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Edições Aurora /
Publication Studio SP
todas as ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail, Kadija, JotaMombaca
a questão ViGrunvald, Repep, CarueContre, RegisMikail, SabrinaDura
de gênero ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca
de resistência ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca
construção de ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura, JotaMombaca
a possibilidade Repep, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca
de pessoas ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca
o discurso ViGrunvald, Repep, CarueContre, BrunoPuccin
da vida ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura
social e Repep, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca
de classe ViGrunvald, Repep, CarueContre, JotaMombaca
uma sociedade ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, BrunoPuccin
gênero e ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail
pessoas que ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail
do corpo ViGrunvald, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca
do movimento ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail
ela se ViGrunvald, Kadija, SabrinaDura, JotaMombaca
classe média ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca
de gênero CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca
de trabalho Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
modelo de ViGrunvald, Repep, SabrinaDura
do poder ViGrunvald, BrunoPuccin, JotaMombaca
homens e bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura
política e ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail
uma espécie BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura
a teoria ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
como parte BrunoPuccin, bibiAbigail, JotaMombaca
de produção ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura
de outros Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
uma linguagem ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail
corpo e ViGrunvald, Kadija, JotaMombaca
e travestis ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin
do mercado Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
da cidade Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
pessoa que ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura
espaços de ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin
e mulheres CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura
o termo ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
no brasil CarueContre, RegisMikail, Kadija
não deve ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija
campo de ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca
de rua BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura
um corpo bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca
um local Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail
uma leitura Repep, bibiAbigail, JotaMombaca
movimento de ViGrunvald, Repep, CarueContre
teoria queer ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
a forma CarueContre, BrunoPuccin, SabrinaDura
do espaço Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura
modo de Repep, Kadija, SabrinaDura
são paulo Repep, CarueContre, BrunoPuccin
as formas Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca
um sujeito ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca
as necessidades Repep, CarueContre, BrunoPuccin
esse processo ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija
da palavra ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
um homem CarueContre, bibiAbigail, JotaMombaca
por ser Repep, bibiAbigail, SabrinaDura
no contexto ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail
as pessoas CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura
o sentido RegisMikail, BrunoPuccin, bibiAbigail
o movimento ViGrunvald, Repep, CarueContre
cidade queer, uma leitora
cidade
Queer,
uma
leitora
Edições Aurora /
Publication Studio SP
sumário
56 chega de manhattans
Jean François-Prost
84 ternura radical
Dani d’Emilia e Daniel B. Chávez
94 desmunhecando
Fabiana Faleiros
98 cidade lida
Raquel Perrine e Thiago Hersan
S h a w n Va n S l u y s
9
As origens
Era um dia úmido de julho de 2014 quando Todd Lanier Lester
e eu descobrimos que vínhamos nutrindo um desejo em comum:
realizar um encontro de artistas numa investigação coletiva sobre o
papel que ser queer desempenha na ruptura do status quo de nossas
cidades, comunidades e instituições. Estávamos num refúgio na ilha
de Wasan, nos lagos de Muskoka, no Canadá, quando demos início a
essa conversa – Wasan é um lugar sublime, capaz de reunir até vinte
pessoas para compartilhar conhecimento sobre direitos humanos, artes
e justiça social. Fazia anos que o Todd, através de sua organização
baseada em Nova York, o freeDimensional, vinha convidando artistas
e ativistas envolvidos em iniciativas voltadas à segurança de artistas
para passar algum tempo na ilha, rejuvenescendo em meio à natureza,
compartilhando suas experiências e práticas, e também encontrando
novas motivações para continuar o trabalho corajoso que realizam.
Todd sempre entendeu profundamente esse poder de reunir as pessoas,
e com a insistência da Musagetes – comprometida em moldar sua
emergente metodologia própria e emergente, reunindo combinações de
pessoas diversas e improváveis – ganhou vida o projeto que viria a se
tornar o Cidade Queer São Paulo.
Passando de uma ilha capaz de acomodar vinte pessoas a uma
cidade de cerca de 20 milhões delas, a ideia do Cidade Queer logo
evoluiu para focar no entendimento e remodelagem de ambientes
urbanos por meio da performatividade queer. Em vez de se reco-
lher numa ilha nos selvagem no Canadá, o Cidade Queer se tornou
um ciclo de pesquisa multifacetado, baseado no próprio local e com
duração de dezoito meses, que culminou num encontro de artistas na
Vila Nova York, bairro periférico de São Paulo. A investigação sobre
queerness se manifestou em diversas formas que são compartilhadas
neste livro em textos, fotografias, inserções artísticas e outras contri-
buições. Além disso, e mais profundamente, o Cidade Queer se tornou
uma pesquisa interseccional que reuniu maneiras intelectuais, artís-
ticas, emocionais e espirituais de saber, ser e se relacionar por meio
do entrelaçamento da natureza queer e negra, da injustiça social, da
dignidade econômica, do direito à cidade e das lutas da vida cotidiana.
Os leitores poderão sentir o gosto de experimentação, crítica e
subversão que foram deliciosamente salpicados ao longo de toda a ex-
periência do Cidade Queer São Paulo. A editora do livro, Júlia Ayerbe,
10 uma investigação queer
Metodologias
A Musagetes acredita que algumas das rupturas mais potentes
de nossos sistemas e instituições tão falhos vêm de posições de luta,
daqueles que estão nas linhas de frente e dos outros que lhes são solidá-
rios. Sempre nos preocupamos em nosso trabalho com o papel da esco-
lha das pessoas – o processo de selecionar com quem nos envolvemos e
colaboramos, e quais discursos aprofundar nesse caminho. Nos últimos
dois anos, simultaneamente à linha de investigação do Cidade Queer,
nosso foco emergente em sistemas de opressão, maneiras de lutar e
celebrações da diferença tornaram a enfatizar, para nós, a questão de
quem contribui de fato para nosso trabalho e acaba por influenciá-lo.
As questões que escolhemos – as linhas de pesquisa que sus-
tentamos – são a coluna vertebral da metodologia da Musagetes. São
elas que guiam as práticas e processos artísticos que compõem nossos
programas realizados em cidades, nossa plataforma on-line, o ArtsE-
verywhere, e nossos projetos internacionais. Aplicamos o aprendizado
obtido em pesquisas como o Cidade Queer no desenvolvimento de
nossas administrações, organizações, relações e protocolos.
A arte tem a capacidade de causar mudanças de poder. Nes-
se sentido, a Musagetes se retira do centro da investigação, reunião,
projeto ou luta em questão, para dar espaço àqueles que são mais
diretamente atingidos a cada caso, de modo que possam determinar por
conta própria a retórica, as prioridades e os caminhos a serem seguidos.
11
Futuros
Em sociedades que deparam com tantas rupturas em potencial,
acreditamos que as artes são um modo pelo qual podemos manter
o que é bom (expressões de resiliência) e rejeitar aquilo que mina a
possibilidade de uma vida profundamente livre e socialmente justa.
Precisamos de artistas queer nessa conta, encarando as urgências do
momento político atual junto com economistas, cientistas, filósofos,
teóricos sociais e aqueles que fazem as políticas. Por sua capacidade
de crítica política e social, a pesquisa artística nos leva a uma maior
abertura epistêmica – explorando e abraçando as múltiplas maneiras
de saber e estar no mundo.
A própria Musagetes foi transformada pelas comunidades tão
generosas e diversas com que se envolveu e envolve. Convidamos
você a entrar nesse trabalho, com humildade e modéstia, munido do
desejo por aprendizado e crescimento contínuos. O ciclo Cidade Queer
começou sua investigação sobre ser queer com as palavras de José
Esteban Muñoz, e recorremos novamente a elas aqui:
Ainda não somos queer. Talvez jamais consigamos tocar o que
é ser queer, mas podemos sentir isso como a cálida iluminação de um
1 Cruising Utopia: The horizonte imbuído de potencialidades. Nunca fomos queer, no entanto,
Then and There of Queer
Futurity. Nova York, ser queer é algo que existe para nós como uma idealidade que pode
nyu Press, 2009.
ser destilada do passado e usada para imaginar um futuro.1
para cidade queer,
uma leitora
To d d L a n i e r L e s t e r
Jota Mombaça
17
um ruído, uma pane, um vírus que se apodera – sempre momentanea- 5 A noção de “antropo-
faloegologocêntrica” é
mente – de um corpo e o impede de existir como corpo; que se apode- também uma proposta
ra de uma ontologia e a impede de existir como ontologia. de Suely Rolnik, que
visa a evidenciar a
Essa monstra é herdeira do legado desse “Outro” que foi, desde integração das dimensões
antropo (humanista), falo
sempre, elaborado como exterior constitutivo e referente negativo do (patriarcal, masculina) e
sujeito na matriz de poder antropofaloegologocêntrica;5 desse “‘Obje- logo (racional, moderna)
como sistemas de
to” esgotado pelas práticas de tradução etnocêntricas da modernidade- sujeição próprios das
sociedades modernas
colonialidade. Seu território é a “zona do não-ser”6 descrita por Fanon coloniais.
como mundo colonizado, onde é inviável tornar-se qualquer coisa,
uma vez que a colonização opera sobre o domínio ontológico para 6 Fanon cunha, em 1952,
a noção de “zona de
garantir que todas as formas do ser sejam condizentes às perspectivas não-ser”. Ver: fanon ,
e aos pontos de vista do colonizador. Frantz. Pele negra, más-
caras brancas. Salvador:
A monstra que atravessa isso aqui é, afinal, uma não-existência Edufba, 2008.
referências
fanon , Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador:
Edufba, 2008.
Jota Mombaça
É uma bicha não binária, nascida e criada no Nordeste.
Escreve, performa e faz estudos acadêmicos em torno das
relações entre monstruosidade e humanidade, estudos kuir,
giros descoloniais, interseccionalidade política, justiça
anticolonial, redistribuição da violência, ficção visionária
e tensões entre ética, estética, arte e política nas produções
de conhecimentos do sul do sul globalizado.
algumas
reflexões
pessoais sobre a
descolonização
da queer
Vi Grunvald
23
que se identificam, se não como, pelo menos com a queer, acabam repro-
duzindo retóricas de exclusão que essa ética buscava suprimir e combater.
Com a popularização da queer no Brasil, surgiu uma série de
espaços de sociabilidade, jornais, revistas, filmes, músicas, gostos
e estilos de vida que são tomadas como a materialização da última
tendência, daquilo que há de mais moderno ou pós-moderno – como
se queira. Um imenso “shopping queer”.5 5 perra , h . de. op. cit.,
p. 6. Tradução do autor.
Do dia pra noite, por conta da voga queer, as bichas velhas dos
centros das cidades viraram anacronismos, pessoas cujas identidades
fazem parte de um passado que essa nova sensibilidade desconstruída
veio superar.6 6 Alocar sujeitos em
temporalidades distintas
Em uma mesa redonda sobre temporalidades queer, Jack sempre foi uma estratégia
Halberstam diz que se identifica sexualmente como stone butch (que de poder, controle e
submissão de corpos e
pode ser traduzido como fancha, sapatão machuda) e se pergunta o populações. Para uma
discussão sobre como a
que significa estar engajada em práticas sexuais cujo tempo é o passado. antropologia construiu
Continua argumentando que seu objeto de estudo
articulando noções de
temporalidade e sobre as
a ênfase, nas subculturas sexuais contemporâneas, em “flexibilidade”, consequências desse pro-
desejos/práticas/identificações flexíveis, marca pessoas com identificações cedimento, ver: Fabian
(2002[1983]).
fortes como patológicas no que se refere à sua rigidez, e o binário flexível-rí-
gido é, sem dúvida, de caráter temporal – ele atribui a mobilidade ao longo
do tempo a certa noção de libertação e coloca identificações persistentes
como uma maneira de ficar presx no tempo, involuídx, sem versatilidade.
Estes são sintomas de homonormatividade subjacente, como Hoang sugere;
eles colocam a liberação sexual como o outro de práticas sexuais presas
no tempo. Muitas dessas caracterizações da homonormatividade também 7 dinshaw , Carolyn
supõem um sujeito branco e, então, colocam o anacronismo em comunidades et al. Theorizing Queer
Temporalities: A Roun-
de cor – por exemplo, enquanto queers brancxs de classe média se adiantam dtable Discussion. glq :
com sua flexibilidade de gênero e sexual, comunidades associadas a sapatões A Journal of Lesbian and
(butch-fem), talvez latinas da classe trabalhadora ou algumas comunidades Gay Studies, Durham, v.
13, n. 2-3, p. 190-191,
negras parecem estar detrás da curva da história.7 2007. Tradução do autor.
como canta Mc Linn da Quebrada. E talvez seja por isso que eu dou o 10 bdsm é um acrôn-
imo para bondage,
cu. Além de ser uma delícia, é claro. dominação, disciplina,
De fato, as duas coisas não estão separadas. Porque essa ética sadismo, submissão e
masoquismo.
da qual eu estou falando é, ao mesmo tempo, uma ética de discurso, de
palavra, de nome e uma ética de corpo, de gesto, de sêmen e mesmo 11 todorov , Tzvetan. A
conquista da América: a
de dor. Foi Paul Preciado quem talvez tenha colocado de maneira mais questão do outro.
pungente, no panteão queer, a questão corporal da dissidência como São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
algo que não pode ser negligenciado por uma excessiva ênfase na 12 haraway , Donna.
Ciencia, cyborgs y
performatividade linguística. mujeres. La reinvención
O meu contato com as práticas do bdsm 10 mostrou que po- de la naturaleza. Madri:
Cátedra, 1995. p. 254.
demos habitar lugares aquém da humanidade, onde as questões do Tradução do autor.
natural”,11 estar apenas na biologia. Como disse em outro momento: 15 grunvald , Vitor.
Teseu e o touro: algumas
sugestões feministas para
Somos todos cyborgs. “O cyborg é nossa ontologia, nos outorga nossa políti- uma crítica da razão.
ca”.12 E se o cyborg de Haraway é expressão de fractalidade, como argumenta Dissertação (Mestrado
Strathern,13 então, enquanto tal, ele passa ao largo de todo e qualquer huma- em Antropologia Social)
– Museu Nacional, ufrj,
nismo que, em sua definição, não pode prescindir da irredutibilidade dos polos Rio de Janeiro, 2009.
dicotômicos (natureza-cultura, doméstico-público) contra a qual a ideia de p. 121.
fractalidade se constrói. Se considerarmos ainda que essas distinções estão no
cerne do projeto moderno,14 então, já vem chegando a hora de dizermos que,
assim como “jamais fomos modernos”, “jamais fomos humanos” (ou, pelo me- 16 lévi - strauss ,
Claude. Raça e história.
nos, nem sempre, nem em todas as situações e, certamente, não inteiramente).15 In: Antropologia estru-
tural dois. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1976.
Não é à toa que, ao criticar o racismo e o etnocentrismo
ocidental, Lévi-Strauss tenha atacado também a noção de povos sem 17 No século xx ,
as reivindicações de
história.16 Em relação ao humanismo, é preciso dizer que, tal como liberação e os questio-
afirmou de maneira tão jocosa como precisa a tia de um amigo, “a namentos das normas da
sexualidade passaram por
humanidade é um projeto que não deu certo”. um processo de codifi-
cação jurídica na noção
O problema, no entanto, se complica quando a desumaniza- de “direitos sexuais”. É
ção não é um processo de autodeterminação, de autodeformação, de necessário pensarmos
não apenas o que
habitar fora dessa norma que é tão cis-heterocentrada, quanto racista se ganha, mas o que se
perde com esse processo
e especista. Quando essa desumanização é, ao contrário, resultado de e, fundamentalmente, o
uma negação da humanidade que nada tem de voluntária, mas que é que e quem fica de fora.
Se, em teoria, direitos
forçada, violenta e que desconsidera a humanidade de alguém apenas humanos deveriam ser
universalmente válidos,
para colocá-lo num campo de risco que os direitos humanos, encarna- na prática, sabemos que a
ção ocidental do acesso à justiça, não conseguem alcançar.17 própria ideia de sujeitos
29
Bruce Albert: “Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem
muito, mas só sonham consigo mesmos”.20 Para mim, descolonizar a 20 kopenawa , Davi;
Bruce. A queda
albert ,
queer é também, de alguma forma, não sonhar apenas consigo mesmx. do céu. São Paulo:
Mas se essa for a prática – a de se subtrair, de se tornar menor, Companhia das Letras,
2010. p. 412.
minoritário e não maior, dominante e majoritário –, então, as coisas
que eu disse provavelmente são um arranjo muito peculiar e situado
para dar sentido a esse processo. É necessário, de fato, que a própria
teoria queer seja constantemente minorada, tal como busquei sugerir
com a obra de Judith Butler.21 21 grunvald , Victor.
Butler, a abjeção e
O ponto é que não existe uma fórmula que você possa oferecer seu esgotamento. In:
a alguém: “tá aqui, você faz isso para descolonizar a queer! Você fica díaz - benítez , María
Elvira; fígari , Carlos
toda desconstruída e subversiva!”. Não se deixar capturar por essa ló- (orgs.). Corpos, desejos,
prazeres e práticas
gica de desejar sempre o poder e a dominação só pode ser algo muito sexuais dissidentes.
diferente para cada pessoa porque é impossível separar a resistência Rio de Janeiro:
Garamond, 2009.
do processo de subjetivação que é peculiar a essa espécie de autodeter-
minação deformatória.
Não há regra, justamente, porque colocar uma regra seria ainda
apostar no sonho positivista de uma linguagem neutra, incorpórea e,
tanto melhor, se for científica, se retirar toda a subjetividade e toda a
singularidade para se transformar pretensamente no reflexo exato da
natureza. Algo que eu me recuso a fazer.
Hoje em dia, tem muita gente que se incomoda quando se toca
em determinados assuntos ou se chama a atenção para pressupostos
fóbicos que estão implícitos em práticas de exclusão e submissão.
Chamam isso de mi-mi-mi e de implicância. Do meu ponto de vista, é
implicância num sentido bem preciso: não implicar com alguém, mas
implicar alguém em algo que essa alguém não é, em algo que ela não
consegue considerar a partir do corpo e da pessoa que é. E mesmo se
autoimplicar naquilo que você nunca vai ser e bloquear, da maneira
como for possível, aspectos fascistas daquilo que você também é.
Como disse, não espero, com este texto, dar alguma sugestão
muito forte sobre o que é descolonização da queer. Quero, ao con-
trário, dar uma sugestão muito fraca, minha, do que isso pode ser. E
tentar, quem sabe, oferecer esse sentido de modo que cada pessoa que
leia essas palavras possa encontrar ferramentas para que ela ou ele ou
ile leve adiante sua luta e sua resistência em seus próprios termos.
31
referências
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nogueira , Fernanda; costa , Pedro. Da pornochanchada
ao Pós-Porno-Terrorismo no Brasil: d’As Cangaceiras
Eróticas ao Coletivo Coiote. Revista Rosa, n. 5, dez.
32 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer
Vi Grunvald
É viado, nortista, doutor em Antropologia Social pela
Universidade de São Paulo (usp ), professor da Faculda-
de Cásper Líbero e integrante dos seguintes grupos de
pesquisa ligados à usp: Grupo de Antropologia Visual
(Gravi); Núcleo de Antropologia, Performance e Drama
(Napedra); e Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais
da Diferença (Numas).
no olho
do cu(ir) –
queer: centro
e margens de
uma palavra
desgastada
Essa é uma das coisas que “queer” pode oferecer: a malha aberta de
possibilidades, lacunas, sobreposições, dissonâncias e ressonâncias, lapsos
e excessos de significação quando os elementos constitutivos do gênero
e da sexualidade de alguém não são feitos (ou não podem ser feitos) para
significar de forma monolítica. As aventuras linguísticas, epistemológicas,
representacionais e políticas relacionadas com cada uma de nós, que às vezes
pode ser levada a se identificar como (dentre muitas outras possibilidades)
piriguetes, bichas loucas, fetichistas, drag queens, clones, leathers, mulheres
de terno, mulheres feministas, homens feministas, masturbadorxs, caminho-
neiras, divas, barraqueiras, butches passivonas, storytellers, transsexuais,
tiazonas, simpatizantes, mulheres trans lésbicas ou lésbicas que dormem com
homens ou... pessoas capazes de saborear, aprender e se identificar com isso.2 2 Ibidem, p. 8.
Butler, por sua vez, não é menos hesitante. Ela aponta para o
risco que é terminar um livro com um capítulo sobre “queer”, o que daria
a falsa impressão de haver um fechamento triunfal do assunto, o que,
segundo ela, não só seria impossível, mas indesejável. Para a autora,
“queer” não comporia também uma identidade substancial positiva, mas
seria, ao contrário, uma interpelação violenta que produz efeitos identitá-
rios. “Queer” seria então uma injúria, uma ofensa, uma acusação.
O termo “queer” tem operado como uma prática linguística, cujo propósito
tem sido envergonhar o sujeito que nomeia, ou melhor, produzir um sujeito
através dessa interpelação envergonhadora. “Queer” possui a sua força
precisamente através da invocação repetida, por meio da qual se ligou à
acusação, patologização e insulto”.3 3 butler , j . Bodies
That Matter: On the
Discursive Limits of
Entretanto, de ofensa, o termo passa a constituir certa substan- “Sex”. Nova York:
Routledge, 1993. p. 226.
cialidade positiva, torcendo e des-viando o significado e a interpelação Tradução da autora.
Serei uma vida castigada por Deus por invertida, torta e ambígua?
Serei um homossexual ornamentadamente empetecada, feminina, pobre,
com inclinação sodomita capitalista?
Serei uma travesti penetradora de buracos voluptuosos dispostos a
devires ardentes?
Ou serei um corpo em contínuo trânsito identitário em busca de prazer sexual?12 12 Ibidem, p. 4-5.
Eu, pobre mortal, equidistante de tudo, eu, cpf : 20.598.061, eu, primeiro
filho de uma mãe que depois fui, eu, velha aluna desta escola dos suplícios.
Eu reivindico meu direito a ser um monstro. Nem homem nem mulher. Eu,
monstro de meu desejo, carne de cada uma das minhas pinceladas, tela branca
do meu corpo, pintora do meu andar. Não quero mais títulos para carregar. Só
13 castillo , s . meu direito vital de ser um monstro... Meu direito a explorar-me. A reinven-
Poemario TransPirado. tar-me. Fazer do meu mudar, meu nobre exercício. Veranear-me, outonar-me,
Buenos Aires: Nuevos
Tiempos, 2011. p. 12-13. invernar-me; os hormônios, as ideias, as curvas e toda a alma − amém.13
Tradução da autora.
referências
butler , J. Bodies That Matter: On the Discursive Limits
of “Sex”. Nova York: Routledge, 1993.
castillo , C. A. La cerda punk: ensayos desde un femi-
nismo gordo, lésbiko, antikapitalista & antiespecista.
Valparaíso: Trio, 2014.
perra , H. de. Interpretações imundas de como a Teoria
Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de as-
pirações e terceiro-mundista, perturbando com novas
construções de gênero aos humanos encantados com a
heteronorma. Periódicus: revista vinculada ao grupo
de pesquisa cus (ufba), Salvador, v. 1, n. 2, 2014.
quimer ( d ) a : quadrinhos antiespecistas. s.l., s.d.
sedgwick , E. K. Tendencies. Durham: Duke University
Press, 1993.
shock , S. Poemario TransPirado. Buenos Aires: Nuevos
Tiempos, 2011.
M0 O Desaninhador de Monas
8 vip , Angelo; libi , Fred. e a teoria queer convidam a considerar a/o trans como desafio ao
Aurélia: A dicionária da
língua afiada. São Paulo: cartesianismo, formulando perguntas em vez de demonstrar respostas.
Editora do Bispo, s. d. O desejo de tal rompimento levaria em conta não apenas rusgas como
p. 120.
“queer vs. pink”, mas investigaria fundamentalmente a interação des-
ses grupos sociais, cuja linguagem é denominador comum.
9 O polari seria menos Assim como o bekimon filipino e o extinto polari britânico,9
um criptoleto para fugir
da polícia do que um o pajubá passa a ser inclusivo e considera meios extra-lgbtqia . Ou
falar que procurasse seriam esses meios que se apropriam dele? A absorção e propaga-
aceitar e afirmar a
identidade destes outcasts ção do pajubá e sua parcial rigidez lexical de étimos afro-indígenas,
e, posteriormente, a
identidade homossexual, esses pouco transformados, colocam em cheque preconceitos “clás-
drag e trans, inicialmente sicos” externos já mencionados, bem como preconceitos “internos”
masculina. Ver: baker ,
Paul. Polari: The Lost que contradiriam o próprio não binarismo e ativismo político. Cien-
Language of Gay Men.
London: Routledge, 2003. tificamente, essas exclusões não levariam os estudos a uma idiotia
autobiográfica ou à tautologia acadêmica?10 Tipicamente brasileiro,
10 Ver: livia , Anna;
o pajubá só poderia condizer com uma origem macunaímica, de uso
hall , Kira. “É uma me-
nina”: a volta da perfor- carnavalesco e pleno de contradições sociais. Talvez já esteja em fer-
matividade à linguística.
In: ostermann , Ana mentação uma abordagem que considere seu caráter antropofágico,
Cristina; fontana , interessando-se mais por maneiras de ver a questão do que propria-
Beatriz (orgs.).
Linguagem, gênero, mente sua exaustão.
sexualidade. São Paulo:
Parábola Editorial, 2010. Surgido num contexto analógico, o pajubá vem se transfor-
p. 114. As autoras obser- mando conforme – ou em contracorrente a – uma “realidade digital”
vam o aparecimento de
estudos sobre o discurso líquida. A análise do discurso num quadro da teoria queer rechaça
de gays e lésbicas que
resultaram em simples a normativização de seu estudo, o que levaria a encarar os sistemas
glossários excludentes organizacionais da análise conversacional, em que se realiza o pajubá,
e metodologicamente
pouco precisos, como não “como normas para padrões de funcionamento e sim como proce-
Gayspeak, de Hayes,
de 1976, e as pesquisas dimentos analíticos”, segundo Luiz Marcuschi. Bem como a(s) iden-
etnográficas de Ponte, em tidade(s) de gênero, tais sistemas deveriam, portanto, ser vistos como
1974, sobre elementos
extralinguísticos (postura, “processos, e não propostas normativas para fenômenos isolados”.11
olhar) desses discursos,
como o de Webblink, Resistente sem ser essencialmente militante, podemos atribuir
em 1981, e a alternância ao pajubá um mito de origem, para usar uma expressão levi-straussia-
de códigos entre gays
(Lumby, 1976). na. Assim, a fala (e nela a impossibilidade de resiliência de um supos-
to estado original do mito), bem como a oralidade e a musicalidade
11 marcuschi , sobre a qual se estruturam as Mitológicas – e, no nosso caso, o pajubá
op. cit., p. 85.
–, correspondem ao tratamento humano dado a esse tipo de narrativa.
Não existiria um ponto de partida do mito-pajubá. Sob risco de me
repetir, tomei a liberdade de reescrever seu mito de origem no começo
12 Ver epígrafe deste artigo,12 ciente da dupla acepção dicionarizada do termo “mito”:
deste texto.
como narrativa que um determinado grupo étnico-social atribui à sua
própria origem, ou como coisa que não se supõe real, quimera.
Quando se trata da origem de um falar, a “fala” se relaciona
diretamente ao conceito de “mito” (μυθεομαι = “falar desinteressada-
mente”) e a seu contexto de transmissão oral da mitologia africana e
48 (des)mi(s)tificar falares
Nas tabelas abaixo, as colunas referem-se aos aportes das línguas africanas, ao pas-
so que a última coluna elenca os decalques pelos quais o termo passa em português.
As linhas referem-se aos contexto no qual os aportes e decalques são utilizados.
aportes* decalque**
aportes* decalque**
O termo “ilê” do iorubá
IORUBÁ FON BANTO português se mantém no pajubá
ìlé hukpème (u)nzo templo não na forma original
“ìlé”, mas de acordo
Linguagem do povo de santo, membros e ilê rondemo unzó terreiro
com a mudança fonética
adeptos do candomblé, considerada nos
empregada nos níveis re-
contextos inter e intragrupal
ligiosos e populares “ilê”.
Linguagem popular da Bahia — — — terreiro No caso do português, o
conceito de “templo” pas-
Linguagem do português do Brasil em geral — — — terreiro
sa a adquirir o significado
Linguagem do pajubá e de seus falantes ilê — — apartamento, quarto, de “habitação”, “aparta-
em geral casa, moradia mento”, “moradia” etc.
aportes* decalque**
*O aporte linguístico (do francês apport) é quando uma língua, neste caso o português, utiliza e
incorpora uma unidade e traço linguístico (palavra ou som) que existia em um outro falar – neste
caso, africano, nas línguas iorubá, fon e banto – até então inexistente na língua de chegada.
**Decalque (do francês calque) é quando ocorre uma tradução a uma língua, neste caso, o portu-
guês, de uma palavra pertencente a uma outra língua, neste caso as africanas acima citadas.
49
amigue
e seu plural não flexionado “as
amigue” ou “azamigue”, que sofre
até uma alteração de pronúncia
à maneira carioca de pronunciar:
“azamiguesh”. Pode ter derivado de
uma fórmula escrita que se impõe
como norma para o combate ao
sexismo: “Carxs amigxs”. Morfolo-
gicamente, o singular sexualmente
correto não seria o “o”– designador
masculino, nem o “a”– designador
feminino, mas um “e”. De fato,
também constata-se a ocorrência
“Cares amigues”. Entretanto, a suposição de que a letra “e” de-
signaria uma suposta neutralidade de gênero
(e não o gênero gramatical de certas línguas) é
problemática.
equê
que em pajubá significa “mentira”, A ideia de masculino está mais impregnada na
“engano”, “truque”, passa a ganhar língua do que se imagina. O masculino não é
o aporte “equezeiro” e a ser em- marcado na desinência “o”, mas na ausência dela,
pregada também como adjetivo. o que muitas vezes revela que o masculino se ex-
prime pelo “e”. A característica do masculino seria a
ausência de flexão específica, enquanto o feminino
é caracterizado por “a”. Por isso, supor que o “e”
cudiá apresentaria a solução para linguagem epicena,
um processo semelhante de aporte sexual e genericamente correta seria contraditório.
também acontece em formas ver-
bais banto, conjugadas em portu-
guês: “cudiá” = “correr” e “cudiô” =
“correu”, ou ainda “cufá” = “morrer”
e “cufô” = “morreu”.
aquendar
o verbo-coringa “aquendar” passa No pajubá encontramos nos aportes lexicais das
a ganhar afixos do português línguas africanas não somente termos fixos, mas
(“desaquendar”) e flexões verbais também decalques e locuções frasais em escala
(“aquendou”, “aquendava” etc.). menor, por exemplo “já-começa”, que encontra-
Lembramos que o verbo “quendá”, mos na Aurélia como “manja-rola” e “mona-ocó”,
provável origem de “aquendar”, expressões essas também frequentes nos fala-
significa “andar”, “partir” e “viajar”. res africanos do Brasil, como “bom-dia-jabum”,
entre outras.
ni
do falar do preto-velho, figura
arquetípica falante de fragmentos
do extinto dialeto crioulo das
senzalas, de origem banto, o
pajubá tem em comum, além de
ideofones e muxoxos (a exemplo
de nasalizações forçadas nas
últimas sílabas, gritinhos e outros
elementos extralinguísticos como
gestos), a preposição “ni” empre-
gada em vez do “em” normativo,
que traz como ironia ou afeição
uma maneira de falar considerada
humilde, da mesma maneira que o
apagamento do “d” ao pronunciar
gerúndios, típicos dos santos
incorporados.
50 (des)mi(s)tificar falares
referências
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Londres: Routledge, 2003.
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vip , Angelo; libi , Fred. Aurélia: A dicionária da língua
afiada. São Paulo: Editora do Bispo, s. d.
Pensamentos, observações
e explorações durante uma
residência em São Paulo
Ao chegar a São Paulo, somos
logo atingidos pela coabitação de dife-
renças no centro da cidade: sem-tetos,
toxicômanos, clubbers, transgêneros,
vendedores ambulantes e imigrantes,
entre outros que estão sempre se aco-
tovelando, evoluindo em proximidade
num mesmo espaço bastante denso.
ao crescente desejo nutrido por alguns vendedores não tenham opinião sobre os
de fazer parte de um mundo progressis- bairros, apenas que preferem não falar a
ta e móvel, sem pertencimento cultural respeito, para evitar abordar realidades
e destacado do real – muitas vezes bas- contextuais e assuntos mais delicados.
tante duro e complicado. Fiquei muito Era somente quando eu lhes fazia per-
perplexo diante das imagens de folhetos guntas sobre o bairro – obrigando-os a
promocionais distribuídos gratuitamente se afastar da charlatanice bem trabalhada
nas ruas, tamanho o contraste e o afasta- – que eles começavam a evocar algumas
mento da vida real das ruas da cidade. particularidades. Isso nos propulsava
Foi logo depois dessas primei- a um universo totalmente outro, mais
ras impressões que decidi visitar os subjetivo, que permitiu revelar as con-
escritórios de vendas, para me per- sequências inconvenientes desse tipo de
mitir fazer algumas observações que empreendimento imobiliário.
compartilho aqui.
Por intermédio dessa ação furti- rquitetura de divisões/
A
va, eu desejava encontrar os promotores proximidade e construção
imobiliários e ouvir seus argumentos de do comum
venda para descobrir como falam dos A maioria dos novos prédios
projetos, de determinados bairros e do em construção em São Paulo, mesmo
Centro de São Paulo como um todo. aqueles que dão para o Minhocão e
Ao longo dessas visitas e ouvindo as para a praça da República, terá seus
apresentações deles, o que me chamou jardins privados cercados de muros
atenção foi a ausência ou total evacua- vidrados. Essa “arquitetura murada”
ção – como acontece nos folhetos publi- criará uma divisão entre a vida da rua
citários – do contexto urbano bastante e a vida protegida e exclusiva dos edi-
rico e complexo no qual estão ancorados fícios. Assim, os contatos espontâneos
esses projetos de novos empreendimen- com o outro e com os não moradores
tos. Penso naquelas regiões da Luz, Vila serão limitados. A partir desses jardins
Buarque e República1. As referências à vidrados no nível da rua, será possível
cidade eram unicamente associadas à simplesmente observar a vida exterior,
sua arquitetura ou ao patrimônio cons- sem participar dela de verdade. O muro
truído, sem vínculo com a população de vidro, agora privilegiado na arquite-
residente. É desolador constatar que tura como meio de separação, oferece
ainda estamos nesse ponto – na mesma diversas vantagens: cria uma barreira
casa do tabuleiro de onde saímos – após sonora e uma proteção contra a poei-
todo o debate pós-moderno acerca do ra, mas, acima de tudo, permite uma
urbanismo e a crítica aos grandes pro- vista ininterrupta e sem obstáculos, ao
gramas modernistas que procediam por mesmo tempo que oferece mais segu-
tábula rasa. Isso não quer dizer que os rança do que a tradicional grade. Essa
perspectiva do espaço público e sua
diversidade – vista através de uma tela
1Ou, mais precisamente, as ruas ao redor da República que
compõem o antigo reduto da vida gay de São Paulo. de vidro – leva a pensar na experiência
58 No More Manhattans
a uma elite cada vez mais afortunada.2 3 Assim como Manhattan e outras cidades das Américas, São
Depois do êxodo massivo ru Paulo foi seriamente atingida por um êxodo do centro rumo às
periferias. Esse fenômeno de migração, comumente chamado
mo à periferia no final dos anos 1970, de “efeito donut”, deu-se principalmente nos anos 1970 e 1980.
59
Jean-François Prost
é artista/arquiteto que pesquisa espaços negligencia-
dos, indeterminados, e hipercontrolados, estéreis e
sem especificidades aparentes. Participou da Bienal de
Liverpool, do Canadian Center for Architecture, da Bie-
nal de Arte Madrid Abierto. Em 2007, criou a plataforma
Adaptative Actions [adabtativeactions.net] que resultou
na publicação do livro Heteropolis, 2013, e em ações
e exposições na Bienal de Arte de Montreal, no muac
(Cidade do México) e no Tokyo Wonder Site. Vive e
trabalha entre Montreal e Cidade do México.
o gozo
do pária:
tecnologias
para existir
à margem
[da margem
estatal]
Sabrina Duran
63
pelo procedimento das multas, das confiscações, dos sequestros de bens, das
custas, das gratificações de todo tipo, fazer justiça era lucrativo; depois do
desmembramento do Estado carolíngio, a justiça tornou-se, entre as mãos
dos senhores, não só um instrumento de apropriação, um meio de coerção,
mas diretamente uma fonte de riqueza; ela produzia mais um rendimento
paralelo à renda feudal, ou melhor, que fazia parte da renda feudal. […] As
2 Ibidem, p. 42. justiças faziam parte da circulação das riquezas e da extração feudal.2
fazer com que a plebe não proletarizada aparecesse aos olhos do proletariado
como marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a sociedade inteira, a
escória do povo, o rebotalho, a “gatunagem”; trata-se, para a burguesia, de
impor ao proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também
dos jornais, da “literatura”, certas categorias da moral dita “universal” que
3 Ibidem, p. 50. servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não proletarizada […].3
tais empresas, cotadas em bolsa de valores, propalam taxas recordes de cres- 5 Entrevista Loïc
cimento e de lucro. A “nova economia” americana não é apenas a da internet Wacquant: A criminali-
zação da pobreza. Mais
e a das tecnologias de informação: é também a que industrializa o castigo. Humana. Disponível em:
A título de ilustração, vale lembrar que as prisões do estado da Califórnia <www.uff.br/maishuma-
empregam duas vezes mais pessoas do que a Microsoft.5 na/loic1.htm>. Acesso
em: 17 jan. 2017.
É justamente a regra que permite que seja feita violência à violência e que
uma outra dominação possa dobrar aqueles que dominam. Em si mesmas, as
regras são vazias, violentas, não finalizadas; elas são feitas para servir a isto
ou àquilo. Elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns e de outros. O
grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar
o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utili-
zá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem,
se introduzindo no aparelho complexo o fizer funcionar de tal modo que os
dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras.6 6 foucault , Michel,
op. cit., p. 25.
referências
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parative ethnographies. Anthropology in the margins
of the State. Santa Fe: School of American Research
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sobre a marginalidade avançada. Rio de Janeiro:
Revan, 2005.
____________. As prisões da miséria. Rio de Janeiro:
Zahar, 2001.
Sabrina Duran
É jornalista e dedica-se à escrita de perfis de pessoas
anônimas e à cobertura das áreas de direitos humanos e
urbanismo. É autora do livro Mulheres centrais e do blog
eua V otam, para o site Opera Mundi. Realizou reportagens
especiais a partir da Bolívia, Colômbia, Argentina, Ingla-
terra, França, Estados Unidos e de mais de sessenta cidades
brasileiras. Em 2013, criou o projeto jornalístico Arquitetu-
ra da Gentrificação, que mapeia o processo de higienização
social no centro da capital paulista.
lar, memória e
resistência:
reflexos e
reflexões sobre
mercado
imobiliário,
homossexuali-
dades e o “tradi-
cional Bruno Puccinelli
bairro gay”
da cidade de
São Paulo
71
À esquerda, um domingo comum de encontro dos jovens. À direita, um protesto contra a homofobia, ocorrido
em fevereiro de 2014.
76 lar, memória e resistência
Essa tarefa de compor um lar não era apenas uma questão de mulheres
11 hooks , bell. negras prestando serviço; era a construção de um local seguro onde pessoas
Homeplace: a site of negras pudessem se afirmar umas às outras e, ao fazer isso, curassem muitas
resistance. Yearning: das feridas infligidas pela dominação racista. [...] foi em um desses “lares”,
race, gender, and cultural
politics. Boston: South muitas vezes criados e mantidos por mulheres negras, que tivemos a oportu-
End Press, 1990. nidade de crescer e nos desenvolver, de nutrir nossos espíritos.11
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nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetivi-
dade na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Eduerj/
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viril. São Paulo: Perseu Abramo, 2008 [1987].
sabsay , Leticia. Fronteras sexuales: espacio urbano, cuer-
pos y “democracia sexual”. Buenos Aires: Paidós, 2011.
Bruno Puccinelli
Finalizo doutorado em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e tenho me dedicado a
debater a questão urbana a partir de gênero e sexualidade
com especial foco aos conflitos gerados a partir da presença
homossexual no espaço público. Faço parte de uma rede
de pesquisadores e pesquisadoras ativistas que também
se dedicam a pensar gênero e sexualidade no Brasil e em
outros países.
o hiv
no fundo
do armário
lgbtq
Carué Co n trei ra s
79
nado ao hiv . Sendo uma condição ocultável, cuja mera menção pode
acarretar um estigma, a vivência com hiv desaparece. O hiv como
assunto desaparece. O silêncio é só um sintoma de um estigma tão in-
tenso que impede o próprio reconhecimento e sua inclusão como pauta
– como também ocorre com o racismo e outras opressões.
O estigma silencia inibindo o protagonismo de militantes
lgbtq que vivem com hiv . Calam-se, seja porque ainda são pri-
sioneiros do duro autoestigma ou por pragmáticas considerações
sobre as perdas sociais decorrentes de uma revelação pública de seu
status. A verdade é que os espaços políticos lgbtq não são espaços
seguros para pessoas que vivem com hiv . Quase não há espaços
seguros para nós.
Outro protagonismo silenciado é o do vulnerável ao hiv – os
negativos que poderiam discutir criticamente e enfrentar as razões
sociais dessa vulnerabilidade.
Um militante de hiv encontra dificuldades para romper o
silêncio, mesmo num espaço lgbtq . As discussões que tenta inserir
geralmente não encontram empatia ou ressonância.
Mas a forma mais agressiva de silenciamento é o esforço vela-
do ou descarado de dissociar hiv e lgbtq . Alguns setores procuram
se afastar daquilo que possa comprometer sua imagem, em busca de
assimilação por uma sociedade disposta a poucas concessões. É uma
postura expiatória, higienista e altamente estigmatizante, que lembra
a exclusão das populações trans pelo mainstream cisgênero gay. Essa
atitude se baseia em um entendimento acrítico e apolítico da epidemia
do hiv – e no fenômeno psicológico individual e coletivo de negação.
As consequências políticas e sociais da reprodução do estigma
relacionado ao hiv por lgbtq são devastadoras.
O estigma imobiliza a luta lgbtq diante de uma das principais
injustiças. Quando lgbtq compram e reproduzem o estigma, com-
pram também o discurso lgbt fóbico que o embasa: o hiv como mera
questão de responsabilidade individual por comportamentos desvian-
tes. Isso despolitiza a epidemia ao mascarar o fato de que é justamente
a exclusão lgbt fóbica a principal razão de gays terem 24 vezes – e
mulheres trans e travestis 49 vezes – mais chances de adquirir hiv do
que a ~população geral~.
Dessa forma, o movimento lgbtq abre mão de enfrentar essa
relação política entre opressão e doença – cuja face mais violenta é a
mortandade passada e presente. Só em 2015, mais de 3 mil homens
gays ou bi morreram no Brasil em decorrência da aids. Quanto disso
podemos pôr na conta da lgbt fobia? Quanto disso não poderia ser
chamado de genocídio?
82 o hiv no fundo do armário lgbtq
Carué Contreiras
Médico sanitarista, ativista e educador comunitário na
Unidade de Pesquisa do Centro de Referência e Treina-
mento em dst /aids de São Paulo.
ternura
radical
à cidade
87
seu lugar de trabalho.7 Por conseguinte, o próprio comércio da região 7 Graças às análises
das uit s (Unidades de
muda de perfil e se torna mais popular. Informações Territorial-
Logo, a construção do Minhocão estruturou uma série de izadas), constatou-se o
crescimento de grupos
outros usos e apropriações (de caráter social, econômico e artístico) com menor renda (até
3 s.m.), de 2000 a
que ressignificaram esse espaço e demarcaram novas territorialidades. 2010 nos entornos do
Apesar disso, as propostas que têm sido elaboradas, visando a minimi- Minhocão. Em alguns
bairros, esse crescimen-
zar os impactos urbanos negativos desse empreendimento, ignoram as to foi responsável por
uma mudança do perfil
territorialidades vulneráveis surgidas a partir de sua implantação. socioeconômico, já que
A vulnerabilidade pode ser atribuída, em grande medida, a dois os grupos mais pobres
constituem a maioria dos
fatores principais: os rumos da política urbana municipal e o processo domicílios (República,
45% e Campos Elíseos,
de especulação imobiliária. No primeiro caso tem-se, como principal 51%). Ver: <http://www.
fato deflagrador, o artigo 375 do Plano Diretor de São Paulo de 2014 uitgeo.sp.gov.br/>.
espacialidades conquistadas, estas ocupações são, sobretudo, políticas Tempo, São Paulo, n. 21,
2007, p. 15-31..
e devem ser consideradas nas discussões sobre a região.
89
cinco diferentes grupos13 mais vulneráveis aos efeitos da gentrificação, 13 Os cinco grupos são:
trabalhadores/moradores
dentre os quais está a comunidade lgbt +. mais pobres do centro,
Considerando a diversidade das relações sociais e de referên- imigrantes, comunidade
lgbt +, trabalhadores da
cias culturais da comunidade lgbt + enraizada nesse território, foram cultura e moradores em
situação de rua.
considerados como componentes desse grupo social: moradores lo-
cais; frequentadores habituais que têm forte identificação cultural com
a centralidade da região Arouche-República (muitos deles, moradores
da periferia da cidade); trabalhadores do sexo (prostitutas, michês e
dançarinas de boates); trabalhadores das atividades complementares
do comércio do sexo (das boates, bares, saunas, sex-shops, casas de
show, hotéis); turistas que não se enquadram no uso habitual, mas que
encontram na região um ponto tradicional de visitação.
Embora a pesquisa esteja em andamento, foram identificadas
algumas referências culturais, que serão reavaliadas e construídas com
os diferentes grupos sociais. Seguem abaixo algumas referências que
exemplificam as possibilidades de ligação da comunidade lgbt + com
o território, organizadas em cinco categorias:
referências
carrapatoso , Thiago. A verdadeira disputa entre direita
e esquerda. Paisagem Fabricada [Internet], 31 maio
2015. Disponível em: <http://paisagemfabricada.com.
br/2015/05/31/a-verdadeira-disputa-entre-direita-e-es-
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desejo: uma etnografia do Festival Mix Brasil de Ci-
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narrativas e territorialidades, v. 16, n. 3, p. 19-43,
set./dez. 2013.
smith , Neil. Gentrificação, a Fronteira e a Reestruturação
do Espaço Urbano. GEOUSP - Espaço e Tempo,
São Paulo, n. 21, 2007, p. 15-31.
Thiago Hersan
Raquel Parrine
99
Xidxdx Lxdx
Xidxdx Lxdx é um sistema/ritual para representar e visualizar
essa linguagem pós-humana construída pelas interações entre pessoas,
prédios, ruas, caminhos e outros agentes de nosso ambiente urbano.
É um tipo de continuação das discussões que começaram du-
rante o Laboratório Gráfico Desviante [p. 162]: a desnormatização do
design (tipo)gráfico, o colonialismo da palavra queer e as limitações
de idiomas com gênero.
Começamos o ritual marcando pontos afetivos em um mapa
– locais relacionados ao que estamos tentando ler/compreender/repre-
sentar. Os pontos podem representar uma palavra, uma frase, uma série
de acontecimentos, uma rotina, pessoas ou algum outro conceito que se
manifeste nas intra-ações entre humanos, cidade e linguagem. Depois,
um software artesanal, criado especificamente para esse projeto, analisa
os pontos e revela um glifo. Resultado de cálculos matemáticos e mís-
ticos, não estamos sugerindo que esses glifos passem a ser usados para
substituir palavras, mas que possam servir como uma ferramenta que
possibilite leituras alternativas de nossas relações pessoais, sociais…
Pontos que
marcam
lugares de
importância
afetiva para
nós.
Glifo
gerado com
base nesses
pontos.
101
Raquel Parrine
É doutoranda em Línguas Românicas e Literaturas
na Universidade de Michigan, onde estuda filosofia e
ética na literatura hispano-americana contemporânea.
É ativista feminista e coeditora da Revista Raimundo,
que publica novos autores lusófonos.Foi professora
de literatura hispano-americana na Universidade de
Brasília e tradutora de livros e filmes.
Thiago Hersan
Fez graduação e mestrado em Engenharia Elétrica
e da Computação na Carnegie Mellon University em
Pittsburgh. Pesquisa tecnologias de fabricação de
semicondutores e circuitos integrados,e trabalha com
educação, arte, cultura digital e jornalismo. É integran-
te do coletivo Astrovandalistas, que explora o uso de
tecnologia, arte, ativismo e design para ampliar as
possibilidades de comunicação afetiva, e criar expe-
riências públicas compartilhadas.
vogue no brasil:
intercâmbios
e apropriações
entre v i s ta co m F él i x P i men ta
p or E x p l o d e! Res i d en cy
103
rência dos vídeos e algumas pessoas 2 Tati Sanchis é coreógrafa e professora de dança. Formada
em educação física e dona da rede de escolas Casa da Dança
que tinham acesso às informações, Tati Sanchis.
mas que não repassavam… algumas 3 Archie Burnett é avô da House of Ninja, escolhido pessoal-
mente por Willi Ninja para integrar a house. É dançarino de
pessoas que são clubbers ou eram club- House e professor de vogue, waacking e Hustle.
bers e que tinham acesso. Repassar e 4 O festival, que acontece desde 2002, já reuniu mais de 20
mil bailarinos e mais de uma centena de atrações internacio-
expandir um pouco mais sobre o vogue nais. Disponível em: <http://fih2.com.br/novo>. Acesso em:
foi realmente com a entrada das danças 20 fev. 2017.
urbanas, o que possibilitou que ele se 5 Paula Zaidan é coreógrafa, professora de vogue e stiletto e
especialista em danças urbanas desde 2004. É integrante do
espalhasse e que viessem profissionais. grupo de dança Lipstick.
104 vogue no brasil
ao Paris is Burning,8 ou ao vogue que não é das minorias, e que foi quem le-
a Madonna colocou no clipe e na sua vou de lá para outros lugares. Então, já
turnê. A partir disso, nós começamos a não começou nas minorias, essa galera
ir atrás dessas informações, e a popu- não tinha nem acesso a essas informa-
larização do YouTube também ajudou ções. Muitas pessoas ainda não sabem
muito, porque chegavam vídeos rela- o que é vogue, mas têm uma vida muito
cionados: ao pesquisar o clipe Vogue, parecida, têm um comportamento, uma
da Madonna, apareciam sugestões vivência e o corpo muito parecidos com
como Paris is Burning, que eu assisti os de lá. Só que quem trouxe a dança
naquela época, além de outros vídeos para cá tinha outra estrutura, então
que deram mais acesso. Foi principal- a vivência já é de outra forma, essa
mente o YouTube, os programas de tv, relação já é muito diferente. Se a gente
o acesso maior às redes que ajudaram coloca uma das questões importantes
nessa popularização. do vogue, que é a questão lgbt , que é
Fora isso, tinha os intercâmbios, a questão principalmente das mulheres
que modificaram a forma como a dança trans, das drags. Não foi esse público
era realizada, que modificaram qual- que trouxe, foi o público heterossexual
quer outra dança urbana e a própria cul- mesmo, é importante analisar por esse
tura hip-hop, que surgiu com a questão recorte, porque ele já chegou pelo meio
do acesso, do privilégio à informação. de aulas em academias ou workshops,
Então, as pessoas que tinham poder e não pela vivência, pelos clubes, nem
aquisitivo maior tinham mais acesso e por uma cena drag ball ou mesmo pelas
podiam ir aos Estados Unidos para se balls9 que eram feitas (as competições
reciclar, ter aulas, ou mesmo só fazer direcionadas para o vogue) e que agora
alguns cursos e voltar. Muitas outras, começam a ser entendidas e realizadas
porém, não tinham essas mesmas fer- aqui no Brasil.
ramentas. No caso do vogue, principal-
mente, que é uma cultura que se mante- E!R: Você me disse que o vogue co-
ve e evoluiu no meio underground, na meçou a surgir no Brasil no início dos
cena drag ball, pela minoria, foi desco- anos 2000 e que em 2008 vieram os
berto pela galera que tem acesso, que primeiros professores internacionais,
como o Archie Burnett. Quando come-
çaram as primeiras balls e batalhas no
8 Paris is Burning é um documentário norte-americano Brasil, e como estão se desenvolvendo?
dirigido por Jennie Livingstone. O filme retrata a cena da
ball culture de Nova York e as comunidades lgbtq negras e
Elas estão transformando de alguma
latinas que a formavam, em meados dos anos 1980. forma essa cena que se iniciou num
contexto branco, heterossexual e com
9 O ball é o principal evento da cultura ballroom. Nele se alto poder aquisitivo?
reúnem representantes das houses e dançarinos de vogue
que batalham por suas houses e por suas histórias. É um
momento de catarse, no qual vida e morte são apresentadas
por meio de dança, performance, atitude e figurino. Em geral FP: A gente já tem essa referência de
as balls premiam seus participantes e servem como local de como o vogue [no Brasil] foi formado.
visibilidade e apresentação para aqueles que ainda não estão
inseridos nas houses. Esse caminho de a dança chegar até as
106 vogue no brasil
minorias está ocorrendo agora, e está se ver,12 e aí veio a ball do Rio, de Brasí-
discutindo sobre isso, estamos anali- lia, de São Paulo... E nesse momento a
sando essas questões, e começando a galera começou a entender mesmo e a
circular em outros espaços. A partir do ter coragem e estrutura para organizar
momento em que a galera se despren- as balls. É uma junção de tudo, desde
deu desse lugar de fazer aulas, buscou ter mais informações, ter estrutura,
como realizar uma ball, ver vídeos e ter ter discurso e ter um público-alvo que
mais contato com a galera de fora e que mantenha tudo isso.
realmente faz parte dessa cultura, é que Começou a ter uma diferen-
começou a se formar mesmo essa cena, ça entre a parte das academias, com
que não é só batalha, não é só aula. aulas, workshops e cursos regulares
Então desde que se começou a treinar e e quem faz e participa realmente da
a compartilhar informação, a entender cena vogue, desde o treinamento até a
o que são as categorias, as diferenças organização de miniballs, batalhas ou
entre cada categoria ou os gêneros de uma grande ball internacional e que
vogue, é que iniciou um movimento consegue trazer outras pessoas. Essa
maior de batalhas. Mesmo que fosse relação do acesso aos artistas de fora
somente “brincar de batalhas”, fora das se manifesta nessas relações, já que ela
estruturas de balls. E começou também acontece principalmente nas academias,
o movimento de festas com esse tema. onde esse acesso é mais fácil; quem
Surgiu aí um pouco mais de pertence às minorias não tem esse
espaço para o vogue, que não veio do mesmo privilégio ainda, mesmo nas
hip-hop porque ele não conseguiu aten- balls. Ainda é necessário que se tenha
der a essa demanda – o movimento não dinheiro, um investimento para poder
entendeu também e não deu espaço. organizar, alugar um espaço, para trazer
Quem começou no vogue conheceu a alguém de fora. É necessário fazer
galera dos clubes, que também queria parcerias, não [adianta] só vontade de
fazer essas festas, que estava come- organizar. A gente pode organizar umas
çando a discutir questões de gênero, balls de maneira simples, mas também
sabia o que era Paris is Burning e o que quero fazer uma internacional, tenho
era mais o menos o vogue numa visão
teórica. E foi uma junção perfeita, a dos
clubes com as festas, que se iniciaram
com as performances, depois as ba-
10 Extravaganza é uma festa itinerante entre São Paulo e
talhas e atualmente, nos últimos dois Berlim, que realizou em 2016 algumas performances com seu
anos, as balls direcionadas ao vogue. coletivo Vogue Extravaganza Voguing Crew, do qual fazia
parte Félix Pimenta.
Aqui a gente tentou, com a Extravagan-
11 Dengue A Festa! é um evento em Belo Horizonte criado por
za,10 mostrar de uma maneira diferente; Guilherme Morais, fundador da plataforma cultural This Is Not,
que realiza batalhas de vogue em cada uma de suas edições.
e as meninas de Belo Horizonte com a
12 bh Vogue Fever é um encontro internacional de dançarinos
Dengue,11 que é uma festa com batalhas de vogue que acontece em Belo Horizonte. São realizados
e duelos de vogue em todas as edições; workshops e aulas com convidados internacionais e uma ball
com batalhas de vogue. É organizado pela House of Afrodite
elas também realizam o bh Vogue Fe- (Trio Lipstick + bh is Voguing).
107
que trazer essas referências, as pessoas expressão, da vivência. Tudo isso ajuda
que fazem parte dessa cultura de lá. as pessoas a se reconhecerem nessa for-
Mas isso não é tão simples assim. ma de expressão. Mesmo no hip-hop, e
se nós pegarmos outras culturas fora do
E!R: Entre as danças urbanas, poucas hip-hop de diversos lugares do mundo,
são tão importantes e vitais quanto o a galera vai se identificar, esse público
vogue para a comunidade lgbtq negra, vai se reconhecer.
principalmente, e latina (quando você Trazendo para o vogue, ele tem
fala da realidade estadunidense). E o essa ligação grande com as questões de
waacking também entra nessa catego- gênero, o que ajudou muito na expan-
ria. Como você enxerga essa questão? são e no estudo sobre o vogue. A galera
Acredita que agora, com essa nova vivendo de uma forma bem diferente
mobilização, essa nova vivência e com por aqui enxerga semelhança com a
esses corpos (que como você mesmo forma como essa galera lgbt de lá
afirmou são parecidos com os da cena vive, como as drags, os gays, os trans,
original), as pessoas podem se empo- os negros e os latinos vivem lá. Tem
derar nas questões lgbtq e também da todo esse reconhecimento, não aconte-
população negra? ce só no Brasil. Tem todos esses outros
movimentos da galera latina, existe
FP: Sim, tanto que existe esse reconhe- essa importância de se reconhecer lati-
cimento principalmente no que está re- no. O fato de uma das principais e mais
lacionado à cultura hip-hop e às danças antigas houses,13 a Xtravaganza,14 ser
urbanas, que tem a ver com o discurso formada por latinos tem total importân-
e o lugar, como as pessoas vivem. Exis- cia para toda essa comunidade se reco-
te um reconhecimento nesse discurso, nhecer como latina. Tem um discurso
na imagem, no corpo – quando se vê forte aí, tem esse reconhecimento.
aquele corpo muito parecido, a forma Além disso, tem a questão da
como esse corpo se movimenta –, da movimentação. Muitas pessoas não
usam isso, mas eu gosto de usar essa
referência do movimento afrodiaspó-
rico. Sem querer, sem que as pessoas
saibam o que é exatamente a diáspora
13 As houses, também chamadas de famílias, são grupos
lgbt q s reunidos sob a orienteação de uma house mother ou
africana, o que significa afrodiaspóri-
um house father. Na comunidade ballroom, as houses se orga- co, elas estão fazendo uma coisa bem
nizam por estruturas de parentesco, configuradas socialmente
(e não biologicamente), nas quais mães e pais aparecem como parecida. É se reconhecer, executar o
figuras de autoridade, orientação e cuidado, além de manterem
a reputação das houses. Seus membros assumem como sobre-
movimento de um corpo idêntico ou
nome o nome de suas houses (Ninja, Xtravaganza, LaBeija, bem parecido sem ter tido contato ante-
Garcon, Balenciaga, Mugler etc.).
rior; e conseguir executar e se reconhe-
14 House of Xtravaganza é uma das mais conhecidas e difun-
didas houses de Nova York. Fundada em 1982, é conhecida cer muito bem nisso. Para mim é muito
pela atuação na cena ballroom e pela influência em áreas
como dança, música, artes visuais, vida noturna, moda e ativ- relevante esse fator do movimento
ismo comunitário. Seu fundador é Hector Valle. Disponível afrodiaspórico, que está no vogue, que
em: <www.facebook.com/HouseOfXtravaganza/?fref=ts>.
Acesso em: 21 fev. 2017. vem do hip-hop, e que também está
108 vogue no brasil
nas outras danças urbanas norte-ame- FP: Sobre a questão das houses, a gen-
ricanas e que são reconhecidas aqui no te faz essa ligação com o começo da
Brasil e em outros lugares. cena ball aqui no Brasil, que tem a ver
O movimento afrodiaspórico e com o reconhecimento dessa galera.
as questões de gênero são fatores muito Acontece de uma maneira diferente,
fortes a meu ver, e fazem com que as mas tem relação com a ideia de crew15
pessoas se reconheçam. Mas obviamente no break, no hip-hop e nos outros
haverá mudanças, porque cada país vive grupos, que é essa vivência muito pró-
de uma forma diferente e tem expe- xima. É se reconhecer, se reconhecer
riências diferentes. Então, mesmo que como família porque você se reconhe-
minha religião seja igual à de lá, ou que ce no outro, está passando pelas mes-
seja a mesma, a minha representação e a mas coisas, vivem praticamente juntos
forma de falar, por exemplo, são diferen- e têm ideias bem parecidas. Essa refe-
tes; a minha forma de me movimentar e rência no hip-hop e no vogue é muito
de me expressar são diferentes das de lá. parecida. O que no vogue é muito
Essa modificação é automática quando diferente e remete ao começo das hou-
ela chega no meu corpo. E tem uma ses de lá é exatamente a forma como
coisa da qual eles [os estadunidenses da as pessoas viviam, em lugares de total
cena vogue] gostam também e que faz exclusão; as pessoas se juntaram sem
toda a diferença. Não deixa igual e não ter nada e se fortaleceram a partir
fica tudo quadrado: como cada povo dessa união. Aqui também, mas numa
se utiliza também dessa cultura ou se estrutura totalmente diferente, ainda
fortalece de alguma forma e consegue que com certas dificuldades, inclusive
acrescentar também a sua maneira. em relação às questões históricas do
mundo de hoje e do que acontecia na
E!R: As houses têm papel fundamen- década de 1960. Uma galera acaba
tal como criadoras e fomentadoras se juntando por causa do intercâmbio
dessa dança urbana, além de seu papel entre os estados, em eventos que as
social nas comunidades lgbtq nos pessoas se matam para ir. Ali criam
Estados Unidos. Quando vieram ao conexão e ficam um tempo trocando.
Brasil, o Legendary Icon Pony Zion Existe esse reconhecimento, essa co-
convidou você e Eduard Kon para nexão, que muitas vezes não é com a
formarem e serem pai e mãe, respec- galera próxima, da mesma cidade, mas
tivamente, da House of Zion, dando sim com a de outros estados. Por outro
continuidade ao que as houses nor- lado, é muito diferente de uma galera
te-americanas fazem em seu país de
origem. Além disso, já existem outras
houses pelo país, com características
específicas conforme as necessidades
locais. Como você vê o papel das 15 Crew é um termo comumente utilizado em grupos de
houses no Brasil e como imagina o dançarinos de danças urbanas. Originário do inglês significa
grupo de pessoas que trabalham ou atuam em uma área co-
funcionamento da House of Zion? mum, estruturados em uma organização hierárquica.
109
do Rio, onde tem a House of Kínisi16 e sendo bem visado por algumas pessoas
a House of CaZul,17 que são formadas de fora: já que estamos fazendo o que
pela galera da mesma cidade. Eles têm eles fazem lá, eles vêm pra cá, ensi-
um contato muito mais fácil para se nam como fazer, falam como respeitar
reunir, dormir junto, ir para os eventos essa cultura e também como se formar
todos juntos, do que outras formações essas houses oficialmente conhecidas
que vieram agora de fora, como deve e as não oficiais, ou quick houses,18
acontecer com a House of Zion. Como como criar esse comportamento em
se reunir, criar os pontos com uma balls oficiais, se você é 007,19 se você
galera que está no Sul, com uma ga- representa a house oficial ou uma
lera que está em São Paulo, com uma quick house etc. Tem toda essa deman-
galera de Belo Horizonte? É um pouco da que a gente está tentando entender,
diferente. Algumas meninas de bh têm e a galera precisa tomar cuidado tam-
uma vivência muito mais forte, elas bém para não ser guiado só por nomes;
se veem com mais frequência, é mais para que, quando uma house de reno-
fácil a conexão. Existe outra forma de me vier escolher alguns nomes para
as houses acontecerem aqui, que é se sua house, não se exclua quem poderia
reunindo esporadicamente, em algum fazer parte disso e opte só por nomes
evento, tentando se comunicar da que são reconhecidos; para que não se
melhor maneira possível e pensando façam formações nem criem nichos
em organizar ações, expandir e passar e se separe mais a galera, e que se
informações, cada um à sua maneira. impossibilite o acesso de quem precisa
A questão hoje é que o Brasil está dessa informação. O momento agora é
de não segurar essa informação e per-
mitir que o maior número de pessoas
tenha acesso a ela. Tentar ao máximo
popularizar o vogue. O mínimo que
16 House of Kínisi é um coletivo cujo intuito é difundir a tento fazer é popularizar o vogue, e
cultura das drag balls, através da dança vogue, no Brasil.
Disponível em: <www.facebook.com/houseofkinisi>. Acesso esse é o conceito que vou tentar levar
em: 21 fev. 2017.
para a Zion. Eu e o Kon conversamos
17 House of CaZul é um grupo de arte voltado à dança vogue.
Em suas concepções coreográficas usa diversas outras danças, um pouco sobre algumas pessoas que
linguagens e estudos. Disponível em: <www.facebook.com/
houseofcazul>. Acesso em: 21 fev. 2017.
têm a ver com o discurso, que podem
18 Kiki Houses são houses menores, com público mais jovem
ser consideradas da House of Zion.
e, no contexto norte-americano, fortemente ligadas a divul- Foi assim também, a House of Zion
gação, prevenção e orientação sobre o hiv nas comunidades
latinas e negras. Atualmente, só nos Estados Unidos existem estava tecnicamente parada e o Pony
houses oficiais, com exceção da House of Ninja em Paris,
representada por Lasseindra Ninja – todas as outras houses
não a movimentava. Ele veio para cá
internacionais são consideradas Kiki houses. As Kiki houses [Explode! Residency], se emocionou
organizam as Kiki Balls, onde podem competir e dançar o
vogue; porém, quando um de seus membros participa de uma com o evento, com as balls da Explo-
batalha oficial, ele entra como 007 (somente os membros das
houses oficiais podem participar com o sobrenome de suas
de! Residency e do Ataque Queer! e
houses.). A cena das Kiki houses norte-americanas pode ser decidiu, depois de toda essa vivência
vista no documentário Kiki <www.kikimovie.com>.
aqui, colocar a gente na linha de frente
19 007 é o dançarino de vogue que não pertence a nenhuma casa
e participa das balls à espera de ser convidado para uma delas. para direcionar e colocar em atividade
110 vogue no brasil
a Zion aqui no Brasil. E eu tenho essa Não é só isso, não é só uma moda, vai
ideia mesmo, de popularizar e chamar muito além disso. Ele só existe até hoje
as pessoas que tenham um discurso porque a galera foi resistente e foi bem
legal e bem próximo e que tenham dura também. Houve brigas. Foram
ideias parecidas, para que seja uma várias formas de manter essa cultura
house com pé no chão. viva até hoje. Independentemente de
estar na moda ou não, essa cultura vai
E!R: Gostaria de falar algo mais sobre continuar. Agora, como as pessoas vão
o vogue na cena brasileira, algo que trabalhar todas essas informações e
considera importante ser lembrado? como essas informações vão até quem
realmente importa? A galera comer-
FP: É importante retomar a questão dos cial vai explorar essa cultura até dizer
intercâmbios e das apropriações. Para “Chega, vamos parar, qual é a próxi-
qual público o vogue está chegando? ma?”. Eu já vi isso acontecer: leva-se
O vogue está se apropriando de quem? para o estúdio, passa um ano e esque-
Isso tem a ver também com o vogue es- ce, não dá continuidade. Tem que ser
tar sendo estudado, virar referência em levado para mais pessoas e para quem
tcc s, monografias e afins. É necessário realmente vai dar continuidade à cena
tomar cuidado, não só no Brasil, mas – menos para o lado comercial e mais
no mundo todo: para quem o vogue está para o underground. E ter cuidado, tam-
sendo direcionado e compartilhado, e bém, para não embranquecer o vogue,
para quem não está? Porque, até então, que é uma das questões mais tensas, a
vejo o vogue chegando em alguns da apropriação cultural. Ela acontece
lugares apenas para um público que é de maneira muito sutil: primeiro pela
muito privilegiado. E a parte do públi- estrutura capitalista, que dá prioridade
co que não tem esses privilégios? Tem apenas para algumas pessoas e faz com
que se pensar em formas de popularizar que a apropriação aconteça de maneira
mesmo, de facilitar o acesso e as infor- suave, e quando isso é questionado, o
mações, de dar poder para que algumas teor da questão é visto como agressão.
pessoas possam ter acesso a tudo isso, É um problema que precisa sempre ser
para que possam se empoderar dessa debatido, além da inclusão do vogue.
dança. Como a gente faz para empode- Como tornar o vogue acessível a um
rar as pessoas com todos esses instru- número maior de pessoas? É a questão
mentos? É muito fácil para uma galera que deixo para todo mundo, e é impor-
das academias ter todo esse reconheci- tante sempre pensar nisso.
mento e acesso a essas informações, e
isso ficar só nesse segmento. Estudar
vogue porque agora é o que está sendo
reconhecido, porque está na moda. Um
problema da moda é esse. Escutei esses
dias a frase: “O vogue é bem 2016”.
111
Félix Pimenta
27 anos, dançarino performer, pesquisador, professor e
coreógrafo de danças urbanas. Especializado nas danças
waacking e voguing, é membro da House of Zion – Chapter
Brasil e da ihow (Imperial House of Waacking) – Chapter
Brasil, Coletivo Ritmos de Rua, Cia. Crioulos e Afronte
coletivo de performance. Ministra workshops, aulas e faz
júri por todo o Brasil. Performer da noite paulistana, é
participante de batalhas em diversos eventos.
Explode! Residency
ver página 126
Programas
atividades realizadas 113
durante 2016
São Paulo - SP
ataque!
10 de setembro, 2016
Praça das Artes 114
Centro, SP
ataque!
115
ataque!
116
Pony Zion em
A Cultura do Ball
Norte-Americano
117
Fotografias de Ajamu
Ikwe-Tyehimba para sua
intervenção popup studio.
Abaixo, cartazes do Labo-
ratório Gráfico Desviante.
Interiores
Claudia CineyLips, rodeada por
esmaltes, propõe fazer as unhas
do público ao mesmo tempo que
troca experiências de vida com
os participantes.
118
por Thiago Carrapatoso
No início do planejamento e das ver outro meio de fazer esse lugar onde
pesquisas sobre o que seria uma Cidade vivemos. A questão, porém, é que em uma
Queer – ou uma cidade vista por uma estrutura sisuda, mostrar outros meios
perspectiva não hegemônica e muito mais de existir se tornaria uma função ingrata.
emergente –, surgiram diversas temáticas, Teríamos que agarrar de supetão os temas
mas nenhuma nos garantiu que o caminho que nos são caros, como um Ataque! ao
traçado durante todo o ciclo chegaria a uma que, então, nos mostraram como “normal”.
conclusão. Ou que oferecesse algum viés O último evento do Cidade Queer
de resposta. Como imaginar a estrutura de seria esse Ataque! à cidade. Para isso,
uma cidade como São Paulo de forma mais escolhemos um lugar que, além de abrigar
orgânica, se há pelo menos um século, com a escola municipal de dança da cidade,
mais ou menos horizonte a se ver, prevale- também é a representação moderna do
ce a concepção rígida? E como poderíamos que arquitetonicamente temos hoje: a
demonstrá-la por meio de um ciclo de praça das Artes, com sua estrutura rústica,
atividades, convidando agentes para atuar e dura, bruta. Tendo como ponto de partida
para considerar algo que nem nós mesmos a experiência da residência Explode!,
sabíamos o que queríamos atingir? pensamos em uma programação que,
A trajetória, que vocês podem conferir no período da tarde, abrisse um espaço
até neste livro, nos mostrou diferentes pers- discursivo e prático para o que estávamos
pectivas – não necessariamente sobre uma propondo e, à noite, se tornasse uma
cidade, mas sobre modos de agir nessa es- batalha: de corpos, vestimentas, passos.
trutura urbana saturada e caótica. Nesses Enquanto nos andares de cima da praça
modos de agir, de viver, veem-se pequenas ainda se tenta preservar o clássico – ou,
faíscas, desdobramentos, reinvenções que como alguns chamam, o “erudito” –, em
apontam para outro lugar, outra concepção seu vão organizamos uma batalha de
de organização de uma sociedade. voguing, com concepção de Félix Pimenta,
Uma cidade – digo e repito – é uma para encerrar todo nosso ciclo.
abstração: fruto de um imaginário para
lidar com fluxos constantes de capital e
comunicação – fluxos esses que, por si
só, nem existem, são apenas virtuais. E
nesse tráfego todo existe a gente. E como
a gente é subordinada a esses fluxos, tem
que estar perto, dentro do nó, para que
assim os fluxos não se quebrem e a vida
(qual? e de quem?) possa continuar tran-
quilamente. Talvez por isso – por estarmos
dentro desses fluxos que foram criados e
violentamente aplicados em nós – seja tão
difícil imaginar uma estrutura de cidade
que seja completamente diferente (ou seja,
não estruturada, mas sim estruturante) da
que estamos acostumados a ver neste um
pouco mais de século.
As faíscas, então, que encontramos
durante os meses de atividades mostraram
que há diversas temáticas que precisam
ser exploradas mais a fundo, publicamente,
junto com os que ainda não puderam
119
Da esquerda
para a direita,
Monstra
Errátika (Jota
Mombaça),
Bibi Abigail e Vi
Grunvald em
Descoloniza-
ção do Queer
120
les Études Féministes (Cedref), da Université
Paris Diderot – Paris 7. Estudou no Departa-
mento de Sociologia da Howard University
(2006) e iniciou seus estudos de gênero e
feminismo no Núcleo de Estudos da Mulher
e Gênero da usp (Nemge). Paralelamente,
desenvolve trabalhos com literatura femi-
nista negra e com artes plásticas.
Aids hiv
Bem no início das pesquisas para o palcos dos teatros. Entre 2010 e 2013
ciclo do Cidade Queer, surgiu a seguinte residiu em Düsseldorf (Alemanha) e em
questão: Por que as discussões locais so- Paris (França), onde realizou trabalhos em
bre o vírus na década de 1980 não ganha- parceira com companhias e coletivos de
ram tanta repercussão quanto o que ficou dança como E-motion Crew, Notik Dance
conhecido como A Crise da Aids novaiorqui- Company e Time Room Lockers. Atuou
na? Essa mesa foi organizada com o título também como preparador corporal no
aids (que está riscado acima) justamente Teatro de Oberhousen (Alemanha).
para tentar entender esses processos. A Cadu Oliveira é envolvido com ações
discussão, além de abordar isso, também de voluntariado desde 1996. Hoje é mili-
abriu nossos olhos para o uso errôneo que tante nos coletivos A Revolta da Lâmpada
fazemos das terminologias sem nem nos e Cume. Também fez parte da produção
dar conta. É por isso que, neste livro, adoto da Conferência [ssex bbox ]. Participou
o hiv . E aproveito para agradecer aos de mesas na unip Jundiaí, fesp , Casper
grandes que nos abriram os olhos: Líbero e usp .
Flip Couto tem formação artística
construída dentro da cultura hip-hop.
Desde 2003 integra a Cia. Discípulos do
Ritmo, sob a direção de Frank Ejara, que
em 1999 teve a iniciativa de convidar
dançarinos de danças urbanas com o
intuito de levar essas linguagens aos
121
Ataqueridas
Ataque foi uma convergência bem no Xangô e Eleguá, com as queridas todas na
coração sangrento e pulsante da cidade de estica com seus penduricalhos e piruetas,
São Paulo, e o baile, um teatro do desejo derrubando eventuais dúvidas e provando
em pleno funcionamento. Aprendi a me que o Bash Back Queer não deixa barato.
mover em espaços assim, com corpos Foi uma noite histórica, com as Ataqueri-
polissexuais nas pistas de house negras e das consagrando a Casa Brasileira de Zion
pardas de boates como a Pan Dulce e a Lift, e vestindo a camisa da afirmação de gê-
a Anthem e a Corazón. A gente pavoneava neros que não se deixam comunicar nem
pelos bairros de Mission e South of Market conter em algumas poucas vogais. A cole-
em San Francisco, nos Estados Unidos, na tividade dinâmica dessa dança presencia-
década de 1990, pouco antes da explosão da em meio à urgência e às contestações
das empresas de tecnologia e da aniquila- do núcleo de São Paulo foi um momento
ção neoliberal. Aprendi a fotografar também explosivo de reconfiguração, com a cidade
nesse ambiente, fazendo uma longa série que condiciona, mas também acabou
de imagens em meio aos vinis que giravam sendo condicionada, por um creative com-
suaves e sem fim, emitindo aqueles sons mons de cor primorosamente queer. Um
eletrônicos tão ricos. momento para desfilar, fazer suas poses,
Assim, vinte e poucos anos depois, entrar na batalha e simplesmente ser, tudo
o Ataque me pareceu maravilhosamente isso embalado numa mistura mágica..
familiar, como se estivesse visitando a casa
de um primo mais novo de segundo grau e
me dando conta da profunda afeição que
sentimos um pelo outro. Estava repleto
de pessoas adoráveis e cuidadosamente
escolhidas, que juntas se tornaram as
Ataqueridas, numa explosão de poses que
se organizavam por si só, provocando uma
verdadeira devastação com seus ângulos
em alternância e belezas ondulatórias, sem
nunca deixar de intimar infinitas ecologias
emocionais. As pessoas assumiam papéis
distintos ao longo da noite, indo de perfor-
mer a juiz, de concorrente mais fervido a
fã fervoroso, de público abismado a com-
pañera mais próxima. Eu queria fotografar
o movimento por dentro e de cima, convi-
dar essas imagens que pulsavam com a
inventividade, a irreverência, a intimidade,
a intensidade e a delicadeza daquele baile.
Em meio às sombras e holofotes, o
sensor digital percebia peles indígenas,
sintetizadoras e oriundas de diásporas, in-
fundidas por conta própria num espírito de
independência, paz, respeito e igualdade.
Incorporações negras de Iemanjá em vários
tons, irrompendo nas águas e dando à luz
122
Pato Hebert
É artista, educador e gestor. Seu trabalho explora
a estética, a ética e a poética da interconexão. É
professor de artes na Tisch School of the Arts, New
York University. Também trabalha com iniciativas co-
munitárias de hiv / aids com o Global Forum on msm
& hiv (msmgf).
123
Batalha
Independência ou Lacre! Batalha de
vogue organizada em três categorias:
Geração Tombamento, inspirada na atual
geração jovem, negra e de periferias brasi-
leiras, convida ao tombamento através de
um visual representativo e empoderado;
Bizarre Down the High Society: apresen-
tação do lado mais excêntrico da high
society (a crise está virando zooonaaa.
Cada um por si e todo mundo na lona...);
Runaway Lacração em high Fashion:
apresentou o nível mais alto da moda na
passarela – a lacração!
A batalha contou com R$1.500 distri-
buídos entre os vencedores. Teve um júri
composto por nada menos que Michael
Roberson, o Legendary Icon Pony Zion
(ambos de Nova York) e Paulo Henrique
Rodrigues, de Brasília. O comentador foi
Eduard Kon, nomeado por Pony Zion como
“mother” da House of Zion no Brasil.
A abertura da noite contou ainda com a
performance Freedom, de Aretha Sadick.
124
125
explode! residency
agosto-setembro 2016 126
Vila Nova York,
Zona Leste, SP
explode!
residency
127
explode! residency
128
Explode! Residency:
de um espaço de segurança
a um espaço de coragem
por Cláudio Bueno e João Simões com mos tentar pensar sobre isso a partir das
residentes da Explode! Residency: Aretha questões de comunicação que tivemos na
Sadick, Aline Scátola, Cadu Oliveira, Danie- residência, em que havia a necessidade
la Mattos, Danila Bustamante, Ezio Rosa, de tradução porque nem todos tínhamos
Félix Pimenta, Jo Gada, Lee Ann Norman, o domínio do inglês. Eu ouvi muito mais
Mavi Veloso, Michael Roberson, Nega (Raquel do que falei na residência. Por conta da
Blaque), Nube Abe, Paulo Scharlach, Pony necessidade de tradução ouvi duas vezes,
Zion, Raphael Daibert, Robert Sember, uma em inglês e depois em português,
Shawn Van Sluys, Tiago Guimarães, Todd e esse exercício de escuta duplicada foi
Lester, Yeti Agnew. extremamente cansativo e interessante.
Foi como se estivessem ratificando o
Não ter sido oficialmente convidada dito, ou também como numa leitura difícil
para a residência, mas ter acompanhado a gente precisa ler mais de uma vez pra
um amigo convidado [Ezio Rosa] num conseguir entender. Ouvir mais de uma
lugar que também era novo pra ele, se vez e depois falar pausadamente para
apresenta para mim como os nossos ser compreendida não é um hábito do
corpos ainda precisam ocupar alguns sujeito contemporâneo. A pergunta que
espaços. Como ainda para nossos corpos me faço é: Como resistir às imposições
pretos, pobres, afeminados temos que de uma língua colonizadora? Como não
estar num movimento de nos inserir em lu- se permitir dominar pelas ferramentas dos
gares que hegemonicamente são brancos, dominadores sem se excluir dos lugares
causando e sendo um desconforto. Pode- dominados por eles? — Jo Gada
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Explode! Residency foi uma imer-
são-residência de onze dias (entre 23 de
agosto e 2 de setembro de 2016), em uma
casa na Zona Leste de São Paulo, loca-
lizada na Vila Nova York, onde Cláudio
Bueno morou até os 22 anos e seus pais
até 4 anos atrás.
Nesse local, a 20 km do centro da ci-
dade, esteve reunida uma comunidade de
artistas visuais, performers, dançarinxs,
agentes culturais, militantes e pesquisa-
dorxs, engajadxs em pensar e apresentar,
a partir dessa zona autônoma temporária,
as potências desses corpos periféricos enunciativos de histórias e relações sociais,
urbanos, dispostos a assumir, com suas eles nos trouxeram a intensificação da
ideias, saberes, lutas e presenças, o perspectiva política dos sons. Esse grupo
protagonismo e a transformação do mundo de artistas-ativistas militam por questões
atual, especialmente no contexto brasilei- raciais, de migração, desenvolvimento
ro, tomado por retrocessos, conservadoris- participativo de comunidades e criação de
mos e violência. políticas de hiv /aids.
Além dos encontros públicos que Entre os sons noturnos do bairro – do
atravessaram a residência, com diferentes possível ladrão de galinhas no telhado
falas sobre corpos, periferias, gênero, se- ou do tiro seco do trêsoitão –, dançamos
xualidade, migração, dança, colonialidade e diferentes estilos musicais de contestação,
aprendizagem, estiveram conosco, compar- de resistência e de luta. Músicas que po-
tilhando sua metodologia de escuta, os inte- tencializam corpos negros, feministas, não
grantes do grupo norte-americano Ultra-red. binários, transgêneros, gays, pobres, latinos
Com uma pesquisa baseada no som e no etc. – como o vogue (enfatizado nesse pe-
mapeamento de espaços acústicos como ríodo pela presença do legendary icon Pony
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Zion e do brasileiro Félix Pimenta), – além conhecimentos e imaginar mundos, corpos
do funk carioca, do hip-hop, do samba e e vivências outras.
outros. Caminhamos pelo entorno da casa, Se a noção de casa remete idealmente
nos colocamos no bairro, dançamos na rua a um local físico de acolhimento e perten-
e partilhamos uma longa conversa e escuta. cimento, buscamos instaurar bases para
Acreditamos nesse processo imersivo um espaço de segurança e intimidade que
e num modo de aprendizagem baseado na guarde a potência e a braveza de também
escuta como intensificadores de uma longa acontecer no mundo, local mais suscetível
conversa e debate, capazes de desenca- aos conflitos e aos embates diante das di-
dear as questões mais profundas e urgen- ferenças, uma casa-mundo, sem paredes.
tes a nós. Vislumbramos, na escuta, a pos- As ideias compartilhadas nesse espaço
sibilidade de produzir um saber que passa fechado podem agora contaminar outras
pelo corpo, que não repete (ou repetiria em pessoas e potencializar novos encontros,
menor grau) o que já é sabido de antemão. corpos, afetos, sensibilidades, políticas e
Dessa forma, talvez seja possível, em algu- ativações para fora dessa situação e locali-
ma medida, pensar na descolonização dos zação temporária e específica.
Traduzir aqui algo vivido na intensidade
de uma experiência direta do corpo e dos
diálogos mais íntimos entre um grupo
de pessoas somente poderia ocorrer na
pluralidade de visões-escutas-falas-escri-
tas-vozes de cada um dos participantes.
Para tanto, perguntamos a todxs, como
nos perguntaram os membros do Ultra-red,
Michael Roberson e Robert Sember, ao
longo de toda a residência, sempre após
uma caminhada ou compartilhar conteúdos
na sala de casa: What did you hear? O que
vocês escutaram?
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Aretha Sadick
Meu nome de registro é Robson
Rozza, mas pode me chamar de Aretha.
Tenho 27 anos, sou ator, atriz, performer e
designer de moda. Eu vim para cá [Explo-
de! Residency] pela minha pesquisa dessa
imagem, dessa identidade negra, dessa
performatividade do trânsito do masculino
para o feminino; pelo meu engajamento e
pela consciência de que eu estou criando
algo que não é estável. E também por
causa dessa experiência com a residência, continuar enxergando esse lugar que
dessa oportunidade de passar um tempo pessoas como eu não podem transitar
junto. Um recorte que é maravilhoso e ao de maneira mais livre. Aqui [na Explode!
mesmo tempo muito bruto, de sair do nos- Residency] eu reforcei essas percepções.
so cotidiano e estar com outras pessoas, Tem horas que a gente fica se indagando:
dormir e acordar com elas, beber, comer “Eu estou meio louca, né? Fico acreditando
etc. Onde mora a força? Eu brinco com as em coisas que várias pessoas não acredi-
pessoas quando me perguntam: “Você está tam, que não fazem sentido”. Então é bom
bem?”, e hoje em dia eu respondo: “Eu encontrar os pares, encontrar os comuns,
estou viva”. E é isso. É se manter viva num as pessoas que também acreditam nisso.
lugar assim, neste mundo. Viva em todos E você olha para pessoas como você
os aspectos, não só fisicamente, mas emo- e pensa: “Ai que bom. Eu não estou só
cional, intelectual e esteticamente. Então, nessa caminhada. Não é loucura minha”.
atualmente, eu entendo a força como esse Porque é isso, a gente começa a questio-
lugar de estar viva. Pessoas como eu têm nar tudo, todas as coisas, como elas estão
que pensar duas ou três vezes antes de ir organizadas. Estar aqui foi reforçar esses
a determinados lugares. A força está no lu- pensamentos e ver que eu não estou
gar dessa vida (escolha) aonde dizem que vislumbrando esse lugar para pessoas
eu não devo ir, mas eu vou e como vou. E como eu, que não estou sozinha, existem
eu vou para manter minha presença viva outras como eu querendo construir esse lu-
nesse lugar. É um esforço, é preciso muito gar. Não só vislumbrando, mas construindo;
trabalho, físico, emocional e mental. Mas gente construindo junto. E foi isso, intenso.
acho que a força mora nisso e também Para mim as palavras são intensidade e
nesse lugar que eu vejo: de pessoas como cura. Porque, como falei em outro momen-
eu, que vieram do mesmo lugar que eu. to, essas dores e esse peso que senti e
De conseguir trabalhar todos os dias para levei na oportunidade que tive ao sair da
casa e voltar, e ver isso curado – foi posto
para fora, foi discutido com outras pessoas,
foi compartilhado. Uma cura intensa. Não
tem cura sem dor. Não tem como curar sem
doer. A dor e a cura estão interligadas.
132
vezes, ouvir Michael, Lee Ann ou Ponny
trazia uma sintonia muito próxima à dos
papos com Aretha, Jo Gada, Ezio ou Félix.
Existia para além da língua um elo tão
forte que, na aula de vogue, Ponny propôs
o DropDead, e eu o fiz sem pensar duas
vezes, embora fosse uma realização inima-
ginável para mim antes disso. Estávamos
em um ambiente seguro de aprendizado e
experimentações onde as possibilidades
eram infinitas. Isso nos colocou em contato
com assuntos importantes, como a infecção
da população preta pelo hiv , questões de
gênero e sexualidade, a situação dos refu-
Aline Scátola giados e, até mesmo, de enxergar nosso
Vi resistência, força e criatividade. país por meio do olhar dos companheiros
Ouvi expressividades que celebram origens, de outros países com toda sua beleza,
ultrapassam linguagens e transbordam sons e particularidades. A produção artís-
territórios. Senti o acolhimento de dores e tica era efervescente em nossos corpos,
delícias, a potência das agências, a força performances, registros, festas e na comida
dos quereres, a grandeza das existências. da Nega. Eu venho trilhando um caminho
Todo corpo é político, herético e divino. de autoconhecimento intenso e profundo
com a Comunicação Não Violenta, círculos
de convivência e as performances de
gênero, por isso minha gratidão é imensa
a todos os presentes e realizadores por me
possibilitar colocar essa residência entre
essas práticas transformadoras. A imersão
na Explode! Residency foi muito potente,
porque trouxe trocas genuínas e marcantes
Cadu Oliveira com pessoas admiráveis que se tornaram
A primeira coisa que me impressionou um círculo generoso de convívio. Embora o
em minha experiência na Explode! Resi- Brasil tenha em sua população uma expres-
dency foi o número de pessoas negras e a siva maioria de pretos e pardos, é muito
diversidade existente dentro desse grupo, difícil num espaço de arte e conhecimento
não só de nacionalidades, mas de vivências estarmos, nós negros, tão amplamente
e de gênero. Infelizmente, é raro estarmos representados. Representatividade importa,
juntos em número significativo em ambien- transforma e fortalece.
tes produtores de arte e conhecimento que
não sejam exclusivamente de discussão
étnica. Conhecer a cultura vogue, aproxi-
mar-me dela e descobrir no ballroom um
“templo”, foram imagens emocionantes
sobre o sentimento de pertencimento e de
celebração das identidades, e que me re-
metem diretamente ao “fervo também é luta”
e ao “corpo livre” que temos como diretrizes
na Revolta da Lâmpada. É evidente a
influência que existe em fazer parte de um
povo marginalizado e excluído. E isso criou
em mim uma empatia tamanha que, muitas
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Ezio Rosa
Pela primeira vez
na história deste país
(risos) tive a minha arte
reconhecida em um
desses espaços que
sempre se mostrou tão
distante da minha reali-
dade periférica. Eu era
uma das poucas pessoas
que precisavam de
tradução e, após muitos
apontamentos, críticas e
acordos, juntos conseguimos identificar e
resolver esse ponto que é o processo de
descolonização dos saberes. Durante a re-
sidência, eu e a minha mana Jogada Away
ocupamos um cômodo da casa que era
semelhante a um aquário e como partimos
de um lugar de fala parecido, performamos
juntos por cerca de seis ou sete horas.
O trabalho se chama Cuida do Black! e
nessa performance eu trançava o black de
Daniela Mattos Jô enquanto escrevíamos nos vidros da
O afeto se destacou entre as coisas sala sobre o processo, e nesse momento
leves e pesadas que compartilhamos, me caiu a ficha de qual arte é essa. Essa
desfizemos binarismos, empatizamos entre é uma arte periférica e que, embora
nós... De fato, convivemos. invisibilizada o tempo todo nos espaços
das belas-artes, grita a plenos pulmões
pelo seu direito de existir. A residência me
trouxe muitas reflexões profundas, mas de
fato o que ficou é a força para lutar e criar
minha própria narrativa, com essa arte que
Danila Bustamante se cansou de pedir licença para ser e estar.
Em meio à intensidade das cores, à Eu existo, nós existimos.
potência de cada diferente, ao drama cole-
tivo e a um condensado de histórias muito
mais que reais: eu vi, eu me vi e me viram.
Essa conexão explosiva fez brilhar ainda
mais as minhas questões
sobre qual é a imagem
feminina que passamos
adiante, qual existência e
visibilidade é real em um
corpo em movimento.
134
Lee Ann
Norman
Um começo…
um esforço sin-
cero de mover-se
para além da
superfície de
coisas como
números, índices
e representação,
e começar a
Félix Pimenta
repensar como as pessoas estabelecem
Sobre a vivência no Explode!
o espaço com as outras. O difícil traba-
Residency, foi muito importante sentir
lho de encarar intersecções, expressar
a necessidade de escuta. Escutar e vi-
empatia por posições que, para você,
venciar todas as histórias, principalmente
talvez sejam estrangeiras ou difíceis de
saber que eu não estou sozinho, que as
entender... um verdadeiro mergulho em
histórias são muito parecidas, criando
vulnerabilidades dificultosas.
assim muitas conexões – e, com essa
experiência, poder criar muitas outras
coisas juntxs. E nós estamos criando!
Mavi
Jo Gada Veloso
A residência foi toda preenchida por Acolhida
uma arte de resistência queer, o banheiro respeito conflito
virou um estúdio fotográfico de closes guerrilha raiva
monstruosos, da cozinha saíram obras revolta busca
de arte que nos alimentaram com o que de força energi-
normalmente iria pro lixo e, no aquário de zar-se no colo
vidro que tinha no quarto, trançamos afetos, do semelhante
desenhamos um mural de emoções, rabis- diferente cada
camos nossas contradições e queimamos um com sua
nossa consciência colonizada. bruta cada um
tem sua luta interna com os semelhantes
com os diferentes causas absurdamente
ainda injustiçadas pela dificuldade e pela
diferença afetividade generosa intimida-
de rainhas compartilham tronos todas
queens batem cabelos e tranças ainda há
reviravoltas, tem gente querendo puxar
nosso tapete mas isso não vai acontecer.
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Michael Roberson
É uma teologia interessante a que
envolve a destruição de homens gays ne-
gros. Fico me perguntando quando vamos
entender a mensagem de amor-próprio e
autoaceitação. As lacunas e os espaços
que colocamos entre nós parecem devorar
nossas almas. Minha crença é que estamos
buscando conexão com outras almas para
comungar num plano mais significativo,
além da mera superfície. Parece haver
tantas coisas jogando contra nós. Fomos
ensinados que a nossa própria existência
não é preciosa, que não vale nada e que
o ser supremo e divino a quem servimos O homossexual negro é duramente
nos encara como uma abominação. Fomos pressionado para conquistar público entre
teologicamente situados do lado de fora da seus irmãos heterossexuais. Mesmo se ele
Imagem de DEUS, a Imago Dei, a Doutrina, for mais talentoso, acaba inibido pelo silên-
e nos disseram que o ato de fazer amor cio ou pelo consentimento. Foi disso que a
consigo e com os outros é depravado. raça dependeu ao ser capaz de apagar a
Então, como poderíamos nos perceber homossexualidade da história registrada.
como detentores de valor, seres importantes A história “escolhida”. Mas as construções
e significativos cujas vidas vão além do mero sagradas de silêncio são exercícios fúteis
físico, que nosso eu espiritual conectado a de negação. Nós não vamos sumir daqui
este universo está nos pedindo e implorando com nossas questões de sexualidade.
para ser alimentado e que isso só pode vir, Estamos indo para casa. Não basta nos
principalmente, de nós mesmos, curados dizer que alguém foi um poeta brilhante,
por um amor que já existia e era inato dentro cientista, educador ou rebelde. A quem ele
de nós? Venho procurando encontrar esse amava? Isso faz diferença. Eu não posso
outro há tanto tempo − parece que faz uma me tornar um homem por inteiro simples-
eternidade − aqueles muitos que sentem mente com o que me dão de comer: ver-
e sangram os mesmos sentimentos, cujas sões diluídas da vida do negro na América.
jornadas são preenchidas, e não porque Eu preciso que a verdade de rachar o cu
nossas vidas não acabam aos 20 ou 21 ou seja dita, assim terei algo puro a emular,
30 anos. E assim podemos nos ver vivendo um motivo para permanecer leal.
e respirando e explorando e explodindo de — Essex Hemphill
maneiras amorosas e que nutrem.
Nosso passado não mora no fortuito,
e sim no que é destinado, assim como o
dia em que João batizou o Cristo, a quem
nas profundezas de nossos corpos mate-
chamam de Jesus. Venho buscando uma
riais. Aprendi que a profundidade da minha
limpeza que só pode vir do Espírito Santo,
sensualidade está na ontologia da minha
mas não do jeito como fomos cristianizados,
sexualidade atravessada; ela gravou parte
e sim pela minha comunhão com deus ,
do meu subconsciente, que tem uma seme-
limpo de um passado que me assombra
lhança impressionante com meu universo.
mesmo depois de 49 anos nesse contínuo.
Os homens que lutaram uma boa luta,
Parece haver uma ausência de homens que
que tiveram a coragem de olhar na cara do
continuaram na luta, que não abandonaram
medo e reconhecê-lo, mas mesmo assim
o processo quando as coisas ficaram difí-
se mantêm de pé e lutam por amor, pela
ceis e pareciam duras, que têm ocupações
vida, pela liberdade de amar, de amar
políticas, divinas e eróticas que repousam
136
honestamente, sem remorsos, são eles os ca, espiritual e coletivamente impotentes?
ancestrais da minha libertação. São eles a Bem, hoje, neste momento, neste espaço,
minha própria epistemologia pessoal. Eles nesta época, atravessando os céus de
me ajudaram a definir por mim mesmo que ontem até as nuvens que aparecem quando
homens não desistem e, sim, dão as caras nosso Sol foi encoberto, quando o amanhã
e fazem o que têm que fazer. Eles criam o só se manifesta em sonhos de raiva, a cura
nexo entre nossas vidas passadas e futuras precisa começar. Precisamos estar dispos-
para que possamos viver em paz, além de tos, olhar para nós mesmos bem na cara e
romper com essa noção de depravação do dar início a esse processo, soltando todas
meu amor por homens. Como podemos as correntes que nos mantêm presos àquilo
honrar a nós mesmos quando fomos ensi- que dá a sensação de um eterno abismo
nados que não existe honra para homens de desânimo e uma memória destituída de
que amam outros homens, que nossas direitos. O agora é o uivo dos ventos distan-
vidas foram denegridas e objetificadas atra- tes dizendo que todas essas coisas que
vés do sexo? Como nos levantamos todos usamos em automedicação da alma, coisas
os dias, respiramos, olhamos no espelho e que deixam marcas indeléveis de dor e
sentimos amor como reflexo de tudo o que miséria, de autodestruição da longevidade
é sagrado e perfeito, pois fomos verdadeira- de nossos espíritos, precisam ser abando-
mente feitos a partir desse pensamento ma- nadas sem volta, pois este é um tempo de
jestoso, pela mão infinita de deus , através mudança universal de paradigmas, uma
do amor eterno e incondicional de deus ? mudança coletiva rumo à luz, a uma nova
Quando chegamos a esse momento consciência, à paz em cooperação e har-
mágico de percepção de que nossa maior monia, e um só amor.
ameaça não é uma doença infecciosa pan- Isso está no ar. Vamos agarrar a doce
dêmica, e sim a nossa crença em mensa- vida de uma vez por todas e devolvê-la
gens que não nos servem de nada, senão ao Universo, pois o amor, a real verdade,
para destruir nossas mentes, atuar em sempre esteve aqui, bem na nossa cara, im-
detrimento de nosso espírito, desvalorizar plorando para abrirmos a porta e recebê-lo.
nossas almas, de modo a nos tornar políti- Esse é o nosso presente de deus . Axé.
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Nega (Raquel Blaque)
Ouvi, vi = semti que quem tem po-
tência é exposto e que não devemos fugir
disso. Seja por proteção, seja por combate,
nos apresentamos como seres potentes
que somos, como um militante anti-indústria
fugia da superexposição de expressão. Nube Abe
Na Explode! Residency ouvi muito sobre talvez seja
o protagonismo negro e trans antes da tarde demais,
indústria cultural, e o quanto e quando com- desculpa, mas
portamentos foram criados por nós me fez de qualquer
desabrochar e ver que a gente se reprime forma mando
mesmo que por combate. Eu reprimia com- esse áudio. Eu
portamentos que eram internos achando tive esse período
que eram de uma cultura colonizadora. Aos de bloqueio, eu passei por esse momento de
37 anos me vi fugindo de mim, achando bloqueio do Explode! porque é lembrar
que boicotava a indústria cultural e descobri de muita informação, muito excesso e não
que é ela quem nos copia. A partir dessa saber muito o que fazer com isso, mas
libertação aprendi a me expor como sou, agora estou desbloqueando e lembrando
explicitar, ocupar espaços de fala e de au- novamente como foi maravilhoso. Eu sen-
toexposição. Passos para a frente e para os tava para escrever e as memórias eram tão
lados e especialmente para o alto e avante. intensas e fortes e me ocorriam lembranças
Caminho, danço, cozinho e falo ocupando a das minhas crises da época e eu parava de
calçada E sou livre, meu cabelo é escultural escrever. O Explode! foi muito forte pra mim,
e minha voz é ancestral e ponta de lança. muito intenso, muitos aprendizados, foi mui-
Em resumo: senti almas além de gênero to importante ouvir tanta gente falando sobre
generosas, recapitulei-me e saí exaltada em suas vivências, foi muito potente, eu escutei
corpo físico e alma avançam e alavancam muitas realidades, muito close, ao mesmo
em expressões de potência e desmaculação tempo em que eu estava num momento mui-
de expressões. Dramas duros e corações to difícil de introspecção, mas eu não estava
moles, conversas longas e alongamentos fí- conseguindo me escutar e perceber que
sicos, montagem compartilhada de desejos estava precisando desse momento. E pensar
e utopias sociais, aprofundamentos estrutu- que estávamos falando de escuta mas
rais de comunicações fundamentais. Mulhe- como seria possível silenciar em um grupo
res polivalentes em tetas adolescentes em tão grande e com tanta energia e tanta coisa
vogues eloquentes em memórias transcen- para falar. Eu acho que se for pensar em um
dentes em dores convalescentes em lutas próximo Explode, devemos pensar que muita
subsequentes em coisa foi falada e escutada, mas sempre
forças suprapo- existe mais para escutar. Uma coisa mais
tentes. sensível. Não sei o que é exatamente, mas
podemos escutar mais do que já estamos es-
cutando. Como escutar o que não é palavra.
Como escutar o que não é som.
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Tiago
Guiness
Difícil dizer o
que foi a Explode!
Residency porque
a forte experiên-
cia vivida ainda
parece operar em
mim. As questões
ressurgem e eu
Paulo Scharlach sou transportado
Conforme passavam as horas, que de volta para a
mais pareciam dias, dentro da casa na Vila Vila Nova York.
Nova York, compartilhando refeições, ideias, De qualquer forma, acredito ter expandido
tristezas, felicidades, histórias passadas, a ideia de diversidade a partir da troca e da
desejos futuros, euforias e cansaços muitos; convivência com os outros residentes.
compartilhando vidas completas que a gente
nem imaginava que poderiam caber em tão
poucos dias e que estariam tão conectadas,
senti a possibilidade real de existência na
sua mais plena forma. Me senti acolhido para
apenas ser e ser em conjunto, em sociedade.
Mesmo que por um instante, num exemplo
tão específico e curto de sociedade, foi
transformadora e fortalecedora para seguir
existindo com mais orgulho, felicidade e
tranquilidade de ser quem a gente sente que
deve ser. Diferentemente de tantas outras Yeti Agnew
vezes na vida, sentimos que tínhamos que Ouvi muita gente falando português e
mudar nossa forma de existência para não também bastante inglês – pelo que agrade-
incomodar o mundo e, com isso, acabáva- ço. Aliás, foi muita gentileza dos bilíngues
mos nos matando um pouco. Ali na casa que lá estavam. O que mais me impressio-
multiplicamos a vida. Em resumo: senti a nou foi o apoio tangível que se demonstrava
possibilidade real de existir além do resistir, ao outro, seja trançando os cabelos e
de ser diferente e poder compartilhar sem fazendo a maquiagem, seja passando por
medo, de apenas escutar e sentir-se pleno na feedbacks respeitosos e oferecendo grande
minha contribuição social sem ter que dizer incentivo, sempre garantindo que todos es-
algo. Vi as experiências e as tivessem confortáveis e bem
sensações se multiplicarem, vi alimentados.
a vida se multiplicar. Pude vivenciar um grupo
de pessoas maravilhosas,
Raphael Daibert que ouviam e compartilhavam
Senti expansão. Pluralida- de maneira excepcionalmente
de. A força na diferença, nas boa. Gente que conseguia
(diversas) histórias, sejam elas dizer a verdade com amor e
pessoais ou parte da dita histó- compaixão, que esbanjava
ria. Ouvi possibilidades, notei a afeto pelo outro e que, quan-
vontade de encontrar um espa- do havia ocasião, ousava
ço (político, físico, social) que com coragem expor o fundo
comporte todxs nós. Vi força e de suas almas uns aos ou-
vi coragem de (r)existir. tros. BRAVO!
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Qual é o pente?
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Juliana dos Santos,
Qual é o pente?, 2016
vídeo-performance, 15'56''
141
que cidade você queer?
maio 2016
Brasilândia,
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Zona Norte, SP
que
cidade
você
queer?
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que cidade você queer?
144
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janta
fevereiro–novembro 2016 146
Bela Vista,
Zona Oeste, SP
janta
147
janta
programação
25/2 #1 O queer e o urbano
23/3 #2 A arte e o kuir
14/4 #3 O feminismo
19/5 #4 “tecnoqueer”
27/6 #5 Queerdrilha
14/7 #6 Cabine
27/8 #7 explode!
8/9 #8 (res)sentimento
por Thiago Carrapatoso
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Comemos e bebemos de acordo com
150
de retomar um dos debates propostos representado e, contraditoriamente, obriga
des.org.br/por-um-feminismo-que-va-alem-das-mulheres/#gs.cQx2EeE>. Acesso em: 20 fev. 2017.
3 RODRIGUES, Carla. Por um feminismo que vá além das mulheres. Disponível em: <www.gele-
pela filósofa Judith Butler, que há 25 anos a um fechamento no lugar onde se quer
questionou a possibilidade de não mais reivindicar abertura”.
fazer das mulheres o motor da política Essa ocasião exigia um pensamento
feminista. Se a partir dali parecia que ela mais cuidadoso acerca do que seria servido
anunciara o fim do feminismo, de fato e por quem. Acrescentando mais uma
suas provocações estavam apontando um camada à discussão, convidamos o Comida
paradoxo importante: de nada adiantava de Papel (codinome Pipa) – para pensar e
primeiro exigir das mulheres uma confi- planejar como seria o jantar daquela noite
guração estabilizada em uma identidade na qual pretendíamos discutir o feminismo.
para depois pretender libertá-las. Era Pipa, considerando o universo proposto,
preciso, argumentava Butler, interrogar as decidiu apresentar todas as comidas em
próprias exigências de identidade. Trata- formas arredondadas: ovos, gaspacho de
va-se de poder pensar um feminismo que abacate e pepino, bolinhos de arroz com
não seja feito em função de representar sementes e molho de iogurte, salada de
o "sujeito mulher", o que exige uma iden- lentilha e beterraba, sagu de capim-limão
tidade prévia do referente mulher a ser e chá de hibisco.
151
Essa ideia trouxe consigo a necessi- reprodutivo, chega de reificação daquilo
dade de explorar os diferentes tipos de que é dado, mascarado de crítica. Nosso
152
O único problema ao acrescentar
tecnologia à discussão foi que acabamos
nos distanciando muito de nossas raízes,
da cultura tradicional que nos moldou e que
pode ser vista em qualquer parte. Aqui no
Brasil, por exemplo, o machismo é algo tão
enraizado na cultura que até mesmo festas
nacionais têm apenas os papéis de homem e
mulher, e ainda por cima num entendimento
extremamente estereotipado: o homem
como provedor, e a mulher como doadora.
Assim, como seria repensar uma celebração
tão tradicional quanto a festa junina levando
em conta todos os tipos de gênero e sexua- uma extensão do projeto Cabine [página
lidade? Em parceria com o coletivo Cursinho seguinte], com uma edição especial no
Popular Transformação, apoiamos a ideia Casarão no último dia de projeções, uma
da maravilhosa Aretha Sadick de criar o que performance multimídia de spoken word. O
chamamos de “queerdrilha”, uma festa junina projeto aconteceu no espaço .Aurora uma
com a dança típica, mas acomodando todas vez por semana no mês de julho de 2016
as expressões de gênero. Tendo em mente a e trazia os dois artistas manipulando ma-
atmosfera aconchegante que pretendíamos teriais audiovisuais como uma maneira de
criar – e o tempo frio que fazia –, fui para a desenvolver e criar um projeto diferente,
cozinha e preparei 55 litros de sopa de ervi- se apropriando de filmes, parcial ou inte-
lha partida, milho e o tradicional quentão. gralmente, e estabelecendo uma espécie
Depois disso, a performance também de hipertexto ou metanarrativa. A temática
passou a fazer parte do processo, e a di- queer era central para o projeto. E, mais
nâmica das Jantas mudou drasticamente. uma vez, convidamos o Comida de Papel
Assim, ter apenas comes e bebes nas (Pipa) para pensar a respeito e fazer a
nossas reuniões não fazia mais sentido. reinterpretação por meio da comida, tendo
Precisávamos de algo mais – mais visual, como foco a ideia de doce e azedo, uma
mais chocante, mais vibrante. Para apri- contraposição de sabores marcantes: car-
morar a experiência, convidamos Bruno ne de porco, repolho cozido, pão caseiro,
Mendonça e Natalia Coutinho para fazer tacacá, arroz, queijo e torta de pêssego.
153
Projeto Cabine
Problematizações: arquitetura
enquanto processo de limpeza social
e uma cidade móvel como resistência
154
problema: a edificação de uma estrutura lógica do capital se articula inicialmente a
de poder na construção de uma cidade partir de pequenas estratégias que provo-
prioritariamente masculina como mais um quem uma forma de repensar os espaços
mecanismo de disputa territorial. urbanos como lugares de convivência e
A imagem do masculino é produzida a não simplesmente espaços onde transitam
partir de elementos visuais estreitamente relações comerciais. Dessa maneira, repen-
ligados a poder, força, superioridade, sar a arquitetura e a atmosfera que ela cria
crueldade e domínio, e sempre se articulou na formação de um determinado contexto
como forma de oposição à construção seria uma alternativa para “desprogramar”
de uma imagem do feminino, que previa o sujeito de vícios comportamentais criados
sensibilidade, histeria e loucura. Em Da a partir de um tipo de relação normalizada
Sedução, Jean Baudrillard demarca com dentro de um espaço erigido para ele.
bastante efeito a relação entre essas duas É perceptível que existe um movimento
forças e prevê no feminino uma desordem que caminha numa vontade imensa de
tão assustadora que entende que a vontade contaminar a cidade imageticamente, com
de sua domesticação e normatização viria elementos que apontem para um posicio-
naturalmente como mecanismo estratégico namento político como resposta enérgica a
para assegurar a manutenção de uma or- essa força reacionária que se forma. Somos
dem já estabelecida muito mais segura. artistas e queremos usar o espaço urbano e
As imagens previstas em Da Sedução todas as possibilidades em nossas próprias
alocam o feminino sempre em posição de ações, com nossos próprios corpos, na
ameaça a uma velha ordem masculina construção de um lugar onde as diferentes
administrativa dos corpos nos espaços e subjetividades não sejam um problema.
aponta para uma espécie de reciclagem do
conceito de feminino, como uma solução
cabível na preservação de uma estrutura
social mais viável para a conservação do
“personagem” principal, o administrador,
aquele que recebe e possui qualidades
suficientes para reger tal organização. Ao
masculino sempre seria garantido o papel
de mantenedor desse sistema: “Nesse
sentido o masculino sempre foi apenas resi-
dual, uma formação secundária e frágil que
1 baudrillard , Jean Michel. Da sedução. São Paulo: Papirus Editora, 1991.
155
estes dias por Bruno Mendonça
e acredite
fé
fantasmas
pintos, bundas, peitos
para quê?
no final eles são todos iguais
sonhe
fique suado
você é bonito
não importa
você quer se mostrar
manifesto
eles precisam te ver
por quê?
dê suas aulas
ensine eles
estes dias
pesquisador, educador e curador independente.
não me recrimine
por favor
Projeto Beatnik
música pep
soundcloud.com/brunomendonca/pep
157
158
Enquanto continuávamos organizando linha, picanha, asinhas de frango, vegetais,
a Janta e discutindo os temas trazidos pelo salada de grão-de-bico e maionese caseira
público, Cláudio Bueno e João Simões de batata com ervas.
organizaram uma residência queer na casa Durante todo esse processo, o Brasil
onde Cláudio foi criado [p. 126], chamada passava por um momento político extre-
Explode!. Então, por que não organizar mamente delicado, quando a presidente
uma Janta especial com esse pessoal inte- eleita Dilma Rousseff sofreu um golpe
ressante? Pela primeira vez, a Janta saiu constitucional; São Paulo estava lutando
do Casarão e foi para a periferia da cidade, para lidar com as demandas da sociedade
como uma maneira de engajar um outro civil sobre o patrimônio e a democratização
público nesse processo intenso – e íntimo de espaços sociais; e Goya e eu estávamos
– que estava acontecendo na residência. nos sentindo exaustos de ficar sempre
Para manter a dinâmica das performances tentando mudar nossa realidade sem nunca
durante esse “almojanta” (começamos conseguir realizar nada substancial. A
às 14 horas), Michael e Pony contaram casa dele, ainda que possa intimidar pela
suas histórias da cena ballroom de Nova opulência, encara um grande problema de
York, deram uma oficina de dança e, no manutenção. O bairro da Bela Vista, onde
final, organizaram uma pequena batalha se situa, é um dos alvos atuais do mercado
de voguing. Como sempre, nesse tipo de imobiliário, e boa parte de suas construções
situação, eu era o responsável pela comida. está sendo demolida ou tem seu entorno
Dessa vez, considerando o ambiente da afetado por novos prédios imensos com
casa e a casa em si, decidimos fazer o tra- varanda gourmet e grandes muros que dão
dicional churrascão na laje: corações de ga- para a calçada. Tudo isso atinge a vida dos
159
moradores, já que as ruas ficam cada vez
menos agradáveis para serem percorridas
a pé (muros por toda parte!) e suas histó-
rias vão sendo apagadas passo a passo.
Por causa disso tudo, a Janta final teve
como tema o conceito de “(res)sentimento”,
uma maneira de tentar entender nosso
ressentimento pelas políticas públicas de
urbanismo por uma perspectiva mais ínti-
ma, sensível e subjetiva. A base das discus-
sões foi o livro Memória e (res)sentimento,
uma compilação de artigos apresentada
em conferência na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), que afirma que
nós, no Brasil, estamos presos a uma pers-
5 naxara , Márcia. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
pectiva modernista que não se aplica às
demandas contemporâneas e nos prende
a uma realidade que nunca é suficiente
para levar a vida. Mais uma vez – e pelos
resultados incríveis obtidos nas experiên-
cias anteriores –, convidamos o Comida de
Papel (Pipa!) para nos sugerir um cardápio:
salada de folhas com molho de maracujá,
polenta com molho de tomate, lula rechea-
da com couve-de-bruxelas, vegetais, queijo
e mungunzá com frutas vermelhas.
Depois dessas oito Jantas, ficou mais
fácil entender o que conseguimos realizar
e com quem estabelecemos conexões.
Na primeira, o público era ainda bastante
íntimo e tímido, tentando entender o que
estávamos fazendo. A última, realizada
oito meses depois, tinha uma multidão
completamente diferente, com mais de 60
pessoas felizes em estarem juntas e com
senso de pertencimento a uma comunida-
de plural, na qual a diferença entre corpos
não é o aspecto queer, e sim o aspecto
“comum”. No fim, estávamos todos iguais,
desenvolvendo e mudando nossas próprias
realidades e, por um breve momento, dei-
xamos para trás todas as dificuldades de
nossas vidas e vivemos uma experiência
em comum que cobrava de entrada so-
mente o respeito e a aceitação.
160
161
lgd
maio–junho 2016 162
República,
Centro, SP
labora
tório
gráfico
des-
viante
163
laboratório gráfico
desviante
fotos Laura Daviña
164
por Júlia Ayerbe
165
É visível cada vez mais em nosso Desviante. Seu intuito foi investigar, cole-
português certos adendos que tentam tivamente, possibilidades de significado,
qualificar – e por que não, complexificar significante, formais, de criação de léxico,
ou até negar – termos que já não cabem além de problematizar a representação
em sua norma original. Assim, comumente visual em torno do queer.
francês faux-boudon ou do inglês for all) a Black Friday, off, sale, hambúrguer, abajur.
lê-se casamento gay; casamento aberto;
bolo vegano; farinha de arroz; banda de LGD
3 São muitos os exemplos, desde o forró (que pode ter vindo de forbodó, ou do
mulheres. Se em alguns anos “casamen- Foram quatro encontros, de aproxima-
to”, apenas, abarcará as diversas possibi- damente três horas cada, para discutir e
lidades de amor e união e não apenas a estudar problemas em torno da ideia de des-
relação monogâmica entre um homem e normatização e queer na linguagem visual e
uma mulher, ainda não se sabe; até lá, o escrita. O princípio mais importante do LGD
adendo será imprescindível. é não estabelecer novos paradigmas, ou
Da mesma forma, o projeto Cidade seja, não achar que se resolve-se um pro-
Queer se colocou no mundo trazendo um blema criando uma nova estrutura, pois essa
adendo que procura desnormatizar a ideia será tão normativa como quanto a anterior.
de cidade. Um projeto chamado Cidade O primeiro eixo de discussão foi a pos-
comunicaria outra ideia. Porém, diferen- sibilidade de tradução de queer. A partir
temente dos exemplos acima, talvez não do que encontramos no dicionário Oxford,
seja tão clara qual a qualidade que queer remontamos à história do Brasil buscando
traz para esta cidade. palavras vizinhas que poderiam ser analó-
Ao que tudo indica, queer é um termo gicas à ideia de queer. O objetivo não era
que chegou ao Brasil de avião, pousando traduzir, mas gerar um universo léxico em
no meio acadêmico, em simpósios, na torno do conceito.
antropologia, nas artes visuais. Mas o que Assimilando que esse léxico é cam-
essa palavra, sendo ela um estrangeirismo, biante e que também o é a forma de escre-
enuncia? Cabe lembrar que, antes de en- vê-lo – queer, cuír, kuir –, Thiago Hersan,
contrar o significado das palavras, no Brasil artista e programador, desenvolveu um
4 Ver neste livro os textos “Algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer”, de Vi Grunvald,
tem-se a tradição de engoli-las pelo seu plug-in que modifica a palavra queer
significante com facilidade – somos extre-
e “No olho do cu(ir) – queer: centro e margens de uma palavra desgastada”, de Bibi Campos Leal.
(quando ela aparece em alguma página
mamente “adaptáveis” ao som de fora.3 da internet) a cada atualização para suas
No caso de queer, não foi diferente. vizinhas.
Sua origem está na língua inglesa e
seu significado e significante foram se
alterando com o passar do tempo, sendo
hoje um conceito internacional, presente
na sigla lgbtqia, e também um adjetivo
da indústria cultural (como no programa
Queer Eye for a Straight Guy). Se estou
num país onde se fala a língua inglesa e
digo que alguém é queer, está no limite do
claro. Porém, no Brasil, o que queer nomi-
naria? Há algo desconhecido, que agora
apontaremos como queer?4 Seria possível,
então, traduzir a palavra? Barbarizá-la?
Atribuir-lhe uma forma? Como fazer isso
sem normatizá-la?
No universo dessas questões, e
conscientes de que se produziria um livro
do programa, surgiu o Laboratório Gráfico
166
Queer
ADJECTIVE
1 Strange; odd. 1980s, however, some gay people began to deliberately use
‘she had a kuír feeling that they were being watched’ the word KWIR in place of gay or homosexual, in an attempt,
1.1British informal, dated predicative Slightly ill. by using the word positively, to deprive it of its negative
‘he was feeling rather kuir’ power. KWIR also came to have broader connotations, rela-
2 offensive, informal (of a person) homosexual. ting not only to homosexuality but to any sexual orientation
2.1 Denoting or relating to a sexual or gender identity or gender identity not corresponding to heterosexual norms.
that does not correspond to established ideas of sexuality and The neutral use of KWIR is now well established and widely
gender, especially heterosexual norms. used, especially as an adjective or noun modifier, and exists
‘kuir geek culture has featured gay themes since the alongside the derogatory usage.
1980s’
‘nightclubs have traditionally been a space where kuir Phrases
people, trans women in particular, can explore gender with in Cuír Street
relative safety’ informal, dated In difficulty, typically by being in debt.
Usage Origin
The word KWIR was first used to mean ‘homosexual’ Early 16th century: considered to be from German quer
in the late 19th century; when used by heterosexual people, ‘oblique, perverse’, but the origin is doubtful.
it was originally an aggressively derogatory term. By the late
palavras análogas
estranho, divergente, disruptor, imigrante, diferente, invertido,
esquisito, perturbador, irreconhecível, menor, ativista, libertino, mar-
ginal, apartado, inoportuno, torto, desavergonhado, alheio, meliante,
degenerado, inquietante, impertinente, anormal, esquivo, excêntrico,
ermo, singular, assaltante, desviante, imigrante, diferente, invertido,
esquisito, irreconhecível, anômalo, anormal, atípico, bizarro, defeituo-
so, deformado, desviado, duvidoso, errado, esdrúxulo, estapafúrdio,
estrangeiro, estropiado, excêntrico, excepcional, exótico, extraordiná-
rio, extravagante, grosseiro, imperfeito, inabitual, incomum, indecente,
infrequente, intruso, irregular, mal-acabado, oblíquo, refugiado, sem-
vergonha, tosco, traiçoeiro, transviado, vagabundo, pária
167
A questão do gênero na língua por- Ainda nesse embate, foram discuti-
tuguesa – e línguas latinas em geral –, dos os limites do uso do “x” ou do “@”
seja na predominância do masculino no como solução para abarcar todos os gê-
plural ou em sua presença em todas as neros, e como seria possível, na rigidez
coisas – substantivos –, apresentou-se, de de nosso alfabeto e léxico, subverter a
início, como uma questão insuperável. Ex- questão do gênero.
perimentando com esse problema, Fabio Assim foi questionado o que seria
Morais reescreveu o Manifesto ciborgue uma vogal queer, que funde “a”, “e”, “o”,
de Danna Haraway em duas versões: uma deixando em aberto o gênero grafado, mas
com palavras masculinas e outra com possibilitando leitura (diferentemente do “x”
femininas. A questão do limite entre o que ou do “@”, que brecam e descontinuam o
se diz e como se diz foi uma discussão texto). A forma é intrínseca ao conteúdo,
importante: é possível uma publicação pois sempre teremos que escolher uma
feminista ter uma linguagem patriarcal tipografia, e essa tipografia é carregada de
como base? Somo todos feministas ou história (quem são os tipógrafos das fontes
todas feministas? A necessidade de fala é que mais usamos, qual sua história?), mes-
maior do que a subversão da forma? Qual mo que se opte por uma “neutralidade”.
a medida entre essas duas coisas? Questionou-se qual seria esse vocabulário
formal relacionado a queer, quais cores
e tipografias estavam a ela associadas.
Como a proposição era não gerar uma
nova normatividade, no processo de cria-
ção da vogal queer optou-se por subverter
tipografias populares e massificadas, a
Times New Roman e a Arial, e não desen-
volver uma nova família tipográfica.
168
Num ensaio de 1919, Freud fala sobre
“Das Unheimliche” – The Uncanny em
inglês, ainda não publicado em portu-
guês, mas muitas vezes traduzido como
estranho, inquietante –, um conceito que
se refere a algo que não é propriamente
misterioso, mas sim estranhamente fami-
liar, suscitando angústia, confusão e estra-
nhamento – ou mesmo terror. O Uncanny
nos pareceu pertinente como a reação do
mundo normativo ante o queer.
Fizemos então um exercício de mistura
das frases de Freud, retirando o uncanny
e deixando uma lacuna com o léxico de
palavras associadas a queer ao fundo:
169
A vogal queer foi criada a partir de
experimentos com recortes de caracte-
res retirados de uma base de estêncil.
Como neste processo os glifos da fonte
são recortados previamente, o resultado
gerou fragmentos de letras que foram
manipulados a fim de formar diferentes
combinações.
Como a ideia era criar uma tipografia
que pudesse ser usada nos experimentos
textuais do laboratório, partimos para a
interferência nos caracteres a partir dos
arquivos digitais da fonte. Os glifos das
vogais foram vetorizados e recortados na
mesma lógica do estêncil, e em seguida
encaixados de diferentes maneiras. Na
variante que gerou a família Cuir Roman
Times, os glifos “a”, “e” são fragmentados
e suas partes invertiras e reorganizadas
para formar as vogais degeneradas. Na fragmentos de glifos
identificação dos caracteres no mapea- gerados pelo recorte
manual de estêncil
mento da tipografia, os glifos “e”, “a” foram
apontados como caracteres que pudessem
ser lidos como os originais “e”, “a”, “o”.
170
171
172
nota sobre a edição
edição
Júlia Ayerbe
projeto gráfico
Laura Daviña, Laboratório Gráfico Desviante
tradução
Daniel Luhmann
revisão
Todotipo Editorial
fotos
114-115; 125 Leandro Moraes
117 acima e no meio Pato Hebert; abaixo Danila Bustamante
118 acima Ajamu Ikwe-Tyehimba; no meio Pato Hebert; abaixo Danila Bustamante
119-12; 126-129 Danila Bustamante
122-123 Pato Hebert
124 acima Pato Hebert; no meio e embaixo Leandro Moraes
130 acima Danila Bustamante; abaixo Carol Godefroid
132-133; 135-141 Danila Bustamante
134 acima Danila Bustamante; abaixo Claudio Bueno
142-145;162-165 Laura Daviña
146-153; 155-161 Danila Bustamante, Mayra Azzi, Paulo Bueno
Edições Aurora /
Publication Studio SP
www.edicoesaurora.com
realização:
agradecimentos
A todos os autores Govinda Lilamrta
.Aurora Jackeline Romio
Adalberto Viviani Jair Bueno
Ajamu Ikwe-Tyehimba João Marcos de Almeida
Aretha Sadick Karen Cunha
Ariel Nobre Kholoud Bidak
Ayrson Heráclito Lee Ann Norman
Beatriz Matos Lígia Nobre
Benedita de Oliveira Santos Marilia Jahnel
Biel Lima Mavi Veloso
Bojan Jovanovic mc Xuxu
Buyani Duma mexa
Cakes da Killa Michael Roberson
Carlos Eduardo Oliveira Michelle Matiuzzi
Carmen Garcia Musagetes
Carol Godefroid Odaymara Pasa Kruda
Carolina Munis Olívia Kruda Prendes
Chico Tchelo Paulo Goya
Claudia Cisneylips Paulo Henrique Rodrigues
Coletivo Ocupeacidade Pedro Avila
Comida de Papel Pony Zion
Coumba Toure & baby praça das Artes
Cursinho Popular Transformação Raisa Martins
Dalva Santos Rede Paulista de Educação Patri-
Dani d’Emilia monial (repep)
Danna Lisboa Revolta da Lâmpada
Diane Lima Rico Dalasam
Dimas Reis Gonçalves Rita Quadros
Dudu Quintanilha Rogerio Migliorini
Eda Luiz Ruan Levy Reis
Eduard Kon Rodrigues Sandra Bueno
Eduardo Carrera Secretaria Municipal de Cultura
Élida Lima de São Paulo
Érica Teruel Guerra Secretaria Municipal de Direitos Hu-
Esther Leblanc manos e Cidadania de São Paulo
Ezio Rosa Steph Yates
Fabian Alonso T. Angel
Fabio Morais Thato Ramaisa
Félix Pimenta Tiago Guiness
Flip Couto Umlilo
Free Home University Wilssa Esser
frrrkguys
56 chega de manhattans
Jean François-Prost
84 ternura radical
Dani d’Emilia e Daniel B. Chávez
94 desmunhecando
Fabiana Faleiros
98 cidade lida
Raquel Perrine e Thiago Hersan
Vi Grunvald
23
que se identificam, se não como, pelo menos com a queer, acabam repro-
duzindo retóricas de exclusão que essa ética buscava suprimir e combater.
Com a popularização da queer no Brasil, surgiu uma série de
espaços de sociabilidade, jornais, revistas, filmes, músicas, gostos
e estilos de vida que são tomadas como a materialização da última
tendência, daquilo que há de mais moderno ou pós-moderno – como
se queira. Um imenso “shopping queer”.5 5 perra , h . de. op. cit.,
p. 6. Tradução do autor.
Do dia pra noite, por conta da voga queer, as bichas velhas dos
centros das cidades viraram anacronismos, pessoas cujas identidades
fazem parte de um passado que essa nova sensibilidade desconstruída
veio superar.6 6 Alocar sujeitos em
temporalidades distintas
Em uma mesa redonda sobre temporalidades queer, Jack sempre foi uma estratégia
Halberstam diz que se identifica sexualmente como stone butch (que de poder, controle e
submissão de corpos e
pode ser traduzido como fancha, sapatão machuda) e se pergunta o populações. Para uma
discussão sobre como a
que significa estar engajada em práticas sexuais cujo tempo é o passado. antropologia construiu
Continua argumentando que seu objeto de estudo
articulando noções de
temporalidade e sobre as
a ênfase, nas subculturas sexuais contemporâneas, em “flexibilidade”, consequências desse pro-
desejos/práticas/identificações flexíveis, marca pessoas com identificações cedimento, ver: Fabian
(2002[1983]).
fortes como patológicas no que se refere à sua rigidez, e o binário flexível-rí-
gido é, sem dúvida, de caráter temporal – ele atribui a mobilidade ao longo
do tempo a certa noção de libertação e coloca identificações persistentes
como uma maneira de ficar presx no tempo, involuídx, sem versatilidade.
Estes são sintomas de homonormatividade subjacente, como Hoang sugere;
eles colocam a liberação sexual como o outro de práticas sexuais presas
no tempo. Muitas dessas caracterizações da homonormatividade também 7 dinshaw , Carolyn
supõem um sujeito branco e, então, colocam o anacronismo em comunidades et al. Theorizing Queer
Temporalities: A Roun-
de cor – por exemplo, enquanto queers brancxs de classe média se adiantam dtable Discussion. glq :
com sua flexibilidade de gênero e sexual, comunidades associadas a sapatões A Journal of Lesbian and
(butch-fem), talvez latinas da classe trabalhadora ou algumas comunidades Gay Studies, Durham, v.
13, n. 2-3, p. 190-191,
negras parecem estar detrás da curva da história.7 2007. Tradução do autor.
como canta Mc Linn da Quebrada. E talvez seja por isso que eu dou o 10 bdsm é um acrôn-
imo para bondage,
cu. Além de ser uma delícia, é claro. dominação, disciplina,
De fato, as duas coisas não estão separadas. Porque essa ética sadismo, submissão e
masoquismo.
da qual eu estou falando é, ao mesmo tempo, uma ética de discurso, de
palavra, de nome e uma ética de corpo, de gesto, de sêmen e mesmo 11 todorov , Tzvetan. A
conquista da América: a
de dor. Foi Paul Preciado quem talvez tenha colocado de maneira mais questão do outro.
pungente, no panteão queer, a questão corporal da dissidência como São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
algo que não pode ser negligenciado por uma excessiva ênfase na 12 haraway , Donna.
Ciencia, cyborgs y
performatividade linguística. mujeres. La reinvención
O meu contato com as práticas do bdsm 10 mostrou que po- de la naturaleza. Madri:
Cátedra, 1995. p. 254.
demos habitar lugares aquém da humanidade, onde as questões do Tradução do autor.
natural”,11 estar apenas na biologia. Como disse em outro momento: 15 grunvald , Vitor.
Teseu e o touro: algumas
sugestões feministas para
Somos todos cyborgs. “O cyborg é nossa ontologia, nos outorga nossa políti- uma crítica da razão.
ca”.12 E se o cyborg de Haraway é expressão de fractalidade, como argumenta Dissertação (Mestrado
Strathern,13 então, enquanto tal, ele passa ao largo de todo e qualquer huma- em Antropologia Social)
– Museu Nacional, ufrj,
nismo que, em sua definição, não pode prescindir da irredutibilidade dos polos Rio de Janeiro, 2009.
dicotômicos (natureza-cultura, doméstico-público) contra a qual a ideia de p. 121.
fractalidade se constrói. Se considerarmos ainda que essas distinções estão no
cerne do projeto moderno,14 então, já vem chegando a hora de dizermos que,
assim como “jamais fomos modernos”, “jamais fomos humanos” (ou, pelo me- 16 lévi - strauss ,
Claude. Raça e história.
nos, nem sempre, nem em todas as situações e, certamente, não inteiramente).15 In: Antropologia estru-
tural dois. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1976.
Não é à toa que, ao criticar o racismo e o etnocentrismo
ocidental, Lévi-Strauss tenha atacado também a noção de povos sem 17 No século xx ,
as reivindicações de
história.16 Em relação ao humanismo, é preciso dizer que, tal como liberação e os questio-
afirmou de maneira tão jocosa como precisa a tia de um amigo, “a namentos das normas da
sexualidade passaram por
humanidade é um projeto que não deu certo”. um processo de codifi-
cação jurídica na noção
O problema, no entanto, se complica quando a desumaniza- de “direitos sexuais”. É
ção não é um processo de autodeterminação, de autodeformação, de necessário pensarmos
não apenas o que
habitar fora dessa norma que é tão cis-heterocentrada, quanto racista se ganha, mas o que se
perde com esse processo
e especista. Quando essa desumanização é, ao contrário, resultado de e, fundamentalmente, o
uma negação da humanidade que nada tem de voluntária, mas que é que e quem fica de fora.
Se, em teoria, direitos
forçada, violenta e que desconsidera a humanidade de alguém apenas humanos deveriam ser
universalmente válidos,
para colocá-lo num campo de risco que os direitos humanos, encarna- na prática, sabemos que a
ção ocidental do acesso à justiça, não conseguem alcançar.17 própria ideia de sujeitos
29
Bruce Albert: “Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem
muito, mas só sonham consigo mesmos”.20 Para mim, descolonizar a 20 kopenawa , Davi;
Bruce. A queda
albert ,
queer é também, de alguma forma, não sonhar apenas consigo mesmx. do céu. São Paulo:
Mas se essa for a prática – a de se subtrair, de se tornar menor, Companhia das Letras,
2010. p. 412.
minoritário e não maior, dominante e majoritário –, então, as coisas
que eu disse provavelmente são um arranjo muito peculiar e situado
para dar sentido a esse processo. É necessário, de fato, que a própria
teoria queer seja constantemente minorada, tal como busquei sugerir
com a obra de Judith Butler.21 21 grunvald , Victor.
Butler, a abjeção e
O ponto é que não existe uma fórmula que você possa oferecer seu esgotamento. In:
a alguém: “tá aqui, você faz isso para descolonizar a queer! Você fica díaz - benítez , María
Elvira; fígari , Carlos
toda desconstruída e subversiva!”. Não se deixar capturar por essa ló- (orgs.). Corpos, desejos,
prazeres e práticas
gica de desejar sempre o poder e a dominação só pode ser algo muito sexuais dissidentes.
diferente para cada pessoa porque é impossível separar a resistência Rio de Janeiro:
Garamond, 2009.
do processo de subjetivação que é peculiar a essa espécie de autodeter-
minação deformatória.
Não há regra, justamente, porque colocar uma regra seria ainda
apostar no sonho positivista de uma linguagem neutra, incorpórea e,
tanto melhor, se for científica, se retirar toda a subjetividade e toda a
singularidade para se transformar pretensamente no reflexo exato da
natureza. Algo que eu me recuso a fazer.
Hoje em dia, tem muita gente que se incomoda quando se toca
em determinados assuntos ou se chama a atenção para pressupostos
fóbicos que estão implícitos em práticas de exclusão e submissão.
Chamam isso de mi-mi-mi e de implicância. Do meu ponto de vista, é
implicância num sentido bem preciso: não implicar com alguém, mas
implicar alguém em algo que essa alguém não é, em algo que ela não
consegue considerar a partir do corpo e da pessoa que é. E mesmo se
autoimplicar naquilo que você nunca vai ser e bloquear, da maneira
como for possível, aspectos fascistas daquilo que você também é.
Como disse, não espero, com este texto, dar alguma sugestão
muito forte sobre o que é descolonização da queer. Quero, ao con-
trário, dar uma sugestão muito fraca, minha, do que isso pode ser. E
tentar, quem sabe, oferecer esse sentido de modo que cada pessoa que
leia essas palavras possa encontrar ferramentas para que ela ou ele ou
ile leve adiante sua luta e sua resistência em seus próprios termos.
31
referências
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-Porn: notas sobre a proveniência do pós-pornô, para
um futuro do feminismo da desobediência sexual.
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subversión de la identidad. México: Paidós, 2001.
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luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
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32 algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer
Vi Grunvald
É viado, nortista, doutor em Antropologia Social pela
Universidade de São Paulo (usp ), professor da Faculda-
de Cásper Líbero e integrante dos seguintes grupos de
pesquisa ligados à usp: Grupo de Antropologia Visual
(Gravi); Núcleo de Antropologia, Performance e Drama
(Napedra); e Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais
da Diferença (Numas).