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todas as  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail, Kadija, JotaMombaca

a questão  ViGrunvald, Repep, CarueContre, RegisMikail, SabrinaDura


de gênero  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca
de resistência  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca
construção de  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura, JotaMombaca
a possibilidade  Repep, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca
de pessoas  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca
o discurso  ViGrunvald, Repep, CarueContre, BrunoPuccin
da vida  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura
social e  Repep, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca
de classe  ViGrunvald, Repep, CarueContre, JotaMombaca
uma sociedade  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, BrunoPuccin
gênero e  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail
pessoas que  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail
do corpo  ViGrunvald, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca
do movimento  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail
ela se  ViGrunvald, Kadija, SabrinaDura, JotaMombaca
classe média  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca
de gênero  CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca
de trabalho  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
modelo de  ViGrunvald, Repep, SabrinaDura
do poder  ViGrunvald, BrunoPuccin, JotaMombaca
homens e  bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura
política e  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail
uma espécie  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura
a teoria  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
como parte  BrunoPuccin, bibiAbigail, JotaMombaca
de produção  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura
de outros  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
uma linguagem  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail
corpo e  ViGrunvald, Kadija, JotaMombaca
e travestis  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin
do mercado  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
da cidade  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
pessoa que  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura
espaços de  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin
e mulheres  CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura
o termo  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
no brasil  CarueContre, RegisMikail, Kadija
não deve  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija
campo de  ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca
de rua  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura
um corpo  bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca
um local  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail
uma leitura  Repep, bibiAbigail, JotaMombaca
movimento de  ViGrunvald, Repep, CarueContre
teoria queer  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
a forma  CarueContre, BrunoPuccin, SabrinaDura
do espaço  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
modo de  Repep, Kadija, SabrinaDura
são paulo  Repep, CarueContre, BrunoPuccin
as formas  Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca
um sujeito  ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca
as necessidades  Repep, CarueContre, BrunoPuccin
esse processo  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija
da palavra  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
um homem  CarueContre, bibiAbigail, JotaMombaca
por ser  Repep, bibiAbigail, SabrinaDura
no contexto  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
as pessoas  CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura
o sentido  RegisMikail, BrunoPuccin, bibiAbigail
o movimento  ViGrunvald, Repep, CarueContre
cidade
Queer,
uma
leitora

Edições Aurora /
Publication Studio SP
todas as  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail, Kadija, JotaMombaca
a questão  ViGrunvald, Repep, CarueContre, RegisMikail, SabrinaDura
de gênero  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca
de resistência  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca
construção de  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura, JotaMombaca
a possibilidade  Repep, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca
de pessoas  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca
o discurso  ViGrunvald, Repep, CarueContre, BrunoPuccin
da vida  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura
social e  Repep, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca
de classe  ViGrunvald, Repep, CarueContre, JotaMombaca
uma sociedade  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, BrunoPuccin
gênero e  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail
pessoas que  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail
do corpo  ViGrunvald, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca
do movimento  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail
ela se  ViGrunvald, Kadija, SabrinaDura, JotaMombaca
classe média  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca
de gênero  CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca
de trabalho  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
modelo de  ViGrunvald, Repep, SabrinaDura
do poder  ViGrunvald, BrunoPuccin, JotaMombaca
homens e  bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura
política e  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail
uma espécie  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura
a teoria  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
como parte  BrunoPuccin, bibiAbigail, JotaMombaca
de produção  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura
de outros  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
uma linguagem  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail
corpo e  ViGrunvald, Kadija, JotaMombaca
e travestis  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin
do mercado  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
da cidade  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
pessoa que  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura
espaços de  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin
e mulheres  CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura
o termo  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
no brasil  CarueContre, RegisMikail, Kadija
não deve  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija
campo de  ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca
de rua  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura
um corpo  bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca
um local  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail
uma leitura  Repep, bibiAbigail, JotaMombaca
movimento de  ViGrunvald, Repep, CarueContre
teoria queer  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
a forma  CarueContre, BrunoPuccin, SabrinaDura
do espaço  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
modo de  Repep, Kadija, SabrinaDura
são paulo  Repep, CarueContre, BrunoPuccin
as formas  Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca
um sujeito  ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca
as necessidades  Repep, CarueContre, BrunoPuccin
esse processo  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija
da palavra  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
um homem  CarueContre, bibiAbigail, JotaMombaca
por ser  Repep, bibiAbigail, SabrinaDura
no contexto  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
as pessoas  CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura
o sentido  RegisMikail, BrunoPuccin, bibiAbigail
o movimento  ViGrunvald, Repep, CarueContre
cidade queer, uma leitora
cidade
Queer,
uma
leitora

Edições Aurora /
Publication Studio SP
sumário

8 uma investigação queer  114 ataque


Shawn Van Sluys
126 explode! residency
12 para cidade queer,
142 que cidade você queer?
uma leitora 
Todd Lanier Lester 146 janta

16 não se nasce monstra, 162 laboratório gráfico desviante


tampouco uma se torna 
173 nota sobre a edição
Jota Mombaça
174 créditos
22 algumas reflexões pessoais sobre
a descolonização da queer 
Vi Grunvald

34 no olho do cu(ir) – queer: centro e


margens de uma palavra desgastada 
bibi Abigail

44 (des)mi(s)tificar falares: pers­pectivas


para uma abordagem do pajubá 
Régis Mikail Abud Filho

56 chega de manhattans 
Jean François-Prost

62 o gozo do pária: tecnologias para


existir à margem [da margem estatal] 
Sabrina Duran

70 lar, memória e resistência: reflexos e


reflexões sobre mercado imobiliário,
homossexualidades e o “tradicional
bairro gay” da cidade de São Paulo 
Bruno Pucinelli

78 o hiv no fundo do armário lgbtq 


Carué Contreiras

84 ternura radical 
Dani d’Emilia e Daniel B. Chávez

86 território, cultura e memória lgbt+:


o patrimônio cultural como aborda-
gem para a busca do direito à cidade 
Repep

94 desmunhecando 
Fabiana Faleiros

98 cidade lida 
Raquel Perrine e Thiago Hersan

102 vogue no brasil: intercâmbios


e apropriações 
Entrevista com Félix Pimenta
uma
investigação
queer

S h a w n Va n S l u y s
9

As origens
Era um dia úmido de julho de 2014 quando Todd Lanier Lester
e eu descobrimos que vínhamos nutrindo um desejo em comum:
realizar um encontro de artistas numa investigação coletiva sobre o
papel que ser queer desempenha na ruptura do status quo de nossas
cidades, comunidades e instituições. Estávamos num refúgio na ilha
de Wasan, nos lagos de Muskoka, no Canadá, quando demos início a
essa conversa – Wasan é um lugar sublime, capaz de reunir até vinte
pessoas para compartilhar conhecimento sobre direitos humanos, artes
e justiça social. Fazia anos que o Todd, através de sua organização
baseada em Nova York, o freeDimensional, vinha convidando artistas
e ativistas envolvidos em iniciativas voltadas à segurança de artistas
para passar algum tempo na ilha, rejuvenescendo em meio à natureza,
compartilhando suas experiências e práticas, e também encontrando
novas motivações para continuar o trabalho corajoso que realizam.
Todd sempre entendeu profundamente esse poder de reunir as pessoas,
e com a insistência da Musagetes – comprometida em moldar sua
emergente metodologia própria e emergente, reunindo combinações de
pessoas diversas e improváveis – ganhou vida o projeto que viria a se
tornar o Cidade Queer São Paulo.
Passando de uma ilha capaz de acomodar vinte pessoas a uma
cidade de cerca de 20 milhões delas, a ideia do Cidade Queer logo
evoluiu para focar no entendimento e remodelagem de ambientes
urbanos por meio da performatividade queer. Em vez de se reco-
lher numa ilha nos selvagem no Canadá, o Cidade Queer se tornou
um ciclo de pesquisa multifacetado, baseado no próprio local e com
duração de dezoito meses, que culminou num encontro de artistas na
Vila Nova York, bairro periférico de São Paulo. A investigação sobre
queerness se manifestou em diversas formas que são compartilhadas
neste livro em textos, fotografias, inserções artísticas e outras contri-
buições. Além disso, e mais profundamente, o Cidade Queer se tornou
uma pesquisa interseccional que reuniu maneiras intelectuais, artís-
ticas, emocionais e espirituais de saber, ser e se relacionar por meio
do entrelaçamento da natureza queer e negra, da injustiça social, da
dignidade econômica, do direito à cidade e das lutas da vida cotidiana.
Os leitores poderão sentir o gosto de experimentação, crítica e
subversão que foram deliciosamente salpicados ao longo de toda a ex-
periência do Cidade Queer São Paulo. A editora do livro, Júlia Ayerbe,
10 uma investigação queer

e a designer, Laura Daviña, veiculam de maneira poderosa e prazerosa


os vários espíritos que deram vida a cada um dos aspectos desse ciclo.
Junto com o documentário feito por Danila Bustamante, essa manifes-
tação da investigação maior sobre o cotidiano da vida queer sobrevi-
verá como um arquivo e guia da mesma maneira que continuamos a
nos alimentar das relações estabelecidas, das histórias contadas e das
memórias gravadas.
O começo do Cidade Queer – depois da conversa na ilha que
soltou a primeira faísca – coincidiu com a mudança de Todd para São
Paulo para ser um dos cofundadores da Lanchonete.org junto com
Raphael Daibert e outros envolvidos. Tocado de maneira colaborativa
pela Lanchonete.org e pela Musagetes, o Cidade Queer não demorou a
se expandir para incluir várias pessoas e organizações. Muitas delas são
responsáveis, nas contribuições para este livro, por dar voz e forma à sua
experiência no projeto. Nesse mesmo espírito, gostaria de falar direta-
mente sobre o posicionamento da Musagetes – organização artística fi-
lantrópica situada no Norte global – em relação às pessoas que participa-
ram, às organizações que contribuíram e às investigações que definimos.

Metodologias
A Musagetes acredita que algumas das rupturas mais potentes
de nossos sistemas e instituições tão falhos vêm de posições de luta,
daqueles que estão nas linhas de frente e dos outros que lhes são solidá-
rios. Sempre nos preocupamos em nosso trabalho com o papel da esco-
lha das pessoas – o processo de selecionar com quem nos envolvemos e
colaboramos, e quais discursos aprofundar nesse caminho. Nos últimos
dois anos, simultaneamente à linha de investigação do Cidade Queer,
nosso foco emergente em sistemas de opressão, maneiras de lutar e
celebrações da diferença tornaram a enfatizar, para nós, a questão de
quem contribui de fato para nosso trabalho e acaba por influenciá-lo.
As questões que escolhemos – as linhas de pesquisa que sus-
tentamos – são a coluna vertebral da metodologia da Musagetes. São
elas que guiam as práticas e processos artísticos que compõem nossos
programas realizados em cidades, nossa plataforma on-line, o ArtsE-
verywhere, e nossos projetos internacionais. Aplicamos o aprendizado
obtido em pesquisas como o Cidade Queer no desenvolvimento de
nossas administrações, organizações, relações e protocolos.
A arte tem a capacidade de causar mudanças de poder. Nes-
se sentido, a Musagetes se retira do centro da investigação, reunião,
projeto ou luta em questão, para dar espaço àqueles que são mais
diretamente atingidos a cada caso, de modo que possam determinar por
conta própria a retórica, as prioridades e os caminhos a serem seguidos.
11

Nossos projetos de maior impacto são aqueles em que descentraliza-


mos a organização de maneira mais eficaz, ainda que nos mantenhamos
solidários, contribuindo para a investigação e ajudando a ampliar seu
alcance. A descentralização da organização não nos leva à apatia e
complacência, não nos absolve de responsabilidades, tampouco dimi-
nui nossa capacidade de aprender ou aplicar nosso conhecimento. Pelo
contrário, posiciona a Musagetes para ser uma guardiã desse enreda-
mento de questionamentos, projetos e comunidades ao redor do mundo.
A Musagetes adota uma perspectiva de intersecção em todo o
seu trabalho. Nossos projetos, questionamentos e comunidades são
entrelaçados a fim de abrir espaço aos diversos modos de ser, saber
e se relacionar, ao passo que reconhece os padrões de cruzamento de
raça, gênero, classe, sexualidade, idade e cor. Colocamos em primeiro
plano as múltiplas dimensões das identidades construídas por nós e a
necessidade de posicionar os privilégios de cada um, de nossas organi-
zações e do campo mais amplo da filantropia.

Futuros
Em sociedades que deparam com tantas rupturas em potencial,
acreditamos que as artes são um modo pelo qual podemos manter
o que é bom (expressões de resiliência) e rejeitar aquilo que mina a
possibilidade de uma vida profundamente livre e socialmente justa.
Precisamos de artistas queer nessa conta, encarando as urgências do
momento político atual junto com economistas, cientistas, filósofos,
teóricos sociais e aqueles que fazem as políticas. Por sua capacidade
de crítica política e social, a pesquisa artística nos leva a uma maior
abertura epistêmica – explorando e abraçando as múltiplas maneiras
de saber e estar no mundo.
A própria Musagetes foi transformada pelas comunidades tão
generosas e diversas com que se envolveu e envolve. Convidamos
você a entrar nesse trabalho, com humildade e modéstia, munido do
desejo por aprendizado e crescimento contínuos. O ciclo Cidade Queer
começou sua investigação sobre ser queer com as palavras de José
Esteban Muñoz, e recorremos novamente a elas aqui:
Ainda não somos queer. Talvez jamais consigamos tocar o que
é ser queer, mas podemos sentir isso como a cálida iluminação de um
1 Cruising Utopia: The horizonte imbuído de potencialidades. Nunca fomos queer, no entanto,
Then and There of Queer
Futurity. Nova York, ser queer é algo que existe para nós como uma idealidade que pode
nyu Press, 2009.
ser destilada do passado e usada para imaginar um futuro.1
para cidade queer,
uma leitora

To d d L a n i e r L e s t e r

Projeção de filme, painel de discussão, caminhada, Publication Studio, Janta: comida


queer, política queer, TransSarau, Queerdrilha, jardinagem, Acronymia, Explode!,
Ataque, Ultra-red, trans, mexa, Comida de Papel, Musagetes, Laboratório Gráfico
Queer, ballroom, saúde pública, Casarão do Belvedere, Paulo Goya, Festa Amem
Brothers, O grupo inteiro, .Aurora, Repep, Lanchonete.org, ArtsEverywhere, raça e
periferia, além de convidados da Colômbia, Líbano, Estados Unidos, Panamá, Ale-
manha, Caribe, Equador, Egito, Polônia, Senegal, Haiti, África do Sul, Reino Unido,
PogoLand, rua Paim, Ocupação São João, Residência Artística Cambridge, Vila
Nova York, TransAmaZonica, Cuiabá e de todo o Brasil.
13

Quero começar falando sobre o que acredito ser a Lancho-


nete.org: uma plataforma cultural tocada por artistas e centrada na
maneira como as pessoas vivem e trabalham, como compartilham
e navegam pela cidade contemporânea, tendo como perspectiva o
Centro de São Paulo. O nome é emprestado desses estabelecimentos
onipresentes – comércios abertos, laboriosos, lugares de convivên-
cia, sempre com suas luzes fluorescentes – que povoam quase todas
as esquinas da cidade. A Lanchonete.org trata das questões enfren-
tadas pelas grandes cidades, as diferentes formas de “poder urba-
no” e o direito à cidade, mas não a ponto de definir essas teorias, e
sim tentando esticar essa plataforma até onde for necessário para
abranger os mais diversos pontos de vista. A lista apresentada acima
é um jeito de relembrar todas as diferentes vozes que participaram
do programa Cidade Queer, um “processo curatorial coletivo” que
durou um ano e começou em novembro de 2015 com uma progra-
mação durante o Festival Mix Brasil: sessão de filme com Carlos
Motta (Colômbia) e Maya Mikdashi (Líbano); conversa com Ezio
Rosa, arte-educador e autor do projeto Bicha Nagô; caminhada pelo
Centro; encontro no .Aurora, e o panfleto do programa feito pelo
Publication Studio São Paulo.
Uso o termo plataforma para descrever as atividades em evo-
lução e as redes em colisão que compõem a Lanchonete.org. É uma
palavra oportuna, mas o que significa de fato? O objetivo do ciclo
Cidade Queer era permanecer como um processo aberto durante toda
sua duração, convidando ideias e projetos para essa “mistura” até
culminar num único evento público, o Ataque, realizado em setembro
de 2016 na praça das Artes. Talvez só seja possível descrever uma
plataforma ao olhar para “o que aconteceu” lá atrás. Num ensaio de
1 sheikh , Simon. Rep- outubro de 2004,1 Simon Sheikh afirma que “o contrapúblico é um
resentation, Contestation
and Power: the Artist espelhamento consciente das modalidades e instituições do público
as Public Intellectual. normativo, mas num esforço para endereçar... outros imaginários”.
In: Drulle, Inára (org.).
Artists as Producers. Momentos assim aconteceram no Explode!, realizado na Vila Nova
Transformation of Public
Space. Riga: Latvian York, na casa de infância do Cláudio; quando Bibi montou sua mesa
Centre for Contempo- de livros em uma das Jantas na casa do Paulo; quando plantávamos o
rary Art. p. 39-42.
jardim com o pessoal do mexa no Bom Retiro; ao visitar uma aula do
Cursinho Popular Transformação; entre muitos outros casos em que
o Cidade Queer foi a plataforma na qual esses outros imaginários se
tornaram familiares. Ou pelo menos foi assim que vivenciei isso.
14 para Cidade queer, uma leitora

Em entrevista concedida em 2004 para a revista francesa Mul-


titudes, André Gorz sugere que uma ampliação do campo da arte se faz
necessária “por intervenção direta em uma multiplicidade de espaços
sociais para se opor ao programa de mobilização social total do capitalis-
mo”, completando que “um front de total resistência a esse poder se torna
possível” pela produção de subjetividade em relação ao capital e que:
“Isso necessariamente transborda do terreno da produção de conhe-
cimento rumo a novas práticas para viver, consumir e se apropriar
coletivamente de espaços comuns e da cultura cotidiana.”2 2 Entrevista com André
Gorz, Multitudes –
E mesmo que uma única plataforma – ou o projeto de um ano Revue Politique, Artis-
de duração – não dê conta de realizar tudo, acredito que um pouco tique, Philosophique,
n. 15, 2004, p. 209.
dessa resistência estava presente nas discussões cumulativas das
quais o Cidade Queer participou.
Para mim, é importante lembrar do começo desse ciclo: o esforço
conjunto do .Aurora e da Lanchonete.org para trazer o Publication Studio
para São Paulo e o panfleto produzido a partir desse encontro para o
Cidade Queer. Fazer as coisas acontecerem junto com integrantes do
.Aurora e d’O grupo inteiro ao longo dos anos permitiu uma colabora-
ção profunda na Explode! Residency e ofereceu as bases de pensamento
crítico por meio do diálogo com outros coletivos de verve urbana, o que
acabou por conectar nossos diversos projetos. Eu poderia dizer o mesmo
sobre o Coletivo Coletores, que fez as projeções de videomapping duran-
te o Ataque e agora está conduzindo nossa série de oficinas na rua Paim;
ou ainda o BaixoCentro, através do qual conheci Thiago Carrapatoso. Na
verdade, foi durante a caminhada com Paulo Goya no Mix Brasil 2015
que surgiu a ideia da série “Janta: comida queer, política queer”, refei-
ções mensais realizadas na casa de Paulo Goya, o Casarão do Belvedere,
ambos eventos com curadoria do Thiago para o projeto Cidade Queer.
Para mim, as Jantas foram o destaque de cada mês do último
ano. Adorei como esses encontros foram se ampliando num crescendo
até culminar no último evento em setembro – o que traz à baila mais
uma pergunta: “O que vamos fazer juntos de intensidade parecida
neste ano?”. Agora que estamos olhando para frente, gostaria de dar
uma dica para o futuro: confira Cuiabá, um zine distribuído pelas
Edições Aurora3, para entender como nossa colega cuiabana Yanka se 3 disponível em <www.
cuiaba.lanchonete.org>
junta a nomes como Certeau e Baudrillard ao problematizar cidades
“fundadas pelo discurso utópico e urbanístico”,3 como é o caso de
Nova York, onde calhou de estar naquele fatídico 11/9. Vale a pena
conferir o relato afiado que Yanka faz daquele dia terrível, ao mesmo 4 certeau , Michel de.
Caminhadas pela cidade.
tempo que retoma um futuro queer bem perto de você, em Cuiabá. In: A invenção do cotidi-
Obrigado a George Ferraz e Pogo por essa viagem tão legal à terra ano. Petrópolis: Editora
Vozes, 1998. p. 169-192.
natal de vocês!
ilustração Dudu Quintanilha / mexa
não se nasce
monstra,
tampouco uma
se torna

Jota Mombaça
17

Ainda lembro com bastante nitidez a noite da virada de ano


de 2014 para 2015. Eu estava atravessando a vila de Ponta Negra – a
1 Anarcofunk é uma parte mais empobrecida de um bairro de classe média à beira-mar de
coalizão anarquista do
Rio de Janeiro que usa Natal – com um bonde de pessoas desobedientes de gênero. Vínhamos
da produção de música todas agitadas, animadas por álcool, tesão e cocaína, rindo muito e
funk como meio de
proliferação de ideias cantando Anarcofunk1 pela rua. Sentia-me forte e feliz pelo ano-novo.
radicais no que toca
ao anticapitalismo, às Eu estava vestindo botas pretas com saia curta e camiseta e caminhava
lutas urbanas e rurais, às displicentemente como se fosse um direito meu vestir-me e portar-me
rupturas com padrões de
higiene, sexualidade e daquela maneira. No entanto, no momento em que fiquei para trás por
gênero, aos antirracis-
mos. O trabalho delxs um motivo qualquer, ao passar por um bar, um homem (cis) gritou
pode ser encontrado aqui: contra mim, sem que eu houvesse sequer me dirigido ou olhado para
<https://soundcloud.com/
anarkofunk>. Acesso em: ele: “aberração !”.
31 jan. 2017.
A monstra que atravessa isso aqui opera sempre como uma
2 Em certo sentido, essa manada e como um estilhaço. Como um a gente2 aquém da individua-
formulação do “a gente”
como “agente” está lidade e do nós. Como uma agência simultaneamente multitudinária
inspirada pela obra de e despedaçada. Como uma vidraça que quebra e estilhaça e faz cortes
yessouroun , Amilcar
L. Packer. Eis a gente: e sangra. Ela passa então como dor. Como um corte. Como a abertura
ou de como a gente
vira agente. Disser- do corpo a uma intensidade que só pode decorrer do fato afiado de um
tação (Mestrado em corte. Por isso ela opera sem sujeito. Porque é um sangramento. É um
Psicologia), Pontifícia
Universidade Católica momento de colapso e esvaziamento do que quer que seja sujeito.
de São Paulo, 2015.
Se no centro há os cortes da estrutura, que arbitrariamente
marcam este corpo como de um homem negro embranquecido – ou,
como a lógica do colorismo racial brasileiro gosta de dizer, “pardo”
ou “mestiço” –, puxado ao pai (negro) e projetado como parte da
engrenagem cis-heterocapitalista; há – ao redor e à beira – essa força
despossessiva, complicadora, que bagunça os processos de sujeição
socialmente normalizados a que este corpo poderia aceder. Como uma
onda devastadora que começa a tomar o asfalto e a destruir a orla para
devolver a terra à própria terra. A monstra que atravessa isso aqui
move esse tipo de força e assombra – em suas passagens – as filas do
tornar-se. Não chega a formar um eu, uma entidade internamente coe-
rente capaz de governar a si e as cenas de alteridade em que se engaja.
Muito pelo contrário, a operação da monstra que atravessa isso aqui é
3 Essa percepção da deformar, desfigurar e problematizar indefinidamente as condições de
“guerra contra o corpo”
foi elaborada com base possibilidade de um sujeito qualquer que seja.
em uma conversa com O campo de batalha onde dançamos essa guerra é o corpo. E
o pesquisador Vinhu
Lacava, a certa altura de se trata – não tenham dúvida – de uma guerra contra o corpo3 – na
janeiro de 2017.
medida em que o corpo (todo corpo) é sempre já corpo-colônia: terra
18 não se nasce monstra, tampouco uma se torna

invadida e ocupada pelas forças da colonialidade, do capitalismo ne-


cropolítico e biopolítico distópico, do racismo antinegro e das supre-
macias branca e cisgênera. Esses sistemas operacionais marcadores da
diferença e organizadores da alteridade que, pela força da reprodução
de seu domínio sobre as formas do mundo, implicam-se com mais ou
menos violência nos processos de formação de quaisquer corpos que
sejam operados sob sua vigília.
Estou bastante convicta de que tangenciar a presença contun-
dente desses sistemas não significa representá-los como fenôme-
nos totalizantes. Por isso sei também que, em alguma medida – na
contradição e conflitividade deste mundo –, assim como não há
totalidade, não há fora. E o grito seco que me chama “aberração !”,
essa intervenção abrupta da socialidade no campo de força ontopo-
lítico de minha deformação como sujeito, é que informa isso. Como
imperativo sitiado do capitalismo-colonialidade necropolítico e
biopolítico distópico; como linha de força ordenadora do campo de
concentração colonial que se tornou o mundo: “você não vai poder
sair para brincar (ou para andar na rua com o bonde), mas tampouco
poderá continuar aqui”.
Gritaram-me monstra e, com a mesma força com que fui
socialmente empurrada rumo a uma leitura da masculinidade mesti-
ça como inerente às formas do meu corpo, encarnei o fracasso desse
projeto e fui apontada e (também socialmente) marcada por isso. Um
corpo levado ao limite da socialidade, posto à beira, por força da fric-
ção dos mesmos sistemas que o impedem de ir além, de encontrar um
“fora” e inscrever um “pós” aos termos descritores desses sistemas de
reprodução da violência contra corpos como o meu – a saber, colonia-
lidade, racialidade, sexualidade, modernidade, humanidade e gênero.
Mas neste aqui e agora, há forças e movidas que coexistem
com a brutalidade desses sistemas; modos improváveis de contornar o
incontornável do poder. Afinal, um corpo levado ao limite da sociali-
dade é um corpo que não tem opção senão estudar à beira, adivinhar
as passagens e elaborar uma política que simultaneamente cerca e
descerca: cerca o Normal-Colonial, descercando as fronteiras que
mantêm a coerência interna desse sistema. Assim é que a monstra que
atravessa isso aqui corre abaixo e acerca, multiplica-se pelos lados
sem com isso constituir um fora. É justo dentro, em brechas e desvãos
do projeto de totalidade do sujeito e do mundo capitalista-colonial que
ela se prolifera.
A história dessa monstra cruza a minha justamente porque a
minha história faz de mim uma criatura despossuída, aquém dos regi-
mes de socialidade por me reconhecer negra, apesar do embranqueci-
19

mento; bicha, apesar do heteroterrorismo; e desobediente de gênero,


apesar da inscrição compulsória aos códigos da masculinidade cisgê-
nera. São justamente esses momentos de inversão e recusa da norma
que inscrevem a história dessa monstra na densidade da minha própria
história. Assim, em vez de dizer que sou monstra porque sou negra,
porque sou bicha e porque sou desobediente de gênero, digo que sou
atravessada por uma passagem monstruosa que cria condições para
que eu desvie dos investimentos embranquecedores, heteroterroristas
e normativos de gênero contra a minha vida. A monstra que atravessa
isso aqui mora, portanto, no “apesar de”. Ela opera na quebra e não na
elaboração de figuras alternativas do sujeito.
Também não estou falando de uma desconstrução. Isto é, de
como certa socialidade me construiu como mestiça embranquecida,
homem e (no marco das expectativas heteronormativas) hétero, para
que em seguida eu fosse desconstruída por uma passagem monstruosa.
O que a monstra que atravessa isso revela não é propriamente a rever-
sibilidade dos constructos normativos, a possibilidade de desfazer o
trabalho da norma para dar lugar a outras formas de ser gente e fazer
o mundo, mas bem a fragilidade de toda construção de sujeito – seja o
referente da norma ou o seu avesso. Em vez de falar em desconstrução
– quando se trata de encontrar um dizer para tangenciar a presença da
monstra nessas cartografias percebidas como minhas –, talvez devês-
semos falar em sabotagem ou piquete.
Nesse sentido, as abordagens tradicionalmente construcionis-
tas não estão equipadas para cartografar a passagem dessa monstra
– porque pressupõem um tornar-se que é, aqui, recusado; assim como
as desconstrucionistas não dão conta de perceber sua operação – por-
que ela antecede e envolve a assim chamada construção social da
realidade. Falo de uma força despossessiva que se precipita sobre os
4 A noção de “subjetivi- processos de sujeição social, bagunçando-os; uma força complexa e
dades flexíveis” é basilar
para a crítica de Rolnik complexificadora que sabota o sujeito no processo de sua sujeição;
quanto à apropriação do uma demolição fundamental na escala das ontologias.
que ela chama também
de “subjetividade an- A monstra que atravessa isso aqui não é um além, mas sim uma
tropofágica” – especial-
mente em sua variação presença, uma materialidade, uma rebelião antissocial que se instala
como “antropofagia aquém da sujeição social e por isso a complica de baixo para cima, e
zumbi” ou “antropofagia
reativa” –, pela lógica nunca da maneira inversa. Não é sobre aprender a ser mais que sujeito,
contemporânea do capi-
talismo mundial integra- não é sobre se abrir ao movimento do mundo, transcender barreiras e
do. Ver: rolnik , Suely. permitir-se ser múltiplo, diverso, “multicultural e sem rótulos” – esses
Antropofagia zumbi.
In: cohn , Sergio et al. são, aliás, rótulos altamente valorizados no quadro das “subjetividades
(orgs.). Azougue: edição
especial 2006-2008. flexíveis” do “capitalismo antropofágico”4 contemporâneo. É, isto sim,
Rio de Janeiro: Beco do sobre não completar os processos de sujeição, sobre um não-saber fun-
Azougue, 2008.
damental que desarticula o sujeito antes mesmo que ele se apresente;
20 não se nasce monstra, tampouco uma se torna

um ruído, uma pane, um vírus que se apodera – sempre momentanea- 5 A noção de “antropo-
faloegologocêntrica” é
mente – de um corpo e o impede de existir como corpo; que se apode- também uma proposta
ra de uma ontologia e a impede de existir como ontologia. de Suely Rolnik, que
visa a evidenciar a
Essa monstra é herdeira do legado desse “Outro” que foi, desde integração das dimensões
antropo (humanista), falo
sempre, elaborado como exterior constitutivo e referente negativo do (patriarcal, masculina) e
sujeito na matriz de poder antropofaloegologocêntrica;5 desse “‘Obje- logo (racional, moderna)
como sistemas de
to” esgotado pelas práticas de tradução etnocêntricas da modernidade- sujeição próprios das
sociedades modernas
colonialidade. Seu território é a “zona do não-ser”6 descrita por Fanon coloniais.
como mundo colonizado, onde é inviável tornar-se qualquer coisa,
uma vez que a colonização opera sobre o domínio ontológico para 6 Fanon cunha, em 1952,
a noção de “zona de
garantir que todas as formas do ser sejam condizentes às perspectivas não-ser”. Ver: fanon ,
e aos pontos de vista do colonizador. Frantz. Pele negra, más-
caras brancas. Salvador:
A monstra que atravessa isso aqui é, afinal, uma não-existência Edufba, 2008.

que se faz existir à medida que perturba e desestabiliza todas as coisas


cuja existência é indissociável do Normal-Colonial; é uma força es-
sencialmente negativa que se infiltra e prolifera nas sendas do mundo,
apesar do mundo e contra ele. Não é, de forma nenhuma, o que me
fez ser quem eu sou. Mas, antes, é o que sabota os projetos de ser em
que meu corpo (como colônia) é inscrito. Seria leviano, contudo, dizer
que essa monstra me liberta do que quer que seja. Não vim aqui trazer
esperanças ou desenhar novos ideais de resistência. O que meu texto
tenta fazer é, no limite, cantar o ocaso de toda esperança, negar qual-
quer possibilidade de salvação, conectar-nos ao irredimível do mundo
e conjurar, enfim, um estudo que precipite uma prática que permita
mover aquém do sujeito, a encontrar e devir os germes da monstra que
atravessa isso aqui.
21

referências
fanon , Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador:
Edufba, 2008.

rolnik , Suely. Antropofagia zumbi. In: COHN, Sergio et


al. (orgs.). Azougue: edição especial 2006-2008. Rio
de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

yessouroun , Amilcar L. Packer. Eis a gente: ou de como a


gente vira agente. Dissertação (Mestrado em Psicologia),
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015.

Jota Mombaça
É uma bicha não binária, nascida e criada no Nordeste.
Escreve, performa e faz estudos acadêmicos em torno das
relações entre monstruosidade e humanidade, estudos kuir,
giros descoloniais, interseccionalidade política, justiça
anticolonial, redistribuição da violência, ficção visionária
e tensões entre ética, estética, arte e política nas produções
de conhecimentos do sul do sul globalizado.
algumas
reflexões
pessoais sobre a
descolonização
da queer

Vi Grunvald
23

Digo de antemão que não quero sugerir um sentido único sobre


o que a expressão queer pode ser, mas apenas indicar algumas ques-
tões que, a partir de minhas próprias idiossincrasias e do meu próprio
corpo, se colocam quando penso sobre ela.
Os usos políticos recentes da palavra queer nos países angló-
fonos buscam fazer avesso nos versos de um discurso excludente e
opressor. Queer poderia ser traduzida como estranhx, esquisitx e, com
o tempo, passou a ser utilizada comumente para se referir a dissidentes
de gênero e sexualidade. Uma acusação: “Você é queer!”. E seus coro-
lários: “Fique no seu lugar! Não polua! Não contamine! Desapareça!”.
Quando usada com o dedo apontado na cara para “colocar al-
guém no seu devido lugar”, queer é uma denúncia disciplinadora que
tem um duplo foco: expor a dissidência num lugar onde deveria haver
norma e, a um só golpe, corrigi-la, negá-la, recalcá-la, oprimi-la. Mas
quando apropriada numa prática de nomeação que não se pensa pela
vergonha e pela imputação daquilo que é tido como normal, mas pelo
orgulho e pela autodeterminação, aí as coisas mudam de figura. Parece
que o jogo virou, né, queridinhx?
Costumo dizer que, quando tiramos do opressor o poder de nos
nomear, estamos tirando dele uma de suas armas mais fortes, já que
negamos sua capacidade de definir nosso lugar no mundo por meio de
uma nomeação.
As considerações da teoria queer partem dessa ideia de que a
linguagem, a maneira como colocamos o mundo em discurso, não é
apenas um reflexo do mundo, mas sua produção, sua criação. É a isso
que se refere a ideia de performatividade tão discutida por pensadoras
como Judith Butler, Teresa de Lauretis e Eve Sedgwick.
Pegar as palavras pelos chifres e fazê-las funcionar a nosso
favor é subverter essa realidade que é colocada como interpelação de
vergonha, como acusação, e passar a percebê-la não como negação
de um lugar dentro da norma, mas como afirmação de algo fora da
norma. Essa norma que é, em nossa sociedade, marcadamente cis-he-
teronormativa e altamente racializada.
Quando a poeta afro-peruana Victoria Santa Cruz escreve o
texto e realiza a videoperformance viscerais Me gritaron negra, ela
invoca exatamente essa ética queer. Fala que, com apenas sete anos,
lhe gritaram negra, e negra ela se sentiu – negra como seus opressores
sentiam – e, então, retrocedeu, como eles queriam. Mas depois assu-
24 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

miu que sim, e negra se assumiu. “E quê?”, perguntou. Transformou o


torpor em força e em ardor.
O mesmo fez Gabriela Leite, figura icônica do movimento de
prostitutas no Brasil, com a palavra “puta”. Em uma entrevista, conta
que, certo dia, estava num botequim, conversando com um homem, e
ele lhe perguntou o que ela fazia. Disse que era uma puta aposentada.
Ao que seu interlocutor, retrucou: “Que isso, minha senhora? Você foi
puta. Hoje em dia, a senhora é uma mulher direita!”. E reflete, com
ironia: “Ele mesmo estava me defendendo de mim!”.
Quando adolescente, ainda dentro do armário, fui defendido de
mim várias vezes por amigos heterossexuais quando outros me acusa-
vam de viado e bicha. Hoje, a partir do corpo e da vida que tenho, acho
importante afirmar politicamente que sou esses nomes. Ainda que eles
não esgotem minha existência e minhas possibilidades de vida. Ainda
que eu possa fazer um monte de coisas que não são “coisas de viado”.
Esse tomar as palavras pelo chifre, usá-las política e subjetiva-
mente para definir nosso lugar no mundo e fazer avesso positivo da-
quilo que era injúria vexatória é uma ética de resistência que germinou
na vida e nas ruas antes de ser construída cientificamente como teoria
pela academia. Quando Teresa de Lauretis cunhou a expressão “teoria
queer” colocou juntas, sob uma mesma alcunha, reflexões que estavam
sendo produzidas de maneiras diferentes por distintas pessoas e que
tinham como solo comum essa ética e política de vida. E é somente a
partir dessas considerações que o termo ganha um sentido consistente.
No Brasil, de forma diferente, os sentidos da queer começaram
a florescer antes nos corredores das universidades do que nos espaços
de luta do ativismo ou nos becos sujos e secretos onde corpos e prá-
ticas dissidentes se fazem regra e não exceção. Com isso, a palavra,
já feita sinônimo da teoria que leva seu nome, chega aqui com ares de
sofisticação, de um pensamento revolucionário do Norte civilizado, de
gente que entende das coisas e produz teorias que devemos reproduzir
– nós, pensadores tupiniquins que somos.
Nesse cenário, como se dizer queer aciona a ética que ficou
associada a esse nome? Ora, se a força dessa política de resistência
está em afirmar positivamente para si um lugar que é socialmente
subalterno e dissidente, como alcançar essa ética com a declaração de
uma palavra, queer, que aqui passa a ser algo positivo, coisa de gente
descolada e desconstruída, que conhece o que está sendo produzido
e discutido na Europa e nos Estados Unidos, centros de emanação de
tudo que é bom e digno de atenção?
Daí a importância de pensar, com os estudos pós-coloniais ou de-
coloniais, que há uma geopolítica do conhecimento que nos faz acreditar
25

na existência de centros de produção legítima de teorias, assim como


de periferias ou margens que apenas as reproduzem. Ali, como nos cen-
tros, se produz representações sobre o mundo, dizem-nos. Mas apenas
nos centros, não cessam de nos alertar, é que são produzidas teorias vá-
lidas sobre essas representações – uma lógica semelhante à denunciada
1 castro , Eduardo V. de. por Eduardo Viveiros de Castro1 em relação ao discurso antropológico.
O nativo relativo. Mana,
Rio de Janeiro, A ideia de que devemos importar o modelo de desenvolvimen-
v. 8, n. 1, p. 113-148, to dos países do Norte, de que eles são o modelo de civilização que
abr. 2002.
devemos desejar e buscar, de que nossos valores são arcaicos e nossos
costumes bárbaros, de que nossos pensamentos são, de fato, ideias mal
2 mignolo , Walter. concebidas sobre o mundo, de que nossas questões são subjetivas e não
Histórias locais / proje-
tos globais: coloniali- conseguem alcançar, em discurso, a objetividade da ciência… todas
dade, saberes subalternos essas ideias fazem parte daquilo que Walter Mignolo chama de colo-
e pensamento liminar.
Belo Horizonte: Editora nização epistemológica.2 “Hoje falo situada geograficamente no Sul,
UFMG, 2003.
mas muitas vezes parece que me valido falando a partir do Norte, como
3 perra , h. de. Interpre- seguindo um pensamento que nos guia a matriz do dominador”,3 alfine-
tações imundas de como
a Teoria Queer coloniza ta Hija de Perra, com uma crítica a alguns desses trabalhos por ainda se
nosso contexto sudaca, prenderem a uma visão desencarnada de conhecimento, o que, segundo
pobre de aspirações
e terceiro-mundista, argumenta, gera sérias consequências epistemológicas para as posições
perturbando com novas
construções de gênero de sujeitos entre quem faz e sobre quem se faz teoria queer.
aos humanos encantados É fundamental demarcar que, no que diz respeito à geopolí-
com a heteronorma.
Periódicus: revista tica do conhecimento nacional, o mecanismo é o mesmo, mas com
vinculada ao grupo de
pesquisa cus (ufba ), os polos Norte e Sul invertidos. No Brasil, acredita-se, que o Sul e o
Salvador, v. 1, n. 2, Sudeste produzem conhecimento e constroem uma sociedade legítima,
p. 2, 2014.
Hija de Perra – e espe- enquanto o Norte e o Nordeste devem apenas se espelhar nesses mo-
cialmente o referido texto
– é referência obrigatória delos e, se forem inteligentes ou capazes o suficiente, reproduzi-los.
para pensar criticamente Por um lado, a colonização histórica, o movimento de conquis-
a absorção e a circulação
da teoria queer no ta de territórios e a expansão das zonas de influência e exploração dos
contexto sudaca. Nessa
mesma época, no Brasil, países do Sul (e, no Brasil, das regiões do Norte do país) pelas ditas
pensadorxs como Pedro potências do Norte (e pelo Sudeste brasileiro). Por outro lado, para
Paulo Pereira e Larissa
Pelúcio começaram muito além dela, a colonialidade, isto é, a lógica subjacente a esse
também a refletir sobre
possíveis apropriações processo de dominação que estabelece centros e margens e que, a todo
dessa teoria dentro da momento, é reatualizada e expõe a capilaridade do pensamento colo-
realidade brasileira.
Essas reflexões são nial na construção de nossos corpos, pensamentos e subjetividades.
fortemente ancoradas nas
discussões de pensadorxs O que poderia, então, ser algo como a descolonização da
ditxs pós-coloniais, como queer? Para mim, em primeiro lugar, seria reconhecer que nossos cor-
Walter Mignolo, Ramón
Grosfoguel, Aníbal pos, nomes e práticas dissidentes não tiveram que esperar a teoria ou a
Quijano e Jota Mombaça.
palavra queer para serem capazes de produzir suas lutas, resistências
e seus territórios existenciais particulares. A cis-heteronorma que nos
informa padrões coerentes de comportamentos, expressões e identi-
dades de gênero e sexuais sempre foi ameaçada e ferida por bichas,
sapatões, bolleras, maricas, travestis, viados e todxs aquelxs montrxs
26 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

que não se adequam a seus ditames. Mesmo no campo do pensamento


e da fabulação sexo-política, autores como Néstor Perlongher, Osval-
do Lamborghini, Manuel Puig, Roberto Echavarren, Pedro Lemebel
e muitos outros já estavam construindo o que Juan Pablo Sutherland
chamou de “uma cidade marica na literatura latino-americana”.4 4 sutherland , Juan
P. Nación marica: prác-
Em segundo lugar, trata-se de não projetar a hierarquia progressiva/ ticas culturales y crítica
arcaica em nossas práticas de conhecimento e convivência. Inspiradas activista. Santiago: Ripio
Ediciones, 2009. p. 21.
pelos ares de sabedoria cosmopolita e desconstrução cool, muitas pessoas Tradução do autor.

que se identificam, se não como, pelo menos com a queer, acabam repro-
duzindo retóricas de exclusão que essa ética buscava suprimir e combater.
Com a popularização da queer no Brasil, surgiu uma série de
espaços de sociabilidade, jornais, revistas, filmes, músicas, gostos
e estilos de vida que são tomadas como a materialização da última
tendência, daquilo que há de mais moderno ou pós-moderno – como
se queira. Um imenso “shopping queer”.5 5 perra , h . de. op. cit.,
p. 6. Tradução do autor.
Do dia pra noite, por conta da voga queer, as bichas velhas dos
centros das cidades viraram anacronismos, pessoas cujas identidades
fazem parte de um passado que essa nova sensibilidade desconstruída
veio superar.6 6 Alocar sujeitos em
temporalidades distintas
Em uma mesa redonda sobre temporalidades queer, Jack sempre foi uma estratégia
Halberstam diz que se identifica sexualmente como stone butch (que de poder, controle e
submissão de corpos e
pode ser traduzido como fancha, sapatão machuda) e se pergunta o populações. Para uma
discussão sobre como a
que significa estar engajada em práticas sexuais cujo tempo é o passado. antropologia construiu
Continua argumentando que seu objeto de estudo
articulando noções de
temporalidade e sobre as
a ênfase, nas subculturas sexuais contemporâneas, em “flexibilidade”, consequências desse pro-
desejos/práticas/identificações flexíveis, marca pessoas com identificações cedimento, ver: Fabian
(2002[1983]).
fortes como patológicas no que se refere à sua rigidez, e o binário flexível-rí-
gido é, sem dúvida, de caráter temporal – ele atribui a mobilidade ao longo
do tempo a certa noção de libertação e coloca identificações persistentes
como uma maneira de ficar presx no tempo, involuídx, sem versatilidade.
Estes são sintomas de homonormatividade subjacente, como Hoang sugere;
eles colocam a liberação sexual como o outro de práticas sexuais presas
no tempo. Muitas dessas caracterizações da homonormatividade também 7 dinshaw , Carolyn
supõem um sujeito branco e, então, colocam o anacronismo em comunidades et al. Theorizing Queer
Temporalities: A Roun-
de cor – por exemplo, enquanto queers brancxs de classe média se adiantam dtable Discussion. glq :
com sua flexibilidade de gênero e sexual, comunidades associadas a sapatões A Journal of Lesbian and
(butch-fem), talvez latinas da classe trabalhadora ou algumas comunidades Gay Studies, Durham, v.
13, n. 2-3, p. 190-191,
negras parecem estar detrás da curva da história.7 2007. Tradução do autor.

O que dizer de viados, sapatões e travestis das periferias de


nossas cidades que têm pouco ou nenhum contato com os modismos
queer sustentados por roupas, adereços e palavras de ordem? Se a éti-
ca queer que tem sido tão endeusada no cenário político e acadêmico
nacional não conseguir incluí-lxs em suas reivindicações, não será
27

isso um atestado de sua falência e inaplicabilidade a nossos próprios


corpos e causas?
É claro que não se trata de negar ou ignorar a teoria queer de forma
total ou absoluta. Podemos e devemos nos valer dela – como, aliás, faço aqui
a todo momento – na medida em que sirva a nossos propósitos, a nossas
questões e a nossas lutas. Mas se nossos corpos, identidades e práticas
tiverem que se curvar, se ajustar e se conformar àquilo que nos dita tal
teoria e não o contrário, então estaremos, mais uma vez, reproduzindo a
colonialidade do pensamento, agora disfarçada de subversão libertadora.
A palavra “viado” funciona para mim porque tem um nexo que
eu reconheço e que é reconhecido pelas pessoas que compartilham
comigo algum universo de sentido no cotidiano. Meu corpo branco,
o fato de eu ser de classe média, professor universitário, tudo isso me
higieniza. A cor da minha pele, minha classe, meu grau de instrução,
meu lugar subjetivo e corporal no mundo é um privilégio ao qual mui-
txs não têm acesso. Como não reconhecer?! O ponto é que o reconhe-
cimento desse lugar não deve se desdobrar numa aceitação da versão
mais comportada e hipócrita da minha homossexualidade: aquela
do viado que não se diz viado, mas gay, e por essa palavra entende
alguém menos feminino e – se possível – menos preto e menos pobre.
Esse lugar é um lugar político que eu não quero ocupar.
Eu não preciso que me salvem de ser viado ou bicha, que me
livrem de mim ou que me separem de pessoas mais pretas, pobres, femini-
nas, velhas. “Ah, não tem problema ser viado, desde que não seja promís-
cuo.” De novo, a sexualidade boa contra a sexualidade ruim, como tanto
nos advertiu Gayle Rubin (1984). De novo, a linha daquilo que é aceitável
e normal empurrada para outro lugar, outra caixinha onde se possa colocar
aquilo que é detestável e detestado socialmente e que, no claustro, não nos
polua. A pragmática da normalização parece nunca ter fim.
A resistência contra práticas de normalização é justamente algo
que tanto a ideia de descolonialidade como a ideia de queer me suge-
rem. São espécies de contrapedagogias, avessos de uma pedagogia de
formação de sujeitos. Por isso uma de-formação. Por que a gente tem
sempre que desejar estar do lado do poder e da dominação?
No ano de 2016, um artista chamado Mc Queer lançou uma músi-
ca na qual se ouvia: “Me chama de viado, invertido e baitola / Bichinha,
boiolinha, bambi chupa-rola / Quero muita atenção no que eu vou falar
8 mc queer , Fiscal. pra tu / Tem que ser macho pra caralho / Pra poder dar o próprio cu”.8
cd : Mc Queer, 2016.
Então, eu preciso legitimar o fato de dar o cu porque isso me
9 preciado , Paul B. transforma em mais macho? Essa prática contrassexual9 de ter prazer
Manifiesto contra-sexual.
Madri: Opera Prima, com o orifício por onde se caga só se justifica e se confirma numa
2002. reconversão ao lugar dominante do macho? Eu quero é enviadescer,
28 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

como canta Mc Linn da Quebrada. E talvez seja por isso que eu dou o 10 bdsm é um acrôn-
imo para bondage,
cu. Além de ser uma delícia, é claro. dominação, disciplina,
De fato, as duas coisas não estão separadas. Porque essa ética sadismo, submissão e
masoquismo.
da qual eu estou falando é, ao mesmo tempo, uma ética de discurso, de
palavra, de nome e uma ética de corpo, de gesto, de sêmen e mesmo 11 todorov , Tzvetan. A
conquista da América: a
de dor. Foi Paul Preciado quem talvez tenha colocado de maneira mais questão do outro.
pungente, no panteão queer, a questão corporal da dissidência como São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
algo que não pode ser negligenciado por uma excessiva ênfase na 12 haraway , Donna.
Ciencia, cyborgs y
performatividade linguística. mujeres. La reinvención
O meu contato com as práticas do bdsm 10 mostrou que po- de la naturaleza. Madri:
Cátedra, 1995. p. 254.
demos habitar lugares aquém da humanidade, onde as questões do Tradução do autor.

humano ainda não se fazem presentes de forma tão condicionante. São


uma lembrança esfumaçada, talvez mesmo trilhas de migalhas de pão 13 strathern ,
Marilyn. Partial Con-
para poder voltar em algum momento. nections. Walnut Creek:
Descolonizar o pensamento é também desafiar e desconfiar do Altamira Press, 2004.

humanismo e do humano, essa palavra que entra em voga num período


específico do desenvolvimentismo europeu e que serviu, principalmen- 14 latour , Bruno.
Jamais fomos modernos.
te, para julgar quem fazia ou não parte de seus quadros, quem deveria Rio de Janeiro: Editora
estar na história e quem deveria, com os animais e o resto do “mundo 34, 1994.

natural”,11 estar apenas na biologia. Como disse em outro momento: 15 grunvald , Vitor.
Teseu e o touro: algumas
sugestões feministas para
Somos todos cyborgs. “O cyborg é nossa ontologia, nos outorga nossa políti- uma crítica da razão.
ca”.12 E se o cyborg de Haraway é expressão de fractalidade, como argumenta Dissertação (Mestrado
Strathern,13 então, enquanto tal, ele passa ao largo de todo e qualquer huma- em Antropologia Social)
– Museu Nacional, ufrj,
nismo que, em sua definição, não pode prescindir da irredutibilidade dos polos Rio de Janeiro, 2009.
dicotômicos (natureza-cultura, doméstico-público) contra a qual a ideia de p. 121.
fractalidade se constrói. Se considerarmos ainda que essas distinções estão no
cerne do projeto moderno,14 então, já vem chegando a hora de dizermos que,
assim como “jamais fomos modernos”, “jamais fomos humanos” (ou, pelo me- 16 lévi - strauss ,
Claude. Raça e história.
nos, nem sempre, nem em todas as situações e, certamente, não inteiramente).15 In: Antropologia estru-
tural dois. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1976.
Não é à toa que, ao criticar o racismo e o etnocentrismo
ocidental, Lévi-Strauss tenha atacado também a noção de povos sem 17 No século xx ,
as reivindicações de
história.16 Em relação ao humanismo, é preciso dizer que, tal como liberação e os questio-
afirmou de maneira tão jocosa como precisa a tia de um amigo, “a namentos das normas da
sexualidade passaram por
humanidade é um projeto que não deu certo”. um processo de codifi-
cação jurídica na noção
O problema, no entanto, se complica quando a desumaniza- de “direitos sexuais”. É
ção não é um processo de autodeterminação, de autodeformação, de necessário pensarmos
não apenas o que
habitar fora dessa norma que é tão cis-heterocentrada, quanto racista se ganha, mas o que se
perde com esse processo
e especista. Quando essa desumanização é, ao contrário, resultado de e, fundamentalmente, o
uma negação da humanidade que nada tem de voluntária, mas que é que e quem fica de fora.
Se, em teoria, direitos
forçada, violenta e que desconsidera a humanidade de alguém apenas humanos deveriam ser
universalmente válidos,
para colocá-lo num campo de risco que os direitos humanos, encarna- na prática, sabemos que a
ção ocidental do acesso à justiça, não conseguem alcançar.17 própria ideia de sujeitos
29

de direitos conclama Um caso recente emblemático foi o de Verônica Bolina,


que ser um sujeito é
condição sine qua non travesti negra brutalmente violentada pela polícia e exposta nos mais
para acessar o marco diversos meios de comunicação por meio de fotografias que figuravam
dos direitos jurídicos.
O problema fica claro um horror inominável. Qual seria o tamanho da comoção pública se
quando percebemos que,
como insistem diversxs fossem imagens como aquelas, mas de uma mulher branca, cis e de
autorxs da teoria queer, classe média? Nem dá pra imaginar o tamanho da confusão.
a condição de sujeito
é diferencialmente Por que uns corpos merecem nosso luto e outros não? E esse
distribuída. Para saber
mais, ver: viteri , María luto e a violência com que se responde a ele não seriam também uma
A.; castellanos , indicação de humanidade ou de sua falta, como tem argumentado
Santiago. Dilemas queer
contemporâneos: ciuda- Judith Butler?18 Quando é esse o efeito, quando é essa a questão, a
danías sexuales, orien-
talismo y subjetividades desumanização talvez não deva ser buscada, mas combatida e chora-
liberales. Un diálogo con da publicamente. Como fazem, aliás, tão obstinadamente as Mães de
Letícia Sabsay. Íconos.
Revista de Ciencias Maio, que tiveram suas filhas e filhos tiradas pelo terrorismo de Estado
Sociales, Quito, n. 47, p.
103-118, 2013. encarnado no seu braço armado – a Polícia Militar.
Devemos pensar em estratégias, nos diversos ativismos de
18 butler , Judith. Quad- combate, mais do que em regras gerais. A pós-pornografia e o porno-
ros de guerra: quando a
vida é passível de luto? -terrorismo são ativismos de corpo e escracho, de desumanização e de
Rio de Janeiro: Civilização deformação.19 Mas quando a intenção é a resistência a uma desumani-
Brasileira, 2015.
zação entendida como degradação e desconsideração do outro como
19 Cf., por exemplo, alguém dignx de vida, as estratégias podem e devem ser outras.
bourcier , Marie-
-Hélène (Sam). 2014. Publiquei no Facebook, recentemente, o Minimanual do guer-
Bildungs-Post-Porn: notas rilheiro urbano, do Marighella. A minha tia imediatamente comentou:
sobre a proveniência do
pós-pornô, para um futuro “Use ideias (aquela que começa feia depois fica bonita) e não violên-
do feminismo da desobe-
diência sexual. Bagoas, cia. Porque violência só gera violência”. Ao que respondi:
Natal, n. 11, p. 15-37.
2014. Para um texto
introdutório sobre pós- Minha querida tia, a não violência deve ser buscada onde quer que seja pos-
-pornô ver adicionalmen- sível. Mas é urgente colocar que há situações nas quais ela não é uma opção.
te: grunvald , Vitor.
Teoria, carne e marcos A prerrogativa da não violência é apenas de alguns. Uma pessoa branca de
iniciais da pós-por- classe média vive uma vida que a permite colocar a questão da não violência
nografia. Flsh Mag. como legítima. Mas quando se trata de pessoas negras, pobres, de periferia,
Disponível online, ver
bibliografia. Acesso em: que não se adequam aos modelos aceitos socialmente de comportamento de
26 jan. 2017; nogueira , gênero etc., será mesmo que elas têm a opção de não serem violentas? Dá
Fernanda; costa , Pedro. para responder apenas com palavras e ideias, em suma, com não violência,
Da pornochanchada ao
Pós-Porno-Terrorismo no quando se aponta uma arma para você, quando se usa o cassetete para violen-
Brasil: d’As Cangaceiras tar seu corpo simplesmente por ele existir, quando se aplicam golpes a você o
Eróticas ao Coletivo tempo inteiro e tanto por parte de pessoas que se acreditam justiceirxs do bem
Coiote. Revista Rosa, n.
5, dez. 2014. Disponível quanto por parte do próprio Estado e de sua truculenta polícia? Está na hora
online, ver bibliografia. de pensarmos a quem serve o discurso da não violência e quem tem o privi-
légio de colocá-lo como possível e mesmo prioritário! Queria te emprestar
meus olhos e minhas memórias para que você pudesse ver as coisas que tenho
visto nas últimas manifestações! Muitas atitudes não violentas por parte dos
manifestantes que ganham em troca violência gratuita por parte da polícia!

Lembrando disso, um tempo depois, recordei do que Davi


Kopenawa, xamã yanomani, havia escrito no livro que assinou com
30 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

Bruce Albert: “Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem
muito, mas só sonham consigo mesmos”.20 Para mim, descolonizar a 20 kopenawa , Davi;
Bruce. A queda
albert ,
queer é também, de alguma forma, não sonhar apenas consigo mesmx. do céu. São Paulo:
Mas se essa for a prática – a de se subtrair, de se tornar menor, Companhia das Letras,
2010. p. 412.
minoritário e não maior, dominante e majoritário –, então, as coisas
que eu disse provavelmente são um arranjo muito peculiar e situado
para dar sentido a esse processo. É necessário, de fato, que a própria
teoria queer seja constantemente minorada, tal como busquei sugerir
com a obra de Judith Butler.21 21 grunvald , Victor.
Butler, a abjeção e
O ponto é que não existe uma fórmula que você possa oferecer seu esgotamento. In:
a alguém: “tá aqui, você faz isso para descolonizar a queer! Você fica díaz - benítez , María
Elvira; fígari , Carlos
toda desconstruída e subversiva!”. Não se deixar capturar por essa ló- (orgs.). Corpos, desejos,
prazeres e práticas
gica de desejar sempre o poder e a dominação só pode ser algo muito sexuais dissidentes.
diferente para cada pessoa porque é impossível separar a resistência Rio de Janeiro:
Garamond, 2009.
do processo de subjetivação que é peculiar a essa espécie de autodeter-
minação deformatória.
Não há regra, justamente, porque colocar uma regra seria ainda
apostar no sonho positivista de uma linguagem neutra, incorpórea e,
tanto melhor, se for científica, se retirar toda a subjetividade e toda a
singularidade para se transformar pretensamente no reflexo exato da
natureza. Algo que eu me recuso a fazer.
Hoje em dia, tem muita gente que se incomoda quando se toca
em determinados assuntos ou se chama a atenção para pressupostos
fóbicos que estão implícitos em práticas de exclusão e submissão.
Chamam isso de mi-mi-mi e de implicância. Do meu ponto de vista, é
implicância num sentido bem preciso: não implicar com alguém, mas
implicar alguém em algo que essa alguém não é, em algo que ela não
consegue considerar a partir do corpo e da pessoa que é. E mesmo se
autoimplicar naquilo que você nunca vai ser e bloquear, da maneira
como for possível, aspectos fascistas daquilo que você também é.
Como disse, não espero, com este texto, dar alguma sugestão
muito forte sobre o que é descolonização da queer. Quero, ao con-
trário, dar uma sugestão muito fraca, minha, do que isso pode ser. E
tentar, quem sabe, oferecer esse sentido de modo que cada pessoa que
leia essas palavras possa encontrar ferramentas para que ela ou ele ou
ile leve adiante sua luta e sua resistência em seus próprios termos.
31

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33

Vi Grunvald
É viado, nortista, doutor em Antropologia Social pela
Universidade de São Paulo (usp ), professor da Faculda-
de Cásper Líbero e integrante dos seguintes grupos de
pesquisa ligados à usp: Grupo de Antropologia Visual
(Gravi); Núcleo de Antropologia, Performance e Drama
(Napedra); e Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais
da Diferença (Numas).
no olho
do cu(ir) –
queer: centro
e margens de
uma palavra
desgastada

bibi Campos Leal


35

Desvios de origem: genealogia “queer” perdida


Há pelo menos vinte anos já escutamos/lemos, aqui e ali,
essa estranha palavra: queer. Entretanto, a atmosfera “hypada” com
que ela foi recebida e trabalhada nos contextos sudaka, sobretudo
no Brasil, dificulta uma compreensão mais atenta e, portanto, uma
reapropriação mais experimental e localizada do termo, por parte das
dissidências sexuais e de gênero desde aká. Nesse sentido, muito do
rico e explosivo contexto sexo-político que envolve “queer” – como
palavra, identidade e movimento sexo-político – acaba por se perder
ou se esfumaçar nessa atmosfera saturada, de modo que a palavra,
drenada de todo o seu afronte lakrativo, esvazia-se num modismo
estéril e ritualístico.
Na tentativa, então, de recompor parte dessa atmosfera política
explosiva, escolho os odores específicos de dois textos do “cânone
clássico”, daquilo que se chama hoje de “teoria queer”, e que ainda
assim não foram lidos com a seriedade – e a alegria – necessárias.
Trata-se de Tendencies, de Eve K. Sedgwick, mais especificamente o
prefácio e o capítulo Queer and Now, e Bodies That Matter, de Judith
Butler, em especial o capítulo Critically Queer. No primeiro texto, a
palavra queer exala uma potência sexo-epistêmica ou sexo-linguística
e, no segundo, uma potência sexo-política ou ético-sexual.
Comecemos pelas tendências. Sedgwick faz um movimen-
to muito importante para as pessoas sexo e gênero-dissidentes, na
direção tortuosa de compor parte de uma genealogia “queer” perdida,
sobretudo quando investe numa arqueologia e desconstrução desviada
da etimologia da palavra. Sedgwick recompõe o tecido esfacelado que
“queer” comporia: um termo multiterritorial, transfronteiriço, inter
e transnacional, disseminado, dissimulado. Mas essa recomposição
monstra, essa colcha de retalhos toda cagada feita por Sedgwick não
deixa de marcar, por meio de hesitações e ceticismos, que a problemá-
tica que “queer” abre é, em várias instâncias, algo inominável e que,
portanto, deveria permanecer aberta. Nas suas palavras:

Queer é um momento, movimento e motivo prolongado – recorrente, rede-


moinhado, problemático. A palavra “queer”, em si, significa através – vem
1 sedgwick , e . k . da raiz indo-europeia twerkw, que também gera o alemão quer (transversal),
Tendencies. Durham:
Duke University Press, o latim torquere (entortar), o inglês athwart [transversal, através, contra,
1993. p. XII. Tradução perverso, errado].1
da autora.
36 no olho do cu(ir) – queer

Por mais que “queer” esteja ligada a um território linguístico


indo-europeu, como aponta Sedgwick, sua origem disseminada e
transfronteiriça estaria longe de compor uma identidade coletiva coe-
sa e soberana. Em todas as suas raízes etimológicas, apesar das espe-
cificidades que cada uma marca singularmente, “queer” seria o nome
de algo que “desvia”, que “transgride” ou que “entorta”, do ponto de
vista sexual e de gênero.
Assim, “queer” não seria o nome de uma identidade substancial
positiva com um sujeito soberano, mas uma interpelação situacional ou
oposicional, marcando um lugar problemático, que desvia em relação a
uma norma, ou que faz a própria norma (se) desviar. Assim, se “queer”
marca um lugar de desvio ou problemático do ponto de vista sexual e
de gênero, esse lugar, entretanto, é de uma multiplicidade e diferença
infinitas e, assim, esses desvios ou problemas podem ter muitos nomes.

Essa é uma das coisas que “queer” pode oferecer: a malha aberta de
possibilidades, lacunas, sobreposições, dissonâncias e ressonâncias, lapsos
e excessos de significação quando os elementos constitutivos do gênero
e da sexualidade de alguém não são feitos (ou não podem ser feitos) para
significar de forma monolítica. As aventuras linguísticas, epistemológicas,
representacionais e políticas relacionadas com cada uma de nós, que às vezes
pode ser levada a se identificar como (dentre muitas outras possibilidades)
piriguetes, bichas loucas, fetichistas, drag queens, clones, leathers, mulheres
de terno, mulheres feministas, homens feministas, masturbadorxs, caminho-
neiras, divas, barraqueiras, butches passivonas, storytellers, transsexuais,
tiazonas, simpatizantes, mulheres trans lésbicas ou lésbicas que dormem com
homens ou... pessoas capazes de saborear, aprender e se identificar com isso.2 2 Ibidem, p. 8.

Butler, por sua vez, não é menos hesitante. Ela aponta para o
risco que é terminar um livro com um capítulo sobre “queer”, o que daria
a falsa impressão de haver um fechamento triunfal do assunto, o que,
segundo ela, não só seria impossível, mas indesejável. Para a autora,
“queer” não comporia também uma identidade substancial positiva, mas
seria, ao contrário, uma interpelação violenta que produz efeitos identitá-
rios. “Queer” seria então uma injúria, uma ofensa, uma acusação.

O termo “queer” tem operado como uma prática linguística, cujo propósito
tem sido envergonhar o sujeito que nomeia, ou melhor, produzir um sujeito
através dessa interpelação envergonhadora. “Queer” possui a sua força
precisamente através da invocação repetida, por meio da qual se ligou à
acusação, patologização e insulto”.3 3 butler , j . Bodies
That Matter: On the
Discursive Limits of
Entretanto, de ofensa, o termo passa a constituir certa substan- “Sex”. Nova York:
Routledge, 1993. p. 226.
cialidade positiva, torcendo e des-viando o significado e a interpelação Tradução da autora.

originários. Para Butler, assim, “um termo que sinaliza a degradação


37

foi girado – ‘refuncionado’ –, para assumir um novo e afirmativo con-


4 Ibidem, p. 223. junto de significações”.4 Se esse giro, essa reapropriação, ou melhor,
essa expropriação significante produz efeitos potentes para as pessoas
“queers”, ele não deve tornar-se uma nova plataforma identitária
fechada e autossuficiente. De um ponto de vista linguístico, mas tam-
bém epistêmico e sexo-político, “queer” deveria sempre estar proble-
maticamente aberto, aberto às possibilidades de desvios.

Se o termo “queer” deve ser um local de contestação coletiva, o ponto de


partida para um conjunto de reflexões históricas e imaginações futuras,
ele terá de permanecer aquilo que é atualmente; [algo] nunca realmente
possuído, mas sempre e somente reorganizado, torcido, queerizado em
relação a um uso anterior e na direção de propósitos políticos urgentes e
5 Ibidem, p. 228. em expansão”.5

Se “queer” marca também uma aliança com gays e lésbicas, não


deixa de abrir um desvio identitário, de modo que não podem ser tidos
como sinônimos. Assim, “queer” marca, ao mesmo tempo, uma alian-
ça entre desviantes de gênero/sexualidade em geral e pessoas lgbtqias,
mas também marca uma ruptura com essas políticas assimilacionistas.
Para Butler, “o termo seduz uma geração mais nova que quer resistir
aos modelos mais institucionalizados e reformistas de política às vezes
6 Ibidem, p. 228. levados a cabo por ‘gays e lésbicas’”.6 Ainda nessa abertura “queer”,
a autora, valendo-se das reflexões dos estudos raciais, que deslocam
a noção cristalizada e naturalizante de “raça” pela mais complexa e
potente “racialização”, afirma que não haveria uma substancialização
de algo que seria o “queer”, mas apenas processos múltiplos e descon-
7 Ibidem, p. 229. tínuos de “queerização” [queering].7 Portanto, não existiria alguém que
seria ou tornar-se-ia “queer”, mas apenas pessoas que experimentam e
se inscrevem em processos de “queerização” infinita.
Se, do ponto de vista “epistêmico”, a “teoria queer”, ou melhor,
uma certa teorização da “queericidade”, como nos dois casos, sempre
tentou se mostrar reticente em relação às possíveis cristalizações a
assimilações identitárias, epistêmicas e linguísticas, o mesmo ocorre de
um ponto de vista social e político. O “giro” expropriativo “queer” que
Butler descreve, em que o sentido da palavra é torcido de algo negativo
para algo positivo, tem início em terras estadunidenses em fins dos anos
1960, onde a Revolta de Stonewall seria um marco. Bichas pretas, drag
queens e mulheres trans negras, lésbicas butches chicanas, prostitutas
imigrantes, ursos cubanos, masoquistas e drogaditas, eram ali parte da
fauna perversa que formaria o chamado “movimento queer” contem-
porâneo. Nesse sentido, “queer” seria o nome de um trans-bordamento
monstruoso das margens higienizadas do movimento feminista e lgbtqia.
38 no olho do cu(ir) – queer

O que se faz com isso? – maquinismo e experimentação


desde aká
Pois bem, agora que já recuperei alguns elementos importantes
em torno da atmosfera em que circula a palavra “queer”, proponho
uma leitura a respeito da sua recepção em solos latino-americanos.
Esse processo é múltiplo, diferencial, situado, localizado e ainda está
em curso, de modo que não existe uma explicação única nem um final
para esse processo. Mas minha hipótese − se ela existisse − seria de
que, em vários setores do “público” que recebeu a cultura envolta da
palavra “queer”, não haveria um processo de apropriação da palavra,
mas sim uma ex-propriação. Assim, o que sempre esteve envolto nes-
sas leituras e escritas sudakas, ou mesmo tupiniquins, não é da ordem
da interpretação, mas da ex-perimentação. Essa perspectiva desloca al-
guns pontos importantes da crítica “descolonial” da recepção “queer”
na América Latina, que pinta um quadro de mera passividade e mime-
tismo na recepção da palavra desde aká. Longe de uma apropriação
comportada e interpretativa – meramente acadêmica ou ritualística –,
muitas vezes, o que se produziu aqui foram ex-propriações selvagens
e experimentais. E isso não só do ponto de vista linguístico, mas tam-
bém de uma materialidade sexo-política e epistêmica.
Proponho uma experimentação de dois desses experimentos.
Constanzx A. Castillo, no corrosivo e emocionante La cerda
punk, que mistura teoria política e autobiografia, narra sua experiên-
cia sudaka com o feminismo, que se deu tanto através da academia
como da cultura de rua do movimento feminista. E se Constanzx parte
de experiências e teorizações euro-estadunidenses para pensar um
feminismo gorde, não deixa aí de marcar as (suas) diferenças: “sin-
to necessidade de visibilizar outros tipos de experiências, diferentes
das dos yankees”.8 Não existe a afirmação de uma pretensa “pureza” 8 castillo , c. a .
La cerda punk: ensayos
sudaka, diante das determinações da colonialidade como condição desde un feminismo
latina. É através de certa leitura, desviada e torta, da tradição feminista gordo, lésbiko, antikapi-
talista & antiespecista.
euro-estadunidense que pensa os atravessamentos da gordura com as Valparaíso: Trio, 2014. p.
24. Tradução da autora.
questões de gênero/sexualidade, que Castillo constrói o projeto situado
e situacional da porca punk.
No contexto belicoso da colonialidade latina, é o corpo mesmo,
hiperssexualizado e exotizado, que aparece, que se marca como cam-
po de batalha, como linha de deserção e resistência. “Escrevo porque
quero tornar público minha corpa, porque minha corpa é política. Me
reconhecer a partir da minha ferida, a partir das minhas estrias que
percorrem minha barriga transbordada”.9 Se a corpa gorde é reduzida 9 Ibidem, p. 23.

à privacidade dos espaços, a escrita gorda é uma ferramenta, uma


espécie de contradispositivo catártico-político que, de um só golpe,
39

ameniza as cicatrizes da vida (no corpo) gorde, e transborda a expe-


riência gorda de volta ao espaço público.
Entretanto, aqui também essa identificação não gera identida-
des fixas e coerentes, já que, num contexto sudaka, a situacionalidade
também é uma tática de guerrilha identitária. “Uso das palavras como
tática, chamar-se de gorda é uma identidade estratégica, contextual,
perturbadora, assim como chamar-se de lésbica, feminista ou porca
10 Ibidem, p. 24. punk”.10 Assim, a porca punk, apesar de conter uma materialidade
situada, que se experimenta nas ruas, nas praias ou nas casas noturnas,
não chega a formar uma essência. Trata-se de uma condição, inescapá-
vel, mas também de uma ferramenta, acionável.
Por outro lado, os experimentos de Hija de Perra em “Inter-
pretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto
sudaca” também funcionam a pleno vapor. Perra começa por mostrar
que “marica” funciona no contexto sudaka (hispanofalante) de forma
semelhante (mas não idêntica) à interpelação e injúria “queer”, mos-
trando assim que processos de ressignificação da abjeção heterosse-
xual e o “giro” expropriativo também aconteciam desde aká. Além
disso, se Stonewall foi marcado como parte da genealogia “queer”
euro-estadunidense, Perra oferece pistas para a composição de uma
genealogia marica, que deveria começar por investigar as imemoriais
práticas não binárias e sexo-desviantes das comunidades ameríndias:

Os conquistadores olharam os homens indígenas como seres selvagens


afeminados por conta da sua ornamentação e as mulheres como fogosas por
terem parte dos corpos desnudos. Nossos ancestrais foram vestidos com roupas
estranhas à sua cultura original, cortaram os seus cabelos para diferenciá-los
entre homens e mulheres e não permitiram, tomando-as por aberração, todas as
práticas intersexuais que produziam alterações à moralista mente espanhola.11
11 perra , h . de.
Interpretações imundas
de como a Teoria Para Perra, portanto, parece ser mais produtivo, no contexto
Queer coloniza nosso sudaka, investigar essa genealogia perdida da selvageria sexual e de
contexto sudaca, pobre
de aspirações e terceiro- gênero nos povos ameríndios do que se esforçar para compreender o
mundista, perturbando
com novas construções contexto “queer” do norte global.
de gênero aos humanos Por meio de uma linguagem corrosivamente poética, Perra
encantados com a he-
teronorma. Periódicus: questiona as identidades sexuais e de gênero, multiplicando-as parodi-
revista vinculada ao
grupo de pesquisa cus camente ao infinito:
(ufba ), Salvador, v. 1,
n. 2 2014. p. 2.
Serei uma travesti sodomita lésbica ardente metropolitanizada?
Serei uma bissexual afeminada em pecado com traços contra-sexuais
e delírio de transgressão de transexualidade?
Serei uma tecno-mulher anormal com caprichos ninfomaníacos
multissexuais carnais?
Serei um monstro sexual normalizado pela academia dentro da selva de cimento?
40 no olho do cu(ir) – queer

Serei uma vida castigada por Deus por invertida, torta e ambígua?
Serei um homossexual ornamentadamente empetecada, feminina, pobre,
com inclinação sodomita capitalista?
Serei uma travesti penetradora de buracos voluptuosos dispostos a
devires ardentes?
Ou serei um corpo em contínuo trânsito identitário em busca de prazer sexual?12 12 Ibidem, p. 4-5.

Esses delírios sexo-identitários, demasiado sudakas, seriam


uma espécie de pista, de trilhamento. Em vez de procurar uma tradução
única e final para “queer”, deve-se deixar a dimensão do desvio e do
entortamento “queer” multiplicar-se na infinidade situada − tal qual ela
aparece, imemorialmente − das atmosferas marginais do esgoto sudaka.

Nos rastros das bestas: a virada monstra desde aká


Queria ainda destacar dois casos emblemáticos dessa experi-
mentação expropriativa da “teoria queer” desde aká. Tratam-se de dois
textos monstruosos. Em ambos os casos, vemos um deslocamento suda-
ka das questões de dissidência sexo-políticas, na medida em que os dois
textos apontam que a transgeneridade, num contexto latino, não somente
borra e estremece as oposições hétero/homo e cis/trans, mas também − e
ainda mais sombria e profundamente − a oposição humano/animal.
O primeiro é a tirinha “LobisHomem Trans”, do fanzine
Quimer(d)a. A tirinha narra os desvios cotidianos de um corpo trans
masculino (homem trans ou uma sapatrans), convivendo agora em
ambientes cis-masculinos e sendo interpelado de várias maneiras pela
cis-heteronorma. Confundido com um homem cis na academia, acaba
por ser interpelado pela “brodagem” cis-hétero. Cito: “E aí, parça,
olha aquela gostosa. Nossa, eu comia” – dizem os machos. O trans vai
inflando de ódio, tornando-se cada vez mais peludo e monstruoso. Mas
a raiva não se contém e quando os machos se deitam para fazer o supi-
no, o trans passa, deixando uma nuvem de peido trans-testosteronado,
como forma de vingança monstra. Saindo da academia, aproveita a
solidão no busão, o que não dura muito. Um macho espaçoso logo se
aproxima e senta, com as pernas bem esparramadas do lado do trans.
Com coçadas no saco e conversas heterossexistas ao telefone, o trans
fica cada vez mais monstro e furioso. Em vez de disputar o campeo-
nato de quem abre mais as penas, o monstro encosta o braço de forma
maliciosa no macho, que, com pontadas de “terror anal”, troca rapida-
mente de lugar. Por fim, descendo do ônibus, ele vai para um encontro
feminista e eis que num dos lugares onde ele aparentemente teria um
lugar, é interpelado: “– Oi. Só mina é bem-vinda. – Não. Eu... eu não
sei. Eu não...”. Eis que o monstro abandona todas as suas roupas,
monta nas quatro patas e foge, deserta... Fim da tirinha.
41

A experiência trans aí também possibilita um espaço de desvio


não somente de sexo/gênero, mas de desvio de espécie. Quimer(d)a
abre a transgeneridade no conjunto das relações de abjeção cis-hete-
rossexuais e também nas trans-formações monstruosas operadas pela
testosterona e outras tecnologias de gênero, para as experiências e
experimentações do não humano, da bestialidade, animalidade e da
monstruosidade. E se essa experiência da transgeneridade monstra é
expressada no estigma e na abjeção, como a tirinha marca em vários
momentos, ela é também a abertura de uma alegria igualmente bestial,
monstra. E é exatamente, mas não somente, através do humor e dos
desenhos que essa experiência ambivalente se grafa.
Por fim, destaco “Reivindico meu direito a ser um monstro”,
brilhante poema/ensaio político da maravilhosa travesti Susy Shock.
Aqui, não tanto por meio do humor, mas por um lirismo desenfreado,
delirante, Shock pensa a transgeneridade sudaka, mais especificamen-
te a travestilidade, como um deslocamento ao mesmo tempo das bar-
reiras de gênero e também de espécie. Uma recusa brutal dos enqua-
dramentos de gênero − e uma reinvenção performativa e material do
corpo − é um marcador que abre a vida trans (travesti) para o violento
e maravilhoso mundo da bestialidade não humana.

Eu, pobre mortal, equidistante de tudo, eu, cpf : 20.598.061, eu, primeiro
filho de uma mãe que depois fui, eu, velha aluna desta escola dos suplícios.
Eu reivindico meu direito a ser um monstro. Nem homem nem mulher. Eu,
monstro de meu desejo, carne de cada uma das minhas pinceladas, tela branca
do meu corpo, pintora do meu andar. Não quero mais títulos para carregar. Só
13 castillo , s . meu direito vital de ser um monstro... Meu direito a explorar-me. A reinven-
Poemario TransPirado. tar-me. Fazer do meu mudar, meu nobre exercício. Veranear-me, outonar-me,
Buenos Aires: Nuevos
Tiempos, 2011. p. 12-13. invernar-me; os hormônios, as ideias, as curvas e toda a alma − amém.13
Tradução da autora.

A transgeneridade, a travestilidade, como marca Shock, é uma


experiência primeiramente de perda, desorientação e de deriva sexo-
-ontológica. Estar “equidistante” de tudo, de si mesma, do “seu” cpf,
da sua linhagem familiar, da sua educação, do seu gênero... E é nessa
direção torta, desviada e desorientada que a experimentação se marca
como condição e como ferramenta monstra da transgeneridade, da
travestilidade. É exatamente por não se saber mais onde está, quer seja
por ter abandonado posições ou por nunca tê-las tido de fato, que a
experimentação ganha terreno. A experimentação transmonstra são os
passos tortuosos de uma trajetória que nunca acaba, que não tem fim
nem ponto de chegada. Na experimentação transmonstra de Shock, o
caminho, a trajetória e a estrada já são tudo que existe, tudo que im-
porta. Abandonar “títulos” não é um luxo, mas uma necessidade, pois
42 no olho do cu(ir) – queer

assim o corpo fica mais leve para viajar, experimentar a estrada da


transformação. A monstruosidade é apenas um nome dessa trajetória
translocada, onde o próprio corpo é a “tela branca” na qual se pince-
lam as cores da diferença e da singularidade monstra. A monstruosi-
dade trans, isto é, uma certa monstransidade, não pede permissão, não
exige reconhecimento, ela só (se) afirma, e (se) afirma errantemente
nas experimentações infinitas do corpo como estrada, encruzilhada,
desvio, retorno, beco sem saída, ponte, atalho…
43

referências
butler , J. Bodies That Matter: On the Discursive Limits
of “Sex”. Nova York: Routledge, 1993.
castillo , C. A. La cerda punk: ensayos desde un femi-
nismo gordo, lésbiko, antikapitalista & antiespecista.
Valparaíso: Trio, 2014.
perra , H. de. Interpretações imundas de como a Teoria
Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de as-
pirações e terceiro-mundista, perturbando com novas
construções de gênero aos humanos encantados com a
heteronorma. Periódicus: revista vinculada ao grupo
de pesquisa cus (ufba), Salvador, v. 1, n. 2, 2014.
quimer ( d ) a : quadrinhos antiespecistas. s.l., s.d.
sedgwick , E. K. Tendencies. Durham: Duke University
Press, 1993.
shock , S. Poemario TransPirado. Buenos Aires: Nuevos
Tiempos, 2011.

bibi Campos Leal


Dentre muitas coisas, bibi é tradutora e editora de fanzines,
já tendo traduzido e publicado, dentre outres: Paul B.
Preciado, Monique Wittig, Jack Halberstam, além de tex-
tos de Tiqqun e da própria Gangue Nardini e Bashback!.
Atualmente compõe a microrrede de editorial fanzinero
translesbichas. Fez mestrado em Filosofia pela Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro (ufrj ), pesquisando a des-
construção em Derrida e as relações com a chamada teoria
queer. Agora doutaranda sem bolsa, pesquisa a problemáti-
ca autobiográfica na chamada filosofia pós-estruturalista.
(des)mi(s)
tificar falares:
perspectivas
para uma
abordagem
do pajubá

Régis Mikail Abud Filho


45

M0 O Desaninhador de Monas

As monas-de-equê, xoxadas e perseguidas, sofriam todo tipo de gongo dos


alibãs, de quem tomavam coiós. Era o início dos tempos que conhecemos,
quando ainda não tinha direito que protegesse as travestis. Pra desaquendar os
alibãs, Tupã e Oxossi decidiram ajudá-las. Mandaram pras monas-de-equê o
pajubá que elas escutavam no único lugar, no único templo, na única liturgia
que as recebia de braços abertos: os cultos afro-brasileiros, trazidos pelos
escravos, com suas palavras sonoras, bem adaptadas ao português arcaico, pa-
lavras de línguas remotas e de origem indetectável. E assim nasceu o pajubá:
elas podiam falar de taba, padê e de aqué, desaquendar as equezeiras e até
gongar o axó novo da fulana; dizer que cicrana deu a elza no ilê da amapô...

Se há razão para refletir sobre o pajubá, não se trata de lis-


tar curiosidades pitorescas de um linguajar saboroso. Suas origens
1 pessoa de castro , parecem remeter a um criptoleto construído sobre falares africanos e
Iêda. Falares africanos
na Bahia: um vocabulário indígenas para que as travestis, que frequentavam terreiros de reli-
afro-brasileiro. Rio de giosidade afro-brasileira, não fossem compreendidas pela polícia.
Janeiro: Academia Brasi-
leira de Letras, 2001. Portanto, não é de surpreender o fato de que, em sua origem, os ter-
p. 54. (Coleção
Topbooks) mos do pajubá reflitam um submundo de prostituição e criminalidade.
Apesar de presente em diversas ordens discursivas, a visibilidade
2 marcuschi , Luiz a . trans encontra-se fragilizada no contexto brasileiro atual, paradoxal-
Análise da conversação.
São Paulo: Ática, 1986. p. 5. mente retratada sob amplas distorções midiáticas e marginalizada por
3 Vagner Gonçalves da políticas de austeridade de um governo ilegítimo e seus apoiadores,
Silva cita, entre vários
exemplos de cânticos no frequentemente mancomunados com um designado “fundamentalis-
contexto paulistano, a mo neopentecostal” que coloca o patrimônio afro-brasileiro igual-
cantiga de Obaluê do rito
angola, na qual se obser- mente em risco. Lembremos que, como mostra Iêda Pessoa de Castro,
vam termos em português
que simplificariam a especialista em falares africanos no Brasil, o modelo mais antigo de
memorização do cântico religiosidade brasileira sincrética, o candomblé de caboclo, reúne
e a comunicação do inter-
locutor com a divindade: elementos linguísticos do banto, de línguas indígenas e do português,1
“Aê seu kafunã/ Omulu
que belo ojá/ Aê aê seu as mesmas raízes do pajubá.
Kafunã”. Ver: silva , Desconheço estudos sobre o pajubá como sistema linguístico.
Vagner Gonçalves da.
Cantar para subir: um Ao que parece, são ainda mais raros do que os já escassos estudos so-
estudo antropológico da
música ritual no candom- bre línguas indígeno-brasileiras e africanas. Ainda pouco pesquisados
blé paulista. Disponível são os aspectos da língua falada brasileira e os processos conversacio-
em: <http://br.monogra-
fias.com/trabalhos913/ nais.2 Essa constatação é espantosa, se considerarmos que o modelo
cantar-musica- ritual/
cantar-musica- ritual. mais antigo de religiosidade brasileira, de sincretismo (e por que não
shtml>. Acesso em: 23 dizer de idiossincrasia) nacional, o candomblé de caboclo, reúne ele-
fev. 2017.
mentos linguísticos do banto, de línguas indígenas e do português.3
46 (des)mi(s)tificar falares

Estruturalmente simples e de léxico limitado, as condições 4 Ao contrário do


polari, do qual falaremos
de fala atuais do pajubá convidam a uma abordagem que não mais o posteriormente, caído em
considere como objeto linguístico estanque, mas como sujeito trans- desuso desde o final dos
anos 1960 devido à grande
formador de implicações discursivas e sociais importantes. Estendido popularidade midiática, o
pajubá parece ser alimen-
ao contexto lgbtqia e sob perspectiva de gênero, performance e lin- tado por uma mídia que,
guagem, caberá abordá-lo futuramente como sujeito de uma sociedade pelo menos linguistica-
mente, vem se mostrando
urbano-digital que passou, de visivelmente subversivo, a ser invisivel- amigável a ele e aos
falantes desse “gueto”.
mente aceito. Contrariamente à literatura consultada, procurei evitar
considerar quaisquer falares gays como pajubá – a distinção entre o 5 castro , op. cit., p.
63 e 78.
público gay e o público trans é digna de nota; o primeiro incorporou
o falar do segundo. Antes transmitido no falar, o pajubá espalhou-se 6 No caso brasileiro,
poderíamos traçar um
como por capilaridade pela internet4 e transformou o diálogo entre paralelo entre a nação
os lgbtqia e outros segmentos sociais, da mesma maneira que, no de candomblé (pai/mãe,
irmão/irmã, filhos/filhas
período colonial, a mãe-preta e o ladino transportavam influências dos que estabelecem entre
si traços de parentesco
africanismos no português brasileiro, numa corrente mútua de influên- religioso dentro do culto
cias e aportes.5 de um mesmo santo e em
uma mesma língua) e os
As mudanças do pajubá já não buscam tão somente dificultar a clãs de grupos nova-ior-
quinos de travestis, drags,
compreensão pelos policiais. Hoje, trata-se menos de um criptoleto do andróginos, transgêneros
que uma afirmação identitária performativa em constante adaptação. e transexuais disputando
entre si em batalhas de
De fato, a língua e suas variantes não se limitam a relatar a realidade. danças e desfiles, surgi-
dos nos anos 1990.
Mas, para criar subjetivamente a língua, o falante parte dessa própria
realidade. Estabelece-se um pacto no qual neologismos são aceitos ou 7 A esse respeito,
podemos constatar uma
recusados de acordo com o prestígio e poder dos falantes, se nos per- característica da lingua-
mitirmos evocar vagamente Foucault. Esses jogos de poder em relação gem popular espontânea
que confere desinências
à língua estão presentes em âmbitos como o candomblé brasileiro e na masculinas artificiais a
termos fundamentalmente
cultura noturna do vogueing.6 femininos: como “o
A Aurélia, “a dicionária gay”,7 de Ângelo Vip e Fred Libi, coiso”, em animais como
“o capivaro”, “o garço”.
satírica como o Dictionnaire d’idées reçues, de Flaubert, propõe Isso sugere a ideia de que
a língua, ao faltar com um
com sucesso um inventário (frequentemente humorístico) dos fa- correspondente imediato
lares e gírias gays amplamente em transformação (como já ocorria e natural ao gênero mas-
culino, é defeituosa. Ao
na mídia impressa, a exemplo da coluna “Noite Ilustrada”), não se passo que a mudança de
desinência masculina para
limitando ao pajubá e seus étimos indígeno-africanos. Biografias feminina, “a morcega”,
absurdas dos autores e o prefácio de um certo “Dr. Jaccourd” reve- “a dicionária”, é, quando
não voluntariamente
lam zombaria ao preciosismo acadêmico. Ludicamente, a Aurélia cômica em um contexto
intra-queer ou intra-
brinca com morfemas e gêneros. Classifica, por exemplo, o neolo- gay, pejorativa, como
gismo “sapatã”, corruptela de “sapatão”, termo feminino, aumenta- podemos inferir em “a
soldada”, “a bombeira”,
tivo da palavra masculina “sapato”, que é artificialmente – e contra- para designar trabalha-
dores homossexuais em
ditoriamente – feminilizado para designar a lésbica que ainda não é profissões predominan-
“autêntica sapatão”.8 temente masculinas. Isso
se constata não apenas em
As pesquisas futuras deveriam investigar como o pajubá cria palavras que carecem de
desinência de gênero ime-
sua realidade a partir e através da língua, numa realidade em que se diata, mas em qualquer
performatizam identidades. A inspiração trans-humana da linguagem flexão ao feminino.
47

8 vip , Angelo; libi , Fred. e a teoria queer convidam a considerar a/o trans como desafio ao
Aurélia: A dicionária da
língua afiada. São Paulo: cartesianismo, formulando perguntas em vez de demonstrar respostas.
Editora do Bispo, s. d. O desejo de tal rompimento levaria em conta não apenas rusgas como
p. 120.
“queer vs. pink”, mas investigaria fundamentalmente a interação des-
ses grupos sociais, cuja linguagem é denominador comum.
9 O polari seria menos Assim como o bekimon filipino e o extinto polari britânico,9
um criptoleto para fugir
da polícia do que um o pajubá passa a ser inclusivo e considera meios extra-lgbtqia . Ou
falar que procurasse seriam esses meios que se apropriam dele? A absorção e propaga-
aceitar e afirmar a
identidade destes outcasts ção do pajubá e sua parcial rigidez lexical de étimos afro-indígenas,
e, posteriormente, a
identidade homossexual, esses pouco transformados, colocam em cheque preconceitos “clás-
drag e trans, inicialmente sicos” externos já mencionados, bem como preconceitos “internos”
masculina. Ver: baker ,
Paul. Polari: The Lost que contradiriam o próprio não binarismo e ativismo político. Cien-
Language of Gay Men.
London: Routledge, 2003. tificamente, essas exclusões não levariam os estudos a uma idiotia
autobiográfica ou à tautologia acadêmica?10 Tipicamente brasileiro,
10 Ver: livia , Anna;
o pajubá só poderia condizer com uma origem macunaímica, de uso
hall , Kira. “É uma me-
nina”: a volta da perfor- carnavalesco e pleno de contradições sociais. Talvez já esteja em fer-
matividade à linguística.
In: ostermann , Ana mentação uma abordagem que considere seu caráter antropofágico,
Cristina; fontana , interessando-se mais por maneiras de ver a questão do que propria-
Beatriz (orgs.).
Linguagem, gênero, mente sua exaustão.
sexualidade. São Paulo:
Parábola Editorial, 2010. Surgido num contexto analógico, o pajubá vem se transfor-
p. 114. As autoras obser- mando conforme – ou em contracorrente a – uma “realidade digital”
vam o aparecimento de
estudos sobre o discurso líquida. A análise do discurso num quadro da teoria queer rechaça
de gays e lésbicas que
resultaram em simples a normativização de seu estudo, o que levaria a encarar os sistemas
glossários excludentes organizacionais da análise conversacional, em que se realiza o pajubá,
e metodologicamente
pouco precisos, como não “como normas para padrões de funcionamento e sim como proce-
Gayspeak, de Hayes,
de 1976, e as pesquisas dimentos analíticos”, segundo Luiz Marcuschi. Bem como a(s) iden-
etnográficas de Ponte, em tidade(s) de gênero, tais sistemas deveriam, portanto, ser vistos como
1974, sobre elementos
extralinguísticos (postura, “processos, e não propostas normativas para fenômenos isolados”.11
olhar) desses discursos,
como o de Webblink, Resistente sem ser essencialmente militante, podemos atribuir
em 1981, e a alternância ao pajubá um mito de origem, para usar uma expressão levi-straussia-
de códigos entre gays
(Lumby, 1976). na. Assim, a fala (e nela a impossibilidade de resiliência de um supos-
to estado original do mito), bem como a oralidade e a musicalidade
11 marcuschi , sobre a qual se estruturam as Mitológicas – e, no nosso caso, o pajubá
op. cit., p. 85.
–, correspondem ao tratamento humano dado a esse tipo de narrativa.
Não existiria um ponto de partida do mito-pajubá. Sob risco de me
repetir, tomei a liberdade de reescrever seu mito de origem no começo
12 Ver epígrafe deste artigo,12 ciente da dupla acepção dicionarizada do termo “mito”:
deste texto.
como narrativa que um determinado grupo étnico-social atribui à sua
própria origem, ou como coisa que não se supõe real, quimera.
Quando se trata da origem de um falar, a “fala” se relaciona
diretamente ao conceito de “mito” (μυθεομαι = “falar desinteressada-
mente”) e a seu contexto de transmissão oral da mitologia africana e
48 (des)mi(s)tificar falares

Nas tabelas abaixo, as colunas referem-se aos aportes das línguas africanas, ao pas-
so que a última coluna elenca os decalques pelos quais o termo passa em português.
As linhas referem-se aos contexto no qual os aportes e decalques são utilizados.

aportes* decalque**

IORUBÁ FON BANTO português

ebo vo mboozo oferenda Os termos “ebo”, “vo”,


“mboozo”, que querem
Linguagem do povo de santo, membros e ebó ebó bozó despacho
dizer “oferenda” em
adeptos do candomblé, considerada nos
português, sofrerão um
contextos inter e intragrupal
decalque e passarão a
Linguagem popular da Bahia ebó ebó bozó despacho significar, nos diversos
Linguagem do português do Brasil em geral — — — despacho níveis de fala, “despacho”.
O pajubá incorporará
Linguagem do pajubá e de seus falantes ebó ebó — comida ou despacho “ebó” como “despacho”,
em geral (refeição, comida de “refeição” ou “comida”; já
santo no candomblé “bozó” não foi incorporado
ou a oferenda em si) ao pajubá.

aportes* decalque**
O termo “ilê” do iorubá
IORUBÁ FON BANTO português se mantém no pajubá
ìlé hukpème (u)nzo templo não na forma original
“ìlé”, mas de acordo
Linguagem do povo de santo, membros e ilê rondemo unzó terreiro
com a mudança fonética
adeptos do candomblé, considerada nos
empregada nos níveis re-
contextos inter e intragrupal
ligiosos e populares “ilê”.
Linguagem popular da Bahia — — — terreiro No caso do português, o
conceito de “templo” pas-
Linguagem do português do Brasil em geral — — — terreiro
sa a adquirir o significado
Linguagem do pajubá e de seus falantes ilê — — apartamento, quarto, de “habitação”, “aparta-
em geral casa, moradia mento”, “moradia” etc.

aportes* decalque**

IORUBÁ FON BANTO português

Ajeum Mdudu Kudia o-de-comer A mesma preserva-


ção do termo iorubá
Linguagem do povo de santo, membros e Ajeum Mdudu Kudia o-de-comer
“ajeum” ocorre no
adeptos do candomblé, considerada nos
pajubá. Além de pre-
contextos inter e intragrupal
servar o significado
Linguagem popular da Bahia — — — o-de-comer original de comida
Linguagem do português do Brasil em geral — — — — e refeição (como
“ebó”), pode também
Linguagem do pajubá e de seus falantes Ajeum — — comida, refeição,
significar, mais rara-
em geral fome
mente, “fome”.

*O aporte linguístico (do francês apport) é quando uma língua, neste caso o português, utiliza e
incorpora uma unidade e traço linguístico (palavra ou som) que existia em um outro falar – neste
caso, africano, nas línguas iorubá, fon e banto – até então inexistente na língua de chegada.
**Decalque (do francês calque) é quando ocorre uma tradução a uma língua, neste caso, o portu-
guês, de uma palavra pertencente a uma outra língua, neste caso as africanas acima citadas.
49

amigue
e seu plural não flexionado “as
amigue” ou “azamigue”, que sofre
até uma alteração de pronúncia
à maneira carioca de pronunciar:
“azamiguesh”. Pode ter derivado de
uma fórmula escrita que se impõe
como norma para o combate ao
sexismo: “Carxs amigxs”. Morfolo-
gicamente, o singular sexualmente
correto não seria o “o”– designador
masculino, nem o “a”– designador
feminino, mas um “e”. De fato,
também constata-se a ocorrência
“Cares amigues”. Entretanto, a suposição de que a letra “e” de-
signaria uma suposta neutralidade de gênero
(e não o gênero gramatical de certas línguas) é
problemática.
equê
que em pajubá significa “mentira”, A ideia de masculino está mais impregnada na
“engano”, “truque”, passa a ganhar língua do que se imagina. O masculino não é
o aporte “equezeiro” e a ser em- marcado na desinência “o”, mas na ausência dela,
pregada também como adjetivo. o que muitas vezes revela que o masculino se ex-
prime pelo “e”. A característica do masculino seria a
ausência de flexão específica, enquanto o feminino
é caracterizado por “a”. Por isso, supor que o “e”
cudiá apresentaria a solução para linguagem epicena,
um processo semelhante de aporte sexual e genericamente correta seria contraditório.
também acontece em formas ver-
bais banto, conjugadas em portu-
guês: “cudiá” = “correr” e “cudiô” =
“correu”, ou ainda “cufá” = “morrer”
e “cufô” = “morreu”.

aquendar
o verbo-coringa “aquendar” passa No pajubá encontramos nos aportes lexicais das
a ganhar afixos do português línguas africanas não somente termos fixos, mas
(“desaquendar”) e flexões verbais também decalques e locuções frasais em escala
(“aquendou”, “aquendava” etc.). menor, por exemplo “já-começa”, que encontra-
Lembramos que o verbo “quendá”, mos na Aurélia como “manja-rola” e “mona-ocó”,
provável origem de “aquendar”, expressões essas também frequentes nos fala-
significa “andar”, “partir” e “viajar”. res africanos do Brasil, como “bom-dia-jabum”,
entre outras.

ni
do falar do preto-velho, figura
arquetípica falante de fragmentos
do extinto dialeto crioulo das
senzalas, de origem banto, o
pajubá tem em comum, além de
ideofones e muxoxos (a exemplo
de nasalizações forçadas nas
últimas sílabas, gritinhos e outros
elementos extralinguísticos como
gestos), a preposição “ni” empre-
gada em vez do “em” normativo,
que traz como ironia ou afeição
uma maneira de falar considerada
humilde, da mesma maneira que o
apagamento do “d” ao pronunciar
gerúndios, típicos dos santos
incorporados.
50 (des)mi(s)tificar falares

do circuito eminentemente oral do qual se propagou. Essa oralidade se


associa ao humor em léxicos fantasiosos, embora esclarecedores, que
se propõem a informar por meio da forma de compêndio sem descartar
o humor inerente ao pajubá. De qualquer maneira, teríamos que partir
não do mito de origem, mas de um possível mito de origem.
O léxico do pajubá, como seu mito de origem, viaja através de 13 pessoa de
castro , op. cit., p. 109.
significados. Assim, remetendo ao estudo de De Castro, “ebó” (= “ofe-
renda”) adquire o sentido de “feitiçaria”; sua variante baiana “bozó” 14 “[...] o ser humano
é mente (Geist), isto
ganha conotação pejorativa pelo cristianismo. Em pajubá, designa “co- é, ele é língua, e a
mida de santo”, a oferenda em si e às vezes simplesmente “comida”. Já língua é sempre uma
retirada do instinto,
o vocábulo “ilê”, significando primeiramente “templo”, passa a signifi- retirada da unidade com
a circunstância biológica
car “apartamento” ou “moradia” em pajubá.13 Observamos então uma e necessariamente distân-
divergência desses termos litúrgicos no âmbito urbano trans, que hoje é cia da primeira natureza,
entre os seres humanos
compreendido mais extensamente pelos chamados “simpatizantes”. e evidentemente sempre
um abismo maior, que
Sua oralidade – escrita ou falada – dialoga com universos po- é rompido através da
pulares brasileiros, dos terreiros aos clubes, e se repropaga, transfor- ordem simbólica e que
também através da
mada. O extinto blog Katylene e microblogs de figuras como Johnny reunificação da fantasia
não pode ser equilibrado
Luxo são exemplos. Transformando o pajubá, agem ironicamente [...]” (Tradução livre de
sobre os impasses do mundo digital e sua linguagem. Satirizam discur- conferência dada no ins-
tituto Fronteiras do Pen-
sos propagandísticos e autopublicitários de blogueiros e celebridades samento. Disponível em:
<https://www.youtube.
mainstream, apropriando-se de seus discursos, contradizendo-os em com/watch?v=EKbfwe-
humor escrachado, questionando gêneros e sexualidades. Denunciam NE1zw>. Acesso em :
24 fev. 2017).
com ironia a hegemonia da língua inglesa e o exagero de seu uso (e
ideologia) por meio de anglicismos absurdamente grafados, como em 15 “Finding their meaning
only in this blending. Pro-
“dya/dia” ou “rykah/rica”. Assim, a crueza sexual e o lirismo bandido duction among species. I
do pajubá fertilizam-se numa realidade outra. write about what matters
most to me, in a language
Enfim, podemos sugerir que a afirmação de Peter Sloterdijk se that doesn’t belong to me” 
(preciado , Beatriz. Tes-
faz ainda mais verdadeira: o ser humano é mente, a mente é língua. E to Junkie: Sex, drugs, and
língua/ser humano seriam então análogos a estruturas biológicas, ou biopolitics in the Pharma-
copornographic era. Nova
melhor, às problematizações e à liquidez bastante novas das socieda- York: The Feminist Press,
2013). Preciado se refere,
des tecnológicas pós-consumistas da atualidade.14 Daí a necessidade na verdade, ao conceito de
de considerar uma não rigidez linguística que condiga com a mesma “monolinguismo do outro”,
cunhado por Derrida (Le
não rigidez de gêneros partindo, por exemplo, de um “translinguis- Monolinguisme de l’autre,
ou la prothèse de l’origi-
mo”.15 Que esse não se realize apenas entre as línguas, mas na língua ne. Paris: Galilée, 1996).
e como língua. Se a língua portuguesa no Brasil foi africanizada,16 o
pajubá é evidência autêntica desse processo. Qual será o seu papel nos
falares gays para um questionamento sobre as operações de sexo e 16 pessoa de castro ,
op. cit., p. 119-120.
gênero – identitário e gramatical – da língua e na língua?
51

referências
baker , Paul. Polari: The Lost Language of Gay Men.
Londres: Routledge, 2003.
derrida , Jacques. Le Monolinguisme de l’autre, ou la
prothèse de l’origine. Paris: Galilée, 1996.
kehdi , Valter. Morfemas do português. São Paulo: Ática, 1990.
livia , Anna; hall , Kira. “É uma menina”: a volta da
performatividade à linguística. In: ostermann , Ana
Cristina; fontana , Beatriz (orgs.). Linguagem, gêne-
ro, sexualidade. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
marcuschi , Luiz A. Análise da conversação. São Paulo:
Ática, 1986.
pessoa de castro , Iêda. Falares africanos na Bahia: um
vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia
Brasileira de Letras, 2001. (Coleção Topbooks)
preciado , Beatriz. Testo Junkie: Sex, drugs, and biopoliti-
cs in the Pharmacopornographic era. Nova York: The
Feminist Press, 2013.
silva , Vagner Gonçalves da. Cantar para subir: um estudo
antropológico da música ritual no candomblé paulista.
Disponível em: <http://br.monografias.com/traba-
lhos913/cantar-musica- ritual/cantar-musica- ritual.
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sloterdijk , Peter. O que separa o ser humano da natureza.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?-
v=EKbfweNE1zw>. Acesso em : 24 fev. 2017.
vip , Angelo; libi , Fred. Aurélia: A dicionária da língua
afiada. São Paulo: Editora do Bispo, s. d.

Régis Mikail Abud Filho


Nasceu em São Paulo, onde viveu intensamente a noite
paulistana. Daí seu interesse pelo pajubá e suas modifica-
ções. Concluiu seu mestrado em Literatura Comparada na
Freie Universität Berlin e recentemente doutorou-se em
Literatura Francesa pela Université Paris-Sorbonne.
52
53
54
55
chega de
manhattans
Je an-F ra n ço i s P ro s t

Pensamentos, observações
e explorações durante uma
residência em São Paulo
Ao chegar a São Paulo, somos
logo atingidos pela coabitação de dife-
renças no centro da cidade: sem-tetos,
toxicômanos, clubbers, transgêneros,
vendedores ambulantes e imigrantes,
entre outros que estão sempre se aco-
tovelando, evoluindo em proximidade
num mesmo espaço bastante denso.

 ovos projetos imobiliários:


N
a cidade genérica
No entanto, ao caminhar pe-
las ruas de São Paulo, apesar dessa
pluralidade evidente, eu via constan-
temente grandes prédios residenciais
em construção e vários escritórios de
vendas desses condomínios. Conjuntos
de apartamentos em copropriedade,
devidamente fechados e cercados de
Jean-François
Prost, No more seguranças, com nomes em inglês
Manhattans, como Urban Resort, Downtown e Vibe.
2017 Esses projetos imobiliários promovem
As citações pre-
uma vida completamente diferente, ao
sentes na obra
são conversas mesmo tempo globalizada e genérica,
com agentes desvinculada de quaisquer referências
imobiliários em específicas a São Paulo. Oferecem a
escritórios de
promessa de uma vida melhor, cosmo-
venda de condo-
mínios no centro polita, confortável, moderna, privilegia-
de São Paulo. da e sem incômodos, além de responder
57

ao crescente desejo nutrido por alguns vendedores não tenham opinião sobre os
de fazer parte de um mundo progressis- bairros, apenas que preferem não falar a
ta e móvel, sem pertencimento cultural respeito, para evitar abordar realidades
e destacado do real – muitas vezes bas- contextuais e assuntos mais delicados.
tante duro e complicado. Fiquei muito Era somente quando eu lhes fazia per-
perplexo diante das imagens de folhetos guntas sobre o bairro – obrigando-os a
promocionais distribuídos gratuitamente se afastar da charlatanice bem trabalhada
nas ruas, tamanho o contraste e o afasta- – que eles começavam a evocar algumas
mento da vida real das ruas da cidade. particularidades. Isso nos propulsava
Foi logo depois dessas primei- a um universo totalmente outro, mais
ras impressões que decidi visitar os subjetivo, que permitiu revelar as con-
escritórios de vendas, para me per- sequências inconvenientes desse tipo de
mitir fazer algumas observações que empreendimento imobiliário.
compartilho aqui.
Por intermédio dessa ação furti-  rquitetura de divisões/
A
va, eu desejava encontrar os promotores proximidade e construção
imobiliários e ouvir seus argumentos de do comum
venda para descobrir como falam dos A maioria dos novos prédios
projetos, de determinados bairros e do em construção em São Paulo, mesmo
Centro de São Paulo como um todo. aqueles que dão para o Minhocão e
Ao longo dessas visitas e ouvindo as para a praça da República, terá seus
apresentações deles, o que me chamou jardins privados cercados de muros
atenção foi a ausência ou total evacua- vidrados. Essa “arquitetura murada”
ção – como acontece nos folhetos publi- criará uma divisão entre a vida da rua
citários – do contexto urbano bastante e a vida protegida e exclusiva dos edi-
rico e complexo no qual estão ancorados fícios. Assim, os contatos espontâneos
esses projetos de novos empreendimen- com o outro e com os não moradores
tos. Penso naquelas regiões da Luz, Vila serão limitados. A partir desses jardins
Buarque e República1. As referências à vidrados no nível da rua, será possível
cidade eram unicamente associadas à simplesmente observar a vida exterior,
sua arquitetura ou ao patrimônio cons- sem participar dela de verdade. O muro
truído, sem vínculo com a população de vidro, agora privilegiado na arquite-
residente. É desolador constatar que tura como meio de separação, oferece
ainda estamos nesse ponto – na mesma diversas vantagens: cria uma barreira
casa do tabuleiro de onde saímos – após sonora e uma proteção contra a poei-
todo o debate pós-moderno acerca do ra, mas, acima de tudo, permite uma
urbanismo e a crítica aos grandes pro- vista ininterrupta e sem obstáculos, ao
gramas modernistas que procediam por mesmo tempo que oferece mais segu-
tábula rasa. Isso não quer dizer que os rança do que a tradicional grade. Essa
perspectiva do espaço público e sua
diversidade – vista através de uma tela
1​Ou, mais precisamente, as ruas ao redor da República que
compõem o antigo reduto da vida gay de São Paulo. de vidro – leva a pensar na experiência
58 No More Manhattans

“imersiva” vivida num jardim zoológi- Manhattan se tornou – ao contrário do


co ou num aquário, quando assistimos que é hoje – um lugar poroso e acessí-
à vida de espécies animais com as quais vel por sua profusão de espaços a pre-
não temos nenhum contato físico. ços módicos.3 Essa época foi bastante
A maioria dos novos prédios re- propícia à experimentação e à criati-
sidenciais de São Paulo oferece também vidade, como é o caso de São Paulo.
varandas bem altas que permitem admi- Apesar do otimismo ou da esperança
rar e tirar proveito da cidade em escala de alguns, a especificidade cultural do
macro – mas bem longe das realidades Centro de São Paulo vem sendo amea-
do micro e dos detalhes do real com çada por essa uniformização neoliberal
todos seus dissabores (odores, sujeira, na mesma medida que foi em Manhat-
barulhos e excessos). Esses prédios são tan. A esperança será insuficiente para
concebidos para proteger os moradores conservar a pluralidade que já está em
da experiência da cidade de São Paulo e risco. Será que os novos residentes
de seus imprevistos – acasos esses que, que chegam aceitarão aqueles que já
para mim, fazem a riqueza do lugar. estão lá? Como podemos salvar São
Paulo desse mesmo processo mundial
 iversidade perdida: o caso
D de transformação, que asseptiza e
de outras cidades no mundo neutraliza as cidades do mundo para
Compartilhei minhas preocupa- transformá-las em novas Manhattans?
ções e observações acerca desses novos
empreendimentos com várias pessoas  lgumas pistas rumo a uma
A
(ativistas, artistas, arquitetos etc.). Vá- nova cidade sustentável
rios deles me afirmaram que São Paulo Para reverter essa tendência de
era uma cidade diferente, tolerante e de uniformização, a primeira ação – e a
convivência, onde as pessoas sabiam vi- mais radical – seria proibir novas cons-
ver juntas ali apesar de suas diferenças. truções de prédios genéricos e comple-
É verdade que eu mesmo tinha observa- xos fechados e cheios de segurança,
do que São Paulo se parece um pouco impondo uma moratória. Geralmente
com Toronto ou com outras cidades sou contra proibições, no entanto, não
globalizadas pelo mundo. Todavia, às dá para ignorar que às vezes elas são
vezes nos esquecemos que várias cida- necessárias e vitais. Não podemos ser
des, como Paris, Londres, Hong Kong e sempre otimistas e acreditar que as
principalmente Manhattan, eram muito
diferentes antes, ou seja, mais inclu-
sivas e diversificadas, menos elitistas.
Em menos de trinta anos, Manhattan se 2 ​Em Manhattan, o preço recorde de compra é de 19 mil
transformou completamvente numa ilha dólares por metro quadrado – espaço mínimo para acomodar
um corpo em posição vertical –, o que torna as habitações
do 1%, reservada quase exclusivamente inacessíveis para a maioria dos cidadãos.

a uma elite cada vez mais afortunada.2 3 Assim como Manhattan e outras cidades das Américas, São
Depois do êxodo massivo ru­ Paulo foi seriamente atingida por um êxodo do centro rumo às
periferias. Esse fenômeno de migração, comumente chamado
mo à periferia no final dos anos 1970, de “efeito donut”, deu-se principalmente nos anos 1970 e 1980.
59

coisas evoluirão de maneira orgânica alarmante e denunciam a hegemonia


rumo ao bom caminho. Alguns pro- proposta por esses novos projetos imobi-
gramas arquitetônicos (planejamen- liários. Às vezes é preferível apenas di-
tos, jardins e equipamentos privados) zer “não” a esse tipo de empreendimen-
deveriam ser pura e simplesmente to, sem compromisso nem alternativas.
proibidos, pelo bem-estar coletivo. Os Outra opção mais pragmática
empreendimentos imobiliários atuais consistiria em regulamentar, enquadrar e
de São Paulo criarão bolsões de rique- repensar os programas arquiteturais que
za que, progressivamente, vão sufocar impedem a realização de projetos que
a cidade e contribuir para marginalizar acentuam as divisões espaciais e sociais.
ainda mais determinados grupos de Por exemplo, deveríamos exigir que os
cidadãos. Gradualmente, os serviços prédios públicos oferecessem lugares
oferecidos aos citadinos serão orienta- acessíveis a todos no nível da rua, além
dos a apenas responder às necessidades de proibir jardins privados que compe-
dessa nova classe média, o que acabará tem com os espaços públicos existentes.
limitando as escolhas aos demais. Pois Ações criativas e efêmeras poderiam
mesmo que alguns conservem suas agir de maneira complementar às leis
moradias em determinados setores vigentes de arquitetura e urbanismo.
gentrificados, logo ficarão isolados e Na véspera da minha partida de
em situação precária, ao passo que os São Paulo, Lua me levou para visitar
comerciantes e os outros moradores uma ocupação4 que tinha acabado de ser
partirão em debandada. constituída – menos de 24 horas antes
Por mais que a maioria das mi- – no prédio de um antigo hotel burguês
nhas intervenções artísticas, de acordo que estava abandonado havia tempos e
com o ponto de vista teórico adotado, que fora totalmente apropriado por uma
possa ser considerada construtiva ou comunidade de cerca de 250 pessoas
relacional e tenha a participação e a de gerações diversas e perfis variados
colaboração como modus operandi, (queer, lgbt, famílias, operários etc.).5
penso que a situação de São Paulo não Nos últimos andares da ocupação, era
deixa de convocar ações que operem de possível observar os moradores abasta-
maneira distinta, sem propor nenhuma dos do prédio vizinho, que nadavam na
troca. Seriam mais como táticas ou obras piscina moderna e vidrada de mais um
críticas que revelam a atual situação prédio genérico recentemente construí-
do. O contraste entre os dois lugares era
radical: inquietante e desestabilizador
na mesma medida. Assim que os novos
4 Essa visita inacreditável, inesquecível e muito inspiradora
me sacudiu e me deu momentaneamente vontade de abando- ocupantes chegaram, vários moradores
nar meu cotidiano (meu apartamento, meus pertences) para do prédio vizinho tinham chamado a
começar uma vida nova e totalmente compartilhada com os
outros, em plena solidariedade e ajuda mútua. polícia para reclamar daquela presença
5 Orquestrada pela Frente de Luta por Moradia (flm ), a inopinada. Será que preferiam a vista de
ocupação se apropriou desse prédio que estava abandonado um prédio abandonado ou de uma ruína,
havia dez anos, situado à rua Álvaro de Carvalho, no Centro
da cidade. em vez de um edifício habitado e fer-
60 No More Manhattans

vilhando de vida? Para evitar qualquer positiva com os moradores do prédio


eventual conflito, os responsáveis pela vizinho. O importante era criar um
ocupação tinham aconselhado a todos contato direto entre esses dois grupos
que fossem discretos e limitassem as de moradores tão distintos e evitar o
trocas e interações com esses vizinhos. uso de intermediários. Como mencio-
Entre esses dois espaços opostos, não nado por Michael Hardt em entrevista
havia nenhum lugar comum, nenhum sobre divisões espaciais,7 essas situa-
espaço para o encontro,6 apenas uma ções precisam de ativadores, ações
calçada estreita que separava a rua do que permitam transgredir as fronteiras,
espaço privado e cheio de seguranças pois a proximidade não cria necessa-
do “prédio murado”. riamente uma relação e não perturba
Para ativar o encontro e lutar necessariamente a ordem estabelecida
contra a desconfiança, propus espon- ou a hierarquia existente. A proximida-
taneamente que organizássemos uma
refeição coletiva. A ideia era convidar
esses vizinhos temerosos para visitar 6 O acesso direto a essas torres, feito de carro ou até mesmo de
helicóptero, contribui para limitar ainda mais o contato com a
a ocupação, de modo que pudessem rua e o entorno imediato. Na Cidade dos Muros (um dos tantos
constatar por conta própria aquela apelidos pejorativos de São Paulo), a segregação econômica
e social é tanto vertical como horizontal. Na verdade, para
energia que eu havia testemunhado. limitar o contato com o chão e com o outro, algumas pessoas
se deslocam quase exclusivamente de helicóptero, o que lhes
Ainda que a maioria deles fosse recusar permite viver uma experiência bastante fragmentada da cidade.
o convite, alguns acabariam aceitan- 7 Entrevista publicada no livro Heteropolis. Montreal:
do e compartilhando uma experiência Adaptive Actions, 2013.
61

Jean-François Prost, tso (Trans


Sem Oportunidade), 2016, série
de fotos do projeto Acronymia.
de física associada à diversidade não é O acrônimo tso foi escolhido
por Lua Lucas (na foto).
uma solução nem uma finalidade em si,
mas é essencial desde o começo para
engatilhar uma troca, para elaborar táti-
cas de aproximação e compartilhamen-
to que permitirão a construção de um
projeto político comum. A centralidade
como local de multiplicidade, encon-
tros imprevisíveis, conflitos e negocia-
ções continua sendo uma especificidade
importante a se conservar tanto em São
Paulo como em outras cidades no mun-
do na atual era de globalização.

Jean-François Prost
é artista/arquiteto que pesquisa espaços negligencia-
dos, indeterminados, e hipercontrolados, estéreis e
sem especificidades aparentes. Participou da Bienal de
Liverpool, do Canadian Center for Architecture, da Bie-
nal de Arte Madrid Abierto. Em 2007, criou a plataforma
Adaptative Actions [adabtativeactions.net] que resultou
na publicação do livro Heteropolis, 2013, e em ações
e exposições na Bienal de Arte de Montreal, no muac
(Cidade do México) e no Tokyo Wonder Site. Vive e
trabalha entre Montreal e Cidade do México.
o gozo
do pária:
tecnologias
para existir
à margem
[da margem
estatal]

Sabrina Duran
63

No mundo capitalista, a pessoa em situação de rua é o para-


digma do pária, indivíduo entendido como descolado do sistema. No
mundo capitalista, o pária é a existência dissonante. Em todos os senti-
dos e sempre. Está à margem de todos e de tudo. Com sua indigência,
avilta a ideia de progresso. Com sua magreza, contraria o imperativo
da saciedade. Com a sua pele opaca e seca, ferida pelas intempéries,
pelas agressões e pela doença, explicita a impossibilidade de ter sem-
pre à mão a cura numa cápsula. Seu caminhar lento e sem rumo − ou
sua vida na horizontal pelas calçadas, soleiras e canteiros − grita que
o tempo não é dinheiro, mas desperdício. O pária se refestela no gasto
da vida com horas e horas improdutivas. Nada sai das suas mãos nem
do seu engenho. Por isso mesmo, o pária não acumula, porque não tem
o que acumular – a não ser, é claro, a culpa de malgastar o rico tempo
sem produzir nada que não seja preguiça e indisciplina. O pária é a
materialização da fraqueza, do fracasso social e material, da irremediá-
vel miséria que, nele, atingiu níveis profundos, sistêmicos, difíceis –
ou quase impossíveis − de serem revertidos.
Esse é o pária visto pelo lado de fora, pelos olhos domesticados
pelo capitalismo, que distinguem, a partir dos ideais do mercado, o que
é bem-estar e o que não é; o que se deseja e do que se sente repulsa; o
bom e o mau no universo normativo, o dentro e o fora do sistema.

O fora que é dentro


Mas o pária está, sim, inserido no capitalismo, e não à mar-
gem, fora. Sua inserção é promovida pelo Estado e dentro dele,
como afirmação de uma “ausência”: onde o Estado não está, é isso
que acontece, é nisso que as pessoas se transformam. É justamente
nessa margem que não é borda, mas centro, que o Estado se colo-
ca; não deixando morrer, mas fazendo viver precariamente é onde
se materializa sua versão dissimulada e [mais] cruel. Apresenta-se
por uma espécie de ausência calculada. E isso é necessário para que
o pária, enquanto tal, seja constituído como beneficiário de políti-
cas públicas sociais precárias que o tornam dependente das fontes
mínimas de recursos e provisões paliativas que o Estado lhe oferece.
Essas políticas quase nunca atingem a raiz dos problemas que fazem
o pária ser pária − segundo a régua capitalista −, pois é assim que
ele deve ser: precarizado e dependente. Dessa forma, com parcos
recursos, o pária dificilmente conseguirá se autonomizar e deixar a
64 o gozo do pária

marginalidade criada pelo Estado para diferenciar quem conseguiu


“chegar lá” e quem ficou pelo caminho.
E assim ele é mantido, em primeiro lugar, como mão de obra
barata e cativa para o mercado, pacificada e disciplinada pelo poder
público. Em segundo lugar, como exemplo daquilo que homens e
mulheres podem vir a ser − o horror, o horror − se não frequentarem
e aplicarem à própria vida a catequese do capital. Mas essa é, ainda,
a visão do pária do lado de fora de si mesmo, o pária como fraqueza
necessária à reprodução do sistema capitalista.
Do lado do pária, a perspectiva pode ser outra. Ali não há siste-
ma, e ele poderia (uma possibilidade, apenas) prescindir daquilo que o
subjuga. Essa potência se atualiza, precisamente, quando se rebela contra
as políticas de pacificação e disciplinamento do Estado, quando se recusa
a ser precarizado e capitalizado por elas. E quando o pária admite para
sua vida o gozo da existência à toa, vagabunda, quando flana pela cidade
desfrutando-a sem que se requeira nenhuma mediação monetária, guiado
pelos desejos do ventre, do coração e da mente, desvinculado de qual-
quer imperativo de produção, acumulação ou aproveitamento capitalista
do tempo; quando o pária existe, quando se autonomiza e não mais se
submete às exigências da precariedade institucional, como pretende o
Estado, então ele se torna insolente, estranho, alienígena ao sistema e,
portanto, disruptivo, contra-hegemônico, anticapitalista. Torna-se uma
ameaça, desde dentro, às estruturas que estão fora dele e que tentam
atravessá-lo. E é aí que ele “precisa” ser retirado de circulação e isolado.
O sistema prisional é seu segundo modo de vida projetado pelo Estado.

Inverter as chaves de análise


O objetivo deste texto é propor questionamentos capazes de
subverter, de modo contínuo e crescente, as chaves de análise da cidade
capitalista por meio da realidade do pária, na busca por estratégias
anticapitalistas contidas nas brechas desse sistema. O primeiro questio-
namento é: Por que a visão do pária como um ser irremediavelmente
fraco? A quem interessa essa construção de uma pessoa que precisa ser
sempre, e para sempre, tutelada? Essa condição de necessidade da tutela
é inata ou é uma criação política? Por que não o pária como um forte,
autônomo, como alguém que pode falar? E mais: Seria possível olhar,
sem estremecer, julgar ou enojar-se, para alguém cujo corpo míngua
em alguma calçada da cidade e, no entanto, também goza? Quais são
as tecnologias do pária não submetido às políticas de sujeição pelo
trabalho precário do Estado? Como ele cria e utiliza essas tecnologias
− entendidas aqui como estratégias de vida que incluem o gozo, e não
apenas a sobrevida do corpo? Ele as socializa? Com quem? Em que me-
65

dida é possível abstrair aspectos gerais dessas tecnologias particulares


e introduzi-las como chaves de pensamento contra-hegemônico? Seria
possível, como propõe Michel Foucault, “desvincular o poder da verda-
de das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior
1 foucault , Michel. das quais ela funciona no momento”1 e estabelecer a tecnologia do pária
Microfísica do poder.
Rio de Janeiro: Graal, como aparato de produção de verdade a respeito do capitalismo? Ou
2005. p. 14. Disponível seja: definir e invalidar o capitalismo pelos parâmetros do pária, e não
em: <www.nodo50.org/
insurgentes/bibliote- mais definir e (in)validar o pária pelos parâmetros do capitalismo?
ca/A_Microfisica_do_
Poder_-_Michel_Foul-
cault.pdf>. Acesso em:  ma breve retomada histórica: submeter a pobreza,
U
17 jan. 2017.
lucrar com ela
Em Microfísica do poder, Foucault aponta que até a Idade
Média, o sistema penal tinha uma função essencialmente fiscal:

pelo procedimento das multas, das confiscações, dos sequestros de bens, das
custas, das gratificações de todo tipo, fazer justiça era lucrativo; depois do
desmembramento do Estado carolíngio, a justiça tornou-se, entre as mãos
dos senhores, não só um instrumento de apropriação, um meio de coerção,
mas diretamente uma fonte de riqueza; ela produzia mais um rendimento
paralelo à renda feudal, ou melhor, que fazia parte da renda feudal. […] As
2 Ibidem, p. 42. justiças faziam parte da circulação das riquezas e da extração feudal.2

Depois, esse sistema transforma-se em uma estrutura complexa


de justiça, polícia e prisão com o objetivo de combater as crescentes
revoltas populares. Surge, então, um sistema antissedicioso. É um
aparelho que tem, segundo Foucault, um triplo papel: “coagir o povo
a aceitar o seu estatuto de proletário e as condições de exploração do
proletariado”; isolar da sociedade, por meio da prisão, os “violentos”
da plebe, aqueles que estavam mais prontos a passar à resistência
armada, desde “o proprietário endividado coagido a abandonar a sua
terra, o camponês que fugia do fisco, o operário banido por roubo,
o vagabundo ou mendigo que recusava limpar os fossos da cidade”,
entre outros; e

fazer com que a plebe não proletarizada aparecesse aos olhos do proletariado
como marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a sociedade inteira, a
escória do povo, o rebotalho, a “gatunagem”; trata-se, para a burguesia, de
impor ao proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também
dos jornais, da “literatura”, certas categorias da moral dita “universal” que
3 Ibidem, p. 50. servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não proletarizada […].3

Mais adiante, nos séculos xix e xx , uma certa figuração literária


do jornalismo, da literatura, da medicina, da antropologia e da sociologia
“do criminoso” vão reforçar esse terceiro papel do sistema antissedicioso.
66 o gozo do pária

Foucault é incisivo ao dizer que tal sistema é criado, no fim das


contas, para colocar a plebe proletária contra a não proletária. Com
isso se engendram duas categorias: a do bom pobre (plebe proletária)
e a do mau pobre (plebe não proletária), sendo a primeira a que se
submete à sua condição de explorada, e a segunda aquela que se rebela
contra essa condição. Ao mau pobre está reservado o isolamento social
na prisão, “no Hospital Geral, nas galés, nas colônias”.4 4 Ibidem, p. 50.

Realizando um salto histórico, estratégia semelhante é apon-


tada pelo sociólogo francês Loïc Wacquant ao falar do sistema penal
estadunidense contemporâneo. Tendo como recorte o avanço neoli-
beral nos anos 1980/1990 nos Estados Unidos, de desregulamentação
do mercado de trabalho, de eliminação de políticas sociais e de sua
substituição destas por políticas de trabalho precarizado às quais as
camadas mais pobres são obrigadas a se submeter como única fonte
de acesso à renda, Wacquant aponta para o incremento massivo do
sistema penitenciário como forma de pacificar e disciplinar os maus
pobres (pobres rebeldes?) que não se submetem às políticas de gestão
da pobreza por meio da precarização.
Tanto Foucault como Wacquant identificam em suas pesquisas −
cujos objetos estão distantes pelo menos quatro séculos − uma mesma
necessidade: a da pacificação e disciplinamento, pelos aparelhos repres-
sores do Estado, do pobre que se rebela contra seu “destino”, desenhado
pelas classes dominantes, a ser precário. E por que não eliminar o pária
de vez? Por que não deixá-lo morrer em vez de fazê-lo viver?

Óleo barato na engrenagem


O pária, além de consequência, é parte da engrenagem capitalista −
ou, o óleo barato dessa engrenagem. Wacquant fala da “industrialização
do castigo” na esteira do neoliberalismo, do aprisionamento com fins
lucrativos por meio da privatização das penitenciárias estadunidenses −
apinhadas de negros pobres, a quem se destina o cárcere. A pobreza é útil
à reprodução do capital, e busca-se a otimização da sua utilidade ao re-
forçar o encarceramento não apenas como um dispositivo de sujeição dos
corpos pobres, mas também como um negócio lucrativo. Diz Wacquant:

tais empresas, cotadas em bolsa de valores, propalam taxas recordes de cres- 5 Entrevista Loïc
cimento e de lucro. A “nova economia” americana não é apenas a da internet Wacquant: A criminali-
zação da pobreza. Mais
e a das tecnologias de informação: é também a que industrializa o castigo. Humana. Disponível em:
A título de ilustração, vale lembrar que as prisões do estado da Califórnia <www.uff.br/maishuma-
empregam duas vezes mais pessoas do que a Microsoft.5 na/loic1.htm>. Acesso
em: 17 jan. 2017.

Portanto, não se pode deixar o pária morrer, mas fazê-lo viver,


visto que ele pode ser produtivo tanto na prisão como fora dela, por
67

meio de políticas de inserção que têm no trabalho precário um de seus


principais vetores. A relação entre pária e Estado, nesse caso, é muito
mais “sutil” no que se refere aos mecanismos de submissão dos corpos
abjetos. É preciso que esses corpos existam, mas de forma controlada.
Uma das maneiras de fazer isso institucionalmente é eliminando, pela
via da disciplina e da pacificação, as tecnologias anticapitalistas que
fazem o pária ser o que é segundo os cânones do mercado.

Contra a maldição do trabalho, a salvação da preguiça


Visto de forma sistêmica e inserido na estrutura do modo de
produção capitalista, o pária, quando indisciplinado e não pacificado
pelo Estado, não produz, não acumula e não se regula pela ficção de
tempo eficaz e lucrativo criada pelo mercado. É ele, o pária, quem
cria suas próprias tecnologias de fruição do tempo e do espaço tendo
como critérios de utilidade dessas tecnologias suas necessidades mais
elementares: comer, dormir, evacuar, descansar, passear, flertar, dis-
trair-se, sonhar, transar, gozar e permanecer vivo. Sendo assim, o pária
não apenas se descola dos pilares do sistema de produção capitalista,
como também os nega com sua simples presença improdutiva. Nesse
sentido, ele é uma ameaça ao Estado e ao capital, não só por não ser
um produtor/consumidor, mas por ser um corpo abjeto vivo que pode
servir de modelo de rebeldia e contestação a outros corpos abjetos.
Nesse sentido, uma das principais vias de neutralização dessa tecnolo-
gia rebelde é, precisamente, o trabalho.
Não é à toa, portanto, que grande parte dos programas estatais
destinados à população em situação de rua tem como pilar do processo
de reinserção social a realização de algum trabalho com remuneração
mínima − praticamente simbólica e nem sempre complementada por
políticas de habitação, saúde, alimentação, lazer, atenção psicossocial
e outros itens básicos ao bem-estar. Atribui-se ao trabalho um papel
importante, quase único, de ressocialização, segundo aquilo que se
tem por modelo de pessoa inserida na sociedade capitalista: a pessoa
que trabalha de maneira estável, que produz, que se mantém com seus
próprios rendimentos, que socializa esses rendimentos com a família
por meio da aquisição de bens e serviços, que acumula o que economi-
za como fonte de renda futura; aquela que volta a trabalhar, produzir e
acumular e que utiliza seu tempo nessa tarefa cotidiana com o objetivo
de, um dia, não precisar mais realizá-la e gozar os frutos da produção
economizada e acumulada ao longo de anos e anos de sacrifício.
Em relação ao pária, o trabalho, seja qual for − desde que
“honesto” − é evocado toda vez que se quer demonstrar sua dignidade
como pessoa mesmo apesar de sua condição de pária: “Fulano vive na
68 o gozo do pária

rua, mas trabalha, não precisa pedir”. Ouve-se inclusive da boca do


próprio pária a suposta virtude do trabalho como pedra de toque da sua
dignidade humana: “sou pobre, moro na rua, mas trabalho”.
A questão que colocamos é: sendo o trabalho, na sociedade
capitalista neoliberal, um poderoso dispositivo de disciplinamento e
pacificação usado pelo Estado para neutralizar as tecnologias antica-
pitalistas do pária (antiprodução, antiacumulação e antitempo capita-
lista), ele poderia ser também garantia de um bem viver para quem,
como a pessoa em situação de rua, está mais vulnerável às opressões e
à espoliação do mercado de trabalho?
E mais: se estamos falando da força marginal do pária como
potência contra-hegemônica, anticapitalista, não seria fundamental
analisar tal potência onde ela se objetiva, ou seja, não no não traba-
lho, mas na vivência plena, consciente e ativa da preguiça? Se o pária
burla as regras, contorna aparatos disciplinadores e afronta os cânones
do capitalismo, não estaria ele contribuindo para a desaceleração da
máquina a médio prazo e, a longo, para sua extinção?
Para dar mais alcance a essa pergunta, citamos uma reflexão de
Michel Foucault:

a humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma


reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a guerra;
ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras, e prossegue
assim de dominação em dominação.

É justamente a regra que permite que seja feita violência à violência e que
uma outra dominação possa dobrar aqueles que dominam. Em si mesmas, as
regras são vazias, violentas, não finalizadas; elas são feitas para servir a isto
ou àquilo. Elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns e de outros. O
grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar
o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utili-
zá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem,
se introduzindo no aparelho complexo o fizer funcionar de tal modo que os
dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras.6 6 foucault , Michel,
op. cit., p. 25.

Este texto não pretende dar respostas concretas, mas, antes,


iniciar um exercício de questionamento e de um pensamento utópico,
ou melhor, de um pensamento com o horizonte de uma “heterotopia”,
definida por Foucault como uma “utopia situada”, de um contraespaço
que questiona e afronta o espaço hegemônico. Trata-se de transformar
não apenas o pensamento, mas a forma de pensar. Para melhor inverter a
chave das ideias e seguir caminhando pelo revés, pode ser frutífero con-
siderar que não é com base na fraqueza do pária que queremos enxergar
suas tecnologias e encontrar seu núcleo contra-hegemônico. É, antes,
com base na força ignominiosa e horrenda da sua preguiça improdutiva
69

e destituída de qualquer horizonte de acumulação, da sua insolência em


relação ao aproveitamento do tempo, do seu corpo abjeto (uma heteroto-
pia viva e móvel?) que contorna os imperativos do mercado. Esta refle-
xão pelo avesso parte da força do pária que flana e goza pela cidade.

referências
das , Veena; poole , Deborah. State and its margins: com-
parative ethnographies. Anthropology in the margins
of the State. Santa Fe: School of American Research
Press, 2004. Disponível em espanhol: <www.scielo.org.
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____________. As prisões da miséria. Rio de Janeiro:
Zahar, 2001.

Sabrina Duran
É jornalista e dedica-se à escrita de perfis de pessoas
anônimas e à cobertura das áreas de direitos humanos e
urbanismo. É autora do livro Mulheres centrais e do blog
eua V otam, para o site Opera Mundi. Realizou reportagens
especiais a partir da Bolívia, Colômbia, Argentina, Ingla-
terra, França, Estados Unidos e de mais de sessenta cidades
brasileiras. Em 2013, criou o projeto jornalístico Arquitetu-
ra da Gentrificação, que mapeia o processo de higienização
social no centro da capital paulista.
lar, memória e
resistência:
reflexos e
reflexões sobre
mercado
imobiliário,
homossexuali-
dades e o “tradi-
cional Bruno Puccinelli

bairro gay”
da cidade de
São Paulo
71

Estima-se que a cidade de São Paulo, considerada por vezes a


primeira metrópole mundial por seu aglomerado populacional, tenha
um déficit habitacional de 230 mil moradias, segundo levantamento
1 Esses dados foram da onu .1 Há cerca de dez anos, esse levantamento apontava quase
levantados pela Relatoria
Especial para o Direito 190 mil moradias, ao passo que o município contava com 403 mil
à Moradia Adequada da domicílios vagos em seu tecido urbano. Apenas com esses dados,
Organização das Nações
Unidas (onu ), em 2015. poderíamos dizer que, caso houvesse uma política direcionada à
moradia social em São Paulo, esse déficit seria zerado. Em 2005,
se todos os domicílios vagos tivessem sido ocupados, teríamos casa
sobrando. Obviamente, numa estrutura que propicia o incremento
de crédito imobiliário para aquisição de novas unidades, aliado à
redução de impostos para insumos da construção civil, os dados
sobre o déficit têm servido para justificar o levantamento de mais e
mais torres residenciais direcionadas à classe média e à valorização
de certas regiões.
Dentre elas, a região central tem despontado como um es-
2 macrae , Edward. Em paço densamente povoado, mas cuja valorização tem trazido novos
defesa do gueto. Novos
Estudos Cebrap, São empreendimentos e moradores após trinta anos de esvaziamento, ao
Paulo, v. 2, n. 1, p. 53-60, mesmo tempo que promove uma expulsão sistemática de contingentes
abr. 1983.
populacionais de baixa renda. Esse cenário não é novo. Nesse con-
3 silva , José Fábio Bar- texto, gostaria de discutir em que termos as novas moradias disputam
bosa da. Homossexualis-
mo em São Paulo: estudo com as antigas ocupações o sentido de estar “gay” no centro, fenôme-
de um grupo minoritário. no geralmente arrolado à noção de gentrificação. Parto de dois recortes
In: green , James;
trindade , Ronaldo de pesquisa, que apontam um território de conflito, em que as ações
(orgs.). Homossexualismo
em São Paulo e outros do mercado e do poder municipal têm deslocado as possibilidades de
escritos. São Paulo: cada ator social avançar nessa disputa.
Editora da Unesp, 2005.
(O texto original é de
1958, mas foi publicado
somente em 2005).  ma certa explosão de comportamento homossexual:
U
4 Termos êmicos que Boca do Luxo, Boca do Lixo e gueto
se referem à homosse-
xualidade, sendo que Quando o antropólogo Edward MacRae descreveu o “gueto
“entendido” se aproxima homossexual” de São Paulo,2 em 1983, já se contavam 25 anos da
mais da ideia de “gay”
masculino, viril e “bem primeira pesquisa3 que descrevia algumas circulações de “entendi-
-resolvido”, enquanto os
termos “bicha” e “viado” dos”, “bichas” e “viados”4 pela região central e zonas boêmias. No
enfatizam a efeminação começo da década de 1980, São Paulo já se assemelhava a Nova
e são mais pejorativos.
Curiosamente, estes York ou San Francisco no olhar de MacRae, e os arredores da praça
últimos se mantêm no
léxico das ruas, enquan- da República e do largo do Arouche “passaram a gozar de uma liber-
to o termo “entendido” dade sem precedentes [na virada de 1979 para 1980]. Nesses lugares,
é cada vez mais raro de
ser ouvido. o beijo entre pessoas do mesmo sexo, o segurar nas mãos, o exibi-
72 lar, memória e resistência

cionismo dos travestis tornaram-se rotineiros, chegando a um ponto


considerado intolerável para certos setores da sociedade”.5 5 macrae , op. cit.,
p. 55.
Região de concentração de bares, saunas, casas noturnas e
da sede do primeiro grupo de defesa dos direitos gays e lésbicos – o
Somos – se tornou foco de ações de repressão pela polícia da ex-
pressão pública de afeto homossexual. Encabeçadas pelo delegado
José Wilson Richetti na Operação Rondão e apoiadas pela grande
mídia, as táticas de repressão podem ser exemplificadas pela arbi-
trariedade de solicitar carteira de trabalho em mãos a quem pare-
cesse suspeito. Nessas ações, não apenas homossexuais, travestis e
prostitutas foram presos sem motivo, mas também desempregados
estudantes e artistas que porventura caminhassem na região. As con-
tradições do período de reabertura política após os anos da ditadura
civil-militar demonstram o aumento da visibilidade e o conflito com
uma sociedade conservadora.
Data de 12 de junho de 1981 a primeira passeata contra a
operação do delegado, mesmo dia em que o editorial de um jornal de
circulação nacional6 indicava a ineficácia de Richetti em controlar a 6 Trata-se do jornal
Folha de S. Paulo.
presença desses públicos, apenas fazendo com que circulassem. O
jornal apontava parte das preocupações de certa elite residente em
bairros próximos à região central com o deslocamento de pessoas que
manifestassem suas homossexualidades nas vizinhanças.
Mesmo tomando a ideia de “gueto homossexual” como uma
forma descritiva e aproximativa à realidade estadunidense, o antropó-
logo Néstor Perlongher fez duas ponderações importantes: primeiro,
não há na região concentração de moradias nem propriamente estabe-
lecimentos geridos e destinados a homossexuais; segundo, há diferen-
ças de circulação em termos de classe, raça e definições da homos-
sexualidade masculina que traçam fronteiras entre espaços vizinhos,
como a praça da República e o largo do Arouche.7 Este último, local 7 perlongher , Nestor.
O negócio do michê:
de restaurantes franceses e italianos, cafés e edifícios residenciais, foi a prostituição viril em
chamado por Perlongher de Boca do Luxo, em contraposição à Boca São Paulo. 2. ed. São
Paulo: Fundação Perseu
do Lixo, lugar de roubos, tráfico de drogas e prostituição. No Arouche, Abramo, 2008.

portanto, circulariam e morariam pessoas de classes mais altas.


A epidemia de aids, juntamente às operações policiais,
como já relatado, gerou um esvaziamento da região nos anos 1980.
O centro, lugar de visibilidade homossexual crescente, passou a ser
marcado também como o lugar (social) da doença. A crise econômica,
o desemprego, o aumento do número de moradores de rua na região,
de assaltos, de uso e tráfico de drogas, a sujeira e o perigo formaram
o cenário ideal para que, nas duas décadas de 1980 e 1990, houvesse
um abandono residencial pelas classes médias. O deslocamento da
73

importância financeira da região para a avenida Paulista ajudou a


operar o discurso da degradação e do abandono e, consequentemente,
da necessidade de revitalização e recuperação por meio de reformas e
outros usos de antigas edificações.
Esse é o tom que ações voltadas para o centro darão às ne-
cessidades locais na década de 1990: a região abandonada necessita
de novas atrações para novas atenções. Precisa, inclusive, alterar o
perfil de moradia, alterar o perfil de compra e comércio, diversificar
as circulações.

 ormitórios de luxo: 28 m² de privacidade, modernidade e


D
diversidade
Se, por um lado, a região da República foi sendo desvaloriza-
da e abandonada pelas classes médias ao longo dos anos 1990 (o que
não significa que estivesse vazia ou sem moradores), por outro, há um
processo mais geral de “retorno à cidade” que propicia um incremento
populacional também acima da média da cidade ao longo dos anos
2000. Nos últimos quinze anos, por exemplo, tivemos o lançamento
de cerca de trinta empreendimentos imobiliários nos arredores, algo
inexistente desde a década de 1980.
Esse processo, obviamente, não começou do nada. Nos anos
1990, houve a reorganização do movimento lgbt após o impacto
da aids e a organização e o crescimento das Paradas do Orgulho na
cidade de São Paulo. Em menos de uma década, a manifestação sal-
tou de pouco mais de mil participantes para 600 mil no percurso que
transcorre a avenida Paulista e termina na praça da República. Outros
espaços de concentração de estabelecimentos direcionados a homos-
sexuais foram criados e desfeitos, mudaram e começaram a retornar
ao centro nesse período.
No largo do Arouche, em 2016, sobe a pleno vapor o mais
novo prédio residencial. Com unidades a partir de 28 m², o edifício
se apresenta como localizado num lugar de diversidade e tolerância,
oferecendo a possibilidade do encontro e da surpresa, mas visando ga-
rantir todas as necessidades do comprador no próprio empreendimen-
to, conforme me relatou o supervisor de vendas do empreendimento,
reafirmando o descrito nos materiais de divulgação. Ou seja, a diversi-
dade e o encontro passam pelo filtro da possibilidade de compra. Com
um metro quadrado a 10 mil reais, não é qualquer pessoa que pode
8 O salário-mínimo acessar a privacidade das paredes desse edifício.8
vigente na época, era de
R$ 880,00. O subtítulo deste texto, contudo, não diz respeito a esse em-
preendimento, apesar de parecê-lo. Trata-se de uma carta aberta da
Federação Nacional de Turismo (Fenactur), com sede no Arouche, di-
74 lar, memória e resistência

 Imagens presentes nos folhetos de propaganda dos edifícios.

rigida ao então prefeito Fernando Haddad. Datada de janeiro de 2014,


a federação expõe algumas preocupações sobre os frequentadores da
praça, bem como solicita ações da prefeitura para coibir comporta-
mentos considerados inapropriados:

Constantemente, a sua prefeitura vem realizando benfeitorias no largo e


que rapidamente são destruídas pelos “sem-teto” e tribos gls 9 [sic], que 9 “gls ”, termo atual-
frequentam o local e o transformam em seus dormitórios, banheiros e motel a mente em desuso e liga-
céu aberto. Recentemente foram colocados maravilhosos troncos de árvores, do ao mercado dirigido a
homossexuais, tornou-se
que logo viraram “dormitórios de luxo”. Hoje, o largo do Arouche é um lugar popular nos anos 1990 e
decadente e que deve ser evitado. significa “gays, lésbicas e
simpatizantes”.

O discurso da Fenactur segue a fórmula que solidificou a


imagem do centro perigoso e do Arouche como moralmente deca-
dente. É curioso como a Federação parece desconhecer que as ações
da prefeitura visam valorizar e reconhecer a presença histórica e a
memória lgbt . A reforma dos canteiros, a melhoria na iluminação e
a colocação de bancos desenhados a partir de troncos de árvores – os
tais “dormitórios de luxo” – se destinam a quem justamente deveria
ser coibido. E são essas pessoas que têm mantido o Arouche como
uma das principais referências da resistência na cidade.
75

Um lugar chamado lar: resistência e permanência


Um dos interlocutores da pesquisa, que aqui chamarei de Eliel,
morador da periferia, 28 anos de idade, atualmente desempregado
e que tem intenso trabalho na militância lgbt jovem e periférica,
caracteriza o largo do Arouche – por eles denominado Vieira – como
uma casa, um lar. E numa casa deve-se ter respeito com quem é de lá,
não se pode fazer tudo ou mesmo achar que sabe mais sobre ele do
que seus moradores. Eliel se tornou uma das principais lideranças da
região, atuando em grandes grupos de jovens definidos como famí-
10 Algo entre as gangues lias lgbt ,10 que têm mudado o perfil de atuação nas ruas e nas vidas
de rua e as “famílias de
escolha” pesquisadas por de seus membros. Ele conta, por exemplo, como as famílias lgbt se
Kath Weston. confrontavam por prestígio na Vieira a partir de diferentes disputas,
que poderiam incluir agressões verbais e físicas, e como essa atuação
tem mudado para formação política e debates sobre hiv .
Numa conversa sobre a Vieira e como algumas ações da
prefeitura no sentido de manter a presença institucional com trailers
de divulgação do Centro de Cidadania lgbt , também têm ajudado
a afastar esses jovens, Eliel reflete sobre a importância do espaço da
cidade e dos usos que as famílias têm feito do largo. A família na qual
atua, atualmente com 250 membros, tem se destacado na mídia por
meio de denúncias de agressões e discriminação contra lgbt s. Não
só membros das famílias, mas outros jovens gays, lésbicas, bissexuais
e travestis contavam quase 1.500 presentes todos os domingos, o dia
escolhido como ponto de encontro e diversão no largo.
Esses jovens, portanto, figuram como parte das preocupações
das pessoas e empresas circundantes, como a Fenactur. Por outro lado,
a presença deles representa uma espécie de atestado da diversidade
que atrairia possíveis compradores das unidades residenciais que estão
sendo construídas. Há, aqui, dois movimentos em colisão, um de apro-
ximação e outro de distanciamento com base em diferentes concep-
ções da homossexualidade masculina.

À esquerda, um domingo comum de encontro dos jovens. À direita, um protesto contra a homofobia, ocorrido
em fevereiro de 2014.
76 lar, memória e resistência

A praça aparece como decadente e perigosa a partir de um olhar


externo a ela; já para as famílias e outros frequentadores, trata-se de um
lar, um lugar de refúgio e segurança para se estar com os seus. Não é,
contudo, essa a residência que pretende ser vendida, e não interessa ao
mercado que seus frequentadores façam parte dos futuros moradores.
Temos então algumas fronteiras simbólicas concretas que separam um
“gay” ideal dos sujeitos que circulam pelo “bairro gay tradicional”.
Nos últimos cinco anos o Arouche tem sido construído como esse
“bairro gay” pelos empreendimentos do mercado, se assemelhando a
outros lugares do mundo, como o Castro, em San Francisco, ou a Chue-
ca, em Madri. É isso, mas não só isso. É isso porque há uma memória
da presença homossexual e da resistência contra a opressão policial ao
longo dos anos. O “bairro gay”, contudo, pode também ser aproximado
das tentativas de expulsão e limpeza da praça. Temos como principal
exemplo as formas como o mercado imobiliário se utiliza da ideia de
diversidade para se aproximar do público consumidor, mas se afasta do
público presente no Arouche, formado principalmente por jovens das
periferias urbanas cuja quase totalidade não teria condições de adquirir
quaisquer dessas unidades. As fotos de casais heterossexuais, jovens,
loiros e brancos ou a utilização de uma linguagem que maneje ideias de
ser “moderno” e “cosmopolita” indicam um afastamento e uma nega-
ção de grande parte das pessoas que efetivamente circulam pela região.
Relatos de corretores de imóveis que afirmam expulsar públicos indese-
jados como travestis e moradores de rua através de seguranças privados
é a forma mais concreta desse afastamento. Além disso, nenhum desses
jovens está ou será representado pelo mercado imobiliário.
Com base na escritora feminista bell hooks podemos ensejar algu-
mas interpretações sobre a forma como as famílias e outros frequentado-
res da periferia têm simbolizado o Arouche/Vieira como uma casa. Como
descreve Eliel, é no largo que certas noções de luta política e resistência
são gestadas ao lado dos encontros, paqueras e conversas. É numa relação
entre jovens, que resistem às ações mais institucionalizadas, que o lar se
constrói como lugar de segurança e aprendizado, ao mesmo tempo que é
foco de depreciação por parte de outros grupos com outros interesses.
Outro contexto é tratado por hooks, com base em seu trânsito
por residências de mulheres negras, lugares de resistência, em opo-
sição ao feminismo branco, que concebia o espaço doméstico como
politicamente neutro ou opressor, e como o caminho é marcado pelos
olhares reprovadores dos brancos. Ela traz pontos interessantes sobre
o contexto de produção do lar no espaço público urbano a partir da
presença dos jovens citados, em especial numa das primeiras passa-
gens de seu artigo “Homeplace: a site of resistance”, de 1990:
77

Essa tarefa de compor um lar não era apenas uma questão de mulheres
11 hooks , bell. negras prestando serviço; era a construção de um local seguro onde pessoas
Homeplace: a site of negras pudessem se afirmar umas às outras e, ao fazer isso, curassem muitas
resistance. Yearning: das feridas infligidas pela dominação racista. [...] foi em um desses “lares”,
race, gender, and cultural
politics. Boston: South muitas vezes criados e mantidos por mulheres negras, que tivemos a oportu-
End Press, 1990. nidade de crescer e nos desenvolver, de nutrir nossos espíritos.11

Os jovens homossexuais frequentadores do Arouche/Vieira cer-


tamente não são os mesmos oprimidos pela polícia, como na década
de 1980, tampouco estão alocados na Boca do Luxo ou são os “gays”
que o mercado prefere. Não são eles que gentrificam a região, por
exemplo. Eles são parte dos que fazem do largo um lar e o concebem
como espaço de resistência e memória.

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nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetivi-
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sabsay , Leticia. Fronteras sexuales: espacio urbano, cuer-
pos y “democracia sexual”. Buenos Aires: Paidós, 2011.

Bruno Puccinelli
Finalizo doutorado em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e tenho me dedicado a
debater a questão urbana a partir de gênero e sexualidade
com especial foco aos conflitos gerados a partir da presença
homossexual no espaço público. Faço parte de uma rede
de pesquisadores e pesquisadoras ativistas que também
se dedicam a pensar gênero e sexualidade no Brasil e em
outros países.
o hiv
no fundo
do armário
lgbtq

Carué Co n trei ra s
79

Não pertencimento, incompreensão ou exclusão ativa. Essas


são as sensações que tive ao passar a frequentar os espaços políticos
lgbtq após um tempo entre militantes do campo do hiv . Demorei a
ter clareza sobre as razões para isso.
Tenho 37 anos, sou um homem cisgênero, gay, queer, branco,
de classe média e vivo com hiv há seis anos em São Paulo. Ainda não
tinha completado minha libertação como gay – embora efusivo na rua,
era ainda “discreto” no trabalho – quando o chão se abriu e caí em
uma nova categoria de exclusão e nova crise de autoaceitação.
~Volte dez casas na sua trajetória de emancipação pessoal~
Depois de anos isolado e regredido em termos de medos e
inseguranças, consegui me libertar do autoestigma, impulsionado por
alguns privilégios.
Então, me aproximei das lgbtq . Cheio de amor para dar. Feliz
com minha superação em curso. Disposto a expandir meus limites
de cis gay assimilacionista e a contribuir para o debate sobre minha
vivência com hiv .
As discussões eram novas e interessantes. Foi entre lgbtq que
me inteirei de discursos que legitimavam e expandiam meus desejos
e afetos. Mas nada se dizia sobre as mediações que o hiv traz para
sexualidade, amor e amizade de todos nós.
Entre lgbtq , encontrei suporte para as minhas expressões de
gênero variantes. Entretanto, a informação de meu status sorológico
causava desconforto ou pena.
Pude exercitar a difícil superação de minha transfobia, machis-
mo, racismo e classismo. Mas encontrei, em geral, tamanha falta de
empatia, que o estigma relacionado ao corpo vivendo com hiv nem
consta na lista de desconstruções esperadas dos militantes. Nem consi-
deram a possibilidade dessa opressão quando enumeram os privilégios
de um homem cisgênero branco gay – e a ignoram também no caso
dos mais excluídos.
Entre lgbtq , vi a questão da violência sendo enfrentada cora-
josamente. Mas vi ignorado o fato de que a aids é de longe o principal
meio pelo qual a lgbtq fobia estrutural e social se desdobra em morte
e incapacidade.
A minha discussão não estava em pauta. Estranho, afinal,
na minha idade, um em cada quatro gays vive com hiv . Eu estava
acostumado, no movimento de hiv , a ver o assunto ser esmiuçado em
80 o hiv no fundo do armário lgbtq

diversos aspectos, de direitos humanos a políticas públicas, de paten-


tes a sexualidade.
Um documento emblemático e histórico desse silêncio é o
relatório da última Conferência Nacional lgbt , de 2016. São somente
cinco menções ao termo hiv em 126 páginas. No relatório de uma
reunião que só ocorre a cada quatro anos.
Nossa.
Nos eventos lgbtq , quando raramente aparece, o hiv vem com
um viés de renúncia de protagonismo, um lugar de mero receptor de
prescrições de especialistas. Como se hiv fosse só um tema “de saúde”
(lembrem-se de que as pessoas trans também eram, antigamente, so-
mente objeto de especialistas). Isso quando não há uma ativa resistência
a incluir o tema e dar protagonismo a pessoas vivendo com hiv .
Por que será que isso acontece? Será a famosa “falta de in-
formação”? Como será que lgbtq brasileiros conseguem, em 2017,
conciliar esse silêncio – um elefante que está no meio da sala mas
que ninguém vê – com toda a afirmatividade que é nossa ação política
primordial e de que tanto nos orgulhamos?
O como essa conciliação ocorre, na verdade, não é surpresa.
Um complexo fenômeno psicossocial de recalcamento e negação no
qual lgbtq têm expertise. Desde cedo aprendemos a ocultar aquilo
que aos outros parece abjeto. E melhor o fazemos quanto mais acredi-
tamos no que os outros acham.
Durante séculos, lgbtq também recorreram a essa normali-
zação do segredo de sua sexualidade e identidade de gênero. E assim
seguiram adiante, acomodando culpa, vergonha e as necessidades de
subsistência e segurança. A evolução histórica se reflete nas nossas tra-
jetórias pessoais. Só conseguimos publicizar aquilo que nos obrigam a
manter no privado quando, criticamente, percebemos que essa obriga-
ção é injusta e sem sentido. É a tomada de consciência da lgbt fobia.
Se hoje lgbtq ostentam bandeiras e tomam na marra os
espaços públicos, os que vivemos com hiv continuamos nos encon-
trando em locais sem placa na porta e usando pseudônimos. O estigma
relacionado ao hiv é tão pervasivo e consensual quanto era a homo-
fobia décadas atrás. Tem conotações semelhantes à lgbt fobia, como
a noção de perversão e descontrole, gerando desprezo e ódio. Mas
os símbolos adicionais de doença, morte e contágio provocam ainda
outros sentimentos: medo e pena.
Entre lgbtq , normalizamos o segredo do hiv encarando o
tema como “de saúde” ou “íntimo”.
O porquê do silêncio de lgbtq sobre o hiv , portanto, é o fato
de que o meio político lgbtq está atravessado pelo estigma relacio-
81

nado ao hiv . Sendo uma condição ocultável, cuja mera menção pode
acarretar um estigma, a vivência com hiv desaparece. O hiv como
assunto desaparece. O silêncio é só um sintoma de um estigma tão in-
tenso que impede o próprio reconhecimento e sua inclusão como pauta
– como também ocorre com o racismo e outras opressões.
O estigma silencia inibindo o protagonismo de militantes
lgbtq que vivem com hiv . Calam-se, seja porque ainda são pri-
sioneiros do duro autoestigma ou por pragmáticas considerações
sobre as perdas sociais decorrentes de uma revelação pública de seu
status. A verdade é que os espaços políticos lgbtq não são espaços
seguros para pessoas que vivem com hiv . Quase não há espaços
seguros para nós.
Outro protagonismo silenciado é o do vulnerável ao hiv – os
negativos que poderiam discutir criticamente e enfrentar as razões
sociais dessa vulnerabilidade.
Um militante de hiv encontra dificuldades para romper o
silêncio, mesmo num espaço lgbtq . As discussões que tenta inserir
geralmente não encontram empatia ou ressonância.
Mas a forma mais agressiva de silenciamento é o esforço vela-
do ou descarado de dissociar hiv e lgbtq . Alguns setores procuram
se afastar daquilo que possa comprometer sua imagem, em busca de
assimilação por uma sociedade disposta a poucas concessões. É uma
postura expiatória, higienista e altamente estigmatizante, que lembra
a exclusão das populações trans pelo mainstream cisgênero gay. Essa
atitude se baseia em um entendimento acrítico e apolítico da epidemia
do hiv – e no fenômeno psicológico individual e coletivo de negação.
As consequências políticas e sociais da reprodução do estigma
relacionado ao hiv por lgbtq são devastadoras.
O estigma imobiliza a luta lgbtq diante de uma das principais
injustiças. Quando lgbtq compram e reproduzem o estigma, com-
pram também o discurso lgbt fóbico que o embasa: o hiv como mera
questão de responsabilidade individual por comportamentos desvian-
tes. Isso despolitiza a epidemia ao mascarar o fato de que é justamente
a exclusão lgbt fóbica a principal razão de gays terem 24 vezes – e
mulheres trans e travestis 49 vezes – mais chances de adquirir hiv do
que a ~população geral~.
Dessa forma, o movimento lgbtq abre mão de enfrentar essa
relação política entre opressão e doença – cuja face mais violenta é a
mortandade passada e presente. Só em 2015, mais de 3 mil homens
gays ou bi morreram no Brasil em decorrência da aids. Quanto disso
podemos pôr na conta da lgbt fobia? Quanto disso não poderia ser
chamado de genocídio?
82 o hiv no fundo do armário lgbtq

Mas não é só a lgbt fobia que media a incidência de hiv e aids


entre nós. O estigma é um fator independente de adoecimento e morte.
Quando o reproduzimos – e quando reproduzimos transfobia, machis-
mo e racismo –, estamos indiretamente contribuindo para a morte de
lgbtq por causa da aids.
O autoestigma compromete ainda a emancipação lgbtq como
um todo. Reprime a tomada de consciência, regride processos de
emancipação individual e coletiva, despolitiza. O autoestigma apri-
siona os sujeitos em processos de culpa e vergonha. É um processo
semelhante ao que, por anos, manteve lgbtq domesticados.
A vivência com hiv é uma fratura dentro do movimento lgb -
tq , como também o gênero, a identidade de gênero, a raça, a classe
social etc. Uma fratura, porém, que não se pode descrever como uma
dicotomia clássica de ausência ou presença de um privilégio. Se, de
um lado, é certo que pessoas vivendo com hiv sofrem uma imensa
opressão, do outro, a situação tampouco é muito boa: vulneráveis ator-
mentados que, ao estigmatizar e negar, tornam-se ainda mais vulnerá-
veis.
Quem sabe uma saída não estará na convergência das dife-
rentes fraturas, que questionam, cada qual a seu modo, os limites da
emancipação lgbtq ?
No caso do hiv , esses limites são muito claros. Uma libertação
lgbtq que não leve em conta a emancipação em relação ao hiv tem
algo de falso. Romper a cis-heteronormatividade mantendo a vergonha
do nosso vírus coletivo? Afirmar nossa sexualidade, mas “neurar” na
cama? Lutar por cidadania sem mencionar o genocídio?
Quando digo emancipação quanto ao hiv , não estou me re-
ferindo à resposta a epidemia, políticas de prevenção ou tratamento.
Emancipar é dar ao status sorológico o mesmo peso que merecem ter a
orientação sexual ou a identidade de gênero na vida social de uma pes-
soa. Ou seja, nenhum. É algo que não depende de técnicos do Estado,
mas do nosso protagonismo como lgbtq .
83

Carué Contreiras
Médico sanitarista, ativista e educador comunitário na
Unidade de Pesquisa do Centro de Referência e Treina-
mento em dst /aids de São Paulo.
ternura
radical

ternura radical é ser crítico e ternura radical é não temer o medo


amoroso, ao mesmo tempo ternura radical é viver amor
ternura radical é entender como efêmero
utilizar a força como uma carícia é inventar outras temporalidades
ternura radical é saber acompa- ternura radical é abraçar a
nhar-nos entre amigos e amantes, em fragilidade
diferentes distâncias e velocidades é enfrentar a neurose dxs outrxs
ternura radical é escrever este com criatividade
texto, ao mesmo tempo, em dois conti- ternura radical é encarnar gestos
nentes longínquos performativos que normalmente rejeitarias
... na mesma cama ternura radical é assumir a lide-
escrevendo ao acariciar rança quando a tua comunidade te pede
ternura radical é saber dizer “não” que o faças, mesmo que não saibas o
que fazer, nem como fazê-lo!

é carregar o peso de outro corpo


como se fosse teu
...é compartilhar o suor com um
desconhecido u m ma n i fes to v i v o
ternura radical é dançar entre es cri to p o r Da n i d ’E mi l i a
corpos dissidentes em uma oficina e Da n i el B . Ch á v ez
... é estar exaustos e manter o
sorriso e a festa
ternura radical é deixar-se
olhar,deixar-se levar
ternura radical é não colapsar
frente às nossas contradições
ternura radical é não permitir
que os demônios existenciais se con- 1 Ternura radical é um termo que
tem sido utilizado como parte da
vertam em cinismos permanentes pedagogia de La Pocha Nostra nos
é não ser sempre as mesmas, os últimos dez anos. Como pedagogos
e perfomers integrantes de La Pocha,
mesmos, xs mesmxs queríamos honrar este termo e sua
utilização em projetos pelo mundo
é encarnar In Lak’ech… através de uma tentativa de elaborar
porque tu és meu outro eu o seu significado para nós dentro e
fora do coletivo. Este manifesto é uma
e vice-versa primeira tentativa neste sentido.
85

ternura radical é emprestar tuas ternura radical é canalizar


tripas aos outrxs energias irresistíveis e convertê-las
é vestir a boceta dx tua/teu em encarnações indomáveis
amante como bigode é ativar a memória sensorial
é arriscar-se a amar na contramão é reconhecer x outrx por seu cheiro
ternura radical é acreditar na
arquitetura dos afetos
é encontrar-nos nos músculos ternura radical é sentir a
mais próximos do osso possibilidade em cada dúvida
é acreditar no efeito político dos é deixar-se atravessar pelo
movimentos internos desconhecido
ternura radical é dar a um
ternura radical é não insistir em narcisista a chance de acoplar-se,
ser o centro da atenção ou repensar-se
é ter visão periférica,acreditar ternura radical é acariciar espinhxs
no que não é visível ternura radical é conviver com a falta
ternura radical é fazer do tremor é encarar as coisas de frente,
um baile e do suspiro um mantra com o carinho de quem as quer ver
é dissentir com máximo respeito é sustentar-se a partir de luga-
... é transitar em espaços que res diferentes, mesmo que nem todos
não entendes sejam ‘bonitos’
ternura radical é um conceito
apropriável e mutante
ternura radical é aceitar o ambíguo
é não pensar só à volta do teu umbigo
é romper com padrões afetivos, ternura radical
sem expectativas claras é algo
ternura radical é compartilhar que não é preciso
sonhos, loucura definir1
sintonizar, não só empatizar
é encontrar uma galaxia nos
olhos dx outrx e não deixar de olhar
é ler o corpo dx outrx como
um palimpsesto

Dani d’Emilia e Daniel B. Chávez


São artistas de performance, ativistas transfeministas
e integrantes do núcleo duro de La Pocha Nostra. Desde
que se conheceram em 2011 têm colaborado em diver-
sos projetos transcontinentais de performance e de peda-
gogia, acompahando-se a partir de um espaço de afeto
erótico-político que atravessa os campos da arte-vida.
território,
cultura e
memória lgbt+:
o patrimônio
cultural como
abordagem
para a busca do
direito Fer n a n d a Ro ch a d e O l i v ei ra
L arissa d e Ca rv a l h o Na s ci men to
M ar ia n a K i mi e Ni to

à cidade
87

As cidades são compostas de diferentes tipos de territórios,


organizados espontaneamente (como o agrupamento de pessoas de
1 silva , José f. b. acordo com seus gostos e temperamentos1) ou não (como nos casos de
Aspectos sociológicos
do homossexualismo em processos de embelezamento e renovação urbanas – também cha-
São Paulo. Sociologia, mados de “limpeza” urbana –, que impõem novas formas de uso dos
v. 21, n. 4, 1959.
espaços). Ambos os tipos de organização são passíveis de mudanças
ao longo do tempo, gerando novas reterritorializações.
Em São Paulo, pode-se dizer que as sociabilidades atreladas
aos modos de vida lgbt + geraram, há décadas, demarcações espaciais
de territórios, sobretudo nas regiões do Arouche e República, e da
Paulista e Frei Caneca (silva , 2013, p. 23). Embora tenha havido, no
período da ditadura militar brasileira, tentativas de expulsão dessas
comunidades, elas conseguiram resistir nesses espaços, atrelando a
eles suas relações identitárias.
2 Ver: <www.change.org/ Atualmente, grupos lgbt + que mantêm ou herdaram uma
Arouche>.
ligação do seu modo de vida com o território têm se apropriado de
3 Ver: < http://g1.glo- discursos e mecanismos para lutar pelo direito à cidade. A região do
bo.com/globo-news/
estudio-i/videos/t/ Largo do Arouche, por exemplo, tem ganhado crescente notoriedade
todos-os-videos/v/ dentro das políticas públicas municipais por ser um dos territó-
projeto-oferece-oficinas-
sobre-o-universo-drag- rios com maior representatividade lgbt + em São Paulo. Diversas
queen-no-sesc-de-sao
-paulo/5125901/?utm_ atividades têm ocorrido em prol de uma sensibilização quanto à
source=twitter&utm_me- memória de grupos ali atuantes, tais como: as mobilizações para
dium=social&utm_cam-
paign=gnews#>. Acesso permanência e aumento da quantidade de bandeiras que simbolizam
em: 28 jun. 2016.
o movimento lgbt +;2 a realização de oficinas sobre o universo drag
4 Ver: <https://centro- queen3; oferta de curso para percorrer espaços de sociabilidade e re-
depesquisaeformacao.
sescsp.org.br/atividade/ sistência lgbt +;4 e a proposição de debates diversos sobre o Direito
memoria-lgbt-no-centro- à Cidade a partir da possibilidade de vivência urbana fora de uma
novo-de-sao-paulo>.
Acesso em 01 set. 2016. lógica normativa.5 No entanto, apesar dessa ocupação combativa
5 Ver: < http://www.cida- e propositiva, as práticas socioculturais lgbt +, e de outros grupos
dequeer.lanchonete.org/>.
sociais também vulneráveis, acabam sendo invisibilizadas nas polí-
ticas urbanas.
6 O Minhocão é uma via Isso ocorre, por exemplo, no caso do Minhocão (Elevado
elevada inaugurada em
1971. Seu objetivo na Presidente João Goulart),6 vizinho ao Largo do Arouche. Embora a via
época era ser uma solução elevada tenha sido objeto de discussões desde sua implantação devido
viária: fornecer um
trânsito rápido na região aos inúmeros conflitos urbanos e sociais que gerou (desvalorização
central ligando as zonas
oeste e leste. Os 2,8 km do mercado imobiliário, barulho, poluição do ar, etc.), o movimento
do elevado estão assenta- de baixa dos aluguéis na sua faixa lindeira resultou em uma ocupação
dos em vias já existentes
margeada por edifícios. popular da região e, em alguns casos, aproximou os moradores do
88 território, cultura e memória lgbt+

seu lugar de trabalho.7 Por conseguinte, o próprio comércio da região 7 Graças às análises
das uit s (Unidades de
muda de perfil e se torna mais popular. Informações Territorial-
Logo, a construção do Minhocão estruturou uma série de izadas), constatou-se o
crescimento de grupos
outros usos e apropriações (de caráter social, econômico e artístico) com menor renda (até
3 s.m.), de 2000 a
que ressignificaram esse espaço e demarcaram novas territorialidades. 2010 nos entornos do
Apesar disso, as propostas que têm sido elaboradas, visando a minimi- Minhocão. Em alguns
bairros, esse crescimen-
zar os impactos urbanos negativos desse empreendimento, ignoram as to foi responsável por
uma mudança do perfil
territorialidades vulneráveis surgidas a partir de sua implantação. socioeconômico, já que
A vulnerabilidade pode ser atribuída, em grande medida, a dois os grupos mais pobres
constituem a maioria dos
fatores principais: os rumos da política urbana municipal e o processo domicílios (República,
45% e Campos Elíseos,
de especulação imobiliária. No primeiro caso tem-se, como principal 51%). Ver: <http://www.
fato deflagrador, o artigo 375 do Plano Diretor de São Paulo de 2014 uitgeo.sp.gov.br/>.

que, consolidando o Minhocão como “fracasso” urbanístico,8 dá um 8 O Minhocão está


inserido em um amplo
prazo para que o tráfego de veículos seja nele desativado e aponta, projeto de “revitalização”
dentre as propostas para a sua destinação futura, a sua demolição ou do centro de São Paulo
que ocorre desde 1990,
transformação em parque público. com a participação do
setor imobiliário e do
O segundo fator de vulnerabilidade tem relação com o primeiro, poder público.
já que a possibilidade de desativação ou de transformação do elevado
em parque está causando interesse imobiliário, fazendo surgir, em sua
faixa lindeira, novos empreendimentos que vendem a perspectiva de
transformação local. O problema dessa aposta imobiliária reside na
alteração do valor do metro quadrado, conforme Carrapatoso (2015):

Os aluguéis que, antes, abarcavam um público de classe média-baixa (grande


parte dos moradores da área central), hoje miram na classe média-alta, se não
classe alta. Vários lançamentos imobiliários mesmo próximos ao Minhocão
também estão com a linguagem de que agora é um ótimo momento para
“investir” em imóveis na região. “Investir!”. Não é morar, viver, ou o que
for, mas sim “investir”.

Esse tipo de discurso gera questionamentos sobre qual modelo


de cidade se quer construir. A mudança que está em pauta tem gerado
uma valorização imobiliária que afasta a população de baixa renda,
cujas relações sociais estão ali historicamente demarcadas, construin- 9 O conceito de gen-
trificação utilizado diz
do um processo de gentrificação9 na região. respeito à diferenciação
É preciso questionar quais grupos estão sendo atendidos pelas do espaço geográfico a
partir de um ideal de vida
transformações urbanas pretendidas, pois o processo de gentrificação imposto que desconsi-
dera o que já existe no
ignora a pluralidade cultural que surgiu ao longo do Elevado, a exem- local. Ver conceito de
plo dos inúmeros grupos sociais que ali atuam: a comunidade lgbt + “fronteira” em smith ,
Neil. Gentrificação, a
no Largo do Arouche, as rodas de samba no Largo Santa Cecília, os Fronteira e a Reestrutu-
ração do Espaço Urbano.
coletivos de atuação artística etc. Se o direito à existência passa pelas geousp – Espaço e

espacialidades conquistadas, estas ocupações são, sobretudo, políticas Tempo, São Paulo, n. 21,
2007, p. 15-31..
e devem ser consideradas nas discussões sobre a região.
89

Frente a essa problemática, o Grupo de Trabalho Baixo Centro


10 O grupo é formado da Rede Paulista de Educação Patrimonial (Repep)10 vem trabalhando
pelo Movimento Baixo
Centro (coletivo que, até no Inventário Participativo Minhocão Contra a Gentrificação, cuja
2014, usou o Minhocão preocupação central é com a permanência dos grupos sociais mais
para a realização de
atividades culturais vulneráveis na região, pois com a valorização do local e o consequente
autofinanciadas) e por
profissionais vincula- aumento do custo de vista, a expectativa é de que eles sejam os pri-
dos à Repep (rede que meiros a serem expulsos.
atua na interface entre
educação e cultura e que, O Inventário tem por finalidade o reconhecimento da di-
desde 2011, compartilha
experiências práticas e versidade de referências culturais existentes na região, de modo a
reflexões conceituais subsidiar a construção de um conjunto de argumentos e informações
no campo da educação
patrimonial). Ver: que sejam base para se contrapor aos processos de gentrificação.
<baixocentro.org> e
<repep.fflch.usp.br> Desse modo, é compreendido tanto como uma ferramenta política
(pois trata-se de uma estratégia de mobilização social), quanto como
um instrumento educativo (pois vem sendo pensado como forma de
construção mútua de aprendizado).
11 Ver: <http://portal. A elaboração do Inventário está fundamentada em uma meto-
iphan.govbr/uploads/
ckfinder/arquivos/Inven- dologia desenvolvida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artísti-
tarioDoPatrimonio_15x- co Nacional (Iphan).11 Faz uso do conceito de referência cultural,12 que
21web.pdf>.
diz respeito à não universalidade do patrimônio cultural, e também à
12 Ver: <http://www.ipea. sua multiplicidade simbólica, na possibilidade de sua ressemantização
gov.br/portal/images/sto-
ries/PDFs/politicas_soci- e nas diferentes formas de sua apropriação. Sendo o Inventário criado
ais/referencia_2.pdf>. pelas comunidades, a elas caberá decidir como interpretar e proteger
suas referências e manifestações culturais. A partir da demarcação e
do estudo de um território, a aplicação do Inventário tem por premissa
a identificação dos bens e práticas culturais, assim como dos sujeitos
sociais que com ele se identificam.
Com isso, para o estudo da região do Minhocão, primeiramen-
te foi feita uma leitura do território, a partir dela foram identificados
90 território, cultura e memória lgbt+

cinco diferentes grupos13 mais vulneráveis aos efeitos da gentrificação, 13 Os cinco grupos são:
trabalhadores/moradores
dentre os quais está a comunidade lgbt +. mais pobres do centro,
Considerando a diversidade das relações sociais e de referên- imigrantes, comunidade
lgbt +, trabalhadores da
cias culturais da comunidade lgbt + enraizada nesse território, foram cultura e moradores em
situação de rua.
considerados como componentes desse grupo social: moradores lo-
cais; frequentadores habituais que têm forte identificação cultural com
a centralidade da região Arouche-República (muitos deles, moradores
da periferia da cidade); trabalhadores do sexo (prostitutas, michês e
dançarinas de boates); trabalhadores das atividades complementares
do comércio do sexo (das boates, bares, saunas, sex-shops, casas de
show, hotéis); turistas que não se enquadram no uso habitual, mas que
encontram na região um ponto tradicional de visitação.
Embora a pesquisa esteja em andamento, foram identificadas
algumas referências culturais, que serão reavaliadas e construídas com
os diferentes grupos sociais. Seguem abaixo algumas referências que
exemplificam as possibilidades de ligação da comunidade lgbt + com
o território, organizadas em cinco categorias:

1.  lugares – espaços onde se concentram ou se reproduzem


práticas culturais coletivas. Podem ser importantes por serem
parte do cotidiano, das crenças e do trabalho dos grupos sociais;
Templos do Prazer14 14 A terminologia
“Templos do Prazer”
Rede de estabelecimentos ligados à promoção e ao fomento foi adotada consideran-
de atividades associadas à expressão livre do estilo de vida do que esses lugares
intrinsecamente ligados à
lgbt +. São casas noturnas (ex: Danger Club, Rego Frei- cultura lgbt + possuem
significados para além de
tas 355), cinemas (ex: Cine Arouche), saunas (ex: Chilli locais de festa, mas de
Pepper), sex-shops e outros; congregação, que devem
ser respeitados. Ver:
Largo do Arouche <http://www.curbed.
com/2016/6/17/ 1196
Frequentado desde 1950 pela comunidade lgbt +, é con- 3066/gay-bar-history-
siderado um local de resistência devido às perseguições a stonewall-pulse-lgbtq>.

grupos de travestis e transexuais. Hoje, o Arouche ainda


abriga encontros de pessoas que queiram explorar sua iden-
tidade cultural e sexual;
2.  celebrações – festas e rituais feitos para marcar vivên-
cias e datas relativas a trabalho, entretenimento, religião ou
outras práticas sociai;
Parada Gay
Organizada desde 1997 por um grupo de ativistas lgbt + de
São Paulo, surgiu similar a um pequeno bloco de carna-
val. Com o passar dos anos, essa manifestação cultural e
artística cresceu e, de acordo com os seus organizadores, já
chegou a ter mais de 5 milhões de participantes;
91

3.  expressões – são as formas como cada grupo comunica


e expressa a sua cultura, podendo ter sentido religioso e/ou de
protesto social;
Pajubá
Vocabulário próprio lgbt + para designar diferentes ações e
situações comuns em sua vivência. Possibilita a comunica-
ção interna dos grupos de modo secreto e favorece a identi-
dade cultural. Tem raízes diversas, sendo uma mistura entre
o português e expressões vindas do vocabulário africano;
4.  saberes – modos de fazer e conhecimentos sobre técni-
cas ou materiais, ofícios tradicionais e aqueles enraizados no
cotidiano dos grupos sociais;
Montagem das drags
A montagem envolve penteado, figurino, maquiagem e
habilidades de performance. Porém, essa prática não se
restringe apenas à apresentação como alguém do sexo
oposto, mas também requer o aprendizado de técnicas de
dublagem e de criação de um personagem com sua própria
identidade e personalidade. Em muitos casos, esse proces-
so é transmitido entre as drags de diferentes gerações;
5.  edificações – construções relevantes para além de seu
aspecto físico-arquitetônico, mas associadas a representações e
narrativas sociais, a móveis integrados e a relevantes usos que
nelas podem ser desenvolvidas;
Banheirão da República
Com frequentadores prioritariamente de classe baixa e com a
atuação de michês na Praça da República, o antigo banheiro
público da área era usado como ponto de encontro na década
de 1960. O banheiro se localiza no subsolo da praça, no
entanto, atualmente está fechado para uso.

Mesmo que os resultados ainda sejam parciais, a identificação


das referências culturais lgbt + no território do Minhocão já traz uma
amostra de elementos que necessitam ser visibilizados e considerados
diante das possíveis transformações do espaço. Seja demolição, con-
versão em parque ou qualquer outra intervenção que possa ali ocorrer,
é necessário inserir essas referências culturais na discussão sobre o
destino da estrutura.
Considerando que a cidade nunca foi um território neutro, o
modo desigual de (re)produção citadina é um dado a ser explorado
nas reflexões sobre a melhor forma de intervir no espaço urbano. Com
isso, defende-se que o uso do Inventário contribuirá para construção
92 território, cultura e memória lgbt+

da cidade de forma democrática a partir das referências culturais,


porque busca garantir a representação dos diferentes grupos sociais
existentes em um dado território.
Ressaltando a importância de se pensar as preexistências como
projeto de futuro, muitas possibilidades de ações podem decorrer do
Inventário do Minhocão, tais como a salvaguarda da cultura imaterial
e a proteção do território (que podem ser utilizadas para conter a valo-
rização do metro quadrado na região). Outras políticas públicas podem
se somar a essas como forma de manter no território os grupos sociais,
a exemplo das Zonas Especiais de Interesse Social, de Habitações de
Interesse Social e de Aluguéis Sociais.
Por fim, cabe ressaltar que, embora o discurso do patrimônio
cultural tenha servido historicamente de álibi, em diversas experiên-
cias, para a geração de processos de enobrecimento urbano, essa é a
questão que o Inventário Participativo Minhocão Contra Gentrificação
problematiza. Em vez de focar as necessidades de intervenção urbana
pelo viés da valorização dos objetos culturais, a defesa de uma lógica
do patrimônio a partir da compreensão das apropriações sociais tan-
gencia a discussão do direito à cidade, já que busca garantir a perma-
nência dos grupos existentes nos territórios. Assim, é preciso reconhe-
cer as diferenças de oportunidade no usufruto do espaço e das relações
urbanas, e utilizar-se das políticas públicas como meio de promoção
da equidade e da diversidade.
93

referências
carrapatoso , Thiago. A verdadeira disputa entre direita
e esquerda. Paisagem Fabricada [Internet], 31 maio
2015. Disponível em: <http://paisagemfabricada.com.
br/2015/05/31/a-verdadeira-disputa-entre-direita-e-es-
querda/>. Acesso em: 02 set. 2016.
silva , José f. b. Aspectos sociológicos do homossexualis-
mo em São Paulo. Sociologia, v. 21, n. 4, 1959.
silva , Marcos a . A cidade de São Paulo e os territórios do
desejo: uma etnografia do Festival Mix Brasil de Ci-
nema e Vídeo da Diversidade Sexual. Comunicação,
narrativas e territorialidades, v. 16, n. 3, p. 19-43,
set./dez. 2013.
smith , Neil. Gentrificação, a Fronteira e a Reestruturação
do Espaço Urbano. GEOUSP - Espaço e Tempo,
São Paulo, n. 21, 2007, p. 15-31.

Fernanda Rocha de Oliveira


Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal da Paraíba
(ufpb ) e mestre em preservação do patrimônio cultural
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan). Membro da Rede Paulista de Educação Patrimo-
nial (Repep) desde 2016.

Larissa de Carvalho Nascimento


Graduanda em história na Universidade de São Paulo (usp ).
Membro da Repep desde 2016.

Mariana Kimie Nito


Arquiteta e urbanista pela Escola da Cidade. Possui mestrado
interdisciplinar em preservação do patrimônio cultural pelo
Iphan. Membro da Repep desde 2014.
96

A primeira mulher negra numa capa da


Vogue foi a modelo estadunidense Donyale Luna
(Peggy Ann Freeman), que aparece tapando o
rosto com a mão na edição britânica de 1966.
A ex-primeira dama do Estados Unidos,
Michelle Obama, desmunheca na sua primeira
capa da Vogue eua de março de 2008. A atriz
Lupita Nyong’o, nascida no México e criada no
Quênia, vencendora do Oscar, não desmunheca
na capa da Vogue eua em outubro de 2016. A aparecem desmunhecando, disseminando esse
primeira modelo negra brasileira a aparecer na gesto na indústria cultural.
capa da Vogue foi a supermodelo Emanuela No fim do século xix , quando Charcot
de Paula (a modelo Naomi Campbell e a atriz inventou o corpo histérico, produziu-se a
Camila Pitanga já haviam aparecido sozinhas e iconografia do hospital da Salpêtrière, na qual
outras modelos negras, acompanhadas de mode- se vê, como característica da “patologia”, um
los brancas), em janeiro de 2011, em edição es- desmunhecar contorcido. Na cartografia desse
pecial onde aparecem somente modelos negras. corpo, o gesto se repete. Como impedimento
A revista existe no Brasil desde 1975. Na capa à masturbação, a histeria aparta a mão do
de janeiro de 2017, a modelo Lais Ribeiro é a corpo, contorcendo-a. Na capa da Vogue
primeira mulher negra a desmunhecar na edição Paris de maio de 1967, a supermodelo, atriz e
nacional da revista. cantora britânica Twiggy (Lesley Lawson) não
Surgida como um folhetim de moda, em desmunheca no contexto da revolução sexual.
Nova York no fim do século xix, a Vogue se Na época, a revista ganha status de “Bíblia da
disseminou pelo Ocidente no início do xx, como Moda”, quando Diana Vreeland tornou-se sua
um império editorial internacional, destinado editora-chefe.
a mulheres da alta sociedade. Inclinar o pulso
pra baixo – desmunhecar em português – é um
gesto nobre que foi decodificado pela burguesia
como feminino, frágil, a boneca como a ficção
Fabiana Faleiros
da categoria de mulher universal. Como pode-se
é poeta, performer e doutoranda em Processos Artísti-
ver tanto nas ilustrações das primeiras edições cos Contemporâneos na Universidade Estadual do Rio
da Vogue como nas fotos, as mulheres sempre de Janeiro (ufrj ).
97

“Aí é que entram as mãos. O diamante che-


gou, engastado num anel, rodeado de guardas.
Fui ao estúdio com David Bailey para tentar
fotografá-lo – embora, como regra, eu jamais ia
ao estúdio na época em que trabalhava na Vogue.
Colocamos o diamante na melhor mão de Paris
– uma belíssima garota sueca – mas era chato
demais, terrível demais... vulgar demais. Estáva-
mos em 1970. Na época não dava para mostrar
a marquesa em uma mão de pele branca. O que
seria preciso fazer?
Devo confessar que a solução foi minha.
[...] Então me ocorreu que em parte nenhuma
do mundo há um veio de qualquer pedra pre-
ciosa que não tenha a ver com negros. [...]
Não há nenhum veio de pedras preciosas nos
locais de origens dos brancos. Não é assim?
Então tive uma ideia: não a de usar uma mão
negra, mas de pintar a mão branca que tínha-
mos – algo totalmente artificial.”1

1 Texto e imagem retirado de Glamour, de Diana Vreeland.


Cosac Naify, 2011. p. 165-168
cidade lida

Thiago Hersan
Raquel Parrine
99

O fora é uma ficção, porque na verdade não existe o dentro, não


existe uma origem à qual remontamos todas as coisas – somos produtos
híbridos de elementos cuja matriz se perdeu há muito tempo, se é que um
dia existiu. Somos todos exilados de cidades cujos tijolos já se desfize-
ram há muito tempo. De certa forma, somos todos alienígenas.
Diariamente nos encontramos diante de símbolos que repre-
sentam essa desterritorialidade. Eles encontram sua manifestação mais
óbvia na língua, tradicional sistema de representação de diferentes ma-
trizes, pontos de vista e dinâmicas de poder. A língua é o instrumento
de imperialismo dos colonos e o de resistência dos nativos. É a língua
que prova, segundo o filósofo peruano Antonio Cornejo Polar, que
essa hibridização que nos constitui, na verdade, é uma heterogeneida-
de não dialética, ou seja, a relação entre as culturas que nos formam
não é harmônica, mas representa uma disputa simbólica cujo campo
de batalha é a língua.
Podemos pensar a cidade como uma simbologia que se asseme-
lha a esses aspectos complexos da linguagem de uma cultura. Segundo o
escritor e filósofo inglês G. K. Chesterton, “A cidade é um caos de forças
conscientes. Não há uma pedra na rua, nem um tijolo na parede que não
seja uma mensagem. Como um telegrama ou um cartão-postal, cada
tijolo é em si um hieróglifo...”.
A cidade é um simulacro que se comunica por morfemas físicos,
concretos, formando uma linguagem que é, ao mesmo tempo, incom-
preensível e familiar. Da cidade despertam mensagens transmitidas por
meio de poemas dinâmicos; caminhos traçados formando constelações
significativas em busca de outros Outros que possam distinguir os valo-
res morfológicos dessa linguagem.
Comparada com outras cidades que apresentam um planejamento
urbano intencional, as linhas formadas pelas ruas de São Paulo traduzem
a história da cidade, no que diz respeito às suas antagônicas políticas
urbanas. Essa disputa idiossincrática se traduz cotidianamente nos cami-
nhos involuntários, nos desvios, nas deambulações que as linhas da cida-
de nos obrigam a fazer. Nesses excessos de vida, localizados às margens
das lógicas de produtividade, o corpo produz uma linguagem íntima com
a cidade. Uma língua não intencional, secreta até, invisível, inconvenien-
te – humana.  A relação com a cidade se dá não no entendimento desses
glifos, mas em sua estética. Essa estética é a nossa energia trocada com a
cidade, um pulso.
100 Cidade Lida

Xidxdx Lxdx
Xidxdx Lxdx é um sistema/ritual para representar e visualizar
essa linguagem pós-humana construída pelas interações entre pessoas,
prédios, ruas, caminhos e outros agentes de nosso ambiente urbano.
É um tipo de continuação das discussões que começaram du-
rante o Laboratório Gráfico Desviante [p. 162]: a desnormatização do
design (tipo)gráfico, o colonialismo da palavra queer e as limitações
de idiomas com gênero.
Começamos o ritual marcando pontos afetivos em um mapa
– locais relacionados ao que estamos tentando ler/compreender/repre-
sentar. Os pontos podem representar uma palavra, uma frase, uma série
de acontecimentos, uma rotina, pessoas ou algum outro conceito que se
manifeste nas intra-ações entre humanos, cidade e linguagem. Depois,
um software artesanal, criado especificamente para esse projeto, analisa
os pontos e revela um glifo. Resultado de cálculos matemáticos e mís-
ticos, não estamos sugerindo que esses glifos passem a ser usados para
substituir palavras, mas que possam servir como uma ferramenta que
possibilite leituras alternativas de nossas relações pessoais, sociais…

Pontos que
marcam
lugares de
importância
afetiva para
nós.

Glifo
gerado com
base nesses
pontos.
101

Acima pontos que representam pessoas


importantes para nós; ao lado glifo
gerado com base nesses pontos.

Acima pontos que representam aconte-


cimentos importantes para nós; ao lado
glifo gerado com base nesses pontos.

Raquel Parrine
É doutoranda em Línguas Românicas e Literaturas
na Universidade de Michigan, onde estuda filosofia e
ética na literatura hispano-americana contemporânea.
É ativista feminista e coeditora da Revista Raimundo,
que publica novos autores lusófonos.Foi professora
de literatura hispano-americana na Universidade de
Brasília e tradutora de livros e filmes.

Thiago Hersan
Fez graduação e mestrado em Engenharia Elétrica
e da Computação na Carnegie Mellon University em
Pittsburgh. Pesquisa tecnologias de fabricação de
semicondutores e circuitos integrados,e trabalha com
educação, arte, cultura digital e jornalismo. É integran-
te do coletivo Astrovandalistas, que explora o uso de
tecnologia, arte, ativismo e design para ampliar as
possibilidades de comunicação afetiva, e criar expe-
riências públicas compartilhadas.
vogue no brasil:
intercâmbios
e apropriações

entre v i s ta co m F él i x P i men ta
p or E x p l o d e! Res i d en cy
103

Explode! Residency1: Félix, são muitos E!R: A cena aconteceu primeiro em


anos de diferença entre o surgimen- alguma cidade específica? Como essa
to do vogue nos Estados Unidos e o cena se espalhou pelo Brasil?
aparecimento dessa cena no Brasil.
Como se deu essa chegada do vogue FP: A primeira pessoa com referên-
no nosso país? Como as pessoas aqui cia do vogue mesmo, brasileiro, foi o
entraram em contato com o vogue André Rockmaster.1 E a Tati Sanchis2
pela primeira vez? também, porque eles faziam esse
intercâmbio com Nova York. Mas foi
Félix Pimenta: Aqui no Brasil, a dança o André, que é daqui de São Paulo,
vogue começou a chegar por inter- que trouxe essa referência. O primeiro
médio de outras danças urbanas e por professor de vogue que veio ao Brasil
profissionais que tinham acesso às in- foi o Archie Burnett,3 para o Festival
formações; que começaram a ir princi- Internacional de Dança Hip Hop de
palmente para Nova York e trazer essas Curitiba4 em 2008 e dirigiu o primeiro
referências. Então, ao mesmo tempo curso específico de vogue. De lá, co-
que muitas danças urbanas foram meçou a se espalhar e a galera foi atrás
descobertas no começo dos anos 2000, de informações. Esse festival promove,
veio essa referência do vogue e a des- assim como outros, um encontro entre
coberta de que aquela dança que existia dançarinos de vários estados que come-
no clipe da Madonna era uma dança çaram a estudar a dança. Tem também a
urbana, que tinha toda uma história por Paulinha Zaidan,5 que em 2008 (se não
trás. Ela veio com outras, principal- me engano) morou nos Estados Unidos
mente o waacking, que é do início junto
com o vogue, unificado. Tinha certa
confusão entre os dois estilos, o que
depois se resolveu e eles começaram a 1 André Rockmaster é professor e coreógrafo de danças
urbanas, graduado em educação física e pós-graduado em
ser estudados separadamente. fisiologia do esporte. Fundador da Rockmaster Party, Cia.
Antes, contudo, existia a refe- Vertente Única e Desonestas Crew.

rência dos vídeos e algumas pessoas 2 Tati Sanchis é coreógrafa e professora de dança. Formada
em educação física e dona da rede de escolas Casa da Dança
que tinham acesso às informações, Tati Sanchis.

mas que não repassavam… algumas 3 Archie Burnett é avô da House of Ninja, escolhido pessoal-
mente por Willi Ninja para integrar a house. É dançarino de
pessoas que são clubbers ou eram club- House e professor de vogue, waacking e Hustle.
bers e que tinham acesso. Repassar e 4 O festival, que acontece desde 2002, já reuniu mais de 20
mil bailarinos e mais de uma centena de atrações internacio-
expandir um pouco mais sobre o vogue nais. Disponível em: <http://fih2.com.br/novo>. Acesso em:
foi realmente com a entrada das danças 20 fev. 2017.

urbanas, o que possibilitou que ele se 5 Paula Zaidan é coreógrafa, professora de vogue e stiletto e
especialista em danças urbanas desde 2004. É integrante do
espalhasse e que viessem profissionais. grupo de dança Lipstick.
104 vogue no brasil

e deu continuidade ao trabalho com urbanas, como waacking, hip-hop. E


o vogue em Belo Horizonte, quando assim o movimento vai se espalhando.
retornou. Então tem Rio de Janeiro, São
Paulo, Belo Horizonte e o Sul também, E!R: Nessa expansão que o vogue
porém mais fraco, mas não tenho como teve pelo país, você acha que a cultura
dizer com certeza se em alguns outros envolvida nessa modalidade de dança
lugares ou outras cidades a galera já urbana se modificou ou permanece
treinava ou não. Tem isso, de treinar fiel às origens daquele referencial dos
vogue, estudar vogue, repassar os co- anos 2000, quando o estilo se iniciava
nhecimentos e criar uma cena. no país? Se existem essas adaptações,
como você avalia isso?
E!R: Aproveitando um pouco essa ques-
tão da cena nacional e dessas pessoas que FP: Há um detalhe muito importante
fizeram intercâmbio, gostaria de saber para analisar, que é como as danças
um pouco sobre os artistas estrangeiros urbanas se tornaram populares e como
que vieram para cá, que são convidados começaram a ficar em evidência. O
hoje porque existe uma cena. Como ela mainstream, o meio comercial, tem
se mobiliza em relação a isso? muito poder sobre isso. O vogue ficou
mais conhecido no final dos anos 1980,
FP: A cena acontece porque consegue começo dos anos 1990 e depois conti-
reunir essa galera que vem de vários nuou no underground e se espalhou um
lugares, e nós aqui [em São Paulo] tí- pouco até que voltou nos anos 2000,
nhamos essa referência e possibilidade principalmente por causa dos progra-
de conseguir trazer alguns professores mas de tv e dos artistas. O America’s
de fora [do Brasil]. E a galera aprovei- Best Dance Crew7 é um exemplo disso:
tava essas chances de poder esclarecer depois que o Vogue Evolution começou
um pouquinho mais as informações. a participar, a galera que até então não
Como o Meeting Hip Hop,6 que acon- sabia o que estava rolando na cena drag
tece no interior de São Paulo e que ball e com o voguing voltou a olhar
também foi um dos eventos que teve (e para a cena. O Vogue Evolution veio
tem) a possibilidade de trazer profes- mostrando outra forma, totalmente di-
sores para cá. No cenário das danças ferente para aqueles que tiveram acesso
urbanas funciona assim: nesses inter-
câmbios, você aproveita os workshops,
consegue levar um pouquinho de in-
formação e reunir os grupos e também 6 Meeting Hip Hop School Festival é um festival itinerante de
organizar outro evento e chamar outros danças urbanas que acontece no interior de São Paulo há 12
anos e reúne artistas nacionais e internacionais.
professores. E os professores que já
7 America’s Best Dance Crew é uma série de dança que conta
conseguem ir para fora fazer esses com a participação de grupos (crews) de dançarinos de rua.
É apresentado por Randy Jackson, jurado do American Idol.
intercâmbios também viajam dentro Um dos destaques do programa foi o grupo Vogue Evolution,
do Brasil para disseminar um pouco primeiro grupo de dança da tv americana em que todos os
integrantes são lgbtqs assumidos, tendo como destaques
mais a cultura, o vogue e outras danças Pony Zion e Leyomi Maldonado.
105

ao Paris is Burning,8 ou ao vogue que não é das minorias, e que foi quem le-
a Madonna colocou no clipe e na sua vou de lá para outros lugares. Então, já
turnê. A partir disso, nós começamos a não começou nas minorias, essa galera
ir atrás dessas informações, e a popu- não tinha nem acesso a essas informa-
larização do YouTube também ajudou ções. Muitas pessoas ainda não sabem
muito, porque chegavam vídeos rela- o que é vogue, mas têm uma vida muito
cionados: ao pesquisar o clipe Vogue, parecida, têm um comportamento, uma
da Madonna, apareciam sugestões vivência e o corpo muito parecidos com
como Paris is Burning, que eu assisti os de lá. Só que quem trouxe a dança
naquela época, além de outros vídeos para cá tinha outra estrutura, então
que deram mais acesso. Foi principal- a vivência já é de outra forma, essa
mente o YouTube, os programas de tv, relação já é muito diferente. Se a gente
o acesso maior às redes que ajudaram coloca uma das questões importantes
nessa popularização. do vogue, que é a questão lgbt , que é
Fora isso, tinha os intercâmbios, a questão principalmente das mulheres
que modificaram a forma como a dança trans, das drags. Não foi esse público
era realizada, que modificaram qual- que trouxe, foi o público heterossexual
quer outra dança urbana e a própria cul- mesmo, é importante analisar por esse
tura hip-hop, que surgiu com a questão recorte, porque ele já chegou pelo meio
do acesso, do privilégio à informação. de aulas em academias ou workshops,
Então, as pessoas que tinham poder e não pela vivência, pelos clubes, nem
aquisitivo maior tinham mais acesso e por uma cena drag ball ou mesmo pelas
podiam ir aos Estados Unidos para se balls9 que eram feitas (as competições
reciclar, ter aulas, ou mesmo só fazer direcionadas para o vogue) e que agora
alguns cursos e voltar. Muitas outras, começam a ser entendidas e realizadas
porém, não tinham essas mesmas fer- aqui no Brasil.
ramentas. No caso do vogue, principal-
mente, que é uma cultura que se mante- E!R: Você me disse que o vogue co-
ve e evoluiu no meio underground, na meçou a surgir no Brasil no início dos
cena drag ball, pela minoria, foi desco- anos 2000 e que em 2008 vieram os
berto pela galera que tem acesso, que primeiros professores internacionais,
como o Archie Burnett. Quando come-
çaram as primeiras balls e batalhas no
8 Paris is Burning é um documentário norte-americano Brasil, e como estão se desenvolvendo?
dirigido por Jennie Livingstone. O filme retrata a cena da
ball culture de Nova York e as comunidades lgbtq negras e
Elas estão transformando de alguma
latinas que a formavam, em meados dos anos 1980. forma essa cena que se iniciou num
contexto branco, heterossexual e com
9 O ball é o principal evento da cultura ballroom. Nele se alto poder aquisitivo?
reúnem representantes das houses e dançarinos de vogue
que batalham por suas houses e por suas histórias. É um
momento de catarse, no qual vida e morte são apresentadas
por meio de dança, performance, atitude e figurino. Em geral FP: A gente já tem essa referência de
as balls premiam seus participantes e servem como local de como o vogue [no Brasil] foi formado.
visibilidade e apresentação para aqueles que ainda não estão
inseridos nas houses. Esse caminho de a dança chegar até as
106 vogue no brasil

minorias está ocorrendo agora, e está se ver,12 e aí veio a ball do Rio, de Brasí-
discutindo sobre isso, estamos anali- lia, de São Paulo... E nesse momento a
sando essas questões, e começando a galera começou a entender mesmo e a
circular em outros espaços. A partir do ter coragem e estrutura para organizar
momento em que a galera se despren- as balls. É uma junção de tudo, desde
deu desse lugar de fazer aulas, buscou ter mais informações, ter estrutura,
como realizar uma ball, ver vídeos e ter ter discurso e ter um público-alvo que
mais contato com a galera de fora e que mantenha tudo isso.
realmente faz parte dessa cultura, é que Começou a ter uma diferen-
começou a se formar mesmo essa cena, ça entre a parte das academias, com
que não é só batalha, não é só aula. aulas, workshops e cursos regulares
Então desde que se começou a treinar e e quem faz e participa realmente da
a compartilhar informação, a entender cena vogue, desde o treinamento até a
o que são as categorias, as diferenças organização de miniballs, batalhas ou
entre cada categoria ou os gêneros de uma grande ball internacional e que
vogue, é que iniciou um movimento consegue trazer outras pessoas. Essa
maior de batalhas. Mesmo que fosse relação do acesso aos artistas de fora
somente “brincar de batalhas”, fora das se manifesta nessas relações, já que ela
estruturas de balls. E começou também acontece principalmente nas academias,
o movimento de festas com esse tema. onde esse acesso é mais fácil; quem
Surgiu aí um pouco mais de pertence às minorias não tem esse
espaço para o vogue, que não veio do mesmo privilégio ainda, mesmo nas
hip-hop porque ele não conseguiu aten- balls. Ainda é necessário que se tenha
der a essa demanda – o movimento não dinheiro, um investimento para poder
entendeu também e não deu espaço. organizar, alugar um espaço, para trazer
Quem começou no vogue conheceu a alguém de fora. É necessário fazer
galera dos clubes, que também queria parcerias, não [adianta] só vontade de
fazer essas festas, que estava come- organizar. A gente pode organizar umas
çando a discutir questões de gênero, balls de maneira simples, mas também
sabia o que era Paris is Burning e o que quero fazer uma internacional, tenho
era mais o menos o vogue numa visão
teórica. E foi uma junção perfeita, a dos
clubes com as festas, que se iniciaram
com as performances, depois as ba-
10 Extravaganza é uma festa itinerante entre São Paulo e
talhas e atualmente, nos últimos dois Berlim, que realizou em 2016 algumas performances com seu
anos, as balls direcionadas ao vogue. coletivo Vogue Extravaganza Voguing Crew, do qual fazia
parte Félix Pimenta.
Aqui a gente tentou, com a Extravagan-
11 Dengue A Festa! é um evento em Belo Horizonte criado por
za,10 mostrar de uma maneira diferente; Guilherme Morais, fundador da plataforma cultural This Is Not,
que realiza batalhas de vogue em cada uma de suas edições.
e as meninas de Belo Horizonte com a
12 bh Vogue Fever é um encontro internacional de dançarinos
Dengue,11 que é uma festa com batalhas de vogue que acontece em Belo Horizonte. São realizados
e duelos de vogue em todas as edições; workshops e aulas com convidados internacionais e uma ball
com batalhas de vogue. É organizado pela House of Afrodite
elas também realizam o bh Vogue Fe- (Trio Lipstick + bh is Voguing).
107

que trazer essas referências, as pessoas expressão, da vivência. Tudo isso ajuda
que fazem parte dessa cultura de lá. as pessoas a se reconhecerem nessa for-
Mas isso não é tão simples assim. ma de expressão. Mesmo no hip-hop, e
se nós pegarmos outras culturas fora do
E!R: Entre as danças urbanas, poucas hip-hop de diversos lugares do mundo,
são tão importantes e vitais quanto o a galera vai se identificar, esse público
vogue para a comunidade lgbtq negra, vai se reconhecer.
principalmente, e latina (quando você Trazendo para o vogue, ele tem
fala da realidade estadunidense). E o essa ligação grande com as questões de
waacking também entra nessa catego- gênero, o que ajudou muito na expan-
ria. Como você enxerga essa questão? são e no estudo sobre o vogue. A galera
Acredita que agora, com essa nova vivendo de uma forma bem diferente
mobilização, essa nova vivência e com por aqui enxerga semelhança com a
esses corpos (que como você mesmo forma como essa galera lgbt de lá
afirmou são parecidos com os da cena vive, como as drags, os gays, os trans,
original), as pessoas podem se empo- os negros e os latinos vivem lá. Tem
derar nas questões lgbtq e também da todo esse reconhecimento, não aconte-
população negra? ce só no Brasil. Tem todos esses outros
movimentos da galera latina, existe
FP: Sim, tanto que existe esse reconhe- essa importância de se reconhecer lati-
cimento principalmente no que está re- no. O fato de uma das principais e mais
lacionado à cultura hip-hop e às danças antigas houses,13 a Xtravaganza,14 ser
urbanas, que tem a ver com o discurso formada por latinos tem total importân-
e o lugar, como as pessoas vivem. Exis- cia para toda essa comunidade se reco-
te um reconhecimento nesse discurso, nhecer como latina. Tem um discurso
na imagem, no corpo – quando se vê forte aí, tem esse reconhecimento.
aquele corpo muito parecido, a forma Além disso, tem a questão da
como esse corpo se movimenta –, da movimentação. Muitas pessoas não
usam isso, mas eu gosto de usar essa
referência do movimento afrodiaspó-
rico. Sem querer, sem que as pessoas
saibam o que é exatamente a diáspora
13 As houses, também chamadas de famílias, são grupos
lgbt q s reunidos sob a orienteação de uma house mother ou
africana, o que significa afrodiaspóri-
um house father. Na comunidade ballroom, as houses se orga- co, elas estão fazendo uma coisa bem
nizam por estruturas de parentesco, configuradas socialmente
(e não biologicamente), nas quais mães e pais aparecem como parecida. É se reconhecer, executar o
figuras de autoridade, orientação e cuidado, além de manterem
a reputação das houses. Seus membros assumem como sobre-
movimento de um corpo idêntico ou
nome o nome de suas houses (Ninja, Xtravaganza, LaBeija, bem parecido sem ter tido contato ante-
Garcon, Balenciaga, Mugler etc.).
rior; e conseguir executar e se reconhe-
14 House of Xtravaganza é uma das mais conhecidas e difun-
didas houses de Nova York. Fundada em 1982, é conhecida cer muito bem nisso. Para mim é muito
pela atuação na cena ballroom e pela influência em áreas
como dança, música, artes visuais, vida noturna, moda e ativ- relevante esse fator do movimento
ismo comunitário. Seu fundador é Hector Valle. Disponível afrodiaspórico, que está no vogue, que
em: <www.facebook.com/HouseOfXtravaganza/?fref=ts>.
Acesso em: 21 fev. 2017. vem do hip-hop, e que também está
108 vogue no brasil

nas outras danças urbanas norte-ame- FP: Sobre a questão das houses, a gen-
ricanas e que são reconhecidas aqui no te faz essa ligação com o começo da
Brasil e em outros lugares. cena ball aqui no Brasil, que tem a ver
O movimento afrodiaspórico e com o reconhecimento dessa galera.
as questões de gênero são fatores muito Acontece de uma maneira diferente,
fortes a meu ver, e fazem com que as mas tem relação com a ideia de crew15
pessoas se reconheçam. Mas obviamente no break, no hip-hop e nos outros
haverá mudanças, porque cada país vive grupos, que é essa vivência muito pró-
de uma forma diferente e tem expe- xima. É se reconhecer, se reconhecer
riências diferentes. Então, mesmo que como família porque você se reconhe-
minha religião seja igual à de lá, ou que ce no outro, está passando pelas mes-
seja a mesma, a minha representação e a mas coisas, vivem praticamente juntos
forma de falar, por exemplo, são diferen- e têm ideias bem parecidas. Essa refe-
tes; a minha forma de me movimentar e rência no hip-hop e no vogue é muito
de me expressar são diferentes das de lá. parecida. O que no vogue é muito
Essa modificação é automática quando diferente e remete ao começo das hou-
ela chega no meu corpo. E tem uma ses de lá é exatamente a forma como
coisa da qual eles [os estadunidenses da as pessoas viviam, em lugares de total
cena vogue] gostam também e que faz exclusão; as pessoas se juntaram sem
toda a diferença. Não deixa igual e não ter nada e se fortaleceram a partir
fica tudo quadrado: como cada povo dessa união. Aqui também, mas numa
se utiliza também dessa cultura ou se estrutura totalmente diferente, ainda
fortalece de alguma forma e consegue que com certas dificuldades, inclusive
acrescentar também a sua maneira. em relação às questões históricas do
mundo de hoje e do que acontecia na
E!R: As houses têm papel fundamen- década de 1960. Uma galera acaba
tal como criadoras e fomentadoras se juntando por causa do intercâmbio
dessa dança urbana, além de seu papel entre os estados, em eventos que as
social nas comunidades lgbtq nos pessoas se matam para ir. Ali criam
Estados Unidos. Quando vieram ao conexão e ficam um tempo trocando.
Brasil, o Legendary Icon Pony Zion Existe esse reconhecimento, essa co-
convidou você e Eduard Kon para nexão, que muitas vezes não é com a
formarem e serem pai e mãe, respec- galera próxima, da mesma cidade, mas
tivamente, da House of Zion, dando sim com a de outros estados. Por outro
continuidade ao que as houses nor- lado, é muito diferente de uma galera
te-americanas fazem em seu país de
origem. Além disso, já existem outras
houses pelo país, com características
específicas conforme as necessidades
locais. Como você vê o papel das 15 Crew é um termo comumente utilizado em grupos de
houses no Brasil e como imagina o dançarinos de danças urbanas. Originário do inglês significa
grupo de pessoas que trabalham ou atuam em uma área co-
funcionamento da House of Zion? mum, estruturados em uma organização hierárquica.
109

do Rio, onde tem a House of Kínisi16 e sendo bem visado por algumas pessoas
a House of CaZul,17 que são formadas de fora: já que estamos fazendo o que
pela galera da mesma cidade. Eles têm eles fazem lá, eles vêm pra cá, ensi-
um contato muito mais fácil para se nam como fazer, falam como respeitar
reunir, dormir junto, ir para os eventos essa cultura e também como se formar
todos juntos, do que outras formações essas houses oficialmente conhecidas
que vieram agora de fora, como deve e as não oficiais, ou quick houses,18
acontecer com a House of Zion. Como como criar esse comportamento em
se reunir, criar os pontos com uma balls oficiais, se você é 007,19 se você
galera que está no Sul, com uma ga- representa a house oficial ou uma
lera que está em São Paulo, com uma quick house etc. Tem toda essa deman-
galera de Belo Horizonte? É um pouco da que a gente está tentando entender,
diferente. Algumas meninas de bh têm e a galera precisa tomar cuidado tam-
uma vivência muito mais forte, elas bém para não ser guiado só por nomes;
se veem com mais frequência, é mais para que, quando uma house de reno-
fácil a conexão. Existe outra forma de me vier escolher alguns nomes para
as houses acontecerem aqui, que é se sua house, não se exclua quem poderia
reunindo esporadicamente, em algum fazer parte disso e opte só por nomes
evento, tentando se comunicar da que são reconhecidos; para que não se
melhor maneira possível e pensando façam formações nem criem nichos
em organizar ações, expandir e passar e se separe mais a galera, e que se
informações, cada um à sua maneira. impossibilite o acesso de quem precisa
A questão hoje é que o Brasil está dessa informação. O momento agora é
de não segurar essa informação e per-
mitir que o maior número de pessoas
tenha acesso a ela. Tentar ao máximo
popularizar o vogue. O mínimo que
16 House of Kínisi é um coletivo cujo intuito é difundir a tento fazer é popularizar o vogue, e
cultura das drag balls, através da dança vogue, no Brasil.
Disponível em: <www.facebook.com/houseofkinisi>. Acesso esse é o conceito que vou tentar levar
em: 21 fev. 2017.
para a Zion. Eu e o Kon conversamos
17 House of CaZul é um grupo de arte voltado à dança vogue.
Em suas concepções coreográficas usa diversas outras danças, um pouco sobre algumas pessoas que
linguagens e estudos. Disponível em: <www.facebook.com/
houseofcazul>. Acesso em: 21 fev. 2017.
têm a ver com o discurso, que podem
18 Kiki Houses são houses menores, com público mais jovem
ser consideradas da House of Zion.
e, no contexto norte-americano, fortemente ligadas a divul- Foi assim também, a House of Zion
gação, prevenção e orientação sobre o hiv nas comunidades
latinas e negras. Atualmente, só nos Estados Unidos existem estava tecnicamente parada e o Pony
houses oficiais, com exceção da House of Ninja em Paris,
representada por Lasseindra Ninja – todas as outras houses
não a movimentava. Ele veio para cá
internacionais são consideradas Kiki houses. As Kiki houses [Explode! Residency], se emocionou
organizam as Kiki Balls, onde podem competir e dançar o
vogue; porém, quando um de seus membros participa de uma com o evento, com as balls da Explo-
batalha oficial, ele entra como 007 (somente os membros das
houses oficiais podem participar com o sobrenome de suas
de! Residency e do Ataque Queer! e
houses.). A cena das Kiki houses norte-americanas pode ser decidiu, depois de toda essa vivência
vista no documentário Kiki <www.kikimovie.com>.
aqui, colocar a gente na linha de frente
19 007 é o dançarino de vogue que não pertence a nenhuma casa
e participa das balls à espera de ser convidado para uma delas. para direcionar e colocar em atividade
110 vogue no brasil

a Zion aqui no Brasil. E eu tenho essa Não é só isso, não é só uma moda, vai
ideia mesmo, de popularizar e chamar muito além disso. Ele só existe até hoje
as pessoas que tenham um discurso porque a galera foi resistente e foi bem
legal e bem próximo e que tenham dura também. Houve brigas. Foram
ideias parecidas, para que seja uma várias formas de manter essa cultura
house com pé no chão. viva até hoje. Independentemente de
estar na moda ou não, essa cultura vai
E!R: Gostaria de falar algo mais sobre continuar. Agora, como as pessoas vão
o vogue na cena brasileira, algo que trabalhar todas essas informações e
considera importante ser lembrado? como essas informações vão até quem
realmente importa? A galera comer-
FP: É importante retomar a questão dos cial vai explorar essa cultura até dizer
intercâmbios e das apropriações. Para “Chega, vamos parar, qual é a próxi-
qual público o vogue está chegando? ma?”. Eu já vi isso acontecer: leva-se
O vogue está se apropriando de quem? para o estúdio, passa um ano e esque-
Isso tem a ver também com o vogue es- ce, não dá continuidade. Tem que ser
tar sendo estudado, virar referência em levado para mais pessoas e para quem
tcc s, monografias e afins. É necessário realmente vai dar continuidade à cena
tomar cuidado, não só no Brasil, mas – menos para o lado comercial e mais
no mundo todo: para quem o vogue está para o underground. E ter cuidado, tam-
sendo direcionado e compartilhado, e bém, para não embranquecer o vogue,
para quem não está? Porque, até então, que é uma das questões mais tensas, a
vejo o vogue chegando em alguns da apropriação cultural. Ela acontece
lugares apenas para um público que é de maneira muito sutil: primeiro pela
muito privilegiado. E a parte do públi- estrutura capitalista, que dá prioridade
co que não tem esses privilégios? Tem apenas para algumas pessoas e faz com
que se pensar em formas de popularizar que a apropriação aconteça de maneira
mesmo, de facilitar o acesso e as infor- suave, e quando isso é questionado, o
mações, de dar poder para que algumas teor da questão é visto como agressão.
pessoas possam ter acesso a tudo isso, É um problema que precisa sempre ser
para que possam se empoderar dessa debatido, além da inclusão do vogue.
dança. Como a gente faz para empode- Como tornar o vogue acessível a um
rar as pessoas com todos esses instru- número maior de pessoas? É a questão
mentos? É muito fácil para uma galera que deixo para todo mundo, e é impor-
das academias ter todo esse reconheci- tante sempre pensar nisso.
mento e acesso a essas informações, e
isso ficar só nesse segmento. Estudar
vogue porque agora é o que está sendo
reconhecido, porque está na moda. Um
problema da moda é esse. Escutei esses
dias a frase: “O vogue é bem 2016”.
111

Félix Pimenta
27 anos, dançarino performer, pesquisador, professor e
coreógrafo de danças urbanas. Especializado nas danças
waacking e voguing, é membro da House of Zion – Chapter
Brasil e da ihow (Imperial House of Waacking) – Chapter
Brasil, Coletivo Ritmos de Rua, Cia. Crioulos e Afronte
coletivo de performance. Ministra workshops, aulas e faz
júri por todo o Brasil. Performer da noite paulistana, é
participante de batalhas em diversos eventos.

Explode! Residency
ver página 126
Programas
atividades realizadas 113
durante 2016
São Paulo - SP
ataque!
10 de setembro, 2016
Praça das Artes 114
Centro, SP
ataque!
115
ataque!

idealização Cláudio Bueno, João Simões,  programação


Júlia Ayerbe, Laura Daviña, Paulo Scharlach,  oficinas
Raphael Daibert, Thiago Carrapatoso, Todd Interiores – Claudia CisneyLips;
Lanier Lester, Shawn Van Sluys A Ternura Radical em um Corpo Político –
Dani d’Emilia;
concepção artística Aretha Sadick, Cláudio Fúria Kuir – Monstra Errátika (Jota Mombaça);
Bueno, Félix Pimenta, João Simões, Júlia A Cultura do Ball Norte-Americana – Michael
Ayerbe, Laura Daviña, Paulo Scharlach, Raphael Roberson e Pony Zion.
Daibert, Thiago Carrapatoso, Todd Lanier Les-
ter, Shawn Van Sluys conversas
Descolonização do Queer – Monstra Errátika
produção Dalva Santos, Paulo Scharlach, (Jota Mombaça), Bibi Abigail, Vi Grunvald;
Thiago Carrapatoso O Corpo e o Direito à Cidade – T. Angel (frrrkguys),
Jackeline Romio, Ariel Nobre (Revolta da
parcerias Praça das Artes, Centro de Cidadania Lâmpada);
LGBT Arouche, O grupo inteiro Território e Memória – Fernanda Rocha (Repep),
Bruno Puccinelli;
apoio ArtsEverywhere / Musagetes, Secretaria Aids hiv – Flip Couto, Cadu Oliveira (Revolta
Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de da Lâmpada).
São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura de São
Paulo, Fundação Theatro Municipal de São Paulo batalha de vogue
júri: Mavi Veloso, Michael Roberson, Paulo
participantes Ariel Nobre, Ajamu Ikwe- Henrique Rodrigues
-Tyehimba, Aretha Sadick, Beatriz Matos, Bibi comentador: Eduardo Kon Rodrigues
Abigail, Bruno Puccinelli, Cadu Oliveira, Claudia participação especial: Aretha Sadick
CisneyLips, Danna Lisboa, Dani d’Emilia, Darlita projeção: coletivo coletores
Double-Lock, Eduard Kon Rodrigues, Fernanda discotecagem: Tiago Guiness
Rocha, Flip Couto, Félix Pimenta, Jackeline Ro-
mio, Júlia Ayerbe, Laura Daviña, Lucas Matteus, intervenções
Mavi Veloso, Michael Roberson, Marcos Ribeiro, Laboratório Gráfico Desviante
Monstra Errátika (Jota Mombaça), Paulo Henri- popup studio com Ajamu Ikwe-Tyehimba
que Rodrigues, Pato Hebert, Pony Zion, Rodrigo coletivo coletores
Vianna, T. Angel (frrrkguys), coletivo coletores ,
Vi Grunvald

fotos Ajamu Ikwe-Tyehimba, Danila Bustamante,


Leandro Moraes, Pato Hebert

116
Pony Zion em
A Cultura do Ball
Norte-Americano

A Ternura Radical em um Corpo Político Fúria Kuir


Oficina com foco no corpo como lugar contraditório de Monstra Errátika em seu processo de descolonização
noções de identidade, diferenças e desejos, trazendo a do corpo, de gênero e da própria sexualidade por meio
imaginação política, alianças afetivas e conhecimento de leituras, exercícios e vídeos.
para o centro da discussão/ação corporal, como ex-
pressão de ternura radical [p. 84].

117
Fotografias de Ajamu
Ikwe-Tyehimba para sua
intervenção popup studio.
Abaixo, cartazes do Labo-
ratório Gráfico Desviante.

Interiores
Claudia CineyLips, rodeada por
esmaltes, propõe fazer as unhas
do público ao mesmo tempo que
troca experiências de vida com
os participantes.

118
por Thiago Carrapatoso

No início do planejamento e das ver outro meio de fazer esse lugar onde
pesquisas sobre o que seria uma Cidade vivemos. A questão, porém, é que em uma
Queer – ou uma cidade vista por uma estrutura sisuda, mostrar outros meios
perspectiva não hegemônica e muito mais de existir se tornaria uma função ingrata.
emergente –, surgiram diversas temáticas, Teríamos que agarrar de supetão os temas
mas nenhuma nos garantiu que o caminho que nos são caros, como um Ataque! ao
traçado durante todo o ciclo chegaria a uma que, então, nos mostraram como “normal”.
conclusão. Ou que oferecesse algum viés O último evento do Cidade Queer
de resposta. Como imaginar a estrutura de seria esse Ataque! à cidade. Para isso,
uma cidade como São Paulo de forma mais escolhemos um lugar que, além de abrigar
orgânica, se há pelo menos um século, com a escola municipal de dança da cidade,
mais ou menos horizonte a se ver, prevale- também é a representação moderna do
ce a concepção rígida? E como poderíamos que arquitetonicamente temos hoje: a
demonstrá-la por meio de um ciclo de praça das Artes, com sua estrutura rústica,
atividades, convidando agentes para atuar e dura, bruta. Tendo como ponto de partida
para considerar algo que nem nós mesmos a experiência da residência Explode!,
sabíamos o que queríamos atingir? pensamos em uma programação que,
A trajetória, que vocês podem conferir no período da tarde, abrisse um espaço
até neste livro, nos mostrou diferentes pers- discursivo e prático para o que estávamos
pectivas – não necessariamente sobre uma propondo e, à noite, se tornasse uma
cidade, mas sobre modos de agir nessa es- batalha: de corpos, vestimentas, passos.
trutura urbana saturada e caótica. Nesses Enquanto nos andares de cima da praça
modos de agir, de viver, veem-se pequenas ainda se tenta preservar o clássico – ou,
faíscas, desdobramentos, reinvenções que como alguns chamam, o “erudito” –, em
apontam para outro lugar, outra concepção seu vão organizamos uma batalha de
de organização de uma sociedade. voguing, com concepção de Félix Pimenta,
Uma cidade – digo e repito – é uma para encerrar todo nosso ciclo.
abstração: fruto de um imaginário para
lidar com fluxos constantes de capital e
comunicação – fluxos esses que, por si
só, nem existem, são apenas virtuais. E
nesse tráfego todo existe a gente. E como
a gente é subordinada a esses fluxos, tem
que estar perto, dentro do nó, para que
assim os fluxos não se quebrem e a vida
(qual? e de quem?) possa continuar tran-
quilamente. Talvez por isso – por estarmos
dentro desses fluxos que foram criados e
violentamente aplicados em nós – seja tão
difícil imaginar uma estrutura de cidade
que seja completamente diferente (ou seja,
não estruturada, mas sim estruturante) da
que estamos acostumados a ver neste um
pouco mais de século.
As faíscas, então, que encontramos
durante os meses de atividades mostraram
que há diversas temáticas que precisam
ser exploradas mais a fundo, publicamente,
junto com os que ainda não puderam

119
Da esquerda
para a direita,
Monstra
Errátika (Jota
Mombaça),
Bibi Abigail e Vi
Grunvald em
Descoloniza-
ção do Queer

Descolonização do queer O corpo e o direito à cidade


Durante o Cidade Queer, nos depa- Se queremos pensar em uma nova
ramos constantemente com o questiona- estrutura para viver, é preciso considerar os
mento sobre a terminologia e o uso de diferentes corpos que habitam, que se cru-
uma palavra anglo-saxã para montar uma zam, que se mostram nos espaços públicos
programação que pretende explorar a reali- de uma cidade. A cidade, por mais plural
dade local. Tentamos explicar as diferentes que seja, não é um espaço democrático
concepções que se pode dar ao termo, de atuação. Para levantar essas questões,
porém nunca conseguimos achar uma contamos com:
resposta definitiva e que fizesse sentido T. Angel (frrrkguys), artista da perfor-
para todxs. Então, para nos ajudar nessa mance com graduação em história. Está no
empreitada sobre o que é ser queer nos cenário brasileiro da modificação corporal
trópicos, convidamos: desde 1997, inicialmente como entusiasta e
Monstra Errátika (Jota Mombaça) [p. 16] posteriormente atuando no campo da pes-
Bibi Abigail [p. 34] quisa. Parte de seu trabalho está no livro A
Vitor Grunvald [p. 22] modificação corporal no Brasil: 1980-1990
e no site frrrkguys.com.br.
Ariel Nobre (A Revolta da Lâmpada),
homem trans, escreve na coluna #transvivo
T. Angel, Ariel Nobre e Jackeline Romio para Os Entendidos, da Revista Fórum. Além
em O Corpo e o Direito à Cidade. disso, é consultor em comunicação para pro-
jetos de meio ambiente e inclusão de lgbts
no mercado de trabalho. Samba na cara da
sociedade e luta pelo corpo livre com o cole-
tivo A Revolta da Lâmpada, desde 2015.
Jackeline Romio é doutoranda e mes-
tre em demografia pela Universidade Esta-
dual de Campinas (ifch-Unicamp, 2009).
Atualmente desenvolve pesquisa sobre
feminicídios no Brasil. Em 2015, fez estágio
de doutorado no Centre d’Enseignement,
de Documentation et de Recherches pour

120
les Études Féministes (Cedref), da Université
Paris Diderot – Paris 7. Estudou no Departa-
mento de Sociologia da Howard University
(2006) e iniciou seus estudos de gênero e
feminismo no Núcleo de Estudos da Mulher
e Gênero da usp (Nemge). Paralelamente,
desenvolve trabalhos com literatura femi-
nista negra e com artes plásticas.

Território e memória Flip Couto e Cadu Oliveira em Aids hiv


Ao estudar os processos de gentrifi-
cação das grandes cidades, o que mais
me assombra é que o primeiro grupo a ser
expulso de um bairro sejam os gays, os
trans, as lésbicas, os travestis. Não estou
falando dos gays de elite que o sr. Richard
Florida gosta de culpar pelo aumento do
preço do metro quadrado. Estou falando
de outro grupo, mais orgânico, menos
digerido pela sociedade, que usa o espaço
público a... va… ler. Para entender esses
meandros, convidamos:
Rede Paulista de Educação
Patrimonial (Repep) [p. 86]
Bruno Puccinelli [p. 70]

Aids hiv
Bem no início das pesquisas para o palcos dos teatros. Entre 2010 e 2013
ciclo do Cidade Queer, surgiu a seguinte residiu em Düsseldorf (Alemanha) e em
questão: Por que as discussões locais so- Paris (França), onde realizou trabalhos em
bre o vírus na década de 1980 não ganha- parceira com companhias e coletivos de
ram tanta repercussão quanto o que ficou dança como E-motion Crew, Notik Dance
conhecido como A Crise da Aids novaiorqui- Company e Time Room Lockers. Atuou
na? Essa mesa foi organizada com o título também como preparador corporal no
aids (que está riscado acima) justamente Teatro de Oberhousen (Alemanha).
para tentar entender esses processos. A Cadu Oliveira é envolvido com ações
discussão, além de abordar isso, também de voluntariado desde 1996. Hoje é mili-
abriu nossos olhos para o uso errôneo que tante nos coletivos A Revolta da Lâmpada
fazemos das terminologias sem nem nos e Cume. Também fez parte da produção
dar conta. É por isso que, neste livro, adoto da Conferência [ssex bbox ]. Participou
o hiv . E aproveito para agradecer aos de mesas na unip Jundiaí, fesp , Casper
grandes que nos abriram os olhos: Líbero e usp .
Flip Couto tem formação artística
construída dentro da cultura hip-hop.
Desde 2003 integra a Cia. Discípulos do
Ritmo, sob a direção de Frank Ejara, que
em 1999 teve a iniciativa de convidar
dançarinos de danças urbanas com o
intuito de levar essas linguagens aos

121
Ataqueridas

por Pato Hebert

Ataque foi uma convergência bem no Xangô e Eleguá, com as queridas todas na
coração sangrento e pulsante da cidade de estica com seus penduricalhos e piruetas,
São Paulo, e o baile, um teatro do desejo derrubando eventuais dúvidas e provando
em pleno funcionamento. Aprendi a me que o Bash Back Queer não deixa barato.
mover em espaços assim, com corpos Foi uma noite histórica, com as Ataqueri-
polissexuais nas pistas de house negras e das consagrando a Casa Brasileira de Zion
pardas de boates como a Pan Dulce e a Lift, e vestindo a camisa da afirmação de gê-
a Anthem e a Corazón. A gente pavoneava neros que não se deixam comunicar nem
pelos bairros de Mission e South of Market conter em algumas poucas vogais. A cole-
em San Francisco, nos Estados Unidos, na tividade dinâmica dessa dança presencia-
década de 1990, pouco antes da explosão da em meio à urgência e às contestações
das empresas de tecnologia e da aniquila- do núcleo de São Paulo foi um momento
ção neoliberal. Aprendi a fotografar também explosivo de reconfiguração, com a cidade
nesse ambiente, fazendo uma longa série que condiciona, mas também acabou
de imagens em meio aos vinis que giravam sendo condicionada, por um creative com-
suaves e sem fim, emitindo aqueles sons mons de cor primorosamente queer. Um
eletrônicos tão ricos. momento para desfilar, fazer suas poses,
Assim, vinte e poucos anos depois, entrar na batalha e simplesmente ser, tudo
o Ataque me pareceu maravilhosamente isso embalado numa mistura mágica..
familiar, como se estivesse visitando a casa
de um primo mais novo de segundo grau e
me dando conta da profunda afeição que
sentimos um pelo outro. Estava repleto
de pessoas adoráveis e cuidadosamente
escolhidas, que juntas se tornaram as
Ataqueridas, numa explosão de poses que
se organizavam por si só, provocando uma
verdadeira devastação com seus ângulos
em alternância e belezas ondulatórias, sem
nunca deixar de intimar infinitas ecologias
emocionais. As pessoas assumiam papéis
distintos ao longo da noite, indo de perfor-
mer a juiz, de concorrente mais fervido a
fã fervoroso, de público abismado a com-
pañera mais próxima. Eu queria fotografar
o movimento por dentro e de cima, convi-
dar essas imagens que pulsavam com a
inventividade, a irreverência, a intimidade,
a intensidade e a delicadeza daquele baile.
Em meio às sombras e holofotes, o
sensor digital percebia peles indígenas,
sintetizadoras e oriundas de diásporas, in-
fundidas por conta própria num espírito de
independência, paz, respeito e igualdade.
Incorporações negras de Iemanjá em vários
tons, irrompendo nas águas e dando à luz

122
Pato Hebert
É artista, educador e gestor. Seu trabalho explora
a estética, a ética e a poética da interconexão. É
professor de artes na Tisch School of the Arts, New
York University. Também trabalha com iniciativas co-
munitárias de hiv / aids com o Global Forum on msm
& hiv (msmgf).

123
Batalha
Independência ou Lacre! Batalha de
vogue organizada em três categorias:
Geração Tombamento, inspirada na atual
geração jovem, negra e de periferias brasi-
leiras, convida ao tombamento através de
um visual representativo e empoderado;
Bizarre Down the High Society: apresen-
tação do lado mais excêntrico da high
society (a crise está virando zooonaaa.
Cada um por si e todo mundo na lona...);
Runaway Lacração em high Fashion:
apresentou o nível mais alto da moda na
passarela – a lacração!
A batalha contou com R$1.500 distri-
buídos entre os vencedores. Teve um júri
composto por nada menos que Michael
Roberson, o Legendary Icon Pony Zion
(ambos de Nova York) e Paulo Henrique
Rodrigues, de Brasília. O comentador foi
Eduard Kon, nomeado por Pony Zion como
“mother” da House of Zion no Brasil.
A abertura da noite contou ainda com a
performance Freedom, de Aretha Sadick.

124
125
explode! residency
agosto-setembro 2016 126
Vila Nova York,
Zona Leste, SP
explode!
residency
127
explode! residency

idealização Cláudio Bueno & João Simões programação*

*Detalhes em: <www.cidadequeer.lanchonete.org/2016/08/05/explode-residency-programacao-publica/>


23/8  filme Meu amigo Cláudia, de Dácio Pinheiro.
realização  Cláudio Bueno, João Simões, Conversa com Aretha Sadick e Duda
Paulo Scharlach, Raquel Blaque, Raphael Babaloo.
Daibert, Todd Lanier Lester 25/8 Corpos e Periferias – projeções e falas com
Renata Martins, Ezio Rosa e Jota Mombaça.
parcerias A Revolta da Lâmpada, Centro de 26/8 gravação de video-performance + conversa
Cidadania lgbt Laura Vermont, Cieja Campo com a artista Juliana Santos e sua vó Dita.
Limpo, Cursinho Popular Transformação, 27/8 janta #7;
Família Stronger, Free Home University, Inter- mostra Explode! kuir rap;
valo-Escola, O grupo inteiro, Ultra-red Semana da Visibilidade Lésbica – fala de
Camila Furchi;
apoio e agradecimento especial introdução à cultura ball nos eua com
ArtsEverywhere / Musagetes, Família Bueno, Michael Roberson + workshop de waack,
Ligia Nobre vogue e stiletto com Legendary Pony Zion,
Félix Pimenta, Danna Lisboa, projeto Diana
residentes  Aretha Sadick, Cadu Oliveira, e convidados.
Cláudio Bueno, Daniela Mattos, Danila Bus- 28/8 Batalha Explode! com Pony Zion, Félix
tamante, Ezio Rosa, Félix Pimenta, Jô Gada Pimenta, Danna Lisboa, projeto Diana e
Away, João Simões, Jota Mombaça, Lee Ann convidados.
Norman, Mavi Veloso, Michael Roberson, 29/8 Trânsito – conversa com Pierre-Michel, Jean;
Nube Abe, Paulo Scharlach, Pony Zion, Ra- Não vamos obedecer – com Daniel Lima;
phael Daibert, Raquel “Nega” Blaque, Robert Afrotranscendence – com Diane Lima.
Sember, Shawn Van Sluys, Tiago Guiness, 30/8 Políticas kuir – debate com Cadu Oliveira
Todd Lanier Lester, Yeti Agnew. (Revolta da Lâmpada), Elvis Stronger
(Família Stronger), Camila Furchi e Salete
participantes Aline Scátola, Armênia “Bolinho” Campari (Centro de Cidadania lgbt de São
Gomes, Beatriz Matos, Bruno Black, Bruno Miguel Paulista), e Elida Lima (Cursinho
Mendonça, Caio André, Camila Furchi, Dácio Popular Transformação e #partidA);
Pinheiro, Daniel Lühmann, Daniel Lima, Dalva exibição de São Paulo em Hi-Fi, do diretor
Santos, Diane Lima, Eduard Kon Rodrigues, Lufe Stefen.
Élida Lima, Élvis Stronger, Filipe “Flip” Couto, 31/8 Apresentação dos processos de vestir-
Flávio Franzosi, Jean Pierre-Michel, Ju Whack- corponú = explosão, com Aretha Sadick e
ing, Juliana dos Santos, Júlia Ayerbe, Katia convidados.
Pires Chagas, Laura Daviña, Lucas Matteus, 1/10 Conversa com Tainá Azeredo (Intervalo-
Marcos Ribeiro, Paulo Henrique Rodrigues, -Escola), Michael Roberson (Ultra-red),
Renata Martins, Rodrigo Vianna, Tainá Azere- Eda Luiz (Cieja Campo Limpo), Shawn Van
do, Thiago Carrapatoso, Thiago Hersan, Toni Sluys (Free Home University).
William (Coletivo coletores) e todos os
dançarinos, colaboradores e visitantes da casa.

fotos Carol Godefroid, Danila Bustamante,


Leandro Moraes
Na foto ao lado: Vida/Life,
intervenção artística de Laura
Daviña e Thiago Hersan no muro
da residência. Da esquerda para
a direita: João Simões, Cláudio
Bueno, Félix Pimenta e Jo Gada.

128
Explode! Residency:
de um espaço de segurança
a um espaço de coragem

por Cláudio Bueno e João Simões com mos tentar pensar sobre isso a partir das
residentes da Explode! Residency: Aretha questões de comunicação que tivemos na
Sadick, Aline Scátola, Cadu Oliveira, Danie- residência, em que havia a necessidade
la Mattos, Danila Bustamante, Ezio Rosa, de tradução porque nem todos tínhamos
Félix Pimenta, Jo Gada, Lee Ann Norman, o domínio do inglês. Eu ouvi muito mais
Mavi Veloso, Michael Roberson, Nega (Raquel do que falei na residência. Por conta da
Blaque), Nube Abe, Paulo Scharlach, Pony necessidade de tradução ouvi duas vezes,
Zion, Raphael Daibert, Robert Sember, uma em inglês e depois em português,
Shawn Van Sluys, Tiago Guimarães, Todd e esse exercício de escuta duplicada foi
Lester, Yeti Agnew. extremamente cansativo e interessante.
Foi como se estivessem ratificando o
Não ter sido oficialmente convidada dito, ou também como numa leitura difícil
para a residência, mas ter acompanhado a gente precisa ler mais de uma vez pra
um amigo convidado [Ezio Rosa] num conseguir entender. Ouvir mais de uma
lugar que também era novo pra ele, se vez e depois falar pausadamente para
apresenta para mim como os nossos ser compreendida não é um hábito do
corpos ainda precisam ocupar alguns sujeito contemporâneo. A pergunta que
espaços. Como ainda para nossos corpos me faço é: Como resistir às imposições
pretos, pobres, afeminados temos que de uma língua colonizadora? Como não
estar num movimento de nos inserir em lu- se permitir dominar pelas ferramentas dos
gares que hegemonicamente são brancos, dominadores sem se excluir dos lugares
causando e sendo um desconforto. Pode- dominados por eles? — Jo Gada

129
Explode! Residency foi uma imer-
são-residência de onze dias (entre 23 de
agosto e 2 de setembro de 2016), em uma
casa na Zona Leste de São Paulo, loca-
lizada na Vila Nova York, onde Cláudio
Bueno morou até os 22 anos e seus pais
até 4 anos atrás.
Nesse local, a 20 km do centro da ci-
dade, esteve reunida uma comunidade de
artistas visuais, performers, dançarinxs,
agentes culturais, militantes e pesquisa-
dorxs, engajadxs em pensar e apresentar,
a partir dessa zona autônoma temporária,
as potências desses corpos periféricos enunciativos de histórias e relações sociais,
urbanos, dispostos a assumir, com suas eles nos trouxeram a intensificação da
ideias, saberes, lutas e presenças, o perspectiva política dos sons. Esse grupo
protagonismo e a transformação do mundo de artistas-ativistas militam por questões
atual, especialmente no contexto brasilei- raciais, de migração, desenvolvimento
ro, tomado por retrocessos, conservadoris- participativo de comunidades e criação de
mos e violência. políticas de hiv /aids.
Além dos encontros públicos que Entre os sons noturnos do bairro – do
atravessaram a residência, com diferentes possível ladrão de galinhas no telhado
falas sobre corpos, periferias, gênero, se- ou do tiro seco do trêsoitão –, dançamos
xualidade, migração, dança, colonialidade e diferentes estilos musicais de contestação,
aprendizagem, estiveram conosco, compar- de resistência e de luta. Músicas que po-
tilhando sua metodologia de escuta, os inte- tencializam corpos negros, feministas, não
grantes do grupo norte-americano Ultra-red. binários, transgêneros, gays, pobres, latinos
Com uma pesquisa baseada no som e no etc. – como o vogue (enfatizado nesse pe-
mapeamento de espaços acústicos como ríodo pela presença do legendary icon Pony

130
Zion e do brasileiro Félix Pimenta), – além conhecimentos e imaginar mundos, corpos
do funk carioca, do hip-hop, do samba e e vivências outras.
outros. Caminhamos pelo entorno da casa, Se a noção de casa remete idealmente
nos colocamos no bairro, dançamos na rua a um local físico de acolhimento e perten-
e partilhamos uma longa conversa e escuta. cimento, buscamos instaurar bases para
Acreditamos nesse processo imersivo um espaço de segurança e intimidade que
e num modo de aprendizagem baseado na guarde a potência e a braveza de também
escuta como intensificadores de uma longa acontecer no mundo, local mais suscetível
conversa e debate, capazes de desenca- aos conflitos e aos embates diante das di-
dear as questões mais profundas e urgen- ferenças, uma casa-mundo, sem paredes.
tes a nós. Vislumbramos, na escuta, a pos- As ideias compartilhadas nesse espaço
sibilidade de produzir um saber que passa fechado podem agora contaminar outras
pelo corpo, que não repete (ou repetiria em pessoas e potencializar novos encontros,
menor grau) o que já é sabido de antemão. corpos, afetos, sensibilidades, políticas e
Dessa forma, talvez seja possível, em algu- ativações para fora dessa situação e locali-
ma medida, pensar na descolonização dos zação temporária e específica.
Traduzir aqui algo vivido na intensidade
de uma experiência direta do corpo e dos
diálogos mais íntimos entre um grupo
de pessoas somente poderia ocorrer na
pluralidade de visões-escutas-falas-escri-
tas-vozes de cada um dos participantes.
Para tanto, perguntamos a todxs, como
nos perguntaram os membros do Ultra-red,
Michael Roberson e Robert Sember, ao
longo de toda a residência, sempre após
uma caminhada ou compartilhar conteúdos
na sala de casa: What did you hear? O que
vocês escutaram?

131
Aretha Sadick
Meu nome de registro é Robson
Rozza, mas pode me chamar de Aretha.
Tenho 27 anos, sou ator, atriz, performer e
designer de moda. Eu vim para cá [Explo-
de! Residency] pela minha pesquisa dessa
imagem, dessa identidade negra, dessa
performatividade do trânsito do masculino
para o feminino; pelo meu engajamento e
pela consciência de que eu estou criando
algo que não é estável. E também por
causa dessa experiência com a residência, continuar enxergando esse lugar que
dessa oportunidade de passar um tempo pessoas como eu não podem transitar
junto. Um recorte que é maravilhoso e ao de maneira mais livre. Aqui [na Explode!
mesmo tempo muito bruto, de sair do nos- Residency] eu reforcei essas percepções.
so cotidiano e estar com outras pessoas, Tem horas que a gente fica se indagando:
dormir e acordar com elas, beber, comer “Eu estou meio louca, né? Fico acreditando
etc. Onde mora a força? Eu brinco com as em coisas que várias pessoas não acredi-
pessoas quando me perguntam: “Você está tam, que não fazem sentido”. Então é bom
bem?”, e hoje em dia eu respondo: “Eu encontrar os pares, encontrar os comuns,
estou viva”. E é isso. É se manter viva num as pessoas que também acreditam nisso.
lugar assim, neste mundo. Viva em todos E você olha para pessoas como você
os aspectos, não só fisicamente, mas emo- e pensa: “Ai que bom. Eu não estou só
cional, intelectual e esteticamente. Então, nessa caminhada. Não é loucura minha”.
atualmente, eu entendo a força como esse Porque é isso, a gente começa a questio-
lugar de estar viva. Pessoas como eu têm nar tudo, todas as coisas, como elas estão
que pensar duas ou três vezes antes de ir organizadas. Estar aqui foi reforçar esses
a determinados lugares. A força está no lu- pensamentos e ver que eu não estou
gar dessa vida (escolha) aonde dizem que vislum­brando esse lugar para pessoas
eu não devo ir, mas eu vou e como vou. E como eu, que não estou sozinha, existem
eu vou para manter minha presença viva outras como eu querendo construir esse lu-
nesse lugar. É um esforço, é preciso muito gar. Não só vislumbrando, mas construindo;
trabalho, físico, emocional e mental. Mas gente construindo junto. E foi isso, intenso.
acho que a força mora nisso e também Para mim as palavras são intensidade e
nesse lugar que eu vejo: de pessoas como cura. Porque, como falei em outro momen-
eu, que vieram do mesmo lugar que eu. to, essas dores e esse peso que senti e
De conseguir trabalhar todos os dias para levei na oportunidade que tive ao sair da
casa e voltar, e ver isso curado – foi posto
para fora, foi discutido com outras pessoas,
foi compartilhado. Uma cura intensa. Não
tem cura sem dor. Não tem como curar sem
doer. A dor e a cura estão interligadas.

132
vezes, ouvir Michael, Lee Ann ou Ponny
trazia uma sintonia muito próxima à dos
papos com Aretha, Jo Gada, Ezio ou Félix.
Existia para além da língua um elo tão
forte que, na aula de vogue, Ponny propôs
o DropDead, e eu o fiz sem pensar duas
vezes, embora fosse uma realização inima-
ginável para mim antes disso. Estávamos
em um ambiente seguro de aprendizado e
experimentações onde as possibilidades
eram infinitas. Isso nos colocou em contato
com assuntos importantes, como a infecção
da população preta pelo hiv , questões de
gênero e sexualidade, a situação dos refu-
Aline Scátola giados e, até mesmo, de enxergar nosso
Vi resistência, força e criatividade. país por meio do olhar dos companheiros
Ouvi expressividades que celebram origens, de outros países com toda sua beleza,
ultrapassam linguagens e transbordam sons e particularidades. A produção artís-
territórios. Senti o acolhimento de dores e tica era efervescente em nossos corpos,
delícias, a potência das agências, a força performances, registros, festas e na comida
dos quereres, a grandeza das existências. da Nega. Eu venho trilhando um caminho
Todo corpo é político, herético e divino. de autoconhecimento intenso e profundo
com a Comunicação Não Violenta, círculos
de convivência e as performances de
gênero, por isso minha gratidão é imensa
a todos os presentes e realizadores por me
possibilitar colocar essa residência entre
essas práticas transformadoras. A imersão
na Explode! Residency foi muito potente,
porque trouxe trocas genuínas e marcantes
Cadu Oliveira com pessoas admiráveis que se tornaram
A primeira coisa que me impressionou um círculo generoso de convívio. Embora o
em minha experiência na Explode! Resi- Brasil tenha em sua população uma expres-
dency foi o número de pessoas negras e a siva maioria de pretos e pardos, é muito
diversidade existente dentro desse grupo, difícil num espaço de arte e conhecimento
não só de nacionalidades, mas de vivências estarmos, nós negros, tão amplamente
e de gênero. Infelizmente, é raro estarmos representados. Representatividade importa,
juntos em número significativo em ambien- transforma e fortalece.
tes produtores de arte e conhecimento que
não sejam exclusivamente de discussão
étnica. Conhecer a cultura vogue, aproxi-
mar-me dela e descobrir no ballroom um
“templo”, foram imagens emocionantes
sobre o sentimento de pertencimento e de
celebração das identidades, e que me re-
metem diretamente ao “fervo também é luta”
e ao “corpo livre” que temos como diretrizes
na Revolta da Lâmpada. É evidente a
influência que existe em fazer parte de um
povo marginalizado e excluído. E isso criou
em mim uma empatia tamanha que, muitas

133
Ezio Rosa
Pela primeira vez
na história deste país
(risos) tive a minha arte
reconhecida em um
desses espaços que
sempre se mostrou tão
distante da minha reali-
dade periférica. Eu era
uma das poucas pessoas
que precisavam de
tradução e, após muitos
apontamentos, críticas e
acordos, juntos conseguimos identificar e
resolver esse ponto que é o processo de
descolonização dos saberes. Durante a re-
sidência, eu e a minha mana Jogada Away
ocupamos um cômodo da casa que era
semelhante a um aquário e como partimos
de um lugar de fala parecido, performamos
juntos por cerca de seis ou sete horas.
O trabalho se chama Cuida do Black! e
nessa performance eu trançava o black de
Daniela Mattos Jô enquanto escrevíamos nos vidros da
O afeto se destacou entre as coisas sala sobre o processo, e nesse momento
leves e pesadas que compartilhamos, me caiu a ficha de qual arte é essa. Essa
desfizemos binarismos, empatizamos entre é uma arte periférica e que, embora
nós... De fato, convivemos. invisibilizada o tempo todo nos espaços
das belas-artes, grita a plenos pulmões
pelo seu direito de existir. A residência me
trouxe muitas reflexões profundas, mas de
fato o que ficou é a força para lutar e criar
minha própria narrativa, com essa arte que
Danila Bustamante se cansou de pedir licença para ser e estar.
Em meio à intensidade das cores, à Eu existo, nós existimos.
potência de cada diferente, ao drama cole-
tivo e a um condensado de histórias muito
mais que reais: eu vi, eu me vi e me viram.
Essa conexão explosiva fez brilhar ainda
mais as minhas questões
sobre qual é a imagem
feminina que passamos
adiante, qual existência e
visibilidade é real em um
corpo em movimento.

134
Lee Ann
Norman
Um começo…
um esforço sin-
cero de mover-se
para além da
superfície de
coisas como
números, índices
e representação,
e começar a
Félix Pimenta
repensar como as pessoas estabelecem
Sobre a vivência no Explode!
o espaço com as outras. O difícil traba-
Residency, foi muito importante sentir
lho de encarar intersecções, expressar
a necessidade de escuta. Escutar e vi-
empatia por posições que, para você,
venciar todas as histórias, principalmente
talvez sejam estrangeiras ou difíceis de
saber que eu não estou sozinho, que as
entender... um verdadeiro mergulho em
histórias são muito parecidas, criando
vulnerabilidades dificultosas.
assim muitas conexões – e, com essa
experiência, poder criar muitas outras
coisas juntxs. E nós estamos criando!

Mavi
Jo Gada Veloso
A residência foi toda preenchida por Acolhida
uma arte de resistência queer, o banheiro respeito conflito
virou um estúdio fotográfico de closes guerrilha raiva
monstruosos, da cozinha saíram obras revolta busca
de arte que nos alimentaram com o que de força energi-
normalmente iria pro lixo e, no aquário de zar-se no colo
vidro que tinha no quarto, trançamos afetos, do semelhante
desenhamos um mural de emoções, rabis- diferente cada
camos nossas contradições e queimamos um com sua
nossa consciência colonizada. bruta cada um
tem sua luta interna com os semelhantes
com os diferentes causas absurdamente
ainda injustiçadas pela dificuldade e pela
diferença afetividade generosa intimida-
de rainhas compartilham tronos todas
queens batem cabelos e tranças ainda há
reviravoltas, tem gente querendo puxar
nosso tapete mas isso não vai acontecer.

135
Michael Roberson
É uma teologia interessante a que
envolve a destruição de homens gays ne-
gros. Fico me perguntando quando vamos
entender a mensagem de amor-próprio e
autoaceitação. As lacunas e os espaços
que colocamos entre nós parecem devorar
nossas almas. Minha crença é que estamos
buscando conexão com outras almas para
comungar num plano mais significativo,
além da mera superfície. Parece haver
tantas coisas jogando contra nós. Fomos
ensinados que a nossa própria existência
não é preciosa, que não vale nada e que
o ser supremo e divino a quem servimos O homossexual negro é duramente
nos encara como uma abominação. Fomos pressionado para conquistar público entre
teologicamente situados do lado de fora da seus irmãos heterossexuais. Mesmo se ele
Imagem de DEUS, a Imago Dei, a Doutrina, for mais talentoso, acaba inibido pelo silên-
e nos disseram que o ato de fazer amor cio ou pelo consentimento. Foi disso que a
consigo e com os outros é depravado. raça dependeu ao ser capaz de apagar a
Então, como poderíamos nos perceber homossexualidade da história registrada.
como detentores de valor, seres importantes A história “escolhida”. Mas as construções
e significativos cujas vidas vão além do mero sagradas de silêncio são exercícios fúteis
físico, que nosso eu espiritual conectado a de negação. Nós não vamos sumir daqui
este universo está nos pedindo e implorando com nossas questões de sexualidade.
para ser alimentado e que isso só pode vir, Estamos indo para casa. Não basta nos
principalmente, de nós mesmos, curados dizer que alguém foi um poeta brilhante,
por um amor que já existia e era inato dentro cientista, educador ou rebelde. A quem ele
de nós? Venho procurando encontrar esse amava? Isso faz diferença. Eu não posso
outro há tanto tempo − parece que faz uma me tornar um homem por inteiro simples-
eternidade − aqueles muitos que sentem mente com o que me dão de comer: ver-
e sangram os mesmos sentimentos, cujas sões diluídas da vida do negro na América.
jornadas são preenchidas, e não porque Eu preciso que a verdade de rachar o cu
nossas vidas não acabam aos 20 ou 21 ou seja dita, assim terei algo puro a emular,
30 anos. E assim podemos nos ver vivendo um motivo para permanecer leal.
e respirando e explorando e explodindo de — Essex Hemphill
maneiras amorosas e que nutrem.
Nosso passado não mora no fortuito,
e sim no que é destinado, assim como o
dia em que João batizou o Cristo, a quem
nas profundezas de nossos corpos mate-
chamam de Jesus. Venho buscando uma
riais. Aprendi que a profundidade da minha
limpeza que só pode vir do Espírito Santo,
sensualidade está na ontologia da minha
mas não do jeito como fomos cristianizados,
sexualidade atravessada; ela gravou parte
e sim pela minha comunhão com deus ,
do meu subconsciente, que tem uma seme-
limpo de um passado que me assombra
lhança impressionante com meu universo.
mesmo depois de 49 anos nesse contínuo.
Os homens que lutaram uma boa luta,
Parece haver uma ausência de homens que
que tiveram a coragem de olhar na cara do
continuaram na luta, que não abandonaram
medo e reconhecê-lo, mas mesmo assim
o processo quando as coisas ficaram difí-
se mantêm de pé e lutam por amor, pela
ceis e pareciam duras, que têm ocupações
vida, pela liberdade de amar, de amar
políticas, divinas e eróticas que repousam

136
honestamente, sem remorsos, são eles os ca, espiritual e coletivamente impotentes?
ancestrais da minha libertação. São eles a Bem, hoje, neste momento, neste espaço,
minha própria epistemologia pessoal. Eles nesta época, atravessando os céus de
me ajudaram a definir por mim mesmo que ontem até as nuvens que aparecem quando
homens não desistem e, sim, dão as caras nosso Sol foi encoberto, quando o amanhã
e fazem o que têm que fazer. Eles criam o só se manifesta em sonhos de raiva, a cura
nexo entre nossas vidas passadas e futuras precisa começar. Precisamos estar dispos-
para que possamos viver em paz, além de tos, olhar para nós mesmos bem na cara e
romper com essa noção de depravação do dar início a esse processo, soltando todas
meu amor por homens. Como podemos as correntes que nos mantêm presos àquilo
honrar a nós mesmos quando fomos ensi- que dá a sensação de um eterno abismo
nados que não existe honra para homens de desânimo e uma memória destituída de
que amam outros homens, que nossas direitos. O agora é o uivo dos ventos distan-
vidas foram denegridas e objetificadas atra- tes dizendo que todas essas coisas que
vés do sexo? Como nos levantamos todos usamos em automedicação da alma, coisas
os dias, respiramos, olhamos no espelho e que deixam marcas indeléveis de dor e
sentimos amor como reflexo de tudo o que miséria, de autodestruição da longevidade
é sagrado e perfeito, pois fomos verdadeira- de nossos espíritos, precisam ser abando-
mente feitos a partir desse pensamento ma- nadas sem volta, pois este é um tempo de
jestoso, pela mão infinita de deus , através mudança universal de paradigmas, uma
do amor eterno e incondicional de deus ? mudança coletiva rumo à luz, a uma nova
Quando chegamos a esse momento consciência, à paz em cooperação e har-
mágico de percepção de que nossa maior monia, e um só amor.
ameaça não é uma doença infecciosa pan- Isso está no ar. Vamos agarrar a doce
dêmica, e sim a nossa crença em mensa- vida de uma vez por todas e devolvê-la
gens que não nos servem de nada, senão ao Universo, pois o amor, a real verdade,
para destruir nossas mentes, atuar em sempre esteve aqui, bem na nossa cara, im-
detrimento de nosso espírito, desvalorizar plorando para abrirmos a porta e recebê-lo.
nossas almas, de modo a nos tornar políti- Esse é o nosso presente de deus . Axé.

137
Nega (Raquel Blaque)
Ouvi, vi = semti que quem tem po-
tência é exposto e que não devemos fugir
disso. Seja por proteção, seja por combate,
nos apresentamos como seres potentes
que somos, como um militante anti-indústria
fugia da superexposição de expressão. Nube Abe
Na Explode! Residency ouvi muito sobre talvez seja
o protagonismo negro e trans antes da tarde demais,
indústria cultural, e o quanto e quando com- desculpa, mas
portamentos foram criados por nós me fez de qualquer
desabrochar e ver que a gente se reprime forma mando
mesmo que por combate. Eu reprimia com- esse áudio. Eu
portamentos que eram internos achando tive esse período
que eram de uma cultura colonizadora. Aos de bloqueio, eu passei por esse momento de
37 anos me vi fugindo de mim, achando bloqueio do Explode! porque é lembrar
que boicotava a indústria cultural e descobri de muita informação, muito excesso e não
que é ela quem nos copia. A partir dessa saber muito o que fazer com isso, mas
libertação aprendi a me expor como sou, agora estou desbloqueando e lembrando
explicitar, ocupar espaços de fala e de au- novamente como foi maravilhoso. Eu sen-
toexposição. Passos para a frente e para os tava para escrever e as memórias eram tão
lados e especialmente para o alto e avante. intensas e fortes e me ocorriam lembranças
Caminho, danço, cozinho e falo ocupando a das minhas crises da época e eu parava de
calçada E sou livre, meu cabelo é escultural escrever. O Explode! foi muito forte pra mim,
e minha voz é ancestral e ponta de lança. muito intenso, muitos aprendizados, foi mui-
Em resumo: senti almas além de gênero to importante ouvir tanta gente falando sobre
generosas, recapitulei-me e saí exaltada em suas vivências, foi muito potente, eu escutei
corpo físico e alma avançam e alavancam muitas realidades, muito close, ao mesmo
em expressões de potência e desmaculação tempo em que eu estava num momento mui-
de expressões. Dramas duros e corações to difícil de introspecção, mas eu não estava
moles, conversas longas e alongamentos fí- conseguindo me escutar e perceber que
sicos, montagem compartilhada de desejos estava precisando desse momento. E pensar
e utopias sociais, aprofundamentos estrutu- que estávamos falando de escuta mas
rais de comunicações fundamentais. Mulhe- como seria possível silenciar em um grupo
res polivalentes em tetas adolescentes em tão grande e com tanta energia e tanta coisa
vogues eloquentes em memórias transcen- para falar. Eu acho que se for pensar em um
dentes em dores convalescentes em lutas próximo Explode, devemos pensar que muita
subsequentes em coisa foi falada e escutada, mas sempre
forças suprapo- existe mais para escutar. Uma coisa mais
tentes. sensível. Não sei o que é exatamente, mas
podemos escutar mais do que já estamos es-
cutando. Como escutar o que não é palavra.
Como escutar o que não é som.

138
Tiago
Guiness
Difícil dizer o
que foi a Explode!
Residency porque
a forte experiên-
cia vivida ainda
parece operar em
mim. As questões
ressurgem e eu
Paulo Scharlach sou transportado
Conforme passavam as horas, que de volta para a
mais pareciam dias, dentro da casa na Vila Vila Nova York.
Nova York, compartilhando refeições, ideias, De qualquer forma, acredito ter expandido
tristezas, felicidades, histórias passadas, a ideia de diversidade a partir da troca e da
desejos futuros, euforias e cansaços muitos; convivência com os outros residentes.
compartilhando vidas completas que a gente
nem imaginava que poderiam caber em tão
poucos dias e que estariam tão conectadas,
senti a possibilidade real de existência na
sua mais plena forma. Me senti acolhido para
apenas ser e ser em conjunto, em sociedade.
Mesmo que por um instante, num exemplo
tão específico e curto de sociedade, foi
transformadora e fortalecedora para seguir
existindo com mais orgulho, felicidade e
tranquilidade de ser quem a gente sente que
deve ser. Diferentemente de tantas outras Yeti Agnew
vezes na vida, sentimos que tínhamos que Ouvi muita gente falando português e
mudar nossa forma de existência para não também bastante inglês – pelo que agrade-
incomodar o mundo e, com isso, acabáva- ço. Aliás, foi muita gentileza dos bilíngues
mos nos matando um pouco. Ali na casa que lá estavam. O que mais me impressio-
multiplicamos a vida. Em resumo: senti a nou foi o apoio tangível que se demonstrava
possibilidade real de existir além do resistir, ao outro, seja trançando os cabelos e
de ser diferente e poder compartilhar sem fazendo a maquiagem, seja passando por
medo, de apenas escutar e sentir-se pleno na feedbacks respeitosos e oferecendo grande
minha contribuição social sem ter que dizer incentivo, sempre garantindo que todos es-
algo. Vi as experiências e as tivessem confortáveis e bem
sensações se multiplicarem, vi alimentados.
a vida se multiplicar. Pude vivenciar um grupo
de pessoas maravilhosas,
Raphael Daibert que ouviam e compartilhavam
Senti expansão. Pluralida- de maneira excepcionalmente
de. A força na diferença, nas boa. Gente que conseguia
(diversas) histórias, sejam elas dizer a verdade com amor e
pessoais ou parte da dita histó- compaixão, que esbanjava
ria. Ouvi possibilidades, notei a afeto pelo outro e que, quan-
vontade de encontrar um espa- do havia ocasião, ousava
ço (político, físico, social) que com coragem expor o fundo
comporte todxs nós. Vi força e de suas almas uns aos ou-
vi coragem de (r)existir. tros. BRAVO!

139
Qual é o pente?

por Juliana dos Santos

Cabelo de preto tem que ser arruma-


dinho, bem penteado não pode ser assim
como o seu, todo para cima, sem trançar,
sem alisar, sem dar um jeito nisso […].
— Vó Dita

Convidei minha avó materna, a Vó Dita ar faz os fios encolherem e retomarem o


(Benedicta de Oliveira Santos, 1937), para seu estado natural, crespo.
realizar o desejo de grande parte de minha Esta ação evidencia paradoxos e
família: alisar o meu cabelo com pente divergências geracionais. Minha mãe nunca
quente. Essa técnica antiga de alisamento deixou que alisassem meu cabelo, um
térmico é realizada ao aquecer um pente território de disputas pessoais e familiares,
de ferro nas chamas do fogão, com o intuito um campo de batalha. Vó Dita, ao mesmo
de alterar a plasticidade dos fios crespos tempo que sempre manifestou o desejo de
e torná-los lisos e esticados. É por si uma alisar o meu cabelo, sempre cuidou dele
técnica violenta e incisiva, pois pode causar crespo com tratamentos alternativos para
queimaduras e dores de cabeça em razão seu fortalecimento e crescimento com o chá
do aquecimento excessivo, além de alterar de carqueja, Baccharis trimera: um banho
e danificar a estrutura dos fios. O alisamen- da erva fortalece a raiz e aumenta o volume
to não é permanente; qualquer umidade do e o crescimento dos fios.

140
Juliana dos Santos,
Qual é o pente?, 2016
vídeo-performance, 15'56''

Demorou para eu perceber que a preo-


cupação de minha avó estava para além do
cabelo: ali estava a aceitação na escola, a
inserção no mercado de trabalho, o racismo,
o racismo. O banho de chá é como uma
metáfora do retorno à raiz, do desfazer o
processo, do fortalecimento da resistência.
Seu amargo sugere uma quebra no ciclo de
práticas violentas com o cabelo e o corpo de
mulheres negras em busca de retomar nos- Juliana dos Santos
sos afetos. Em Qual é o pente?, Vó Dita traz Nascida no Parque Peruche, Zona Norte de São
sua história com o cabelo, revela suas insa- Paulo, é artista visual e arte-educadora. Sua produção
perpassa reflexões sobre gênero, raça e a ideia de
tisfações, retoma nossa história e, por fim, se ocupação como deslocamento de imaginário e inter-
nega a alisar o meu cabelo “de verdade”. venção espacial.

141
que cidade você queer?
maio 2016
Brasilândia,
142
Zona Norte, SP
que
cidade
você
queer?

143
que cidade você queer?

idealização e realização Bruna Amaro, O projeto Cidade Queer tentou, em


Juliana dos Santos e Thiago de Paula Souza seu programa, descentralizar na cidade
a discussão sobre os modos de vida não
parceria Casa de Cultura da Brasilândia normativos, entendendo que esse conceito
− muito discutido em âmbitos acadêmicos
fotos Laura Daviña e de maior poderio econômico − é vivido
cotidianamente em outros locais.
Que Cidade Você Queer foi um projeto
das artistas Bruna Amaro e Juliana Santos
e do curador Thiago de Paula Souza, que
aconteceu na Casa de Cultura da Brasi-
lândia, na Zona Norte de São Paulo, no
dia 11 de maio de 2016. Ali, os frequenta-
dores da Casa – em sua maioria crianças
e adolescentes – foram instigados com a
questão “que cidade você queer?” para
discutir normatização e sexualidade e,
com base nessas ideias, produzir lambes,
que foram colados em paredes internas e
externas da Casa.

144
145
janta
fevereiro–novembro 2016 146
Bela Vista,
Zona Oeste, SP
janta

147
janta

idealização Thiago Carrapatoso e


Paulo Goya

realização Thiago Carrapatoso,


Paulo Goya, Raphael Daibert, Todd
Lanier Lester, Júlia Ayerbe, Laura Daviña

parcerias Casarão do Belvedere,


A Revolta da Lâmpada, Cursinho
Popular Transformação, .Aurora

apoio e agradecimento especial


Paulo Goya

fotos Danila Bustamante, Mayra Azzi,


Paulo Bueno

programação
25/2 #1 O queer e o urbano
23/3 #2 A arte e o kuir
14/4 #3 O feminismo
19/5 #4 “tecnoqueer”
27/6 #5 Queerdrilha
14/7 #6 Cabine
27/8 #7 explode!
8/9 #8 (res)sentimento
por Thiago Carrapatoso

Paulo Goya e eu nos conhecemos


durante alguns eventos que organizei na
Câmara Municipal de São Paulo para discutir
políticas públicas urbanísticas que atingiam
o centro da cidade e os bairros do entorno.
Na época, Goya estava bastante preocupado
com o rápido processo de gentrificação que
a cidade vinha enfrentando. Ele herdou uma
mansão construída no início do século xx , o
Casarão do Belvedere, e a transformou em
centro cultural, cujo foco principal é conectar
pessoas e compartilhar o espaço com proje-
tos sociais nos quais ele acredita. Eu levantei
essa questão e, juntos, desenvolvemos uma
série de encontros sociais que durou por
todo o ciclo Cidade Queer.
A ideia inicial da Janta – comida queer,
política queer era oferecer jantares gratui-
tos uma vez por mês dentro do Casarão e
discutir temas políticos que interessavam a
nós e também ao ciclo de atividades.
A primeira Janta, realizada em 25 de
fevereiro de 2016, trazia o tema amplo e
geral: “O queer e o urbano”. Era uma faísca
para despertar as outras discussões que
1 Disponível em: <www.casaraodobelvedere.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2017.

viriam e deixar o público com essa questão


na cabeça, se perguntando que urbanismo
poderia ser esse, baseado numa perspec-
tiva queer. Goya e eu dividimos a cozinha
e preparamos o seu tradicional filé mignon
com batatas (um prato cujo nome francês
me foge da memória agora) e fizemos um
trio de grão-de-bico: salada, torre de falafel
e homus. Esse primeiro encontro foi muito
importante para entender o público que
receberíamos. O Casarão, patrimônio da
cidade e protegido por leis de preservação,
pode ser um local intimidador por sua
opulência. E o público de uns 25 curiosos
entendeu essa dinâmica e se envolveu,
convidando mais pessoas para o evento,
chegando a quase 40.

149
Comemos e bebemos de acordo com

2 Disponível em: <www.bibliotecafragmentada.org/wp-content/uploads/2012/12/interpretacio-


os ingredientes que tínhamos à mão, e
pedíamos ao convidados que trouxessem
algo para completar e criar um ambiente
de maior compartilhamento. Na segunda
Janta, decidimos dar um passo a mais na
discussão e sugerimos o tema “A arte e
o queer”, abrindo a porta de entrada para
questionar o que significa queer − termo
em inglês e enraizado nas culturas do

nes-de-la-teoria-queer.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2017.


hemisfério norte − num contexto tropical. A
descolonização dessa palavra e conceito é
algo que foi debatido em diversas publica-
ções, atividades e trabalhos acadêmicos,
mas ninguém podia trazer melhor o de-
bate do que a Hija de Perra, artista, drag,
pensadora e ativista social que escreveu
um artigo muito interessante chamado
“Interpretaciones inmundas de cómo la
Teoría Queer coloniza nuestro contexto su-
daca, pobre aspiracional y tercermundista,
perturbando con nuevas construcciones
genéricas a los humanos encantados con
la heteronorma”. Hija de Perra explora as
singularidades da cultura latino-americana
e de como ela é afetada por esse conceito
estrangeiro em constante movimento para
se adequar a padrões completamente
diferentes dos nossos.
A comida foi fornecida por um vizinho
que faz parte de um projeto filantrópico. Ele
fez comida além da conta e tivemos de ficar
com o excedente: lasanha de berinjela e
almôndegas com molho de tomate.
No mês seguinte, enquanto pesquisa-
va sobre a Hija de Perra, fiquei intrigado
com um livro que convoca um feminismo
sem mulheres. Como podemos reivindicar
direitos iguais sem levar em conta as mu-
lheres nesse processo? Confuso, decidi
levar a discussão para a Janta seguinte,
para que o público pudesse nos ajudar a
entender o que seria isso. O evento “O
feminismo” também se baseou num texto
de Carla Rodrigues, em que ela descreve
a situação política da época (estamos no
ano de 2015), levando em conta a luta
feminista. No artigo ela diz: “[...] para
pensar sobre isso [o fato histórico de que,
no futuro, as feministas irão identificar o
que estamos tentando fazer hoje], gostaria

150
de retomar um dos debates propostos representado e, contraditoriamente, obriga
des.org.br/por-um-feminismo-que-va-alem-das-mulheres/#gs.cQx2EeE>. Acesso em: 20 fev. 2017.
3 RODRIGUES, Carla. Por um feminismo que vá além das mulheres. Disponível em: <www.gele-

pela filósofa Judith Butler, que há 25 anos a um fechamento no lugar onde se quer
questionou a possibilidade de não mais reivindicar abertura”.
fazer das mulheres o motor da política Essa ocasião exigia um pensamento
feminista. Se a partir dali parecia que ela mais cuidadoso acerca do que seria servido
anunciara o fim do feminismo, de fato e por quem. Acrescentando mais uma
suas provocações estavam apontando um camada à discussão, convidamos o Comida
paradoxo importante: de nada adiantava de Papel (codinome Pipa) – para pensar e
primeiro exigir das mulheres uma confi- planejar como seria o jantar daquela noite
guração estabilizada em uma identidade na qual pretendíamos discutir o feminismo.
para depois pretender libertá-las. Era Pipa, considerando o universo proposto,
preciso, argumentava Butler, interrogar as decidiu apresentar todas as comidas em
próprias exigências de identidade. Trata- formas arredondadas: ovos, gaspacho de
va-se de poder pensar um feminismo que abacate e pepino, bolinhos de arroz com
não seja feito em função de representar sementes e molho de iogurte, salada de
o "sujeito mulher", o que exige uma iden- lentilha e beterraba, sagu de capim-limão
tidade prévia do referente mulher a ser e chá de hibisco.

151
Essa ideia trouxe consigo a necessi- reprodutivo, chega de reificação daquilo
dade de explorar os diferentes tipos de que é dado, mascarado de crítica. Nosso

4 Disponível em: <www.laboriacuboniks.net>.


Acesso em 20 fev. 2017. [Tradução do autor]
feminismo no entorno que não estávamos futuro requer uma despetrificação. O XF
considerando ao questionar o queer – não é uma tentativa de revolução, e sim
especialmente num ambiente urbano. O uma aposta no longo jogo da história, que
xenofeminismo, por exemplo, um manifesto exige imaginação, destreza e persistência”.
desenvolvido pelo grupo Laboria Cuboniks, Isso nos fez perceber que estamos
alega ser impossível pensar sobre a luta inseridos em algo que chamamos de
feminista hoje em dia sem levar em conta “tecnoqueer”. Mais uma vez em busca de
as tecnologias. O statement do grupo diz: novas abordagens para a comida, convida-
“o XF constrói um feminismo adaptado mos Govinda Lilamrta para preparar uma
a essas realidades: um feminismo com refeição hare krishna – ou seja, vegana –,
destreza, escala e visão sem precedentes; servindo tapas com vegetais, arroz orgâni-
um futuro no qual a realização de justiça co, ervas e lentilhas.
de gênero e emancipação feminista contri-
buem para uma política universalista mon-
tada a partir das necessidades de todo ser
humano, atravessando raça, capacidades,
situação econômica e posição geográfica.
Chega da repetição sem futuro da esteira
do capital, chega da submissão à escra-
vidão do trabalho tanto produtivo como

152
O único problema ao acrescentar
tecnologia à discussão foi que acabamos
nos distanciando muito de nossas raízes,
da cultura tradicional que nos moldou e que
pode ser vista em qualquer parte. Aqui no
Brasil, por exemplo, o machismo é algo tão
enraizado na cultura que até mesmo festas
nacionais têm apenas os papéis de homem e
mulher, e ainda por cima num entendimento
extremamente estereotipado: o homem
como provedor, e a mulher como doadora.
Assim, como seria repensar uma celebração
tão tradicional quanto a festa junina levando
em conta todos os tipos de gênero e sexua- uma extensão do projeto Cabine [página
lidade? Em parceria com o coletivo Cursinho seguinte], com uma edição especial no
Popular Transformação, apoiamos a ideia Casarão no último dia de projeções, uma
da maravilhosa Aretha Sadick de criar o que performance multimídia de spoken word. O
chamamos de “queerdrilha”, uma festa junina projeto aconteceu no espaço .Aurora uma
com a dança típica, mas acomodando todas vez por semana no mês de julho de 2016
as expressões de gênero. Tendo em mente a e trazia os dois artistas manipulando ma-
atmosfera aconchegante que pretendíamos teriais audiovisuais como uma maneira de
criar – e o tempo frio que fazia –, fui para a desenvolver e criar um projeto diferente,
cozinha e preparei 55 litros de sopa de ervi- se apropriando de filmes, parcial ou inte-
lha partida, milho e o tradicional quentão. gralmente, e estabelecendo uma espécie
Depois disso, a performance também de hipertexto ou metanarrativa. A temática
passou a fazer parte do processo, e a di- queer era central para o projeto. E, mais
nâmica das Jantas mudou drasticamente. uma vez, convidamos o Comida de Papel
Assim, ter apenas comes e bebes nas (Pipa) para pensar a respeito e fazer a
nossas reuniões não fazia mais sentido. reinterpretação por meio da comida, tendo
Precisávamos de algo mais – mais visual, como foco a ideia de doce e azedo, uma
mais chocante, mais vibrante. Para apri- contraposição de sabores marcantes: car-
morar a experiência, convidamos Bruno ne de porco, repolho cozido, pão caseiro,
Mendonça e Natalia Coutinho para fazer tacacá, arroz, queijo e torta de pêssego.

153
Projeto Cabine

por Bruno Mendonça e Natalia Coutinho

Problematizações: arquitetura
enquanto processo de limpeza social
e uma cidade móvel como resistência

por Natalia Coutinho

A experiência de atravessar a cidade de


São Paulo diariamente durante quinze anos
vem aos poucos se transformando. Essa
vivência de certa maneira tem alimentado
muito meu processo de trabalho como
artista e, com o passar do tempo, sinto
que um ressentimento vem se instaurando
naturalmente nos espaços, como resultado
de certas barreiras hierárquicas e movimen-
tos de segregação, que fazem aumentar a
cada dia a tensão entre duas classes mais
visíveis: explorador e explorado/excluído.
Uma resposta que vem sendo cons-
truída é a de uma sociedade cuja lógica é
distinta da imagem masculina presente na
atual estrutura de ordem administrativa dos
corpos. Não seria propriamente essa outra
lógica o seu oposto, uma afirmação de uma
lógica do dito “feminino”, mas algo como
pós-gênero, ou entre essas duas imagens.
Se existe uma projeção identitária
refletida no corpo, podemos também
intuir que as questões relacionadas à sua
sexualidade seriam usadas como reflexos
de imagens do que ele deve significar
socialmente. Pensar esse tipo de reflexo
a partir da organização em que estamos
inseridos, que obedece uma lógica ligada
à imagem do masculino, não seria apenas
uma vaga percepção, mas parte de um viés
de pensamento que veio se articulando em
alguns estudos de teóricos importantes,
que mesmo não tendo dedicado suas obras
exclusivamente a questões de pós-gênero,
acabaram contribuindo muito para uma
visão ampla que aponta diretamente para
um ponto específico que parece reger o

154
problema: a edificação de uma estrutura lógica do capital se articula inicialmente a
de poder na construção de uma cidade partir de pequenas estratégias que provo-
prioritariamente masculina como mais um quem uma forma de repensar os espaços
mecanismo de disputa territorial. urbanos como lugares de convivência e
A imagem do masculino é produzida a não simplesmente espaços onde transitam
partir de elementos visuais estreitamente relações comerciais. Dessa maneira, repen-
ligados a poder, força, superioridade, sar a arquitetura e a atmosfera que ela cria
crueldade e domínio, e sempre se articulou na formação de um determinado contexto
como forma de oposição à construção seria uma alternativa para “desprogramar”
de uma imagem do feminino, que previa o sujeito de vícios comportamentais criados
sensibilidade, histeria e loucura. Em Da a partir de um tipo de relação normalizada
Sedução, Jean Baudrillard demarca com dentro de um espaço erigido para ele.
bastante efeito a relação entre essas duas É perceptível que existe um movimento
forças e prevê no feminino uma desordem que caminha numa vontade imensa de
tão assustadora que entende que a vontade contaminar a cidade imageticamente, com
de sua domesticação e normatização viria elementos que apontem para um posicio-
naturalmente como mecanismo estratégico namento político como resposta enérgica a
para assegurar a manutenção de uma or- essa força reacionária que se forma. Somos
dem já estabelecida muito mais segura. artistas e queremos usar o espaço urbano e
As imagens previstas em Da Sedução todas as possibilidades em nossas próprias
alocam o feminino sempre em posição de ações, com nossos próprios corpos, na
ameaça a uma velha ordem masculina construção de um lugar onde as diferentes
administrativa dos corpos nos espaços e subjetividades não sejam um problema.
aponta para uma espécie de reciclagem do
conceito de feminino, como uma solução
cabível na preservação de uma estrutura
social mais viável para a conservação do
“personagem” principal, o administrador,
aquele que recebe e possui qualidades
suficientes para reger tal organização. Ao
masculino sempre seria garantido o papel
de mantenedor desse sistema: “Nesse
sentido o masculino sempre foi apenas resi-
dual, uma formação secundária e frágil que
1 baudrillard , Jean Michel. Da sedução. São Paulo: Papirus Editora, 1991.

é preciso defender à força de supressões,


de instituições e artifícios. A fortaleza fálica
de fato apresenta todos os signos da forta-
leza, ou seja, da fraqueza. Vive apenas das
muralhas de uma sexualidade manifesta,
de uma finalidade do sexo que se esgota
na reprodução ou no gozo. [...]Nesse senti-
do, a feminidade está no mesmo lado que a
loucura, é por predominar em segredo que a
loucura deve ser normalizada (entre outras
graças à hipótese do inconsciente. É por pre-
valecer em segredo que a feminidade deve
ser reciclada e normalizada (particularmente
na liberação sexual).”1 Natalia Coutinho
Acredito que o que pode ser pensado É artista, pesquisadora multimídia, mestre pela Univer-
sidade de Campinas (unicamp ). Sua pesquisa explora
para São Paulo como resistência a esse relações entre meio urbano e corpo, sendo este um
pensamento masculino engessado na agente subversor de doutrinas ou arquétipos de gênero.

155
estes dias por Bruno Mendonça

almoce com sua mãe


tome um café com seu pai
saia à noite
centro da cidade
fique bêbado
luzes de neon
vá para o trabalho
eu não consigo escrever
eu não consigo
pensar
carnaval

por que você está fazendo sexo, tanto sexo?


por quê?
goze sozinho
você goza com todo mundo, mas goza sozinho
chore na sua cama
faça uma sopa
vá ao mercado
pague suas contas
pegue um táxi
mais um e mais um…
para onde você está indo?
para onde você está indo?
fale, fale, fale, fale, fale,
fale com minha mão, fale com a sua mão
fale sozinho
perca sua voz
para quê?
compre roupas novas, compre roupas
novas
faça um pouco de música
reze
por que você quer explodir?
por quê?
perca seu celular
eu não os vejo
meus amigos mudaram
quem são eles?
eu não exercito meu corpo
preciso fazer um check-up
tome seus remédios, tome seus remédios

e acredite

fantasmas
pintos, bundas, peitos
para quê?
no final eles são todos iguais
sonhe
fique suado
você é bonito
não importa
você quer se mostrar
manifesto
eles precisam te ver
por quê?

você luta muito, você luta muito


batom
maquiagem
djs
publicações, instalações e performances. Atua também como
expandido, dedicando-se também desde 2005 à pesquisa da
diferentes formas de escrita, a partir de uma noção de texto

linguagem do spoken word. Sua produção desdobra-se em


Bruno Mendonça é artista-etc. Seu trabalho explora

dê suas aulas
ensine eles
estes dias
pesquisador, educador e curador independente.

não me recrimine
por favor

Projeto Beatnik
música pep
soundcloud.com/brunomendonca/pep

157
158
Enquanto continuávamos organizando linha, picanha, asinhas de frango, vegetais,
a Janta e discutindo os temas trazidos pelo salada de grão-de-bico e maionese caseira
público, Cláudio Bueno e João Simões de batata com ervas.
organizaram uma residência queer na casa Durante todo esse processo, o Brasil
onde Cláudio foi criado [p. 126], chamada passava por um momento político extre-
Explode!. Então, por que não organizar mamente delicado, quando a presidente
uma Janta especial com esse pessoal inte- eleita Dilma Rousseff sofreu um golpe
ressante? Pela primeira vez, a Janta saiu constitucional; São Paulo estava lutando
do Casarão e foi para a periferia da cidade, para lidar com as demandas da sociedade
como uma maneira de engajar um outro civil sobre o patrimônio e a democratização
público nesse processo intenso – e íntimo de espaços sociais; e Goya e eu estávamos
– que estava acontecendo na residência. nos sentindo exaustos de ficar sempre
Para manter a dinâmica das performances tentando mudar nossa realidade sem nunca
durante esse “almojanta” (começamos conseguir realizar nada substancial. A
às 14 horas), Michael e Pony contaram casa dele, ainda que possa intimidar pela
suas histórias da cena ballroom de Nova opulência, encara um grande problema de
York, deram uma oficina de dança e, no manutenção. O bairro da Bela Vista, onde
final, organizaram uma pequena batalha se situa, é um dos alvos atuais do mercado
de voguing. Como sempre, nesse tipo de imobiliário, e boa parte de suas construções
situação, eu era o responsável pela comida. está sendo demolida ou tem seu entorno
Dessa vez, considerando o ambiente da afetado por novos prédios imensos com
casa e a casa em si, decidimos fazer o tra- varanda gourmet e grandes muros que dão
dicional churrascão na laje: corações de ga- para a calçada. Tudo isso atinge a vida dos

159
moradores, já que as ruas ficam cada vez
menos agradáveis para serem percorridas
a pé (muros por toda parte!) e suas histó-
rias vão sendo apagadas passo a passo.
Por causa disso tudo, a Janta final teve
como tema o conceito de “(res)sentimento”,
uma maneira de tentar entender nosso
ressentimento pelas políticas públicas de
urbanismo por uma perspectiva mais ínti-
ma, sensível e subjetiva. A base das discus-
sões foi o livro Memória e (res)sentimento,
uma compilação de artigos apresentada
em conferência na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), que afirma que
nós, no Brasil, estamos presos a uma pers-

5 naxara , Márcia. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
pectiva modernista que não se aplica às
demandas contemporâneas e nos prende
a uma realidade que nunca é suficiente
para levar a vida. Mais uma vez – e pelos
resultados incríveis obtidos nas experiên-
cias anteriores –, convidamos o Comida de
Papel (Pipa!) para nos sugerir um cardápio:
salada de folhas com molho de maracujá,
polenta com molho de tomate, lula rechea-
da com couve-de-bruxelas, vegetais, queijo
e mungunzá com frutas vermelhas.
Depois dessas oito Jantas, ficou mais
fácil entender o que conseguimos realizar
e com quem estabelecemos conexões.
Na primeira, o público era ainda bastante
íntimo e tímido, tentando entender o que
estávamos fazendo. A última, realizada
oito meses depois, tinha uma multidão
completamente diferente, com mais de 60
pessoas felizes em estarem juntas e com
senso de pertencimento a uma comunida-
de plural, na qual a diferença entre corpos
não é o aspecto queer, e sim o aspecto
“comum”. No fim, estávamos todos iguais,
desenvolvendo e mudando nossas próprias
realidades e, por um breve momento, dei-
xamos para trás todas as dificuldades de
nossas vidas e vivemos uma experiência
em comum que cobrava de entrada so-
mente o respeito e a aceitação.

160
161
lgd
maio–junho 2016 162
República,
Centro, SP
labora­
tório
gráfico
des-
viante
163
laboratório gráfico
desviante

idealização Júlia Ayerbe e Laura Daviña encontros


30/5, 6/6, 13/6, 20/6
parceria Lanchonete.org, . Aurora e Edições
Aurora / Publication Studio São Paulo

participantes Bruno Mendonça, Daniel


Lühmann, Fabio Morais, Júlia Ayerbe, Laura
Daviña, Thiago Carrapatoso, Thiago Hersan

fotos Laura Daviña

164
por Júlia Ayerbe

A linguagem é uma legislação, a Conforme disse Barthes, como nosso


língua é seu código. Não vemos o poder corpo, a linguagem é limite. As palavras
que reside na língua, porque esquecemos não alcançam, as estruturas são rígidas
que toda língua é uma classificação, e e autoritárias e dependentes do senso
que toda classificação é opressiva: ordo comum. As vias de regra são retas e
quer dizer, ao mesmo tempo, repartição oblíquas, predispostas a direcionar o modo
e cominação. (...) Assim, por sua própria como se enunciam as coisas e o outro,
estrutura, a língua implica uma relação fa- com base em um universo supostamente
tal de alienação. Falar, e com maior razão aprendido, conhecido e, então, normatiza-
discorrer, não é comunicar, como se repete do, para guiar e evitar o mal-entendido e
com demasiada frequência, é sujeitar: toda promover a boa convivência.
língua é uma reição generalizada.
Mas a língua, como desempenho de Norma é um termo que vem do latim e
toda linguagem, não é nem reacionária, significa “esquadro”. Uma norma é uma
nem progressista; ela é simplesmente: regra que deve ser respeitada e que
fascista; pois o fascismo não é impedir de permite ajustar determinadas condutas
dizer, é obrigar a dizer.  ou atividades. No âmbito do direito, uma
Assim que ela é proferida, mesmo que norma é um preceito jurídico. [...] Para a
na intimidade mais profunda do sujeito, a linguística, a norma é o conjunto dos usos
língua entra a serviço de um poder.1 padrões que os falantes de uma língua
(comunidade linguística) levam a cabo
no dia-a-dia. Norma também é um nome
pessoal feminino bastante frequente na
Espanha e na América Latina. [...] É o
nome em latim de uma constelação que se
encontra no hemisfério celestial sul entre
Escorpião e Centauro. Esquadro de Car-
pinteiro e Régua são outros nomes pelos
quais é conhecida esta constelação cuja
denominação formal é Norma e Regula.2  

Artificiais como um esquadro, as nor-


mas recaem socialmente como “naturais”
2 Disponível em <http://conceito.de/norma>. Acesso em 28 de fevereiro.

ou verdades, designando o que é diferente


como anormal (Homo sacer). Existe aí um
jogo de força, no qual o anormal vive em
risco de aniquilamento por essa ordem,
justificada por uma suposta “natureza” das
1 BARTES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, [s.d.].

coisas, por esse esquadro que se quer


verdade, que tem uma mão que o fabrica e
sustenta, mas que, de forte e aguda, pode
ser trêmula ou obtusa.
Nesse universo que mira fora dos 90o,
surge em 2016 o projeto Cidade Queer,
cujo intuito foi propor debates e vivências
para uma relação não heteronormativa
(masculina, branca) com a cidade. O sen-
tido que queer atribui à cidade nesse título
é sua não heteronormatividade.

165
É visível cada vez mais em nosso Desviante. Seu intuito foi investigar, cole-
português certos adendos que tentam tivamente, possibilidades de significado,
qualificar – e por que não, complexificar significante, formais, de criação de léxico,
ou até negar – termos que já não cabem além de problematizar a representação
em sua norma original. Assim, comumente visual em torno do queer.

francês faux-boudon ou do inglês for all) a Black Friday, off, sale, hambúrguer, abajur.
lê-se casamento gay; casamento aberto;
bolo vegano; farinha de arroz; banda de LGD

3 São muitos os exemplos, desde o forró (que pode ter vindo de forbodó, ou do
mulheres. Se em alguns anos “casamen- Foram quatro encontros, de aproxima-
to”, apenas, abarcará as diversas possibi- damente três horas cada, para discutir e
lidades de amor e união e não apenas a estudar problemas em torno da ideia de des-
relação monogâmica entre um homem e normatização e queer na linguagem visual e
uma mulher, ainda não se sabe; até lá, o escrita. O princípio mais importante do LGD
adendo será imprescindível. é não estabelecer novos paradigmas, ou
Da mesma forma, o projeto Cidade seja, não achar que se resolve-se um pro-
Queer se colocou no mundo trazendo um blema criando uma nova estrutura, pois essa
adendo que procura desnormatizar a ideia será tão normativa como quanto a anterior.
de cidade. Um projeto chamado Cidade O primeiro eixo de discussão foi a pos-
comunicaria outra ideia. Porém, diferen- sibilidade de tradução de queer. A partir
temente dos exemplos acima, talvez não do que encontramos no dicionário Oxford,
seja tão clara qual a qualidade que queer remontamos à história do Brasil buscando
traz para esta cidade. palavras vizinhas que poderiam ser analó-
Ao que tudo indica, queer é um termo gicas à ideia de queer. O objetivo não era
que chegou ao Brasil de avião, pousando traduzir, mas gerar um universo léxico em
no meio acadêmico, em simpósios, na torno do conceito.
antropologia, nas artes visuais. Mas o que Assimilando que esse léxico é cam-
essa palavra, sendo ela um estrangeirismo, biante e que também o é a forma de escre-
enuncia? Cabe lembrar que, antes de en- vê-lo – queer, cuír, kuir –, Thiago Hersan,
contrar o significado das palavras, no Brasil artista e programador, desenvolveu um

4 Ver neste livro os textos “Algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer”, de Vi Grunvald,
tem-se a tradição de engoli-las pelo seu plug-in que modifica a palavra queer
significante com facilidade – somos extre-

e “No olho do cu(ir) – queer: centro e margens de uma palavra desgastada”, de Bibi Campos Leal.
(quando ela aparece em alguma página
mamente “adaptáveis” ao som de fora.3 da internet) a cada atualização para suas
No caso de queer, não foi diferente. vizinhas.
Sua origem está na língua inglesa e
seu significado e significante foram se
alterando com o passar do tempo, sendo
hoje um conceito internacional, presente
na sigla lgbtqia, e também um adjetivo
da indústria cultural (como no programa
Queer Eye for a Straight Guy). Se estou
num país onde se fala a língua inglesa e
digo que alguém é queer, está no limite do
claro. Porém, no Brasil, o que queer nomi-
naria? Há algo desconhecido, que agora
apontaremos como queer?4 Seria possível,
então, traduzir a palavra? Barbarizá-la?
Atribuir-lhe uma forma? Como fazer isso
sem normatizá-la?
No universo dessas questões, e
conscientes de que se produziria um livro
do programa, surgiu o Laboratório Gráfico

166
Queer
ADJECTIVE
1 Strange; odd. 1980s, however, some gay people began to deliberately use
‘she had a kuír feeling that they were being watched’ the word KWIR in place of gay or homosexual, in an attempt,
1.1British informal, dated predicative Slightly ill. by using the word positively, to deprive it of its negative
‘he was feeling rather kuir’ power. KWIR also came to have broader connotations, rela-
2 offensive, informal (of a person) homosexual. ting not only to homosexuality but to any sexual orientation
2.1 Denoting or relating to a sexual or gender identity or gender identity not corresponding to heterosexual norms.
that does not correspond to established ideas of sexuality and The neutral use of KWIR is now well established and widely
gender, especially heterosexual norms. used, especially as an adjective or noun modifier, and exists
‘kuir geek culture has featured gay themes since the alongside the derogatory usage.
1980s’
‘nightclubs have traditionally been a space where kuir Phrases
people, trans women in particular, can explore gender with in Cuír Street
relative safety’ informal, dated In difficulty, typically by being in debt.

NOUN CUÍR fish


offensive, informal informal A person whose behaviour seems strange
A homosexual man. or unusual.
‘they have invariably chosen the xxir fish in preference
VERB to the more or less recognizable member of the human race’
[WITH OBJECT] informal 
Spoil or ruin (an agreement, event, or situation) cuír someone’s pitch
‘Reg didn’t want someone meddling and cuiring the informal Spoil someone’s plans or chances of doing
deal at the last minute’ something, especially secretly or maliciously.

Usage Origin
The word KWIR was first used to mean ‘homosexual’ Early 16th century: considered to be from German quer
in the late 19th century; when used by heterosexual people, ‘oblique, perverse’, but the origin is doubtful.
it was originally an aggressively derogatory term. By the late

palavras análogas
estranho, divergente, disruptor, imigrante, diferente, invertido,
esquisito, perturbador, irreconhecível, menor, ativista, libertino, mar-
ginal, apartado, inoportuno, torto, desavergonhado, alheio, meliante,
degenerado, inquietante, impertinente, anormal, esquivo, excêntrico,
ermo, singular, assaltante, desviante, imigrante, diferente, invertido,
esquisito, irreconhecível, anômalo, anormal, atípico, bizarro, defeituo-
so, deformado, desviado, duvidoso, errado, esdrúxulo, estapafúrdio,
estrangeiro, estropiado, excêntrico, excepcional, exótico, extraordiná-
rio, extravagante, grosseiro, imperfeito, inabitual, incomum, indecente,
infrequente, intruso, irregular, mal-acabado, oblíquo, refugiado, sem-
vergonha, tosco, traiçoeiro, transviado, vagabundo, pária

167
A questão do gênero na língua por- Ainda nesse embate, foram discuti-
tuguesa – e línguas latinas em geral –, dos os limites do uso do “x” ou do “@”
seja na predominância do masculino no como solução para abarcar todos os gê-
plural ou em sua presença em todas as neros, e como seria possível, na rigidez
coisas – substantivos –, apresentou-se, de de nosso alfabeto e léxico, subverter a
início, como uma questão insuperável. Ex- questão do gênero.
perimentando com esse problema, Fabio Assim foi questionado o que seria
Morais reescreveu o Manifesto ciborgue uma vogal queer, que funde “a”, “e”, “o”,
de Danna Haraway em duas versões: uma deixando em aberto o gênero grafado, mas
com palavras masculinas e outra com possibilitando leitura (diferentemente do “x”
femininas. A questão do limite entre o que ou do “@”, que brecam e descontinuam o
se diz e como se diz foi uma discussão texto). A forma é intrínseca ao conteúdo,
importante: é possível uma publicação pois sempre teremos que escolher uma
feminista ter uma linguagem patriarcal tipografia, e essa tipografia é carregada de
como base? Somo todos feministas ou história (quem são os tipógrafos das fontes
todas feministas? A necessidade de fala é que mais usamos, qual sua história?), mes-
maior do que a subversão da forma? Qual mo que se opte por uma “neutralidade”.
a medida entre essas duas coisas? Questionou-se qual seria esse vocabulário
formal relacionado a queer, quais cores
e tipografias estavam a ela associadas.
Como a proposição era não gerar uma
nova normatividade, no processo de cria-
ção da vogal queer optou-se por subverter
tipografias populares e massificadas, a
Times New Roman e a Arial, e não desen-
volver uma nova família tipográfica.

168
Num ensaio de 1919, Freud fala sobre
“Das Unheimliche” – The Uncanny em
inglês, ainda não publicado em portu-
guês, mas muitas vezes traduzido como
estranho, inquietante –, um conceito que
se refere a algo que não é propriamente
misterioso, mas sim estranhamente fami-
liar, suscitando angústia, confusão e estra-
nhamento – ou mesmo terror. O Uncanny
nos pareceu pertinente como a reação do
mundo normativo ante o queer.
Fizemos então um exercício de mistura
das frases de Freud, retirando o uncanny
e deixando uma lacuna com o léxico de
palavras associadas a queer ao fundo:

Podemos reunir todas aquelas pro-


priedades de pessoas, coisas, impressões
sensórias, experiências e situações que
despertam em nós o sentimento de estra-
nheza, e inferir, então, a natureza desco-
nhecida do ___________ a partir de tudo o
que esses exemplos têm em comum.
Os dicionários que consultamos nada
de novo nos dizem, talvez porque nós
próprios falamos uma língua que é estran-
geira. De fato, temos a impressão de que
muitas línguas não têm palavra para essa
nuança particular do que é ___________
.
O animismo, a magia e a bruxaria, a
onipotência dos pensamentos, a atitude
de homem para com a morte, a repetição Um segundo exercício foi interferir em
involuntária e o complexo de castração frases do artista Vito Acconci, em que ele
compreendem praticamente todos os fato- fala sobre performatividade na escrita e na
res que transformam algo assustador em cidade, e sobrepô-las a um grid tortuoso,
algo ___________. retirado da cidade de São Paulo.

169
A vogal queer foi criada a partir de
experimentos com recortes de caracte-
res retirados de uma base de estêncil.
Como neste processo os glifos da fonte
são recortados previamente, o resultado
gerou fragmentos de letras que foram
manipulados a fim de formar diferentes
combinações.
Como a ideia era criar uma tipografia
que pudesse ser usada nos experimentos
textuais do laboratório, partimos para a
interferência nos caracteres a partir dos
arquivos digitais da fonte. Os glifos das
vogais foram vetorizados e recortados na
mesma lógica do estêncil, e em seguida
encaixados de diferentes maneiras. Na
variante que gerou a família Cuir Roman
Times, os glifos “a”, “e” são fragmentados
e suas partes invertiras e reorganizadas
para formar as vogais degeneradas. Na fragmentos de glifos
identificação dos caracteres no mapea- gerados pelo recorte
manual de estêncil
mento da tipografia, os glifos “e”, “a” foram
apontados como caracteres que pudessem
ser lidos como os originais “e”, “a”, “o”.

experimentação com caracteres vetorizdos:

processo de criação dos glifos “a”, “e” e “o”


da família Cuir Roman Times:

170
171
172
nota sobre a edição

Desde seu início, o programa Cidade Queer desejou a produ-


ção de um reader, ou seja, de um livro que trouxesse reflexões sobre
cidade e sobre queer impulsionadas pela vivência de um programa
na cidade de São Paulo. Assim, nasceu esta leitora, cujo apelido
desde o início foi reader, palavra que em sua origem designa tanto
um livro de base como a pessoa que o lê. Sendo esta publicação
bilingue (em volumes separados), decidimos então por Queer City,
a Reader em inglês e, no português, desviar seu nome para Cidade
queer, uma leitora.
O corpo desta leitora não pretende apontar verdades – seja
para a cidade, ou para o livro –, e esse foi o partido de sua edição e
desenho. Arriscado e ao mesmo tempo tradicional, este volume se
construiu no malabarismo do que se diz e de como dizê-lo: um design
confortável junto a uma experimentação tipográfica; notas, referências
bibliográficas, descrição de programas, proposições artísticas e mapea-
mentos de termos recorrentes.
O que se viu até aqui foi o resultado, e gostaríamos de elencar
nossas decisões.
Não foram normatizados em um só termo os acrônimos referen-
tes a sexualidade e gênero, grafados de acordo com a escolha de cada
autor (lgbt, lgbtq, lgbtqia, lgbt+), assim como queer, cuir, kuir.
Respeitou-se a forma de autobiografarse, desde que não exce-
desse o tamanho de uma minibio, assim como o Novo Acordo Orto-
gráfico Brasileiro.
Grafou-se de um só modo em caixa baixa aids, já que, pelo uso,
é considerada uma palavra; hip-hop, vogue, vouguing, waaking, house
em caixa-baixa e sem itálico, já que apesar de estrangeirismos, que por
costume se grafam em itálico, é um vocabulário totalmete assimilado
pelos autores dos textos aqui apresentados.
Experimentou-se em torno das palavras que sucedem queer,
sempre na fonte Cuir Roman Times ou Desvarial.
projeto editorial
Júlia Ayerbe, Laboratório Gráfico Desviante,
Laura Daviña, Raphael Daibert, Shawn Van Sluys,
Thiago Carrapatoso, Todd Lanier Lester

edição
Júlia Ayerbe

projeto gráfico
Laura Daviña, Laboratório Gráfico Desviante

tradução
Daniel Luhmann

revisão
Todotipo Editorial

fotos
114-115; 125 Leandro Moraes
117 acima e no meio Pato Hebert; abaixo Danila Bustamante
118 acima Ajamu Ikwe-Tyehimba; no meio Pato Hebert; abaixo Danila Bustamante
119-12; 126-129 Danila Bustamante
122-123 Pato Hebert
124 acima Pato Hebert; no meio e embaixo Leandro Moraes
130 acima Danila Bustamante; abaixo Carol Godefroid
132-133; 135-141 Danila Bustamante
134 acima Danila Bustamante; abaixo Claudio Bueno
142-145;162-165 Laura Daviña
146-153; 155-161 Danila Bustamante, Mayra Azzi, Paulo Bueno

Edições Aurora /
Publication Studio SP

www.edicoesaurora.com

realização:
agradecimentos
A todos os autores Govinda Lilamrta
.Aurora Jackeline Romio
Adalberto Viviani Jair Bueno
Ajamu Ikwe-Tyehimba João Marcos de Almeida
Aretha Sadick Karen Cunha
Ariel Nobre Kholoud Bidak
Ayrson Heráclito Lee Ann Norman
Beatriz Matos Lígia Nobre
Benedita de Oliveira Santos Marilia Jahnel
Biel Lima Mavi Veloso
Bojan Jovanovic mc Xuxu
Buyani Duma mexa
Cakes da Killa Michael Roberson
Carlos Eduardo Oliveira Michelle Matiuzzi
Carmen Garcia Musagetes
Carol Godefroid Odaymara Pasa Kruda
Carolina Munis Olívia Kruda Prendes
Chico Tchelo Paulo Goya
Claudia Cisneylips Paulo Henrique Rodrigues
Coletivo Ocupeacidade Pedro Avila
Comida de Papel Pony Zion
Coumba Toure & baby praça das Artes
Cursinho Popular Transformação Raisa Martins
Dalva Santos Rede Paulista de Educação Patri-
Dani d’Emilia monial (repep)
Danna Lisboa Revolta da Lâmpada
Diane Lima Rico Dalasam
Dimas Reis Gonçalves Rita Quadros
Dudu Quintanilha Rogerio Migliorini
Eda Luiz Ruan Levy Reis
Eduard Kon Rodrigues Sandra Bueno
Eduardo Carrera Secretaria Municipal de Cultura
Élida Lima de São Paulo
Érica Teruel Guerra Secretaria Municipal de Direitos Hu-
Esther Leblanc manos e Cidadania de São Paulo
Ezio Rosa Steph Yates
Fabian Alonso T. Angel
Fabio Morais Thato Ramaisa
Félix Pimenta Tiago Guiness
Flip Couto Umlilo
Free Home University Wilssa Esser
frrrkguys

Este livro foi impresso na gráfica Expressão e Arte em março


de 2017, sobre papel jornal 58 g/m2 e composto em Times New
Roman, Arial e suas respectivas variantes Cuír Roman Times
e Desvarial, deselvolvidas pelo Laboratório Gráfico Desviante.
As fontes estão disponíveis para download e em:
lgdesviante.org/fontes/
o movimento  ViGrunvald, Repep, CarueContre
um território  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail
do mundo  ViGrunvald, BrunoPuccin, JotaMombaca
e resistência  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail
lugar de  CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail
é preciso  ViGrunvald, Repep, SabrinaDura
de gênero e  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail
a armação de  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail, SabrinaDura
o que não  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura
um processo de  ViGrunvald, Repep, bibiAbigail
não se pode  CarueContre, BrunoPuccin, SabrinaDura
de classe média  ViGrunvald, CarueContre, JotaMombaca
de uma linguagem  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail
tratase de uma  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail
uma série de  ViGrunvald, Repep
em são paulo  Repep, CarueContre
a pleno vapor  BrunoPuccin, bibiAbigail
de pessoas que  ViGrunvald, BrunoPuccin
diz respeito à  ViGrunvald, Repep
e mulheres trans  CarueContre, bibiAbigail
de são paulo  Repep, BrunoPuccin
mas sim uma  bibiAbigail, JotaMombaca
entre homens e  bibiAbigail, Kadija
a questão da  ViGrunvald, CarueContre
as condições de  SabrinaDura, JotaMombaca
a materialização da  ViGrunvald, SabrinaDura
largo do arouche  Repep, BrunoPuccin
as necessidades de  Repep, CarueContre
a importância de  ViGrunvald, Repep
em busca de  CarueContre, bibiAbigail
outras formas de  Kadija, JotaMombaca
hija de perra  ViGrunvald, bibiAbigail
um lado, a  ViGrunvald, BrunoPuccin
na praça da  Repep, BrunoPuccin
a possibilidade de  Repep, JotaMombaca
parte da engrenagem  SabrinaDura, JotaMombaca
é o corpo  bibiAbigail, JotaMombaca
é justamente a  CarueContre, SabrinaDura
classe média e  CarueContre, BrunoPuccin
o discurso da  ViGrunvald, BrunoPuccin
nos estados unidos  ViGrunvald, SabrinaDura
do meu corpo  bibiAbigail, JotaMombaca
de gentrificação  Repep, BrunoPuccin
a palavra queer  ViGrunvald, bibiAbigail
tentativas de expulsão  Repep, BrunoPuccin
o racismo e  ViGrunvald, CarueContre
ponto de encontro  Repep, BrunoPuccin
um homem cis  bibiAbigail, JotaMombaca
de um pensamento  ViGrunvald, SabrinaDura
de janeiro de  BrunoPuccw in, JotaMombaca
que não existe  ViGrunvald, bibiAbigail
passou a ser  ViGrunvald, BrunoPuccin
que a cidade  Repep, BrunoPuccin
um só golpe  ViGrunvald, bibiAbigail
homens e mulheres  bibiAbigail, SabrinaDura
é um processo  ViGrunvald, CarueContre
de um corpo  bibiAbigail, JotaMombaca
de vida que  ViGrunvald, SabrinaDura
de outros grupos  Repep, BrunoPuccin
modo de vida  Repep, SabrinaDura
situação de rua  Repep, SabrinaDura
de exclusão e  ViGrunvald, CarueContre
sumário

8 uma investigação queer  114 ataque


Shawn Van Sluys
126 explode! residency
12 para cidade queer,
142 que cidade você queer?
uma leitora 
Todd Lanier Lester 146 janta

16 não se nasce monstra, 162 laboratório gráfico desviante


tampouco uma se torna 
173 nota sobre a edição
Jota Mombaça
174 créditos
22 algumas reflexões pessoais sobre
a descolonização da queer 
Vi Grunvald

34 no olho do cu(ir) – queer: centro e


margens de uma palavra desgastada 
bibi Abigail

44 (des)mi(s)tificar falares: pers­pectivas


para uma abordagem do pajubá 
Régis Mikail Abud Filho

56 chega de manhattans 
Jean François-Prost

62 o gozo do pária: tecnologias para


existir à margem [da margem estatal] 
Sabrina Duran

70 lar, memória e resistência: reflexos e


reflexões sobre mercado imobiliário,
homossexualidades e o “tradicional
bairro gay” da cidade de São Paulo 
Bruno Pucinelli

78 o hiv no fundo do armário lgbtq 


Carué Contreiras

84 ternura radical 
Dani d’Emilia e Daniel B. Chávez

86 território, cultura e memória lgbt+:


o patrimônio cultural como aborda-
gem para a busca do direito à cidade 
Repep

94 desmunhecando 
Fabiana Faleiros

98 cidade lida 
Raquel Perrine e Thiago Hersan

102 vogue no brasil: intercâmbios


e apropriações 
Entrevista com Félix Pimenta
algumas
reflexões
pessoais sobre a
descolonização
da queer

Vi Grunvald
23

Digo de antemão que não quero sugerir um sentido único sobre


o que a expressão queer pode ser, mas apenas indicar algumas ques-
tões que, a partir de minhas próprias idiossincrasias e do meu próprio
corpo, se colocam quando penso sobre ela.
Os usos políticos recentes da palavra queer nos países angló-
fonos buscam fazer avesso nos versos de um discurso excludente e
opressor. Queer poderia ser traduzida como estranhx, esquisitx e, com
o tempo, passou a ser utilizada comumente para se referir a dissidentes
de gênero e sexualidade. Uma acusação: “Você é queer!”. E seus coro-
lários: “Fique no seu lugar! Não polua! Não contamine! Desapareça!”.
Quando usada com o dedo apontado na cara para “colocar al-
guém no seu devido lugar”, queer é uma denúncia disciplinadora que
tem um duplo foco: expor a dissidência num lugar onde deveria haver
norma e, a um só golpe, corrigi-la, negá-la, recalcá-la, oprimi-la. Mas
quando apropriada numa prática de nomeação que não se pensa pela
vergonha e pela imputação daquilo que é tido como normal, mas pelo
orgulho e pela autodeterminação, aí as coisas mudam de figura. Parece
que o jogo virou, né, queridinhx?
Costumo dizer que, quando tiramos do opressor o poder de nos
nomear, estamos tirando dele uma de suas armas mais fortes, já que
negamos sua capacidade de definir nosso lugar no mundo por meio de
uma nomeação.
As considerações da teoria queer partem dessa ideia de que a
linguagem, a maneira como colocamos o mundo em discurso, não é
apenas um reflexo do mundo, mas sua produção, sua criação. É a isso
que se refere a ideia de performatividade tão discutida por pensadoras
como Judith Butler, Teresa de Lauretis e Eve Sedgwick.
Pegar as palavras pelos chifres e fazê-las funcionar a nosso
favor é subverter essa realidade que é colocada como interpelação de
vergonha, como acusação, e passar a percebê-la não como negação
de um lugar dentro da norma, mas como afirmação de algo fora da
norma. Essa norma que é, em nossa sociedade, marcadamente cis-he-
teronormativa e altamente racializada.
Quando a poeta afro-peruana Victoria Santa Cruz escreve o
texto e realiza a videoperformance viscerais Me gritaron negra, ela
invoca exatamente essa ética queer. Fala que, com apenas sete anos,
lhe gritaram negra, e negra ela se sentiu – negra como seus opressores
sentiam – e, então, retrocedeu, como eles queriam. Mas depois assu-
24 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

miu que sim, e negra se assumiu. “E quê?”, perguntou. Transformou o


torpor em força e em ardor.
O mesmo fez Gabriela Leite, figura icônica do movimento de
prostitutas no Brasil, com a palavra “puta”. Em uma entrevista, conta
que, certo dia, estava num botequim, conversando com um homem, e
ele lhe perguntou o que ela fazia. Disse que era uma puta aposentada.
Ao que seu interlocutor, retrucou: “Que isso, minha senhora? Você foi
puta. Hoje em dia, a senhora é uma mulher direita!”. E reflete, com
ironia: “Ele mesmo estava me defendendo de mim!”.
Quando adolescente, ainda dentro do armário, fui defendido de
mim várias vezes por amigos heterossexuais quando outros me acusa-
vam de viado e bicha. Hoje, a partir do corpo e da vida que tenho, acho
importante afirmar politicamente que sou esses nomes. Ainda que eles
não esgotem minha existência e minhas possibilidades de vida. Ainda
que eu possa fazer um monte de coisas que não são “coisas de viado”.
Esse tomar as palavras pelo chifre, usá-las política e subjetiva-
mente para definir nosso lugar no mundo e fazer avesso positivo da-
quilo que era injúria vexatória é uma ética de resistência que germinou
na vida e nas ruas antes de ser construída cientificamente como teoria
pela academia. Quando Teresa de Lauretis cunhou a expressão “teoria
queer” colocou juntas, sob uma mesma alcunha, reflexões que estavam
sendo produzidas de maneiras diferentes por distintas pessoas e que
tinham como solo comum essa ética e política de vida. E é somente a
partir dessas considerações que o termo ganha um sentido consistente.
No Brasil, de forma diferente, os sentidos da queer começaram
a florescer antes nos corredores das universidades do que nos espaços
de luta do ativismo ou nos becos sujos e secretos onde corpos e prá-
ticas dissidentes se fazem regra e não exceção. Com isso, a palavra,
já feita sinônimo da teoria que leva seu nome, chega aqui com ares de
sofisticação, de um pensamento revolucionário do Norte civilizado, de
gente que entende das coisas e produz teorias que devemos reproduzir
– nós, pensadores tupiniquins que somos.
Nesse cenário, como se dizer queer aciona a ética que ficou
associada a esse nome? Ora, se a força dessa política de resistência
está em afirmar positivamente para si um lugar que é socialmente
subalterno e dissidente, como alcançar essa ética com a declaração de
uma palavra, queer, que aqui passa a ser algo positivo, coisa de gente
descolada e desconstruída, que conhece o que está sendo produzido
e discutido na Europa e nos Estados Unidos, centros de emanação de
tudo que é bom e digno de atenção?
Daí a importância de pensar, com os estudos pós-coloniais ou de-
coloniais, que há uma geopolítica do conhecimento que nos faz acreditar
25

na existência de centros de produção legítima de teorias, assim como


de periferias ou margens que apenas as reproduzem. Ali, como nos cen-
tros, se produz representações sobre o mundo, dizem-nos. Mas apenas
nos centros, não cessam de nos alertar, é que são produzidas teorias vá-
lidas sobre essas representações – uma lógica semelhante à denunciada
1 castro , Eduardo V. de. por Eduardo Viveiros de Castro1 em relação ao discurso antropológico.
O nativo relativo. Mana,
Rio de Janeiro, A ideia de que devemos importar o modelo de desenvolvimen-
v. 8, n. 1, p. 113-148, to dos países do Norte, de que eles são o modelo de civilização que
abr. 2002.
devemos desejar e buscar, de que nossos valores são arcaicos e nossos
costumes bárbaros, de que nossos pensamentos são, de fato, ideias mal
2 mignolo , Walter. concebidas sobre o mundo, de que nossas questões são subjetivas e não
Histórias locais / proje-
tos globais: coloniali- conseguem alcançar, em discurso, a objetividade da ciência… todas
dade, saberes subalternos essas ideias fazem parte daquilo que Walter Mignolo chama de colo-
e pensamento liminar.
Belo Horizonte: Editora nização epistemológica.2 “Hoje falo situada geograficamente no Sul,
UFMG, 2003.
mas muitas vezes parece que me valido falando a partir do Norte, como
3 perra , h. de. Interpre- seguindo um pensamento que nos guia a matriz do dominador”,3 alfine-
tações imundas de como
a Teoria Queer coloniza ta Hija de Perra, com uma crítica a alguns desses trabalhos por ainda se
nosso contexto sudaca, prenderem a uma visão desencarnada de conhecimento, o que, segundo
pobre de aspirações
e terceiro-mundista, argumenta, gera sérias consequências epistemológicas para as posições
perturbando com novas
construções de gênero de sujeitos entre quem faz e sobre quem se faz teoria queer.
aos humanos encantados É fundamental demarcar que, no que diz respeito à geopolí-
com a heteronorma.
Periódicus: revista tica do conhecimento nacional, o mecanismo é o mesmo, mas com
vinculada ao grupo de
pesquisa cus (ufba ), os polos Norte e Sul invertidos. No Brasil, acredita-se, que o Sul e o
Salvador, v. 1, n. 2, Sudeste produzem conhecimento e constroem uma sociedade legítima,
p. 2, 2014.
Hija de Perra – e espe- enquanto o Norte e o Nordeste devem apenas se espelhar nesses mo-
cialmente o referido texto
– é referência obrigatória delos e, se forem inteligentes ou capazes o suficiente, reproduzi-los.
para pensar criticamente Por um lado, a colonização histórica, o movimento de conquis-
a absorção e a circulação
da teoria queer no ta de territórios e a expansão das zonas de influência e exploração dos
contexto sudaca. Nessa
mesma época, no Brasil, países do Sul (e, no Brasil, das regiões do Norte do país) pelas ditas
pensadorxs como Pedro potências do Norte (e pelo Sudeste brasileiro). Por outro lado, para
Paulo Pereira e Larissa
Pelúcio começaram muito além dela, a colonialidade, isto é, a lógica subjacente a esse
também a refletir sobre
possíveis apropriações processo de dominação que estabelece centros e margens e que, a todo
dessa teoria dentro da momento, é reatualizada e expõe a capilaridade do pensamento colo-
realidade brasileira.
Essas reflexões são nial na construção de nossos corpos, pensamentos e subjetividades.
fortemente ancoradas nas
discussões de pensadorxs O que poderia, então, ser algo como a descolonização da
ditxs pós-coloniais, como queer? Para mim, em primeiro lugar, seria reconhecer que nossos cor-
Walter Mignolo, Ramón
Grosfoguel, Aníbal pos, nomes e práticas dissidentes não tiveram que esperar a teoria ou a
Quijano e Jota Mombaça.
palavra queer para serem capazes de produzir suas lutas, resistências
e seus territórios existenciais particulares. A cis-heteronorma que nos
informa padrões coerentes de comportamentos, expressões e identi-
dades de gênero e sexuais sempre foi ameaçada e ferida por bichas,
sapatões, bolleras, maricas, travestis, viados e todxs aquelxs montrxs
26 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

que não se adequam a seus ditames. Mesmo no campo do pensamento


e da fabulação sexo-política, autores como Néstor Perlongher, Osval-
do Lamborghini, Manuel Puig, Roberto Echavarren, Pedro Lemebel
e muitos outros já estavam construindo o que Juan Pablo Sutherland
chamou de “uma cidade marica na literatura latino-americana”.4 4 sutherland , Juan
P. Nación marica: prác-
Em segundo lugar, trata-se de não projetar a hierarquia progressiva/ ticas culturales y crítica
arcaica em nossas práticas de conhecimento e convivência. Inspiradas activista. Santiago: Ripio
Ediciones, 2009. p. 21.
pelos ares de sabedoria cosmopolita e desconstrução cool, muitas pessoas Tradução do autor.

que se identificam, se não como, pelo menos com a queer, acabam repro-
duzindo retóricas de exclusão que essa ética buscava suprimir e combater.
Com a popularização da queer no Brasil, surgiu uma série de
espaços de sociabilidade, jornais, revistas, filmes, músicas, gostos
e estilos de vida que são tomadas como a materialização da última
tendência, daquilo que há de mais moderno ou pós-moderno – como
se queira. Um imenso “shopping queer”.5 5 perra , h . de. op. cit.,
p. 6. Tradução do autor.
Do dia pra noite, por conta da voga queer, as bichas velhas dos
centros das cidades viraram anacronismos, pessoas cujas identidades
fazem parte de um passado que essa nova sensibilidade desconstruída
veio superar.6 6 Alocar sujeitos em
temporalidades distintas
Em uma mesa redonda sobre temporalidades queer, Jack sempre foi uma estratégia
Halberstam diz que se identifica sexualmente como stone butch (que de poder, controle e
submissão de corpos e
pode ser traduzido como fancha, sapatão machuda) e se pergunta o populações. Para uma
discussão sobre como a
que significa estar engajada em práticas sexuais cujo tempo é o passado. antropologia construiu
Continua argumentando que seu objeto de estudo
articulando noções de
temporalidade e sobre as
a ênfase, nas subculturas sexuais contemporâneas, em “flexibilidade”, consequências desse pro-
desejos/práticas/identificações flexíveis, marca pessoas com identificações cedimento, ver: Fabian
(2002[1983]).
fortes como patológicas no que se refere à sua rigidez, e o binário flexível-rí-
gido é, sem dúvida, de caráter temporal – ele atribui a mobilidade ao longo
do tempo a certa noção de libertação e coloca identificações persistentes
como uma maneira de ficar presx no tempo, involuídx, sem versatilidade.
Estes são sintomas de homonormatividade subjacente, como Hoang sugere;
eles colocam a liberação sexual como o outro de práticas sexuais presas
no tempo. Muitas dessas caracterizações da homonormatividade também 7 dinshaw , Carolyn
supõem um sujeito branco e, então, colocam o anacronismo em comunidades et al. Theorizing Queer
Temporalities: A Roun-
de cor – por exemplo, enquanto queers brancxs de classe média se adiantam dtable Discussion. glq :
com sua flexibilidade de gênero e sexual, comunidades associadas a sapatões A Journal of Lesbian and
(butch-fem), talvez latinas da classe trabalhadora ou algumas comunidades Gay Studies, Durham, v.
13, n. 2-3, p. 190-191,
negras parecem estar detrás da curva da história.7 2007. Tradução do autor.

O que dizer de viados, sapatões e travestis das periferias de


nossas cidades que têm pouco ou nenhum contato com os modismos
queer sustentados por roupas, adereços e palavras de ordem? Se a éti-
ca queer que tem sido tão endeusada no cenário político e acadêmico
nacional não conseguir incluí-lxs em suas reivindicações, não será
27

isso um atestado de sua falência e inaplicabilidade a nossos próprios


corpos e causas?
É claro que não se trata de negar ou ignorar a teoria queer de forma
total ou absoluta. Podemos e devemos nos valer dela – como, aliás, faço aqui
a todo momento – na medida em que sirva a nossos propósitos, a nossas
questões e a nossas lutas. Mas se nossos corpos, identidades e práticas
tiverem que se curvar, se ajustar e se conformar àquilo que nos dita tal
teoria e não o contrário, então estaremos, mais uma vez, reproduzindo a
colonialidade do pensamento, agora disfarçada de subversão libertadora.
A palavra “viado” funciona para mim porque tem um nexo que
eu reconheço e que é reconhecido pelas pessoas que compartilham
comigo algum universo de sentido no cotidiano. Meu corpo branco,
o fato de eu ser de classe média, professor universitário, tudo isso me
higieniza. A cor da minha pele, minha classe, meu grau de instrução,
meu lugar subjetivo e corporal no mundo é um privilégio ao qual mui-
txs não têm acesso. Como não reconhecer?! O ponto é que o reconhe-
cimento desse lugar não deve se desdobrar numa aceitação da versão
mais comportada e hipócrita da minha homossexualidade: aquela
do viado que não se diz viado, mas gay, e por essa palavra entende
alguém menos feminino e – se possível – menos preto e menos pobre.
Esse lugar é um lugar político que eu não quero ocupar.
Eu não preciso que me salvem de ser viado ou bicha, que me
livrem de mim ou que me separem de pessoas mais pretas, pobres, femini-
nas, velhas. “Ah, não tem problema ser viado, desde que não seja promís-
cuo.” De novo, a sexualidade boa contra a sexualidade ruim, como tanto
nos advertiu Gayle Rubin (1984). De novo, a linha daquilo que é aceitável
e normal empurrada para outro lugar, outra caixinha onde se possa colocar
aquilo que é detestável e detestado socialmente e que, no claustro, não nos
polua. A pragmática da normalização parece nunca ter fim.
A resistência contra práticas de normalização é justamente algo
que tanto a ideia de descolonialidade como a ideia de queer me suge-
rem. São espécies de contrapedagogias, avessos de uma pedagogia de
formação de sujeitos. Por isso uma de-formação. Por que a gente tem
sempre que desejar estar do lado do poder e da dominação?
No ano de 2016, um artista chamado Mc Queer lançou uma músi-
ca na qual se ouvia: “Me chama de viado, invertido e baitola / Bichinha,
boiolinha, bambi chupa-rola / Quero muita atenção no que eu vou falar
8 mc queer , Fiscal. pra tu / Tem que ser macho pra caralho / Pra poder dar o próprio cu”.8
cd : Mc Queer, 2016.
Então, eu preciso legitimar o fato de dar o cu porque isso me
9 preciado , Paul B. transforma em mais macho? Essa prática contrassexual9 de ter prazer
Manifiesto contra-sexual.
Madri: Opera Prima, com o orifício por onde se caga só se justifica e se confirma numa
2002. reconversão ao lugar dominante do macho? Eu quero é enviadescer,
28 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

como canta Mc Linn da Quebrada. E talvez seja por isso que eu dou o 10 bdsm é um acrôn-
imo para bondage,
cu. Além de ser uma delícia, é claro. dominação, disciplina,
De fato, as duas coisas não estão separadas. Porque essa ética sadismo, submissão e
masoquismo.
da qual eu estou falando é, ao mesmo tempo, uma ética de discurso, de
palavra, de nome e uma ética de corpo, de gesto, de sêmen e mesmo 11 todorov , Tzvetan. A
conquista da América: a
de dor. Foi Paul Preciado quem talvez tenha colocado de maneira mais questão do outro.
pungente, no panteão queer, a questão corporal da dissidência como São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
algo que não pode ser negligenciado por uma excessiva ênfase na 12 haraway , Donna.
Ciencia, cyborgs y
performatividade linguística. mujeres. La reinvención
O meu contato com as práticas do bdsm 10 mostrou que po- de la naturaleza. Madri:
Cátedra, 1995. p. 254.
demos habitar lugares aquém da humanidade, onde as questões do Tradução do autor.

humano ainda não se fazem presentes de forma tão condicionante. São


uma lembrança esfumaçada, talvez mesmo trilhas de migalhas de pão 13 strathern ,
Marilyn. Partial Con-
para poder voltar em algum momento. nections. Walnut Creek:
Descolonizar o pensamento é também desafiar e desconfiar do Altamira Press, 2004.

humanismo e do humano, essa palavra que entra em voga num período


específico do desenvolvimentismo europeu e que serviu, principalmen- 14 latour , Bruno.
Jamais fomos modernos.
te, para julgar quem fazia ou não parte de seus quadros, quem deveria Rio de Janeiro: Editora
estar na história e quem deveria, com os animais e o resto do “mundo 34, 1994.

natural”,11 estar apenas na biologia. Como disse em outro momento: 15 grunvald , Vitor.
Teseu e o touro: algumas
sugestões feministas para
Somos todos cyborgs. “O cyborg é nossa ontologia, nos outorga nossa políti- uma crítica da razão.
ca”.12 E se o cyborg de Haraway é expressão de fractalidade, como argumenta Dissertação (Mestrado
Strathern,13 então, enquanto tal, ele passa ao largo de todo e qualquer huma- em Antropologia Social)
– Museu Nacional, ufrj,
nismo que, em sua definição, não pode prescindir da irredutibilidade dos polos Rio de Janeiro, 2009.
dicotômicos (natureza-cultura, doméstico-público) contra a qual a ideia de p. 121.
fractalidade se constrói. Se considerarmos ainda que essas distinções estão no
cerne do projeto moderno,14 então, já vem chegando a hora de dizermos que,
assim como “jamais fomos modernos”, “jamais fomos humanos” (ou, pelo me- 16 lévi - strauss ,
Claude. Raça e história.
nos, nem sempre, nem em todas as situações e, certamente, não inteiramente).15 In: Antropologia estru-
tural dois. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1976.
Não é à toa que, ao criticar o racismo e o etnocentrismo
ocidental, Lévi-Strauss tenha atacado também a noção de povos sem 17 No século xx ,
as reivindicações de
história.16 Em relação ao humanismo, é preciso dizer que, tal como liberação e os questio-
afirmou de maneira tão jocosa como precisa a tia de um amigo, “a namentos das normas da
sexualidade passaram por
humanidade é um projeto que não deu certo”. um processo de codifi-
cação jurídica na noção
O problema, no entanto, se complica quando a desumaniza- de “direitos sexuais”. É
ção não é um processo de autodeterminação, de autodeformação, de necessário pensarmos
não apenas o que
habitar fora dessa norma que é tão cis-heterocentrada, quanto racista se ganha, mas o que se
perde com esse processo
e especista. Quando essa desumanização é, ao contrário, resultado de e, fundamentalmente, o
uma negação da humanidade que nada tem de voluntária, mas que é que e quem fica de fora.
Se, em teoria, direitos
forçada, violenta e que desconsidera a humanidade de alguém apenas humanos deveriam ser
universalmente válidos,
para colocá-lo num campo de risco que os direitos humanos, encarna- na prática, sabemos que a
ção ocidental do acesso à justiça, não conseguem alcançar.17 própria ideia de sujeitos
29

de direitos conclama Um caso recente emblemático foi o de Verônica Bolina,


que ser um sujeito é
condição sine qua non travesti negra brutalmente violentada pela polícia e exposta nos mais
para acessar o marco diversos meios de comunicação por meio de fotografias que figuravam
dos direitos jurídicos.
O problema fica claro um horror inominável. Qual seria o tamanho da comoção pública se
quando percebemos que,
como insistem diversxs fossem imagens como aquelas, mas de uma mulher branca, cis e de
autorxs da teoria queer, classe média? Nem dá pra imaginar o tamanho da confusão.
a condição de sujeito
é diferencialmente Por que uns corpos merecem nosso luto e outros não? E esse
distribuída. Para saber
mais, ver: viteri , María luto e a violência com que se responde a ele não seriam também uma
A.; castellanos , indicação de humanidade ou de sua falta, como tem argumentado
Santiago. Dilemas queer
contemporâneos: ciuda- Judith Butler?18 Quando é esse o efeito, quando é essa a questão, a
danías sexuales, orien-
talismo y subjetividades desumanização talvez não deva ser buscada, mas combatida e chora-
liberales. Un diálogo con da publicamente. Como fazem, aliás, tão obstinadamente as Mães de
Letícia Sabsay. Íconos.
Revista de Ciencias Maio, que tiveram suas filhas e filhos tiradas pelo terrorismo de Estado
Sociales, Quito, n. 47, p.
103-118, 2013. encarnado no seu braço armado – a Polícia Militar.
Devemos pensar em estratégias, nos diversos ativismos de
18 butler , Judith. Quad- combate, mais do que em regras gerais. A pós-pornografia e o porno-
ros de guerra: quando a
vida é passível de luto? -terrorismo são ativismos de corpo e escracho, de desumanização e de
Rio de Janeiro: Civilização deformação.19 Mas quando a intenção é a resistência a uma desumani-
Brasileira, 2015.
zação entendida como degradação e desconsideração do outro como
19 Cf., por exemplo, alguém dignx de vida, as estratégias podem e devem ser outras.
bourcier , Marie-
-Hélène (Sam). 2014. Publiquei no Facebook, recentemente, o Minimanual do guer-
Bildungs-Post-Porn: notas rilheiro urbano, do Marighella. A minha tia imediatamente comentou:
sobre a proveniência do
pós-pornô, para um futuro “Use ideias (aquela que começa feia depois fica bonita) e não violên-
do feminismo da desobe-
diência sexual. Bagoas, cia. Porque violência só gera violência”. Ao que respondi:
Natal, n. 11, p. 15-37.
2014. Para um texto
introdutório sobre pós- Minha querida tia, a não violência deve ser buscada onde quer que seja pos-
-pornô ver adicionalmen- sível. Mas é urgente colocar que há situações nas quais ela não é uma opção.
te: grunvald , Vitor.
Teoria, carne e marcos A prerrogativa da não violência é apenas de alguns. Uma pessoa branca de
iniciais da pós-por- classe média vive uma vida que a permite colocar a questão da não violência
nografia. Flsh Mag. como legítima. Mas quando se trata de pessoas negras, pobres, de periferia,
Disponível online, ver
bibliografia. Acesso em: que não se adequam aos modelos aceitos socialmente de comportamento de
26 jan. 2017; nogueira , gênero etc., será mesmo que elas têm a opção de não serem violentas? Dá
Fernanda; costa , Pedro. para responder apenas com palavras e ideias, em suma, com não violência,
Da pornochanchada ao
Pós-Porno-Terrorismo no quando se aponta uma arma para você, quando se usa o cassetete para violen-
Brasil: d’As Cangaceiras tar seu corpo simplesmente por ele existir, quando se aplicam golpes a você o
Eróticas ao Coletivo tempo inteiro e tanto por parte de pessoas que se acreditam justiceirxs do bem
Coiote. Revista Rosa, n.
5, dez. 2014. Disponível quanto por parte do próprio Estado e de sua truculenta polícia? Está na hora
online, ver bibliografia. de pensarmos a quem serve o discurso da não violência e quem tem o privi-
légio de colocá-lo como possível e mesmo prioritário! Queria te emprestar
meus olhos e minhas memórias para que você pudesse ver as coisas que tenho
visto nas últimas manifestações! Muitas atitudes não violentas por parte dos
manifestantes que ganham em troca violência gratuita por parte da polícia!

Lembrando disso, um tempo depois, recordei do que Davi


Kopenawa, xamã yanomani, havia escrito no livro que assinou com
30 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

Bruce Albert: “Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem
muito, mas só sonham consigo mesmos”.20 Para mim, descolonizar a 20 kopenawa , Davi;
Bruce. A queda
albert ,
queer é também, de alguma forma, não sonhar apenas consigo mesmx. do céu. São Paulo:
Mas se essa for a prática – a de se subtrair, de se tornar menor, Companhia das Letras,
2010. p. 412.
minoritário e não maior, dominante e majoritário –, então, as coisas
que eu disse provavelmente são um arranjo muito peculiar e situado
para dar sentido a esse processo. É necessário, de fato, que a própria
teoria queer seja constantemente minorada, tal como busquei sugerir
com a obra de Judith Butler.21 21 grunvald , Victor.
Butler, a abjeção e
O ponto é que não existe uma fórmula que você possa oferecer seu esgotamento. In:
a alguém: “tá aqui, você faz isso para descolonizar a queer! Você fica díaz - benítez , María
Elvira; fígari , Carlos
toda desconstruída e subversiva!”. Não se deixar capturar por essa ló- (orgs.). Corpos, desejos,
prazeres e práticas
gica de desejar sempre o poder e a dominação só pode ser algo muito sexuais dissidentes.
diferente para cada pessoa porque é impossível separar a resistência Rio de Janeiro:
Garamond, 2009.
do processo de subjetivação que é peculiar a essa espécie de autodeter-
minação deformatória.
Não há regra, justamente, porque colocar uma regra seria ainda
apostar no sonho positivista de uma linguagem neutra, incorpórea e,
tanto melhor, se for científica, se retirar toda a subjetividade e toda a
singularidade para se transformar pretensamente no reflexo exato da
natureza. Algo que eu me recuso a fazer.
Hoje em dia, tem muita gente que se incomoda quando se toca
em determinados assuntos ou se chama a atenção para pressupostos
fóbicos que estão implícitos em práticas de exclusão e submissão.
Chamam isso de mi-mi-mi e de implicância. Do meu ponto de vista, é
implicância num sentido bem preciso: não implicar com alguém, mas
implicar alguém em algo que essa alguém não é, em algo que ela não
consegue considerar a partir do corpo e da pessoa que é. E mesmo se
autoimplicar naquilo que você nunca vai ser e bloquear, da maneira
como for possível, aspectos fascistas daquilo que você também é.
Como disse, não espero, com este texto, dar alguma sugestão
muito forte sobre o que é descolonização da queer. Quero, ao con-
trário, dar uma sugestão muito fraca, minha, do que isso pode ser. E
tentar, quem sabe, oferecer esse sentido de modo que cada pessoa que
leia essas palavras possa encontrar ferramentas para que ela ou ele ou
ile leve adiante sua luta e sua resistência em seus próprios termos.
31

referências
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-Porn: notas sobre a proveniência do pós-pornô, para
um futuro do feminismo da desobediência sexual.
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subversión de la identidad. México: Paidós, 2001.
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y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2002.
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luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
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(Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacio-
nal, ufrj , Rio de Janeiro, 2009.
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desejos, prazeres e práticas sexuais dissidentes. Rio
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32 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

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33

Vi Grunvald
É viado, nortista, doutor em Antropologia Social pela
Universidade de São Paulo (usp ), professor da Faculda-
de Cásper Líbero e integrante dos seguintes grupos de
pesquisa ligados à usp: Grupo de Antropologia Visual
(Gravi); Núcleo de Antropologia, Performance e Drama
(Napedra); e Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais
da Diferença (Numas).

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