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Comitê Editorial
Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Silas Borges Monteiro (UFMT)
Editoração por SUPERNOVA EDITORA
B615
Biografemática na educação: Vidarbos/ Organizado por
Sandra Mara Corazza, Marcos da Rocha Oliveira e
Máximo Daniel Lamela Adó. Porto Alegre-RS: UFRGS;
Doisa, 2015.
ISBN 978-85-66308-05-1
Cadernos de Notas 7
CDU 37
2015
11
Texto, obra e vida; vidarbo; vida e obra, texto
Sandra Mara Corazza; Marcos da Rocha Oliveira
17
Máximo Daniel Lamela Adó
25
Discurso do método biografemático
Sandra Mara Corazza
47
Autocomediografia intelectual de um educador
Máximo Daniel Lamela Adó
71
Biografemática do cotidiano
Marcos da Rocha Oliveira
97
Nada além de um rosto na janela que ninguém jamais vê
Cristiano Bedin da Costa
123
O dia em que saí à procura de Henry Miller e não voltei
mais: tentativa biografemática
Luciano Bedin da Costa
145
Tratado fragmentário do biografema – O retorno do eu, com
Barthes, Kerouac e Deleuze
Gabriel Sausen Feil
169
Viagens Guardadas, uma autobiografemática
Betina Frichmann
183
Vida-obra. Obravida. Vid’obra. Obra d’vida. Obr’ida. Vida-obra.
Que diabo. Vidarbo.
Texto, obra e vida; vidarbo; vida e obra, texto
Sandra Mara Corazza; Marcos da Rocha Oliveira
PREFÁCIO
Texto, obra e vida; vidarbo; vida e obra, texto.
Sandra Mara Corazza
Marcos da Rocha Oliveira
12 • 13
p.19-20; p.78; 2004c, p.283-284; p.292; COSTA, 2008, p.15;
FONSECA, 2009).
14 • 15
Máximo Daniel Lamela Adó
PRÓLOGO
Máximo Adó
18 • 19
atravessamentos de uma vida se entrecruzam assim como as
mitológicas serpentes que lemos, também, nos textos de Paul
Valéry; víbora que nos veste e sorrindo mostra sua língua bífida;
despreza com argúcia o veneno vil da morte douta em favor do
inimitável sabor de si-mesma. Autocriação, ouroboro, serpente
que se come pela cauda (VALÉRY, 2011).
No epílogo de El hacedor, livro de Jorge Luis Borges
publicado em 1960 e que reuniu uma miscelânea de textos seus
escritos de ocasiões e temas diversos podemos ler: “Um homem
se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos,
povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de
montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas,
de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes
de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a
imagem de seu rosto.” (BORGES, 2008, p.168) Leio esse trecho
como um espelhamento tradutório da frase valéryana do texto
“Poesia e pensamento abstrato” que diz: “Na verdade, não existe
teoria que não seja um fragmento cuidadosamente preparado
de alguma autobiografia.” (VALÉRY, 1991, p.204). Trata-se de
ver, sempre, que a vida está implicada na obra; vida e obra se
retroalimentam.
Dito isso, podemos afirmar que o que temos neste volume
é uma experimentação num conjunto fragmentário que não
almeja a busca por verdades sobre vidas e obras; não almeja um
conjunto bem juntado que leve o leitor a um núcleo sólido de
sentido. O que se evoca é algo como uma união dispersiva de
singularidades que, como em vidas e obras, algo acontece aqui
e ali, no entanto o conteúdo desses acontecimentos não se dá
a ver por imagens definitivamente bem demarcadas. Há algo
de turvo, linhas escorregadias, limites difusos, mistérios que,
no entanto, mesmo diante desse caos de traços, fazem com que
num movimento de deslizamento entre detalhes se possa ler o
tom de gestos únicos e se desembarace uma mistura de sensações
na figura de um nome, no dizer de uma obra, de seus atos ou
de modos de expressá-los. Traços que acabam por ser, também,
linhas que vão formando o rosto daqueles que as escrevem.
O conjunto começa pelo Discurso do método biografemático,
texto que dá a ver o solo conceitual e operatório da proposta.
Com ele parte-se para uma escrileitura de ordem fantasmática
em que se conjectura certa geometria de um salto que se pode dar
dos textos às vidas que os corporificam e, em reciprocidade, de
vidas que se fazem textos. Em Autocomediografia intelectual de um
Educador, lê-se um traçado autoreferencial que procura colocar
em jogo um pensamento que se constitui como hipertexto.
Tomada pela escrita joyciana Biografemática do cotidiano
apresenta treze poemaepisódios de um dia de um educador. Faz,
assim, do próprio texto um episódio poético da vida desse
mesmo que o escreve; um educador.
“Nada além de um rosto na janela que ninguém jamais vê”: Charles
Bukowski e o isolamento como presente faz suas, imagens textuais e
visuais de Barthes, Alexander Gardner, Nietzsche, Fante, Kafka
e outros para tecer com elas uma trama bukowskiana; como
se pudéssemos, por meio de um fino traçado, sentir o gosto do
último gole de cerveja, o barulho das ruas, a presença de um
rosto amigo e o ritmo de uma chuva contando-nos: Bukowski.
O dia em que saí à procura de Henry Miller e não voltei mais:
tentativa biografemática, arquiteta-se como o processo de uma
busca. Ao procurar por um Henry Miller evocado por uma
leitura comum, ou melhor, por uma leitura que fosse de todos os
seus leitores, faz dessa procura o traçado de uma singularidade
em fuga. À procura de Miller como um retorno a si; em processo.
Em Tratado fragmentário do biografema – O retorno do eu, com
Barthes, Kerouac e Deleuze lemos quarenta e cinco fragmentos de uma
adaptação, trascriadora, de inflexões a respeito do biografema.
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Viagens Guardadas, uma autobiografemática, faz ler o forjar
de uma força de distanciamento de si com elementos que lhe
são próprios. Ao coletar e dar a ver traços inventa-se uma vida;
outra. De quem a escreve e de quem a lê.
A educação, assim, entra como um espaço de forças e vontades
de vidas. Espaço jamais derradeiro, mas de inacabamentos que
acorrem a fluxos para uma liberdade de pensar e agir. Espaço
em que aborrecimentos diante da dificuldade iminente de que a
vida tome a forma de valores pré-estabelecidos, normatizações
de pensares, padronizações de todo tipo, encontram ou forçam
rachaduras para que possa devir o novo, para que haja lugar para
o desconhecido, enfim, para que a vida encontre formas de se
manter viva.
Referências
BORGES, Jorge Luis. O fazedor. (Trad. Josely Vianna Baptista.) São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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narramos o que vemos ou o que sentimos, nem agimos como
psicólogos ou psicanalistas, que se serviriam “de uma linguagem
feliz para enumerar os atributos originais de sua visão”; mas,
como escritores, criando uma metonímia desejante: “escrita
contagiosa que faz recair sobre o leitor o desejo mesmo com que
formou as coisas” (BARTHES, 1984, p.11; 2004c, p.292).
Os textos biografemáticos emitem, assim, ordens fantasís-
ticas (fantasmáticas), desde que a ideia de autor voltou à cena
com algum valor. Mas não se trata de um autor chapado em
documentos de identidade; herói das biografias; o grande nar-
cisista das autobiografias; mortos famosos; mestres imortais;
ícones de sedentos ideais-do-eu; tampouco trata-se de bio-
grafias, que funcionam como autoajuda, modelos, ou janelas
indiscretas para o voyeurismo. O autor, que salta dos textos e
entra na vida do leitor, não tem unidade, mas é plural de
encantos, lugar de pormenores sutis, fonte de vivos clarões,
canto descontínuo. Definitivamente, não se trata de uma pessoa
civil ou moral; mas de um corpo impessoal que lança um
eu, cuja individualidade é dada pela “mão corporal que es-
creve”. A substância que separa as pessoas da narração não é
de identidade, somente de anterioridade: “ele é cada vez aquele
que vai escrever eu; eu é cada vez aquele que, começando
a escrever, vai no entanto entrar na pré-criatura que lhe deu
origem” (BARTHES, 1982, p.23-24).
O Método adota de Nietzsche (1995, p.50) o processamen-
to de uma “casuística do egoísmo”, por intermédio de uma
“Vida Metódica” (BARTHES, 2005b, p.175; p.201; p.205),
encontrando-se, outra vez, com o sujeito, embora desfeito e
deformado, para readequar os planos de vida. Realiza inter-
secções entre vida e escrita, não fazendo a obra parecer-se com
a vida, mas a escrita conduzir a vida. Quanto mais fragmenta
escrita e vida, mais cada fragmento se torna homogêneo: “Um
fragmento de escritura é sempre uma essência de escritura”
(BARTHES, 2004c, p.282). Arquitetando uma tipologia dos eus
que escrevem, Barthes (2005b, p.173-174) ensina a distinguir
entre a persona (pessoa cotidiana); o scriptor (imagem social); o
auctor (fiador do que escreve); e o scribens (que vive escrevendo).
Ao fragmentar e expor a digressão – “ou, para dizê-lo por
uma palavra preciosamente ambígua: a excursão” –, o Método
dissemina traços de textos da cultura: “pertinentes e por isso
mesmo descontínuos”. Através de fórmulas irreconhecíveis,
apaga a falsa eflorescência sociológica, histórica e subjetiva de
determinações, estruturas, visões, projeções dos textos. Ostenta
textos nômades, desligados dos sentidos recebidos, que buscam
recobri-los. Recusa-se a inferir autor da obra e obra do autor.
Descreve a sua própria população, posicionado no mundo do
autor, sem fontes exteriores. Abala os sentidos do mundo, fazendo
uma interrogação indireta, que sofre abstenção de resposta
única. Afirma e substitui respostas que passam, enquanto as
interrogações permanecem, já que não para de responder ao
escrito, fora de qualquer resposta (BARTHES, 1989a, p.43-44;
2003a, p.330; BARTHES, 2008, p.VII-XI).
Dessa maneira, o Discurso afirma: a biografemática é filo-
sofia, ciência e arte, como “um jogo de imagens, de espelhos”
daquilo que é “colhido numa narrativa, num texto” (BARTHES,
2003a, p.212); quem realiza a biografemática é um biogra-
fólogo; o biografólogo coleta e cria biografemas; o biografema
produzido pela biografemática consiste em um traço distintivo,
elemento quase-unitário, que finge que revela; o biografema, a
biografemática e o biografólogo são grandes mentirosos onto-
lógicos, que emitem raios radioativos; sem documentos, não há
biografemática, nenhum biografema, nada de biografólogos;
biografemas montados, em um bastidor biografemático, resultam
numa biodiagramação (PIGNATARI, 1996); a biodiagramação
28 • 29
dá visão do conjunto de uma-vida (DELEUZE, 2007); uma-vida
não é feita com “o ‘vivido’ (o ‘vivido’ é banal e é justamente
ele que o escritor deve combater)”, nem, tampouco, com “a
razão (categoria geral adotada sob diversos artifícios por todas
as literaturas fáceis)” (BARTHES, 2004c, p. 290); por realizar “a
utopia de uma linguagem particular”, a substância de uma-vida
é constituída por espaços vazios, flutuantes, lacunas, incidentes,
punctuns; assim, uma-vida não é veraz, da mesma maneira que
a biografemática não é imaginária: trata-se da biografemática
veraz de uma-vida imaginária.
Por tudo isso, o Discurso do Método Biografemático fica e não
fica na vizinhança de um manual, de uma quimera, do anar-
quismo (FEYERABEND, 1989); não apela à heurística, “que
visaria a produzir deciframentos e apresentar resultados”
(BARTHES, 1989a, p. 42); e terá atingido as fimbrias da perfei-
ção, se fornecer energia vital àquele pensador que o experimentar.
1 Fantasia de origem
Assim como nas origens de uma pesquisa, de um ensino
e de uma cultura, também a biografemática parte da fantasia,
tomando-a como um “Guia Iniciático”, para executar um
“engendramento de formas”, que é engendramento de diferenças
(BARTHES, 1989a, p.44; 2003a, p.8; p.273; 2005a, p.22).
Mesmo que a fantasia seja apenas uma virtualidade, sua
realização, por meio de atos biografemáticos, propicia prazer,
por criar um objeto fantasístico, que “não quer ser assumido
por uma metalinguagem (científica, histórica, sociológica)”
(BARTHES, 2005a, p.117; p.23; p.29; 2003d, p.284). Dotada de
originalidade, a biografemática considera que, ao menos no que
tange à discursividade, costumamos estudar o que desejamos
ou tememos (BARTHES, 2003d, p.430). Há, assim, como no
romance, uma generosidade da biografemática, que nos leva
a amar o mundo, abarcá-lo e abraçá-lo, enquanto uma prática
“para lutar contra a secura do coração, a acídia”.
Uma pulsão amorosa colore a biografemática, porque
esta é fantasiada como ato de amor, não na direção do “Amor
apaixonado = falar de si como apaixonado = lírico”; mas do
“Amor-Agápe: falar dos outros que se ama”, “dizer aqueles que
se ama”. Pela biografemática, ama-se e escreve-se aqueles que
conhecemos, fazendo-lhes justiça, testemunhando “por eles, (no
sentido religioso)”, imortalizando-os (BARTHES, 2005a, p.28).
Escrevendo aqueles que amamos, importa considerar a
biografemática não sob a ótica dialética, “o contrário de seu
contrário racional, lógico”, nem “uma frustração vivida como
avesso”. Se os guias forem fantasias negativas, não se tratará da
oposição entre “uma imagem e uma realidade”; mas da existência
de “duas imagens fantasmáticas”, ou de roteiros imaginários,
desde que a fantasia é um “= enredo breve, enquadrado”,
“absolutamente positivo, que encena o positivo do desejo, que
só conhece positivos”. Um roteiro, como “vislumbre narrativo
do desejo”, que “se entrevê, muito recortado, muito iluminado,
mas imediatamente esvaecido”. Roteiro, pelo qual voltam os
desejos, “que se buscam em nós, por vezes durante uma vida
toda, e frequentemente só se cristalizam através de uma palavra”.
Palavra-roteiro que “induz da fantasia à sua exploração”, “por
diferentes bocados de saber = a pesquisa”, sendo a fantasia “um
filme com tomadas fixas”, explorada “como uma mina a céu
aberto” (BARTHES, 2005b, p.117; p.177; 2003a, p.9-10; p.12;
p.35).
Para haver biografemática, “é preciso haver cenário, portanto
lugar”, e a fantasia funciona como “projetor incerto”, que varre,
mesmo que de modo entrecortado, “fragmentos de mundo, de
ciência, de história – de experiências” e recorta “a cena iluminada
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onde o desejo se instala e deixa na sombra os dois lados da cena”
(BARTHES, 2003a, p.14; p.17; p.35).
Para movimentar-se, a fantasia se liga “a uma imagem
grosseira, codificada”, como o Poema, o Romance, a Biografia,
etc. Energia, ela “põe em marcha”; mas, aquilo que, a seguir,
é por ela produzido “não depende mais do Código”. Ao lutar
e se chocar com o Real – que “é o Tempo (a Duração) como
potência de atraso, de freagem, e portanto de modificação, de
infidelidade” –, a fantasia perde-se, abandona a sua “rigidez”,
“ingenuidade” e “virtualidade” (BARTHES, 2005a, p.277; p.22;
p.25; p.117), para atingir o ineditismo.
Já se vê como o querer-escrever (scripturire) da fantasia
relaciona o texto biografemático com a verdade: principia “não
pelo falso, mas quando se misturam, sem prevenir, o verdadeiro e
o falso”, vindos “da ordem do Desejo e do Imaginário”. Compõe
uma “tela pintada de ilusões, de logros, de coisas inventadas,
de ‘falsidades’: tela brilhante, colorida”. Um “véu da Maia”:
“poikilos, estampado, variado, mosqueado, sarapintado, coberto
de pinturas, de quadros, vestimenta bordada, complicada,
complexa; raiz pingo [pintar], bordar com fios diversos, tatuar”;
“um heterogêneo, um heterológico de Verdadeiro e de Falso”
(BARTHES, ib., p.224).
32 • 33
Decididamente, essa leitura acontece “por cima do ombro
daquele que escreve, como se nós escrevêssemos ao mesmo
tempo que ele”. Ao realizá-la, levantamos “a cabeça o tempo
todo para devanear ou refletir” e reencontrar, “no nível do
corpo, e não do da consciência”, como aquilo foi possível de ser
escrito. A cabeça levantada implica nos colocar “na produção,
não no produto” e ler, “senão voluptuosamente, pelo menos
‘apetitosamente’”, “fora de qualquer responsabilidade crítica”.
Encontramos, assim, um “prazer de leitura livre, feliz, guloso”,
como escrever, isto é, re-escrever o texto lido, às vezes, “melhor e
mais adiante do que o seu autor o fez” (BARTHES, 1982, p.72;
2004a, p.268-269; 1984, p.84).
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esses movimentos? Talvez, responde Deleuze (1992, p.172), “não
se mexendo demais, não falando demais” e residindo “onde não
há mais memória”; ou, responde Barthes (1979, p.14), optando
pelos “espaços vazios”, que contém alguns pormenores, gostos,
inflexões, os quais deambulam “fora de qualquer destino” e
contagiam, “como átomos voluptuosos”, “algum corpo futuro,
destinado à mesma dispersão”.
Escritura que, para substituir as crônicas das identidades
pela “biotópica de um Eu disperso e volátil” (BOYER-
WEINMANN, 2005, p.52), segue o princípio da vacilação do
tempo: abre as comportas de abalo da cronologia, subtraindo
“o tempo rememorado à falsa permanência da biografia”;
desorganiza, não o inteligível do tempo, mas “a lógica ilusória
da biografia, na medida em que segue tradicionalmente a ordem
puramente matemática dos anos”; preserva a biografia, visto
que “numerosos elementos da vida pessoal são conservados”,
embora deformados (BARTHES, 2004c, p.354).
Por isso, a escritura biografemática desvia-se de: um
enunciador: “o eu que escreve o texto nunca é mais do que um
eu de papel”; pois quem enuncia põe “em cena – ou em escritura
– um ‘eu’ (o Narrador)”, não mais “exatamente um ‘eu’ (sujeito
e objeto da autobiografia tradicional)”, civil e patronímico,
senão “um eu de escritura, cujas ligações com o ‘eu’ civil são
incertas, deslocadas”; narrativa, já que a escritura consiste em
um desejo de escrever “uma vida desorientada”, enquanto
a biografemática “não é a de uma vida”; vida mesma, pois a
escritura faz “biografia simbólica” ou “história simbólica da
vida”, que requer a escrita não de um curriculum vitae, mas de
“uma constelação de circunstâncias e de figuras” (BARTHES,
2004c, p. 72; p.354-356).
A natureza dessa escritura é feita com lembranças frag-
mentárias de linguagem que pululam. O fragmento consiste
em elevada condensação, “não de pensamento, ou de sabe-
doria, ou de verdade (como na Máxima), mas de música”,
como “a idéia musical de um ciclo”, intermezzo. Coletamos,
portanto: traços biográficos, que são aqueles que, em uma-vida,
nos “encantam tanto quanto certas fotografias” – “a Fotografia
tem com a História a mesma relação que o biografema com
a biografia”; punctuns, que consistem em detalhes, objetos
parciais vistos, registrados; pontos de referência, “chamadas
de atualidade, sintagmas prontos, pequenas ‘condensações de
saber’”, “lufadas de legibilidade, breves coágulos surgidos do
discurso dos outros”. Nessas coletas, a memória social surge,
vagueia, não fica no lugar, eclipsa-se. Produzimos, então, uma
“nova língua na língua, um grund, uma tela móvel, eletrificada”
(BARTHES, 2003d, p.109-110; 1984, p.51).
A unidade dessas experimentações de escritura é o Inci-
dente – “menos contundente que o acidente, mas mais in-
quietante” –: “minitextos, recados, haicais, anotações, jogos de
sentido, tudo o que cai, como uma folha, etc.” (BARTHES,
2003d, p.167). Incidente feito com aquilo que tomba, sem
choque, num movimento infinito, mas também que sobrevive:
“pequenas cenas, estilhaços de romance”, de linguagem, “nem
esboços, nem anotações, nem materiais, nem exercícios”. Com
esse “contínuo descontínuo do fluxo de neve”, promovemos,
amorosamente, aquilo que é tomado por um pormenor
insignificante. Tomamos pormenores precisos, descontínuos
irregulares, interrompidos, intermitentes (BARTHES, 2004c,
p.282-284; p.372) – frutos do Satori (Zen), da Kairós (céticos),
da Epifania (Joyce), do Momento de Verdade (Proust), do Ins-
tante Pleno (Diderot) – para captar “um fragmento de presen-
te”, ao vivo, “o cume do particular”, uma “picada essencial”,
“com-presença”, “ligação instantânea”, que indica “retorno da
letra”.
36 • 37
Cada incidente de uma-vida pode “dar azo ou a um
comentário (uma interpretação), ou a uma fabulação que lhe
dá ou lhe imagina um antes e um depois narrativos”. Ao ligar
e desenvolver os incidentes, tecemos “uma narrativa, ainda
que frouxa”, com os seguintes traços estilísticos: aventuras
infinitesimais; incongruência mínima; rápido deslocamento
na apreensão do cotidiano; detalhe que toca; acontecimento
minúsculo; impressão breve; diálogos descontínuos e rápidos;
dobra sutil no tecido dos dias; modo menor de enunciações não
argumentativas, mas toques, diante dos acontecimentos fortes
(midiáticos, políticos); indiferenciação temporal, que abole a
noção de duração e introduz uma temporalidade cíclica, ritual;
sobredeterminação espacial, que elimina a distância entre
enunciação e enunciado, criando efeito de simultaneidade entre
incidente e anotação; forma de escrita do presente absoluto, em
notação grau zero, necessária para escrever: “faz da linguagem
a frágil salvação de certo sofrimento” (BARTHES, 1988; 2004c,
p.350; p.289; p.66; p.283).
Contrária às histórias de vida, narrativas autobiográficas,
totalidade, fidelidade, autocontrole (BARTHES, 1982, p.78), a
escritura biografemática persegue “a arte do retrato em pintura”,
executando “retratos mentais, conceituais”, por meios diferentes,
nos quais a semelhança é produzida e não “um meio para
reproduzir” – “aí nos contentaríamos em redizer o que o filósofo
disse” (DELEUZE, 1992, p.169). Para realizar esses retratos
em movimento, a escritura vivifica corpos, introduzindo neles
a “dimensão carnavalesca”, qual seja: usa antes o imaginário
do que os fatos; incide o desconhecido, suspeito, lacunar,
ausente, sub-reptício, negado, interditado; surpreende estados
intervalares; evidencia nuances contra formas de pensamento
pronto, que repetem “falsas evidências” (PIERRE, 2006, p.48);
trabalha com enigmas latentes, entre os pólos da vida e da obra;
desvincula e transfere componentes de zonas e instâncias de
pertencimento.
Através de “erotografia”, “autobiografema”, “autobiogra-
ficção” e “cartografemática”, a escritura faz uma “antibiografia”,
na qual o biografematizado é visto como uma “estrutura
estelar repleta de desvãos que escondem as faces perdidas e
na qual os signos equivalentes estão soltos para pontilharem
outros rostos” (NORONHA, 2001, p.10; p.11). Em diálogo
escritural de montagem e composição, recolhe pedaços, feito
molas propulsoras, refeitas no ato ficcional. Desenha máscaras
trocadas. Identifica ardis romanescos, que jazem ocultos nas
franjas do vivido. Constrói uma imagem cambiante de pulsões
desejantes: “falo de mim como se estivesse um pouco morto,
preso numa leve bruma de ênfase paranóica” (BARTHES, 1979;
1984; 1988; COSTA, 2008; EIRÓ, 2008; BARTHES, 2003d).
Escritura sensual, a biografemática exercita ausência de
palavras e força “a passagem dos objetos sensuais dentro do
discurso”, de modo que “a substância sensual das coisas” leva
a linguagem a dispor alguns efeitos físicos, lembranças táteis,
voluptuosas, saborosas; integra passagens, que são sempre
legíveis (“se você quiser ser lido escreva de maneira sensual”),
tais como: em Chautebriand, “as laranjeiras da Vida de Rancé”;
em Bataille, “o prato de leite da História do olho”; em Hegel,
“a plumagem da coruja” de Minerva, a qual, “só no início do
crepúsculo”, “alça seu vôo”; em Marx, “a silhueta do tecelão e
do entalhador” (BARTHES, 1982, p.62-63; FEIL, 2009).
Escrevendo uma “rapsódia de vida”, sem respeitar o todo
e reduzindo o universo a “sistemas de instantes”, essa escritura
compõe uma “arte original, como é a da costureira: peças,
pedaços são submetidos a cruzamentos, a arranjos, a ajustes”;
e cujos “fragmentos intelectuais ou narrativos” formam “uma
seqüência que se subtrai à lei ancestral da Narrativa ou do
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Raciocínio”, produzindo “a terceira forma, nem Ensaio, nem
Romance” (BARTHES, 2004c, p.353-355).
III vidarbo
Vida-obra. Obravida. Vid’obra. Obra d’vida. Obr’ida. Vida-obra.
Que diabo. Vidarbo. Viver como quem escreve. Escrever vivendo.
Viver escrevendo. Reviver. Fabulação de gostos, des-gostos,
descobertas, sensibilidade, estados d’alma, imagens, poses,
figuras, músicas, afectos. Como é, para mim – o que não fala,
sem alegar a si mesmo, condenado ao exílio da generalidade.
Transliteração: mudar o livro é mudar a vida. Cenografia
espaço-temporal. Nos passeios de uma-vida, aparição de
personagens. Na retina, ações que podem ser tocada. Aromas
ávidos no ar. Pensares apanhados. Quereres guardados. Sentires
desovados. Na magia de ler, fascínio por limites. Voz do sujeito-
de-escritura: escrever o que não pôde dizer. Grãos de sentidos,
na pele do eu-de-papel, após travessia do deserto. Cruel desafio
à interpretação. Fundos de silêncio. Habitantes dos interstícios.
Sem economia de bem e mal. Não-lucro. Luxo de escritura livre.
Pulsão por des-formas. Radicalização na preparação. Munição
impaciente. Anarquicamente debochada. Atravessar, navegar,
saltar: e pronto. Corda bamba, sem sombrinha, embriagado.
Pronto. Cair. Se for o caso. Pronto. Avaliar valor dos largados.
Simulacro romanesco anamnésico. Paixão por perturbação,
motilidade, leveza. Sem pessoa. Caleidoscópio insólito. Estranho
dissonante. Bolas de emoção. Roçadela. Fricção. Como se vê,
a biografemática inunda vidas. Minha. Tua. Nossa. Por isso, o
Discurso do Método Biografemático põe “no topo aqueles capazes
da risada de ouro”: “rir de maneira nova e sobre-humana – e
à custa de todas as coisas sérias”. É porque os “deuses gostam
de gracejos: parece que mesmo em cerimônias religiosas não
deixam de rir” (NIETZSCHE, 1992, p.195).
Referências
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. (Trad. Maria de Santa
Cruz.) Lisboa: Edições 70, 1979.
40 • 41
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios
críticos. (Trad. Mario Laranjeira.) São Paulo: Martins Fontes, 2004b.
DELEUZE, Gilles.
O método da dramatização (Trad. Luiz
B.L.Orlandi.) In. ORLANDI, Luiz B.L. (org.). A ilha deserta: e outros
textos. São Paulo: Iluminuras, 2006a, p.129-154.
42 • 43
LEJEUNE, Philippe. Moi aussi. Paris: Éditions du Seuil, 1986.
44 • 45
Autocomediografia intelectual de um educador
Máximo Daniel Lamela Adó
AUTOCOMEDIOGRAFIA
INTELECTUAL DE UM EDUCADOR
Máximo Adó
O exemplo citado é baseado no trecho de uma carta de Paul Valéry a Pierre Louÿs,
1
correspondência mantida entre 1915 e 1917 (GIDE, LOUYS; VALÉRY, 2004). Também
citada por Agamben (2007).
48 • 49
Numa tarde confortável de primavera comecei a ler um
livro, a folheá-lo para ser mais exato. Poderia dizer que estava
caminhando pela Rua Ramiro Barcelos e passava página a
página sem me deter em alguma em específico, lia parágrafos,
frases, palavras soltas, fazia isso pela ansiedade em verificar,
mesmo que por alto, o que ali poderia conter de interessante para
a pesquisa, algo como uma tentativa de predizer o que seria lido
lendo. Nesse ínterim encontrei o Prof. Dumoulin, que é francês
e especialista em Balzac, e devido a isso esteve um período
oferecendo uma cátedra na Universidade de Westmounth nos
Estados Unidos, onde conheceu os experimentos do Prof.
Hickey, um inglês discípulo de Thomson e de Rutherford
(MAUROIS, 1939). Para ser mais claro: os experimentos com
a máquina de ler pensamentos. Era isso que importava no
momento, procurar dados a respeito dessa máquina. O professor
Hickey, físico de formação e prêmio Nobel aos trinta e oito anos
devido a suas pesquisas sobre a constituição do átomo, havia
questionado: “Não perguntou jamais a si mesmo, Dumoulin, o
que se passa com o senhor quando pensa em objetos, em seres ou
em acontecimentos na ausência deles? Não me dê uma resposta
de professor que cita fontes e textos. Tome um caso concreto.
Pense em um acontecimento de seu passado, não importa qual”
(IBIDEM, p.39). Essa questão não era mais que a enunciação
de uma pergunta inicial, a constituição de um problema para
a formulação de algumas hipóteses a respeito da natureza
do pensamento e que, uma delas, levara Hickey a intuir a
possibilidade de construir a máquina.
Ao pensar no questionamento do professor Hickey o
professor Dumoulin, sem recorrer diretamente a Balzac que
era sua especialidade, afirmou que a imagem que escolhera
de um acontecimento de seu passado era fugidia e de traços
demasiadamente confusos, e ao pensar onde estaria essa imagem,
respondeu com segurança que não estava ante seus olhos, como
os objetos que via apoiados à mesa, mas, parecia estar situada
como se fosse detrás de um olho interior; “sob minha abóboda
craniana” (IBIDEM, p.40), dizia Dumoulin.
No decorrer da conversa, entre perguntas e respostas, o
professor Hickey induziu a que chegassem à conclusão de que no
pensamento se misturam palavras às imagens e que as palavras
seriam mais nítidas que as imagens, essa razão propiciava que
lembrassem frases inteiras e que por mais que se lembrasse de
pessoas, os traços de seus rostos eram fugidios e confusos, o que
não parecia acontecer às palavras, aos nomes dessas pessoas, por
exemplo. O consentimento do professor Dumoulin a respeito
da nitidez das palavras no pensamento serviu para que Hickey
explicasse os princípios de funcionamento de sua máquina. A
explicação rezava assim:
50 • 51
fototelegráfico, aparelho que precedeu o fax e, sem dúvida
também os princípios que levaram a intuir a possibilidade
de existência da internet, e que o inventor Edouard Belin
confessou ter sido inspirado pelas leituras fabulatórias que
fez de Júlio Verne. Eu queria fazer algo dessa natureza, como
fotografar ou filmar pensamentos, mas não foi possível, pois,
tais imagens são confusas, móveis e se compenetram umas
com as outras. No entanto, para mim, a linguagem interior
do homem é um fenômeno físico muito definido... Traduz-
se pelos movimentos da língua e da laringe, movimentos
imperceptíveis, mas suficientes para dar passagem a ondas
sonoras. Semelhante à relação que tem com a imagem, quando
pensa numa frase parece sentir que a ouve, como se fosse em
sua boca, no alto da abóbada palatina, na base do nariz. Pode
perceber que não consegue pensar numa nota demasiado alta
para a sua voz, pois, as palavras e as notas pensadas acham-
se realmente formadas na laringe do individuo que pensa. E
isso é verdadeiro, tão verdadeiro que se cair numa meditação
profunda, e esquecer a existência dos entes ao seu redor, falará
sozinho. Perceba que as vezes uma frase escapa a um pensador
preocupado. Desta hipótese surgiu a ideia de construir a
máquina de ler pensamentos, que funciona de modo bastante
simples; por meio de microfones muito sensíveis e tubos de
borracha transportam-se, por fios de cobre, as vibrações da
laringe que codificadas em ondas sonoras chegam até um disco
que as registra e logo, num gramofone comum, podemos ouvir
os pensamentos. Podemos instalar o aparelho, por exemplo,
nessa poltrona de veludo verde — tão cara a Cortázar — onde
um homem pode apoiar confortavelmente a cabeça e ler uma
novela, enquanto nós poderemos, em seguida, ler, ou melhor,
ouvir seus pensamentos, e descobrir, nessa leitura auditiva,
uma compenetração entre o que é pensamento e o que é
leitura, e neste momento vemos que se embaralham os códigos
e temos um só texto que, de modo geral, seria um amálgama
de realidade e ficção. Caberia a nós, especialistas, quero dizer,
sábios especializados, destacar qual seria o tom da realidade e,
dentre o caos desse pensar, classificar o que seria ficção2.
O exemplo citado é baseado, principalmente, no livro La machine à lire des pensées de André
2
Maurois, publicado em 1937. A versão brasileira teve o título A máquina de ler pensamentos
traduzida por Elias Davidovich e publicado pela Vecchi-Editor, do Rio de Janeiro em 1939.
52 • 53
como o que já não está, já não está, já não está, já não está diante
mim. O impossível.
Cada pensamento, diz-nos Valéry, é uma exceção a uma
regra que é não pensar (VALÉRY, 1947, p.8); talvez, de modo
deliberadamente anacrônico, Valéry retire essa ideia da voz de
Emílio Renzi, traçada por Ricardo Piglia, que nos diz: “Pensar
não é lembrar, é possível pensar mesmo quando se perde a
memória” (PIGLIA, 2104, p.42). Gilles Deleuze coloca a ques-
tão afirmando que “em Proust, por exemplo, encontramos a
ideia de que todo pensamento é uma agressão, de que ele surge
sob a coação de um signo, de que não se pensa a não ser coagido
e forçado. E, consequentemente, que o pensamento não é mais
conduzido por um eu voluntário, mas por forças involuntárias,
por ‘efeitos’ de máquinas... É preciso também ser capaz de
amar o insignificante, de amar o que ultrapassa as pessoas e
os indivíduos, é preciso também abrir aos encontros e achar
uma linguagem nas singularidades que excedem os indivíduos,
nas individuações que ultrapassam as pessoas. Sim, uma nova
imagem do ato de pensar, de seu funcionamento, de sua gênese
no próprio pensamento, é precisamente isso que buscamos”
(DELEUZE, 2006, p.180). E eu, é claro, continuava com o livro
entre as mãos.
Havia lido algumas páginas e feito com que se cruzassem
a outras que, naquele momento, ausentavam-se da minha
presença; foi quando ouvi de minha voz: gestimmt-sein 3 e comecei
a rir. Ri, primeiramente, pela expressão em alemão — eis que
não está provado que sei alemão — e, além disso, ri, pois parecia
O termo alemão gestimmt-sein significa algo como dizer em português: estou de acordo.
3
No entanto, segundo Leo Spitzer (1967, p. 9-10), o termo implica certa solidariedade e
consentimento com algo maior, mais vasto, distinguindo o termo de um simples estado de
ânimo. Interessa-nos associá-lo a ideia de que “estar de acordo” é estar disposto, de corpo
inteiro, e aos corpos que nos rodeiam em certa atmosfera. Estar sintonizado àquilo que possa
ser uma linguagem nas singularidades e nas individuações que nos ultrapassam.
personificar o exemplo de Hickey, deixando minha meditação
escapar por uma voz aparentemente distraída. No entanto, sei,
ou penso saber, que meu riso não se deu por essa associação à
explicação de Hickey e sua máquina, mas, por ela ter evocado
em mim que, ao pensar, pensamos de corpo inteiro e para além
desse corpo. Se há um cérebro que pensa o que ele é, é a própria
faculdade de pensar. Então, a pergunta: o que é o cérebro que
pensa?, foi reformulada para: quem é o cérebro que pensa?, e
ele disse: Eu, “mas Eu é um outro”4. “E eu próprio só existo
quando me evado de mim para outrem” (TOURNIER, 1987,
p.99). Esse eu-ele não está sozinho, e não apenas concebe o
pensamento como também sente a criação. O Eu, aqui, passa a
ser uma função ficcional, uma fabulação de vida pré-individual
que se agencia como coletividade. Uma literatura. O cérebro
que pensa, ou algo como um cérebro-pensamento é o que pode
tornar um impossível sensível e, ainda, criar impossíveis. “O
cérebro é o espírito mesmo”, (DELEUZE; GUATTARI, 2004,
p.270). E, quem sabe, o termo espírito deva ser entendido como
uma significação particular. Significação na qual o espírito não
passa de uma atividade pessoal, mas universal; atividade interior
e exterior e que dá à vida às forças mesmas da vida. Que dá ao
mundo e às reações que o mundo suscita em nós, um sentido e
um uso. Uma expansão do esforço e da ação.
O termo espírito associado à atividade daqueles que não só
estão adaptados ao funcionamento normal da vida ordinária que
funciona, apenas, para a mera conservação da mesma, mas que
se organizam para a transformação. O termo espírito associado
a uma aventura sem limites de objetivos claros e que ultrapassam
a simples necessidade de conservação, criando os pretextos e
ilusões que necessitam para essa ação-transformação. Variando,
54 • 55
de época em época, a perspectiva dessa aventura intelectual
(VALÉRY, 2000). A aventura do espírito — vista como a
aventura do pensamento e do intelecto — é sempre perpassada
pelo estado de humor de sua época, assim como para a filosofia
da Grécia arcaica podemos associar a ideia do espanto à arché,
ou seja, ao princípio que impulsionou os espíritos a uma ação-
transformação do espírito grego arcaico, a arché do pensamento
da modernidade pode estar associada à dúvida, em positivo
acordo com a certeza e associada, certamente, ao pensamento
cartesiano. Nesse processo de ação-transformação o espírito
cria, inventa e essa criação e invenção não apenas faz-se dele,
mas, faz-se nele. É ele próprio sua própria invenção. “O espírito
é sempre visto em circunstância, em situação num dado tempo
e espaço, em sua fragilidade real, condicionado a si mesmo, aos
outros e ao mundo” (PIMENTEL, 2008, p.33).
Então, pensar consiste numa espécie de separação de si e a
linguagem interior cria um outro no mesmo. “Na enunciação
filosófica, não se faz algo dizendo-o, mas, faz-se o movimento
pensando-o por intermédio de um personagem conceitual.
Assim, os personagens conceituais são verdadeiros agentes
de anunciação. Quem é Eu? É sempre uma terceira pessoa”
(IBIDEM, p.87), um eu-ele em uma espécie de comunicabilidade
recíproca e autoformadora de outrem si-mesmo.
E eu continuava com o livro entre as mãos, mas agora estava
na praça, a poucos metros do Berna. Nesta época não é só o
clima que me é agradável, sinto que toda a atmosfera me recria,
sinto-me feito dos odores das flores. A brisa fresca me torna
peripatético [mais para cavaleiro andante do que para aristotélico]
e o pensamento parece fluir melhor no movimento, ele me refaz
com o vento, não se fixa, não estende alguma circunstância
em que possa estabelecer-se qualquer generalidade. Diria que
esta é a época das conexões, das combinações de qualidades
incompatíveis, das acomodações que se excluem (VALÉRY,
1998, p.43). O caminhar e o vento são, de certo modo, um
carinho para com a violência do pensar.
O encontro com o professor Dumoulin e A máquina de ler
pensamentos, servia-me como figuração, mais ou menos inte-
ligível, para dialogar com a afirmação de Descartes de que
todo ato da visão é, em realidade, um juízo intelectual do sujei-
to pensante. No discurso quinto, da Dióptrica, [“Des images que
se forment sur le fond de l’œil”] “Das imagens que se formam no
fundo do olho” (DESCARTES, 2010, p.35), Descartes, apresenta
uma figura que ilustra o seu experimento. Não haveria de fato,
segundo esse experimento, uma visão concreta, e sim, um eu
penso ver, [ego cogito me videre]. Lembrando que Hickey fracassou
em seu experimento com respeito a captar uma imagem do
pensamento e obteve relativo sucesso ao associar o pensamento
diretamente a linguagem falada, afirmando que os movimentos
que se formariam na laringe do sujeito pensante seriam mais
precisos por serem compostos por movimentos físicos associados
à fonética. Seu intuito inicial, o de querer captar as imagens do
pensamento e a hipótese com respeito à relação do fenômeno
físico e o pensamento, poderiam certamente combinar a história
dessa máquina e sua construção à dióptrica cartesiana.
Nesse sentido A máquina de ler pensamentos servia-nos como
um acidente exterior que excitaria um acontecimento íntimo,
que, neste caso, seria o de conspirar na reunião de dados que
me fossem relevantes para formular este escrito como uma
autocomédiografia intelectual de um Educador. O que me fazia
concordar, assim como concordara Paul Valéry à maneira de
Leibniz ou Pangloss, que tudo acontece pelo melhor, ainda
mesmo no pior dos mundos (VALÉRY, 1955, p.33). Está pro-
vado, dizia certa vez o metafísico-teólogo-cosmolonigologo Sr.
Pangloss, que as coisas não podem ser de outra maneira, porque,
56 • 57
sendo tudo feito para um fim, tudo existe necessariamente para
o melhor dos fins. Observai que os narizes foram feitos para
apoio dos óculos; por isso temos óculos. Os olhos foram feitos
para a leitura; por isso temos livros. A máquina de ler pensamentos
foi feita para conspirar a favor deste texto; por isso ele se dá a ler.
No discurso quinto da Dióptrica, Descartes faz um
experimento que visa demostrar, por meio de uma aplicação
direta, as leis físicas à visão e, deste modo, compara, por uma
relação de semelhança, o olho a uma lente. Procurarei resumir o
experimento buscando ser fiel ao dito de Descartes:
A figura do quadro está de acordo com a figura apresentada por Descartes no discurso quinto de La
5
Dioptrique, com pequenas alterações nas letras da legenda [aumentadas e com fundo branco] para
facilitar a leitura e identificação das mesmas de acordo com a explicitação textual (DESCARTES,
2010, p.35).
58 • 59
cérebro6. É mais ou menos assim que Descartes, mesmo sabendo
que o barbudo é inextenso e imaterial, funda um sujeito da visão
por meio de um sujeito do pensamento, fazendo com que uma
determinação como o eu penso implique em algo indeterminado
como o eu sou, sem dizer como esse indeterminado eu sou é
determinável pelo eu penso (DELEUZE, 1988, p.150-151).
Deleuze lembra que:
“[...] comme s’il y avait derechef d’autres yeux en notre cerveau, [...]”. (IBIDEM).
6
através de uma espécie de desdobramento irônico. O olho que
olha se converte no olho olhado e a visão transforma-se em um
ver-se ver, uma operação especular como uma representação, no
sentido filosófico e teatral do termo (AGAMBEN, 2007, p. 119).
O barbudo e a abóbada craniana são como um encenador, a cena
e o seu cenário. Eis que assim podemos restabelecer o discurso
da dióptrica a partir de uma mise en scène do Eu.
Eu continuava na praça, andando pelos sendeiros sob a
sombra dos plátanos e os odores dos jasmins, que agora, com
suas flores murchas e podres exalavam repugnância. Os canteiros
juntavam, em suas obliquidades, vestígios de acrimonia e
putrefata decomposição floral. Olhando o vestígio das flores que
haviam sido brancas, pensei: “...sofrer é dar a algo uma atenção
suprema, e eu sou um pouco o homem da atenção...” (VALÉRY,
1997, p.31). A frase não era minha e tampouco de Descartes.
Naquele momento, eu dava a meu corpo um ritmo de ansiedade,
uma espécie de vigília angustiosa, pensando a angústia como
um nada. O nada, neste caso, apontava para a possibilidade
permanente da liberdade que estaria na aquisição daquele que
volta a atenção a si mesmo. Apreendia que dizia EU como um
habito num campo de imanência. Procurei sentir o meu poder
até a extremidade dos membros e com isso sofrer, dando a mim
mesmo, uma atenção suprema. Eis que, nessa procura, via-me
diante do cenário cartesiano da dióptrica repetindo a frase: “Sou
sendo, e me vendo; vendo-me ver-me, e assim por diante...”
(VALÉRY, 1997, p. 32). Estava a repetir uma das últimas
frases de Uma noite com Monsieur Teste (IBIDEM, p. 13-32). A
frase poderia ter sido pronunciada pelo barbudo de Descartes,
repetindo a cena um tanto teatral da dióptrica.
No entanto, a cena de Monsieur Teste não mais fundamenta
um sujeito da visão [ou da Razão, se o relacionamos ao ego cogito
do Discurso do Método (DESCARTES, 1955, p.63-176)]. Aquilo
60 • 61
que em Descartes seria uma íntima revelação de uma presença
originária e imediata, surge, em Monsieur Teste, como um espaço
de ficção que poderíamos denominar: teatro do espírito, ou, do
mesmo modo, comédia do intelecto.
O mundo moderno, na esteira da filosofia cartesiana,
parece inaugurar o mundo da representação com relação ao
cogito. As categorias de sujeito e objeto se constituem como
categorias indissociáveis e complementares da representação.
A categoria de representação se converte em uma relação
privilegiada para o conhecimento. De esse modo o pensar
é representar e obedece a relação da representação com o
representado: sujeito e objeto, idea como perceptio. O olho
percebe-se a si imediatamente diante do espelho e esse olho é de
um sujeito que pensa, e, por meio de sua voz, traz à presença o
eu de sua consciência. Essa é a máquina cartesiana da relação
sujeito-objeto. Voltemos ao exemplo do anjo mau que faz
com que o olho diante do espelho se veja com atraso, essa é a
máquina valéryana. O anjo mau insere um intervalo entre o eu e
o olho que olha, esse intervalo provoca um atraso, e nesse atraso
a consciência não está no lugar de uma presença, mas, sim, de
uma ausência. Diante dessa cena há um outro olhar que olha o
eu para além do eu. É o olhar impessoal de um anjo como “um
observador ‘eterno’ cujo papel se limitasse a repetir e a remontar
o sistema do qual o Eu é essa parte instantânea que acredita ser
o Todo. O Eu nunca poderia se engajar se não acreditasse — ser
tudo”. (VALÉRY, 1997, p.109)
Monsieur Teste funciona como esse anjo mau, “Monsieur
Teste é a testemunha. Conscious — Teste, Testis”. (IBIDEM, grifos
meus) E a testemunha, nunca é uma pessoa, mas o relato de
um processo de dessubjetivação (ANTELO, 2008). Lembro, ter
lido em Guayaquil de Borges, algo como: confessar um fato é
deixar de ser ator do mesmo, para se tornar testemunha; para ser
alguém que olha para o fato e o narra, e, assim, já não é o mesmo
que o executou. Testis é também tertius, ou seja, o terceiro, aquele
que se distancia para narrar, ou ainda tertius, como aquele que
pertence ao terceiro reino, isto quer dizer que pertence ao inferno.
Seria esse o reino do Anjo mau que brinca com o tempo diante
do espelho, doando àquele que olha o sentido paradoxal de toda
linguagem? Eis que estamos diante de um drama que funciona
como a dissolução de uma implicação imediata do olho como
fundação de um sujeito vidente, e, também, da dissolução de
fundação de um sujeito consciente vislumbrado pelo discurso
por meio dos indicadores de enunciação, em especial pelo uso
do pronome Eu.
Poder-se-ia dizer que toda a obra de Valéry está permeada
pela fascinação pelo pronome Eu, uma reflexão sobre o Eu e
uma luta com o Eu. Verificando uma consistência puramente
linguística do Eu, Valéry dissolve com facilidade toda ilusão de
realidade pessoal e substancial do sujeito (AGAMBEM, 2007,
p.129). Não seria esta, “a busca de Monsieur Teste: retirar-se do
eu — do eu comum tentando constantemente diminuir, com-
bater, compensar a desigualdade, a anisotropia da consciên-
cia?” (VALÉRY, 1997, p.112).
Como já foi dito, tudo aconteceu devido à pesquisa refe-
rente a este texto. Numa tarde confortável de primavera come-
cei a ler um livro, a folheá-lo para ser mais exato. O livro foi-
me emprestado durante uma conversa no Berna. Essa tarde —
após uma manhã de leituras — resolvi passar pelo Berna, bar
ou cervecería-berna, para ser mais exato. Lugar este que não
frequentava já há algum tempo, mas, que havia sido trivial numa
época em que costumava passar as tardes com Junta-Larsen e o
pessoal onettiano. Eis que, el viejo Lanza, ao pensar ter pensado
ouvir nosso diálogo, ou, melhor dito, ao tomar a voz narrativa,
aproximou-se e disse:
62 • 63
— Justamente tenho este livro aqui comigo, foi publicado
mais ou menos na mesma época que El pozo, que você já
conhece. Este foi publicado em 1937 e El pozo em 1939. Vocês
podem desconfiar do que vou dizer, já que sou o tipógrafo de El
liberal e, tanto eu como El Liberal, somos, também, uma criação
onettiana. Não importa, mesmo que eu tenha surgido muito
depois disso [considerando certa cronologia literária], sou meio
borgeano — que Onetti não me ouça, e se bem o conheço deve
estar conversando atentamente com Menipo7. Desde que fui
escrito fui também, de certa forma, destituído dessa possibilidade.
Na minha condição serei, para mim, sempre o mesmo, um
personagem entre os livros. Estou sempre nas mesmas cenas;
se bem que elas se repetem com diferença, uma leitura jamais
é a mesma leitura mesmo quando as palavras lidas coincidam
palavra por palavra e linha por linha com a leitura anterior; mas,
existem possibilidades como esta, quem sabe um dia poderei
cumprimentar Cérbero na entrada do Hades e, mais que entrar
vivo na morte, poderei ainda, manter um diálogo entre sombras,
afinal Valéry já nos demostrou que isso é mais que possível e
que as criaturas, como eu, são infiéis a seus criadores e acabam,
quando são criaturas de gênio, por reencarnar. Quanto mais se
fazem vivas, tanto mais se fazem livres (VALÉRY, 2011, p.43).
No entanto, há tanto cuidado e preocupação a respeito de não
profanar certo tipo de escritura que é mais provável que eu esteja
sempre morto/vivo e repetindo, de algum modo trágico e como
uma representação, sempre as mesmas frases em Juntacadáveres
—, ah, ao dizer borgeano eu quis dizer menardiano8, ou seja,
adepto à técnica do anacronismo deliberado e das atribuições
errôneas. A aplicação dessa técnica consiste em povoar de
Relativo ao escritor Pierre Menard ou estudioso de sua obra. Sobre Pierre Menard ver:
8
(BORGES, 2007).
aventura os livros mais tranquilos. Essa técnica de aplicação
infinita nos solicita recorrer à Odisséia como se fosse posterior à
Eneida [Virgílio precedendo a Homero] (BORGES, 1995, p.54).
Voltando ao que nos interessa, minha tendência é escolher —
por requinte estético e bom gosto de minha parte — ao El pozo
[O poço], e não este livro que tenho nas mãos, apesar de ter-me
intrigado o título: A máquina de ler pensamentos. E vou dizer o
porquê. Tenho uma inclinação a classificar as narrativas em duas
vertentes, aquela de quem escreve o que conhece e aquela de
quem escreve para conhecer. Eu prefiro El pozo exatamente por
enquadrar-se, segundo o meu diagnóstico, na segunda vertente.
Em El pozo, o narrador, Eládio Linacero diz: “Es cierto que no sé
escribir, pero escribo de mi mismo” (ONETTI, 1967, p.8) [É certo
que não sei escrever, mas escrevo de mim mesmo], ele discute a
narrativa na medida em que ela é narrada, e essa estrutura, a
de uma história que se conta na medida que é contada, ou seja,
que se conhece na medida que é escrita, é o procedimento da
narrativa onettiana inaugurada em El pozo. Em La vida breve [A
vida breve] isso se torna mais evidente. Mas sabemos que não foi
Onetti que inventou essa estrutura, ela pode ser lida no Quixote
de Cervantes. No entanto, na literatura onettiana, toda história é
inoperante, o texto se faz na impossibilidade de contar-se, o tema
é a própria inoperância da história que ele pretende desenvolver.
Esse é o inferno, há sempre um terceiro que testemunha e furta o
presente ao narrar. Quem narra afinal, o narrador é aquele que é
narrado ou quem é narrado narra por ser narrado pelo narrador?
Se quem é narrado também narra é por servir de intercessor
ao narrador. Esse terceiro, o testis, testemunha, passa a ocupar
um não-lugar da articulação da linguagem e acaba por ser
regulado pelos paradoxos da mesma, regulando a realidade a
partir de um ponto inextenso, onde ser testemunha, em todo
caso narrador, não é pertencer ao mundo, mas, ser o seu limite.
64 • 65
O Monsieur Teste de Valéry, por exemplo, “não é outro senão o
próprio demônio da possibilidade. A preocupação do conjunto do que ele
pode o domina. Ele observa a si mesmo, manobra a si mesmo, não quer
ser manobrado” (VALÉRY, 1997, p.11). Em todo o Cycle Teste 9 o
que há é sempre um conjunto de hipóteses pessoais que tem o
trabalho do espírito como tarefa infindável. O que importa “é
antes a intensidade especulativa do que o resultado tranquilo
de uma obra” (BARBOSA, 1997, p.166). Terminei de beber o
expresso, agradeci a Lanza pelo livro e saí do Berna folhando
aquelas páginas e pensando em que medida poderia relacionar
A máquina de ler pensamento a este texto, na medida em que,
paradoxalmente, o que aqui é escrito ocorre entre ele e nele
mesmo. E Lanza?, certamente continuou a sua fala no Berna,
acredito que voltou a sua posição na, digamos assim: história
da literatura, e sentado à mesa com Jorge Malabia, o irmão de
Federico, diz-lhe rindo: a poesia está feita com o que nos falta
com o que não temos, é interminável, jamais existirá um livro
único e decisivo (ONETTI, 1984).
E eu voltava a fazer relações com aquilo que me interessa
no momento, pensava que se existe alguma fraqueza na
educação, ela está, justamente, em se entregar aos domínios do
conhecimento, no qual impera o evidente, o repouso de sistemas
definidos, as cartilhas dos fazeres, a verdade dos dados e fatos
imediatamente associados à presença; aos automatismos do
intelecto. A educação como numa narrativa de quem conhece
o que escreve, balizada pela concepção de que o pensar é
representar pela perceptio. Tudo bem, mas isso não é a educação,
ela não pode ser definida com uma essência e sim como forças
e vontades, e se concebo a educação como aquilo que se faz
Conjunto de 10 textos que compõem Monsieur Teste (VALÉRY, 1997); (BARBOSA, 1997,
9
p.133-166).
para conhecer o que se faz no próprio ato do que é feito, ela
passa a se erguer na desordem vital que se insinua como processo
e, como processo, não se efetua como modelo ou a partir de
modelos, automatismos, facilidades do já dado, repetições
do mesmo. Mas, pela rigorosa análise do processo de criação
de si mesma. Assim como o estudo da linguagem a educação
do mesmo modo que a escritura, passa a ser uma passagem de
vida. Estuda-se para si, para nada operante, nenhuma execução,
senão a própria execução executante na ação vital de abandonar
a facilidade de qualquer esquematismo. Ao ter um currículo em
mãos, lê-lo sublinhando suas potências e com elas fazer devir um
currículo-especulativo, utilizar a técnica do anacronismo deliberado
e povoá-lo de aventuras e lembrar a famosa frase de Paul Valéry
em Tel Quel I: É preciso ser leve como um pássaro e não com
uma pluma (VALÉRY, 1941, p.32).
Referências
ADÓ, Máximo Daniel Lamela. Educação Potencial: autocomédia do
intelecto. 2013. 194 f. Tese (Doutorado em Educação) Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
66 • 67
BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor do Quixote. In: BORGES,
Jorge. Ficções. (Trad. Davi Arrigucci Jr.) São Paulo: Companhia das
Letras, 2007, p.34-45.
BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor del Quijote. In.: BORGES,
Jorge Luis. Ficciones. Barcelona: Emecé, 1995, p.43-54.
68 • 69
Biografemática do cotidiano
Marcos da Rocha Oliveira
BIOGRAFEMÁTICA DO COTIDIANO
Marcos da Rocha Oliveira
<09:57>
ulular: o mundo inteiro 1.1
na sobrevida ao pó de giz – ele, 1.2
vívido no tinteiro, um espirro, 1.3
(bababadalgaraghtakamminarronnkonnbronntonner - 1.7
ronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthur - 1.8
nuk!) o educador habita a quaseterra 1.9
I – Procedimentos metodológicos
72 • 73
Senhor Educador que busquei biografematizar o Educador
que toca o cotidiano em seu distanciamento do referente –
respondendo as questões “o que faz deste docente um docente?,
o que faz de um docente este docente?, onde está o docente,
neste momento?” (CORAZZA, 2008).
<10:01>
eludir a queda com o arqueio 2.1
ereto e leve das costas – as risadas 2.2
na sineta confundida 2.3
<11:47>
subir a voz no burbúrio aca- 3.1
lenta a cara; sob a ordenaria de 3.2
unhas pintadas e batons cintilantes 3.3
74 • 75
III – Transcriar uma pesquisa
<12:04>
rói, come caga cata, eco 4.1
dog, rói, bica bico, pico 4.2
pica, rói, cata eco lata, pita 4.3
76 • 77
<13:31>
mar amarelo ruivoso, farol trinado em 5.1
badalos mínimos, contra, contra, contra 5.2
contra; relincho metálico de ludicosas 5.3
<15:13>
pedra pau pedra pau pedra pau 6.1
lada lado, braçosunidos; a sirene sinéta: 6.2
contra os contra, contra; pedra pau 6.3
78 • 79
determinações, o que por elas não é animado, é a fisicalidade
da vida, o irrecusável e irrecuperável do cotidiano – e não a
cotidianidade expressiva e executável de uma existência comum,
particularizada. A História de Vida toma um homem geral, mas
“pessoalizado” (o homem da cotidianidade: “e eu te batizo...”);
a aventura da escrita de vida é tomar o homem cotidiano, aquele
que escapa aos lugares comuns, impossível de ser estabelecido
numa rede biográfica (antropológica, histórica, psicológica,
social), fantasiado na escrita dos traços de sua nulidade, na
perdição de seu rosto médio e fala grudenta.
<15:19>
eis que aqui aporta, sereno; pó 7.1
e pés aquosos pela lenda lida, en- 7.2
ceno; renhe por não ser existindo, por 7.3
<15:28>
brando, o ar, tal que a si mesmo re- 8.1
cita e recita, tendo à boca o sumo, pro- 8.2
mo, do cafeteiro; sem alvo, cravos bem 8.3
80 • 81
que o texto inscreve é a proliferação de existências e de mundos,
implicando na pesquisa biografemática a potencialidade de
criação, de fabulação, de transcriação de vidas novas. Desta
cisão (não mais escrever uma existência apaziguadora por meio
de uma linguagem apaziguadora, mas escrever de modo dis-
perso vidas figidias), Barthes diz ser “o desvio, a volta necessá-
ria para reencontrar uma adequação, não da escrita com a vida
(simples biografia), mas das escritas e dos fragmentos, dos
planos de vida” (2005b, p.172); isto é, uma implicação da in-
determinação do homem cotidiano e da escritura dessas exis-
tências múltiplas, numa aventura de vida, de escritura.
<15:58>
sidéreo chuveiro pinga o 9.1
éterazul ultramundo, medonho 9.2
sanhaço claramostrando as ja- 9.3
IX – Cotidiano e cotidianidade
82 • 83
professor, estudante, analfabeto, diabético, cético, apostólico,
cibernético, romano. É deste movimento que algumas narra-
tivas de testemunho retêm os acontecimentos mais pesados,
ignorando aquilo que, na vida ordinária, possui o atributo
da leveza; a história de (qualquer) vida é o pesadume do sen-
tido.
Um e outro pouco apreensíveis: o cotidiano vacila na
ambigüidade do seu movimento; há, certamente, perigos em
privilegiar um ou outro (o inacessível ao qual sempre se tem
acesso) – posso acabar esmagado pelo tédio e pela inércia, se
torno manifesta toda cotidianidade, toda vida ligada a uma
pessoalidade (minha vida é só isso mesmo?); posso – outro risco
– se distraído de “eu mesmo”, por meio de força alguma (po-
tência desta mesma distração), ser vaporizado pela im-
possibilidade de reivindicação, seja ela de qualquer ordem (o
inacessível do cotidiano decorre de que toda forma de acesso
lhe é alheia). Se em um de seus espectros o cotidiano fomenta
os objetos e as vidas tipificadas, as formas e as estruturas, em
outro, é sua distração destas que as fazem ruir; o cotidiano
em seu traço operatório – não se deixar nunca apanhar – ao
mesmo tempo conjuga o insignificante e toda possibilidade de
significação.
O conceito de cotidianidade não se liga, como seria de
esperar, ao significado comum da palavra cotidiano (adjetivo que
se refere a todos os dias); ele designa o não-filosófico para e pela
“filosofia clássica” (LEFEBVRE, 1991b, p.28). A cotidianidade
mostra o quanto a filosofia (que definiu a cotidianidade en-
quanto conceito) funciona como um sistema de funções
determinadas com o potencial de sobrescrever a materialidade
da vida ordinária. Neste sentido, a cotidianidade exprime a
possibilidade de transformação do cotidiano, da vida prática,
em nome de um conjunto de idealizações com o poder de
circunscrever, criar, nomear e determinar o funcionamento
de um mundo, de uma vida, em detrimento das forças imanentes
e da fisicalidade da vida cotidiana.
Nesta primeira abordagem, o cotidiano não seria, por outro
lado, o lugar de fundição entre duas formas de experiência dis-
tintas, o lugar de encontro entre dois planos diferentes – sendo
que um possuiria a atribuição de modificar o outro sem ser
interferido pelas próprias mudanças que determinara ante-
riormente. O que Lefebvre mostra é que a somatória desses
determinismos e opressões planificados não é admitida, em sua
totalidade, como a expressão de um mundo material, mas como
uma metafísica deste. Tomando a cotidianidade num plano
separado do físico, em sua capacidade de organizar as bases
materiais da vida ordinária, acabamos por devolvê-la a um plano
idealista onde a vida comum não se efetua sem perder seu caráter
singular: particulariza-se a vida como variação de uma lei geral
e abstrata que permite organizar toda matéria baixa, imanente,
em uma sucessão de passado-presente-futuro. A cotidianidade
servindo para designar, por meio das idéias, aquilo que não
pertencia ao plano ideal. É, ainda hoje, este entendimento
que permite pensar o cotidiano em seu caráter mais comum,
como o lugar onde todas as generalizações e as consistências
estereotípicas se propagam – o local da força da linguagem, de
seus naturalismos e pronto-entendimentos.
Mas, certamente, não é sem razão que Maurice Blanchot
busca em Lefebvre as bases para criar a sua noção de cotidiano,
pois se Henri privilegia a cotidianidade como objeto de luta
e lugar de disputa, Maurice vê, a partir desta definição, no
cotidiano, todo um campo revolucionário – mas onde é preciso,
para combater, impedir qualquer impulso já codificado como
“de revolução”. Lefebvre sabe muito bem ler os signos de sua
época, que em uma confusa profusão acabam por efetivar a
84 • 85
cotidianidade em seus termos mais altos, em sua capacidade
de sistematizar os modos de todos aqueles que vivem e ainda
viverão. É a capacidade excessiva de planejar e organizar que
acaba por entupir e acelerar todos os homens. Nas palavras de
Lefebvre, o cotidiano é o insignificante, que “não tem necessi-
dade de ser dito, é uma ética subjacente ao emprego do tempo,
uma estética da decoração desse tempo empregado”; indo
mais longe, o autor o define como “o que se une à moder-
nidade, entendendo por modernidade o que traz o signo do
novo e da novidade: o brilho, o paradoxal, marcado pela
tecnicidade ou pelo mundano” (1991b, p.31), pelo desapego
aos sentidos. Para Henri, leitor e criador de materialidades, o
cotidiano funciona como um plano passível de ser gerido pela
cotidianidade, podendo este ser transformado por esta – com
Maurice é a distância entre ambos, suas espacialidades, que
permitem os pequenos desvios, as corrigendas que impedem
o sistema cotidiano-cotidianidade de Lefebvre de brecar seu
movimento regido por uma oposição material-ideal, de modo
que a relação sobre-determinante cotidianidade/cotidiano
nunca se realiza completamente, a não ser no interior da pró-
pria cotidianidade – o que mostra o cotidiano erradio, enfa-
tizado na distância infinita produzida enquanto efeito escritural
nas vozes narrativas blanchotianas. Não sem grande esforço,
Lefebvre admite seu mundo como insuportável, pois não é
possível que haja nele nenhum lugar de linguagem exterior a
uma ideologia burguesa (BARTHES, 2005c), e com suas armas,
táticas e estratégias, parte para a guerra: tomar a cotidianidade
para mudar o cotidiano, eis a única astúcia que se apresenta
como possibilidade de revolução. Os estudos de Henri operam
uma mudança que possibilita pensar o cotidiano como o
lugar efetivo da troca de consciência, mas esta só é possível
através da cotidianidade; pois, se antes dessa relação, todos
os dias eram essencialmente imutáveis e circunscritos às suas
possibilidades de realização, agora, é a prática material da vida
que dá consistência às leis formais da cotidianidade, de modo
que as variações do cotidiano, ao passo que continuam sendo
possíveis pela cotidianidade, abrem-se para certa utopia: superar
a neutralidade do cotidiano, sua tragicidade. Se os sentidos se
esvaem, novos referentes devem triunfar.
O cotidiano já conheceu o seu discurso revolucionário:
Lefebvre, o grande comandante.
<16:34>
risca sete ruas, piróvagos 10.1
um cemitério de fósforos linhados 10.2
entrefiguram o transetrânsito; 10.3
86 • 87
uma verdadeira reserva de criação para a vida do homem
cotidiano. A cotidianidade é o que permite planejar e realizar
a vida com determinações ideais, generalizações científicas,
clivagens filosóficas, mudanças astutas. Amplificar a imanência
de uma vida, a positividade criativa de sua existência desvairada
e neutra: eis os ensinamentos blanchotianos para rasgar a
cotidianidade e mostrar como a vida cotidiana não cessa de rachar
a dureza dos códigos de uma época. Pois se Henri não reduz
o cotidiano à existência média, estatisticamente comprovável,
e faz da cotidianidade “uma categoria, uma utopia e uma
Idéia” (BLANCHOT, 2007, p.236), por sua vez tenta superar a
imanência do cotidiano que não se relaciona com nenhuma Lei
– donde o cotidiano como plano de suspeição e o esforço para
que o homem cotidiano erga um rosto e alce uma voz num “eu”
culpável, que se volta à Lei seja para cumpri-la, seja para negá-la:
o homem qualquer, quase fugindo, inclusive, à certa designação
antropomórfica – para Henri (1991b, p.204), o homo quotidianus
perde sua qualidade de homo, porém, mantém-se suspeito: “será
o quotidianus ainda um homem?”. Pois se a cotidianidade não
se liga ao sentido comum de cotidiano, volto, por sua origem,
mas sobrescreve este sentido primeiro “eu mesmo, todos os
dias”, homem-rua, homem-via, que se mantém amorfo na
distração coletiva, de outra forma o cotidiano, substantivado,
não diz nem de uma essência, a vida “total”, nem de uma
modalidade de vida, de tipos, de variações que são próprias à
cotidianidade. O cotidiano não funciona, para Blanchot, como
funcionam a lei e sua variabilidade, a essência e os modos. Ele
opera na curvatura de uma distância infinita, que não dispensa
a pretensa metavitalidade da cotidianidade, pois sabe, de pronto,
num estranho saber que é distração, que ambos os movimentos
não podem ser separados, embora mantenham-se distintos:
o que Maurice mostra é, enfim, que a ênfase num ou noutro
movimento não o isola do preterido, mas mantém que a escolha,
à qual eu estou mergulhado e privado – “o homem qualquer,
culpado de não poder ser culpado” (BLANCHOT, 2007, p.236)
– possui riscos e efeitos de ordens diferentes. A cotidianidade
toma o homem cotidiano para recobri-lo de sentido. O cotidiano
toma o homem escapando de sua condição, numa relação
interruptiva, múltipla, pois, não se submete a uma totalidade
imutável e não se diversifica com base em qualquer unidade. O
cotidiano pressentido como “uma outra forma de palavra e uma
outra espécie de relação onde o Outro, a presença do outro, não
nos remeteria nem a nós-mesmos, nem ao Uno” (BLANCHOT,
2001, p.120). Instante de interrupção que não é, simplesmente,
o absoluto nada, mas, talvez, somente a inanidade impassível de
ser recolhida pela cotidianidade ou por um cotidiano tomado
como essencial: um vazio radicalmente distante de qualquer
alcance, quer mediado pelo horizonte último do Uno, quer
por intermédio do horizonte contínuo da unidade.
Nota-se que é Lefebvre quem primeiro admite a ênfase
do cotidiano no “discurso informal”, na linguagem enquanto
corpo isento de um conteúdo cultural e histórico determinante
para sua composição: não é, por certo, a desvinculação de es-
truturas sociais e lingüísticas, muito antes o contrário: é o sin-
gular distanciamento entre ambas as estruturas que provoca em
Henri o desejo de criar os novos referentes para o discurso de
sua época – se antes desses fenômenos, os objetos e os discursos
eram reunidos por um “estilo de vida” (como por exemplo a vida
religiosa e seus lugares), agora tudo parece encaminhar-se para
as ruínas definitivas do sentido, com o perigo de perpetuação
de uma topografia da consciência burguesa – uma oportunidade
imperdível para mudar a vida cotidiana tomando a cotidianidade.
Onde Blanchot afirma a vida, Lefebvre enxerga um posto
avançado para um futuro perdido.
88 • 89
<17:02>
mais árdua que floresta, floreia 11.1
uma árvore sentinela, côvados ar- 11.2
dósios setam o caminho; lutar 11.3
XI – Basta!
Blanchot apropria-se de Lefebvre no exato momento em
que este não suporta mais o seu mundo, em que diz: os dias
sufocam, não há como fugir de uma economia dos desejos
pegajosos, conhecida e impotente, os dias sufocam, não há
mais como viver. O exato toque acontece quando, em um sus-
piro anterior à reversão conceitual que vai acabar por operar,
Henri tem, nítido como um espirro, a epifânica certeza de que
a vida cotidiana não é somente aquilo que é possível contar,
que suas possibilidades não se esgotam em sua capacidade
de planejamento e execução, no acúmulo de objetos e
funcionalidades que permitem o acesso a possibilidades outras
de vida: basta! – suspira extenuado e com os pés na salmoura, o
cotidiano escapa incessantemente à potência de capitalização da
cotidianidade.
No breve instante em que Lefebvre burla certo paradigma,
Blanchot encontra toda uma potência de insuportabilidade, tão
cara e próxima a seus movimentos essencialmente negligentes,
mortíferos, desejosos de nulidade: não importa o que Henri
passou a fazer: por um instante ele não teve esperanças, não
rendeu-se à cotidianidade e a suas tentações de mudança, de
variações legais, de planejamento e organização (mesmo às mais
tentadoras tentações: organizar a Revolução da Vida Cotidiana).
Suspendeu-se, assim, a exigência de dois planos (material/ideal)
para animar o cotidiano.
Esta brevidade, este bolsão de ar bastou a Blanchot.
<18:06>
eu mesmo lá, diz o primeiro teste- 12.1
munho, linssado cada qual com 12.2
suas publicações; quatro pares de 12.3
XII – Da biografemáticca.
90 • 91
p.436); e para pesquisar neste cenário, somente uma biogra-
femática.
<23:43>
sem vir torna o ir via; motim 13.1
lhe espera no passo em curso – o 13.2
oídio, ronca tripas, ouvê mouco 13.3
Referências
BARTHES, Roland. A Preparação do Romance I: da vida à obra.
(Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005a.
CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2004a.
92 • 93
CORAZZA, Sandra Mara. Currículo. In: AQUINO, J.G; CORAZZA,
S.M. (Orgs.). Abecedário: educação da diferença. São Paulo: Papirus,
2009, p.40-46.
I.
“[...] de manhã
eles estão lá fora
ganhando dinheiro:
juízes, carpinteiros,
encanadores, médicos,
jornaleiros, guardas,
barbeiros, lavadores de carros,
dentistas, floristas,
garçonetes, cozinheiras,
motoristas de taxis...
e você se vira
para o lado esquerdo
pra pegar o sol
nas costas
e não
direto nos olhos”1.
Charles Bukowski. “Poema nos meus 43 anos”. Presente em Os 25 melhores poemas de Charles
1
Bukowski (2003a).
III.
“20 Tanks from Kasseldown” foi aceito e publicado na ter-
ceira edição da Portfolio, ao lado de trabalhos de Jean Genet,
Federico García Lorca, Henry Miller e Jean-Paul Sartre. No
espaço reservado aos colaboradores, uma breve nota autobio-
gráfica tratava de apresentar o estranho escritor:
A maior parte das informações sobre a vida de Bukowski foi retirada do livro Charles Bukowski:
2
vida e loucura de um velho safado, de Howard Sounes (2000), e do documentário Bukowski: born
into this, de John Dullaghan (2003).
98 • 99
IV.
Sexta-feira, noite de 14 de abril de 1865. John Wilkes Booth
adentra no camarote presidencial do Teatro Ford, em Washington
DC, e atira contra Abraham Lincoln, atingindo-o pelas costas. O
presidente norte-americano, que no momento do disparo assiste
a peça Our american cousin sentado ao lado da esposa, morre
cerca de nove horas mais tarde. Segundo os registros médicos,
a bala teria entrado pela parte posterior da orelha esquerda e
se alojado atrás do olho direito. No mesmo momento em que
Lincoln é alvejado, o secretário de estado William H. Seward é
esfaqueado em seu quarto por Lewis Payne, um ex-combatente
da guerra civil americana3. Três meses mais tarde, na manhã
de 7 de julho, Payne é fotografado em sua cela por Alexander
Gardner. Poucas horas depois, à tarde, ele será enforcado. A
bela foto, reproduzida por Roland Barthes (1984, p.143) em A
câmera clara, punge por nela podermos ler, ao mesmo tempo, o
isso será e o isso foi: ele irá morrer e no entanto já está morto. Para
além desse punctum de intensidade (o que nos captura não é o
detalhe, mas sim a ênfase dilaceradora de um esmagamento do
tempo), compartilho com Barthes a beleza do jovem, que, no
entanto, não deixo de dramatizar na cela bukowskiana retratada
nas páginas da Portfolio: não seriam essas mesmas mãos agora
presas que já não podem mais segurar garrafa alguma? Não é de
Payne “uma dignidade que fazia pensar em reis, em príncipes,
em coisas protegidas e arruinadas”, de modo que se você não
o conhecesse pensaria de fato “que a vida não lhe provocara
qualquer marca”? Não deixo de ler a história de um pelos olhos
de outro, através de seu rosto “a um só tempo jovem e idoso”4.
3
Os dados sobre o assassinato de Abraham Lincoln são retirados do livro Lincoln, de Allen C.
Guelzo (2010).
4
As citações entre aspas são retiradas do conto “20 Tanks from Kasseldown”, tal como foi traduzido
e publicado em Pedaços de um caderno manchado de vinho (2010).
E penso que talvez seja isso, afinal, a textualidade: um encontro
em que se tornam indiscerníveis linguagens até então distintas,
ou simplesmente a constituição intensiva da menor distância
entre dois ou mais pontos. É nesse estranho relevo que podemos
escutar os rumores do corpo.
V.
Desde a frase inicial de Misto quente, romance ambientando
na infância (“A primeira coisa de que me lembro é de estar
debaixo de alguma coisa”), até a velocidade mortal de my first
FAX POEM (“Tarde demais: eu fui abatido”), enviado ao editor
John Martin dias antes de morrer, a ordem arquitetônica através
da qual é construído o universo bukowskiano parece ter as linhas
orientadas por aquilo que Nietzsche (2001) denominava “grande
saúde”: um desejo de vida que não encara o sofrimento como
uma objeção à existência, uma vontade de mais vida que não
diz respeito a um mais além, mas sim a um é isto, a um aqui e
agora de uma vida pequena, mundana, da vida resumida a estar
debaixo de alguma coisa ou a um cotovelo no balcão. Atletismo
semelhante ao praticado pelo jejuador de Franz Kafka (1998), o
artista da fome cuja arte não interessa mais a ninguém, mas cujo
corpo permanece insistentemente preso a uma jaula esquecida
no fundo do circo. O que ambos insistem em recusar, cada um
a seu modo, é aquilo que Deleuze (1997, p.14), em “A literatura
e a vida”, chama de gorda saúde dominante: o ideal de uma
obturação inteiriça, a pregnância plena de um mundo por demais
categórico (Pelbart, 2009, p.44), a mandíbula cheia de dentes
e forte o bastante para devorar tudo aquilo que é necessário à
sua liberdade. Em tal meio, a imobilidade extensiva é páthos,
o testemunho literário dos gestos de uma vida à esquerda dos
movimentos da razão orientada por imperativos morais, de uma
100 • 101
fragilidade e de uma transitoriedade que já são indícios de uma
vitalidade distinta, onde nenhum esteio tende a ser duradouro.
VI.
Caro Sr. Bukowski:
Atenciosamente,
Whit Burnett
A citação é retirada de “As consequências de uma longa carta de rejeição”, tal como foi traduzido
5
VII.
“houve momentos,
faíscas de esperança,
mas eles dissolveram rápido
voltando à velha e mesma
fórmula:
o fedor da realidade”7.
VIII.
Dirigido por Barbet Schroeder, The Charles Bukowski Tapes
é uma coleção de 52 pequenas entrevistas realizadas com
Bukowski durante o período de produção do filme Barfly, por ele
Charles Bukowski. “Nós, dinossauros”. Presente em Amor é tudo que nós dissemos que não era
7
(2012).
102 • 103
roteirizado e lançado em 1987. Em close, a câmera geral-
mente fixa em nenhum momento deixa desaparecer o rosto,
que por vezes sangra para além dos limites da tela. Bukowski
tem mais de sessenta anos, um queixo comprido, lábios finos,
olhos tristes, apertados e encovados. A fala é suave, movendo-
se lentamente, por vezes caindo ou mesmo desistindo, conse-
quência provável de uma infância atormentada pela solidão e
a violência paterna. São monólogos de dois, cinco, não mais
que dez minutos, sobre sua vida e obra, ideias, lembranças
e relatos que não parecem deixar de fora nada daquilo que se
pode encontrar nos livros. Durante a entrevista #27, sentado
no sofá de sua casa, falando sobre os primeiros anos como
escritor, Bukowski estabelece um paralelo entre o seu projeto
poético e o de Jack Kerouac, referência maior dentro do movi-
mento Beat (ao qual Bukowski não deixa de ser associado): a
beleza que se enxerga em Kerouac não é possível de ser visua-
lizada em sua obra, uma vez que de um lado temos alguém
que vai para a estrada satisfeito, e de outro alguém que vai
para a estrada simplesmente porque não há lugar para onde
ir ou onde ficar. “Para mim”, sentencia, “nunca houve chance
de ajuda”. De fato, o universo bukowskiano comporta um
atletismo diferente, tal como se lê no poema “O que precisamos”8,
onde a verborragia, a impaciência e a pressa do poeta Beatnik
são deixadas de lado em favor do silêncio suave da geladeira.
Em Bukowski, não se trata de uma simples recusa, de uma
opção por não integrar, não fazer parte, mas sim de um traço
profundo de estrangeiridade. “Tudo é feio e tudo sempre foi
feio”, tal como se lê em Misto quente. Não há, assim, razão
para negar coisa alguma e tampouco esperar por ajuda.
9
O livro Vida desalmada, lançado no Brasil pela Spectro Editora (2006), traz uma interessante
discussão a respeito do necessário distanciamento de Bukowski do movimento Beat, abordando a
questão pelo viés do traço estrangeiro característico de sua obra.
10
Charles Bukowski. “Splash”. Presente em Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não
ser a mim mesmo amém (2005).
104 • 105
Uma tessitura obscena, e não a afirmação de uma identi-
dade outsider: o texto é sempre tecido (BARTHES, 2006, p.74),
véu epidérmico de entrelaçamento contínuo, onde o sujeito se
desfaz ao mesmo tempo em que constitui sua teia, o seu terri-
tório, o seu próprio modo de dizer eu. No texto, esse vinco que
rebenta, escorre e faz sangrar a obra, o destino do autor não
pode ser outro que não o de ser ele próprio a vítima de um des-
gaste, de um decaimento do nome, da falência de uma função
(BARTHES, 2009, p.299). Em suma, se a obscenidade existe, é
sempre no momento em que o autor está à deriva, tornado es-
trangeiro em sua própria morada. É ela a garantia da fuga, é por
ela, pela constituição de um corpo obsceno, que o autor se parte.
X.
Em 1979, no prefácio que escreve para a reedição de Pergunte
ao pó, Bukowski faz apenas uma referência à vida de Fante,
definindo-a como “a história de uma terrível sorte e um terrível
destino e de uma rara coragem natural”. Mantendo em suspenso
os pormenores desses três traços e deixando de lado o autor,
descrito simplesmente como “um homem que não tinha medo
da emoção”, a seguinte escolha é feita: ao invés da vida de Fante
e das minúcias da obra, o que é dito é o efeito que a última tem
naquele que a apresenta. Um testemunho é o que é oferecido. Um
testemunho ao autor, um testemunho ao livro. Nenhuma análise,
nenhuma interpretação. A premissa bukowskiana é simples:
Fante foi seu deus, e os deuses devem ser deixados em paz. Você
não bate em suas portas. O olhar, então, permanece detido não em
Fante, mas no jovem leitor passando fome e bebendo e tentando
ser escritor, fazendo suas leituras na Biblioteca Pública de Los
Angeles, dando voltas na grande sala, tirando livros das estantes,
lendo algumas linhas, algumas páginas, e depois os colocando
de volta, pois nada do que diziam tinha a ver com ele ou com
as ruas ou com as pessoas que o cercavam. É esse Bukowski que
encontra e é arrebatado por Pergunte ao pó. É esse Bukowski que
grita e afirma der Arturo Bandini. É esse Bukowski que gosta de
perambular por Bunker Hill e tentar adivinhar onde Fante teria
morado em Angel’s Flight, se era aquela porta de hotel, se era
aquela a janela pela qual Camilla se arrastou, aquela palmeira,
aquele saguão. Seus movimentos, suas confissões e seus trajetos
– que são os trajetos de Arturo e também os de Fante – acabam
por traçar, mesmo que de maneira tênue, os limites de um espaço
biográfico: Prefácio-Micro-Bio-Fante-Bukowski-Bandini-Grafia,
justificado por uma figura central – um estrangeiro que sonha em
ser escritor em Los Angeles –, que é quem garante a possibilidade
da escrita. Tal como refere Barthes (1979, p.10), não há nada
mais deprimente do que considerar o texto como um objeto
intelectual – seja de reflexão, de análise, de comparação etc. O
texto é um objeto de prazer, e este prazer se realiza de maneira
profunda nos momentos em que o livro transmigra para dentro
de nossa vida, quando a escritura do outro escreve fragmentos de
nossa própria cotidianidade. É essa coexistência, esse viver com
Fante, o que é experimentado por Bukowski. Por sua vez, deixar
um deus em paz, não bater em suas portas, garante ao autor uma
dispersão e um deslocamento que acabam por impossibilitar a
unidade de um sujeito que só pode então se configurar como um
plural de encantos, o lugar de alguns pormenores tênues capazes
de tocar e ocupar algum espaço na vida que os encontra. Fante,
para Bukowski, é um efeito de leitura.
XI.
Inspirado em Na pior em Paris e Londres, relato autobiográfico
de George Orwell sobre o miserável período entre guerras por ele
106 • 107
vivido na Inglaterra e na França, Factotum é o testemunho de um
Bukowski nas décadas de 1940 e 1950, anos em que a inaptidão
para o serviço militar norte-americano e a ausência de publicações
fazem companhia a uma série de trabalhos braçais que têm como
objetivo manter a escrita enquanto um ato possível. De certo
modo, tudo o que daí emana será investido de algo semelhante
ao que Julio Cortázar (2008, p.34), ao falar a respeito do signo da
excentricidade sob o qual podem ser classificados muitos de seus
escritos, defendia ser um temperamento capaz de não renunciar
à visão pueril como preço da visão adulta, justaposição esta
que é manifesta por uma participação não mais que parcial em
qualquer estrutura ou circunstância. Se no exercício de viver tal
descolocação pode ser disfarçada, não se pode negá-la no que se
escreve, uma vez que se escreve precisamente por não estar ou
por só estar pela metade, por um estar sempre um pouco mais
à esquerda ou mais ao fundo do lugar onde deveria estar para
que tudo encaixasse satisfatoriamente em mais um dia de vida
sem conflitos. Para Bukowski, a literatura é sempre o índice de
uma lateralidade, de uma paralaxe verdadeiramente eficaz na
construção de seus interstícios (“Escrevo para ter uma função”,
ele declara em “Pedaços de um caderno manchado de vinho”
(2009, p.48). “Sem isso cairei doente e morrerei. É tanto parte
de alguém quanto o fígado ou o intestino, e quase tão glamoroso
quanto”). É apenas no interior dessas fissuras que se faz possível
não aderir completamente ao próprio tempo.
XII.
Na rapidez de “Treinamento básico”11, breve e derradeiro
ensaio a respeito da escrita, uma vez mais a defesa do isolamento
e da simplicidade, dois dos deuses pessoais mais caros à poiesis
108 • 109
Se não há nada a temer e nada a ser lamentado na morte,
é porque – é nisso que insiste Bukowski (2003b, p.15) – o eixo
pobre ao redor do qual se costuma fazer girar a vida faz com
que não nos sobre muita coisa para morrer no final do percurso.
O que é terrível, então, não é a morte, mas sim a vida que se
leva ou não se leva até ela. Frente a isso, trata-se de operar uma
espécie de recuo: não mais as grandes avenidas; não mais o
esforço militante; não mais o olhar morno com o qual estamos
acostumados. Em uma direção contrária, trata-se de uma
afirmação daquilo que Agamben (2002) denominou “vida nua”:
a vida enquanto fato não qualificado, não formatado, e que por
isso mesmo é capaz de se insinuar em sua plena potência, para
além de bem e mal. Tal como refere Deleuze (1998, p.113), os
marginais sempre nos causaram medo e um pouco de horror,
simplesmente por não serem clandestinos o bastante. Ocorre
que há em cada movimento errático, em cada desistência, em
cada ressaca e em cada gole de mais uma cerveja, a inscrição de
uma pequena fissura no cinza chumbo do concreto com o qual
estruturamos as nossas certezas e os nossos valores cotidianos.
XIII.
“Uma coisa que a morte não suporta é que você ria dela”,
escreve Bukowski (2003b) em seu diário, no final da noite de 12
de setembro de 1991. O verdadeiro riso, insiste ele, é capaz de
ganhar a maior das apostas.
XIV.
A sequência final de Factotum, filme de Bent Hamer, é
definitiva. Do banco da praça à agência de empregos; do
formulário preenchido com dados mínimos à garrafa de vinho
envolvida por insetos e papel pardo; do soco na cara à expulsão;
do lado de fora e a calçada a outro bar, à outra garrafa, à
convicção expressa em “Jogue os dados”:
110 • 111
se você for tentar,
vá até o fim.
não existe nenhuma sensação
parecida.
você ficará a sós com os
deuses
e as noites se farão em chamas com o
fogo.
faça, faça, faça.
faça.
até o fim
até o fim.
você conduzirá a vida direto à
risada perfeita, é
a única batalha
pela qual vale a pena lutar.13
XV.
A literatura, ou simplesmente: a vida, como valor maior.
A escritura com o corpo, com o sangue, com o excesso que a
distancia da moralidade vigente e dos modos de existência nela
implicados: tímido esboço de uma ética, à maneira de Michel
Foucault (2006): uma prática de liberdade, uma condução
da própria vida enquanto definição de um estilo de existência
capaz de resistir às tecnologias de assujeitamento. Tal arte
de viver, contrária a todas as formas de dominação, parece
até mesmo capaz de orientar um certo número de princípios
essenciais, como que compondo um pequeno manual da vida
cotidiana:
Presente em Amor é tudo que nós dissemos que não era (2012).
13
1. Isolar-se;
2. Não esquecer dos detalhes em favor de nenhuma totalidade;
3. Não abraçar nenhuma noção em detrimento às sensações;
4. Jamais condenar a vida, jogando os dados outra vez e não
virando as costas a um espetáculo estimulante na esquina (por
menor que ele possa parecer);
5. Não permitir que nenhum conceito faça esquecer o múl-
tiplo, o primeiro dia de primavera e o último e a primeira
linha deste texto e uma lua alta sobre a impossibilidade;
6. Ter em mente o valor do pequeno, assim como a utilidade do
inútil: uma outra dose; aquele brinco sobre a cômoda; o papel
higiênico com a ponta delicadamente dobrada no banheiro
do hotel; o obtuso do sentido; o sentimento de não estar
totalmente e o gesto que consiste em pôr o dedo indicador na
têmpora e movê-lo como quem aparafusa e desparafusa; um
pequeno livro azul de Cortázar; a cidade esperando; o frio e a
chuva e o vinho e as flores; ainda mais dias, outros dias, outras
noites
etc
etc
etc.
XVI.
O isolamento é sabidamente uma operação central em
Bukowski. Escolha seu próprio piano e espanque-o com força,
como em um luta de pesos pesados, saiba como fazê-lo: lição
número um de escrita. No entanto, o isolamento pode também
ser pensado enquanto um pressuposto idiorrítmico, e não apenas
espacial: nesse sentido, ele é sempre o de um ritmo em relação
aos outros, a garantia de seu movimento, de sua permanência,
ao mesmo tempo em que, para ele próprio, funciona como
112 • 113
um imperativo ético: não subjugar, não sobrepor-se, garantir a
insistência do outro, por mais terrível que seja. Ser um estran-
geiro em seu meio: eis aí a lição segunda.
Ele vai encher o copo e irá engoli-lo de uma só vez. Vai lhe
perguntar se você está mal e você vai responder que nunca esteve
melhor. E então provavelmente ele irá dizer que tem dormido
mais que você tem vivido. E isso, para todo o mundo, terá
grandiosas chances de ser verdade. E você não fará nada. Não
mudará nada. Não dirá uma única palavra. Você sempre soube
que está apenas seguindo em frente. E que não há mesmo nada
mais a fazer quando se está disposto a tentar. E você sempre
esteve disposto a tentar. Pois se não estivesse nem mesmo teria
começado. E é justamente por isso que você permanecerá imóvel.
Silente. A primavera nos dentes. Se fosse dizer algo, diria que já
nem lembra mais quando morreu. Que até poderia ter vivido tudo
de uma só vez. Mas não o quis. Mas não o pôde. Mas não o fez.
Diria que vive aos poucos. Aos pedaços. Beberia mais um gole e
diria que nunca está à altura do presente. Que o presente sempre
lhe ultrapassa um pouco, deixando-lhe apenas pedacinhos de
vida recobertos em um véu de melancolia. Você não lamentaria
um dia sequer. Uma dose sequer. Diria apenas que mais um
ano se foi e você não perdeu nenhum dia disso. Mas não. Não
dirá isso. Não dirá nada. O coração de Tróia. Nenhum lírio aos
anjos. Nem agora nem mesmo no final. Quando irá até o final.
E quando se aproximar do fim. E então quando souber que é o
fim. Às favas com tudo isso. Quando ele encher mais um copo.
E você ainda estiver trabalhando no seu. Quando estiver enojado
disso. Quando irá vomitar e ele irá descobrir que é isso. Você
vomita. Não escreve. Alguém que simplesmente vomita. Jamais
alguém que escreve. Dê a ele isso. Hão de implorar-lhe que dê a
ele isso. Um pedaço apenas. Um minuto ou menos em meio a
isso. Não seria necessário mais. Um minuto ou menos envolto
em seu pequeno e melancólico véu de poeira do presente. Você
bem que poderia compartilhar um pouco disso. Deixe-lhe um
minuto apenas. Um instante que seja com todo o pouco. Dose.
Linha. Dose. O dia seguinte. Dose. A grama tão verde e a vida
tão morrendo de sede. Faça-o implorar por um pouco disso. E
então lhe dê. E então tome de volta. Certamente, sua música irá
mudar de tom.
XVII.
Os últimos anos de vida de Bukowski, junto à esposa Linda
Lee, foram confortáveis, ao contrário da quase totalidade restante
de sua vida. Tal como refere Howard Sounes, em Charles Bukowski:
vida e loucuras de um velho safado, diversas foram as ocasiões em
que não havia crença no futuro, e que a morte parecia mesmo ser
a melhor das opções. Mesmo a luta contra a leucemia, segundo
Linda, soava como apenas outra época difícil: “a começar pela
infância, ele estava acostumado a ter uma vida dura, e não era
diferente em certos aspectos. Era só outra porrada. Veio a ser a
mais dura, eu acho, mas não o fez mudar”.
XVIII.
Na manhã de 18 de fevereiro de 1994, Bukowski instalou uma
máquina de fax em sua casa. Nesse mesmo dia, às 14h14min,
enviou ao editor John Martin uma mensagem intitulada #1.
Nela, aquele que acabaria sendo o seu último poema. Após a
114 • 115
morte do amigo, poucos dias depois, Martin copiou e numerou
10 cópias de #1, para então distribui-las a colecionadores e
clientes regulares da editora Black Sparrow. O poema jamais foi
publicado em outro formato.
XIX.
Bukowski não escreveu uma única linha em seus 19 últimos
dias de vida. “A mente estava lá”, relata Linda, “mas ele não
conseguia fazer nada, porque o corpo não aguentava”. O corpo
parara. Às 11h55min da manhã da quarta-feira, 9 de março de
1994, Bukowski morreu. Nesta mesma noite, no Musso & Frank,
seu restaurante preferido em Hollywood, o barman Ruben Rueda
cancelou o pedido dos vinhos brancos doces alemães, Rieslings
e Liebfraumilch, estocados especialmente para Bukowski, que
costumava sentar-se ao bar para beber uma garrafa de cada um
antes do jantar. Linda, que na hora da morte estava ao lado do
marido, abraçou seu rosto, sussurrou algumas palavras em seu
ouvido e beijou lentamente sua testa. Havia uma transparência
e uma serenidade no ar, e Bukowski tinha o rosto suave como o
de um recém-nascido.
XX.
Segundo Howard Sounes, a literatura bukowskiana talvez
não precise ser classificada sob o signo do cinismo, tal como
costumeiramente é feito. Para ele, é possível que Bukowski “só
tivesse uma visão realista de como as pessoas se comportam, e
não julgasse necessário dar-lhes o benefício da dúvida”. O editor
John Martin, responsável pela publicação da quase totalidade da
obra de Bukowski, é direto: “ele não é um autor de peso, e nunca
terá um público de peso”.
XXI.
O funeral de Bukowski foi realizado em 14 de março de 1994,
em uma tarde quente e enevoada em Los Angeles. Conforme
se lê na biografia escrita por Sounes, “tinham-no vestido com
uma camisa, uma jaqueta e posto canetas no bolso da frente,
como se estivesse a caminho do Hollywood Park, e encerrado-o
em um caixão feito de álamo”. Dentro da capela, “um prédio
comum que parecia um bangalô de bairros de classe média, com
diferença de ter vitrais na porta” os poucos amigos e familiares
presentes perceberam um forte e insistente cheiro de queimado.
“Lembro de ter pensado que era apropriado”, confessou mais
tarde o amigo John Tomas, que estava lá com sua esposa.
Paris às escuras”14.
XXII.
Em seu Nietzsche, Deleuze (2009) defende a ideia de que a
morte, assim como a doença, deve ser pensada como parada
Charles Bukowski. “A new war”, presente em Charles Bukowski: vida e loucuras de um velho
14
116 • 117
em um processo vital, este feito essencialmente de conexão
e expansão, experimentação e fuga. O lamentável, portanto,
é sempre o corte definitivo. Em Bukowski, a morte mostra-se
tão inevitável e ordinária quanto um dia comum: sob muitos
aspectos, não é nada demais. “Não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher deixada sozinha com esse monte
de coisa nenhuma”, escreve ele no poema “Confissão”15. Seja
como for, a morte é sempre uma impossibilidade, e a dor só é dor
quando é o choque daí proveniente: não mais fazer as mesmas
coisas. Não mais a persistência dos tantos e mesmos dias.
XXIII.
“tudo se resume à chuva, à luz do sol,
ao trânsito, às noite e dias dos
anos, aos rostos.
deixar isso será mais fácil do que
viver”16.
15
Presente em Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém
(2005).
16
Charles Bukowski. “Assim que os poemas vão”. Presente em Essa loucura roubada que não desejo
a ninguém a não ser a mim mesmo amém (2005).
dançado à beira do abismo. Em Pulp, não se trata mais de entrar
em algum lugar, mas sim de sair de todos os outros. Não existem
outros casos, outros interesses, apenas o ritmo que o leva ao sul
de lugar nenhum, a uma viagem ao fim da noite, uma viagem
que vai da vida à morte, uma morte a crédito, aos poucos, até o
outro lado da vida. Encontrar Céline, o clamor de sua obra, com
seu próprio refrão. O ritmo sufocante de Belane já é outro que
não os de seus predecessores, todos eles personagens malditos
e errantes, que precisavam necessariamente se reterritorializar
em mais uma garrafa, em um outro gole, em outro balcão.
Tudo por desde sempre terem ficado de fora do grande sonho
americano, e por só assim conseguirem seguir respirando, em
busca da penúltima dose, aquela com a qual possam ainda voltar
na próxima página. As territorialidades vagabundas, baratas,
pequenas organizações esfarrapadas em ponto de apoio, agora
estão todas desfeitas. No final, trata-se de um velho puro-sangue
correndo ao lado da morte, de uma forma mais intensa, mas
nem por isso menos sutil, pelas sonoridades existentes entre um
outro gole e outro, entre uma ressaca mal curada e uma outra
ordem, um outro perdão. O pardal vermelho abre seu enorme
bico, o caso está encerrado.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua
I. (Trad. Henrique Burigo). Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
118 • 119
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. (Trad. Isabel Pascoal). Lisboa:
Edições 70, 2009.
BUKOWSKI, Charles. Amor é tudo que nós dissemos que não era.
(Trad. Fernando Koproski). Rio de janeiro: 7Letras, 2012.
120 • 121
O dia em que saí à procura de
Henry Miller e não voltei mais:
tentativa biografemtica
Luciano Bedin da Costa
O DIA EM QUE SAÍ À PROCURA DE
HENRY MILLER E NÃO VOLTEI MAIS:
TENTATIVA BIOGRAFEMÁTICA1
Luciano Bedin da Costa
Este Texto – devidamente sacudido, aspirado – é uma transleitura da Parte II do Projeto de Tese
1
124 • 125
que se perdeu ou que foi mesmo deixado de lado. Miller então
nos conta novamente como se fosse desprovido de memória. É
a um homem-sem-memória que somos apresentados quando nos
deparamos com algo sendo dito pela segunda ou terceira ou
quarta vez. Sua escritura, nitidamente autobiográfica, joga-nos,
todavia, às nossas próprias memórias do subsolo, lembrando-nos
de que somos feitos de matéria dostoievskiana antes mesmo
de qualquer psicanálise. Não há espaço para recalcamento em
seu retornar. Se os acontecimentos retornam é para que possam
ser colocados em trânsito. Do recalcado passa-se ao transitável,
transitório. Transit (1977) é o título de uma peça de teatro assinada
por Miller e que me parece dizer exatamente isso. Georges
Belmont, o tradutor e editor do livro para o francês, escreve
na contracapa do mesmo: “A primeira virtude de Miller, como
bem se sabe, é a liberdade. Ela comanda toda sua obra, toda sua
vida. A liberdade é, para ele, um ato de amor – amor pela vida,
por tudo”. Em função desta liberdade, deste amor incondicional a
tudo que flui2, os retornos de Miller, infindáveis que são, também
nos colocam diante do tempo enquanto matéria expansiva, um
tempo anárquico que desorganiza a coisas, que troca os nomes,
os fatos e as datas em função, não do recalcamento, mas da
fabulação. Alguns personagens mudam de nome e de ambiência
de romance para romance. Um leitor mais interessado em seus
dados biográficos com certeza irá identificar alguns destes na
vida do escritor.
O terceiro ponto que me parece ser significativo na obra de
Miller é a força de tornar potencialmente pensável qualquer
Uma das passagens mais lindas de Miller está em Trópico de Câncer (1987, p. 243 - 244), a qual
2
reproduzo de forma bastante resumida: “ (…) eu amo tudo o que flui: rios, esgotos, lava, sêmem,
sangue, palavras, sentenças. Amo o líquido amniótico quando escorre da bolsa. Amo o rim com
seus cálculos dolorosos, suas pedras e não sei o que mais: amo a urina que escorre escaldante e
a gonorréia que corre sem parar (…) Amo tudo o que flui, até mesmo o fluxo menstrual que leva
embora a semente não fecundada (...)”.
matéria sensível que se atravesse na vida. Sua literatura, sobretudo
os romances, são habitados por longas divagações, por devagar/
ações que suspendem o sensório-motor da narrativa fazendo-nos
entrar num regime onírico-onto-filosófico. Uma cena como a
que dá início a Sexus (2004), de uma longa e excitante trepada
num táxi, é imediatamente cortada. Somos então jogados para
uma outra ação de pensamento, esta lenta e calma e certeira,
acerca do ato de escrever. Lindas páginas nos são oferecidas,
de um potente e rebuscado entendimento acerca do que é a
escritura e seu processo de criação. Em Primavera Negra (1966),
a alfaiataria do pai, com seus clientes ordinários e achatados
pela vida comum, cede lugar a uma longa narrativa surrealista e
aparentemente esquisita, ao melhor sabor bretoniano.
Espinosa, o filósofo, falava do conatus como a força capaz
de manter uma coisa em seu estado de existência. Para mim,
o conatus milleriano é essa força de tornar grafável as vidas que
nos acometem, de realizar bio/grafias tornarndo plural e mesmo
impossível o exercício de uma única biografia. Neste sentido,
o conatus milleriano é isso que torna miserável o trabalho de
um biógrafo. Talvez por isso eu tenha também me enveredado
tanto na leitura das diversas biografias dedicadas ao escritor, ora
deliciando-me com os fatos, ora me divertindo com a estratégia
do biógrafo para fugir ou aceitar os afetos produzidos.
De certa forma, aceitando que a biografia é impossível,
acredito ter realizado alguma coisa próxima disso lá em meados
de 2008. Neste breve texto darei conta de apresentá-la. Uma
correção: aquilo que me refiro como a sua biografia é, na
realidade, a grafia de uma vida que nos atravessou por inteiro.
Talvez eu tenha mesmo partido de Henry Miller, mas é ela, a
vida, que nos parte sempre que tentamos mais uma vez grafá-la.
Se saí desta intacto ou se tracei uma bela ou tola biografia, não
tenho ciência. Sei apenas que lá fora o mundo está explodindo,
126 • 127
derretendo, e todos reclamam do barulho da água fervendo na
chaleira. Mas isso me parece ser uma outra coisa, um outro tipo
de vida. Talvez algum outro biógrafo venha um dia a escrevê-la.
128 • 129
Pelas diagonais
130 • 131
A biografia é um ato de rostidade. Mas do rosto que se produz
quando a cabeça deixa de fazer parte do corpo e quando as
rugas e os pés-de-galinha não somente ciscam o solo sagrado do
vivido. Se vida é sempre o que ultrapassa o comunicável, então
biografar será necessariamente um ato de impossibilidade. Mas
o impossível é apenas uma dentre as linhas de mundos possíveis.
O biógrafo inscreve a impossibilidade no seu escrito. Ele dá
uma forma escrita à vida <uma grafia ou um rosto> tratando de
operar com a própria vida que range a partir desta forma. “Se há
um destino no homem, será o de tornar-se clandestino do rosto”,
escrevem Deleuze & Guattari (1996), nem que para isso se tenha
que “tirar um olho para não ficar assim tão humano” – Henry
Miller (1966). O rosto não é mais aquilo com o qual se olha mas
isso que escoa ao se escrevê-lo.
132 • 133
estado de disponibilidade <e tenta dizer alguma coisa a partir
disso>. Lembro das palavras de Miller no início de seu Opus
Pistorum (1985), as quais me soam como uma perfeita indicação
metodológica:
Sobre o conceito de thorubos proponho a leitura do capítulo “Thorubos da Palavra”, o qual faz
3
parte do meu livro Estratégias Biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry
Miller, publicado 2011 (Editora Sulina).
que me deparo com um escrito que se anuncia biográfico.
Seja por uma obsessão, por um amor ou até mesmo por uma
fria encomenda, penso no biógrafo como aquele que mergulha
naquilo que poderia ter sido a vida de seu biografado. Ele
percorre manuscritos, escuta relatos, esmiuça a história pregressa
em busca dos vestígios mais confiáveis. Até que uma hora ele
diz, chega, está pronta a biografia! E o seu biografado é jogado ao
mundo. Finda-se a biografia <alguém haverá de escrever outra
mas a sua é finalizada>. Sempre haverá algo a ser dito, uma outra
palavra depois da última – neste sentido, penso que a biografia é
sempre uma frase inconclusa. Sobre este ingrato trabalho de um
biógrafo, Philippe Sollers (1994) escreve:
134 • 135
contando os segundos para que definitivamente ele <não>
venha. Quanto ao que escrevo, o procedimento é outro. Abro
livros ao acaso, detendo-me nas inúmeras e coloridas marcações
que faço. Na realidade, acho que busco o golpe, um pequeno
golpe de relâmpago que seja <na realidade, não acredito que
relâmpagos ofereceçam pequenos golpes – fracos ou fortes, eles
são sempre letais>.
136 • 137
daquele que a lê. Talvez seja isso que Alfred Perlès escreve no
epílogo de sua biografia: “Esta é sua história, caro leitor”. Isto
faz um enorme sentido para mim. E se aquela biografia de
Miller não conta a minha história, ao menos sinto-me parte dela,
aspirado, refrescado.
Sobre/posições
“Henry Miller sempre volta. Sempre fez o mesmo: regressar,
voltar, olhar, encontrar”, escreve o biógrafo Vignati (1976). A
eterna viagem de retorno aos lugares e fatos, compõe aquilo
que Alejandro Vignati chama de alegria do retorno. Neste
4
Henry Miller é também conhecido como o escritor dos Trópicos em virtude de sua primeira trilogia,
Trópico de Câncer, Primavera Negra e Trópico de Capricórnio, publicados na década de 30 e por
muito tempo censurados nos Estados Unidos.
5
A Hora dos Assassinos é um livro publicado em 1956, onde Henry Miller se propõe a fazer um
estudo <à sua maneira> sobre Rimbaud a partir da frustrada tentativa de traduzir um dos seus
poemas.
138 • 139
jogo de sobreposição de reminiscências a obra milleriana se
sustenta, cada qual funcionando como simulacro de outra, uma
composição que ao invés de complementar, amplia a superfície,
propondo novas entradas e saídas. A missão do homem sobre a
terra é recordar para recordar, escreve Henry Miller (1998). Nunca
140 • 141
do destino, alguém for escrever minha biografia, a recomendação
que faço <em vida> é seguinte: tudo o que for passível de caber
numa só frase. Na realidade, é o que eu gostaria de ter feito com
Miller neste texto. Pois bem, mais uma vez falhei. E a vida segue,
escorregando. Que bom.
Referências
ASSOCIATION, Henry Miller. Les Cahiers Henry Miller, v.1 France:
Éditons William Blake and Co. Juin, 1994.
142 • 143
Tratado fragmentário do
biografema – O retorno do eu,
com Barthes, Kerouac e Deleuze
Gabriel Sausen Feil
TRATADO FRAGMENTÁRIO DO
BIOGRAFEMA – O RETORNO DO EU,
COM BARTHES, KEROUAC E DELEUZE
Gabriel Sausen Feil
146 • 147
rebanho! Então, Barthes não mente sobre Sade, mas se apropria
desse escritor a partir de detalhes que até então eram foscos e
desprovidos de sentidos, tais como o seu regalo branco (ou como
os vasos de flores de Fourier ou os olhos espanhóis de Loyola).
Acaba inventando um novo Sade (no sentido de um Sade que
ainda não era dito e nem escrito), um novo Fourier e um novo
Loyola não porque mente, mas porque se apropria de algo que
ainda não havia sido percebido e significado: “o que me vem
da vida de Sade não é o espetáculo, embora grandioso, de um
homem oprimido por uma sociedade em razão do fogo que ele
carrega (...). É seu regalo branco quando abordou Rose Keller
(...); o que me vem da vida de Fourier é seu gosto pelos ‘mirlitons’
(bolinhos parisienses aromatizantes), sua simpatia tardia pelas
lésbicas, sua morte entre os vasos de flores; o que me vem de
Loyola não são as peregrinações, as visões, as macerações e as
constituições do santo, mas somente ‘os seus belos olhos, sempre
um pouco marejados de lágrimas’” (p.XVI). Os detalhes não são
simplesmente identificados, mas são inventariados, pois inéditos.
148 • 149
é o que foi dito, mas sim a tendência em querer produzir uma
nova escritura.
150 • 151
as cabeças erguidas nos romances de Kafka, inventariadas
por Deleuze e Guattari (1977): são sobras na medida em que
se constituem em detalhes que somente adquirem sentido no
registro da escritura em questão.
152 • 153
disparado pelos traços, mas também repleto de biografe-
mas) => (c) biografema (pormenores deixados por uma escritura
do tipo biografemática, os quais passam a funcionar, na ótica
no leitor, como os traços; afinal, são eles que passam a disparar
novas escrituras). Traços biografemáticos e biografemas se
confundem e até fundem-se, sendo que a distinção é meramente
didática: a primeira expressão se refere ao início do procedimento
biografemático, e a segunda se refere ao final. Do ponto de vista
daquele que produz uma escritura biografemática, o biografema
é o seu resultado (é o final); mas do ponto de vista daquele que lê
tal escritura e que, por ela, deseja escrever, o biografema é o seu
início, pois funciona como o traço biografemático que o coloca
a produzir uma nova escritura. Ainda existe a possibilidade de
um traço biografemático não ter sido nunca um biografema,
visto que pode não ter sido percebido numa escritura, mas,
simplesmente, inventariado na vida.
154 • 155
2005a, p. XVI, XVII); e se existe a possibilidade de se amar um
sujeito do texto, é somente o tomando de modo dispersivo: pode-
se amar traços biografemáticos desse suposto sujeito.
156 • 157
abreviada, você sempre aprende alguma coisa e aprende a mudar
seus pensamentos”.
158 • 159
floreada e relógio no pulso, levando à boca copos de cervejas
altos e estreitos” (p.28). De modo recorrente, Kerouac usa a
estratégia do uso da palavra “que”, logo após uma vírgula, para
singularizar o lugar em questão, ainda que muito singelamente:
“quando chegamos ao hotel, que tinha palmeiras dentro de
vasos” (p.26, grifo nosso).
160 • 161
caráter de integralidade, de soberania histórico-cronológica.
Então, o escritor da escritura biografemática não precisa negar o
eu, já que este não passa de uma fazeção de conta, de um efeito, de
um vício de linguagem; uma questão de conveniência adquirida.
162 • 163
apenas depois, somente podendo ser pensada a partir da
identidade e da semelhança. Segundo Deleuze (2006, p.121),
“a distinção modelo-cópia existe apenas para fundar e aplicar
a distinção cópia-simulacro, pois as cópias são justificadas,
salvas, selecionadas em nome da identidade do modelo e graças
a sua semelhança interior com este modelo ideal”. A noção
de modelo (os fatos da “vida real”) seleciona as boas imagens,
aquelas que se assemelham a ela (as biografias), e elimina as
más, os simulacros (biografemas). É por conta dessa lógica que o
empreendimento biografemático fica marginalizado e concebido
como imponderado, aloucado e irresponsável.
Referências
BARTHES, Roland. Incidentes. (Trad. Júlio Castañon Guimarães.)
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
164 • 165
BARTHES, Roland. Preparação do Romance vol II. (Trad. Leyla-
Perrone Moysés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005b.
PROCEDIMENTOS PARA
FORJAR AUTOBIOGRAFEMAS
personagemautortextoimagem
170 • 171
desgosto. Quebra, partida, sacudida, deslocamento, forjar um
espaço no racionalismo para a semente do desejo, é então que
surge o texto.
ESCRITURA, ESCRITOR, ESCRIATURA. A escritura
começa pelo estilo. Estilo é, de certa maneira, o começo da
escritura: mesmo timidamente, oferecendo-se a grandes riscos
de recuperação, ele prepara o reino do significante. O escritor
é um doador de sentidos: sua tarefa, seu gozo consiste em dar
sentidos, nomes, e ele só pode se houver paradigma. Ele quer
fazer imagem. Fazer imagem de quando em quando. O texto é
uma utopia; função semântica é fazer significar a literatura, arte,
linguagem.
PROCEDIMENTO, PROCESSO. IMAGEM, ESPAÇO,
TEMPO. O método não é determinado a priori, nem inde-
pendentemente da sua aplicação. Pode ser desenvolvido em
operações efetivas, que o fazem à medida que se fazem. Enquanto
percurso de conhecimento é criação e não descoberta; se produz
algum saber, este nada mais é do que uma perspectiva entre
outras e não o conhecimento único sobre a realidade. Opera
então, a disseminação dos textos da cultura, por meio de fórmulas
irreconhecíveis, bem como a ostentação de textos nômades, para
desligá-los dos sentidos biográficos e bibliográficos já recebidos.
Como se esgota o possível? A combinatória entre nome e
objeto construiria a metalinguagem. Uma língua tão especial
que as palavras dão ao possível uma realidade. Uma realidade
própria, menor. Uma língua dos nomes. Que passa por uma
metalinguagem. E não é mais a dos nomes, mas uma língua das
vozes, fluxos misturáveis. Os outros. Imagens sonantes. Silêncio.
Imagens visuais e imagens sonoras. A imagem como processo,
o espaço. A imagem não é mais objeto, é processo, imagens
sonantes, colorantes. Imagem depende da sensação. Imagem é
aquilo que não vemos. É necessário abrir os poros.
AUTOBIOGRAFEMAS
CONFISSÕES DE DENTRO
Gosto por sabores. Desejo por amores. Atração por diferen-
ças.
“Tudo isso deve ser considerado dito por uma personagem
de romance” (BARTHES, 2003, p.13).
1. A festa
172 • 173
3. Sopa de lentilhas
5. Café. Cointreau.
Paginas em branco.
Vida rabiscada.
Fotos reproduzem espelhos com as moscas, rondando.
Cálice de licor.
É cedo.
Olhares vizinhos.
Atenção ao amor, paixão.
Surpresa, poder.
Casos perdidos.
Cointreau às 22h é tarde.
Vazio, ruminação.
Delírios da realidade.
Vida a dois.
Anos a fio.
Envelhecer, crescer, maturar.
Que ordem é essa?
Depois é que se envelhece ou se envelhece no crescimento?
174 • 175
Sr Yldiz veio, Sr Yildiz foi.
Sr Rossi veio, Sr Rossi foi.
E eu fico, fico na espera da troca de amor.
9. Pré-pintura
O sol esquenta e tudo é muito diferente. Inverno.
As árvores peladas são desenhos no firmamento disforme.
Marrom, cinza, verde inferno.
O que é preciso fazer antes de desenhar?
Descobrir, raspar.
Castelos perdidos, ruínas.
Torres com relógios.
Ponta aguda que aponta para o momento do recorte.
Do corte, da direção, do sentido que se sentiu atraído por uma
sensação anterior.
Mensagem do além. Mensagem do aqui.
Inspiração que baixa, o clichê que conta.
Uma piscina afunda.
A tela em branco esvazia.
Vagão-café.
A paisagem roda como ventania.
O tempo corre, paro para tomar café com balanço.
Sento de revés.
As folhas voltam. O tempo volta.
É tirada a poeira do esquecido.
Fantasias murchas de carnaval.
Chove, as crianças atuam. Ilusão real, ilusão na realidade.
Isso pode, isso é clichê.
Ser feliz e mais nada, como pode?
176 • 177
Clichê.
É preciso agradar.
Retórica.
Objetos de infância.
Não escolho quais quero amar.
Sou atraída por eles.
Vão surgindo, mas na hora de segurá-los no papel, escorregam
como sabão.
Sinto meu corpo à milhão.
Anágua ou Manágua. Como?
Hoje é continuação de ontem, simples assim.
É hora de descansar, mas o relógio ainda não chegou.
Sofrimento, persistência, errância, acertância.
Brincadeira de mau gosto.
178 • 179
Referências
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. (Trad. Leyla
Perrone-Moisés.) São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
184 • 185
Munição impaciente.
Anarquicamente debochada.
Ervinhas frescas.
Atravessar, navegar, saltar: e pronto.
Corda bamba, sem sombrinha, embriagado.
Pronto.
Cair.
Se for o caso.
Pronto.
Ver, sentir, amar, odiar, chorar, ter cefaléia, sede, fome,
saudade.
Avaliar valor dos largados.
Desgarrados.
Simulacro de Romance.
Romanesco Anamnésico.
Fresco, simples, sedoso, leve, sensível, justo, inteligente,
desejável, forte, rico.
Hábitos, manias, vícios: contestados.
Paixão por perturbação, motilidade, leveza.
Sem pessoa.
Caleidoscópio insólito.
Estranho dissonante.
Profunda amoralidade.
Conta-dor de histórias.
Linguaja-dor de si.
Faze-dor de jogo.
Gagueja-dor de língua.
Bolas de emoção.
Roçadela.
Fricção.
Isso granula, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui.
Como se vê, a Biografemática inunda vidas. Minha. Tua.
Deles. Nossas.
Fundos de interstícios. Estranhas dissonantes vidas e obras.
186 • 187
SOBRE OS AUTORES
BETINA FRICHMANN
Biografias
Bacharel em Artes Visuais (UFRGS). Mestra em Educação (UFRGS).
Biografemas
Sensação. Abro a gaveta, os anjos tocam seus sinos. procuro um som para ser. Eu. Nem morte,
nem vida. Nem lua. Sobre a terra, eu, carne.