilo vitoriano, parecia o lugar menos propício para
entrevistar um suposto espião soviético.
— É óbvio que não — a voz do ancião ainda soava contundente. — O juiz
nunca parou para avaliar nossos argumentos.
— Refere-se à petição coram nobis? — intervim.
— E a todas as provas que apresentamos — agora era Tony, igualmente brioso.
— O julgamento contra o meu pai foi um julgamento político.
— A máquina de escrever era falsa — interveio Alger.
Pai e filho pareciam acostumados a responder em conjunto e recitaram uma a
uma as irregularidades que tinham detectado no processo: uma lista de vinte ou 25
pontos que iam da falsidade das declarações de Chambers (seu cavalo de batalha) à
pressão sofrida pelo juiz nas mãos de Nixon, outros membros do Comitê e uma
dezena de políticos republicanos. Das três horas e meia que passamos com eles, mais
de dois terços se esgotaram ouvindo Tony, que se gabava de conhecer de cor o
expediente do pai. Nada do que disse chegou a me convencer: era louvável que
aquele rapaz abandonado tenha querido se transformar no principal aliado do pai,
mas sua indignação não o tornava uma fonte válida. Além disso, nós não tínhamos
ido visitá-los para nos unir à sua causa, mas para elucidar os vínculos que teriam
unido Alger com White e com o meu pai.
Um céu cinzento, de tempestade, caía através das vidraças quando Tony
finalmente nos permitiu redirecionar a conversa.
— Chambers garantiu que em 1938 os senhores viajaram juntos para visitar
Harry Dexter White em Peterborough — disse Leah —, e até se lembrou de que
pararam no caminho para ver uma peça de teatro.
— Você se dá conta do absurdo da cena? — interveio Tony, sem deixar seu pai
falar. — Dois espiões que, antes de revelar informação confidencial, se distraem em
um teatrinho de província…
— E o memorando de White que apareceu nas mãos de Chambers?
— Alguém deve tê-lo roubado. Da mesma forma que roubaram os documentos
do meu pai.
— Perguntarei de forma mais direta, sr. Hiss — Leah se dirigiu a Alger. —
Harry White era comunista?
— É óbvio que não — outra vez Tony.
— Companheiro de rota?
— Não.
— Quando Chambers declarou que White era um contato dedicado, e que
inclusive nos seus tempos livres tinha desenhado um plano monetário para os
soviéticos, estava mentindo?
— É óbvio que estava mentindo, como sempre.
— Ninguém no seu círculo era comunista? — encarei Alger.
— Julian Wadleigh — de novo Tony. — Talvez alguns outros, mas isso não é
da nossa conta.
— Os colaboradores de White no Tesouro?
Como se despertasse de uma letargia, Alger colocou a mão na perna do filho,
pedindo um pouco de silêncio.
— Chambers deve ter contado com gente de sua confiança no Tesouro —
exclamou Alger com franqueza. — Um ou dois contatos pelo menos. Algum deles
deve ter sido o responsável por subtrair os papéis da mesa de White.
— Algum nome lhe vem à cabeça?
— Não.
— Frank Coe? — propus.
— Talvez.
— Harold Glasser?
— Possivelmente.
— Lud Ullmann?
Hiss fez uma pausa dramática.
— Sim. Ullmann.
Demorei uma eternidade para dizer o último nome.
— Noah Volpi?
O velho Alger não hesitou.
— Volpi. Sim.

* Depois de alguns meses de penúrias (as falsas penúrias dos ricos segundo Leah), J.M. iniciou uma nova
aventura, o JWM Partners, em companhia de seus fiéis Haghani e Hilibrand, e anunciou que prosseguiria com a
mesma estratégia do Long-Term, só que de forma mais rigorosa. Durante a crise de 2008 se viu obrigado a fechar
o JWM Partners depois de acumular 44 % de perdas.
Cena X. Sobre como investir em bens imóveis sendo comunista
e naufragar sem salva-vidas

ÁRIA DE NOAH

Se por si só você já era um espectro ou uma muralha, apenas um nome idêntico


ao meu (só fumaça), imaginá-lo depois da guerra é ainda mais duro, como se fosse
impossível me fixar nesse transe, entrever seus medos ou sua angústia. Seus diários
terminam em meados de 1946, impossível saber se depois da fundação do Fundo
Monetário e do Banco Mundial, criaturas de White e também suas criaturas, você
parou de escrever, se seus cadernos posteriores se extraviaram ou se minha mãe
decidiu escamoteá-los; sua escrita desaparece e só resta o eco da sua voz filtrado em
outras vozes.
Tento seguir seus passos.
Agora eu o espiono.
Depois da conferência de Savannah, seu trabalho se torna especialmente
confuso porque a junta de governadores decide que as duas instituições iniciem sua
caminhada logo em maio. Minha mãe se lembra de que esses foram seus últimos
meses de tranquilidade, mas só em um sentido figurado, pois já eram dias e noites
sem repouso, cheios de reuniões em horários inconvenientes, ligações inoportunas
nos sábados e domingos, folgas e férias eternamente adiadas. Aguentando a pressão,
você se mantém inabalável, é um soldado de White, um soldado do FMI, e informa
os comandantes no improvisado quartel montado nos salões do Hotel Washington
sem questionar as ordens.
Você foi mesmo tão cinzento quanto traça este relato, o eterno segundão, o faz-
tudo de Harry White? Um cara sem outra vida além da medíocre rotina de
funcionário, com seus horários e hierarquias, seus rituais e sua inércia? Não consigo
saber, não em detalhes, e isso me desorienta. Vejo você ir daqui para lá, do Tesouro
para o Hotel Washington, da suíte de White à de Gutt, um mensageiro — não
queria dizer um mensageiro — perdido entre gráficos, leis, documentos, a
informação que condensa ou sintetiza para que eles leiam por cima. Talvez no início
a ideia de participar do nascimento de um novo mundo lhe desse forças para
justificar seus remendos burocráticos, sua disciplina e sua lealdade a toda prova, mas
o desgosto que o invadiu em Savannah se acentuou ao longo das últimas semanas. A
instituição que White e você imaginaram, esse órgão que teria que flutuar acima dos
interesses e questões nacionais, que se manteria à margem da vulgaridade da política
e da ambição de seus funcionários, já está muito longe da realidade que você vê
diariamente. O juiz Vinson não é Morgenthau e, como você já percebe, a ideia dele
de como dirigir os organismos emanados de Bretton Woods difere do idealismo que
animou sua concepção. Para ele, o Banco e o Fundo são simples instrumentos a
serviço dos Estados Unidos, e qualquer outra consideração passa a segundo plano. O
próprio Harry constata que sua criatura se esquiva de suas intenções e no seu estilo
prudente, compassado, não esconde seu desgosto.
Para White e para você, a paz e a harmonia internacionais eram prioritárias e,
frente às críticas a isso, ele continuou defendendo publicamente a necessidade de
manter a aliança com a União Soviética. “A maior tarefa que a diplomacia
americana enfrenta, e a única tarefa que tem valor real nos problemas que nos
espreitam”, escreve Harry em um memorando da época, “é desenhar os meios para
continuar uma relação pacífica e amigável entre Estados Unidos e Rússia.” Mas a
mesquinharia da política desmente seus augúrios, e a uma velocidade inusitada as
relações leste-oeste se degradam, Stálin desconfia de seus aliados e busca garantir o
controle de seus satélites, e, acossado pelos republicanos, Truman endurece suas
posições.
Neste ambiente tenebroso, em 6 de maio de 1946, White assume seu cargo no
Fundo; três dias depois, recebe sua nomeação como secretário executivo do Fundo
Monetário. Vocês dois ignoram que, depois das denúncias de Elizabeth Bentley e
Whittaker Chambers, o antigo círculo do Tesouro se encontra sob estreita vigilância
por parte de agentes federais. A princípio, as acusações soam débeis ou duvidosas, e
Truman e Vinson não dão muito crédito a elas, mas a pressão do FBI aumenta, e um
relatório de 28 páginas sobre as supostas atividades clandestinas de Harry logo atraca
na Casa Branca.
“Como se pode observar”, escreve J. Edgar Hoover a Truman, “este escritório
foi informado de que White foi acusado de ser uma valiosa peça no aparelho
clandestino soviético que opera em Washington. Distintos materiais que chegaram a
ele, como resultado de suas tarefas oficiais, foram entregues mediante intermediários
a Nathan Gregory Silvermaster, sua esposa Helen Witte Silvermaster e William
Ludwig Ullmann, que se encarregava de fotografar os documentos…”
O relatório não menciona você, apenas Ullmann.
Convencido da inconveniência de manter seu cargo diante de tais acusações,
Vinson se nega a que White assuma suas responsabilidades no Fundo e se encontra
com o procurador-geral Tom Clark para negociar uma saída. No final os dois
expõem a Truman três cenários: que o presidente exija a demissão de White sem
maiores comentários, que lhe diga que mudou de opinião e solicite sua renúncia ou
que instrua o procurador-geral a prosseguir com as investigações sem importar para
onde levem. Harry chega a ficar sabendo das infamantes discussões sobre seu futuro?
E você? Segundo Hoover, que decidiu grampear (ilegalmente) seus telefones, o
reluzente diretor executivo não demorará a desconfiar.
Na primavera de 1946, o FBI coloca em circulação vários informes sobre outros
funcionários do Tesouro acusados de espionagem. Temendo o pior, o próprio
Silvermaster deixa o governo no final desse ano. E você? Você decide permanecer ao
lado de Harry, no Fundo Monetário, até o último segundo. Que difícil é adivinhar
seu ânimo nesses meses asfixiantes. Fingindo que não está acontecendo nada,
persevera em suas tarefas enquanto seus amigos são interrogados e imagina o que
fará quando o chamarem. Renunciar, fugir, se esconder? Em junho, o FMI se
transfere para os novos escritórios que dividirá com o Banco, e você pressente que
não durará muito no reluzente edifício.
Agoniado pela papelada e pela organização dos arquivos — conversa
diariamente com Glasser, que ainda conserva seu cargo no Tesouro —, deixa que os
meses se consumam, Vinson é nomeado juiz da Suprema Corte e John W. Snyder,
um anticomunista furioso, assume o cargo de secretário do Tesouro. Enquanto isso,
a insistência do FBI finalmente rende frutos e, já sem opções, White não tem outro
remédio senão assinar sua renúncia em 31 de março de 1947. “Quero lhe agradecer,
senhor presidente, sua confiança em mim e a oportunidade que, como diretor
executivo dos Estados Unidos no Fundo, me concedeu para conseguir que os
acordos de Bretton Woods chegassem a bom termo”, escreve a Truman.
O presidente responde em 7 de abril: “Com sincera dor e considerável
relutância aceito sua renúncia como diretor executivo dos Estados Unidos no FMI,
efetiva a partir da volta do sr. Gutt da Europa. Sei que você poderá ver com grande
satisfação pessoal sua carreira no serviço público, coroada pelos seus incessantes
esforços para dar uma verdadeira contribuição à estabilidade do comércio
internacional por meio do Banco Internacional e do Fundo Monetário
Internacional, que abrigam tantas promessas para um mundo desesperadamente
ansioso por uma paz duradoura”.
Depois de treze anos em Washington, White se muda para um amplo
apartamento na rua 86 Oeste, em Nova York. O Conselho da Federação Judaica o
contrata como assessor colaborador, e o Banco do México lhe oferece um cargo
como consultor por 18 mil dólares anuais. Desejoso de aproveitar seu tempo livre,
Harry adquire um pequeno sítio em Blueberry Hill, a uns cinco quilômetros de
Fitzwilliam, em New Hampshire. No início de setembro de 1947 sofre um infarto
grave, e os médicos o obrigam a guardar repouso. Segundo minha mãe, você vai
visitá-lo sempre que pode.
No início de outubro um delegado federal aparece na casa de White e lhe
entrega uma intimação. Sua esposa (já contei) solicita uma prorrogação devido ao
seu estado de saúde. Enquanto convalesce em St. Petersburg, Flórida, Harry
expressa seu apoio a Henry Wallace, o primeiro vice-presidente de Roosevelt, em
sua luta pela presidência. Em 24 e 25 de março White finalmente comparece para
depor diante do tribunal em Nova York, sem que sua presença provoque maiores
consequências. É só em 30 de julho, quando Bentley depõe diante do Congresso,
que aumentam os problemas para o círculo do Tesouro. A bruxa afirma que “o sr.
White entregava informação ao sr. Silvermaster, que por sua vez a entregava a mim”
e sustenta que sabia que esta acabaria nas mãos dos russos; além disso, insiste em
que White colocou meia dezena de simpatizantes comunistas em distintas áreas do
governo. Pela primeira vez ela menciona, ao lado de Coe, Adler, Glasser,
Silvermaster e Silverman, seu nome: Noah Volpi.
Como você reage? O pânico o devora ou, como Hiss, mantém uma moderação
inelutável? Minha mãe o descreve devastado, mas talvez reservasse sua infelicidade
para a intimidade da família. Novamente não consigo distinguir seu desespero ou
seu medo, a angústia que assolava cada um dos seus dias, para mim você já não é a
rocha ou o monólito que minha mãe pintou por tantos anos, mas ainda não consigo
lhe pegar, ainda não sou capaz de saber quem você é. Por mais que eu tente retê-lo,
escapa, há algo em você que ainda desconheço, não sei se algum dia chegarei a
decifrá-lo.
A situação de White piora quando Chambers confirma o testemunho de
Bentley e afirma que, quando decidiu abandonar o aparelho clandestino, convidou
você a seguir seus passos. “Me deixou em um estado de ânimo muito agitado, pois
achei que o tinha convencido”, afirma, “mas pelo visto não o fiz.”
Então chega o 13 de agosto de 1948, o dia do corajoso discurso de White
diante do Comitê de Atividades Antiamericanas. Três dias depois, está morto. Um
dos homens-chave da sua vida, a quem você seguiu e admirou por mais de dois
quinquênios, o abandona. Minha mãe não consegue consolá-lo. Os dois vão aos
funerais — isso lhe honra — e na semana seguinte você se demite do Fundo. Ou
alguém lhe exige isso? Pouco importa. Seguindo os passos de Harry, você deixa para
trás a selva de Washington e convence minha mãe a segui-lo para Nova York, esse
denso formigueiro que agora lhe parece tão estranho. Vaga daqui para lá, marca
encontros inúteis e esgota longas esperas sem achar um novo emprego. Quando
aceita que acabará na rua, mendigando nas esquinas, um antigo colega de Columbia
lhe oferece um emprego como consultor em seu escritório, um trabalho simples,
metódico, anódino, que você aceita como um pão amanhecido.
Pelo menos ninguém o incomoda por um tempo. Embora as denúncias e as
acusações contra supostos espiões comunistas proliferem nesses anos (você
acompanha muito de perto o julgamento de Hiss), você parece ter ficado à margem
das questões, como se até seus inimigos tivessem se esquecido de você. Durante dois
anos vegeta no seu empreguinho, sem nunca levantar a cara, até que no começo de
1950 recebe uma intimação para depor em Nova York. Talvez animado por Glasser
ou Ullmann, recorre à quinta emenda e se recusa a se referir ao seu passado, a esse
passado que desaparece para sempre no esquecimento, a esse passado que eu ainda
ignoro, e volta para o seu sórdido escritório em Greenwich Village. Segundo Judith,
a experiência o deixou mais morto que um morto. Transcorrem 1951, 1952 e os
primeiros meses de 1953 sem novas ameaças. Esta já será sua vida para sempre,
pensa resignado, uma vida anônima como tantas outras, uma vida murcha e
macilenta, a vida que você merece.
De forma inesperada duas notícias o abalam. Primeiro, Judith anuncia que está
grávida. Você não consegue acreditar. Não quer acreditar. Você nunca quis ter
filhos, alertou desde que se conheceram. Resiste a ser pai, luta consigo mesmo e
finalmente foge. Abandona minha mãe — e a mim, que sou apenas um horrível
feto. Não o culpo. Foge do lar, febril, e se refugia naquele sótão no Queens que
minha mãe pinta como uma antessala do inferno.
Em 6 de novembro o procurador Brownell reabre o caso White para ganhar
muitos votos e escarnece de um cadáver que já não pode se defender. Pouco depois
um mensageiro aparece na sua casa com essa nova intimação que você sempre
temeu. Agora sabe que é o FBI quem lhe persegue. Seu corpo já não resiste, não
aguenta mais. Em 15 de novembro você desperta com os arrulhos de um pombinho
preso entre o batente e a janela, tropeça ao tentar libertá-lo, e ao cair (quero
imaginar) você também se liberta.

CORO DA FAMÍLIA VOLPI

Quando finalmente peguei sua mão, Susan me segurou com uma força
inverossímil em uma mulher do seu tamanho, como se quisesse me mostrar que
mais uma vez era dona de si mesma. Depois que Terry ganhou a última apelação,
minha filha voltou a perder o apetite, vomitava a cada meia hora e finalmente se
perdeu em uma bruma mental que a impedia de reconhecer onde estava. Insone
crônica, passava as noites em claro em fóruns sobre constelações familiares e filhos
abandonados ou perdidos, enquanto de dia era incapaz de manter uma conversa
lógica, mas foi só quando vi seu diário, onde pintava delicadas cenas de tortura, que
decidi interná-la em uma clínica em Massachusetts apesar da oposição de sua mãe.
Quatro meses e meio depois daquele horrível dia, os médicos acabavam de lhe dar
alta.
Da última vez parecia um cadáver, com os bracinhos esqueléticos e as clavículas
marcando na roupa, de modo que me surpreendeu constatar que havia ganhado um
peso mais ou menos razoável. Vestia jeans justos e uma blusa roxa e, se não fosse
pelas olheiras, pareceria tão bonita quanto antes. Inclusive havia certa frieza no
verde dos seus olhos que lhe conferia um encanto novo, mais distante, mas também
menos efêmero.
Assinei os papéis da alta enquanto ela recolhia suas coisas e fomos para Nova
York. Ficaria com Leah e comigo por alguns dias, pelo menos até que encontrasse
um lugar em Chelsea ou em Tribeca. No caminho se mostrou mais loquaz do que
nunca — efeito dos antidepressivos? — e me detalhou as reuniões que tinha
previstas para as próximas semanas. Sua energia e seu otimismo me surpreenderam,
e temi que se tratasse de uma onda passageira que não demoraria a dar lugar ao seu
reverso, os poços de melancolia que a invadiam desde criança. Não foi assim, pelo
menos naquele momento. Menos de duas semanas depois de voltar à cidade,
expressou sua intenção de entrar para o Fundo que eu começava a colocar em
andamento ao lado de Vikram e de Isaac.
A princípio senti certo ceticismo, mas Susan precisava ocupar a maior parte do
seu tempo em assuntos que a fizessem esquecer um pouco a drástica rejeição das
filhas. Segundo a sentença, tinha permissão para visitá-las a cada duas semanas, mas
sob a supervisão de uma assistente social. Embora a humilhação devesse lhe parecer
intolerável, acabou por ceder a essa rotina que Audrey e Sarah detestavam. Em geral,
as visitava nos domingos à tarde, conversavam um pouco ou, melhor, Susan falava
sem parar diante das gêmeas, que se contentavam em olhá-la de soslaio, como se
fosse uma incômoda vendedora de seguros. Ela lhes dava de presente brincos ou
colares (que as garotas nunca usavam), e as três terminavam abobalhadas diante do
American Idol até que Terry voltava para casa e Susan tinha que ir embora como se
fosse uma empregada.
Minha filha sempre foi dona de uma estranha habilidade para maquiar suas
emoções e não demorou a construir uma nova imagem, limpa e serena, como se em
vez de permanecer em uma clínica psiquiátrica tivesse gozado de férias na Suíça.
Pouco a pouco se tornou mais extrovertida, mais confiante nas suas relações
públicas, e voltou a conferir um cuidado extremo à sua aparência. Passava horas em
spas e salões de beleza, decidida a exibir penteados e unhas impecáveis, e não havia
tarde que não saísse para comprar novos cremes antirrugas e tônicos faciais. Sempre
a par da moda, não só adquiriu centenas de conjuntos diferentes como também
começou a se relacionar com os estilistas mais conspícuos da Grande Maçã Podre
até ganhar um lugar destacado nas suas escandalosas revistas de fofocas. Era como
se, para sobreviver à dor, ao abandono e à vergonha, Susan tivesse inventado outra
Susan, uma Susan que aos olhos de outros não conhecia o sofrimento.
Eu não sabia o que me era mais doloroso, se vê-la assim, muito elegante e
ausente, tão bonita e espectral quanto uma pintura ou um holograma, ou devastada
como antes de se encher de comprimidos. De um modo ou de outro, prometi me
vingar, o que Terry Wallace tinha feito à minha filha não podia ficar impune.
“Prometo a você que vou destruí-lo”, disse a Susan uma tarde. Bela e impassível
como uma Vênus grega, ela se limitou a me mostrar seu último Stella McCartney e
me apresentou um de seus namorados.
Isaac, finalmente, tinha encontrado o emprego dos seus sonhos. Contra minhas
previsões, nos meses prévios à abertura do nosso fundo meu filho cumpriu as tarefas
que lhe encarreguei com rapidez e eficácia. Realizou cada trâmite com os
reguladores, o estado e a prefeitura, encontrou os escritórios que deveriam servir
como nosso quartel operativo (um nono andar na rua 54 Oeste com a Sexta),
acertou os termos das contratações trabalhistas, escolheu as secretárias, os
contadores, os advogados e boa parte dos brokers, visitou dezenas de possíveis sócios
e, enfim, colocou em andamento a maquinaria do JV Capital Management em um
prazo recorde. Pela primeira vez se travou entre nós uma relação que, se não se
aproximava da camaradagem ou do respeito profissional, pelo menos não estava
amortecida pelo rancor e pelas segundas intenções. Impossível dizer que não o
achasse relapso — sempre tinha medo de que alguma coisa saísse mal —, mas sua
rebeldia diminuíra ou ele tinha descoberto formas menos daninhas (porém mais
caras) de expressá-la.
Quando me dei conta de que os carros antigos tinham se transformado em sua
nova paixão — eu nunca tinha prestado atenção a estas bobagens —, Isaac já
possuía mais de trinta modelos antigos que armazenava em um terreno que tinha
comprado para esse fim perto de sua casa de campo em New Hampshire. Tinha que
engolir quase diariamente suas letárgicas descrições de fords, lincolns ou packards
dos anos 1930 ou 1940, e uma vez Leah e eu até visitamos sua coleção, diante da
qual tivemos que fingir um desmedido interesse. Naquela tarde Tweedledee e
Tweedledum se mostraram menos ariscos, e Kate renunciou aos sarcasmos que
costumava lançar a Leah. Por uma vez parecíamos (digo isso com uma ponta de
ironia) uma verdadeira família americana.
O encanto, obviamente, não demorou a se romper. Quando informei a Isaac
que Vikram não apenas se transformaria em sócio da firma, com o mesmo número
de ações que ele e a irmã, como ficaria encarregado da engenharia financeira (e,
portanto, meu filho ficaria sob sua supervisão direta), a efêmera cordialidade
paterno-filial veio abaixo, e imediatamente voltou a me jogar na cara os vexames que
eu lhe tinha imposto no passado, aos que agora somava este, o mais humilhante de
todos. Nunca confiaria nele, nunca o acharia suficientemente bom, por isso preferia
um estranho — pior ainda: um maldito estrangeiro — ao meu próprio filho… A
ladainha de sempre. Se fosse tão digno quanto se gabava de ser, nesse instante teria
renunciado à sua posição no JV Capital Management, mas obviamente não o fez.
Segundo ele, eu o odiava porque era a única pessoa a quem nunca poderia comprar,
diferente dos fantoches de quem costumava me cercar — só evitou o mau gosto de
mencionar os nomes de Vikram e Leah —, mas tampouco podia se dar ao luxo de
abandonar o primeiro emprego que o fazia se sentir útil e bem recompensado.
Apesar desses conflitos, em 18 de novembro de 1999 o JV Capital Management
viu a luz com 35 funcionários, uma modesta sala de reuniões e uma ampla sala de
operações. Vikram assumiu a parte técnica e, a contragosto, Isaac se responsabilizou
pela administração, enquanto me correspondeu montar o discurso da empresa,
cortejar os peixes gordos, contratar vários quants recém-fugidos do Long-Term e
reunir o capital inicial de 150 milhões de dólares. Quando finalmente nos mudamos
— meu escritório, com uma decoração minimalista em branco e preto, se abria para
o Hudson e a abulia de Nova Jersey —, entendi que finalmente tinha chegado ao
lugar que ansiara desde criança. Por isso quero esclarecer, de uma vez por todas, que
Vikram e eu forjamos um brioso e atraente fundo de investimentos e que nunca nos
passou pela cabeça planejar um vigamento financeiro propício à fraude e à falcatrua,
como meus adversários quiseram demonstrar nos processos abertos contra nós.
Desconfiados leitores, não se enganem: quando Vikram e eu fundamos o JV
Capital Management, nenhum dos dois era um estelionatário nem aspirava a sê-lo,
simplesmente queríamos aproveitar nossa experiência no J.P. Morgan e no Long-
Term para montar uma empresa capaz de abrir caminho em meio à feroz
concorrência que agitava Wall Street nessa época. Tampouco é verdade que a
chegada de uma plêiade de grandes investidores — as famílias Lowenstein, Castro,
Hammond ou Dumontet — se devesse às bonificações que eu teria prometido
mediante ardilosos truques. O JVCM era tão limpo quanto qualquer outro fundo de
hedge da época (traduzo: nos limites da legalidade, sem nunca ultrapassar a linha
vermelha). Se em menos de dois anos nossa lista de clientes quintuplicou, foi graças
a uma gestão exemplar das nossas pastas e à eficácia de uma estratégia à la LTCM —
porém muito mais confiável — colocada em movimento por Vikram e pelos quants
que contratamos depois da derrota de J.M.
Não nego que o repentino sucesso da nossa empresa também possa ser
explicado por uns desses golpes de sorte sem os quais um financista nunca
despontará nos mercados: o investimento em uma pequena startup de Silicon
Valley. Imagino que vocês terão ouvido falar dela: Google. Com os lucros obtidos
com esta operação ampliamos nossos escritórios até o oitavo andar, o agora famoso
ou infame oitavo andar, para onde Vikram e eu transferimos nossos escritórios e
onde forjamos nosso sancta-sanctorum, nossa sala de comando e nosso bunker.
Graças à visão do meu amigo indiano, contornamos a queda das pontocom no final
de 2000, e nosso capital de base aumentou em torno de 32%. Alguns meses depois
tínhamos ampliado nossa lista para 88 funcionários e fazíamos cerca de 200 mil
operações por mês para outras empresas representativas de Wall Street, como J.P.
Morgan, Merrill Lynch e especialmente Lehman Brothers. Como se não bastasse,
minha fortuna pessoal — não me inquieta revelá-la — havia subido para 800
milhões de dólares, 800 milhões conseguidos da maneira mais limpa e transparente
que se pode conseguir no nosso meio.
Mas o melhor desses anos não foi tanto o prestígio crescente da empresa ou o
aumento do meu patrimônio, mas a possibilidade de utilizar esses lucros nas causas
que de fato me importavam, em especial a música e a ópera. Quando minhas
doações subiram na mesma porcentagem que meus rendimentos, fui convidado a
me sentar nas reuniões diretivas do Met, da Juilliard e da Filarmônica de Nova
York. Mas minhas ambições de mecenas eram tão globais quanto as da minha
companhia e não me conformei com o âmbito glorioso mas de qualquer forma
provinciano da Costa Leste, e logo meus recursos regaram também as Óperas de
Washington, Houston, Chicago e Los Angeles, e mais tarde o Covent Garden, o
Kirov (que tinha recuperado seu antigo nome de Mariinsky), a Ópera Estatal de
Viena e o Festival de Salzburgo.
Assim, enquanto Vikram e Isaac administravam o JVCM, e Susan financiava sua
primeira coleção de lingerie, Leah e eu viajávamos de um lado para o outro do
planeta para assistir a uma média de setenta concertos e apresentações de ópera por
ano, adornados com jantares de gala, coquetéis e festas nas quais ao final tratávamos
de igual para igual aqueles que tinham sido meus ídolos e agora eram (era o que eu
achava) meus camaradas. Pavarotti, Domingo, Studer, Fleming, Ricciarelli, Levine,
Gergiev, Osawa, Muti… e uma infinidade de jovens cantores e diretores de
orquestra que eu apoiava com bolsas e estímulos desinteressados, pelo menos até que
uma noite, justamente no Met, me dei conta do meu erro.
Embora eu tivesse pagado integralmente a nova produção de Il Trovatore, ao
folhear o programa constatei que o meu nome aparecia na última página e em letra
minúscula: O Met agradece a generosa doação de J. Volpi para esta produção. Apenas
isso, enquanto que fotos gigantescas dos cantores, do diretor e do maestro
adornavam as primeiras páginas do folheto. Na sessão seguinte da junta diretiva do
Met, joguei na cara dos meus colegas a injustiça dessa política, eu tinha investido
1,5 milhão de dólares no seu Trovatore, me parecia natural que meu nome figurasse
no início do programa e inclusive sugeri que minha fotografia, com um breve
currículo, aparecesse junto às dos artistas.
Quando o miserável Joe Volpe me disse que uma solicitação desse tipo era
inédita, ameacei cancelar minhas doações e lembrei-o de que tinha prometido 12
milhões só para essa temporada. Finalmente encontraram uma solução que satisfez a
todos, nada de foto nem currículo, mas meu nome, em letras maiúsculas,
encabeçaria os programas das produções financiadas por mim com uma tipologia
legível. E, o mais importante, se me comprometesse a manter minhas doações no
mesmo nível ao longo de cinco temporadas sucessivas, o Grand Tier Restaurant
seria rebatizado como J. Volpi Grand Tier Restaurant. De todas as vitórias que
obtive nessa época nenhuma me entusiasmou tanto quanto esse grand finale.
Pouco depois comemorei meu aniversário com uma festa a que compareceram
mais de quatrocentos convidados em um labiríntico balneário nas Bahamas. O ano
se iniciava com as melhores perspectivas, todos os meus “entes queridos”, Vikram,
Leah, Susan, e inclusive Isaac, Kate e suas bolinhas, estavam ao meu lado, Plácido
concordou em cantar algumas das minhas árias favoritas — seu “Lamento de
Federico” me fez soluçar como um bebê — e de repente parecia me dirigir para uma
etapa livre de inquietações que me deixaria tempo suficiente para conseguir a única
coisa que então me fazia falta, a verdade última sobre o meu pai.

FINAL II

Ullmann não se parecia com Glasser e muito menos com Hiss, e não só porque
conservasse uma tez aveludada, sem rugas, e uns olhinhos faiscantes, ou porque
exibisse um impecável paletó, uma gravata Hermès com estampas — lhamas ou
girafas — e uns óculos foscos que lhe conferiam a aparência de um professor
aposentado de línguas mortas, mas sim porque a firmeza de sua postura e sua
linguagem bem articulada o desenhavam como um homem que, diferentemente de
seus antigos camaradas, tinha sabido se ressarcir e gozar de uma vida produtiva,
venerado por uma comunidade que ignorava seu passado. Lud Ullmann — nunca
usou seu nome alemão — nos recebeu em sua mansão de Beach Haven, em Nova
Jersey, uma extensa propriedade rodeada de bosques incandescentes sob os
vermelhos e alaranjados do outono.
Como meu pai, Ullmann também tinha sido assistente de Harry White em
Bretton Woods e, depois de ser acusado por Elizabeth Bentley, preferiu se retirar do
serviço público. Mudou de ramo para os bens imóveis, onde ao lado de Silvermaster
montou uma empresa que lhe permitiu juntar um patrimônio nada desprezível de 8
milhões de dólares. Durante seu depoimento diante do tribunal em Nova York
recorreu à quinta emenda e nunca foi perseguido nem incomodado por seus
supostos delitos de espionagem. Seu papel crucial no círculo clandestino de
Washington como responsável por fotografar e transmitir centenas de documentos
confidenciais a Boris Bikov não o impediu de se transformar em uma figura
importante na sua comunidade, nitidamente conservadora, ou entre seus vizinhos,
que certamente não podiam imaginar que no passado tivesse sido espião ou que
participasse de um triângulo com a mulher do seu sócio.
Ao contemplá-lo sentado em sua poltrona de couro, coberto pelas fotografias
dos filhos e netos — belos e insossos loirinhos a cavalo ou posando em lugares como
Monte Albán, Angkor Wat ou Machu Picchu —, me perguntei sobre a sorte
desigual dos iguais e lamentei o contraste quase obsceno entre a agradável vida deste
homem e o absurdo final do meu pai. O que você fez, Noah, para terminar daquele
jeito? Por que não soube encontrar uma saída decorosa, uma nova identidade, um
novo ofício? Por que teve que se jogar — literalmente — na desesperança e na
ignomínia?
Leah agradeceu a Ullmann por nos receber enquanto um dos seus empregados
nos servia taças de vinho branco. Eu gostaria de me alongar descrevendo a conversa
sobre o clima e sua afeição aos puros-sangues, suas lembranças sobre as conferências
de Bretton Woods ou de Savannah e o nascimento do novo sistema financeiro, mas
isso só prolongaria um suspense desnecessário.
O velho reconheceu sem rodeios sua passagem pelo aparelho clandestino
soviético. Sim, ele se encarregava de fotografar os documentos para entregá-los a
Carl, aquele gordo repugnante; sim, fez isso de maneira sistemática; sim, é óbvio
que estava a par de que a informação acabaria nas mãos dos russos. E não, não se
arrependia. Nos anos 1950 e 1960, época sinistra, Ullmann tinha procurado
esconder aqueles dias de paixão e sacrifício, de fé revolucionária e de confiança no
futuro, mas agora se orgulhava de sua antiga militância. Julgada hoje, sua conduta
seria qualificada como um ato de traição e mereceria não só uma demissão
infamante como também a prisão, mas naquela época os Estados Unidos eram
aliados da União Soviética. Não se arrependia, insistiu, porque nunca duvidou de
que estivesse fazendo o correto.
— Harry White também era espião? — perguntou-lhe Leah.
— Digamos que simpatizava com a União Soviética e detestava os britânicos.
Senti que me faltava o ar e desmaiaria naquela sala forrada de pinturas e
quinquilharias, artesanatos e suvenires de países miseráveis e remotos.
— Alguém mais da equipe de White trabalhava com você? — minha voz soou
desfalecente.
— Não sou delator — me olhou com severidade. — Não me importa
reconhecer meu passado, mas não penso trair meus velhos companheiros.
— Harold Glasser também nos confessou sua participação no aparelho
clandestino — esperava que esse dado destravasse sua língua.
— O coitado morreu recentemente, certo?
Ullmann guardou silêncio, meditativo ou comovido, e deu um longo gole no
seu chardonnay. Era muito difícil para mim imaginá-lo quando jovem, quando fazia
parte do vergonhoso trio com Nathan e Helen Silvermaster.
— Sou filho de Noah Volpi — revelei-lhe de repente.
— Volpi — repetiu sem ênfase.
— Morreu em 1953, você deve ter sabido da notícia, pouco antes que eu
nascesse.
— Sei. — Ullmann fechou os olhos. — Lamento.
O ancião empalideceu, ou assim me pareceu — eu devia estar ainda mais lívido
—, e ajeitou os ralos cabelos que deslizavam pela testa. Em seu rosto se desenhou
um espasmo desolado.
— Noah e eu sempre estivemos juntos.
— Como?
— Nós dois pertencíamos à mesma célula dos anos 1930 — reiterou com certa
melancolia.
— Meu pai era comunista?
Ullmann me deu um tapinha no ombro com doçura.
— Mais comunista que Lênin e que Stálin, meu amigo.
Terceiro ato
L’inganno felice
Cena I. Sobre como salvar o mundo com esparadrapo e como
comercializar com vento

ÁRIA DE NOAH

Dois ases e dois reis, e mesmo assim você perde. Dois pares, droga! Levanta-se
da cadeira, incrédulo e raivoso, tropeçando nos tornozelos e cotovelos de seus
companheiros de farra, ouve-os debochar de sua má sorte, rir em surdina de sua
pinta desarrumada e de sua expressão de desamparo. “Indo embora tão cedo?”, lhe
pergunta um, maldoso, consciente de que você dilapidou o que restava para chegar
ao final do mês. Vira-se para ele mostrando as presas como se fosse um mandril ou
um babuíno, e sente que é isso, ou coisa pior, um réptil, um escaravelho, um inseto
que se arrasta em meio à escória até cruzar a porta e parar ao pé da escada. Toda vez
que você acorda entre náuseas e enxaquecas promete para si mesmo não voltar a este
buraco que, noite sim, outra também, abandona duplamente vencido por não ser
capaz de conter suas falsas esperanças — sua obsessão por ganhar pelo menos uma
partida — e por se abarrotar com este álcool de milho que lhe arromba a garganta.
Deixa-se cair no patamar, soluçando como uma criança. “Patético”, murmura.
Desde a morte de seus pais você não tem sabido fugir do tédio que o impulsiona a
evitar as aulas e se lança a esta estúpida meta, dar as costas para a sorte e vencer,
mais que esses miseráveis, uma fatalidade que vê como inimiga. Quando deu para
acreditar que ganhar no pôquer demonstraria seu valor? Percebe que desafiar a sorte
é uma mania própria de padres e tiranos? Uma impertinente neblina turva o
resplendor das luzes; não devem ser nem sete da noite, mas você foge pelas ruelas do
Harlem como se fosse de madrugada e se escora em uma esquina. Encurva a cabeça
e ata as mãos sobre o ventre, de sua boca escorre um jorro de carne fermentada.
Encolhido nesta esquina ouve os gritos, os insultos, o ranger de ossos e
articulações a alguns passos de distância: do outro lado da calçada três rufiões
demolem a patadas um garoto que não deve ter mais de treze anos. Se neste dia já
perdeu uma partida, por que se envolver em outra briga que reconhece impossível?
Ou, se sua ânsia de justiça é irrefreável, por que não sai correndo para chamar a
polícia? Talvez porque não lhe importe este infeliz, vítima de uma briga de rua
como tantas, não procura salvá-lo, mas a si mesmo. Joga-se em cima dos malfeitores
com a imprudência dos seus trinta anos e distribui tapas a torto e a direito sem
perceber que suas ameaças se perdem no ar. Seus inimigos deixaram o garoto escapar
— restará este consolo — e agora se enfurecem com o seu corpo. Batem em você até
lhe partir o maxilar, costuram seus olhos a socos e lhe quebram dentes e costelas.
Você afunda na lama, sanguinolento e apavorado, meio morto, como o réptil ou a
barata que imaginava ser e agora é.
A voz retumba em seus ouvidos como uma surda badalada; ao entreabrir os
olhos — duas frestas em meio aos hematomas — distingue uma silhueta e um braço
que o ajuda a se levantar. “Vamos”, sussurra. Apoia-se em sua cintura e, na agonia
da noite, manca ao seu lado. A sombra o ajuda a entrar em seu edifício e a subir os
três andares até seu pobre apartamento. Acompanha você ao banheiro, molha uma
toalha e estanca suas feridas, limpa os raspões e o coloca em uma desmantelada
poltrona sob uma janela minúscula. “Está melhor?” De seus lábios inchados sai uma
fervura de sangue coagulado. “Como é o seu nome?”, você lhe pergunta antes de
desmaiar. “Ángel.”
Pela manhã o desperta com um copo de leite e um pedaço de pão com
manteiga enquanto elogia seu heroísmo, seu arrojo em ajudar o rapaz arriscando a
própria pele. Você gostaria de responder que foi um mal-entendido, que sua decisão
nada teve de louvável, que não pensou em salvá-lo ou, se pensou, foi em um
impulso etílico, um sintoma de desespero ou de loucura. Ángel o bombardeia com
perguntas, quem você é, de onde vem, o que faz, com o que sonha. Responde com
evasivas, mas a intensidade do seu olhar o impulsiona a ser sincero: conta sobre seus
estudos de economia, a morte dos seus pais, seu fraco pelo álcool e pelo jogo. Ainda
dolorido agradece e diz que precisa ir embora, sim, agora mesmo. Ángel o
acompanha até a rua, você balbucia que está melhor (mentira) e se despede para
sempre (outra mentira).
Passa duas semanas sem voltar ao seu apartamento. Ángel o acolhe com
carinho, como se fossem amigos desde crianças, e assim o chama, amigo, quando
propõe um passeio pelo bairro. Que passeio! Homens esfarrapados fazem fila por
tigelas de uma sopa pegajosa e fria, mulheres andrajosas remexem nas latas de lixo,
crianças esqueléticas brincam de pegar e se empurram sem perceber sua miséria.
Ángel fala sobre o crash e a injustiça, a pobreza e as culpas dos ricos; lhe preocupam
assuntos menos grandiloquentes, seu futuro, sua afeição ao álcool, ao jogo e às
mulheres. Embora sinta uma genuína simpatia por suas boas intenções, está
convencido de que o mundo é uma pocilga sem saída.
As caminhadas pelo Harlem e pelo Bronx viram rotina. Embora seja mais
jovem que você, Ángel exibe uma maturidade e uma moderação que você nem
remotamente alberga. Não pode garantir que voltará às suas aulas de Columbia ou
que suas visitas às mesas de jogo se espaçam devido à sua influência, mas a
embriaguez já não lhe aturde todos os fins de semana. Não esconde que seu exemplo
e sua virtude (nunca pensou usar esta palavra) moderam seus vícios e sua lassidão.
Suas conversas se prolongam até o amanhecer. Ángel lhe fala de Marx, Engels e
Lênin, nomes que você mal leu com profunda suspeita. Descreve-os como velhos
conhecidos com uma convicção tão profunda, tão firme, que quase o convence a lê-
los. Suas teorias já não soam como ladainhas sem sentido (a opinião dos seus
professores de Columbia), nem como a ameaça que anunciam no rádio. Ao término
de cada aula se dirige a uma pequena estante embutida ao lado de sua cama e tira
um panfleto ou um caderno que deposita em suas mãos, a tarefa que o professor
atribui ao discípulo: se Ángel o está doutrinando — você é consciente disto —, faz
isso com extrema sutileza e você acaba não desconfiando de sua fé e seus ideais.
Certa tarde, ao chegar à sua casa, uma desconhecida que nem sequer o
cumprimenta (olhos verdes, pele oleosa) lhe abre a porta. No minúsculo espaço sete
ou oito indivíduos discursam — seus sotaques se confundem —, fumam,
gesticulam. Ángel lhe avisou sobre esta reunião inoportuna em que você é o único
estranho; quando finalmente sai da cozinha, lhe indica um canto sem dar mais
explicações. Você ocupa seu lugar com os braços cruzados e uma expressão de
desgosto. Perseverando no seu silêncio, estuda o público, duas mulheres e cinco
homens veementes e agressivos, todos com o mesmo brilho nos olhos, como se
olhassem para o sol até se queimar, e aquela altivez que logo reconhecerá como um
traço de família. Quando concluem seus monólogos, aparece na sua mente a
legenda de um filme mudo: comunistas. Eles são isto: comunistas. E agora você
também é pelo simples fato de permanecer na companhia deles. Ser amigo —
camarada? — de Ángel o torna parte de sua espécie. Uma parte de você se irrita e
quer ir embora; a outra, a que vence, não se move. Uma das moças o arranca de suas
reflexões (morena, cara de rato, impertinente) e você responde nos mesmos termos:
surpreende-lhe falar a mesma língua deles, ser capaz de tecer frases com o mesmo
vocabulário heroico e agreste. De repente se ouve discursar sobre Lênin e os planos
quinquenais, a inflação na Alemanha, a revolução e a urgência de construir um
mundo novo. Ainda é você mesmo? Ou Ángel lhe inoculou um veneno tão potente
que você já é outro?
As reuniões de sua célula (o apelo biológico do termo o seduz) se repetem duas,
três vezes por semana em sótãos tão sórdidos quando o de Ángel, iluminados com
sua mesma febre, sua miséria e seu lirismo. Recém-chegado da Rússia, Earl Browder
comparece em uma dessas ocasiões; comprido e desajeitado, lhe passa a sensação de
uma árvore sem folhagem. Ángel lembra-lhe que ele é o novo secretário-geral depois
da demissão de Max Bedacht e já não fala de se infiltrar nos sindicatos, mas de
esmagar os trotskistas. O discurso dele se vê constantemente interrompido pelos
camaradas, que exigem nomes e sobrenomes. Ángel o defende e Browder agradece
com uma piscada. Ao terminar a sessão, explica-lhe que chegou a hora de superar a
teoria e lhe atribui uma lista de tarefas para as próximas semanas. Você passou na
prova, sua fidelidade é reconhecida, está pronto para lutar lá, no mundo. Excitado,
diz a Ángel que decidiu abandonar a universidade para se consagrar totalmente à
causa. “Precisamos de gente preparada”, ele o repreende, “gente capaz de chegar a
lugares importantes para servir à causa desde cima.” Para tranquilizá-lo, Ángel
promete um encontro com Browder para que ele explique a missão que o aguarda.
Até então você não recebeu sua ficha do Partido, nada prova que seja militante,
nenhum papel, nenhum documento o incrimina. Seu anonimato e seu doutorado
em Columbia são sua fortaleza, lhe diz Browder com um sotaque meloso, irritante.
A conversa, em um restaurante chinês, termina quando o secretário-geral sai
intempestivamente pela porta dos fundos. Durante semanas nada acontece. Você
exige notícias que Ángel não pode — ou não quer — lhe revelar. Nestes dias recebe
uma carta do Federal Reserve de Nova York: você passou nas provas do concurso
com as notas mais altas. O cargo, solicitado a contragosto, não o reconforta, mas
ainda assim assina a adesão e nesta noite se embebeda como antigamente.
Ángel lhe acorda para dizer que nesta mesma tarde você deverá ir a um
restaurante em Little Italy. Ali, J. Williams — se recusa a revelar seu nome de
batismo — o leva à mesa mais afastada e se dirige a você como se fosse uma estátua.
“Precisamos de você”, ordena, lacônico. “No Federal Reserve?” O russo confirma.
“Neste cargo de merda?” Williams confirma de novo. “Mas deverá romper todos os
seus laços com o Partido, fingir que nunca militou nas suas fileiras — em termos
estritos isto é verdade — e se afastar de seus antigos camaradas. A partir de agora
Ángel será o seu único contato, entendeu? A cada quinze dias você entregará um
relatório de atividades e toda a informação relevante que consiga obter do Reserve.”
Duvida que seu mísero cargo lhe dê acesso a algo relevante, mas não discute porque
já se sente parte do aparelho clandestino.

ARIOSO

Não vi o primeiro, como quase ninguém naquela manhã clara; Leah ainda
dormia, o rosto inchado entre os lençóis — a máscara nos olhos —, as bochechas
invariavelmente avermelhadas, o cheiro de creme de amêndoas a que finalmente
tinha me acostumado, a pele colorida com as pinceladas da tela, os raios catódicos
deformando suas feições, o volume no mínimo para não interromper seus pesadelos
— costumava gemer longas frases sem sentido —, já fazia mais de uma hora que eu
tinha acordado, não suporto ficar em posição horizontal, amassado e pensativo,
prefiro fugir para a cozinha, me encher de café, bagels e suco de cenoura para estudar
os mercados orientais ou examinar pela enésima vez os cadernos do meu pai, mas
não estava fazendo nada disso naquela manhã, a ressaca me queimava, só tinha
resistido ao jantar com uns clientes alemães graças aos bordeaux e aos uísques, e
mais do que ressaca padecia uma hipersensibilidade extrema, o ouvido e o olfato
exacerbados, o perfil dos móveis mais nítidos do que nunca, como num filme em
3D, não pretendo insinuar que esse mal-estar fosse um presságio ou uma intuição,
que previsse ou adivinhasse o infortúnio, bobagens, apenas aquela lucidez quase
dolorosa e aquela comichão na pele ao me barbear, ainda deslizam na minha
memória as minúsculas gotas de vapor no espelho, o bafo e o fragor da água na pia
enquanto na tela o projétil atravessava os vidros sob uma gelada claridade, não vi, é
óbvio que não vi, nem Leah, ela ainda vadiava entre os lençóis, a máscara a
transformava em uma toupeira ou uma minhoca, saí do banho, terminei de me
enxugar diante da tela, vendo sem ver e ouvindo sem ouvir o barulho do metal,
indiferente às reviravoltas da história, à história que se escrevia com aquela insólita
punção e à atroz inteligência que o tinha disparado, vi sem ver e ouvi sem ouvir,
insisto, confundindo com um comercial ou a propaganda de uma série, o trailer de
um destes filmes de catástrofes que tanto nos deslumbram, me vesti em silêncio —
Leah era uma pedra — e me propus chegar logo ao escritório, mil assuntos
aguardavam minha atenção, a trama já se iniciara, e eu, em compensação, bebia meu
café e mordiscava um bagel diante do computador à espera de um dia longo e
insignificante, outra jornada exaustiva no meu escritório, discutir com Isaac por
causa do maldito assunto dos tapetes, vigiar com Vikram a dívida que inchava sem
remédio, então tocou o telefone, repetidamente, teimosamente, era Vikram, justo
Vikram, agora não, lhe disse, discutamos isso mais tarde, quis desligar, mas ele me
interrompeu com um grito que soou como um relincho, um acidente, um terrível
acidente, consegui ouvir, sim, sim, Vikram, como você quiser, nos vemos mais
tarde, e interrompi a ligação, que odioso, pensei, a esta hora, e mergulhei no
computador até que de repente, em letras gigantescas, cintilou na tela a sinistra
manchete, corri para o quarto e sacudi Leah, arranquei-lhe a máscara e aumentei ao
máximo o volume da televisão, o que está acontecendo, murmurou ela, presa em seu
sonho ou pesadelo, olhe, eu disse, olhe, ela se ergueu e ficou paralisada, o rosto
inchado e os olhinhos remelentos, e nós dois vimos o segundo avião, não sei se em
tempo real ou em reprise instantânea, a claridade atroz daquele dia de setembro, sua
limpidez partida pela explosão e pelas línguas de fogo, as chamas que — soube, isso
sim soube — não demorariam a nos calcinar, as chamas e a raiva, dei-lhe um beijo
na testa e corri para o elevador, na rua o pânico ainda não tinha contagiado milhares
ou milhões, surpreendeu-me a placidez da Park Avenue, no táxi o rádio borbulhava
o horror, mas cheguei ao escritório sem demora, dei cinquenta dólares ao motorista
e subi correndo para o escritório como se escalasse um posto de vigilância, não eram
nem nove horas e não havia ninguém exceto dois analistas que se apressaram a
compartilhar a notícia comigo, nós três nos abraçamos diante da tela e
contemplamos a queda, abobalhados, meu celular tocava sem parar, Leah, Vikram,
Susan, Isaac, dezenas de ligações, não atendi nenhuma, o que fazer? Àquela queda se
seguiria outra e logo outra em um dominó infernal que acabaria por nos esmagar,
foi isso que pensei, só isso, nas quedas, e entendi que não restava muito tempo, logo
a cidade ficaria sitiada pela polícia e pelo Exército, as linhas telefônicas paralisadas, a
internet paralisada, Wall Street fecharia suas portas, teria que agir como os
bombeiros ou a polícia, com seu zelo e perícia, salvar o que pudesse ser salvo, até
ganhar um pouco, por que não? Vikram já tinha chegado ao edifício, nos trancamos
no oitavo andar, o maldito oitavo andar, e eu lhe disse o que tínhamos que fazer,
ligações inoportunas, uma atrás da outra, opções, futuros, apostas nos mercados
europeus e orientais, devíamos tirar partido daquele mínimo parêntese, dessa
oportunidade de ouro, do prelúdio da desordem, apostar aqui e ali, vender isto e
comprar aquilo, rápido, muito rápido, antes de ser alcançados pela febre e pelo ódio,
pelo desvario e pelas línguas de fogo, antes que alguém tivesse a ideia de nos
desalojar, usar aqueles últimos segundos como Neros diante de Roma, salvar o que
pudesse ser salvo, não vidas, capitais, é claro, eu imaginava o que viria, todos nós
intuíamos, dias e noites de luto e de preces — rancores enlutados —, e depois a
ânsia de justiça e o rufar de tambores, a volatilidade aumentaria em níveis
inverossímeis, era preciso esgotar aqueles últimos minutos, a antessala do caos,
espremê-la ao máximo, não sei quanto tempo ficamos ali, grudados no telefone e
nas redes (o suficiente para ganhar 7 milhões), até que fomos obrigados a ir embora,
Vikram e eu fomos consolar Leah e Susan e nos grudamos sem trégua à tela, às
imagens de mártires e de vítimas, aos apelos patrióticos — em surdina, os balbucios
do presidente —, inflados pelo doloroso júbilo de ter sobrevivido.

RECITATIVO

Como a vida, a música também é uma guerra, e a ópera talvez seja seu cenário
mais sangrento, nisso reside a paixão que desperta tanto entre os intérpretes quanto
entre os melômanos, para não falar nos responsáveis pelos teatros e festivais,
empresários, agentes e publicitários, e a isso se devem os ânimos inflamados ou as
amizades rompidas que deixa no caminho. Consciente de minhas virtudes e minhas
falhas, quando abandonei a música na minha juventude não renunciei à batalha,
como minha mãe imaginou, e sim decidi travá-la — ganhá-la — em outro terreno,
não no campo de batalha, onde se batem os soldados em pegajosos combates corpo
a corpo, mas em um posto de comando. Minha retirada foi estratégica, voltei à
carga assim que acumulei munições e equipamento, não para cair como um
mercenário na primeira fila do front, mas para triunfar como general dos meus
exércitos. Exatamente como me propus, aos cinquenta já era reconhecido como um
dos maiores mecenas do planeta.
Descobri muito cedo que, diferentemente de quem assiste a recitais ou
concertos, os fãs de ópera não vão ao teatro para usufruir da música, mas para apoiar
seu cantor ou esperar que o dos seus rivais fracasse, lance um gallo ou quebre um
agudo e receba uma vaia. A mesma coisa com as gravações: os operópatas não as
colecionam para descobrir uma nova obra ou apreciar a última versão de uma peça
conhecida, mas para ridicularizar x ou demonstrar a superioridade de y durante suas
reuniões de domingo. Basta lembrar alguns dos grandes duelos de outros tempos:
Callas x Tebaldi (a luta estelar); Di Stefano x Del Monaco; Del Monaco x Corelli;
Corelli x Bergonzi (embora este último, não muito agraciado, tivesse poucos
seguidores); e, mais tarde, Pavarotti x Domingo e, ainda mais tarde, Villazón x
Kaufmann e Kleinburg x Vela. Também Freni x Scotto entre as sopranos, Bastianini
x Gobbi, Merrill x McNeill ou Cappucilli x Bruson entre os barítonos ou Cossotto
x Barbieri e Padilla x Urroz entre as mezzi e Raimondi x Ghiaurov entre os baixos.
Uma escala de preferências que lembrava as corridas de cavalos: os puros-
sangues Gigli, Bjoerling, de los Ángeles, Kraus, Gedda, Vickers se destacavam frente
aos percherões Milnes, Christoff, Fischer-Dieskau, la Sutherland, nos quais, sem
rebaixar seus méritos, poucos apostavam. O talento não prevalecia? É claro que sim.
Contra aqueles que assumem que nossas preferências obedecem a impulsos
racionais, a ópera me permitiu constatar que as pulsões e manias são mais
importantes do que os argumentos: se a gente quer triunfar neste reino — tão
parecido com o das finanças — deve aproveitar a irracionalidade do inimigo.
Quem consegue acreditar que uma pessoa fica morrendo durante meia hora e
uiva até o último suspiro? Eu também, alguma vez, respondi a esta pergunta,
própria de simplórios e bobos, na hora certa: os próprios simplórios e bobos que
confiam nas benesses da democracia e do livre mercado. A ópera é um modelo em
escala, não menos esclarecedor por marginal, da nossa paixão pela insensatez. Tudo
nela é absurdo, não apenas as tramas intrincadas ou claramente inverossímeis (salvo
duas ou três exceções), não só as melodias mais ou menos fáceis (salvo cinco ou seis
obras-primas), salvo o mero fato de pagar quatrocentos dólares por um lugar ou 100
mil dólares pelo cachê do pequeno Pavarotti da vez. Não é uma bolsa onde se jogam
os milhões do pop ou do futebol profissional, mas os ganhos em espécie tampouco
são desprezíveis: o Pavarotti verdadeiro nunca ganhou tanto quanto Maradona, mas
para seus fãs era um ídolo igualmente sedutor, apesar de tudo e de seus noventa
quilos de peso.
Quando comecei a me interessar pela ópera, este espetáculo parecia em franca
decadência, os grandes figurões tinham se aposentado (ou deviam fazê-lo
urgentemente), enquanto os jovens ainda não chegavam a ofuscá-los; além disso, a
explosão da cultura de massas pintava a arte lírica como uma prática esclerosada apta
apenas para anciões. Não estou exagerando, bastava ir a uma apresentação do Met
ou do Covent Garden para constatar que a maior parte dos espectadores mancava
ou tinha problemas de próstata. Como se não bastasse, os panos de fundo pintados
à mão e os cenários de papel machê à la Zeffirelli pareciam velharias, e tenores e
sopranos, cada vez mais carregados de gordura, arrancavam risos de pena em suas
malhas medievais. A ópera tinha deixado de ser uma metáfora e era ridicularizada
como se aspirasse a ser uma cópia fiel da realidade: ninguém que se considerasse
moderno mostrava o menor interesse por esse andrajoso espetáculo cujo funeral se
antecipava logo adiante.
Quem teria podido vaticinar — e apostar dinheiro nisso — que a ópera, ou
pelo menos algo parecido com a ópera, não somente iria ressuscitar das cinzas, como
conquistar milhões e gerar lucros inimagináveis? Para reverter a má fama da arte
lírica era necessário submetê-la a uma cirurgia plástica total e aproveitar a ignorância
dos novos públicos. Os puristas me acusaram de transformar esse bem sagrado em
um circo, de corrompê-lo ao nível dos realities e das telenovelas, de sujá-lo com a
vulgaridade de Hollywood ou com o espírito da imprensa de celebridades e das
sitcoms dos canais a cabo. Invejosos! Da noite para o dia, operários e comerciantes,
donas de casa e professores primários que nunca tinham ouvido falar de árias e
duetos, aberturas e recitativos se lançaram a comprar discos e vídeos dos cantores de
ópera da moda, estes modelos esbeltos e elegantes, tão diferentes das baleias de
outras épocas e, principalmente, para admirá-los nas telas de televisão e de cinema.
Que não eram óperas completas, mas fragmentos? Por alguma coisa se começa. Que
os novos aficionados não eram capazes de apreciar um legato ou um portamento?
Reconheçamos: a maior parte dos verdadeiros melômanos também não. Que depois
de aclamar seus ídolos nas salas de suas casas dificilmente iriam a uma apresentação
no teatro? De qualquer maneira, não tinham como pagar por isso.
Os puristas deveriam agradecer: se não fosse por visionários como Tibor Rudas,
Avon Saroyan e eu, a ópera teria morrido de artrose, de letargia. Os grandes teatros
teriam resistido graças às subvenções públicas (cada vez mais raquíticas) e aqui e ali
os mesmos caquéticos teriam continuado sua peregrinação ao Bayreuth ou ao
Glyndeburne, mas teria sido só isso, especialmente depois da crise das grandes casas
fonográficas. Em vez dessa lenta agonia, os mastodônticos recitais patrocinados pela
nova fornada de promotores permitiram que hoje subsista uma indústria operística
que, se não é de todo próspera — durante anos foi a menos lucrativa das minhas
atividades —, pelo menos sobrevive sem números vermelhos. Bastou uma simples
ideia, um pequeno gatilho, para evitar a ruína. Não acham um lampejo de
genialidade ter juntado o futebol e a ópera? O mais inculto e o mais elevado em um
mesmo estádio? Levar os Três Tenores (como se não houvesse outros) à Copa do
Mundo da Itália mudou para sempre esse negócio. O agudo final de “Nessun
dorma”, condensado nos microfones de Domingo, Carreras e Pavarotti, aclamado
por milhões!
Depois disso só restou chegar às últimas consequências, exigir que os cantores
fossem jovens e esbeltos — que maravilha um Romeu que finalmente se parecesse
com Romeu e uma Carmen sem rugas! —, remexer em seus segredos e introduzi-los
na revista People, retransmitir as apresentações do Met e do Scala em cinemas
modestos, planejar encenações na Cidade Proibida, nas Pirâmides do Egito, em
estádios ou arenas de touros (sempre mal sonorizados) e tirar o controle do
espetáculo dos diretores de orquestra, essencialmente conservadores, para entregá-lo
aos mais irreverentes e agressivos régisseurs (preferivelmente alemães). Que vitória
inesperada! É óbvio que foram cometidos excessos, não era necessário despedir
Deborah Voigt por seu excesso de carnes nem transferir a ação de Così fan tutte para
um cibercafé ou a de Lohengrin para uma espaçonave, e sem dúvida ver uma ópera
no cinema se parece mais com ir ao cinema do que ir à ópera (como declarou meu
ex-amigo Mortier), e provavelmente a amplificação em estádios e sítios
arqueológicos estrague a acústica, mas se tratava de sobreviver a qualquer custo.
Salvar milhares de postos de trabalho para cantores, técnicos, cenógrafos, diretores,
agentes, empresários, figurinistas, apontadores e corifeus em uma recessão como a
nossa mereceria um prêmio (recebi vários). Se a música clássica é uma guerra sem
quartel, e a ópera sua linha de frente, me orgulha afirmar que me coroei com a
vitória. Só que, ao proclamar isso, sinto uma ponta de nostalgia. Como sinto falta,
no calor desta imunda ilha do Pacífico, de uma pobre e artesanal apresentação do
Rigoletto!

DANÇA DAS TULIPAS

Frenéticos, os bloemisten distribuem cotoveladas a torto e a direito, saltam e se


empurram para se fazer notar e tomar a palavra — a sala, obviamente, na
penumbra: uma mão lá, no canto esquerdo, aumenta o lance; outra aqui, à frente, o
supera. Banhado pela luz tênue da janela, Jacob Abrahamsz von Halmael
acompanha seu lance com um risinho impertinente; para rebatê-lo, o padeiro Olfert
Roelofsz o duplica e recebe uma palmadinha nas costas; depois de alguns segundos
de tensão, o farmacêutico Jan Sybantsz Schouten o triplica entre interjeições de
receio e simples inveja. Quando parece que ninguém mais arrebatará seu troféu, um
cavalheiro ruivo, cuja barba chega até a metade do peitilho — certamente menonita
—, proclama com voz fanhosa a quantia definitiva. Rapidamente a notícia escapará
de Alkmaar e se espalhará por toda a província, atravessará Haarlem, chegará a
Amsterdã e, aumentada e deformada, circulará por todas as capitais europeias: no
leilão organizado pela Weeskamer em 5 de fevereiro de 1637 em benefício dos
órfãos de Wouter Bartholomeusz Winckel, setenta bulbos de diferentes e belas
variedades de tulipa somaram 90 mil florins, entre estas joias se destacavam um
delicado Viceroy, vendido por 4203 florins, e um imponente Admirael van
Enchysten, com um broto, que alcançou 5200 florins (para dar uma ideia, o salário
anual de um burgomestre era de 500).
Fazia vários meses que o comércio de tulipas, denunciado por pregadores
calvinistas e satirizado em cançonetas e panfletos, tinha deslanchado em uma onda
incontrolável até alcançar preços nunca imaginados, capazes de enriquecer um
vendedor em uma única tarde. Desde que há sessenta ou setenta anos estas exóticas
flores, cujas pétalas se tingem com matizes púrpura ou escarlate por efeito de certos
vírus, tinham sido arrancadas dos jardins do Grande Turco e transplantadas para as
cortes europeias, se transformaram nos bens mais cobiçados — e mais valorizados
— do século XVIII. Como demonstram as pinturas e gravuras da época, seu efêmero
fulgor se tornou imprescindível para dar vida aos lúgubres salões dos Países Baixos.
O caprichoso ciclo de vida dessas plantas definia seu comércio: dependendo da
variedade, as tulipas florescem em abril, maio ou junho, e seu esplendor dura apenas
algumas semanas. Assim que as pétalas murcham é preciso arrancar os caules da
terra, enxugar os bulbos e envolvê-los com um pano — como se fossem recém-
nascidos — para voltar a semeá-los no início de setembro, esperando que renasçam
na primavera seguinte. O comércio de bulbos era realizado, portanto, por meio de
acordos cada vez mais sofisticados; às vezes os compradores nem sequer chegavam a
testemunhar a beleza de sua planta, pois se apressavam a vendê-las a outros
bloemisten muito antes que tivessem florescido. Por isso, este negócio era conhecido
como windhandel: negociar com vento.
O frenesi por acumular as variedades mais exóticas produziu uma escalada nos
preços. Reunidos em estalagens, onde eram realizados os pactos privados, ou em
leilões formais em que também participavam confrarias especializadas no tráfico de
flores, os bloemisten desembolsavam fortunas (ou melhor, as prometiam), assinando
um contrato atrás do outro, certos de que sempre haveria alguém disposto a pagar
quantias mais altas. Segundo os cronistas da época, glosados no um tanto fantasioso
Extraordinary popular delusions and the madness of the crowds, de Charles Mackay
(1841), um único bulbo podia chegar a ser vendido centenas de vezes em um dia. O
risco se tornava absurdo, pois, devido à sua fragilidade e ao clima do Norte da
Europa, nada assegurava que um bulbo desse o fruto previsto. Mas as apostas eram
uma paixão holandesa, e ninguém — nem sequer o grande Rembrandt, jogador
contumaz — escapava da sua influência.
O comércio de tulipas exibia saúde de ferro quando, em 6 de fevereiro de 1637,
um influente grupo de bloemisten não foi a um dos leilões programados. Este único
fato originou um pânico que se espalhou pela cidade e pela província. O que fez
explodir esta bolha primitiva, esta mãe de todas as bolhas? Difícil saber a três séculos
e meio de distância. Alguns entendidos afirmam que certos comerciantes devem ter
suspeitado que os preços não poderiam se manter e começaram a reclamar os
pagamentos. Outros, que talvez tenha havido um aumento repentino no
fornecimento, embora isso não explique por que o crash ocorreu em fevereiro,
quando os bulbos cochilavam clandestinamente. Seja como for, de repente um
grupo de devedores se recusou a pagar as quantias prometidas, e dezenas de litígios
acabaram nos tribunais. A partir daí, o caos. Vendedores e compradores se dirigiram
cada um por sua conta às autoridades. Os primeiros, para exigir que os contratos
fossem anulados; os segundos, para que fossem pagos a qualquer custo. Como era de
esperar, os últimos venceram. Esta fábula lhes parece familiar? Sentem um
desconfortável déjà-vu ao ouvi-la? Lembra um caso ocorrido um pouco depois —
digamos quase quatro séculos mais tarde — do outro lado do Atlântico? E se
substituíssemos as tulipas por casas, pitorescas casas com seus jardinzinhos e
varandas, um ou dois quartos, isto lhes daria uma pista? O sonho americano
(irlandês e espanhol) reforçado na era Bill Clinton: nós todos, incluindo os
miseráveis e os esbanjadores, os imigrantes ilegais e os deserdados, teríamos direito a
possuir nossa casinha dos sonhos…
Da mesma forma que as tulipas para os holandeses, no início do século XXI os
bens imóveis se transformaram no termômetro da nossa cobiça. Entre 1997 e 2005,
seus preços aumentaram mais de 80%, mas este dado não parece ter alarmado os
nossos sábios de sempre, nossos ilustres economistas e políticos: não há risco de
bolha, repetiam, e o atual presidente do Federal Reserve, o mortiço Ben Bernanke,
então responsável pelo Escritório de Assuntos Econômicos do Presidente, até
afirmou que o aumento de 25% nos preços dos dois últimos anos refletia… o
magnífico estado da economia.
E assim, enquanto nossos xamãs financeiros nos animavam a continuar o baile,
nós corremos em busca dos falsos castelos e espúrios palacetes que os comerciais
prometiam. Com um pequeno inconveniente: dados os altíssimos preços, casas e
terrenos não podiam ser adquiridos à vista (exceto pelos ricaços de sempre), de
modo que, em vez de terras, madeira ou tijolo, compramos de fato hipotecas. Os
doces responsáveis pelos bancos aproveitaram as baixíssimas taxas de juros —
cortesia do Grande Guru Greenspan — para empurrar uma hipoteca ao primeiro
incauto que passasse. Não que antes os agentes imobiliários se distinguissem por seu
rigor, mas de repente ninguém se importava em remexer no passado creditício dos
clientes; bastava que estes estampassem suas assinaturas nos formulários de contrato
para que obtivessem suas casinhas, ou melhor, suas hipotecas no Correio do mesmo
dia. Que diferença há entre pagar 50 mil dólares (ajustados à inflação dos nossos
dias) por uma tulipa marmorizada ou 400 mil dólares por dois míseros quartos +
um banheiro minúsculo? Os leitores mais perspicazes se perguntarão por que os
bancos (e as seguradoras) estavam dispostos a distribuir hipotecas a torto e a direito,
indiferentes à aparência desbotada ou imunda dos clientes. Muito simples: porque
nós, os magos da engenharia financeira, os convencemos de que o perigo de um
default generalizado era inexistente.
Vocês se lembram, queridos leitores, dos contratos BISTRO que ajudei a
desenvolver como funcionário do J.P. Morgan? Em 2001 estes tinham evoluído em
todo tipo de obrigações de dívidas colateralizadas (desculpem o jargão) ou CDOS.
Durante esses anos frenéticos, Vikram e eu negociamos milhares destes
instrumentos, em especial as chamadas “CDOS ao quadrado” ou CDOS das CDOS.
Durante um breve período o novo mercado aplicou padrões severos, mas entre 2001
e 2005 a venda de hipotecas subprime (as menos seguras) aumentou em 1000% até
roçar os 800 bilhões de dólares. E, da mesma maneira que os bloemisten não
chegavam a contemplar seus bulbos florescidos porque assim que os adquiriam se
apressavam a revendê-los, os bancos também procuravam se desfazer de suas
hipotecas o quanto antes, empacotando-as nestes instrumentos que espalhavam por
todo o sistema financeiro.
Já falei: o único ensinamento no nosso campo consiste em aceitar que ninguém
aprende com a experiência alheia. Alguém previu o que aconteceria se as hipotecas
subprime deixassem de ser pagas, como quando os bloemisten não apareceram no
leilão de 6 de fevereiro de 1637? Não, ninguém previu. Ninguém, quero dizer, com
poder para intervir no mercado. Os sábios, enquanto isso, insistiam em sua
cantilena: nos últimos setenta anos os Estados Unidos não sofreram uma crise
imobiliária, por que teriam que padecê-la agora? (A resposta era simples: porque
nada estabelece que uma coisa que não tenha acontecido no passado não vá
acontecer amanhã.)
Entre 2001 e 2007, o JV Capital Management se concentrou em negociar
instrumentos ainda mais sofisticados, os CDAS de ABS. Não tentarei explicar como
funcionam porque eu mesmo ignoro (elucidar sua natureza era responsabilidade
exclusiva de Vikram). Conformo-me em dizer que sua intrincada arquitetura
permitia alavancagens nunca vistas. Graças a eles, agora os banqueiros podiam
combinar os bônus de alto risco… com mais risco. Vocês pensarão, ingratos leitores,
que eu devo ser algo menos que um imbecil que, depois de passar metade da vida
comercializando com estas inovações financeiras, não é capaz de saber como diabos
funcionavam. Só posso argumentar em minha defesa que milhares de investidores,
brokers, banqueiros e reguladores não as conheciam melhor do que eu.
Como os bloemisten, nós também negociávamos com vento.
Cena II. Sobre como se aquecer no inverno moscovita e como se
tornar milionário com cupons

RECITATIVO

— Aqui está tudo. — O tártaro jogou o pacote em cima da mesinha.


Não resisti à tentação de folhear os documentos, distingui apenas frases
entrecortadas, em maiúsculas, diante das versões correspondentes em apertados
caracteres cirílicos. Senti os cristalinos olhos de Arkadi sobre as minhas mãos,
impaciente. Tirei o envelope do paletó e lhe entreguei o último pagamento, um
pequeno investimento para mim e uma modesta fortuna para ele. Não se rebaixou a
contá-lo naquele bar miserável que, embora estivesse meio vazio àquela hora da
manhã, não parecia o lugar mais seguro para qualquer transação comercial.
— Spassiba — eu disse sem jeito.
Arkadi se ergueu de repente, arqueando a cadeira. Envolveu seu pescoço de
touro no cachecol e, com um sorriso difícil de interpretar, se aventurou na neve. Era
um desses homens duros que se distinguem por seus passos lentos, aparentemente
vacilantes. Voltaria a vê-lo ou esse seria o inexpressivo final de nossa relação?
Impossível sugerir que aquele homenzarrão rude e desbocado, com seu rubor de
menina e seu torso de atleta de luta greco-romana, se tornaria meu amigo, mas
desde a primeira vez que nos embebedamos juntos — corrijo: desde que eu me
embebedei enquanto ele deglutia vodca como água —, descobrimos que nossas
perspectivas da vida não eram tão diferentes.
Arkadi Ivanovich (nunca soube se era seu nome verdadeiro) tinha pertencido à
KGB até 1990, quando se demitiu diante das medidas reformistas de Gorbachov.
Transformou-se então em jornalista independente, um termo cujo significado na
Rússia de Ieltsin era mais que ambíguo, e fazia parte da ARIO (Association of Retired
Intelligence Officers), um grupo de influência cujos tentáculos se estendiam por
todos os ramos do governo. O que podia unir o escorregadio proprietário de um
fundo de hedge de Wall Street com um ex-espião soviético? Uma ambição e um
ceticismo paralelos, a mesma sensação de estar cercados de hipócritas e idiotas, uma
desilusão equivalente com nossos respectivos entornos.
Eu tinha sido informado do seu nome — e de suas habilidades especiais — no
final de 1992, em Leningrado, de onde Arkadi, como o mais célebre dos ex-agentes
da KGB, seu velho companheiro de armas Vladimir Putin, era originário. A URSS
acabava de desmoronar e, no meio do caos e das esperanças desatadas pela virada ao
capitalismo de Ieltsin e seus jovens turcos, todo mundo procurava se reinventar
naquele ambiente selvagem e desembestado. Nosso contato foi um empresário
conhecido de Valery Gergiev, com quem eu tinha iniciado uma fecunda amizade
que derivaria em numerosos projetos conjuntos com o Teatro Mariinsky, então
ainda conhecido como Kirov. Minhas pesquisas sobre Noah e o círculo de espiões
do Tesouro estavam paradas devido à recusa do FBI e outras agências de segurança
dos Estados Unidos em abrir seus arquivos frente aos esforços de Leah por invocar a
Lei de Liberdade de Informação. Quem teria podido antecipar que, em
contrapartida, os russos proporiam um verdadeiro exercício de transparência e se
mostrariam dispostos a abrir seus arquivos ao escrutínio de historiadores e jornalistas
(isso sim, invariavelmente russos)?
— O que procura? — Arkadi não suportava rodeios.
Expliquei da maneira mais sucinta possível: saber se nos arquivos de
inteligência soviéticos aparecia o nome de Noah Volpi, assim como os de Harry
Dexter White, Nathan Gregory Silvermaster, Abraham George Silverman, Harold
Glasser, Frank Coe, Sonia Gold, William Ludwig Ullmann, Solomon Adler e
William Taylor. E, de passagem (não desperdiçaria a oportunidade), o de Alger
Hiss.
— Muitos nomes — Arkadi cruzou os braços.
— Diga o preço.
O obeso ex-espião se levantou da mesa e mandou ser paciente. Durante meses
não recebi notícias dele, por mais que tenha escrito várias vezes ao empresário
conhecido de Gergiev para perguntar se sabia algo sobre a minha solicitação. Foi
somente no verão de 1994 que Arkadi voltou a marcar comigo no fétido bar nas
imediações da Lubianka. Conversamos sobre mil coisas e nenhuma, sobre as
possibilidades de negócios entre os Estados Unidos e a Rússia, a onda de
privatizações, os ridículos etílicos de Ieltsin, os imberbes acadêmicos que agora
dirigiam a economia, os oligarcas e suas excentricidades, Dostoiévski e Isaac Babel, e
até cantamos em dueto um trecho de Boris Godunov. Só pela manhã, quando me
deixou feito um farrapo no meu quarto de hotel, escreveu em um guardanapo um
número que em seguida deslizou no meu bolso: o montante do primeiro pagamento
que eu devia lhe entregar à noite, em dinheiro, no mesmo lugar.
Em novembro de 1994 retornei a Moscou. Mesmo lugar. Mesma garrafa de
vodca. Mesma rigidez inicial.
— Não sei se o que vou lhe dizer são boas ou más notícias — se deleitou. —
Em nenhum lugar aparece o nome de Hiss.
— Afinal talvez Hiss tenha dito a verdade — arrisquei.
— Ou alguém roubou seu expediente.
— E os outros?
— Brindemos — ordenou.
Bebi a vodca de um único gole.
— Por enquanto só posso dizer que todos os outros nomes se encontram nos
arquivos, incluindo o do seu pai.
— Isso confirma…
Arkadi anotou uma nova quantia no guardanapo, exigiu outra garrafa de vodca
e começou a me contar seus problemas sentimentais, as previsíveis disputas entre sua
mulher e sua amante, achando que eu não tinha nada melhor a fazer. Quando me
perguntou sobre minha própria vida, inventei uma história com três mulheres que
ele aplaudiu com um tapinha e uma última rodada.
Em janeiro de 1995, Leah e eu viajamos a São Petersburgo para assistir a duas
apresentações no Mariinsky da versão original de A força do destino (que eu tinha
ajudado a financiar). Quando a temporada terminou, nos transferimos para
Moscou. Pedaços de gelo pendiam dos abetos e o céu reluzia como uma encardida
placa de metal. Enquanto minha mulher me esperava no hotel, eu fui para o
habitual bar perto da Lubianka, onde Arkadi me esperava com uma garrafa de vodca
e dois copinhos.
— Aqui está tudo — jogou o pacote na mesa.
Concluída a negociação — e esgotado o álcool —, cambaleei até um táxi que
me conduziu de volta ao nosso hotel, onde Leah me esperava com ansiedade. Abri o
envelope e estendi as folhas na cama. O tártaro tinha feito um trabalho impecável:
não apenas tinha traduzido cada uma das fichas da KGB, como as tinha colocado em
ordem cronológica, ligando uma série de relatos que quase pareciam formar um
romance.
Sem conter minha impaciência, apontei para Leah a página em que aparecia a
seguinte inscrição: VOLPI, NOAH — CODINOME LISITSA.

ROMANZA DE PONZI

Carlo concebe sua Grande Ideia em uma das ondas de azar que o açoitam
desde que desembarcou na América em 1905. Não faz nem uma semana que fechou
sua empresa de publicidade, confirmando os maus presságios de seu sogro, quando
recebe uma carta de uma companhia espanhola solicitando seu catálogo. Ele nunca
tinha visto um papelzinho como o que acompanha a carta. “Apenas olhe!”, pensa e
não demora a saber que, conforme os ditames da União Postal Universal, estes
cupons permitem que os cidadãos dos países-membros possam receber documentos
por reembolso. Só que os assinantes da União Postal Universal não previram que a
desvalorização gerada pela guerra de 1914 provocaria uma enorme disparidade entre
os preços dos selos americanos e os das nações europeias. Nem que alguém com a
malícia de Carlo poderia aproveitar a conjuntura para se tornar milionário.
Se levarmos em conta as diferenças nos tipos de câmbio, cada cupom de um
dólar adquirido na Espanha e resgatado em Boston lhe permitiria obter dez centavos
adicionais. E se empregasse liras italianas ou coroas austríacas, o benefício se elevaria
a 1000%. A galinha dos ovos de ouro! Para conseguir seu objetivo não lhe falta nada
exceto… dinheiro vivo. Pequeno inconveniente: Carlo está endividado até os
cabelos e seus credores não param de incomodá-lo. Nessas condições ninguém — e
muito menos seu sogro — lhe concederá um empréstimo.
— Você sabe que é impossível tirar leite de pedra — propõe a Joseph Daniels,
seu vizinho. — Me empreste outros duzentos e prometo lhe entregar esta quantia,
mais 50%, em noventa dias.
— E como diabos pensa conseguir essa quantia?
Carlo explica mais ou menos o projeto, a fim de vencer suas resistências, lê para
ele as regras do Guia Postal Oficial dos Estados Unidos que demonstram a
legalidade da manobra. Para sua surpresa, Daniels aceita. Seu primeiro cliente! Rose
comemora com ele, embora entenda que será outra das aventuras do marido que
acabará em fracasso. Em vez de recorrer aos agiotas habituais (estes filhos da mãe
que jamais confiarão no seu talento), Carlo convence uma dúzia de amigos e
conhecidos a lhe entregar pequenas quantias, ninguém lhe negará dez, vinte ou
mesmo cinquenta dólares se recompensá-los no prazo prometido. Depois de
solicitar as licenças da prefeitura, funda a Companhia de Intercâmbios de Bônus e
coloca centenas de cupons entre seus compadres, que os distribuem entre seus
respectivos amigos. Transcorrido o prazo combinado, Carlo paga em tempo todos
eles. Sobressaltados, seus novos clientes reaplicam o dinheiro e muito em breve uma
multidão se junta na frente de seus escritórios na School Street. Nessa altura sua
ideia inicial se desvaneceu, impossível saber se procurou comprar os cupons na
Europa para depois trocá-los nos Estados Unidos; o processo é tão complicado que
prefere pagar as dívidas com as notas que abarrotam sua caixa-forte. Uma operação
de roubar Pedro para pagar Paulo, como reza o velho provérbio inglês, com mais
um ingrediente: convencer cada cliente a somar novos incautos.
Apenas algumas semanas depois de iniciada a aventura — estamos em março
de 1919 —, Carlo já conta com 110 investidores e um capital que ronda os 25 mil
dólares. Antecipando qualquer complicação legal, utiliza parte de seus lucros para
sustentar a Associação de Apoio à Polícia de Boston, o primeiro dos múltiplos
serviços filantrópicos que o transformarão em uma das celebridades da cidade. Nada
detém a avalanche, e Carlo abre sucursais em Brockton, Clinton, Fall River,
Framingham, Lynn, Plymouth, Quincy e Worcester, e logo acrescenta outras em
New Hampshire, Vermont, Connecticut, Maine, Rhode Island e Nova Jersey. Sua
vida privada dá uma virada paralela: para agradar Rose, adquire uma mansão com
ar-condicionado, um grande piano de cauda e uma piscina térmica, ao mesmo
tempo que paga uma passagem em primeira classe da Itália para sua mãe. Como se
não bastasse, enche de dólares as contas que abre em todos os bancos da Nova
Inglaterra.
Quando, em 20 de agosto de 1920, o Boston Post publica um elogioso artigo
sobre a Companhia de Intercâmbios de Bônus, Carlo alcança o topo. Por um
instante, pensa em devolver o dinheiro e fugir com Rose — e alguns milhares de
dólares —, mas é apenas um instante, e a inércia, somada a um inesgotável fluxo de
dinheiro vivo, o convence a rezar para que ninguém o descubra. Carlo foge para a
frente: adquire ações de uma infinidade de empresas (incluindo numerosos bancos),
confiando em que seus negócios legítimos mascarem o engano. Uma quimera. Nem
se transformando no empresário mais bem-sucedido da história conseguiria pagar as
centenas de milhares de dólares (milhões, ajustados à inflação de 2012) que já
gastou.
O final da história é tão previsível — e sua moral tão repugnante — que quase
resisto a narrá-la aqui. Charles Ponzi, nascido Carlo Pietro Giovanni Guglielmo
Tebaldo Ponzi, em 3 de março de 1882, é exibido como um dos maiores safados da
história. Uma vez que, a pedido do Boston Post, o célebre analista financeiro
Clarence Barron demonstra que seus lucros são inexplicáveis, uma multidão sitia
seus escritórios, e Carlo se vê obrigado a lhes pagar. O processo por um milhão de
dólares apresentado pelo velho Daniels, a traição de seu publicitário, que aceita
escrever um artigo no Post para denunciar suas manobras, as revelações de suas
estadas carcerárias em Atlanta e Montreal e a intervenção do comissionado bancário
de Massachusetts se unem para afundá-lo. Em meados de agosto, da Companhia de
Intercâmbio de Bônus só restam cinzas.
— Não penso em fugir — gaba-se para Rose —, dançarei conforme a música.
Vou demonstrar que estou à altura dos acontecimentos.
Horas mais tarde comparece em pessoa — por vontade própria! — no
escritório do delegado federal Patrick J. Duane, que está pronto para processá-lo por
84 acusações de fraude. Segundo os cálculos menos arriscados, a queda de Carlo
provoca a quebra de cinco bancos e perdas de 20 milhões de dólares da época, 225
milhões de dólares de hoje (uma ninharia comparada com os 65 bilhões fraudados
por Bernie Madoff ou os 15 bilhões que as autoridades me imputam). Depois de ele
se declarar culpado, o juiz o condena a cinco anos em uma prisão federal; cumpridos
esses, é sentenciado a outros nove, dessa vez por uma corte estadual. Só então
demonstra um mínimo de audácia e foge para a Flórida, onde tenta montar outra
pirâmide. Obrigado a fugir, raspa a cabeça e deixa um grosso bigode antes de subir
em um navio com destino à Itália. Em Nova Orleans é pego e devolvido a Boston,
onde passa outros sete anos na prisão. No total suas condenações somam pouco
mais de dez anos. (Dez anos frente aos 150 de Bernie e dos oitenta ou noventa que
me esperam!)
Liberado em 1934, Ponzi é deportado para a Itália — neste ínterim, Rose o
abandona —, se infiltra no Brasil, tenta novas aventuras, fracassa em todas e precisa
aceitar um emprego como contador em uma linha aérea. Imerso na pobreza,
termina seus dias meio cego e sem um centavo no Hospital São Francisco de Assis,
no Rio do Janeiro, onde morre em 18 de janeiro de 1949.
Ave Ponzi, inspirador não apenas de uma enorme camarilha de estelionatários,
de uma infame turba de mentirosos e canalhas, estelionatários e trapaceiros, mas
também de toda uma época, esta espetacular transição entre o segundo e o terceiro
milênios, estes gloriosos anos em que tantos de nós seguimos seu exemplo sem
remorsos e sem culpa! Descanse em paz, Carlo Ponzi, Mago das Finanças, Factótum
da Riqueza Fácil e Santo dos Bilionários da Terra! Quanto lhe devemos! Estou
convencido de que sua estátua mereceria substituir o ridículo touro de Wall Street!
Charles Ponzi no Brasil.

Sim, senhoras e senhores: entre 2003 e 2007 Vikram e eu nos transformamos


em seguidores do Grande Carlo. Primeiro sem nos darmos conta, e depois bem
conscientes dos nossos atos, nós também tivemos nossa Grande Ideia. Só que, em
vez de descobrir nossa galinha dos ovos de ouro em uns enrugados cupons postais,
acreditamos achá-la nos CDS de ABS sintéticas e outros derivativos financeiros de
hipotecas subprime, instrumentos ideais para convencer centena de incautos a nos
confiar seu dinheiro. No papel nossas propostas pareciam tão apetitosas — e seus
princípios matemáticos tão intrincados — que o dinheiro começou a fluir em
torrentes para o JVCM, sobretudo quando continuamos pagando dividendos muito
mais altos que os de qualquer outro fundo. Com o mesmo inconveniente sofrido
por Ponzi: os rendimentos eram incompatíveis com essa patranha que chamamos de
realidade. De modo que, como nosso Mestre, descobrimos que a única forma de
progredir no nosso negócio com vento consistia em utilizar o sábio princípio de
roubar Pedro para pagar Paulo (de maneira um pouco mais sofisticada).
Imagino que Ponzi sentiu a mesma excitação e a mesma angústia que nós ao
constatar que sua aventura só poderia se manter se conseguisse injeções de dinheiro
em um fluxo constante e seguro. Que vertigem, que sensação de se lançar em um
tobogã infinito! Deve ter sido em fevereiro ou março de 2005 quando ficou claro
que já não haveria volta atrás, que a única coisa que restava era tentar um salto para
a frente e, assim como Carlo comprou bancos e outras empresas legítimas para
camuflar sua fantasmagoria, Vikram e eu estendemos nossos investimentos a uma
infinidade de setores econômicos. Impossível retroceder! Um passo em falso
despertaria todo tipo de suspeitas, e nada é tão perigoso para um fundo de
investimentos quanto a insídia ou a fofoca! Assim, enquanto Isaac e os quants do
nono andar quantificavam nossos insólitos lucros, Vikram e eu montamos no oitavo
uma empresa-fantasma, com sua própria contabilidade paralela, cujas vísceras só ele
e eu podíamos explorar. Não foi uma coisa pensada com antecedência,
excelentíssimos membros do júri, nem um artifício planejado com deslealdade, mas
a única resposta possível ao abismo que se abria sob nossos meus pés.
A bolha durou mais do que o previsto, obrigando a que, de maneiras talvez
mais sutis mas não menos perversas, todos os atores financeiros do planeta
contribuíssem para inflá-la. O mundo inteiro se transformou em um gigantesco
esquema Ponzi. O dinheiro fluía em grande quantidade, os bancos engordavam, as
empresas prosperavam, os fundos de hedge acumulavam milhões, o PIB crescia ao
mesmo tempo que os salários e as bonificações de funcionários e diretores, quem se
atreveria a frear esse carrossel? Quem? Ave Ponzi, Nosso Mártir, Nosso Santo
padroeiro, nosso Deus! Daqui lhe expresso minha mais profunda devoção.
Com um único senão: diferentemente de você, eu não penso em me entregar.

ÁRIA DE NOAH

Não, você não imaginou isso, pensa, mas finge não ter percebido os abraços e
afagos e entra na sala com passo decidido. Ajeitando os babados da blusa e um
cacho que desliza pela orelha — inútil sedução —, Helen Silvermaster (Dora, nos
arquivos soviéticos) o convida a entrar na sala e oferece uma xícara de chá gelado
que se apressa a buscar na cozinha. “Ele deve preferir algo mais forte”, sugere Lud
Ullmann (Polo, nos arquivos soviéticos), dirigindo-se ao bar; você nota a gravata
amassada e as marcas de batom na camisa.
“Obrigado”, murmura secamente. Seu colega serve dois copinhos e lhe conduz
pelo braço para as floridas poltronas da sala. Os dois se sentam e saboreiam o
conhaque em um silêncio que ele quebra com um risinho de cumplicidade que,
mais que incomodar, o envergonha. Você sente as orelhas ardendo: que tipo de
agente se ruboriza diante de uma infidelidade alheia, repreende a si mesmo.
“Nat não deve demorar”, esclarece Lud, ajustando a gravata e limpando os
lábios com um lenço. Você fica na dúvida se ele é um cínico ou um covarde.
Silvermaster (Pal, nos arquivos soviéticos) marcou com você ao meio-dia para
que lhe entregasse o material desta semana, por isso você usou a porta dos fundos e
procurou não fazer barulho. Nunca imaginou que encontraria a mulher dele nos
braços de Ullmann. Sempre achou extravagante que os três compartilhassem a
mesma casa, mas eles sempre se apresentaram como irmãos, e você nunca deu bola
para as fofocas contra ele. Pergunta-se que papel Nat desempenhará no triângulo, se
o de vil propiciador da aventura, o de marido resignado ou o de simples cornudo.
“O que você acaba de ver…”, desculpa-se Lud, mas você não o deixa terminar
a frase. “Eu não vi nada, e seja como for não é da minha conta”, interrompe-o de
repente. Com um gesto sutil, Ullmann tenta retomar sua explicação ou sua defesa,
mas Silvermaster irrompe na sala batendo a porta.
Você nota seus dedos crispados, seu olhar turvo — não é a primeira vez que lhe
perturbam seus olhos simiescos —, os traços de suor que lhe escorrem pela testa e
ensopam as axilas. Sem cumprimentá-los, joga o chapéu e o paletó no cabideiro,
desabotoa a camisa, se serve uma taça e se joga no sofá. Você imagina que está
prestes a ver uma briga doméstica e se prepara para partir, mas seu anfitrião bebe sua
taça em um silêncio resignado. “Deixe os papéis ali”, lhe indica como se não fosse
nada relevante. Helen volta da cozinha carregando uma bandeja — a roupa e o
penteado novamente impecáveis —, mas ao ver o marido vai para o lado dele e se
apressa em acariciar seu rosto com delicadeza. “Tudo bem, querido?” Silvermaster
tenta se controlar, mas seu temperamento nunca se acomodou à prudência.
“Mer quer me deixar de lado”, exclama de repente (segundo os arquivos
soviéticos, Mer é o agente do NKVD Isjak Ajmerov) e se lança em um ataque contra
o russo: “Depois de tudo o que eu consegui!”.
Ullmann tenta fazê-lo se calar, mas Silvermaster perde as estribeiras e, como se
fosse o protagonista de uma comédia ruim de Hollywood, joga no amigo o
conhaque que resta no fundo do seu copo. “Você não vai vir à minha casa me dizer
o que tenho que fazer! Juro que vou lhe partir os ossos! Desapareça daqui, se não
quer que lhe expulse a socos.”
Com um controle admirável, Lud limpa o rosto com um guardanapo. “É
melhor você ir embora, Noah”, diz. “Nat e eu nos conhecemos de toda a vida,
saberemos resolver isso.” Enquanto você abre caminho para a varanda, ouve os
soluços de Helen.
Faz meses que Nat se tornou incontrolável: todos os membros do círculo se
queixam de suas mudanças de humor, de sua falta de tato, de suas rabugices e
descuidos. Agora você descobriu a causa. Mas, além de seus desentendimentos
conjugais, seu comportamento constitui o pior erro que um agente clandestino pode
cometer. Embora você esteja a par de que Lud e Helen pertencem ao aparelho, e de
que eles reconhecem sua lealdade, uma regra essencial impede misturar células
distintas. Revelar seus conflitos com seu controlador soviético lhe parece uma
demonstração de desespero ou de loucura. Se continuar assim, Silvermaster
comprometerá todo o aparelho, o problema é que não aceita a menor crítica e fica
cada dia mais intolerante. Não é a primeira vez que confunde a vida social com seu
trabalho clandestino, como se encorajar a entrega de documentos secretos durante
um churrasco ou uma partida de pingue-pongue — ou em meio a um ataque de
ciúmes — fosse a coisa mais normal do mundo.
Desde seu recrutamento em 1931 (quando seu nome, segundo os arquivos
soviéticos, era Bud) sua carreira no aparelho lhe pareceu uma insignificância —
atuar como correio aqui e ali, sem nenhuma ordem ou estratégia discernível,
fazendo ouvidos moucos aos expurgos ou às contradições ideológicas como o Pacto
Germano-Soviético —, até que em 1941 seu velho amigo George Silverman
(Alerón, nos arquivos) o colocou em contato com Silvermaster, que acabava de se
apoderar do círculo de Washington. No princípio este se reportava a Jacob Golos
(John), mas depois da morte deste se viu obrigado a revelar a informação que extraía
de seus agentes à amante dele, a escorregadia Elizabeth Bentley (Myrna).
Irascível, às vezes incongruente — Ajmerov não deixa de informar seus
desmandos em todos os telegramas a Moscou —, Silvermaster possui grande
habilidade para se introduzir nos mais diversos estratos sociais e um talento
indiscutível para a sedução que lhe permitiram se transformar na melhor fonte que
os russos jamais tiveram (ou terão) no governo americano. No início você não
conseguia discernir os verdadeiros alcances de sua rede, e inclusive é possível que,
como outros membros, nem sequer soubesse com certeza que os documentos
secretos que tirava do Tesouro não iam parar no Partido Comunista, como Nat lhe
garantiu, mas no NKVD ou no serviço de inteligência do Exército soviético. Hoje
você já não tem dúvidas, mas, como Harry, prefere não fazer perguntas
inconvenientes. A causa, justifica para si mesmo, é a derrota do fascismo, e qualquer
meio é válido para alcançá-la.
Certa vez, depois de beber várias doses, o próprio Silvermaster se gabou de sua
ziguezagueante carreira como agente secreto: nascido em Odessa em 1899, iniciou
sua militância assim que chegou aos Estados Unidos, aos dezesseis anos. Depois de
uma intensa carreira clandestina na Costa Oeste, onde se tornou amigo de Earl
Browder, mudou-se para Washington, onde começou a fiscalizar o trabalho de mais
de meia dúzia de agentes. Embora não possa falar sobre isso, você não tem dúvidas
de que, além de Silverman, fazem parte da rede Frank Coe (Pick), Sonia Gold
(Zhenia), Solomon Adler (Sax) e Lauchlin Currie (Pajem), assim como o próprio
Harry (Advogado), a quem os serviços de inteligência soviéticos descrevem como
um de seus mais valiosos contatos.
Em 1942 tem início uma investigação oficial contra Silvermaster por sua
atividade comunista na Califórnia, e Ajmerov lhe ordena deixar de vê-lo por alguns
meses. O FBI solicita informação sobre o suposto traidor entre os membros do
Departamento do Tesouro, onde seus próprios amigos, incluindo Harry e você,
desprezam qualquer suspeita contra ele. “É um servidor público irrepreensível e um
patriota de primeira ordem”, você explica ao agente federal que o interroga nesses
dias. Graças à intervenção de Currie, que nesta altura atua como assistente de
Roosevelt, a única consequência das investigações consiste na transferência de
Silvermaster para a Administração de Seguros Agrícolas, onde logo reinicia suas
tarefas de espionagem.
Vasili Zarubin (Maxim), o chefe legal da base soviética em Nova York,
reconhece em um despacho a Moscou o valor do trabalho desenvolvido por
Silvermaster e seu grupo (“são agentes produtivos, dos quais recebemos informação
valiosa, com que podemos nos sentir satisfeitos”), mas exige que seus contatos
passem a depender de um cidadão soviético. Moscou instrui Ajmerov a tirar o
círculo de Washington da mão de seu líder e organizar uma rede mais bem
articulada. A partir de 1943, o russo se mostra cada vez mais inquieto diante dos
descontroles profissionais e emocionais de Silvermaster. Referindo-se ao triângulo
que mantém com Helen e Ullmann, Ajmerov escreve a Moscou: “Sem dúvida estas
relações pouco saudáveis não terão boa influência em seu comportamento e
resultarão negativas para nosso trabalho”.
No início de 1944, Moscou informa Ajmerov de que vários agentes do círculo
de Washington se encontram sob a lupa do FBI e que seus telefones foram
interceptados. Na mudança maciça de codinomes posterior a esta revelação, Mer
(Ajmerov) se transforma em Albert; Pal (Silvermaster) em Robert; Polo (Ullmann)
em Piloto; Advogado (White) em Richard e mais tarde em Reed; e você, Noah
Volpi, deixa de ser Bud e adquire o nome de Raposa (Lisitsa, em russo). Farto dos
deslizes de Silvermaster, suas visitas à casa dele se tornam cada vez mais esporádicas:
você não está disposto a que um novo erro coloque em perigo toda a sua carreira.
Seus colegas tomam decisões parecidas, e no final de 1944 Silvermaster já parece
contar somente com a colaboração de seu inseparável Ullmann, com quem acabará
por montar uma agência imobiliária em Nova Jersey.
Em meados de 1945, o novo chefe de base soviético, Vladimir Pravdin, tem
um desentendimento com Silvermaster. Nesta altura a atitude deste se tornou quase
histérica e suas relações com o resto do círculo se diluíram por completo. À sua
instabilidade familiar se soma o recrudescimento de seus ataques de asma. Sem
reconhecer qualquer responsabilidade no desmantelamento do aparelho,
Silvermaster se queixa com Pravdin de que Frank Coe e você deixaram de lhe
proporcionar documentos, enquanto George Silverman aceitou um emprego na
iniciativa privada sem consultá-lo. E acusa Harry White de não entregar nenhum
tipo de informação, porque depois do fim da guerra acha que seu papel consistirá
em dar assessoria à União Soviética em matéria de política econômica por canais
oficiais.
Tentando salvar o que resta do círculo de Washington, Pravdin marca
entrevistas com outros membros, entre eles você. “Não entendo como puderam
escolher alguém como ele para ser responsável pelo grupo”, reclama ao russo com
franqueza. “Suas mudanças de humor, seus descuidos e desplantes o tornam um
risco para todos.” Explica que por culpa dele o aparelho não existe mais e diz que,
no ambiente hostil instaurado por Truman depois da morte de Roosevelt, seria
imprescindível articular um novo grupo com uma estratégia mais clara e uma
liderança mais forte. “Só assim estaria disposto a continuar trabalhando para os
senhores.”
Tão frustrado quanto você, Isjak Ajmerov solicita a repatriação, que é
rapidamente aprovada por Moscou. Antes de partir se encontra com você pela
última vez em um bar no East Village. Ao vê-lo apoiado com os cotovelos no
balcão, coloca a mão no seu ombro e leva-o para uma mesinha no fundo.
Diferentemente do que acontece com a maior parte de seus colegas, o inglês dele é
impecável. O russo vai direto ao ponto e lhe revela as más notícias: “Myrna
(Elizabeth Bentley) nos traiu. Foi ao FBI e revelou as identidades de todos os
integrantes do grupo”.
Em seu relatório a Moscou, Ajmerov afirma que você não se mostra
particularmente alarmado: “Eu nunca trabalhei para ela, duvido que me reconheça”,
se justifica. (Em compensação, eu o imagino tremendo.) Mesmo assim, os dois
combinam as respostas que você deverá dar ao FBI caso seja necessário.
“Naturalmente, Raposa negará qualquer contato conosco”, conclui Ajmerov no
último telegrama dos arquivos soviéticos em que figura seu nome.
Cena III. Sobre como ser inteligente e bonito o transforma em
herói e ser inteligente e bonita a transforma em puta

DUETO DOS ROSENBERG

O oficial que o conduz à cadeira acha que seu semblante é feito de cera, não
percebe sinais de medo em suas pupilas — tampouco de resignação ou ira — como
se fosse uma tarde sombria como tantas, como se seu tempo não se esgotasse até um
nada, como se seus membros não fossem se desconjuntar e se retorcer, como se sua
pele não fosse se transmutar em um pergaminho preto e vacilante. Esforçando-se
para evadir seu olhar, ajusta-lhe o cinto e encaixa as fivelas em torno de suas
panturrilhas e antebraços. Quando o técnico dá o sinal, coloca-lhe o capuz de couro
e se afasta para um lado para lhe conceder um último segundo de arrependimento.
Visto de perto, Julius Rosenberg não lhe parece repugnante, um dos inconvenientes
do seu ofício é que, uma vez despojados de esperanças, todos os condenados
parecem inocentes. Pergunta-se o que acontecerá dentro dele. Relembrará sua vida
ou pensará em coisas mais pueris, em um dia de maio, nos sorrisos dos filhos, no
cogumelo radioativo que deverá nos devorar por sua culpa? Talvez Julius esteja
muito cansado depois de tantos meses de apelações e trâmites, adiamentos e atrasos
— o casal deve estar há mais de dois anos em Sing Sing, calcula —, e só deseje um
pouco de silêncio.
O oficial da prisão acerta apenas em parte: sem dúvida, os Rosenberg estão
fartos do calvário inesgotável, de conversar inúmeras vezes com os advogados, de
receber tantas mostras de solidariedade quanto de repúdio, de se encolher em suas
celas em seções separadas do presídio, de se escrever diariamente (suas cartas foram
publicadas pelo comitê que os defende), de chorar, de gritar, de soluçar. Fartos de
proclamar inutilmente sua inocência. Mas neste instante Julius e Ethel, embora
talvez mais Ethel que Julius, continuam atentos ao telefone que descansa a algumas
polegadas da mão do prefeito, este telefone que poderia anunciar o perdão do
presidente. As possibilidades de que isso aconteça (eles sabem) são remotas: quando
a Suprema Corte confirmou sua condenação, Eisenhower se apressou a declarar que
a sentença lhe parecia justa e que não interviria no assunto.
Alegando a falta de tato que representaria executá-los durante o sabá, seus
advogados só conseguiram que o procurador Brownell prometesse cumprir a pena
antes do crepúsculo. Pela manhã o advogado do casal voltou a ir à Casa Branca para
fazer chegar ao presidente uma última petição apoiada no juízo da Suprema Corte,
que, embora confirmasse a legalidade da condenação, deplorava a desproporção do
castigo. Mas os minutos correm e o telefone permanece mudo. Julius só lamenta
que Ethel pague por suas culpas, por que David mentiu até conseguir a condenação
da irmã? Por que modificou seu testemunho para pintá-la como uma bruxa da qual
era imperativo se livrar? Espiões atômicos! Assim os caricaturaram na imprensa e no
rádio, como se eles de fato tivessem entregado os planos da bomba aos soviéticos,
como se os cientistas de Stálin não contassem com a informação para montá-la
sozinhos. Quem ia acreditar neles? Amedrontado pela bomba, o país necessitava de
bodes expiatórios.
Às 18h45, outro advogado comparece na Corte Federal de Nova York e solicita
um habeas corpus. Como era de esperar, Kaufman nega a moção. Obrigados a se
separar, os Rosenberg não ficam sabendo do anúncio da Casa Branca que confirma
que sua carta não fez o presidente mudar de opinião. Enquanto isso, em
Washington, em Paris, em Londres e em meio mundo centenas de ativistas montam
guarda nessa noite. “Somos inocentes”, proclamam, e rezam por um milagre. Frente
a estes, outros milhares demonstram sua raiva contra os cães judeus (“não os fritem
porque federiam muito: é melhor enforcá-los”), os vagabundos que se venderam aos
vermelhos, os espiões que provocaram a guerra da Coreia e talvez sejam os culpados
da extinção da nossa raça.
O relógio marca oito horas: o telefone já não deve tocar. O prefeito manda
atenuar as luzes e dar início à execução. Julius relembra uma manhã de sua infância
— a tênue bruma sob os ciprestes, o latido de um cachorro — quando a corrente
elétrica atravessa seu crânio, vibra seu coração e penetra em suas vísceras; seus
membros serpenteiam e seu corpo se rompe em um espasmo. Às 20h06, o legista
toma seu pulso e declara que o acusado, de trinta e cinco anos, está morto. Em
Washington e em Nova York, em Paris e em Londres, seus defensores desabam e
seus adversários os apedrejam.
Os carrascos de Sing Sing removem o cadáver do espião e mandam entrar
Ethel, acompanhada por duas guardas. A mulher parece feita de papel e seus lábios
rachados salivam sem parar. Antes de se sentar na cadeira segura a mão de uma das
matronas e beija o rosto da outra. O oficial da prisão lhe ajusta o cinto, as faixas nos
braços e pernas, e lhe coloca o capuz de couro. A um gesto do prefeito, o carrasco
aciona a alavanca. A descarga vibra Ethel, cujo corpo se agita como se dançasse
durante alguns segundos que se tornam infinitos. Quando finalmente se acalma e os
carrascos a desprendem, o médico constata que ainda respira. Dissimulando seu
horror, o prefeito manda que lhe recoloquem o equipamento e, sem perder tempo, a
suposta traidora recebe duas descargas sucessivas até que uma nuvenzinha de fumaça
emana de seu crânio e um cheiro acre se espalha pela sala. Às 20h16, pouco depois
do crepúsculo, o médico finalmente atesta sua morte.
Enquanto a execução de Ethel escandaliza a maioria, o presidente Eisenhower
escreve a seus filhos: “Nesta instância, a mulher é a mais forte e recalcitrante de
caráter, e o homem o fraco. Obviamente ela era a líder do círculo de espiões. Se a
indultássemos, sem indultar o homem, então daqui em diante os soviéticos
simplesmente se dedicariam a recrutar espiões entre as mulheres”.
Tudo isso acontece em 19 de junho de 1953. Apenas seis meses antes que
Noah se atire pela janela.

ÁRIA DE ELIAH STRAUSS

Atlético. Brilhante. Carismático. E rico. Eliah Strauss tinha tudo. Não era de
estranhar que sua carreira desatasse tanto elogios quanto inveja nem que seus traços
finos, seu bronzeado e seu sorriso — para seus fãs, doce e cândido; para seus
inimigos, sardônico e obscuro — adornasse com frequência tabloides e talk shows.
Sua família era igualmente perfeita, um casamento que já durava uma década com
Sonia Dell, uma advogada de trinta e nove que parecia dez anos mais jovem, tão
bonita quanto respeitada por suas iniciativas sociais, mais duas belezinhas de seis e
oito anos, Lilly e Madison, travessas e risonhas, umas fofuras com seus vestidinhos
combinando. “Mas seu marido deve ter algum defeito”, chegou a dizer uma
jornalista à sra. Strauss; esta se limitou a responder: “Eliah não para, nunca se
detém, jamais fica quieto”. A repórter não escondeu sua decepção diante da
resposta, sem entender que por uma vez alguém tinha lhe dado uma autêntica
revelação exclusiva.
Talvez em outro lugar a ambição de Eliah Strauss tivesse parecido um defeito,
mas na América, e sobretudo em Nova York, sua falta de escrúpulos era percebida
com descarada admiração. Modesto, o que se chama de modesto, não era: em cada
entrevista não perdia a chance de nos lembrar de que tinha sido o melhor aluno de
sua turma na Woodrow Wilson School, da Universidade de Princeton, e que,
depois de alcançar uma nota perfeita no exame de admissão — a voz impostada ao
ressaltar o adjetivo —, tinha obtido o título de juris doctor na Escola de Direito de
Harvard com as mais altas honras, além de ter atuado como editor de sua
prestigiada — muito prestigiada — revista.
Como correspondia a um rapaz de sua inteligência e de sua classe, Eliah logo
foi contratado pela Peter, Lukas, Johnson & Marc, onde o aguardava um plácido
destino em uma macia poltrona de couro diante da perspectiva aérea de Manhattan,
mas depois de dois anos abandonou a firma — consultou somente Sonia — e se
incorporou como assistente do procurador distrital do condado de Nova York. O
prestígio do nosso Eliot Ness cibernético se cimentou depois da captura de dois
herdeiros da família Gambino. Dois anos mais tarde, Strauss anunciou sua decisão
de se candidatar a procurador-geral de Nova York. Nessa época nasceu Madison, e
ele não hesitou em posar com seu bebê em diversas revistas de celebridades. Previam
que a escolha estivesse encerrada, e ninguém acreditava que o novato fosse conseguir
o cargo, mas o próprio Strauss financiou sua candidatura e contratou uma assessoria
de imprensa que o apresentou como o açoite do crime organizado na Grande Maçã
Podre. Embora tenha conseguido o apoio do New York Post e do Daily News, ficou
em último lugar: a primeira derrota no seu histórico. Strauss acabaria por
reconhecer que este tropeço foi o maior estímulo da sua vida, que graças a ele
aprendeu com seus erros, se tornou mais humilde (mais humilde!) e conseguiu se
erguer com a vitória nas eleições de 1998, blá-blá-blá. Quatro anos depois bateu
uma ilustre juíza republicana com 68% dos votos, um dos mais altos na história do
estado.
Não havia semana em que Eliah não recebesse os refletores por uma nova
operação tão bem-sucedida quanto bem divulgada. Sua nova fixação: fazer em
pedacinhos qualquer magnata de Wall Street que se interpusesse em seu caminho.
Animado por uma absurda exposição midiática, Strauss invocou todo tipo de
obscuras leis do passado para intervir em casos que de outra maneira teriam
terminado nas cortes federais, transformando-se no inimigo público número um das
grandes fortunas do país. Contratou dezenas de formados da Ivy League, montou
uma sofisticada unidade de supervisão financeira e, apresentando-se como um
democrata liberal, encontrou o nicho que o tornaria famoso nos anos posteriores à
crise das pontocom e dos escândalos da WorldCom e da Enron: esmagar quem
tinha se beneficiado da desregulamentação promovida por Reagan, Bush pai e pelo
próprio Clinton (com quem nunca teve sintonia).
Em uma de suas primeiras causes celèbres, nosso David enfrentou o Merrill
Lynch. Acusado de manobras irregulares, o banco de investimentos negou os fatos,
em seguida se proclamou vítima de uma conspiração — todos os seus concorrentes
se comportavam da mesma maneira —, mais tarde se atreveu a ameaçar o
procurador de ferro e, em longo prazo, aceitou pagar uma multa de 100 milhões de
dólares que Strauss espalhou a torto e a direito. Consumada esta vitória, o xerife de
Wall Street declarou que sua meta era denunciar os conflitos de interesses “de todos
os bancos”. Em casos que inevitavelmente escalaram até as primeiras páginas do
New York Times — seu novo aliado —, Strauss conseguiu impor sanções milionárias
a todos os grandes atores financeiros, do Goldman Sachs ao Bear Sterns, do Crédit
Suisse First Boston ao Morgan Stanley, e do J.P. Morgan ao Lehman Brothers, sem
contar sua polêmica perseguição ao presidente da Bolsa de Valores ou a caça de
dezenas de fundo de hedge irregulares. Eliah Strauss surgia como uma das estrelas
ascendentes do Partido Democrata e, segundo os boatos que se espalhavam como
brasas por Wall Street, ele já se via como candidato a governador de Nova York ou
diretamente como vice-presidente.
Deve ter sido justo quando se iniciavam as primárias que Terry Wallace, o ex-
marido de Susan, jantou pela primeira vez com Strauss. Não consegui descobrir
quem promoveu o encontro, mas sei que ocorreu no Rosa Mexicano da Broadway e
que, diante dos nachos ou das margaritas, meu ex-genro se espraiou sobre as
supostas manobras ilegais do JV Capital Management. Strauss deve ter farejado o
sangue e prometeu uma investigação que, nas mãos de Donna Durán, uma de suas
assistentes mais vorazes, começou no início de 2004. Que melhor maneira de
acentuar seu prestígio do que exibindo um especulador que, segundo seus informes,
enganava centenas de clientes enquanto se apresentava como filantropo e mecenas?
Antes de receber a primeira auditoria, liguei diretamente para o seu escritório e o
convidei para jantar.

O xerife de Wall Street, Eliah Strauss.

Ao vivo não parecia tão atlético nem tão bonito, embora o distinguisse um
desses rostos de galã de telenovela. Um pequeno tique o levava a acariciar a testa
com fruição, como se o preocupasse se certificar de que os últimos cabelos que
restavam se mantinham no lugar. Não tentei me mostrar simpático, nem tentei
suborná-lo ou ameaçá-lo, como sua diretora de comunicação divulgaria depois à
imprensa, de fato a conversa pulou de um assunto a outro sem tocar nenhum tema
incômodo. A única coisa que eu queria era olhá-lo de frente, tê-lo perto, bem perto,
avaliar suas expressões, medir suas palavras, memorizar seus gestos, distinguir talvez
uma fraqueza, uma debilidade, uma mania. Imagino que sua intenção era a mesma.
Um jogo de pôquer ou de xadrez em que os adversários, dois escorpiões frente a
frente, apenas se medem com respeito.
Despedimo-nos com um forte aperto de mãos e prometemos repetir a
experiência: a conversa, convenhamos, tinha sido deliciosa. É óbvio que isso nunca
aconteceu. O que descobri nesse jantar? Aparentemente Strauss era idêntico à
imagem que seus assessores nos tinham vendido. Atlético. Brilhante. Carismático. E
rico. De fato, Eliah Strauss tinha tudo. Mas a perfeição, não devemos esquecer, é
ilusória. Além da astúcia e do glamour, do sorriso sinuoso e ostentoso, o
procurador-geral era um histrião consumado. E, como qualquer comediante, seu
rosto não podia ser idêntico à sua máscara. Eu ainda não sabia se escondia um
grande segredo ou um deslize sem consequências, mas com certeza escondia alguma
coisa.
— Para encontrar o que ele esconde — instruí Vikram — devemos empregar
seus mesmos métodos. Siga-o de perto. Entenda bem: não a ele, que não estamos
em um romance de espiões. Seus gastos, seus cartões de crédito, suas contas. Se o
desgraçado esconde algo, encontraremos onde ele mesmo procuraria.

DUETO

Meu pai tinha trabalhado para os russos, já não restava nenhuma dúvida. Não
posso dizer que tal confirmação tenha me deixado devastado, mas me mergulhou
em um ânimo próximo da apatia. Assim que voltava para casa ao término de uma
viagem de trabalho, um encontro com investidores ou uma escapada erótica com
Vikram, me refugiava na biblioteca, colocava os fones e passava o resto da tarde
ouvindo óperas de Händel e Vivaldi, o único antídoto contra esse passado familiar
que de repente se revelava, se não repugnante, pelo menos incompreensível. Na
maior parte das vezes jantava sozinho, um sanduíche ou uma salada de atum que a
cozinheira levava ao meu refúgio, onde eu permanecia até a meia-noite, indiferente
aos projetos ou às atividades da minha mulher.
Pouco antes Arkadi me informara que os ventos políticos na Rússia tinham
dado uma reviravolta e que os responsáveis pelo arquivo cada vez colocavam mais
empecilhos para as suas pesquisas. Seu apartamento tinha sido saqueado — as
autoridades concluíram que fora obra de uma quadrilha de ladrões —, e sua família
era vítima de incessantes ameaças telefônicas. O tártaro resistiu ao assédio, mas,
depois de sofrer um ataque à mão armada e de uma surra que quase o fez perder o
olho esquerdo, fiz os acertos necessários para levá-lo a um refúgio na Europa
Ocidental, mas suas anotações só chegaram depois de uma odisseia própria de James
Bond. Se talvez houvesse uma pergunta a formular, como insistia Leah, os arquivos
moscovitas já não serviriam para respondê-la.
Apesar do meu desânimo, reconhecia que esse impasse não poderia durar a vida
inteira, e certa noite de maio abandonei meu limbo barroco e irrompi
repentinamente no banheiro, onde Leah se ensaboava sob o chuveiro. O tom
exaltado da minha voz a surpreendeu mais que a minha intromissão. Atrás do vidro
esmerilhado seu corpo parecia um esboço vacilante, como se ela também tivesse
perdido consistência ao longo dessas semanas.
— Não é suficiente para você? — me ouvi gritar. — Precisa de mais provas?
Leah fechou a torneira, se enfiou em uma toalha vermelha e começou a enxugar
os pés e as panturrilhas. Eu estava acostumado a fugir das suas iras, mas desta vez
não aguentava de vontade de provocá-la.
— Sou filho de um maldito espião russo, percebe a ironia?
— Isso o incomoda? — mal levantou o olhar.
— Não, Leah, eu adoro isso — ri. — Estou há anos querendo saber isso e
agora sei. O que quer que lhe diga? Finalmente acabou a tortura.
Minha mulher ficou em silêncio, com aquela careta de insatisfação que a fazia
parecer dez anos mais velha. Há quanto tempo estávamos juntos? Para mim, uma
eternidade. Por um instante desejei ficar sozinho naquele imenso espaço diante da
luminosa mentira de Manhattan, mas imediatamente percebi minha injustiça: Leah
tinha sido uma mulher irrepreensível, que minhas pesquisas tivessem chegado ao seu
fim não me autorizava a prescindir de seus serviços.
Quando terminou de secar o cabelo e se enfiou em um absurdo pijama rosa —
fazia tempo que tinha deixado de se preocupar com sua aparência quando dormia
comigo —, Leah me puxou pela mão, me levou ao seu escritório e me revelou que,
enquanto eu me dedicava a ruminar minha desgraça, ela tinha feito uma última
descoberta. Abriu um bordeaux, pegou duas taças e me pediu que me sentasse
diante de seu computador.
— Vou lhe contar uma história — disse. — Corria o mês de fevereiro de 1943
quando o coronel Carter Clarke, chefe do Setor Especial do Exército responsável
pelo Serviço de Inteligência de Códigos, mandou estabelecer um pequeno projeto
para examinar os telegramas diplomáticos que a embaixada soviética em
Washington e o consulado soviético em Nova York enviavam a Moscou de bases
clandestinas. Clarke tinha se concentrado em codificar as mensagens dos alemães e
japoneses sem se preocupar com os aliados russos, mas os boatos segundo os quais
Stálin iria assinar a paz com Hitler mudaram sua estratégia. A tarefa se revelou mais
difícil do que o previsto, pois a URSS empregava um sistema de código em duas fases
e seus analistas só conseguiram abrir as primeiras mensagens em 1946, quando a
guerra já tinha terminado.
— Stálin queria mesmo trair Roosevelt?
— Os telegramas em nenhum momento se referiam a uma negociação com os
nazistas — continuou Leah —, mas demonstravam o que nós já sabemos: que a
URSS possuía uma formidável rede clandestina infiltrada nas principais agências do
governo. Em 1939 o escritório de Clarke mal contava com uma dúzia de
especialistas, mas em 1945 já empregava 150 funcionários entre criptógrafos,
analistas, linguistas e especialistas em sinais de telecomunicação, e tinha se mudado
para um antigo colégio para moças em Arlington Hill, Virginia. Em 1952, adotou o
nome que conserva até hoje, Agência de Segurança Nacional, a mais sombria das
nossas centrais de inteligência. O esforço de Clarke, conhecido no início como o
“problema doméstico soviético”, tomou depois os nomes de Jade, Algema, Droga e
finalmente, em 1961, o de Projeto Venona.
Era possível que durante todos os anos da guerra nossos serviços secretos
tivessem espiado os espiões? Apressei-me a abrir a garrafa. No teclado, os dedos de
Leah se animavam como larvas recém-saídas dos ovinhos.
— E finalmente Clarke conseguiu decifrar os telegramas?
— Entre 1940 e 1980, quando o programa foi descartado devido à sua falta de
interesse tático, o Projeto Venona decifrou total ou parcialmente 1,8% dos
telegramas de 1942; 15% dos de 1943; a metade dos telegramas soviéticos enviados
em 1944; mas só 1,5% dos de 1945 — leu na tela.
De repente senti a urgência de tocá-la. Embora nos últimos meses tivesse
procurado evitar qualquer contato físico com ela, agora sentia que só sua pele
poderia me devolver à época em que sua inteligência me deslumbrava.
— E por que nunca soubemos nada deles? — perguntei.
— Porque o governo decidiu manter isso em segredo. Suas descobertas nunca
foram utilizadas nos processos iniciados contra os acusados de espionagem durante a
Guerra Fria.
— O governo preferiu que fossem erroneamente julgados a revelar a existência
do projeto…
— É o que eu acho.
— Mas imagino que está me contando tudo isso por algum motivo — bebi o
resto da minha taça e acariciei seus lábios de maneira inequívoca.
— Aqui vem o mais interessante — se afastou sem a menor delicadeza. —
Graças à intervenção de dois historiadores, John Earl Haynes e Harvey Klehr, com
quem me encontrei há alguns dias, a NSA finalmente decidiu abrir seus arquivos. Em
uma coletiva de imprensa realizada em Langley, a CIA, o FBI e a NSA deram a
conhecer o Projeto Venona e publicaram uma primeira lista de telegramas
decifrados pelos seus analistas. Estimam que nos próximos meses colocarão à
disposição dos especialistas umas 5 mil páginas de material bruto.*
Não precisou dar mais detalhes para que eu percebesse a relevância da notícia.
Embora a inocência de meu pai tivesse sido descartada, talvez ainda pudéssemos nos
aproximar dos seus motivos.
— E onde está esse material?
— Aqui mesmo, em Nova York — exclamou triunfal. — Preciso de uma
equipe que me ajude a esmiuçar esse imenso caudal de informação.
— Sabia que afinal o mistério se resolveria com dinheiro.
Beijei-a com uma obstinação que não se distinguia da fúria. Quase não
reconheci o sabor dos seus lábios, como se fosse uma desconhecida. Ela não
correspondeu à minha veemência, mas eu a levantei nos braços — me surpreendeu
constatar a facilidade com que ainda conseguia levantá-la — e a levei no colo para a
cama. Se no sexo nunca fomos compatíveis, os anos pelo menos tinham nos
ensinado a fingir que éramos capazes de nos satisfazer. Essa repentina obsessão
sexual talvez não tenha chegado a nos reconciliar, mas dissipou por alguns meses a
sensação de que, depois de tantas aventuras compartilhadas, nossa história já não
tinha sentido.

ÁRIA DE VIKRAM

— Não a suporto, Vikram — me exaltei ao ver outra vez o rosto de Erin


Callan na tela.
Como detestava seus gorjeios, suas ironias e birras infantis, sua franja
iridescente, seus modelinhos importados, sua paixão pelo estilo que só denunciava
sua atroz falta de estilo! Não havia noite em que não topasse com seu rosto
escandalosamente maquiado na CNBC. Erin Callan, a mulher mais poderosa de Wall
Street segundo a Condé Nast Portfolio — na enorme foto, descendo de uma
limusine, exibe as pernas esfiapadas e a sola vermelha dos seus Leboutin —, tentava
explicar por que o Lehman Brothers não estava em perigo. Se não há nada mais
insuportável do que as declarações de um chefete de Wall Street, ouvir Erin Callan
se transformava em uma tortura. A hiena não tinha a menor experiência no setor,
nunca tinha dirigido um grupo de mais de cinquenta pessoas e sua maior graça
consistia em não se ruborizar ao exibir suas compras da Bergdorf Goodman.
— A palavra arrivista na Wikipédia deveria vir acompanhada da fotografia dela
— soltei com raiva.
— Como se tornou diretora financeira do Lehman? — perguntou Vikram.
Meu amigo tinha acabado de colocar as calças e permanecia com o peito nu.
Seus abdominais testemunhavam as horas que passava na academia para aliviar o
estresse daquela temporada.
— Porque assim quis Joe Gregory — disse-lhe.
— Que idiota!
— Outros dizem que é apenas uma provocadora.
Gregory, com quem tinha coincidido em alguns conselhos de administração e
em inúmeras festas beneficentes, era quase simpático, sobretudo se comparado com
Dick Fuld, seu amigo de toda a vida. Sua maior contribuição como presidente do
Lehman Brothers consistira em introduzir um teste de personalidade de tipo
junguiano para medir a eficácia dos brokers e em desenhar uma política de
igualdade de gênero que tinha impulsionado a ascensão de mulheres e membros da
comunidade LGBT. Nesta lógica, a nomeação de Callan foi o golpe de mestre de sua
estratégia para limpar a cara do banco. Graças a Gregory, Erin Callan — que, para
se mostrar mais humana, em outra entrevista se gabava de sair com um bombeiro —
não só tinha adquirido uma desmedida influência como havia se tornado o rosto do
Lehman.
“Nossos resultados são sólidos”, explicava Erin Callan à jornalista da CNBC com
um sorriso. “Será um prazer abrir o quimono e permitir que qualquer um veja nossa
história.”
— O quimono? — grasnou Vikram. — E se supõe que esta mulher pretende
nos acalmar?
Desliguei a televisão. Fazia meses que Vik e eu suspeitávamos que o Lehman,
com quem o JV Capital Management realizava operações que chegavam a 1 bilhão
de dólares, devia recorrer a algum estratagema ilegal para justificar seus insólitos
lucros. Sabíamos que havia meses o banco estava submetido a uma enorme tensão
interna e que alguns de seus operadores mais experientes tinham abandonado seus
cargos (ou tinham sido despedidos) depois de mostrar inconformidade com as
manobras de Gregory — o único que parecia não reparar na ameaça que suas
absurdas aquisições representavam para a empresa. Qualquer um que examinasse
com atenção os relatórios do Lehman poderia ter descoberto que seus milhares de
derivativos financeiros ligados a hipotecas subprime o conduziam a aberrantes níveis
de endividamento. Mas Dick Fuld fazia ouvidos moucos às críticas. Seu fraco por
Gregory anulava seu juízo.
— Não estão nem um pouco preocupados com a propriedade imobiliária? —
perguntara a Dick, durante o intervalo dos Contes d’Hoffmann no Met, em fevereiro
de 2008.
— Estamos bem protegidos — resmungou sem abandonar seu champanhe.
Seu excesso de confiança logo haveria de receber um golpe. Em meados de
março correu a notícia de que o Bear Sterns, o quinto banco de investimento de
Wall Street, estava à beira da falência e só diante da ameaça de um colapso o J.P.
Morgan tinha concordado mantê-lo à tona. Segundo me informou Vikram, que
continuava mantendo estreitos contatos com vários executivos do nosso antigo
escritório, neste fim de semana seus contadores e auditores tinham tomado de
assalto o Bear Sterns para examinar os livros.
— É pior do que imaginávamos — revelou meu amigo. — Segundo meus
informantes, pelo menos 30 bilhões são arriscados demais para que o J.P. Morgan os
adquira sem a ajuda do governo.
Tentando conjurar uma desgraça maior, o Federal Reserve tinha aceitado
garanti-los se o J.P. Morgan oferecesse aos acionistas mais de dois dólares por título
(finalmente chegaram a dez, sem que isso contribuísse para dissipar o pânico). Na
segunda-feira 17 de março não havia mais o que fazer. O Bear Sterns, uma
instituição fundada oitenta e cinco anos atrás, considerada por décadas um modelo
de rigor e probidade, falecia por culpa da má gestão de seus dirigentes.
Todos os olhares se voltaram então para a próxima peça que poderia cair. O
Lehman Brothers.
— Agora o Dick Fuld não pode estar tão alegre — exclamou Vikram.
Em 18 de março, Erin Callan voltou a aparecer nas telas para anunciar que,
durante o primeiro trimestre de 2008, o Lehman tinha obtido lucros modestos, mas
em todo caso surpreendentes dada a instabilidade dos mercados. “Quinhentos
bilhões de dólares”, exibiu como um galo de briga.
— Acha mesmo que engoliremos essa história? — disse a Vikram.
— Não vejo outra explicação — resmungou meu amigo. — O Lehman deve
estar subvalorizando os ativos em muitos milhões.
Nessa noite Vikram fez uma autópsia no relatório trimestral do banco e
encontrou uma enorme discrepância entre os resultados anunciados por Erin Callan
e os informados diante da SEC uma semana antes.
— Eu tinha razão — disse sem esconder seu orgulho de detetive. — Estão
manipulando os números, J.V.
Como se fosse uma travessura, corri a enviar um e-mail à diretora financeira do
Lehman. “Erin, ligue para mim, por favor.” Não passaram nem dez minutos antes
que a hiena digitasse meu número.
— Em que posso te ajudar? — chiou no meu ouvido.
— Vejamos, Erin, você pode me explicar como é possível que o valor dos seus
investimentos ligados a propriedades imobiliárias e hipotecas tenha aumentado
nesta hora em que tudo está em queda livre? — soltei à queima-roupa. — Segundo
os meus cálculos, as CDOs hipotecárias do Lehman devem rondar os… 6,5 bilhões…
— Bem, é que…
Cacarejos e mais cacarejos.
— Isto cheira cada vez pior, Vik — finalmente pareci preocupado. — Temos
muitos negócios com eles…
Durante minha intervenção em uma conferência financeira, em 21 de maio, já
não consegui me conter, precisava mostrar ao mundo que a irresponsabilidade de
Gregory e Callan colocava em risco todo o sistema financeiro. (E, sobretudo, o JV
Capital Management.)
— Acho que o Lehman não será sancionado pelo que está fazendo. Inclusive
suspeito de que certas autoridades aplaudirão suas duvidosas práticas contábeis —
me indignei diante da nata de Wall Street. — Se não houver sanção pelos maus
comportamentos, e estas condutas continuarem inspirando elogios da imprensa
sobre como dirigir esta crise, todos nós vamos pagar muito caro.
Vocês acham, queridos leitores, que Erin Callan guardou um prudente silêncio
diante das minhas acusações? É óbvio que não! Continuou exibindo sua franja
iridescente e suas explicações insossas na CNBC e em todos os canais que visitou ao
longo dessa semana — sempre com um modelito diferente —, desqualificando
quem questionava seus números. Em uma entrevista para o Wall Street Journal,
desmentiu minhas acusações com o único argumento que deve ter achado
irrebatível: uma lista das joias que tinha adquirido na semana.
Quando Erin Callan anunciou os resultados do Lehman para o segundo
trimestre de 2008, o buraco negro já não podia ser maquiado: 2 bilhões e 800
milhões de dólares em perdas. Na manhã seguinte as ações do banco de
investimento caíram 21%. Até uma pessoa tão dura quanto Dick Fuld devia estar
roendo as unhas e, depois de uma reunião de emergência, o Lehman finalmente
anunciou a saída de Gregory “por motivos pessoais”.
— Balelas — confirmou-me Vikram. — Joe foi despedido embora Dick tenha
lhe permitido receber seu salário até dezembro. Só que Gregory, o promotor das
políticas de gênero e o defensor dos gays, lésbicas e transexuais, não quis passar à
história como o causador da tragédia.
Quando a notícia se tornou pública, as críticas recaíram em Erin Callan, a
mulher mais poderosa de Wall Street. Em compensação, mal tocaram em Gregory.

DUETO

Assim que Vikram me mostrou o recorte do jornal (seu rosto de papel-


manteiga, os dedos hesitantes) não me restou outra solução senão violar uma das
minhas regras sagradas e percorrer a toda velocidade os duzentos quilômetros que
separam nossa cabana da zona turística da ilha em busca de um cibercafé. Minha
paranoia se depurou com os anos: li dezenas de relatos de fugitivos da justiça pegos
por descuidos semelhantes, uma imprudente ligação para um celular, um e-mail
suspeito, certo número de webpages descarregadas da mesma conta. O olho de Deus
— ou de seus substitutos: as agências de segurança do planeta — nos vigia das
alturas, montado em um satélite.
Abri o Times (dez artigos grátis sem necessidade de se registrar), depois o Post
(mais popular e com menos exigências) e, saltando de uma janela a outra, meia
dezena de lugares diferentes para me aprofundar na notícia: o início do julgamento
contra Isaac e Susan Volpi na Corte Federal do Distrito Sul de Nova York, em 8 de
janeiro de 2011. Assim fiquei sabendo que Mel González, do Goldburn, Wallace &
Mervin, conduzia a defesa dos meus filhos. O mesmo escritório com que trabalhei
durante mais de três quinquênios e cujos sócios perderam perto de 1 milhão de
dólares per capita depois de investir no JV Capital Management. Na tela distingui os
compungidos perfis dos meus filhos, Susan tentava se esconder atrás de uma revista
de moda — Kim Kardashian na capa — enquanto subia pela escadaria do tribunal,
já Isaac, todo de preto, tinha uma expressão de espantalho.
Fazia quanto tempo que não via meus filhos? Dois anos? Três, me corrigiu
Vikram. Três anos de vida itinerante; três anos vagando daqui para lá como um
flâneur forçado ou um turista acidental (roubo o termo de Anne Tyler); três anos
sem nenhum contato com os gêmeos (nem com Leah nem com Becca); três anos
imaginando-os à distância, rezando por eles para esse deus em que não acredito,
esperando que seu julgamento não se realizasse. Senti um calafrio ao ver o nome do
promotor, Ben o Canhoto Robertson, um dos apadrinhados de Eliah Strauss. A falta
de imparcialidade estava garantida.
Nenhum lugar narrava aquela primeira audiência com o detalhe que eu
requeria, concentravam-se em revelar o lado humano das vítimas (minhas vítimas:
meloso clichê) ou se deliciavam com uma triste sequência fotográfica de Susan e sua
tormentosa e infeliz lista de nomes de amantes. Depois de minha derrota e de
minha fuga, a coitada não tinha achado melhor evasão que o sexo desenfreado com
socialites e atorzinhos de cinema independente. O título de uma das matérias, não a
mais insidiosa ou agressiva, resumia o ar que se respirava em torno do caso: “A
família da máfia”.
Meu pesar aumentou ao descobrir que uma das principais incentivadoras da
causa criminal contra meus filhos — as questões cíveis eram inevitáveis — fora Cari
Dumontet, a filha mais nova de Frank Dumontet, antigo sócio do JVCM falecido em
2006, que representava vários processos de pensões que tinham falido, segundo ela
“por culpa dos Volpi”. Seus advogados alegavam que, dada a posição de Susan e
Isaac, eles eram responsáveis pelos danos, sem importar se estavam ou não a par das
minhas heterodoxas manobras financeiras (fascinou-me o eufemismo). Conforme
constatei em blogs e artigos aqui e ali, ninguém parecia confiar na inocência dos
meus descendentes. Como poderiam desconhecer as armações que seu pai fazia na
cara deles? Como poderiam não estar a par do caixa dois, do esquema Ponzi, do
intrincado labirinto de transferências e do desvio de recursos sendo dignos filhos
meus?
Mel tinha reiterado várias vezes as mesmas desculpas, que seus clientes não
sabiam nada sobre as minhas manobras ardilosas, que não tinham participado das
falcatruas, que ao saber da fraude correram para me denunciar ao FBI e que todo o
tempo tinham cooperado com a justiça. Para a opinião pública — esta hidra de mil
cabeças e nenhum cérebro — nada disso importava. Os infelizes eram Volpi e, na
ausência do Volpi definitivo, do Volpi original, do Ur-Volpi fugitivo da justiça, eles
deveriam pagar pelas minhas faltas. Assim soava a determinação do juiz McCulkey,
que tinha dado por válidos os indícios de conspiração criminal interpostos pela
promotoria, e impôs a Susan e Isaac uma fiança de 16 milhões de dólares que eles só
puderam conseguir hipotecando (que ironia) os poucos bens que restavam depois do
recente remate de quatro mansões e do sítio de Montana.
— O que posso fazer por eles, Vikram? — disse-lhe assim que voltei para a
cabana, mais abatido que nunca.
Aprazível e enigmático, com aquela calma zen que chega a me transtornar, meu
amigo se limitou a arquear a sobrancelha esquerda. Se tivesse me apunhalado não
teria feito me sentir pior. Só havia uma resposta para a minha estúpida pergunta,
uma resposta que eu não me atrevia a pronunciar.

* Para consultar os arquivos Venona pode-se recorrer à webpage da NSA:


<www.nsa.gov/public_info/declass/venona/index.shtml> (N. E.)
Cena IV. Sobre como atrasar a verdade por meio século e por
que Babel caiu

ÁRIA DE ELIAH STRAUSS

Transformada em um clássico americano, a cena se repete várias vezes nas telas.


Enfocado sob uma luz assassina, o casal comparece com as mãos entrelaçadas, os
semblantes ruborizados ou abatidos — ela, severa e elegante, quase murcha; ele,
com a voz longínqua e os olhinhos aquosos —, o peso de sua convivência refletido
nessa suave tensão com que prometem aguentar o incidente enquanto os dois se
esforçam por se entreolhar de vez em quando, ou, melhor, se certificam de que
outros vejam aquela piscada, aquele gesto cúmplice no qual se cifra a possibilidade
de uma desculpa: se ela ainda pode me olhar na cara, por que não o fariam vocês,
concidadãos e eleitores? Pouco importa que a mulher esteja farta, furiosa,
descomposta, nem tanto pela fraude (outra de tantas) quanto pela afronta, a
necessidade de expô-la como uma boa samaritana que engole de maneira heroica,
admirável, cada nova revelação — cada nova humilhação — sem se encolher.
Embora o amaldiçoe e já tenha empreendido as primeiras ações para dar entrada a
um recurso, ela sabe que não resta outro remédio senão figurar ao seu lado —
figurar, exato termo —, acompanhá-lo nessa provação de verdade e dor que tanto
agrada os fãs dos melodramas políticos, engolir suas palavras inúteis, o erro, o
grande erro, o tremendo erro que cometi, engolir seu arrependimento — não pelo
seu comportamento, mas pela sua estupidez ao disfarçá-lo — e aguentar esses dez ou
quinze minutos de vergonha, essa confissão que se exige aqui de todos os homens
públicos que são suficientemente imbecis para permitir que suas infidelidades
manchem os tabloides.
Bill Clinton; o senador e pré-candidato democrata à presidência John Edwards
(D-NC); o congressista Mark Souder (R-IN), célebre por seus discursos arrebatados a
favor da abstinência; o pré-candidato republicano à presidência Herman Cain; o
admirado general David Petraeus; o congressista e defensor do novo
conservadorismo Newt Gingrich (R-GA); o congressista Thad Viers (R-SC); o
congressista Antony Winer (D-NY); o congressista Eric Massa (D-NY); o candidato a
congressista Tom Ganley (R-OH); o senador John Ensig (R-NV), um dos mais
implacáveis críticos de Clinton; o congressista Vito Fossella (R-NY); o congressista
Tim Mahoney (D-FL); o presidente George W. Bush; o senador David Vitter (R-A),
assíduo da célebre madame Deborah Jane Palfrey; o governador democrata de Nova
York Eliot Spitzer (o famoso “cliente número 9”); o presidente Barack Obama; o ex-
governador Mark Sanford (R-SC) e, só um entre muitos outros, o procurador-geral
de Nova York, Eliah Strauss. Se este catálogo só reúne os que foram descobertos,
suspeitamos que em nosso país devem se esconder dezenas de políticos que levam na
santa paz uma doce — ou apaixonante — vida dupla. Basta dar uma olhada em
Julianna Margulies, a protagonista de The good wife, que parodia ou homenageia
todas estas admiráveis esposas (acabo de ver a primeira temporada no DVD), para
perceber a excitação que estes seriados de expiação provocam. Fascinante espetáculo
em que a gente não apenas pode saborear a queda de outro infiel, mas também
justificá-la ao contrastar as ternas ou murchas fotos da esposa — mechas tingidas,
pés de galinha, conjuntinhos ajeitados — com as tetas vulcânicas da assistente da
vez.
“O serviço mais discreto e exclusivo de encontros sociais”, anunciava a
webpage. “Contamos com modelos, ganhadoras de concursos de beleza e estudantes
que cumprem os mais altos requisitos de inteligência, beleza e encanto. Cada uma
de nossas escorts é produto de uma história excepcional e de sucesso por direito
próprio.” E, fechando, uma lista de preços que iam das três estrelas de Victoria ou
Adele (mil dólares por hora com um serviço mínimo de duas) às sete de Andrea ou
Cécile (de 2 mil a 3 mil dólares por hora). Nada de bundinhas obscenas, nada de
decotes pornográficos, nada de coxas indecentes. O Emperors Club VIP apostava não
apenas nas garotas mais sofisticadas da cidade, mas também nos clientes mais
sofisticados. Seus perfis as descreviam como artistas, empresárias ou acadêmicas:
“modelo, atriz, cantora e especialista em relações públicas”; “criou e vendeu um
fabuloso spa em Manhattan antes dos vinte anos”; “bailarina clássica com
arrebatadores olhos azuis”; “concertista de piano desde os sete anos, dona de uma
inteligência excepcional”. Alto padrão.
Na opinião dos donos — um buldogue russo e sua namoradinha de vinte e
dois anos —, o negócio era tão legal quanto um cibercafé, pois, exatamente como
explicavam às jovens que lotavam seus castings, eles apenas facilitavam o contato
com os solitários políticos, extenuados empresários ou tensos investidores de Wall
Street que recorriam aos seus serviços. Nada de sexo — as garotas eram proibidas de
mencionar o que acontecia nos quartos —, pura e simples companhia. Além disso, o
Emperors Club VIP faturava suas contas em nome do Gotham Steaks e recebia
transferências através de duas contas localizadas nas Ilhas Cayman. Discrição
garantida. Como não se atrever a uma ligaçãozinha?
— Alô?
— Pode me dizer seu nome — uma voz infantil do outro lado da linha.
— Terry — responde o cliente, meio perturbado.
— O que procura, Terry?
— Vocês têm alguém… disponível?
— Do que você gosta?
— Como devo pagar? E onde nos encontraríamos?
Terry, sim, era esse Terry.
O desgraçado do ex-marido de Susan. Como muitos clientes novos, eu o
imagino tão abobalhado pela ansiedade quanto pela testosterona. O infeliz precisa
saber com detalhes como funciona o clube, só então estará disposto a se registrar e
pagar. Depois de meia dezena de contatos com a recepcionista — Aileen Duchamp,
94-58-90, a namoradinha do dono —, Terry finalmente se convence de usar seus
serviços.
Agradavelmente satisfeito por Charlize, uma loirinha minúscula, vinte e três
anos, 89-58-92, de claríssimos olhos violeta, meu ex-genro se transforma em
habitué. Quanto demora para compartilhar o achado com seu novo compadre, o
procurador-geral de Nova York que (diga-se de passagem) era obrigado a perseguir
os círculos de prostituição tanto quanto os tubarões de Wall Street? Vikram me faz
chegar os primeiros informes de que Strauss se tornou viciado no Emperors Club
VIP na primavera de 2006. Como os espiões comunistas, se vale de um nome em
código para mascarar sua clandestinidade erótica: Georges Renard. Francês? “Meus
avós”, dizia às garotas mais curiosas.
Segundo o que acabaria sendo divulgado nos mais grosseiros tabloides e talk
shows do planeta, Georges Renard não era um cliente sensível ou educado, como se
esperava de alguém disposto a pagar até 5500 dólares por hora com uma das novas
Modelos Top promovidas pela agência. Diferentemente de Terry, que procurava
certa distração em suas escapadas, Renard usufruía de uma vida familiar
completamente satisfatória — assim devia declarar — e seus deslizes obedeciam a
“um puro impulso físico” e à sua “imperiosa necessidade de controlar o estresse”.
Nada de romantismo, nada de small talk, nada de fantasias. Como chegou a dizer a
Eva, uma das poucas escorts que não se queixaram de seu tratamento: “wham e bang
sem necessidade de obrigado, ma’am”.
Segundo Sheila, a responsável por combinar os encontros para o Emperors
Club VIP, certa manhã atendeu a ligação do sr. Renard, que solicitava uma garota
para ir ao seu quarto do Waldorf Astoria imediatamente. Orgulhosa de sua eficácia,
Sheila fez os acertos e Hélène, 95-63-94, chegou ao meio-dia. Menos de quatro
horas mais tarde, Renard exigiu uma nova acompanhante, Milly, 88-58-90, que
voou rumo ao seu quarto por volta das quatro. Mais uma, Raquel, 95-64-98, foi
convocada às oito da noite. Mesmo alguém com o pedigree de Sheila ficou
impressionada. À medida que a carreira do Strauss se tornava mais aplaudida e suas
tarefas como procurador-geral mais prementes — entre elas, me acusar de fraude
—, os apetites de Renard se intensificavam e logo requereu um novo serviço, viagem
de um ou dois dias com as garotas. Nenhum problema, senhor. Só que tudo tem
um preço, e os pagamentos se tornaram mais difíceis de justificar. Sempre
habilidoso, Strauss criou uma empresa-fantasma cuja única atividade consistia em
repassar os depósitos.
No pegajoso meio-dia de 8 de maio de 2008, um grupo de policiais federais,
encabeçados pelo atlético detetive Harrington, apareceu nos escritórios do
procurador-geral de Nova York para investigar uma empresa que, segundo os
registros do sistema tributário, tinha transferido importantes quantias para uma
conta offshore associada a uma rede de prostituição. “Um importante político está
envolvido no caso”, advertiu. Não passaram nem três dias antes que os bancos que
fizeram os envios revelassem o nome do sujeito. Antecipando um caso não apenas
de lenocínio, mas também de malversação, o FBI se apressou a vigiar todas as
transações de Strauss e obteve uma ordem judicial para grampear os telefones do
Emperors Club VIP.
Em 15 de junho — tremenda coincidência: um dia antes que Strauss
apresentasse a acusação contra o JV Capital Management —, Georges Renard
marcou uma viagem a Buffalo com a garota mais cotada do Emperors Club VIP,
uma deliciosa, infantil e “tremendamente sexy” aspirante a cantora chamada
Rebecca Saunders Smith, vinte e um aninhos, 94-61-93, que respondia pelo nome
artístico de Sienna Mignon (futura capa da Playboy, agosto de 2009). Segundo o
relatório do FBI, às três da tarde Renard entrou em contato com Sheila para saber se
seu pagamento tinha sido processado a tempo e esta lhe confirmou que seu “pacote”
estava em trânsito. Às dez da noite, Sienna subiu pelo elevador do Hotel Sheraton
rumo ao quarto 206. “Na verdade simpatizei com ele desde o começo”, declararia a
modelo em uma entrevista em horário nobre. “Ele se comportou muito bem,
conversamos um pouco e me ofereceu um drinque. A única coisa estranha foi que se
negou a tirar as meias.” As meias! Que golpe de mestre, Vikram! Eu não teria
pensado nisso!
Em 16 de julho, o FBI irrompeu nos escritórios do Emperors Club VIP, uma
pocilga que não fazia jus ao nome, e prendeu o buldogue e sua namoradinha sob a
acusação de prostituição e lavagem de dinheiro. Sendo justos, não havia razão para
que os nomes dos clientes se tornassem públicos. Com duas notáveis exceções: o
investidor Terry Wallace e o procurador-geral Eliah Strauss. Por que o FBI tornou
público um relatório de quinze páginas que detalhava apenas as atividades destes
dois frequentadores do Emperors Club VIP? Excesso de zelo, imagino. Dessa vez, a
justiça parecia verdadeiramente cega. Quando o New York Times colocou em sua
webpage a manchete “Strauss ligado a uma rede de prostituição”, acabou para
sempre com a carreira do xerife de Wall Street. Seu posterior martírio público, cujos
acidentados pormenores não me rebaixarei a detalhar, talvez não tenha servido para
deter as investigações contra o JV Capital Management — algo que eu nunca teria
pretendido —, mas pelo menos me concedeu a coisa mais valiosa que Vikram e eu
precisávamos então: um pouco mais de tempo.

DUETO (COM CORO DE ESPIÕES)

A neve se espatifava nas vidraças quando Leah finalmente estendeu diante de


mim o resultado final do seu trabalho: um breve relatório de umas vinte páginas. A
tênue luz do cômodo acentuava os ângulos do seu rosto, mas não consegui discernir
nele uma expressão de vitória ou de satisfação, só uma suave melancolia. Segurei o
documento entre os dedos como se fosse um lenço e o deixei flutuar sobre a mesa.
— Então aqui estão todas as respostas — ironizei.
Leah tiritava. Tinha chegado havia alguns minutos e eu não deixei que fosse se
trocar, praticamente arranquei seu casaco e a arrastei para a biblioteca. Servi um de
seus chás dietéticos para que se aquecesse. Mais de perto, parecia tensa e cansada,
mas imaginei que a perspectiva de ligar os últimos pontos desta história de traições e
mentiras a tinha deixado tão vazia quanto a mim.
— Apesar de todos os nossos esforços, só conseguimos rastrear quatro
telegramas do Projeto Venona nos quais pudemos identificar Noah. — Sua voz
cavernosa parecia a de uma anciã. — Confirmam o que já sabíamos: sua
participação no círculo de Silvermaster durante os anos da guerra.
Não posso dizer que minha decepção fosse imensa: acabara me acostumando à
ideia de que meu pai não deixaria de ser a sombra esquiva que eu carregava desde a
infância. Acomodei-me em uma cadeira e, como um paciente em estado terminal,
esperei o temido diagnóstico.
— Vou lhe contar como funcionava o sistema de criptografia que os soviéticos
usavam para transmitir suas mensagens a Moscou — Leah pegou algumas folhas de
papel e as estendeu diante de nós. — Primeiro, o oficial de inteligência escrevia a
mensagem que devia enviar da forma mais sucinta possível e procedia a substituir os
nomes próprios por palavras em código. Depois, valendo-se de um livro de códigos,
o oficial convertia o texto em grupos de quatro números que podiam representar
sílabas, palavras, frases ou mesmo sinais de pontuação.
— Continue.
— Uma vez recebido em Moscou — seu tom se tornou vacilante —, o oficial
de inteligência da KGB ou do GRU empreende a sequência inversa, usando uma
caderneta de conversão única idêntica à de seu colega nos Estados Unidos. Um
sistema, como lhe digo, inexpugnável. Só que quando Hitler decidiu romper a
aliança com Stálin e invadiu a União Soviética de surpresa, os especialistas russos
não conseguiram produzir o número suficiente de cadernetas e, em uma manobra
que se revelaria catastrófica para a segurança de seu sistema, passaram a copiá-las e
usá-las mais de uma vez. Depois de alguns anos, a equipe da NSA acabou decifrando
este processo, mais tarde se apropriou de uma caderneta de conversão descoberta
pelo exército durante a libertação da Europa e finalmente conseguiu reproduzir
grandes quantidades de distintos livros de código.
Como uma aluna que conseguiu as melhores notas da classe, Leah cruzou os
braços. Não sei se esperava um prêmio ou um parabéns.
— Comecemos com os Rosenberg — propus.
Minha mulher reordenou os papéis e cravou o olhar neles.
— Os telegramas do Projeto Venona demonstram que Julius trabalhava para os
russos desde os anos 1930 — estalou os dedos. — Vinte e um telegramas
transmitidos pelo NKVD entre 1944 e 1945 se referem ao seu trabalho como
informante. Os primeiros, de maio de 1944, mencionam que sua rede se encontrava
ativa e bem azeitada.
— E foram eles que entregaram os planos da bomba aos russos?
— Não — a voz de Leah se tornou mais firme, mais severa. — Os telegramas
confirmam que isso foi obra de Harry Gold e Klaus Fuchs, mas é indiscutível que
Julius recrutou seu cunhado, David Greenglass, que então trabalhava como técnico
no Laboratório de Los Álamos, para que compartilhasse com ele dados sobre o
Projeto Manhattan.
— E Ethel?
— Só existe um telegrama em que figura o nome dela. Ali se destaca que,
embora fosse uma devotada comunista, não desempenhou nenhum papel na
conspiração. Segundo os telegramas soviéticos, Julius foi afastado da rede em
fevereiro de 1945.
— E então por que ela foi sentenciada?
— O irmão a acusou — as veias do pescoço de Leah saltaram. — A fim de
obter imunidade absoluta para sua mulher, Paul testemunhou contra Ethel…
Inventou as acusações, ou pelo menos as exagerou.
— Vendeu-a para se salvar…
— Ethel nunca deveria ter sido julgada e muito menos condenada à cadeira
elétrica. Se o governo tivesse mostrado os telegramas durante o julgamento, no pior
dos casos Julius teria sido sentenciado a alguns anos de prisão e Ethel teria sido
absolvida.
Minha mulher desabou por um segundo, repentinamente afetada por aquelas
mortes longínquas. A antiga Leah, a Leah que defendia todas as causas nobres,
reapareceu por um instante. Em compensação, eu não consegui me sentir
comovido. Alguma coisa me impedia de simpatizar com aqueles comunistas, por
mais injustas que tivessem sido suas condenações.
— E Hiss? — me impacientei.
— Dezenas de telegramas fazem referência ao seu desempenho como espião.
Um telegrama de 1943 confirma que ele se reuniu com o agente A (ou seja, Isjak
Ajmerov) para lhe entregar informação do Departamento de Estado — Leah
examinou suas anotações e tomou ar. — Outro estabelece que, a fim de premiar
seus esforços contra o fascismo, quatro agentes foram compensados com lindos
tapetes persas, entre eles Hiss.
— Então o maior mentiroso da história americana afinal era Alger… E nosso
amigo Glasser?
— Também não há dúvidas sobre sua participação no círculo. Um telegrama
de 1944 diz: “Harold Glasser é um velho camponês”, o que demonstra sua
militância no Partido. Por volta de 1937, quando já estava empregado no Tesouro,
seu controlador soviético o enviou à célula de Chambers para garantir o acesso a
Harry White.
— E os outros?
— Pelo menos 85 telegramas transmitidos entre 1942 e 1945 fazem referência
ao círculo de Silvermaster — confirmou Leah. — Nathan e sua mulher Helen,
Ullmann, Silverman, Coe, Currie, Adler…
— Todos eram agentes comunistas.
— Todos.
Leah levou um dedo à boca e arrancou um pedaço da unha.
— Outros telegramas confirmam que Helen Silvermaster colaborava com o
marido e mencionam a remuneração que os dois recebiam dos russos, assim como a
entrega em 1944 de um bônus adicional de trezentos dólares.
— Os comunistas cobravam propinas…
— Ullmann aparece em 24 telegramas, e Silverman em doze. Nove telegramas
fazem referência a Currie, e outros tantos documentam a participação de Coe e
Adler no aparelho.
— E White?
Leah levou a mão ao peito.
— Você está bem? — perguntei.
— Quinze telegramas mencionam White entre 1944 e 1945 — em seu
semblante surgiu uma careta dolorosa. — Em um deles, se oferece para assessorar
Moscou sobre como tratar o governo polonês no exílio e afirma que os Estados
Unidos acabarão aceitando a anexação soviética da Estônia, Letônia e Lituânia.
Outro, de 1945, estabelece que, como delegado na Conferência das Nações Unidas
de San Francisco, White se encontrou com agentes soviéticos para fornecer
informação sobre a estratégia dos Estados Unidos. Outra mensagem confirma que
recebeu um dos tapetes persas como reconhecimento pelos seus serviços. Um texto
mais contundente se refere ao desagrado de Silvermaster ao ficar sabendo que White
fora contatado diretamente pelo NKVD sem sua intermediação. E uma mensagem de
agosto de 1944 informa o seguinte encontro de White com seu contato soviético —
Leah não evitou a tentação de ler isso em voz alta:
“No que respeita às técnicas para o seu subsequente trabalho conosco,
Advogado diz que sua esposa está disposta a qualquer sacrifício; ele próprio não se
encontra preocupado por sua segurança pessoal, mas um vazamento poderia derivar
em um escândalo político e no descrédito de todos os aliados do novo curso, por
isso deve ser especialmente cauteloso. Perguntou até onde ele poderia [trecho
indecifrável] seu trabalho conosco. Respondi que deveria parar. Advogado não conta
com um apartamento adequado para nossos encontros; todos os seus amigos têm
famílias. As reuniões devem se realizar em suas casas cada 4-5 meses. Propõe
conversas infrequentes, que não durem mais de meia hora, enquanto dirige seu
automóvel.”
— Embora ofereçam alguns detalhes inquietantes — admiti —, na verdade
esses telegramas só confirmam o que já sabíamos…
— E finalmente chegamos ao seu pai — seu tom se tornava cada vez mais
claro. — Como eu disse, finalmente só achamos quatro telegramas que se referem
de maneira específica a Noah. O primeiro, de setembro de 1942, se limita a
confirmar que pertencia ao círculo de Washington — Leah desdobrou uma folha
diante de mim e leu:
“Hoje Raposa procedeu a entregar a Robert (Silvermaster) a informação
solicitada sobre o empréstimo ao governo chinês.”
— A mesma coisa que diziam os arquivos russos — observei.
— O segundo é um pouco mais explícito. Afirma que Noah transmitiu aos
russos o estado do Acordo de Empréstimo e Arrendamento para a Grã-Bretanha,
auxiliado por um agente não identificado — nós dois lemos em uníssono:
“Depois de um atraso devido a razões familiares, Ángel nos transmitiu os
documentos de Raposa relativos a [texto indecifrável] e ao plano econômico para
auxiliar os britânicos.”
— A terceira mensagem, de julho de 1944, parece fazer eco às preocupações do
círculo de Washington com respeito a Silvermaster. E outra vez aparece o nome
deste outro agente:
“Raposa manifestou a Albert (Ajmerov) suas reticências em continuar
trabalhando com Richard (Silvermaster). Acusa-o de colocar o aparelho em perigo e
de ter um comportamento cada vez mais instável. Albert lhe prometeu intervir no
assunto. Raposa disse não estar disposto a continuar a menos que mude o estado de
coisas e [passagem indecifrável]. Albert confirma que, diferentemente de Raposa,
Ángel continua realizando seus envios de maneira regular.”
— Ángel — repeti.
— Por último, um telegrama de junho de 1945 aponta a ruptura definitiva de
seu pai com Silvermaster:
“Faz mais de quatro meses que Richard não faz contato com Raposa. O grupo
de Babilônia (Washington) está foragido. Somente Ángel se mantém em contato
com Albert e lhe prometeu falar com Raposa para tranquilizá-lo.”
— E quem diabos era Ángel? — perguntei.

CORO DOS BANQUEIROS

Os sintomas do mal não podiam mais permanecer ocultos. Os parasitas que


Vikram e eu incubamos no setor de derivativos financeiros do J.P. Morgan tinham
carcomido os esqueletos de todas as instituições de Wall Street. O Bear Stearns, o
mais frágil dos grandes bancos de investimento, tinha sido o primeiro a cair. Mas a
sangria não seria estancada. Encerrado comigo no nosso bunker do oitavo andar,
onde forjávamos aquela vida paralela que nos unia na cumplicidade do crime e do
quarto, Vikram se esforçava em vão para traçar um modelo que não significasse o
iminente final do JV Capital Management.
— Se o governo não interferir, as outras peças de Wall Street cairão umas atrás
da outra — resumiu. — E nós com elas.
Era segunda-feira, 8 de setembro de 2008, uma semana antes da hecatombe. A
contagem regressiva tinha começado.
— É uma loucura — Vikram brincava de colocar e tirar o grosso anel de ouro
que eu tinha lhe dado no nosso aniversário. — Em julho, os reguladores garantiram
que a Freddie Mac e a Fannie Mae estavam com suas contas saneadas. E agora
anunciam que precisam de mais 200 bilhões para não declarar falência. Imagine o
que deve estar escondido nos livros de outros.
— Começando pelo Lehman — disse.
— Começando pelo Lehman — repetiu.
Enquanto boa parte dos nossos colegas apenas começava a se mexer depois de
suas aprazíveis férias de verão, nós estávamos de volta à cidade desde meados de
agosto. A pegajosa umidade daquelas semanas não colaborava para nos relaxar.
Aplicadas ao Lehman e em geral a todos os nossos sócios, as fórmulas de Vikram
resultavam alarmantes, quando não catastróficas. A menor perturbação nos
mercados colocaria em xeque todo o sistema financeiro, devorado desde dentro
pelos nossos vorazes derivativos hipotecários. Se o Lehman caísse, o JV Capital
Management não demoraria nem uma semana para seguir seus passos.
— Não imagino como pensam equilibrar a balança de pagamentos do Lehman
em tão pouco tempo — Vikram mexeu no cabelo. — Mas o mais estranho é que,
exceto nós, ninguém parece se dar conta do perigo.
— Isso porque, diferentemente destes hipócritas, nós sabemos qual é o estado
dos nossos livros — admiti.
O cinismo era meu único escudo frente à realidade das nossas contas. A
equação era simples: quebra do Bear Stearns + pânico generalizado + quebra da
Fannie Mae e da Freddie Mac + pânico generalizado + queda do Lehman + pânico
generalizado + quebra do JV Capital Management = fuga ou prisão. Nem com toda
a sua astúcia Vikram seria capaz de urdir um universo menos tenebroso.
— Dizem que Bernanke está trabalhando em várias iniciativas para salvar o
Lehman — murmurou.
Mesmo nos momentos de desespero, Vikram parecia impassível e atlético; seus
músculos se tonificavam e o deixavam brilhante como uma estátua.
— Isso só significa que o presidente do Federal Reserve não tem a mínima ideia
do que fazer — traduzi.
— Se Dick Fuld não conseguir articular um acordo similar ao que chegaram
com o Long-Term, não acredito que o Lehman chegue ao próximo fim de semana
— sentenciou meu amigo com aparente equanimidade.
Quando fazia previsões como esta, Vikram raramente errava. Seus olhos muito
pretos eram como dois planetas prestes a explodir.
— Fuld é mais teimoso que uma mula — bati na mesa. — Vai tentar conservar
seu banco até o final. E desperdiçará o pouco tempo que resta para encontrar um
comprador.
Na manhã de 10 de setembro, Dick Fuld convocou uma coletiva de imprensa
para acalmar os investidores. Vikram e eu a acompanhamos ao vivo por um circuito
fechado de televisão. O rosto azedo do CEO do Lehman não era animador, como se
na firmeza de suas palavras e gestos empolados se provesse uma fera encurralada.
Perorou ao longo de mais de meia hora, dizendo que reduziria aqui, que venderia lá
e que tornaria não sei o quê mais eficiente ainda mais à frente, sem expor uma única
ideia clara sobre a verdadeira situação do banco. Atrás dele, as imprecisas letras com
o nome do Lehman eram uma infame réplica do vazio de suas palavras.
— Você ouviu? — escandalizou-se Vikram.
— Boas intenções e nem uma única medida concreta — eu estava furioso. —
O energúmeno não fez mais que se pavonear.
Naquela noite dormi no novo loft de Vikram, um galeão branco e impoluto
que em nada lembrava seu colorido estúdio de Chelsea. Necessitava que me
amarrasse à cama e me penetrasse com violência. Mas desta vez o orgasmo não foi
libertador: me esvaziou, mas não purgou meu espírito. Mal consegui dormir. Pela
primeira vez, a necessidade de contar a Leah e aos meus filhos o que de fato
acontecia no sancta-sanctorum do JV Capital Management se tornava inadiável. A
raiva de Isaac seria o de menos. Mas como enfrentar as expectativas de Leah e a
fragilidade de Susan?
Quando me levantei, um tênue raio de luz iluminava as costas nuas de Vikram.
Não me serviu de consolo pensar que pelo menos poderia despertar todas as manhã
ao lado dele. Assim que chegamos aos nossos escritórios, perto das oito, comecei a
digitar insistentemente o número de Fuld. Depois do fiasco da coletiva de imprensa,
o desgraçado não podia se recusar a falar comigo, mesmo que fosse por alguns
míseros segundos.
— Está tentando de novo? — Vikram me olhou de esguelha perto do meio-
dia.
Na enésima tentativa, Fuld finalmente atendeu minha ligação. Assim que
expressei minha preocupação diante das últimas notícias, o fanfarrão se lançou em
uma argumentação interminável, insistiu em que o Journal tinha exagerado suas
dificuldades, que os abutres da imprensa procuravam destruí-lo (isso era verdade) e
que o Lehman resistiria até o final. Sua agressividade soava a simples desespero.
— O que ele disse? — perguntou Vikram.
— Me mandou ao inferno e desligou o telefone — resumi.
Meu amigo mostrou os dentes brancos e brilhantes no mais próximo de um
sorriso que tinha visto nele em semanas.
— Dizem que tanto o Bank of America quanto o Barclay’s querem comprar o
Lehman — inclinou a cabeça.
— Isso é porque ainda não estudaram os números deles — comecei a detestar
meu próprio pessimismo.
Quase me pareceu cômico constatar que ao nosso redor tudo parecesse tão
anódino, tão normal. Nas telas e nas webpages da Bloomberg, da CNBC ou da CNN
os comentaristas financeiros continuavam nos instruindo sobre a próxima
recuperação do mercado, enquanto brokers e investidores perseveravam nas suas
tarefas cotidianas, alheios ao risco atômico que se abatia sobre suas cabeças.
— Se o governo organizar um resgate provocará uma enorme indignação entre
as pessoas comuns — sentenciou Vikram. — Como justificar diante dos cidadãos
que a má gestão de alguns gerentes deve ser reparada com seus impostos?
— Não duvido, mas a outra alternativa seria imensamente pior — engoli em
seco. — Se o Tesouro e o Fed não conseguirem que os chefões de Wall Street
salvem o Lehman, serão estas mesmas pessoas comuns que pagarão de seus bolsos.
Novamente decidi passar a noite com Vikram, uma situação que nada teria de
anormal — costumávamos dormir juntos duas ou três vezes por semana — exceto
por um detalhe novo: a gravidez de Leah. Infelizmente, era impossível permanecer
ao lado da minha mulher sabendo que sua única preocupação nessas horas incertas
era o feto que se remexia em suas entranhas.
No sábado 12 de setembro, Vikram e eu nos encerramos desde cedo no nosso
bunker. Apesar de uns poucos quants que ruminavam suas fórmulas e relatórios no
andar de baixo, nossa sensação era a de sermos os últimos habitantes do planeta.
— Minhas fontes me informam que o Bank of America preferiu chegar a um
acordo com o Merrill Lynch — contou Vikram enquanto mastigávamos uns
sanduíches na hora do almoço. — Isso significa que a sorte do Lehman ficou nas
mãos do Barclay’s.
— Não vai sair nada dali, você vai ver — cobri o rosto com as mãos.
No domingo voltamos a nos aquartelar desde cedo, conscientes de que não
teríamos o dia de folga. O governo tinha chamado ao edifício do Federal Reserve de
Nova York todos os mandachuvas de Wall Street. Estavam ali com uma única
missão: ressuscitar o Lehman Brothers. Que estranha sensação de testemunhar, de
longe, o naufrágio do nosso mundo! E que paradoxo sentir que eu tinha contribuído
para destruir o capitalismo de maneira mais efetiva que todas as conspirações do
meu pai comunista!
— O Barclay’s insiste em que, se não houver dinheiro do governo como
garantia, não se arriscará com a compra do Lehman — resumi a Vikram depois de
falar com outro dos nossos contatos no Fed.
Embora Geithner tivesse proibido os celulares, um de seus assistentes
trabalhava para nós e conseguiu nos manter informados do que acontecia no edifício
do Federal Reserve de Nova York praticamente em tempo real.

Paulson (olhando para o céu), Bernanke e Geithner.

— O problema é que não há maneira de calcular com precisão o montante das


hipotecas subprime que o Lehman carrega — Vikram não parava de digitar em seu
computador portátil, absorvido por aquela realidade virtual que para ele constituía a
única realidade verdadeira.
— Paulson e Geithner estão tentando reunir 35 bilhões para comprar os ativos
tóxicos do Lehman.
— Acha que vão conseguir?
— Teoricamente ainda é possível — distingui um tom de angústia na minha
resposta. — Ao que parece chegaram a um acordo preliminar, embora ainda seja
frágil. Mas isso não servirá de nada se não houver recursos públicos na jogada.
— Funcionará?
— Quer minha opinião sincera, Vik? — dei a volta na mesa e o abracei por
trás. — Acho que chegou a hora de fazer as malas.
Não passaram nem cinco horas antes que meus prognósticos se confirmassem.
Depois de outras três ou quatro chamadas telefônicas confirmei que o acordo com o
Barclay’s tinha ido à merda.
— Os reguladores britânicos não aprovaram a operação por não contar com
garantias do governo. E Paulson não está em condições de dá-las.
— Então é o fim…
Com sua habitual moderação, Vikram foi para a sua mesa e se dedicou à tarefa
de salvar o que ainda pudesse ser salvo do JV Capital Management. Alguns milhões
aqui e ali, transferidos para contas offshore em nome de amigos e testas de ferro,
apenas o suficiente para facilitar a nossa fuga. Perto das sete da noite, nossos
informantes deram a notícia de que o governo deixaria que o Lehman Brothers, o
quarto maior banco de investimento do mundo, declarasse falência. Nas imediações
do Fed, o distrito financeiro de Nova York parecia tão desolado quanto em qualquer
outro domingo. Os escassos turistas que àquela hora ainda peregrinavam rumo aos
escombros do World Trade Center não podiam adivinhar que a alguns passos estava
para acontecer uma catástrofe talvez mais drástica que a do Onze de setembro.
— O presidente da SEC acaba de ligar para o Fuld para lhe comunicar a notícia
— me agarrei a Vikram.
Durante as horas seguintes meu amigo se concentrou em planejar nossas rotas
de fuga. Só então decidi que tinha chegado a hora de compartilhar meu segredo
com ele. Tremiam-me as mãos.
— Leah está grávida — disse apenas.
Não detectei nenhuma expressão de surpresa ou indignação no seu olhar denso
e penetrante. Talvez uma piscada mais prolongada que o habitual.
— E o que pensa fazer? — seu tom neutro me apaziguou.
— Ela decidiu ter — confessei. — Peço-lhe que faça os acertos para que
possam viver sem contratempos.
— E nós? — apertou minha mão.
— Nós temos que nos apressar.

ÁRIA DE NOAH

Um céu espectral, sem o menor sinal de luz. Imagino você diante da janela,
com os olhos bem abertos, obcecado com essa escuridão sem paliativos. Você voltou
a acordar às cinco da manhã como todos os dias desde que partiu. Ao distinguir os
primeiros reflexos da alvorada, deita-se outra vez na cama. No armário descansam os
três ou quatro ternos que, apesar dos últimos pedidos da minha mãe, conseguiu
arrancar das mãos dela; mais à frente, em cima da mesa, uma dúzia de livros e o
estojo com seu violino. Nos últimos dias o desgosto deu lugar a uma amargura que
lhe fere o corpo dos pés à cabeça. Se antes você não conseguia resistir à ideia de que
seus esforços da vida toda foram pelo ralo, agora os últimos pilares que sustentavam
sua lucidez foram destruídos. E mesmo assim você não hesita, não se arrepende. Fez
o que tinha que fazer. Como ela. Só que, contradizendo a lealdade que exibiram
durante vários quinquênios, agora os dois ficaram encurralados.
De repente amanheceu, e o quarto se enche com uma luminosidade
incandescente que o obriga a se refugiar no banheiro. Ao longe distingue a algazarra
dos pássaros, os malditos pássaros que teimam em piar quando clareia. Você se
despe rapidamente, sacudido por uma pressa repentina. Gira a torneira, e um jato
de água gelada cai sobre sua incipiente calvície. As gotas no seu rosto não o
acordam. Uma vez fora do chuveiro você para diante do espelho, um vidro oblongo
que lhe devolve seu rosto maltratado pelas lágrimas. Odeia se ver assim, arrasado,
cada vez menos parecido com quem foi até recentemente, o cabelo embranquecido,
as maçãs do rosto proeminentes, a pele estriada, as bolsas embaixo dos olhos.
Ensaboa-se e desliza a navalha pelo pescoço e pela mandíbula: uma gota de sangue
tinge a brancura do azulejo.
Volta ao quarto e enfia as cuecas, as calças, a camisa e os suspensórios. O dia
está começando, mas você se sente fatigado, como se tivesse escalado uma encosta
interminável. Seu estômago ruge de fome, mas só pega um copo que enche duas
vezes sem se saciar. Então desvia o olhar e se detém no estojo preto, parecendo um
animal adormecido, que descansa na mesa da sala. Nem sequer sabe por que decidiu
trazê-lo para cá. Passaram anos, muitos anos, desde a última vez que o abriu e
contemplou a calada madeira que repousa dentro dele. Precisava arrancar da minha
mãe este último vestígio do seu passado? Reconciliar-se com aquela outra vida a que
teimou em renunciar? Abre o fecho como se despisse uma namorada adolescente e
levanta a tampa sem fazer barulho. Despertar a criatura que, serena e aprazível, se
mantém indiferente à sua fadiga e à sua angústia lhe inquieta. Acaricia as cordas
suavemente: uma corrente eletriza as pontas dos seus dedos e desliza veloz pelo seu
antebraço. Sem pensar arranca-o do leito e se vê afinando-o com a devoção com que
se embala um recém-nascido. Inclina o queixo para apoiá-lo — os dois se
reconhecem e se acoplam — enquanto sua mão direita levanta o arco no ar e se
prepara para extrair as primeiras notas da Partita nº. 1. Eu o imagino mais sereno
que abatido quando para de repente, deixa o violino em cima da mesa e, sem ter se
atrevido a profaná-lo, se dirige à janela.
DUETO DA VERDADE

Quando a limusine me deixou na porta da residência — um tosco bloco de


areia em um pântano —, ainda se notavam os estragos causados pelo Veronica:
arbustos retorcidos, palmeiras partidas pela metade, a folhagem enlameando os
jardins e o cheiro embriagante, acidulado, de terra molhada e troncos podres. A pele
parda do céu, com adornos arroxeados, se abria para dar passagem a um raio de luz
que só os mais lerdos não identificariam com a brincadeira de um deus. Não tinha
paciência para esperar que chegasse a hora de visita. Cumprimentei a recepcionista
com uma piscada e, sem trocar nem uma palavra, coloquei uma nota de cem dólares
diante de seu nariz. A mulher a embolsou sem se ofender e fixou sua atenção no
programa de concurso — Quem quer ser um milionário? —, cuja enjoativa melodia
escapava da televisão escondida debaixo de sua mesa de trabalho.
Mais que um aprazível lar para idosos, o lugar parecia um cemitério
abandonado. Nada se mexia naquela hora posterior ao lanche, ninguém circulava
pelas salas comuns nem andava pelos corredores, como se as colegas da minha mãe
tivessem decidido nos conceder a solidão que merecíamos. Nem sequer precisei
bater: vi sua porta entreaberta, como se esperasse minha visita. Avistei suas costas
encurvadas sobre o parapeito, sua bata florida, seu cabelo branco e impecável. Devia
se confortar observando como a noite devorava os últimos despojos do dia.
— Chega tarde — virou-se para mim.
Seus olhos me percorreram com desaprovação.
— Você ganhou uns quilos, não? — sentou-se na cama e me indicou uma
cadeira de madeira em um canto.
— Como vai?
— Melhor que nunca — riu com delicadeza. — Aceita uma xícara de chá?
— Obrigado, estou bem.
Deveria dizer que imediatamente começamos a conversar, mas na minha
memória a cena inteira se desenvolve em câmara lenta, com um ritmo amortecido
pelo mormaço da noite. Não parecia mais velha nem mais enrugada que de
costume, mas em sua maneira de me encarar descobri uma ternura desconhecida. O
efeito se dissipou assim que acendeu uma lâmpada ao lado da cama, e o perfil de seu
nariz se tornou mais proeminente e anguloso, devolvendo-lhe sua dureza natural.
— Imagino que acha que já sabe tudo, não? — sua voz era mais suave, mais
doce do que nunca.
— Cada dia sei mais e cada dia sei menos.
— Finalmente você se tornou sábio, filho.
Minha mãe moveu a cabeça com desaprovação. Minha impaciência lhe parecia
uma falta de respeito intolerável.
— Não quer se sentar? — suas perguntas eram como ordens.
— Não.
Sentia as coxas rígidas, como se meu próprio corpo não pudesse resistir a esta
conversa a não ser me mantendo de pé.
— Me decepciona que tenha demorado tanto tempo para entender — seu
rosto se iluminou com um halo dourado. — Conhecendo-me como me conhece,
acha que um homem, qualquer homem, teria conseguido mentir para mim durante
tantos anos?
Judith riu com malícia.
— Só te peço que não me pergunte por que ele fez o que fez — me repreendeu.
— A esta altura já deve ter feito uma ideia de quem era o seu pai.
— E você?
— Eu?
Minha mãe coçou o pulso com uma insistência que me pareceu quase histérica.
— Pelo amor de Deus, filho! — voltou a rir. — Nós dois, como dizer?,
acreditávamos. Agora é difícil entender isso, já não restam muitos de nós.
— Noah te convenceu desde o começo?
— Como você pode ser tão esperto e tão bobo ao mesmo tempo — o barulho
de suas unhas na sua pele me enlouquecia. — Eu nunca fui a mocinha ingênua da
história.
Um fio de luz atravessou a janela e, como quando eu era criança, nós dois
prendemos a respiração até que se produziu o trovão.
— Seis segundos — arrisquei. — Deve ter caído bem perto.
— Bem perto.
— Você era Ángel, certo?
Minha pergunta não pareceu surpreendê-la. Baixou o olhar. De repente parecia
tão frágil, tão inocente. Tão pura.
— Trabalhavam em equipe — continuei meu relato. — Os dois acreditavam e
trabalhavam para os russos.
— Não, não para os russos, para a revolução. Para os outros — seu tom se
tornou áspero. — Ou talvez para nós mesmos, quem sabe.
Levou a mão à testa e seu rosto, vivaz e inquisitivo, se nublou. Aproximei-me
dela e rocei sua testa fria e gretada.
— Você está bem?
Minha mãe com seu contato russo.

— Só preciso descansar um pouco — segurou minha mão com força. — Volte


amanhã e lhe contarei tudo, como sempre quis, desde o dia em que seu pai entrou
na loja para comprar um cachecol e eu o levei à sua primeira reunião do Partido.
— Tem certeza de que não quer que eu fique um pouco mais?
— Estou bem, filho. Até amanhã.
Pressenti? E, no entanto, a deixei ali sozinha, em silêncio, à mercê dos
relâmpagos que incendiavam sua janela. Dei a volta, retornei à limusine e me
encaminhei para o meu desolado quarto de hotel. Liguei para Vikram e em seguida
para Leah, mas preferi não lhes dar detalhes da conversa com minha mãe. Liguei a
televisão e não demorei a cair no sono. Às cinco da manhã a vibração do celular me
acordou com a voz ofuscada e triste da recepcionista.
— Pelo menos não sofreu — disse. — Aconteceu quando estava dormindo.
Cena V. Sobre como sobreviver ao fim do mundo

ÁRIA DI BRAVURA

As nuvens têm um perfil turvo, lamacento, mas ainda não se vislumbram as


rajadas do furacão que o telejornal prognosticou. Como enfrentar, pacientes leitores,
o final desta ópera repleta de sobressaltos e quedas, de mentiras e duplicidades?
Como ligar nossos destinos carbonizados pela cobiça com aquela manhã, sessenta
anos atrás, em que meu pai se jogou no vazio para salvar um pombo? Ou aqueles
tempos cheios de grandes ideias e massacres com a prosaica catástrofe que hoje nos
angustia? Sabiam os agentes e espiões comunistas que sua utopia arrastaria rios de
sangue, que a posteridade não recompensaria seus sacrifícios e que o mundo ficaria
sob o domínio da mais simples, da mais pura das febres, esta avareza inscrita no
nosso código genético? Sabíamos nós que estávamos enchendo um balão que deveria
estourar cedo ou tarde? Sabia você, mãe, ao me conceber, que o crânio do meu pai
se espatifaria na calçada? Sabia eu que minha fuga, minha estratégica fuga, seria tão
insuperável para os meus filhos? Já disse: sabíamos e não sabíamos, sabíamos e não
queríamos saber.
Caiu Roma, caiu Constantinopla, caiu o Muro do Berlim, caíram as Torres
Gêmeas, como não haveria de cair uma ficção mais débil, mais etérea, como o
Capitalismo Global? Imaginavam o secretário do Tesouro, o presidente do Federal
Reserve e o presidente do Federal Reserve de Nova York o que aconteceria depois da
queda do Lehman Brothers? Outra vez: sabiam e não sabiam. Ou não queriam
saber. Ninguém queria saber. E, em uma das decisões mais arrepiantes já tomadas
por uma camarilha de políticos, o secretário do Tesouro, o presidente do Federal
Reserve e o presidente do Federal Reserve de Nova York — com a anuência de Bush
filho — deram de ombros e permitiram que o mastodonte se precipitasse
ruidosamente no nada. Pareceu-lhes um ato de justiça. De justiça poética, suponho,
porque a manobra resultou imensamente mais daninha e perdurável do que estes
cretinos imaginaram. Os ossos do Lehman estavam corroídos pelos nossos insidiosos
derivativos financeiros, e as metástases brotaram em todos os sobreviventes, no AIG,
no Merrill Lynch, no J.P. Morgan Chase, no Goldman Sachs, no Citibank e em
seus infinitos irmãos famosos. Incluído, obviamente, o JV Capital Management.
Um contágio sem precedentes ou, melhor dizendo, a maior transferência de
capitais já orquestrada da classe média para os multimilionários. Isso porque, além
de quebras e bancarrotas, do ostensivo suicídio de algum executivo e da depressão de
uns quantos funcionários do Tesouro, os magnatas praticamente não sofreram.
Direi mais: lucraram com a crise como antes lucraram com a bolha e, salvo alguns
bodes expiatórios (como eu), conservaram seus bônus astronômicos, seus
paraquedas dourados, suas mansões nos Hamptons e na Riviera, suas bacanais
hollywoodianas e seus carros esporte. Resgatados in extremis com o nosso dinheiro
— cortesia de Obama, o Socialista —, hoje sobrevivem graças a ele.
Não, depauperados leitores, para eles o mundo não chegou ao fim, não por
acaso são os mais fortes, os mais aptos. Outros pagaram por sua ambição e seus
erros: os senhores. A massa anônima que durante duas décadas viveu de crédito, os
pobres-diabos que acreditaram no conto de que possuir uma casa equivale a ser
dono de um castelo. Vocês, sim, perderam tudo. Primeiro lhes arrebataram suas
casinhas e suas economias, depois sua dignidade e no final até os infames serviços
públicos. “Sentimos muito, senhoras e senhores, é preciso apertar o cinto”,
repreendem-nos os políticos de direita e de esquerda, “vocês gastaram muito,
sonharam tolamente, e agora devem pagar as consequências.” E vocês acreditaram
neles — desgraçados! — e voltaram a votar nos canalhas de direita e de esquerda
que os acusavam de ser os verdadeiros responsáveis pela crise.
Dinamitadas as maiores instituições financeiras do planeta, era apenas questão
de tempo até que as ondas expansivas chegassem ao meu discreto empório. Eu sabia,
mas não queria saber, que o JV Capital Management não resistiria a este último
assalto, que nenhuma manobra dissimularia nosso elegante esquema Ponzi, a vida
dupla da empresa ou a contabilidade paralela que Vikram ajustava no oitavo andar à
margem daquela que Isaac, sempre diligente, acreditava harmonizar no nono. Já não
era questão de meses, nem sequer de semanas, mas de dias, talvez de horas, para que
nossas vísceras ficassem expostas. A única coisa razoável a fazer era fugir.
Tinham transcorrido quinze anos desde que Leah e eu começamos as pesquisas
sobre o meu pai e treze desde que teve início nosso inesperado matrimônio. Treze
anos de cumplicidade e companhia. Treze anos dedicados à ópera e a fuçar nas
chagas de Noah e seus companheiros. Treze anos batalhando para ver se eu
conseguia derrubar seu idealismo ou se ela me inoculava alguma gota de piedade
para com os pobres (o resultado se aproximava de um empate). Mesmo assim,
esperei até o último instante para revelar a ela a verdade sobre a empresa.
Estávamos havia mais de duas semanas separados — eu tinha me refugiado
todo este tempo com Vikram — quando finalmente voltei para casa. Imagino que
Leah sabia e não sabia o que eu ia lhe confessar. Disse-lhe que tinha que fugir, que
não havia outra solução. E, sem que isso aliviasse meu desgosto ou seu desprezo,
esclareci que tinha feito os acertos para que o bebê (será uma menina, me revelou
praticamente de passagem) não sofresse por minha culpa. Na verdade, acho que
Leah nunca se iludiu. Desde o início deve ter intuído que o meu dinheiro — nosso
dinheiro — não provinha apenas de fontes legítimas, mas, quando começou a
distribuir milhões nos seus projetos sociais, se esqueceu de questionar sua
procedência.
Sem dizer uma palavra, Leah se dirigiu ao escritório e voltou com um envelope
que colocou, como um testamento, nas minhas mãos. “Este, sim, é o final”, disse e
pediu que, se eu precisasse recolher alguma coisa, que o fizesse imediatamente, pois
não queria me ter perto dela e da sua filha. Chamei Susan e Isaac pouco depois ao
meu escritório e, depois de convencê-los a me dar alguns minutos de vantagem,
deslizei rumo ao primeiro refúgio tropical que me acolheu, convertido em um novo
judeu errante. Deixei para trás Leah e a criança que se acomodava em seu ventre (só
mais tarde saberia seu nome: Rebecca), deixei para trás Susan e seus altos e baixos
bipolares, e deixei para trás Isaac, aquele covarde.
Vikram e eu acabávamos de desembarcar nesta tardia escala da nossa forçada
tournée — as náuseas não me abandonaram até chegar em terra firme —, e ao nos
acomodar no nosso bangalô, meu amigo não teve ideia melhor do que ligar a
televisão. Durante as noites costumava mergulhar em seus tratados orientais ou
meditar algumas horas em silêncio (os paliativos para sua ressaca tecnológica), mas
desta vez se sentou ao meu lado e pegou o controle do aparelho. O zapping
enfrentou as mesmas bobagens de costume, tolos programas de concurso e realities
com sua pornografia de emoções, a mesma grosseria que se replica em toda parte,
até que se deteve neste sonífero que costuma ser a CNN. De repente apareceu o rosto
de Isaac em uma foto antiga, uma festa ou uma apresentação de ópera, suponho. A
expressão bruta, a gravata listrada, as mechas revoltas e os olhos azuis bem abertos.
Segundo o repórter, meus netos chegaram cedo da escola depois da visita a um
parque ou um museu. Para eles também tinham sido dias infelizes, a mudança de
cidade e de colégio, os colegas que os insultavam e intimidavam ou os tachavam de
ladrões e canalhas. Que responsabilidade podiam ter Tweedledee e Tweedledum —
ou seja, Dave e Joe — nos meus desfalques? Eu nunca me senti próximo deles, me
pareciam tão insípidos quanto a mãe e tão sem graça quanto Isaac, mas isso não os
transformava em criminosos. O chofer os deixou no jardim, eles se livraram das
mochilas e correram para a cozinha em busca de limonada. Sua mãe estava no
escritório (o emprego de advogada que teve que recuperar depois da derrota) e os
pirralhos sonhavam em dedicar o resto da tarde a pular níveis em Guerra nas
estrelas, Mario Bros ou outra miragem viciante qualquer.
Não fazia nem três meses que tinham se instalado nessa casinha de New
Hampshire, tão pobre em comparação com o apartamento de Manhattan, para fugir
dos abutres da imprensa e evitar a aversão que nosso nome gera (ainda na semana
anterior, no supermercado, uma anciã esvaziara um litro de leite na camisa do pai
deles). Os meninos subiram pelas escadas, ansiosos para dar início à sua partida,
quando perceberam uma sombra ou uma silhueta, um balanço estranho e detestável.
O maior se deteve diante da porta entreaberta, mas o pequeno entrou direto e seus
olhinhos deram com o corpo de Isaac, oscilante como uma marionete. Dave tentou
soltá-lo enquanto Joe se contorcia no chão até que seus gritos convocaram os
vizinhos. Maldito seja, Isaac!
Vidas duplas, vidas duplicadas. Talvez por isso os espiões nos seduzam tanto,
sonhamos ser outros, servindo a amos sempre cambiantes, fugindo da luz artificial
que nos dá um único nome. Tento imaginar Judith e Noah no apartamento de Park
Slope durante os primeiros anos de cumplicidade e romance. Dois jovens
desvairados, decididos a criar um mundo melhor, um mundo novo. Não zombo de
vocês, mãe, juro. Não os vejo como dois adolescentes apanhados pelos embustes
comunistas, mas como dois jovens dispostos a arriscar suas vidas — a única coisa
que têm — por algumas abstrações. A igualdade. A justiça. A fraternidade entre os
povos. Admiro-os, mãe, mesmo. Vocês confiavam no poder das palavras, como
condená-los? Adivinho suas mãos entrelaçadas, suas convicções compartilhadas, e
quase os invejo. Eu nunca poderei ser como vocês.
Pergunto-me, no entanto, até onde sua conspiração não derivou com o tempo
em outra coisa, uma rotina ou um costume, uma forma de vida tão absurda quanto
inútil. Durante os anos em que colaboraram com os russos, mantiveram o mesmo
espírito imbatível, a mesma vitalidade, a mesma entrega do início? Acreditavam sem
sobressaltos, verdadeiros místicos da sua causa, genuínos devotos da revolução? Ou
às vezes duvidavam e sentiam que sua missão talvez não fosse tão heroica? Estas
questões atormentam um incrédulo como eu. Por isso é tão difícil para mim
entender que Noah se mantivesse ao serviço dos russos enquanto subia no Tesouro e
se transformava em uma figura decisiva nos acordos de Bretton Woods e na criação
do Fundo Monetário Internacional. Reconheço que vocês dois conservavam a fé em
sua missão, mas suas escapadas para entregar documentos confidenciais a
Silvermaster ou Ajmerov me parecem cenas próprias de um filme ruim de espiões.
Não me interprete mal, mãe, sei que arriscavam a pele, só que de longe é tão
evidente que vocês perderam o jogo, com o comunismo sepultado no mais fundo
poço da história, que só consigo sentir vergonha diante da dimensão do seu fracasso.
Os arquivos de Moscou e os telegramas do Projeto Venona não deixam lugar a
dúvidas: se você era Ángel, como me confessou naquela última tarde na residência
para idosos, o fim da guerra não modificou suas convicções. Embora Noah e você
tivessem suspendido qualquer contato com os russos no final de 1945, conservaram
sua militância e seus princípios. Agora sei que você não foi a mulher ingênua que
ignorava a vida dupla do marido, mas o pilar que a manteve ativa e que, naqueles
anos de sobressaltos e ameaças, permitiu-lhes responder com dignidade às primeiras
acusações. Nessa altura a aliança com os russos se fraturou, e a Ameaça Vermelha
inchava como uma bolha, de repente qualquer um era suspeito, qualquer um podia
ser o inimigo.
Pouco depois, com White já morto e enterrado, Silvermaster e seus camaradas
foram chamados a depor diante do Comitê de Atividades Antiamericanas e calaram
ou mentiram sobre sua participação no aparelho clandestino. Depois de sua
vergonhosa saída do FMI, Noah não levantou mais a cabeça, nunca o tinha visto tão
ausente, tão sem esperanças. “De que serviu nossa luta?”, se perguntava, abatido
pelo triunfo de Eisenhower e Nixon. Mas nessa altura você ainda confiava em que
no final o FBI os deixaria em paz, a quem podia importar o que Noah fizera ou
deixara de fazer durante a guerra agora que não tinha mais um cargo significativo no
governo? Achava que finalmente ficariam sozinhos com sua humilhação e sua
derrota. O que eram vocês senão os últimos despojos da guerra? Dois peões
irrelevantes a quem só restava se resignar a uma vida dura e sem graça.
Última foto de meus pais (1953).

Dessa vez você se enganou, mãe. Os republicanos não estavam dispostos a


esquecer e se esforçaram para demonstrar que tinham razão, que a conspiração
comunista era um verdadeiro perigo e que os democratas protegeram os agentes
encobertos sabendo disso. Novas desgraças: a guerra da Coreia e a notícia de que os
russos conseguiram a bomba. Aos seus olhos, o julgamento dos Rosenberg era uma
advertência sobre o destino que tinham pela frente. A opinião pública via no casal
uns demônios que não mereciam outro destino senão a fogueira, mas você resistia a
acreditar que fossem condená-los a esta morte inenarrável. Na noite em que Julius e
Ethel foram conduzidos à cadeira elétrica, Noah não fez outra coisa além de
caminhar ausente de um lado a outro do cômodo, transformado em um
animalzinho doente, encurralado. E você, mãe? Você decidiu que não se resignaria a
essa sorte. Precisava se salvar. E precisava de mim.
A decisão de me trazer ao mundo foi seu grande estratagema. Como nos contos
do shtetl da vó, pegou seu marido, embebedou-o e seduziu-o, conseguindo que lhe
deixasse grávida. Grávida de mim: sua resposta ao medo e ao horror. Quando
revelou a Noah que ele ia ser pai, o coitado não conseguiu resistir. Desesperado e
sem forças, decidiu abandoná-la, nos abandonar. Havia maior traição que essa? Aos
seus olhos nada podia justificá-lo, nem a depressão nem o medo de ser preso nem
sua estúpida ideia de não trazer mais infelicidade a este canto do universo.
Sobreveio assim o último capítulo desta ópera-bufa repleta de mentiras e
duplicidades. Depois que, em março de 1953, o procurador Brownell ressuscitou as
acusações contra White, o FBI reativou as investigações contra seus antigos colegas e
empregados do Tesouro. Agora sim viriam atrás de vocês, pensava, agora sim não
teriam clemência. Noah e você sabiam sem saber, antecipando a tarde em que a
polícia arrombaria sua porta para algemá-los. Foi nesse momento, mãe, que você
tomou a determinação de não ser Ethel Rosenberg? Quando decidiu fazer qualquer
coisa — qualquer coisa — para escapar desse destino? Quando, emulando Elizabeth
Bentley, anotou aquele número e planejou a visita? A única coisa que desejava era
um pouco de paz, a tranquilidade para criar um filho, seu único filho. A mesma fé
que a levou a inocular em Noah a paixão pelo comunismo, e a mesma fé que
durante anos a impulsionou a entregar centenas de documentos secretos aos russos,
lhe deu forças para dar aquele passo atroz, aquele passo extremo. Agora tinha uma
responsabilidade maior que a Revolução. Agora era responsável por mim e nada
mais tinha importância.
Antes de terminar sua história, mãe, tenho uma coisa para lhe contar. Há
algumas horas senti minha testa latejar, talvez efeito do sol e do calor, e entrei no
bangalô em busca de uma aspirina. Em cima da mesa vi um bilhete assinado por
Vikram e as náuseas quase me fizeram cair. Corri para o quarto e constatei que
faltavam sua mala e seus papéis. Com sua letra desajeitada dizia que tinha lido
escondido estas páginas e que não aguentava mais minhas mentiras. Que tudo o que
eu tinha escrito era uma farsa. Que talvez estivesse preparando esta merda para
ampliar sua responsabilidade na gestão fraudulenta do JV Capital Management. Que
tinha me seguido até aqui, mas, se eu pensava em negociar com as autoridades, ele
não estava disposto a se transformar em moeda de troca. E que devia ir embora o
quanto antes desta ilha, cujo nome logo revelaria à Interpol. Idiota! Embora
desejasse odiá-lo por esta traição, a última e a mais inesperada nesta sequência de
traições, meu coração se mantém imperturbável. Esta ópera repleta de denúncias e
mentiras se aproxima de seu grande final e devo escrevê-lo sozinho.
Lá fora persistem as nuvens altas, agourentas, e o eco dos trovões faz vibrar os
vidros, sinais do furacão que não demorará em desatar. Finalmente ficamos
sozinhos, mãe. Volto a imaginar aqueles infelizes meses de 1953. Faz vários dias que
Noah partiu para o Queens — aquele refúgio que você insiste em pintar como uma
pocilga —, enquanto você permanece no Brooklyn, preocupada comigo, esse inseto
que se alimenta do seu corpo. Nesta manhã você se arruma como se fosse a uma
comemoração ou a uma festa, devora os restos de tcholent que se acumulam na
geladeira e se precipita escada abaixo, tão dona de si como sempre. Segundo o
expediente que Leah me enviou, roubado sabe-se lá com que artimanhas da sua
ficha do FBI — a peça final de nossas pesquisas —, você chega ao bloco do Edifício
Federal à uma da tarde em ponto. Sobe as escadas (imagino um camafeu em sua
blusa impecável) e entra na sala do agente especial Harrison, com quem conversou
por telefone seis ou sete vezes ao longo das últimas semanas. Treme? Não seria
digno de você, mãe. Da mesma forma como quando colaborava com os russos e
cumpria suas ordens com zelo, agora tampouco questiona seus motivos. A História
lhe mantém presa pelo pescoço, de que lhe serviria resistir?
Você dá início ao seu relato, precavida, esquivando nomes e lugares, mas logo
as palavras começam a brotar da sua garganta em um jorro irrefreável. Fala e fala
sem parar, sem nem sequer beber a água que o agente especial Harrison lhe oferece,
até a hora do crepúsculo. Como se precisasse condensar seu percurso, como se não
houvesse tempo para retificações posteriores, como se seu calvário fosse se esgotar
neste instante. Em troca de suas palavras, de sua infame confissão, conseguirá a paz
que tanto deseja. A partir de hoje ninguém voltará a lhe incomodar ou molestar, é o
preço pela sua paz e pela minha. Concluído o depoimento, à tarde está de novo no
Brooklyn e se concentra em tricotar um casaquinho para mim. Sem se deixar vencer
pela angústia ou pela culpa, simplesmente tece os fios em silêncio. Imaginou meu
pai a razão da nova intimação? Possivelmente soube sem saber. Ou soube e não quis
saber. E se encontrou com o pombinho.
Consegui chegar ao final desta ópera-bufa, cheia de balelas e mentiras, de
armadilhas e traições, justo quando a cortina de chuva rasga o horizonte. E agora?
Agora só resta uma coisa a fazer, não é, mãe? Seguir seus passos! Proteger Susan
como você me protegeu! Sacrificar tudo por ela! Não é essa a lição que você teria
gostado que eu aprendesse? Abandonar esta ilha e voltar para Nova York para salvar
a minha pequena!
CORTINA

Meus leitores, meus semelhantes, meus irmãos, algum de vocês se deixou


enrolar por este final falso? A esta altura vocês me conhecem bastante bem e sabem
que eu nunca poderia fazer algo assim. Agora que finalmente descobri quem foram
Judith e Noah, ninguém conseguiria acreditar que me manterei fiel a uns valores
que sempre repudiei. O amor paterno? A família? A honra? Sejamos realistas, minha
volta em nada ajudaria minha filha e me condenaria a passar os últimos anos que me
restam em uma cela com isolamento, despojado da minha música. Sem dúvida terei
que deixar esta ilha o quanto antes — a traição de Vikram não me deixa alternativa
—, mas ainda conto com recursos para me mudar para outro acolhedor paraíso
(fiscal). Uma comarca subtropical onde ninguém faz muitas perguntas e na qual já
me aguardam sócios impacientes para explorar novos mercados. Permitam-me
encerrar estas páginas, pois, com uma das linhas operísticas que sempre desejei
cantar em público:
LA COMMEDIA È FINITA

Em paradeiro desconhecido, 1º de março de 2011


DANIEL MORDZINSKI


JORGE VOLPI nasceu no México em 1968. É formado em direito, mestre em
letras e doutor em filologia hispânica. Foi professor nas universidades de
Emory, Cornell, Princeton, entre outras. É autor de diversos ensaios, contos e
romances, e seus livros foram traduzidos para mais de vinte idiomas. Foi
nomeado cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo Ministério da
Cultura da França e recebeu em 2009 o prêmio chileno José Donoso pelo
conjunto de sua obra.
Copyright © 2013 by Jorge Volpi

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
Memorial del engaño

Capa
Adaptação sobre design original de Leonel Sagahón

Revisão
Ana Grillo
Raquel Correa
Eduardo Rosal
ISBN 978-85-438-0554-2




Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ S.A.
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