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questões minoritárias
PUREZA E PODER
Os paradoxos da política identitária
ANTONIO ENGELKE
Se os argumentos forem avaliados a partir da “pureza” de quem fala, em detrimento da sua validade ou consistência interna,
então os próprios discursos subalternos podem perder força FOTO: CARLOS MOSKOVICS_ACERVO INSTITUTO
MOREIRA SALLES_BAILE DE CARNAVAL_C. 1950_RIO DE JANEIRO
Q
uem acompanha as redes sociais no Brasil de hoje provavelmente já
se deparou com a gíria “lacrar”. Dizer que fulano “lacrou” é
expressar admiração por uma ação ou fala que é percebida como o
ponto final, a última palavra sobre um determinado assunto ou situação.
Depois que alguém “lacrou”, supostamente nada resta a ser dito.
É
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Mas nada justifica essa crença. Debate algum pode ser encerrado por
força de um argumento supostamente último. As constantes mudanças
políticas e comportamentais são prova disso. Tome-se o caso de grupos
subalternos – negros, gays, mulheres –, que historicamente tiveram a voz
anulada, deslegitimada, e hoje conseguem se fazer representar na esfera
pública, ainda que as assimetrias persistam. Por isso mesmo não deixa de
ser curioso que a metáfora do lacre prospere precisamente entre
movimentos políticos que têm nas identidades de gênero, raça e
orientação sexual sua razão de ser.
Não se trata aqui de generalizar, de dizer que todo ativista identitário seja
um “lacrador” de debates – aliás, não são poucas as vozes dentro dos
próprios movimentos identitários a criticar a postura que acompanha a
metáfora. Ademais, é fato que o termo conquistou um sentido que
ultrapassa o campo da política (pode-se “lacrar” ao usar uma roupa
bonita numa festa). Contudo, a frequência com que a metáfora é
empregada pode ter algo a nos dizer não apenas acerca do repertório de
crenças e ações da política identitária, mas também sobre como esse
repertório se coaduna com a paisagem mais ampla da política
contemporânea, a despeito da declarada intenção, por parte desses
movimentos, de subverter essa mesma paisagem.
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V
ejamos a noção de “lugar de fala”. Grosso modo, seu intuito é
chamar a atenção para quem fala, de onde fala, e não somente para
o que está sendo dito. Isto é, a noção de lugar de fala surgiu para
afirmar que o conteúdo de um discurso não pode ser avaliado apenas em
si mesmo, sem que observemos as condições materiais e simbólicas de
sua enunciação. Trata-se de tornar visíveis os mecanismos através dos
quais certos discursos parecem naturalmente dotados de autoridade,
enquanto outros permanecem tacitamente relegados ao descrédito. Não é
pouca coisa: a noção de lugar de fala abre um espaço ao pensamento e à
ação no sentido de questionar privilégios e identificar as formas de
reprodução de assimetrias de poder e hierarquização de vozes.
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acabada, apenas oferece elementos a partir dos quais podemos tecer sua
significação. Paradoxalmente, a experiência pode ser ao mesmo tempo
uma condição para o conhecimento e um obstáculo à sua obtenção, pois é
também o excesso de proximidade ou familiaridade que introduz
problemas à nossa capacidade de compreensão.
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A lógica do argumento é inatacável. Talvez por isso mesmo, por ser tão
persuasiva, ela contribua inadvertidamente para o apagamento da
distinção entre os diversos tipos de interação com o outro. Falar pelo
subalterno é ato carregado de violência simbólica e, a despeito das
intenções do enunciador, exemplifica em toda sua força essa contradição
performativa mencionada por Ortellado. Falar do subalterno supõe um
distanciamento analítico que pode variar desde uma perspectiva crítica
esclarecida sobre o outro – a esquerda materialista argumentando que a
política de identidades dificulta o reestabelecimento da solidariedade de
classe, por exemplo –, até uma postura abertamente hostil, como o
comentarista de internet que descarta com impaciência o debate sobre
apropriação cultural, caracterizando-o como mera frescura. Por fim, falar
com o subalterno pressupõe aquilo que o filósofo Hans-Georg Gadamer
chamava de fusão de horizontes, uma compreensão advinda da
ampliação de nosso horizonte cognitivo em função de uma abertura para
o outro, uma disposição de se deixar afetar pelo outro, embora ciente de
que a qualidade dessa compreensão jamais fará jus à realidade por ele
vivida.
A
o fazer da vivência pessoal um sinônimo automático de
conhecimento de causa e usar esse conhecimento como esteio da
reivindicação do monopólio da legitimidade do discurso, a política
identitária assume o ideal de pureza como um dos fundamentos de sua
ação. Postura tautológica: somente os puros podem falar, e sua fala é
válida justamente porque falada por puros. Não é trivial, para dizer o
mínimo, estipular o local onde começa e termina essa pureza. A linha que
separa a “verdadeira” pertença a uma identidade sempre poderá ser
convenientemente movida ao sabor da satisfação de critérios atribuídos a
uma suposta essência, que, como toda essência, nunca pode ser
localizada, somente inventada. Assim, a noção de lugar de fala converte-
se num cavalo de batalha, um “supertrunfo” acionado de acordo com a
necessidade de uma demarcação imaginária de fronteiras que separariam
um “nós” legítimo de um “eles” desautorizado a falar.
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ma dessas contradições aparece na discussão sobre “apropriação
cultural”.
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N
inguém que conheça um pouco da história dos movimentos sociais
deixará de observar a importância da insubordinação, do confronto
aguerrido, no estabelecimento progressivo do sucesso de suas
reivindicações; os exemplos são muitos e por demais conhecidos para que
percamos tempo relembrando-os aqui. A atuação de movimentos sociais
contra-hegemônicos oferece uma ilustração do que Jacques Rancière
qualifica propriamente de política: a luta dos excluídos (“aqueles que não
têm parte”, no jargão do autor), ao se insurgir contra as forças do status
quo, leva aos olhos aquilo que permanecia invisível, transforma em
discurso aquilo que era percebido somente como ruído, enfim, altera a
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Mas é na fricção produzida nas interações que ocorrem fora dos círculos
de esquerda que as limitações da política identitária ficam mais nítidas.
Há um hiato entre a justeza das reivindicações mobilizadas por tal
política e a forma através da qual essas reivindicações são atualmente
levadas adiante na esfera pública. Essa forma é parcialmente responsável
pelo fato de a agenda identitária ser cada vez mais percebida como
autoritária, logo ilegítima.
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submissa que “pede” para ser dominada, mas a mulher autoritária que
“pede” para ser combatida, em nome da liberdade. Eis o salvo-conduto
fictício de que o machista necessita para justificar, para si próprio, a
manutenção de seu papel na reprodução do sistema de opressão de que é
parte: ele, homem, “apenas reage à feminazi”.
V
alores não trazem em si a regra de sua aplicação. Mais ainda,
valores são “troféus” políticos, passíveis de serem apropriados por
este ou aquele grupo, e não apenas abstrações independentes de
inscrições mundanas. Se, como observa o teórico da literatura Stanley
Fish, esse troféu tiver sido capturado por uma força política adversária,
não poderá ser mobilizado de um modo que ajude a nossa causa; terá, ao
contrário, se transformado num obstáculo. Parte expressiva da política
identitária ainda não percebeu que é exatamente o que vem acontecendo
com o princípio da liberdade.
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Mais que atirar a pedra, é preciso se preocupar com onde ela irá cair. Essa
preocupação, elementar em qualquer estratégia no campo da política,
deveria merecer atenção redobrada por parte de movimentos contra-
hegemônicos. Num texto postado em sua página pessoal no Facebook, o
professor da Universidade de Pernambuco Acauam de Oliveira ilustrou
bem os riscos a que se expõe parte do ativismo identitário, usando como
exemplo a construção simbólica do racismo na linguagem. “As palavras
com referência a claro e branco e afins têm conotação positiva, enquanto
as com referência a escuro e negro e afins têm conotação negativa”, disse
Acauam. Mas essa verdade tem seus limites. “As pessoas tiram a roupa
do varal não porque a nuvem é negra, mas porque vai chover; o buraco
negro não ‘rouba’ nada, e ‘claro’ tem função adverbial na frase ‘falar
mais claro’, e não adjetiva.” O problema é que a generalização desse
argumento sobre o racismo abre espaço para um contra-ataque
igualmente generalizante: a verdade da dimensão simbólica do racismo
na linguagem passa a ser considerada falsa porque alardeada como uma
manipulação (que de fato eventualmente ocorre) tosca da esquerda. “Daí
a se escrever outro ‘Guia politicamente incorreto’ pra desmistificar a
farsa esquerdista”, concluiu Acauam, “é um pulo.”
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P
odemos agora dar um passo atrás, abrir o escopo de observação a
fim de inscrever o exame da política identitária dentro da paisagem
mais ampla de nosso tempo. O ideal de pureza, como princípio e
fim da prática política, é o fio invisível que une correntes de direita e
esquerda no ataque ao que vem sendo percebido como o fracasso da
democracia representativa. Talvez haja algum exagero nessa afirmação,
que certamente mereceria um tratamento melhor do que poderei dar
aqui. E é quase desnecessário lembrar que esse ideal comparece de
formas distintas, e com efeitos diferentes, em cada caso. O apelo à pureza
étnica, por exemplo, difere bastante do elogio a líderes carismáticos que
se oferecem como encarnação do “verdadeiro” povo. De qualquer
maneira, é expressivo – e crescente – o desafio atualmente imposto ao
funcionamento da democracia representativa.
São diversas as questões que fazem com que, aos olhos da opinião
pública, a democracia apareça como incapaz de cumprir suas promessas.
A crise de legitimação do Estado-nação, sua reduzida capacidade de
atendimento às expectativas de populações cada vez mais longevas; o
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Tudo isso está bem documentado, mas a questão que realmente importa
parece ser a altura mínima para o sarrafo das concessões feitas em nome
da governabilidade, a linha que separa o aceitável do repulsivo, seja lá o
que se consiga em troca. A resposta, naturalmente, varia ao gosto do
freguês. E varia muito em função do grau de pureza a partir do qual se
concebe o jogo político. Se você parte do princípio de que a verdadeira
democracia só pode advir do protagonismo de um sujeito político
intrinsecamente virtuoso, sua tolerância a concessões será baixíssima. Se,
por outro lado, e contra inúmeras evidências disponíveis na literatura
sobre o tema, você supõe verdadeiramente democráticos apenas os
sistemas de participação direta, então sua tolerância a concessões típicas
de mecanismos representativos também será baixa. Se, ainda que tendo
boa vontade para com um determinado projeto político, você desconhece
as dinâmicas estruturais de partidos em geral e do nosso
presidencialismo de coalizão em particular, é provável que você acabe
repreendendo-o por haver cometido o pecado de agir de acordo com a
percepção de que a classe média intelectualizada, sozinha, não vence
eleições. Eis algumas ilustrações de como perspectivas calcadas no
princípio da pureza precisam desprezar as complexidades do mundo real
para se fazerem sedutoras.
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A
certa altura do romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o jovem
Adso, aflito com mais uma morte misteriosa no mosteiro em que
vivia, vai ao encontro de seu mestre, Guilherme de Baskerville. O
corpo de um monge, conhecido pela voracidade do apetite, acabara de
ser descoberto; como todos os outros mortos, tinha a língua e o dedo
indicador manchados em coloração escura. Guilherme diz que o glutão
“havia se tornado um puro”, e o rapaz questiona horrorizado: “Mas esta é
a pureza?” “Haverá também as de uma outra espécie”, afirma Guilherme,
“mas, seja qual for, sempre me dá medo.” Adso lhe pergunta o que o
aterrorizava mais na pureza, ao que o mestre responde: “A pressa.”
[1]
O texto pode ser lido em
http://esquerdaonline.com.br/2017/01/08/sobre-o-lugar-de-fala/
[2]
Agradeço a Sérgio Martins por haver chamado a minha atenção para
esse ponto.
[3]
Devo o argumento a José Eisenberg.
[4]
O que não significa abraçar de modo ingênuo o elogio da mistura:
quem quer que tenha lido a história que Gilberto Freyre conta sobre a
escravidão brasileira conhece bem os problemas desse elogio.
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