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I Fórum Nacional do
Patrimônio Cultural
SISTEMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL:

I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural


DESAFIOS, ESTRATÉGIAS E EXPERIÊNCIAS PARA
UMA NOVA GESTÃO - OURO PRETO - MG | 2009

Anais VOLUME 1
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C R É D I TO S

Presidenta da República do Brasil Coordenação do I Fórum Nacional do


DILMA ROUSSEFF Patrimônio Cultural – Iphan
WEBER SUTTI
Ministra de Estado da Cultura HONÓRIO NICHOLLS PEREIRA
MÔNICA CRISTINA DE SOUZA
ANA DE HOLLANDA
Apoio à Coordenação do I Fórum Nacional do
Presidente do Instituto do Patrimônio Cultural – Iphan
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SILA RODRIGUES SILVA
LUIZ FERNANDO DE ALMEIDA
Comissão de Organização
Diretoria do Iphan ANTÔNIO FERNANDO A. L. NERI
ANDREY ROSENTHAL SCHLEE CLAUDIA FEIERABEND BAETA LEAL
CÉLIA MARIA CORSINO DALMO VIEIRA FILHO
ESTEVAN PARDI CORRÊA ÉRICA CRISTINA CASTILHO DIOGO
MARIA EMÍLIA NASCIMENTO SANTOS HONÓRIO NICHOLLS PEREIRA
JOSÉ RODRIGUES CAVALCANTI NETO
JULIANA FERREIRA SORGINE
Coordenação editorial
SYLVIA MARIA BRAGA MARCELO BRITO
MÁRCIA ROLLEMBERG
Edição e revisão MÁRCIA SANT´ANNA
LETRA GUIA/GRACE ELIZABETH E ROSALINA GOUVEIA MARIA CLARA MIGLIACIO
MARIA EMÍLIA NASCIMENTO SANTOS
MARIA REGINA WEISSHEIMER
Projeto gráfico e diagramação
MÔNICA CRISTINA DE SOUZA
RARUTI COMUNICAÇÃO E DESIGN/CRISTIANE DIAS
SÔNIA RAMPIM FLORÊNCIO
Fotos WEBER SUTTI
ARQUIVO IPHAN WIVIAN DINIZ
YOLE MILANI MEDEIROS

I59p Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural : Sistema Nacional de Patrimônio Cultural : desafios, estratégias
e experiências para uma nova gestão, Ouro Preto/MG, 2009 / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional;
coordenação, Weber Sutti. -- Brasília, DF : Iphan, 2012.
404 p. ; 24 cm. -- (Anais ; v. 2, t. 1)
ISBN: 978-85-7334-212-3
1. Patrimônio Cultural. 2. Política Cultural. 3. Sistema Nacional de Patrimônio Cultural. I. Sutti, Weber.
II Título. III. Série.
CDD 363.69
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Apresentação
A P R E S E N TA Ç Ã O
Desde 2007 o Iphan empreende esforços para a construção do Sistema Nacional de
Patrimônio Cultural (SNPC), coordenando a realização de diversas ações na área de gestão
do patrimônio cultural, tais como: reorganização da Associação Brasileira de Cidades
Históricas (ABCH); apoio à pactuação do Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes
Estaduais de Cultura (FNSDEC) para a criação do SNPC; criação do Grupo de Trabalho
do Patrimônio, que reúne o Iphan e os órgãos estaduais do patrimônio; realização da I
Oficina de Patrimônio; elaboração do quadro do patrimônio nos Estados; realização de
oficinas regionais para discutir o quadro do patrimônio e a construção do SNPC;
participação dos seminários de estruturação do Sistema Nacional de Cultura no subsistema
de patrimônio cultural; participação da organização da II Conferência Nacional de Cultura;
e elaboração dos Planos de Ação para Cidades Históricas.
Como parte do processo de construção do SNPC, o Iphan realizou, em parceria com
a ABCH e o FNSDEC, o I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural na cidade de Ouro
Preto, entre os dias 13 e 16 de dezembro de 2009. O objetivo do Fórum foi a discussão,
a reflexão, a construção e avaliação conjunta da Política Nacional de Patrimônio Cultural.
Espera-se que o Fórum se torne um evento bienal e que seja sempre realizado no município
que presida a ABCH.
Procurando atender ao critério de democratização das ações governamentais, as
inscrições para o Fórum foram gratuitas e realizadas através do sítio eletrônico do Iphan.
Efetivamente compareceram ao Fórum 351 participantes ouvintes e 119 convidados –
conferencistas, debatedores, comunicadores, coordenadores, relatores e expositores –, 3
chegando ao número total de 470 pessoas presentes durante os quatro dias do evento.
Durante o Fórum foram realizadas quatro conferências de abertura, duas conferências
temáticas; quatro mesas-redondas e dez sessões temáticas. Contamos com a presença de seis
conferencistas, 11 debatedores, 109 comunicadores e 34 expositores de pôsteres, além de
vários convidados.
O Fórum também ofereceu espaços e momentos para a realização de importantes
reflexões e discussões públicas, como a palestra sobre a II Conferência Nacional da Cultura
– CNC e o Fórum da ABCH.
Particularmente em relação ao Fórum da ABCH, ressaltamos a aprovação do seu
Estatuto e a recondução de Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, prefeito de Ouro Preto, à
presidência da ABCH, diante de expressivo comparecimento de representantes municipais.
Com o objetivo de registrar e tornar disponíveis, para consulta pública, as discussões
e os resultados do I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, o Iphan edita esta publicação
em três volumes assim divididos:
Volume I – Três conferências de apresentação; uma conferência magna; duas
conferências temáticas; e quatro mesas-redondas e seus relatórios.
Volume II – Sessões temáticas de 1 a 5 e seus relatórios.
Volume III – Sessões temáticas de 6 a 10 e seus relatórios, e sessões de pôsteres.

LUIZ FERNANDO DE ALMEIDA


Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Abril 2012
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SUMÁRIO
03 APRESENTAÇÃO 108 A CAIXA E O APOIO À CULTURA E À PROTEÇÃO
DO PATRIMÔNIO
07 INTRODUÇÃO Carlos de Faria Coelho de Sousa
ABERTURA PARA NOVAS DIMENSÕES
Ângelo Oswaldo de Araújo Santos AVALIAÇÃO DO PROGRAMA PELA UNESCO
113
Jurema Machado
11 O DESAFIO DE IMPLANTAR UM SISTEMA
NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL 118 AVALIAÇÃO DO PROGRAMA PELA UNIVERSIDADE
Daniel Sant’Ana FEDERAL DA BAHIA (UFBA)
Ana Fernandes
13 DESAFIOS E ESTRATÉGIAS PARA UMA NOVA
GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL 127 MESA-REDONDA 1
Luiz Fernando de Almeida SISTEMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL
(SNPC) – INSTRUMENTOS E FORMAS DE
25 CONFERÊNCIA MAGNA FINANCIAMENTO
O CAMPO DO PATRIMÔNIO CULTURAL:
UMA REVISÃO DE PREMISSAS 127 PROGRAMA NACIONAL DE FOMENTO E
Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses INCENTIVO À CULTURA
Evaristo Nunes
41 CONFERÊNCIA 1
BASE PARA POLÍTICAS INTEGRADAS DE 136 PROGRAMA MECENAS – UMA EXPERIÊNCIA
PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL, INSTITUCIONAL DE CAPTAÇÃO DE RECURSOS DE
DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONÔMICO PESSOAS FÍSICAS PARA PROJETOS CULTURAIS
Weber Sutti José Cláudio dos Santos Júnior

60 DEBATES 144 BNDES, A ECONOMIA DA CULTURA E O APOIO


O SISTEMA SETORIAL DE PATRIMÔNIO NO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO SOB A ÓTICA DO
ÂMBITO DO SISTEMA NACIONAL DE CULTURA DESENVOLVIMENTO INTEGRADO
João Roberto Peixe Luciane Gorgulho

69 O PROGRAMA PERNAMBUCO NAÇÃO CULTURAL 155 IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS


Célia Maria Medicis Maranhão de Queiroz E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS (ICMS) –
Campos PATRIMÔNIO CULTURAL EM MINAS GERAIS
Carlos Henrique Rangel
77 A EXPERIÊNCIA REFERENCIAL E PREMIADA DE
JOÃO PESSOA 161 A EXPERIÊNCIA DE PERNAMBUCO
Fernando Moura Éricka Rocha

84 O MEMORIAL DO HOMEM KARIRI – UM 166 DESAFIOS DOS FUNDOS MUNICIPAIS DE


PATRIMÔNIO GERENCIADO POR CRIANÇAS PRESERVAÇÃO
Francisco Alemberg de Souza Lima Simone Camelo Araújo

91 CONFERÊNCIA 2 177 O PODER PÚBLICO MUNICIPAL E AS LEIS DE INCENTIVO


BALANÇO DAS AÇÕES DO PROGRAMA Luiz Fernando Mainardi
MONUMENTA
Robson Antônio de Almeida 183 RELATÓRIO SÍNTESE

100 DEBATES 189 MESA-REDONDA 2


AVALIAÇÃO DO PROGRAMA MONUMENTA SISTEMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL
Ana Lúcia Paiva Dezolt (SNPC) – COOPERAÇÃO, COMPARTILHAMENTO E
DEFINIÇÃO DE PAPÉIS
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189 SISTEMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL 292 ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA
(SNPC) – COOPERAÇÃO, COMPARTILHAMENTO E DO PATRIMÔNIO CULTURAL
DEFINIÇÃO DE PAPÉIS Marcos Paulo de Souza Miranda
Honório Nicholls Pereira
304 DESAFIOS DA REGULAÇÃO DO PATRIMÔNIO
201 FRENTE PARLAMENTAR EM DEFESA DO CULTURAL
PATRIMÔNIO CULTURAL Ana Cristina Bandeira Lins
Jussara Hockmüller Carpes
313 PATRIMÔNIO NATURAL E CULTURAL, BENS
207 O PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO E O JURÍDICOS DE NATUREZA DISTINTA
CONTEXTO INTERNACIONAL Carlos Magno de Souza Paiva
Marcelo Brito
321 O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL
212 O PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO E OS DESAFIOS COMUM E CONCORRENTE NA PRESERVAÇÃO DO
DO COMPARTILHAMENTO DE COMPETÊNCIAS PATRIMÔNIO CULTURAL
Leonardo Barci Castriota Fabiana Santos Dantas

220 ATUAÇÃO DO CONSELHO INTERNACIONAL DE 327 RELATÓRIO SÍNTESE


MONUMENTOS E SÍTIOS (ICOMOS) NA
PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL 333 MESA-REDONDA 4
Rosina Coeli Alice Parchen SISTEMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL
(SNPC) – ESTRUTURA E FORMAS DE
235 A EXPERIÊNCIA DO ESCRITÓRIO TÉCNICO DE FUNCIONAMENTO
LICENCIAMENTO E FISCALIZAÇÃO (ETELF/BA) E
OS DESAFIOS DA GESTÃO INTEGRADA 333 SISTEMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL –
Frederico A. R. C. Mendonça ESTRUTURA E FORMAS DE FUNCIONAMENTO
Weber Sutti
239 RELATÓRIO SÍNTESE
334 A EXPERIÊNCIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E
245 MESA-REDONDA 3 OS DESAFIOS PARA O SISTEMA NACIONAL DE
SISTEMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL PATRIMÔNIO CULTURAL
(SNPC) – REGULAÇÃO E MARCOS LEGAIS Adson França

245 SISTEMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL 345 MOBILIZAÇÃO SOCIAL PARA O SISTEMA
(SNPC) – REGULAÇÃO E MARCOS LEGAIS NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL
Antônio Fernando A. L. Neri Mara Régia Di Perna

247 PLANEJAMENTO TERRITORIAL E O PATRIMÔNIO 352 DESAFIOS PARA O SISTEMA NACIONAL DE


CULTURAL CULTURA
Kazuo Nakano Frederico Barbosa

261 INSTRUMENTOS URBANÍSTICOS PARA A 375 PROJETO BARCOS DO BRASIL


PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL: Luiz Phelipe Andrés
O EXEMPLO DE PARANAPIACABA
Vanessa Gayego Bello Figueiredo 389 PLANOS DE AÇÃO PARA CIDADES HISTÓRICAS
Yole Milani Medeiros
275 A EXPERIÊNCIA DE OURO PRETO
Gabriel Simões Gobbi 394 PLANOS DE AÇÃO E OS DESAFIOS DOS
MUNICÍPIOS
284 O PAPEL CONSTITUCIONAL DO MUNICÍPIO NA Alexandra Moreira Carvalho Gomes
PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL 398
João Henrique Café de Souza Novais RELATÓRIO SÍNTESE
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Introdução
A B E RT U R A PA R A N O VA S D I M E N S Õ E S

Ângelo Oswaldo de Araújo Santos*

RESUMO
Breve panorama da atual política do Iphan, que vem implementando a *Prefeito de Ouro
prática do diálogo e da parceria como premissa de trabalho. Ressalta-se a Preto e presidente da
Associação Brasileira
abertura das políticas do patrimônio à participação dos municípios que de Cidades Históricas
possibilitam o respaldo local para garantir o uso pertinente e a adequada
conservação dos bens culturais brasileiros. Revela, ainda, a abertura do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para o desafio de
um trabalho inovador, no sentido de fugir das amarras burocráticas da
análise de projetos e aprovação de plantas, para alcançar uma rotina
produtiva com um sedutor viés sociocultural.

PALAVRAS-CHAVE
Iphan, Parcerias, Diálogo.

7
O I Fórum Nacional de Patrimônio Cultural enseja uma ampla avaliação
das atividades não só do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – Iphan, como também dos municípios detentores de
tombamentos federais e comprometidos com a articulação decorrente da
criação, no início de 2009, de uma associação nacional para congregá-los.
O fato de o balanço dos resultados do Iphan ter transcorrido durante um
encontro que envolveu os municípios revela o primeiro ponto positivo da
atual política de patrimônio no país, a qual se resume na prática do diálogo
e da parceria como instrumentos de trabalho.
O Iphan sempre sofreu de isolamento, em fases mais ou menos agudas,
de um processo que o manteve à distância seja dos congêneres estaduais, seja
dos municípios nos quais se acham os bens culturais protegidos pela
chancela da União. Abrir a instituição ao entendimento e ao debate não a
enfraquece, como pensavam alguns, já que sua autoridade se debilita, em
verdade, quando permanece restrita a círculos burocráticos arredios à
realidade e, por isso, alheios às lides do cotidiano. Ao procurar e fomentar
o apoio dos municípios, o Iphan tem encontrado os colaboradores que lhe
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faltavam, ao tempo em que auxilia a estruturação e o fortalecimento da


gestão local, muitas vezes desguarnecida ou mesmo incapacitada para essa
indispensável interação.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Compreendeu-se, finalmente, que os municípios, ainda que carentes de


recursos financeiros e humanos (do ponto de vista técnico) para as tarefas
monopolizadas pelo ente federal, devem participar e o fazem, sempre, em
favor de resultados excelentes. Demais, seria uma obra de Sísifo o ato de o
Iphan estar, ainda agora, depois de tantas décadas de experiência, a
empreender iniciativas sem o respaldo local que possa garantir uso
pertinente e conservação adequada aos bens culturais.
A experiência paradigmática de Ouro Preto é um dos temas presentes no
Fórum, revelando a linha conceitual e o viés do desempenho da Prefeitura,
a partir do trabalho da Secretaria Municipal de Patrimônio e
Desenvolvimento Urbano. Em articulação com o Iphan e os Ministérios
Públicos Federal e Estadual, novos instrumentos urbanísticos foram
adotados. O município deixou a inércia em que submergia para atuar, de
modo objetivo, ombreado ao ente federal, na consecução das tarefas
comuns, conforme destacou o secretário municipal Gabriel Simões Gobbi.
Nesse passo, ressalta-se o êxito da incorporação do programa
Monumenta ao Iphan, medida que tardou, mas chegou ainda em boa hora.
8
Os municípios têm papel de grande relevo no Monumenta, o que veio
melhorar ainda mais o relacionamento local com o Iphan.
Reconheceu-se que o ente autárquico não poderia sobreviver a mais uma
amputação como aquela que perversamente fora urdida no Ministério da
Cultura, antes da chegada do ministro Gilberto Gil. Dividir a instituição ou
excluí-la de programas que lhe são inerentes tem sido um modo de
enfraquecê-la. O Iphan, historicamente, é alvo de tentativas de esvaziamento,
como se viu durante os trabalhos constituintes de 1988, entre outros trechos
em que, até com a mudança de sua denominação oficial ou o fracionamento
do organismo, buscou-se a capitulação sonhada pelos oportunistas de plantão
e os especuladores de toda sorte. Divergências intestinas, mantidas à sombra,
igualmente favoreceram o avanço do solapamento.
O ministro Gilberto Gil teve a coragem de mudar tanto perspectivas
políticas de ação cultural quanto nomes de titulares, o que é incomum na
gestão brasileira. Costuma-se aceitar uma nomeação como fato
consumado. Substituição pode parecer o reconhecimento de um equívoco,
uma fragilidade política ou até mesmo uma ofensa. Quando Aloísio
Magalhães assumiu o Iphan, em 1979, a nomeação não deixou de ser
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Introdução
percebida como uma descortesia com Renato Soeiro, que estava no cargo
havia doze anos, depois dos três decênios da gestão Rodrigo Melo Franco
de Andrade. Aloísio citou Camões, para lembrar que a vida é feita de
mudanças. Gilberto Gil mudou dirigentes inadaptados, reformulou o
Monumenta e o integrou ao contexto do Iphan. Unificou o programa
especial na grade da ação permanente do Instituto, o que corrigiu, de
pronto, distúrbios e anomalias que medravam no espaço de construção de
mais um monstrengo bicéfalo.
A criação do Instituto Brasileiro de Museus – Ibram, efetivada na gestão
do ministro Juca Ferreira, não mais terá sido uma derradeira tentativa de
redução do Iphan, quando já se verifica que a velha repartição de Rodrigo
Melo Franco de Andrade e Lúcio Costa havia acelerado, simultaneamente,
a sua revitalização de maneira a sustentar o desafio que lhe cumpre vencer,
na vida cultural do Brasil. Não há dúvida de que não se pode conceber uma
política de patrimônio sem os museus. Mas é inquestionável a constatação
de que o Iphan, na nova situação, se revitalizou e ganhou a densidade
perdida na virada do século. Foi o que se comprovou em Ouro Preto, no
largo panorama desdobrado pelos participantes do Fórum.
Tenho a convicção, forjada não nos gabinetes, mas na ação direta da
política patrimonial, que a interação entre o museu, o arquivo, a biblioteca
e a proteção patrimonial compõe um arco que não deve ser abalado ou 9
comprometido por secionamentos mutiladores da unidade imprescindível
ao sucesso da missão. A instituição que restringe e controla o uso da
propriedade privada de interesse cultural haveria de ser a mesma que oferece
a utilização exemplar de um imóvel protegido, por meio de um museu,
tornado escola e oficina de cultura, centro de lazer e fruição. Quando se
fragmenta um processo que pede o continuum do pensamento e da ação, a
unidade dos esforços e a coerência no desempenho, o caráter
multidisciplinar e a complementaridade circular, o que se alcança, quase
sempre, é uma diminuição geral, com perda para todas as partes. A
descentralização pode ser nefasta, se processada por meio da proliferação
de escaninhos herméticos ou da prevalência de interesses circunstanciais.
Impõe-se agora ao Ministério da Cultura, mais determinadamente, o
estabelecimento da sinergia entre seus institutos, com vistas à harmonia de
um grande programa em prol do patrimônio cultural.
O Iphan está bem equilibrado para tanto. Resistiu e evidencia a
capacidade de testemunhar um primado na política patrimonial, de vez que
o seu paradigma é essencial ao quadro federativo. Mário de Andrade disse
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que não poderia fazer uma enciclopédia brasileira se não dispusesse de um


inventário, e foi assim que começou a nascer o serviço de patrimônio, nos
idos de 1935. Hoje, não se pode falar em política de cultura, em espaços
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

culturais ou museus, centros de arte ou pontos de criação, se não se enfatizar


o trabalho de classificação e proteção dos acervos exemplares e dos bens
edificados, que hão de acolher e viabilizar as manifestações e assegurar a
vitalidade da cultura. A transformação veloz da paisagem urbana, em todas
as regiões, a contumaz demolição das referências, o “enfeiamento” da cidade
brasileira, como expressão da exclusão social, da deterioração e da violência,
pedem uma visão diferenciada e um trabalho inovador aos formuladores e
gestores de políticas patrimoniais.
Assim, o Iphan se apresenta em plena ação. Do tombamento de Iguape
(SP), tardio, mas revelador da permanência dos deveres fundamentais da
autarquia, ao do conjunto ferroviário de Campo Grande (MS); das grandes
intervenções ensejadas pelo Monumenta à modernização da gestão das
superintendências e escritórios; das ações do patrimônio imaterial à pesquisa
e publicações, o órgão e sua política atravessam uma das melhores fases de uma
história de quase 80 anos. Busca-se uma dimensão cultural para as
representações do Iphan, a fim de que não se confinem no ramerrão
burocrático da análise de projetos e aprovação de plantas, visando à conjugação
10 de uma rotina produtiva com um sedutor viés sociocultural. A gestão promove
a participação e intensifica o exercício da reflexão e do diálogo.
Se o Monumenta, reciclado, deu substância aos resultados internos e
externos da ação do Iphan, mais ainda se aguarda do PAC das Cidades
Históricas, pelo vulto da iniciativa governamental. Esse programa foi levado
ao presidente Lula pelo ministro Juca Ferreira e pelo presidente do Iphan,
Luiz Fernando de Almeida, como primeira consequência da Associação
Brasileira de Cidades Históricas. Representa a consolidação das novas
diretrizes da política patrimonial. Envolve outras agências do governo da
União, aliando à pasta da Cultura a parceria do Ministério das Cidades e
variadas fontes de recursos para uma estratégia nacional mais vasta e
consistente, em termos de patrimônio cultural.
No seminário de Ouro Preto, o Iphan se demonstrou preparado para a
ampliação de horizontes, pronto para atuar em todo o país, de forma
objetiva e eficiente. É o que irá conferir ao PAC das Cidades Históricas a
condição de instrumento a se integrar, definitivamente, às políticas
patrimoniais do Brasil. O Iphan traçou um novo caminho, e o futuro que
se desenha merece confiança.
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Introdução
O D E S A F I O D E I M P L A N TA R U M
SISTEMA NACIONAL DE
PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L

Daniel Sant’Ana*

RESUMO
O texto relata como as conferências municipais e estaduais fortaleceram *Presidente do Fórum
o desejo de construir um sistema compartilhado entre as esferas municipais, Nacional de Secretários
e Dirigentes Estaduais
estaduais e federais. Revela o desafio de promover o diálogo e a ação de Cultura, ano 2009;
compartilhada como os principais caminhos para uma atuação efetiva, seja Secretário de Cultura
do Acre
na preservação ou na promoção e na proteção do patrimônio histórico, seja
nos outros campos de responsabilidade da política de cultura, nas artes,
enfim, no respeito e na promoção da diversidade cultural.

PALAVRAS-CHAVE
Municípios, Ação compartilhada, Política cultural.
11

O ano de 2009 foi um ano muito especial para essa articulação sistêmica
sobre a qual o prefeito de Ouro Preto e presidente da Associação Brasileira
de Cidades Históricas, Ângelo Oswaldo, fez menção. Foi o ano de realização
das conferências municipais e estaduais, quando muitos desses mais de
cinco mil municípios brasileiros, que sequer têm um órgão gestor voltado
para a cultura, ou seja, um órgão gestor específico da área de patrimônio
histórico cultural, realizaram pela primeira vez suas conferências de cultura.
Muitos estados também realizaram, alguns pela primeira, outros pela
segunda vez as suas conferências que vão culminar na segunda grande
conferência nacional de cultura, prevista para o ano de 2010.
E na maioria dessas conferências o que se discutiu, o que se tem
discutido, são a implantação e o desenvolvimento dos sistemas de cultura
nas suas respectivas esferas municipal, estadual e nacional. O sistema
entendido realmente como mecanismo de articulação, de pacto, de
desenvolvimento de metas e de uma política de cultura de longo prazo.
Uma política capaz de definir as estruturas que integram esse sistema e suas
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respectivas atribuições, competências e responsabilidades e que realmente


permitirá um desenrolar e um desenvolver mais efetivo das políticas públicas
de cultura do nosso país.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

E na área de patrimônio não poderia ser diferente, o Ministério da


Cultura através do Iphan; os estados através das suas Secretarias de Cultura
e, quando é o caso, dos seus órgãos estaduais específicos de patrimônio
cultural; os municípios através do fórum de secretários das capitais e,
principalmente, da Associação Brasileira de Cidades Históricas que congrega
mais de cento e cinquenta cidades. É com a interveniência dos estados, a
interveniência do fórum de secretários e dirigentes estaduais de cultura que
se tem feito esse grande esforço por estabelecer uma ação coordenada, com
repartição de atribuições, competências e responsabilidade compartilhada.
Isso é, de fato, o que deve acontecer num sistema, num regime republicano
e federativo. Se não houver essa coordenação de ação, esse pacto e esse
compartilhamento de atribuições e responsabilidades, fica difícil atuar de
maneira efetiva, seja na preservação ou na promoção e na proteção do
patrimônio histórico, seja nos outros campos de responsabilidade da política
de cultura, nas artes, enfim, no respeito e na promoção da diversidade cultural.
Esse pacto para estabelecimento e implantação do sistema nacional de
12 patrimônio cultural, como um dos sistemas setoriais de cultura integrantes
desse sistema maior que é o sistema nacional de cultura, é, sem dúvida, um
grande desafio. A meta é estabelecer essa ação coordenada e esse
compartilhamento de responsabilidades.
Os Planos de Ação em processo de desenvolvimento no âmbito do PAC
das Cidades Históricas são o grande exemplo concreto de como isso pode
funcionar de uma maneira muito positiva para a sociedade brasileira.
Então, este fórum me faz lembrar uma reunião do Iphan que aconteceu
em 2008, promovida em conjunto com o fórum dos secretários de Cultura
dos estados. Fazia, naquela ocasião, cerca de vinte ou trinta anos, salvo
engano, que o Iphan não promovia uma reunião com os gestores de
patrimônio histórico dos estados e com os secretários estaduais de Cultura,
no sentido de fazer esse chamamento, convocar os estados para que junto
com os municípios e a União Federal articulassem o sistema nacional de
patrimônio cultural. Então, o I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural
realizado no ano de 2009, pelo Iphan, é também um desses momentos para
aperfeiçoar, para avançar e para caminhar de forma mais efetiva em direção
ao diálogo, ao pacto.
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Introdução
DESAFIOS E E S T R AT É G I A S PA R A
U M A N O VA G E S T Ã O D O
PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L

Luiz Fernando de Almeida*

RESUMO
O texto faz uma reflexão sobre o momento de transformação pela qual *Presidente do Iphan
passa o país e evidencia a importância da política de proteção ao patrimônio
cultural nesse contexto de reconstrução da identidade brasileira. Destaca a
importância da atualização dos conceitos que ampliaram o campo de ação
do Iphan, que passou de mero gestor de bens tombados para, enfim,
assumir seu papel de fomentador da política pública cultural, responsável
pelo levantamento, valorização e preservação de um patrimônio que
pertence a toda a sociedade brasileira. O texto fala da importância do PAC
das Cidades Históricas e o aponta como um exemplo de conquista do
Iphan, por se tratar de uma ação do patrimônio cultural que foi levada para
o seio da política pública do governo federal. 13

PALAVRAS-CHAVE
Patrimônio, Transformação, Transversalidade.

O pronunciamento de Ângelo Oswaldo de Araújo Santos me fez lembrar


de um jornalista e grande poeta, Mário Faustino, que tem um poema
fantástico, cujo nome é “O homem e sua hora”. Creio que é sempre isso, o
homem e as suas circunstâncias. Acredito que a gente está com um grupo
de pessoas tentando responder, da melhor maneira possível, ao desafio de
dirigir uma instituição que tem essa carga para o bem e para o mal, que é
o Iphan.
Eu gostaria de destacar o apoio de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses,
que tem sido, para mim, um grande professor. Na sua participação no
Conselho do Patrimônio Cultural Brasileiro ele sempre pontua uma
inflexão e uma atenção que, para mim, é fundamental: ser um gestor
público e, por outro lado, passar o tempo todo rediscutindo e pensando
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nossos valores. Ou seja, um gestor público no campo do patrimônio, que


trabalha com valor cultural, tem sempre um campo de reflexão para
trabalhar junto com uma objetividade. Ulpiano de Meneses sempre pondera
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

isso e, a meu ver, sua presença tem sido bastante importante.


Quero agradecer a todos os participantes do I Fórum Nacional do
Patrimônio Cultural, saudando na pessoa de Weber Sutti, o
compartilhamento que existe entre todos nós na condução da construção
dessa política de patrimônio. Acredito que estamos vivendo um momento
de transformação e um momento de mudanças. Creio que em todo
momento de transformação e de mudança, se formos capazes de criar
dentro de nós um espaço de reflexão, nós conseguiremos dirigi-lo.
Conseguiremos aproveitar esse momento e, na verdade, dar um salto além.
No nosso caso específico, um salto além na construção dessa política de
proteção ao patrimônio.
Acho necessário tecer alguns comentários para poder demonstrar esse
processo de transformação. Primeiro, acredito que está superada uma visão
de desmonte que estava acontecendo do Estado brasileiro e,
consequentemente, da instituição Iphan. Consideração que foi ponderada
de forma muito clara por Ângelo Oswaldo. O Iphan, uma instituição que
14
tem a enorme atribuição de conduzir uma política de proteção ao
patrimônio e, além disso, de proteger o próprio patrimônio cultural
brasileiro, estava há quase vinte anos sem ter o ingresso de novas pessoas,
num processo de redução da sua capacidade orçamentária, estava se
reduzindo, se transformando numa instituição cuja estrutura se limitava a
ações de licenciamento e de fiscalização.
Talvez, o grande exemplo desse processo todo seja o fato de que o grande
programa de intervenção, que se criou no patrimônio cultural das cidades
brasileiras, o Monumenta, não tenha sido criado dentro da própria
instituição Iphan. Mas, acredito que esse momento esteja superado. E essa
é uma circunstância política, uma circunstância social, que estamos vivendo
e que precisamos aproveitar, ter a clareza do que está acontecendo, ter a
capacidade de negociar no campo político, compreender essa transformação
e fazer desse processo de transformação um processo positivo para a
instituição e para a política de patrimônio.
Outro aspecto de mudança é o que trata da ampliação conceitual do
campo do patrimônio. Acho que o Iphan rompeu uma visão, que ainda
existia, de que sua responsabilidade se limitava à proteção dos bens que
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Introdução
eram tombados e, fundamentalmente, os bens edificados. O Instituto
superou isso e coloca como perspectiva a condução de um processo de
criação e de gestão de uma política de patrimônio. Alguns elementos foram
fundamentais nesse processo e, no meu ponto de vista, a constituição de
uma política de patrimônio imaterial é determinante porque amplia o
campo de ação da instituição. Hoje, o instituto pode existir com
consistência em todo o território brasileiro, como em Roraima, Amapá,
independentemente de ter bens tombados ou não, ainda que deva ter bens
tombados. Mas o que pretendo enfatizar é que o universo do patrimônio,
sob o ponto de vista da ação da instituição, é bastante diferente, ou seja,
houve um redimensionamento do problema a ser enfrentado.
E sobre o ponto de vista do tipo de problema, trata-se de enfrentar um
problema que, por natureza, vive em processo de transformação, isto é, tem
uma natureza que não é estática, é dinâmica. E trabalhar com esse processo
de natureza dinâmica implicou estabelecer uma metodologia, implicou ter
clareza sobre o que é o processo de trabalhar com um bem cultural ou o que
é conhecer esse bem, o que é estabelecer uma política de salvaguarda para
esse bem – no caso, por exemplo, de trabalhar com bens culturais, com
alguns recortes de ação que estavam muito ligados ao populismo político.
Houve algo muito importante que foi o rompimento das relações de grupos
culturais, por exemplo, estabelecidas com o Estado na base de “pago para 15
você se apresentar naquela determinada festa”.
No campo do patrimônio material, acho que o conceito de paisagem
cultural é determinante também para se trabalhar com as ideias de dinâmica
social e transversalidade: ação, hoje feita pelo Departamento de Patrimônio
Material e Fiscalização, de tentar compreender um inventário, trabalhar
com inventários que tenham caráter regional no país. Isso é fundamental
nesse processo de transformação dessas ações no campo temático que
também tem uma natureza transversal, como o patrimônio naval, o
patrimônio ferroviário, que herdamos, aquele que pode ser considerado o
patrimônio cultural que não vai ser tombado e que, mesmo assim, vamos
trabalhar a sua gestão.
Apresento tudo isso como uma ampliação do campo temático da
instituição, que inclui ainda uma ampliação do repertório instrumental.
Repertório que, a meu ver, é importantíssimo e que foi incorporado, por
exemplo, pelo Monumenta, através de seu planejamento. A ação que
fazemos numa cidade tem de ser uma ação pactuada e planejada, e esse
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Vo l . 1

planejamento implica, também, a criação de instrumentos capazes de


enfrentar todas as questões levantadas. Acredito, portanto, que, a partir do
Monumenta, alguns instrumentos se incorporaram totalmente no
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

repertório do Iphan. Podemos citar, por exemplo, a necessidade de trabalhar


a requalificação urbanística como uma parte essencial desse processo de
qualidade, de qualificação das cidades históricas; o financiamento de
imóveis privados, talvez o maior desafio sobre o ponto de vista de criação
de um novo instrumento para o Iphan, para a política pública de
patrimônio. E, diante disso, surge outro desafio, que é esse financiamento
de imóveis privados ser incorporado como uma possibilidade de ação em
todas as cidades em que estamos trabalhando. Então, esse universo todo de
ampliação conceitual, de ampliação de compreensão do momento político
que estamos vivendo, de certa maneira, exemplifica o processo de
transformação que está sendo aqui discutido.
O momento é de transformação e, portanto, a compreensão de todo esse
processo faz com que, naturalmente, a gente precise mensurar os nossos
desafios. Talvez o desafio mais evidente, mais claro, mais perceptível para
nós, hoje, seja a compreensão de que a política de patrimônio não pode
mais se conformar em ser uma política setorial; ela precisa ser uma política
transversal. E podemos dar vários exemplos para essa percepção, não só em
16
relação à natureza do trabalho que enfrentamos para poder exemplificar
isso, mas também em relação à maneira como se organizam as políticas
sociais no campo do exercício da política pública.
Se fizermos uma comparação com outras políticas do Ministério da
Cultura, veremos que todas essas políticas setoriais se organizaram a partir
da estrutura dos seus produtores. Percebemos os produtores de cinema, os
produtores de teatro, os produtores de arte visual se relacionando com a
elaboração da política pública, se relacionando com o Ministério da
Cultura. Já, nós, do patrimônio, nunca conseguimos nos organizar através
dessas estruturas de classe. Isso sempre foi um problema, um limitador,
porque, na verdade, a sociedade brasileira, depois de um processo de
redemocratização, acabou se organizando e estabelecendo a sua interlocução
com o Estado, através dessas formas de organização. E o patrimônio não
tem uma estrutura classista, uma estrutura corporativa que dê suporte a esse
universo de pacto e de tensão sobre a política pública. Acho que isso tem
um aspecto que, de certa maneira, limitou o patrimônio nesse processo de
pacto maior.
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Introdução
Por outro lado, ficou mais claro, para todos nós, que a natureza da
questão do patrimônio era transversal e que a grande possibilidade de
articulação do campo do patrimônio cultural brasileiro se apresentava no
setor público. Era algo impressionante; isso que o Daniel Santana comentou
que, desde os anos 70, na gestão do ex-presidente do Iphan, Renato Soeiro,
de tentar construir uma política de criação de instituições estaduais, a gente
não tivesse tido uma reunião com todos os órgãos estaduais de preservação
do patrimônio. É como se o patrimônio tivesse dito: “Olha, há uma
transversalidade, há uma competência que é compartilhada, mas nós vamos
ignorar essa competência compartilhada sob o ponto de vista da nossa
estratégia, do nosso planejamento”.
Talvez, esse seja um dos maiores desafios aqui apresentado, quer dizer,
além da incorporação de diversos outros setores que estão trabalhando no
campo da memória social, do patrimônio. O grande desafio pode ser, de
fato, como compartilhar no setor público. E nós estamos falando de um
estado que tem uma política de cultura que fomentou uma política de
criação, por exemplo, de conselhos de patrimônio. Minas Gerais tem cerca
de quinhentas cidades com conselhos de patrimônio e esses conselhos todos
não passam pela nossa articulação, como parte do nosso processo de
planejamento.
17
Creio que isso também tem uma relação direta com o processo que
aconteceu nos últimos anos – articulação: a criação de estruturas de
financiamento da política cultural brasileira, da cultura de produção, da
cultura do Brasil, as quais não passavam pelo fortalecimento das instituições
que trabalham com a cultura brasileira. Talvez, a questão da Lei Rouanet
seja, hoje, a mais evidente, a mais discutida na mesa, ou seja, a Lei Rouanet
prescinde da política de financiamento majoritária do Ministério da
Cultura, ela prescinde das instituições e da institucionalização das políticas
culturais para que se efetive um processo de transferência de recursos
públicos. Não é à toa o que vimos acontecer nesses últimos anos: o
enfraquecimento ou a transformação de estruturas públicas de cultura; na
verdade, a transformação em estruturas que estavam intermediando projetos
da Lei Rouanet. E também não foi a troco de nada que, nesse processo
todo, quanto mais a Lei Rouanet se estabelecia como majoritária no campo
do financiamento, mais se diminuíam os orçamentos públicos,
principalmente nos municípios e nos estados brasileiros. Ou seja, é preciso
restabelecer uma relação muito clara entre a sistematização ou a
institucionalização da política pública e o seu financiamento.
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Vo l . 1

Por outro lado, destaco, ainda, outro grande desafio que está ligado ao
que o prefeito de Ouro Preto e presidente da Associação Brasileira das
Cidades Históricas, Ângelo Oswaldo, mencionou: o fato de a instituição e
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

a política de patrimônio terem, de certa forma, estabelecido a sua


importância para a sociedade brasileira, a partir da construção da ideia de
identidade nacional. Isso é sabido, o Brasil atrasa essa discussão de
identidade com relação a outros países que se tornaram independentes no
século XIX, na América Latina. Nós tivemos uma situação absolutamente
singular que foi a vinda da família imperial portuguesa, transformando o
Brasil em sede do Império português. E, depois, o próprio Império com
descendentes dessa família imperial portuguesa que, se por um lado cria
um estado forte no Brasil, por outro, mantém a escravidão até o final do
século XIX e adia o processo de discussão dessa tal identidade brasileira,
que acontece, exatamente, no começo do século XX. Acredito que a política
de patrimônio foi importante para se criar uma ideologia do que é essa
identidade. Acredito ainda que, de certa maneira, esse projeto é vitorioso.
No Brasil, nós entendemos e lemos a arquitetura, por exemplo, de Ouro
Preto não como uma arquitetura portuguesa, mas já como traço de
independência intelectual e de pensamento dos brasileiros com relação à
metrópole. Isso representa um pensamento, uma independência de
18 pensamento artístico e intelectual, que antecede um processo de
independência política. Creio que, de certa forma, o patrimônio não
conseguiu, na verdade, se recolocar em um discurso que o reinserisse no
campo das discussões políticas, no campo da discussão mais ampla da
sociedade brasileira.
No meu ponto de vista, essa questão se apresenta quando discutimos
um modelo de desenvolvimento do país. Quando, diante de um processo
de desenvolvimento como o que vivemos agora, o patrimônio teria algo a
dizer ou tem algo a dizer, tornando-se um parâmetro nesse processo.
Ângelo Oswaldo também citou o processo de empobrecimento das
cidades brasileiras. Sempre uso algo como exemplo, afirmando que, se a
gente tira uma foto, hoje, de uma cidade da periferia de Ouro Preto e uma
foto da periferia de Belém, ou uma foto da periferia do Rio de Janeiro, todas
estão crescendo de uma maneira absolutamente igual. E não estou falando
somente da periferia de baixa renda, eu estou falando, inclusive, dos bairros
da população de alta renda e da classe média. Portanto, as cidades são todas
iguais. Ou seja, o patrimônio não é capaz de estabelecer um parâmetro sob
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Introdução
o ponto de vista de identidade das nossas cidades, sob o ponto de vista de
relação do homem com o meio. E, se o patrimônio tem algo a dizer, acredito
que este seja o momento, porque estamos vivendo esse processo.
No campo, por exemplo, da arqueologia, somos cada vez mais acionados
para ações que estão acontecendo na direção amazônica do país. Quer dizer,
o nosso modelo cultural para a região amazônica é o mesmo modelo que
temos implantado na região sudeste ou na região nordeste do país. Como
é que o país vai discutir o seu modelo de desenvolvimento? O patrimônio
tem algo a dizer sobre isso? Se tiver, acho que conseguiremos nos recolocar
com outra importância para a sociedade brasileira e que não se restringe a
uma importância setorial.
Avalio que, de certa maneira, esse processo de esvaziamento que houve,
da discussão do campo do patrimônio, fez com que substituíssemos o
significado das coisas pelas coisas em si. Vejo como demanda muito comum
o dinheiro ou a capacidade de investimento para recuperar um sobrado ou
para recuperar uma igreja, por exemplo, e vejo poucas discussões sobre a
importância daquele meio urbano no processo de expansão ou de
compreensão da cidade. Percebo que as próprias instituições de patrimônio
contribuíram para isso e vejo a maior parte das obras que fazemos como
um agente público qualquer, como se não tivéssemos que explicitar o 19
significado das coisas que fazemos. Eu nunca vejo uma placa informando
que estamos restaurando um sobrado porque ele é importante. Vejo placas
que apresentam a empresa responsável pela obra e o valor da mesma. Ou
seja, esse processo de esvaziamento, de capacidade de articulação, de excesso
de necessidades, incluindo a de defender, também, as nossas condições de
trabalho, foi “eclipsando” o sentido e a razão da nossa existência como uma
instituição que fomenta a política pública de patrimônio cultural no país.
E, para isso, faz-se necessário conseguir explicitar o significado das coisas
que fazemos. E esse significado, no meu ponto de vista, vai além de ações
de educação patrimonial, formais e fôlderes, nos quais explicamos que o
que está sendo feito é mais do que isso. Tudo o que fazemos, na verdade,
deve ser pela importância daquilo que estamos fazendo.
Nós deixamos de compartilhar com a sociedade a importância da
preservação do patrimônio; é preciso recuperar esse processo que, no meu
ponto de vista, é o que vai dar novo significado para as nossas ações, criando
legitimidade social para o trabalho que já fizemos, que fazemos e que
devemos fazer.
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Vo l . 1

Esse processo de criação de uma política de patrimônio, a meu ver, é,


então, absolutamente essencial. É impossível que o Iphan estabeleça esse
processo de uma maneira isolada. É uma necessidade que esse processo seja
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

compartilhado e acredito que a criação do PAC das Cidades Históricas é uma


oportunidade única para que, de fato, essa política seja exercida. Por quê?
Porque o PAC pressupõe uma ação transversal, não só sob o ponto de
vista de sua governança, a qual é uma conquista inusitada, pois se trata de
uma governança na Casa Civil em conjunto com o Ministério do Turismo,
o Ministério das Cidades, o Ministério da Cultura, o Ministério da
Educação e nós, do patrimônio, discutindo os Planos de Ação nas cidades
históricas. Essa é uma conquista que, há pouco tempo, não imaginávamos
que pudesse acontecer. Mas, precisamos ir além; esse processo precisa ser
compartilhado com os estados, com os municípios, e mais, compartilhado
com a sociedade.
O que aconteceu também, nesses últimos anos no país, foi o
estabelecimento de uma política de patrimônio ambiental, o
estabelecimento de uma política de cidades. Talvez, o Estatuto das Cidades
seja um dos instrumentos mais interessantes para se discutir; trata-se de
uma política de intervenção e a relação do Poder Público com as cidades.
20
E, de certa forma, acho que o patrimônio não esteve presente nesse processo
de discussão. Nós não participamos como deveríamos do processo de
elaboração da política ambiental do país, bem como do processo de
elaboração da política urbana brasileira.
Acredito que o PAC seja um instrumento para que tudo isso seja
repensado e para que sejamos inseridos nesse processo. Estou convicto de
que é uma oportunidade que não se pode perder. Por outro aspecto, o PAC
é transversal, ou seja, estamos trabalhando com territórios; estamos
trabalhando com as políticas que vão ser colocadas nesse território. Trata-
se de políticas que vêm de todos os aspectos: da educação, do patrimônio
imaterial, do patrimônio material. Isso quer dizer que o pacto é feito através
do estabelecimento de uma espécie de agenda de patrimônio nessas cidades.
É fundamental, então, o envolvimento e a compreensão de que esse
instrumento, que estamos chamando de PAC das Cidades Históricas, seja
uma vitória nossa. Eu compreendo como uma vitória política porque, na
verdade, foi o governo quem quis chamar de PAC das Cidades Históricas,
movido pelo desejo de trazer para o seu seio, para o seu universo, talvez
mais explícito da política pública, uma ação setorial, uma ação do
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Introdução
patrimônio cultural. Considero isso importante; é sintomático desse
processo de crescimento e de articulação que estamos vivendo e isso nos
deixa claro essa responsabilidade. Hoje, o PAC é o nosso grande
instrumento de planejamento; por isso, pretendo fazer todo o esforço
possível, e esse esforço só terá um bom resultado se for compartilhado com
todos vocês, para que esse processo, de fato, seja uma mudança de rumos
dentro da instituição e na forma como a gente vem trabalhando até então.
O PAC, a meu ver, é a maior oportunidade que se estabeleceu nesse período,
no qual tenho o orgulho e o desafio de trabalhar nessa instituição.
Considero este fórum um momento que, na verdade, é um processo cujo
início se deu com a nossa percepção de que precisávamos criar interlocutores
institucionalizados. Interlocutores no campo dos governos estaduais, nas
cidades históricas, nos municípios, na sociedade brasileira, para que o Iphan
pudesse instituir uma interlocução com maior organicidade, resultando em
mais consequências. Este fórum, portanto, vem desse processo de percepção
e de criação. É um primeiro momento que, imagino, deve continuar. Na
verdade, não tenho nenhuma expectativa de que consigamos estabelecer,
neste momento, uma meta absolutamente clara do que nós vamos perseguir.
Doravante, acredito, tenho essa expectativa, que consigamos compartilhar
um diagnóstico das questões que estamos vivendo. E, ao compartilhar esse
diagnóstico, possamos conseguir compactuar algumas direções para que, 21
daqui a dois anos, na realização de um novo fórum, ele se configure como
um processo permanente de interlocução e de planejamento.
Desejo, então, um bom processo de discussão e espero que consigamos
sair daqui com mais clareza e com mais certeza, com mais confiança e com
mais desejo de construir o sistema nacional de patrimônio cultural
brasileiro.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

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Introdução
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Conferência Magna
O C A M P O D O PAT R I M Ô N I O
C U LT U R A L : U M A R E V I S Ã O D E
PREMISSAS

Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses*

RESUMO
O objetivo da conferência é convidar a uma reflexão crítica permanente *Professor emérito da
FFLCH/USP –
sobre certas premissas que orientam o trabalho no campo do patrimônio e Conselheiro do
que, por acomodação nossa, acabam por se desgastar ou se reduzem a Conselho Consultivo
do Patrimônio
referências mecânicas. Inicialmente, apresenta-se como a desarticulação Cultural
entre práticas e representações, acentuando estas últimas, esvazia o
patrimônio de seu conteúdo existencial e privilegia os perversos “usos
culturais da cultura”, concentrados em segmentos à parte do cotidiano e do
universo do trabalho. A seguir, discute-se a inconveniência da polaridade
entre material e imaterial. Ao se examinar a Constituição de 1988, vê-se
que sua grande novidade, no tema, foi deslocar do estado para a sociedade
e seus segmentos a matriz do valor cultural. Impõe-se, assim, repensar o 25
quadro de valores culturais vigentes e que precisaríamos formular do ponto
de vista das práticas culturais e seus praticantes, não mais supondo que tais
valores sejam imanentes às coisas.

PALAVRAS-CHAVE
Patrimônio cultural, Matriz cultural, Categorias de valor cultural,
Práticas culturais.

Fiquei muito honrado e agradecido com o convite do presidente do


Iphan, Luiz Fernando de Almeida, para falar nesta sessão de abertura de
um evento tão importante como o I Fórum Nacional do Patrimônio
Cultural. Fico agora um tanto preocupado, porque as falas que me
precederam foram perfeitas para uma sessão de abertura, foram capazes de
definir horizontes, balizas, situar trajetórias, propor metas e, mais ainda,
insuflar os ânimos, alimentar o entusiasmo e recarregar as baterias para o
trabalho que virá nos próximos dias. De minha parte, programei falar de
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problemas conceituais e de fundamentos que devem nortear nosso trabalho


de especialistas do patrimônio cultural – tema talvez pouco apropriado para
uma abertura de evento e quase certamente menos apropriado ainda para
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

este horário tardio.


No entanto, é na disposição de ser útil que escolhi o tema “O campo do
patrimônio cultural: uma revisão de premissas”. Sua formulação pode
parecer um tanto pretensiosa, mas meu objetivo é chamar a atenção para a
necessidade indispensável e urgente de manter permanentemente uma
atitude crítica em relação a certas premissas que devem orientar a atividade
no campo do patrimônio cultural e que acabam por se desgastar, se banalizar
ou se perder em desvios. Não pretendo dar lições ou doutrinar, nem mesmo
ser sistemático, mas propor uma agenda de questões que, na minha
perspectiva, merecem aprofundamento crítico e reflexão continuada.
Considerei oportuno tomar como referência desta minha exposição um
cartum publicado há muito tempo numa revista ilustrada francesa – perdi
a pista, mas é muito provável que se trate de Paris-Match. Essa imagem me
acompanha desde que comecei a me interessar pelo patrimônio cultural,
pela sua capacidade de sintetizar uma série de problemas com uma
extraordinária força de convicção que só os artistas são capazes de obter
26
(tenho a vaga memória de que o cartunista seria Sempé).
Nessa imagem, no interior hierático, solene e penumbroso de uma
catedral gótica (Chartres), aparece uma velhinha encarquilhada, de joelhos
diante do altar-mor, profundamente imersa em oração. Em torno dela, a
contemplá-la interrogativamente, dispõe-se um magote de orientais, talvez
japoneses. A presença de um guia francês nos permite considerar que se
trata de turistas em visita à catedral. O guia toca os ombros da anciã e lhe
diz: – “Minha senhora, a senhora está perturbando a visitação”. Eis um
retrato impressionante da perversidade de certa noção de patrimônio
cultural vigente entre nós.

CULTURA: ENTRE PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES


Conviria começar por identificar as diferenças cheias de implicações
entre a velhinha, os turistas e o guia. Ela, ao que tudo indica, é uma
habitante do lugar que também abriga a catedral. Sua ação é plenamente
territorializada: nada nela indica que seu procedimento se dissocie dos
demais espaços contíguos em que se desenrolaria sua vida cotidiana, a
começar pelas roupas simples, do dia a dia e pelo fato de se encontrar
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Conferência Magna
sozinha, apesar das carências trazidas pela idade. Aliás, ela pode ser
rigorosamente considerada o protótipo do habitante – para o que a
cotidianidade é precondição.
O verbo habeo em latim significa possuir, manter relações com alguma
coisa, apropriar-se dela. Com o acréscimo da partícula it, que indica reforço
(como em salio, “dançar, pular” e saltito, “dar pulinhos”), o verbo habito
acrescenta intensidade e permanência a essas relações. Hábito, habitualidade
expressam bem essa noção de constância, continuidade. Trata-se, portanto,
de uma relação de pertencimento – mecanismo nos processos de identidade
que nos situa no espaço, assim como a memória nos situa no tempo: são as
duas coordenadas que balizam nossa existência. Consequentemente, a
relação da velhinha com a catedral não deve ser pontual, de exceção ou que
se consuma num momento privilegiado e depois não mais se repita, ou se
repita de forma atenuada ou descontínua. A relação da velhinha é
existencial, pressupondo tempos dilatados (morar, moradia são palavras que
também explicitam esse conteúdo de extensão temporal no habitar).
Já para os turistas, a atividade que executam se revela desterritorializada,
secionada de seu cotidiano, opondo-se mesmo a ele, pois desprendida de
habitualidade. De qualquer forma, pressupõe-se um fosso entre o cotidiano
desses turistas e o tempo/espaço comprimido da visita à catedral. 27
Além disso, a forma de relacionar-se que habitante e visitantes
desenvolvem com o – vamos chamar assim – “bem cultural” é funda-
mentalmente diversa. A vida cultural, no caso da velhinha, pode ser
entendida como uma forma de qualificação pelo sentido e, portanto, como
raiz de interioridade e consciência. Rompido, porém, o quadro da
habitualidade e da reiteração, o potencial de qualificação se restringiria. Mas
a fruição da velhinha é profunda, vivenciada, e sua oração na catedral deve
envolver não só uma apropriação afetiva, como também, sem dúvida,
estética, isto é, perceptiva, já que o ambiente emite estímulos de toda a
ordem para aprofundar o tipo de ação que ela está praticando. Por certo,
essa fruição é também cognitiva: ela pode não ter conhecimento
especializado, mas, ainda que possivelmente sem saber que sua catedral é um
extraordinário exemplar da arquitetura gótica do século XII, deve apreender
a antiguidade do templo, o que isso representa de trabalho embutido, de
experiências acumuladas ao longo do tempo, de enraizamento e referências
para o espaço de sua cidade e de interação com seus vizinhos, com os
frequentadores e responsáveis dos cultos, com a comunidade de fiéis. Mais
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ainda, sua oração busca transcendência e comprometimento, que envolvem


dimensões profundas e abrangentes do ser, da subjetividade, de outras
esferas de sua existência. Para ela, o “bem cultural” é, antes de mais nada,
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

um bem, quer dizer, coisa boa. Boa de conhecer, de ver, de sentir, de


experimentar como um vínculo pessoal e comunitário e, finalmente, boa de
usar, de praticar – pragmaticamente é um bom lugar para rezar.
De seu lado, a fruição dos turistas consuma-se na mera contemplação de
um lugar de culto, agora transformado em lugar de representação do lugar
de culto: a catedral tornou-se bem cultural e essa perspectiva esvazia usos
antigos e torna anacrônicas as práticas anteriores. A gama diversificada de
apreensões possíveis estreita-se, assim, ao limite da visão. Quase poderíamos
falar de um voyeurismo cultural: o voyeur, com efeito, restringe sua
gratificação essencialmente à visão e não se expõe, não se compromete, em
suma, não muda. Seu espaço de habitualidade, aquele em que as
transformações profundas podem ocorrer e se manter, não é mobilizado.
Mais precisamente, contudo, a redução talvez nem seja à visão, mas à
audição, já que os turistas ouvem distraidamente – pois mais interessados
na anciã – o que o guia tem a dizer, ao invés de viver e de interagir
diretamente com o bem. São apenas informados sobre ele, necessitam da
mediação do guia. A experiência cultural, portanto, passa a depender da
28
atuação de especialistas. David Horne, estudioso da public culture, diz que
o padrão das visitas guiadas é o da transferência: vê-se aquilo que o guia
declara que se está vendo. Seja como for, o envolvimento de nossos turistas
é nulo ou superficial, sobretudo externalizado.
Estou, sem dúvida, radicalizando os dois paradigmas, para melhor
analisá-los, mas não ignoro a existência, entre eles, de uma vasta escala
intermediária que, todavia, não é o caso de desenvolver aqui. Assim, com
os turistas, tem-se a cultura como um domínio à parte na vida, embora se
trate de um compartimento nobre e nobilitante, marcado por certo tipo de
objetos e práticas, que deteriam em si a própria significação, já pronta e
acabada. São espaços, tempos e comportamentos desejáveis e prescritos,
embora descontínuos e, em regra, excluídos do cotidiano e do universo do
trabalho, duas referências que marcam contextos essenciais da existência
humana. Constituem focos de condensação, que podem atingir picos de
intensidade, mas depois se esvaziam: é a cultura-cólica. Ao espasmo segue-
se o descongestionamento progressivo e a volta ao ponto de partida. É a
cultura dos produtos culturais, dos produtores, consumidores, equi-
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Conferência Magna
pamentos, instituições, espaços, organismos, órgãos públicos, mercados.
Seria dispensável observar que tal entendimento, dominante entre nós, é
o que melhor atende ao mercado simbólico, parte importante do mercado
tout court.
Em contraponto, com a velhinha, a cultura se apresenta não como esse
segmento recortado da vida, mas como uma forma de qualificar
diferencialmente (pelo sentido, pela significação, pelo valor) qualquer fatia,
instância, tempo, objeto ou prática. O uso que a velhinha faz do bem
cultural é qualificadamente existencial, por oposição ao “uso cultural” dos
turistas. O uso cultural da cultura ao invés de estabelecer uma interação das
representações e práticas, privilegia as representações que eliminam as
práticas. O simbólico substitui as condições concretas de produção e
reprodução da vida.
De passagem observo que a política de patrimônio imaterial que o Iphan
vem desenvolvendo procura reconhecer que o campo cultural diz respeito
à totalidade da vida social, quando diferencialmente qualificada (pelos
sentidos, valores). Linhas de ação, como “sistemas agrícolas tradicionais”,
por exemplo, são capazes de articular organicamente facetas à primeira vista
tão alheias à cultura, quando ela é equivocadamente entendida como uma
gaveta à parte. 29
Uma palavra quanto aos turistas. Seria perverso pretender negar acesso
a valores que podem ser partilhados e cuja partilha, aliás, deveria ser
incentivada. O que é bom é para ser dividido – e se trouxer benefícios
econômicos, tanto melhor. Da mesma forma, porém, seria perverso admitir
que o regional, o nacional ou o universal, para se realizarem, esvaziem outros
legítimos sentidos e práticas originais locais, que não correspondem mais a
uma nova ordem de interesses. O comportamento da velhinha, de fato, é
transgressor, ela de fato perturba a visitação e está deslocando a atenção dos
visitantes pelo seu anacronismo. Tal modalidade de musealização, de
“culturalização” funciona, assim, precisamente como vetor de especialização
dos “benefícios” que os “bens culturais” poderiam produzir. Pior seria – e
essa situação não é propriamente excepcional – que bens declarados de valor
mundial fossem ignorados pela população local (salvo como mercadoria!):
como pode algo valer para o mundo todo, se não vale para aqueles que dele
poderiam ter a fruição mais contínua, mais completa, mais profunda?
Como pode o patrimônio mundial não ter, antes, valor municipal? (Esta
frase é dedicada ao prefeito Ângelo Oswaldo).
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Aliás, é necessário repensar a escala de alcance dos bens culturais


(municipal, estadual, federal), quase sempre definidos a partir de critérios
jurídico-administrativos ou quantitativos ou segundo apenas a extensão
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

espacial da ocorrência. Lembro-me de um poema de Carlos Drummond de


Andrade:
O poeta municipal
discute com o poeta estadual,
qual deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto isso, o poeta federal tira ouro do nariz.

O presidente Luiz Fernando de Almeida lembra, também, que, quando


Ouro Preto ganhou o título de Monumento Mundial, Carlos Drummond
de Andrade saiu-se com essa no Jornal do Brasil: “Qualquer dia Ouro Preto
vira monumento interplanetário e continuará com os mesmos problemas”.
É preciso introduzir outros critérios para avaliar os círculos concêntricos
de pertinência e interesse do bem, que possam antes de mais nada definir
seu potencial de interlocução. A grade referência deveria ser esse potencial
de interlocução, começando sempre com os interlocutores locais.
30
MATERIALIDADE / IMATERIALIDADE
Voltando à imagem, o que nela se vê é uma anciã e um grupo de turistas
orientais que têm em comum o fato de estarem onde estão, embora
reagindo ao ambiente de formas muito diferentes – mas se referindo sempre
ao mesmo objeto material complexo: a catedral. Esse mesmo objeto tem
significados diversos, em cada caso. Para os turistas, ele tende, como já
dissemos, a dispor de significados em si, estáveis, fixos, definidos, que não
são identificados e fruídos diretamente, mas pela informação especializada
do guia. É como se esses significados fossem imanentes à coisa, mas
necessitassem da mediação de um profissional para produzir efeitos. Para a
velhinha, tudo leva a crer que a catedral é um vetor de significações
múltiplas, que não são inerentes à coisa, mas geradas dentro e fora dela,
naquela teia de relações a que também acima aludi. Para a apropriação
específica que ela tem da catedral (lugar de oração), a velhinha contaria com
outras possibilidades: orar é uma forma espiritual de comunicação que não
exige um lugar específico. Mas que pode ser enriquecida, potenciada,
qualificada pela mediação de lugares específicos, como nossa catedral gótica.
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Conferência Magna
Portanto, essa forma espiritual de comunicação se potencia pelo aporte
material do lugar, que fornece os estímulos próprios, inclusive as imagens
e objetos sacros carregados de conteúdos simbólicos, o todo acentuado pelas
marcas do hábito, da interação, da memória, etc.
Assinalei a forma espiritual de comunicação, contudo não estou
esquecendo que não é apenas seu espírito que está empenhado no ato de
orar, mas também todo seu corpo. Postura, fisionomia e – se a imagem
chegasse a esse ponto de precisão – quem sabe até mesmo o movimento
dos lábios que tão comumente serve de lastro para o que vai na alma do fiel.
A boca (os, oris em latim) é um dos órgãos da oração.
Podemos concluir que o patrimônio cultural tem como suporte, sempre,
vetores materiais. Isso vale também para o chamado patrimônio imaterial,
pois se todo patrimônio material tem uma dimensão imaterial de
significado e valor, por sua vez todo patrimônio imaterial tem uma
dimensão material que lhe permite realizar-se. As diferenças não são
ontológicas, de natureza, mas basicamente operacionais.
A Constituição Federal de 1988, ao introduzir uma listagem de
categorias de patrimônio cultural, incluiu o patrimônio intangível,
caracterizado mais por processos do que por produtos, como formas de
expressão, modos de criar, fazer viver, os quais, porém, se examinarmos mais 31
de perto, pressupõem múltiplos suportes sensoriais, incluindo o corpo. Os
constituintes talvez nem tivessem consciência de que, desse modo, estavam
incluindo o corpo como partícipe do patrimônio cultural! O “saber-fazer”,
por exemplo, não é um conhecimento abstrato, conceitual, imaterial,
filosófico ou científico, mas um conhecimento corporificado. Os
especialistas falam de uma memória-hábito ou memória corporificada
(embodied memory). É a memória que nos permite guiar um veículo ou
andar de bicicleta como se fossem ações geneticamente previstas em nosso
programa biológico. É a memória do músico, da cozinheira, do artesão.
Seja como for, embora não convenha alterar a nomenclatura
internacionalmente corrente, seria desejável que, ao utilizarmos a expressão
“patrimônio imaterial” a despíssemos de qualquer polaridade com um
patrimônio material.
No filme Kenoma de Eliane Caffé, 1998, quando um ajudante levanta
restrições intelectuais a um matuto, cujo sonho obsessivo era construir uma
máquina de moto-perpétuo, este replica que a mente podia ser pobre, mas
a mão ia fazendo e o cérebro acompanhando. Bate com o que Marcel
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Vo l . 1

Mauss, um dos heróis fundadores da antropologia, pensava do homem


como o animal que pensa com as mãos. É por esse caminho que valeria
apenas conduzirmos as relações do material e do imaterial.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Daniel Miller, antropólogo pesquisador da cultura material, aponta um


paradoxo crucial nessa área: a imaterialidade só pode se expressar por
intermédio da materialidade. Para completar, o filósofo da técnica, Bernard
Stiegler cunhou a expressão “materialismo espiritualista” para referir-se
àquele que não diz que o espírito é redutível à matéria, mas que a matéria
é a condição do espírito em todos os sentidos da palavra condição. Impõe-
se, pois, superar dualismos insustentáveis, como esse em que matéria e
espírito são mutuamente excludentes.
Qual o fundamento dessa perspectiva? A resposta é precisa: nossa
condição corporal. Outro antropólogo especialista na cultura material, Jean-
Pierre Warnier, insiste em que não basta dizer que temos um corpo; é
necessário precisar que somos um corpo. Quer dizer, essa é a maneira de
estarmos no mundo, neste mundo.
Aqui está, pois, o coração de nosso problema: falar e cuidar de bens
culturais não é falar de coisas ou práticas em que tenhamos identificado
significados intrínsecos, próprios das coisas em si, obedientemente
32
embutidos nelas, mas é falar de coisas (ou práticas) cujas propriedades,
derivadas de sua natureza material, são seletivamente mobilizados pelas
sociedades, grupos sociais, comunidades, para socializar, operar e fazer agir
suas ideias, crenças, afetos, seus significados, expectativas, juízos, critérios,
normas, etc., etc. – e, em suma, seus valores. Só o fetiche (feitiço) tem em
si, por sua autonomia, sua significação. Fora dele, a matriz desses sentidos,
significações e valores não está nas coisas em si, mas nas práticas sociais. Por
isso, atuar no campo do patrimônio cultural é se defrontar, antes de mais
nada, com a problemática do valor, que ecoa em qualquer esfera do campo.

VALOR
Portanto, essa seria uma questão central, a demandar tratamento
adequado – que ainda não recebeu em nossa formação especializada. Fala-
se muito em valor, mas é raro que se saiba, precisamente, do que se está
falando e de suas consequências. Por certo, não é este o momento de traçar
uma súmula da problemática do valor, questão espinhosa e que demandaria
tempo. Ou de examinar a inconveniência das categorias usuais de “valor
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Conferência Magna
arquitetônico” ou “valor histórico”, por exemplo. Irei diretamente para a
questão nuclear: a matriz do valor. Se o valor é sempre uma atribuição,
quem o atribui? Quem cria valor?
Vale a pena reproduzir o famoso artigo 216 de nossa Constituição de
1988, pois ela toca diretamente nesse ponto:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza


material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem... (e aí vem uma listagem de modalidades).

Entre os profissionais, costuma-se considerar que a grande novidade


oferecida por esse artigo é a inclusão dos bens de natureza imaterial. Na
verdade, o que é radicalmente novo não é uma extensão do horizonte do
patrimônio, mas um deslocamento da matriz. Para melhor aferir a
amplitude dessa rotação de 180º convém confrontá-la com a legislação
anterior. O Decreto-Lei 25/1937 (que organizou o patrimônio no Brasil e
ainda serve de guia) estatui:

Art.1º Constitui o patrimônio artístico e histórico nacional o


conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja 33
conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

E o parágrafo 1º completa:

Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte


integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, depois de
inscritos separada ou agrupadamente num dos 4 Livros do Tombo,
de que trata o art. 4º desta Lei.

Em outras palavras, era o poder público que instituía o patrimônio


cultural, o qual só se comporia de bens tombados. O tombamento,
portanto, tinha papel instituinte do valor cultural – daquele valor que
credenciava a inclusão do bem num rol formalmente definido. Ao inverso,
a nova Constituição Federal reconheceu aquilo que é posição corrente, há
muito tempo, nas ciências sociais: os valores culturais (os valores, em geral)
não são criados pelo poder público, mas pela sociedade. O patrimônio é
antes de mais nada um fato social – essa afirmação, nos órgãos de
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preservação, nas décadas de 1970 e 1980, provocava escândalo e alimentava


mal-entendidos.
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É claro que o estado e o governo podem participar da criação desses


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

valores, privilegiando ou marginalizando uns e outros, mas sempre no jogo


das práticas sociais. Estas é que são o ventre gerador. O poder público,
agora, tem um papel declaratório e lhe compete, sobretudo, proteção, em
colaboração com o produtor de valor, a comunidade (para usar um termo
problemático pela sua ambiguidade e utilizado pelo constituinte).
Entretanto, mesmo sem qualquer intervenção do poder público, existe o
“patrimônio cultural nacional”.
No entanto, consolidou-se entre nós uma prática esquizofrênica, em que
as novas diretrizes constitucionais parecem valer só para o patrimônio
imaterial e as antigas, que foram constitucionalmente invertidas, continuam
em vigor nas ações relativas ao patrimônio material. Aí, continuamos a
trabalhar como se o valor cultural fosse identificável exclusivamente a partir
de certos traços intrinsecamente presentes nos bens. É deslocamento de
significados, reificação, fetichização. Se fosse aceitável, bastaria um contador
Geiger para bens culturais, cuja agulhinha girasse emocionada diante de
um belo exemplar que ostentasse uma porcentagem determinada de
34
sintomas, numa checklist capaz de identificar essências presentes na
coisa/prática. Também se observa certa esquizofrenia na personalidade
autônoma do patrimônio material e do imaterial – esquizofrenia que, aliás,
se reflete no interesse das “comunidades” que solicitam o registro de
expressões de seu patrimônio imaterial, e que procuram reconhecimento,
afirmação, estímulo à autoestima – e, de outro lado, a reação
frequentemente negativa ou, no mínimo, o desinteresse dos “interessados”
(antes de mais nada os proprietários), quando se trata de bens arquitetônicos
ou espaços urbanos. A força da especulação imobiliária, neste último caso,
não é razão única e suficiente para gerar tal resistência. Desconhecer os
mecanismos de funcionamento da sociedade também tem parte na
responsabilidade.
Estaríamos diante de uma nova polaridade: valor técnico versus valor
social? Não ainda, mas o risco está presente. Por isso, julgo premente
começarmos a rever nossa postura a respeito do valor e da avaliação
(reconhecimento do valor), sem excluir a perspectiva do especialista,
obviamente, mas sempre privilegiando aquela do usuário, do fruidor – em
outras palavras, a perspectiva da velhinha do cartum. Ela, em última
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Conferência Magna
instância, é produtora do valor em causa e que ela tem o direito e a
gratificação de fruir. Sem entrar em detalhes, gostaria de propor aqui um
roteiro para tal avaliação, que permitisse identificar componentes ou
referências do valor cultural. Embora se deva tratar o patrimônio
unificadamente, sem distinguir as categorias de material, imaterial, natural,
ambiental, histórico, arquitetônico, artístico, etc., a imagem que nos serve
de guia condensará na catedral a referência básica, que pode ser estendida
às demais categorias.
Penso nos seguintes principais componentes do valor cultural: valores
cognitivos, formais, afetivos, pragmáticos e éticos. Preliminarmente, porém,
vale acentuar que tais componentes não existem isolados, agrupam-se de
forma variada, produzindo combinações, recombinações, superposições,
hierarquias diversas, transformações, conflitos.

I) VALORES COGNITIVOS
Se (ou quando) a catedral de nosso cartum tiver condições de
conhecimento, ou constituir oportunidade relevante de conhecimento –
qualquer conhecimento – então o valor dominante, aí, é cognitivo. Por seu
intermédio pode-se conhecer o conceito de espaço que organizou o edifício,
seus materiais e técnicas, seu padrão estilístico; podemos traçar os efeitos dos
interesses em causa na sua projetação, as condições históricas (técnicas, 35
econômicas, políticas, sociais, culturais) de sua construção, usos e
apropriações, os diversos agentes ou categorias sociais envolvidos, sua
trajetória, sua biografia. O bem está sendo tratado, então, como
documento, ao qual se dirigem questões para obter, como resposta,
informação de múltipla natureza. É um valor de fruição basicamente
intelectual.

II) VALORES FORMAIS


Quando, porém, essa mesma catedral é percebida (ou também é
percebida) não tanto como documento, não tanto para produzir
informação, mas como oportunidade qualificada para gratificar
sensorialmente e tornar mais profundo o contato de meu “eu” como o
“mundo externo” ou “transcendente”, então o valor predominante é o
formal ou estético.
Estou tomando estético no sentido original, tomado do grego. Aísthesis
significa percepção. Não estou me referindo à beleza, bela forma, aos
sistemas do belo, cânones historicamente mutáveis, não universais. A
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Vo l . 1

estética diz respeito a essa ponte fundamental que os sentidos fornecem


para nos possibilitar sair de dentro de nós, construir e intercambiar
significados para agir sobre o mundo. Trata-se, no caso, do efeito da
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

presença, nos objetos, de atributos capazes de aguçar a percepção, de levar


a uma apreensão mais profunda, de induzir a produção e a transmissão mais
amplas de sentidos – alimentados pela memória, convenções e outras
experiências – qualificando minha consciência e meu agir. A estética, assim,
é uma mediação que nos faz humanos. Isso não coincide com estilos,
embora atributos formais dos estilos possam, precisamente, aguçar minha
percepção, qualificando-a.

III) VALORES AFETIVOS


Os valores que costumamos chamar de históricos (mas relacionados à
memória e não a conhecimento controlado) estariam mais bem
enquadrados na categoria de valores afetivos. Não são propriamente
históricos, já que se trata de formulação de autoimagem e reforço de
identidade. São afetivos, pois constam de vinculações subjetivas que se
estabelecem com certos bens, como ocorre certamente – e intensamente –
com a velhinha. Aqui é bom lembrar: memória e História nem coincidem,
nem são duas faces da mesma moeda. Por isso, se se tratar de História
36 como produção crítica de conhecimento, estamos no domínio dos valores
cognitivos (o primeiro mencionado). Se se tratar de carga simbólica e de
vínculos subjetivos, como o sentimento de pertença ou identidade, o
domínio é dos valores afetivos. Não ignoro que memória e História
partilham de vários atributos comuns, inclusive de caráter subjetivo e
cognitivo, sem, todavia, afetar a distinção acima proposta. Quanto aos
valores afetivos, sua aferição não pode confundir-se com pesquisas de
opinião, muito menos com a adesão a abaixo-assinados e manifestações
equivalentes. Envolve mecanismos complexos, como as representações
sociais e o imaginário social, para os quais a psicologia social desenvolveu
métodos de pesquisa adequados. Em tempo: a própria noção de histórico
adotada pelo Decreto-Lei 25 vai na direção do valor afetivo, quando
seleciona objetos que são contaminados pelo contato com eventos e
personalidades; nada impede, contudo, que eles possam ser alvo de valores
cognitivos, se tratados como documentos. Em última instância,
documento é todo suporte empírico capaz de responder a uma pergunta
do observador – o que os leva muito além daquilo que poderíamos chamar
de “documentos de nascença”.
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Conferência Magna
IV) VALORES PRAGMÁTICOS
São mais que valores de uso. De novo a velhinha: ela, certamente, ao
procurar o templo para sua oração, embora não fosse indispensável, deve ter
percebido como suas condições de uso disponível são capazes de
relevantemente qualificar sua prática, por causa também de valores
pragmáticos. Para dizer com outras palavras: valores pragmáticos são valores
de uso percebidos como qualidades. Tais valores são comumente
marginalizados ou ignorados entre nós, com significativa frequência. Não
estranha, pois vivemos numa sociedade que ainda não superou a herança
escravista, em que o trabalho e o trabalhador não gozam de cidadania plena,
em que “criada” quer dizer “empregada” e em que “elevador de serviço” quer
dizer “elevador de serviçal”. E em que o desperdício chega a 15% do PIB,
em que o reuso não é tema relevante nas escolas de arquitetura e assim por
diante.

V) VALORES ÉTICOS
São aqueles associados não aos bens, mas às interações sociais em que eles
são apropriados e postos a funcionar, tendo como referência o lugar do
outro. A postura do guia, no cartum, revela que tal valor não faz parte dos
critérios que dão rumo às suas ações. Uma discussão sobre os valores éticos
exigiria o tratamento de questões espinhosas como o relativismo (cognitivo, 37
cultural, moral), assim como os direitos culturais em face dos direitos
humanos – questões que não cabem neste contexto. É preciso, todavia,
apontar que, se o direito à cultura é o direito à diferença, esta só tem
legitimidade quando é capaz de dialogar e produzir transformações mútuas.
Sem isso, o multiculturalismo, de que tanto se fala, muitas vezes pode se
transformar numa cortina de fumaça em que certo universalismo (que
paradoxalmente permite a diversidade) mascara normas, valores e interesses
– como não deixaram de observar sociólogos, antropólogos e filósofos que
trataram do assunto, tais como Birkhu Parekh ou Charles Taylor, por
exemplo. Por isso, é conveniente, hoje, distinguir diversidade cultural de
diferença cultural. Homi Bhabha é incisivo ao dizer que a tradição liberal
(particularmente no relativismo filosófico e antropológico) tornou pacífica
e generalizada a ideia de que as culturas são diversas e que, de certo modo,
a diversidade das culturas é algo bom e positivo em si e por si e deveria ser
automaticamente endossada. Assim, seria lugar comum das sociedades
democráticas dizer que incentivam e acomodam a diversidade cultural. Na
verdade, porém, o sinal de uma atitude “civilizada” nas sociedades
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Vo l . 1

ocidentais, como notam esses autores, é a habilidade de apreciar culturas


diversas, mas como num “museu imaginário”. Quando as culturas saem do
museu e a diferença cultural (e não mais apenas a diversidade cultural) passa
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

a ser um dos componentes ativos das tensões sociais, o encorajamento da


diversidade cultural se acompanha de mecanismos de contenção da
diferença cultural. Em outras palavras, tem ocorrido, com os mesmos
sujeitos, que a diversidade cultural possa ser grandemente apreciada nos
museus, embora rejeitada na interação social. A reação diante de traços
culturais e diante dos próprios portadores da cultura pode não coincidir.
Para finalizar estas reflexões sobre valor, penso oportuno dizer algo sobre
antinomia corrente que opõe o valor cultural ao valor econômico (valor de
troca). Na perspectiva que desenvolvi, não há qualquer antagonismo. Há
uma dimensão econômica no bem cultural, assim como uma dimensão
cultural no bem econômico. Haja vista ao que foi entre nós a cultura da
inflação e a percepção do sequestro da poupança, no Plano Collor, como
atentado à memória, detectada em escala não desprezível de poupadores. A
oposição existe, sim, entre a lógica da cultura (que é uma lógica de
finalidade, em que a produção do sentido e da comunicação é que constitui
prioridade, como acentua García Canclini) e a lógica de mercado (que tende
a instrumentalizar a cultura, na obtenção do lucro).
38

CONCLUSÃO
O campo dos valores não é um mapa em que se tenham fronteiras
demarcadas, rotas seguras, pontos de chegada precisos. É, antes, uma arena
de conflito, de confronto – de avaliação, valoração. Por isso, o campo da
cultura e, em consequência, o do patrimônio cultural, é um campo
eminentemente político. Político, não no sentido partidário, mas no de pólis,
a cidade dos gregos, isto é, aquilo que era gerido compartilhadamente pelos
cidadãos; a expressão correspondente entre os romanos, res publica,
representa a outra face da moeda: a coisa comum, o interesse público. A
democracia garante direitos e acesso; a república, finalidade e
responsabilidades. A cidadania haveria de ser obrigatoriamente democrática
e republicana e instaurar direitos e as correspondentes obrigações.
Nesse patamar, não basta um tratamento técnico-científico das questões:
ele nunca dará conta de toda a problemática presente. O que é próprio desse
campo é aquilo que Apel e Habermas chamam de ética do discurso: a base
racional e universal dos princípios da ação, partindo da forma de
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Conferência Magna
comunicação linguística humana e da modalidade específica que é a
argumentação, o convencimento, a demonstração. Não a exibição de
axiomas e razões universais ou das lógicas profissionais (corporativas)
absolutas. Como os valores não estão previstos geneticamente, mas são
criados, eles precisam ser enunciados, explicitados, fundamentados e podem
ser propostos, recusados, transformados – não impostos.
Desse modo, a atividade no campo do patrimônio cultural é complexa,
delicada e trabalhosa. Exige postura crítica rigorosa. Exige capacidade de ir
além de suas próprias preferências pessoais. Mas por isso também é tão
fascinante e gratificante, pois estamos tratando, não de coisas, mas daquela
matéria-prima – os significados, os valores, a consciência, as aspirações e
desejos – que fazem de nós, precisamente, seres humanos.

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Conferência 1
BASE PA R A P O L Í T I C A S I N T E G R A D A S
D E P R E S E RVA Ç Ã O D O PAT R I M Ô N I O
C U LT U R A L , D E S E N V O LV I M E N T O
SOCIAL E ECONÔMICO

Weber Sutti*

RESUMO
Um balanço da atuação do Iphan nos últimos anos e os desafios do *Weber Sutti -
Assessor da
instituto diante do momento em que a sociedade civil se articula para Presidência do
participar das políticas públicas de cultura. Evidencia a necessidade de que Iphan
os gestores do patrimônio assumam seu papel no processo de consolidação
de uma política de transversalidade, capaz de retirar ações do Iphan do
isolamento e integrá-las aos instrumentos de planejamento existentes, hoje,
na sociedade brasileira. O plano de ação do PAC das Cidades Históricas é
apresentado como um modelo para essa nova fase do Iphan, na qual uma 41
ação conjunta com as esferas municipais, estaduais, o governo federal e,
principalmente, com a sociedade é o principal objetivo.

PALAVRAS-CHAVE
Planos de Ação, Transversalidade, Articulação.

Farei uma rápida apresentação e falarei mais detalhadamente sobre as


bases de uma política integrada. Serei, na verdade, o porta-voz de um
trabalho coletivo que tem sido desenvolvido nos últimos anos pelo Iphan
em diversas frentes e que consolida este momento. Um momento que,
acredito, seja de formação de um pacto, não digo de diretrizes, mas de uma
pactuação que representa um desejo muito profundo de transformação.
Trata-se da busca de condições para criar uma política sobre a qual, aliás, a
provocação de Ulpiano de Meneses foi muito pertinente, ao falar de uma
política mais cotidiana, capaz de trazer a gestão do patrimônio cultural para
o dia a dia de todos nós.
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Vo l . 1

Acredito que, quando se fala da questão do patrimônio cultural, é muito


comum a ideia de que todos os profissionais do patrimônio vivenciam e
enfrentam, no seu cotidiano, várias demandas. Principalmente, porque a
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

gestão do patrimônio cultural envolve desde o proprietário de um


patrimônio protegido até um governador e um prefeito, o que quer dizer
que envolve interesses muito diversos, inclusive, o do setor privado,
interessado em fazer novos empreendimentos e, consequentemente, trazer
investimentos. Essa pluralidade de atores como demanda de expectativas
totalmente difusas sobre o patrimônio cultural gera, hoje, uma situação
conflitante que não tem base de pactuação.
Além disso, temos graus de responsabilidade pela gestão, também não
compartilhada e não pactuada, do patrimônio cultural. Ou seja, em alguns
lugares, você tem um órgão estadual, um órgão municipal e o Iphan, mas
sem relação de procedimentos. Então, um projeto que é aprovado por um
órgão municipal, não é aprovado pelo órgão estadual ou pelo Iphan. E, às
vezes, essa falta de coesão nos procedimentos leva a um “deixa que eu deixo”
ou a um “jogo de empurra”. Por exemplo: uma pessoa vira para o
proponente de uma determinada ação e fala: “Eu permiti, quem não
permitiu foi aquela pessoa, foi o Iphan...” E isso gera um grande prejuízo
para quem está, de fato, interessado em fazer transformações ou ações de
42 preservação ou, ainda, a consolidação das nossas cidades.
O fato é que essas coisas acontecem porque existem diferentes enfoques
e entendimentos sobre a questão do patrimônio. O que pode ser feito na
gestão de um bem protegido? O que pode ser feito numa cidade histórica?
Essa falta de entendimento comum na forma de trabalhar o patrimônio
tem a ver com a discussão que o professor Ulpiano Bezerra de Meneses
propôs sobre a questão dos valores éticos. Principalmente, quando a questão
é definir o que pode e o que não pode ser feito na gestão do patrimônio, ou
determinar quando esse bem tem valor. Pelo fato de ser legalmente
protegido ou pelo fato dele ter significado? E para esse bem ter ou manter
significado, quais são as transformações necessárias?
Acredito que essa falta de entendimento da atuação em relação ao
patrimônio cultural é, portanto, o que gera essa espécie de “jogo de
empurra”, essa falta de coesão entre as políticas de patrimônio cultural. E,
ao mesmo tempo, o patrimônio cultural é um bem da sociedade, é um bem
da coletividade, ele é um bem público maior. Assim, a partir do conceito do
bem público, ele pertence a todos e a ninguém, ou seja, ninguém pode se
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Conferência 1
arrogar dono desse bem. Definir, portanto, diretriz para ele, indepen-
dentemente de um pacto de ação maior, é um desafio porque todos, ao
mesmo tempo, querem fazer essa gestão, o que gera uma série de atritos.
Poderia citar milhares de casos e, acho que ontem, o prefeito Ângelo
Oswaldo, presidente da Associação Brasileira de Cidades Históricas, também
citou uns dez casos exemplares desses interesses difusos do bem público e do
bem privado. Sem contar a questão da transversalidade, a qual julgo ser
fundamental. Há algum tempo, a gestão do patrimônio cultural tem sido
feita num quadro muito específico que são os órgãos de gestão no patrimônio
cultural. Ou a gestão do patrimônio cultural rompe e consegue se inserir na
transversalidade da atuação política, da gestão política dos órgãos e dos
diversos atores que atuam na sociedade, ou ficaremos muito restritos.
O presidente Luiz Fernando de Almeida também comentou o fato de
termos definidos, claramente, os setores de atores que atuam nos museus,
que atuam na dança, porque são os produtores, são as pessoas que têm,
naquela finalidade, o seu objeto de atuação. Ao contrário da área do
patrimônio, cuja rede de atuação é muito dispersa. A falta de coesão entre
os atores que atuam sobre o patrimônio cultural, bem como no discurso
para colocar a gestão do patrimônio em pauta para os governos e para as
próprias ações propostas, gera uma confusão que nos leva, muitas vezes, a 43
perder a voz ou a falarmos sozinhos.
Mas, ao mesmo tempo em que se tem esse problema de formação de
pactos de ação conjunta, essa falta de compartilhamento e de uma estrutura
comum de gestão no patrimônio cultural, tem-se um quadro atual que não
é ruim. Interessante: se observarmos as outras esferas federativas
perceberemos que todos os estados têm uma estrutura própria de gestão do
patrimônio cultural. Das 173 cidades históricas que temos considerado,
depois eu vou explicar o critério, mais de 50% possuem um órgão específico
de gestão no patrimônio cultural. Isso é relevante, considerando que 70%
dessas cidades têm menos de 50 mil habitantes, tratando-se, portanto, de
pequenos municípios que têm as dificuldades de gestão que todos
conhecem. Sem contar que mais de setecentos municípios têm, hoje, no
Brasil, conselho de patrimônio. Que se considere o fato de quinhentas
dessas cidades serem mineiras. O fato é que existem 240 cidades no Brasil
com um conselho específico de patrimônio cultural. Números bastante
expressivos se compararmos com outros setores da política pública.
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Vo l . 1

Isso quer dizer que temos, de certa forma, uma rede que está atuando e
que 40% dos recursos que são investidos no patrimônio cultural vêm de
iniciativas da sociedade civil, por meio do Programa Nacional de Apoio à
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Cultura (Lei Rouanet). São, portanto, iniciativas que a sociedade propõe e


que são financiadas. Ou seja, percebemos que existe uma rede estabelecida,
uma rede que atua e que direciona um terço dos investimentos executados
em patrimônio cultural. O que está faltando, então, para termos, de fato,
uma política?
Acredito que está faltando conseguirmos compartilhar nossa atuação,
criar uma forma de trabalhar que seja capaz de superar essa fragmentação
entre os diversos níveis de governo, além do governo com a sociedade.
Costumamos trabalhar só para nós, temos, então, de constituir um
planejamento e uma forma de implementar as políticas de patrimônio
cultural que consiga otimizar nossas ações e recursos. E, quando falo em
recursos, não estou me restringindo aos recursos financeiros, estou me
referindo também aos recursos humanos, logísticos, de comunicação.
Afinal, temos de estar conscientes de que ou compartilhamos nossa forma
de fazer política, os nossos procedimentos, ou teremos um trabalho dobrado
que desgasta a todos e não gera resultados. Pelo contrário, gera uma
duplicidade que, muitas vezes, pode gerar ambiguidade e levar ao descrédito
44 da própria política de preservação do patrimônio cultural. Tal situação
evidencia que temos como desafio buscar esse compartilhamento, essa
atuação integrada. Mas, buscar uma atuação e um compartilhamento mais
integrados para quê?
Vejo que essas metas têm de ser muito claras. Se não tivermos claro o
nosso objetivo, a constituição de um sistema de atuação não servirá para
nada. Devemos estar conscientes de que é essa gestão compartilhada e
integrada que será capaz de estabelecer estratégias de preservação no
patrimônio, projetos ligados aos processos de desenvolvimento social,
econômico, urbano, recolocando o patrimônio cultural como elemento
indutor nessas cidades. Estou me referindo às cidades que tenham o nosso
patrimônio e que não corresponde somente ao patrimônio federal, estou
falando do patrimônio de fato (municipal, estadual e federal), de todo o
país. A meta é reposicionar o patrimônio cultural na agenda estratégica de
todos os governos e da sociedade. E essa recolocação, esse reposicionamento
do patrimônio cultural como elemento estratégico, é fundamental para
garantir algo que todos vocês sabem aqui muito melhor do que eu que é
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Conferência 1
fundamental: garantir que cada cidadão tenha o reconhecimento do seu
patrimônio e faça a sua gestão de preservação. Ou seja, garantir a presença
no cotidiano, na gestão cotidiana, em cada ação executada por cada cidadão,
de todas as cidades, que tenham o patrimônio cultural.
Ou conseguimos recolocar o patrimônio na agenda governamental, na
agenda da sociedade e trazê-lo para o cotidiano ou vamos continuar
deslocados. E à luz do pronunciamento do professor Ulpiano Bezerra de
Meneses, temos essa clivagem, essa dissociação entre o que é reconhecido
pelos gestores do patrimônio cultural e o que é valorizado pela população.
Um criticando o outro pela política estabelecida, pelos valores abordados.
E aí, vejo que é fundamental evidenciar o fato de que, quando começamos
a discutir a questão do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, tivemos
uma premissa muito importante que era não estabelecer o marco regulatório
para o sistema. Somente estabeleceríamos o marco regulatório quando
tivéssemos constituído uma base legítima. E acredito que esse é um
momento de consolidação dessa legitimidade para uma construção que tem
sido feita ao longo dos últimos anos. Muitos sistemas federais foram
estabelecidos com leis e, a partir dessas leis, induziram-se as formas de
funcionamento. Ou nos mobilizamos e conquistamos apoio, força social e
força política como forma de trabalhar ou não adiantará fazer um marco
legal, que será, apenas, mais uma lei. 45

Na verdade, acredito que já consolidamos um trabalho que nos dá


condição de pensar, de fato, em garantir esses marcos legais, os quais
também são fundamentais. Juntamente com essa força social que está
constituída, eles vão garantir a continuidade de uma política de patrimônio,
associada a uma política de Estado. Não adianta ter a lei, não adianta ter o
gestor, tem que ter a cobrança. E também não adianta ter a cobrança, se
você não tem gestores que querem fazer isso. Acredito que temos, hoje, uma
confluência de fatores que nos propiciam a pensar na consolidação
normativa. Sem esquecer, logicamente, que a premissa era pactuar
longamente com todos os atores que atuam no patrimônio cultural, antes
de estabelecermos esse marco legal. E garantir, para isso, uma mobilização
de força política, uma integração voluntária de mobilização de recursos de
todos os atores, trabalhando sempre com três eixos.
Assim, quando falamos de sistemas nacionais de políticas públicas,
podemos eleger três premissas básicas: instrumentos de financiamento e
fomento; instrumentos de coordenação e instrumentos de regulação.
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Vo l . 1

Vejo que temos muito que discutir sobre esses três eixos, principalmente,
quando me refiro a financiamento da Política de Patrimônio Cultural no
Brasil.
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Consolidado pela Secretaria do Tesouro Nacional, apresento o quadro


que mostra os investimentos nos três níveis de governo, no qual se tem todo
o investimento realizado pelo Iphan. Esses dados são de 2006, porque os
dados são fechados, sempre, sobre os dois anos anteriores, então, esse é o
quadro mais atual que temos. Vejamos.
São 53 milhões executados pelo Iphan no ano de 2006; 60 milhões, pelo
Monumenta e outras unidades orçamentárias do Ministério da Cultura;
mais nove milhões de outros ministérios e órgãos federais; 66 milhões
investidos pelos governos estaduais; 96 milhões pelos governos municipais
e 140 milhões pela Lei Rouanet, que é o Programa Nacional de Apoio à
Cultura, na modalidade mecenato. Então, todos os recursos investidos com
a rubrica “patrimônio cultural” no país, somaram, em 2006, 425 milhões
de reais. Não é nada. Isso mostra que falta muito recurso. Mas algumas
iniciativas que estão em andamento podem garantir importantes avanços.
Tem a revisão da Lei Rouanet, por exemplo, que está em tramitação, não
no Congresso, mas dentro do Governo. A lei está sendo fechada na Casa
46
Civil para ir ao Congresso e traz uma revisão que pretende favorecer a
pactuação em torno das ações propostas pela sociedade, para as políticas
estabelecidas pelos municípios, pelos estados e pelo Governo Federal. Hoje,
temos uma grande concentração regional no eixo Rio/São Paulo/Minas
Gerais, que fica com 80% dos recursos. Além disso existem ações
independentes das políticas estabelecidas pelos governos. E o que isso gera?
Resulta, muitas vezes, em ações dispersas e que não conseguem dar
efetividade para a preservação do patrimônio cultural.
Além da revisão proposta para a Lei Rouanet no sentido de corrigir as
disparidades regionais e criar mecanismos que consigam induzir a ações
casadas com as políticas públicas estabelecidas e aprovadas pelos fóruns da
sociedade, há ainda a criação do Fundo Setorial do Patrimônio Cultural. A
criação desse fundo é estratégica porque, com ele, vamos conseguir
estabelecer uma política em cadeia, ou seja, pensar em trabalhar com fundos
estaduais e municipais, além de criar, com mais facilidade, um mecanismo
capaz de fazer circular o que é investido no patrimônio cultural. Hoje, não
temos esse instrumento e padecemos, muitas vezes, de não ter nem como
receber alguns recursos que poderíamos receber. Além disso, avançou muito
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Conferência 1
a intersetorialidade da política de patrimônio, o que nos levou a estabelecer
parcerias com diversos ministérios. Em 2009, além do Ministério da
Cultura, conseguimos cerca de dez milhões de reais de outros ministérios.
De repente, pode-se pensar que isso não representa nada. Mas, se
voltarmos para esses dados de 2006, ou seja, nove milhões de todos os
outros órgãos do Governo Federal, sentiremos a diferença. Neste ano de
2009, conseguimos dez milhões que foram disponibilizados para o Iphan,
fora o que os outros ministérios investiram. Quer dizer, é um avanço muito
grande no relativo, no absoluto ainda é muito pouco.
Outra conquista é que temos parcerias estabelecidas com o Ministério do
Turismo, Ministério de Educação, o Ministério da Agricultura, o Ministério
das Cidades, Ciências e Tecnologia, Defesa, o Ministério de Planejamento
por meio da Secretaria de Patrimônio da União, o Ministério do Meio
Ambiente, Ministério da Integração, ou seja, temos trabalhos em
andamento com cada um desses ministérios, o que reposiciona o trabalho,
a política de preservação do patrimônio cultural. Além disso, o Iphan tem
investido bastante em políticas de fomento e isso significa não mais executar
diretamente todo o seu recurso, mas criar canais através dos quais a
sociedade possa acessar recursos para se estabelecer, se apropriar da política
de preservação do patrimônio cultural. Existem, hoje, editais do patrimônio 47
material, editais de projetos de extensão universitária, projetos de pesquisa
e difusão da arqueologia, que vão sair agora, editais do fundo de direito
difuso, entre outros.
Ao tomarmos uma linha do tempo com orçamentos finais do Iphan e do
Programa Monumenta, do período de 1995 a 2010, percebemos um
aumento, por exemplo, em 1998, tivemos nove milhões de reais para
investimentos na área finalística do Iphan e chegamos em 2010 com uma
previsão orçamentária de 220 milhões de reais finalísticos para o instituto.
Acredito que isso mostra o quanto esse trabalho está conquistando ganhos
significativos. Agora em 2009, tivemos cerca de 122 milhões de reais entre
o orçamento do Iphan e do Programa Monumenta que é, agora, executado
de maneira conjunta. Então, podemos, praticamente, chegar ao dobro de
recursos de 2006. E, quando falamos quais são esses instrumentos usados
como meios de gestão, penso que temos de recuperar alguns deles.
Montamos um quadro do patrimônio cultural com os órgãos estaduais
e conseguimos estabelecer uma pesquisa que mapeou todos esses órgãos, na
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Vo l . 1

sua legislação, nas suas equipes, ações estratégicas, nas suas políticas
estabelecidas, orçamentos e nos instrumentos de gestão que cada órgão tem.
Estamos trabalhando na consolidação de um sistema nacional de
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

informação do patrimônio, que vai criar um sistema gerencial, o qual todos


os municípios e estados e, inclusive, a sociedade poderão acessar e ver os
recursos que estão sendo investidos em cada contrato que o Iphan executar.
Vão ter acesso ainda a cada contrato que os municípios e estados, que
quiserem aderir a esses sistemas de informação gerencial, executarem. O
importante é que tenhamos essas informações disponíveis para a sociedade.
Estamos consolidando ainda metodologias de gestão, quer dizer, já estão
consolidadas, mas digo que estamos consolidando porque nós trabalhamos
numa integração. Creio que houve uma cooperação efetiva com os espanhóis
que nos mostraram seu sistema de informação e estamos buscando avançar
nesse sentido. Temos, hoje, dois principais sistemas na casa que é o sistema
integrado de gestão e o Inventário Nacional de Referências Culturais. Existem
diversos outros sistemas de gerenciamento, mas são do patrimônio
arqueológico, como o INBI-SU e o INCEU que, inclusive, já estão em certo
desuso. Agora, estamos trabalhando numa consolidação de sistemas únicos
que busquem agregar todos os demais, visando conseguir instrumentos de
gestão para qualquer agente da sociedade, para que todos possam acessar essas
48 informações. Além disso, existem novos instrumentos como a paisagem
cultural, os planos de salvaguarda, a criação dos fundos municipais que se
configuram, hoje, como instrumentos com novos desafios para nós.
Estamos trabalhando ainda a questão dos instrumentos urbanísticos,
escritórios integrados de gestão, sistema de fiscalização e multa que está
praticamente finalizado no Iphan, entre outras coisas em que temos
trabalhado. Além disso, o Iphan está estabelecendo, a partir de 2010, com
ações concretas, o Centro Regional de Formação para a Gestão do
Patrimônio Cultural. A ideia desses centros é que funcionem em parceria
com a Unesco regional já que pretendem atender a América do Sul e os
países da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa –,
principalmente na formação para a gestão do patrimônio cultural. O
objetivo é estabelecer uma série de parcerias que tenham desde cursos de
especialização até um curso básico de gestão do estado na questão do
patrimônio cultural. Ou seja, o curso formará pessoas para entender de
gestão governamental, de operação de financiamento e também ganhar
repertório de ações que possam servir como um referencial para atuação na
área do patrimônio. Quando pensamos no centro de formação, pensamos
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Conferência 1
também num observatório que acompanhe as políticas e que possa
estabelecer um trabalho de inteligência capaz de se contrapor ao
eurocentrismo. Somos, muitas vezes, pressionados pela visão eurocêntrica
de patrimônio cultural, o que nos impede de dar um tratamento especial
para nossa documentação e informação, o que é muito importante.
Quero dizer ainda o primeiro curso básico será no segundo semestre de
2010 e contará com ampla divulgação pelo site do Iphan, voltado para
gestores, principalmente, os gestores municipais, estaduais e federais, mas
aberto, também, para a sociedade nas diversas parcerias. Além disso, tem a
rede de casas do patrimônio, e a difusão do patrimônio cultural, cujo
objetivo é criar, em todas as cidades, polos propulsores de ações educativas,
articuladas com a sociedade sobre o patrimônio cultural. Ouro Preto, por
exemplo, vai ganhar a Casa da Baronesa que será sede de uma série de ações
contínuas de valorização e difusão do patrimônio cultural. Recife também
contará com sua casa do patrimônio, assim como Iguape (SP), e tantas
outras que estão começando a se consolidar no Brasil. Julgo tudo isso
fundamental para garantir essa aproximação e integração com a sociedade.
Temos buscado também a articulação, cada vez maior, com o ensino formal,
não no sentido de estabelecer uma disciplina do patrimônio cultural, mas do
patrimônio se inserir nas diversas disciplinas. Não se trata de trazer uma 49
caixinha para o patrimônio, trata-se de fazer o patrimônio cultural trabalhar
com todas as disciplinas existentes, diretriz na qual, temos conseguido avançar
muito. Além disso, o patrimônio possibilita a inserção de ações de educação e
promoção do patrimônio e todos os processos de gestão.
Acredito que qualquer obra feita pelo Iphan tem que contar com ações
de educação e promoção que deem significado ao bem imóvel para a toda a
população. Qualquer outra ação, mesmo de um inventário, pode trabalhar
dessa forma. Vejo, portanto, o quanto o Iphan tem avançado e acredito que
tem de avançar cada vez mais e com mais atores.
Considero de grande relevância o aprofundamento conceitual e a nova
abordagem adotada pelo Iphan. O Instituto tem realizado uma ação de
fundamental importância que é buscar, incessantemente, trabalhar com a
convenção da diversidade. Temos procurado valorizar a questão dos
processos das referências culturais, buscando reconhecer a multiplicidade
do nosso patrimônio, não somente na perspectiva de um órgão, ou de
outras referências culturais, mas entender o patrimônio como um produto
dessas múltiplas referências. Sem contar, a abordagem dos universos
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Vo l . 1

culturais, como o patrimônio naval, o patrimônio arqueológico e o


patrimônio ferroviário.
|

Deixemos um pouco a ideia do patrimônio mineiro, do patrimônio de


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Ouro Preto, para entender como esse patrimônio se insere no universo


cultural, por exemplo, do Ciclo do Ouro, e sua infuência nos processos de
formação no nosso país. Porque, se o patrimônio cultural é o elemento que
confere a nossa identidade, temos de entendê-lo a partir dos processos que
constituíram o nosso país. O Iphan tem avançado muito também nesse
sentido com os processos econômicos, a ocupação territorial, os eventos
históricos, os mapeamentos temáticos, os já citados patrimônio naval,
ferroviário, além do patrimônio rural e do patrimônio moderno. Tem uma
série de trabalhos que têm sido feitos e que valorizam, cada vez mais, o
entendimento dos universos culturais, buscando estabelecer o entendimento
e a valorização desse patrimônio. Não como algo específico de um lugar
que cria a concorrência e pode levar a um pastiche do próprio patrimônio,
mas pensando na questão essencial que é referenciar os processos maiores e
que explicam o nosso país.
Quero abordar, rapidamente, o processo de articulação para estabelecer
parcerias nessa nova empreitada do Sistema Nacional de Patrimônio
50
Cultural, uma discussão muito antiga no Iphan e com muito trabalho já
realizado, sobretudo, no ano de 2007. Nesse período, buscamos restabelecer
a Associação Brasileira de Cidades Históricas, fizemos uma primeira
articulação, mas era um ano pré-eleitoral, uma vez que 2008 foi um ano de
eleição municipal, e tivemos muita dificuldade em conseguir agregar os
prefeitos pela própria disputa natural nas eleições. Então, fomos ao Fórum
Nacional de Secretários e Dirigentes, e fizemos uma pactuação em
novembro de 2007 e, em março de 2008, houve uma reunião com todos
os órgãos de patrimônio. Foi a primeira reunião feita desde 1971, ou seja,
foram mais de trinta anos sem nenhum encontro dessa natureza.
Confesso que, quando eu estava ajudando a organizar a reunião e, quando
ela aconteceu, falei: “vou ser demitido”. Porque a reunião foi uma catarse,
mas, depois, alguém percebeu que aquela catarse era falta de diálogo. Trinta
e tantos anos sem se reunir, sem se olhar e poder conversar, isso gerou um
grau de expectativa, um grau de demanda muito grande. E foi um primeiro
passo, conseguimos tirar um grupo de trabalho, e esse grupo, que tinha um
representante de cada região do país, conseguiu estabelecer um quadro do
patrimônio, além de fazer uma série de outros trabalhos.
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Conferência 1
Trabalhamos muito na integração com o Plano Nacional de Cultura e
o Sistema Nacional de Cultura, porque a ideia é que o Plano Nacional de
Patrimônio Cultural e o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural sejam
um subsistema do Sistema Nacional de Cultura. Aliás, a intenção é reforçar
uma visão integrada da área cultural. Não adianta querermos que cada
município tenha um Conselho de Patrimônio, um Conselho de Cultura,
um Conselho de Educação, um Conselho de Saúde, um Conselho de
Dança, isso é inviável para a realidade municipal brasileira. Se
conseguirmos reforçar as nossas estruturas e garantirmos equipes efetivas
para trabalhar no patrimônio cultural, será um grande avanço. Estamos,
portanto, dentro do Sistema Nacional de Cultura, e Roberto Peixe,
coordenador do sistema, vai falar sobre o SNC porque temos buscado
sempre nos articular com essas diretrizes.
Além disso, nós realizamos o quadro e, em novembro e dezembro de
2008, fizemos cinco oficinas regionais em cada região do país, reunindo
todos os órgãos estaduais e todas as superintendências do Iphan, para
pactuar as bases desse trabalho que está aqui hoje colocado. E, em fevereiro
de 2009, após a eleição municipal, ocorreu com nosso apoio a refundação
da Associação Brasileira de Cidades Históricas, presidida pelo prefeito
Ângelo Oswaldo, o que foi fundamental. Essa articulação dos governos
estaduais com as prefeituras, através da Associação Brasileira, possibilitou 51
que conse-guíssemos, no mês de maio, atendendo a uma demanda dessas
oficinas regionais, estabelecer uma estratégia de elaboração dos Planos de
Ação, ou seja, levar para a ponta o planejamento integrado da ação sobre o
patrimônio cultural. Em agosto, fizemos uma primeira capacitação com
mais de 140 cidades, em Brasília e, em outubro, conseguimos o lançamento
do PAC das Cidades Históricas.
Vou falar, também rapidamente, sobre isso, somente para as pessoas
saberem o que é o PAC das Cidades Históricas. Primeiro, ele foi uma janela
de oportunidade no meio dessa crise que enfrentamos no fim de 2008,
quando o presidente da República falou que apoiaria ações anticíclicas
estruturadas pelos ministérios do Governo Federal. Conseguimos essa
mobilização entre os governos estaduais e prefeituras, dando força política
para essa ação do PAC das Cidades Históricas e, consequentemente, ter o
compromisso dos governos nesse investimento.
Enfim, todos conhecemos o quadro das nossas cidades e Luiz Fernando
de Almeida fala uma coisa que julgo interessante: que o Brasil é um dos
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Vo l . 1

países da América Latina que tem o patrimônio cultural mais descuidado


porque o grau de decadência que temos nos nossos sítios urbanos é
impressionante. Durante a abertura do fórum, foi falado sobre a situação
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

de nossas cidades, cujas periferias se encontram na mesma situação. Então,


fiz uma foto de Ouro Preto e, se colocarmos essa foto separada e fizermos
a pergunta: Que cidade é essa? Dificilmente conseguiremos identificar, o
que comprova o quanto as nossas cidades, de um modo geral, têm sofrido
uma decadência.
E qual é a ideia do PAC das Cidades Históricas? São 173 cidades; essas
cidades são os nove patrimônios mundiais, todas as capitais, todas as cidades
da Copa, 40 dos 65 destinos indutores do Ministério do Turismo e 18
cidades da região do São Francisco. E qual é o critério de escolha dessas
cidades? O primeiro critério e que funcionou como um ponto de partida
foi o das cidades protegidas ou que estão em processo de proteção pelo
Iphan, ou seja, o primeiro recorte foi o das cidades já reconhecidas ou em
processo de reconhecimento. É importante que fique claro que a ideia não
é que o PAC, assim como qualquer outra ação do Iphan, fique restrito a um
universo específico. Pelo contrário, é cada vez maior o desejo de
universalizar a política de patrimônio cultural, mas isso deve ser feito de
forma consequente, consistente. Então, esse é apenas o início, uma primeira
52 lista de cidades. Se uma cidade, por exemplo, começar um processo de
tombamento ou um processo de reconhecimento de lugar, auto-
maticamente se acrescenta a essa lista porque queremos trabalhar com as
cidades desde o primeiro momento. Não queremos tombar e somente
depois fazer um trabalho de preservação nas cidades.
As ações propostas no PAC são ações de requalificação urbanística,
infraestrutura urbana e social, financiamento para recuperação de imóveis
privados, recuperação e destinação de uso de monumentos e imóveis
públicos, fomento às cadeias produtivas locais e formação e promoção do
patrimônio cultural. Sem contar, uma linha muito forte de fortalecimento
institucional.
Sabemos que uma política efetiva só será feita se tivermos, cada vez mais,
parceiros fortalecidos e com condições de fazer a gestão do patrimônio
cultural. São ações como a requalificação urbanística de Corumbá, no Mato
Grosso do Sul; como a instalação na Universidade Federal em Laranjeiras,
em Sergipe, e a recuperação de imóveis privados que saem da ação específica
de recuperação de um bem para uma ação estruturante, para uma ação que
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Conferência 1
consegue reposicionar o patrimônio cultural como elemento de
desenvolvimento local. Porque as cidades que possuem esse patrimônio
reconhecido, devem aproveitar esse potencial riquíssimo e conseguir
transformar esse potencial não em um problema de gestão através do
pensamento: “eu tenho de dar conta daquilo”, mas como capacidade de
investimento, como possibilidade de agregar capitais para serem investidos,
além de desenvolver processos estratégicos de desenvolvimento.
Quanto ao orçamento do PAC e suas formas de execução, a proposta é
que todas as ações sejam executadas em conjunto com os governos estaduais
e municipais, juntamente com a sociedade civil, por meio dos Planos de
Ação. O Iphan investirá nessas cidades priorizando os investimentos
previstos em seus Planos de Ação, salvo ações consideradas emergenciais. A
ideia não é mais o Iphan investir nessas cidades sem um planejamento
conjunto, porque pretende cobrar, tanto dessas cidades como dos governos
estaduais, o mesmo compromisso de investimento. O Iphan não quer mais
investir nas cidades e ficar, posteriormente, recebendo a conta de outro
investimento apontado como necessário. Afinal, ou a gente tem uma
parceria e se ajuda para se fortalecer politicamente, aumentar os nossos
recursos, ou não adianta ficar olhando para o Iphan, ou qualquer outro
órgão que seja, como um grande irmão ou elemento de financiamento da
política de preservação. 53

O Programa de Cidades Históricas – PCH, quando desenvolvido nos


anos de 1970, funcionou, efetivamente, quando teve um grande eixo de
financiamento, mas, quando esse dinheiro acabou, o PCH se desestruturou.
Portanto, o que estamos tentando construir, aprendendo com as políticas
do passado, é uma forma de trabalhar independentemente dos elementos
de financiamento e que busque, cada vez mais, fortalecer esses elementos de
financiamento. A meta do Iphan é que a execução seja compartilhada por
meio de convênios, editais e com cooperação técnica.
Gostaria de explicar, brevemente, que o Plano de Ação é o elemento de
planejamento integrado que busca enfrentar as questões estruturantes das
cidades. Não se trata, portanto, de pensar um plano de ações sobre o
patrimônio cultural, mas de pensar quais são as questões estruturantes da
cidade e buscar uma estratégia de desenvolvimento, cuja alavanca sejam as
ações de patrimônio cultural. E por quê? Pelo fato de que não podemos
continuar trabalhando em ações isoladas como a recuperação do patrimônio
ou, simplesmente, tentando evitar que aumente a descaracterização de um
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Vo l . 1

patrimônio edificado, se não resolvermos, por exemplo, o problema da


pressão de crescimento urbano. Não conseguiremos fazer uma política
efetiva, combater a destruição de patrimônio edificado para a constituição
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

de estacionamentos em vários centros urbanos, caso não consigamos


estabelecer planos de mobilidade e circulação nessas cidades. Isso quer dizer
que ou enfrentamos os problemas reais da dinâmica urbana e os entendemos
para enfrentá-los, ou nunca conseguiremos ter uma política efetiva de
preservação no nosso patrimônio cultural. E a ideia é que esse plano busque
estabelecer objetivos, metas e ações também factíveis.
Não adianta falar que executaremos 300 milhões de reais na área do
patrimônio cultural num determinado município, se nos últimos dez, vinte
anos, temos executado um milhão por ano. Precisamos enxergar a nossa
real capacidade de execução e fazer um processo incremental, caso contrário,
faremos o que fazem em várias políticas, com várias promessas que geram,
no final, apenas grandes frustrações.
O presidente Lula afirmou à imprensa que o PAC, muitas vezes, é o
programa “engana presidente” porque todo mundo falou que tinha muita
coisa a ser feita, mas, na hora que o governo garantiu o recurso e o entregou
para a sociedade civil, os governos municipais e estaduais, dizem: “Bom,
54
agora a gente vai fazer o projeto”. Quer dizer, ou assumimos o compromisso
de responsabilidade mútua pelas ações que queremos executar, pactuando
o que de fato é possível fazer, ou apenas frustraremos, não somente a nós
mesmos pelo fracasso, mas a todos os parceiros que estão apostando nessa
construção e, isso, será lamentável.
Então, o processo de atribuição de responsabilidade nesse processo de
ações em parcerias é muito maior. É fundamental termos uma leitura
transversal, ou seja, não poderemos mais dialogar apenas com a Secretaria
de Cultura ou com a Secretaria de Patrimônio, ou somente com a área de
educação ou o quem quer que seja. Ou envolvemos os outros atores,
potencializando as outras ações, ou não conseguiremos atingir nossas metas.
Vou exemplificar, citando um caso que é o da cidade de Joinville, em Santa
Catarina. Na discussão dos Planos de Ação, está uma estrada que cruza os
sambaquis e os Planos de Ação daquele município preveem, justamente,
abrir vários núcleos de visitação desses sambaquis a partir dessa estrada,
visando à socialização desses lugares. Quer dizer ou também nos
estruturamos com outras ações de governo ou ficaremos sempre realizando
ações desarticuladas com a agenda mais global das cidades. É importante
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Conferência 1
que isso seja uma coisa muito clara para todos nós. Conquistamos, na
sociedade brasileira, um ideal de que tudo seja feito com a sociedade civil,
então, hoje, a questão da participação é a base para qualquer ação.
Não queremos, também, um plano governamental, mas um plano da
própria sociedade, seja através de uma agenda, e isso é fundamental para
garantir a participação, dialogando com as demandas da sociedade, com os
planos já elaborados no nível nacional, regional e local. Buscaremos, assim,
soluções que dialoguem com toda a intersetorialidade do patrimônio
cultural.
As etapas de elaboração do plano já foram concluídas e esse processo se
configurou numa grande cruzada que durou, creio, todo o ano de 2009 e
cujo desenvolvimento se deu no Brasil inteiro. Devemos destacar o esforço
de todos os municípios, de todos os técnicos do Iphan e dos governos
estaduais, uma vez que do mês de agosto até dezembro, conseguimos cobrir,
praticamente, todas as cidades. As 170 cidades, falarei disso mais adiante,
passaram por um processo de elaboração de diagnósticos e firmaram um
pacto desses diagnósticos com a sociedade e com os atores, bem como a
definição dos objetivos e das ações. Estamos, hoje, num processo de
estabelecimento desse pacto de ações, esclarecendo e sanando possíveis
dúvidas entre os vários segmentos envolvidos. E o que vai propiciar o Plano 55
de Ação? Vai propiciar, exatamente, essa articulação local e regional, a
estruturação de uma política de patrimônio cultural em todas as esferas,
desde o município até o governo federal, a condição de estabelecer essa
política, além do acesso a recursos em curto e médio prazo.
Se temos um plano consistente, conseguimos investimentos; nunca
faltou dinheiro para área de patrimônio cultural e, embora afirmemos: “mas
é tão pouco”, todo ano sobra porque não temos a capacidade de execução.
Podemos nos perguntar: por que não temos capacidade de execução? Muitas
vezes, porque não temos projeto. E por que não temos projeto? Porque não
temos planejamento. Então, a gente sempre fica numa política reativa e é
natural vivermos nesse tipo de política. Diante do desmonte que teve a
política de preservação do patrimônio cultural nos anos 90, do suca-
teamento de toda essa política em todo o Brasil, o projeto foi de
sobrevivência, mas, agora, estamos invertendo esse ciclo. E, para inverter
esse ciclo com o pé direito, teremos de começar a planejar e pactuar as ações
em médio prazo, e esse é um grande desafio porque não temos, inclusive,
os elementos necessários para um planejamento efetivo, não temos base de
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Vo l . 1

informações confiáveis e uma série de outras coisas. Muitas vezes, não


sabemos nem o número exato de casas que estão dentro de alguns sítios
protegidos. Essa é a nossa realidade e é com ela que estamos trabalhando.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Acredito que todo esse quadro exposto aqui é que dá base concreta para
uma política integrada de recuperação e preservação do patrimônio cultural.
O desafio atual é entender que esse processo não se trata apenas de mais
uma ação. O PAC e seu Plano de Ação, por mais que se trate de um
programa do governo, e isso é muito bom, para nós, significa a proposta
de um novo modelo de planejamento para uma política de Estado. O que
estamos propondo é partir dos Planos de Ação que estão aqui, nas
Superintendências do Iphan, nos estados, nos municípios e na sociedade,
buscando informações, fazendo uma proposta de planejamento em médio
prazo para uma implementação conjunta que estruture redes de proteção
de cada estado para a preservação do patrimônio cultural. Dessa política
conjunta sairão as assinaturas do acordo de preservação do patrimônio com
cada município e organismos estaduais, propiciando a realização dos fóruns
locais e regionais de acompanhamento e implementação. O objetivo é que
esses fóruns funcionem como elementos efetivos de monitoramento e
avaliação dessa política, através dos quais possamos acompanhar a execução
de nossos projetos e, a partir dessa avaliação, se algo estiver dando errado,
56 possamos mudar a política em curso. Assim, não esperaremos chegar ao
fim do ano para constatar que algo não deu certo. A meta é realizar, a cada
dois anos, o fórum nacional para ir realimentando a definição dessa
política. Ou seja, não está se propondo uma nova coisa, o que está se
propondo é uma nova forma de fazer as mesmas coisas que já fazemos.
Ninguém está propondo inventar a roda, mas que nos organizemos de uma
forma mais efetiva.
Julgo ser fundamental para que esse novo planejamento dê certo,
integrar-se com os instrumentos de planejamento já existentes, hoje, na
sociedade brasileira. Leis orçamentárias, leis orgânicas municipais, planos
diretores, orçamentos participativos, conferências municipais, enfim, todos
os instrumentos vigentes. Ou começamos a pautar a questão do patrimônio
cultural nas conferências municipais de educação, nas conferências
municipais de comunicação e de cultura, assumindo a responsabilidade de
levar o patrimônio cultural para a transversalidade que dizemos que ele tem,
ou estaremos sendo hipócritas pela nossa incapacidade de promover essa
transversalidade nas nossas comunicações e na nossa ação cotidiana na
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Conferência 1
sociedade brasileira. Acredito, portanto, que essa é uma responsabilidade
que todos nós temos de assumir: a de levar o patrimônio para todos esses
elementos de planejamento e de participação na sociedade brasileira.
Vejamos um balanço rápido dos Planos de Ação que teve adesão de 162
cidades, das 173 cidades que compõem o PAC das Cidades Históricas.
Foram, portanto, mais de 90% de adesão dos municípios, sendo que cerca
de cem cidades já entregaram as suas ações e estão num processo de
estabelecimento dos pactos de ação conjunta. Como se trata de um modelo
de planejamento, não tem linha de chegada, não é uma corrida. Cada um
tem de fazer um processo que garanta efetivo avanço, mas a ideia não é:
“Eu não fiz, eu estou fora”. Não. Você vai poder fazer. Só que os recursos
serão liberados à medida que seu plano estiver pronto. Assim foi o nosso
compromisso com as cidades finalizar os processos de 2009 para garantir os
recursos de 2010, dentro dos Planos de Ação.
Agora, passarei mais rapidamente às metas do I Fórum Nacional do
Patrimônio Cultural, cujo objetivo central, a meu ver, é discutir e avaliar
a atual política de patrimônio cultural, numa avaliação franca, através da
qual devemos expor, da maneira mais sincera possível, nosso ponto de vista
para que possamos avançar. Creio que não se trata de um lugar para
falarmos, exclusivamente, de nossas qualidades, mas também de nossas 57
emergências e dos nossos problemas, visando às definições de diretrizes,
às estratégias de atuação, além dos nossos desafios. Assim, poderemos, de
fato, estruturar o Sistema Nacional de Cultura e uma Política Nacional de
Patrimônio Cultural.
A previsão, e Roberto Peixe poderá falar disso com mais propriedade, é
que o Sistema seja aprovado no Congresso Nacional, no começo de 2010.
Nossa meta é estabelecer o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, por
meio de Decreto, também nesse ano. Teremos, durante o fórum, os
momentos das conferências, as quais vão propiciar socializações com todos,
trazendo questões e panoramas maiores para que todos possam
compreendê-los e fazer um debate das questões gerais. Teremos, ainda, as
quatro sessões temáticas, cujo objetivo será trabalhar na proposta de
regulamentação do patrimônio cultural, além de instrumentos e formas de
financiamento, compartilhamento e definição de papéis; instrumentos e
formas de funcionamento e marcos legais de regulação. Mas não eram três
pilares? É que nós dividimos o instrumento de coordenação da política em
dois grupos porque, na questão de instrumentos e formas de funcio-
ForumPatrimonioCap2:Layout 1 5/30/12 4:09 PM Page 58

Vo l . 1

namento, pretendemos pensar como vamos nos organizar numa estrutura


não só federativa, mas também horizontal, além da definição e concertação
de papéis. Principalmente, porque temos uma grande concentração de
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

competências no Brasil e uma grande confusão de competências


concorrentes na política de patrimônio cultural. Então, resolvemos dividir,
possibilitando, assim, que essa discussão de compartilhamento de
competência seja feita com maior rigor, por entendê-la como uma questão
fundamental. Só seremos um sistema de fato se cada um abrir, um pouco,
a mão das competências que hoje tem só para si, o que pressupõe dividir
poder e, consequentemente, a forma de tomar decisões. Vejo que é essa a
maturidade que o momento nos pede e acredito que vamos conseguir dar
uma resposta afirmativa nesse sentido.
Nas mesas-redondas, teremos as dez áreas temáticas do patrimônio
cultural como por exemplo: patrimônio arqueológico, patrimônio
edificado, bens móveis integrados e o patrimônio imaterial. E a ideia é,
nesses grupos, fazer uma discussão que busque dialogar com as temáticas,
pensando em parcerias estratégicas, objetivos, ações para o próximo ano,
além de estratégias de ações para os próximos cinco anos. Ou seja, buscar
estabelecer, para cada área do patrimônio cultural que são universos
completamente distintos, qual será a forma de atuação. E a proposta é que
58 a gente consolide esse material até o mês de fevereiro de 2010, para que
sirva de subsídio a todos nós, para a participação na Segunda Conferência
Nacional de Cultura, além de garantir, já na atuação de cada órgão de
patrimônio da sociedade em 2010, uma coesão nessas estratégias.
Estamos propondo o calendário de trabalho para 2010, embora ainda
tenhamos, neste final de 2009, as conferências estaduais que estão em sua
fase final, além dos pactos e Planos de Ação, os quais pretendemos fechar,
o mais tardar, em janeiro de 2010. Depois disso é que serão assinados os
acordos de preservação do patrimônio cultural, com definição orçamentária,
até o mês de fevereiro, e a preparação para a participação coesa do
patrimônio cultural na Segunda Conferência Nacional de Cultura. Temos
de ir para essa conferência com uma sólida coesão, não no sentido de
defender uma bandeira ou outra, mas no sentido de saber que temos a
mesma finalidade, estabelecendo os marcos legais até abril de 2010. É
importante consolidarmos os nossos marcos legais nesse governo, porque é
muito comum avançar em definições, em práticas novas, em políticas e,
quando vem um novo governo, acontecer um desmonte desse avanço
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Conferência 1
porque é entendido como parte da identidade de um governo antecessor.
Por isso, temos de garantir que esse avanço no qual estamos trabalhando,
que esse tratamento que temos dado ao patrimônio cultural como política
de Estado, seja reconhecida e regulamentada dessa forma, ainda neste
governo.
Não podemos deixar de falar ainda que, em agosto de 2011, nos
encontraremos no II Fórum Nacional do Patrimônio Cultural. Não
realizaremos mais os fóruns no mês de dezembro, para evitar que todos
fiquem preocupados com a sua execução orçamentária, com a finalização de
trabalhos ou com a agenda de fim de ano. E, principalmente, para garantir
um tempo propício para fazermos uma discussão maior, realizando fóruns
com a duração de uma semana, não apenas três dias.
Gostaria de deixar um último lembrete, afirmando que preservar o
patrimônio não é olhar para o passado, mas pensar as coisas que devem
fazer parte do futuro e fazer isso, sempre, agregando esses valores para a
sociedade, a qual deve ser o referencial do nosso trabalho. Encerro com esse
lembrete por acreditar ser fundamental esse entendimento por todos nós.

59
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Vo l . 1

O S I S T E M A S E TO R I A L D E
P AT R I M Ô N I O N O Â M B I T O D O
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

S I S T E M A N A C I O N A L D E C U LT U R A

João Roberto Peixe*

RESUMO
*Designer, arquiteto O texto fala sobre o Sistema Nacional de Cultura, criado com a proposta
e gestor cultural;
coordenador geral de
de funcionar como um instrumento para a implementação das políticas
Relações Federativas públicas de cultura como políticas de Estado. O Sistema Nacional pretende
e Sociedade –
SAI/MinC e
promover a articulação entre os sistemas setoriais, funcionando como o
coordenador do conjunto de partes integradas que interagem. Contextualiza o Iphan nesse
Sistema Nacional de
Cultura
cenário como um órgão cuja atuação, por ser mais descentralizada e estar
presente em todo o país, pode ser referência para os demais órgãos do MinC
no processo de implantação do SNC e dos demais sistemas setoriais.

60
PALAVRAS-CHAVE
Sistema Nacional de Cultura, Sistemas Setoriais, Políticas públicas.

Como coordenador do Sistema Nacional de Cultura tenho consciência


do enorme desafio que há pela frente. Hoje, temos um conjunto de políticas
públicas sendo implementado no país, em todas as áreas do Governo
Federal. Houve um avanço especialmente no campo da cultura; novos
horizontes se abriram a partir de uma mudança conceitual, a partir de uma
visão de abrangência da própria conceituação da cultura e da atuação do
Ministério. No entanto, deparamo-nos com um problema crucial: o
baixíssimo grau de institucionalização da gestão cultural no país.
Evidentemente que, na estrutura do Ministério da Cultura, o Iphan é o
órgão vinculado que tem uma atuação mais descentralizada. Presente, hoje,
em todo o país, o Iphan possui condições de não somente avançar nesse
processo de planejamento – de articulação, de relação federativa, de
participação social – mas também, de ser referência para os demais órgãos
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Debates
do ministério e ajudá-los nesse processo de mudança. É o que colocamos
sempre nos debates do Sistema Nacional de Cultura, que têm sido
realizados em todo Brasil, em todos os estados brasileiros, desde julho deste
ano de 2009. Nesse ciclo de Seminários, a apresentação do Sistema de
Patrimônio já foi feita de maneira descentralizada pelos superintendentes
regionais ou pessoas da Superintendência de cada estado.
Nesses encontros com os gestores estaduais e municipais de todo o país,
temos afirmado que o processo de implementação do Sistema Nacional de
Cultura, ao contrário do que se pensa, não vai começar agora, ele já
começou há bastante tempo. Esse processo vem sendo realizado, em
algumas cidades brasileiras, antes mesmo do atual governo. Várias dessas
experiências serviram de referência, em 2002, para a formulação do
programa de governo na área da cultura, de Lula, então candidato a
presidente, intitulado “A imaginação a serviço do Brasil”. Esse programa
tinha como um dos pontos centrais exatamente a constituição do Sistema
Nacional de Cultura.
O entendimento é de que as políticas de cultura não podem ficar apenas
no nível de políticas de governo; elas têm de assumir o patamar de políticas
de Estado, com continuidade, permanência, têm de ser estruturadoras e
democráticas, no Estado de Direito. Nesse aspecto, a Constituição Brasileira 61
é avançada, assegurando a participação da sociedade não apenas através da
democracia representativa, mas também, da democracia participativa.
Portanto, o grande desafio é constituir instâncias de participação social
que contribuam na formulação, no acompanhamento e na implementação
das políticas públicas de cultura. Como os governos são transitórios, são
essas estruturas da sociedade que vão assegurar a continuidade das políticas
públicas, porque a institucionalização dessas políticas, através do
estabelecimento de marcos legais, é importante, mas não suficiente.
É interessante observar que na minha vinda para o I Fórum Nacional do
Patrimônio Cultural, encontrei, no avião, um cidadão que vestia uma
camisa em que estava impresso “O SUS é patrimônio dos brasileiros”. O
Sistema Único de Saúde está inserido na Constituição Brasileira, mas
mesmo assim foi ameaçado por tentativas de privatização em governos
passados. Sua manutenção foi assegurada não somente por sua base legal,
institucional, mas, principalmente, por esse apoio da sociedade. O SUS foi
construído com a participação social, e isso é fundamental.
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Vo l . 1

O Sistema Nacional de Cultura nada mais é do que um instrumento para


colocar em prática uma Política Nacional de Cultura que está fundamentada
em três pontos centrais: o primeiro trata do entendimento do papel do
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

estado na gestão pública da cultura; de planejar, formular e executar políticas


– foi exatamente no campo da cultura que a concepção do estado mínimo
mais avançou nos governos neoliberais que antecederam o atual Governo e,
consequentemente, a desestruturação dos órgãos da cultura no Estado
brasileiro foi muito grande. Então, estamos num processo de reestruturação
do Estado. O Iphan, inclusive, foi uma das vítimas desse processo, que
resultou na sua desestruturação. Foram necessários vários concursos públicos
para a recomposição dos recursos humanos. Dessa forma, o Estado brasileiro
pode ter condições mínimas para exercer o seu papel.
No entanto, no plano nacional nós temos ainda um grau muito baixo de
institucionalidade da gestão pública da cultura: apenas cerca de 5% dos
municípios brasileiros têm secretaria exclusiva de Cultura. Na verdade, na
grande maioria das administrações, infelizmente, a cultura é considerada
apêndice de outras áreas, especialmente da de educação. É natural, por
exemplo, que um prefeito que tenha 25% do orçamento municipal
destinado para a educação, sempre coloque à frente da Secretaria alguém
dessa área. O tratamento dado à cultura depende da sensibilidade do gestor,
62 mas na grande maioria dos municípios ela não é considerada. Então é uma
luta nossa em todo o país convencer, sensibilizar e mobilizar a sociedade
para que se constituam, na base, órgãos gestores da cultura com condições
de exercer o seu papel no planejamento, no fomento e na execução das
políticas públicas de cultura no município. É aí que entra a preservação e a
promoção do patrimônio cultural material e imaterial, como uma questão
central, tendo o Sistema Setorial de Patrimônio como o grande articulador
desse processo.
No plano internacional, a questão da diversidade e da identidade vem
sendo objeto cada vez maior de preocupação, e o Brasil tem exercido papel
importante nesse debate, como foi na aprovação da Convenção da Unesco
sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.
Tema que aborda uma questão central no Brasil, agora visível com a
aparição de dados concretos em pesquisas feitas através dos censos realizados
pelo IBGE em parceria com o ministério: o grau de exclusão cultural é mais
grave do que a própria exclusão social. Um exemplo é o dado de que apenas
cerca de 10% dos brasileiros têm acesso aos bens e serviços culturais. Então,
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Debates
o desafio do Estado brasileiro é democratizar e universalizar esse acesso.
Os direitos culturais constituem a plataforma básica da Política Nacional
de Cultura: o direito à identidade, à diversidade, à participação na vida
cultural (envolvendo o direito à criação, fruição, difusão e participação nas
decisões de políticas públicas de cultura) além do direito autoral e do
direito, que é ao mesmo tempo um dever, de cooperação cultural
internacional.
À dimensão simbólica e à dimensão cidadã – que está calcada
basicamente na garantia desses direitos culturais – soma-se a dimensão
econômica, que se dá através do papel da cultura; do conhecimento, da
informação, que é cada vez maior na sociedade, e que passa a ter um peso
cada vez mais forte, inclusive como um dos setores da economia que mais
cresce no mundo, passando, desse modo, a ser um dos componentes
centrais desse processo de desenvolvimento, em que o Estado tem de exercer
o seu papel estabelecendo marcos regulatórios da economia da cultura, em
todos os seus campos.
A partir desses pontos é que surge o Sistema como instrumento para a
implementação dessa política. Nós o trabalhamos apenas como a
constituição dos seus componentes. O que é imprescindível, mas não
suficiente. O sistema é mais do que isso, é um conjunto de partes integradas 63
que interagem, isto é, tem de ter conexão para haver interação. E isso resulta
numa ação do conjunto que pode ser maior ou menor do que a soma das
partes, inclusive porque esse conjunto tem características, tem qualidades
intrínsecas ao sistema que não estão em nenhuma das partes isoladamente.
É fundamental o entendimento de sistemas setoriais – como o de
patrimônio – como parte de um sistema maior que é o Sistema Nacional
de Cultura, o qual envolve todas as áreas da cultura. É aí que nós vamos
encontrar uma série de pontos que já está sendo discutida em conjunto.
Foi ideia de Weber Sutti a constituição, no ministério, de um Grupo de
Trabalho que reúna os coordenadores do Sistema Nacional de Cultura e do
Conselho Nacional de Política Cultural com os coordenadores dos Sistemas
setoriais existentes; de museus, de bibliotecas e o de patrimônio, que está em
processo de construção. E nesse trabalho integrado há vários pontos a serem
resolvidos. Creio que este fórum é, exatamente, o espaço para isso. Alguns
desses pontos já foram trabalhados pelo Weber, tentarei aqui avançar um
pouco mais nessas questões.
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Vo l . 1

Do ponto de vista da nossa estrutura, o Sistema Nacional é o conjunto


dos sistemas municipais, estaduais e distrital, no caso de Brasília.
Envolvendo aí a esfera federal, que se confunde com a nacional. Tanto, que
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

nós entendemos que o decreto que criou o Sistema Federal de Cultura deve
ser reestruturado nessa nova concepção do Sistema, porque, na verdade,
todos os seus componentes são de natureza nacional e não apenas federal;
eles envolvem as outras esferas, os outros entes federados e tudo isso em um
ambiente maior, que é a sociedade.
Alguns pontos fundamentais devem ser observados em todos os
componentes do Sistema e devem estar presentes, evidentemente, no
Sistema de Patrimônio. São princípios que deverão ser inseridos na
Constituição Brasileira por meio da emenda constitucional, que institui o
Sistema Nacional de Cultura. São os princípios da diversidade, da
universalização, da cooperação, do fomento, da integração e interação, da
complementaridade, da transversalidade, da autonomia, da transparência,
da democratização e da descentralização.
São onze princípios que devem nortear todos os componentes do
Sistema, seja municipal, estadual ou distrital, sejam os Sistemas setoriais,
porque eles, na verdade, orientam todas as relações e comportamentos no
64
âmbito do Sistema Nacional de Cultura.
O objetivo do Sistema, em última instância, é o desenvolvimento amplo,
num sentido abrangente, não da cultura isoladamente, mas da cultura como
parte de um processo de desenvolvimento humano, econômico e social,
que assegure os direitos culturais e o acesso universal aos bens e serviços
culturais.
O grande desafio na concepção do Sistema era desenhar uma estrutura
que possibilitasse garantir a sua estabilidade institucional e política, do
ponto de vista legal, jurídico, inclusive constitucional, e que ao mesmo
tempo tivesse flexibilidade para se adaptar às características da complexidade
e da dinamicidade da área da cultura.
O Sistema de Cultura tem pontos comuns com outros sistemas, como
o da Saúde, da Assistência Social, do Meio Ambiente e outros nacionais.
Mas tem pontos específicos para atender as características da área cultural,
principalmente essa dinamicidade e complexidade da cultura.
A solução foi criar um núcleo estático para consolidar a parte legal, a
parte jurídica do Sistema, inicialmente inserindo-o na Constituição Federal,
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Debates
por meio da Emenda Constitucional 416/2005, para em seguida ter leis
ordinárias, decretos e outras normas que complementem essa legislação.
Mas, entendemos que muitas questões do Sistema Nacional de Cultura,
que fazem parte dessa dimensão dinâmica, não serão inseridas na legislação,
serão acordadas nas instâncias de articulação, pactuação e deliberação do
Sistema, que são as conferências, os conselhos e as comissões intergestoras.
Surge aí o desafio de como articular e integrar os Sistemas Setoriais com o
Sistema Nacional.
Os componentes básicos do Sistema são: órgão gestor, conselho,
conferência, plano, sistema de financiamento – no qual o fundo é o
elemento central –, sistema de informações e indicadores culturais e os
sistemas setoriais – que no seu interior basicamente reproduzem esses
mesmos componentes.
Então, como integrar, por exemplo, o sistema de informações da área
de patrimônio com o sistema nacional de informações e indicadores
culturais, para a obtenção de um sistema nacional integrado, em que se
tenha acesso amplo, em que todos os municípios, todas as instâncias
públicas, e mesmo privadas, que atuam no campo da cultura, possam
fazer um planejamento consistente a partir de dados seguros? Depois (e
ainda), sistemas de informações capazes de avaliar a implementação das 65
políticas, de ter indicadores que vão mensurar a eficácia dessas políticas
ao longo do tempo.
Temos, também, os programas de formação na área da cultura. Nós já
estamos, inclusive, com um curso piloto sendo colocado em prática no
estado da Bahia, por meio de uma rede que se constituirá a partir do
mapeamento das instituições educacionais do país que atuam na formação
cultural. Esse curso será disseminado em todo Brasil, a partir do próximo
ano, exatamente para qualificar e capacitar os gestores.
Temos, ainda, as comissões intergestoras, que são comissões de gestores
públicos nas três instâncias de governo, sendo a tripartite no plano nacional,
envolvendo a União, Estados e Municípios, e a bipartite nos Estados,
envolvendo os gestores estaduais e dos municípios das diversas regiões de
cada estado.
São esses os componentes do Sistema. Eles basicamente se agrupam dessa
forma e é importante haver uma correlação no interior de cada Sistema
Setorial com essa estrutura geral do Sistema.
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Vo l . 1

Primeiro vem a coordenação, exercida pelo órgão gestor em cada


instância, em cada nível de governo, ou no caso, por exemplo, do
subsistema de patrimônio, o Iphan, que é o órgão de coordenação do
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Sistema Setorial.
Depois, as instâncias de articulação, pactuação e deliberação, com as
conferências, os conselhos e as comissões intergestoras. Poderão constituir
outras instâncias; evidentemente essas são as básicas, mas em função das
especificidades de cada Sistema Setorial, de cada Estado ou de cada
município, poderá haver outras instâncias, especialmente fóruns, colegiados,
câmaras e outros tipos de colegiados, mas que devem ter uma inter-relação
com esses componentes. Por exemplo, os fóruns devem ter uma relação
direta com os conselhos de política cultural, essa é uma questão, um debate
que temos que travar. Outra questão é: como fica a relação entre os
Conselhos de Patrimônio e os Conselhos de Política Cultural?
Aqui em Minas Gerais especialmente, como já foi dito, a lei estadual
provocou a criação de conselhos e fundos de patrimônio nos municípios e
isso foi importante. Agora, com o Sistema Nacional de Cultura, temos os
Conselhos de Política Cultural e os fundos de cultura. Então, como ficam
esses fundos e esses conselhos de Minas Gerais? Vai haver em cada
66
município dois conselhos – um de política cultural que é mais abrangente
e um específico para área de patrimônio? Ou os conselhos de patrimônio
vão se adaptar à concepção do Sistema Nacional de Cultura, reestruturando-
se e incorporando novas atribuições relacionadas às demais áreas da cultura?
Temos, também, outros sistemas setoriais como o de museus e o de
bibliotecas. É preciso dimensionar a capacidade e também a racionalidade
do ponto de vista organizacional e ver como é possível integrar, no interior
de cada sistema, esses diversos papéis e funções que, no fundo, é o que vai
dar alma, vida, dinâmica aos próprios conselhos de política cultural. Acho
que é um desafio definir como fazer essa integração no interior dos sistemas.
Depois, há ainda os instrumentos de gestão, que são os planos, os
sistemas de financiamento – aí o fundo de cultura aparece como elemento
central –, os sistemas de informações e indicadores culturais e os programas
de formação.
Por fim, temos os sistemas setoriais: o de museus e o de bibliotecas, já
em funcionamento, e o de patrimônio, em construção. O de bibliotecas,
por exemplo, hoje é restrito a bibliotecas e deve ser revisto para que passe a
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Debates
ter uma abrangência maior, envolvendo livro, leitura e literatura, que são
áreas que já têm políticas públicas. São questões que estão em discussão.
O Sistema de Patrimônio tem uma situação mais favorável, porque ele
está se formando agora e já pode se constituir de uma maneira totalmente
integrada ao Sistema Nacional de Cultura. Evidentemente, os outros dois
sistemas terão de fazer alguns ajustes para ficarem coerentes com essa
concepção.
Em linhas gerais, em nível nacional, nós temos já constituídos
praticamente todos os componentes do Sistema Nacional de Cultura: o
Ministério da Cultura; as Conferências – já estamos na segunda; o Conselho
Nacional, instalado desde dezembro de 2007; o Plano Nacional de Cultura.
Aliás, os planos de patrimônio devem ter uma relação direta, devem ser um
desdobramento do Plano Nacional de Cultura. O Plano Nacional,
inclusive, já está inserido na Constituição Brasileira, e encontra-se em fase
final de aprovação no Congresso o projeto de Lei no 6.835/2006, que
institui o Plano Nacional de Cultura para o período de 2010 a 2020.
Teremos, agora, o desdobramento do Plano Nacional de Cultura com os
planos setoriais, com os planos territoriais e, evidentemente, um dos setores
é exatamente o de patrimônio.
O Sistema Nacional de Financiamento está sendo estruturado com a 67
mudança da Lei Rouanet e a criação do Procultura, que fortalece o Fundo
Nacional de Cultura. O Sistema Nacional de Informações e de Indicadores
Culturais também já está sendo implementado, assim como o Programa de
Formação. Falta apenas a Comissão Intergestores Tripartite.
O grande problema é que, apesar desses componentes já existirem, cada
um é uma ilha, com um baixo grau ou nenhuma integração. Não
funcionam como sistema, funcionam como instâncias autônomas. Então,
o grande desafio é criar essa integração. Essa situação se reproduz no nível
dos estados e municípios.
Como já falei, no plano nacional todos esses componentes já estão sendo
colocados em prática, faltando apenas a Comissão Intergestores Tripartite,
que terá de aguardar a constituição das Comissões Bipartites, nos estados,
para ser constituída.
Esse é o estágio em que estamos na constituição do Sistema Nacional
de Cultura. É bom lembrar que o estado do Acre, por exemplo, já aprovou
na sua Conferência Estadual a Lei do Sistema Estadual de Cultura. A cidade
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Vo l . 1

de Rio Branco, capital do Acre, já tem um Sistema Municipal aprovado por


lei há dois anos e na última Conferência Municipal foi feita uma avaliação
de seu funcionamento. Em Pernambuco, na Bahia e no Ceará, essas leis
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

também foram objeto de discussão em conferências. Em vários municípios


esse processo está avançando. Foz do Iguaçu aprovou recentemente a sua lei
na Câmara Municipal.
O Sistema, enfim, está sendo constituído em todo o País. E como os
três entes federados são autônomos, isso já pode e deve acontecer. Acho,
inclusive, que esse fato, de um lado, provoca e acelera ainda mais a
tramitação da legislação do Sistema Nacional de Cultura no Congresso
Nacional e, de outro, coloca o desafio, no interior do próprio Sistema
Nacional, da construção dessa integração, inter-relação e interação entre os
seus diversos componentes. Espero que estes dias de discussão aprofundem,
enriqueçam o debate e possibilitem sairmos daqui com a proposta de
constituição de um Sistema Nacional de Patrimônio Cultural forte e
totalmente articulado ao Sistema Nacional de Cultura.

68
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Debates
O P RO G R A M A P E R N A M B U C O
N A Ç Ã O C U LT U R A L

Célia Maria Medicis Maranhão de Queiroz Campos*

RESUMO
A Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, na *Arquiteta,
gestão 2007-2010, tem tido como base o Programa Pernambuco Nação professora adjunta
aposentada da UFPE
Cultural. Esse programa tem focado a diversidade cultural do Estado através e diretora de
de um modelo de desenvolvimento econômico inclusivo e sustentável com Preservação Cultural
da Fundação do
uma proposta de políticas integradas do cais (litoral) ao sertão (interior), nas Patrimônio
12 Regiões de Desenvolvimento – RD e no Distrito de Fernando de Histórico e Artístico
de Pernambuco –
Noronha. Por sua vez, a política de preservação do patrimônio cultural, Fundarpe
vinculada ao Pernambuco Nação Cultural, tem como objetivos:
potencializar o desenvolvimento cultural; preservar, difundir e pesquisar o
patrimônio em suas várias vertentes; desenvolver processos de formação e
qualificação profissional; fomentar a produção cultural e potencializar a
economia da cultura e; assegurar a participação dos segmentos culturais na
formulação, controle e avaliação da política pública de cultura. 69

PALAVRAS-CHAVE
Patrimônio cultural, Preservação e Políticas públicas.

INTRODUÇÃO
A Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco –
Fundarpe é o órgão que tem como responsabilidades a formulação, a
implementação e a execução da Política Pública de Cultura – PPC do
Estado de Pernambuco.1 As dimensões de sua atuação têm crescido desde 1. PERNAMBUCO
Nação Cultural.
a sua criação, na década de 1970. Informativo da
Fundação do
A gestão do governador Eduardo Campos tem sido realizada de maneira Patrimônio
a congregar e integrar os diversos atores públicos e a sociedade civil, por Histórico e Artístico
de Pernambuco.
meio de fóruns regionais, por linguagens e culturas, além de conferências Gestão 2007-2010 –
para se alcançar um modelo de cogestão, que possibilite interiorizar as ações Plano de Gestão, p.
8.
das políticas. A abordagem do tema base “Políticas integradas de preservação
do patrimônio cultural, desenvolvimento social e econômico” foi
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Vo l . 1

estruturada a partir dos seguintes tópicos: histórico da criação da Fundarpe;


a gestão 2007/2010; o Plano Pernambuco Nação Cultural; o Funcultura e
os resultados das políticas integradas.
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

HISTÓRICO DA CRIAÇÃO DA FUNDARPE


2. MENEZES, José De acordo com Menezes,2 no início dos anos 70, mais precisamente no
Luiz Mota. Ainda dia 17 de julho de 1973, o diretor-presidente do Banco de
chegaremos lá:
história da Desenvolvimento de Pernambuco – Bandepe instituiu a Fundação do
Fundarpe. Recife: Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe, cujos
Fundarpe, 2008, p.
22. estatutos já haviam sido publicados no Diário Oficial do Estado de
3. Ibid., p. 37. Pernambuco, em 19 de março do mesmo ano. A criação da Fundarpe estava
4. Ibid., p. 34. vinculada ao Programa Federal das Cidades Históricas para execução de
5. Ibid., p. 34. projetos de preservação dos monumentos históricos e artísticos do Estado,
6. Ibid., p. 35.
além de incentivar as demais produções culturais,3 consequentemente seus
7. PATRIMÔNIOS
estatutos foram elaborados por exigência do mencionado programa.
de Pernambuco:
materiais e
A preocupação com a reconstrução das cidades históricas representou
imateriais/ Fundação uma ação de preservação com repercussão regional que teve Pernambuco
do Patrimônio
Histórico e Artístico
como sede. De acordo com Menezes,4 as ações iniciais eram mais voltadas
de Pernambuco. para a elaboração de projetos e execução de obras para a Igreja Católica.
Recife: Fundarpe,
70 CCS Gráfica e O número de funcionários, no início da Fundação, era reduzido para
Editora, 2009, p. 21.
atender à demanda estadual, ou seja, o grupo de funcionários somava
8. MENEZES. Op.
cit., p. 34.
apenas: um secretário-executivo, uma secretária, um contador, um auxiliar
9. Ibid., p. 230.
de contabilidade e dois arquitetos.5
Em 1979, houve uma reestruturação da Fundarpe, que passou a contar
com uma Presidência, uma Diretoria do Patrimônio Histórico e uma
Diretoria de Assuntos Culturais.6 Ainda nesse ano, em 18 de setembro, o
Governo do Estado sancionou a Lei nº 7.970,7 que institui e regulamenta
o tombamento de bens móveis ou imóveis, públicos ou privados.
Dez anos após sua criação, em 1983, o quadro funcional cresceu para
140 funcionários8. Além dos técnicos contratados, a Fundação incluiu na
sua política de ação a formação de mão de obra especializada, para reposição
dos servidores, através da contratação de estagiários do curso de arquitetura
da Universidade Federal de Pernambuco, que depois foram incorporados à
Fundação. Com o passar do tempo, a Fundarpe foi aumentando o seu
quadro de funcionários e nos anos 90 chegou a contar com 170 técnicos.9
Na década de 1990, a Lei do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC), Lei
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Debates
nº 11.005, foi sancionada no dia 20 de dezembro de 1993, com os objetivos
de apoiar o desenvolvimento, incentivar e estimular a cultura
pernambucana.10 Foi modificada pela Lei nº 12.629, de 12 de julho de 10. Ibid., p. 191.
2004, que alterou a denominação para Fundo Pernambucano de Incentivo
à Cultura – Funcultura /SIC, a ser gerido pela Fundarpe.11 11. Ibid., p. 192.

Contribuindo com a valorização das manifestações populares e


tradicionais da cultura pernambucana, foi criada a Lei nº 12.196 em 2 de
12. PERNAMBUCO
maio de 2002,12 denominada Registro do Patrimônio Vivo – RPV. Tal lei Nação Cultural.
visa, ainda, garantir que os artistas selecionados por edital público repassem Informativo da
Fundação do
seus conhecimentos às novas gerações, na comunidade e fora dela. Desde Patrimônio
2005, anualmente três candidatos recebem o título de Patrimônio Vivo de Histórico e Artístico
de Pernambuco.
Pernambuco. Os premiados recebem bolsa vitalícia para auxiliar o repasse Gestão 2007-2010 –
das suas habilidades. Plano de Gestão, p.
34.
A diversidade da natureza dos saberes e fazeres dos Patrimônios Vivos e
a interação desses mestres com as novas gerações têm proporcionado uma
oportunidade ímpar para a reflexão sobre o desenvolvimento de estratégias
de salvaguarda do patrimônio imaterial pernambucano.
Atualmente, a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de
Pernambuco é o órgão executor da Política Cultural do Estado. Tem como
objetivo principal a promoção, o apoio, o incentivo, a preservação e a 71
difusão das identidades e produções culturais de Pernambuco de forma
estruturadora e sistêmica, focada na inclusão social, na universalização do
acesso, na diversidade cultural, na interiorização das ações e no
desenvolvimento regional integrado.
Como síntese das ações da Fundarpe, da sua criação à gestão atual, 2007-
2010, podemos constatar que a mesma realizou atividades voltadas para
restauração de bens, exames técnico-históricos, pareceres, levantamentos
arquitetônicos, processos de tombamentos, registros de patrimônios
imateriais, pesquisas históricas e arqueológicas, publicações de livros, editais
de fomento, além de eventos e das celebrações dos ciclos culturais que
procuram difundir e valorizar a cultura pernambucana.

A GESTÃO 2007-2010
A proposta de gestão da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico
de Pernambuco, no período de 2007 a 2010, corresponde ao Governo
Eduardo Campos, que tem à frente, como diretora-presidente, a arquiteta
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Vo l . 1

Luciana Azevedo. A partir da construção de um modelo de gestão


sintetizado no Plano Pernambuco Nação Cultural, busca-se trabalhar a
Política Pública de Cultura, através de um modelo de desenvolvimento
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

inclusivo e sustentável.

O PLANO PERNAMBUCO NAÇÃO CULTURAL


A montagem do Plano foi baseada em escutas à comunidade cultural,
compreendendo artistas, agentes, produtores, representantes do governo e
da sociedade civil, em Fóruns Regionais por Linguagens Culturais, de modo
13. a definir em conjunto as prioridades de cada linguagem.13
PERNAMBUCO.
Op. cit., p. 9. A proposta do Plano para implantar a Política de Cultura foi estruturada
14. Disponível em segundo quatro eixos14 baseados em ações inseridas no contexto do
http://www.nacao
cultural.pe.gov.br/
desenvolvimento da economia da cultura.
plano-de-gestao-da-
fundarpe, acessado O primeiro, denominado Constituinte Cultural, cuida da insti-
em 26 de fevereiro tucionalização da PPC.
de 2010.
Já o segundo, objetiva a dinamização da rede de equipamentos culturais
por linguagens e das Estações Culturais Regionais, lócus do modelo de
cogestão.
72 O terceiro, por sua vez, compreende o desenvolvimento das ações
permanentes e estruturadoras de preservação, fomento, formação, difusão
e fruição cultural. Tal eixo foi materializado em seis frentes de atuação, a
saber: Modelos de cogestão; Planos de Ação desenvolvidos nas Estações
Culturais Regionais; Fomento como resultado das prioridades definidas
pelo tecido cultural; Fortalecimento das redes de Pontos de Cultura;
Desenvolvimento dos ciclos e festivais culturais nas doze RD (incluindo o
território de Fernando de Noronha); e Dinamização do Sistema de
Preservação do Patrimônio Material e Imaterial.
O quarto eixo, por fim, compreende a comunicação e a difusão cultural
em meios de comunicação e pelo portal colaborativo Pernambuco Nação
Cultural.

O FUNCULTURA
O Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura – Funcultura é
considerado um pilar estruturador do modelo de gestão participativa e
regionalizada que apoia os planos de ações da Fundarpe por áreas e
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Debates
linguagens. Fomenta, ainda, as ações governamentais e as dos produtores,
por meio de linhas de ação holísticas e estruturadoras, focadas na
preservação, formação, fomento, fruição, difusão e desenvolvimento
sustentável da cultura.
Destaque especial cabe aos projetos dos produtores independentes, que
de 2006 a 2008 tiveram ampliados, de modo considerável, o número de
produtores cadastrados; os investimentos; o número de projetos aprovados,
além da distribuição regionalizada dos investimentos.15 O Funcultura tem 15. PERNAMBUCO.
Op. cit., p. 5.
permitido estimular áreas e linguagens culturais desde a sua criação até a
gestão atual.
A ampliação dos participantes tem ocorrido pelas estratégias de
divulgação adotadas, que capacitam os produtores culturais no
entendimento e preenchimento do formulário de apresentação dos projetos.
Os projetos da área de Patrimônio Cultural passam por propostas de
restauração, ações de educação patrimonial, pesquisas, projetos de
intervenção, elaboração de inventários, estruturação de arquivos, entre
outras, ou seja, o fundo tem cumprido a sua missão de incentivar a
produção cultural como um bem social e econômico do Estado.
Observa-se, porém, pelos dados consolidados dos últimos cinco anos,
que o valor total dos projetos aprovados, relacionados à área de patrimônio, 73
não é significativo, quando comparado aos apresentados nas demais áreas 16. As áreas culturais
culturais,16 representando em média 7,5% do total do valor financiado. do Funcultura são:
artes cênicas;
Esse número sinaliza um desconhecimento e/ou não adoção da linha de fotografia; literatura;
financiamento do Funcultura pelos profissionais ou pesquisadores da área música; artes plásticas
e gráficas; cultura
de preservação do patrimônio. popular, folclore e
artesanato; cultura
O patrimônio imaterial encontra-se, ainda que indiretamente, inserido popular e tradicional;
em projetos de cultura popular ou de audiovisual, cujos objetos, tais como artesanato;
patrimônio; pesquisa
o maracatu, o caboclinho, o coco, a ciranda, entre outros, correspondem a cultural; artes
bens de natureza imaterial. Quanto ao patrimônio material, por ter integradas; formação e
capacitação e
características de conservação mais técnicas, relacionadas à engenharia e à gastronomia.
arquitetura, concentra seus profissionais numa esfera de divulgação distinta
da dos produtores culturais.
Dessa forma, como estratégia para incrementar o papel do Funcultura
como canal de financiamento para a preservação do patrimônio, sobretudo
o material, faz-se cada vez mais necessário um projeto maior de divulgação
nos meios profissionais próprios desses campos disciplinares, tais como o
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Vo l . 1

Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB, o Conselho Regional de


Engenharia, Arquitetura e Agronomia – CREA, escolas de arquitetura,
engenharia, arqueologia, sociologia e antropologia, bem como mestrados
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

da área de conservação do patrimônio histórico e de gestão ambiental.

RESULTADOS DAS POLÍTICAS INTEGRADAS


Os resultados positivos das políticas integradas de preservação do
patrimônio cultural no desenvolvimento social e econômico provêm das
estratégias elencadas no Plano Pernambuco Nação Cultural, das legislações
de apoio e, principalmente, dos diversos atores e parceiros, quando atendem
a convocação para construir Um Pernambuco plural, um Pernambuco Nação
17. Cultural.17
PERNAMBUCO.
Op. cit., p. 5. O acesso da população à cultura pernambucana via ações da PPC, no
enfrentamento da exclusão cultural e melhoria de desenvolvimento humano
da população, ao longo do ano de 2009, atingiu mais de 19 milhões em
público, através de seus polos nos ciclos culturais do Carnaval, Paixão, São
João, Ciclo Libertário e Natalino, dos festivais regionais Pernambuco Nação
Cultural, das Ações dos Pontos de Cultura, dos 1.312 projetos fomentados
18. em todas as linguagens e linhas de ação do Funcultura.18
PERNAMBUCO.
74 Op. cit., p. 47. Com relação aos números do fomento através de editais, foram
concedidos R$ 23 milhões, dos quais R$ 12 milhões através do edital do
Funcultura; R$ 4milhões via edital do Audiovisual; e R$ 7 milhões em
parceria com o Ministério da Cultura, via edital de fomento continuado a
grupos culturais consolidados.
Dentre as principais ações introduzidas pela Fundarpe na área de
Preservação destacam-se a publicação do livro do arquiteto José Luiz da
Mota Menezes, Ainda chegaremos lá: história da Fundarpe, que relata a
trajetória dos 35 anos da Fundação; o Programa de Especialização em
Patrimônio (PEP), visando, a exemplo da iniciativa do Iphan, capacitar
profissionais para o exercício das práticas de preservação, tendo sido
ampliado de 13 para 25 o número de bolsistas no edital de 2009,
englobando as áreas de arquitetura, história, biblioteconomia, ciências
sociais, turismo, design, informática e Engenharia.
Outras importantes ações foram feitas através de oficinas de educação
patrimonial realizadas em escolas da rede pública estadual, que fazem parte
do Programa Pacto pela Vida do Governo do Estado, nos festivais
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Debates
Pernambuco Nação Cultural, realizados nas doze RD, e em municípios
incluídos nas 10 rotas turísticas de Pernambuco, em parceria com a Empresa
Pernambucana de Turismo – Empetur.
A produção e publicação de cartilhas sobre o patrimônio material e
imaterial de Pernambuco, além das publicações sobre seus acervos culturais;
a interiorização da celebração da Semana do Patrimônio Cultural de
Pernambuco; a realização das escutas de patrimônio, durante os Fóruns
Regionais de Cultura, realizados em municípios estratégicos, onde artistas,
produtores, representantes governamentais e agentes culturais discutem,
propõem e planejam ações de forma democrática, regionalizada e
participativa, também são ações que foram introduzidas pela Fundarpe na
área de Preservação.
O produto desses encontros serve como base para traçar e definir
caminhos e regras para o desenvolvimento e integração das ações culturais
no Estado, de acordo com suas identidades,19 além de ser parte integrante, 19. PERNAMBUCO
Nação Cultural.
na elaboração do Mapa Cultural de Pernambuco, site cartográfico com o Informativo da
levantamento dos ativos culturais do Estado georreferenciados, que Fundação do
Patrimônio Histórico e
disponibiliza em rede – internet, as informações de que a Fundarpe dispõe, Artístico de
relativas ao mapeamento dos bens materiais e imateriais de Pernambuco, Pernambuco. Balanço/
Ações 2007, p. 7.
bem como os beneficiados em programas de fomento. Esse site tem como 75
objetivo funcionar como sistema de informações atualizadas e atualizáveis
sobre os ativos culturais de Pernambuco, estimular o conhecimento e
apropriação dos patrimônios em cada município e permitir aos usuários do
mundo inteiro conhecer a cultura do Estado. O site está disponível no
endereço www.mapacultural.pe.gov.br.
A página de Preservação, no Portal Pernambuco Nação Cultural,
hospedada no endereço www.nacaocultural.pe.gov.br é outra ferramenta
digital de conhecimento e informação, onde, até o presente momento, já
foram disponibilizados 82 textos, 73 imagens e 10 notícias sobre
preservação e, finalmente, a digitalização do acervo do Registro do
Patrimônio Vivo, assim como de todos os candidatos concorrentes ao
Registro.
ForumPatrimonioCap2:Layout 1 5/30/12 4:09 PM Page 76

Vo l . 1

REFERÊNCIAS
http://www.nacaocultural.pe.gov.br/plano-de-gestao-da-fundarpe, acessado em 26 de fevereiro de
|

2010.
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

MENEZES, José Luiz Mota. Ainda chegaremos lá: história da Fundarpe. Recife: Fundarpe, 2008.
PATRIMÔNIOS de Pernambuco: materiais e imateriais/ Fundação do Patrimônio Histórico e
Artístico de Pernambuco. Recife: Fundarpe, CCS Gráfica e Editora, 2009.
PERNAMBUCO. Diário Oficial do Estado. Decreto nº 30.391, de 27 de abril de 2007.
Regulamento da Fundarpe. Recife, 28 de abril de 2007.
PERNAMBUCO Nação Cultural. Informativo da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico
de Pernambuco. Gestão 2007-2010 – Plano de Gestão.
PERNAMBUCO Nação Cultural. Informativo da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico
de Pernambuco. Balanço Ações realizadas em 2007.

76
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Debates
A EXPERIÊNCIA REFERENCIAL E
PREMIADA DE JOÃO PESSOA

Fernando Moura*

RESUMO
Sintético panorama do desenvolvimento das políticas públicas de * Jornalista, editor,
escritor, pesquisador
preservação da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, num ciclo histórico e coordenador do
de 20 anos. Seus avanços e recuos, problemas e alternativas, hiatos e parcerias, Patrimônio Cultural
– Prefeitura
culminando com a escolha do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade Municipal de João
2009, na categoria Apoio Institucional e/ou Financeiro, pelo projeto Pessoa
Programa Integrado de Preservação do Patrimônio Cultural de João Pessoa.

PALAVRAS-CHAVE
Patrimônio, Preservação, João Pessoa.

Eu gostaria de fazer aqui um apanhado geral, atendendo a solicitação de 77


Weber Sutti de sermos todos sinceros neste momento. Peço licença, no
entanto, para ser um pouco mais sincero nos aspectos positivos da
experiência de João Pessoa e da Paraíba, porque conseguimos chegar a um
estágio consistente no processo de revitalização e preservação do patrimônio
cultural paraibano, de uma forma até um pouco casual, dadas as
características do seu início. Em meados dos anos 1980, o então ministro
da Cultura, Celso Furtado, paraibano de Pombal, um dos homens mais
importantes da cultura nacional de todos os tempos, teve a compreensão de
que naquele momento o Ministério da Cultura, com as relações
internacionais que detinha, se via na obrigação de abrir uma série de canais,
uma série de diálogos e de pactuações globais, para que tivéssemos acesso a
alguns tipos de recursos extras e pudéssemos, a partir de então, desenvolver
ações de preservação, que naquele momento eram centradas no patrimônio
edificado.
Foi feita, então, uma parceria com o governo espanhol e isso permitiu a
entrada de recursos substanciais e volumosos, tendo sido determinante para
a instalação da Comissão Permanente do Centro Histórico de João Pessoa,
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Vo l . 1

que se mantém até hoje, e da qual Cláudio Nogueira foi coordenador, além
da criação da Oficina-Escola de João Pessoa, a primeira na América Latina.
O Brasil, hoje, tem cinco ou seis, se não me engano, algumas com
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

problemas de gestão, porque a Espanha retirou o seu financiamento depois


de vinte anos. João Pessoa, juntamente com o Ministério de Ciência e
Tecnologia, Pernambuco e São Luiz, estão conseguindo montar uma nova
parceria estratégica, de forma que esse trabalho extremamente importante,
tanto pra nós na Paraíba quanto para outras cidades do Brasil e de outros
países da América Latina, possa e consiga ter continuidade.
A visão do Celso Furtado, naquela ocasião, foi extremamente importante
e fez com que, ao longo do tempo, João Pessoa, de certa forma, mesmo não
tendo a visibilidade de outras cidades, outros estados e de outras capitais,
como Ouro Preto e Salvador, por exemplo, avançasse no seu trabalho de
formiguinha, na lógica preservacionista. A capital pernambucana tem um
patrimônio histórico, material e imaterial, de uma relevância que nós,
brasileiros, desconhecemos. Uma cidade com 424 anos que conseguiu, por
sorte, manter preservada a sua área central, principalmente a área histórica,
em decorrência da debandada econômica, já que ela tem uma característica
geográfica diferente, pois nasceu do rio e cresceu em direção ao mar.
Enquanto a maioria das nossas capitais nasceu do mar e se interiorizou,
78 João Pessoa nasceu do rio Sanhauá e foi invadindo o litoral, a partir dos
anos 1930, 40 e 50. Essa debandada fez com que, casual e ironicamente, as
edificações históricas fossem mantidas e preservadas, mesmo a despeito de
demolições e descasos, públicos ou privados.
Diante desse desdém, vamos dizer assim, da sociedade com o seu
patrimônio edificado – porque o cultural vem sendo fortemente mantido,
já que somos um celeiro cultural para o Brasil –, teria que haver,
essencialmente, uma reação articulada. Para citar só alguns exemplos,
porque realmente precisamos, nessas ocasiões, fazer ver que o Brasil é muito
maior do que aquilo que nós entendemos, embora seja uma plateia seleta.
Temos, por exemplo, o próprio Celso Furtado, Pedro Américo – que nasceu
na Paraíba, precisamente em Areia, cidade que foi recentemente, junto com
João Pessoa, tombada pelo Patrimônio Nacional. Temos também José
Américo de Almeida e José Lins do Rêgo, dois dos nomes mais importantes
da literatura nacional. Se formos para a música, podemos citar Jackson do
Pandeiro, Severino Araújo, Sivuca, Zé Ramalho, Elba Ramalho, Chico
César, Herbert Viana. E ainda, no teatro, Paulo Pontes, Ariano Suassuna.
Gastaria mais dez, quinze minutos citando essas pessoas, mas não é o caso,
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Debates
por hora. É apenas para termos uma noção da importância dessa cidade no
contexto nacional.
O fato é que o processo teve início na década de 1980 e não mais parou,
mesmo que lenta, pontual e desarticuladamente em algumas ocasiões, foi
um processo permanente, continuado, evolutivo. Isso levou a Prefeitura a
criar, no ano passado, uma Coordenadoria de Proteção do Patrimônio
Cultural, da qual sou coordenadora e na qual, efetivamente este ano,
começamos a trabalhar. O decreto foi em julho do ano passado e durante
os seis meses seguintes, em decorrência inclusive das eleições, houve uma
estratégia de formatação do que seria essa Coordenadoria no futuro e quais
as ações que ela deveria priorizar. Naquele momento, a sociedade foi
convocada e veio de forma muito presente, exatamente por essa
característica de estar há mais de vinte anos trabalhando, entendendo,
participando, vislumbrando muitos problemas, mas também algumas
soluções. Então, ela atendeu ao chamado e isso resultou num seminário,
com duração de vários dias e em dois momentos diferentes, no qual foi
estabelecido um Plano de Ação compartilhado e integrado. Esse Plano de
Ação determinou linhas específicas para que, a partir de 2009, viéssemos a
aplicá-las, ampliando e adequando alguns pontos.
Essa é uma das razões de estarmos aqui neste momento. Inclusive, ainda 79
serão expostas, nesta conferência, algumas experiências na área da educação
patrimonial, por mim e outra colega. Assunto que tem sido referência e tem
alcançado certa visibilidade por conta, exatamente, desse compartilhamento,
dessa pactuação e integração entre os setores da sociedade envolvidos com a
matéria. Na verdade, até nos surpreendeu o avanço que se teve com a
educação patrimonial em rede, porque conseguimos juntar as universidades,
as esferas governamentais, a iniciativa privada, o próprio município e o
Iphan, como parceiros iniciais e fundamentais nesse processo.
Em 2009, fomos também surpreendidos com o Prêmio Rodrigo Melo
Franco de Andrade, no qual ganhamos na categoria Apoio financeiro e/ou
institucional. Todo mundo cria expectativa de ter algum ganho nesses
processos, principalmente o ganho político, institucional e o do
conhecimento, mais do que os recursos, mais do que a divulgação ou a troca
de experiência. Mas, nos surpreendeu de certa forma. E por que nós
ganhamos? Por que a cidade de João Pessoa, com um órgão com menos de
um ano de gestão, conseguiu essa premiação tão cobiçada e entregue pela
primeira vez à Paraíba?
ForumPatrimonioCap2:Layout 1 5/30/12 4:09 PM Page 80

Vo l . 1

A comissão julgadora percebeu que essa ação prolongada, partilhada


durante um tempo bastante razoável, era digna de ser contemplada pelo
país como estratégia a ser conhecida e, talvez, seguida por outras esferas
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

administrativas e políticas.
Estamos no dia 14 de dezembro de 2009, do século XXI, do terceiro
milênio. Há trinta anos essa identificação seria vista como uma data de
ficção científica, alguma coisa retirada dos seriados televisivos, como “Terra
de gigantes”, “Perdidos no espaço”, “Os Jetsons”. Enfim, o que seria um
marco de ficção científica, hoje é realidade. Pois bem, mesmo a despeito de
contornos ficcionais e delirantes, há trinta anos um grupo de pessoas
imaginou que três, quatro, cinco décadas depois seria fundamental o
trabalho iniciado naquele determinado momento. Então, essa visão
sistêmica foi colocada no projeto e não apenas os investimentos realizados
nos últimos cinco anos. Compreendemos, assim, que foi exatamente esse
processo integrado e compartilhado que despertou a atenção do Iphan e
dos seus julgadores independentes. Além do próprio referendo do órgão
federal, os componentes da comissão julgadora entenderam que esse talvez
seja um bom caminho a ser seguido.
Longevidade e continuidade, até os dias atuais, são resultantes do que foi
80
feito naquele momento e em outros períodos subsequentes. Com a
sociedade, fundamentalmente, realizamos, nos últimos dez anos, algo em
torno de dez eventos entre seminários, encontros, fóruns e colóquios.
Inclusive, o próprio seminário Monumenta, quando esteve em João Pessoa,
foi esclarecedor e determinante. O Sebrae realizou um, a UFPB realizou
outro, nós realizamos mais um no ano passado, foi criada a Associação do
Centro Histórico Vivo – Acerhvo, da qual fui fundador e primeiro
presidente; uma entidade integrada por membros da sociedade, da
organização civil, do empresariado e por moradores do Centro Histórico,
uma entidade extremamente abrangente, que serviu como interlocutora
permanente com gestões governamentais. O que também, de certa forma,
facilitou o compartilhamento.
Claro que, para alcançarmos esse nível de entendimento, ocorreram
muitos reveses, muitas cabeçadas foram dadas, correções de rotas tiveram
que ser implantadas e vários embates foram travados. Mas o trabalho nunca
parou. Mesmo com altos e baixos, a ação foi continuada e reforçada em
algumas ocasiões, com nítido destaque para os últimos quatro ou cinco
anos. Apenas para se ter uma ideia, foram investidos cerca de R$ 40
ForumPatrimonioCap2:Layout 1 5/30/12 4:09 PM Page 81

Debates
milhões, dos quais 50% eram de recursos próprios. Se considerarmos as
dificuldades de uma prefeitura de porte médio, de um estado pobre da
Federação, entenderemos que o volume de aplicações ganha contornos de
política pública, acenando à sociedade aquilo que ela própria estipularia ao
longo do tempo. Até enfrentamentos difíceis, como a retirada de
comerciantes ambulantes das calçadas centrais, para espaços próprios mais
dignos e ordenados, tiveram que ser travados, independentemente de suas
repercussões “eleitorais”. Mexer em verdadeiros vespeiros, como o
totalmente descaracterizado e inchado Mercado Central, foi o lado menos
romântico desse processo, mas fundamental para que a cidade fosse
recuperando seus aspectos urbanos, paisagísticos e, fundamentalmente,
humanos.
Está tudo resolvido então? Todos conhecem a resposta. Todos sabemos
que esse é um trabalho que só tem início e que irá atravessar gerações,
resultando em outros problemas, outras soluções, outras ferramentas, outras
tecnologias. O grande desafio, na verdade, é o que está por vir, na medida
em que as cidades vão crescendo, desenvolvendo-se e estabelecendo novos
espaços e hábitos que serão, dentro de algum tempo, também referências
urbanísticas, paisagísticas e culturais. Agora mesmo, estamos propondo o
tombamento, como patrimônio moderno, da Estação Cabo Branco de
Ciências, Cultura e Artes, obra de Oscar Niemeyer, erguida em pleno 81
Parque Ecológico do Cabo Branco, ponto extremo oriental do Brasil. A
edificação, pela localização, pela beleza, pelos objetivos pedagógicos e pela
autoria, já nasce histórico e deve ser entendido como patrimônio desde já.
Estarmos atentos ao passado e projetarmos o futuro será vital na equação a
ser formulada por gestores, técnicos e pela sociedade, na perspectiva de um
crescimento sustentável, respeitoso e cidadão.
Sob essa lógica, acredito que sejam esses alguns dos fatores da premiação
que recebemos e de estarmos aqui nesta sessão de abertura de evento tão
relevante para o patrimônio cultural brasileiro.
Quero salientar dois aspectos, para que possamos fomentar o debate hoje
e nos próximos três dias de conferência. Carla, integrante da Prefeitura de
Areia, me chamava a atenção ontem para o que sentiu na elaboração do
Plano de Ação de Areia: certo distanciamento de outros ministérios em
relação ao Ministério da Cultura e do Iphan. Não por descompromisso,
mas, talvez, por não conhecerem em profundidade algumas das questões
inerentes ao patrimônio cultural. Talvez isso, com a visão técnica
ForumPatrimonioCap2:Layout 1 5/30/12 4:09 PM Page 82

Vo l . 1

predominando essencialmente, esteja interferindo em alguns diálogos que


foram tentados, uns com sucesso e outros não. Por isso, chamamos atenção
para a necessidade de haver uma integração bem maior do que apenas a
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

financeira, do que apenas a de gestão com todos os ministérios, vindo a


refletir realmente numa ação de Estado, como bem foi levantado aqui pela
Mesa.
Outro aspecto que destaco para que possamos refletir nesses dias é a
necessidade de reforçarmos e popularizarmos linhas de financiamento para
que a iniciativa privada possa participar, também, desse esforço de
preservação do nosso patrimônio, numa escala mais ampla. Isso já foi
salientado pelo Iphan como uma linha de ação a ser adotada, mas ainda
vejo a coisa um pouco acanhada, em decorrência de uma situação que temos
vivenciado em João Pessoa. Na nossa área central, por exemplo, existem
cerca de oito mil e quinhentas edificações, entre residências, pontos
comerciais, shoppings, etc. Dessas, cerca de cem unidades estão deterioradas
na configuração histórica. Menos de 1% desse universo, portanto, está
perigando ruir e, nesse recorte, cerca de 90% são de particulares.
Consequentemente, a sociedade começa a elevar o nível de cobrança, já que
a criação da própria Coordenadoria, as ações dos últimos cinco anos da
Prefeitura, esse trabalho integrado de vinte e tantos anos, a Comissão, a
82 Oficina-Escola, o Iphan, enfim, toda essa luta evidentemente chama
atenção da sociedade – e é isso que nós queremos. Só que agora a sociedade
começa a ter um grau de cobrança bem maior, e essa cobrança está voltada
equivocadamente para a gestão pública, como sendo dela a obrigação de
recuperar as edificações privadas. Evidentemente que não é essa a obrigação
da gestão pública, a gente sabe de cátedra, mas é preciso abrir alguns
caminhos para resolver esse problema.
Um deles, logicamente, é o financiamento para a recuperação dessas
edificações, mas eu acredito que esse ponto deveria ser um pouco mais
aprofundado para que pudéssemos ter essas parcerias efetivas, porque a
gente calcula que algo em torno de dez e vinte mil reais seria suficiente para
recuperar fachadas, a parte interna, as cobertas e transformar um imóvel
que estava em ruínas em algo produtivo; uma residência, uma hospedagem,
uma pousada, uma casa comercial. Há uma natural expectativa para que
isso se resolva o mais rápido possível, por isso trago a temática para as
discussões segmentadas, embora já tenha sido recorrente, devemos insistir
nesse aspecto, definindo linhas menos burocráticas, mais rápidas e de acesso
mais facilitado.
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Debates
E, para finalizar efetivamente, gostaria de lançar João Pessoa como
candidata para a realização do já anunciado segundo fórum, em 2011, uma
vez que esse segundo encontro ainda não tem uma sede definida. Cidades
como Ouro Preto, Salvador, Rio de Janeiro, São Luiz, Olinda, Recife, entre
inúmeras outras, de relevância para a nossa história, já tiveram os seus
espaços devidamente firmados e compartilhados com o restante do Brasil.
Por continuada visibilidade, essas localidades são referências automáticas
quando pensamos em problemas e soluções ligadas ao espectro patrimonial.
João Pessoa, ainda não. Mesmo sendo tão antiga – ou mais – que algumas
dessas, a capital paraibana permanece há décadas fechada em copas,
expondo-se apenas quando é visitada ou estudada por interessados na
temática, como o presidente Luiz Fernando, um grande admirador e
parceiro da cidade. Mas não há um entendimento generalizado da sua
estrutura espacial, ambiental e histórica e, muito menos, de suas
perspectivas referenciais.
Que tal passear pelas mesmas ruas que transitou um dos maiores poetas
da humanidade, Augusto dos Anjos? Ou visitar os ambientes e respirar a
história da Revolução de 30, cuja Paraíba foi o estopim? Por que não fazer
o mesmo roteiro do imperador Pedro II, em sua última visita fora da capital
do Império? Ou conhecer a igreja barroca “mais formosa do Brasil”, a São
Francisco, na ótica de Mário de Andrade? Ou, ainda, desfrutar de seu verde, 83
de seus ventos, de suas águas, de seus cheiros, que credenciaram a capital
paraibana a ser uma das mais ecológicas do mundo? Conhecer, por exemplo,
a Lagoa, um dos seus mais simbólicos e agradáveis espaços, local onde
nasceu Geraldo Vandré e onde está localizada a escultura A pedra do reino,
em homenagem a Ariano Suassuna – mais uma opção de deleite e
conhecimento? Falar nas praias de Tambaú, Cabo Branco, Manaíra, Jacaré
e Seixas é provocá-los a se incorporarem a uma malha de beleza e
preservação responsável, na lógica de uma legislação que impede a
construção de espigões à beira-mar.
Por tudo isso e muito mais – tanto que me limitarei a esses exemplos –
projeta a realização de um fórum dessa magnitude como tão produtivo e
empolgante como este, realizado no chão dos libertadores da pátria. De
forma diferente, somos iguais nos tesouros preservados ou perdidos. Daí a
proposta para apreciação dos senhores e senhoras. Aguardaremos todos com
a decantada hospitalidade, alegria e operosidade dos paraibanos. Quem não
conhece, terá a oportunidade de se deparar com uma das joias da coroa
brasileira. Até lá e muito obrigado!
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Vo l . 1

O MEMORIAL DO HOMEM KARIRI –


UM PATRIMÔNIO GERENCIADO POR CRIANÇAS
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Francisco Alemberg de Souza Lima*

RESUMO
*Diretor- A história da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, do
presidente da
Fundação Casa
Ceará, espaço agraciado, em 2004, com a Ordem do Mérito Cultural do
Grande – Ministério da Cultura e que, em novembro de 2009, passou a ser casa do
Memorial do
Homem Kariri
patrimônio. Trata-se de um relato de como uma casa antiga, restaurada por
moradores locais, tornou-se o centro de um movimento sociocultural que
transformou a vida de crianças e moradores da pequena cidade de Nova
Olinda, no Ceará. A história da “Casa Grande”, como ficou conhecida pelas
crianças, sintetiza o processo de identificação de um patrimônio cultural a
partir de seu reconhecimento pela própria comunidade.

PALAVRAS-CHAVE
Nova Olinda, Comunidade, Patrimônio.
84

Nós estamos falando sobre o patrimônio para a sociedade brasileira, eu


vou falar da sociedade brasileira para o patrimônio. Vou falar de uma cidade
que é Nova Olinda que de Nova Olinda não tem nada. Quando eu era
menino lá em Nova Olinda, a professora mostrava o mapa do Brasil e dizia:
“Nós estamos mais ou menos aqui”, ou seja, não estava nem no mapa, e a
gente tinha que adivinhar no meio daquele mapão verde onde é que estava
Nova Olinda.
A arte lá era quando o menino subia em cima de um pé de goiaba e caía,
aí dizia: “O menino fez uma arte, caiu de cima do pé de goiaba”. E os únicos
patrimônios que havia na cidade eram as filhas do Zé Totonho, que embora
tivessem as caras feias, os corpos eram patrimônios culturais que a gente
valorizava muito.
Em 1992, nós resolvemos restaurar a casa do meu avô, uma casa velha,
de ruína, que deu origem à cidade. Resolvemos restaurá-la junto com a
comunidade, com aquele povo mais velho de lá, dizendo que cor era a
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Debates
fachada, que cor era dentro, o que acontecia na casa... Pegamos os pedreiros
antigos da cidade, acostumados a derrubar casa velha, e começamos a
restauração.
Minha formação é de músico popular e, na verdade, tudo começou por
causa da pesquisa musical que tínhamos na região, voltada para a música na
pré-história do homem. Andávamos por lá e tínhamos as lendas regionais
para pesquisar, para saber informações, para fazer música, participar de
festivais e fazer espetáculos nessa linha. E pegávamos pedra, semente,
madeira desses lugares, fazíamos os instrumentos, tocávamos e
executávamos a música com o material da localidade. Depois, ficamos
sabendo que aquilo ali, aquelas cavernas com aquelas pinturas, chamavam
“acervo arqueológico” e, depois, soubemos que aquela lenda era chamada de
“acervo mitológico”.
Passamos, então, esses nossos objetos para dentro da casa que
restauramos e que passou a guardar, também, os presentes que ganhávamos.
Sim, porque o povo ia plantando na roça e quando estavam trabalhando,
muitas vezes cavando, encontravam uma pedra, que chamava pedra de
corisco, e botava para escorar a porta. Ali, era um artefato lítico que eles
escoravam, e a gente foi andando por esses lugares, pesquisando, lendo e as
pessoas foram doando para nós esse acervo e começaram, também, a visitar 85
a nossa casa e conversar e contar história, então, resolvemos pegar a casa do
meu avô, restaurar e colocar esses objetos lá dentro. Fizemos um memorial
que denominamos Memorial do Homem Kariri, porque os índios que
habitavam essa região eram os índios Kariris.
Está aí a casa que fizemos. Surpreendemo-nos quando as crianças da
cidade a invadiram começando a tomar conta da casa, vendo a gente
explicar aquele espaço para o povo. E, de repente, começaram também a
explicar a casa para a população. Começamos a perceber o potencial que
existia naquelas crianças porque não foi a juventude, não foram as pessoas
adultas da cidade, que começaram a visitar aquele pequeno museu; eram os
meninos que iam lá ver como a gente explicava a história da casa e dos
objetos que foram se juntando dentro dela. Começaram, então, a explicar
e a passamos a dar funções para esses meninos. Aquele que explicava,
colocamos o nome de “diretor de pesquisa”, responsável pelo museu. E ele
recepcionava as pessoas que andavam por lá, contava 80% de história real
e 20% ele inventava. Tinha uma caverna lá que ele dizia: “Tem um lugar
aqui que tem vários caminhos, mas não chega a lugar nenhum”.
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Vo l . 1

Nessas cavernas tinha pintura rupestre e começamos a visitar os sítios


com essas crianças, cantando e conversando sobre aqueles espaços. A Casa
Grande nasceu na época da bilha, a bola de gude – digo isso, porque a
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

criança conta o ano pelo tempo das brincadeiras, o tempo da bilha, o tempo
da pipa, o tempo do pião... E aí chegou um menino que organizava o
campeonato de bilha e nós o denominamos “diretor de cultura”. Teve outro
menino que chegou organizando a casa, chegava e varria, virou o “diretor
de manutenção”, e foram, então, os três primeiros diretores.
Um dia, chegou um gordinho e disse: “Alemberg, eu estou notando que
nessa casa o povo anda de cueca”. Chegou um pequenininho e disse: “Eu
estou notando que o povo está jogando lixo nas plantas”. Respondi: “Então,
você vai ser o ‘diretor dos papeizinhos’, o papel que tiver aí você pega”.
Depois de uma semana, ele chegou para mim e disse: “Alemberg, eu não
quero mais ser diretor dos papeizinhos”. Eu disse: “Então, você está
exonerado”. Aí, ele achou esse cargo muito mais bonito do que diretor dos
papeizinhos, porque exonerado não é para qualquer um. Nasceu assim o
primeiro exonerado.
E a gente começou numa pobreza... Na verdade, começamos na nossa
simplicidade de quem não tinha dinheiro; tínhamos duzentos reais para
86
manter a casa: cem reais para pagar a energia, e cem para botar uma mulher
que morava na frente para olhar os meninos, porque se chegasse uma
autoridade tinha uma pessoa com CPF para dizer, “eu que tomo conta
desses meninos”. É que a gente morava a quarenta e dois quilômetros de
Nova Olinda. A casa começou como uma instituição gerenciada pelas
crianças da cidade e elas, de fato, se apropriaram da casa. E, além de
gerenciar o museu, começaram a interagir com o povo, conversando; foram
se desenvolvendo e trazendo os pais para dentro dela. Depois, resgatamos
uma amplificadora antiga de Nova Olinda, da década de 1940, que era de
meu pai. Eu me criei dentro de uma amplificadora, vendo aquelas capas
dos Beatles, de Bob Dylan, de todo esse povo aí, eu era admirador de capa
de disco lá na rádio.
Resgatamos essa amplificadora para conversarmos com a comunidade,
para que ela soubesse o que tinha dentro daquela casa velha, na qual se dizia,
antigamente, que aparecia alma, que estava em ruína e o povo tinha medo.
E começamos a fazer três programas na amplificadora: o “Submarino
amarelo”, um programa infantil que tocava aqueles discos do Carequinha;
“A hora da saudade,” somente com músicas antigas com cantores como Nat
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Debates
King Cole, que faziam parte da história dos ouvintes mais velhos na época;
e o programa “Manhã de feira”, um programa de forró que ia ao ar no dia
da feira da cidade. Mas os meninos começaram a ouvir e passaram, também,
a fazer a programação.
Havia uma coisa interessante: a hora certa era dada pelo jumento. E isso
gerou certo impasse depois do governo Sarney, quando foi criado o horário
de verão. O problema é que, no Ceará, onde os jumentos relincham ao
meio-dia, eles ficaram todos desorientados, sem saber se relinchavam ao
meio-dia ou se relinchavam a uma hora da tarde, porque hora mesmo de
jumento relinchar é meio-dia; esse é o relógio do Sertão, mas começaram a
desorientar o jumento, um relinchava ao meio-dia, outro, que estava por
dentro do plano Sarney, relinchava uma hora depois. O resultado foi que
tivemos de gravar um jumento eletrônico para orientar aquele problema
patrimonial que estava acontecendo na nossa cidade.
Lá fui eu gravar um jumento; passei quase duas horas com o microfone
na boca do jumento e ele não queria nem papo comigo. Daí, subi uma serra
com um binóculo, deixei o microfone lá, quando eu olhei, o jumento estava
com o traseiro virado para o microfone. Eu desisti nesse dia e voltamos
depois, quando eu ia desistindo, de novo, um velho disse: “Meu filho, é
você que anda querendo gravar um jumento? Pois eu tenho um jumento 87
treinado que rincha na hora que eu quiser”. Fomos e, chegando lá, o velho
pegou uma peneira de milho, jogou para cima, na hora que o jumento
ouviu aquela cantiga deu uma relinchada que o ponteiro bateu lá em cima,
no gravador, e quase quebra. Conseguimos, então, gravar aquilo, e ao meio-
dia o jumento relinchava na rádio e, dessa forma, começou a orientar todos
os jumentos. Houve uma afinação e uma sincronia “jumental” lá no Ceará,
que os jumentos ficaram todos relinchando na hora certa. Esse foi o nosso
primeiro patrimônio imaterial.
A casa começou a ser visitada pelas pessoas; começaram a receber notícias
do museu, porque fuxico no Sertão é coisa que corre depressa, pois começou
a correr chão, como se diz, e as pessoas começaram a ir à casa, que foi se
ampliando. Hoje, o museu tem os programas de memória que foram os
primeiros; depois veio o programa de comunicação, que nasceu com a rádio;
em seguida foi criado o programa de artes.
Certo dia, resolvemos olhar o livro que o povo assinava quando ia visitar
a casa e constatamos que já tínhamos recebido entre 1.500 a 3.000 pessoas.
Percebemos, então, que numa cidade com 15 mil habitantes, dos quais 10
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Vo l . 1

mil vivem na zona rural, restando cinco mil habitantes na cidade, quer dizer,
até eu sair de lá eram cinco mil, não sei se uma velha que estava passando
mal morreu durante esses dias que eu estou aqui e não acessei a internet.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Mas, o fato é que a gente viu que o museu tinha um potencial de geração
de renda com as famílias e que podia desenvolver o turismo. Foi aí que
nasceu o programa de turismo e, com ele, as pousadas domiciliares, as
lojinhas onde os pais vendem os souvenirs da casa e tudo o mais. Para
administrar essa renda foi criada, então, a cooperativa dos pais, através da
qual 80% do dinheiro eram destinados para as famílias investirem na
reposição do que era gasto quando recebiam as pessoas, para a energia, por
exemplo, que aumentou porque tinha uma pessoa a mais ligando a luz e
para a própria renda da família; 10% iam para a manutenção da
cooperativa, os outros 10%, para um fundo de educação que banca o
transporte escolar para aqueles meninos que passaram no vestibular e
chegaram à universidade, e já são vários.
Uma vez era para eu ganhar uma bolsa de mecânica, me levaram para o
Rio de Janeiro onde encontrei com uma americana que ia comigo até o
lugar onde eu ia fazer a entrevista. No trajeto, ela ia conversando comigo em
português, quando chegamos lá tinha um inglês ou um americano e ela me
disse: “Agora eu vou falar inglês, esse americano vai traduzir para você e
88 depois ele traduz em inglês para mim.” E eu disse: “Mas nós não estávamos
conversando, porque não continuamos falando em português?” E ela: “Não,
porque ele é contratado para isso.” Disse: “Tá bom!” Aí, quando expliquei
o que estava querendo fazer lá no Sertão, ela disse: “Eu não vou dar agora
de advogado do diabo.” E eu disse: “Agora lascou.” E ela: “Isso não vai dar
certo porque o que você está criando, lá no Sertão, não tem mercado de
trabalho para isso, o que vai ocasionar? O êxodo rural.” Aí eu: “O êxodo
rural?” Ela: “É!” E eu respondi: “E esse americano que tá aqui, não é êxodo
rural também? Ele vindo lá da terra dele pra nossa, pra se empregar aqui?
Daí, então, só é êxodo rural pra pobre, pra rico é turismo?”
Mas, voltando à Casa. Hoje ela está centrada em dois pilares: o
laboratório de conteúdo e o laboratório de produção. No laboratório de
conteúdo nós temos uma biblioteca especializada em quadrinhos de
referência e de raridades; duas bibliotecas, uma infantil e outra de referência;
uma dvdteca, onde os meninos conhecem a história do cinema, com um
acervo que possibilita que os meninos, ainda na infância, possam assistir a
clássicos, ou seja, crescem assistindo coisa boa. Através dos acervos, eles têm
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Debates
acesso à arte de qualidade, com bom cinema, podem conhecer a impor-
tância dos quadrinhos pelos roteiristas, pelos desenhistas...
Temos ainda o laboratório de produção, onde havia uma TV que era
toda produzida por criança, desde o roteiro até a filmagem. Ela foi ao ar
durante três meses, daí a Anatel lacrou. Foi lá e disse: “A partir de hoje vocês
não podem transmitir, quem é o responsável por isso aqui?” E responderam:
“É Alemberg.” Eu acabei respondendo a um processo na Polícia Federal e
na Justiça Federal e fui proibido de deixar o país por dois anos. Também,
eu não tinha para onde ir mesmo, foi prisão domiciliar. E, depois disso, nós
temos uma rádio; uma produção de cinema para a comunidade, na qual
todo domingo tem matinê à noite; temos o site da Fundação que é
elaborado e mantido pelos próprios meninos; tem ainda o teatro, onde
criamos os espetáculos. Hoje, por exemplo, estamos com um espetáculo
que tem turnês marcadas para a Itália, Portugal e Alemanha, entre os meses
de março e junho. Sem contar, que os meninos têm feito intercâmbios,
inclusive com parceria com o Unicef, para a extensão da Rádio de Criança,
cuja sede é em Moçambique, onde há 32 programas de rádio feitos por
crianças e para crianças. Em Angola, sete províncias já faziam rádio de
criança para crianças, onde elas são não apenas ouvintes, mas
comunicadores. Estamos falando, portanto, de comunicação apropriada
para as crianças. 89

Minha história é essa, eu vou pedir ao Rodrigo, um dos nossos meninos,


que apresente esse vídeo que se chama Meu olhar. Trata-se do olhar dele
sobre a Casa Grande e achei interessante trazer porque ela é, na realidade,
um espaço de criança. Hoje, a Casa é um dos 65 estimuladores do turismo
e, isso, foi dado pelas crianças ao município porque, em 2004, o museu foi
agraciado com o mérito da Ordem Cultural do Ministério da Cultura e,
em novembro de 2009, passou a ser casa do patrimônio. Assim, eu costumo
dizer que as crianças de Nova Olinda tocaram o coração dos velhos e dos
fãs, trazendo a criança que tem dentro deles. Podemos dizer, então, como
costumo afirmar, que os “fãs tá uva”, porque criança gosta de “fanta uva”,
então, “fanta uva” depois que a Casa Grande passou a ser casa do
patrimônio.
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Conferência 2
BALANÇO DAS AÇÕES DO
P RO G R A M A M O N U M E N TA

Robson Antônio de Almeida*

RESUMO
O texto faz um balanço das ações do programa Monumenta, do * Coordenador
nacional adjunto do
Ministério da Cultura, que conta com o financiamento do Banco Programa
Interamericano de Desenvolvimento – BID, recursos da União, Estados e Monumenta
municípios e iniciativa privada, além da cooperação técnica da Unesco. O
programa foi criado para atuar de forma integrada e garantir as condições
de desenvolvimento econômico de cidades protegidas, além de promover
ações que garantam a sustentabilidade desses sítios. Prioritariamente, atuou
em 26 cidades, por meio de convênios com Estados e municípios,
investindo mais de 250 milhões de reais nessas ações.

PALAVRAS-CHAVE
Programa Monumenta, Ação compartilhada, Financiamento de imóveis 91
privados.

Vamos apresentar um pouco da experiência do Programa Monumenta


nas cidades do Brasil. A intenção é falar como o programa se deu, como foi
sua operacionalização e execução, mostrando alguns indicadores, e como ele
foi executado nas cidades em que atuamos. O Programa foi concebido como
uma tentativa de intervir no patrimônio federal, no patrimônio protegido
pelo Iphan. A intenção era atuar de forma integrada para garantir as
condições de desenvolvimento econômico desses sítios e obter a
continuidade das ações realizadas – a tão falada sustentabilidade. O
Monumenta é um programa do Ministério da Cultura, conta com o
financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, com
recursos da União, dos Estados, municípios e iniciativa privada, além da
cooperação técnica da Unesco.
O início do Programa se deu em 1996 onde deveria: no Iphan. Começou
em um grupo de trabalho vinculado ao gabinete e, por conjunções políticas
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Vo l . 1

da época, a sua execução se iniciou fora do Iphan, a partir de 2000, no


Ministério da Cultura.
|

Em 1999, se deu a assinatura do Programa de empréstimo e, em 2000,


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

sua execução, tendo o Iphan um Grupo de Trabalho pertencente à sua


estrutura, que tinha a responsabilidade da aprovação técnica dos projetos.
Em 2006, retorna ao Iphan, quando o seu coordenador nacional é
nomeado presidente do Instituto e leva a estrutura do Programa para dentro
da instituição, em sua área central, apesar de já atuarmos muito próximo das
Superintendências Regionais do órgão nas cidades conveniadas.
O Programa atuou, prioritariamente, nas 26 cidades conveniadas com os
Estados e os municípios e sempre buscando a prática da gestão
compartilhada do patrimônio cultural. Mais de 250 milhões de reais foram
destinados a essas ações, esses convênios, e uma das obrigações que o Estado
e o município tinham era o de instituir unidades locais, as chamadas
Unidades Executoras de Projetos – UEPs. Essas unidades tinham uma
estrutura mínima de coordenação com especialista em patrimônio, em obras
de restauro e na área financeira para executar o programa, mas, claro,
contando também com uma estrutura mínima no município para pensar o
patrimônio. A maioria das cidades, até o início do programa, não tinha
92 nenhuma estrutura atuando na área.
Em outros municípios, como Ouro Preto, tinha um arquiteto antes do
início do Programa. Então, formaram-se essas equipes mínimas e esperamos
que elas continuem para além do Programa.
A seleção das cidades foi feita por um grupo de especialistas convocado
pelo ministro da Cultura, usando uma metodologia específica, que colocou
esses sítios numa ordem de prioridade de urgência e emergência, indicando
quais teriam ou precisariam receber recursos ou uma ação. Foram então
selecionados 94 cidades, com 101 sítios elencados, e uma mostra prioritária
que reuniu cinco cidades. Depois, novas cidades foram se agregando, até
2004, quando chegamos às 26 atendidas.
As estratégias dos projetos, de forma geral, já buscavam o
desenvolvimento de um projeto local e a identificação de uma área de
intervenção prioritária – áreas de projeto que sempre estavam dentro da
área protegida. Algumas vezes, era a área protegida toda e, em outras, era um
recorte dessa área. Nos objetivos estabelecidos, já se buscava
sustentabilidade, sempre tendo alguma intenção de dar uma dinâmica
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Conferência 2
econômica e social a esses sítios. A vocação da área era sempre buscada. No
início, tivemos um grande viés voltado ao turismo, como se o turismo
resolvesse todos os problemas das cidades históricas, como se fosse a única
saída para essas cidades.
Isso foi sendo adequado e acertado no decorrer da execução. Ao longo
desses anos, foram muitos os que passaram pelo Programa, conseguindo
fazer esses ajustes e correções no decorrer do caminho. E, para isso, era
definido o chamado perfil, que já era uma definição de ações dentro do
território. Ações, obras, os usos dos imóveis, ações de promoção de
atividades econômicas, de educação patrimonial, mas muito voltadas para
a formatação de um convênio e de sua execução. Diferente do que estamos
pensando para o futuro, que é o PAC das Cidades Históricas e a elaboração
dos Planos de Ação.
No momento da apresentação do programa localmente, era definido um
perfil dessas ações, mas para formatação do convênio era ainda verificada a
capacidade de contrapartida do Estado ou do município. Por isso, em
algumas cidades, nosso convênio era com o Estado, porque o município
não tinha capacidade de dar a contrapartida necessária. Uma análise
econômica, financeira, resultava num plano de trabalho com ações e valores
definidos e um convênio considerável, de grande porte. Além das ações de 93
fomento, de educação patrimonial, também aconteceram ações de
capacitação de mão de obra específica para o restauro e de fortalecimento
institucional.
O Monumenta é formado por vários componentes. Um deles é o
componente de obras de conservação e restauro de monumentos, intervindo
em espaços públicos, em logradouros, e ações urbanas mais integradas.
Logicamente que, em algumas cidades, as ações foram pontuais e, em
outras, houve uma ação mais integrada no território, com requalificação de
logradouros e, até, com pequenas obras de drenagem, “embutimento” de
fiação etc., caracterizando em vários casos uma grande transformação
urbana.
Até o momento foram investidos cerca de 120 milhões de reais, nesse
tipo de obra. Dentre as obras, estão as de restauro, de elementos integrados
dos monumentos, como, por exemplo, o Conjunto do Carmo de
Cachoeira, uma obra de restauro arquitetônico e de bens integrados; ou a
Matriz de Nossa Senhora de Natividade, um monumento, claro, compatível
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Vo l . 1

com o porte do conjunto da cidade do Estado do Tocantins. As obras


urbanas foram principalmente as praças, como o largo do Theberge, em
Icó (CE), um largo com uma extensão considerável; ou a praça Frei Caetano
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Brandão, em Belém (PA). Sem contar as ações de requalificação de orlas de


rios e de baías, como a orla do Porto Geral, em Corumbá (MS); ou a orla
de São Francisco do Sul, em Santa Catarina; ou a beira-rio, em Goiás.
Intervimos também nos mercados públicos, uma ação supercomplexa com
a qual aprendemos muito ao longo do caminho pela quantidade de pessoas
participantes e pelos mais variados interesses envolvidos. E, também, havia
questões de uso, da cessão do espaço para esses cessionários, as pessoas que,
normalmente, estavam no local há 30, 40 anos: famílias, gerações. Existia
uma cessão formal do poder público para essas famílias. Podemos citar
como exemplo o Mercado Público de Diamantina (MG) e o Mercado
Público de Oeiras, no Piauí.
Quanto aos parques, podemos citar o Vale dos Contos, aqui em Ouro
Preto. Trata-se de uma ação em um espaço único dentro da densidade do
conjunto protegido: uma área de vazão que oferece uma visão diferenciada
do sítio, uma visão de dentro do próprio sítio, uma coisa muito inusitada,
uma área considerável, que fica acima e abaixo da Ponte dos Contos, o horto
e o parque. Podemos citar também o Morro do Hospício, em São Francisco
94 do Sul; ou Parque do Carmo, em Olinda.
Uma das ações que consideramos uma das mais exitosas do Programa foi
a articulação que a Coordenação do Programa teve com o Ministério da
Educação, aproveitando o início do processo de interiorização das
universidades federais. Através dessa articulação, o Programa executou a
restauração de quarteirões e o MEC instalou as universidades. Esse foi o
caso da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, em Cachoeira, antiga
fábrica de charutos; e o campus de Laranjeiras, da Universidade Federal de
Sergipe. E, claro, nós conseguimos, com o Ministério da Educação, que os
cursos instalados nesses lugares fossem cursos das áreas de arte, cinema,
teatro, arquitetura, museologia, usando esses espaços, essas cidades como
laboratórios, como lugar de aprendizado também. Não é só cenário. Os
cursos conversam com a cidade e criam uma nova dinâmica urbana.
Cachoeira estava, há cinco anos, numa situação precária. Quem conheceu
Cachoeira sabe. O patrimônio estava muito degradado, não tinha atividade
econômica na cidade. Hoje, com as universidades, sabemos a dinâmica que
ela traz, e Ouro Preto sabe disso melhor do que ninguém. Esse movimento
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Conferência 2
de estudantes pode trazer muito benefício para a cidade. Em Cachoeira já
tem restaurantes, pousadas se instalando, já dá para sentir a alteração dessa
dinâmica.
E a ação de habitação, em Salvador. Fomos partícipes nessa grande ação
de habitação, a chamada Sétima Etapa. Uma ação articulada entre
Ministério da Cultura, Iphan, Cidades, Caixa Econômica e Governo do
Estado da Bahia, na qual quarteirões da área do Pelourinho – ou Saldanha
– foram ou estão sendo restaurados para habitação de servidores do Estado
e para moradia de algumas famílias que serão mantidas na área.
Temos também o trabalho feito com financiamento de imóveis privados,
a experiência mais inovadora, a nosso ver, neste Programa. Já foi citada aqui
no Fórum essa ação, esse financiamento, mas era uma demanda de
proprietários de sítios urbanos protegidos, os quais sempre sentiam o
tombamento, a proteção, como um ônus. Essa foi uma primeira tentativa,
com êxito, de diminuir isso, de trazer algum benefício, um subsídio
financeiro para esses proprietários, de conseguir investir recursos públicos,
nas casas desses moradores de centros urbanos protegidos. Uma linha de
financiamento somente para imóveis privados nas áreas protegidas.
A experiência do Monumenta ocorreu apenas nas 26 cidades, mas, como
um projeto piloto, demonstrou que é possível disponibilizarmos um 95
financiamento para imóveis privados. Ainda é uma ação muito complicada,
demanda um convênio, editais de seleção, mas é uma linha de crédito com
financiamento a juro zero, com até 20 anos para pagar e flexibilização das
garantias, já que a Caixa Econômica (o banco que operacionalizou a
operação) foi contratada para ser agente financeiro dessa ação.
Conseguimos, dessa forma, flexibilizar garantias, formas de pagamento para
conseguir que a ação fosse exitosa. Porque, por exemplo, a maioria das
pessoas que moram em centro histórico não consegue comprovar a
propriedade: as casas não têm escritura, “o cartório pegou fogo”, etc.
Quem contrai o financiamento é o usuário e não necessariamente o dono
da casa. E esse financiamento é, prioritariamente, para melhorias externas,
estruturais, instalações elétricas, hidráulicas; em alguns casos específicos,
instalações sanitárias, construções de banheiros, escada contra incêndio etc.
Esse financiamento também é usado para adequação e geração de renda,
não somente para habitação. Na verdade, é para habitação e geração de
renda. Não importa o uso, importa que essas casas sejam usadas.
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Vo l . 1

Um dos exemplos é o Clube 24 de Janeiro, em São Francisco do Sul,


uma sociedade que contraiu financiamento; temos também o exemplo de
Natividade (TO), onde tivemos as maiores demandas. Nessa cidade,
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

considerando e relativizando o tamanho do sítio, foram quase 80% dos


imóveis da área protegida que contraíram financiamento.
Foram 76 editais. O município ou o Estado lançava o edital, havia uma
seleção por um grupo formado pela Prefeitura, pelo Iphan e pelo Estado.
Conforme o valor disponível no convênio, as pessoas iam sendo chamadas,
existindo, claro, uma análise financeira e de capacidade de endividamento,
e assinavam os contratos para poder executar essas obras. Dos 76 editais
lançados foram mais de 1.600 propostas, com uma demanda de mais de
100 milhões de reais.
Até o momento, temos 300 propostas contratadas, em torno de 17
milhões de reais investidos ou em investimento, mas vemos que houve uma
grande distribuição desses recursos. Conseguimos atender uma grande
quantidade de pessoas: 50% dos beneficiários têm renda de até três salários
mínimos e 60% dos financiamentos têm valor inferior a 20 mil reais.
Atendemos propostas de financiamento de cinco até 800 mil reais. Não
existe limite – nem mínimo, nem máximo; tudo depende da capacidade de
96
endividamento dessas pessoas. E o financiamento de imóveis privados tem
uma outra característica, que era mais uma obrigação do município ou do
Estado quando assinava o convênio: a criação de um fundo municipal de
preservação, dentro da ótica da sustentabilidade que várias ações
retornariam para o fundo, através de seus usos. Vimos que isso nem sempre
aconteceu porque, às vezes, os perfis não eram tão colados à realidade local,
como achávamos ou como se achava. Então, os financiamentos dos imóveis
privados são pagos para a conta do fundo municipal, pagam para o
município e esse dinheiro vai ser disponibilizado para ser reaplicado em
ações de fomento do patrimônio da cidade. Esse fundo é criado por Lei e
gerido por um conselho paritário entre poder público, iniciativa privada e
sociedade, com representantes das três esferas de governo e da comunidade.
Esses fundos foram criados na assinatura do convênio, mas não foram
implantados. Estão sendo implantados no decorrer do programa. A maioria
deles já tem recurso em conta e achamos que isso, talvez, seja um grande
começo para que as pessoas atentem para as possibilidades que esses fundos
podem ter nas ações dos sítios. Como falei, várias cidades já têm recursos
em conta, os conselhos, na maioria das vezes, já estão nomeados, mas são
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 97

Conferência 2
poucos os fundos que estão, realmente, operantes. Natividade é uma das
cidades que têm o fundo operante, que já têm ação realizada. Vimos que é
possível.
Abordaremos agora as ações de fomento no Programa, componente de
educação e promoção que previa realização de campanhas, programas
educativos e ações pedagógicas para conhecimento e valorização do
patrimônio. Essas ações, que não são obras, faziam parte do convênio
inicialmente. Em 2005, houve uma mudança depois da constatação de que
a obra acaba se sobrepondo, como prioridade das cidades, a esse tipo de
ação. E a gente sabe o quanto essas ações são importantes e complementam
o trabalho de restauração.
A coordenação do Programa decidiu que essas ações seriam executadas
diretamente como componente federal. Assim, a partir de 2005, elas saíram
dos convênios e, salvo algumas exceções, em algumas cidades as ações foram
propostas pelas unidades locais, as UEPs. A maior parte desse componente
foi executada pelo apoio a propostas selecionadas por editais públicos.
Foram lançados quatro editais, dois em 2005 e dois em 2007, para esse tipo
de ação de educação e para as outras que vou falar mais à frente. E, claro,
tivemos mais uma inovação. Nos lançamentos dos editais, resolvemos que
eles seriam abertos para todas as cidades protegidas, não só para as 26 97
conveniadas. Com isso, abrimos possibilidades e vimos que o resultado foi
muito melhor que o esperado. Temos projetos fabulosos pelo Brasil. Foram
49 projetos educativos selecionados por meio de edital público em 2007,
com investimento de mais de dois milhões de reais. Além do projeto
editorial do Programa, que também foi uma execução direta pela unidade
central, nacional, pelo qual foram publicados mais de 70 volumes, com
cerca de 50 títulos em nove linhas editoriais. Vários desses livros estão
expostos e à venda aqui no Fórum. Esses registros são buscados ou feitos
naquelas ações selecionadas pelos editais, ações que o programa executou
diretamente, que o Iphan executou nas cidades, prioritariamente, nos sítios
de atuação do Programa.
A promoção de atividades com o intuito de estimular a dinâmica
econômica desses sítios, sempre em parceria com a comunidade e o setor
privado no desenvolvimento dos projetos, visa auxiliar a permanência das
manifestações culturais e oferecer alternativa de emprego e renda para as
comunidades. Nesses projetos também existe uma contrapartida das
entidades, ONGs, associações que propuseram os projetos para os editais.
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Vo l . 1

Mostramos aqui o exemplo da oficina do mestre Juvenal de Natividade: o


Saber da Ourivesaria, da Filigrana, estava se acabando, uma vez que não
havia condições de comprar o material, de manter uma estrutura. Foi,
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

então, apresentado um projeto em que foi dado apoio para isso e, hoje, a
oficina funciona normalmente. A oficina hoje é um exemplo exitoso de
nossas ações.
Foram, portanto, 76 projetos, inclusive de roteiros turísticos, como parte
da capacitação de agentes de turismo, pelo edital de 2007. Foram 34 as
ações de capacitação de mão de obra, com a criação de centros de formação
de artífices em conservação e restauro e a difusão do conhecimento
tradicional para os profissionais e empreendedores. O início da ação se deu
levando alguns mestres artífices a Veneza para serem treinados em algumas
técnicas específicas. Até hoje, alguns desses mestres atuam em obras de
restauro pelo Brasil, outros dão aula em cursos de formação, sendo que
alguns desses cursos são decorrentes de edital de promoção de formação de
mão de obra. São exemplos de cursos que apoiamos.
O Programa promoveu também o apoio a três núcleos de formação de
restauro: no Rio de Janeiro, Ouro Preto e Olinda – com investimento inicial
de um milhão e meio de reais para a formação de 220 profissionais no
98
primeiro ano, além das iniciativas de formação e capacitação em 20 cidades,
beneficiando quase 1.300 jovens. Essas ações foram apoiadas por meio de
editais e em algumas outras ações – que foram demandadas pelas unidades
locais, por exemplo, Goiás e, mais uma vez, Natividade, onde teve uma
grande demanda pelo financiamento de imóveis privados. Nós promovemos
alguns cursos locais com os serventes, os pedreiros, levando técnicos do
Iphan que conhecem as técnicas de restauro para passar esse conhecimento
e melhorar a qualidade das intervenções, que eram em grande quantidade,
mas, muitas vezes, intervenções simples de telhado, de reboco, mas que
necessitavam de um conhecimento específico.
No fortalecimento do Iphan, o Programa apoiou ainda a produção de
inventários, normas, planos e manuais de preservação, a melhoria de
condições tecnológicas do instituto e a proposição de alternativas
institucionais para gestão do patrimônio cultural brasileiro. Foram 15
cidades apoiadas para elaboração de seus planos diretores no âmbito do
estatuto das cidades. Mais ou menos na mesma época, foram financiados
inventários de bens imóveis e normas de preservação para seis núcleos
protegidos.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 99

Conferência 2
Também gostaria de destacar, de forma geral, alguns avanços do
Programa. Primeiro, a tentativa inicial de uma efetiva ação integrada. Havia
muito conhecimento acumulado, mas não se havia logrado êxito nessa
tentativa de ação integrada com obras e ações de fomento. Algumas vezes,
essa tentativa teve grande impacto, noutras não. Verificamos que o
Programa foi muito mais bem executado nas pequenas cidades do que nas
grandes. Claro que nas grandes cidades os problemas são mais complexos e
também porque, nessas cidades, o Monumenta é apenas mais um programa,
enquanto nas pequenas ele é “o programa” – tem um peso muito maior
para os pequenos municípios. Por isso ele teve uma ação mais próxima da
planejada, em pequenas cidades como Icó, no Ceará, ou como em
Natividade, em Tocantins.
Outro grande avanço foi a ação de financiamento de imóveis privados,
que já foi muito falada como a primeira experiência e que está sendo
incorporada pelo Iphan, claro, dentro do PAC das Cidades Históricas, nos
Planos de Ação. A nossa meta é conseguir ter uma linha de crédito para
todas as cidades protegidas. É isso que estamos buscando. Hoje ainda não
é possível, temos de usar um instrumento, que é o conveniamento e o
lançamento de editais de seleção. Essa meta não é fácil; na verdade, é
complexa, mas é possível e vamos buscá-la.
99
Percebemos também o avanço das unidades locais, que nasceram como
unidades executoras do projeto – as UEPs. Em várias cidades, elas estão
maiores do que o projeto, o que é ótimo. É uma célula de gestão do
patrimônio cultural daquela cidade. Muitos dos coordenadores nos contam
que, muitas vezes, estraga um paralelepípedo ou qualquer coisa na cidade,
eles vão procurar a unidade do programa para resolver aquele problema,
porque aquela é a unidade local que cuida do patrimônio. Então, extrapolar
o limite do Programa é justamente o que se buscava ou, pelo menos, o que
se buscou no decorrer da sua execução.
Este é o primeiro Programa que consegue minimamente atuar de forma
integrada e coloca em prática várias das teorias que vêm sendo pensadas e
está servindo, ou serviu, como parte da elaboração do PAC Cidades
Históricas, dos Planos de Ação – que são o nosso passo além. Os Planos de
Ação são planos de desenvolvimento dos sítios, tendo o patrimônio como
eixo indutor do desenvolvimento das cidades. Não se trata mais de pensar
num perfil de um projeto para um convênio, trata-se de um planejamento
contínuo e que não se encerra, como qualquer bom planejamento deve ser.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 100

Vo l . 1

A VA L I A Ç Ã O D O P RO G R A M A
M O N U M E N TA
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Ana Lúcia Paiva Dezolt*

* Especialista em O relato sobre os 10 anos de execução do Programa Monumenta é muito


Gestão Fiscal e
Municipal / BID rico e se constitui na análise de um processo que contou com a participação
de vários especialistas oriundos dos vários níveis de governo, contribuindo
para o aperfeiçoamento e correções de rumo para sua plena execução. Em
suma, é um processo de construção conjunta, sedimentado atualmente no
Iphan, instância legítima para a sustentabilidade de suas ações, inserido
agora no Programa de Governo para o setor.
As conclusões obtidas sobre sua execução são o resultado de uma
avaliação independente contratada pelo Banco aos atores do Programa –
todas as unidades executoras, representantes do Ministério da Cultura, do
Iphan, da Unesco e da CAIXA. Dessa forma, foi possível obter uma visão
geral dos acertos e também dos erros, contribuindo para a construção e para
100
o aprimoramento da continuidade das ações de preservação e conservação
dos sítios e conjuntos históricos sob proteção federal.
Na linha de tempo do Programa, percebem-se, claramente, as
características da gestão nas diversas fases. Hoje, o Programa Monumenta
faz parte de uma política pública consolidada, contribuindo para a
implementação de ações de preservação, passando a ocupar seu espaço como
ferramenta de gestão.
A relevância concedida ao tema pelo Governo Federal criou sinergias e
a construção de parcerias para a otimização do uso dos recursos, uniu
esforços para objetivos comuns. Destaco, dentre várias, as numerosas ações
em conjunto com o Ministério das Cidades, Ministério do Meio Ambiente
e Ministério do Turismo e, ainda, com os Bancos de Desenvolvimento
nacionais. No mesmo sentido, o seguimento do Programa, a partir de 2004,
pela Casa Civil, lhe conferiu o destaque merecido. Este foi um ponto de
inflexão de sua execução, em que tanto os instrumentos de monitoramento
foram aprimorados, quanto a disponibilidade de recursos humanos e
financeiros.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 101

Debates
É importante destacar, que, neste momento, também acontece um
resgate da atuação do Iphan no Programa, uma reaproximação necessária
com a instituição que tem por missão o objetivo principal deste Programa.
Essa recondução se consolidou com a nomeação do coordenador nacional
do Programa para presidente do Iphan, acumulando os dois cargos e
promovendo, assim, sua internalização nesse Instituto. Tal solução se
mostrou a mais adequada, tendo em vista o impacto que uma mudança
operacional de tal magnitude, naquele momento, acarretaria na execução do
Programa, considerando-se um programa complexo e com tantos
subexecutores, mas fundamental para sua legitimação.
Inicialmente, faz-se necessário esclarecer qual era o contexto na época
de elaboração desse programa, em face dos resultados obtidos depois de 10
anos de execução.
O valor total do Programa era de U$ 125 milhões (50% de recursos
provenientes do BID e 50% de contrapartida governamental), com prazo
de execução, previsto, de cinco anos, e objetivo de atuar em sete sítios
históricos urbanos sob proteção federal. Atualmente, com 10 anos de
execução e a totalidade dos recursos financeiros comprometidos, verifica-se
que o Programa ampliou sua escala para 26 sítios históricos, quase quatro
vezes a sua meta. Ademais, o Programa foi implementado sob o arranjo 101
institucional previsto, de execução descentralizada de suas ações e, por
consequência, com todas as dificuldades inerentes à complexidade desse
modelo exigindo capacidade de resposta dos gestores em cada nível de
governo.
Além disso, o Monumenta proporcionou o desenvolvimento de
pequenas ações de fomento e educativas em todos os sítios históricos
federais do País, apoiando projetos propostos por inúmeras entidades da
sociedade civil, setor privado, fundações, dentre outras. Esta ampliação da
atuação do Programa objetivou aumentar a conscientização da população
sobre seu patrimônio artístico e histórico, agindo como agente catalisador
e difusor de informações, sendo que cada projeto específico agiu como um
promotor de novas ações.
Conclui-se, ainda, que em vários sítios históricos foram desenvolvidas
diversas iniciativas (feiras, festivais, festas e eventos), viabilizadas pelas
intervenções financiadas, gerando um ciclo virtuoso na economia local. Em
alguns deles, como Corumbá (MS) e São Francisco do Sul (SC), com
alocação de recursos superior ao que foi disponibilizado pelo Programa.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 102

Vo l . 1

Bastante ilustrativos são os exemplos de Cachoeira (BA) e Laranjeiras


(SE), com a construção de parcerias que resultaram na implantação de
cursos universitários na área protegida. Natividade (TO) também é um
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

destaque com a intervenção voltada ao uso rotineiro de sua população. Quer


dizer, o potencial turístico, ênfase no desenho do Programa, não é solução
para tudo. As características de cada um desses centros foram
detalhadamente estudadas, para que o projeto se voltasse para a vocação
local ou para a construção de soluções compatíveis com a sua estrutura.
Como mencionado acima, o Programa não havia sido desenhado para
atuar com um número tão grande de atores, apesar de, originalmente,
vários deles terem sido previstos com atuação direta de execução e/ou de
coordenação e monitoramento: a União, como mutuário e executor,
representada pelo Ministério da Cultura; o Iphan; a Secretaria do Tesouro
Nacional; a Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério do
Planejamento – Seain/MP; a Agência Brasileira de Cooperação – ABC do
Ministério das Relações Exteriores; os estados e municípios; a CAIXA; e a
Unesco. Com a universalização do apoio, via pequenos projetos de
fomento às cidades detentoras de sítios e conjuntos históricos federais, no
âmbito das chamadas Atividades Concorrentes, associaram-se à execução
inúmeras ONGs, fundações, associações e entidades do setor privado,
102 selecionadas via editais.
Ressalta-se, ainda, o papel da CAIXA, como agente financeiro do
Programa e parceiro na formulação e implementação do financiamento aos
imóveis privados nas áreas de projeto; e do apoio técnico e operacional da
Unesco, na qualidade de agência especializada.
Além do complexo esquema institucional para sua implementação, com
a atuação dos atores acima citados, durante esses 10 anos de execução houve
várias extensões de prazo e aditamentos de instrumentos legais. Para tanto,
a coordenação local, ademais de sua dedicação ao cumprimento dos
requisitos necessários à execução do Programa, também teve de lidar com
a multiplicidade de trâmites legais e burocráticos pertinentes a diversas
instâncias envolvidas em sua condução e monitoramento.
Essa sobrecarga de trabalho se inicia desde o momento do planejamento
e se perpetua durante a execução, pois as diversas análises documentais não
se dão simultaneamente, sendo este aspecto um dos principais responsáveis
pelo atraso significativo das ações do programa, em especial, nos projetos
apoiados pelos componentes das Atividades Concorrentes.
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Debates
Em um Programa com execução descentralizada, situações de
inadimplência, por parte dos municípios e estados, interrompiam o repasse
de recursos. Com o apoio do Tesouro, após anos de paralisações forçadas em
obras locais, foi possível se precaver de tais descontinuidades pela
transferência integral do valor da obra de restauro contratada à conta
específica do subprojeto, administrada pela CAIXA, de acordo com o
cronograma e medições da obra.
Numa análise ex post é fácil identificar tais dificuldades e refletir sobre
erros que porventura ocorreram, mas estes não se constituíram em simples
omissões, foram decorrentes de restrições na capacidade institucional dos
executores em lidar com uma gama tão diversa de situações, resultando em
um hiato entre o planejado e o executado.
Sobre a capacidade operacional dos executores, faz-se necessário enfatizar
a importância de contar com uma unidade de coordenação composta por
técnicos do quadro permanente, não apenas por se tratar de uma operação
de empréstimo, mas pelo aprendizado e memória institucional do executor,
voltada para a consolidação de uma política pública.
As Atividades Concorrentes abarcaram ações de fortalecimento
institucional, formação e treinamento, promoção de atividades econômicas
e programas educativos, sendo cada um desses componentes independentes 103
e complementares entre si. Foram apoiados pontualmente mais de 200
projetos sob a condução direta das entidades selecionadas via editais, com
dificuldades de gestão, seja pela distância e dificuldade de treinamento nas
normas e procedimentos do Programa, seja por sua capacidade institucional.
O esforço desse trabalho se justificou pela grande importância representativa
dessas ações para a disseminação e conscientização da população sobre nosso
legado histórico.
Sobre as Atividades Concorrentes cabem as seguintes reflexões:

FORTALECIMENTO INSTITUCIONAL
Originalmente, previa-se apenas o fortalecimento institucional do Iphan
(com a premissa de que ocorreria concurso público, o que aconteceu apenas
muitos anos depois), cujo plano de trabalho previa a disponibilização e
modernização das ferramentas de trabalho e a elaboração de inventários e
manuais. No entanto, com um arranjo institucional tão complexo do
Programa, com tantos subexecutores demandantes de apoio, o plano de
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 104

Vo l . 1

trabalho foi readequado para atender às necessidades do Ministério da


Cultura, para contar com ferramentas de gestão, e dos municípios, na
formação de sua equipe e de sua estrutura física.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Apesar de ter um regulamento operativo muito detalhado, no que tange


a normas e procedimentos, faltava, na estrutura institucional do Programa,
instruções quanto aos fluxos internos de tramitação, principalmente a
clareza de papéis relacionada a cada uma das funções desempenhadas.
Aliado a isso, o fato de os integrantes da unidade de coordenação não serem
do quadro permanente do Ministério da Cultura, não havendo uma
tradição e conhecimento prévio do trabalho burocrático requerido, fez com
que a coordenação nacional trabalhasse com um quadro técnico de alta
rotatividade (composta por consultores e funcionários oriundos de concurso
temporário), provocando descontinuidades, atrasos e retrabalho.
Destaca-se que era a primeira vez que o Ministério obtinha a gestão de
uma operação de empréstimo, da mesma forma que vários dos municípios
contemplados, mesmo que na qualidade de subexecutores. Além disso,
como se trabalhou com executores diretos, nos três níveis de governo houve
transições de governo a cada dois anos, impactando no ritmo de sua
implementação.
104
Dessa forma, a capacitação das equipes técnicas exigiu um esforço
contínuo de formação, uma vez que se modificavam constantemente.
Adicionalmente, foi dificultada a oportuna oferta de eventos de intercâmbio
entre equipes. Ao todo, aconteceram apenas seis eventos nacionais, número
aquém do desejado, tendo em vista o ganho em potencial promovido pelo
compartilhamento de experiências e soluções.

FORMAÇÃO E TREINAMENTO
Programado, em sua origem, para atender a três núcleos de restauro e
conservação, optou-se, adicionalmente, pela realização de cursos
descentralizados. Com esta estratégia, houve o resgate de grande variedade
de técnicas construtivas, com especificidades regionais, conduzidas por
mestres artífices, reconhecidos, que puderam formar mão de obra local.
Nesse sentido, o programa passa a representar um diferencial na
disseminação de técnicas de restauro e conservação, aproximando o gestor
local e empresas da região para o aperfeiçoamento do trato do patrimônio.
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Debates
PROGRAMAS EDUCATIVOS
Neste componente, as ações foram planejadas para promover grandes
campanhas e produtos de mídia. No entanto, houve um redirecionamento
para todos os sítios históricos federais sob uma ótica de formação e fomento
de produtores locais, pesquisas históricas e uma linha editorial do Programa
focalizada em boas práticas, intervenções de sucesso, estudos de interesse
para o setor.
É de suma importância que o acervo gerado por tantos projetos e
iniciativas, dentre elas pesquisas; festas e feiras populares; roteiros turísticos
e rotas históricas etc., seja trabalhado para sua difusão em âmbito nacional.

PROMOÇÃO DE ATIVIDADES ECONÔMICAS


Neste componente, procurou-se dar ênfase a novos nichos econômicos,
resgatando vocações locais, na mesma modalidade de execução via editais
de seleção de projeto, voltados a todos os sítios históricos sob proteção
federal.

INVESTIMENTOS INTEGRADOS
Neste componente, concentram-se as grandes intervenções do programa, 105
o maior aporte de recursos financeiros. A primeira consideração que deve
ser feita é sobre o demasiado tempo e o alto custo de elaboração dos
subprojetos. Os projetos eram extremamente complexos e se iniciavam,
apenas, quando todos os pré-requisitos estavam completos, gerando um
hiato de tempo muito grande entre a chegada do Programa na cidade e seu
efetivo início, acarretando a desmotivação da população local, que não viu
resultados antes de passados três anos.
Entende-se esse fato como um erro de desenho, pois o hiato entre a
preparação e a execução provocou o descrédito do Programa na cidade,
exigindo maior esforço para sua recuperação. No caso do Programa
Monumenta, a credibilidade era de fundamental importância para que o
plano de revitalização realmente ocorresse nas áreas de projeto, pois um dos
principais instrumentos para que tal objetivo se concretizasse era a
recuperação dos imóveis privados existentes. Tal recuperação se daria de
acordo com a atratividade do instrumento de empréstimo, voltado para
pessoas físicas e jurídicas, cujos recursos deveriam ser utilizados para
restauração e conservação de suas casas e estabelecimentos comerciais.
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Vo l . 1

Atualmente, há o reconhecimento da importância e do mérito do


Programa, com dezenas de monumentos recuperados, e em uso, e centenas
de financiamentos concedidos. Ainda assim, teria sido uma ferramenta de
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

sensibilização dos gestores e da população, o início paulatino das atividades


nas áreas de projeto, ou mesmo, a escolha de uma intervenção emblemática
na cidade para mostrar o potencial do Programa, promovendo rapidamente
sua credibilidade no potencial de reabilitação de um sítio histórico.
Outra lição aprendida se concentra na demanda sobre a maior presença
do Banco em todos os interlocutores do Programa, principalmente na fase
preparatória dos subprojetos, quando não há familiaridade com as normas
do Banco e há dificuldades na interpretação de procedimentos. A previsão
de não participação do Banco nessa fase e a demora na formalização dos
subexecutores geravam insegurança para o gestor local. Essa era uma fase
prévia à efetiva elegibilidade ao uso dos recursos do financiamento, que
apenas podia ocorrer quando se cumpriam todos os pré-requisitos
metodológicos e legais, estabelecidos no Regulamento Operativo do
Programa.
Quanto à avaliação econômica adotada, pecou-se por não se
dimensionar o efeito multiplicador da revitalização do sítio histórico. A
106
ênfase da avaliação era na valorização imobiliária, no fluxo turístico, nas
bilheterias, entre outros, com medição de impacto concentrada em dados
primários, que são operacionalmente caros e sem garantia de permanência
das fontes de consulta.
Pode-se citar o sítio histórico de Lençóis (BA) como exemplo. O foco da
avaliação econômica foi na valorização imobiliária, mas como o Programa
de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste – Prodetur interviu na cidade
antes que o Monumenta, a esperada valorização já havia ocorrido, não se
determinando mudanças significativas nos preços relativos, diante da
presença do Programa na cidade. Dessa forma, o valor máximo elegível do
subprojeto, com todas as intervenções em seu sítio histórico, que
dependiam do resultado dessa avaliação econômica, foi extremamente
baixo, gerando retrabalho e medidas corretivas para um plano de trabalho
coerente com a importância desse sítio histórico.
Finalmente, descrevo o esforço na construção de um instrumento
jurídico que viabilizasse o financiamento de imóveis privados nas áreas de
projeto. Nesse sentido, pode-se fazer uma forte crítica ao desenho do
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 107

Debates
Programa, que condicionou 30% dos recursos alocados nos subprojetos
para essa finalidade, mas que sua operacionalização dependia de um
instrumento que não estava maduro e que precisou de cinco anos para sua
finalização.
Por outro lado, como já ressaltado, atualmente existem centenas de
financiamentos de imóveis privados concedidos e o consenso de que este
instrumento jurídico é o meio mais adequado para se utilizar recursos de
financiamento externo, para áreas protegidas, de forma ágil, porque o objeto
de gasto, neste caso, não é a obra civil e sim o financiamento.
Portanto, na construção desse instrumento, foi necessário realizar um
processo de convencimento sobre sua viabilidade, identificar o agente
financeiro e sensibilizar a população. Formalizados os primeiros
financiamentos nas áreas de projeto, com vários monumentos já
recuperados, o efeito demonstração foi imediato, revelado pela imensa lista
de proponentes a essa modalidade de financiamento.
Associado a financiamento de imóveis privados está o retorno desses
recursos a fundos locais de preservação. Sua operacionalização ainda se
constitui um desafio e deverá ser tema de muita reflexão, pois a lógica de
sustentabilidade das ações de conservação nos municípios se pautou na
plena atividade destes. 107

Este artigo não exprime necessariamente a opinião do Banco


Interamericano de Desenvolvimento – BID.
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Vo l . 1

A CAIXA E O A P O I O À C U LT U R A E
À P RO T E Ç Ã O D O PAT R I M Ô N I O
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Carlos de Faria Coelho de Sousa*

*Gerente de Padrões A Caixa Econômica Federal tem a missão de atuar na promoção da


e Planejamento da
Gerência Nacional
cidadania e do desenvolvimento sustentável do Brasil, como instituição
de Assistência financeira, agente de políticas públicas e parceira estratégica do Estado. Em
Técnica da Caixa
Econômica Federal
uma história de 149 anos, diversificou a missão e ampliou a área de atuação,
consolidando-se como empresa pública eficiente, focada na
responsabilidade social e empresarial.
Em constante compromisso com a memória e a cultura do Brasil, realiza
diversas ações de apoio à cultura e à proteção do patrimônio, tanto com
iniciativas próprias, quanto conjugadas com ações de órgãos do Governo
Federal, como o Ministério das Cidades e o Ministério da Cultura.
A atuação da CAIXA na área da preservação do patrimônio cultural
ocorre nos seguintes eixos:
108
• Reabilitação de imóveis para instalação de unidades e Conjuntos
Culturais da CAIXA;
• Apoio à reabilitação de imóveis de valor cultural;
• Desenvolvimento de metodologia de reabilitação urbana nos estados
e municípios;
• Contratos de repasse para apoio ao desenvolvimento de planos e
projetos de reabilitação urbana;
• Concessão de financiamentos e repasses de recursos, para restauração
e reabilitação de imóveis públicos e privados.

REABILITAÇÃO DE IMÓVEIS DA CAIXA


A CAIXA restaurou e reabilitou diversos imóveis de valor histórico, para
uso como agências, edifícios administrativos e espaços culturais. Como
exemplo, citamos o edifício São Luís, em São Luís (MA), que tem a maior
fachada de azulejos do país, em estilo colonial, restaurado para abrigar a
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 109

Debates
Superintendência Regional da CAIXA. Outro exemplo é a CAIXA Cultural
de Salvador, instalada na antiga Casa de Orações dos Jesuítas, edifício de
mais de trezentos anos. Em Recife, o antigo prédio da Bolsa de Valores de
Pernambuco e Paraíba, localizado na praça do Marco Zero, está sendo
restaurado para abrigar a Caixa Cultural.

APOIO À REABILITAÇÃO DE IMÓVEIS


O apoio à reabilitação de imóveis de valor cultural ocorre por meio do
Programa de Revitalização do Patrimônio Histórico e Cultural Brasileiro.
O programa patrocina instituições culturais com atuação pública,
objetivando o desenvolvimento de ações de preservação e exposição dos
acervos. Entre os beneficiados, estão o Museu Nacional de Belas-Artes e o
Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro; o Museu da Inconfidência,
em Ouro Preto; e o Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira, em
Salvador.

PROGRAMA DE REVITALIZAÇÃO DE SÍTIOS HISTÓRICOS


– PRSH
No ano 2000, a CAIXA lançou o PRSH, objetivando contribuir para o
desenvolvimento da política nacional de reabilitação urbana de sítios 109
históricos, visando à preservação do patrimônio cultural nacional e à
redução do déficit habitacional brasileiro, recuperando um estoque
imobiliário em desuso e garantindo condições de habitabilidade para a
permanência das famílias residentes nos centros históricos.
O PRSH estabeleceu como premissas, além da manutenção das famílias
moradoras nos sítios históricos, atrair novos moradores para os imóveis
desocupados, contemplar imóveis de uso misto, preservar as características
dos imóveis e buscar parcerias para projetos de geração de trabalho e renda,
como forma de manter a população de baixo poder aquisitivo na área e de
possibilitar a manutenção dos imóveis recuperados.
No escopo do PRSH, foram concedidos financiamentos para a
restauração e a reabilitação de imóveis, por meio do Programa de
Arrendamento Residencial – PAR e do Programa Imóvel na Planta, em
cidades como Belém, Pelotas, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo,
Salvador, São Luís, entre 2002 e 2006, totalizando mais de 1.400 unidades.
Em alguns empreendimentos, foram utilizados recursos do mecenato.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 110

Vo l . 1

DESENVOLVIMENTO DE METODOLOGIA DE
REABILITAÇÃO URBANA
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Em 2001, a CAIXA firmou Acordo de Cooperação Técnica com o


Governo Francês, o qual objetivou o intercâmbio de conhecimentos e
experiências sobre a implantação de projetos de reabilitação urbana de sítios
históricos, proporcionando a adequação de metodologias e instrumentos
que tenham como objetivo a busca de soluções para a permanência de
moradores de baixa renda dessas áreas, a melhoria das condições de
habitabilidade das edificações e a preservação do patrimônio cultural.
Foram realizadas mais de cem missões de curta duração de técnicos
franceses e brasileiros às cidades apoiadas pela cooperação técnica, com o
apoio ao desenvolvimento de projetos. Entre as cidades beneficiadas,
estão: Aracaju, Araçuaí, Belém, Fortaleza, João Pessoa, Natal, Pelotas,
Pirenópolis, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Sabará, Salvador, São
Luís, São Paulo e Vitória. Também foram realizadas missões de curta
duração de técnicos e autoridades da CAIXA, do Governo Federal e
Prefeituras à França.
Na primeira fase da cooperação, a troca de experiências tinha como
objetivo, nos diversos órgãos públicos, a difusão do conceito de
110
reabilitação urbana de áreas centrais, incluindo a recuperação de imóveis
para uso habitacional. Foram desenvolvidos estudos de viabilidade de
imóveis, dentro de Perímetros de Reabilitação Integrada (PRI), como
método de ação conjunta de diversos atores. Também foram
desenvolvidos estudos de demanda habitacional para essas áreas, ateliês
participativos e seminários de sensibilização do setor da construção civil.
Os trabalhos desenvolvidos nesta cooperação subsidiaram a contratação de
operações de financiamento.
A partir de 2003, o Ministério das Cidades passou a integrar a
cooperação. Esse trabalho subsidiou a modelagem do Programa de
Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais, da Secretaria Nacional de
Programas Urbanos.
A cooperação contribuiu para a articulação das estratégias de ação, em
que os projetos evoluíram dos estudos de reabilitação de imóveis para
estudos consolidados dos bairros, bem como a inclusão dos planos setoriais
nas estratégias urbanas de algumas das cidades envolvidas.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 111

Debates
APOIO AO DESENVOLVIMENTO DE PLANOS E
PROJETOS DE REABILITAÇÃO URBANA
A CAIXA operacionaliza o Programa Reabilitação de Áreas Urbanas
Centrais, do Ministério das Cidades, onde são disponibilizados recursos
para apoio à Elaboração de Planos de Reabilitação de Áreas Urbanas
Centrais de Capitais e Municípios, e apoio a Projetos de Infraestrutura e
Requalificação de Espaços de Uso Público em Áreas Centrais.

PROGRAMA MONUMENTA – BID


No ano 2001, a CAIXA assinou contrato de prestação de serviços para
o Programa de Preservação do Patrimônio Histórico Cultural Urbano –
Monumenta, com o Ministério da Cultura, pelo qual são realizados repasses
relativos a investimentos integrados em áreas de projeto. Entre 2005 a 2009,
foram repassados mais de R$ 112 milhões.
O objetivo do Programa Monumenta – BID é a execução de ações para
a preservação de sítios históricos urbanos prioritários, aumentando o
conhecimento e a valorização do patrimônio histórico brasileiro, e
amplificando o uso econômico, cultural e social dos sítios restaurados.
No Programa, cabe ao Ministério da Cultura a seleção das operações 111
para contratação, bem como a análise e aprovação da elegibilidade do
projeto e da contrapartida.
O Programa traz diversos conceitos inovadores, entre eles, a ação
integrada de diferentes entes públicos e iniciativa privada. Como o
programa atua em um perímetro de projeto, traz benefícios tanto para
edificações tombadas, quanto não tombadas. Também é inovador ao trazer,
além das obras na infraestrutura e obras de recuperação e restauração de
bens tombados, ações de fortalecimento institucional, promoção de
atividades econômicas, capacitação de artífices e de agentes locais de cultura
e turismo, e educação patrimonial.

PROGRAMA MONUMENTA – IMÓVEIS PRIVADOS


Devido à grande capilaridade e expertise da CAIXA, na concessão de
financiamentos, em 2004 foi celebrado novo contrato com o Ministério da
Cultura, para a operacionalização do Programa Monumenta na modalidade de
financiamento para Imóveis Privados, criada para ampliar as ações do Programa.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 112

Vo l . 1

O Programa Monumenta – Imóveis Privados tem condições especiais


de financiamento como taxa de juros zero, opção de garantia tipo caução e
retorno dos recursos dos financiamentos para os Fundos Municipais de
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Preservação.
A CAIXA participou da formatação do Programa, tendo recebido
diversas demandas específicas, entre elas, a contratação sem seguros, a
contratação sem limite de idade e a ausência de penalidades para
inadimplentes, bem como a aceitação de garantias não utilizadas em outros
financiamentos habitacionais.
Como agente operador, a CAIXA é responsável por prestar serviços
técnicos e operacionais necessários à viabilização dos financiamentos,
compreendendo as análises pré-contratuais, a contratação, a transferência de
recursos para os mutuários, o recebimento do retorno dos financiamentos
e as transferências dos recursos do retorno aos Fundos Municipais de
Preservação.
A participação na operacionalização do Programa Monumenta é uma
das principais ações da CAIXA na proteção do patrimônio cultural
brasileiro.

112
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:09 PM Page 113

Debates
A VA L I A Ç Ã O D O P RO G R A M A
PELA UNESCO

Jurema Machado*

*Coordenadora de
Como as exposições de Robson Antônio de Almeida e de Ana Lúcia Cultura –
Paiva Dezolt, além de descrever, já fizeram uma pré-avaliação extremamente Unesco/Brasil
qualificada de quem tem envolvimento visceral com o programa há muitos
anos, eu tentarei me concentrar nos pontos frágeis da questão, em minha
opinião. E faço isso à vontade, porque eu acho, particularmente, que a
avaliação do Programa é muito positiva. Feita esta ressalva, vou direto àquilo
que, talvez, não tenha funcionado ou não funcionou como deveria, para
pensarmos, inclusive, no que vem pela frente. Mas antes, uma recapitulação.
Até agora foi feita a descrição de um processo bastante estruturado que
conseguiu mobilizar não só as 26 cidades diretamente envolvidas, mas todo
o setor do patrimônio do país durante todo esse tempo. Há um papel
fundamental que temos sempre de lembrar: é a questão do empréstimo. O
empréstimo teve um valor muito maior, como impacto de uma forma de 113
trabalhar, um impacto de continuidade, do que propriamente o valor do
dinheiro. Acho que, no início, quando foi tomado, em 1999, foi bem
demonstrado que, muito mais que o recurso, o que valia era a regra.
Quando é que você consegue trabalhar por um período tão longo com uma
orquestração que vai do município ao governo federal, fazendo, mais ou
menos, a mesma coisa, com os mesmos critérios? Quer dizer, isso é um
programa que virou política pública, como está demonstrado pela
continuidade via PAC, com Planos de Ação, etc. Então, o empréstimo teve
um papel muito importante.
Tem-se que dar um crédito à Unesco também, pelo fato de os projetos
de cooperação sucessivos também garantirem um mínimo de continuidade,
de coesão, de coerência entre as coisas.
Os três pontos que elegi como mais frágeis, em relação aos resultados do
Programa, não têm diretamente a ver com esse problema inicial; é difícil
fazer um juízo de valor, dizer se é fragilidade, se é erro, porque tudo isso tem
de ser visto em uma perspectiva histórica; essas palavras ficam muito
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:10 PM Page 114

Vo l . 1

inadequadas, às vezes. Mas, acredito que o programa tinha erros,


deficiências, desde o início, em alguns aspectos da concepção. Eu,
particularmente, participei dele, em todas as condições: como cliente do
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

programa aqui, em Minas Gerais, preparando o projeto de Ouro Preto;


depois, como consultora, trabalhando na equipe do programa,
especialmente na época da formulação, do detalhamento, porque a
formulação é anterior; e, por último, na Unesco, acompanhando a
execução.
Essa visão eu consegui acompanhando o Programa ao longo do tempo.
E acredito que, desde a fase inicial, havia alguns equívocos, talvez, pela
entrada de um programa de cultura e patrimônio de um agente de
financiamento que não tinha essa tradição e tampouco o governo brasileiro
tinha a tradição de se relacionar com um banco de fomento para um objeto
dessa natureza. E quais são esses pontos? Do ponto de vista inicial de
concepção: acho que tinha uma decisão clara do Programa, isso me foi dito
textualmente, o foco estava no patrimônio urbano, nos sítios urbanos, mas
existia uma decisão clara de que o resultado pretendido era a revitalização
desse patrimônio, sem contribuir, necessariamente, para qualquer alteração
na estrutura urbana, era a lógica desses sítios, não era objeto ou resultado
pretendido pelo programa. O resultado pretendido era o patrimônio, mas
114 não, necessariamente, a cidade.
Por exemplo, o caso de Ouro Preto, que tem resultados muito
interessantes, mas é um dos projetos que poderíamos colocar na lista das
intervenções pontuais e pouco articuladas, porque o município tem uma
lista de bons projetos, mas eles não concorrem para um objetivo comum.
Na época em que participei da formulação inicial, nós tínhamos a intenção
de trabalhar na direção do Parque Vale dos Contos, aqui em Ouro Preto, e
foi aqui, na Barra, nessa região em que estamos hoje, que o centro começou,
não era como está hoje. Na época, alegávamos que era uma contribuição
para que a cidade criasse uma nova polarização dentro do centro histórico,
com vistas a reter e funcionar um pouco como uma descompressão daquela
área comercial mais densa da rua São José, e criar um anteparo para toda
essa expansão da cidade que está acima do morro do Gambá. Esse não é o
resultado pretendido pelo Programa, mudar a estrutura urbana, mudar a
forma como a cidade funciona. Talvez, no Rio de Janeiro, em São Paulo, isso
seja uma ambição, mas nas cidades médias não; mas talvez pudéssemos ter
trabalhado nessa direção.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:10 PM Page 115

Debates
Estava claro que o Programa não tinha essa ambição. O Programa tinha
uma visão, talvez, um pouco ingênua da questão da valorização imobiliária.
Todo mundo achava que essas áreas eram muito rígidas, do ponto de vista
de valorização imobiliária, porque não se consegue aumentar muito a área
construída. Então, apenas o uso não é capaz – e se é capaz, o é a muito
longo prazo – de promover essa valorização imobiliária e a mudança das
plantas de valores de IPTU e, portanto, gerar mais arrecadação. As cidades,
além de serem, em termos médios, resistentes, inertes mesmo, às mudanças,
para a valorização imobiliária, elas eram muito mal estruturadas, na sua
grande maioria, do ponto de vista da arrecadação, tanto de ISS quanto de
IPTU, então, isso não mudava nada. Tanto que, na prática, os perfis são um
tanto mentirosos, no sentido de que a intervenção será compensada, será
paga pela valorização.
Como já mencionou Ana Lúcia Paiva Dezolt, essa é uma visão muito
cientificista, tanto da intervenção quanto dos critérios, por exemplo, para
fazer especificações, para fazer manuais, para fazer seleção de bens a serem
protegidos etc. Tudo tem um excesso de cientificismo, em cima de um
objeto que não tem como não dar margem à subjetividade, a um juízo de
valor. Não vou me estender nisso, pois acho que esse aspecto tem um lado
bom, porque trouxe uma injeção de racionalidade num ambiente em que
as pessoas acham que a análise é a subjetividade e onde tem uma hegemonia. 115
Eu também acho que a subjetividade tem de ser avalizada por outros
parâmetros. Mas, a proposta do Programa era um enrijecimento disso.
Quando eu digo tudo isso, parece que eu não avalio bem os resultados, mas
não é isso, é porque, na verdade, acho que precisamos, daqui pra frente,
construir coisas cada vez melhor.
O que permitiu minimizar um pouco esses problemas iniciais e dar um
salto para chegar nesses resultados que vemos foi, na minha opinião,
basicamente, a mudança de governo, quer dizer, entrou uma equipe com
menos compromisso com aquele “desenho cartesiano” demais, do grupo
inicial, e havia recursos, porque no começo era só falação e nenhum
dinheiro. Só se gastava dinheiro e não havia receita; essa equipe, então, entra
com uma visão diferenciada e mais disposição de compartilhar com o Iphan,
coisa que até então não tinha acontecido. Acho que o que propiciou esse
salto foi a flexibilização do manual operativo em vários desses pontos que
citei, e o aprofundamento, de certa forma radicalização, da ideia de
compartilhar as ações do Programa. Toda a questão dos editais, por
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:10 PM Page 116

Vo l . 1

exemplo, e de formação era centralizada em Brasília e no próprio Iphan, e


isso é disseminado não só para os três centros de formação inicial, pensados
nesse prazo, para as 26 cidades com ações menores e até para cidades fora
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

do Programa. Isso vale para as ações de formulação, para o programa


educativo e para as atividades econômicas.
Essa ampliação dos instrumentos de compartilhamento – a abertura para
o urbano, que é uma abertura para uma visão de estratégia de intervenção
em ambiente urbano que foi, basicamente, traduzido pelo caos de
Cachoeira, das universidades – talvez seja uma das coisas de mais sucesso,
de resultados, que temos de comemorar no Programa.
Bom, e o que menos funcionou? Eu acho que o Iphan se aproveitou
muito mal, muito menos do que poderia, do Programa. Por todos os
problemas iniciais, mas, mesmo quando esses problemas estavam superados,
o Iphan utilizou pouco do Programa, em relação ao que potencialmente foi
pensado ou ao que estava previsto. Beneficiou-se sim, muito, no nível local,
com legitimidade, visibilidade, com uma relação íntima e colaborativa com
as Prefeituras e isso é impagável. Se o Monumenta não tivesse feito nada e
fizesse isso já estava de bom tamanho, os 150 milhões de dólares estariam
bem empregados. O que significa hoje esse auditório cheio? A qualquer
116
“sinalzinho” as pessoas se mobilizam; há uma rede de envolvimento de
Prefeituras nas cidades que é, realmente, o grande ganho do Programa.
E o Iphan ganhou com isso, muito no nível local: de afirmação, de
visibilidade, entre outros, pois era o Iphan que sempre fiscalizava,
embargava e chateava as pessoas e, dessa forma, passou a ter uma ação
proativa e uma ação que não só é do patrimônio edificado, mas também das
ações complementares. O Iphan passa, assim, a ser identificado pelas ações
complementares também, que foram muito importantes na concepção do
Programa e não apenas na intervenção física, mas havia a possibilidade dos
inventários e ela foi timidamente aproveitada, assim como a possibilidade
dos desenhos de acautelamento pelo próprio Iphan e da sistematização da
política de tombamento.
Em parte porque, inicialmente, era tudo muito complicado, mas
também porque existem divergências internas sérias, com relação ao que é
que tem de ser abordado nos inventários. E porque essa é uma opinião
muito pessoal minha; acho que o Iphan é muito resistente a qualquer coisa
que implique normalização, procedimentos, o que diz respeito ao
acautelamento, como a sistematização dos processos de tombamento.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:10 PM Page 117

Debates
É o que está acontecendo, é o que estamos vendo o Iphan fazer hoje a
cada novo tombamento proposto, por exemplo, e o Monumenta se
propunha a isso também: a ajudar, a organizar a política de proteção,
usando recursos do próprio Programa. Hoje, vemos claramente um desenho
traçado do ponto de vista de que áreas a suprir no território, a cobrir do
ponto de vista de representatividade, e que não estão contempladas; a cada
apresentação de um novo tombamento levada para o Conselho do
Patrimônio Cultural, do qual faço parte, o Departamento de Patrimônio
Material e Fiscalização – Depam apresenta, contextualiza aquilo ali em uma
política que está um pouco na memória, vamos dizer assim, no registro
quase oral do Departamento, mas que não foi ajudada pelo Programa e
poderia ter sido. A outra coisa que acho que falta é a questão do fundo.
Como dito antes por Ana Lúcia Paiva Dezolt, os modelos, hoje, são muito
heterogêneos, há o que funciona e o que não funciona. No início, quando
participei da formulação, achávamos que os desenhos das estruturas de
gestão, no nível do município, tinham de ser mais predefinidos, propostos
de cima para baixo, pelo Governo Federal.
Achávamos que não conseguiríamos fazer isso por adesão, mas criando
compromisso, queríamos que os municípios criassem formalmente
estruturas a, b ou c para poderem ter acesso ao programa.
117
Eu, particularmente, pensava assim na época. Isso não prevaleceu, não
tenho muita certeza se teria sido melhor ou pior, mas acho que da forma que
está hoje, estamos em um momento em que não podemos deixar que os
fundos de preservação só venham a se tornar realidade ao final do
programa. O Governo Federal não deveria deixar isso para uma “seleção
natural”, deveria preservar estudos melhores, pois alguns vão se perder no
tempo. Tinha que se fazer mais uma ação em cima disso, no sentido de
formalizar, dar algum instrumento, curso etc., mediante compromisso do
município. Dar mais consistência na dificuldade, estar mais presente,
adentrar as políticas de educação. Seria alguma coisa mais “de massa”; não
era para ser o que foi pensado inicialmente. “De massa” talvez seja exagero,
mas uma coisa mais massiva mesmo, que não seja o artesanato dos projetos
locais de promoção do patrimônio e educação patrimonial.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:10 PM Page 118

Vo l . 1

A VA L I A Ç Ã O D O P RO G R A M A
M O N U M E N TA P E L A U FBA
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Ana Fernandes*

*Professora da Em primeiro lugar, agradeço o convite para participar desta mesa.


Faculdade de
Arquitetura e
Cumprimentar pela realização do Fórum e, particularmente, por essa busca
Urbanismo da de avaliação de um programa que se tornou uma referência ou, talvez, mais
UFBA
que uma referência, uma presença em várias cidades brasileiras.
Em minha opinião, fazer uma avaliação implica considerar alguns
pressupostos. E eu tenho alguns para pensar em relação ao Monumenta.
Não fiz parte de nenhum projeto específico do Monumenta e nunca
pesquisei detalhadamente este programa. Na verdade, trata-se aqui de uma
tentativa de elaborar algumas questões para se discutir uma política pública,
como vem sendo feita em relação ao Patrimônio no Brasil.
O primeiro pressuposto é, sem dúvida, extremamente importante haver
políticas para a área do Patrimônio com mecanismos de financiamento
118 abrangentes e justos.
Esse pressuposto me leva, no entanto, a levantar desde já a questão de
onde se pensa essa política. E, parece-me, pensar uma política a partir do
financiamento, talvez, seja uma inversão de perspectiva. A política deve ser
pensada como objetivos a serem conquistados e que o financiamento é algo
que faz parte do processo de operacionalização dessa política. Mas a inversão
disso traz, talvez, uma série dos problemas que foram aqui apontados
inicialmente.
O segundo pressuposto é a importância, cada vez maior, da confluência
entre políticas para áreas de Patrimônio com suas especificidades,
evidentemente de configuração, de dinâmica de uso e de apropriação com
uma política urbana de forma mais geral (como acabou de indicar Jurema
Machado) e também com a política do meio ambiente. A meu ver, são as três
grandes políticas que vêm sendo elaboradas no âmbito do Estado brasileiro;
que confluem num espaço construído e na dinâmica urbana e são importantes
de serem pensadas em suas interfaces em suas interdeterminações.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:10 PM Page 119

Debates
E, por fim, acho que há também a questão da ampliação do Direito à
Cidade – um pressuposto básico, fundamental, de toda e qualquer política
com relação à cidade.
Além desses pressupostos, existe um reconhecimento, que todos aqui
foram muito enfáticos em falar, da importância que o Monumenta tem na
constituição de uma política para as áreas de Patrimônio no Brasil. Na
verdade, o Monumenta mais os planos diretores, as políticas de recuperação
de áreas centrais, as políticas de criação de Áreas de Preservação Permanente
– APPs etc. são políticas que, no que diz respeito à cidade, expressam algo
que me parece muito importante; é o que eu chamaria de uma
recomposição do Estado brasileiro.
Essa recomposição do Estado brasileiro foi atacada como uma versão
extremamente autoritária do Estado pela ditadura militar e completamente
fragmentada com a crise da segunda metade dos anos 80 e dos anos 90,
além de todo o ideário da reforma do Estado, baseada no neoliberalismo
que fazia com que o Estado fosse pensado como ente mínimo que deveria
regular os fluxos financeiros, os fluxos de investimento, única e
exclusivamente; isso retirou do âmbito do Setor Público brasileiro a
possibilidade de pensar projetivamente, prospectivamente e de propor,
portanto, políticas, de fato, para a cidade. 119
Além dessa questão da recomposição do Estado brasileiro, tem também a
ampliação de um espectro democrático, digamos assim, que tem como
referência um reconhecimento de um Brasil plural. Isso é, no meu entender,
algo também que vem sendo recorrentemente conseguido em diversas estâncias
e construído em todos os seus níveis, articulando as diversas esferas do Estado.
São várias as questões para discussão. Uma é a que Jurema Machado
apresentou e que acho importante reforçar: não dá mais para pensar em
investir em edifício. Essa é uma questão que como política pública já está,
de certa forma, resolvida através de mecanismos de financiamento. Quando
pensamos em áreas do Patrimônio, estamos falando de áreas extremamente
problemáticas do ponto de vista da dinâmica urbana.
Formular uma política de intervenção em áreas protegidas ou em áreas
de Patrimônio é ter a capacidade de reinserir essas áreas na dinâmica da
cidade. Na Bahia, acreditava-se que ao se investir numa edificação, esta
espraiaria um processo de valorização. Assim, investe-se em edifícios desde
os anos 70 e isso nunca deu certo.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:10 PM Page 120

Vo l . 1

Na verdade, o que existe na Bahia e principalmente em Salvador, é um


processo de acentuação contínua da crise do Centro. E essa crise, apesar, de
todos os investimentos, se aprofunda porque outras centralidades estão sendo
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

criadas. Enquanto não se articular a política para as áreas protegidas com a


política urbana da expansão, vamos continuar criando centros
recorrentemente esvaziados, com baixa dinâmica, com empobrecimento etc.
Em Salvador, temos o Centro Colonial extremamente problemático do
ponto de vista da dinâmica, mas temos o Centro do Comércio – um Centro
dos anos 60 – que está vazio.
Assim, ou pensamos nessa perspectiva, de articulação da política de
preservação com a política urbana e a de meio ambiente ou continuamos
tentando, mais como uma proposta de frustração, a médio e longo prazo.
O Estado brasileiro tem problemas de operação; acho que temos uma
herança da ditadura, dos controles, da corrupção, da tradição portuguesa,
do patrimonialismo, enfim, há várias heranças que tornam os sistemas de
controle de operação extremamente complicados.
Ao observar os dados do Monumenta, principalmente em relação aos
imóveis privados, pondero que, no início, havia 1.449 propostas que foram
classificadas nos editais e temos 165 obras concluídas, ou seja, 11,4% –
120
uma situação complicada. Considero que essa avaliação do Programa precisa
ser feita com a maior coragem. Resultados tão pequenos em relação ao
proposto originalmente não correspondem, muitas vezes, ao enorme esforço
que se faz para operar um programa.
Com essa avaliação é possível considerar esse primeiro período do
Programa Monumenta como um desbravamento e agora os problemas têm
de ser enfrentados. Ainda que pensemos nos 300 contratos que foram feitos,
isso significa 20% das propostas iniciais ou 34% das que permanecem, já
aumenta, mas, de qualquer forma, ainda é um valor pequeno em termos dos
objetivos.
Algumas questões que aparecem recorrentemente são problemas para o
agente financeiro. Esse ponto da operacionalização já foi abordado pelo
Carlos de Faria de Sousa.
Esses dados chamam mais atenção quando se trata de imóveis privados.
Quando se imagina que a esfera privada teria maior capacidade de execução
do que aquilo que fica basicamente na mão do Estado. No entanto, a
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:10 PM Page 121

Debates
questão está no processo de operação e atinge também o privado. Esse é
um longo campo a ser devastado.
Existem também problemas com o próprio processo de aprovação dos
projetos e aí o Iphan está diretamente envolvido. Nesse sentido, acho que
o processo de abandono que se fez no Iphan durante muitas décadas nesse
país é algo também extremamente importante de ser visto e que felizmente
é uma tendência que parece revertida. Essa tendência que parece revertida
significa contrapor-se também à ideia do Estado mínimo.
A ideia de que tudo vai acontecer fora do Estado significa que as ações
nunca serão contínuas porque vai depender de quem está oferecendo o
crédito. Vai depender da adesão desses ou daqueles setores da sociedade.
Isso faz com que o Setor Público, particularmente o municipal, esteja
absolutamente esvaziado e fragilizado. Acho complicada essa ideia de se
construir o tempo inteiro estruturas que, em nome da agilidade, devem
funcionar de forma eventual fora do aparato público propriamente dito.
Indago se na continuidade do Monumenta, as Unidades Executoras de
Projeto –UEPs devem ser pensadas como as instâncias de execução do
Projeto. Como o nome já diz: opera por projetos.
Da mesma maneira, os Planos Diretores têm gravíssimos problemas por
terem sido licitados nos municípios. Hoje, grande parte dos Planos 121
Diretores está nas gavetas porque não há capacitação técnica nos municípios
que possa executá-los.
Já se falou muito aqui da necessidade de capacitação, da necessidade de
adequação dos sistemas descentralizados para que os projetos possam
acontecer. E acho que isso é algo extremamente importante, assim como
acho que as empresas têm de ser capacitadas; não é só a população que tem
que reconhecer a importância do Patrimônio, se reconhecer nele e achar
que aquilo é importante para sua vida.
Existe uma cultura empresarial no Brasil que é brutal, feroz, cruel,
devastadora. E, em minha opinião, esse processo também deve ampliar,
portanto, a possibilidade de abrangência desses outros agentes.
Quero ressaltar a importância do pequeno crédito. Esse pequeno crédito,
57% dos contratos para imóveis privados, mostra que grande parte das áreas
preservadas ou das áreas protegidas ainda mantém uma população que dá
vida a esses centros.
ForumPatrimonioCap3:Layout 3 5/30/12 4:10 PM Page 122

Vo l . 1

No caso de Salvador, isso foi completamente extirpado dessa população,


mas acho que isso é um dado importante para leitura das áreas protegidas
que são feitas hoje, e é um elemento importante também da avaliação.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

E por último, pergunto sobre a continuidade do Programa, dado que


temos o PAC Cidades Históricas que traz em sua grande maioria o conjunto
de objetivos com os quais o Monumenta trabalhava. Por um lado, isso
significa que o Estado brasileiro reconhece esses objetivos como sendo
importantes para ação nas cidades brasileiras, no entanto, pelo que eu vi, o
PAC Cidades Históricas não contempla o fortalecimento institucional, que
me parece ser um dado absolutamente fundamental – capacitação de
artífices, agentes e Programas Educativos para o Patrimônio Histórico. Os
outros elementos parecem que estão contemplados.
O PAC Cidades Históricas tem uma missão muito maior. São 5.200
imóveis privados a serem feitos em 173 cidades até 2012, ou seja, em três
anos. Essa avaliação do Monumenta é, então, um dado absolutamente
fundamental para, inclusive, instrumentalizar de que maneira o PAC
Cidades Históricas vai ser feito. É extremamente importante se acautelar, e
isso foi dito também algumas vezes. Acautelar-se em relação ao turismo.
Na maioria das vezes, o turismo é absolutamente avassalador em relação às
122
cidades, em relação aos Centros.
O que o turismo justifica como processo de intervenção e de dilapidação
dos centros é, muitas vezes, assustador. Porque o turismo é o grande Godot,
é aquele que vai trazer todo desenvolvimento e toda mudança de dinâmica
urbana pra todas as cidades brasileiras nos próximos 50 anos.
Penso, mesmo, que é importante se acautelar com relação a isto, assim
como é importante pensar a ação dos centros históricos nesse próximo
período. Não só com relação a essa descentralização que vem acontecendo,
particularmente nas cidades médias e grandes, mas, com uma mudança de
investimento que começa acontecer em algumas cidades brasileiras, a
exemplo de São Paulo, que instituiu o projeto de Concessão Urbanística,
que tem por objetivo revitalizar as áreas degradadas da cidade. A primeira
concessão, a Nova Luz, está localizada no bairro da Luz, uma das áreas mais
deterioradas da região central.
No meu ponto de vista, esse instrumento chamado Concessão
Urbanística é dramático em termos do que é e do que significa o controle
do Estado sobre o Direito à Cidade, na medida em que você simplesmente
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Debates
terceiriza todo e qualquer processo de desapropriação, por exemplo, compra
de grandes quantidades de imóveis em áreas centrais.
Hoje em Salvador, nas pontas Norte e Sul, nós temos dois grandes
investimentos, um de hotelaria e o outro que não se sabe exatamente o que
será, mas são 50 casas compradas por um único empreendedor, uma
herdeira do Grupo Iguatemy, que pretende levar para lá, muito
provavelmente, um processo de gentrificação numa área que é
extremamente dinâmica do ponto de vista do uso de sua população.
Essas realidades têm de ser analisadas para se pensar também os
instrumentos necessários para se fazer frente a essas dinâmicas. Tem ainda
a questão de uma política fundiária que não está presente também em lugar
nenhum, quer dizer, o que fazer com grandes quantidades de área pública
que existem nessas áreas protegidas? Como se trabalha com esses estoques,
digamos assim, fundiários e imobiliários?
Considero de extrema importância que o Programa Monumenta, em
Salvador, aliado a várias outras ações, tenha conseguido interromper um
processo de expulsão da população do Centro da cidade. Com a mudança
de prioridades políticas, de equipe, e de entendimento do significado de
inserção na cidade, esse processo foi estancado. Uma negociação imensa de
todos os processos aos quais vocês já se referiram se estabeleceu. Embora não 123
se tenha conseguido abranger uma grande parcela e, ainda hoje, com ritmo
de execução extremamente lento, de qualquer forma, é simbólica a atuação
do Monumenta em Salvador.
Aliado a um movimento social ascendente naquela cidade que passava a
ter capacidade de voz de expressão, fez com que se interrompesse o ciclo
extremamente cruel em relação ao uso do Centro da cidade.
Portanto, finalizo e agradeço o Monumenta por isso, e cumprimento a
todos pelo comprometimento com a reabilitação desse Patrimônio que, sem
sombra de dúvida, é de todos nós.
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Vo l . 1
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

124
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Debates
125
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P RO G R A M A N A C I O N A L D E
F O M E N TO E I N C E N T I VO À
C U LT U R A

Evaristo Nunes*

RESUMO
Um panorama das formas de financiamentos vigentes e cuja base *Secretaria de
principal, hoje, é o Incentivo Fiscal. Revela um aumento vertiginoso na Fomento e Incentivo
à Cultura / MinC
ordem de investimentos na cultura a partir de 2002, quando os recursos
saíram da casa dos trezentos milhões para alcançar o patamar de quase um
bilhão de reais, em 2007. Esse aumento se deve tanto ao crescimento do país
e, consequentemente, de sua arrecadação e base tributária, como do próprio
crescimento e profissionalização do mercado cultural. Em contrapartida,
expõe a concentração dos recursos destinados à cultura, através da Lei
Rouanet, para a região Sudeste do país, em detrimento da região Nordeste.
Um problema de distribuição de recursos que o MinC pretende corrigir
através do Programa de Financiamento e Incentivo à Cultura – Profic. 127

PALAVRAS-CHAVE
Financiamento, Incentivo Fiscal, Cultura.

Em nome do secretário de Fomento, Roberto Nascimento, eu tenho o


prazer de poder compartilhar algumas informações e algumas impressões
sobre o sistema de financiamento que é baseado, hoje, muito fortemente,
no Incentivo Fiscal. Apresentaremos alguns números e discutiremos um
pouco sobre a locação numa série histórica, de forma que tentarei fazer um
corte metodológico para que a gente possa ter uma análise mais numérica
e financeira. Principalmente, porque estamos falando de financiamento,
não estamos falando de política, simplesmente do ponto de vista do
conceito, que é muito importante, mas que na hora da verdade as coisas
acontecem quando existe dinheiro em caixa para desenvolvê-las. Esse
planejamento financeiro depende muito da análise dos números, capacidade
que identifico como outro grande avanço do Estado brasileiro na gestão
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Vo l . 1

Juca Ferreira. Trata-se da capacidade de desenvolver uma análise mais


acurada sobre os números da cultura e parar de discutir somente em bases
conceituais, tendo, de fato, números para fazer uma discussão em nível
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

adequado quando o assunto é financiamento.


Faremos essa abordagem, e faço questão de mencionar a data porque,
para nós, é muito importante o fechamento dessas datas, uma vez que os
números, normalmente, só fecham em março do ano seguinte. Talvez, não
satisfaça a todas as perguntas que vocês, por ventura, tenham,
principalmente porque vou me concentrar mais na análise do patrimônio,
versus a nova Lei Rouanet e o Programa de Financiamento e Incentivo à
Cultura – Profic.
O projeto ainda não está no Congresso, mas está quase. Será entregue na
Câmara dos Deputados e, a partir desse momento, as discussões tomam
um rumo parlamentar, não só o rumo que nós já tivemos, já que, em
registro, foi a primeira vez que uma lei desse porte foi discutida tão
amplamente com a sociedade na área da cultura. É importante que os
senhores acompanhem a discussão dessa lei na Câmara dos Deputados
porque ela é central, afirmo, para os próximos vinte anos de financiamento
com recursos federais para cultura do país.
128 Estamos falando de uma série histórica de 2002 para frente, quando
saímos de um patamar de trezentos milhões, ao ano, de incentivos fiscais,
e não estou falando de renúncia, é só uma questão técnica, é capacitação de
recurso, que no caso do patrimônio é a mesma coisa, mas em algumas outras
áreas não é. Então, nós temos uma subida vertiginosa que acompanha “n”
fatores do país, desde seu crescimento, porque se aumenta a base de
arrecadação aumenta também a base tributária, e se aumenta a base
tributária aumenta a capacidade das empresas de alocar recurso. Mas,
também, é o próprio desenvolvimento do mercado cultural. Essa
alavancagem, portanto, é reflexo de vários fatores; um deles é o crescimento
da tributação e da economia, as duas coisas ao mesmo tempo e, talvez, mais
decisivamente da profissionalização da cadeira cultura.
Saímos de trezentos e poucos milhões, em 2002, e chegamos em 2007 ao
patamar de quase um bilhão de reais, claro que não estamos adicionando os
valores da lei do audiovisual, se não chegaríamos a um bilhão e cem, em 2007,
e chegaríamos, no ano de 2008, próximo de novecentos e oitenta milhões.
Um bilhão é um dado contábil, estamos na casa dos seiscentos milhões que
já é mais do que dezembro do ano passado, se comparado mês a mês.
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Os dados mostram a relevância que isso tem para a economia do país
porque um bilhão de reais é um bilhão de reais em qualquer lugar do
mundo, não é um número desprezível em nenhuma escala econômica, em
nenhuma escala industrial, pensando indústria no sentido de setor
econômico. Então, pensar sobre esses números, não é pensar de forma
amadorística, sem capacidade de análise, porque todo subsídio, que por
definição conceitual em economia é regressivo se laissez faire, laissez aller,
laissez passer acontecer. Se deixarmos que os agentes do mercado ajam
sozinhos... subsídio é regressivo, ele é concentrador. E se a concentração é
naturalizada piora tudo, porque a concentração vai gerando mais
concentração, uma vez que os agentes de mercado se acostumam com as
regras do negócio e vão criando as próprias defesas.
Só para vocês terem uma ideia, vou dar um exemplo: 3% da base de
captadores na Lei Rouanet no tempo captaram 80% dos recursos. Então,
significa dizer que três para oitenta é mais do que a desigualdade de
Bangladesh ou do Zimbábue. Isso não tem sentido porque ninguém, na
verdade, usou esses números com propriedade, eu estou falando ninguém
que significa todos nós, ninguém usou isso como a ferramenta de gestão
adequada. E eu considero o Profic uma ferramenta poderosíssima para
juntar conhecimento estatístico até, com o dinheiro e com a legislação
adequada para isso, para poder alavancar questões muito relevantes para a 129
sociedade brasileira e desapaixonadamente. Isso é o mais importante porque
nós estamos falando de recursos públicos e que precisa ter uma análise mais
adequada.
O Sudeste já tinha, em 2002, uma preocupação bastante avantajada
diante das demais regiões e isso vai ficando cada vez mais dramático. Cada
ano que passa nós subimos um ponto percentual ou dois pontos percentuais
de concentração no Sudeste. Claro que isso vai ter um fim, mas esse fim
pode ser a própria morte do sistema. Então, dadas as regras de partida, hoje,
do sistema de incentivo federal baseado em incentivos fiscais, nós tendemos
a um modelo absolutamente concentrador e injusto do ponto de vista
redistributivo.
Estou usando umas palavras bonitas assim, meio economês, mas eu gosto
de fazer isso sabe por quê? Porque a gente se esconde muito na área da
cultura com os nossos conceitos culturais, esquecemos que existe um lado
econômico nessa cadeia que precisa ser olhado como economia e, reitero,
tem que ser olhado como economia mesmo. Não economia no sentido
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Vo l . 1

ruim da palavra, mas nos efeitos que isso traz, os efeitos danosos ou
benéficos, a sistemalidade positiva e negativa.
|

Esse processo concentrador acontece tanto em nível regional, quanto


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

estadual, e em nível dos proponentes e nos projetos que ficam cada vez
mais caros e superfaturados. Calculo que 55% dos projetos estão acima do
valor de mercado e eu posso provar isso com dados estatísticos. Tudo isso
gera uma economia de regressividade muito grande. Esses dados reforçam
que não tem sentido o Norte apresentar 1% dos recursos, menos de 1%.
Aliás, o Norte nunca chegou a 1%. Então, não tem sentido, sob nenhum
aspecto econômico, cultural, social, você concentrar 80% no Sudeste do
país e, apenas, 1% na região Norte. Não existe nenhum paralelo nem de
produção, nem de PIB, nem de população, nada justifica essa
concentração. Por quê?
Porque nós estamos falando de uma coisa laissez faire, laissez aller, laissez
passer. É uma coisa que não tem, é desprovida de mecanismo de regulação,
não há regulação nesse mercado, é um mercado completamente
desregulamentado. Então, isso é muito complicado porque gera distorções
muito graves e essas distorções podem até ser boas no varejo, porque se
reformou um prédio específico ou se construiu um centro cultural naquele
130
ponto do país, mas, do ponto de vista sistêmico, é extremamente
inadequado para o desenvolvimento cultural do país.
Temos um quadro de distribuição das áreas culturais clássicas, muito
bem, eu sei que tem várias críticas sobre essa classificação, mas é essa que está
na Lei 8.303, na Lei Rouanet e mais a classificação que o Ministério adotou,
por um tempo, mas que vai mudar, com certeza.
Mas, para se ter uma ideia, 19% dos recursos foram para artes cênicas e
20% para a música; o patrimônio cultural ficou com 16% desse montante,
de 2002 a 2009, pegando uma série histórica mais presente. Então, há certo
equilíbrio, o que não significa, necessariamente, um equilíbrio entre
necessidade x financiamento. Esse número tem que ser olhado de forma
bastante crítica porque se olharmos o audiovisual, por exemplo,
constataremos que ele consumiu 11%, mas o que consome nas outras áreas
específicas revela que teve um consumo maior e, assim, toda a parte de artes
visuais. A área das artes integradas consumiu 14%, número que é superior,
por exemplo, ao da área de humanidades. Isso parece um número só, mas,
sob o ponto de vista das necessidades que são geradas na sociedade, se pegar
o quadro inverso, que seria o quadro de demanda da sociedade x capitação,
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 131

Mesa-redonda 1 | SNPC - Instrumentos e formas de financiamento


percebe-se uma desproporcionalidade muito grande, exatamente, por causa
da produção que é desproporcional mesmo, ela não é simétrica.
Quanto ao patrimônio: façamos um corte no patrimônio,
especificamente, apesar daquela curva vertiginosa que nós vimos lá no
começo, ele não tem essa curva vertiginosa como acontece de 2005, 2007
e 2008. Então, é como se eu tivesse congelado, basicamente, as arrecadações
em incentivo fiscal. Eu estou mostrando aqui Incentivo Fiscal, não estou
mostrando o Fundo Nacional de Cultura. Estou mostrando,
especificamente, o Incentivo Fiscal que as pessoas costumam chamar de
mecenato, mas nós não usamos mais essa palavra porque ela tem uma
conotação muito inadequada para o perfil da lei. Seria mecenato, se o
empresário realmente colocasse dinheiro dele, como ele não coloca, isso é
incentivo fiscal.
Se o avaliador de política pública olha o lado crescente e olha que não
há um crescimento de patrimônio, tem que se ver exatamente se o
patrimônio está estagnado do ponto de vista de necessidades para ter parado
tanto aqui. A minha interpretação pessoal é que houve uma acomodação
dos agentes de mercado, houve uma acomodação tanto dos financiadores,
quanto dos captadores. Ou seja, as pessoas captaram exatamente o que
tinham de portfólio, e os financiadores estabeleceram um teto em que eles 131
iam entrar no mercado e, como são poucos os grandes players desse negócio,
acabou estabilizando, tendo a queda natural de 2008, por causa da crise.
O que significa patrimônio cultural em termos de segmentos internos?
A parte arquitetônica do patrimônio ficou com 63% de todos os recursos
e, por exemplo, o acervo ficou com 5%. Ao comparar essas duas coisas,
convenhamos que, na pior das hipóteses, elas são complementares. Não dá
para pensar muito, não sei, sou um completo leigo em patrimônio, por
favor, me critiquem, mas não dá para pensar muito em criar demais
estruturas físicas, sem a correspondência de acervo adequada para manter
esses espaços. Não vejo muito sentido em gastar 63% em arquitetura e 5%
em acervo, e eu estou me referindo a uma série histórica de sete anos. Não
estou usando um ano só, um ponto fora da curva. Por exemplo, gastou-se
próximo de 0% em cultura afro-brasileira, 3% em artesanato e folclore. O
pessoal lá do Museu do Folclore, do Rio de Janeiro, deve odiar esse número
absurdo, e em arqueologia foram gastos 3%.
Vejo que o nível de desproporção é tamanho porque os agentes, refiro-
me a todo mundo, ou seja, nós, os proponentes, os técnicos do Iphan,
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Vo l . 1

todos, se acostumaram a naturalizar essa concentração. E isso significa não


só criar um sistema que deixa tudo passar, como também naturalizar a
reação que o mercado tem diante de cada tipo de projeto. O resultado é
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

que os projetos estão ficando cada vez mais parecidos, atingindo as mesmas
coisas e privilegiando os mesmos segmentos e isso é muito grave. Por isso,
é necessária uma análise adequada, daqui para frente e, quando vier o Profic
e o Fundo, temos de olhar os números e enxergar neles um subsídio, um
insumo importantíssimo para a definição, num longo prazo, além de pensar
qual é a estratégia de financiamento que o país quer para a sua área cultural.
Ficou meio desproporcional, como vínhamos apontando, a captação de
recurso por região do patrimônio. O Sudeste ficou com 70% dos recursos
de patrimônio, enquanto o Centro-Oeste ficou com 3% e o Norte ficou
com 2%. O Norte, pelo menos, ficou com 100% a mais do que na média.
Mas assim, o Nordeste ficou com 11%. Eu não sei, eu sou nordestino e fico
muito incomodado com esse número, porque acho que não é 11% do
patrimônio histórico brasileiro que está no Nordeste, é muito mais do que
isso. Nenhum demérito, obviamente, Sudeste ter dinheiro, mas, no Norte
é muito pouco, é completamente inadequado esse número. Ele não se
justifica por motivos históricos, por motivos de patrimônio tombado e,
enfim, se você colocar qualquer base para cruzar esses índices, não encontra
132 justificativa plausível.
Mas, afirmo novamente que isso se deve porque é um modelo que se
deixa dominar pelo laissez faire, laissez passer e isso é muito grave. Veja,
laissez faire, laissez passer é um conceito do século XVII e a gente continua
aplicando como se fosse a solução, nossa pedra filosofal e não é. Não pode
ser, o Estado não pode ficar ausente dessa estrutura, o Estado e a sociedade
não podem ficar ausentes de uma discussão adequada sobre esse tipo de
perfil de financiamento. Não pode. Acho que a minha pequena
contribuição no painel é abrir um pouco os números e abrir a discussão de
que tipo de financiamento a gente realmente quer, a partir de um
planejamento mais adequado e compartilhado com a sociedade. E acredito
que esses números são meio gritantes porque mostram um quadro de
desproporcionalidade muito grande.
Se eu abrir os dados do Sudeste, o Rio de Janeiro ficou com 44% e Minas
Gerais com 17%. Eu não sei se Ouro Preto, Congonhas e todos os sítios
históricos, além da parte de patrimônio material e imaterial, correspondem,
de fato, a 17%. Aí vocês vão dizer: “Ah, mas isso não é quantificável”. Existe,
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Mesa-redonda 1 | SNPC - Instrumentos e formas de financiamento


no entanto, a margem e existe o centro da média, eu posso não saber se está
certo ou se está errado no centro da média, mas eu sei que está errado na
margem porque não tem sentido 17% ter vindo para Minas Gerais, já que
estamos em território mineiro. Isso mostra, claramente, que não há nenhum
tipo de planejamento para a colocação desses recursos. As regras de partida
do Profic são a minha angústia, eu não sou redator final, mas participei de
muitas discussões para a criação do Profic. Trata-se de um modelo que foi
feito no meio do Governo Collor, e não tenho nada contra o Collor,
especificamente, sobre esse assunto. O ministro Sérgio Paulo Rouanet foi
inteligentíssimo, supersagaz e pragmático e conseguiu dar um drible no
Ministério da Fazenda e na área econômica, injetando um mecanismo que
ele antecipa a receita, ele faz ex ante a arrecadação e a declaração fica ex post,
o que dá um nó na cabeça do pessoal do Tesouro, mas garante recursos. E
naquele momento, o objetivo era garantir recursos porque a sobrevivência
do setor cultural dependia disso.
Hoje em dia, aplicar uma regra de partida assim, todo mundo que é
teatro, artes cênicas, é 100%. “Ah, tá bom. Então, eu vou trazer um
espetáculo da Broadway, vou colocar na Zona Sul do Rio de Janeiro a um
preço de R$150,00 e está tudo certo. Isso é 100”. Agora, fazer educação
patrimonial numa região, exatamente, e isso tem 30% de partida. Eu
prejulguei, eu congelei, o que em diplomacia se chama congelar o poder. 133
Eu congelo o poder antecipadamente e digo “isso é importante, isso não é
importante”. Eu crio, portanto, a lista de prioridades antecipada. Ao fazer
isso, acaba-se com o planejamento desse mecanismo, ele não se ajusta mais.
Porque as regras estão dadas, os agentes se acomodam e você cria um
congelamento de prioridades, o que considero muito grave. Jamais um
projeto do BNDES vai ser analisado só porque a siderurgia vai receber
cinco bilhões a uma taxa de juros de 4,5. Colocar, a priori, essas
condicionantes é um erro. Na verdade, há que se analisar o projeto e saber
quais são as facetas que aquele projeto tem para aquele tipo de gasto
público que vai ser feito.
Outra coisa, incentivo fiscal é gasto público, é gasto não corrente, mas é
gasto tributário, e tudo o que é feito é contabilizado na nossa conta de
orçamento. Não pensem que, porque o dinheiro foi dado, aparentemente, por
um terceiro, financeiramente, não é contabilizado no orçamento do Ministério.
Então, não existe mais, para nós, essa dicotomia entre dinheiro incentivado e
não incentivado porque essa questão, orçamentariamente, já está resolvida.
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Vo l . 1

Para completar, dos 17% destinados para Minas Gerais, 34% ficaram
com a parte arquitetônica. Vejam que, em Minas Gerais, houve uma maior
proporcionalidade daqueles 67 que nós vimos lá atrás, ele cai para 34%; os
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

museus ficam com uma parcela muito parecida e a parte de história também
fica com uma boa medida. Enfim, os 2% destinados aos acervos
museológicos representam muito pouco, mas uma parte dos recursos
destinados aos museus também é acervo, enfim, tem uma discussão um
pouco mais adequada, mas, mesmo assim, tem níveis de extorsão que
precisam ser mais bem estudados. Eu não tenho agora, exatamente, uma
fórmula mágica para ler esse número, mas ele revela uma inquietude nos
pequenos pontos.
Essas são as perspectivas do Profic, do Programa de Financiamento e
Incentivo à Cultura. A ideia força do projeto é que haja um planejamento
com planos bianuais, com participação da sociedade e que dê sentido e
rumo ao processo. Sempre levando em conta as simetrias de produção
cultural, as simetrias econômicas, as simetrias do Índice de
Desenvolvimento Humano, em investimentos pretéritos, ou seja, áreas
muito deprimidas merecem, antecipadamente, mais recursos, depois elas
estabilizam.

134
O fortalecimento do orçamento é fundamental e, se continuarmos
centrados somente em mecanismos baseados em força de mercado, vamos
fracassar nesse esforço de transformar o país que nós estamos a caminho de
construir. Então, o orçamento tem que ser fortalecido, a Proposta de
Emenda à Constituição – PEC – 150 é importante, além do fortalecimento
do Fundo Nacional de Cultura – FNC. Se o FNC não for o grande agente
de alavancagem, o MinC não terá condições de equilibrar o sistema. Só
para se ter uma ideia, do um bilhão de reais que nós temos de recursos
investidos em 2007, foram quase duzentos milhões de recursos do Fundo.
Ninguém equaliza um bilhão com duzentos milhões, isso não existe. Então,
o Fundo tem que ter, pelo menos, a mesma quantidade de recurso que o
Incentivo Fiscal tem.
É fundamental ainda a diversificação e a complementaridade de recurso.
Os agentes culturais não podem ficar reféns de um só mecanismo, tem que
haver vários tipos de mecanismos para os vários tipos diferentes de agente.
Não dá para colocar um proponente de patrimônio no mesmo pé de
igualdade que um proponente de música popular, não é a mesma lógica de
mercado, não é a mesma lógica de negócio, definitivamente, não é. Então,
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eles não podem ficar restritos somente a um tipo de mecanismo que é muito
focado em um tipo de negócio.
Outro dado importante é o compartilhamento com os Estados e
municípios. O texto já traz, claramente, a participação de recursos da União,
do Fundo Nacional de Cultura, descentralizando para os fundos estaduais
e municipais. É por isso que os senhores são gestores municipais e estaduais
e/ou agentes da cultura. Pressionem seus municípios para terem seus fundos,
porque o Ministério só vai repassar dinheiro fundo a fundo, não vai fazer
convênio. Só, especificamente, para pontuar, vai querer fazer essa parceria
juntando recursos federais, com recursos estaduais e municipais.
Os fundos setorializados, que serão sete fundos, um deles é de
patrimônio e memória que vai ser, especificamente, gerido pelo segmento
cultural do patrimônio memória, mais o Estado paritário. A intenção do
ministro é de antecipar a setorialização dos fundos, mesmo antes da
aprovação do Profic. Então, antecipando a setorialização do Fundo
Nacional de Cultura por essas sete áreas, antecipa também, digamos, a curva
de aprendizagem que a sociedade deverá ter para a utilização desses recursos.
Isso é muito importante porque, é claro, vai demorar um tempo até todo
mundo entender e fazer uso dessas informações para, posteriormente,
trabalhar com elas. 135
Quanto à gestão paritária dos recursos, estados e sociedade, estamos
falando de governança, financiamento, falando de recursos e, inclusive, de
planejamento. É um modelo mais dinâmico de alocação dos recursos, de
acordo com a evolução do processo. É que, se nós continuarmos assim,
como está hoje, claramente, vamos ter um sistema tão concentrado e tão
desigual, que nós mesmos vamos começar a desacreditar da sua função desse
sistema. Então, acredito que a discussão no Congresso vai ser muito rica.
Espero que vocês participem, criem a vontade de promover esse debate
porque, de fato, a sobrevivência de muitas instituições depende dessa
discussão e de muitas iniciativas.
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Vo l . 1

P RO G R A M A M E C E N A S – UMA
EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL DE
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

C A P TA Ç Ã O D E R E C U R S O S D E
P E S S O A S F Í S I C A S PA R A P RO J E T O S
C U LT U R A I S

José Cláudio dos Santos Júnior*

RESUMO
* Tenente-coronel do Este trabalho apresenta os principais aspectos observados durante a
Exército na Diretoria
do Patrimônio implantação de um programa de captação de recursos para projetos
Histórico e Cultural culturais, destinado ao público interno de uma instituição, com base na Lei
do Exército, onde
atua no Rouanet. O caso em discussão refere-se ao Programa Mecenas, lançado pelo
gerenciamento do Exército Brasileiro, em parceria com a Fundação Habitacional do Exército
portfólio de projetos
culturais e na gestão (FHE), a Fundação Cultural Exército Brasileiro (FunCEB) e a Fundação
da preservação do Roberto Trompowsky Leitão de Almeida. Durante a exposição da
136 Patrimônio Cultural.
Foi o responsável pelo experiência adquirida há o delineamento de premissas, a indicação de
gerenciamento do condutas, e a apresentação de fatores críticos de sucesso, elementos esses
projeto de
implantação do identificados durante o gerenciamento do projeto de implantação,
Programa Mecenas buscando estabelecer um direcionamento a ser seguido em ações de natureza
semelhante.

PALAVRAS-CHAVE
Cultura, Patrimônio, Projetos culturais.

INTRODUÇÃO
O Exército Brasileiro conduziu, durante o ano de 2009, um projeto de
implantação de um instrumento que viabilizasse aos seus integrantes a
destinação de parte de seu imposto de renda para projetos culturais, nos
termos da Lei Rouanet. Dessa iniciativa surgiu o Programa Mecenas,
lançado em 17 de novembro de 2009, que passaremos a apresentar nesta
comunicação.
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Em nossa abordagem trataremos, particularmente, dos fatores críticos
de sucesso, que foram identificados, buscando inferir uma tipificação
metodológica, diante dos aspectos observados durante o gerenciamento do
projeto de implantação, que permita estabelecer um direcionamento a ser
seguido em ações de natureza semelhante.
Nesse sentido, começamos por apresentar os objetivos elencados para o
programa, destacando a sua potencialidade como elemento gerador de
participatividade e envolvimento do público em assuntos referentes à
cultura, que vem ao encontro de uma necessidade premente na sociedade
atual.
A seguir, abordaremos fatores ligados ao público-alvo, assinalando a
imprescindibilidade de um grupo mobilizável, a necessidade de
identificação com os projetos contemplados e o relacionamento desse
público com a marca identitária criada para o programa.Traçadas essas
considerações, discutiremos aspectos estruturais na construção do
programa, tratando da atuação da entidade proponente, da necessidade de
um agente que se constitua como um antecipador financeiro e da relevância
e estabilidade no vínculo trabalhista do público-alvo.
Nesse caminho, buscaremos consolidar e enumerar, ao final de nossa
breve discussão, alguns ensinamentos referentes ao tema em questão. 137

O PROGRAMA
O Programa Mecenas é constituído por um portfólio de projetos
culturais de interesse para o Exército passíveis de receberem doações por
meio de incentivo fiscal. Disponibiliza ações, ferramentas e opções para
estimular a captação de recursos de pessoas físicas. Foi concebido tendo
como público-alvo os militares da ativa e da reserva, bem como seus
familiares.
A definição do que configuramos como “projetos culturais de interesse
para o Exército” se dá por meio de um processo de aprovação institucional,
sejam esses originários ou não de uma organização militar. Nesse processo,
verifica-se se o projeto está coadunado com os objetivos culturais do
Exército, preestabelecidos sob o direcionamento das diretrizes estratégicas
da instituição. Tal aspecto, além de assegurar essa congruência entre valores
institucionais e projetos, também facilitará a aceitação e a identificação do
público-alvo com as ações culturais a serem incentivadas.
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Vo l . 1

A condução do programa tem como ferramenta central um sistema


informatizado composto por bancos de dados, por interfaces
administrativas online e por um site [www.mecenas.ensino.eb.br], com
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

informações e espaços de cadastro de usuários e de suas respectivas doações.


Dessa forma, o interessado em aderir ao programa pode, pela internet,
conhecer os projetos a serem apoiados, inserir seus dados, cadastrar sua
doação, emitir boletos e outros instrumentos, referentes às opções de repasse
financeiro disponibilizadas.
Assim, ao mesmo tempo em que o programa atinge um alto índice de
exposição e divulgação, em função da visibilidade proporcionada pela
internet, também gera facilidades operacionais para o usuário e maior
capacidade de gestão para a equipe responsável pelo programa.
O programa tem como objetivos estimular a participação ativa e o
envolvimento da Família Militar – nosso público interno, constituído por
militares da ativa, da reserva e seus familiares – na preservação do patrimônio
cultural, material e imaterial, criar uma mentalidade de doação para projetos
culturais, desenvolver a cultura no âmbito da Força Terrestre e da Família
Militar e preservar o patrimônio histórico e cultural, material e imaterial.
138 O primeiro objetivo merece especial destaque, uma vez que o “fazer
cultura” tem um poder de transformação e aglutinação em torno de uma
identidade específica muito mais efetiva do que o recebimento passivo de
produtos advindos de atividades culturais.
Nesse sentido, estar inserido em uma ação que lhe permite compartilhar
a responsabilidade pela perpetuação de uma expressão cultural traz ao nosso
público interno o acesso a uma posição de protagonista, que o leva a não
apenas “fazer”, mas também, a “pensar” e a “sentir” cultura. Esse processo o
incitará a discutir suas memórias, seus costumes, suas tradições e suas
convicções, embasando seus passos futuros, sob a argamassa da lucidez em
relação às próprias premissas. Os demais objetivos circundam o primeiro, ora
o complementando, ora constituindo-se em produtos resultantes daquele.

PÚBLICO-ALVO
GRUPO MOBILIZÁVEL
Um fator crítico de sucesso, no estabelecimento de um programa
institucional de captação de recursos por adesão de seus integrantes, de
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relevância facilmente constatável, é a existência de um grupo mobilizável.
O costumeiro envolvimento dessa coletividade em outras atividades em
comum e a preexistência de vínculos suficientemente estabelecidos para
gerar pertencimento favorecem a ocorrência de um cenário propício para o
estímulo à participação em uma ação de forte viés emocional, como a
doação para projetos culturais.
No caso do Programa Mecenas, nosso grupo mobilizável é constituído
por militares da ativa e da reserva, com essa abrangência sendo ampliada por
meio dos familiares desses segmentos que, embora em situações funcionais
distintas, coadunam dos mesmos valores adquiridos no decorrer das
respectivas carreiras.
Entretanto, deve-se dar atenção, após a implantação, para outros
públicos, inclusive pessoas jurídicas, que possam se sentir atraídos pelas
ações, ideias e valores difundidos pelo programa, de modo a atender, em
fases futuras, a esses segmentos por meio de alterações na linguagem, na
natureza dos projetos apoiados e, até mesmo, na identidade visual.
Tal fato verificou-se no público do Mecenas, com o afluxo de doadores
civis, sem grau de parentesco com militares do Exército, de militares de
outras Forças e de pessoas jurídicas interessadas em colaborar com o
programa. Essa mudança de cenário nos levou a planejar alterações no layout 139
e no conteúdo do site do programa, a criar processos específicos para esses
novos agentes e a inserir novas ideias-força em nossas ações de marketing,
sem, entretanto, descaracterizar o foco prioritário em nosso público interno.

IDENTIFICAÇÃO COM PROJETOS


A mobilização do público interno, para que destine parte de seu imposto
devido para projetos culturais, requer um exaustivo trabalho de informação
no sentido de esclarecer sobre a sistemática e o instrumento legal que
permite tal ação.
Entretanto, a decisão de participar passa por um forte componente
afetivo, sem o qual a racionalidade carece de força para cooptar o potencial
doador. Nesse componente, um elemento crucial é assegurar-se da
identificação do público interno com os projetos que serão inseridos no
programa de captação. Os dois projetos que inauguraram o Programa
Mecenas são destinados a ações culturais em dois estabelecimentos de
ensino: no Colégio Militar do Rio de Janeiro e na Escola Preparatória de
Cadetes do Exército. A identificação decorrente dessa escolha foi direta e
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Vo l . 1

imediata, diante do alto percentual de militares que estudaram e/ou tiveram


seus filhos como alunos, nessas organizações militares. A possibilidade de
estabelecer esse vínculo imediato, afetivo, valorado, entre público interno
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

e projeto, deve ser um aspecto a ser elencado na ocasião da seleção dos


projetos a serem beneficiados.

O PÚBLICO INTERNO E A MARCA DO PROGRAMA


Cada grupo humano, com seu respectivo símbolo compartilhado, deve ser
estimulado com os significados que atribuem às suas relações com a realidade.
Assim, deve ser criada para o programa uma marca identitária que
simbolize atributos relacionados à ação proposta e transmita valores que,
embora intangíveis, encontrem ressonância imediata e conduza a uma literal
tomada de posse – no sentido de entender que esse programa também lhe
pertence, por parte de nosso integrante.
A marca “Programa Mecenas” foi concebida com o apelo de possibilitar
ao nosso integrante ser um agente ativo na preservação do patrimônio
material e imaterial, destacando as interligações entre eles, atuando, dessa
forma, como uma sentinela de nossos valores culturais. Tal perspectiva se
encontra desde o logotipo – em que uma torre de fortaleza é mesclada a
140
um capacete e “protege” o início da palavra “mecenas”, até detalhamentos
de layout, passando por correlações com características inerentes à profissão
militar em nossas peças de marketing e nas palestras de divulgação.

ASPECTOS ESTRUTURAIS
ENTIDADE PROPONENTE
Os projetos inseridos no programa têm como proponente a Fundação
Cultural Exército Brasileiro, entidade civil criada em 2000, por iniciativa do
empresariado brasileiro, com personalidade jurídica de direito privado, sem fins
lucrativos, dispondo de autonomia administrativa, financeira e patrimonial.
A instituição é dotada de altíssimo prestígio com o público interno, e de
um histórico de sucesso na condução de diversos projetos na área cultural,
educacional, de assistência social, de preservação ambiental e de
comunicação social. Tal histórico transmite confiabilidade ao doador, que
passa a ter a certeza do emprego judicioso dos recursos auferidos em prol dos
projetos apoiados.
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AGENTE ANTECIPADOR FINANCEIRO
Um dos fatores críticos de sucesso que mais valor agregou ao programa
foi a inclusão de um agente antecipador financeiro. Essa instituição
encarrega-se de arcar com os custos da doação em nome do usuário,1 que 1. A instituição paga
o boleto bancário
somente lhe irá devolver esse valor no ano seguinte, a partir do mês de maio, gerado pelo doador
em até oito vezes, apenas com a correção da taxa Selic, a mesma que seria no site do programa.
utilizada nos cálculos de pagamento ou restituição pela receita federal. O
valor correspondente ao Imposto sobre Operações de Crédito – IOF
também é custeado pela instituição.
Essa opção permite que a doação seja realizada sem que haja o
desembolso imediato por parte do usuário, que não compromete, desse
modo, seu orçamento pessoal até que ocorra a entrega da declaração de
ajuste de imposto de renda, no ano seguinte à doação.
Cabe ressaltar que para obter uma parceria que atenda a essa modalidade
é necessária a existência de uma entidade financeira com alto grau de
comprometimento com o programa, uma vez que é uma operação em que
não se aufere lucro. No caso do Programa Mecenas essa instituição é a
Fundação Habitacional do Exército.

VÍNCULO TRABALHISTA ESTÁVEL


141
A doação em si não é afetada pela falta de um vínculo trabalhista estável
na formatação de um programa como o Mecenas. Entretanto, a utilização
da antecipação financeira tenderá a ser mais facilmente viabilizada quando
o doador tiver um status que lhe confira uma perspectiva de continuidade
na instituição e, consequentemente, de sua renda. Como ocorre no caso do
nosso público interno.

CONCLUSÃO
Os resultados alcançados em seu primeiro mês de funcionamento, ainda
sem a divulgação desejada, geram boas perspectivas futuras ao Mecenas:
foram arrecadados R$ 222.124,39. As simulações realizadas, com apenas
uma parte de nosso efetivo, nos remete a um potencial anual de trinta
milhões de reais.
Todavia, mais expressivos do que os valores que tenham sido, ou possam
ser arrecadados, são alguns outros fenômenos que estão conferindo um
mérito especial ao programa. Um desses fenômenos é a participação de
segmentos do nosso público interno, que não teriam como usufruir do
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Vo l . 1

benefício da dedução do valor doado no imposto de renda, por não


declararem no modelo completo ou por estarem isentos do pagamento de
imposto. É a doação propriamente dita, literal e integral, configurando a
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participação pura, plena e abrangente, por incluir integrantes da instituição


que, a priori, não seriam pleiteados como participantes do programa, em
função da impossibilidade de obterem o ressarcimento do valor doado.
Outra vertente de constatação positiva é a integração ao quadro de
doadores de elementos sem ligação direta com o Exército, como civis sem
grau de parentesco com nossos integrantes, militares de outras Forças e
instituições privadas.
O gerenciamento do projeto de implantação do Programa Mecenas nos
conferiu a possibilidade de adquirirmos convicções empiricamente
trabalhadas. Tais assertivas, que passamos a enumerar, poderão servir para
uma reflexão inicial, mesmo que com resultado discordante, para a
instituição que pretender implantar um programa de características
semelhantes.
Assim, consolidando as colocações até aqui emanadas, consideramos que
na implantação de um programa institucional de captação de recursos de
pessoas físicas do público interno para projetos culturais, devam ser tomadas
142 ações no sentido de:
• estabelecer um processo de análise dos projetos que serão
incluídos no programa, baseado nos valores da instituição;
• planejar a implantação do programa, tendo como premissa a
utilização de recursos de tecnologia da informação como
ferramentas de gestão e marketing;
• ter como principal meta, para um programa de captação de
recursos do público interno de uma instituição, promover o
envolvimento e a participação de seus integrantes;
• verificar se o seu público interno configura-se como um grupo
mobilizável, com a preexistência de vínculos e sentimento de
pertencimento;
• monitorar, depois da implantação, a incidência de outros
públicos e inseri-los no contexto do programa;
• inserir projetos no programa com os quais o público interno
possa se identificar e estabelecer vínculos afetivos;
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• criar uma marca que estimule identificação e tomada de posse
pelo público interno;
• eleger como parceira uma entidade proponente que transmita
confiabilidade ao público interno;
• estabelecer parceria com uma instituição financeira que atue
como antecipador financeiro. Esta modalidade requer uma
pressuposta estabilidade no vínculo empregatício.

Outros elementos podem ser acrescidos ou derivados dos acima


discriminados, sendo esse resumo apenas um recorte das discussões levadas
a cabo em cada fase da implantação do programa, as quais necessitariam de
melhor detalhamento em um trabalho de maior extensão.
O Programa Mecenas é um produto ainda inacabado. Embora
totalmente funcional, a experiência adquirida em sua implantação e os
resultados e interações iniciais nos permitiram vislumbrar novas
possibilidades de atuação, particularmente em relação ao seu emprego como
elemento de atração de nossos integrantes para a discussão e
compartilhamento dos significados culturais, inerentes ao nosso grupo.
Assim como os projetos mudarão em sua natureza e destinação, à medida 143
que forem sendo executados, o programa também sofrerá mutações
impulsionadas por seus resultados e influências. Fazer com que nosso
integrante seja o protagonista dessas transformações é o nosso estimulante,
e já iniciado, desafio.
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Vo l . 1

BNDES, A E C O N O M I A D A C U LT U R A
E O A P O I O A O PAT R I M Ô N I O
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

HISTÓRICO SOB A ÓTICA DE


D E S E N V O LV I M E N T O I N T E G R A D O

Luciane Gorgulho*

RESUMO
* Chefe de O BNDES é um dos agentes mais atuantes na preservação do
Departamento de
Cultura,
patrimônio histórico e arqueológico brasileiro. Nos últimos 13 anos, o
Entretenimento e Banco investiu R$ 155 milhões em projetos que revitalizaram cerca de 160
Turismo do BNDES
monumentos tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – Iphan em todo o país, num investimento total de R$ 179
milhões. A ação do BNDES busca associar a preservação do patrimônio
histórico e o desenvolvimento local, motivo pelo qual a abrangência dos
projetos pode contemplar o entorno urbano do patrimônio público. O
144 BNDES entende que é preciso restituir aos monumentos sua função social
e reintegrá-los na vida cotidiana das cidades, para que sua revitalização seja
permanente.

PALAVRAS-CHAVE
BNDES, Patrimônio histórico, Desenvolvimento integrado.

O BNDES
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES
é o principal braço de financiamento ao desenvolvimento do Governo. É
um banco de propriedade integral da União Brasileira, fundado na década
de 1950 para ser o principal financiador de toda a industrialização no Brasil.
Toda a implantação do parque industrial brasileiro assim como a
implementação das políticas industrial, de infraestrutura, de comércio
exterior e, mais recentemente, de inovação e outros segmentos só puderam
ocorrer pela existência de um banco financiador como o BNDES. Então,
hoje ele é a principal fonte de financiamento, de crédito de longo prazo, na
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economia brasileira, até porque, os nossos bancos privados não conseguem
prover essa fonte de financiamento de longo prazo. O papel do BNDES se
torna, então, muito importante no cenário brasileiro.
O foco de financiamento do BNDES foi sempre o investimento
produtivo, que antigamente se focava mais num investimento industrial,
um parque industrial típico e, mais recentemente, isso tem enriquecido
com a entrada em outros setores menos afeitos ao lado tradicional da
economia.
Somos uma estrutura enxuta, concentrada; não somos um banco com
agências como o Banco do Brasil ou a Caixa Econômica Federal; temos um
escritório principal no Rio de Janeiro, que era a antiga sede, antes da
mudança da capital para Brasília, com dois mil e quinhentos funcionários
para atender a todo o País. Temos, assim, uma ação muito direcionada a
projetos de maior porte. Não temos uma ação pulverizada e, para isso,
contamos com uma rede de agentes financeiros parceiros, que repassam os
nossos recursos.
No caso do setor da cultura, o BNDES funciona de uma forma bastante
diferenciada em seu sistema de apoio. Sem dúvida, como banco de
desenvolvimento do Governo, temos de acreditar que mecanismos como a
Lei Rouanet, que deixam a decisão nas mãos do mercado, o laisser-faire não 145
funciona, caso contrário, bastariam os bancos e agentes privados para
financiar todo o sistema produtivo brasileiro. Então, acreditamos que o
nosso papel é o de ter políticas e utilizar os recursos para financiar essas
políticas, em qualquer área, inclusive, na cultura.
Como mostraremos, nossa ação começou com uma ótica de
comunicação, inicialmente dentro de um departamento de comunicação
do banco, como a maioria dos agentes que lidam com as leis de incentivo,
mas há dois anos houve uma migração para a estrutura operacional de
financiamento. Então, hoje nós olhamos a cultura como um setor a ser
desenvolvido, não é uma ação de mecenas, não é uma ação de comunicação,
de retorno de imagem, é um setor a ser priorizado tanto quanto o setor de
siderurgia, de máquinas e equipamentos e os outros setores da economia.
O BNDES tem como característica histórica a permanente adaptação ao
contexto histórico e às prioridades marcadas por esse contexto. Recebeu
diversas missões e sempre teve papel central na estruturação da indústria
brasileira. Assim foi com a implantação das indústrias de base, de bens de
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Vo l . 1

consumo e de bens de capital, nas décadas de 1960 e 1970, com a energia


e a agricultura, na década de 1980, e com a privatização e a promoção das
exportações, na década de 1990.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Agora, o BNDES incorpora novas missões, adentrando um terreno


desconhecido. E espera-se que, mais uma vez, sua ação seja determinante
para a estruturação da economia da cultura e o desenvolvimento dos
segmentos culturais como um todo.

A ECONOMIA DA CULTURA: DO PATROCÍNIO AO


DESENVOLVIMENTO
Depois de dez anos de apoio à cultura sob uma ótica predominante de
patrocínio, especialmente por força da utilização das leis de incentivo à
cultura, o BNDES reformulou sua visão, fez um diagnóstico do setor e
criou instrumentos específicos e criativos de apoio financeiro, de forma a
solucionar gargalos específicos da indústria cultural e contribuir ainda para
a estruturação e profissionalização da gestão no setor.
Desde 1995, o Banco apoia a cultura, com um histórico relevante de
atuação no restauro de patrimônio histórico arquitetônico, na preservação
de acervos e no apoio à produção cinematográfica. Ao longo dos primeiros
146
dez anos de atuação, esse apoio se deu primordialmente sob uma ótica de
patrocínio, utilizando-se, basicamente, dos mecanismos de dedução fiscal
para esses setores (Lei Rouanet e Lei do Audiovisual).
Em 2006, o BNDES tomou uma decisão estratégica: incorporar a
economia da cultura à estrutura operacional da Instituição, tratando o setor
como mais um dos setores econômicos apoiados pelo Banco e criando
outros instrumentos financeiros que dessem conta de suas necessidades
específicas.
O BNDES, como agente de desenvolvimento, entendeu que faz parte de
sua missão ajudar a criar um ambiente favorável ao desenvolvimento das
empresas do setor, para que o mercado possa ampliar-se, ganhar eficiência,
profissionalizar-se e realizar o seu potencial, de maneira sustentável, com
ganhos sociais em termos de geração de emprego, renda e inclusão ao
consumo de bens culturais.
Para isso, o Banco se dispôs a atuar oferecendo um leque diversificado
de mecanismos de financiamento, que incluem não apenas a aplicação de
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recursos não reembolsáveis, como também financiamentos e instrumentos
de renda variável. Esses mecanismos se complementam, possibilitando uma
atuação mais abrangente e mais eficiente do BNDES no setor cultural.
O setor priorizado, inicialmente, foi o do audiovisual. O desafio foi
grande, por tratar-se de um setor pouco estruturado do ponto de vista
empresarial e com pouca tradição de relacionamento bancário. Passo a
passo, foram estruturadas soluções criativas para atender ao setor, fazendo-
se um uso articulado de diferentes instrumentos financeiros – não
reembolsáveis, reembolsáveis e de renda variável –, transformando o
BNDES, em poucos anos, numa fonte de recursos importante para a cadeia
produtiva do audiovisual.
Além dos instrumentos de incentivo fiscal, criamos, em 2006, uma linha
de financiamento pioneiro, um empréstimo; mas um empréstimo ao setor
cultural que não é contemplado, hoje, pelo setor financeiro privado. Muito
por conta das próprias leis de incentivo, que geraram certa distorção, certa
dependência excessiva dos setores culturais. Por outro lado, setores que antes
estavam acostumados a se financiar no setor bancário, ter seu capital de giro
etc. deixaram de utilizar esse instrumento e pararam de perseguir o lucro,
o resultado. Quer dizer, a produção em si, a captação na Lei Rouanet, a
produção do seu espetáculo, do seu produto, virou um meio em si, 147
desvinculado de resultados. Então, com isso, obviamente, os resultados
financeiros dessas empresas ficaram ruins e os bancos não os financiam
mais. Criou-se, a partir daí, um ciclo muito ruim, o qual se espera que, com
a reforma da Lei Rouanet, venha a melhorar.
O BNDES se colocou, então, no papel de fornecedor do crédito que
tinha sumido para o setor cultural. Dessa forma, pioneiramente, criamos
uma linha de crédito formatada, no início para o setor audiovisual. Fizemos
diversas operações, no valor total de R$ 70 milhões, financiando, por
exemplo, salas de cinema, produção de filmes, de estúdios, de séries de
animação.
Além disso, atuamos no investimento em fundos, pois o BNDES tem
uma tradição de apoiar, principalmente, as pequenas e médias empresas,
através de fundos de investimentos, chamado fundo de capital de risco. E
no setor audiovisual existe a regulamentação dos Funcines, e passamos a
atuar com isso também.
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Vo l . 1

Segue abaixo um quadro resumo com os valores desembolsados nos


diversos segmentos apoiados:
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

A economia da cultura, porém, não se resume à cadeia produtiva do


audiovisual. O desafio passou a ser a ampliação da atuação do BNDES para
novos setores. Os diversos conceitos de economia da cultura e de indústrias
criativas foram estudados, comprovando-se a sua dinâmica econômica e
suas perspectivas de crescimento.
Aprovamos, recentemente, uma ampliação do programa de linhas de
financiamento, antes existentes somente para o setor audiovisual, para os
148
demais setores da economia. Hoje, podemos financiar, também, teatros,
casa de espetáculos, editoras, livrarias, jogos eletrônicos. Enfim, todos os
setores que, de alguma forma, estejam inseridos no conceito da economia
da cultura e que tenham condições de tomar empréstimos podem passar a
ser financiados pelo BNDES. Temos linhas de financiamento para todos
os setores.
No que tange à atuação via fundos de investimento, assim que for
aprovado o novo projeto de lei que reativa os Ficarts, que são fundos de
investimentos para os setores da economia da cultura como um todo,
pretendemos investir neles também.
Por fim, temos recursos próprios não reembolsáveis. Hoje os recursos
incentivados já representam uma parcela minoritária na atuação não
reembolsável do BNDES. Somando as duas leis, está na faixa de R$ 35, R$
38 milhões, baseado nos lucros dos últimos anos. Temos recursos próprios
não reembolsáveis já, este ano, aprovados em R$ 56 milhões. Então, nos
recursos não reembolsáveis, o BNDES tem um volume de aplicações bem
maiores que a própria renúncia fiscal. E ainda temos as linhas de
financiamento que recentemente anunciamos, de forma que, para os
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próximos três anos, teremos uma ação global bastante significativa somando
todas essas linhas de apoio.
Assim, o novo Procult – Programa BNDES para o Desenvolvimento da
Economia da Cultura – conta com uma dotação orçamentária de R$ 1
bilhão e tem vigência de 2009 a 2012, quando será realizada nova avaliação
de seus resultados. Dispõe de recursos diferenciados, aplicáveis de formas
distintas: isolada ou complementarmente, e que se traduzem em três
subprogramas:
Procult – Financiamento: o objetivo é estender aos setores editoriais, de
jogos eletrônicos, fonográficos e de espetáculos ao vivo, a experiência bem-
sucedida da primeira fase do Procult na cadeia produtiva do audiovisual.
Procult – Renda Variável: as operações de capital de risco, com
participação acionária do BNDES em pequenas e médias empresas,
permanecem como opção de instrumento de apoio ao desenvolvimento das
cadeias produtivas da economia da cultura. Além disso, o BNDES tem
procurado atuar como cotista e alavancador de fundos de investimento
voltados às atividades culturais, como os Funcines e os Ficarts. Trata-se de
uma modalidade de investimento extremamente saudável e eficaz para
melhor desenvolver a economia da cultura, reduzir sua dependência do
incentivo fiscal e criar condições para torná-la, como importante segmento 149
econômico, cada vez mais autossustentável.
Procult – Não Reembolsável: o Procult conta com os recursos passíveis de
dedução fiscal, conforme disposto nas Leis Rouanet e do Audiovisual, e
com recursos próprios provenientes do Fundo Cultural do BNDES, criado
em 2008. A aplicação do Procult Não Reembolsável não obedece à lógica
do patrocínio, mas à da aplicação de recursos que viabilizem a estruturação
e organização dos segmentos apoiados, com externalidades positivas para
toda a organização social e produtiva local.

O APOIO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO


Nos últimos 13 anos, o Banco investiu R$ 155 milhões em projetos que
revitalizaram cerca de 160 monumentos tombados pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan em todo o País, entre
museus, igrejas, casas, fortes, teatros, universidades e centros históricos.
Em virtude da, também delicada, situação em que se encontra a guarda
do acervo bibliográfico, museológico e arquivístico nacional e da neces-
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Vo l . 1

sidade de estancar seu processo de deterioração, a partir de 2004, esses bens


passaram a fazer parte do patrimônio público passível de apoio por parte do
BNDES. Como resultado, já foram apoiados 123 projetos, com aplicação
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

total de R$ 24 milhões, investidos não só na preservação e na segurança


dos acervos, mas também na restauração e na modernização dos museus,
arquivos e bibliotecas e na melhoria das condições de acesso e de
atendimento ao público. Acrescidos os recursos aprovados para a
recuperação e preservação de acervos, o apoio ao patrimônio histórico chega
a R$ 179 milhões.
Nós só apoiamos edificações tombadas pelo Iphan. Os projetos têm que
ser enquadrados na Lei Rouanet, aprovados pelo Ministério da Cultura –
MinC, e a propriedade dos imóveis tem de ser pública ou de entidades sem
fins lucrativos.
Priorizamos aqueles que têm um alto significado cultural, que já tenham
projetos sociais ou culturais e que tenham um plano de sustentabilidade, de
manutenção, bem formulado. Quer dizer, essa é uma preocupação grande,
a de, não só apoiar o restauro, mas de acompanhar como aquele
monumento vai sobreviver depois desse apoio para evitar que, daqui a três
anos, venha novamente solicitar novo apoio para fazer novo restauro sem
150
que a realidade de preservação tenha sido alterada.
Ao contrário da concentração geral da Lei Rouanet, no BNDES, como
sempre, buscamos essa ótica do desenvolvimento, temos um número de
apoios no Nordeste quase igual ao do Sudeste. Quarenta e cinco por cento
dos projetos foram apoiados no Nordeste. Como era de se esperar, os
Estados que têm o maior número de monumentos apoiados são aqueles
onde se teve uma maior riqueza histórica de colonização, são os Estados
mais antigos em termo de colonização e isso não tem muito como ser
diferente. Dificilmente, num setor de patrimônio, tem-se uma distribuição,
por exemplo, na região Norte, na região Centro-Oeste e mesmo na região
Sul, como nas áreas de litoral. Na medida do possível, tivemos que buscar
esse desenvolvimento, mas ele tem uma limitação natural.
Além dos recursos de dedução fiscal vinculados à Lei Rouanet, mais
recentemente passaram a ser aplicados recursos próprios, igualmente não
reembolsáveis, oriundos do Fundo Cultural do BNDES. Assim, a dotação
orçamentária anual do BNDES para a preservação do patrimônio cultural
passou a ser de R$ 45 milhões e a de acervos, R$ 8 milhões. O aumento do
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orçamento permitirá ampliar o escopo dos projetos, de modo a estimular e
facilitar o acesso do público ao bem restaurado, ou seja, o seu efetivo uso pela
sociedade. Para tanto, os projetos poderão abarcar ações integradas ao turismo
e/ou de revitalização urbana do entorno do bem tombado, ou ainda de gestão,
como a promoção de visitas guiadas, de atividades culturais no local, ou de
ações estruturantes para o setor, como a formação de mão de obra.
Na busca do aperfeiçoamento de seu apoio ao patrimônio cultural, o
BNDES terá, como um de seus principais desafios, a participação nos
projetos do chamado PAC das Cidades Históricas. Em consonância com o
Iphan e o Ministério da Cultura, o objetivo será melhorar a infraestrutura
urbana, promovendo a requalificação urbanística e o turismo cultural em
cerca de 100 cidades históricas. Com isso, os monumentos restaurados
serviriam como suporte ao desenvolvimento desses municípios.
Ou seja, também em relação ao patrimônio histórico, houve uma
evolução dessa ótica de como começou o apoio do banco ao setor e como
ele se dá hoje, desde seu início em 1997. Partindo de uma ótica inicial de
patrocínio, de mecenas, de apoios a monumentos isolados, em 2005 demos
início a uma reflexão sobre a necessidade de uma ótica mais de
desenvolvimento, e aí criamos um programa chamado “Cidade de polo”,
que teve duas rodadas, mas chegamos à conclusão de que não era o melhor 151
modelo pra ser aplicado. Optou-se, naquele modelo, por eleger três cidades
a cada biênio, mas isso por si só não se mostrou suficiente para gerar uma
ação mais integrada. A expectativa de que se conseguisse envolver mais
fortemente as Prefeituras desses municípios não ocorreu da forma que era
prevista. Por isso, agora estamos reformulando essa lógica.
E neste momento, queremos aprofundar essa ótica de apoiar o
patrimônio histórico, uma ótica de desenvolvimento integrado, com a boa
novidade de que teremos mais recursos. Recursos próprios, de valor ainda
maior, para apoiar esse segmento, através da parceria com o Iphan no PAC
das Cidades Históricas. Estamos aguardando os planos de ação dos
municípios para que possamos analisar em conjunto com o Iphan e, assim,
priorizar melhor a nossa ação, isto é, ao invés de apoiar um monumento
isolado, apoiaremos o Plano de Ação inteiro de um município.
Além disso, temos a possibilidade de associar as linhas de financiamento
do BNDES para as Prefeituras e mesmo para os Estados para os
investimentos complementares.
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Vo l . 1

As duas linhas que o BNDES tem para Estados e municípios ainda são
pouco conhecidas, algumas vezes elas sofrem com a questão do
contingenciamento de recursos, o que impede que se tomem essa dívida
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

por parte dos Estados e municípios, mas isso é algo que nós podemos,
juntos, tentar mudar.
O BNDES PMAT é um programa voltado às Prefeituras. Começou
como um programa de financiamento, apenas para modernizar a
administração tributária, melhorar a gestão de arrecadação e melhorar a
arrecadação dos municípios. Mas ele se ampliou e hoje tem um foco na
gestão dos setores sociais básicos, como saúde, educação e, inclusive, cultura.
É possível, então, se tomar um financiamento para melhoria de gestão,
treinamento, capacitação, quaisquer tipos de ações que as Prefeituras
queiram para se preparar melhor para essa parte de gestão cultural.
Outra linha de financiamento que o BNDES tem se chama PMI –
Projetos Multissetoriais Integrados. Esse sim é o financiamento que “cairia
como uma luva” para a ação de restauro de patrimônio. Quer dizer, o
cenário ideal seria o BNDES oferecer um apoio não reembolsável para o
restauro de um patrimônio e a Prefeitura poder tomar um financiamento
para fazer todo o resto, não só realizar uma ação estanque de restauro, mas
152
poder fazer a urbanização, a implantação de infraestru-tura básica, a questão
de populações em áreas de risco, a revitalização das áreas degradadas, as
ações sociais de educação, saúde, lazer, saneamento. O BNDES dispõe desse
financiamento e é isso que a gente queria tentar utilizar de uma forma mais
integrada.
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A partir de agora vamos priorizar o apoio do patrimônio histórico com
essa ótica do desenvolvimento integrado. O foco no restauro e na
preservação dos monumentos tombados, preocupando-se com a questão
da revitalização, o uso que vai ser dado, a sustentabilidade, não vai ser uma
ação estanque, vai ser uma ação que possa ser permanente.
A revitalização de centros históricos será uma prioridade, se o
monumento estiver em uma área que está sendo objeto de um programa de
revitalização de centros ou de portos, que esteja dentro de um programa
mais amplo em curso, ele terá prioridade. E principalmente se envolver a
questão do desenvolvimento urbano, integrado em todos os seus aspectos:
econômico, social e, também, de infraestrutura e com a dinamização do
turismo, que é outra prioridade do BNDES.
E, para isso, nós contamos com a parceria do Iphan, estamos aguardando
ansiosamente o resultado desse esforço dos Planos de Ação, para
conhecermos essas demandas e podermos, então, ter uma ação mais
planejada, com maior foco, de forma a ter resultados mais efetivos na nossa
lógica, na nossa forma usual de trabalhar, como banco de desenvolvimento
que somos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 153

Depois de dez anos de apoio à cultura sob uma ótica predominante de


patrocínio, o BNDES reformulou sua visão e criou instrumentos específicos
e criativos de apoio financeiro, de forma a solucionar gargalos peculiares da
indústria cultural e contribuir, ainda, para a estruturação e a profissio-
nalização da gestão.
A história do BNDES na economia da cultura é, acima de tudo, mais
um exemplo de sua capacidade de superação de obstáculos e lacunas com
a missão de promover o desenvolvimento do País. Criado em 1952 com o
objetivo de financiar a construção da infraestrutura do País, o Banco soube
reconhecer, a cada etapa do desenvolvimento brasileiro, suas novas
necessidades e criar mecanismos e formas de atendê-las. Foi assim com os
bens de consumo, com os bens de capital, com a substituição de
importações, com a promoção da integração competitiva da economia
brasileira no cenário internacional, com a desestatização e com tantos outros
desafios e oportunidades.
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 154

Vo l . 1

Do seu início e trajetória no mundo concreto e tangível das


hidroelétricas, fábricas, hospitais, produtos agrícolas, aeronaves etc., o
BNDES alcança o universo intangível da inovação, da tecnologia, da cultura
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

e dos valores socioambientais, sempre em busca de sua meta permanente:


gerar desenvolvimento sustentável e bem-estar para toda a sociedade
brasileira. E a economia da cultura representa isso: não apenas
sustentabilidade e inclusão social, mas também geração de renda, trabalho,
emprego, ou seja, um vetor de desenvolvimento sustentável, adequado aos
atuais requisitos sociais, econômicos, regionais e ambientais do País.
Na busca do aperfeiçoamento de seu apoio ao patrimônio cultural, o
BNDES terá como um de seus principais desafios a participação nos
projetos do chamado PAC das Cidades Históricas, em parceria com o Iphan
e o Ministério da Cultura. Com isso, os monumentos restaurados serviriam
como suporte ao desenvolvimento desses municípios, em linha com a
missão do BNDES como banco de desenvolvimento.

154
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I M P O S T O S O B R E C I RC U L A Ç Ã O D E
M E RC A D O R I A S E P R E S TA Ç Ã O D E
S E RV I Ç O S (ICMS) – P AT R I M Ô N I O
C U LT U R A L E M M I N A S G E R A I S

Carlos Henrique Rangel*

RESUMO
O texto traz a história do ICMS Patrimônio Cultural, uma iniciativa do * Diretor de
Promoção do Iepha
governo de Minas Gerais que, em 1995, criou a Lei no 12.040, apelidada
de Lei Robin Hood, destinando repasses do ICMS cultural para os
municípios que investissem em práticas de preservação. Hoje, o ICMS
cultural envolve 695 municípios que comprovam, anualmente, práticas de
preservação de seu patrimônio. O sistema tornou-se um modelo de
descentralização na gestão do patrimônio cultural.
155
PALAVRAS-CHAVE
ICMS Patrimônio Cultural, Descentralização, Municípios.

Sou historiador de formação, trabalho no Instituto Estadual do


Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais que tem as mesmas
funções do Iphan, em nível estadual. Farei 26 anos de patrimônio cultural
e o ICMS surgiu quando era superintendente de proteção e o acompanho
desde então.
O que é o ICMS? O Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e
Artístico existe desde 1971, depois do encontro de Brasília que definiu que
os estados deveriam criar os seus órgãos estaduais de proteção ao
patrimônio. O Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de
Minas Gerais – Iepha cuidou desse patrimônio de 1971 para cá e percebeu,
de cara, que era difícil; tinha de ter algum mecanismo de descentralização
da proteção do patrimônio cultural. E começou com uma cartilha, fizemos
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 156

Vo l . 1

um manual chamado Caderno técnico n°1 com diretrizes para a proteção


do patrimônio cultural. Mas não conseguíamos fazer com que os
municípios encampassem a ideia. Não havia motivação, que só vai surgir a
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

partir da Constituição de 1988, que definia que o imposto de circulação de


mercadorias e serviço – o ICMS – teria de ser redistribuído aos municípios
de outra forma, com outros critérios. Vinte e cinco por cento dele teriam
de ser repassados aos municípios com outras formas e cada Estado deveria
criar esses mecanismos de redistribuição de ICMS para os municípios.
O Estado de Minas Gerais fez isso em dezembro de 1995, através da Lei
no 12.040 que foi logo apelidada de Lei Robin Hood que definiu claramente
vários critérios para a Agricultura, Saúde, Meio Ambiente e Patrimônio
Cultural. O que quer dizer isso? Os municípios que investissem nessas áreas
receberiam repasses do ICMS cultural. Coube a cada instituição do Estado
cuidar desses critérios. No caso do patrimônio cultural, coube ao Iepha.
Existe uma tabela de pontuação para as ações desenvolvidas que será
detalhada no decorrer desta palestra.
A Lei no 12.040 foi alterada em 2000, pela Lei no 13.203. Em janeiro de
2009 foi novamente modificada pela Lei no 18.030, que estabeleceu como
um dos critérios para repasse de parte do ICMS a preservação e o cuidado
156
com o patrimônio cultural. Servem de base para pontuação com vistas a
esse repasse de recursos, alguns itens como a criação de leis municipais de
patrimônio cultural, programas de educação patrimonial, criação de
conselho municipal do patrimônio cultural, quantidade de bens culturais
tombados, elaboração de inventário de proteção de acervos; e investimentos
na preservação de bens e manifestações culturais.
O ICMS Patrimônio Cultural vale 1% desses 25%. O município, então,
tem de se preparar; deve criar um departamento, ou órgão afim, em sua
estrutura para cuidar de patrimônio cultural. Atualmente, o município deve
apresentar um relatório de atividades desse departamento, além do Relatório
da Jornada Mineira do Patrimônio Cultural que é um item novo.
Este foi o primeiro ano da jornada, são eventos culturais que acontecem
em setembro/outubro – deveriam acontecer em setembro, mas ampliamos
para outubro – quando tivemos a adesão de 500 municípios, e isso pontua
no ICMS.
O município tem que apresentar para o Iepha a Lei de Proteção do
Patrimônio Cultural. Fornecemos o modelo de tudo. A nossa lei já cria o
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 157

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Conselho Municipal que tem de apresentar para o Iepha o seu regimento
interno. O Conselho tem de ser paritário, representativo da comunidade.
Recomendamos que sejam representantes de entidades e não representantes
de amigos do prefeito; devem ser representantes de entidades como
universidades, bairros, associações comerciais ou ONGs.
O município deve encaminhar, anualmente, o decreto de nomeação
desses conselheiros, documentos de posse e as atas das reuniões. Até este
ano sua periodicidade era bimestral e, hoje, estamos aceitando que seja
trimestral, de forma que devem apresentar três atas por semestre e,
consequentemente, seis atas por ano. Além da comprovação da publicidade
dessas atas.
O Departamento de Patrimônio Cultural tem de informar o nome do
seu gestor, não importa se é uma Secretaria de Cultura, Esporte, Lazer e
Turismo, porque sabemos das dificuldades dos municípios. Se ele define
que será uma Secretaria de Esporte, Lazer e Turismo a responsável também
pelo patrimônio cultural, ótimo. Quem é o gestor e quem é o técnico
responsável? No mínimo, tem de existir o chefe do setor e mais um
assistente. Pede-se também que o relatório de atividades desse
Departamento seja incluído, nas atividades da Prefeitura.
Estamos pontuando, separadamente, as ações de manutenção e 157
conservação de museus, de bibliotecas e arquivos públicos ou centros de
memória, e também os investimentos na equipe técnica. Se a equipe fez
cursos de preparação de patrimônio cultural, se participou de um evento
como esse, o relatório de atividades do departamento também é pontuado.
O município que participou da Jornada Mineira tem de fazer uma
adesão, preencher o formulário e cumprir aquela adesão, caso concordemos
com a atividade. É claro que apareceram coisas do tipo Folia de Reis em
setembro; isso não pode ser aceito. As festas devem acontecer na época certa
e no lugar certo. Os eventos precisam manter a coerência e o respeito às sua
tradição; não podem ser oportunistas.
A data de entrega do relatório da Jornada Mineira do Patrimônio pelo
município é 15 de janeiro, conforme modelo do Iepha, isso vale um ponto;
o Conselho em funcionamento vale dois pontos; o funcionamento do setor
do patrimônio e seu respectivo relatório valem mais um ponto.
O município deve elaborar o inventário do seu patrimônio cultural. É
necessário planejá-lo e explicitar como será feita a varredura cultural
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 158

Vo l . 1

dentro de seus limites, sem excluir nenhuma parte do seu território – onde
tem gente, tem de ser feito inventário. Onde tem gente tem cultura, onde
tem gente tem produção cultural, tem patrimônio. O plano é
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

encaminhado ao Iepha para avaliação e acompanhamento. É preciso


também caracterizar as áreas e apresentar o cronograma das atividades. O
Iepha orienta, manda rever o cronograma. Há município prevendo que
vai gastar 70 anos para fazer o inventário. E a nossa pergunta é: “Mas é
seu neto que vai trazer o inventário? Não é possível, dá um jeito de cortar
ao menos metade disso”. Ou seja, é preciso planejar e fazer; esse plano de
inventário também foi pontuado, de forma que o município deve nos
encaminhar o inventário, anualmente, fornecemos todos os modelos de
fichas para bens móveis e imóveis, arte aplicada, conjuntos, núcleos. E
isso vale dois pontos para os municípios.
Quanto aos dossiês de tombamento, o município deve tombar e
apresentar os mecanismos de proteção dos bens culturais materiais,
conforme metodologia do Iepha. Esses dossiês são pontuados de acordo
com cada uma das quatro categorias: grupos históricos, conjunto
arquitetônico paisagístico, bens imóveis e bens móveis. Eles valem 30% dos
pontos sobre esses bens. Por exemplo, um conjunto arquitetônico de mais
de dois hectares vale dois pontos, então o município ganha 30% ao
158 apresentar o dossiê. Para ganhar os outros 70% ele deve apresentar o
relatório de atividades, de investimentos da Prefeitura em bens culturais e
atividades culturais.
Seguindo esse modelo, a partir do momento que foi aprovado o
tombamento, o município deve, anualmente, apresentar os laudos sobre o
estado de conservação daquele bem. Dois anos consecutivos de péssimo
estado, o município perde os pontos referentes àquele bem. Existe ainda a
questão da complementação, por exemplo: o dossiê teve alguns problemas,
até seis itens não aprovados, pontuamos com ressalva e pedimos para
complementar os itens. São vários itens, evolução histórica do município,
histórico do bem cultural, descrição, delimitação da área tombada,
delimitação da área de entorno, diretrizes de intervenção do bem cultural,
diretrizes no entorno. São vários critérios técnicos, e toda a parte jurídica,
de processo administrativo do tombamento – edificação, impugnação, as
atas aprovando o tombamento provisório, tombamento definitivo. Tudo
isso é pedido. Acima de sete a dez itens, no entanto, ele não é pontuado, mas
tem de complementar aqueles itens. E mais de dez itens não aprovados, é
preciso apresentar o dossiê novamente.
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 159

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O relatório de investimentos está dividido em dois itens: investimento
em atividades culturais e investimento em bens culturais. No caso de
bens culturais só pode apresentar relatório de investimento quem tem
bem tombado em nível estadual, federal ou municipal, que pontuam
mais. O município não precisa apresentar laudos tombados pelo Iepha e
pelo Iphan, como é o caso de São João Del Rei e Mariana – cidades
tombadas pelo Instituto. Não apresenta nada sobre esses bens, mas já
ganha e tem que apresentar o relatório de investimento. Só tem de
apresentar quem tem bens tombados ou registrados como patrimônio
imaterial. O relatório de atividades também tem que comprovar alguns
investimentos através de empenhos e notas fiscais. Ele está vinculado ao
Fundo Municipal de Patrimônio Cultural, uma exigência instituída
recentemente pelo ICMS cultural.
Educação patrimonial vale também dois pontos. O município tem de
fazer um projeto de educação patrimonial; esse projeto vai pontuar ou não;
cumprindo o projeto e apresentando o relatório de atividades no ano
seguinte, vale dois pontos.
Outro item novo é o registro. A partir de janeiro de 2010, os municípios
vão apresentar registro de patrimônio imaterial. Só pode registrar o
município que tem lei de registro. Sabemos que tanto o Decreto-Lei no 159
25/1937 como a maioria das leis municipais não prevêem o registro. Então
elas precisam ser atualizadas ou criar uma lei de registro de patrimônio
imaterial. O município vai apresentar um dossiê conforme metodologia do
Iepha de registro do patrimônio imaterial. Ele vai ganhar 30% e para ganhar
os outros 70% ele deve apresentar os relatórios.
O Fundo equivale a três pontos, divididos da seguinte forma:
• 0,50 pontos quando da instituição da lei do Fundo Municipal de
Patrimônio Cultural e da publicação do seu decreto de regulamentação.
Nos anos posteriores o município deve informar, anualmente, o número
dessa lei e apresentar um programa de investimentos, para ter direito aos
2,5 pontos complementares.
• Esse Fundo está vinculado ao valor que o município recebeu de ICMS
no ano anterior. O valor de referência é 50% do que foi arrecadado. Por
exemplo: em 15 de janeiro deve ser apresentado o programa de
investimento, tendo como referência a arrecadação de ICMS no exercício
anterior. É o valor que será aplicado durante o ano subsequente, conforme
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 160

Vo l . 1

decisão do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, que define para


quem serão repassados e quais os critérios para o repasse do recurso. A ata
do Conselho aprovando esse programa vale um ponto.
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

• Em 2010 será o primeiro ano de apresentação do programa de


aplicação do Fundo. O relatório de sua aplicação não será realizado
porque nenhum programa foi apresentado, já que a obrigatoriedade de
criação do Fundo é recente, de 2009.
Esse relatório de aplicação, que deverá ser entregue sempre no dia 15 de
janeiro de todos os anos, valerá 1,5 dos pontos, ou seja, pontuação
proporcional à aplicação. Se o município tem de aplicar 50 mil, mas teve
problemas e só conseguiu repassar 30 mil, vai ter uma pontuação
proporcional a esses 30 mil. Se for 25 mil, ele vai ganhar 0,75 e menos do
que isso, o programa que ele for apresentar de novo – todo ano vai ter de
apresentar um novo programa – não vai receber pontuação.
Todo ano temos um período de questionamento da análise. Até a lei
anterior, o município tinha 30 dias para reclamar. Este ano, recebemos 112
municípios presencialmente, fora os que mandaram e-mails pedindo revisão
da pontuação. E ano que vem teremos somente 10 dias. No dia 15 de
janeiro, os municípios precisam apresentar a documentação para a
160
pontuação final sair dia 20 de julho.
Começou assim, em 1996, com pouquíssimos municípios. Só para
ilustrar, em Minas Gerais, no exercício de 2005, começou a ter uma grande
mudança e foram 593 municípios participando. No ano passado, 645
municípios. Todo ano de eleição tem uma queda, o prefeito que está saindo
não quer investir para deixar dinheiro para o outro. Este ano, 692
municípios mandaram documentação.
Em 2010 mais de 700 municípios vão receber pontuação. Lembrando
que municípios que têm bens tombados pelo Iepha e pelo Iphan recebem
30% dos pontos, mesmo não mandando nada. São 692 participantes, mas,
na verdade, serão mais de 700 recebendo recursos. Lembrando que essa lei
só existe em Minas Gerais que repassa o ICMS desse jeito e vem fazendo isso
há 14 anos. Começou com a apresentação de 33 municípios e hoje temos
692 participantes desse processo.
A documentação de todos esses municípios é enviada ao Iepha por
Sedex, não pode ser entregue em mão.
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A EXPERIÊNCIA DE PERNAMBUCO

Éricka Rocha*

RESUMO
Criado no ano de 2004, o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura * Diretoria de
Preservação Cultural
– Funcultura tornou-se o maior edital de cultura do Estado, tendo chegado da Fundarp
a movimentar, em 2009, 24 milhões de reais de recursos, diante dos quatro
milhões de reais de seu primeiro ano de funcionamento. Tem recursos
destinados, inclusive, para a área do Patrimônio que se divide em cinco
categorias: artístico, histórico, arquitetônico, arqueológico e paleontológico,
compreendendo museus, bibliotecas, arquivos, centros culturais e
congêneres. O texto revela, no entanto, que o número de projetos para a
área do Patrimônio está muito abaixo das expectativas, tendo aprovado
apenas 17 projetos do Fundo, em 2008.

PALAVRAS-CHAVE
Funcultura, Recursos, Patrimônio.
161

Falarei sobre o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura –


Funcultura, mas vou começar abordando, um pouco, a aérea de fomento,
como ela é vista dentro da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico
de Pernambuco – Fundarpe. Existe o fomento por várias vertentes, o
fomento das Celebrações, em que temos os ciclos que acontecem durante
o ano inteiro, como o ciclo carnavalesco, o ciclo das paixões, o ciclo junino;
além do fomento por Linguagem que é um novo rumo que está se traçando
e que trata especificamente de cada linguagem cultural. Em 2008, já
tivemos o fomento para o Audiovisual separado do restante, o fomento
continuado, que ocorre em programas como o Ponto de Cultura do
Governo Federal e outros desenvolvidos pela Fundarpe, junto com o
governo do Estado; as células culturais na escola, Programa Desenhando
Cultura, Comunicando Cultura e a Lei do Patrimônio Vivo, que até já foi
tratada em outra seção.
O Funcultura é a soma desses todos; na verdade, ele é o maior edital de
cultura do Estado e trata do fomento das várias linguagens instituídas pela
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 162

Vo l . 1

Fundarpe. Acreditamos que as iniciativas em várias frentes visam fortalecer


os canais de participação popular, do desenvolvimento de Pernambuco.
|

O Funcultura foi criado em 2003. No ano de 2007, houve uma


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

ampliação significativa de 200%, inclusive, no desenho, na arquitetura e


no próprio Fundo que passou a ser colocado em diversas linhas de ação.
Em 2008, o volume de recursos passou para 12 milhões e ele começou a
ficar cada vez mais inserido na política pública de Cultura por meio dos
fóruns regionais, através dos quais conseguimos obter as diretrizes, as
prioridades que deveriam ser colocadas no Fundo.
O Funcultura está relacionado dentro do plano de gestão da Fundarpe
que é o Pernambuco na Ação Cultural, sendo alimentado por fóruns e
comissões setoriais que geram planos de linguagens. Dessa forma, cada
linguagem cultural vai gerar prioridades que vão alimentar o Funcultura e,
também, os fóruns em comissões regionais. Pernambuco é dividido em doze
regiões de desenvolvimento, trata-se de um Estado bastante longitudinal e
tem litoral, mata, agreste e sertão. O governo vai até essas regiões, pega as
prioridades para serem aplicadas no Funcultura, garantido a participação
desses municípios.
O Plano Diretor de Cultura para 12 anos foi criado a partir da
162
instituição da Lei da Política Pública de Cultura que prevê a participação
dos canais de gestão, os conselhos, as comissões, fóruns, os planos por
linguagem e as ações estruturadoras dessa política. Tudo isso alimenta o
Funcultura nas suas linhas de preservação, fruição, difusão, formação e
fomento.
Sobre a evolução do Fundo, o volume de recursos de 2006 era de quatro
milhões de reais e, em 2009, chegou a 24 milhões de reais. Em 2006,
tivemos 76 projetos aprovados, número muito inferior à expectativa para
2009, cujo processo de avaliação está acontecendo nesse momento e vai
terminar em fevereiro. Dessa forma, já tivemos os processos pré-
selecionados e que estão sendo agora analisados e julgados para saber quais
serão os vencedores.
A composição do Fundo, neste ano, está dividida da seguinte forma: 15
milhões de reais para área de Linguagens e Regiões, seis milhões de reais
para o edital do Audiovisual que já está funcionando separado dos outros
editais e três milhões de reais para o calendário consolidado daqueles ciclos
todos que já mostramos. Então, dos 15 milhões, a primeira parte ficou no
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módulo I, 11 milhões de reais, onde várias linguagens culturais têm diversas
linhas de ação e cada uma dessas linhas de ação tem assegurado ao mínimo
um projeto aprovado, se houver um candidato que tenha a mínima
condição e esteja atendendo ao edital, esse candidato, obrigatoriamente, é
aprovado. Já no segundo módulo, todos os projetos vão para uma
repescagem e aí a demanda é muito significativa, a quantidade de projetos
por área vai determinar quantos projetos serão aprovados na repescagem.
Os projetos envolvem as seguintes áreas culturais: artes cênicas,
fotografia, literatura, música, artes plásticas, cultura popular, pesquisa
cultural, artes integradas, formação e capacitação e gastronomia. Faço um
destaque para a divisão do patrimônio: artístico, histórico, arquitetônico,
arqueológico e paleontológico, compreendendo museus, bibliotecas,
arquivos, centros culturais e congêneres.
Em relação à área de Patrimônio, aquela comparação que poderíamos
fazer: tivemos 198.941 de reais, em recursos em 2006, em dois projetos
aprovados. A nossa estimativa para 2009 é de mais de 1,4 milhão em mais
de 15 projetos, por quê? São as quantidades de linhas de ações que nós
temos. Precisamos, então, apenas que haja candidatos em todas essas linhas
de ação. Além de patrimônio, os projetos que também têm relação com a
área podem estar nas linhas de pesquisa cultural e de formação, em 163
patrimônio. Em pesquisa cultural nos tínhamos 311 mil reais, em 2006, e
a perspectiva, por ser uma área que cresceu muito, é para mais de dois
milhões de reais, assim como formação e capacitação, que foi de 240 mil
reais, para dois milhões de reais, também em 2009.
Como é que as pessoas têm acesso ao Funcultura? O Fundo é publicado
e lançado nas vias de comunicação, nos jornais, mas, durante todo o ano,
é possível ter acesso às informações por meio do site da Fundarpe, nas
páginas de editais, porque a Política Pública de Cultura foi direcionada para
que todo fomento, tanto aqueles das Celebrações quanto o Continuado,
funcione por meio de editais.
Na área de patrimônio é sempre importante verificar isso com certa
antecedência. E quem pode concorrer ao Funcultura? Os produtores
culturais com situação regular no cadastro de produtores. E o que é um
produtor cultural? Qualquer pessoa física ou jurídica domiciliada no Estado
de Pernambuco há, pelo menos um ano, com inscrição devidamente
homologada no cadastro de produtores. Há um limite de quatro para o
número de projetos aprovados por produtor.
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Vo l . 1

Gostaria de chamar a atenção, porque é o foco da nossa discussão, para


os critérios para a seleção dos projetos do Fundo: valor cultural do projeto;
qualidade técnica do projeto; qualificação do produtor cultural; aspectos
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

sociais do projeto; aspectos de acessibilidade à informação, fruição e


divulgação das atividades.
E quais são os pontos de dificuldade? Quando os produtores não
preenchem algumas dessas documentações que é uma fase eliminatória,
anterior ao julgamento. Em 2008, tivemos apenas 23 projetos protocolados
na área do Patrimônio. Dentre os quais, 17 foram habilitados para
concorrer. Um total de nove foram projetos aprovados nas cinco linhas de
ações existentes, mais três em pesquisa e dois em capacitação. Foi aprovado
um milhão de reais, somando as áreas de Patrimônio, Pesquisa Cultural e
Formação de Patrimônio. Com esse número, foram 17 projetos habilitados
para todo o Pernambuco, e 23 projetos apresentados. É, realmente,
chocante. Alguns projetos envolviam Saberes e Práticas das Parteiras
Indígenas de Pernambuco, é um exemplo de projeto na área de pesquisa
em patrimônio.
Agora em 2009, estamos no meio do processo, tivemos 45 projetos,
somando Patrimônio, Pesquisa Cultural em Patrimônio e Formação em
164
Patrimônio. É um número que me parece muito pequeno diante do
número de projetos que são colocados nas outras áreas culturais. Na área de
música foram mais de 300 projetos colocados. O prejuízo é grande quando
vamos para a repescagem e nossa demanda não é tão grande. Teremos esse
valor de 1.480 milhões de reais, caso todas as linhas tivessem sido
preenchidas. Mas eu já posso dizer a vocês que nem todas as linhas tiveram
concorrentes. Há linhas que não teve nenhum concorrente na área de
Patrimônio.
Aqui estão as linhas na área de patrimônio: obras, restauração de acervos
e bens móveis, projetos de intervenção, apoio a espaços destinados à
preservação da memória, realização de festivais, elaboração e publicação de
manuais de preservação, banco de dados fotográficos, realização de
campanhas de conscientização, programação de oficinas durante os festivais
Pernambuco Cultural, ou seja, uma gama enorme, sendo várias retiradas
dos fóruns regionais. Na área de Pesquisa ficam, basicamente, todos os
inventários, pesquisas e planos. E a área de Formação, que fez o maior
número, é voltada à ação de educação patrimonial.
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Temos uma série de exigências para aprovar os projetos na área de
patrimônio, principalmente, quando se fala em recursos para obras no setor.
Pedimos as metodologias, as plantas aprovadas nos órgãos competentes. E
o que acontece é que, para isso, precisamos ter uma preparação com muita
antecedência. Chamo atenção para os desafios que já concluímos disso tudo,
que são os seguintes:
Temos um edital que atende a várias linguagens – nas outras linguagens
há determinadas exigências mais tranquilas de serem cumpridas, mas na
área de patrimônio é mais complicado. Ex.: Aplicação de 15% no plano de
mídia; 15% do plano de uma obra num planejamento de mídia é
complicado, sendo que quase nenhum produtor consegue atender a esse
critério.
A demanda que é muito grande em outras áreas prejudica a área de
Patrimônio na repescagem. Uma questão que arquitetos, engenheiros,
arqueólogos, antropólogos, sociólogos, historiadores têm: não se enquadram
nessa categoria do produtor cultural e não se cadastram. Depois perguntam:
“Mas eu posso?” E por mais que façamos campanha, ainda não temos um
número significativo de produtores culturais na área de Patrimônio.
O principal de todas as nossas grandes dificuldades, em minha opinião,
são exatamente os projetos de patrimônio; são muito complexos. De forma 165
que não dá tempo, quando o edital sai, de se preparar um projeto. Esse
projeto tem que estar preparado antes do edital sair para que o produtor
consiga tempo hábil de colocar o seu projeto no Funcultura.
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Vo l . 1

DESAFIOS DOS FUNDOS


M U N I C I PA I S D E P R E S E RVA Ç Ã O
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Simone Camelo Araújo*

RESUMO
*Assessora especial O Programa Monumenta é inovador ao trazer a abordagem sustentável
da Fundação
Cultural do Estado
para a área de patrimônio cultural. A criação do Fundo Municipal de
do Tocantins e Preservação é uma exigência do Programa e tem um importante papel no
coordenadora da
UEP Natividade
processo de descentralização da gestão desse patrimônio. Atualmente, há
(TO) dificuldades para sua implantação pelas cidades participantes. Vários fatores
contribuem para isso. Não é apenas a falta de recursos, mas principalmente
os desafios na execução de todas as ações para tornar possível a
operacionalização das políticas públicas a que se propõe. Na implantação há
um longo e difícil caminho a percorrer. Os desafios são grandes e é
fundamental que todos os envolvidos assumam as responsabilidades.
166
PALAVRAS-CHAVE
Sustentável, Descentralização, Desafios.

O Monumenta é um programa de recuperação sustentável do


patrimônio histórico urbano brasileiro sob tutela federal, resultante de
Contrato de Empréstimo entre o Banco Interamericano de
Desenvolvimento – BID e a União, com apoio técnico da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco. Por
recuperação sustentável entende-se a execução de obras de conservação e
restauro e de medidas econômicas, institucionais e educativas, para ampliar
o retorno econômico e social dos investimentos do Programa, aplicando-os
em sua conservação permanente.
Na operacionalização do Monumenta, para que haja a garantia dessa
conservação permanente, as ações estão definidas através de um
Regulamento Operativo específico. Uma das importantes estratégias é
estimular ações compartilhadas entre governos de todas as esferas,
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comunidade e iniciativa privada. Isso se torna possível através do Fundo
Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural.
O funcionamento dos Fundos Municipais de Preservação é um grande
desafio. Em contato com as Unidades Executoras dos Projetos da maioria
das cidades participantes, percebe-se que os Fundos, apesar de criados em
todas as cidades, não estão funcionando. Mesmo não estando numa situação
ideal, Natividade, no Estado do Tocantins, superou esse desafio. E estou
neste evento como coordenadora da Unidade Executora do Projeto em
Natividade para falar sobre os fundos municipais de preservação. Em
Natividade foi constituído e está funcionando o Fundo de Preservação que
recebeu o nome de Fundo Municipal de Preservação do Patrimônio
Cultural de Natividade – Fuppac.
Eu não sei se o público aqui presente tem conhecimento do Programa
Monumenta. Se já ouviram ou leram informações mais detalhadas sobre essa
experiência. Para nós que trabalhamos diariamente com o projeto torna-se
fácil o entendimento do processo. Por esse motivo, o tema será abordado
não apenas sobre os seus desafios, mas de forma bem simples para um bom
entendimento por todos. Vamos abordar: o que é um Fundo Municipal de
Preservação, o histórico, sua natureza jurídica, a operacionalização, como se
dá a gestão, o que é um plano de aplicação, qual a origem dos recursos, como 167
devem ser destinados os recursos, a relação entre conselho e fundo, como se
dá o controle e a fiscalização, o plano de mobilização social e quais as
principais dificuldades e quais os maiores desafios.

O QUE É O FUNDO MUNICIPAL DE PRESERVAÇÃO DO


PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL
É um instrumento criado pelo Monumenta para garantir a
sustentabilidade das ações de preservação e conservação, que foram ou estão
sendo realizadas no âmbito dos projetos das cidades. É criado por Lei
Municipal e está no Anexo E do Regulamento Operativo a obrigatoriedade
de sua existência – versão de setembro de 2006. Regulamento Operativo é
o documento que estabelece os termos, regras e condições que regem as
ações do Programa. A duração mínima exigida do Fundo é de 20 anos. É
importante saber que o Programa fornece modelo de minutas da Lei de
Criação e do Decreto de Regulamentação dos Fundos Municipais de
Preservação. Além da legislação municipal, há uma legislação federal (Lei nº
4.320/64: estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e
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Vo l . 1

controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos municípios


e do Distrito Federal) que regula os Fundos Especiais, e existe ainda uma
cartilha específica sobre o assunto publicada pelo Monumenta.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

O HISTÓRICO DE IMPLEMENTAÇÃO
O fundo foi criado em todas as cidades participantes do Monumenta.
Como já disse, é uma exigência do Programa, mas poucas passaram dessa
fase de criação. Ou seja, não deram continuidade para tornar viável o seu
funcionamento. No contato com várias Unidades Executoras de Projetos –
UEPs, todos foram unânimes em falar da complexidade e da dificuldade de
implementar os Fundos de Preservação. Por quê? O que deve ser feito? É
necessário constituir legalmente um Conselho Curador. O prefeito, depois
de divulgado o processo para a formação do Conselho Curador, nomeia os
representantes indicados pelas três esferas de governo (municipal, estadual
e federal) e pelos diversos setores participantes. O Conselho constituído
elabora o Regimento Interno que irá regulamentar seu funcionamento,
define o Plano de Ação especificando as ações que serão realizadas com
recursos do Fundo e o envia para o gestor.
Algumas cidades chegaram a constituir o Conselho, mas estão na fase de
atualização da Legislação, elaboração ou alteração do Regimento Interno.
168
Segundo informações recentes, apenas duas estão com o conselho curador
constituído e funcionando – Natividade (TO) e Cachoeira (BA). No
entanto, Natividade foi a única cidade que utilizou os recursos.
Há necessidade de revisões e adequações em todas as documentações
referentes ao Fundo que foram feitas na época da assinatura do Convênio
entre a União e os municípios (alguns municípios, a contrapartida foi
assumida pelo Estado – que é o nosso caso e o da Bahia). Essas alterações
foram orientadas pelo Monumenta em 2007, através do Programa de
Capacitação das Cidades Conveniadas, com a realização da 1ª Oficina dos
Fundos de Preservação. Há um arquivo digital pelo qual é possível obter todas
as orientações que são fundamentais para o bom funcionamento dos fundos
municipais de preservação. E isso é uma responsabilidade do município e do
conselho curador, com adequação à realidade de cada localidade.

QUAL A NATUREZA JURÍDICA?


O Fundo é de natureza contábil e os recursos gerados, direta ou
indiretamente, pelo Projeto, serão depositados especificamente para esse
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fim, nos termos da Lei Federal nº 4.320, de 17 de março de 1964, que
estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos
orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito
Federal (artigos 71 a 74: título VII onde constitui os fundos especiais).

A OPERACIONALIZAÇÃO
A operacionalização se dá através do órgão ou ente municipal a que se
vincula: CNPJ, conta corrente especial (x / Fundo), contabilidade,
orçamento – programa de trabalho específico, prestação de contas e quadro
de funcionários.
No caso de Natividade, o fundo é operacionalizado pela Prefeitura
através da Secretaria Municipal de Educação. Em Ouro Preto, inicialmente
estava ligado diretamente ao gabinete do prefeito, mas agora está na
Secretaria Municipal de Patrimônio. Há casos de o fundo não ser gerido
pela Prefeitura, como por exemplo, em Cachoeira na Bahia.

COMO SE DÁ A GESTÃO?
O Fundo é administrado pelo gestor e pelo conselho curador. O gestor do
fundo municipal é o titular da pasta à qual se vincula e é administrado
conjuntamente com o conselho curador. O gestor que deve ser conselheiro é 169
o responsável por organizar e planejar a realização de ações que o Conselho
definiu no Plano de Ação. Portanto, é a decisão dos conselheiros que define as
ações que serão realizadas com recursos do fundo, ou seja, o plano de aplicação.
O Conselho Curador é um grupo formado por representantes das três
esferas de governo – federal, estadual e municipal – e da sociedade civil,
definidos na lei e no decreto que institui o Fundo. É paritário. O Conselho
Curador elege um dos membros para presidi-lo. Segundo orientações, o
mandato é de dois anos, proibida a reeleição, e a escolha deve recair, de
forma alternada, entre representantes do setor público e do setor privado.
Normalmente o Conselho é formado por dez membros titulares. É
importante ter os suplentes para um melhor funcionamento. Em
Natividade essa alteração está sendo providenciada.

O QUE É PLANO DE GESTÃO E O PLANO DE APLICAÇÃO?


O Plano de Ação é a organização de ideias e o estabelecimento de
prioridades. Os conselheiros definem as ações que serão realizadas com os
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Vo l . 1

recursos do Fundo. No Plano de Ação as providências são devidamente


listadas na ordem em que devem ser realizadas. Deve constar também no
Plano de Ação quem é o responsável pela execução, qual o prazo e/ou a data
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limite para a sua conclusão e quais os recursos necessários.


O plano de aplicação é a programação da distribuição dos recursos do
Fundo, sob a responsabilidade do gestor. Numa planilha simples, registra-
se toda entrada dos recursos e demonstra quando e como podem ser gastos,
seguindo o Plano de Ação elaborado e aprovado pelo Conselho. Seguindo
a legislação, os recursos não podem ser utilizados com despesas de capital,
apenas despesas correntes. Ou seja, os gastos só podem ser realizados em
material de consumo, serviços de terceiros (pessoa física ou jurídica). Não
é legal utilizar em material permanente ou em investimento. É vedada a
utilização de recursos de fundos especiais para pagamento de pessoal.
O plano de aplicação é, portanto, um planejamento como ferramenta de
trabalho. Seguindo os novos modelos da lei de criação, a decisão de
aplicação dos recursos é de responsabilidade do Conselho Curador. O
conselho é responsável pelos gastos dos recursos da conta específica do
Fundo. Deve-se ter em mente que os recursos são públicos e que há Lei de
Responsabilidade Fiscal.
170 Em Natividade, inicialmente, utilizou essa forma de definição da
aplicação dos recursos. O Conselho decidiu que era importante adquirir
com recursos do Fundo Municipal um imóvel para funcionar a sua sede.
Como existia um imóvel importante no centro histórico que estava sob
risco de desabar, a família com várias dificuldades para fazer a intervenção,
o poder público municipal sendo pressionado para tomar iniciativa e
resolver a questão, utilizaram-se os recursos do Fuppac no pagamento da
desapropriação realizada pela Prefeitura e o Iphan fez a restauração. Nesse
imóvel, além de sede do Fundo, haverá um local para desenvolvimento de
atividades de preservação do nosso patrimônio cultural.

QUAL A ORIGEM DESSES RECURSOS?


São várias as origens dos recursos de um Fundo Municipal de
Preservação. Depende basicamente de como foram ou estão sendo
investidos os recursos do convênio do Monumenta na localidade. As duas
origens mais importantes, que são obrigatórias, são a dotação orçamentária
anual e os pagamentos dos financiamentos dos imóveis privados. O Estado
e/ou o município deve(m) incluir no orçamento de cada ano uma dotação
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específica destinada ao Fundo Municipal de Preservação. Várias cidades
estão com dificuldades quanto a essa questão. A situação piora nas
localidades em que o Estado assumiu a contrapartida do convênio. Em
Natividade, o Governo do Estado do Tocantins cumpriu o seu papel e fez
o depósito de três anos (que ainda não foi totalmente gasto pelo município)
e aguarda a prestação de contas para providenciar a sua regularização. Há
dificuldades pelas próprias Prefeituras em destinar o recurso orçamentário
para a conta do fundo. Várias cidades enfrentam esse problema.
A fonte principal é o resgate dos empréstimos concedidos a proprietários
privados em que o retorno é para o fundo de preservação. Então o
financiamento para a recuperação de imóveis privados, que estão em todos
os convênios do Monumenta, é o instrumento direto para a intervenção e
manutenção de forma abrangente nos centros históricos.
Às vezes eu fico sentida com a finalização do programa em Natividade
porque apesar de o município ter saído à frente com uma participação
significativa da comunidade no financiamento aos imóveis privados, o
valor total foi pequeno. Ficaram de fora alguns proprietários que não
acreditaram num primeiro momento e perderam a chance de participar
desse importante processo. Hoje o escritório da Unidade Executora do
Projeto é bastante procurado para saber sobre a realização de um novo 171
Edital de Seleção. Então, as cidades que tiveram seus convênios
prorrogados, que procurem viabilizar o máximo de imóveis privados
participantes. Porque esse retorno é a principal fonte para o fundo
municipal. E isso resulta em novos projetos e em ações de preservação na
cidade. A esperança para nós é que essa ação tenha continuidade através do
PAC de Cidades Históricas.
Tem outras receitas possíveis, que vêm de alugueis, concessão de uso,
entre outros; tem recursos de convênios realizados; contrapartida municipal
decorrente de acordos e convênios; receitas financeiras; receitas provenientes
de serviços e eventos diversos; contribuições ou doações de pessoas físicas
ou jurídicas, públicas e privadas, nacionais e estrangeiras. E há receitas que
dependem da legislação específica do município que são recursos
provenientes de contribuição de melhoria gerada na área protegida, isso
precisa de uma lei específica. Além de outras receitas.
O mais importante de tudo é que a garantia de recursos está
possibilitando a criação de uma política local de patrimônio. Uma
experiência fantástica que dá trabalho, mas que se mostra viável.
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QUAL A DESTINAÇÃO DOS RECURSOS?


O Conselho Curador tem autonomia para decidir onde aplicar os
|

recursos. No modelo sugerido pelo Programa Monumenta em 2007, no


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

artigo 5º da lei que cria o Fundo diz:


Os recursos provenientes das receitas serão aplicados, mediante a
decisão do Conselho Curador do Fundo de Preservação do
Patrimônio Histórico e Cultural, nas ações de preservação e
conservação a serem realizadas na área protegida. E deve ser
incentivada a participação popular na discussão de ações, projetos e
orçamentos, assim como tornar disponível para qualquer cidadão,
conforme exige a Lei de Responsabilidade Fiscal – nos artigos 48 e 49,
o quê e onde estão sendo aplicados os recursos.
Se os municípios não alteraram a sua lei e o seu decreto de acordo com
o modelo atual, há algumas limitações com relação ao uso dos recursos. É
bom procurar adequar essa questão, pois o controle e a fiscalização dos
recursos do Fundo seguem a mesma dinâmica de quaisquer outros recursos
públicos.

A RELAÇÃO ENTRE CONSELHO E FUNDO


172 Ao gestor do fundo compete:
• praticar atos necessários à gestão do Fundo;
• expedir atos normativos relativos à gestão e à alocação dos recursos
do Fundo;
• elaborar programas anuais e plurianuais (Plano de Aplicação),
submetendo-o ao Conselho Curador;
• submeter à apreciação e deliberação do Conselho as contas relativas
à gestão do Fundo;
• dar andamento aos programas e projetos em execução devendo
apresentar eventuais alterações à prévia anuência do Conselho.

Ao Conselho Curador compete:


• estabelecer as diretrizes e os programas de alocação de recursos,
plano de aplicação, de todos os recursos do fundo em consonância
com a política nacional de preservação do patrimônio histórico e
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cultural. É importante não perder o foco da política nacional que está
sendo implantada;
• acompanhar e avaliar a gestão econômica, financeira e social dos
recursos;
• acompanhar e avaliar o desempenho dos programas realizados;
• apreciar e aprovar os programas anuais;
• exercer controle dos recursos;
• recomendar medidas cabíveis para a correção;
• aprovar seu Regimento Interno.

COMO SE DÁ O CONTROLE E A FISCALIZAÇÃO DO


FUNDO MUNICIPAL?
O controle orçamentário, financeiro, patrimonial e de resultados será
efetuado pelo Conselho Curador, na forma que dispuser o Regimento. O
controle e a fiscalização dos recursos dos Fundos seguem como já falei a
mesma dinâmica de quaisquer outros recursos públicos. Sua prestação ou
tomada de contas está inserida nas contas do órgão a que está vinculado e
está sujeito à fiscalização dos órgãos de Controle Interno e Externo. 173

É necessário ficar claro para os administradores municipais. O nosso


prefeito gastou parte dos recursos sem a devida autorização do Conselho,
comprou várias lixeiras. Ele foi à reunião do Fundo e falou: “eu fiz uns
gastos porque era importante para a manutenção da limpeza do centro
histórico”. Depois de ouvir as minhas explicações, ele reconheceu o erro e
solicitou a análise do conselho para solucionar a questão. Isso serve de
exemplo para todos, pois se o gestor decide por conta própria onde gastar
os recursos, não levando em consideração a decisão do Conselho Curador
ou não respeitando o Plano de Ação, os conselheiros só vão tomar
conhecimento após o fato ter sido realizado.

PLANO DE MOBILIZAÇÃO E PARTICIPAÇÃO SOCIAL


O plano de mobilização e participação social é o que vai ser feito no
município para mobilizar e ter a participação e envolvimento da
comunidade com a preservação do patrimônio cultural. A divulgação é
fundamental para que se tenha sucesso nessa ação.
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PRINCIPAIS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELOS


CONSELHOS
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

As principais dificuldades enfrentadas pelos Fundos é primeiramente a


própria não formação dos conselhos. Na maioria das cidades participantes
do Monumenta está acontecendo isso. Há também as mudanças de gestão
e a demora nas devidas nomeações, tanto pelo gestor municipal, como pelos
demais integrantes – Governo Federal, governo do Estado e entidades
representadas. Recentemente teve a criação das superintendências estaduais
do Iphan e não foi feita a formalização imediata dos membros no Conselho
– dos representantes do Iphan assim como do Ministério da Cultura.
Natividade está nessa situação. Outra dificuldade é a não elaboração do
Regimento Interno – a maioria dos fundos tem esse problema; falta de
efetividade dos conselhos; a indisponibilidade de recursos é comum – alguns
fundos que ainda não têm dinheiro em conta e outros que têm o dinheiro,
mas não aplicaram nada por problemas administrativos.
As dificuldades de repasse das informações detalhadas sobre a
movimentação dos recursos na conta corrente do Fundo pelo agente
financeiro – Caixa Econômica Federal – são frequentes. Há vários
problemas quanto à transferência dos pagamentos dos financiamentos para
174 a conta do fundo. Não há uma operação constante de transferências dos
recursos. Para quem trabalha com planejamento sabe o que isso acarreta. Se
não se sabe quanto de recursos o Fundo realmente tem e a previsão do que
vai entrar ao longo do ano, não tem como fazer um plano dar certo. Pode
ser classificada também como dificuldade a falta de articulação entre os
níveis de governo.

O DESAFIO NA ATUAÇÃO DOS CONSELHOS


Após todas essas definições e explicações, podemos perceber os maiores
desafios na atuação dos Conselhos. Citando:
• Pensar a atuação dos conselhos como uma possibilidade de partilhar
poder. Isso deve ser bastante trabalhado, principalmente, com os
prefeitos. Mostrar que o Programa criou essa estratégia para que o
poder de decisão seja efetivamente partilhado. Permitir de fato a
participação de todos;
• Criar um espaço para decisão de fato e com a participação da
população;
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• Deve-se analisar também quem está ou não está dentro do
Conselho. É importante analisar a representatividade. Principalmente
nas cidades maiores onde há vários segmentos que podem representar
a comunidade. Nas cidades pequenas isso não é problema, muito pelo
contrário, nessas têm dificuldades de renovação dos conselhos. É
muito importante que os integrantes sejam capacitados. Muitas vezes
a atuação fica vulnerável pela falta de conhecimento. Já foi exposta
essa situação para a Unidade Central de Gerenciamento do Programa
Monumenta – UCG e deve ser providenciada a qualificação dos
conselheiros, não deixando de fora os gestores municipais;
• Produzir dados e subsídios para as decisões dos conselheiros;
• Promover a articulação entre os conselhos existentes na cidade. Com
a exigência do governo federal de se ter conselho em todas as áreas,
nas cidades pequenas as pessoas atuantes participam de vários
conselhos. Mas o que se percebe é que não há articulação entre os
conselhos. Portanto, é um desafio;
• Construir estratégias de articulação entre o governo federal, estadual
e municipal. Um fato importante para essa questão foi à criação das
Superintendências estaduais do Iphan que possibilita uma
proximidade e uma atenção maior das localidades tombadas; 175

• Articular com outros espaços participativos existentes na cidade.


Em cidades que têm o orçamento participativo, deve-se verificar se
não existem conflitos entre esse orçamento com o que está previsto
no Plano de Ação;
• Obter melhores resultados na gestão dos recursos públicos. Se o
Plano de Ação foi discutido e analisado, se tudo estiver sendo
respeitado na hora da aplicação, pressupõe-se que tenha realmente
melhor resultado na gestão;
• Manter a sustentabilidade é uma questão complexa e que pode gerar
muitas discussões. No início do programa, a obra para ser
contemplada teria de provar através do seu uso individual a
sustentabilidade. Hoje essa visão já foi alterada. Pensando em investir
em algo que retornasse de forma rápida e que ao mesmo tempo
divulgava o patrimônio cultural que os conselheiros do Fundo de
Preservação de Natividade decidiram investir em comercialização de
camisetas, um artigo bastante procurado, mas que não havia no
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mercado local. Isso nos mostra que as decisões dos conselheiros


devem levar em consideração a realidade da sua comunidade. Um
fator importante que coloca em risco a sustentabilidade é a
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

inadimplência dos pagamentos do financiamento pelos proprietários.


É muito importante que o município acompanhe esses pagamentos
e procure resolver as inadimplências. Deve ser feito um trabalho de
conscientização da comunidade mostrando a importância dos
recursos recebidos e mais ainda a importância de que efetuem os
pagamentos;
• Estar atento quanto aos recursos públicos para os conselhos. Os
conselhos só vão ter poder de fato se tiver dinheiro. Os conselheiros
devem estar atentos quanto foi definido no orçamento do município
para o Fundo e como estão sendo realizadas as transferências;
• Necessidade de aprimorar os ensinamentos do processo atual para
compreender a importância da cultura nas cidades. Não ter uma visão
apenas local, mas ter uma visão mais ampla da cultura é também um
desafio;
• E fechando os maiores desafios, trabalhar cultura como qualidade
de vida e desenvolvimento humano. E, mais recentemente, a
176 economia da cultura. A cultura passando a ser tratada como fator
dinâmico que interage com as lógicas econômicas e sociais,
integrando-se às políticas de desenvolvimento urbano implementadas
pelo município.

A experiência nos mostra que o apoio dos técnicos das UEPs é


fundamental para que os Fundos Municipais de Preservação se tornem
viáveis. E podemos afirmar que a experiência do Monumenta contribuiu
para que a revitalização de centros urbanos tombados deixasse de ser
relegada a segundo plano para se tornar uma importante política de
governo, através do Iphan.
O Monumenta é um programa e finaliza, mas o fundo municipal de
preservação foi criado e tem a responsabilidade de estruturar tudo isso que
foi falado, que é a descentralização da gestão do patrimônio investindo na
criação de uma política local de patrimônio. É essa a responsabilidade e o
grande desafio dos municípios, dos conselheiros especificamente.
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O P O D E R P Ú B L I C O M U N I C I PA L
E AS LEIS DE INCENTIVO

Luiz Fernando Mainardi*

RESUMO
O texto retrata a experiência do município de Bagé, no Rio Grande do * Ex-prefeito de
Bagé (RS)
Sul, que encontrou na política cultural e, sobretudo, na preservação de seu
patrimônio cultural novos caminhos para resolver os problemas da gestão
pública. Para isso, investiu em três diretrizes: a capacitação de equipes para
preparação de bons projetos, principalmente, através da Lei Rouanet; um
programa de inclusão social por entender que cuidar do patrimônio não se
opõe a cuidar de pessoas, mas são forças complementares e, finalmente, a
inserção da política de preservação do patrimônio cultural no Plano Diretor
do Município.

PALAVRAS-CHAVE
Projetos culturais, Inclusão social, Plano Diretor. 177

A minha fala não é tão cômoda como outras feitas a partir de uma visão
mais centrada na área técnica, na área de política pública de preservação ou
da área cultural do patrimônio cultural histórico construído, arquitetônico
no seu município, Estado e país.
Quando participamos do outro lado do balcão, na qualidade de prefeito,
cada secretário que chega, cada coordenador que conversa mostra a justeza
do que ele está apresentando e diz que aquilo é prioridade. Então, tudo
acaba sendo prioridade. Exatamente por isso a cultura no nosso país, ao
longo dos anos, acabou deixando de ser uma prioridade, efetivamente.
Porque as questões sociais, de infraestrutura, outras questões sempre se
puseram com uma força muito grande e, apesar disso, conseguimos fazer
com que o Brasil, através dos entes federados, pudesse ter políticas culturais
definidas. Por exemplo: estamos agora discutindo o Sistema Nacional de
Patrimônio, porque até então não havia. Agora, recentemente, e méritos
para a equipe do Iphan com todos os seus profissionais, sob a coordenação
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Vo l . 1

de Luiz Fernando de Almeida, que tem colocado na ordem do dia o tema


da preservação. Aliás, surge um programa para isso chamado PAC, que não
dá para contemplar todos os municípios brasileiros, mas alguns já têm o
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

foco. Começou com menos e hoje está com 160, 190 municípios, e temos
que intencionar ampliar esse número cada vez mais.
A cultura, na verdade, é o tema que escolhemos quando queremos fugir
das responsabilidades. É muito comum as pessoas dizerem que a Cultura
está acima da política. É uma grande bobagem; quem diz isso não tem
efetivamente políticas culturais como prioridade na sua área de atuação. O
que nós precisamos são de políticas culturais, porque a cultura se insere
como uma das áreas, no meu entendimento, mais importantes e universais
da atuação do gestor público, tanto em nível de município, quanto de
Estado e de país.
O Rio Grande do Sul, por exemplo, é riquíssimo do ponto de vista da
sua formação étnica, cultural, das culturas trazidas pelos europeus. A
formação étnica cultural do nosso Estado é uma formação completamente
diferenciada dos outros Estados porque se reflete em todas as áreas da
música, da dança, do folclore, culinária e também na arquitetura. Portanto,
é muito forte isso. E, infelizmente, nos últimos tempos no Estado do Rio
178
Grande do Sul a área da cultura tem sido, absolutamente, secundarizada.
Apesar dos esforços de quem trabalha, dos servidores públicos do Rio
Grande do Sul, dos produtores culturais, dos próprios artistas, atores e
produtores culturais, no sentido mais geral.
A nossa experiência em Bagé é uma experiência muito complicada para
se explicar o que aconteceu. Não tínhamos nenhuma experiência que
poderia servir de paradigma. Quando assumimos a Prefeitura, o
funcionalismo estava com 23 meses de salários atrasados, sem contar
problemas de toda ordem. Tudo é importante.
Como vamos trabalhar com isso, o que é prioridade? A primeira
definição foi de que tudo era prioritário. A segunda definição foi que
deveríamos qualificar o máximo possível as nossas equipes, incentivá-las,
de forma que pudéssemos produzir, fazer projetos. Eu não concebo
nenhuma possibilidade de mudança de uma determinada situação de
avanço, de aperfeiçoamento seja o mínimo que for, que não seja a partir de
bons projetos.
E nós tivemos a sorte de reforma e restauro dos prédios mais importantes
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de Bagé. Quando fomos questionados, quando abrimos o debate sobre o
Plano Diretor, iríamos iniciar o processo de tombamento de imóveis
particulares para criar uma política dentro de uma política municipal de
preservação do que foi edificado nesses quase 200 anos de Bagé. Queríamos,
exatamente, trilhar um critério capaz de fazer uma transferência de recursos
por meio da venda do índice de construção, para a preservação dos imóveis
particulares. Isso seria feito através da compra, a partir de uma
regulamentação. E fomos questionados. Queríamos estabelecer políticas
para as pessoas particulares, para os proprietários individuais particulares
de prédio, enquanto o poder público não fazia a sua parte. Estávamos com
o Museu vazio, caindo o teto, enfim, era o caos. E nos demos conta de que
deve- se fazer, primeiro, o dever de casa; temos de dar o exemplo.
A partir daí, procuramos o Iphan e começamos a descobrir formas de
financiamento. Olhávamos para um lado, vimos em Pelotas o monumento.
Tem como entrar no monumento? Não. Procurava o orçamento da União,
não tinha dinheiro; o orçamento do Estado não tinha dinheiro; o município
estava quebrado e o prédio estava caindo. E foi, exatamente, através do
contato com o pessoal do Iphan – na época José Nascimento Junior estava
lá – que começamos a achar um caminho. Eles foram até Bagé e fizemos
uma reunião, quando optamos por intensificar o trabalho com relação à
Lei Rouanet. 179

A partir daí, procuramos bons projetos, qualificamos uma equipe,


preparamos os projetos e fomos buscando um por um. E fomos tendo
parceiros nesse meio tempo. A Petrobras, o BNDES, Eletrobrás e outras
empresas particulares e acabamos restaurando, praticamente, todos os
nossos prédios. A questão que fica para mim é que esse foi o caminho que
nós achamos. Fiz o esqueleto do que ia falar e acabei não falando o que de
fato deveria, mas acho que, ao menos, algumas coisas ficam explicadas.
Primeiro, não há como se pensar a preservação do patrimônio como um
valor cultural, turístico de valorização de nossa cidade se isso não está
inserido em um projeto de cidade. Não tem como achar que a nossa cidade
é bonita, que deve ser visitada, que temos o orgulho de falar a todo mundo,
se encontrarmos crianças na rua pedindo esmolas ou dormindo em
marquises. Isso é uma contradição brutal no meu entendimento.
Cuidar do patrimônio não se opõe a cuidar das pessoas, são ações
complementares. No nosso caso, isso acabou sendo uma diretriz. A cidade
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Vo l . 1

é bonita sob o ponto de vista da estética, mas a estética se faz também pela
gente, pelas pessoas. Pensamos isso, ao longo do tempo, no sentido de
trabalhar um forte programa de inclusão das pessoas. Fizemos uma amostra,
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

em 2006, com aproximadamente 63 programas de inclusão social.


Segundo, devemos ter um Plano Diretor de fato moderno, que possa ser
permanentemente atualizado. A partir desse Plano Diretor é que temos de
estabelecer a política de preservação do patrimônio.
Terceiro, a inventariação. É um absurdo, hoje, termos tantos problemas
no nosso país. Não se trata de nenhuma cidade especificamente, mas nós
andamos por esse Brasil, no meu caso o Rio Grande do Sul, e encontramos
prédios lindíssimos, de valor extraordinário, em ruínas. Quando, ao mesmo
tempo, a gente ouve dizer: “Tem dinheiro sobrando no PAC, tem dinheiro
sobrando neste ou naquele outro lugar”. Coisa que não tinha antes. Tudo
bem, antes não tinha dinheiro para nada. Faltou essa transição de quando
não tinha dinheiro e, portanto, não tinha projeto porque não precisava ter.
E hoje tem dinheiro, mas não tem projeto.
Precisamos nos capacitar. Talvez, a partir deste Fórum possamos tirar
uma grande ação nacional para que possamos nos preparar em nível de
município, em nível de Estado e nacional. Precisamos capacitar equipes em
180 todo o Brasil na preparação de bons projetos para exercer a força possível
no sentido que se tenha cada vez mais recursos nas três esferas de governo;
da Lei Rouanet, de financiamentos internacionais que são fontes possíveis
de se arrumar; outras fontes não só do movimento, mas também do
BNDES que pode ser o financiador não só a partir dos patrocínios, mas
também a partir de financiamentos.
Precisamos de uma grande ação capaz de nos preparar para isso e não se
trata de uma capacitação somente para a elaboração de projetos de restauro,
mas também nos projetos complementares aos sítios históricos, fazer com
que as áreas sejam recuperadas na sua plenitude.
E, por último, parece-me que o mais importante é trabalhar na busca da
conscientização da comunidade, da nossa população. Isso é o que nos dá
garantia de continuidade desse bom momento que estamos vivendo. Um
momento extraordinário na questão do debate e do início do processo de
recuperação do nosso patrimônio. Prédios de cento e tantos anos começam
a ser recuperados. Debates que não se faziam antes hoje estão acontecendo
e precisamos envolver o conjunto da sociedade nesse debate. É por isso que
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Mesa-redonda 1 | SNPC - Instrumentos e formas de financiamento


a iniciativa foi tomada em Bagé pela vereadora Jussara Carpes, julgo ser
muito importante a constituição de frente de vereadores em defesa do
patrimônio. E por quê?
Porque essa frente bem articulada vai levantar um vereador em cada
município, que vai ser aquele chatinho que vai para a tribuna, rádio, jornal,
dizer que tem que cuidar daquele patrimônio. É isso que nós precisamos, é
ter um chato do patrimônio público incomodando o prefeito, o Ministério
Público, seja lá quem for, em todos os lugares do Brasil. É essa força que
temos de levar para a Assembleia Legislativa para termos deputados
preocupados com isso. Para o Congresso Nacional, para que possamos ter
parlamentares, igualmente, preocupados com o patrimônio.
É isso que vai fazer com que os governantes possam investir nessa área.
Por exemplo, estamos, no Rio Grande do Sul, iniciando um processo de
debate do programa de governo – estou governando a pré-campanha do
candidato, o ministro Tarso Genro – e estamos pautando a questão da
cultura, em especial essa questão do patrimônio cultural. Precisamos ter
como prioridade do governo a organização do sistema estadual de apoio do
Iphan, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado – Iphae,
um sistema que permita ajudar os municípios. Estou convencido de que
esse processo de conscientização é decisivo para a continuidade de tudo que 181
estamos fazendo. E copiarmos as leis bem elaboradas, as iniciativas corretas
– quero cumprimentar Carlos Henrique Rangel pela iniciativa com o ICMS
Patrimônio Cultural, que os mineiros adotaram há 15 anos.
Eu discuti muito a questão do Valor Adicionado Fiscal, 75% que
devolvem ao município em função do que os municípios não arrecadam;
em função do que os municípios movimentam na economia. Isso é a coisa
mais perversa do mundo, porque o município rico fica cada vez mais rico
porque retorna mais dinheiro em função não do que ele arrecada de ICMS,
mas do que ele efetivamente contribuiu. Então, uma grande empresa que
vai para um determinado lugar, financiada através de grandes incentivos
fiscais, muda a realidade daquele município. Nisso não temos nenhuma
interferência, não sobram 25% para mexer. É nesses 25% que vocês
mineiros tiveram a inteligência de colocar a obrigatoriedade dos municípios
trabalharem com o tema da cultura. E a partir da organização dos seus
sistemas municipais, da organização local, da preservação do patrimônio é
que terão mais ou menos ICMS.
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 182

Vo l . 1

Parabéns por essa iniciativa e acho que isso colabora para que
continuemos avançando naquilo que chamo de conscientização. É ela que
vai fazer com que o PAC1 das Cidades Históricas possa acontecer daqui a
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

um tempo. O PAC2, para que possamos, daqui a alguns anos, ter mil
municípios, os quais, por menores que sejam, tenham um patrimônio
edificado, construído, que marca uma época, que marca toda uma história
e que o povo daquela região sinta-se orgulhoso ao perceber que aquilo foi
recuperado.
Quero dizer que, nos meus oito anos de Prefeitura, pude observar que o
que mais eleva a autoestima de uma comunidade é uma praça bem feita,
recuperada, restaurada. Porque é o que tem de mais público. Ela foi feita
para passear, namorar, fazer comícios, reuniões, brincar, caminhar. E a outra
coisa que eleva a autoestima de uma população é um prédio bonito,
recuperado, bem iluminado, um prédio rico, onde as pessoas se
reencontram com o passado e mostram com orgulho para aqueles que lá
chegam e para si mesmo. Isso faz parte da estética, e a estética também ajuda
a alimentar a alma.

182
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 183

Relatório síntese
SISTEMA NACIONAL DE
P AT R I M Ô N I O C U LT U R A L ( SN PC)

INSTRUMENTOS E FORMAS DE FINANCIAMENTOS


Coordenadora: Maria Emília Nascimento Santos (Iphan)
Relatora: Letizia Vitale (consultora Iphan)

COMUNICAÇÕES
Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, Evaristo Nunes
(Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura/MinC)
Programa Mecenas, Tenente-coronel José Cláudio (Diretoria do
Patrimônio Histórico e Cultural do Exército)
O BNDES Cultural, Luciane Gorgulho (BNDES)
ICMS Patrimônio Cultural em Minas Gerais, Carlos Henrique Rangel
(Iepha/MG)
183
A experiência de Pernambuco, Érikca Rocha (Fundarpe)
Desafios dos fundos municipais de preservação, Simone Camelo Araújo
(Unidade Executora do Programa Monumenta/UEP de Natividade/TO)
O poder público municipal e as leis de incentivo, Luiz Fernando Mainardi
(ex-prefeito de Bagé/RS)

RELATO
DESAFIOS PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL
• Análise dos dados/informações dos anos anteriores para poder
alterar rumos e identificar diretrizes de planejamentos futuros;
• Possibilidades de reversão das desproporcionalidades de
investimentos regionais;
• Estruturar um inventário visando à construção de um diagnóstico
que oriente a aplicação adequada dos recursos;
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 184

Vo l . 1

• Estruturar sistema de avaliação e acompanhamento da aplicação


dos recursos financeiros;
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

• Qualificação na formulação dos editais elaborados pelos


patrocinadores para apresentação de projetos.

DESAFIOS PARA A ESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL

• Regulamentação do sistema de financiamento que reflete uma


inadequada relação entre recursos investidos e demandas locais. Não
perder de vista as realidades e exigências dos contextos locais;

• Qualificação dos gestores para responder as exigências da


implementação do Sistema Nacional de Patrimônio. Especificamente
capacitação das estruturas administrativas locais visando à integração
operacional aos mecanismos de financiamentos nacionais;

• Capacitação das entidades/instituições de forma a disponibilizar


ferramentas adequadas qualificando o acesso aos fundos e recursos
184 disponíveis;

• Constituir um marco legal regulamentador do instrumento de


planejamento Plano de Ação – em implementação – relacionado a
um sistema financeiro de modo a formatar um desenho definitivo de
política nacional;

• Articulações e integração dos espaços de discussões/deliberação/


conselhos etc. nas três esferas governamentais;

• Definição dos papéis no sistema de financiamento. Quem faz o


que? Onde? Para quem? etc.

POTENCIALIDADES PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL

• Preexistências de uma rede de relações com bancos, instituições e


órgãos federais;
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Relatório síntese
• Existência dos planos de ação como instrumentos integrados de
várias esferas governamentais;

• Receber percentuais sobre os lucros bancários, taxas de loteria, etc.

POTENCIALIDADES PARA A ESTRUTURAÇÃO DO SNPC


• Abertura do BNDES para incorporar os planos de ação como
critério na distribuição dos recursos;
• Processo em andamento da discussão do projeto de lei do Programa
Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Profic), hoje na Câmara
Federal;
• Aproveitamento das experiências bem-sucedidas de uso dos
impostos vinculados à preservação do patrimônio visando à definição
de diretrizes nacionais.

PARCERIAS ESTRATÉGICAS PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA


NACIONAL
• BNDES, Petrobras, companhias elétricas, etc.
185

PARCERIAS ESTRATÉGICAS PARA A ESTRUTURAÇÃO DO SNPC


• BNDES;
• Patrimônio na pauta política: sensibilização e articulação com os
deputados, parlamentares;
• Ministério Público, CREAs e IAB;
• Iepha e Fundarpe.

OBJETIVOS PARA OS PRÓXIMOS DOIS ANOS (2010-2011)


• Potencializar e qualificar os procedimentos de financiamentos;
• Levantamento de todos os fundos estaduais ativos, verificando as
possibilidades de articulação ou o diálogo comum do sistema
nacional;
ForumPatrimonioCap4:Layout 3 5/30/12 4:14 PM Page 186

Vo l . 1

• Viabilizar o mapeamento nacional e a avaliação do uso dos recursos


financeiros;
|

• Potencialização das experiências de estruturação de sistemas


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

municipais de direcionamento dos impostos para preservação do


patrimônio.

AÇÕES ESTRATÉGICAS QUE DEVEM SER IMPLEMENTADAS NOS


PRÓXIMOS CINCO ANOS (2010-2014)
• Realização de módulos de capacitações regionais para os municípios
e o setor não governamental a partir das necessidades levantadas;
• Capacitação específica para formulação de projetos de preservação
em um sentido amplo;
• Conscientização voltada a um público amplo da sociedade civil
sobre o “valor” do patrimônio cultural;
• Criação do Fundo Nacional do Patrimônio.

AÇÕES ESTRATÉGICAS QUE DEVEM SER IMPLEMENTADAS EM 2010


186 • Trabalhar para que possam ser priorizados os Planos de Ação das
Cidades Históricas (PACH) e nos critérios do Fundo Nacional do
Patrimônio;
• Estruturar marco legal e financeiro do PACH.
ForumPatrimonioCap4:Layout 3
5/30/12
4:14 PM
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Mesa-redonda 1 | SNPC - Instrumentos e formas de financiamento


187
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


SISTEMA NACIONAL DE
P AT R I M Ô N I O C U LT U R A L – SN PC
COOPERAÇÃO, COMPARTILHAMENTO E
DEFINIÇÃO DE PAPÉIS

Honório Nicholls Pereira*

RESUMO
O artigo aborda algumas questões fundamentais para a criação do * Arquiteto e
urbanista, consultor
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural – SNPC. Ao definir o sistema do Iphan/Unesco
como uma rede de políticas públicas, procura identificar seus objetivos e para os Planos de
Ação para Cidades
características, estabelecendo parâmetros necessários para o seu desem- Históricas
penho. As principais questões abordadas são: identificação de atores e papéis
que devem desempenhar; as formas de coordenação e de articulação entre
atores; e os desafios do compartihamento, da descentralização e da
cooperação. O artigo também lista uma série de potencialidades que podem
ser aproveitadas na construção do SNPC. 189

PALAVRAS-CHAVE
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, Rede de Políticas Públicas,
Iphan.

INTRODUÇÃO: SISTEMA COMO REDE DE ATORES


Gostaria de iniciar minha apresentação fazendo alguns questionamentos
acerca da criação do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural – SNPC,
visando estabelecer parâmetros quanto ao objeto, ao objetivo e às
características desse sistema que se deseja implantar. Em primeiro lugar, faz-
se necessário explicitar os motivos que nos levam a pensar o campo do
patrimônio cultural como um sistema.
A pesquisa sobre o Quadro do Patrimônio Cultural, elaborada a partir
de 2008 pelo Iphan, levantou e analisou dados sobre a gestão do patrimônio
cultural nos níveis federal e estadual, resultando na montagem de um
diagnóstico preocupante, que corrobora a tese da necessidade de trabalhar
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:15 PM Page 190

o setor do patrimônio cultural como sistema.1 Senão, vejamos:


Vo l . 1

1. Iphan. Gabinete
da Presidência.
Quadro do • Existem, no setor, muitos atores com poder de decisão,
Patrimônio Cultural
|

[Impresso]. Brasília: representando demandas, interesses e expectativas difusos;


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Iphan, 2008.
• As instituições não dão conta de atender à demanda do setor e, ao
mesmo tempo, podem apresentar competências e atuações
sobrepostas;
• As competências concorrentes entre os entes da federação, definidas
pela Constituição Federal de 1988 – CF/88, resultam, muitas vezes,
em conflitos (quando há interesse de várias partes em um
determinado bem cultural) ou omissões (quando nenhuma parte tem
interesse);
• A prática atual de investimentos no setor é feita sem planejamento
integrado, sem objetivos comuns e sem visão de médio e de longo
prazo;
• Não há uma definição de diretrizes, de prioridades de investimentos
e dos papéis que cada ente ou instituição deve ter no processo
decisório;
• Os processos decisórios de cada ator são independentes e seguem
190 parâmetros, critérios e legislações diversos e, por vezes, incongruentes;
• Não existe pactuação e faltam procedimentos comuns aos diversos
atores participantes do processo decisório.
Fica claro, a partir dos problemas acima elencados, que muitos deles
podem ser equacionados por uma abordagem sistêmica, tornando mais
eficiente e eficaz a gestão do patrimônio cultural. Mas afinal, o que significa
pensar a gestão do patrimônio cultural como sistema?
Como muitos que percorrem a temática dos sistemas, recorrerei à
2. MORIN, Edgar. conhecida definição de Edgar Morin: sistema é um conjunto de partes
Por uma reforma do diferentes e interligadas que interagem entre si com vistas a uma finalidade. O
pensamento. In:
PENA-VEGA, conjunto tende a ser maior e a atuar de modo mais eficiente do que a soma de
Alfredo & suas partes, fazendo emergir certas qualidades que não existiriam se as partes
ALMEIDA, Elimar
Pinheiro de (orgs.). estivessem isoladas.2
Edgar Morin e a crise
da modernidade. Rio Partindo dessas premissas, entendo que o objeto do SNPC é o
de Janeiro:
Garamond, 1969, p.
patrimônio cultural brasileiro e que sua finalidade é conceber e implementar
21-34. formas de gestão e promoção conjuntas de políticas públicas integradas,
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:15 PM Page 191

Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


voltadas à proteção, preservação e valorização do patrimônio cultural
brasileiro, compartilhadas e pactuadas entre entes da federação, instituições
governamentais e sociedade civil.
Tendo em mente a complexidade e a diversidade do setor, as
características dos atores e o espraiamento territorial do seu objeto, entendo
que o SNPC deve se constituir como uma rede de atores articulados com a
finalidade de gerir políticas integradas e compartilhadas na área do
patrimônio cultural, promovendo objetivos comuns e, ao mesmo tempo,
baseando-se na autonomia e na interdependência entre as partes. 3. Sarah Staniforth,
atual diretora do
A proposta de um sistema como rede de atores corrobora a tese de que National Trust do
Reino Unido,
as políticas públicas contemporâneas resultam da interação de atores que defende a adoção da
podem ter interesses, metas e estratégias diferentes, mas que também podem noção de
sustentabilidade
convergir por objetivos comuns. Nesse contexto, a definição de políticas cultural como
passa a depender da negociação e da construção de acordos firmados entre “sustentabilidade de
significados e valores
os vários atores envolvidos no processo de gestão – compreendendo as associados ao
etapas de elaboração, implementação, monitoramento e avaliação. Entender patrimônio
cultural”. A adoção
um sistema como rede implica aceitar uma mudança estrutural: as antigas da noção de
estruturas hierarquizadas e unitárias, que definiam as políticas públicas, sustentabilidade
cultural reflete-se
precisam ser substituídas por outras estruturas decisórias – policêntricas, diretamente no
polifônicas e compartilhadas. objetivo da
191
preservação e da
A preservação do patrimônio cultural representa, de fato, um desafio salvaguarda dos bens
culturais, que passa a
peculiar para a administração pública, por seu caráter difuso, ser: “usar os bens
interdisciplinar e interinstitucional, exigindo uma reorganização e culturais para as
necessidades do
reestruturação das práticas políticas e administrativas, ao mesmo tempo em presente e transmitir
que demanda novos padrões de participação, fundamentais para o avanço o máximo de
significados para as
em relação à sustentabilidade – entendida aqui em seu sentido mais amplo, gerações futuras”.
isto é, como sustentabilidade cultural.3 Ver STANIFORTH,
Sarah. Conservation:
A ampliação do conceito de patrimônio cultural e a incorporação dos significance,
relevance and
pressupostos do desenvolvimento sustentável trouxeram novos dilemas e sustainability. The
desafios para a gestão do patrimônio cultural. No âmbito das discussões Forbes Lecture of
the 18th Annual IIC
sobre desenvolvimento sustentável, destaca-se a dimensão da participação Congress: Tradition
e a necessidade de aprofundamento das práticas democráticas. Também and Innovation.
Melbourne: IIC,
nesse contexto, os conceitos de redes de políticas públicas (policy networks) 2000. Disponível em
e de parcerias interinstitucionais vêm sendo crescentemente utilizados, <http://www.iiconse
rvation.org/conferen
caracterizando um novo modelo de gestão e de relação entre as várias formas ces/melbrn/forbeslec
de organização da sociedade. ture.pdf>. Acesso em
9/11/2005.
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:15 PM Page 192

Vo l . 1

A alternativa das redes, como meio de articulação entre atores, parece ser
a estratégia mais adequada para a gestão de políticas públicas no setor do
patrimônio cultural, onde é necessário, como vimos, o enfrentamento de
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

problemas complexos. Se, para o setor governamental, as redes de políticas


públicas vêm se tornando uma necessidade ou uma estratégia eficaz para
legitimar suas políticas e interesses, para a sociedade civil, a constituição de
redes de políticas públicas permite aumentar sua influência política,
reivindicando seus direitos e engajando-se em tais arranjos participativos e
de governança. É preciso reconhecer, entretanto, que as redes de políticas
públicas têm um potencial ambivalente e contraditório. Por um lado,
permitem fomentar a capacidade para a ação coletiva, promovendo a
identidade coletiva e estruturas decisórias mais horizontalizadas e, por isso,
supostamente mais democráticas. Por outro, podem provocar novas formas
de exclusão daqueles setores sociais sem possibilidades de acesso aos novos
arranjos institucionais.
Depreende-se daí uma diretriz para a constituição do SNPC: sua
estrutura deve ser suficientemente maleável para fazer frente à
transformação e reestruturação dos processos políticos em curso, sobretudo
no que diz respeito à sua contribuição para a eficiência e eficácia, como
192
também para a democratização e a transparência das políticas públicas.
Finalizando este tópico, proponho um encaminhamento para a
estruturação do sistema: o SNPC vem sendo pensado como um subsistema
do Sistema Nacional de Cultura – SNC, que será coordenado pelo MinC.
Será necessário, portanto, institucionalizar canais de articulação entre o
SNC, o SNPC e os demais sistemas setoriais do MinC (Museus, Arquivos
4. O SFC foi
instituído pelo e Bibliotecas). Tratando-se de uma articulação restrita e intra-institucional,
Decreto
5.520/2006, cujo
creio que a estrutura de coordenação já está dada e deve ser feita no âmbito
texto foi alterado do Sistema Federal de Cultura – SFC.4
pelo Decreto
6.973/2009. Para além dessa articulação interna ao MinC, será necessário também
Compõem o SFC as
seguintes articular o SNPC a outros sistemas nacionais que tenham afinidade com o
instituições: MinC,
Iphan, Ancine,
patrimônio cultural – a exemplo do Turismo, Meio Ambiente, Educação e
Fundação Biblioteca Desenvolvimento Urbano – de forma a promover a transversalidade no
Nacional, Fundação
Casa de Rui trato da questão. Também aí deverão ser criados canais de comunicação,
Barbosa; Funarte, através de câmaras ou comissões setoriais, como por exemplo: “Patrimônio
Fundação Cultural
Palmares e Ibram. e Turismo” ou “Patrimônio e Meio Ambiente”.
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


ATORES E PAPÉIS
Na temática da definição de papéis, ocorrem-me alguns
questionamentos sobre os atores e os papéis que devem desempenhar no
sistema. Alguns atores do primeiro setor deverão ter o papel de coordenação
do SNPC: MinC, Iphan, Secretarias Estaduais e Municipais de Cultura,
órgãos estaduais e municipais do patrimônio, organizados preferen-
cialmente em um comitê gestor do SNPC. Para permitir a interação entre
as partes nas temáticas mais específicas, deverão ser criados outros canais e
instâncias de articulação, seja em comissões mais restritas ou em fóruns
ampliados de discussão. Entre as principais atividades desse grupo de atores,
destacam-se as atividades de formulação, articulação e execução integrada
de políticas, planos e programas; e as proposições de regulação,
normatização e fiscalização.
Entre os atores dos segundo e terceiro setores, destaco a importante
presença das ONGs, Oscips (Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público), cooperativas, entidades de classe, sindicatos, empresas e
profissionais que atuam no setor do Patrimônio Cultural, além dos
chamados “detentores do patrimônio cultural”, aqueles que dão valor e
significado a um determinado bem cultural. Estes terão papel destacado na
proposição e definição de diretrizes, estratégias e objetivos para políticas e
193
planos; na identificação de demandas por programas e ações nas “pontas”
do sistema, e na participação direta ou indireta em ações, projetos e
atividades. Representantes desses setores deverão compor o comitê gestor,
escolhidos através de eleições ou por indicação.
Cumpre ressaltar que os “detentores do patrimônio” e a sociedade civil
devem ser, em última análise, os beneficiários do SNPC; afinal, o
patrimônio cultural tem uma função social a cumprir. A atuação propositiva
desses atores deve ocorrer, prioritariamente, em conselhos, fóruns e
conferências onde se discutam políticas, planos e programas de ação.
Cumpre, de imediato, proceder ao cadastro dos atores do segundo e terceiro
setores que tenham interesse em participar do SNPC. Esse cadastramento
poderá partir do compartilhamento de bases e bancos de dados já montados
pelos atores que coordenarão o sistema.
Os canais mais amplos de participação dos diversos atores da sociedade
civil para proposição, debate e deliberação sobre as políticas públicas para
o setor vêm sendo criados pelo MinC: as conferências; os planos; e os
conselhos nacional, estaduais, municipais e setoriais de cultura. Entre os
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:15 PM Page 194

Vo l . 1

planos, conferências e conselhos “setoriais” está incluído, naturalmente, o


patrimônio cultural.
|

Entre os principais parceiros do SNPC, destacam-se, em meu


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

entendimento: o Ministério Público Federal – MPF e as promotorias


estaduais – MPEs (dentro da temática de marcos legais, regulação e
fiscalização); as Instituições de Ensino Superior – IES (programas e projetos
de educação, formação profissional e pesquisa); as Secretarias de Ministérios
que tenham programas vinculados ao patrimônio cultural, como os
Ministérios do Turismo, Educação, Cidades e Meio Ambiente (fomento,
regulação e execução compartilhada de programas); e algumas outras
instituições públicas, como o BNDES, CEF, Banco do Brasil
(financiamento e fomento) e Ibama (regulação e fiscalização). A
participação desses parceiros em potencial dependerá da criação de vínculos
interinstitucionais (através de acordos e parcerias), que resultem na
implementação de programas, ações e atividades compartilhadas.

COMPARTILHAMENTO
Na temática do compartilhamento, gostaria de retomar uma provocação
feita pelo professor Ulpiano Bezerra de Meneses, na abertura do Fórum,
referente à distinção entre patrimônios federal, estadual e municipal. No
194 entendimento de Meneses, tal distinção é desnecessária e não dá conta da
pluralidade, da diversidade e da mobilidade das diversas manifestações e
dos valores e significados associados ao patrimônio cultural. Torna-se
pertinente, nesse contexto, saber se o SNPC conseguirá abranger os
patrimônios salvaguardados pelos diversos entes federativos e se deverá
observar hierarquias de valores – que fatalmente resultarão em priorizações
de investimentos públicos. Em caso positivo, como seriam estabelecidas
essas hierarquias de valores e quem as definiria? Continuará sendo
priorizado o patrimônio protegido em nível federal em detrimento do
estadual e do municipal?

SISTEMA NACIONAL VERSUS SISTEMA FEDERAL


O questionamento anterior permite divisar um desafio particular para o
Iphan, qual seja o de interiorizar em sua estrutura, em seu corpo técnico e
em sua ação prática, o entendimento de que o sistema nacional não é um
sistema federal (o primeiro é necessariamente maior do que o último); que
a política nacional não é necessariamente idêntica à política federal; e,
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


finalmente, que o patrimônio salvaguardado em nível federal não coincide
necessariamente com o conceito de “patrimônio nacional”. Aceitar esse
desafio acarretará a alteração de conceitos, práticas e procedimentos
longamente estabelecidos pelo órgão federal do patrimônio cultural.
Apresento alguns números que auxiliam a reflexão sobre a amplitude
atual de atuação do Iphan:
• O Brasil tinha, em 2006, 5.564 municípios;5 e esse número só tende 5. IBGE 2006.
a aumentar;
• O Iphan tem, atualmente, bens culturais tombados ou 6. Esse número
inclui tombamentos
salvaguardados em apenas 297 municípios brasileiros;6 provisórios, porém
não inclui
• O Monumenta, considerado o mais ambicioso programa federal na tombamentos de
sítios arqueológicos,
área do patrimônio cultural, atingiu, até 2009, apenas 26 municípios naturais e
brasileiros; paisagísticos, para os
quais não encontrei
• Espera-se que o recém-lançado PAC das Cidades Históricas – dados atualizados e
sistematizados.
PACCH, considerado o sucessor do Monumenta, atinja cerca de 130
municípios a partir de 2010.
Ainda que reconheçamos os avanços do Iphan em constituir uma
estrutura de atuação descentralizada e bastante capilarizada, é necessário
frisar, a partir desses números, que a atuação do Iphan ainda é restrita em 195
termos territoriais. Essa situação só poderá ser modificada com a
7. Exemplo claro
reestruturação do órgão federal e com um aporte significativo de recursos dessa assertiva é a Lei
humanos, logísticos e financeiros em médio e longo praz. Entendo que a Rouanet, que é
generosa no valor
estrutura atual do Ibama é um bom parâmetro para a estrutura que o Iphan dos incentivos
deveria almejar. concedidos (mais de
R$ 400 milhões
O já citado Quadro do Patrimônio Cultural mostrou que as políticas, os captados em 2007),
mas bastante
programas e as ações federais no setor do patrimônio cultural ainda se concentradora –
ressentem de uma melhor distribuição por região geográfica e por Estado. tanto em termos
territoriais (80% dos
O maior peso historicamente dado ao patrimônio dos Estados do Rio de recursos, em média,
Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e São Paulo ainda persiste, vão para os Estados
do Rio de Janeiro,
podendo ser observado tanto no número de bens tombados e inventariados São Paulo e Minas
em nível federal, como pela quantidade de recursos federais do setor Gerais) como de
proponentes (poucos
investidos nesses Estados.7 proponentes ficam
com muitos
Um grande desafio para o SNPC será, portanto, contrabalançar pesos e recursos) e atividades
medidas historicamente existentes na área do patrimônio cultural, (poucas atividades
recebem muitos
incentivando a integração de entes federativos e agentes sociais antes recursos).
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marginalizados no processo de preservação do patrimônio; e, também,


investir recursos de forma mais equânime entre regiões e Estados do país.
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

DESCENTRALIZAÇÃO
Depreende-se, ainda na temática do compartilhamento, que um dos
maiores desafios para a construção do SNPC será a efetiva descentralização
da gestão do patrimônio cultural. A descentralização, nesse caso, deve ser
entendida como transferência e compartilhamento de atribuições e
competências entre a União e os Estados; e também entre Estados e
municípios. Descentralização significa, em certa medida, estadualização e
municipalização.
Nesse sentido, vale aqui relembrar, de relance, o processo de
institucionalização de políticas públicas de proteção ao patrimônio cultural
no Brasil.
O nosso primeiro marco legal surgiu em 1937, com a criação do Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan e a promulgação do
Decreto-Lei no 25/37 – DL 25/37. Embora o artigo 23 do DL no 25/37
tenha estabelecido a competência do poder executivo para providenciar a
realização de acordos para melhor coordenação e desenvolvimento das
196 atividades relativas à proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e
para a uniformização da legislação estadual complementar sobre o mesmo
assunto, pouco foi feito nesse sentido até 1970.
A discussão sobre o compartilhamento entre União e Estados, para a
proteção do patrimônio cultural, veio à tona no I Encontro de
Governadores (Brasília, 1970), resultando na aprovação do Compromisso
de Brasília, cujas resoluções estabeleciam:
• o reconhecimento da necessidade da ação supletiva dos Estados e
municípios à atuação federal, no que se refere à proteção dos bens
culturais de valor nacional;
• a competência de Estados e municípios na proteção dos bens
culturais de valor regional;
• a necessidade de criação de órgãos estaduais e municipais para lidar
com a questão patrimonial, devidamente articulados com os
Conselhos Estaduais de Cultura e com a Dphan (atual Iphan).
Já no II Encontro de Governadores (Salvador, 1971), adotou-se uma
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


agenda que foi paulatinamente implementada pelos Estados ao longo da
década de 1970:
• criação de legislação específica no âmbito dos Estados, para a
proteção e valorização dos bens culturais;
• criação dos órgãos estaduais de proteção aos acervos naturais e de
valor cultural;
• ampliação dos recursos financeiros destinados à proteção dos bens
culturais nos âmbitos federal, estadual e municipal;
• criação de cursos de formação de arquitetos e técnicos especializados
na proteção dos bens culturais, de museólogos e arquivistas;
• implantação, no ensino fundamental, de disciplinas que visam à
difusão do conhecimento e da compreensão dos acervos de valor
histórico e artístico existentes no Brasil;
• criação de museus, bibliotecas, e arquivos regionais, estaduais e
municipais;
• publicação e divulgação de trabalhos de pesquisa e documentação
sobre aspectos socioeconômicos regionais e sobre acervos culturais.
197
É importante notar que muitos pontos dessa agenda, do II Encontro
dos Governadores, ainda são relevantes e podem ser retomados, com as
devidas adaptações, no atual esforço de construção do SNPC. Em certa
medida, essa constatação demonstra a letargia no campo do planejamento 8. Honrosas exceções
à regra são os
de políticas do patrimônio cultural nos últimos 40 anos. Estados que já
haviam instituído
Os Encontros de Governadores e os Compromissos de Brasília e seus órgãos do
Salvador são, portanto, marcos na descentralização (estadualização) das patrimônio antes de
1970: Paraná
políticas públicas e das estruturas de gestão no campo patrimonial. A (1953), Guanabara
maioria dos órgãos estaduais de gestão do patrimônio surgiu, de fato, na (1964), Bahia
(1967) e São Paulo
década de 1970, como consequência da implementação dos Compromissos (1968). No caso da
de Brasília e Salvador.8 Guanabara, a
estrutura da sua
Para esse processo de descentralização da década de 1970, muito Divisão do
Patrimônio
contribuiu o Plano de Cidades Históricas – PCH, que vinculou formas de Histórico e Artístico
financiamento (o Fundo de Desenvolvimento Integrado) ao planejamento foi absorvida pelo
Rio de Janeiro
e à execução de políticas, propiciando o surgimento de estruturas decisórias quando da fusão dos
descentralizadas. Criou-se, assim, na década de 1970, uma primeira estados, em 1975.
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“fórmula” de política nacional e de sistema nacional de gestão do


patrimônio, ainda que muito voltada para a gestão do patrimônio urbano.
Como observado por Márcia Sant´Anna:
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

[...] o PCH veio a ser a primeira política nacional de cunho mais


amplo em favor da preservação do patrimônio urbano no país [...]
O PCH se estruturou num quadro político de modernização do
Estado, e de estabelecimento de políticas desenvolvimentistas. [...] O
programa deflagrou (ainda que involuntariamente) a montagem do
primeiro sistema nacional de preservação no Brasil, ao provocar a
criação de órgãos estaduais que vieram a compartilhar com o Iphan
a tarefa de preservação do patrimônio. A intenção do PCH era
estadualizar e, em seguida, municipalizar (o que não chegou a ser
feito) a execução das ações de preservação, integrando-as num sistema
9. SANT´ANNA, federal de apoio técnico e financeiro.9
Márcia. A
preservação de sítios
históricos no Brasil A partir dos esforços de concatenação política dos Encontros de
(1937-1990) Governadores, das determinações dos Compromissos de Brasília e Salvador,
[online]. Disponível
em <http:// e também da implementação do PCH, deu-se o primeiro passo para a
www.archi.fr/SIRC descentralização da gestão, resultando na criação de legislações e estruturas
HAL/seminair/Sirch
alQ/marcia.htm>. estaduais de gestão em todo o país.
Acesso em 26 de
198 março de 2010. Esse primeiro momento de criação de um sistema nacional, infelizmente,
foi deixado de lado no início da década de 1980, em decorrência do
abandono do PCH e da redefinição de prioridades federais, após a
reformulação do Iphan e a criação da Fundação Pró-Memória.
Um segundo momento de descentralização das políticas públicas – a
municipalização da gestão do patrimônio cultural – ocorreu em período
10. Também nesse mais recente, principalmente na década de 1990.10 Esse novo movimento
caso há exceções.
Alguns municípios
foi impulsionado pela promulgação da CF/88 que, além de alçar o DL
foram precursores na 25/37 à condição de arcabouço constitucional, afirmou, em seus artigos
implementação de
políticas de gestão
215 e 216, a competência concorrente entre entes federativos para a
do patrimônio nas proteção do patrimônio cultural e a necessidade de cooperação entre poder
décadas de 1970 e
1980, como Rio de
público e sociedade civil para a preservação do patrimônio cultural.
Janeiro, Recife e
Olinda.
Como consequência das novas competências definidas pela CF/88,
foram implementadas, na década de 1990, diversas iniciativas federais e
estaduais que levaram a discussão sobre gestão do patrimônio cultural para
o âmbito municipal. Entre essas, são frequentemente lembradas as
experiências do Prodetur (Programa de Desenvolvimento do Turismo no
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


Nordeste) e do Monumenta, em várias cidades do país; do ICMS
Patrimônio Cultural, em Minas Gerais; e do Funcultura (Fundo
Pernambucano de Incentivo à Cultura), em Pernambuco. Essas experiências
têm algumas características em comum:
• Criam mecanismos de transferência de recursos federais e/ou
estaduais aos municípios que investem na gestão do patrimônio
cultural;
• Incentivam a criação de órgãos ou equipes técnicas municipais para
a gestão do patrimônio cultural;
• Incentivam a criação de conselhos municipais e de estruturas
decisórias mais democráticas;
• Incentivam a criação de instrumentos municipais de fomento
(fundos e leis de incentivo) que sejam sustentáveis e possuam algum
nível de controle social.

Delineia-se, assim, na temática do compartilhamento, o limiar atual para


a efetiva criação do SNPC: generalizar a institucionalização, nos Estados e
municípios, dos instrumentos de fomento, de regulação e de participação,
que caracterizam essas experiências de gestão bem-sucedidas. Para tanto, 199
será necessário criar e implementar marcos legais, federais e estaduais, que
complementem ou regulamentem o DL no 25/37, incentivando a criação
ou o aperfeiçoamento das estruturas de gestão patrimonial nos Estados e
municípios.
Essas experiências recentes mostram que as tentativas de regulação e
institucionalização apresentam sucesso quando vinculadas a programas de
financiamento e fomento sustentáveis, geridos de forma democrática e que
estabeleçam critérios de repasse baseados em indicadores de desempenho na gestão.

COOPERAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO
Outro desafio que eventualmente emergirá da criação do SNPC refere-
se às lacunas que existem entre e além dos níveis federal, estadual e municipal
– e de suas respectivas estruturas de gestão. No mundo globalizado e em
constante mutação, torna-se necessário criar instâncias e canais de
cooperação e compartilhamento para gerir o patrimônio regional (que
abrange vários Estados ou municípios) e transnacional (que abrange vários
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Vo l . 1

países ou nações), ou seja, aquele patrimônio que vai além das unidades
federativas, dos estados nacionais, das fronteiras físicas e das associações
geográficas mais imediatas.11 Para lidar com esses contextos mais fluidos,
|

11. Consequência
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

do surgimento de
novas demandas
acredito que o SNPC deverá prever a criação de comissões temáticas,
nessa área são os bilaterais ou multilaterais (orientados por regiões, entes federativos,
acordos
internacionais de
organizações ou objetos), ligado diretamente ao seu Comitê Gestor.
cooperação que vêm
sendo construídos
pelo Iphan no POTENCIALIDADES DO SNPC
âmbito do Mercosul
e da África lusófona. Mas nem tudo que se refere ao SNPC são desafios, deficiências ou
problemas. Várias potencialidades podem ser identificadas, das quais destaco:
• A capilaridade da estrutura de gestão do Iphan, com
Superintendências em todos os Estados e escritórios técnicos em
vários municípios brasileiros;
• A existência de estruturas de gestão em todos os Estados;
• A existência de estruturas de gestão em muitos municípios brasileiros;
• A existência de experiências de gestão ricas, variadas e bem-
sucedidas, que servirão de modelo para a estruturação do SNPC;
• A existência de instrumentos de financiamento e fomento nos
200 diversos níveis e esferas, ainda que desarticulados entre si;
• A existência de marcos legais e regulatórios respeitados, de amplo
conhecimento e em uso há muitos anos;
• O adiantado processo para aprovação do Plano Nacional de Cultura
e o Sistema Nacional de Cultura.

Em outras palavras: não estamos saindo do zero e não será necessário


começar tudo de novo. Os maiores desafios para a construção do SNPC, no
meu entendimento, estão relacionados à articulação, integração, reforma
ou ampliação de instrumentos já existentes de fomento, coordenação,
deliberação, participação e regulação. Para otimizar esse processo,
entretanto, será necessário investir, de imediato, na gestão da informação
existente e também na compatibilização e no compartilhamento de bancos
de dados referentes a políticas públicas, programas, ações e projetos
estratégicos. Um enunciado simples, mas de difícil operacionalização, posto
que significa alterar estruturas organizacionais estabelecidas e que tendem
a atuar de forma corporativa.
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FRENTE PA R L A M E N TA R E M D E F E S A
D O PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L

Jussara Hockmüller Carpes*

RESUMO
A preservação do patrimônio cultural é uma questão de cidadania. Seu
* Vereadora, Câmara
cuidado e proteção é dever de todos. A iniciativa de criar a Frente Municipal de
Parlamentar em Defesa do Patrimônio Cultural nasceu em agosto de 2009, Vereadores de Bagé
(RS)
na Oficina do PAC convocada pelo Iphan em Brasília. Atenta a todas essas
questões legais e pensando na grandiosidade dos patrimônios culturais do
Rio Grande do Sul, a Frente Parlamentar em Defesa do Patrimônio Cultural
se soma ao Governo Federal, através do Ministério da Cultura e do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em seus programas para a
preservação e salvaguarda do patrimônio cultural. Não nos basta ser
pioneiros nessa iniciativa, é importante que contagiemos os demais Estados,
além do Rio Grande do Sul para se organizarem e constituirmos a Frente
Nacional em Defesa do Patrimônio Cultural.

PALAVRAS-CHAVE 201
Patrimônio, Dever de todos, Rio Grande do Sul.

A preservação do patrimônio cultural é uma questão de cidadania. Seu


cuidado e proteção é dever de todos. O cidadão deve conhecer e participar da
construção de um processo coletivo – social e legislativo –, comprometer-se e
cobrar dos seus representantes sua implementação, aperfeiçoamento e pleno
funcionamento. “Só sabe fazer democracia quem sabe fazer leis” (Montesquieu).
Em 1º de outubro de 2009, em Porto Alegre (RS), numa parceria da
Câmara Municipal de Vereadores de Bagé, União dos Vereadores do Estado
do Rio Grande do Sul – Uvergs, e Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – Iphan, lançamos a Frente Parlamentar em Defesa do
Patrimônio Cultural para materializar a compreensão de que todas as
questões referentes à proteção e preservação passam pelos legislativos com
sua responsabilidade de construir marcos legais em cada local com suas
particularidades e riquezas históricas e culturais. Na qualidade de
legisladores, temos a responsabilidade de elaborar leis que respondam às
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Vo l . 1

necessidades da proteção e preservação do patrimônio de cada Município.


Essa responsabilidade foi conferida no Decreto-Lei Federal nº 25, de 30
|

de novembro de 1937, que vige até hoje e estabeleceu a competência do


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Estado – União, Estados, Distrito Federal e Municípios –, quanto à


iniciativa e ações para proteger, preservar e salvaguardar os bens culturais.
Na esfera de atuação dos legislativos municipais, além da sua importância
e compromisso com a história e a cultura popular, alguns princípios devem
ser observados, como a relevância, a capacidade de produzir os efeitos
necessários, a harmonização com o ordenamento vigente, a aplicabilidade
e a efetividade das leis que estamos propondo – “as leis inúteis enfraquecem
as leis necessárias,” (Montesquieu) – sempre em consonância e respeito com
a história e com a cultura construídas pelo povo em cada local.
O processo de formulação das leis, marcantemente autoritário,
sobrepunha o governo à sociedade antes da Constituição de 1988. A partir
do marco constitucional de 1988, a sociedade se sobrepõe ao governo –
princípio fundamental da cidadania – e as leis passam a ser produzidas de
acordo com as necessidades da sociedade, no município representada pelos
vereadores. Sob esse novo paradigma, as leis podem e devem ser mais
orgânicas, entranhadas na vida do povo em cada local em harmonia com a
história e a cultura local, nacional e universal, e ao mesmo tempo devem
202
estabelecer capacidade organizacional e operacional para a proteção e
preservação do patrimônio.
A Constituição Federal dispõe de diversos dispositivos relacionados com
a cultura. O artigo 23 preceitua que “é competência comum da União, dos
Estados e dos Municípios”, conforme seu inciso III, “proteger os
documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural,
os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”,
assim como é de competência comum “impedir a evasão, a destruição e a
descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico,
artístico ou cultural.”
Oportuno, também, é destacar o texto do artigo 30, que determina
enfaticamente: “compete aos municípios promover a proteção do
patrimônio histórico-cultural local, observadas a legislação e a ação
fiscalizadora federal e estadual.”
Cabe citar o importante conteúdo sobre a cultura no artigo 215, e em
especial reproduzir o texto que trata do patrimônio, o artigo 216:
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I- as formas de expressão;
II- os modos de criar, fazer e viver;
III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§1 O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.
§2 Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da
documentação governamental e as providências para franquear sua consulta
a quantos dela necessitem.
203
§3 A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de
bens e valores culturais.
§4 Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
§5 Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos.
§6 É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo
estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita
tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais,
vedada à aplicação desses recursos no pagamento de:
I- despesas com pessoal e encargos sociais;
II- serviço da dívida;
III- qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos
investimentos ou ações apoiados”.
Jamais, anteriormente, em todas as constituições, a cultura compareceu
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Vo l . 1

de forma tão enfática, detalhada, profunda e direta como na atual,


promulgada em 5 de outubro de 1988. Este histórico avanço, construído
no processo de conscientização da nacionalidade no campo da cultura e do
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

patrimônio é um verdadeiro guia de orientação para o estabelecimento de


políticas de ação concreta, tanto por parte da administração pública, como
por parte da comunidade e dos cidadãos.
É pertinente, ainda, lembrar que na Lei Federal nº 9.605 de 1998, entre
as suas disposições, a seção IV trata dos crimes contra o ordenamento
urbano e o patrimônio cultural, e destacar que essa lei foi regulamentada no
ano seguinte, em 1999, pelo Decreto Federal nº 3.179/99, que fixou, além
das penalidades impostas pela lei, os valores das multas aplicáveis nos casos
das infrações cometidas contra o patrimônio cultural.
Atenta a todas essas questões legais e pensando na grandiosidade dos
patrimônios culturais do Rio Grande do Sul, a Frente Parlamentar em Defesa
do Patrimônio Cultural se soma ao Governo Federal através do Ministério
da Cultura e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que
têm programas para a preservação e salvaguarda do patrimônio cultural,
formulando, reformulando e aperfeiçoando novas formas de atuação para
responder aos desafios e às demandas da cultura, muitas delas represadas e
àquelas novas construídas no cotidiano das comunidades.
204
Estamos trabalhando concretamente nas 13 cidades que têm
patrimônios tombados no âmbito do Rio Grande do Sul inseridas no
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC Cidades Históricas) –
Antônio Prado, Bagé, Caçapava do Sul, General Câmara, Jaguarão, Novo
Hamburgo, Pelotas, Piratini, Porto Alegre, Rio Grande, Santa Teresa, São
Miguel das Missões e São Nicolau – mais Itaqui, Rio Pardo e Alegrete que
não estão incluídas no PAC, mas participam da Frente porque têm bens a
serem preservados e pretendem desencadear ações para salvaguardar a
história e a memória do seu povo.
A experiência de gestora na Secretaria de Cultura de 2004 a 2008 me foi
fundamental para a compreensão e motivação da importância da luta e ação
social e política para proteger, preservar e salvaguardar o patrimônio único
e riquíssimo dos nossos municípios. Relato algumas ações desencadeadas
em Bagé, a título de contribuições que possam ajudar outros municípios.
No ano de 2007, promovemos a Semana do Patrimônio e a jornada
“Paisagens culturais: novos conceitos, novos desafios”, promovidos pela
Prefeitura de Bagé, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


– Iphan, Universidade Federal de Pelotas – UFPEL, com apoio da
Universidade Regional da Campanha – Urcamp, Universidade Federal do
Pampa – Unipampa e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do
Estado – Iphae, e lá produzimos a Carta de Bagé – carta da paisagem cultural.
A Carta é o primeiro documento que trata da paisagem cultural produzida
no País, e se encontra no site do Iphan.
Essa trajetória constituiu, além da compreensão e experiência como
gestora da problemática da cultura e do patrimônio, o acúmulo político e
legitimidade social que levaram à eleição do mandato de vereadora em
2009; as ações na área da cultura contribuíram significativamente para a
reeleição do nosso projeto político-administrativo no município e
fundamentam o compromisso no Legislativo com as lutas em defesa da
cultura e do nosso patrimônio.
No período, avançamos muito nas questões executivas, elaboramos
projetos, obtivemos os recursos e recuperamos/restauramos diversos prédios
de importância histórica e cultural em Bagé, e aprendemos que é necessário
fazer as legislações que consolidem esses avanços. É insuficiente avançarmos
sem consolidar no ordenamento legal do município as ações realizadas. Daí
decorreu a maior motivação para enfrentar o desafio de trabalhar no
Legislativo, bem como o respeito à identificação com a cultura e a
205
representação que a sociedade conferiu ao mandato.
Nesse sentido, desencadeamos diversas ações no âmbito da Câmara de
Vereadores. No primeiro momento, propusemos e foi constituída uma
Comissão Especial para tratar do patrimônio; colocamos no Plano Plurianual
– PPA, na Lei de Diretrizes Orçamentária – LDO e no Orçamento Anual
diretrizes e recursos (valores ainda insuficientes aportados no âmbito federal;
nos municípios, sabemos que os municípios investem pouquíssimo em
cultura, Bagé investiu 2% em cultura); trabalhamos na consolidação das leis
municipais e fizemos a consolidação das leis sobre patrimônio; fizemos
emendas à lei ampliando e qualificando a composição do Conselho
Municipal do Patrimônio; realizamos no dia 17 de agosto, que é o Dia do
Patrimônio, Sessão Solene na Câmara; criamos o Memorial da Câmara de
Vereadores; fizemos uma exposição de maquetes em parceria com a
Universidade da Região da Campanha – Urcamp, onde alunos da Faculdade
de Arquitetura mostraram maquetes de todos os nossos prédios históricos
recuperados; estamos trabalhando legislação para desnudar os nossos
patrimônios (publicidade e propaganda impróprias em tamanhos e locais).
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A iniciativa de criar a Frente Parlamentar em Defesa do Patrimônio Cultural


nasceu em agosto de 2009, na Oficina do PAC convocada pelo Iphan em
Brasília. Incomodada de estar nessa reunião com representantes de
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

aproximadamente 170 municípios e não existir ali representação de vereadores,


só os executivos, começamos a pensar o que fazer como legisladores para
assumir nosso lugar de responsabilidade compartilhada e contribuir desde a
legitimidade que a sociedade nos confere para elaborar as leis.
A Frente reúne mensalmente vereadores das cidades incluídas no PAC
Cidades Históricas mais Alegrete, Rio Pardo, Itaqui e recentemente São
José do Norte, fizemos um blog, realizamos o primeiro seminário Legislação
da Proteção do Patrimônio Cultural e Atuação Municipal.
A Coordenação tem incentivado os legisladores municipais a trabalhar
a temática do patrimônio nos Planos Diretores, na constituição de
Conselhos de Proteção ao Patrimônio, Fundos Municipais, criação de
Memoriais, Comissões Especiais nas Câmaras.
Na esfera municipal, o poder público sempre tem privilegiado e
destacado papel, hoje, contudo, assume função de protagonista ao ser o
principal responsável pela formulação, implantação e avaliação permanente
de sua política de salvaguarda dos seus patrimônios, visando garantir a todos
206 o direito aos patrimônios culturais.
As leis sozinhas poderão ser claras, não resolverão os históricos problemas
da sociedade, contudo os municípios têm a oportunidade de cumprir da
melhor maneira, e ativamente, seu papel de sujeitos, responsáveis que são
pela formulação, implementação e avaliação da política de preservação dos
patrimônios culturais, permitindo que todos os moradores de nossas cidades
sejam beneficiários das ações implantadas.
O tempo das leis é o tempo da democracia. Ao fazer uma lei, o legislador
precisa usar o tempo a favor do cidadão e da sociedade. O processo de
elaboração da lei impõe que sejam analisadas todas as características que
envolvem o problema que a justifica e todas as variáveis que se relacionam
com a solução que ela propõe.
É, então, um desafio que cada município tenha sua Câmara Legislativa
trabalhando legislação sobre a proteção dos seus bens, tanto materiais quanto
imateriais. Não nos basta ser pioneiros nessa iniciativa, é importante que
contagiemos os demais Estados, além do Rio Grande do Sul para se organizarem
e constituirmos a Frente Nacional em Defesa do Patrimônio Cultural.
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O PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L
B R A S I L E I RO E O C O N T E X T O
INTERNACIONAL

Marcelo Brito*

RESUMO
Trata-se de uma explanação dos instrumentos necessários para o *Assessor de
Relações
desenvolvimento de uma política de cooperação internacional na área do Internacionais do
patrimônio cultural. O texto apresenta, de forma pontual, os instrumentos Iphan
para o estabelecimento desse trabalho compartilhado na identificação e
preservação de um patrimônio considerado de interesse comum, entre os
países sul-americanos e os países de língua portuguesa. Essa política de apoio
internacional tem buscado, sobretudo, a atualização das noções de
patrimônio e da capacidade de desenvolvimento de ações a partir desses
novos conceitos. Entre as metas, está o estabelecimento de estratégias de
financiamento, através de uma abordagem do patrimônio cultural como
elemento propulsor do desenvolvimento regional. 207

PALAVRAS-CHAVE
Cooperação internacional, História, Patrimônio comum.

Tomando como referência o patrimônio cultural, tanto dos países


integrantes da União das Nações Sul-Americanas – Unasul, quanto dos
países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP, tem-se,
como princípio para atuação no campo do fomento à cooperação
internacional, o reconhecimento das heranças compartilhadas como base
para elaboração de projetos de cooperação técnica.
No Brasil, para o desenvolvimento de iniciativas de cooperação
internacional, tem sido levado em consideração o estado da arte do
arcabouço conceitual relacionado ao patrimônio cultural. Reconhece-se que
o atual momento está imerso no campo da revisão e repactuação do próprio
conceito de patrimônio. Tem sido levado em conta:
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Vo l . 1

• A trajetória histórica de alargamento do conceito de patrimônio e


sua aproximação na atualidade ao campo da geografia cultural –
Geocultura;
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

• O patrimônio como uma leitura atualizada do território para a


identificação da interseção entre:
• História e geografia: marcas do processo de ocupação do território;
• Elementos notáveis naturais como condicionantes das ocupações:
referências físico-simbólicas;
• Nações culturais e território: cartografia cultural como
resultado/leitura da dimensão antropológica do patrimônio.

As perspectivas de cooperação em curso indicam que:


• As relações entre os países e a existência de marcas, nos territórios
e nas culturas decorrentes dos processos de sua ocupação, propiciam
o estabelecimento de itinerários culturais e um impacto mais amplo
na cultura local;
• A identificação e reconhecimento de processos históricos seme-
208 lhantes é uma necessidade, como signos de memória desses processos,
ressaltando suas semelhanças e particularidades;
• O desenvolvimento e a atualização de capacidades e possibilidades
de contribuição do Brasil é uma exigência para que as iniciativas
sejam sustentáveis.

Assim sendo, consideram-se importantes os seguintes aspectos, nas


relações bilaterais que o Brasil tem mantido com países de língua
portuguesa, por exemplo:
• De natureza geográfica: reconhecimento das semelhanças geo-
gráficas, ambientais, demográficas, entre outras características;
• De natureza histórica: entendimento comum quanto ao processo
de ocupação e desenvolvimento desse território, considerando os
fatos históricos indicativos, como marcos de referência que não
podem falar por si próprios, isoladamente, na construção da
narrativa que se deseja;
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• De natureza cultural: identificar as matrizes culturais confor-
madoras, os intercâmbios produzidos entre as partes envolvidas e os
produtos decorrentes – bens culturais materiais e/ou imateriais,
constituindo um patrimônio cultural comum.

Quanto aos processos históricos vividos, tem-se considerado:


• A colonização portuguesa e sua miscigenação: características do
patrimônio construído (adaptação a materiais e a outras culturas, sua
relação com o meio físico e humano);
• Os povos originários e seu legado: movimentos de resistência e de
fusão;
• O apoio à transmissão de saberes tradicionais: os inventários como
ferramenta para a produção de conhecimento e de construção de
processos de preservação e salvaguarda desse patrimônio cultural
comum.

As iniciativas de cooperação internacional têm se centrado no


desenvolvimento e atualização de capacidades das partes envolvidas. As
209
possibilidades de contribuição do Brasil, nesse processo, têm incidido,
especialmente, em:
• Apoio ao estabelecimento de estratégias de financiamento do
patrimônio cultural e de seu uso como insumo para o desen-
volvimento regional;
• Fomento a inventários integrados e medidas efetivas de proteção;
• Orientação, quanto à identificação de sítios e manifestações
culturais, para integrar as listas de patrimônio mundial.

O panorama das ações desenvolvidas e em desenvolvimento pelo Iphan,


órgão nacional brasileiro responsável pela política e gestão do patrimônio
cultural no país, é:
• Atualização da lista indicativa nacional ao Patrimônio Mundial;
• Assessoramento à formulação dos dossiês de candidatura ao
Patrimônio Mundial;
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Vo l . 1

• Desenvolvimento de projetos de cooperação técnica, a exemplo dos


casos de Angola, Paraguai, Bolívia, Benim e El Salvador, que se
encontram em diferentes estágios de implementação;
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

• Implantação de Centro Regional de Formação para Gestão do


Patrimônio, no Rio de Janeiro, voltado para os países da América do
Sul, preferencialmente do Mercosul, e da África, preferencialmente
para os países integrantes da CPLP – Comunidade de Países de
Língua Portuguesa;
• Promoção de intercâmbio de troca de experiências e informação;
• Difusão de documentos internacionais na língua portuguesa;
• Participação em reuniões e fóruns internacionais, como: Centro
Regional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da
América Latina – Crespial; Mercosul Cultural – Comissão de
Patrimônio Cultural; Ibas – Fórum Índia, Brasil e África do Sul; e
Unesco – Comitê do Patrimônio Mundial;
• Promoção de itinerários culturais do Mercosul, como estratégia para
a valorização do patrimônio cultural regional e via para o desen-
volvimento sustentável da região.
210
De modo expedito, os projetos de cooperação técnica bilateral, entre o
Brasil e terceiros países, têm incidido na assistência técnica prestada para a
atualização técnico-institucional do seu órgão nacional de patrimônio
cultural, especialmente quanto aos princípios e procedimentos atinentes ao
desenvolvimento de sua política nacional e de sua gestão correspondente,
o que tem envolvido e pode envolver:
• Assistência técnica, quanto à gestão do patrimônio mundial; à
modernização de seus equipamentos culturais, vinculados à
preservação e salvaguarda do patrimônio cultural do país; à
recuperação do patrimônio material, em especial ao patrimônio
edificado e aos sítios históricos urbanos;
• Assistência técnica à formulação de candidaturas para a inclusão de
bens culturais na Lista do Patrimônio Mundial e na Lista do
Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade;
• Apoio ao desenvolvimento de projetos de intervenção, para uma
correta proposição, no bem cultural protegido;
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• Apoio à estruturação de sistema de salvaguarda do patrimônio
cultural imaterial, para o adequado processo de identificação, registro
e fomento desse bem cultural;
• Apoio à capacitação técnica de profissionais, a partir do Centro
Regional de Formação para Gestão do Patrimônio Cultural, a
instalar-se no Rio de Janeiro a partir de 2010;
• Intercâmbio de documentação técnico-especializada, especialmente
para o desenvolvimento dos fundos documentais, tanto no país
cooperado como no Centro Regional de Formação para Gestão do
Patrimônio, mediante a constituição de uma Biblioteca de Referência,
para gestores, pesquisadores e técnicos do patrimônio.

Aspectos importantes têm sido levados em conta no desenvolvimento desses


projetos e têm orientado a sua formulação e implementação, quais sejam:
• Analisar se há baixa institucionalidade do quadro funcional do
organismo nacional responsável pela gestão da preservação do patrimônio
cultural do país; aspectos como rotatividade, descontinuidade, perda de
memória institucional e baixo acúmulo de conhecimentos produzidos
em função da atuação institucional são avaliados; 211
• Verificar se há reduzida possibilidade de investimento direto, por
parte do organismo nacional, no seu processo de fortalecimento
institucional: avaliar a capacidade de gestão e o efetivo
comprometimento político-institucional com a iniciativa;
• Avaliar em que medida, para o desenvolvimento das iniciativas de
cooperação internacional, tais ações demandam mobilização política,
de ambas as partes, de difícil concretização, em função da conjuntura
política em que se pretenda desenvolver tais ações de cooperação
internacional: reconhecer este marco definidor do projeto de
cooperação técnica.

Diante do mencionado, reconhece-se que tem sido muito rica, produtiva


e interativa a interação instalada entre o Iphan, enquanto instituição
brasileira atuante na área do patrimônio cultural e, por excelência, com os
demais países da região sul-americana e países africanos de língua
portuguesa.
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 212

Vo l . 1

O PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L
B R A S I L E I RO E O S D E S A F I O S D O
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

C O M PA RT I L H A M E N T O D E
COMPETÊNCIAS

Leonardo Barci Castriota*

RESUMO
* Arquiteto Neste texto discute-se o desafio do compartilhamento das competências
urbanista e doutor no campo do patrimônio cultural, onde atuam os diversos níveis de governo
em filosofia,
professor da UFMG; – federal, estadual e municipal. Para mostrar a desarticulação bastante
pesquisador do comum desses níveis, toma-se o caso de Ouro Preto (MG), tombado ainda
CNPq e da Fapemig;
autor e organizador na década de 1930 pelo Iphan e que tem sido objeto da ação dos diversos
de diversos livros agentes. O texto tratar, ainda, da modificação essencial que o campo do
patrimônio tem sofrido nas últimas décadas, com a introdução de novos
212 grupos e agentes, o que também coloca em outros termos as bases das
políticas públicas na área.

PALAVRAS-CHAVE
Patrimônio, Gestão, Agentes.

A construção de um Sistema Nacional de Patrimônio Cultural,


desafio, hoje, colocado a partir de iniciativa do Iphan, constitui um
momento decisivo na trajetória das políticas do patrimônio no Brasil,
1. A esse respeito, passo que representará o culminar de um processo de ampliação da área
confira e de descentralização das competências e responsabilidades. De fato,
CASTRIOTA,
Leonardo Barci. desde os anos de 1970, quando, a partir dos compromissos de Brasília e
Patrimônio cultural. Salvador, inicia-se a criação de órgãos estaduais e municipais de proteção
Conceitos, políticas,
instrumentos. São do patrimônio, começa-se a se exercer, de fato, em nosso país, o
Paulo: Annablume- compartilhamento de competências na área do patrimônio, com esses
Ieds, 2009, p.
158-165. outros entes federativos assumindo – lentamente, é verdade – suas
atribuições.1
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 213

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O novo Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, hoje proposto, virá
responder à necessidade premente de articulação das políticas públicas, já
existentes, e que se apresentam com os mais diversos arranjos institucionais,
desenvolvendo uma rede de atores e a perspectiva de uma ação
verdadeiramente integrada. Com isso, estaremos enfrentando um dos
maiores problemas de nossa área: a desarticulação entre os diferentes
agentes, que acarreta repetição de esforços, desperdício de recursos e, muitas
vezes, a perda de preciosos bens culturais.

A DESARTICULAÇÃO DOS ATORES:


O CASO DE OURO PRETO
A competência concorrente entre os diversos níveis federativos,
estabelecida na Constituição de 1988 para o campo do patrimônio, poderia
significar um reforço na atuação na área, com os diversos níveis de governo
contribuindo para preservar o patrimônio cultural nacional. No entanto,
nem sempre é assim, e, muito frequentemente, assistimos a ações
descoordenadas e mesmo conflitantes dos governos.
O caso de Ouro Preto exemplifica bem, a nosso ver, a desarticulação
entre os diversos órgãos responsáveis pela preservação e administração das
cidades brasileiras: ali vamos ter a ação de três níveis de governo – federal, 213
estadual e municipal – que, ao longo da trajetória de preservação que
remonta ainda aos anos 1930, nem sempre agiram na mesma direção ou
colaboraram entre si. Ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – Sphan, o órgão federal responsável pelo tombamento, parecia
caber a responsabilidade pela manutenção e conservação de Ouro Preto,
desde 1938, incluindo a inspeção e a coordenação de projetos e manutenção
de museus. O Estado, representado pelo Instituto Estadual do Patrimônio
Histórico e Artístico de Minas Gerais – Iepha, a partir dos anos de 1970,
protege alguns distritos e, como veremos, através da Fundação João
Pinheiro, tenta articular um grande plano urbano no âmbito do Programa
de Cidades Históricas. Já a Prefeitura, principal responsável pela
administração da cidade e pelo controle do uso do solo urbano, tendia,
muitas vezes, como representante dos interesses locais, a se contrapor ao
Sphan e às suas políticas, que eram vistas como entraves ao desenvolvimento
da cidade, fazendo com que conflitos entre os níveis de poder se tornassem
muito comuns. Na opinião de um arquiteto do Sphan, tomada há mais de
uma década, “o Governo local costuma se omitir da responsabilidade pela
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 214

Vo l . 1

2. BERNDT, conservação do patrimônio local, fazendo o trabalho do Sphan ainda mais


Angelita. Urban
conservation: difícil”.2
Comparison
|

between Brazil and É interessante percebermos que esse conflito vai se acirrar, de fato, a partir
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

England. dos anos de 1950, quando, com o início da exploração do alumínio, a cidade
Manchester:
University of de Ouro Preto ganha novo impulso econômico, sofrendo grande crescimento
Manchester; populacional. Para abrigar essa população, atraída por ela, a indústria – Alcan
Department of
Planning and implanta um novo bairro nos limites da cidade, que é articulado como um
Landscape, 1995, p. distrito industrial, com uma estrutura urbana funcionalista, em tudo
221. Esse tipo de
conflito só começa a diferente da tradicional. No entanto, como nem toda a demanda
ser equacionado habitacional pôde ser absorvida por esse bairro, o núcleo histórico passa a
quando, em 1993, se
cria o Grupo de sofrer uma pressão inusitada. Assim, o centro, que se mantinha praticamente
Assessoramento inalterado desde os fins do século XVIII, sofre um processo de expansão,
Técnico (GAT),
formado numa levando ao aproveitamento de todas as suas áreas periféricas, onde são
tentativa de realizar a construídas edificações, na sua maioria, de baixo padrão.3
articulação das
diversas esferas
governamentais
Para se ter uma ideia do número de novas construções, basta um dado:
envolvidas no ao se tombar o conjunto, em 1938, este tinha aproximadamente 1.000
processo de
preservação do
edificações; somente entre 1938 e 1985, são aprovadas 3.000 construções
patrimônio. novas. Além disso, é digno de nota o processo de adensamento do núcleo
3. A esse respeito, original, onde as edificações passam a sofrer remanejamentos internos,
confira ALBANO, numa tentativa de se abrigar um número maior de pessoas. Nesse processo,
214 Celina et al. Entre os
limites do passado e as também são ocupados por novas construções os lotes vagos e mesmo os
demandas do futuro: grandes quintais, alterando-se, significativamente, a relação de cheios e
análise da cidade
histórica de Ouro vazios no conjunto. Como se poderia esperar, as pressões modernizadoras
Preto, Minas Gerais. fazem com que cresça o antagonismo entre a população local,
Cadernos de
Arquitetura e sistematicamente excluída da formulação das políticas de preservação, e o
Urbanismo. Belo Sphan, que tenta manter o conjunto intacto, através de um controle,
Horizonte: PUC,
1994 (Caderno 1), basicamente estético, na aprovação de projetos.
p. 104.
Também a partir dessa época, a cidade começa a ser alvo de um turismo
de massa, atraído, principalmente, pelo valor histórico e pela atmosfera do
conjunto barroco, único no Brasil. O turismo cria impactos na vida
cotidiana da cidade, com a redefinição de usos e ocupações de algumas áreas
do centro histórico e a transformação de habitações em hotéis ou
estabelecimentos comerciais. Trata-se, basicamente, de um turismo cultural,
perfil que vai ser reforçado no final da década de 1960, quando começa a
acontecer na cidade o Festival de Inverno, organizado pela Universidade
Federal de Minas Gerais, que tem por objetivo a promoção de cursos e
oficinas relacionadas a diferentes atividades artísticas.
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Dessa maneira, tanto a industrialização quanto o turismo representam
fatores de desenvolvimento que vêm alterar profundamente o quadro em
que a cidade de Ouro Preto se encontrava à época de seu tombamento. No
entanto, ao considerarem, como vimos, a cidade obra de arte, as políticas
de preservação, aí implementadas, nunca puderam incorporar, de fato, esses
novos agentes, não conseguindo elaborar estratégias que lograssem
compatibilizar preservação e desenvolvimento. No final dos anos de 1960,
com a cidade se espalhando, sem controle, para todos os lados, e com a
crescente descaracterização do conjunto original, colocava-se, então, cada
vez mais, a urgência de um planejamento urbano. Assim, em 1968, o
arquiteto português Viana de Lima, consultor da Unesco, elabora um
primeiro plano de desenvolvimento para a cidade, que consistiu,
basicamente, num zoneamento, com a definição de áreas de preservação e
de expansão.
Alguns anos mais tarde, de 1974 e 1975, a Fundação João Pinheiro,
órgão de planejamento do Estado, através de uma equipe multidisciplinar
sob a coordenação do urbanista Rodrigo Andrade, e que contava com a
participação de arquitetos, economistas, sociólogos, historiadores e
geólogos, além da consultoria do próprio Viana de Lima e do paisagista
Roberto Burle Marx, elabora um novo plano para Ouro Preto. Tratava-se,
desta vez, de um amplo trabalho, que incluía projetos que contemplavam 215
tanto a infraestrutura urbana, paisagismo e restauração de monumentos,
quanto os aspectos sociais, econômicos, institucionais e administrativos.
Além disso, formulava-se, também, um projeto de expansão urbana para a
cidade, recomendando-se a criação de novos núcleos, de forma a assegurar
um processo compatível de desenvolvimento, sem afetar a integridade
histórica do conjunto. No entanto, uma série de dificuldades de ordem
institucional faz com que esses planos nunca sejam implementados, e que
nunca venham a ser aprovados pelo município, não tendo nenhum efeito
sobre as políticas urbanas.

UMA NOVA ARTICULAÇÃO DO CAMPO: A EMERGÊNCIA


DE NOVOS ATORES
Quando se coloca, no horizonte, a possibilidade de implantação de um
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, que venha articular as políticas
públicas da área através de uma rede de atores, é importante não perder de
vista, também, uma modificação essencial que o campo do patrimônio tem
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Vo l . 1

sofrido nas últimas décadas com a introdução de novos grupos e agentes


(stakeholders), o que também coloca, em outros termos, as bases das políticas
públicas na área. Já em 1992, Françoise Choay apontava que ao lado da
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

expansão tipológica, cronológica e geográfica dos bens patrimoniais, o seu


público teria tido um “crescimento exponencial”, passando o patrimônio de
“objeto de culto” a “indústria”.

Finalmente, o grande projeto de democratização do saber, herdado das


Luzes e reanimado pela vontade moderna de erradicar as diferenças
e os privilégios na fruição dos valores intelectuais e artísticos, aliado
ao desenvolvimento da sociedade de lazer e de seu correlato, o turismo
cultural dito de massa, está na origem da expansão talvez mais
significativa, a do público dos monumentos históricos – aos grupos de
iniciados, de especialistas e de eruditos, sucedeu um grupo em escala
mundial, uma audiência que se conta aos milhões.4
4. CHOAY,
Françoise. A alegoria
do patrimônio. São Para a autora, essa democratização do campo do patrimônio acontece
Paulo: Estação simultaneamente à sua transformação em mercadoria, inserindo-se na lógica
Liberdade-Unesp,
2001, p. 210. da indústria cultural: os bens culturais, além de propiciarem saber e prazer,
passam, agora, a ser também “produtos culturais”, empacotados e
distribuídos para serem consumidos. O seu “valor de uso” se meta-
morfosearia em “valor econômico” graças à engenharia cultural, cuja tarefa,
216
em última instância, seria a de multiplicar indefinidamente o número de
visitantes. Entre os vários autores contemporâneos que apontam para
fenômenos semelhantes, poderíamos citar, ainda, o crítico alemão Andreas
Huyssen, que desenvolve a ideia segundo a qual, numa reação à globalização
(ou exatamente através dela), o mundo estaria se “musealizando” ao trocar
o conceito (iluminista) do progresso pela idealização das tradições. Para ele,
também a reciclagem e a exploração pela indústria cultural de tópicos
relacionados à memória, contribuiriam para a expansão das preocupações
relativas à memória na esfera pública, gerando uma espécie de “cultura da
5. HUYSEN, memória”, que se impõe desde os anos 1980.5
Andreas. Seduzidos
pela memória. Rio de No entanto, a nosso ver, esse fenômeno não deveria ser visto unicamente
Janeiro: Aeroplano, através de uma faceta negativa, podendo-se constatar, concomitantemente,
2000.
uma efetiva democratização no campo do patrimônio, na medida em que
esse novo público não irá ser apenas consumidor passivo de produtos
culturais, mas atuará, também, como cidadão em relação ao seu patrimônio.
O fato é que, como tem sido recorrentemente apontado por vários autores,
a partir da última década do século XX, as políticas públicas têm sofrido
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 217

Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


uma grande modificação, especialmente em resposta aos processos de 6. Nesse sentido,
cabe destacar as
globalização, descentralização e reforma do Estado.6 A socióloga Maria de chamadas “novas
Lourdes Dolabela, no interessante trabalho “As políticas públicas para a políticas urbanas”,
com a introdução de
preservação do patrimônio”, discute exatamente os rebatimentos dessa parcerias, a adoção
mudança mais ampla no campo do patrimônio. Em sua opinião, tanto a da forma contratual
e as negociações
“adoção de novos dispositivos legais e interinstitucionais” quanto a urbanas que ocorrem
“multiplicação de interlocutores – dentre os quais se destaca a hoje no âmbito das
políticas públicas,
preponderância das comunidades”, demandariam, hoje, alterações nas sobretudo nas áreas
políticas de gestão do patrimônio cultural, urbano e ambiental.7 de reabilitação, de
preservação do
Assim, ao lado de uma verdadeira “explosão” do campo de patrimônio, patrimônio, do meio
ambiente, das
que passa da noção de monumento único à ampla ideia de “bem cultural”, políticas sociais e de
assistiríamos, no final do século XX, ao deslocamento dos centros de capacitação de mão
de obra, mas
decisão, com a emergência de uma poliarquia de atores, o que não pode ser também na polícia e
ignorado na implementação de qualquer política pública na na justiça, entre
outros. Confira, a
contemporaneidade. esse respeito
ROLNIK, Raquel I.
De fato, tais mudanças vêm impactar fortemente na própria natureza Planejamento urbano
nos anos 90: novas
das políticas públicas na área do patrimônio, que passam a ter um novo perspectivas para
desenho, não mais hierarquizado, e outra lógica, complexa e, por isso velhos temas; In:
RIBEIRO, L. C. &
mesmo, não mais explicável pela relação binária: Estado e sociedade. A SANTOS JR.,
centralidade do Estado, que tinha sido inconteste desde o início da Orlando.
217
Globalização,
institucionalização das políticas de patrimônio, será abalada e será, aos fragmentação e
poucos, substituída, como aponta Pereira, “por relações contratuais entre reforma urbana: o
futuro das cidades
Estado e coletividades locais”, crescendo a importância da “coordenação de brasileiras na crise.
atores com interesses e lógicas diferentes”. Nessa nova configuração, que se Rio de Janeiro:
Civilização
liga às novas políticas da cidade, passam a desempenhar papel importante Brasileira, 1994, p.
os conselhos do patrimônio, as parcerias, a contratualização e as negociações 351-360.
urbanas envolvendo diferentes atores públicos e privados. 7. PEREIRA, Maria
de Lourdes D. &
No caso brasileiro, cabe chamar a atenção para o importante papel MACHADO,
Luciana Altavilla V.
desempenhado pelos conselhos do patrimônio, especialmente depois da P. As políticas
promulgação da Constituição de 1988, que estabeleceu novas prerrogativas públicas para a
preservação do
e competências às instâncias de poder e, a partir daí, ganhou destaque em patrimônio. Fórum.
agendas locais no Brasil a abertura de canais de participação, espaços de Conservação Urbana
e Gestão do
cogestão entre sociedade civil e Estado. Nesse sentido, a Carta Magna já Patrimônio. 2(1),
estabelece em seu texto, pela primeira vez na legislação brasileira, que cabe 2008.
ao Poder Público, com a colaboração com a comunidade, promover a
proteção do patrimônio cultural, abrindo, com isso, o espaço para a
multiplicação dos conselhos por todo o País, que passam a ter a função de
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Vo l . 1

estabelecer as políticas de patrimônio. Em relação ao caráter legal dessas


instâncias deliberativas, Moreira chama a atenção para as suas prerrogativas,
definidas pelas leis específicas que as criam:
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Os conselhos constituem-se em instâncias de caráter deliberativo,


porém não executivo; são órgãos com função de controle, contudo
não correcional das políticas sociais, à base de anulação do poder
político. O conselho não quebra o monopólio estatal da produção
do Direito, mas pode obrigar o Estado a elaborar normas de Direito
8. MOREIRA, de forma compartilhada [...] em cogestão com a sociedade civil.8
Maria Targuina
Vieira. Instâncias Segundo Maria de Lourdes Pereira, com os conselhos se rompe o caráter
deliberativas dos
sistemas hierárquico tradicional nas políticas públicas, ampliando-se a participação
descentralizados e das comunidades na elaboração, discussão, fiscalização e decisão sobre a
participativos das
políticas públicas de execução das políticas de planejamento e desenvolvimento social urbano,
cunho social: incluindo os direitos sociais e coletivos à gestão urbana democrática.
contorno jurídico
dos conselhos. Estamos, então, diante de “órgãos híbridos” que constituem uma nova
Informativo forma institucional que envolve a partilha de espaços de deliberação entre
Cepam,p. 65. São
Paulo: Cepam- as representações estatais e as entidades da sociedade civil.9 Aqui está a
Fundação Prefeito grande inovação: apesar de se encontrarem vários tipos de conselhos –
Faria Lima, 1999.
variando em relação às suas atribuições, composição, jurisdição territorial,
9. PEREIRA, Maria
218 de Lourdes D. & caráter gestor, fiscalizador ou deliberativo, é o compartilhamento de
MACHADO, responsabilidades Estado/sociedade civil que representa o elemento
Luciana Altavilla V.
P. Op. cit. verdadeiramente novo nesses arranjos institucionais.
É importante percebermos, também, o novo papel do Estado nesses
novos arranjos das políticas de patrimônio: deixa de desempenhar um papel
negativo, de apenas impor restrições à descaracterização, e passa a articular
projetos de desenvolvimento para as áreas a serem preservadas, conservadas
e revitalizadas. Além disso, também deixa de atuar praticamente sozinho e
passa a desempenhar o importante papel de articular os outros atores e de
traçar em conjunto com eles os cenários de desenvolvimento futuro.
Estamos, aqui, diante de um novo padrão de gestão, caracterizado por
David Harvey como “empreendedorismo urbano”, onde se dá o
desenvolvimento de políticas que, por meio da participação da iniciativa
privada, em “parceria” com as administrações locais, empreendem a
recuperação de áreas degradadas nas cidades. Com isso, introduz-se,
também, novo padrão de planejamento das cidades, que passa a estar
comprometido com a negociação e o estabelecimento de parcerias entre
atores púbicos e privados. Assim, como observa Fernanda Sanchez, “a figura
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do planejador, que até pouco tempo atrás era, ao menos explicitamente, a
do regulador da ação da iniciativa privada, deixa de ter o perfil do vigilante
em prol do bem público, desempenhando, agora, um novo papel: o de
10. SÁNCHEZ,
promotor de crescimento”.10 Fernanda. Políticas
urbanas em
Essas modificações têm um rebatimento quase imediato na própria renovação: uma
percepção do campo do patrimônio: de uma operação que parecia leitura crítica dos
modelos emergentes.
simplesmente técnica, passa-se à percepção de que o patrimônio é, em sua Revista Brasileira de
essência, político e controverso. Com isso, no coração da pesquisa Estudos Urbanos e
Regionais. n. 1, mai.
contemporânea, interdisciplinar e crítica, está fortemente estabelecida, hoje, de 1999, p. 119.
a noção de que o patrimônio cultural é uma construção social, resultado de
processos sociais específicos, espacial e temporalmente, como foi
demonstrado magistralmente por Françoise Choay em “A alegoria do
patrimônio”. Hoje se sabe que objetos, coleções, edificações e lugares são
“reconhecidos” como patrimônio, através de decisões conscientes e/ou
valores não explicitados por instituições e pessoas, e por motivos que
também são fortemente moldados por contextos e processos sociais. É nessa
direção que vai aparecer como premente a necessidade de se esmiuçar os
valores em jogo, na conservação do patrimônio cultural, o que é tentado por
várias “teorias do valor”, que, a nosso ver, oferecem um marco importante
na tentativa de se estabelecer fundamentos teóricos mais rigorosos para a
área da conservação. 219
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Vo l . 1

AT U A Ç Ã O D O C O N S E L H O
I N T E R N AC I O N A L D E M O N U M E N TO S
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

E SÍTIOS (ICOMOS) NA
P R E S E RVA Ç Ã O D O PAT R I M Ô N I O
C U LT U R A L : E X P E R I Ê N C I A S E
DESAFIOS

Rosina Coeli Alice Parchen*

* Presidente do O Icomos foi fundado em 1965, em Varsóvia, Polônia, um ano depois


Icomos Brasil
da assinatura da Carta de Veneza – documento internacional que trata da
Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios. É uma associação
mundial que congrega profissionais que se dedicam à conservação e à
proteção do patrimônio cultural. Sua ação consolida-se por meio de
220 intercâmbios interdisciplinares de seu quadro de associados, composto por
arquitetos, urbanistas, historiadores, arqueólogos, historiadores de arte,
antropólogos, engenheiros, entre outros.
Os membros do Icomos contribuem para o incremento da preservação
do patrimônio cultural em escala mundial, com a formulação de propostas,
diretrizes e recomendações para as ações atinentes aos mais diversos bens
patrimoniais: arquitetônicos, urbanísticos, paisagísticos, arqueológicos, bem
como aqueles de caráter imaterial.
• O Icomos É um foro de âmbito internacional, no qual são
discutidos aspectos da conservação, da promoção e da gestão do
Patrimônio Cultural, em cooperação com as instituições nacionais;
• Os associados são especialistas que dividem experiências, a partir
de seus comitês nacionais, presentes em mais de 110 países, ou ainda
por meio de comitês científicos;
• É um defensor dos convênios internacionais e o autor de inúmeros
documentos, cartas e diretivas, que tratam de definir as melhores
práticas para a conservação do patrimônio cultural mundial.
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


Há uma rede de Comitês Temáticos Especializados, que são órgãos
técnicos consagrados ao estudo de problemas particulares e abordam temas
como: arquitetura de terra, pedra, madeira, patrimônio subaquático, ilhas
do Pacífico, treinamento, patrimônio do século XX, paisagens culturais,
fortificações e patrimônio militar, interpretação de sítios culturais,
documentação patrimonial, gestão do patrimônio arqueológico, arquitetura
vernacular, vilas e cidades históricas, financiamento e administração, rotas
culturais, turismo cultural, patrimônio polar. A inscrição nesses Comitês
Temáticos é facultada a todos os associados, por indicação dos Comitês
Nacionais.
Na Convenção do Patrimônio Mundial, o Icomos é o órgão consultivo
da Unesco para as questões do patrimônio cultural. Contribui ativamente
com o trabalho do Centro do Patrimônio Mundial e com a aplicação da
Convenção do Patrimônio Mundial. A Secretaria Internacional do Icomos
e a Comissão para o Patrimônio Mundial são encarregadas da avaliação das
propostas de inscrição na Lista do Patrimônio Mundial, apresentadas pelos
países participantes.
No Brasil, o Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de
Monumentos e Sítios, é uma associação civil, não governamental,
atualmente com sede em Curitiba, que congrega pessoas que atuam nas 221
áreas públicas e privadas voltadas para a conservação, restauração e
valorização dos monumentos, dos conjuntos históricos e paisagísticos e da
proteção de bens de valor cultural.
Foi fundado em 17 de agosto de 1978 no Rio de Janeiro e registrado
em 2 de maio de 1980 em Brasília. Seu primeiro presidente foi o arquiteto
Augusto Carlos da Silva Telles e hoje conta com mais de uma centena de
membros, em todo o território nacional e tem representação no Conselho
Nacional de Patrimônio Cultural / Iphan e no Conselho Nacional de
Investimentos Culturais – CNIC / Secretaria de Fomento e Incentivo,
ambos do Ministério da Cultura – MinC. Sem contar que participa em
diversos Conselhos Estaduais de Patrimônio e em diversas comissões
municipais que discutem planos diretores.

DAS ASSEMBLEIAS GERAIS


A Assembleia Geral é realizada a cada três anos para a eleição do Comitê
Executivo Internacional. Paralelamente às obrigações estatutárias
desenvolve-se um congresso científico sobre um tema específico. Assim, por
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 222

Vo l . 1

16 vezes, ao longo de sua existência, o Icomos tem realizado os congressos


que definem cartas orientadoras para a ação do patrimônio cultural e cada
vez mais os temas discutidos têm demonstrado as preocupações emergentes
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

no âmbito do patrimônio mundial.


Numa rápida observação sobre os temas discutidos pode-se verificar a
evolução dos assuntos discutidos, por exemplo:

- 2008 - XVIè Assemblée Générale: Québec, Canadá – “Où se cache


l’esprit du lieu?”
- 2005 - XVè Assemblée Générale: Xi’an, China – “Monuments et sites
dans leur milieu – conserver le patrimoine culturel dans des villes et
paysages en mutation”
Xi’an China 2005
Reconhecer a contribuição do entorno para o significado dos
monumentos, sítios e áreas de patrimônio cultural:
- compreender, documentar e interpretar os entornos em contextos
diversos;

222 - desenvolver instrumentos de planejamento e práticas para a


conservação e a gestão do entorno;
- o acompanhamento e a gestão das mudanças que ameaçam o entorno;
- trabalhar com as comunidades locais, interdisciplinares e internacionais
para a cooperação e o fomento de uma consciência social sobre a
conservação e a gestão do entorno.
- 2003 - XIVè Assemblée Générale: Victoria Falls, Zimbabwe – “La
mémoire des lieux: préserver le sens et les valeurs immatérielles des
monuments et des sites”
- 2002 - XIIIè Assemblée Générale: Madri, Espanha – “Stratégie pour
le patrimoine culturel du monde – La conservation dans un monde
globalisé – principes, pratiques, perspectives” – Presidente: Michael Petzet
(Alemanha) – Secretário-geral: Dinu Bumbaru (Canadá)
- 1999 - XIIè Assemblée Générale: México,México – “Du bon usage
du patrimoine – patrimoine et développement” – Presidente: Michael
Petzet (Alemanha) – Secretário-geral: Jean-Louis Luxen (Bélgica)
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


- 1996 - XIè Assemblée Générale: Sofia, Bulgária – “Le patrimoine et
les changements sociaux” – Presidente: Roland Silva (Sri Lanka) –
Secretário-geral: Jean-Louis Luxen (Bélgica)
- 1993 - Xè Assemblée Générale: Colombo, Sri Lanka – “Gestion du
patrimoine archéologique, tourisme culturel et aspects économiques de la
conservation” – Presidente: Roland Silva (Sri Lanka) – Secretário-geral:
Jean-Louis Luxen (Bélgica)
- 1990 - IXè Assemblée Générale: Lausanne, Suíça – “Icomos, un
quart de siècle, bilan et avenir” – Presidente: Roland Silva (Sri Lanka) –
Secretário-geral: Herb Stovel (Canadá)
- 1987 - VIIIè Assemblée Générale: Washington, D.C., Estados
Unidos – “Cultures anciennes et nouveaux mondes” – Presidente: Roberto
di Stefano (Itália) – Secretário-geral: Helmut Stelzer (República
Democrática Alemã)
- 1984 - VIIè Assemblée Générale: Rostok, Alemanha – “Monuments
et identité culturelle” – Presidente: Michel Parent (França) – Secretário-
geral: Abdelaziz Daoulatli (Tunísia)
- 1981 - VIè Assemblée Générale: Roma, Itália – “Sans passé pas
d’avenir” – Président: Michel Parent (France) – Secrétaire Général: 223
Abdelaziz Daoulatli (Tunisie)
- 1978 - Vè Assemblée Générale: Moscou, URSS – “Développement
urbain et préservation des villes et quartiers historiques” – Presidente:
Raymond Lemaire (Bélgica) – Secretário-geral: Ernest Allen Connaly
(EUA.)
- 1975 - IVè Assemblée Générale: Rothenburg, Alemanha – “La
petite ville” – Presidente: Raymond Lemaire (Bélgica) –Secretário-geral:
Ernest Allen Connaly (EUA)
- 1972 - IIIè Assemblée Générale: Budapeste, Hungria –
“Architecture moderne et ensembles historiques” – Presidente: Piero
Gazzola (Itália) – Secretário-geral: Raymond Lemaire (Bélgica)
- 1969 - IIè Assemblée Générale: Oxford, Reino Unido – “Intérêt de
la conservation et de la présentation des monuments et des sites historiques
pour le tourisme, à la lumière de l’expérience et des pratiques de la Grande-
Bretagn” – Presidente: Piero Gazzola (Itália) – Secretário-geral: Raymond
Lemaire (Bélgica)
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Vo l . 1

- 1965 - Iè Assemblée Générale: Cracóvia, Polônia – “Règlements,


statuts et comités nationaux” – Presidente: Piero Gazzola (Itália) –
Secretário-geral: Raymond Lemaire (Bélgica)
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

A participação do Icomos Brasil tem sido intensa nos congressos


internacionais, com contribuições discutidas em âmbito regional, como
ocorreu no Seminário Internacional realizado em Foz do Iguaçu, em junho
de 2008, do qual resultou a Declaração de Foz do Iguaçu. Esse documento
serviu de base para a composição da Declaração de Quebec, sobre a
proteção do Espírito do Lugar, resultado da XVI Assembleia Geral do
Icomos, a última realizada.
Antecedendo a Assembleia Geral de Quebec, reuniram-se, em Foz do
Iguaçu, a convite do Icomos Brasil, presidentes e membros de diversos
comitês nacionais da América Latina para refletir sobre a noção do espírito
do lugar.

DECLARACIÓN DE FOZ DO IGUAÇU


Los presidentes y miembros de comités nacionales de ICOMOS de
Argentina, Brasil, Chile, México y Paraguay, conjuntamente con el
Vicepresidente de ICOMOS para América se reunieron en la ciudad de
224 Foz do Iguaçu, Brasil, los días 29, 30 y 31 de mayo de 2008, con el fin
de reflexionar sobre la noción de “Espíritu del Lugar”, tema central de la
XVI Asamblea General del ICOMOS a desarrollarse en Québec en
octubre de 2008.
Los participantes expresan su agradecimiento al ICOMOS Brasil y a
ITAIPU Binacional por la organización de este foro y a partir de las
discusiones desarrolladas, aprueban las siguientes conclusiones.

1. SOBRE LA NOCIÓN DE “ESPÍRITU DEL LUGAR”


La noción de “Espíritu del Lugar” está vinculada a la interacción de
componentes materiales e inmateriales de los entornos naturales y/o
construidos por el ser humano. Se trata de un aspecto esencial, ya que, por
su misma definición un “lugar” no es cualquier espacio, sino un espacio
caracterizado por su singular identidad. En este sentido, el “espíritu” es el
aliento vital que expresa tal identidad, resultado de la relación entre una
determinada cultura y el sitio en que se desarrolla. Entre los elementos
componentes o con incidencia en el “Espíritu del Lugar”, se han
identificado los siguientes:
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 225

Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


a) Las características del entorno geográfico y del medio natural;
b) El patrimonio natural sacralizado a través de los significados dados por
las comunidades;
c) El modo particular en que se ha desarrollado, a través del tiempo, la
relación entre las comunidades y el medio natural, expresada en paisajes
culturales, ciudades, espacios urbanos y rurales;
d) Los lugares apropiados por el ser humano, tales como los espacios
abiertos urbanos y rurales, escenarios de la vida comunitaria y de sus
manifestaciones espirituales;
e) Los espacios construidos que expresan un modo particular de resolver
las necesidades para el desarrollo de la vida humana;
f ) Los componentes materiales que inciden en la particular identidad
de los espacios urbanos, tales como pavimentos, forestación, señalización,
iluminación y mobiliario urbano;
g) Las diversas funciones y vocaciones que, a través del tiempo, se han
desarrollado en los espacios configurados por el ser humano.
h) Los procesos sociales que se hacen patentes en la producción y
reproducción de los bienes culturales; 225

i) Los aportes sucesivos que provienien de diversas culturas y que


caracterizan a América Latina.

2. LA IMPORTANCIA DE COMPRENDER EL “ESPÍRITU DEL LUGAR”


La identificación de los componentes materiales e inmateriales que
definen el “Espíritu del Lugar”, resulta esencial para la preservación de la
identidad de las comunidades que han creado espacios de interés histórico-
cultural y los han transmitido a través de las generaciones.
El estudio, el análisis y la comprensión de los componentes del lugar son
los recursos adecuados para definir acciones que tienden a la preservación,
entendida como la acción que permite la manifestación del espíritu.

3. AMENAZAS CONTRA EL “ESPÍRITU DEL LUGAR”


Los participantes del Foro han identificado una serie de amenazas contra
el “Espíritu del Lugar”, entre las que cabe citar:
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Vo l . 1

a) Las presiones inmobiliarias que, particularmente en áreas urbanas,


atentan a través de la especulación en el uso y explotación del suelo, contra
las áreas de interés histórico y cultural, sus entornos, así como a sus valores
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

esenciales;
b) La incorporación de usos incompatibles con el carácter o el significado
tradicional de los sitios, incluyendo el comercio informal;
c) La inserción en áreas de interés histórico y cultural y sus entornos, de
edificios o conjuntos edilicios y otros elementos que no tienen en cuenta su
carácter o sus valores históricos y/o culturales;
d) La remoción o pérdida de edificios, espacios abiertos y elementos que
caracterizan el “Espíritu del Lugar”;
e) La provisión y uso de infraestructura, equipamientos o mobiliario
urbano ajenos, por su diseño o materiales de construcción, al carácter de los
sitios.
En este sentido, se han mencionado, a modo de base para la discusión,
casos concretos de amenazas al “Espíritu del Lugar”, en varias ciudades
Latinoamericanas, entre los que cabe mencionar:
a) La especulación inmobiliaria que genera la excesiva densificación y
226 verticalización de la ciudad de Salvador, Brasil, en el entorno del Sitio del
Patrimonio Mundial;
b) Las presiones inmobiliarias y de tráfico vehicular en la ciudad de
Brasilia, Brasil, que afectan la integridad del Plano Piloto, Sitio del
Patrimonio Mundial;
c) El proyecto de construcción de un Centro Cultural en la ciudad de
Valparaíso, Chile, sin consideración por las preexistencias del sitio y los
valores del entorno Sitio del Patrimonio Mundial;
d) El proyecto de construcción de un Centro de Exposiciones y
Convenciones en la ciudad de Puebla, México, en un área de alto
significado histórico, que forma parte del Sitio Patrimonio Mundial;
e) Las construcciones provisionales y de una pista de patinaje sobre hielo
en el Zócalo de la Ciudad de México, Sitio del Patrimonio Mundial;
f ) Las alteraciones de los santuarios de Chalma, Estado de México y San
Juan de los Lagos, Jalisco, así como de la zona de Bracho en la ciudad de
Zacatecas, México, Sitio del Patrimonio Mundial;
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


g) El descontrol edilicio, de tráfico vehicular y de publicidad en el
entorno de la Manzana Jesuítica de Córdoba, Argentina, Sitio del
Patrimonio Mundial;
h) El proyecto de ampliación de estadios de fútbol en el Paseo del Bosque
en la ciudad de La Plata, Argentina, que pone en riesgo los valores históricos
y ambiéntales del área;
i) El inadecuado proyecto de construcción de una cárcel regional en el
entorno del circuito turístico y cultural denominado Caminho de Pedra en
Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, Brasil.

4. RECOMENDACIONES
Los participantes en el Foro acuerdan las siguientes recomendaciones:
a) Que el concepto “Espíritu del Lugar” sea incorporado en los procesos
de planificación urbana y territorial, como medio para la preservación
integral de paisajes naturales y culturales, asi como de ciudades y áreas
urbanas con valores históricos y/o culturales;
b) Que la legislación urbana, planes y proyectos de nuevos desarrollos,
en entornos naturales y construidos por el hombre, tengan en cuenta el
potencial impacto sobre el “Espíritu del Lugar”; 227
c) Que los sistemas de valores y las prácticas sociales de las comunidades
sean comprendidos y respetados como parte del “Espíritu del Lugar”.

Por todo lo anterior se recomienda que las autoridades competentes en


los casos citados, extremen las precauciones para evitar acciones y/o procesos
que puedan afectar el “Espíritu del Lugar” de estos sitios.
Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil 31 de mayo de 2008

QUEBEC 2008
Em Quebec, em outubro de 2008, por ocasião da XVI Assembleia Geral
foram votadas duas novas cartas que complementam as doutrinas do
Icomos: A Carta dos Itinerários Culturais e a Carta para a Interpretação e
Apresentação dos Sítios Patrimônios Culturais. Documentos estes
destinados a definir e promover as melhores práticas de conservação e de
gestão dos sítios culturais. A Assembleia Geral adotou também a
“Declaração de Quebec”, sobre a proteção do “Espírito do Lugar”.
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Vo l . 1

LA CHARTE ICOMOS
POUR L’INTERPRÉTATION ET LA PRÉSENTATION DES SITES
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

CULTURELS PATRIMONIAUX
La Charte ICOMOS pour l’interpretation et la presentation des sites cultures
patrimoniaux traite des méthodes et des technologies pour engager une
communication efficace et responsable sur le patrimoine. En effet, la demande
pour des principes internationalement reconnus en matière d’interprétation
et de présentation des sites culturels patrimoniaux était devenue pressante eu
regard aux menaces toujours croissantes, dues aux catastrophes naturelles ou
à l’activité humaine, et la création de nombreux parcs d’attraction « à thème
» inspirés par le patrimoine mais créés pour générer des flux financiers plutôt
que dans le souci de la conservation ou de l’éducation.
La Charte ne prescrit pas de contenus spécifiques pour la présentation
de sites, ni n’imposeun schéma « uniforme » sur la manière dont tel ou tel
type de monument, site, ou paysage culturel doivent être expliqués au
public. Elle porte plutôt sur les questions fondamentales de l’« accès », des
« sources d’information », du « contexte », de l’« authenticité », de l’«
inclusion », de la « durabilité », ainsi que de la « recherche, éducation et
formation». Elle vise à s’assurer que ces sujets sont pris en considération et
228 incorporés dans la communication avec tous les acteurs du patrimoine, y
compris les touristes, les communautés locales et associées, ainsi que dans
les systèmes d’enseignement locaux.
La Charte représente un consensus de l’ICOMOS sur les principes
fondamentaux de l’interprétation et la présentation des sites du patrimoine culturel.

LA CHARTE ICOMOS DES ITINÉRAIRES CULTURELS


La Charte ICOMOS des Itinéraires culturels propose une définition, des
principes de base et une méthodologie spécifique visant à l’identification,
la recherche et l’évaluation des itinéraires culturels, ainsi que des
orientations pour leur protection, leur conservation, leur usage correct et
leur gestion.
Le concept d’Itinéraire Culturel couvre le contenu patrimonial d’un
phénomène spécifique de mobilité et d’échanges humains qui s’est
développé à travers les voies de communication qui ont facilité son
expansion et qui ont été utilisées ou délibérément mises au service d’un but
concret et déterminé. Il peut s’agir d’un chemin qui fut tracé expressément
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 229

Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


pour atteindre ce but ou d’une voie qui a utilisé, entièrement ou en partie,
des chemins déjà existants et qui ont servi à des fins diverses. Mais au-delà
de sa fonction comme voie de communication ou de transport, son
existence et sa signification en tant qu’Itinéraire Culturel ne s’expliquent
qu’à travers son utilisation pour un but concret et déterminée pendant une
longue période de l’histoire et par la création de valeurs et d’éléments
patrimoniaux associés qui reflètent l’existence d’influences réciproques entre
des groupes culturels divers et résultent de sa propre dynamique.
L’ICOMOS exprima la nécessité de mieux définir cette catégorie
spécifique du patrimoine depuis 1993, à l’occasion de l’évaluation du
Chemin de Saint-Jacques en tant que site du Patrimoine mondial de
l’UNESCO et a travaillé depuis à en établir le cadre conceptuel et
opérationnel.

LA DÉCLARATION DE QUÉBEC SUR LA SAUVEGARDE DE L’ESPRIT


DU LIEU
La Déclaration de Québec sur la sauvegarde de l’esprit du lieu présente les
principes et recommandations destinés à la préservation de l’esprit du lieu,
par la sauvegarde du patrimoine matériel et immatériel, qui est envisagée
comme un moyen novateur et efficace de contribuer au développement
229
durable et social à travers le monde.
L’esprit du lieu peut être défini comme l’ensemble des éléments matériels
(sites, paysages, bâtiments, objets) et immatériels (mémoires, récits oraux,
documents écrits, rituels, festivals, métiers, savoir-faire, valeurs, odeurs),
physiques et spirituels, qui donne du sens, de la valeur, de l’émotion et du
mystère au lieu. Plutôt que de séparer l’esprit du lieu, l’immatériel du
matériel, et de les mettre en opposition, ICOMOS a exploré les diferentes
manières dont les deux sont unis dans une étroite interaction, l’un se
construisant par rapport à l’autre. L’esprit construit le lieu et, en même
temps, le lieu investit et structure l’esprit.
La Déclaration de Québec s’inscrit dans une série de mesures et d’actions
entreprises par l’ICOMOS depuis 2003 pour sauvegarder et promouvoir
l’esprit des lieux, principalement leur caractère vivant, social et spirituel.

DÉCLARATION DE QUÉBEC SUR LA SAUVEGARDE DE L’ESPRIT


DU LIEU
Adoptée à Québec, Canada, le 4 octobre 2008
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 230

Vo l . 1

PRÉAMBULE
Réunis dans la ville de Québec (Canada) du 29 septembre au 4 octobre
|

2008, sur l’invitation d’ICOMOS Canada, à l’occasion de la 16e assemblée


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

générale du Conseil International des Monuments et des Sites (ICOMOS)


et des célébrations marquant le 400e anniversaire de la fondation de la ville
de Québec, les participants adoptent cette Déclaration de principes et de
recommandations destinée à la préservation de l’esprit du lieu, par la
sauvegarde du patrimoine matériel et immatériel, qui est envisagée comme
un moyen novateur et efficace de contribuer au développement durable et
social à travers le monde.
Cette Déclaration s’inscrit dans une série de mesures et d’actions
entreprises depuis quelques années par ICOMOS pour sauvegarder et
promouvoir l’esprit des lieux, principalement leur caractère vivant, social
et spirituel. En 2003, ICOMOS a consacré le symposium scientifique de
sa 14e assemblée générale, tenue à Victoria Falls, au Zimbabwe, au thème
de la conservation des valeurs sociales immatérielles de monuments et de
sites. Par la Déclaration de Kimberley de 2003, ICOMOS s’est engagé à
tenir compte des composantes immatérielles (mémoires, croyances,
appartenances, savoir-faire, affects) et des communautés locales qui les
portent et les conservent dans la gestion et la conservation des monuments
230
et des sites régis par la Convention pour la protection du patrimoine
mondial, culturel et naturel de 1972. La Déclaration ICOMOS de Xi’an
de 2005 attire l’attention sur la conservation du contexte, défini comme
étant constitué par les éléments physiques, visuels et naturels ainsi que par
les pratiques sociales ou spirituelles, les coutumes, les métiers, les savoir-
faire traditionnels et les autres formes et expressions immatérielles, dans la
protection et la mise en valeur des monuments et des sites du patrimoine
mondial. Elle souligne également la nécessité d’une aproche
multidisciplinaire et l’utilisation de sources diversifiées pour mieux
comprendre, gérer et conserver le contexte. La Déclaration de Foz Do
Iguaçu de 2008, ICOMOS-région des Amériques, précise que la
sauvegarde des éléments matériels et immatériels est fondamentale pour
la préservation de l’identité des communautés qui ont créé et transmis des
espaces patrimoniaux. Les nouvelles chartes sur les Itinéraires culturels et
sur l’Interprétation et la présentation d’ICOMOS, élaborées après de
nombreuses consultations, et présentées pour ratification à la 16e
assemblée générale, accordent aussi une place importante au patrimoine
intangible et spirituel des lieux. En raison de l’interdépendance du
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


patrimoine matériel et immatériel ainsi que du sens, des valeurs et des
éléments contextuels que le patrimoine immatériel donne aux objets et
aux lieux, ICOMOS envisage l’adoption d’une charte consacrée
spécialement au patrimoine culturel immatériel des monuments et des
sites. A ce sujet, nous encourageons la mise en place de débats pour définir
un nouveau vocabulaire conceptuel qui ferait part dês changements
ontologiques de l’esprit du lieu.
L’assemblée générale de Québec, plus particulièrement le Forum des
jeunes, le Forum des autochtones et le Symposium scientifique, ont permis
de poursuivre cette réflexion avec encore plus de détermination et d’éclairer
les rapports entre le patrimoine matériel et immatériel et les mécanismes qui
régissent l’esprit du lieu. Rappelons que l’esprit du lieu peut être défini
comme l’ensemble des éléments matériels (sites, paysages, bâtiments, objets)
et immatériels (mémoires, récits oraux, documents écrits, rituels, festivals,
métiers, savoir-faire, valeurs, odeurs), physiques et spirituels, qui donne du
sens, de la valeur, de l’émotion et du mystère au lieu. Plutôt que de séparer
l’esprit du lieu, l’immatériel du matériel, et de les mettre en opposition,
nous avons exploré les différentes manières dont les deux sont unis dans
une étroite interaction, l’un se construisant par rapport à l’autre. L’esprit
construit le lieu et, en même temps, le lieu investit et structure l’esprit. Les
lieux sont investis par différents acteurs sociaux, tant les concepteurs que les 231
utilisateurs qui participent très activement à la construction de leur sens.
Envisagé dans sa dynamique relationnelle, l’esprit du lieu prend ainsi un
caractère pluriel et polyvalent, et peut posséder plusieurs significations et
singularités, changer de sens avec le temps et être partagé par plusieurs
groupes. Cette approche plus dynamique est mieux adaptée à un monde
globalisé, caractérisé de plus en plus par les migrations transnationales, les
populations relocalisées ou délocalisées, les contacts interculturels, les
sociétés multiculturelles et les appartenances multiples.
La notion d’esprit du lieu permet de mieux comprendre le caractère à la
fois vivant et permanent des monuments, des sites et des paysages culturels.
Elle donne une vision plus riche, dynamique, large et inclusive du
patrimoine culturel. L’esprit du lieu existe, sous une forme ou une autre,
dans pratiquement toutes les cultures du monde et est une construction
humaine destinée à desservir des besoins sociaux. Les groupes qui habitent
le lieu, surtout lorsqu’il s’agit de sociétés traditionnelles, devraient être
intimement associés à la sauvegarde de sa mémoire, de sa vitalité et de sa
pérennité, voire de as sacralité.
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 232

Vo l . 1

Les participants de la 16e assemblée générale adressent la présente


Déclaration aux organisations intergouvernementales, aux autorités
nationales et locales ainsi qu’à toutes les institutions et à tous les spécialistes
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

aptes à contribuer par la législation, par lês pratiques, par les processus
d’aménagement et de planification ainsi que par la gestion à une meilleure
sauvegarde et à la promotion de l’esprit du lieu.

REPENSER L’ESPRIT DU LIEU


1. Reconnaissant que l’esprit du lieu est constitué d’éléments matériels
(sites, paysages, bâtiments, objets) et immatériels (mémoires, récits oraux,
documents écrits, rituels, festivals, métiers, savoir-faire, valeurs, odeurs),
qui servent tous de manière significative à marquer un lieu et à lui donner
un esprit, nous demandons à ce que tout projet de conservation et de
restauration de monuments, de sites, de paysages, de routes, de collections
et d’objets et à ce que toute législation sur le patrimoine culturel tiennent
compte autant des composantes matérielles que des composantes
immatérielles de l’esprit du lieu.
2. Puisque l’esprit du lieu est complexe et multiforme, nous demandons
aux gouvernements et aux organismes patrimoniaux d’exiger la composition
d’équipes multidisciplinaires de chercheurs, de personnes issues des milieux
232
culturels et cultuels et de praticiens traditionnels afin de mieux comprendre,
de préserver et de transmettre l’esprit du lieu.
3. Sachant que l’esprit du lieu est un processus construit et reconstruit
pour répondre aux esoins de continuité et de changement des
communautés, nous soutenons qu’il peut varier avec Le temps et d’une
culture à une autre en fonction de leurs pratiques mémorielles, et qu’un
même lieu peut posséder plusieurs esprits et être partagé par différents
groupes.

IDENTIFIER LES MENACES METTANT EN PÉRIL L’ESPRIT DU LIEU


4. Étant donné que les changements climatiques, le tourisme de masse,
les conflits armés et le développement urbain conduisent à des
transformations et à dês ruptures dans les sociétés, il nous faut mieux
comprendre ces menaces afin de prendre des mesures préventives et de
planifier des solutions durables. Nous recommandons que les organisations
gouvernementales et non gouvernementales, les associations patrimoniales
locales et régionales, développent des plans stratégiques à long terme pour
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 233

Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


mieux protéger l’esprit du lieu et son environnement. De même, les
habitants ainsi que les autorités locales doivent être sensibilisés à la
sauvegarde de l’esprit du lieu pour faire face aux menaces dues aux
transformations du monde actuel.
5. Compte tenu que le partage de lieux investis d’esprits différents
augmente le risque de tensions et de conflits, nous considérons que ces sites
nécessitent des plans de gestion spécifiques, adaptés au contexte pluraliste
des sociétés multiculturelles modernes. Comme les menaces qui pèsent sur
l’esprit des lieux sont particulièrement élevées chez les groupes minoritaires,
autochtones et allochtones, nous recommandons que ces groupes
bénéficient prioritairement de politiques et de pratiques spécifiques.

SAUVEGARDER L’ESPRIT DU LIEU


6. Étant donné que dans la plupart des pays du monde d’aujourd’hui
l’esprit du lieu, particulièrement ses composantes immatérielles, ne bénéficie
ni de programmes d’éducation formels ni de cadres de protection juridique,
nous encourageons fortemente la mise sur pied de programmes de
formation et l’adoption de nouvelles lois destinées à la conservation et à la
gestion de l’esprit du lieu.
7. Considérant que les technologies modernes (bases de données 233
numériques, sites Internet) permettent de constituer rapidement et
efficacement des inventaires multimédias qui intègrent les éléments
matériels et immatériels du patrimoine, nous recommandons fortement
leur utilisation pour mieux conserver, diffuser et promouvoir les lieux
patrimoniaux et leurs esprits. Ces technologies facilitent la diversité et le
renouvellement constant de la documentation sur l’esprit du lieu.

TRANSMETTRE L’ESPRIT DU LIEU


8. Reconnaissant que l’esprit du lieu est transmis essentiellement par des
personnes et que la transmission participe activement à sa conservation,
nous déclarons que c’est par la communication interactive et la participation
des communautés concernées que l’esprit du lieu est sauvegardé, employé
et enrichi. La communication permet ainsi de garder l’esprit du lieu vivant.
9. Considérant que les communautés locales sont généralement les
mieux places pour saisir l’esprit du lieu, surtout dans le cas des groupes
culturels traditionnels, nous soutenons qu’elles devraient être intimement
associées à tous les efforts de conservation et de transmission de l’esprit du
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 234

Vo l . 1

lieu. Les transmissions informelles (récits oraux, rites, performances,


apprentissages artistiques et artisanaux) et formelles (programmes éducatifs,
banques de données informatisées, sites Internet, trousses pédagogiques)
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

devraient être encouragées, car elles assurent non seulement la sauvegarde


de l’esprit du lieu, mais aussi, plus important encore, le développement
durable et la vitalité de la communauté.
10. Reconnaissant que la transmission intergénérationnelle et que la
transmission transculturelle sont des composantes importantes pour la
sauvegarde et la diffusion de l’esprit du lieu, nous recommandons
l’association et la participation des jeunes générations et des différents
groupes culturels en lien avec le site à l’élaboration de politiques de
protection et à la gestion de l’esprit du lieu.

234
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Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


A EXPERIÊNCIA DO ESCRITÓRIO
T É C N I C O D E L I C E N C I A M E N TO E
F I S C A L I Z A Ç Ã O (E T E L F /BA ) E O S
DESAFIOS DA GESTÃO INTEGRADA

Frederico A. R. C. Mendonça*

RESUMO
Salvador apresenta uma experiência de compartilhamento de ações entre * Diretor-geral do
Ipac
os órgãos de preservação patrimonial, federal e estadual, e a instituição
municipal de licenciamento de construções e atividades para áreas de
interesse patrimonial e paisagístico. Experiência que já dura uns 27 anos e
foi objeto de nova formalização em 2009, depois de uma década de
funcionamento informal. Especificidades do processo de recuperação do
Centro Histórico de Salvador induziram uma supervalorização de órgãos da
administração estadual. Nos últimos três anos, medidas vêm sendo adotadas
para corrigir as distorções históricas e contextualizar a poligonal de 235
tombamento federal num planejamento estratégico para uma área maior
denominada centro antigo de Salvador.

PALAVRAS-CHAVE
Gestão, Compartilhamento, Planejamento.

A EXPERIÊNCIA DO ETELF/BA E OS DESAFIOS DA


GESTÃO INTEGRADA
Com a Lei Municipal nº 3.289/83, de 21.09.1983, estabeleceu-se uma
articulação institucional entre as três instâncias de poder público, para o
licenciamento e a fiscalização de atividades nas áreas de proteção cultural e
paisagística e “do acervo arquitetônico tombado pelo Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – Sphan”, cuja ênfase recai, especialmente,
no denominado Centro Histórico de Salvador – CHS, mas abrange outros
trechos do núcleo urbano de Salvador. Daí decorreu o convênio que criou
o Escritório Técnico de Licenciamento e Fiscalização – Etelf, que reúne
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 236

Vo l . 1

técnicos da Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo


do Município – Sucom, do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da
Bahia – Ipac e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Iphan. As reuniões ocorrem diariamente, no turno matutino, na sede do


Iphan.
Projetos arquitetônicos ou urbanísticos, algumas vezes sob a forma de
estudos preliminares, propostas de intervenção urbana, são submetidos a
uma avaliação conjunta desses técnicos, cujo parecer determinará os
procedimentos seguintes. Depois da análise do processo, a equipe do Etelf
emite um parecer técnico que é encaminhado ao superintendente do Iphan
para um parecer conclusivo. Na sequência, o processo será enviado à
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio
Ambiente – Sedham para as devidas providências legais e administrativas
cabíveis, no âmbito municipal. Caso se trate de imóveis com tombamento
estadual, o processo é encaminhado ao Ipac para complementações e
procedimentos específicos, sendo, posteriormente, enviado ao órgão
municipal responsável pela concessão dos alvarás.
Com prazo vencido em 1999, o Etelf continuou funcionando
regularmente até que novo Termo de Convênio, “visando a um programa
de ação integrada no município de Salvador”, foi assinado em 20.10.2009,
236 por iniciativa da atual Superintendência do Iphan. Ao lado da nova
formalização de convênio, a Superintendência do Iphan criou, ainda, uma
mesa multilateral, formada pelos titulares das três instituições signatárias.
No caso da Prefeitura, foi designado como representante o secretário
Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente, a
quem está subordinada a Sucom. Essa instância, de caráter informal,
tornou-se responsável pelas diretrizes políticas mais gerais, podendo ser
acionada em função da complexidade dos temas apresentados à apreciação.
Em que pese o funcionamento ininterrupto do Etelf por cerca de vinte e
sete anos, racionalizando e agilizando os procedimentos de fiscalização e
licenciamento de empreendimentos e atividades em áreas de preservação
patrimonial – recentemente acrescida pelo tombamento federal do bairro do
Comércio. Salvador, com seu conjunto urbanístico e arquitetônico de
importância internacional, continua, todavia, sem uma Secretaria de Cultura.
Esse papel tem sido desempenhado, em certa medida, pela Fundação
1. http:// Gregório de Mattos, vinculada à Secretaria Municipal de Educação.1
www.cultura.salvador.
ba.gov.br Esse dado constitui um fator substantivo ao se discutir a gestão
compartilhada do espaço urbano, posto que, numa área como o Centro
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 237

Mesa-redonda 2 | SNPC - Cooperação, compartilhamento e definição de papéis


Histórico de Salvador, cujo elemento cultural é decisivo para a adoção de
medidas de salvaguarda para o sítio tutelado, assim como para a
alavancagem do seu desenvolvimento social e econômico, a ausência de
uma política cultural no âmbito do município torna-se um grande limitador
à gestão dessas áreas de preservação patrimonial.2 2. Acerca da
relevância cultural do
Por outro lado, as especificidades do processo de recuperação do CHS, CHS, ver
GOTTSCHALL,
que se encontra em sua 7ª etapa, através do Programa Monumenta e sob a Carlota S. &
coordenação da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da SANTANA, Mariely
C. (org.). Centro da
Bahia – Conder, levaram a um afastamento dos órgãos municipais da gestão Cultura de Salvador.
daquele trecho da cidade.3 Isso provocou uma supervalorização do papel Salvador: EDUFBA-
SEI, 2006. 242p.
dos órgãos estaduais – em particular, Conder e Ipac – no gerenciamento de
3. A esse respeito, ver
questões que, a rigor, seriam de competência municipal – ou da esfera SANT’ANNA,
particular –, a exemplo da manutenção de parte da iluminação pública, do Márcia. A recuperação
do Centro Histórico
gerenciamento do comércio ambulante nos logradouros ou da pintura e de Salvador: origens,
conservação dos imóveis. sentidos e resultados.
RUA – Revista de
Essa distorção começou a ser alterada em 2007, com a mudança da Urbanismo e
Arquitetura, 1(8):44-
administração estadual, quando foram redefinidos os papéis institucionais 59. Salvador,
dos agentes atuantes no CHS e à Prefeitura foram redirecionadas suas julho/dezembro 2003.
atribuições. Um passo significativo nesse sentido foi dado com a criação,
pelo Governo Estadual, através do Decreto nº 10.478 de 2.10.2007, de um
Conselho Gestor e do Escritório de Referência do Centro Antigo de 237
Salvador/Ercas, sinalizando uma maior abrangência política e espacial no
processo de preservação da poligonal de tombamento federal. O Conselho
Gestor é formado pelas Secretarias Estaduais de Cultura – Secult
(coordenação), de Desenvolvimento Urbano – Sedur (subcoordenação),
Turismo – Setur, Promoção da Igualdade – Sepromi e Segurança Pública –
SSP. Na sequência, o Estado assinou, em 28.12.2007, um Acordo de
Cooperação Técnica com a União e o Município para “elaboração e
implementação do Plano de Reabilitação Integrado Participativo do Centro
Antigo de Salvador”. Pela União, assinaram os titulares dos Ministérios das
Cidades, do Planejamento, Orçamento e Gestão, da Cultura, do Turismo,
além da Secretaria Especial de Portos e o presidente Nacional do Iphan. 4 4. http://
centroantigo.blogspot.
Além de “elaborar e implantar o Plano Estratégico de Gestão, de curto, com
médio e longo prazo”, coube ao Ercas a articulação das ações dos diversos
agentes, nas três esferas do serviço público, da iniciativa privada e das
organizações sociais, num contexto geográfico em que o CHS é abordado
como parte do Centro Antigo de Salvador, esvaziado nas últimas décadas de
expansão urbana na direção do vetor Norte de Salvador. Ou seja, extrapola-
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 238

Vo l . 1

se a visão da poligonal de tombamento federal compartimentada, inserindo-


se a poligonal de preservação patrimonial numa malha urbana mais ampla,
para a qual se buscou identificar e priorizar os principais elementos que
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

integram uma nova dinâmica de desenvolvimento urbano.


Dentre as consequências mais específicas dessa nova visão estratégica, o
Ipac encaminhou à Secretaria Municipal de Serviços Públicos – Sesp, em
25.01.2008, a relação dos ambulantes que se instalavam no Terreiro de Jesus
e na praça José de Alencar (largo do Pelourinho) e que, até então, eram
objeto de gerenciamento pela sua Diretoria de Ações Culturais – Dirac,
responsável pela dinamização dos espaços livres do Pelourinho. Embora
ainda promova uma programação artística para o miolo de alguns
quarteirões do Pelourinho, buscando atrair a população local através do
projeto “Pelourinho Cultural”, o Ipac busca outro modelo para a
“sustentabilidade” do local.
Por um lado, procura estabelecer “normas de convivência” entre os
5. Entre agosto de concessionários dos 235 imóveis sob sua responsabilidade, dos quais 26 são
2007 e março de de uso residencial, em alguns casos mistos de comércio e de usos
2008, a Fundação
Escola de institucionais. Embora os contratos de (con)cessão ou autorização de uso
Administração da responsabilizem, individualmente, os (con)cessionários ou autorizatários pela
UFBA foi contratada
238 pelo Ipac para manutenção do imóvel, na prática, não existe uma gestão que se traduza numa
realizar um cadastro conservação predial adequada, além de se registrar inúmeros conflitos de
socioeconômico dos
concessionários do vizinhança.5 Paralelamente, foi iniciado um processo de individualização das
Ipac e um ligações de água em três imóveis (dois residenciais e o terceiro de uso
mapeamento das
redes de amizade, institucional), visando reduzir os conflitos entre “condôminos”.
informação e
confiança no CHS. Por outro lado, busca-se assegurar uma oferta de moradias para diversos
Esse trabalho serviu
de base para as
segmentos sociais, através dos programas federais em curso, a exemplo do
iniciativas de Monumenta e do Programa de Aceleração do Crescimento, sob a
formação de
“estruturas
responsabilidade da Sedur/Conder. O Plano de Reabilitação do Centro
condominiais” em Antigo de Salvador, coordenado pelo Ercas e a ser entregue publicamente
alguns imóveis. Dos
235 imóveis, 193 são
ainda no primeiro semestre de 2010, aponta a atratividade de novos
de propriedade do investimentos comerciais e culturais. Dentre os últimos, o Ipac executa a
Ipac e os demais em
regime de comodato
restauração de monumentos através do Prodetur NE II, com recursos do
e/ou aluguel; no Ministério do Turismo e do Banco do Nordeste. O repovoamento da antiga
conjunto, são 387
contratos, dos quais
área central de Salvador, paralelo à atração de novos empreendimentos, com
158 para forte relação com as atividades turísticas e de interface com a baía de todos
comércio/serviços,
120 residenciais e 85
os santos, constituem o desafio comum para a gestão compartilhada da
de uso institucional. capital baiana.
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 239

Relatório síntese
SISTEMA NACIONAL DE
P AT R I M Ô N I O C U LT U R A L ( SN PC)
COOPERAÇÃO, COMPARTILHAMENTO E DEFINIÇÃO
DE PAPÉIS
Coordenador: Honório Nicholls Pereira (consultor Iphan)
Relatora: Mônica Cristina de Souza Silva (consultora Iphan)

COMUNICAÇÕES
Frente Parlamentar em defesa do patrimônio cultural, Jussara Hockmüller
Carpes (vereadora de Bagé/RS)
O patrimônio cultural e o contexto internacional, Marcelo Brito (Iphan)
Desafios do compartilhamento de competências, Leonardo Barci Castriota
(Escola de Arquitetura da UFMG)
Atuação do Icomos na preservação do patrimônio cultural: experiências e
desafios, Rosina Coeli Alice Parchen (Icomos Brasil)
239
A experiência do Etelf/BA e os desafios da gestão integrada, Frederico A. R.
Mendonça (Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural/BA)
O papel da sociedade civil: a experiência da Sociedade Olindense em Defesa
da Cidade Alta (Sodeca), Juliana Cunha Barreto (Centro de Estudos
Avançados da Conservação Integrada/UFPE)* *Devido a problemas
de transcrição da
gravação esta palestra
não pôde ser publi-
RELATO cada.

DESAFIOS PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL


• Construir um conceito de gestão compartilhada juntamente com as
instituições envolvidas para elaboração de instrumentos de gestão
compatíveis;
• Superar o sombreamento de competências das instituições e a
existência de legislações conflituosas no mesmo território a partir da
definição clara de papéis e responsabilidades para uma atuação
compartilhada;
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 240

Vo l . 1

• Formular uma política nacional que considere a ampliação do


conceito de patrimônio cultural com suas diversas temáticas;
|

• Promover a articulação entre o executivo e o legislativo nas


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

instâncias municipais;
• Promover a consolidação das legislações de patrimônio nos
municípios;
• Fortalecer o conhecimento dos gestores locais na área de patrimônio
histórico promovendo a identificação de potencialidades locais;
• Superar a variação das relações institucionais de acordo com as
relações políticas vigentes.

DESAFIOS PARA A ESTRUTURAÇÃO DO SNPC


• Implementar instrumentos de planejamento e orçamento vigentes
para estruturar o SNPC superando a fragmentação e a multiplicidade
de instrumentos;
• Incorporar e institucionalizar a participação de novos atores –
sociedade civil, ONGs e Associações científicas – no processo de
implementação do SNPC;
240
• Incorporar a participação de conselhos municipais;
• Promover a criação de conselhos, fundos e órgãos municipais a
partir de critérios básicos evitando a multiplicidade dos mesmos;
• Incentivar a criação de redes intermunicipais;
• Promover a realização de acordos de cooperação entre as
instituições;
• Definir as competências e o ciclo de gestão a partir do conceito de
patrimônio cultural com suas diversas temáticas;
• Institucionalizar a gestão da informação como forma de
participação social;
• Capacitar as instituições locais para o estabelecimento de parcerias.

POTENCIALIDADES PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL


• A presença do Iphan em todo território nacional atuando como
canal de comunicação entre as instituições e a sociedade;
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 241

Relatório síntese
• Experiência do Programa Monumenta, principalmente a ação de
imóveis privados;
• A organização da Frente Parlamentar em Defesa do Patrimônio a
partir de experiência do município de Bagé/RS.

POTENCIALIDADES PARA A ESTRUTURAÇÃO DO SNPC


• O processo de troca de experiências em andamento devido à
realização de conferências, fóruns, oficinas, seminários que tratam da
questão do patrimônio cultural;
• A participação do Brasil em fóruns, comitês e conselhos
internacionais que possibilitam o intercâmbio de experiências com
outros países;
• A implantação do Centro Regional para Formação para Gestão do
Patrimônio no Rio de Janeiro como uma ferramenta estratégica para
as ações de capacitação de gestores públicos e privados.

PARCERIAS ESTRATÉGICAS PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA


NACIONAL
• Ministério Público;
241
• Ministério do Meio Ambiente;
• Ministério do Turismo;
• Agências de Cooperação Internacional;
• BNDES.

PARCERIAS ESTRATÉGICAS PARA A ESTRUTURAÇÃO DO SNPC


• Órgãos de fomento;
• Associações científicas;
• Organizações sociais;
• Instituto dos Arquitetos do Brasil.

OBJETIVOS PARA OS PRÓXIMOS DOIS ANOS (2010-2011)


• Formular uma política que considere o conceito da ampliação de
patrimônio cultural e as suas diversas temáticas;
ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 242

Vo l . 1

• Reduzir as áreas de sombreamento e conflito e estabelecer as áreas


comuns de atuação das instituições;
|

• Definir os papéis da União, estados e municípios a partir das suas


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

competências legais para a estruturação do SNPC;


• Institucionalizar os espaços de pactuação e os canais de
comunicação para o SNPC;
• Promover a criação e o fortalecimento de estruturas municipais –
fundo, conselho e órgão técnico;
• Fortalecer a rede de atores que atuam na preservação do patrimônio;
• Identificar e incorporar a participação de novos atores – sociedade
civil, ONGs e associações científicas para a estruturação do SNPC.

AÇÕES ESTRATÉGICAS QUE DEVEM SER IMPLEMENTADAS NOS


PRÓXIMOS CINCO ANOS (2010–2014)
• Realizar fóruns para pactuação de estratégias e ações do SNPC;
• Fortalecer a estrutura técnica do Iphan, estados e municípios;
• Realizar um programa de capacitação contínua de educação
242 patrimonial para a rede de atores;
• Identificar parcerias que tenham legitimidade social.

AÇÕES ESTRATÉGICAS QUE DEVEM SER IMPLEMENTADAS EM 2010


• Construir o conceito de gestão compartilhada;
• Definir o ciclo de gestão – delegação de competências;
• Elaborar uma política pública de educação patrimonial nos três
níveis governamentais.
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ForumPatrimonioCap5:Layout 3 5/30/12 4:16 PM Page 244
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


SISTEMA NACIONAL DE
P AT R I M Ô N I O C U LT U R A L – SN PC
REGULAÇÃO E MARCOS LEGAIS

Antônio Fernando A. L. Neri*

RESUMO
O texto abre as discussões que pretendem aprofundar o debate sobre os *Procurador chefe
do Iphan
marcos legais que precisam ser editados ou aprimorados para que o Sistema
Nacional de Patrimônio Cultural possa ser efetivamente implementado.

PALAVRAS-CHAVE
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, Marcos legais, Articulação.

É importante assinalar que a construção de um Sistema Nacional de


245
Patrimônio Cultural envolve uma complexidade de questões, tanto em nível
administrativo, quanto técnico, orçamentário, regulatório, entre outros.
Vivemos em um sistema federativo em que a autonomia política e legislativa
tem de ser respeitada conforme estabelece a nossa Carta Magna, isso quer
dizer que a União Federal, estados, municípios e o Distrito Federal deverão,
no exercício de sua competência institucional, comum e concorrente,
articularem-se para que os valores a serem protegidos, conjuntamente, o
sejam de forma adequada, assegurando que a sociedade brasileira seja
beneficiada por políticas públicas, capazes de reduzir as desigualdades sociais
e permitir o seu desenvolvimento.
Estamos aqui, justamente, para pensar e refletir como deve ser
implementado o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, levando-se em
consideração o nosso sistema federativo. Dessa forma, devemos indagar
como se deve articular política de cultura em nível federal, estadual,
municipal e distrital, como se deve pactuar e compartilhar as
responsabilidades advindas do exercício da competência institucional,
comum e concorrente, na preservação do nosso patrimônio cultural
ForumPatrimonioCap6:Layout 3 5/30/12 4:18 PM Page 246

Vo l . 1

material e imaterial, além disso, quais deveriam ser os instrumentos e formas


de financiamento de uma política cultural? Pois creiam, a preservação do
patrimônio cultural não se faz apenas pela boa vontade dos interessados,
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

mas precisa de recursos financeiros, como também de recursos humanos,


para que se possa ter, de uma forma efetiva, uma continuidade, uma
permanência na preservação dos bens culturais.
Na seção de ontem, foi demonstrada a importância do município para
a preservação dos bens culturais, bem como foi evidenciado que, para ela
poder ser bem conduzida, precisa-se de regras claras, tanto em nível federal,
como estadual, igualmente, de uma ação compartilhada entre os três entes
federativos e da efetiva participação social, conferindo legitimidade ao
processo de defesa desses bens culturais, bem como de instituições públicas,
tanto do MP federal, MP estadual, advocacia pública, órgão de defesa do
patrimônio cultural e das instituições privadas, como as organizações não
governamentais. Agora, iremos aprofundar o debate sobre os marcos legais
que precisam ser editados ou aprimorados, a fim de que o Sistema Nacional
de Patrimônio Cultural possa ser efetivamente implementado.

246
ForumPatrimonioCap6:Layout 3 5/30/12 4:18 PM Page 247

Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


P L A N E J A M E N TO T E R R I TO R I A L E
PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L

Kazuo Nakano*

RESUMO
Este texto discute os sentidos na construção de sistemas de políticas * Arquiteto
urbanista do
públicas que estão sendo realizadas no Brasil nas décadas recentes, Instituto Pólis e
particularmente do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural. Procura doutorando pela
Unicamp
enunciar algumas premissas importantes relacionadas com o direito à cidade
e com as tendências da urbanização brasileira que devem ser consideradas
na construção desse Sistema. Finaliza estabelecendo pontos de contato entre
o Plano Diretor, instrumento básico da política de desenvolvimento urbano
no Brasil, e os patrimônios culturais.

PALAVRAS-CHAVE
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, Urbanização brasileira, Plano
Diretor, Patrimônio cultural. 247

INTRODUÇÃO
A elaboração deste texto foi motivada pelo interesse em inserir as
questões relativas ao planejamento e à gestão urbana e territorial, em especial
aquelas concernentes ao Plano Diretor, nas discussões sobre os processos de
construção do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural conduzido pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Parte dessas
discussões ocorreu em dezembro de 2009, quando o Iphan coordenou a
realização do I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural na cidade de Ouro
Preto (MG). Este texto foi escrito com base na apresentação sobre as
relações entre o Plano Diretor e o patrimônio cultural feita na sessão sobre
“Regulação e Marcos Legais”, prevista no programa daquele Fórum.
De início, é importante contextualizar os esforços de construção do
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural a partir dos marcos históricos da
redemocratização política do Brasil, que se iniciou na segunda metade da
década de 1980 e vem se prolongando até os dias atuais. É importante
ForumPatrimonioCap6:Layout 3 5/30/12 4:18 PM Page 248

Vo l . 1

chamar a atenção para os esforços empreendidos por outros setores da


sociedade brasileira na construção de sistemas de políticas públicas,
estruturados no âmbito do pacto federativo, instituído pela Constituição
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Federal de 1988.
Nesse sentido, vale lembrar a importância da construção do Sistema
Único de Saúde (SUS), do Sistema Único da Assistência Social (Suas), do
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), entre outros. Esses
Sistemas têm em comum uma estruturação sobre três colunas vertebrais,
organizados por todos os entes da federação, que são imprescindíveis nas
políticas públicas contemporâneas: (i) fundo de recursos públicos
permanentes distribuídos segundo critérios definidos em processos de
planejamento de curto, médio e longo prazo; (ii) instrumentos específicos
de planejamento elaborados necessariamente com participação social e
popular, envolvendo os agentes políticos e grupos sociais relacionados, direta
ou indiretamente, com o setor; (iii) canais institucionais para a interlocução
e compartilhamento de decisões e responsabilidades de interesse público
entre Estado e sociedade (conselhos gestores). Na operacionalização dessas
estruturas, um ponto crítico encontra-se nas formas e nos critérios de
repasses e distribuição dos recursos financeiros, que se apresentam sempre
248 insuficientes para atender as demandas sociais existentes. Muitas vezes, esses
repasses são capturados por lógicas políticas clientelistas que inviabilizam a
transparência e as práticas do controle social que buscam garantir o uso
justo e adequado desses recursos.
É importante dizer que os sistemas de políticas públicas, que estamos
experimentando no Brasil, ainda precisam de vários aperfeiçoamentos que
devem ser feitos com base em avaliações amplas e detalhadas. Em que pese
os problemas e limitações que inegavelmente existem nos alcances,
abrangências e funcionamentos desses sistemas, é interessante observar o
fato de que as proposições possuem enraizamento em importantes bases
propiciadas pelos setores organizados da sociedade. Tais bases incidiram e
continuam a incidir nos processos de instituição e reformulação dos
componentes, órgãos, critérios, procedimentos e legislações que compõem
esses sistemas. É interessante observar, ainda, a clara adoção dos princípios
e perspectivas que afirmam os direitos sociais universais consagrados na
Constituição Federal. Pelo menos em tese, esses princípios colocam-se como
orientadores da construção e operacionalização daqueles sistemas de
políticas públicas.
ForumPatrimonioCap6:Layout 3 5/30/12 4:18 PM Page 249

Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


Nesse Brasil da redemocratização política, a efetivação de sistemas
nacionais e federativos de políticas públicas, que buscam garantir os direitos
à saúde, à proteção e à assistência social, à moradia digna, à preservação e
ao uso sustentável dos ecossistemas e biodiversidades naturais, pode ser um
meio importante para a democratização social em vários contextos sócio-
territoriais do país. A colocação desse fato no interior da perspectiva
histórica da sociedade brasileira, que nunca viveu períodos de
universalização dos direitos sociais básicos, mostra o alto grau de inovação
e ineditismo dessa iniciativa. A importância daqueles sistemas aumenta
ainda mais quando consideramos o fato de que eles estavam sendo
instituídos no país durante a década de 1990, em pleno período em que o
neoliberalismo, as privatizações de serviços públicos e os chamados ajustes
estruturais demandados pela globalização econômica estavam influenciando
fortemente as agendas de vários estados nacionais, muitas vezes em
detrimento do interesse público e coletivo e em favor das forças privadas do
mercado.
De modo simplificado podemos dizer que, num momento em que a
lógica do mercado era apregoada e defendida por visões conservadoras como
a principal fornecedora e reguladora dos acessos sociais aos equipamentos,
serviços e infraestruturas básicas para a satisfação das necessidades coletivas
imprescindíveis para o desenvolvimento humano, os sistemas nacionais e 249
federativos de políticas públicas do Brasil estavam se esforçando para
garantir os direitos sociais, a partir, unicamente, da cidadania, sem as
exigências de requisitos econômicos e de inscrição nas sociedades salariais,
conforme formulação de Robert Castel. Então, é importante que a
construção do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural extraia as
aprendizagens necessárias a partir das experiências de construção dos demais
sistemas de políticas públicas, mencionados anteriormente. Para isso, é
importante fazer um trabalho de avaliação crítica do que se avançou e do
que se deixou de avançar nesses sistemas, além de analisar quais foram os
elementos que potencializaram esses avanços e os entraves que os
impediram.
É necessário compreender como os direitos sociais se inscrevem nos
campos dos patrimônios culturais, considerando, especialmente, as diferentes
concepções enunciadas pelo professor Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes,
na conferência de abertura do I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural,
acima mencionado. Isto é, compreender a efetivação de direitos sociais, por
meio de patrimônios culturais inseridos na vida prática e nos hábitos sociais
ForumPatrimonioCap6:Layout 3 5/30/12 4:18 PM Page 250

Vo l . 1

cotidianos, constituintes dos “espaços de habitualidade” povoados por


valores, sentidos e sensações transformadoras, que mobilizam experiências e
vivências das pessoas nos seus territórios existenciais, constantemente
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

atravessados por processos políticos, econômicos e culturais. Como bem


declara Menezes, trata-se de compreender o patrimônio cultural numa
dimensão que está além do chamado “voyeurismo cultural”, este alinhado
muito mais ao consumo acelerado dos patrimônios culturais do que à sua
incorporação na vida do dia a dia. Na perspectiva do planejamento e gestão
urbana e territorial, as questões relevantes que nos interpela são: Como o
Sistema Nacional de Patrimônio Cultural pode contribuir para efetivar os
direitos sociais básicos, em especial o direito à cidade, por meio da inscrição
dos sentidos, afetos, valores e crenças que impregnam os patrimônios
culturais existentes nas cidades brasileiras? Como esses patrimônios culturais
urbanos podem ser incorporados nos “espaços da habitualidade” da
cidadania cotidiana? Como essa efetivação de direitos pode ocorrer com
maior fortalecimento democrático?
Este texto não pretende dar respostas completas e esgotar essas questões.
Devido às limitações de espaço propõe-se, nas partes subsequentes, discutir
brevemente algumas premissas importantes, que devem ser consideradas na
busca por reflexões em torno dessas questões. Trata-se de algumas premissas
250 que são importantes para pensar o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural
na perspectiva do direito à cidade e de uma possível, e necessária, articulação
com um futuro Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, ainda
inexistente. Depois dessas premissas, traçam-se algumas considerações sobre
a incorporação do patrimônio cultural nos conteúdos e componentes do
Plano Diretor, instrumento básico para o planejamento e gestão do
desenvolvimento urbano e da expansão das cidades, inserido no
ordenamento jurídico do país. Ordenamento jurídico baseado no capítulo
sobre a política urbana da Constituição Federal de 1988 (Artigos 182 e
183), regulamentado pelo Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/2001.

DUAS PREMISSAS PARA A ARTICULAÇÃO ENTRE O


PATRIMÔNIO CULTURAL E O DIREITO À CIDADE
PRIMEIRA PREMISSA
Para discutirmos a relação entre patrimônio cultural, a cidade e a
cidadania é necessário ter em mente três dimensões essenciais e funda-
ForumPatrimonioCap6:Layout 3 5/30/12 4:18 PM Page 251

Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


mentais, que fazem parte da própria ideia de cidade. Trata-se das dimensões
políticas, das dimensões físicas e materiais do espaço urbano e das
dimensões civilizatórias, baseadas no compartilhamento de valores
socioculturais, que amalgama os intercâmbios e as convivências entre os
citadinos em diferentes espaços e tempos. Discutir a cidade e suas
transformações, com base no entrelaçamento dessas dimensões, exige,
necessariamente, considerações sobre a política; sobre as condições e
configurações dos espaços urbanos; e sobre os pactos de convivência e
compartilhamento de valores, que procuram a permanência da cidade.
Assim, as discussões sobre as cidades e seus patrimônios culturais,
inscritos em seus territórios, implicam, necessariamente, reflexões sobre a
cidadania, pois as cidades se constituem a partir das práticas cidadãs, assim
como a cidadania se vale dos benefícios da vida nas cidades. Portanto,
refletir sobre a cidadania exige considerações sobre as relações políticas com
o outro, que se posiciona como diferente e divergente, sobre as condições
materiais de vida nos espaços urbanos e sobre os valores civilizatórios que
se compartilha na convivência em meio à diversidade social. As relações
políticas, baseadas nos exercícios de poder que envolve inúmeros tipos de
conflitos, são partes constituintes das cidades, inclusive dos seus patrimônios
culturais. Essas relações se fundam nos dissensos e na convivência com a
diferença e envolvem o compartilhamento de valores que, muitas vezes, 251
estão representados e materializados na existência e nos usos dos
patrimônios culturais.
Na medida em que negamos ou nos retiramos dessa convivência em
meio a diversidades urbanas, na medida em que adotamos modos de vida
cada vez mais encapsulados em contextos e territórios social e culturalmente
homogêneos, abreviamos e erodimos a política e, em consequência,
colocamos em xeque a própria ideia de cidade. Desse modo, há um
enfraquecimento e uma erosão dessa ideia, quando o outro e o diferente
nos aparecem como um perigo e uma ameaça e, portanto, devem ser
evitados e terem os acessos e as circulações interditadas por determinados
espaços urbanos. Esse enfraquecimento ocorre, também, quando deixamos
os espaços físicos das cidades entrarem num processo de deterioração e
colapso, a ponto de comprometer profundamente as condições e as
qualidades positivas da vida urbana. Essa erosão se verifica ainda, quando
há um processo de decomposição e rupturas no compartilhamento e
atualização de determinados valores sociais, constituídos no presente e no
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Vo l . 1

passado, que são importantes na criação de certos amálgamas culturais. Os


patrimônios culturais nas cidades são parte importante desses valores.
Portanto, a destruição desses patrimônios traz consigo algo como uma
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

derrocada da ideia de cidade. E com isso, teremos uma derrocada do direito


à cidade.

SEGUNDA PREMISSA
É importante ter em mente que os nossos padrões de urbanização,
materializados nas cidades brasileiras, são padrões dirigidos
predominantemente pela lógica do mercado, formal e informal. O processo
de produção dos espaços urbanos se dá, principalmente, pela atuação dos
agentes econômicos presentes nos mercados imobiliários das classes
populares, de classe média e das classes mais abastadas. A regulação pública,
realizada pelo Estado, se coloca de duas maneiras nesse processo. De um
lado, omite-se de qualquer ação regulatória, no caso da produção de espaços
urbanos destinados às classes populares que, desse modo, passam a morar
e viver em locais irregulares, clandestinos, informais marcados por inúmeros
tipos de riscos e precariedades urbanísticas e socioambientais. De outro
lado, adota ações regulatórias patrimonialistas, que favorecem os interesses
minoritários das classes mais endinheiradas, em espaços urbanos melhor
252 constituídos, do ponto de vista da oferta de equipamentos, serviços e
infraestruturas básicas e de diversas oportunidades urbanas, propiciadoras
de desenvolvimento humano e econômico.
Portanto, aqueles padrões de urbanização que estruturaram e continuam
a estruturar os espaços das cidades brasileiras, se caracterizam pela produção
e apropriação desigual das terras urbanas, gerando processos de exclusão
territorial dos setores mais vulneráveis da sociedade. Tais processos reforçam
as desigualdades sociais existentes na distribuição de renda e em outras
riquezas socialmente produzidas. Não é exagero dizer que o nosso padrão
de urbanização é, basicamente, predatório. Predatório em relação às
potencialidades humanas, predatório em relação aos recursos naturais,
predatório em relação aos patrimônios culturais. Estamos testemunhando
as ocorrências de desastres naturais cada vez mais graves, porque as cidades
são produzidas de modo incompatível com as condições, regimes e ciclos
dos elementos naturais, principalmente as vegetações e os recursos hídricos.
Produzimos espaços urbanos segundo um processo sociopolítico destrutivo
e de alto risco. Por isso, faz todo o sentido discutir a violência na cidade e
a violência da cidade.
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


Esse fenômeno pode ser verificado tanto nos modos de urbanização da
zona costeira brasileira, ocorrida desde o período colonial, quanto nas
frentes de urbanização, que se encontram nas regiões Centro-Oeste e Norte,
nas cidades do agronegócio, nos núcleos urbanos implantados no “arco do
desmatamento”, que contorna a Amazônia Legal, nos corredores de
urbanização, que estão se constituindo ao longo da rodovia Belém-Brasília
e da BR 364 que liga Brasília, Campo Grande, Cuiabá, Porto Velho e Rio
Branco. Os recentes mapas da violência nos municípios brasileiros mostram
o processo de interiorização das altas taxas de homicídio em direção a essas
frentes de urbanização, alcançando pequenos núcleos urbanos em formação.
Isso mostra que a territorialização desigual, excludente e predatória, das
nossas cidades, sempre atravessada por sérios conflitos fundiários, se dá de
um modo violento. Esse modo violento de urbanização acirra a violência
que ocorre nos espaços urbanos produzidos, instaurando um ciclo vicioso,
difícil de ser quebrado.
Em São Gabriel da Cachoeira, município indígena localizado no
Amazonas, na região do Alto Rio Negro, conhecida como “cabeça do
cachorro” (por causa do perfil canino delineado pelas divisas municipais),
vemos que o padrão predatório de urbanização é capaz de destruir territórios
simbólicos da cultura indígena. Nesse município de 109 mil km², localizado
na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela, há mais de vinte 253
diferentes etnias indígenas, que convivem num extenso território
demarcado como terra indígena. Essas etnias valorizam a Cachoeira de
Iauaretê como importante patrimônio cultural relacionado com os mitos de
origem dos povos. Essa Cachoeira foi um dos primeiros registros de
patrimônio imaterial feito pelo Iphan.
Esse registro faz parte de um importante processo de valorização dos
patrimônios culturais indígenas que enriquecem São Gabriel da Cachoeira,
onde, além do português, há três línguas indígenas cooficiais instituídas por
lei municipal. Esses patrimônios culturais indígenas marcam vários pontos
do território com narrativas míticas conhecidas pelas comunidades,
principalmente pelas pessoas mais velhas. Essas narrativas foram registradas
em português pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Federação das
Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN), numa coleção de
publicações chamada “narradores indígenas”.
Os territórios de São Gabriel da Cachoeira não têm somente impor-
tância física, ambiental, funcional, mas apresentam grande importância
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Vo l . 1

simbólica. Na sede do município, o modo de urbanização ocorreu, e


continua a ocorrer, segundo padrões precários de moradia e de uso e
ocupação do solo, que também são verificados em outras cidades do país.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Essa urbanização está “apagando” as dimensões simbólicas de alguns locais


inscritos no espaço urbano da sede municipal e que fazem parte das várias
narrativas que contam as vidas e os feitos dos heróis, entidades e
antepassados míticos das diferentes etnias indígenas. Essa destruição do
patrimônio cultural, provocada por um padrão de urbanização desregulado
e dominado pela lógica mercadológica, ainda que informal, de produção e
apropriação das terras urbanas, pode ser vista em várias cidades brasileiras
que, desse modo, perdem elementos materiais e imateriais que definem os
sentidos, os afetos e os valores presentes na memória social do país.

O PLANO DIRETOR E O PATRIMÔNIO CULTURAL


Para iniciar uma reflexão sobre as relações entre o Plano Diretor e o
patrimônio cultural, em primeiro lugar é importante lembrar que, segundo
a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade, o princípio básico que deve
reger a política urbana no Brasil é o da função social das cidades e das
propriedades urbanas. É importante lembrar, ainda, que o Plano Diretor,
instituído por lei municipal, tem como objetivo principal definir normas e
254
parâmetros para o ordenamento das funções sociais das cidades e das
propriedades urbanas, nos municípios brasileiros. Segundo o Estatuto da
Cidade, as funções sociais das cidades se cumprem com base no
atendimento das necessidades sociais básicas e na garantia da qualidade de
vida dos cidadãos e cidadãs, portanto, na efetivação dos direitos sociais. A
função social da propriedade urbana se cumpre conforme a obediência a
todas as determinações estabelecidas no Plano Diretor, e não somente
àquelas concernentes ao combate à retenção especulativa da terra urbana.
As funções sociais das cidades se cumprem, também, pelo cumprimento
das funções sociais das propriedades urbanas.
Aqui já aparece um primeiro ponto de contato entre o Plano Diretor e
o patrimônio cultural. Trata-se do entendimento de que a proteção e a
utilização adequada do patrimônio cultural nos espaços urbanos definem,
junto com outros componentes, uma das linhas de cumprimento das
funções sociais das cidades e das propriedades urbanas. As cidades cumprem
as suas funções sociais quando garantem a possibilidade de todos fruírem e
usufruírem dos patrimônios culturais existentes nos seus territórios. As
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propriedades urbanas, reconhecidas como parte do patrimônio cultural por
seus “valores cognitivos, estéticos, afetivos, pragmáticos e éticos”, segundo
as definições propostas pelo professor Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes,
na conferência antes citada, também cumprem suas funções sociais, quando
preservadas e incorporadas adequadamente na vida urbana, em benefício
dos interesses públicos e coletivos da sociedade.
Essa colocação do patrimônio cultural na perspectiva das funções sociais
das cidades e das propriedades urbanas impõe a necessidade de estabelecer
ações estratégicas, normas, parâmetros e regras referentes aos imóveis
reconhecidos como patrimônio cultural nos conteúdos do Plano Diretor.
Tais determinações não ferem o direito de propriedade dos imóveis urbanos.
Complementam esse direito, estabelecendo deveres aos proprietários e ao
Poder Público a fim de promover um desenvolvimento urbano mais
equilibrado e menos predatório. Os princípios constitucionais das funções
sociais das cidades e das propriedades urbanas não devem ser vistas de modo
simplificado, como limitações ao direito à propriedade. Definem quais são
os deveres, estabelecidos no Plano Diretor, que os proprietários de imóveis
precisam cumprir, para exercer seus direitos de propriedade. Portanto, as
funções sociais e o direito de propriedade não são dimensões separadas.
Possuem relações de complementação e não de cerceamento ou limitação.
255
Diante da enorme responsabilidade de concretizar aqueles princípios
constitucionais nos territórios municipais, os Planos Diretores precisam ter
estreita vinculação com as realidades políticas, físico-espaciais, econômicas
e culturais locais. Essa vinculação dá, ao Plano Diretor, um caráter
extremamente dinâmico, que demanda processos permanentes de
elaboração, implementação, monitoramento, avaliação do que foi, ou não,
implementado e revisão com base nos resultados da avaliação realizada.
Revisão esta que resulta num novo Plano Diretor, com propostas
condizentes com o novo momento político, econômico e cultural da cidade.
Portanto, essas definições referentes ao cumprimento das funções sociais
das cidades e das propriedades urbanas não são estáticas, porque as
dinâmicas políticas, econômicas e culturais, das cidades, não são estáticas.
Essas definições precisam ser objeto de permanente repactuação social.
Não basta ter um Plano Diretor. É preciso utilizá-lo como um
instrumento de governo e gestão pública para orientar o desenvolvimento
urbano local. A gestão pública é um processo permanente que se vale de
aparatos e procedimentos técnicos, mas sempre com dimensões políticas
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Vo l . 1

que devem ser detidamente analisadas. É um processo de negociação com


diferentes agentes políticos e grupos de interesses que, muitas vezes, envolve
impasses e conflitos, que precisam ser mediados devidamente, segundo os
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

interesses públicos e coletivos. O


Plano Diretor deve se articular com
os procedimentos técnicos do dia a
dia de planejamento e controle
urbano. Com isso terá condições
para ser implementado, testado,
avaliado e revisto periodicamente.
Esses são os ciclos básicos do
planejamento e gestão urbana e
territorial, que caracteriza, também,
qualquer política pública, inclusive
aquelas concernentes ao patrimônio
cultural.
Para que os Planos Diretores sejam constantemente aperfeiçoados, é
preciso que os seus conteúdos sejam submetidos aos ciclos básicos de
elaboração, implementação, monitoramento, avaliação e revisão. Tais
conteúdos consistem nas definições de três grupos de propostas que se
256 organizam em: (i) investimentos prioritários para a melhoria das condições
de vida e de funcionamento nos espaços urbanos; (ii) estratégias de regulação
e ordenamento territorial que orientam formas mais equilibradas de uso,
ocupação e parcelamento do solo; (iii) componentes institucionais,
participativos e de informações, necessários para a organização de um sistema
municipal de planejamento e gestão democrática dos territórios locais.
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O PLANEJAMENTO DE INVESTIMENTOS PRIORITÁRIOS PARA
O ESPAÇO URBANO
Os investimentos prioritários, a serem realizados nos espaços urbanos e
rurais durante o período de vigência do Plano Diretor, são importantes para
que a cidade cumpra sua função social e, conforme visto anteriormente,
atenda as principais demandas sociais por melhorias da qualidade de vida
e efetive direitos sociais. As definições desses investimentos prioritários são
importantes para criar boas condições de incorporação dos patrimônios
culturais nas dinâmicas urbanas locais. Em muitos casos, esses patrimônios
culturais se encontram em situações delicadas do ponto de vista urbanístico
e precisam receber investimentos de diversas ordens para se adequarem aos
territórios e espaços urbanos próximos e distantes. Às vezes, os próprios
patrimônios culturais necessitam de investimentos e ações para reformas e
adaptações às necessidades coletivas.
No Plano Diretor, é importante ter bem claras as indicações dos
investimentos prioritários para que se possa ter um apontamento objetivo
e compreensível que, segundo o Estatuto da Cidade, deve ser obri-
gatoriamente considerado na elaboração dos instrumentos de planejamento
das finanças municipais, como o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Segundo o 257
Estatuto da Cidade, o Plano Diretor tem validade de, pelo menos, dez anos.
O PPA tem validade de quatro anos, correspondente a um mandato de
governante municipal, podendo sofrer algumas alterações nesse período, e
a LDO e a LOA têm validade de um ano. Portanto, nada mais coerente
que o Plano Diretor oriente as definições sobre os investimentos públicos
que devem ser previstos nos demais instrumentos de planejamento
municipal, em especial os investimentos que precisam ser realizados na
melhoria e na reestruturação dos espaços urbanos e na proteção e utilização
adequada dos patrimônios culturais.
Nesse ponto, deparamo-nos com um problema crucial, relacionado com
as baixas capacidades de investimento dos municípios brasileiros, de uma
maneira geral, e no campo do desenvolvimento urbano e territorial, em
particular. O orçamento desses municípios encontra-se enrijecido pelos
gastos com custeio, por limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal
e pelas obrigatoriedades constitucionais de destinação de recursos para a
saúde e educação. Desse modo, a grande maioria desses municípios encontra-
se dependente das transferências intergovernamentais, estaduais ou federal,
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Vo l . 1

para obter o mínimo de recursos, que pode ser usado na realização de algum
investimento. Não cabe aqui alongar as análises sobre esse ponto. Entretanto,
vale assinalar que a construção de futuras e necessárias articulações, entre o
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Sistema Nacional de Patrimônio Cultural e de Desenvolvimento Urbano,


deverá enfrentar essas questões relativas ao financiamento público do
desenvolvimento urbano em contexto federativo. Isso deverá envolver
reflexões críticas sobre os critérios de repasses intergovernamentais de
recursos não onerosos e também sobre a política tributária vigente.

AS ESTRATÉGIAS DE REGULAÇÃO E ORDENAMENTO


TERRITORIAL
No Plano Diretor, as estratégias de ordenamento e regulação territorial
nada mais são do que a destinação socioeconômica, sociocultural e
socioambiental dos solos urbanos e rurais. Trata-se de definições, parâmetros
e normas de uso, ocupação e parcelamento do solo e regras de aplicação
dos instrumentos de política urbana, previstos no Estatuto da Cidade, entre
outros tipos de instrumentos, que determinam diferentes canais de acesso
e distribuição da terra urbana e rural. São definições, parâmetros e normas,
que determinam direitos e deveres para os proprietários de imóveis e para
258 o Poder Público, mas, principalmente, que incidem nos valores econômicos
dessas terras, as quais se constituem como riqueza socioeconômica e, nos
casos dos patrimônios culturais, também como riquezas simbólicas. Assim
como a realização de investimentos públicos nos espaços urbanos geram
valorizações ou desvalorizações imobiliárias, as estratégias de ordenamento
e regulação territorial incidem em revalorizações imobiliárias, também em
sentido positivo ou negativo.
Do ponto de vista do patrimônio cultural, as estratégias de ordenamento
e regulação urbana e territorial podem lançar mão de algumas possibilidades
como:
• o estabelecimento de zonas especiais de interesse cultural, que criam
regimes específicos para a elaboração de planos de ações e
investimentos e permitem melhorar as condições dos patrimônios
culturais e formas flexíveis de regulação do uso e ocupação dos
imóveis existentes;
• a utilização da transferência de potenciais construtivos de imóveis
reconhecidos como patrimônios culturais, a fim de se obter recursos
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do mercado imobiliário para a reforma e adaptação das edificações,
de modo a protegê-las e reabilitá-las para usos adequados;
• a utilização de consórcios imobiliários entre proprietários de imóveis
reconhecidos como patrimônios culturais e o poder público, a fim
de se criar condições para a reabilitação e usos adequados das
edificações;
• utilização de instrumentos de incentivos tributários, em benefícios
de proprietários de imóveis com valores culturais reconhecidos;
• utilização da dação em pagamento de imóveis com valores culturais,
cujos proprietários possuem dívidas com a Prefeitura;
• utilização da locação social, subsidiada, de imóveis com valores
culturais, que se encontram sob domínio da Prefeitura para fins
diversos, inclusive moradia de interesse social.
No Brasil, ainda não temos larga experiência na articulação entre o
patrimônio cultural e as estratégias de ordenamento e regulação urbana para
a cidade como um todo. Tampouco temos acúmulos de experiências na
utilização dessas e de outras possibilidades de aplicação de instrumentos
urbanísticos na gestão de patrimônios culturais. Contudo, é importante
testarmos essas possibilidades para verificarmos se são ou não adequadas e 259
quais são as margens para aperfeiçoamentos.

O SISTEMA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO E GESTÃO


DEMOCRÁTICA DOS TERRITÓRIOS LOCAIS
É importante que o Plano Diretor se preocupe em criar as condições
técnicas e institucionais na administração municipal, para que, tanto os
investimentos prioritários sejam realizados, quanto as estratégias de
ordenamento e regulação territorial sejam efetivadas. Para isso, é importante
concretizar diferentes componentes do sistema municipal de planejamento
e gestão democrática dos territórios locais. Trata-se dos seguintes
componentes:
• componentes institucionais, que devem ser organizados na estrutura
administrativa municipal, como uma secretaria ou diretoria de
planejamento e gestão territorial, com equipes técnicas, equi-
pamentos, infraestruturas, sistemas de informações, cadastros e bases
cartográficas, inclusive dos patrimônios culturais inventariados, ou
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não, e tombados, ou não, que propiciem boa atuação da Prefeitura na


implementação das propostas contidas no Plano Diretor;
|

• componentes que instituam canais de participação social e popular,


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

como conselhos gestores, conferências das cidades, assembleias


territoriais, audiências públicas, plebiscitos, referendos, entre outras
possibilidades com condições para o compartilhamento de poder,
responsabilidades e decisões, entre setores organizados da sociedade
e representantes do Poder Público;
• componentes que instituam fontes perenes de financiamentos
públicos no âmbito municipal, como os fundos municipais para o
desenvolvimento urbano, que separam parte dos recursos do
orçamento municipal, inclusive aqueles obtidos com a aplicação dos
instrumentos de política urbana, como a outorga onerosa do direito
de construir e de alteração de uso, para a realização dos investimentos
prioritários definidos no Plano Diretor.
Esses componentes do sistema municipal de planejamento e gestão
democrática dos territórios locais precisam buscar, cada vez mais,
articulações horizontais com diferentes setores das políticas públicas, em
especial aqueles com alta incidência territorial, como a habitação, o meio
260 ambiente, o patrimônio cultural, entre outros, e articulações verticais com
diferentes níveis da federação. Somente assim teremos ligações mais sólidas
entre os Sistemas Nacionais de Patrimônio Cultural e de Desenvolvimento
Urbano. As sustentações dessas ligações serão realizadas, como nos arcos de
pedra das pontes, pelos vínculos entre cada “pedra” no todo do “arco”. Esse
“arco” serão nossos sistemas garantidores de direitos sociais e à cidade.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Estatuto da Cidade – guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília: Câmara dos
Deputados, 2005.
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Plano Diretor Participativo – guia para elaboração pelos municípios e cidadãos.
Brasília, 2004.
NAKANO, Kazuo. O planejamento e a gestão territorial no Brasil – entre o tecnocratismo e o direito à cidade.
In: KOGA, Dirce; GANEV, Eliane e FAVERO, Eunice (orgs.). Cidades e questões sociais. São Paulo: Andross,
2008.
______. São Gabriel da Cachoeira – planejamento e gestão de territorialidades imbricadas. In: CASTRO, Edna
(org.). Cidades na floresta. São Paulo: Annablume, 2008.
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei – legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo:
Fapesp-Studio Nobel, 1997.
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I N S T RU M E N TO S URBANÍSTICOS
PA R A A P R E S E RVA Ç Ã O D O
PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L :
O EXEMPLO DE PA R A N A P I A C A B A

Vanessa Gayego Bello Figueiredo*

RESUMO
O presente trabalho discute a questão dos instrumentos urbanísticos * Doutoranda da
para a preservação do patrimônio cultural, a partir do exemplo FAU/USP e
pesquisadora da
paradigmático da gestão sustentável de Paranapiacaba, onde foi Fupam-Fauusp
desenvolvida e implementada a Lei da Zeipp – Zona Especial de Interesse
do Patrimônio de Paranapiacaba. A Zeipp, aprovada em 2007, é uma lei
específica estabelecida pelo Plano Diretor 2004 de Santo André, que articula
diretrizes de preservação do patrimônio com desenvolvimento urbano,
ambiental, econômico e social. O processo de elaboração dessa lei ocorreu
de forma participativa e interdisciplinar, envolvendo a Prefeitura, os três 261
órgãos de preservação do patrimônio cultural (Iphan, Condephaat e
Comdephaapasa), os conselhos municipais de política urbana e meio
ambiente, universidades, entidades de classe e a comunidade local.

PALAVRAS-CHAVE
Instrumentos urbanísticos, Gestão do patrimônio, Paisagem cultural.

Implantada no topo da Serra do Mar, parte mais alta da cordilheira


marítima, numa altitude de 796 metros, a pequena Vila Ferroviária de
Paranapiacaba, a 64 quilômetros da capital paulista, é um exemplar notável
do patrimônio cultural brasileiro.
Situada na cidade de Santo André (SP), a Vila faz parte do Distrito de
Paranapiacaba, que tem uma área de 83,22 km2, representando 48% da
área do município. Essa porção do território andreense está totalmente
inserida em área de proteção aos mananciais e, portanto, preserva
significativas reservas naturais. Em 1994, a Unesco reconheceu a
ForumPatrimonioCap6:Layout 3 5/30/12 4:18 PM Page 262

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importância da biodiversidade e dos ecossistemas de Mata Atlântica da


região por meio da criação da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de
São Paulo.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Paranapiacaba, que na linguagem indígena significa “local de onde se vê


o mar”, conserva um significativo acervo tecnológico ligado à ferrovia e
testemunho de um modelo arquitetônico e urbanístico bastante avançado
para a época de sua implantação. Essa vila ferroviária nasceu e se
desenvolveu a partir de 1860, com a implantação da Estrada de Ferro
Santos-Jundiaí, a primeira ferrovia paulista, construída pela companhia
inglesa São Paulo Railway – SPR, para escoar a produção cafeeira do Estado
de São Paulo ao mercado internacional. Em 1946, a ferrovia e todo seu
patrimônio foram incorporados ao Governo Federal e, em 1957, a Rede
Ferroviária Federal S.A. passou a administrá-los. A partir dos anos 80, a
Vila de Paranapiacaba passou por um intenso período de abandono e
degradação.
Em 1987, depois de numerosas solicitações populares, teve seu
patrimônio cultural e natural reconhecido e tombado pelo Conselho de
Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico –
Condephaat; em 2002, pelo Iphan; e em 2003, pelo órgão municipal, o
262
Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,
Arquitetônico-Urbanístico e Paisagístico de Santo André –
Comdephaapasa. Entre 2003 e 2007, foi considerada pela World
Monuments Fund um dos cem patrimônios mais importantes do mundo
em risco. Em 2008, Paranapiacaba tornou-se o primeiro patrimônio
cultural paulista e também o primeiro patrimônio industrial ferroviário
brasileiro indicado pelo Iphan ao título da Unesco de Patrimônio Mundial.
Para administrar as especificidades da região de Paranapiacaba, a
Prefeitura de Santo André criou, em 2001, a Subprefeitura de Paranapiacaba
e Parque Andreense, viabilizando a implantação de um modelo de gestão
municipal descentralizada, articulando as políticas de desenvolvimento
urbano, econômico e social, com preservação do patrimônio cultural,
conservação ambiental, turismo sustentável e participação cidadã.
A partir de 2002, com a compra da Vila pela Prefeitura, foi possível dar
início ao paradigmático programa de Gestão do Desenvolvimento Local
Sustentável de Paranapiacaba, intensificando o processo de recuperação
desse precioso patrimônio brasileiro. O amplo e complexo programa de
gestão desenvolvido vem sendo considerado avançado e inovador por
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diversas instituições, dentre elas o Iphan, sobretudo pela qualidade,
quantidade e agilidade dos resultados alcançados através da concepção e
implementação integrada e interdisciplinar de políticas públicas.
No entanto, não caberá, no âmbito deste artigo, apresentar todas essas
políticas. Será focado o tema do debate: desenvolvimento urbano e
preservação do patrimônio cultural, por meio da apresentação e
problematização da experiência desenvolvida durante a elaboração e
implantação da legislação urbanística denominada Zeipp – Zona Especial
de Interesse do Patrimônio de Paranapiacaba.
A Zeipp, Lei 9.018/07 aprovada em 2007, é uma lei específica
estabelecida pelo Plano Diretor 2004 de Santo André. Além de reconhecer
as especificidades de Paranapiacaba e os desafios da gestão de um conjunto
urbano inserido em área ambientalmente sensível, com cerca de 500 imóveis
e uma população de 1.500 habitantes, a lei estabelece e articula diretrizes de
preservação do patrimônio cultural com desenvolvimento urbano,
ambiental, econômico e social.
De início, alguns problemas estruturais tiveram de ser enfrentados. O
maior deles foi o de desenvolver uma lei municipal, atendendo às
prerrogativas do Estatuto da Cidade, da legislação ambiental (nacional,
estadual e municipal) e, ao mesmo tempo, dos tombamentos nas três esferas 263
de governo.
Esse complexo desafio exigiu a resolução de três grandes questões: a
construção de um novo arranjo institucional vertical, que articulasse os três
níveis de governo; a construção da interdisciplinaridade, com a finalidade
de compor uma única lei que disciplinasse e integrasse as políticas de
preservação do patrimônio, planejamento urbano, meio ambiente e
desenvolvimento; e, por fim, a constituição de um novo arcabouço jurídico
que atendesse a todas essas questões. Soma-se, ainda, a esses desafios a busca
pela participação qualificada da comunidade envolvida com as questões de
Paranapiacaba.
Assim, o primeiro passo para o início do processo de elaboração dessa lei
foi promover a participação dos diversos atores, através da Comissão da
Zeipp, envolvendo a Prefeitura, os três órgãos de preservação do patrimônio
cultural (Iphan, Condephaat e Comdephaapasa), os conselhos municipais
de política urbana e meio ambiente, universidades, entidades de classe e a
comunidade local.
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Vo l . 1

Embora existissem diversos canais de participação local em


Paranapiacaba (Conselho de Representantes, Câmara Técnica, Fórum de
Empreendedores, Fórum de Monitores e Comissão de Festejos), devido à
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

importância dessa lei, a Comissão da Zeipp destinou 17 das 34 cadeiras aos


representantes da comunidade, residentes na Vila. A lei foi elaborada em
oito meses, de novembro de 2005 a julho de 2006, quando ocorreram doze
reuniões da Comissão da Zeipp, totalizando 54 horas de trabalho, além de
discussões específicas no âmbito das equipes técnicas da Prefeitura e dos
cinco conselhos participantes.
O processo foi dividido em cinco etapas e a metodologia de trabalho
utilizada foi a do planejamento estratégico situacional. A primeira etapa foi
a de “escuta”, cujo objetivo foi informar, sensibilizar e escutar os principais
problemas, anseios e sugestões, quanto ao desenvolvimento da Vila para os
próximos dez anos. Na segunda etapa, buscou-se a constituição dos
“elementos preliminares” da lei, com definição da sua estrutura, princípios,
objetivos e diretrizes gerais. Na terceira etapa, colocou-se a minuta do
projeto de lei em debate na Comissão da Zeipp, e na quarta, ampliou-se o
debate para discussões específicas com os cinco conselhos envolvidos, dentre
eles, os três órgãos de preservação do patrimônio. A quinta e última etapa
264
foi o debate no legislativo municipal, que durou mais de um ano até a
promulgação da lei, em dezembro de 2007.
A discussão da lei, no âmbito dos três órgãos de preservação, foi, de fato,
uma questão complicada, visto que as atuações independentes de cada um
e suas competências concorrentes geram diversos conflitos, com sérias
consequências sobre a preservação e gestão dos bens tombados.
No caso de Paranapiacaba, os conflitos começavam com as diferenças
de perímetro nos três tombamentos. Outra questão de extrema
importância, mas não exclusiva de Paranapiacaba, é que os tombamentos no
Brasil, recorrentemente, não estabelecem diretrizes para a preservação e
manejo dos bens, restringindo-se, apenas, a uma descrição e justificativa de
sua relevância cultural. A ausência de diretrizes preestabelecidas e pactuadas
entre os órgãos leva, frequentemente, a orientações distintas, antitéticas e até
personalizadas quando da aprovação de projetos de intervenção,
configurando uma atuação não institucional.
Ademais, ao convidar os órgãos de preservação, para a construção
conjunta da Zeipp, surgiu, também, o problema das questões conceituais.
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A complexidade, a confusão e os conflitos em torno dos conceitos
praticados na área do patrimônio eram tamanhos, que foi necessária a
elaboração de uma carta patrimonial para Paranapiacaba, referenciada,
obviamente, nas premissas das cartas internacionais, mas atendendo às
especificidades relativas à preservação de um conjunto urbano, patrimônio
industrial ferroviário, inserido em área de conservação ambiental. Dessa
maneira, a lei foi organizada em sete títulos, começando pela definição dos
princípios, objetivos e conceitos.
O plano estabelecido pela Zeipp tem como princípios o desen-
volvimento local sustentável e a gestão democrática e participativa, também
princípios do Plano Diretor de Santo André. O objetivo geral da lei é
preservar e valorizar a paisagem cultural de Paranapiacaba, conciliando o
desenvolvimento da atividade turística, com a conservação e
sustentabilidade dos patrimônios edificado, natural e imaterial, da vila
ferroviária.
O conceito de “paisagem cultural”, sistematizado por órgãos internacionais,
como a Unesco e o Conselho de Ministros da Europa, na década de 1990,
amplia significativamente o conceito de patrimônio cultural, na medida em
que reúne e articula conceitos e objetos de diversos campos disciplinares.
Sistematizado na Recomendação R(95) do Conselho da Europa, em 265
1995, a paisagem cultural congrega os vários aspectos do patrimônio
(cultural, natural, ambiental urbano, material e imaterial), frequentemente
geridos separadamente, considerando a interdisciplinaridade. Costura
conceitos de memória, história e cultura aos conceitos da geografia,
sociologia, antropologia, arqueologia, arquitetura, urbanismo e ecologia,
pressupondo a ação integrada do planejamento e gestão territoriais com as
políticas ambientais e sociais em suas dimensões culturais e econômicas.
Busca conjugar a política de preservação com o processo dinâmico de
desenvolvimento das cidades, o que implica, necessariamente, não impedir
as mudanças, mas direcioná-las e, portanto, trabalha na perspectiva do
desenvolvimento sustentável.
Ao compreender o conceito de paisagem cultural, a Comissão da Zeipp
percebeu que seria esse o conceito ideal para trabalhar Paranapiacaba e seu
modelo de gestão, visto que já se promovia a articulação entre diversas
políticas setoriais.
O artigo quinto desse título define os conceitos de manutenção,
adaptação, atualização tecnológica, reparação, restauração, requalificação
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Vo l . 1

urbana, dentre outros utilizados na lei, inclusive para estabelecer


procedimentos diferenciados de aprovação, especificando, desburocratizando
e agilizando os processos, a fim de garantir a efetiva preservação e gestão dos
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

bens.
O título segundo organizou as diretrizes para o desenvolvimento local
sustentável, orientando, sobretudo, a promoção da atividade turística na
Vila. As principais diretrizes são:
• articular a política de desenvolvimento socioeconômico e ambiental
à política de preservação do patrimônio cultural;
• promover o desenvolvimento econômico compatível com o
ambiente e com o suporte de infraestrutura urbana da Vila de
Paranapiacaba;
• promover e garantir a ordenação e o controle do uso do solo, de
forma a evitar a proximidade de usos incompatíveis ou
inconvenientes;
• disciplinar a ocupação urbana na Vila;
• incrementar e qualificar o uso de hotelaria;

266
• garantir o uso habitacional;
• promover a formação e qualificação contínua da comunidade local,
para consolidar e fortalecer a gestão do desenvolvimento local
sustentável;
• buscar alternativas de habitabilidade e uso compatível para os
imóveis públicos;
• melhorar as condições de acessibilidade e mobilidade urbana,
respeitando as condições geomorfológicas do sítio histórico;
• propiciar a inclusão social e a geração de trabalho e renda, por meio
das atividades turísticas e das demais atividades econômicas
compatíveis com a paisagem cultural;
• realizar eventos culturais compatíveis com as diretrizes do
desenvolvimento local sustentável e de preservação da paisagem
cultural; e
• garantir a segurança dos imóveis públicos, através da implantação
de medidas preventivas de combate a incêndio e de segurança.
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Com base nos objetivos e diretrizes enunciados, o Poder Público
Municipal elaborou o Plano de Desenvolvimento Turístico Sustentável, o
Plano de Melhoria do Saneamento Ambiental, o Programa de Prevenção e
Combate ao Incêndio e o Projeto de Requalificação dos Sistemas de Energia
Elétrica e Iluminação Pública. Paranapiacaba tem sistemas de abastecimento
de água, energia e iluminação, implantados pela São Paulo Railway no
início do século XIX, com curioso posteamento em trilhos metálicos,
advindos da ferrovia, que funcionam precariamente, necessitando de
atualização tecnológica e adequação às normas legais vigentes. Foram três
anos de discussão para aprovação de um projeto que atendesse às exigências
dos órgãos de preservação, do licenciamento ambiental e da companhia
responsável pela provisão de energia elétrica.
No título terceiro, foram criadas as diretrizes para a preservação da
paisagem cultural de Paranapiacaba, suprindo a lacuna existente nos
tombamentos e, ao mesmo tempo, pactuando normas para a preservação e
gestão do sítio reconhecido nas esferas nacional, estadual e municipal. Nas
diretrizes gerais, a Zeipp propõe a divisão de Paranapiacaba em quatro
setores de planejamento urbano (Parte Alta, Parte Baixa, Ferrovia e
Rabique), identificando as características peculiares de situação fundiária e
tipo de uso e ocupação urbana de cada área da Vila.
267
Foram estabelecidas diretrizes específicas, como a criação dos Exemplares
de Tipologias Residenciais, superando a adoção dos níveis de tombamento
ou níveis de intervenção, compreendidos como uma gradação hierárquica
incoerente à concepção de paisagem cultural. Assim, edificações
representativas de cada tipologia arquitetônica foram selecionadas, com o
objetivo de destacar o valor documental e cognitivo do projeto ou
construção original e, por isso, destiná-las à visitação pública.
Para os demais imóveis, intervenções de ampliação são permitidas,
entretanto, devem respeitar as relações urbanas entre cheios e vazios (áreas
construídas e espaços livres), configurados pelo padrão urbanístico da Vila,
preservando a relação entre os recuos, o corpo principal da edificação, o
quintal, o sanitário ao fundo do lote e a viela sanitária ao meio da quadra. Isto
é, para os imóveis que têm, originalmente, os banheiros fora da casa, será
permitida a ampliação, desde que esta não junte o corpo principal do imóvel
ao anexo do sanitário ao fundo e não ocupe os recuos frontais e laterais.
A lei disciplina a comunicação visual ao ar livre e determina que os
anúncios permanentes devam ser posicionados na frente dos imóveis e ter,
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Vo l . 1

no máximo, 0,5m² (meio metro quadrado), segundo modelos pré-


aprovados pela Prefeitura e pelos órgãos de preservação. Essa diretriz implica
a confecção de publicidade padronizada, gerando uma unidade visual
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

compatível com a paisagem cultural da Vila.


Permite a colocação de cercamentos nos lotes (com padrão predefinido), de
antenas parabólicas somente no recuo de fundo e de vegetação que possibilite
a visualização da edificação e não prejudique a estabilidade estrutural.
Uma das questões mais discutidas na comunidade foi a proibição da
cobertura para estacionamento de veículos automotores dentro dos lotes.
Outra questão polêmica foi a definição de cores para as edificações. A lei
determina que as casas devem permanecer pintadas para manter a proteção
contra as intempéries. As edificações em madeira devem ser pintadas na cor
marrom já existente e uma eventual alteração deverá ser aprovada mediante
projeto de prospecção e justificativa. As casas de alvenaria deverão manter
as cores claras em três opções: branco, creme ou amarelo. Já as intervenções
internas deverão orientar-se pela distribuição espacial e circulação existentes,
pressupondo o uso compatível da edificação.
Nesse título foram criados, ainda, o Manual de Áreas Verdes e Paisagismo
e o Manual de Diretrizes e Procedimentos para Intervenção no Conjunto
268 Edificado de Paranapiacaba, que, por seu detalhamento, estavam sendo
regulamentados em 2008. O Plano da Zeipp propõe, também, a criação
do Banco de Materiais, cujo objetivo é constituir um estoque centralizado
para reposição de materiais e elementos construtivos. Com base nos
desenhos específicos para cada tipologia arquitetônica, sistematizados nos
manuais e investigados em quatro anos de pesquisa financiada pela Fapesp
e a Fundação Santo André, a Cooperativa de Marcenaria, composta por
moradores capacitados, fabrica peças para reposição, como portas, janelas,
mãos-francesas, cercamentos e guarda-corpos.
O quarto título estabeleceu os parâmetros urbanísticos para a ordenação
do uso e ocupação do solo do sistema viário e redefinição dos níveis de
incomodidade por emissão sonora. A Zeipp reorganizou o uso do solo com
o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável, compatibilizando as
atividades turísticas com a preservação do patrimônio e a manutenção da
qualidade de vida da população residente. Por isso, foi criado um
zoneamento com o objetivo de minimizar os conflitos de vizinhança, ou
seja, evitar que atividades incompatíveis ou inconvenientes estejam próximas.
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No Setor da Parte Baixa, onde estão 334 imóveis de propriedade pública,
foram criadas zonas onde se conserva o uso residencial e ambiental e zonas
onde se estimula a atividade comercial e turística, através das seguintes Áreas
de Uso do Solo: Predominantemente Residencial; Predominantemente
Comercial; de Transição do Parque; de Serviços Diferenciados e de
Atividades Noturnas.
O zoneamento proposto trabalha com predominância de usos,
controlando e estimulando essa predominância por meio da regulação de
estoque das edificações disponíveis em cada área. Enquanto na Área
Predominantemente Residencial as categorias de uso não residencial e misto
são permitidas até atingir 20% dos lotes disponíveis, na Área
Predominantemente Comercial o uso não residencial é permitido até o
estoque máximo de 60%. Dessa maneira, o zoneamento fixa uma reserva
para uso residencial correspondente a 50% dos imóveis da Parte Baixa,
garantindo a presença das habitações, uso importante para manter uma
dinâmica urbana saudável e imprescindível para a preservação da vila
ferroviária.
A Área de Transição do Parque Natural Nascentes de Paranapiacaba
corresponde a uma faixa de 50 metros, do fim dos lotes até o começo da
Unidade de Conservação, onde se proíbe o uso habitacional e apenas os 269
usos ambientalmente compatíveis são permitidos.
A Área de Serviços Diferenciados dispõe de apenas nove edificações,
localizadas em uma pequena colina, onde está o Hospital Velho. Nessa área,
estimulam-se usos de apoio ao turismo, mas que requerem baixa
incomodidade, como hotelaria, arte, artesanato e prestação de serviços
especiais, relacionados ao condicionamento ou relaxamento físico, mental
ou espiritual, como spas, clínica médica, psicológica, psiquiátrica ou
tratamentos de saúde alternativos.
Na Área de Atividades Noturnas os níveis de incomodidade por emissão
sonora são mais permissivos, visando manter e estimular os usos de
comércio e serviços relacionados ao turismo, lazer e alimentação. O único
uso não permitido nessa área é o de hotelaria, pois esse uso exige baixa
incomodidade.
O Setor da Parte Alta, com casario implantado seguindo o modelo
colonial português, configurou-se com um tipo de ocupação urbana mais
homogênea e, por isso, não foi necessária sua divisão em áreas. Nele, são
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Vo l . 1

permitidos os usos residencial, não residencial e misto, mantendo a


característica histórica de ocupação, com sobrados de uso comercial, no
térreo, e habitacional, acima.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

O Setor da Ferrovia corresponde ao pátio ferroviário sob concessão da


MRS Logística, onde são permitidos apenas usos relacionados ao transporte
ferroviário e ao comércio e serviços de apoio ao turismo.
O Setor do Rabique é uma área imprópria para urbanização, devido à
alta declividade e aos problemas de acessibilidade, visto que se localiza entre
a via férrea e a rodovia. A pequena população que ocupou, irregularmente,
a área, deverá ser removida e, por isso, o zoneamento não permite o uso
habitacional, apenas os usos relacionados à recuperação ambiental.
Nesse título são definidas as taxas de permeabilidade dos lotes e o
gabarito máximo de oito metros, ou dois pavimentos, com possibilidade
de outorga onerosa até dez metros ou três pavimentos, somente no Setor da
Ferrovia, mediante prévia aprovação dos órgãos de preservação.
A Zeipp promove, ainda, a regularização urbanística da Parte Baixa da
Vila, área de propriedade da Prefeitura, definindo os limites entre os lotes.
A área planejada da Vila Nova apresenta terrenos já definidos, mas a Vila
Velha e a área de transição entre as casas e o Parque não tinham delimitação
270
definida, gerando diversos conflitos de utilização entre os moradores. A lei
indica, também, a necessidade da regularização fundiária do Setor da Parte
Alta, área com propriedades privadas e terras devolutas.
Para organizar o fluxo de veículos e pedestres, o Plano da Zeipp
estabelece uma hierarquização do sistema viário, com definição de três tipos
de vias: Vias de Acesso Liberado, onde a circulação de veículos e pedestres
é liberada; Vias de Acesso Restrito, onde é permitida apenas a circulação
de veículos de moradores e de prestação de serviços públicos; e Vias de
Acesso de Pedestres, onde não é permitida a circulação de veículos
automotores. As vias exclusivas para pedestres concentram-se na Vila Velha,
que foi o acampamento inicial dos ferroviários, constituindo o primeiro
núcleo de povoamento, caracterizado por uma ocupação urbana irregular,
com vias estreitas sem pavimentação. Neste caso, a ordenação do sistema
viário foi imprescindível, para preservar os espaços urbanos de circulação
historicamente definidos. A lei também promoveu a regularização dos
logradouros, com correção de grafia de ruas, praças, largos e vielas e criação
de vias, ainda sem denominação.
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O título quinto trata dos instrumentos e incentivos para a preservação
da paisagem cultural de Paranapiacaba. Devido às especificidades relativas
ao campo da preservação do patrimônio e ao caso de Paranapiacaba, alguns
instrumentos previstos no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor de Santo
André foram adaptados e novos instrumentos foram criados, como: o
Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV; a Outorga Onerosa do Direito de
Construir; a Assistência Técnica Gratuita para fins de preservação e
conservação; Incentivos e Benefícios Fiscais; Incentivos para Benfeitorias
nos Bens Imóveis; a Cessão de Imóveis Públicos; a Dação de Bens Imóveis,
em pagamento de dívidas, e a Compensação Patrimonial.
O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) é o instrumento utilizado
para análise e aprovação de atividades ou empreendimentos de impacto,
públicos ou privados, que possam vir a causar alterações significativas na
paisagem cultural ou nas relações sociais, sobrecarga na capacidade de
infraestrutura urbana e deterioração da qualidade de vida da população.
Previamente, a Zeipp estabelece como sendo de impacto alguns
empreendimentos, como: estações de tratamento; estações de
radiocomunicações; cemitérios; complexos esportivos; clubes recreativos;
estacionamentos acima de 20 (vinte) vagas e novas construções com
gabarito acima de 8 metros ou área construída acima de 200 metros
quadrados. Ademais, quando se julgar necessário, o EIV poderá ser exigido 271
para outros empreendimentos não previsto na lei.
A outorga onerosa do Direito de Construir, mediante contrapartida
financeira, poderá ser aprovada apenas no Setor da Ferrovia, conforme os
índices preestabelecidos. No entanto, poderá ser negada pelo Conselho
Municipal de Política Urbana, caso se verifique a possibilidade de impacto
não suportável pela infraestrutura ou o risco de comprometimento da
paisagem cultural. É importante ressaltar que o direito da outorga não
interfere no processo de aprovação no âmbito dos órgãos responsáveis pela
preservação e pelo licenciamento ambiental.
Para incentivar a preservação da paisagem cultural, a lei garante o direito
de assistência técnica gratuita àqueles que comprovarem a impossibilidade
de arcar com custos de elaboração de projetos ou orientações técnicas para
fins de preservação do patrimônio. Cria, ainda, benefícios fiscais para
aqueles que realizarem ações de conservação, desde que orientadas e
aprovadas pelo Poder Público Municipal e pelos órgãos de defesa do
patrimônio. Para os permissionários da Parte Baixa, onde estão os imóveis
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Vo l . 1

púbicos, os materiais investidos em manutenção e demais intervenções,


poderiam ser descontados da contraprestação, desde que as reformas estejam
em conformidade com os projetos aprovados. Para os moradores da Parte
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Alta, onde os imóveis são privados, há a possibilidade de descontos no


IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano.
Essas ações, já praticadas pela Subprefeitura desde 2002, tinham a
finalidade de fazer com que a comunidade se habituasse a conservar os
imóveis e, ao mesmo tempo, aprovar as reformas nas instâncias
competentes, gerando maior controle de fiscalização sobre as intervenções
executadas. A intenção de colocá-los em lei foi garantir a institucionalização
desses direitos, ou seja, que eles constituíssem uma política de Estado e não
se restringissem, apenas, a uma política de Governo.
A lei também consolida outra prática já adotada pela Prefeitura. Trata-
se da possibilidade de ceder, a título precário ou oneroso, através de
concorrência pública, o uso dos imóveis públicos para fins residenciais, não
residenciais ou mistos, atividades culturais diversas, exposições temporárias,
dentre outros usos. Para o uso residencial, utiliza-se a permissão de uso de
cinco anos, renováveis, por meio de chamamento público. Já para o uso
comercial, de serviços ou misto, que envolve a obtenção de lucros a partir
272
de atividades econômicas, a lei instituiu a concessão do direito real de uso
de vinte anos, renováveis por igual período, por meio de licitação pública.
Todos os casos de usos permanentes eram onerosos e no contrato estava
previsto o investimento mínimo necessário, para a conservação ou
recuperação das edificações.
Um novo e polêmico instrumento, ainda não praticado no campo da
preservação no Brasil, foi criado pela Zeipp: a compensação patrimonial. A
intenção é promover compensações econômicas, sociais e culturais de
empreendimentos ou projetos de intervenção, aprovados pela Prefeitura e
órgãos de preservação, tal como se pratica na área ambiental. Essa ideia
surgiu a partir da discussão sobre os impactos ambientais do projeto do
Transporte de Correia de Longa Distância – TCLD, proposto pela MRS
Logística, concessionária que administra o transporte de carga no trecho de
Paranapiacaba. Como o empreendimento estava em área ambientalmente
protegida, o processo de licenciamento exigia a compensação ambiental dos
danos e interferências causadas sobre o meio ambiente, visto,
prioritariamente, com foco sobre o ambiente natural. No entanto, para
avaliação e possíveis compensações dos impactos sobre o patrimônio
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


ferroviário da São Paulo Railway, não haviam instrumentos específicos e
adequados.
Todos os órgãos envolvidos, inclusive os de patrimônio, aprovaram o
estudo preliminar para a implantação do TCLD sobre a linha desativada do
segundo sistema funicular, compreendendo a necessidade econômica e as
externalidades urbanas positivas de promover a logística ferroviária do
transporte de cargas. Ademais, a melhor maneira de recuperar o funicular,
desativado e em adiantado processo de ruína, é promover sua atualização
tecnológica, procedimento inerente aos sistemas industriais e, portanto,
questão essencial para a preservação do patrimônio industrial. Partindo
dessas premissas e da aprovação pelos órgãos competentes, tal
empreendimento estaria sujeito à avaliação específica pelo Estudo de
Impacto de Vizinhança e a uma compensação que pudesse gerar a
recuperação de todo o patrimônio edificado no trecho do empreendimento,
inclusive daqueles não afetados diretamente, bem como em minimizar as
eventuais interferências causadas sobre a dinâmica urbana e a paisagem
cultural de Paranapiacaba. No entanto, o empreendimento foi abortado
por questões orçamentárias e os instrumentos não puderam ser aplicados.
Por outro lado, a compensação patrimonial ainda aguarda sua
regulamentação para poder ser testada. 273

Por fim, o título sexto dispõe sobre a gestão de Paranapiacaba,


estabelecendo critérios para o uso dos espaços livres, dos imóveis públicos
e da imagem da Vila, bem como para autorização de obras e atividades
econômicas. Cria também um rigoroso e preciso sistema de fiscalização,
infrações e penalidades, imprescindível para a preservação do patrimônio,
visto que os órgãos responsáveis não dispõem de instrumentos
regulamentados para penalizar infrações cometidas.
Na Zeipp, constitui infração, qualquer ação que descumpra a legislação,
tais como: depredação e descaracterização da paisagem cultural ou execução
de intervenções em desconformidade com as autorizações. As infrações são
classificadas em leves, graves e gravíssimas, de acordo com a intensidade e
reversibilidade do dano, a reincidência de infração, e o não cumprimento
de normas técnicas ou administrativas.
Ademais, para o controle de utilização, aprovações e fiscalização, a
Subprefeitura criou o Banco de Dados de Gestão do Patrimônio Cultural,
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um sistema totalmente informatizado, articulando informações do


inventário arquitetônico com o cadastro socioeconômico da população e
informações administrativo-financeiras, como: intervenções aprovadas e
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

executadas, infrações cometidas, pagamento das contraprestações, descontos


e benefícios concedidos ao permissionário, registrando toda a história de
uso dos imóveis tombados.
Nesse título é estabelecido o sistema de acompanhamento e gestão do
plano da Zeipp, exigidos pelo Estatuto da Cidade. Mesmo com todo o
aparato institucional de participação já em funcionamento, julgou-se
necessária, pela importância dessa lei, criar um organismo específico: o
Fórum de Paranapiacaba, que institucionaliza a Comissão da Zeipp,
responsável pela elaboração da lei, com participação da Prefeitura, conselhos
de política urbana e meio ambiente, órgãos de preservação, universidades,
entidades de classe e da comunidade local.
O título sétimo trata das disposições finais e transitórias da lei que é, em
sua maior parte, autoaplicável. Alguns artigos e instrumentos criados
necessitam de regulamentação por meio de decretos que institucionalizem
procedimentos de aplicação e detalhem informações técnicas, como é o caso
dos manuais.
274 Por disciplinar de maneira integrada uma grande quantidade e
diversidade de temas, geralmente normatizados em leis específicas e
setoriais, a Zona Especial de Interesse do Patrimônio de Paranapiacaba vem
sendo considerada, pelos órgãos de preservação do patrimônio e pelo
Ministério das Cidades, um instrumento inovador.
A Zeipp possibilitou a elaboração, pactuação e institucionalização de
diretrizes, para a preservação sustentável de Paranapiacaba entre os órgãos
responsáveis pelo tombamento nas três esferas de governo, que se
comprometeram a incorporar e validar juridicamente a normatização criada
por meio de portarias ou inclusão nos processos de tombamento. Todavia,
ainda não o fizeram, exceto o órgão municipal.
Os desafios desse arranjo institucional e interdisciplinar sugerem a
necessidade de construção de um sistema nacional de patrimônio que
supere os problemas e possibilite a ação integrada, complementar e
corresponsável entre as instituições, nos níveis federal, estadual e municipal.
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A EXPERIÊNCIA DE O U RO P R E T O

Gabriel Simões Gobbi*

RESUMO
Os desafios enfrentados pela administração municipal de Ouro Preto * Secretário
Municipal de
diante da missão de combinar uma política pública voltada para atender a Patrimônio e
demanda da população numa cidade que, ao mesmo tempo em que é Desenvolvimento
Urbano e presidente
patrimônio histórico, apresenta um crescimento desordenado. Era preciso, do Conselho
criar uma política capaz de preservar esse patrimônio e, ao mesmo tempo, Municipal de
Política Urbana de
desenvolvê-la urbanisticamente. A atualização do Plano Diretor e a criação Ouro Preto
de uma secretaria especial, unindo um Conselho do Patrimônio e Conselho
de Política Urbana revelaram o caminho que tem levado a cidade a conjugar
preservação e desenvolvimento. O ICMS cultural, por exemplo, foi um dos
incentivos oferecidos aos municípios para promoverem a preservação do
patrimônio da região.

PALAVRAS-CHAVE
275
Patrimônio cultural, Política urbana, Conciliação.

Só para mostrar que o trabalho deu resultado, o ICMS cultural de Minas


Gerais, a chamada Lei Robin Wood, distribui uma parcela de 2% para
aqueles municípios que, através do relatório de ações, demonstram
comprometimento com o patrimônio cultural e sua preservação. A partir da
atual administração, quando foi criada a Secretaria Municipal de
Patrimônio, houve uma significativa evolução, atingindo, nos dois últimos
anos, a maior pontuação já obtida por um município na história do ICMS
cultural do Estado, pelas ações executadas.
Surgiu por ocasião da organização do fórum, a ideia da colocação da
experiência de Ouro Preto, cidade que tem um grande desafio e vem de
gestões administrativas, no mínimo, bastante discutíveis. Quando
assumimos esta administração, Ouro Preto tinha vivido um verdadeiro caos,
principalmente, no que se refere à questão de ocupações desordenadas, de
regulação urbana e tudo o mais, ou seja, embora tida como uma cidade
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universitária, a questão dessas legislações urbanísticas nunca foi tratada com


a devida seriedade. Então, nós tivemos que partir, praticamente, do zero.
|

A evolução urbana de Ouro Preto é muito clara ao longo dos tempos


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

porque tudo nasceu no fim do século XVII, em cima de um caminho


tronco que, entre os anos de 1700 a 1730, foi sendo incorporado às novas
constituições que criaram essa evolução urbana. Hoje, estamos em um
processo de crescimento bastante extenso em uma área que, se tivesse que
se escolher para construir uma cidade, qualquer engenheiro, arquiteto ou
urbanista afirmaria que, esse, não era o local indicado para se edificar. Isso
quer dizer que temos um problema extremamente complexo que é a questão
topográfica.
A cidade em si, hoje, está inteiramente entre duas montanhas,
apresentando uma situação de alta complexidade no que se refere ao seu
sistema viário de locomoção. Então, os problemas urbanísticos nasceram
da falta de regulação urbana ao longo de todos esses anos, o que gerou o pior
problema de Ouro Preto que não é a ocupação dos morros, conforme as
inúmeras acusações e que não deixa de ser um problema, mas o maior
impasse é a sua ocupação desordenada. Esse processo configura-se um
quadro que o município precisa reverter.
276 Para se ter uma noção, cito o morro da Queimada que ainda na década
de 1980 não existia. Trata-se de uma área de grande valor arqueológico,
localizada acima da rua 15 de Agosto. O nosso problema, realmente, é de
uma complexidade muito grande porque todas as nossas encostas estão
sendo ocupadas e com algumas criatividades tipicamente mineiras. Há uma
invasão, por exemplo, em que a pessoa instalou um boneco no terreno para
demonstrar a sua posse, ou seja, usou um boneco para que soubessem que,
ali, estava habitado e, na verdade, esse barracão nunca foi habitado. Trata-
se, portanto, de uma demarcação de terreno, uma apropriação que é muito
comum em Ouro Preto.
Temos ainda os problemas ambientais, seríssimos, não só nas outras
cidades; Ouro Preto apresenta muitos desses problemas porque, estando
em um canal, é muito comum ter os cursos de seus rios ocupados. Trata-se
de uma dificuldade legal, como sou advogado sei das dificuldades legais que
enfrentamos nessas regularizações.
Conforme já foi demonstrado em uma foto de sua zona central, aqui no
Fórum, o crescimento desordenado dessa cidade é, de fato, muito difícil,
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para quem é de fora acreditar que se trata de Ouro Preto. Ninguém acredita
que está exatamente ao lado da Igreja Nossa Senhora da Conceição, dentro
do arruamento principal da cidade, que mostra o descaso com o tratamento
urbano, da paisagem urbana na sua essência e da falta de conscientização.
Sem contar os problemas decorrentes dessas ocupações que hoje impedem
que se possa fazer uma urbanização.
Quando chegamos à Prefeitura encontramos esses desafios normais,
praticamente comuns a todas as cidades. Mas, não se tinha nada aqui até
2005, de uma forma mais efetiva, a não ser o trabalho de um Plano Diretor
que foi aprovado em 1996, mas que não havia sido, realmente,
implementado. Com isso, quando o prefeito Ângelo Oswaldo assumiu a
gestão, a primeira coisa que fez foi dotar a Prefeitura de uma proposta que,
pela primeira vez em seu organograma, tivesse uma secretaria para cuidar,
especificamente, das questões urbanas da cidade e da sua normatização.
Então, essa foi a experiência de Ouro Preto, criando, inclusive, uma
situação de alto conflito. Como preservar uma cidade patrimônio da
humanidade, mas ao mesmo tempo atender à demanda política, à
demanda da população? Era: “Eu preciso construir” ou: “Eu não tenho
onde morar”, além daquelas ocupações que estavam acontecendo. Esse era,
portanto, o grande desafio: como conciliar, preservar e, ao mesmo tempo, 277
desenvolver urbanisticamente uma cidade que não tem para onde
caminhar? Sim, porque, se verificarmos, não temos áreas passíveis, até
porque algumas que, por ventura, poderiam ser, hoje, são APPs, são PACs
municipais e estaduais. Enfim, não tínhamos nenhuma perspectiva de
crescimento urbano.
Na verdade, a Secretaria veio com um papel extremamente pretensioso,
concentrando as seguintes atividades: Conselho do Patrimônio e Conselho
de Política Urbana, os quais já haviam sido implantados de 2005 para cá,
com coordenação do grupo de assessoramento técnico, novidade feita, na
época, com Jurema Machado, aqui em Ouro Preto. Trata-se de uma
iniciativa do prefeito Ângelo Oswaldo que criou um grupo de
assessoramento técnico para poder fazer o papel que hoje a Secretaria faz,
ou seja, controlar a questão normativa. E esse grupo técnico existe até hoje.
Foi, inclusive, aí que entrou o Monumenta, a análise e as aprovações de
projetos, inventários de bens e tudo o mais. Porquanto, a Secretaria nasceu
com o grande encargo de resgatar, ao longo do tempo, tudo aquilo que
não se tinha feito até então.
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Vo l . 1

Essa Secretaria, assim, desenvolveu seus trabalhos no ano de 2005,


baseada no Plano Diretor, que passou por uma revisão, e, um ano depois da
posse do prefeito, estávamos aprovando o novo Plano Diretor do município,
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

além da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo. Enfrentamos,


porém, um grande desafio: por ocasião da aprovação dessa lei, assumimos
um compromisso com a Câmara de Vereadores, uma vez que a lei é muito
imperfeita, principalmente, porque não tinha as características reais da
situação da cidade. A Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo tinha
sido feita em cima de mapas, não existia uma cartografia adequada e ali se
estabeleceu aqui é a zona de proteção ambiental, aqui é a zona de
adensamento residencial, aqui é a zona de proteção especial porque está
tombado, porém, sem levar em consideração as características específicas.
O compromisso que firmamos, portanto, foi assumir que pior do que uma
lei não adequada à realidade do município era não termos, imediatamente,
um compromisso de iniciar um processo correto de apropriação real dos
espaços públicos, visando adequar essa lei. Projeto cujo cumprimento
previsto é o mês de fevereiro de 2010, quando apresentaremos a revisão do
Plano Diretor e Lei de Uso de Solo, agora sim, com um levantamento de
campo e, inclusive, harmonizando a legislação do Iphan.
Foi criado o Conselho Municipal de Política Urbana – Compurb. Hoje
278 não se faz nenhuma construção de impacto, pode ser um prédio, sem que
seja apresentado um estudo de impacto de vizinhança ao Compurb. Cabe
a esse Conselho deliberar porque esse órgão tem poder consultivo e
deliberativo para aprovar ou não a construção de um empreendimento,
dependendo do impacto que ele possa causar.
De acordo com a lei complementar 60, verificamos também que alguns
zoneamentos não atendiam, especificamente, a algumas situações porque
não tinham as características que elas se propunham em termos de
parâmetros urbanísticos. Um desses casos eram os campus que não tinham
uma legislação específica para eles e não havia adequação. Então,
antecipamos, até para evitar que houvesse um prejuízo ao Reuni, que é o
plano de desenvolvimento das universidades federais, criando parâmetros
específicos, nos quais os campus universitários pudessem ser incluídos .
E, agora, nós fizemos um projeto de Lei, nº 73, que já foi aprovado, o
qual era outro grande desafio para Ouro Preto porque, quando aprovamos
a Lei de Uso e Ocupação de Solo e o Plano Diretor, todo mundo já tinha
construído e não conseguiríamos, jamais, regularizar essas construções
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porque os parâmetros urbanísticos não eram aceitos. Por exemplo, tem uma
construção que não foi aprovada em tempo hábil, agora, precisa ser
aprovada e a lei não dá parâmetros possíveis, ou essa construção teria de ser
demolida ou ficar irregular. Então, o Art. 58 veio para solucionar esse
impasse, como verão adiante.
O plano original de zoneamento de Ouro Preto, que aprovamos em 28
de dezembro de 2006 não apresentava nem acidente geográfico. Essa planta
não é georreferenciada e as dificuldades estão em determinar onde estão os
limites das áreas, exatamente, porque não existe esse georreferenciamento.
Não tem nem registro de acidente geográfico; do córrego para lá, por
exemplo, é ZPE, do córrego para cá, não é. Então, essa era a grande
dificuldade de se implementar. Principalmente porque praticamente toda
Ouro Preto tem tombamento federal, porque, na época, pensou-se na
preservação da paisagem, esse era o espírito, era que as molduras fossem
preservadas. Uma coisa é ver uma igreja com montanha verde no fundo,
outra coisa é ver a igreja com um monte de casinha no fundo, e quem lida
com patrimônio cultural sabe disso, mas, infelizmente, esse processo não foi
revertido.
Então, um novo zoneamento deve ser elaborado tendo em vista a
realidade atual para ordenar a ocupação e o crescimento de Ouro Preto e, 279
dessa forma, proporcionar maior qualidade de vida para seus habitantes,
preservando o seu patrimônio cultural. Mas nós conseguimos uma grande
vitória; conseguimos estancar 80% desse processo de ocupação
desordenada. Começou a haver uma nova consciência através dessa nova
legislação. E nós temos de entender também que todos nós voltamos os
olhos para a cidade, como patrimônio cultural, mas Ouro Preto é um
município de 1.280 km², com 12 cidades em seu entorno. Falo 12 cidades
porque o menor distrito de Ouro Preto tem, no mínimo, 1.500 habitantes.
Cachoeira do Canto, por exemplo, tem entre 12 mil e 13 mil habitantes,
hoje, e pouquíssimas cidades mineiras têm essa quantidade de habitantes.
Então, repare o desafio, tanto a sede como cada distrito desses têm um
patrimônio cultural, um núcleo histórico a ser preservado e,
consequentemente, têm um inventário a ser feito. E, isso representa um
trabalho, realmente, hercúleo.
Como fazer a revisão, como corrigir aquela distorção que foi feita? O
trabalho que temos feito com uma equipe própria, e falo isso com muito
orgulho porque sou engenheiro e eu adoro arquitetos. Dizem que os
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Vo l . 1

engenheiros não gostam de arquitetos, mas sempre trabalhei na área de


desenvolvimento e planejamento urbano e sempre houve essa questão, mas
o que acontece? Nós temos uma Secretaria, hoje, com 14 arquitetos e dois
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

engenheiros e poucas Prefeituras no Brasil têm esse privilégio. Trata-se de


um pessoal concursado e muito competente, bastante jovem, embora haja
os profissionais mais experientes também. Então, o sistema que utilizamos
foi criado através do levantamento aéreo fotográfico que verificou o
zoneamento atual. Buscou verificar como ele se inseria no zoneamento
anterior, quais os tipos de usos previstos nessa superposição para descobrir
se eles eram compatíveis, qual era a declividade do terreno, também para
poder reordenar se o uso estava compatível com a topografia existente.
Aqui em Ouro Preto, nós temos um mapa de área de risco, temos uma
estratificação geológica extremamente significativa. Ao lado de um lote em
que tem rocha, por exemplo, você encontra outro lote, às vezes a 10, 15
metros de distância, que tem filito. Desculpem, o termo é pejorativo, mas
é o que nós engenheiros chamamos de “filito da puta”, por ser altamente
inconsistente. Isso revela que não se pode construir sem ter um laudo
geológico porque Ouro Preto é um “queijo suíço”. Temos, inclusive, um
professor da universidade que brinca que Ouro Preto vai descer, isso nós
sabemos, o que não sabemos é quando. Ele sempre fala isso nas suas
280 palestras, espero que não desça nunca, correr os morros. Então, em função
disso, chega-se à proposição de um novo zoneamento, o qual, embora não
seja perfeito, seja menos imperfeito do que aquele feito, tecnicamente, em
uma prancheta.
Um exemplo de resultado desse trabalho são as áreas dos campi das
universidades UFMG e da UFOP, que se localizam em um perímetro de
tombamento federal, até nisso há um dificultador, porque, em uma parte,
as diretrizes estão atreladas à normatização do Iphan, e na outra parte, as
diretrizes são outras. Embora, não seja necessariamente uma comenda
porque seria entendível, se você tem uma comenda na parte não visível,
pode ter parâmetros urbanísticos atrelados à preservação. Mas, um exemplo
típico é o que nós chamamos Loteamento da Lagoa, em que não tem
nenhuma visibilidade do centro histórico e nós enfrentamos problemas.
Quem vai aprovar projeto nesse pedaço tem um tipo de normatização
atrelado às normas do Iphan, com alta restrição. Já quem constrói num
outro trecho não tem essas restrições podendo, até, construir prédios. Então,
são situações as quais temos de ter muita criatividade e harmonia de
legislação, coisa que temos conseguido.
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Eu citei o Art. 58 e vou falar, rapidamente, qual que era o grande desafio
desse artigo. O Plano Diretor, quando nós o aprovamos, para advogados era
ótimo, mas para engenheiros e arquitetos era terrível porque não se
conseguia resolver alguns problemas que só passaram a ser previstos no Art.
58. Então, falava lá: Lei especifica que definirá procedimentos para a
regularização de imóveis construídos em desconformidade com a norma
dessa lei. Ou seja, tudo que era problema estava fora, então criamos uma
normatização. Esse era o grande desafio e tínhamos um prazo de 180 dias
para apresentar isso. Nós cumprimos o prazo, apresentamos depois de
discutir o problema por dois anos e meio ou três anos.
O objetivo era ter parâmetros mais flexíveis, e o que são esses parâmetros?
Como não perder o controle dos parâmetros urbanísticos e não ser
permissivo demais ou inflexível, esse era o grande desafio e, por isso, o
grande diálogo. Esse processo envolveu uma série de discussões analisando
a aprovação dos projetos, a regularização; exigiu atendimentos a
proprietários, enfim, tivemos de fazer uma política de discussões e, por isso,
o período de dois anos para vivenciarmos os problemas. Afirmo sempre que
o Iphan e a Secretaria de Patrimônio têm um objetivo comum, mas têm
objetivos políticos diferentes. Nós temos de tentar atender à vida do cidadão
e preservar a cidade, o Iphan tem de preservar a cidade, o que exige uma
forma mais harmônica para conciliar essas missões. 281

O processo, portanto, foi feito através de uma série de situações, as quais


nos levaram a algumas conclusões. Por exemplo, definimos que os
proprietários cujas obras haviam sido concluídas até 2008 poderiam se
beneficiar desse Artigo. Seriam passíveis, ainda, aquelas que estavam
edificadas em logradouro público, quer dizer, salvo casos como o daquela
pessoa que colocou um bonequinho para demarcar um local de invasão.
Esse caso não entraria no Artigo porque não oferecia nenhuma
infraestrutura que pudesse concretizar aquela posse e, também, não seriam
possíveis aquelas situadas em áreas de risco, sem nenhum laudo geotécnico.
Estabeleceu-se, porquanto, quais seriam os limites, nem de mais, nem de
menos, e, para isso, foi ampla a discussão tanto no Compurb, quanto na
Câmara Municipal e outros órgãos técnicos. Diálogo através do qual
percebemos que poderíamos extrapolar até 25% dos limites propostos pela lei.
Então, caso ele tivesse um coeficiente de aproveitamento um, ele poderia ter
1,25 e, da mesma forma, a taxa de impermeabilidade, desde que não houvesse
comprometimento da volumetria, principalmente no perímetro tombado.
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Vo l . 1

Enfim, o que a lei permitia era isso, o Artigo 58 possibilitou um


acréscimo, um grau de negociação, levando em conta, sempre, a inserção
dessa construção, até que ponto ela é prejudicial ou não à paisagem
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

tombada. Tem uma série de condicionantes determinadas pela Prefeitura,


responsável por exigir adequação, por exemplo, naqueles casos em que o
proprietário teria de demolir parte da construção. Mas, isso foi,
amplamente, divulgado e através de um processo de cartilha distribuída
pela Secretaria.
Estabelecemos, ainda, a questão da isenção e o aspecto do ônus na
função social da propriedade. Aquelas pessoas que não tinham condição de
arcar com as alterações da obra, quais os casos teriam direito à ajuda do
poder público, bem como os casos contrários, nos quais os proprietários
eram passíveis de multa. A lei determinou que esses recursos seriam
destinados ao Fundo de Preservação do Patrimônio, além de definir os
prazos para a conclusão do processo, delimitado em 30 meses. Isso, aliás, foi
a única coisa que mudou na Câmara Legislativa Municipal, que acabou
votando pelo prazo de 36 meses para a pessoa iniciar o processo. Nós
achamos que tinha de ter um prazo, senão você fica com aquele negócio a
vida inteira sem possibilidade de detectar o que foi, afinal, construído em
uma época ou não. Isso era muito importante.
282
Finalizando, vou apontar os tombamentos feitos pelo município que,
nesse período, alcançou um total de 26 tombamentos. Temos, ainda,
pedidos de mais 26 tombamentos a fazer, inclusive, nos distritos. Conforme
vocês veem, inventariamos cada um dos distritos, num levantamento de
todos os seus bens culturais. E, é válido afirmar, há um belíssimo conjunto
de bens culturais no entorno de Ouro Preto, nos seus distritos que, ainda,
são pouco conhecidos. Nossa ideia é mostrar isso, revelar que há uma
concentração muito grande na sede, e vocês podem ver a beleza desse
patrimônio, mas divulgar também que se trata apenas da sede. Tem a
questão até do incêndio do Pilão, na praça, que gerou uma grande discussão
a respeito e acabou se definindo por aquilo que o povo defendeu. A
população queria que a volumetria e o aspecto ficassem como era, ou seja,
que a praça fosse mantida na íntegra, então, optou-se por um projeto que
tem, externamente, a aparência da construção original e, internamente,
guarda somente as informações a respeito do incêndio e é totalmente
moderna e, hoje, é o Centro Cultural e Turístico do Sistema Federação das
Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG).
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Só para mostrar que o trabalho deu resultado, o ICMS cultural de
Minas, a chamada Lei Robin Wood, distribui uma parcela de 2% para
aqueles municípios que, através do relatório de ações, demonstram
comprometimento com o patrimônio cultural e sua preservação. A partir da
atual administração, quando foi criada a Secretaria Municipal de
Patrimônio, houve uma significativa evolução, atingindo, nos dois últimos
anos, a maior pontuação já obtida por um município na história do ICMS
cultural do Estado, pelas ações executadas.
Somente para mostrar as ações de restaurações que foram feitas, o Teatro
Municipal de Ouro Preto foi totalmente restaurado, através do programa
Monumenta. O anexo foi comprado e restaurado, fazendo parte do centro
histórico de Ouro Preto que, hoje, tem um mobiliário compatível entre o
antigo e o novo centro, sem causar nenhuma agressão.
Fizemos ainda uma substituição, Ouro Preto tem muito trilho e as
pessoas querem proteger suas residências, então, foi desenvolvido o
balizador para poder criar essa condição sem nenhuma agressão ao
patrimônio. Foi uma grande realização em toda essa área apropriada no
coração da cidade que era um grande lixo. Tiramos mais de 300 caminhões
de lixo daquele lugar, o qual se transformou, posteriormente, no Parque
Horto do Conto, que se tornou, inclusive, uma referência. 283
E o grande programa do Banco Interamericano de Desenvolvimento –
BID se configurou no maior sucesso de Ouro Preto que foi a recuperação
de imóveis privados. Já estamos indo para o terceiro edital, contemplando,
a Casa do Aleijadinho, a qual, aliás, não foi do escultor, mas é conhecida
assim. Então, a chamada Casa do Aleijadinho estava em péssimas condições
de preservação, com impossibilidade de aportar recurso público no imóvel
privado e, só através do BID, nós conseguimos realizar a obra.
Encerro lembrando uma frase de meu tio, padre Simões, um homem
muito controvertido, mas um grande defensor do patrimônio,
principalmente do patrimônio cultural religioso de Ouro Preto. Diante do
desejo de agradar a todos, pintando os imóveis de branco, ele sempre me
falava o seguinte: “Não adianta pintar urubu de branco ele nunca vai ser
uma garça”.
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Vo l . 1

O PA P E L C O N S T I T U C I O N A L D O
M U N I C Í P I O N A P RO T E Ç Ã O D O
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L

João Henrique Café de Souza Novais*

RESUMO
* Conselheiro federal O texto aborda o papel da sociedade civil brasileira, na difícil e
da OAB
importante missão de agir na defesa e na preservação do patrimônio
cultural. Evidencia o fato de que o Brasil é o único país do mundo onde a
Federação é formada pela união indissolúvel de Estados e municípios,
quando a regra clássica é que a federação seja formada somente de Estados.
Isso revela a situação sui generis do município brasileiro, o que explica por
que as políticas sociais têm o município como estrutura de execução. Isso
ganha maior relevância quando se refere ao patrimônio histórico e cultural,
284 tendo em vista a necessidade de assegurar a memória de um determinado
tempo, além de manter intactas suas manifestações populares, as quais
acontecem no seio do município.

PALAVRAS-CHAVE
Constituição Federal, Patrimônio cultural, Municípios.

Gostaria de saudar os ilustres componentes da Mesa Diretora dos


trabalhos, na pessoa do ilustre procurador-chefe do Iphan, Dr. Antônio
Fernando. Aproveito, também, a oportunidade, para parabenizar o
Ministério da Cultura e todos os organizadores deste I Fórum Nacional do
Patrimônio Cultural, pela promoção desse magnífico evento, de tanta
relevância para todos nós cidadãos, por meio do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – Iphan.
Devo esclarecer, de início, que a minha presença aqui se deve,
unicamente, à impossibilidade do excelentíssimo senhor presidente do
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Conselho Federal da OAB, Cezar Britto, estar presente a este evento, ante
a existência de outros compromissos, anteriormente assumidos, que o
impediram de estar entre nós, como era de seu desejo.
Como conselheiro federal da OAB por Minas Gerais, embora sem o
brilho e a autoridade do presidente, ousei aceitar o convite para substituí-
lo aqui, certo de que a advocacia deve estar presente nos grandes debates
nacionais de interesse da cidadania, notadamente no que diz respeito à
defesa e à proteção do patrimônio cultural brasileiro. Afinal de contas,
quando o §1º do art. no 216 da CF/88 estabelece que:

O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e


protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras
formas de acautelamento e preservação1. 1. Constituição
Federal do Brasil.
Art. 216.
Todos nós, cidadãos integrantes da sociedade civil, de forma organizada
ou até mesmo de forma individual, temos de cumprir – junto com o Poder
Público – o papel constitucional que nos foi reservado, na defesa e na
preservação do patrimônio artístico, histórico e cultural do nosso país.
É por isso que, embora me tenha sido proposto dissertar sobre o papel
constitucional do município na proteção do patrimônio cultural, ponto 285
que será enfrentado no decorrer desta manifestação, sinto-me no dever de
ampliar o foco da discussão para destacar, também, o papel da sociedade
civil brasileira na difícil e importante missão de agir na defesa e na
preservação do patrimônio cultural brasileiro.
Nesse contexto, vale lembrar que a Ordem dos Advogados do Brasil não
é autarquia e nem entidade genuinamente privada, a OAB é (e presta)
serviço público independente, seja na organização da atividade profissional,
promovendo, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a
disciplina dos advogados, seja na valorização da cidadania, promovendo a
defesa da constituição da ordem jurídica do estado democrático de direito,
dos direitos humanos, da justiça social, e pugnando pela boa aplicação das
leis, pela rápida administração da Justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura
e das instituições jurídicas, tal como apregoa o art. 44 da Lei no 8.906/94
(EOAB), podendo, no desempenho desse mister, ajuizar Ação Direta de
Inconstitucionalidade de normas legais e atos normativos, como ação civil
pública, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e demais
ações para as quais esteja legitimada por lei.
ForumPatrimonioCap6:Layout 3 5/30/12 4:18 PM Page 286

Vo l . 1

A OAB, pois, na consecução de seus objetivos e finalidades institucionais


para com a cidadania, funciona como legítima porta-voz da sociedade civil,
na defesa dos bens e valores, que são assegurados a esta, tanto pela lei quanto
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

pela Constituição.
Por isso, quando a CF/88 se refere à colaboração da comunidade junto
com o Poder Público para promover e proteger o patrimônio cultural, não
se pode falar no papel do município na defesa e na preservação do
patrimônio cultural, sem mencionar, também, o papel, que eu diria,
fundamental, da sociedade civil organizada, em geral, e da OAB, em
particular.
A CF/88, ao estabelecer o rol de competências reservadas aos
municípios, foi clara em dispor nos incisos VIII e IX, do art. 30, dentre
outros, a de promover o ordenamento territorial, mediante o planejamento
do uso, do parcelamento e da ocupação do solo e, bem assim, a defesa e
proteção ao patrimônio histórico cultural, sem prejuízo da legislação e da
ação fiscalizadora federal e estadual.
Não obstante a competência concorrente da União e dos Estados,
estabelecida no inciso VII do art. 24 da Carta Magna, a nossa Constituição
é, de fato, “municipalista”, o que é fantástico, porquanto a promoção dos
286 direitos humanos e a sua efetivação se fazem – ou deveriam ser feitas – com
maior participação direta dos cidadãos.
Vejam, minhas senhoras e meus senhores, o Brasil é o único país do
mundo onde a Federação é formada pela união indissolúvel de Estados e
municípios (a regra clássica é que a federação seja formada somente de
Estados). Isso serve para demonstrar a situação diferenciada e sui generis do
município brasileiro, a qual fica ainda mais evidenciada quando se vê que
a própria Carta Magna destaca, junto com as competências atribuídas ao
município, a colaboração da sociedade, na consecução das metas e objetivos
do Poder Público, na proteção e conservação do patrimônio cultural.
Afinal de contas, o cidadão não mora na União. O cidadão não mora no
Estado. O cidadão, todo cidadão, mora é na cidade. Assim, o município e o
prefeito representam a figura política mais próxima do povo, mais próxima
dos munícipes. Eis um dos motivos por que as políticas sociais, no Brasil, têm
como estrutura de execução o município. Vale dizer, que a União Federal
faz a macropolítica; os Estados e o Distrito Federal se encarregam da
organização da política regional; e aos municípios cabe a execução.
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No que respeita ao patrimônio histórico e cultural, especificamente, tem
maior relevo e importância a participação municipal nessas questões, tendo
em vista a necessidade de assegurar, para as futuras gerações, a memória de
um determinado tempo, bem como, manter intactas suas manifestações
populares, as quais acontecem no seio do município, cuja comunidade local
tem, por óbvio, interesse direto e imediato.
No dizer abalizado de Nelson Nery Costa e Geraldo Magela Alves, em
sua obra Constituição Federal anotada e explicada:

[...] a competência expressa do Município é voltada para os assuntos


de interesse local, devendo prevalecer sobre as competências federais
e estaduais. O critério básico de distinção é o do interesse
predominante, ou seja, frente aos interesses da União ou dos Estados,
em determinadas matérias o interesse municipal deve ter um grau
maior de validade, em situações peculiares, como o problema do
estacionamento nas ruas do centro da cidade, a reforma do
cemitério, etc.

É por isso que o art. no 30 da CF/88 põe, de forma clara, as competências


dos municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local; 287


II – suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber;
[...]
VII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial
[...];
VIII – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local,
observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

A competência municipal, em matéria de direito urbanístico, não se


restringe à organização definida no art. 30 da Constituição Federal. Sua
atuação é ampliada por força do art. 182 da Carta Fundamental, que trata
da Política Urbana e confere conteúdo ao princípio da função social da
propriedade, uma vez que é o Plano Diretor, lei municipal, que estabelece
os requisitos e as condições para o cumprimento daquele princípio
constitucional:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo
Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei,
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Vo l . 1

tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais


da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
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§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico


da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social, quando atende
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor.

Deve, portanto, o município atuar na fiscalização e implementação dos


princípios constitucionais, por meio dos instrumentos definidos pelo
Estatuto da Cidade (Lei no 10.257/2001), norma federal de caráter geral,
que confere ao ente local, meios para efetivar a conformidade da
propriedade pública e privada à função social.
É importante esclarecer que a competência municipal, na defesa do
patrimônio cultural, decorre da CF/88 e não do Estatuto da Cidade, o qual
apenas delineia a configuração de alguns instrumentos de política urbana.
Compete ao município, igualmente, definir os passos concretos em que
o desenvolvimento urbano se dará, uma vez que cabe, privativamente, a
288 esse ente o tratamento legal de assuntos de interesse local em matéria de
“política de desenvolvimento urbano”, colocando-se como instrumento
básico dessa política o plano diretor urbano, aprovado pela Câmara
Municipal e obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes.
Em excelente artigo intitulado “A proteção do patrimônio cultural como
uma obrigação de todos”, a advogada e professora Nathália Arruda
Guimarães, salienta, com propriedade, que “[...] em matéria de Direito
Urbanístico, portanto, o Município é ente de competência destacada, lhe
sendo conferido o dever e o direito de interferir na disciplina da propriedade
local, dando a esta conteúdo social.”
Nesse aspecto, destaca a professora:

[...] a Lei Federal nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, dispõe que


a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, observando o
dever de proteção, preservação e recuperação do meio ambiente
natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico,
paisagístico e arqueológico. (inciso XII, art. 2º).
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Ora, sabendo-se que uma das funções do governo local é a de
implementar a política urbana, através do Plano Diretor e de planos
especiais de valorização e preservação de bens de interesse cultural e natural,
um dos objetivos prementes do Plano Diretor Municipal deve ser a
conjugação do planejamento do território urbano com a proteção do
patrimônio cultural.
Por isso, entendemos que a elaboração do Plano Diretor deve ser
acompanhada de perto pela sociedade, sujeitando-se à participação efetiva
dos cidadãos da cidade, a fim de garantir a gestão democrática do espaço
urbano, mediante a realização de audiências, debates, consultas públicas,
conferências sobre assuntos de interesse urbano, estimulando reflexões sobre
como queremos viver a cidade de nossos dias, sem perder nossa identidade.
A democrática participação da população, devidamente informada e
esclarecida, é imprescindível para garantir um ordenamento urbano que
reflita a preocupação cultural, a partir de onde se concretizará uma cidade
como queremos.
Não obstante isso, é fato que “administrativistas” modernos, como
Gerard Timist, têm ido mais além na identificação do papel dos municípios
e dos munícipes. Apregoam a utilização pela hodierna administração
pública (uma administração leve, flexível, fluida), de institutos de delegação 289
de atividades públicas a particulares, com o fito de aumentar o controle
global da coletividade sobre essas atividades.
É sobre esse manto de cidadania plena e de valorização da participação
popular, nos destinos de nossas cidades, que a OAB, na sua missão cidadã,
quer agir positiva e vigorosamente, atuando com os governados (cidadãos)
e fiscalizando os governantes, garantindo que a participação popular se
articule perfeitamente com os elementos do denominado Estado de Direito
substancial ou material, em favor da efetivação dos direitos fundamentais e
do controle dos desvios e abusos cometidos, principalmente, pela
administração pública.
No Estado de Direito contemporâneo, o ordenamento jurídico inspira
a participação dos cidadãos no exercício de todas as funções estatais (de
legislação, jurisdição e administração). A administração pública brasileira,
inclusive e principalmente a municipal, não pode prescindir da efetiva
participação popular. E nem poderia ser diferente, pois no exame dos
instrumentos de controle e proteção do patrimônio cultural, objeto de nossa
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análise, a colaboração da comunidade tem raiz constitucional, tal como se


vê dos dizeres do art. 216, parágrafo 1º, da CF/88:
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e


protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, de outras formas
de acautelamento e preservação.

Ao fazer ressalvas a outras formas de acautelamento e preservação,


lembra-nos o jurista Marcos Perez que o legislador constituinte deixou claro
que a enumeração do dispositivo é meramente exemplificativa e trata apenas
de alguns dos principais instrumentos vocacionados à tutela do patrimônio
cultural brasileiro.
Destaco aqui, por exemplo, um dos instrumentos disponíveis
consentidos e largamente praticados pela administração pública brasileira,
seja ela municipal, estadual ou mesmo federal: os conselhos consultivos ou
deliberativos.
Lamentavelmente, porém, temos de destacar, que no município de Belo
Horizonte, ao arrepio dos cânones da Carta Maior, a OAB não tem tido
assento no Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, o que equivale à
290 direta negativa de vigência ao disposto no §1º do art. 216 da CF/88, que
prevê a participação e a colaboração da comunidade em conjunto como
Poder Público, na defesa do patrimônio cultural.
Indignações à parte, em compensação, a OAB tem tido assento
permanente no Conselho Estadual do Patrimônio Cultural – Conep, cujo
representante, indicado pelo presidente da seccional mineira da OAB, sendo
um experto no tema, tem militância permanente, seguindo as diretrizes
traçadas pela própria Comissão de Direito Ambiental da OAB.
O destaque ora dado aos Conselhos, notadamente os municipais, é
apenas ilustrativo dos inúmeros instrumentos de controle e proteção do
patrimônio cultural e um demonstrativo do exercício das funções estatais no
Estado Democrático contemporâneo (audiências públicas, consultas,
apresentação e discussão de projetos nas comunidades, etc.).
A OAB, como entidade civil porta-voz da sociedade, está atenta ao fato
de que os instrumentos de participação ativa e direta, na realização do
interesse público, são pouco utilizados e pouco conhecidos pela sociedade
civil, e que há inúmeras outras formas de participação da sociedade civil na
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proteção do patrimônio cultural que devem ser divulgadas e utilizadas.
Convencida de que uma administração pública, seja ela municipal, estadual
ou federal, deve ser legitimada pela participação popular, a OAB mostra-se
preocupada e atenta para com a concretização dos princípios constitucionais
que regem os direitos e interesses coletivos, os quais devem se dar com o
respaldo, a participação e o envolvimento da sociedade civil organizada.
Parafraseando a norma constitucional que emana do § 1º do art. 216, a
OAB/MG, seja sob a auspiciosa presidência de Raimundo Cândido Júnior,
que ora encerra seu mandato como presidente em 31.12.2009, mas dá
continuidade à sua militância, agora como conselheiro federal (2010/2012),
perante o Conselho Federal da OAB, seja sob o comando promissor do
presidente eleito, Luís Cláudio da Silva Chaves, continuará presente e
vigilante, participando desse processo democrático de colaboração efetiva da
sociedade junto com o Poder Público, na promoção, na defesa, na
preservação e na proteção do patrimônio cultural brasileiro.

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AT U A Ç Ã O D O M I N I S T É R I O
PÚBLICO EM DEFESA DO
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L

Marcos Paulo de Souza Miranda*

RESUMO
* Coordenador da A partir de uma visão do Ministério Público de Minas Gerais, o autor
Promotoria
Estadual de Defesa discute, neste artigo, a criação e o funcionamento de um Sistema Nacional
do Patrimônio de Patrimônio Cultural. Tendo em vista o Decreto-Lei no 25/37, no artigo
Cultural e Turístico
de Minas Gerais 23, criado em 1937, que já estabelecia linhas para a delimitação de um
sistema como esse, o atual momento se apresenta, então, como a efetivação
de um Sistema Nacional de Proteção ao Patrimônio Cultural, e não
verdadeiramente de sua criação. Aponta, ainda, como uma importante
prioridade, para o tratamento do Sistema Nacional, o estabelecimento de
princípios e objetivos. Além de outros princípios que pretendem o efetivo
funcionamento desse Sistema.
292
PALAVRAS-CHAVE
Sistema Nacional, Ministério Público, Patrimônio cultural.

O tema que nos foi colocado para ser abordado foi a participação do
Ministério Público nas ações de defesa do patrimônio cultural e, também,
a visão do Ministério Público do Estado de Minas Gerais a respeito da
falada necessidade de se implantar um Sistema Nacional de Patrimônio
Cultural, para que nossas políticas de preservação, de proteção e promoção
sejam mais efetivas. Bem, eu atualmente coordeno a Promotoria Estadual
de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais, o primeiro
órgão a ser criado em nosso país com abrangência em toda Unidade da
Federação com objetivo especifico de cuidar do patrimônio cultural. Então,
em Minas Gerais, nós temos uma Promotoria que tem a missão de
coordenar a atuação dos colegas promotores nos 853 municípios que
integram nosso Estado, e que são açambarcados por 294 comarcas. Farei,
então, um pequeno panorama para que possamos compreender as razões
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pelas quais foi criada essa Promotoria Estadual, que até o presente momento
é pioneira no Brasil.
Minas Gerais tem o maior número de bens protegidos de todo o país,
estima-se que existam cerca de 35.000 bens culturais protegidos. Nós temos
três bens reconhecidos como Patrimônio Cultural da Humanidade: a cidade
de Ouro Preto, o conjunto da Basílica de Bom Jesus do Matozinho de
Congonhas e, também, o centro histórico de Diamantina. Temos uma
reserva da biosfera que é a Reserva do Espinhaço e temos o maior número
de cidades turísticas reconhecidas pela Embratur no país, pois são quase
200 cidades turísticas reconhecidas como tal e com reflexos jurídicos daí
advindos, como, por exemplo, a necessidade de um Plano Diretor,
conforme exige o Estatuto das Cidades.
E nós contamos, também, em Minas Gerais, com uma legislação
específica que distribui recursos para os municípios que contam com uma
política municipal de defesa do patrimônio cultural, a chamada Lei Robin
Hood. Em razão disso tudo, tendo em vista que o Ministério Público é o
guardião dos direitos da sociedade e dentre esses direitos encontra-se o
direito à fruição de um patrimônio cultural hígido, o Ministério Público de
Minas Gerais se viu na contingência de ter uma atuação que fosse
correspondente a essa importância, daí a criação dessa Promotoria, que tem 293
como objetivo combater os maiores problemas que são normalmente
constatados quando se fala em proteção do patrimônio cultural.
Que problemas são esses? O primeiro deles é o comarquismo. Mas, e o
que é comarquismo? É aquela visão do órgão representante do Ministério
Público que não vai além dos limites da própria comarca, ou seja, nós temos
uma atuação fragmentada, uma atuação pontual que não consegue ter a
visão do todo, e quando tratamos de patrimônio cultural, que é um
patrimônio essencialmente difuso, não faz sentido termos tratamentos
diferenciados, tendo em vista, principalmente, as peculiaridades de Minas
Gerais, onde há necessidade de uma atuação uniforme, abrangendo o todo.
E quando eu comecei esse trabalho (há alguns anos), era muito comum
ouvir falar: “Patrimônio cultural em Minas Gerais é Ouro Preto, Mariana,
Tiradentes”, e, no início, foi muito difícil combatermos essa falsa noção de
que patrimônio cultural se confunde com cidades do período barroco, era
como que se as cidades detentoras de valor cultural em Minas Gerais
fossem, tão somente, as chamadas “cidades históricas”. Aliás, eu tenho uma
crítica em relação a essa expressão, pois, para mim, nós temos 853 cidades
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históricas em Minas Gerais, algumas com passado mais antigo, outras com
passado mais recente, algumas com patrimônio construído mais destacado,
outras nem tanto, mas, todas têm sua história. Então, o objetivo de romper
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

com essa concepção equivocada foi um dos fundamentos para a criação da


Promotoria especializada.
Outro grande problema que sempre assolou o Ministério Público é a
questão do generalismo. O que é isso? O promotor de Justiça quando
ingressa na instituição é um especialista em generalidades, ou seja, ele vai
normalmente para uma comarca do interior, onde ele atua como promotor
criminal, promotor cível, promotor da infância e da juventude, dos direitos
do consumidor, dos idosos, do meio ambiente, do patrimônio cultural, do
urbanismo, e mais algumas dezenas de atribuições. Isso acaba redundando
em uma atuação que não preza exatamente pela técnica, e acaba por se
transformar em um terceiro problema, que é o atecnicismo.
E quando nós tratamos de matérias especializadas, como o direito do
meio ambiente natural e do meio ambiente cultural, se não soubermos
manejar com habilidade os instrumentos que temos à disposição, por
melhor que seja o direito da sociedade, esse direito corre risco. Então, há a
necessidade de se manejar com técnica e com habilidade esses direitos,
294
porque senão acabamos por colocar em risco direitos que pertencem a
gerações que sequer nasceram. Assim, ante a necessidade de termos uma
ação coordenada, pronta e eficaz, foi criado no âmbito do Ministério
Público mineiro, primeiramente em 2003, um grupo especial de
promotores e, posteriormente, em setembro de 2005, a Coordenadoria das
promotorias de defesa do patrimônio cultural, que é essa promotoria de
abrangência estadual da qual falo.
E quais os objetivos dessa Promotoria? Primeiro, planejar a atuação das
Promotorias de Justiça com atribuições na área, pois quando nós não temos
prioridades, tudo se torna importante. Então, há necessidade de planejamento
para verificar aquilo que demanda uma atuação mais efetiva, mais
direcionada, para que os resultados sejam eficazes, porque senão ficaremos
dando tiros para todos os lados e não acertaremos absolutamente nada. Por
isso, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, na área de defesa do
patrimônio cultural, atua objetivando o alcance de metas. A cada início de ano
metas são estabelecidas e há um acompanhamento, inclusive estatístico, dessas
metas, e ao final de cada ano fazemos uma análise para verificar se realmente
foram alcançadas, ou não, e por quais razões isso aconteceu.
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Prestar apoio técnico e jurídico às promotorias é outro objetivo. Nós
temos, no âmbito da promotoria estadual, técnicos na área de arquitetura
e de história exatamente para dar suporte aos colegas, principalmente, na
elaboração de laudos.
Identificar as prioridades para a atuação ministerial. Como dito, nós
sempre trabalhamos com prioridades. Este ano, por exemplo, uma das
prioridades foi a proteção do patrimônio ferroviário e, para isso, nós
trabalhamos sempre em conjunto e de maneira integrada com a Secretaria
de Patrimônio da União, com o Ministério Público Federal, com o Iphan,
com a Inventariança da RFFSA e, talvez, muito em razão disso, acredito
eu, Minas acabou alcançando uma posição de destaque no que diz respeito
ao seu patrimônio ferroviário, e os primeiros acordos que viabilizaram a
transferência de estações que estavam abandonadas, para municípios
interessados e, dentre esses municípios, inclusive, Ouro Preto. Isso
aconteceu exatamente aqui, em Minas Gerais.
Fazer gestão com os demais órgãos, objetivando a integração das ações
de defesa do patrimônio cultural. É preciso deixar muito claro que uma
instituição sozinha, por mais eficiente que seja, não vai conseguir resolver
os problemas que nos afligem em relação ao patrimônio cultural. Há a
necessidade, realmente, de uma integração de ações, e isso a Promotoria 295
procura fazer, principalmente, por meio da celebração de convênios e de
relações interinstitucionais. Também cooperamos com os órgãos de
execução em casos de relevância e urgência, ou seja, a Promotoria Estadual
de Defesa do Patrimônio Cultural tem atribuição em todo o Estado de
Minas Gerais para trabalhar junto com os colegas nos casos em que haja
relevância ou urgência. Hoje, por exemplo, quando eu vinha para Ouro
Preto, antes de me dirigir a este evento, estava juntamente com o dr.
Ronaldo Crawford que é o promotor de defesa do patrimônio cultural
daqui, fazendo diligência em um determinado bem cultural que está
sofrendo intervenções indevidas. Então, nós trabalhamos sempre em
conjunto com os colegas.
Quais são os fundamentos básicos da nossa atuação? Primeiro, a noção
de que patrimônio cultural nada mais é do que um dos aspectos do meio
ambiente. Nós precisamos ter essa noção de maneira muito clara, é algo
que já chegou à Europa há décadas e somente há pouco tempo temos
compreendido isso no Brasil. Meio ambiente não se confunde com
natureza. O aspecto naturalístico do meio ambiente é tão somente um dos
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aspectos, tanto que na Europa, de forma geral, hoje tem sido preferível a
utilização da expressão “meio envolvente”, por que tudo aquilo que
contribui para uma condição de bem-estar do ser humano deve ser
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

considerado integrante desse macro bem.


A diversificação dos instrumentos de proteção é uma visão moderna
sobre o conceito de patrimônio cultural. Nós temos de deixar de lado essa
visão que, infelizmente, perdurou por muito tempo, de que o tombamento
é o único instrumento para proteção do patrimônio cultural. A era do
Império do tombamento já se foi há muito tempo, e sobre essa era foi
lançada uma pá de cal com o advento da Constituição Federal de 1988.
Pelo seu artigo 216 § 1º fica absolutamente claro que se tutela o patrimônio
cultural brasileiro por meio de tombamento, inventário, registro, vigilância,
desapropriação e outras formas de acautelamento e preservação, ou seja,
todo e qualquer instrumento que detenha potencialidade para a proteção do
patrimônio cultural brasileiro vai encontrar uma fundamentação
constitucional no artigo 216, § 1º da nossa Carta Magna. Mas,
infelizmente, muitos ainda não compreenderam isso e entendem que
somente integra o patrimônio cultural brasileiro os bens tombados, mas
isso é um grande equívoco.

296
Outra questão que é fundamental diz respeito à adoção de uma postura
resolutiva. O Ministério Público não tem compromisso com o litígio; o
Ministério Público não tem compromisso com a judicialização dos conflitos;
o Ministério Público tem compromisso, sim, com a resolução dos conflitos.
É exatamente por isso que nós temos deixado as ações civis públicas para
serem propostas somente naqueles casos em que o consenso não se mostrar
possível, por que sempre que há possibilidade de se construir uma solução
extrajudicial para os conflitos, principalmente pelos chamados “termos de
ajustamento de conduta”, essa é a solução sempre preferida pelo Ministério
Público, em razão de ser mais célere, eficaz e benéfico à sociedade.
E, por último, a atuação integrada, aquilo que eu já citei e que repito:
uma instituição sozinha, por mais qualificada que seja, vai ser sempre muito
pouco para resolver os problemas que nós temos e que nos desafiam.
Há alguns dados estatísticos, eu gosto muito de ter essas referências,
porque como servidores públicos nós somos servidores da sociedade e nós
temos de demonstrar aquilo que a nossa instituição faz. E vejam, senhores,
que entre os anos de 1990 até 2005, quando foi criada a Promotoria
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Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais,
nós tínhamos uma instauração anual de investigações em todo o Estado
inferior a 20 procedimentos, ou seja, vinte procedimentos instaurados por
ano no Estado de Minas Gerais. Com a criação da Promotoria Estadual nós
tivemos, a partir de 2006, aproximadamente 30 procedimentos; em 2007
já superamos os 60; em 2009, esse dado aqui é de setembro, nós já
superamos a marca de 140, ou seja, tivemos 700% de aumento em menos
de cinco anos. Agora eu faço uma pergunta para os senhores: os problemas
envolvendo os bens culturais em Minas Gerais aumentaram em 700%?
Claro que não! Na verdade, a percepção do Ministério Público sobre a
existência desses problemas é que aumentou. Então, o quê existia, na
realidade, era um déficit de atuação e agora esse déficit está sendo suprido.
Para os senhores terem uma ideia, nós temos, ao todo, 700 procedimentos
investigatórios em curso no Estado de Minas Gerais. E a questão da
efetividade, que é o mais importante, pois não basta ter quantidade, tem que
ter qualidade, mais de 70% das questões relativas ao patrimônio cultural,
que são colocadas sob apreciação do Ministério Público mineiro, são
resolvidas sem necessidade de acionamento do Poder Judiciário. Isso se dá
por meio da realização de reuniões, com a expedição das recomendações e
com a celebração dos termos de ajustamento de conduta. O pequeno
percentual em que há a necessidade da propositura das ações judiciais, nós 297
temos um índice de sucesso superior a 75%, ou seja, os índices de
efetividade e de sucesso nas ações, sejam judiciais, sejam extrajudiciais,
envolvendo patrimônio cultural, demonstram um resultado bastante
significativo.
Os senhores podem estar pensando o que isso tem a ver com o Sistema
Nacional de Patrimônio Cultural. E aqui vem a resposta: se abrirmos o
Dicionário Aurélio verificaremos que “a disposição das partes ou dos
elementos de um todo, coordenados entre si e que funcionam como
estrutura organizada” e, também, a “técnica ou método empregado para
o alcance de um fim”, são definições de sistema. O sistema é exatamente
isso. Então, o que eu trouxe para os senhores em termos práticos, na teoria
significa dizer que no âmbito do Ministério Público do Estado de Minas
Gerais foi criado um sistema ministerial de tutela do patrimônio cultural.
Isso foi o que aconteceu, pois agora nós temos coordenação, métodos,
objetivos, agora nós temos quantificação das nossas ações e dos nossos
resultados.
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Bem, aí partimos para o que realmente nos interessa – a criação ou


funcionamento de um Sistema Nacional de Patrimônio Cultural. E, para
isso, faremos uma análise absolutamente sincera e absolutamente crítica, e
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

eu já peço vênia aos meus amigos do Iphan, mas, é uma análise que eu faço
e que é absolutamente propositiva, sincera e respeitosa, no que diz respeito
ao Iphan, até porque, eu já disse isso publicamente: o Iphan, para mim,
teve, aliás, ainda tem, as chamadas “fases heroicas”. Nós tivemos uma fase
heroica, que foi a fase inicial, quando o Iphan começava a dar seus primeiros
passos. Eu penso que nós estamos, atualmente, em uma nova fase heroica,
que é uma fase que objetiva o alcance da efetividade e a implementação, na
prática, daquilo que uma autarquia voltada para a proteção do patrimônio
nacional precisa realmente fazer. E nós ficamos muito felizes de ver um
evento nacional, principalmente sendo sediado aqui, em Vila Rica, a nossa
querida Ouro Preto, exatamente objetivando isso, a discussão aberta com a
sociedade, a discussão aberta com os diversos atores, procurando a
implementação dessas medidas.
Nós temos um Sistema Nacional de Meio Ambiente que foi instituído
em 1981, há quase 30 anos; nós temos um Sistema Nacional de Unidades
de Conservação que foi instituído no ano 2000; nós temos um Sistema
Nacional de Turismo que foi criado em 2008; nós temos um Sistema
298 Brasileiro de Museus, que é o mais recente de todos, criado agora em 2009,
e eu pergunto: onde está o nosso Sistema de Defesa do Patrimônio Cultural?
Ele não existe?
Será que nós passamos todos esses anos em que o Brasil já tem uma longa
tradição de defesa do patrimônio cultural e nunca se pensou nisso?
Eu gostaria de trazer esse tema à reflexão e já gostaria de fazer aqui a
minha crítica quanto a uma postura que costuma contaminar os brasileiros
em geral, e nós, operadores do direito do patrimônio cultural, também, que
é a “síndrome do coitadismo” e o “complexo de Pilatos”. Vou me explicar:
a “síndrome do coitadismo” é aquele posicionamento segundo o qual tudo
no Brasil é ruim, nada aqui vale nada, sempre o que tem na França é melhor,
sempre o que tem na Europa é melhor. O “complexo de Pilatos” é
simplesmente falar: “olha, o problema está na ausência de leis, o problema
está na ausência de verbas, então, o problema não é meu”.
Então, deixando de lado esses dois males, eu ouso dizer que o Sistema
Nacional de Defesa do Patrimônio Cultural existe desde 1937 e foi o
primeiro deles, porque no Decreto-Lei no 25/37, o artigo 23 é
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absolutamente claro: “o poder executivo providenciará a realização de
acordo entre a União e os Estados, para melhor coordenação e
desenvolvimento das atividades relativas à proteção do patrimônio histórico
e artístico nacional e para uniformização da legislação estadual
complementar sobre o mesmo assunto”. Então o Sistema já estava lá em
1937. Obviamente que não tem o nome que é relativamente moderno,
sistema, mas, as bases para um funcionamento de uma estrutura organizada
e hierarquizada, normativa, essas bases estão estabelecidas desde 1937.
Então, na verdade, eu gostaria de colocar isso para a reflexão. Eu acho que
o momento é de efetivação de um Sistema Nacional de Proteção ao
Patrimônio Cultural, e não verdadeiramente de sua criação, porque esse
sistema na verdade já existe.
E vejam só o artigo 25: “O serviço do patrimônio histórico e artístico
nacional procurará entendimentos com as autoridades eclesiásticas,
instituições científicas, históricas ou artísticas e pessoas naturais ou jurídicas
com o objetivo de obter a cooperação das mesmas em benefício do
patrimônio histórico e artístico nacional”. Então, o princípio da cooperação,
o princípio da solidariedade na proteção do patrimônio cultural que muitos
pensam ter surgido com a constituição de 1988, já está previsto desde 1937.
Então, acho que o grande desafio hoje é colocarmos em funcionamento
algo que já estava preconizado desde 1937. 299

E, aqui, gostaria de fazer outra afirmação que diz respeito a uma


convicção minha: nós temos de ter muito cuidado com a expectativa de se
resolver tudo através de leis. Não raramente, no Brasil, pensa-se que
somente com a criação de leis nós vamos resolver o problema, e eu faço esse
alerta porque no meu modo de entender nós temos um Congresso Nacional
que é absolutamente imprevisível. Então, por exemplo, mexer na estrutura
do instituto do tombamento, para mim, nesse momento, seria uma
aventura perigosíssima, e eu digo isso porque na área do meio ambiente
natural nós temos experimentado retrocessos históricos em razão de
tentativas de inovações legislativas. Por isso, temos que ter muito cuidado.
Eu, por exemplo, jamais questionaria alguma alteração no Decreto-Lei no
25/37, porque, para mim, ele é excelente, ele deveria ser tombado.
A questão é de implementação e aqui há outra reflexão que eu gostaria
de fazer com os senhores: Se pensarmos na letra “N” da sigla Iphan do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, perceberemos que
muitos confundem nacional com federal, mas são coisas absolutamente
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distintas. O Iphan é a autarquia incumbida da tutela dos bens federais? Sim,


é, mas ele é mais que isso, ele é o instituto que tem a designação legal para
tutelar o patrimônio em âmbito nacional, então, quando nós temos, por
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

exemplo, a questão da acessibilidade de bens culturais, que a lei prevê que


as intervenções dos bens de valor cultural devem respeitar as normativas do
Iphan, nós podemos ter o órgão estadual mais qualificado e mais importante
do país, nós podemos ter o órgão de tutela do patrimônio cultural mais
habilitado e mais qualificado do país em âmbito municipal, mas, se eles
descumprirem a normativa do Iphan, eles estão cometendo um ato ilícito,
porque o Iphan dita as normas gerais, nesse caso.
Infelizmente, o que temos percebido, e aqui eu faço essa análise
absolutamente sincera, por que eu acho que o objetivo desta Conferência é
a reflexão e a evolução, é que, às vezes, o Iphan fica circunscrito somente às
suas atribuições federais, e se esquece das suas atribuições nacionais. Por
exemplo, o próprio decreto que regulamenta o funcionamento do Iphan
diz que é atribuição do órgão coordenar a implementação e a avaliação da
política de preservação do patrimônio cultural brasileiro. Patrimônio
cultural brasileiro – não se fala somente em patrimônio cultural protegido
em âmbito federal – em consonância com as diretrizes do Ministério da
Cultura. E diz que é atribuição desse órgão, ainda: desenvolver modelos de
300 gestão da política de preservação do patrimônio cultural brasileiro de forma
articulada entre os entes públicos a sociedade civil e os organismos
internacionais.
Então, nós já temos aqui, na verdade, as bases para um sistema de
proteção do patrimônio cultural e o que precisamos, na verdade, é
implementá-la. Colocá-la para funcionar.
Acho que a estruturação desse sistema é importante, eu penso que há a
necessidade inclusive de avanços normativos, mas, que esses avanços
normativos devem ser os estritamente necessários para fazermos o sistema
funcionar bem. Quanto às grandes conquistas já alcançadas, nós temos de
ter muito cuidado em mexer com elas, porque nós corremos o risco de
perdê-las.
O importante, no meu ponto de vista, para se tratar no sistema nacional,
seria, primeiro, o estabelecimento de princípios e objetivos. Isso é
fundamental, porque as normas que serão traçadas como políticas básicas
de tutela do patrimônio cultural irão vincular a atividade legislativa, elas
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vincularão as atividades administrativas dos Estados e municípios e isso é
fundamental. No Sistema Nacional do Meio Ambiente – Sisnama nós
temos isso, no Sistema Nacional de Unidades de Conservação – Snuc nós
temos isso, na Lei de Bases do patrimônio cultural de Portugal, que eu acho
que é uma lei fantástica.
Em Minas Gerais, nós temos uma lei principiológica muito boa, é uma
pena que não funcione. E no próprio Estatuto da Cidade, o artigo 2º é
fantástico no que diz respeito a essas normas gerais. Isso aqui para mim é
fundamental: termos uma instância privilegiada, normativa e deliberativa.
Nós temos de ter o Conselho Nacional do Patrimônio Cultural a
semelhança do que existe no âmbito do meio ambiente natural com o
Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama, e esse órgão tem que
ter poder normativo. Nós não podemos ficar dependendo sempre de leis
para regular as questões pertinentes ao patrimônio cultural, então, se nós
tivermos uma norma, uma resolução desse Conselho regulamentar, a
questão do tráfego de veículos pesados nos núcleos históricos tombados, a
gente não precisaria judicializar cada uma dessas situações pelo país inteiro.
Se nós tivéssemos, como existe na Europa, um limite máximo de
vibração, em explosão principalmente, para extração mineral (e em Minas
Gerais eu mexo com isso todo dia), o que eu tenho que fazer aqui em Minas 301
Gerais? Utilizar normas regulamentares da Europa para defender o
patrimônio aqui em Minas, porque nós não temos um órgão normativo
que regulamenta qual é o limite máximo de ondas vibratórias que podemos
ter em decorrência da exploração de minerais, e nós temos dinamitação
para exploração mineral a 100 metros, 200 metros de bens que são
tombados em todos os níveis. E o que é fundamental nesse órgão: a
participação da sociedade, dos órgãos públicos e dos Ministérios Públicos.
Eu acho fundamentais as presenças do Ministério Público Federal e do
Ministério Público Estadual, pois esses órgãos têm a atribuição de velar pela
legalidade e de cuidar da efetivação das normas de defesa do patrimônio
cultural.
Nós já temos assento, inclusive, no Conama, órgão que tem funcionado
muito bem. Eu acredito que se nós tivermos uma instância democrática,
normativa e deliberativa, o patrimônio cultural brasileiro só tem a ganhar.
Outro ponto importante é evidenciar, no Sistema, a diversificação de
instrumentos protetivos, através de uma numeração exemplificativa mais
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extensa. Por exemplo, é difícil colocarmos na cabeça de quem trabalha com


meio ambiente natural, que o licenciamento ambiental é um instrumento
de defesa do patrimônio cultural e quando nós pegamos os processos de
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

licenciamento ambiental das grandes empresas, normalmente o patrimônio


cultural é considerado um detalhezinho, e aí nós não temos as medidas
compensatórias em prol do patrimônio cultural. Se nós tivéssemos a
reversão das medidas compensatórias que são fixadas no licenciamento
ambiental para aplicação do patrimônio cultural, não teríamos de ficar com
o pires na mão pedindo dinheiro como se fosse um favor e, na maioria das
vezes, os bens que são mais impactados, e eu falo pela experiência de Minas
Gerais, são os bens paisagísticos e os bens culturais. A concessão de
incentivos e benefícios fiscais e financeiros, além da outorga de chancelas,
dentre tantos outros é fundamental.
O Fundo Nacional de Patrimônio Cultural, para onde poderiam ser
canalizados recursos das multas, de taxas e de medidas compensatórias, é
outro ponto que me parece de fundamental importância. E eu falo sobre a
questão das taxas, porque, infelizmente – às vezes, pode até parecer estranho
um membro do MP falar isso –, os órgãos de defesa do patrimônio cultural
não cobram pelo serviço que prestam, então, às vezes, há análises que são
extremamente morosas no Iphan, análises de impacto ao patrimônio
302 arqueológico, por exemplo, que os arqueólogos têm que se debruçar e
demoram semanas e semanas para dar uma chancela ou não, e não tem
preço por isso. Penso que tem que cobrar sim, e esse recurso tem que ser
revertido ao patrimônio cultural.
Nós temos um Cadastro Técnico Nacional em que todos os profissionais
da área são cadastrados, para que os órgãos de defesa tenham um controle
disso. Nós temos conhecimento e isso é notório, que os trabalhos dos
conservadores, restauradores, arqueólogos etc. ainda não são reconhecidos
como profissões regulamentadas. Então, esse cadastro não pretende
regulamentar profissão, mas pretende saber quem tem habilitação mínima
para desenvolver aquelas funções. Eu acho isso muito importante. No
âmbito do meio ambiente natural isso já existe.
E, a última lâmina: a normatização explícita do poder de polícia e a
previsão de sanções. Se não houver previsão explícita desse poder de polícia
e das sanções administrativas, fica difícil trabalhar, porque, atualmente,
temos de judicializar praticamente todas as ameaças e lesões ao patrimônio
cultural, sendo que se o sistema funcionar bem, o Iphan tendo poder de
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


embargo, tendo o poder de autuação administrativa, de apreensão de
instrumentos, tudo fica mais fácil, tudo fica mais célere. Nós já temos uma
larga experiência no que diz respeito ao Ibama, por exemplo. Muitos fazem
crítica: “o Iphan não é polícia isso é coisa para a polícia federal”. Espera aí!
Um órgão que tem atribuição de tutela do patrimônio cultural? Se ele não
tiver poder de polícia, vai virar ONG, com todo respeito. Então, nós
precisamos, sim, do exercício do poder de polícia, porque em todo mundo
civilizado acontece dessa forma, então, a imposição das normas de maneira
cogente pelos órgãos que tem atribuição de aplicar é fundamental, e nós
temos que avançar nisso.
A questão da aplicação das multas do Decreto-Lei no 25/37 me parece
uma perda de energia e capacidade para se investir em outras coisas, por
que, primeiro, o Decreto-Lei no 25/37, na maioria das vezes, vincula multa
a valor de dano provocado no bem. Agora, se eu destruo esse microfone
aqui que tem valor histórico, quanto ele vale? Até eu descobrir o valor disso
aqui já está prescrita a pretensão de se impor a sanção administrativa, então,
nós temos que usar o que está previsto na Lei no 9.605/98 e no decreto que
a regulamenta, que traz valores fixos para aplicação dessas multas. Parece-
me muito mais lógico eu ter valores fixos, que podem ser agravados
conforme o caso concreto, e não multas previstas no valor do dano, pois a
coisa mais complexa que existe em direito de patrimônio cultural é 303
quantificar o dano. Então, parece-me que não é o melhor caminho, eu
trabalharia, realmente, com a aplicação da Lei no 9.605 e diria mais: se
houver a possibilidade em eventual normatização, principalmente para o
meu colega dr. Antônio Fernando, de uma eventual normatização no que
diz respeito ao Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, não vamos ficar
vinculados à Lei no 9.605, porque as ameaças que estão pairando e se
efetivando sobre as conquistas envolvendo o meio ambiente natural são
enormes, e eu acho que já chegou a hora do patrimônio cultural se descolar
do meio ambiente natural e ter seus regulamentos próprios.
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Vo l . 1

DESAFIOS DA REGULAÇÃO DO
PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Ana Cristina Bandeira Lins*

RESUMO
* Procuradora da O Brasil tem criado diversos instrumentos de tutela dos bens culturais
República e
coordenadora do
por normativa infralegal, na ausência de atividade legislativa nesta área. É
Grupo de Trabalho necessária a correta utilização dos instrumentos previstos na Constituição
Patrimônio Cultural
do Ministério
pela administração pública, cuja estrutura atual é ainda inadequada ao pleno
Público Federal exercício de suas atribuições. A organização da competência comum dos
três entes federativos ainda pende de disciplina. Urge a efetiva educação
patrimonial da sociedade brasileira, para que os bens culturais contem
efetivamente com sua colaboração para sua valorização e transmissão às
futuras gerações.

PALAVRAS-CHAVE
304 Patrimônio cultural, Tutela, Competência.

A Constituição de 1988 ampliou a tipologia de bens culturais integrantes


do Patrimônio Nacional e expressou, de forma exemplificativa, alguns dos
instrumentos de tutela de tais bens, indicando expressamente ao legislador
a necessidade de criação de outros mecanismos de proteção, conforme
disposto no parágrafo primeiro do artigo 216. Na ausência de atividade
legislativa, a Administração Pública Federal tem criado novos instrumentos
infralegais para cumprir seu dever constitucional, ainda que com estrutura
bastante diminuta em face de todas suas atribuições e mais, sem a devida
disciplina sobre a colaboração entre os entes federativos, para o exercício
da competência comum nessa matéria. Assim, surgiram: a chancela da
paisagem cultural; o sistema integrado de conhecimento e gestão, com seus
inventários de conhecimento; e os inventários e registro de bens imateriais.

CHANCELA DA PAISAGEM CULTURAL BRASILEIRA


A paisagem já era objeto de algumas convenções internacionais, em
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especial a Convenção dos países da América, de 1940, para a proteção das
belezas cênicas naturais e a da Unesco, de 1972, relativa à proteção do
patrimônio mundial, cultural e natural, ambas ratificadas pelo Brasil, ou
seja, integrantes de nosso ordenamento jurídico. É notável, porém, que,
apesar de a primeira estar vigente há quase 70 anos e disciplinar a criação
de parques nacionais e monumentos naturais para a proteção da paisagem,
com fins expressamente estéticos (e hoje absorvida pela Lei do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação), até hoje é pequena a simbiose entre
os órgãos de preservação do patrimônio cultural e os criadores e gestores
de parques e monumentos (hoje sob responsabilidade do Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio), e baixa a criação
de Unidades de Conservação – UC, com tais fins (o Brasil conta apenas
com dois monumentos naturais nacionais).
A paisagem cultural também era passível de salvaguarda por meio do
tombamento, conforme previsto no parágrafo 2° do art. 1°, do Decreto-
Lei nº 25, de 1937, cujo livro de tombo também foi raramente utilizado
para paisagens naturais.
O Iphan criou, em 30 de abril de 2009, através da Portaria nº 127, o
instituto da Chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Esse novo
instrumento permite a tutela de forma mais flexível que o tombamento ou 305
a Unidade de Conservação de proteção integral, compatibilizando a
valorização do bem cultural com a dinâmica da sociedade.
Faz-se necessário, entretanto, um bom julgamento do que deve ser
tombado ou inserido em UC e do que deve ser apenas chancelado, uma
vez que tal instrumento não dispõe dos mesmos mecanismos que garantam
a manutenção do bem tutelado. É de se registrar que certamente há uma
imensidão de paisagens que integram a nossa identidade, as quais são,
inclusive, reconhecidas e admiradas internacionalmente, mas que ainda
carecem de proteção, seja pelo tombamento ou pela criação de UC.
Aparentemente, nunca houve grande ênfase pelos órgãos de preservação na
tutela do patrimônio natural.

INVENTÁRIO DE CONHECIMENTO
O inventário, instrumento expressamente previsto no artigo 216 da
Constituição Federal, é o primeiro instrumento que a administração deveria
utilizar para a proteção dos bens culturais. Isso porque é pressuposto da
tutela o conhecimento dos bens a serem preservados e valorizados.
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Vo l . 1

Entretanto, o Iphan ainda não deu a devida atenção a tal instrumento.


Durante décadas, num esforço hercúleo, foram feitos inventários de bens
móveis, sobretudo daqueles integrados a bens imóveis tombados ou sacros,
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

abrangendo apenas alguns dos Estados federativos. Não há, ainda, um


sistema único de inventário que abranja o conjunto de bens culturais,
imóveis, móveis e imateriais, o qual permita a inserção de informações pelos
demais entes federativos ou por instituições culturais, como ocorre em
outros países.
Recentemente foi elaborado o Sistema Integrado de Conhecimento e
Gestão – SICG, visando à construção de “inventários de conhecimento”
para a formação de redes de patrimônios. Entretanto, o próprio Iphan
resiste em considerá-lo como um inventário em sentido estrito, sob alegação
de que é preciso haver um julgamento prévio sobre o valor cultural dos bens
inventariados. Há que se salientar, contudo, que o temor da administração
improcede. Ainda que um bem cultural não mereça a proteção prevista por
instrumentos mais restritos, como o tombamento ou registro, faz-se
necessária a distinção dos bens culturais em relação aos demais bens
existentes, mesmo que exclusivamente por meio do inventário. Isso porque
a catalogação, por si só, já amplia a divulgação do bem, além de permitir a
realização de investimento público na sua preservação e configurar em
306 importantes efeitos penais.
O dano a um bem comum, por exemplo, implica, segundo o Código
Penal, pena mínima de um mês de reclusão (o que pode levar, caso haja
condenação, à prescrição em um ano). Por outro lado, tratando-se de bem
cultural, a lei de crimes ambientais prevê a pena mínima de um ano de
reclusão (o que leva à prescrição, neste caso, em dois anos). E bastaria o
inventário do bem para considerá-lo objeto do crime qualificado. O próprio
senso comum já pede uma distinção entre a pena imposta pelo dano de um
quadro em um museu, cuja coleção não é tombada, por exemplo, em
relação à pena pelo dano a um objeto industrial qualquer, como uma
geladeira. Através do inventário seria preenchido o requisito de bem
tutelado administrativamente para configurar o crime mais gravoso, no caso
da coleção museal.
Pouco importa se tais inventários de conhecimento abranjam mais bens
que o devido, a priori, como receia o Iphan. É sempre possível realizar, a
qualquer tempo, a exclusão dos bens sem valor cultural do sistema,
permitindo o contínuo exercício do julgamento de valor cultural, o qual,
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inclusive, muda no tempo. Antes proteger excessivamente que facilitar a
deterioração de bens constitucionalmente protegidos de impossível
reconstituição.

REGISTRO E INVENTÁRIO DE BENS IMATERIAIS


Também em relação ao patrimônio imaterial, a administração pública se
adiantou ao legislador. Antes mesmo da conclusão e assinatura da
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, celebrada
em 17 de outubro de 2003, pela Unesco, foi editado no Brasil o Decreto
nº 3.551, de agosto de 2000, o qual dispõe sobre Inventários e Registro dos
bens culturais imateriais.
Mais uma vez, o instrumento utilizado é infralegal, ou seja, não cria
obrigações aos particulares, a não ser o fato de tais bens poderem ser
considerados administrativamente protegidos para fins criminais.
Há que atentar, também neste caso, para o instrumento escolhido pela
administração para a proteção dos bens imateriais. Como o inventário e
registro permitem uma tutela indireta do bem, qual seja, asseguram a
manutenção de sua memória, mas não a sobrevivência dele em si mesmo,
é importante que se utilize de outros instrumentos para que se garanta a
devida preservação dos bens materiais necessários à realização da 307
manifestação imaterial.
Assim, é preciso que a administração coordene o inventário e o registro
com outros instrumentos, tais como planos diretores, zoneamento
ambiental, criação de unidades de conservação, além de proceder à efetiva
demarcação das terras indígenas e reconhecimento dos territórios
remanescentes de quilombos. Só assim será possível a preservação do
próprio substrato das manifestações imateriais, sem o qual restaremos, em
breve, apenas com a memória indireta de tais bens.
Ademais, é necessária a avaliação precisa na escolha do registro, em
detrimento do tombamento, sobretudo no que tange a lugares, para a
garantia da perpetuação das manifestações imateriais a eles ligadas.

DA RESTRIÇÃO À EXPORTAÇÃO
No direito comparado, há quase quatro séculos já existem normativas
restritivas à exportação de bens culturais. Normativas de 1602, de Florença; de
1624, de Roma; de 1745, do Veneto criavam rol de obras de exportação vedada.
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Vo l . 1

Tal restrição foi incorporada como efeito do tombamento, mas também


é prevista em outros instrumentos legislativos nacionais, como as Leis nº
4.845/1965 e nº 5.471/1968. Por elas, todos os bens artísticos produzidos
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

no período monárquico e os bens bibliográficos produzidos até o século


XIX, independentemente de qualquer ato declaratório da administração,
são de exportação vedada.
Entende-se que certas espécies de bens, somadas a sua idade, já
comportam valor cultural suficiente para merecerem tal tutela pelo
ordenamento jurídico. Na época de construção dessas normas, considerou-
se o prazo aproximado de 70 anos para caracterizar tal limite.
Entretanto, diversamente das legislações estrangeiras, a nossa explicitou
o período histórico fixo da produção do bem, ao invés de simplesmente
impor a restrição àqueles com mais de 70 anos. Contudo, meio século se
passou sem que tal legislação fosse atualizada. E, assim como nos outros
casos referentes ao patrimônio cultural, o Congresso Nacional continua
inerte. Por outro lado, com a lentidão do processo de tombamento e a falta
de priorização dos bens móveis, tampouco encontram tais bens proteção
administrativa.
Isso tem acarretado na exportação de importantes exemplares ou coleções
308 de obras de arte do modernismo, por exemplo, momento artístico
fundamental à construção da identidade nacional. E a comunidade
brasileira está perdendo seus tesouros para os museus internacionais ou,
quando não, pior para coleções privadas.
Impõe-se, portanto, a provocação do Congresso para a revisão dessas leis, assim
como a atuação mais eficiente da administração, no tocante aos bens móveis.

SISTEMA NACIONAL
Outro importante ponto pendente de legislação desde o advento da
Constituição é a disciplina da competência comum entre União, Estados e
municípios, no que tange ao patrimônio cultural.
Novamente é no âmbito da administração pública, e não no Congresso
Nacional, que se dá a discussão sobre a criação de um Sistema Nacional de
Patrimônio Cultural.
Certamente, tal estrutura colaboraria para que as três esferas da
administração pública, com competência comum para a tutela dos bens
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


culturais, atuassem de forma coordenada e eficiente. A articulação com os
órgãos locais é de extrema importância, sobretudo porque são eles que estão
mais próximos dos bens culturais e melhor podem exercer o poder de polícia.
Um bom exemplo de articulação legal atualmente vigente é a legislação
municipal de São Paulo sobre tombamento, a qual prevê o tombamento de
ofício para todos os bens tombados na esfera estadual ou federal.
Por outro lado, tombamentos individuais e distintos pelas múltiplas
esferas federativas trazem dificuldades extras, como, por exemplo, a
necessidade de múltiplas autorizações para a intervenção no bem. Os órgãos
de tutela têm, por vezes, opiniões distintas sobre a melhor forma de fazê-
lo, causando impasses para o cidadão.
Um Sistema Nacional que disciplinasse tais conflitos permitiria, ademais,
vários outros benefícios. Os atos de declaração do valor cultural poderiam
ser emitidos por um dos entes com efeitos já previstos aos demais, de forma
a criar uma rede, ao invés de uma superposição da proteção. As sanções
administrativas também poderiam ser únicas e baseadas na mesma norma
nacional, evitando tripla sanção. O próprio inventário poderia ser único
nacional, com indicação da esfera de proteção. A publicação de tal
inventário na internet, por exemplo, permitiria a ampla difusão dos bens
para toda a sociedade brasileira, ampliando as fronteiras locais dos bens hoje 309
protegidos pelos municípios.
Seria fundamental, portanto, a implementação de um sistema que
coordenasse os diversos entes federativos no exercício dessa atribuição
comum. Discute-se se tal sistema deveria ser autônomo ou se deveria ser um
subsistema dentro do Sistema Nacional do Meio Ambiente – Sisnama ou
dentro do Sistema Nacional de Cultura – SNC, previsto em projeto de lei
em trâmite no Congresso, por iniciativa do Poder Executivo.
A ampla maioria da doutrina e jurisprudência brasileira tende a classificar
o patrimônio cultural como integrante do meio ambiente – chamado Meio
Ambiente Cultural. Do mesmo modo, em termos de legislação
infraconstitucional, é na lei de crimes ambientais que há tipos específicos
de dano do patrimônio cultural.
A tradição jurídica italiana vê de forma inversa. Consideram que o meio
ambiente é que faz parte do patrimônio cultural. É interessante, nesse
sentido, o exame do Código Florestal Nacional (Lei nº 4.771, de 15 de
setembro de 1965), comparado com a Legge Galasso (Lei nº 431, de 8 de
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Vo l . 1

agosto de 1985, da Itália). Ambos criam a proteção de certos bens


geográficos (no Brasil são chamadas de Áreas de Proteção Permanente –
APP), como topos de morro, margens de rios e lagos, de forma bastante
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

semelhante. Mas, enquanto o fundamento da proteção no Brasil se dá pela


manutenção dos recursos ambientais, na Itália o fundamento é a proteção
da beleza cênica da paisagem – apesar de as duas leis protegerem
praticamente os mesmos objetos.
O que parece evidente é a extrema relação entre os dois tipos de bens. É
difícil desassociar um do outro, mas também é difícil subordinar um ao
outro. No nosso sistema normativo, tanto o patrimônio cultural como o
meio ambiente têm previsão constitucional em capítulos próprios, o que, a
princípio, mostraria a equivalência de status e distinção de objetos. Mas há
que se salientar que mesmo sítios naturais, como os sítios paleontológicos
e ecológicos, estão previstos no capítulo do Patrimônio Cultural. Isso
porque a proteção do meio ambiente pode se dar tanto pelo valor intrínseco
da natureza quanto pelo significado cultural que ela representa.
E a discussão sobre o paralelismo, subordinação ou intersecção do
patrimônio cultural com o ambiental não é um problema meramente
acadêmico. Um exemplo disso é aplicabilidade, ou não, das multas previstas
310
pela Política Nacional do Meio Ambiente e a relação dessa normativa com
as multas previstas no Decreto-Lei nº 25/37. Posicionando-se pela não
subordinação de um bem sobre outro, mas sim por uma intrínseca relação
entre a tutela ambiental e patrimonial, há que se concluir que apenas as
sanções idênticas poderiam ser consideradas revogadas, sendo ambas as
normas aplicáveis. Justifica-se, sob mesmo fundamento, a comunicabilidade
dos princípios jurídicos de um ao outro campo, como efetivamente pregado
pela doutrina e exercido pela jurisprudência.
Se o patrimônio cultural está ligado tanto ao meio ambiente (em especial
doutrinariamente) como à cultura, também seria juridicamente possível a
inserção de um Sistema Nacional de Patrimônio Cultural tanto no Sisnama
como no SNC. Trata-se, portanto, de escolha política. E nesse sentido, há
que se considerar a dificuldade de normatização dessa matéria pelo
Congresso Nacional, além da estrutura já existente e em pleno
funcionamento há mais de vinte anos do Sisnama, com o Conselho
Nacional de Meio Ambiente – Conama como órgão regulatório.
Não se pode ignorar, igualmente, o esforço do governo em reestruturar
os órgãos do patrimônio. Nos últimos anos houve um novo impulso, ainda
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


longe, porém, da pujança passada do Iphan. Além dos novos instrumentos
de tutela explicitados aqui, cito também a efetivação do cadastro de
antiquários e leiloeiros, já previsto desde 1937, pelo Decreto-Lei nº 25 e
implementado recentemente pela instrução normativa nº 01, de 11 de
junho de 2007. A própria administração começa a se reaparelhar, seja
através dos recentes concursos para preenchimento de cargos vagos no
Iphan, depois de décadas sem reposição de seus funcionários; seja através de
criação de instituto próprio para a administração dos museus, o Ibram; seja
pela disponibilização de recursos financeiros para bens culturais, como se
deu com o Programa Monumenta e o Pronac. Mas, é preciso reconhecer
que há muito mais para ser feito.
Entretanto, a criação de um novo sistema não parece ser prioritária ao
Congresso. E, ainda que a eventual lei fosse aprovada, seria necessária uma
mudança estrutural dos órgãos. Por isso, talvez fosse interessante, no
presente momento político, a introdução do Iphan no Sisnama, com a
previsão de assento no Conama. Integrar um sistema já em pleno
funcionamento e com reconhecimento social parece a solução mais
acertada. Ademais, o próprio decreto que regulamenta as atividades do
Iphan já o coloca como órgão central nacional da Política do Patrimônio
Cultural. Do mesmo modo, o Conama conta com representantes da União,
Estados e municípios, os quais poderiam propor a melhor forma de integrar 311
as ações realizadas pelas três esferas federativas.

DA NECESSÁRIA EDUCAÇÃO PATRIMONIAL


Chama atenção que os recentes instrumentos explicitados sejam criados
por normas infralegais, já que se destinam à coletividade e não apenas à
orientação da administração especializada. Isso evidencia, por um lado, a
preocupação dessa administração com a tutela do patrimônio cultural, a
qual se encontra em descompasso com a atual inércia do Poder Legislativo.
A administração usa, então, da normativa de sua atribuição, a qual,
entretanto, não tem poder de impor deveres a particulares.
Tal inércia legislativa denota que a temática do patrimônio ainda não
voltou à cena política como mereceria. Tratando-se de bens essenciais à
manutenção da identidade dos diversos povos do Brasil, direito
fundamental do ser humano, é ainda estarrecedor assistir ao descaso do
Poder Legislativo, o qual apenas reflete, em parte, o sentimento da própria
sociedade brasileira com relação à cultura.
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Vo l . 1

A ausência de educação patrimonial nas escolas tampouco ajuda a mudar


tal situação. Apesar de a Lei de Diretrizes e Bases colocar como um dos
objetivos do ensino fundamental a formação básica do cidadão, incluindo
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

nela a compreensão das artes e dos valores em que se fundamenta a


sociedade, o sistema educacional ainda não incorporou devidamente o
estudo do patrimônio cultural nem como matriz de nossos valores, nem
como o conjunto de nossa autêntica expressão artística.
É preciso integrar o conhecimento do patrimônio à formação escolar,
para que se formem efetivamente cidadãos plenos, capazes de se
autorreconhecerem e se alimentarem culturalmente. Só assim eles
colaborarão diretamente para a preservação do patrimônio e exigirão de
seus representantes políticos o cumprimento de suas obrigações, para o
pleno exercício dos direitos culturais, fundamentais ao ser humano.

CONCLUSÃO
Apesar dos mais de vinte anos do advento da Constituição Federal, os
marcos legais existentes sobre o patrimônio cultural ainda não abrangem
todos os mecanismos necessários à efetiva tutela e valorização dos bens que
o integram. Além de novas leis, é fundamental a adequada estruturação dos
312 órgãos de preservação da administração pública, com a disponibilização de
recursos humanos e financeiros condizentes com suas amplas atribuições.
Igualmente, faz-se necessária a implantação de um Sistema Nacional de
Patrimônio Cultural, integrante ou não ao Sisnama ou ao SNC, para tornar
a tutela mais eficaz. Urge a efetiva educação patrimonial da sociedade, pois,
sem a valorização dos bens culturais pelos cidadãos, não haverá governo
capaz de assegurar sua preservação e transmissão às futuras gerações.
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P AT R I M Ô N I O N AT U R A L E
C U LT U R A L , B E N S J U R Í D I C O S DE
N AT U R E Z A D I S T I N TA
Carlos Magno de Souza Paiva*

RESUMO
Este trabalho pretende apresentar um panorama a respeito das * Professor de direito
peculiaridades brasileiras relacionadas à tutela jurídica do patrimônio público da
Universidade Federal
cultural edificado. Desde a forma de ocupação dos povos pré-colombianos, de Ouro Preto e
passando pelas características da urbanização portuguesa, chegando aos coordenador do
Núcleo de Pesquisa
atuais instrumentos de política urbana e ambiental. O Brasil não pode em Direito do
simplesmente importar modelos de tutela pensados para realidades tão Patrimônio Cultural
do Departamento de
distintas, seja com relação à estrutura urbana edificada, seja em razão das Direito da
próprias circunstâncias culturais e compreensão da ideia de pertencimento. Universidade Federal
de Ouro Preto

PALAVRAS-CHAVE
313
Patrimônio natural, Bens jurídicos, Tutela.

PATRIMÔNIO NATURAL E PATRIMÔNIO CULTURAL, BENS


JURÍDICOS DE NATUREZA DISTINTA
Desde a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
– Sphan no Brasil, no início do século XX, a questão do patrimônio cultural
tem sido consideravelmente estudada e divulgada por especialistas das áreas
de história, arquitetura, sociologia, antropologia, arqueologia, entre outras
ciências sociais, especialmente. No entanto, apesar da legislação de proteção aos
bens culturais ser contemporânea à criação do próprio Sphan (atual Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan), os profissionais da área
jurídica pouco se debruçaram sobre a temática do patrimônio cultural e os
seus instrumentos legais de proteção e valorização. Particularmente no Brasil,
a maioria dos artigos científicos produzidos refere-se aos bens culturais como
um apêndice direto do meio ambiente em seu núcleo próprio, como se aqueles
em nada divergissem dos bens naturais, e esse é um dos primeiros equívocos
apontados no país quanto ao tratamento jurídico da matéria.
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Vo l . 1

O Brasil, por suas características, não legou às atuais gerações,


edificações ou mesmo ruínas anteriores à presença europeia em nossas
terras. Os povos indígenas pré-colombianos eram, em sua quase totalidade,
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

nômades e coletores, ambientalizados com a densa floresta e sem a


preocupação ou necessidade de fixar pontos específicos de ocupação e
consequentemente de edificação. A “natureza” sempre foi mais presente
na formação do personagem brasileiro, seja pela sua exuberância e
abundância tropical, seja pela mística atribuída às suas formas. O fato é que
a nomadismo indígena pré-colombiano, a despreocupação portuguesa com
a urbanização das terras além-mar e a extensão dos recursos naturais em
nosso país, acabou por influenciar e sugar todo o esforço de compreensão
do objeto “meio ambiente”, e nestes termos, de modo secundário, surge a
possibilidade de tutela também do meio ambiente cultural, ou seja, de
modo apenas residual.
Somos o país da dança, o país do folclore, o país da música, mas
definitivamente não somos o país dos bens culturais edificados, não por
não haver o que proteger, mas por não compreendermos a real necessidade
de tutela dos bens edificados como elementos indispensáveis para a
compreensão de nós mesmos como indivíduos e como membros de uma
coletividade cada vez mais desfocada, em face do rolo compressor da
314 globalização em nossos dias. Nos dizeres do poeta argentino Manuel
Bernardes, que em 1910, constatando o estado de ruína e decadência da
cidade de Ouro Preto, que já não era mais a capital de Minas Gerais,
sentencia a situação e a relação com os nossos bens culturais ao dizer “é
uma angústia”.
Posto isso, uma primeira peculiaridade brasileira, em face da tutela
jurídica dos bens culturais, diz respeito à amplitude do objeto de proteção
do atual direito ambiental no país. Poderíamos, no leque de bens jurídicos
aqui resguardados, alocar também os bens construídos ou não? O que se
percebe, de modo geral, considerando a doutrina pátria, salvo raríssimas
exceções – e para já podemos nos referir aos brilhantes trabalhos dos
professores Marcos Paulo de Souza Miranda e Maria Coeli Simões Pires –,
é que os bens culturais são tratados de forma indistinta pelos autores
dedicados ao tema, que, em geral, enxertam em suas obras de direito
ambiental algum capítulo ou tópico dedicado ao “patrimônio artificial”
como se a ele fossem prontamente aplicáveis todos os institutos de direito
ambiental propriamente ditos.
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


Quanto a esse ponto, o tratamento indiferenciado entre os bens naturais
e os bens culturais, a própria Constituição de 1988 relaciona de modo
confuso a matéria quando se refere ao conceito de Patrimônio Cultural.
Reza o Art. 216, da CF:

Art. 216. Constitui patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza


material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem:
[...]
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (grifo nosso)

Ora, uma coisa é a visão ampla que se tem do corpus integrante do


“patrimônio cultural” e que envolve tanto as concepções de bem natural
como de bem cultural; outra é pensar que mesmo os “elementos
ecológicos” poderiam integrar o patrimônio cultural brasileiro. Sobre esse
aspecto, entendemos que os bens naturais podem, sim, compor o âmbito
do patrimônio cultural a partir de três aspectos distintos: no primeiro deles
fala das formações naturais que têm significado histórico para coletividade.
Seria o caso do Monte Pascoal, na Bahia, que foi o primeiro ponto de terra 315
avistado pelos colonizadores portugueses. Trata-se de um elemento natural,
o pico, mas com um atributo histórico que o destaca. Um segundo aspecto
refere-se às diferentes referências estéticas de apreciação humana, afinal,
quando o indivíduo classifica determinada paisagem natural como bonita,
está atribuindo a ela um juízo de valor cultural individual ou coletivo que,
novamente, demonstra essa indissociação entre o bem natural e os aspectos
culturais que o cercam. Por fim, podemos falar de um terceiro ponto de
relevo e que envolve a compreensão dos bens naturais como componentes
do patrimônio cultural – quando aqueles compõem, completam, se
incorporam ao elemento cultural edificado formando um só objeto de
tutela. Como exemplo, poderíamos nos referir ao cenário urbano da cidade
de Ouro Preto que somente ganha sentido quando observados os
elementos naturais: vales, montanhas, picos que o circundam. Posto isso,
conclui-se, de fato, que há situações em que esses dois elementos, natureza
e cultura, se fundem de modo a criar, aparentemente, um só objeto de
tutela jurídica.
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Vo l . 1

Ocorre que a Constituição, quando se refere aos “elementos ecológicos”


como componentes do patrimônio cultural, está lidando com um aspecto
totalmente alienígena a este, mesmo considerando a concepção alargada da
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

noção de patrimônio cultural. Os elementos ecológicos referem-se às


relações entre o animal e o seu ambiente orgânico e inorgânico, incluindo
suas relações, amistosas ou não, com as plantas e animais que tenham com
ele contato direto ou indireto. Trata-se de complexas inter-relações,
chamadas por Darwin de condições da luta pela vida. Os “elementos
ecológicos” representam assunto próprio da biologia, das ciências naturais
e em nada se assemelham à proposta de inteiração cultura-ambiente
justificadora da noção ampla de patrimônio cultural. Portanto, a partir
daqui, começamos a visualizar os riscos de uma compreensão indistinta e
demasiadamente ampliada dos bens culturais, confundindo objetos de
natureza tão distinta.
A própria tutela jurídica do patrimônio cultural fica comprometida à
medida que se desconhece a precisão do objeto de proteção desse ramo do
direito.
Mesmo nas hipóteses relatadas acima, quando é possível pensar a junção
de natureza e bens culturais, há que se ter a devida cautela quando o assunto
316 envolver a proteção jurídica desses bens de maneira uníssona. Considerando
o aspecto prático do tema, como imaginar um bem natural (em seu núcleo
próprio), cuja efetiva tutela carece de um conhecimento específico e técnico
na área, com a responsabilidade direta de proteção atribuída a um órgão de
tutela e fomento à cultura? Não é oportuno, e tão pouco adequado, pensar
o dever pela gestão de uma reserva ecológica atribuído a um órgão próprio
ligado à cultura, entretanto, mesmo assim, não raras vezes, vê-se a realização
do tombamento, um instituto próprio para a salvaguarda dos bens culturais,
cujo procedimento é todo coordenado pelo Iphan e pelo Ministério da
Cultura, utilizado de modo indiscriminado em favor de áreas naturais.
Isso se deve a um fenômeno que ousamos chamar de “prostituição do
tombamento”. A expressão que, em princípio, se anuncia demasiada forte,
na verdade, é um alerta para uma prática que tem se tornado comum em
nosso país.
O tombamento, apesar de suas deficiências, que serão mais bem
exploradas em outra oportunidade, ainda é conhecido como o principal
instrumento de tutela do patrimônio cultural, e muito mais forte que seus
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


efeitos jurídicos são os efeitos sociais do instituto. O bem material que passa
a ser tombado ganha significativa projeção social. É como se ativássemos a
curiosidade para um bem que, por alguma razão, mereceu ser declarado
como de relevância cultural. O poder de marketing que envolve o
tombamento, nesses casos, é o que o torna um instrumento tanto mais
eficaz, até mesmo, que seus resultados jurídicos. Não se admite a ofensa aos
bens previamente tombados pela autoridade pública, especialmente em
razão do impacto social que isso poderia causar e menos em razão das
consequências jurídicas do feito danoso. Com isso, gestores públicos
aproveitam da situação para promover o tombamento de bens alheios ao
elemento cultural que seria próprio de coordenação pelos órgãos de tutela
ao patrimônio cultural no país.
É comum haver o tombamento de áreas florestais, redutos marinhos e
até mesmo de espécies animais, quando, na verdade, existem instrumentos
jurídicos próprios e, teoricamente, mais eficazes de tutela desses bens. A
legislação que estabelece a Política Nacional de Meio Ambiente elenca
numerosas possibilidades e institutos específicos de tutela dos bens naturais,
especificando, inclusive, a quem incumbe o ônus público ou privado pela
conservação e valorização desses elementos naturais. Apenas a título de
exemplo pode-se mencionar o zoneamento ambiental, as unidades de
317
proteção integral ou mesmo as unidades de uso sustentável.
Não é possível imaginar um modelo eficaz de tutela, tanto dos bens
naturais, como dos bens culturais, partindo-se de pressupostos equivocados,
tais como a desvirtuação de um instrumento jurídico, pensado para um
determinado fim, em razão do seu efeito publicitário. Ora, promover o
tombamento de um reduto silvestre, pois isso chama mais a atenção que
estabelecer ali uma unidade de conservação, pode até trazer algum efeito
prático em razão de uma maior visibilidade pública, mas, por outro lado,
se pensarmos bem, estaremos transferindo à administração de um órgão de
tutela e fomento à cultura um bem jurídico, que demandaria outro nível de
conhecimento técnico e especializado para se estabelecer uma tutela eficaz.
Mesmo havendo as possibilidades de cooperação entre os diferentes órgãos
públicos preocupados em defender os direitos difusos, é muito estranho
pensar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais –
Iepha responsável direto pela proteção de um determinado ecossistema.
Para sintetizar todo o raciocínio desenvolvido até agora, veja o que se
passa, hoje, no Brasil, com relação à Lei de Crimes Ambientais (Lei no
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Vo l . 1

9.605, de 12 de fevereiro de 1998). Como se sabe, essa lei estabelece os


crimes e as penas aplicáveis às condutas e atividades danosas ao meio
ambiente – natural e cultural. Tal legislação é relativamente nova em nosso
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

país e desde a sua publicação suscitou forte crítica por não diferenciar as
condutas de alto grau de “lesividade” ambiental daquelas que envolvem
também um dano ao meio ambiente, mas que implicam a subsistência
imediata do agente ou de sua família. Ora, como pensar que o pequeno
lavrador que desmata certa área para a subsistência imediata sua e de sua
família pode incorrer no mesmo crime que aquele latifundiário que devasta
imensas áreas de floresta para abrir pastagens? Considerando esse aspecto,
em 2006 houve, então, a alteração da Lei de Crimes Ambientais (alterada
pela Lei no11.284, de 2 de março de 2006), que passou a contar com o
artigo 50-A. Esse novo dispositivo estabelece, em seu § 1º, ao elencar as
hipóteses de dano às florestas plantadas ou nativas, que “não constitui
crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata
pessoal do agente ou de sua família”.
Nesse aspecto, acertadamente agiu o legislador federal ao promover tal
mudança normativa e, desse modo, ao aproximar mais o direito da realidade
rural e ambiental brasileira, que ainda não pode se dar ao luxo de adotar
medidas mais radicais, em favor do meio ambiente natural, sem que isso
318 afete, entretanto, o sustento de milhões de brasileiros que dependem desse
recurso para a sua sobrevivência.
Ocorre que, como dito anteriormente, a lei brasileira de Crimes
Ambientais é aplicável tanto aos crimes cometidos contra os bens naturais
como aos bens culturais. Nessa lei, a seção IV trata especificamente dos
crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural e o art. 62
especifica:

Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar;


I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão
judicial;
II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação
científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão
judicial:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses a um
ano de detenção, sem prejuízo da multa.
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Repare que a conduta típica elencada no caput do art. 62 fala em
“deteriorar” bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou
decisão judicial. Ora, “deteriorar” é qualquer ato que cause desgaste, mesmo
que um desgaste natural das coisas materiais. Não é difícil imaginar que o
simples uso corrente de um bem cultural, especialmente os bens edificados,
cause, evidentemente, a sua deterioração. Posto isso, caímos em uma
situação análoga ao do pequeno agricultor que explora o meio ambiente
para a sua subsistência imediata e de sua família. Não se pode comparar a
conduta daquele que reside em um bem cultural e o deteriora pelo simples
fato de ali residir e a conduta de algumas grandes corporações imobiliárias
dispostas a demolir determinado edifício com valor cultural, conforme
melhor convier à especulação imobiliária.
O problema todo que se depara aqui e que acaba por envolver a
confusão de tratamento jurídico, que perpassa os bens naturais e os bens
culturais, é que a preocupação do legislador federal com a situação do
agricultor de subsistência acabou por motivar a alteração da lei de crimes
ambientais para excluir a punibilidade daqueles que convivem e dependem
dos recursos ambientais para a sua manutenção imediata. No entanto,
sendo essa a mesma lei que estabelece as condutas criminosas atentadoras
ao patrimônio cultural, não se pronunciou o órgão legiferante a despeito
das situações análogas daqueles que vivem em bens imóveis privados com 319
relevante valor cultural e que o deterioram pelo seu uso próprio
simplesmente, ou então por não possuírem os recursos suficientes para
promover as obras necessárias de conservação. É importante destacar o
parágrafo único do art. 62 que estabelece, inclusive, a modalidade culposa
para o crime em pauta, ou seja, o excesso de preocupação com os bens
naturais e os agentes a eles envolvidos, bens estes que dividem espaço com
os bens culturais na mesma legislação penal, acabou por prejudicar a
compreensão das hipóteses punitivas decorrentes de danos dolosos ou
culposos ao Patrimônio Cultural.
Esse exemplo ilustra bem a necessidade de se pensar distintamente esses
dois objetos jurídicos, entretanto, uma das principais distinções entre os
bens naturais e os bens culturais – e que diz respeito à impossibilidade do
seu tratamento jurídico comum – diz respeito ao aspecto axiológico
atribuído a cada um deles. Os bens naturais, assim considerados aqueles
alheios à intervenção física do ser humano, são invaloráveis, por não ser
possível atribuir maior ou menor valor a uma espécie animal ou a
determinadas espécies de plantas, quando em seu meio original. Por outro
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Vo l . 1

lado, ao nos referirmos aos bens culturais, estes devem, necessariamente,


ser valorados. Ora, não são todos os bens culturais que são dignos de serem
tutelados; a coletividade precisa valorar quais têm maior relevância, quais
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

merecem uma maior ou, mesmo, uma menor tutela. Bom que se diga que
não se trata de eleger uma cultura superior em detrimento de outra, implica
dizer, isso sim, que somente alguns bens culturais são eleitos como relevantes
para determinada cultura, enquanto, em se tratando dos bens naturais, esse
juízo de valor não se aplica, razão pela qual os elementos culturais e os
naturais têm natureza absolutamente distintas e precisam ser levadas em
consideração no momento de se pensarem os respectivos modelos de tutela
e valorização político-jurídico.
Concluindo, aproveita-se esta breve exposição, que ainda merece maior
reflexão e desenvolvimento futuros, para enfatizar a crítica àqueles que
sugerem que o patrimônio cultural compreende e pode ser trabalhado tal
como o patrimônio natural em nosso país. Talvez essa seja a forma mais
cômoda e conveniente de lidar com um assunto, que como dito, nunca foi
prioridade entre nós (os bens culturais edificados), mas, com certeza, não
se trata da maneira mais eficaz de salvaguardá-los. Daí decorre o discurso
dos acomodados: “antes de querermos o ótimo, precisamos querer o bom”.
No entanto, nos moldes em que se desenha o tratamento jurídico da
320 matéria, não estamos sequer próximos do “bom” e ainda que estivéssemos,
o patrimônio cultural edificado, por tudo o que deveria representar para o
povo brasileiro, merece e precisa ser tutelado ao nível do excelente.
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O E X E RC Í C I O D A C O M P E T Ê N C I A
CONSTITUCIONAL COMUM E
C O N C O R R E N T E N A P R E S E RVA Ç Ã O
D O PAT R I M Ô N I O C U LT U R A L

Fabiana Santos Dantas*

RESUMO
O texto abre a discussão em torno da necessidade de tornar eficaz o * Procuradora
Federal / Iphan
exercício da competência, comum e concorrente, de modo a maximizar a
proteção do patrimônio cultural. Reflete sobre a legalidade da atuação do
Estado na preservação dos bens culturais, já que depende de competências
legislativas e administrativas. Aponta como maior desafio a criação de um
sistema de preservação que congrega entes autônomos, com legislação
diferenciada e atribuições administrativas comuns. Destaca que muitos
municípios já têm estruturas de proteção instaladas e mecanismos adotados,
como a Lei Robin Wood que, embora não tenha abrangência nacional, é 321
um modelo de instrumento não previsto na legislação federal. E pergunta:
como é que vamos conseguir conciliar esses institutos tão diferentes, tão
criativos, tão bons e que funcionam?

PALAVRAS-CHAVE
Competências, Legislação, Preservação.

Minha tarefa é falar sobre competências comuns e concorrentes, na


preservação do patrimônio cultural. O que me parece que se quer refletir
nesse momento é exatamente a maneira de implementarmos ou tornarmos
eficazes essas competências comuns e concorrentes, de modo que
consigamos juntar esforços e recursos, maximizando a proteção do
patrimônio cultural. Assim, quando comecei a pensar sobre a
contextualização desse assunto, pensei na legalidade da atuação do Estado
na preservação dos bens culturais, a qual depende da criação do arcabouço
legislativo e da definição das competências administrativas. Então, nós
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estamos falando, basicamente, de competências legislativas e administrativas


e nunca podemos esquecer que o que pretendemos aqui é criar um sistema
ou implementar um sistema que já existe de preservação total do
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

patrimônio. Por que eu digo isso?


Porque o conceito jurídico de patrimônio cultural é mais restrito que o
conceito antropológico, que o conceito sociológico; e o conceito jurídico,
para fim de proteção estatal, é mais restrito ainda, embora o artigo 216 da
Constituição Federal tenha uma amplitude que nos permite pensar de
forma mais ampla do que o Decreto-Lei no 25/1937 fazia; nós ainda
estamos falando de estatal, então, quando o Estado não reconhece
determinada manifestação como patrimônio, ela não vai ter a realização
estatal, vou dar um exemplo: o funk é patrimônio cultural?
Claro que é patrimônio cultural, pois é uma manifestação cultural
complexa, que envolve música, letra, literatura, dança, aspectos cênicos,
vestimentas, linguagem; o funk é uma manifestação cultural; é patrimônio
cultural do Brasil. Agora, se é patrimônio para fins de proteção estatal,
nunca vi nenhuma manifestação com o fim de registrar, nem tombar os
locais onde ocorre o funk. Então, na federação brasileira, não existe uma
hierarquia jurídica entre os entes da federação.
322 A estrutura federativa do nosso país pressupõe uma autonomia legislativa
ao governo que as compõe. Então, mesmo que tenhamos uma formatação
de normas gerais, essas normas nunca poderão violar a autonomia dos
estados-membros, dos municípios e nem ampliar demais a atuação da
União. O nosso desafio é conceber um sistema de preservação que
congregue entes autônomos, com legislação diferenciada e atribuições
administrativas comuns. A maior parte dos Estados já tem um sistema de
proteção cultural, por meio de legislação abrangente que, em muitos casos,
envolve outras áreas como educação e esportes. Alguns municípios já
possuem esse sistema, e nós, então, já temos uma estrutura de proteção do
patrimônio instalada, obedecendo a legislações diferentes, com critérios
diferentes. Nós temos hoje inúmeros instrumentos não previstos na
legislação federal, aqui em Minas temos um exemplo com a Lei Robin
Wood, uma ideia maravilhosa que não é de abrangência nacional. Como é
que vamos conseguir conciliar esses institutos tão diferentes e tão criativos
e tão bons e que funcionam?
A competência concorrente da constituição é legislativa. É, assim,
basicamente uma competência para criar leis. Existem matérias que os
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


Estados têm atribuição de formular leis pertinentes ao seu âmbito de atuação.
E há referências explícitas à preservação do patrimônio e matérias que
fazem referência a elas. Observem: a legislação concorrente tem matérias
específicas, mas existem outras áreas que, mesmo que não estejam explícitas,
demandam uma legislação concorrente. O que a Constituição diz
explicitamente, no artigo 24, inciso sete, proteção do patrimônio histórico,
cultural, artístico, paisagístico, objeto de legislação concorrente; inciso oito,
quanto à responsabilidade por dano, então essa responsabilidade do
concorrente, não é apenas administrativa, porque em matéria civil e penal,
a legislação é privativa da união. Ou entendemos esse artigo com exceção
do artigo 22 da Constituição que trata da competência privativa, ou então
entendemos que é uma responsabilidade só administrativa. Na prática isso
faz muita diferença, imaginem se o entendimento é que existe uma
legislação concorrente do Estado para fazer norma de responsabilidade
penal, daqui a pouco nós teríamos nossos Estados, criando normas penais
sobre violação do patrimônio cultural que hoje me parece que não é
possível, seria mais adequado, seria a responsabilidade administrativa. O
inciso nove fala da educação, cultura e esporte, então, nós teríamos,
também, a possibilidade de concorrência da legislação em termos de
educação e cultura.
323
Percebam que temos um problema sério na nossa Constituição – o fato
de ela não obedecer a uma categorização suficiente. Veja, por exemplo: o
inciso sete fala de patrimônio histórico, cultural, artístico e paisagístico,
mas, no oito fala de estético. Como fica, então, essa situação: quando vamos
falar sobre dano estético, a legislação fala em concorrente; essa falta de
categorização correta (até por falta de definição dos próprios conceitos que
o patrimônio cultural abrange; na prática, isso é muito complicado) nos
deixa quase sem parâmetro para definir as coisas. Cito outro exemplo: a
palavra cultura, na Constituição, é usada de várias maneiras diferentes; é
utilizada como cultura em geral, como conhecemos, e no sentido
antropológico do termo, mas, é utilizada, também, como forma de cultivo.
Lidamos com palavras que são multifocais, que têm mais de um
significado. Qual é o nosso desafio? Não existe uma norma federal geral
que sistematize os institutos, instrumentos, metodologias, procedimentos,
utilizados na preservação. O que falta, na verdade, é o delineamento da
política nacional de preservação, que é exatamente: o que apareceria, onde
apareceriam os princípios, as metas, os objetivos, tal como existe na política
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Vo l . 1

nacional do meio ambiente. Hoje, os Estados exercem uma competência


legislativa plena ou semiplena, porque não existem normas gerais, e o
resultado é a existência de normas diversas e, consequentemente, critérios
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

diferentes de atuação. Às vezes, vemos isso no âmbito do próprio município,


no delineamento de áreas que serão tombadas. Em Recife, por exemplo,
tem uma praça que será tombada, e a área do Iphan é bem maior que a área
da Prefeitura no polígono do tombamento, e isso causa uma confusão
tremenda nas cabeças dos contribuintes afetados. Eles não sabem por que
o Iphan tem um polígono maior de tombamento e a Prefeitura um menor.
A competência comum é material; não se trata de fazer lei, mas de cumpri-
la, para a realização de ações em áreas prioritárias, que são tão importantes e
para as quais a Constituição exige uma concentração de esforços das entidades
da federação. Quando aparece uma competência comum na Constituição, a
finalidade é que todos compartilhem e conjuguem esforços para atingir o
melhor resultado possível naquela ação; temos aqui as normas que tratam da
competência comum em matéria de preservação do patrimônio cultural:
conservar um patrimônio público, e eu coloco um adendo: porque boa parte
dos monumentos do país são bens públicos.
Proteger documentos; obras; outros bens de valor artístico, cultural; os
324
monumentos; as paisagens naturais notáveis; os sítios arqueológicos (uma
observação: a competência para a preservação de sítio arqueológico deve ser
comum. Entretanto, a legislação não prevê dessa forma; compete somente
ao Governo Federal esta proteção). Não existe legislação concorrente; esse
é um caso que demanda do estado-membro a utilização de uma norma
federal para proteger um bem que é da União. Porque o artigo que trata da
competência privativa da União fala em jazidas, e jazidas, quaisquer que
sejam os tipos, podem ser bens arqueológicos, então, nesse caso, existe uma
competência comum, ou seja, o estado-membro, o Distrito Federal teria,
também, que preservar o sítio arqueológico, mas ele não tem uma norma
própria para isso, como já disse, ele teria que usar a norma federal. Faço
essa observação porque existe uma enorme polêmica na doutrina sob a
possibilidade de um ente da legislação aplicar a legislação de outro para a
preservação. Um exemplo: o estado-membro pode utilizar uma norma
federal para a preservação? A federação pode usar uma norma estadual para
a proteção? Eu entendo que sim, se ela for mais benéfica, então podemos
utilizá-la, nós poderíamos utilizar normas estaduais se elas forem mais
benéficas para o patrimônio cultural? Não. E por que não? Porque esse seria
um caso de aplicação de norma federal pelo estado-membro.
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Mesa-redonda 3 | SNPC - Regulação e Marcos Legais


O inciso quatro fala em impedir a invasão, destruição, descaracterização
de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico e cultural. Aí
nós temos um inciso em que indiretamente há uma preservação, que é
proporcionar meios de acesso à cultura. Porque, evidentemente, franquear
ou permitir o acesso da população ao patrimônio cultural é propiciar o
acesso à cultura, é proteger o meio ambiente, é combater, em qualquer de
suas formas, porque o patrimônio cultural é concebido como bem
ambiental, incidindo a legislação protetiva respectiva; é claro que o meio
ambiente cultural é meio ambiente, pois o homem vive na cultura, então,
essa é a distinção que se faz entre natureza e cultura.
Antes de mais nada, essa é uma distinção artificial, não existe uma
distinção estanque entre natureza e cultura, porque elas convivem na nossa
cidade, por exemplo. É impróprio falar em distinção; não existe uma
legislação que contemple só a natureza, e quando se trata de paisagem isso
fica muito mais evidente, porque paisagem não é uma coisa natural, é uma
valoração que nós fazemos dos bens naturais. Então, uma montanha não é
bonita em si, ela é bonita porque nós a valoramos assim.
Quais são, então, os desafios quando tratamos de competências comuns?
Primeiro, a regulamentação da cooperação depende de uma lei
complementar que nunca foi editada. Isso é o que diz a Constituição. Se, 325
hoje, houvesse uma cooperação entre os Estados, seria com base nas
disposições do Decreto-Lei no 25/1937, que falam em cooperação e que
funcionariam muito bem. Nós podemos ter convênios, acordos de
cooperação técnica, não é? Então poderia ser utilizado.
E a não regulamentação hoje, quer seja através de lei complementar,
quer seja através de convênios ou apoio de cooperação técnica, traz
problemas como a superposição de comandos, ou seja, em algumas
situações, sobre o mesmo bem incidem dois ou três tipos de leis diferentes,
não necessariamente conflitantes, mas, na prática, às vezes fica difícil
conciliar a aplicação dessas leis e a superposição de recursos. Não é que, às
vezes, sejam mal-empregados, porque gastamos energia utilizando de modo
diferente. Existem os conflitos interinstitucionais que poderiam ser evitados
se tivéssemos uma maneira de compatibilizar a atuação, a falta de
responsabilização dos entes estatais que acaba causando a ineficiência da
sua atuação.
Às vezes há uma “omissão imprópria” que algumas entidades fazem:
“não, isso aqui é tal entidade que tem que cuidar, isso é papel do Estado, isso
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é papel do município”, quando, na verdade, é papel de todos, como diz o


artigo 225 da Constituição.
|

E tem outro desafio que é o de compatibilizar as normas que existem


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

hoje com o conceito constitucional ampliado de patrimônio cultural, que


é concebido como meio ambiental. Se tomamos o conceito de patrimônio
cultural que existe no Decreto-Lei no 25/37 para tombamento, ele é mais
restrito do que o artigo 216 da Constituição. Há uma decisão do Supremo
Tribunal Federal que diz: “não, o conceito do patrimônio cultural é amplo,
mas quando se tratar de tombamento você tem que usar o conceito restrito
do patrimônio cultural que tem no Decreto-Lei no 25/37”, porque senão a
gente estaria usando critérios diferentes e impondo ônus fora da legislação.
Assim, quando se trata de legislação concorrente e competência comum,
esses são os principais desafios. Acredito que hoje existam meios para
implementar essa atuação conjunta muito melhor do que está sendo feito,
mas como sou muito otimista, creio que, apesar das nossas dificuldades, há
uma disposição das instituições de fazer, sejam instituições como o
Ministério Público, como o Iphan, como os órgãos de cultura, como a
academia... Hoje, parece-me, existe uma preocupação com a defesa do
patrimônio cultural, e essa preocupação está em tornar a defesa do
326
patrimônio maximamente efetiva. É por isso que tendemos sempre a
interpretar a lei de uma maneira que venha contemplar melhor a
preservação e nunca restringir o seu potencial de eficácia.
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Relatório síntese
SISTEMA NACIONAL DE
P AT R I M Ô N I O C U LT U R A L ( SN PC)

REGULAÇÃO E MARCOS LEGAIS


Coordenador: Antônio Fernando A. L. Neri (procurador-chefe/Iphan)
Relatora: Patrícia Reis da Silva (Unesco)

COMUNICAÇÕES
Planejamento territorial e o patrimônio cultural, Kazuo Nakano
(Instituto Pólis)
Os instrumentos urbanísticos para a preservação do patrimônio, Vanessa
Bello Figueiredo (USP, ex-subprefeita de Paranapiacaba)
A experiência de Ouro Preto, Gabriel Simões Gobbi (Secretaria
Municipal de Patrimônio e Desenvolvimento Urbano de Ouro Preto) 327
O papel constitucional do município na proteção do patrimônio cultural,
João Henrique Café de Souza Novais (OAB/MG)
Atuação do Ministério Público em defesa do patrimônio cultural, Marcos
Paulo de Souza Miranda (Promotoria de Defesa do Patrimônio
Cultural, Histórico e Turístico de Minas Gerais)
Desafios da regulação do patrimônio cultural, Ana Cristina Bandeira Lins
(Ministério Público Federal/SP)
Necessidades de marcos legais para a tutela de bens culturais, Carlos Magno
de Souza Paiva (Núcleo de Pesquisa em Direito do Patrimônio
Cultural/Universidade Federal de Ouro Preto/MG)
O exercício da competência constitucional comum e concorrente na
preservação do patrimônio cultural, Fabiana Santos Dantas
(Procuradoria Federal/Iphan)
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Vo l . 1

RELATO
1. DESAFIOS PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

• Instituir a Política Nacional de Patrimônio de forma sistêmica e


transversal;
• Implementar, com base na Constituição Federal, sistema de
preservação que congregue entes autônomos, com legislação
diferenciada e atribuições administrativas comuns;
• Reforçar o papel da União para formular normas gerais, sem invadir
a esfera de competência legislativa suplementar dos estados,
municípios e do Distrito Federal;
• Sistematizar, em normas gerais, os institutos utilizados na
preservação (instrumentos, metodologias e procedimentos);
• Regulamentar a cooperação entre os entes federativos a fim de
minimizar a superposição de comandos e recursos, conflitos
interinstitucionais e falta de responsabilização dos entes;
• Inserir as estratégias de proteção, reabilitação e utilização do
patrimônio cultural num processo permanente de planejamento e
328 gestão territorial voltado para o direito à cidade.

2. DESAFIOS PARA A ESTRUTURAÇÃO DO SNPC


• Articular-se com outros sistemas nacionais, a exemplo da Cultura,
Meio Ambiente, de Desenvolvimento Urbano, Turismo para
promover a transversalidade no trato da questão;
• Criar instância colegiada normativa e deliberativa para estabelecer
princípios e diretrizes gerais para a proteção do patrimônio cultural
nacional, por meio do Conselho Nacional do Patrimônio Cultural,
composto por órgãos públicos, membros da sociedade, Ministérios
Públicos, dentre outros;
• Propiciar condições para a formação de arranjos (técnicos e
administrativos) para a conciliação de princípios e conceitos sobre o
bem protegido e diretrizes de gestão;
• Articular, permanentemente, e em diferentes escalas, fontes de
recursos perenes, instrumentos de planejamento e canais de
participação social efetivos;
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Relatório síntese
• Contemplar a dinâmica da cidade, fomentar o desenvolvimento e
contribuir para a inversão dos padrões da urbanização brasileira.

3. POTENCIALIDADES PARA A FORMULAÇÃO DA


POLÍTICA NACIONAL
• Instituir o Fundo Nacional do Patrimônio Cultural;
• Incentivar o uso de distintos instrumentos, considerando que todo
e qualquer instrumento que tenha potencialidade para proteger
encontra sustentação na Constituição Federal (usar com criatividade
instrumentos urbanísticos, da área ambiental e cultural);
• Refletir sobre como reverter a lógica do mercado imobiliário a favor
da proteção do patrimônio cultural.

4. POTENCIALIDADES PARA A ESTRUTURAÇÃO DO


SISTEMA NACIONAL
• Incentivar o fomento, a estruturação e acompanhamento de
conselhos estaduais e municipais;
• Oferecer, permanentemente, sistematização de instrumentos
potenciais de proteção do patrimônio;
• Estabelecer a responsabilidade objetiva como mecanismo de 329
proteção ao patrimônio cultural.

5. PARCERIAS ESTRATÉGICAS PARA A FORMULAÇÃO DA


POLÍTICA NACIONAL
• Órgãos públicos federais, estaduais, municipais e distrital, sociedade
civil, Ministério Público Federal, Estadual, Advocacia Pública.

6. PARCERIAS ESTRATÉGICAS PARA A ESTRUTURAÇÃO DO SNPC


• Órgãos públicos federais, estaduais, municipais e distrital, sociedade
civil, Ministério Público Federal, Estadual, Advocacia Pública.

7. AÇÕES ESTRATÉGICAS QUE DEVEM SER IMPLEMENTADAS NOS


PRÓXIMOS CINCOS ANOS
• Instituir o Cadastro Técnico de Agentes do Patrimônio Cultural
para avaliar e acompanhar a qualidade da prestação de serviços na
área;
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Vo l . 1

• Avaliar a possibilidade de criação de receita para o Fundo Nacional


do Patrimônio Cultural oriunda de atividades realizadas pelo Iphan,
tais como: aplicação de multas, cobrança por licenciamentos
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

realizados, taxas, medidas compensatórias, dentre outras.

8. OBJETIVOS PARA OS PRÓXIMOS DOIS ANOS (2010–2011)


• Refletir sobre a necessidade de criação de marco regulatório
específico para a implementação do Sistema Nacional de Patrimônio
Cultural, considerando que o Decreto-Lei no 25/37, em seus artigos
23 e 25, estabelece um sistema de proteção;
• Refletir sobre o atual papel do Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural no sentido de avaliar e ampliar suas atribuições para
disciplinar diretrizes e princípios gerais sobre a proteção do
patrimônio nacional (ex.: norma geral de tráfego de veículos pesados
para os Centros Históricos);
• Instituir multa em razão de dano ao patrimônio cultural com
parâmetros previamente definidos, a qual poderá ser agravada a
depender da extensão do dano.

9. AÇÕES ESTRATÉGICAS QUE DEVEM SER IMPLEMENTADAS EM 2010


330
• Regulamentar o poder de polícia e normatizar as sanções (embargo
e suspensão de obras e atividades; apreensão de bens e produtos;
multas);
• Tendo em vista que a tutela do patrimônio cultural se insere no
direito do meio ambiente, faz-se necessário refletir sobre a
possibilidade de o Iphan participar do Conselho Nacional de Meio
Ambiente (Conama), como um subsistema, antes de criar um sistema
próprio.
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SISTEMA NACIONAL DE
P AT R I M Ô N I O C U LT U R A L – SN PC
ESTRUTURA E FORMAS DE FUNCIONAMENTO

Weber Sutti*

Quero fazer apenas uma rápida abertura para mais uma sessão de * Assessor da
Presidência
discussões em torno do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural. do Iphan
Gostaria de dizer que quando falamos em instrumentos e formas de
funcionamento estamos propondo uma discussão sobre a forma com a
qual devemos nos organizar, quais elementos devemos ter e de que forma
devemos trabalhar os nossos recursos. E, nesse caso, estamos nos referindo
tanto aos recursos humanos, quanto aos recursos financeiros. Definir
como conseguiremos estruturar uma operacio-nalização, institucionalizar 333
espaços e mecanismos que deem conta, democrática e permanentemente,
de nossas ações.
Acredito que o mais importante, quando pensamos em sistema, é tentar
garantir uma relação entre os entes federativos e a sociedade, estabelecendo
uma prática democrática, contínua, além de ter perenidade,
independentemente dos governos. O que nos leva a pensar, portanto, em
uma política de ações que não dependa, exclusivamente, de um agente
governamental. Uma política estruturada a partir da demanda de todos os
agentes que consiga, dessa forma, garantir uma continuidade.
Creio que esse é o teor da discussão a que estamos nos propondo. Um
diálogo capaz de elucidar essas questões e esclarecer as eventuais dúvidas.
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Vo l . 1

A EXPERIÊNCIA DO SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE E OS DESAFIOS
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

PA R A O S I S T E M A N A C I O N A L D E
P AT R I M Ô N I O C U LT U R A L

Adson França*

RESUMO
* Assessor especial Trata-se de um relato sobre a experiência do Sistema Único de Saúde –
do ministro da
Saúde SUS e dos desafios enfrentados para gerir a política de saúde pública no
Brasil. O texto aborda, de forma questionadora, todos os impasses
enfrentados pelo Ministério da Saúde, além dos mecanismos de regulação
e fiscalização para garantir o funcionamento dos programas do SUS. Revela
que o maior desafio do sistema é desenvolver uma política de saúde marcada
pela universalização, equidade e integridade num país de dimensões
334 continentais. Para isso, criou o Conselho Nacional e os Conselhos
Municipais de Saúde, para garantir a participação social em um Brasil
formado por cerca de 5.500 municípios com até 100 mil habitantes e que
ficam com apenas 10% do PIB nacional, diante dos 91% destinados aos 50
municípios acima de 500 mil habitantes.

PALAVRAS-CHAVE
SUS, Controle social, Equidade.

Em nome do ministro José Gomes Temporão, quero agradecer ao Iphan


e ao Ministério da Cultura e cumprimentá-los por este esforço, pelo desafio
de realizar este fórum, com o objetivo maior de promover reflexões e
contribuir para o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural. Gostaria de
dizer ainda que vejo como uma conspiração positiva, uma conspiração do
universo e acredito que esta vinda ao Fórum, também, está ligada a essa
conspiração. O ministro Temporão tem refletido muito sobre vários temas,
juntamente com o ministro Juca Ferreira e, às vezes, nos encontramos com
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vocês, do Iphan, do Ministério da Cultura; vamos, então, adiante nesse
desafio que é tentar, de forma objetiva, fazer essa reflexão sobre a experiência
do SUS e sobre os desafios para o sistema nacional.
Nesses desafios, a gente precisa, primeiramente, relatar que experiência
é essa. É claro que, para a sociedade como um todo, o SUS tem 250
limitações, tem problemas, filas, ainda não tem a qualificação que desejamos
e, talvez, tenha perdido a batalha midiática. Nesse sentido, é bom ter uma
pessoa da comunicação, como Mara Régia di Perna, do Sistema Brasil de
Comunicação, na Mesa, para defender o Sistema Único de Saúde. Talvez,
tenhamos perdido essa batalha, mas nunca é tarde para recuperar. E isso se
configura, a meu ver, numa grande contradição. Talvez a gente tenha
perdido a batalha de defender, na mídia, a principal política de inclusão
social do Brasil e, pior, de ter trabalhadores e trabalhadoras defendendo e
assumindo essa bandeira. Por incrível que pareça, nós começamos essa
experiência no Brasil, digo nós, a sociedade brasileira, a partir de
experiências ricas da Inglaterra, Canadá, França e, também, de Cuba e, hoje,
estamos, provavelmente, exportando experiências.
Para vocês terem uma ideia, o ministro inglês da Saúde pediu ao ministro
Temporão para discutir uma série de questões e que ele apresentasse, na
Inglaterra, a experiência do Centro de Informações Estratégicas em 335
Vigilância em Saúde – Cieves, o centro que cuida das emergências
epidemiológicas. Já estamos com 52 desses centros funcionando no Brasil
e vamos chegar a 56, até o final da gestão do presidente Lula. Foi esse centro
que cuidou do enfrentamento do vírus H1N1, também conhecido como a
gripe Influenza A. Enquanto alguns países não conseguem nem dar os dados
reais sobre a epidemia, nós conseguimos desenvolver um sistema de controle
estatístico e, por isso, somos o sétimo país em número de óbitos.
Vocês acreditam que é possível que, na África, quase todos os países
tenham 20, 15, 30 óbitos, apenas, provocados pelo H1N1? Vocês acreditam
que é possível, que o Uruguai tenha perdido, apenas, 15 mulheres gestantes,
vítimas de H1N1? Será que é possível na Bolívia, Colômbia, Venezuela os
óbitos não passarem de 300? Mas o Brasil parece que tem um sistema tão
qualificado que acaba pagando o preço por isso. E eu digo parece por uma
questão de gentileza, uma vez que estou no Ministério há sete anos e sei da
capacidade do sistema. Quem tem um sistema de informação qualificado
registra tudo, e nós somos o sétimo país no número de óbitos provocados
pela Influenza A, em nível mundial. Mas é preferível assim, tirar de baixo
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Vo l . 1

do tapete aquilo que precisa ser publicado, simplesmente, porque ninguém


faz definição e elabora estratégias sem conhecer a realidade.
|

O filósofo alemão Hegel já dizia que era quase redundante conhecer a


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

realidade concreta de forma objetiva. Não, você tem de conhecer a


realidade, mesmo que os dados não sejam agradáveis. Um país sério ou pelo
menos governantes sérios têm que expor os dados. Uma sociedade com
vocação para querer se afirmar com exercício de cidadania tem que fazer
isso. Então, diante disso, nós temos a seguinte situação: países como a
França e a Inglaterra estão querendo conhecer a experiência brasileira dos
Cieves, muitos querem a experiência brasileira do Saúde Toda Hora, muitos
querem a experiência brasileira do Programa Saúde da Família que, hoje,
não é mais uma coisa de estratégia, avançou para uma política nacional de
atenção primária.
E nós, sociedade brasileira ou, pelo menos, uma boa parte dela não
sabemos o que é o SUS. Grande parte acha que as políticas são do prefeito
e uma boa parte diz que o SUS não vale nada, é sinônimo de corrupção. E
vários políticos, parlamentares que não são sérios ou são pouco informados
ou, ainda, alguns, com concepção reacionária – porque o reacionário tem
concepção ideológica, com formação cultural e intelectual para isso –
336
intensificam essa imagem Não é à toa, falo isso de forma muito humilde,
sou antropólogo e não filósofo, mas o fato é que muitos jogam pedra no
SUS. E pergunto: será que conhecem o Sistema?
A organização do serviço é pautada na universalização, equidade e
integridade, controle social e responsabilidade comum nos três níveis. E
essa experiência vocês já estão adotando, a responsabilidade comum.
Estamos, enfim, na seguinte situação para destacar para vocês: o sistema
demanda participação por meio do controle social. É uma palavra
questionada por alguns teóricos, se não deveria ser participação social, mas
o fato é que controle social está consolidado, está na Constituição, está na
Lei 8.080 de 1990, do SUS.

REGULAÇÃO
Como é que a gente faz a regulação e avaliação do Sistema Único de
Saúde? Temos dois mecanismos: um departamento de avaliação, regulação
e controle que é da Secretaria de Atenção à Saúde, responsável, hoje, pela
atenção ao setor, como um todo, e detentora de 82% do orçamento público
para a Saúde; e o Departamento Nacional de Auditoria do SUS, o Denasus.
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Mesa-redonda 4 | SNPC - Estrutura e Formas de Funcionamento


Essas duas instituições não têm como principal objetivo penalizar; na
verdade, são estruturas criadas para evitar o problema de recursos não
aplicados corretamente e evitar o problema de recursos desviados de forma,
vamos dizer, proposital. Ou seja, para coibir o desvio proposital para outras
áreas ou para o enriquecimento ilícito de gestores. Essas duas instâncias são
de grande importância e vocês terão de pensar nisso, em um processo de
reflexão sobre o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural.
Outra reflexão é sobre o chamado controle social. Falar sobre qual foi a
nossa experiência, como estamos funcionando, o que deu certo o que é que
não deu e, para isso, farei algumas afirmações para ajudar no debate, até
porque me foi pedido que fizesse algo mais provocativo para a discussão do
que uma exposição clássica. Acredito que as senhoras e os senhores têm um
nível, uma formação intelectual, de vanguardistas e que não estão a fim, e
eu também não teria essa presunção, de apenas, ouvir palestrantes.
O Brasil é formado por 5.565 municípios e nós temos Conselhos
Municipais de Saúde. Eu não sei qual o caminho que vocês vão seguir, mas
percebam a importância de levarem esse fator em conta, para refletir sobre
isso. Hoje, acho que o descaso com essa característica acabou humilhando
o meu país. E isso, porque, estando há sete anos no Ministério da Saúde e
viajando muito, me dei conta de que o Brasil tem 2.500 municípios com 337
menos de 10 mil habitantes e, se você legisla no Ministério da Cultura sem
levar em conta isso, começou errado. Se você propõe política pública sem
levar em conta isso, começou errado. O Brasil tem 2.500 municípios abaixo
de 10 mil habitantes; o Brasil tem mais, chegando até 3.600 municípios
abaixo de 30 mil habitantes; 216 municípios acima de 200 mil habitantes
e 275, acima de 100 mil habitantes. E o fato é que só existe nesse continente
chamado Brasil, porque isso não é um país é um continente, 50 municípios
acima de 500 mil habitantes que, por sua vez, ficam com 91% do Produto
Interno Bruto – PIB.
Ou se entende isso ou é difícil fazer alguma coisa de política nesse país.
Sem levar em conta a heterogeneidade, a equidade, é impossível propor
uma política pública. E, no nosso caso, as entidades médicas de
enfermagem, no geral, não entendem isso, saem com resoluções fantásticas,
achando que é possível colocá-las em prática em Chique-Chique, em
Chorrochó, em Codó ou, ainda, em Timum, em Guanambi. Se eu tenho
menos de 2.000 mil, ou 2.500 municípios abaixo de 10 mil habitantes, eu
tenho de entender essa complexidade.
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Vo l . 1

Nós temos Conselhos Estaduais de Saúde, temos um Conselho Nacional


e, caso vocês resolvam ir por esse caminho, vejam a composição: são 48
membros, sendo seis prestadores de serviços; seis gestores, que somos nós do
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

governo; temos seis membros titulares; 12 trabalhadores representados no


Conselho, além de instituições das mais variadas, agora, mesmo, tem a
CNBB, a Pastoral da Criança, a Federação Espírita e, como o Estado é laico,
eu sou membro titular do Conselho. Vocês não imaginam como são difíceis
as reuniões de dois dias nesse contexto. Tem, ainda, a Federação dos
Ostomizados, a Federação Nacional de Usuários de Medicamentos de
Hipertensão e Diabetes, a Central Única dos Trabalhadores – CUT. Temos,
nesse conselho, as 24 vagas de usuários, num total de 48 vagas. Uma
provocação para vocês: a presidência deve ser exercida pelo ministro ou
eleita pelo plenário? Na Esplanada dos Ministérios, 80% dos conselhos são
dirigidos pelos ministros. O Conselho Nacional de Saúde, no entanto, fez
uma reflexão e passou a escolha para o plenário. Há controvérsias, existe
uma polêmica no Governo sobre isso.
Aparentemente, para o exercício da cidadania, foi melhor. O Conselho
Nacional de Saúde é presidido, hoje, por Júnior Batista, um trabalhador,
uma pessoa muito bem formada. Por outro lado, existe uma controvérsia no
Supremo Tribunal de Justiça – STJ sobre o significado de um conselho, se
338 é um órgão deliberativo, ou consultivo. Para o STJ, todo conselho é
consultivo e, ao mesmo tempo, todo conselho delibera porque ele sai com
a resolução. Que confusão, não é mesmo? Mas, não é do STJ, me perdoem,
porque é o Supremo Tribunal Federal – STF que tem outra posição. No
STF alguns ministros pensam de uma forma, enquanto outros ministros
pensam de outra forma. Quando é que isso vai ser resolver, não sabemos.
Então, alguns dizem que é preciso o ato composto. Trata-se do ato de o
Conselho ter uma posição referendada pelo ministro. Se o ministro não
quiser homologar uma decisão do conselho não há o ato composto. Essa é
a opinião do ministro César Belluzzo, bem como do ministro Marco
Aurélio Mello, ambos do STF.
E, aí, cria-se um problema porque o Conselho Nacional de Saúde, hoje,
tem algumas resoluções que o ministro José Gomes Temporão não
homologou e o CNS já pensou, inclusive, em colocar o ministro Temporão
na Justiça, mas recuou em consideração à densidade teórica e histórica do
ministro da Saúde. Então, há uma complexidade e não estou aqui
defendendo nada, estou apenas fazendo uma reflexão sobre o fato de que
existem dúvidas no Governo e a presidência dos conselhos é uma delas.
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 339

Mesa-redonda 4 | SNPC - Estrutura e Formas de Funcionamento


Hoje, é assim: quem tiver a maioria leva. Nos últimos quatro anos, o Batista
foi reeleito. É o seu terceiro mandato, então, nesse período, o Conselho de
Saúde está sendo presidido por um trabalhador. Diferentemente do
Conselho da Educação e de outros que são presididos por ministros.

A COMISSÃO INTERGESTORES TRIPARTITE E COMISSÃO


INTERGESTORES BIPARTITE
Gostaria de lembrar que nós estamos na 13ª Conferência Nacional de
Saúde, um processo feito de baixo para cima, extremamente rico, sobre o
qual, também, temos de refletir: a primeira conferência, a segunda, a oitava
que foi a grande que chegou à Constituição, nós chegamos a 48 resoluções.
A 13ª Conferência Nacional de Saúde chegou a quase 1.600 resoluções,
portanto, fica com os senhores e as senhoras a necessidade de refletir sobre
esse processo de construção. Vejam, uma conferência que sai com 1.600
resoluções, porque todo mundo quer se pronunciar, por exemplo: eu sou
diabético e quero falar da minha resolução; sou hipertenso, quero incluir a
minha; sou ostomizado; sou trabalhador rural; mulher, e tem a questão do
aborto; do negro, enfim, todos têm direito. Mas, a reflexão deve girar em
torno de que tipo de construção será mais eficiente. Hoje, estamos
questionando um pouco: será que 1.600 resoluções, quando uma 339
conferência será realizada dois anos depois, demora seis meses para ser
publicada e, talvez, para ser implantada. Aí, o universo e Deus é que vai
cuidar não é? Ou os orixás, porque, dificilmente, entre uma conferência e
outra, você vai conseguir implantar 1.600 resoluções.

PLANO PLURIANUAL, O PPA


Quanto à elaboração do Plano Plurianual, o PPA, que todos vocês
conhecem, também há pontos de esquizofrenia, por exemplo, ele só reflete
40% do Plano Nacional de Saúde, quando deveria refletir, pelo menos,
90% do Plano Nacional. Então, nós estamos buscando corrigir essa
distorção. Esse dado fica como uma reflexão para vocês, como um erro
básico que não devem cometer.

RESPONSABILIDADE COMUM DOS TRÊS NÍVEIS:


CONSTITUIÇÃO DE 1988 E EMENDA CONSTITUCIONAL
Em relação à esquizofrenia, nós aprovamos, em 2000, a Emenda
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Vo l . 1

Constitucional e, ainda, não conseguimos regulamentar, porque uma


emenda, depois de aprovada, tem de ser regulamentada. Por isso, corremos
o risco de sair desse governo sem regulamentá-la e, ao não fazê-lo, ficamos
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

com aquela situação, aquela reflexão da Organização Mundial de Saúde –


OMS, de que Saúde é o completo bem-estar. Isso é o genérico do mais
genérico e, aí, nós temos os exemplos, e a Controladoria Geral da União já
teve, o Denasus também, nos quais prefeitos pegaram recursos da Saúde e
colocaram em restaurantes para refeições a um ou dois reais. Bem, é preciso
alimentar melhor o povo, sem dúvida, para a melhoria da saúde. Então, em
tese, caberia, mas, na prática, não tem sentido. Prefeitos pegam recursos e
colocam em saneamento, mas nós temos recursos específicos para
saneamento, temos o Ministério das Cidades e temos uma Fundação
Nacional de Saúde – Funasa que tem quatro bilhões de recursos destinados
para esse setor, então, não se aplica.
Temos, ainda, coisas piores, como prefeitos que colocaram os recursos da
Saúde para asfaltar estradas e ruas dentro da cidade, e com que argumento?
É preciso evitar os acidentes de trânsito porque geram politraumatizados e,
ao gerar politraumatizados, encheriam as urgências e emergências. Aí, eu
não vou dizer qual é a palavra, mas não faria mal para um prefeito desses
passar 30 dias privado de liberdade. Então, nós temos de resolver o que é
340 gasto em Saúde porque, se for nessa linha, nós vamos jogar os recursos para
o Meio Ambiente. Afinal, cada grau que se aumenta na temperatura global,
significa aumento nos índices de malária, de leishmaniose, na Amazônia...
Pelo menos essas duas. Sem contar que eu aumento caldo de cultura para
todos os fungos e protozoários e, consequentemente, a dengue, e já não tem
mais essa história de achar que é só no clima quente não, é frio e quente e,
por aí, vamos.
Estamos fazendo um estudo da Amazônia, além da fauna, flora e dos
prejuízos, mas, do ponto de vista de Saúde direta, eu passo a ter essas
complicações. A dengue voltou aos Estados Unidos, depois de ter saído de
lá há 80 anos. Ou seja, a dengue voltou ao chamado “principal país do
mundo”.
Temos outras limitações que tem a ver com a macroeconomia. O fato é
que, na Esplanada dos Ministérios, você tem uma turma de ministros mais
sensíveis às questões da Saúde e outros, ainda, não. O ex-ministro da Saúde,
Adib Jatene, costumava afirmar: “Parece que a macroeconomia só vai
investir em Saúde na hora em que os ministros da área econômica visitarem
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o setor de Atenção Primária, ou conhecerem a Amazônia, o Nordeste e os
hospitais. Enquanto os ministros só conhecerem a avenida Paulista não tem
jeito”. E o ministro Jatene falou isso no Palácio do Planalto e começou a
chorar. Na ocasião, estavam presentes, o ministro da Fazenda, Guido
Mantega, que eu respeito muito; o ministro do Planejamento, Paulo
Bernardo Silva, que todos nós respeitamos, mas o ministro Jatene teve a
coragem de dizer isso: “Enquanto os senhores e as senhoras não visitarem
um serviço de saúde, só forem à avenida Paulista para fazer as articulações
com o capital financeiro, essa coisa não melhora”.
Temos, portanto, desafios; se você trabalha com 1.500 consultores,
organismos internacionais; não sei, exatamente, quantos vocês da área do
patrimônio têm, porque existem lugares com três, quatro, cinco ou seis
consultores para cuidar de uma série de coisas. Nós temos 1.500, são
professores, mestres, doutores, mas não nos alegra, com esse mecanismo
precário de organismo, falta plano de carreira, salário, concursos, nós
precisamos de uma carreira do SUS. Porque um juiz pode começar com
R$ 12 mil e chegar a R$ 24 mil em três anos, indo para uma cidade
pequena e não se pode ter um plano de carreira como esse em outras áreas?
É um debate.

341
SERVIÇO CIVIL OBRIGATÓRIO
Por que alguém que faz medicina ou enfermagem e passa seis anos na
universidade, custeado pelo dinheiro público, não pode ter um serviço civil
obrigatório para passar dois anos, pelo menos, trabalhando de graça, para
que possamos desenvolver um trabalho em Tabatinga na Amazônia, por
exemplo? Ou possamos trabalhar em Timom, ou em Codó? O dinheiro é
público e as pessoas saem e vão para onde querem, mas eu tenho que ter
carreira para fixar. Isso poderia valer também para a área do patrimônio
cultural.
Estão aí as provocações para o final do debate: o SUS cuida de 75% da
população, 100% ou tem outra abordagem? Vocês respondem. A Saúde
Pública, no Brasil, não recebe financiamento adequado, por quê? Qual é o
melhor caminho para o Sistema de Saúde no Brasil fortalecer a Saúde
Pública ou a Suplementar? Fortalecer a Atenção Primária ou a construção
de hospitais de pequeno porte, fortalecendo a visão hospitalocêntrica, ou
buscar implementação de redes? Quais as possíveis razões para existirem
filas para cirurgias eletivas no Brasil, se no Reino Unido, no Canadá, Itália,
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Vo l . 1

nos Estados Unidos não existem filas para essas cirurgias? Por que uma parte
substancial do movimento sindical e das centrais sindicais defende, nos
movimentos reivindicatórios ou greves, em primeiro lugar, aumento de
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

salário e, em segundo lugar, um plano privado de saúde, se as centrais


sindicais estão no Conselho Nacional de Saúde para defender o SUS? Não
é contraditório que, na hora da greve, essas entidades representantes das
classes trabalhadoras, reivindiquem o plano da Amil, Unimed, Sul América,
Saúde Bradesco? Não podemos aprofundar, mas qual a explicação possível
para a maior parte da sociedade; qual a razão para a sociedade não
considerar que o combate ao H1N1 não é coisa do SUS, mas do além, de
Deus ou do prefeito, porque as políticas destacadas ou programas são vistos
como Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – Samu?
Há uma pesquisa que revela que Salvador, Recife, Rio de Janeiro
atribuem os serviços do Samu à Prefeitura Municipal, o que é uma
barbaridade porque todo o Samu é do Governo Federal. Mas, nesse ponto
da divulgação nós falhamos e, para ilustrar, vejamos, rapidamente, o
número de pessoas beneficiadas, seja na redução da mortalidade infantil,
seja na realização de transplantes, no atendimento a pacientes com terapia
retroviral, no fornecimento de medicamentos essenciais, enfim, pela
evolução promovida pelo SUS.
342
Foram 64 mil estabelecimentos, 2,3 bilhões de procedimentos, 11,3
milhões de internações, 254 milhões de consultas, 2.300 partos gratuitos,
completamente gratuitos. O Programa Saúde da Família teve um aumento
de 73% no governo Lula, o que gerou consequente redução de 20% da
mortalidade infantil nos municípios atendidos pelo programa. O Saúde da
Família é o programa que teve a maior divulgação de seus resultados pela
mídia, com reconhecimento pela sociedade. Graças a ele, inclusive, um
representativo número de mães passaram a fazer o pré-natal, chegando a um
aumento de 10% nos exames. Foram evitadas 126 mil internações, com
impactos, inclusive, econômicos, uma vez que melhora a situação da pessoa,
a qualidade de vida. Houve um acréscimo, ainda, na oferta de medicamentos
para o câncer de cólon, além da farmácia popular, através da qual, um milhão
de pessoas retira remédios, hoje, quase que gratuitamente, no Brasil. Aqui,
por exemplo, tem farmácia popular, é aquela forma de comprar mais baratos
medicamentos para problemas como hipertensão, diabetes, etc.
Quanto à mortalidade infantil, os avanços na política de combate foram
tamanhos que vamos cumprir o objetivo do milênio, previsto para
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 343

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alcançarmos em 2015, no ano de 2012. E não se diminui mortalidade
infantil sem escolaridade, saneamento e saúde da família. E o mesmo vale
para a desnutrição infantil. Hoje, estamos com o problema inverso, estamos
enfrentando a questão da obesidade, com crianças nascendo obesas de mães
também obesas. E isso, num país onde, no passado, as doenças eram
parasitárias e ligadas à pobreza.

BRASIL SORRIDENTE
Nós saímos de um índice de cobertura no patamar dos 35,8 para 87,7
em milhões de habitantes e diminuímos qualquer coisa em torno de quatro
milhões e 300 mil extrações de dentes. O serviço de especialidade
odontológica, através da frente Brasil Sorridente, tem destinado uma maior
atenção ao atendimento à Amazônia e ao Nordeste, seguindo a linha da
equidade, para fortalecer essas regiões brasileiras.

CONTROLE DE EPIDEMIAS
A dengue teve uma redução de 80%, em 2008. Quanto ao controle da
rubéola, temos a expectativa de que fiquemos livres dessa doença em 2010.
E a hanseníase, será que o SUS não está cuidando? Pois a redução chegou
a 23%. No que diz respeito à tuberculose, infelizmente, em alguns Estados 343
brasileiros, essa doença, ainda, é diagnosticada dentro do hospital, quando
deveria acontecer ainda na Atenção Primária. Outra doença que sofreu uma
redução no número de casos foi a malária, que apresentou uma queda
significativa no número de internações. Mas, um dos setores que teve uma
evolução que pode ser considerada fantástica foi no número de doadores da
medula óssea que passou de 40 mil, em 2003, para um milhão e 200, de
acordo com pesquisa feita pelo Ibope. É bom lembrar que nossa população
achava que doar medula era tirar a coluna. Como é que vou tirar minha
coluna e dar para alguém? Vejam em que ponto estávamos então,
avançamos muito.

DESAFIOS
COMBATE À RELAÇÃO ÁLCOOL E DIREÇÃO
A família brasileira gasta R$1.428,00 em planos de saúde, enquanto, no
SUS são R$665,00 per capita por ano, o que dá menos de dois reais por dia.
É possível manter um sistema assim?
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Vo l . 1

PARTOS
No SUS a gente paga R$350,00 para a equipe toda, e R$750,00 na
|

Saúde Suplementar e no atendimento noturno. Vocês sabem que a cesárea


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

no Brasil só ocorre depois das 19 horas? Deve ter algum motivo


epidemiológico ou, quem sabe, alguma coisa mais espiritual, o fato é que,
no Brasil, a cesárea só ocorre depois das 19 horas, depois explico para vocês
uma das hipóteses.

CONSULTA ESPECIALIZADA
O gasto em Luxemburgo, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá é muito
pequeno, enquanto o dispêndio com saúde, no Brasil, é de bilhões. Então,
são vocês que vão precisar resolver esse problema do financiamento, estou
provocando para o debate. Infelizmente, o financiamento para o serviço
público é de 38%, enquanto a família coloca 100% do recurso da família.
Existem, portanto, inúmeros desafios que o Sistema Único de Saúde
tem a enfrentar, tais como a mudança do perfil epidemiológico, ampliação
da rede, melhora na qualidade do atendimento de urgência, reduzir a espera,
reduzir a iniquidade e buscar soluções para deficiência de gestão. Então,
esta é a realidade do Sistema Único de Saúde, que eu trago como parte da
reflexão para o debate.
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M O B I L I Z A Ç Ã O S O C I A L PA R A O
SISTEMA NACIONAL DE
P AT R I M Ô N I O C U LT U R A L

Mara Régia Di Perna*

RESUMO
Trata-se de um relato sobre a importância do rádio para a população * Representante do
amazônica que tem nesse veículo uma de suas principais fontes de Sistema Brasil de
Comunicação e
comunicação e interação. Ilustra o poder da comunicação numa região comunicadora da
ainda marcada pela ausência de recursos primários como a energia elétrica, Rádio Nacional da
Amazônia
uma conquista recente em grande parte da região. O texto revela a
importância da Rádio Nacional da Amazônia que não só garante acesso a
informações, como dá voz aos seringueiros e às mulheres que passaram a
utilizar as ondas do rádio como veículo de reivindicações, de preservação da
cultura local e para a defesa dos direitos de suas comunidades. O
depoimento é um testemunho sobre a comunicação como um dos meios de
promover a identificação e o registro do patrimônio imaterial que é a cultura 345
do povo brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE
Comunicação, Rádio Nacional da Amazônia, Patrimônio imaterial.

Antes de iniciar, gostaria de afirmar que, hoje, 14 de dezembro, é um dia


histórico, porque, às 19 horas, o presidente Lula vai abrir, oficialmente, a
Primeira Conferência Nacional de Comunicação. Então, acredito que
precisamos lembrar o Abelardo Barbosa: “Teresinha!!!”
Hoje vamos começar a nos debruçar sobre esse tema porque, enquanto
a Saúde está na 13ª Conferência Nacional, estamos engatinhando, chegando
à primeira conferência. Não sei se as 3.600 propostas apresentadas se
tornarão resoluções. De qualquer forma, uma coisa é fato e Chacrinha já
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dizia: “Quem não se comunica se trumbica”, e eu não sei como é que vocês
estão se comunicando no Sistema de Patrimônio Cultural.
|

Eu queria muito... já que o meu tema é mobilização social, e vocês não


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

se impressionem por eu ter colocado esse “malão” em cima da cadeira. Não


é a caixa de Pandora, mas trouxe alguns mimos para vocês. Acima de tudo
eu tenho o meu instrumento de comunicação que também trouxe para lhes
apresentar. Trata-se do projeto de um cientista inglês que fez este rádio para
as tribos africanas. Ele tem uma placa solar, sendo, por isso, um rádio
ecológico que, com 30 maniveladas, conseguimos fazer funcionar. Isso, para
seringueiro, é a melhor coisa do mundo porque é o terceiro item da
economia dos povos da floresta. Deixa ver se funciona, quantas emissoras
de rádio tem aqui na cidade, não sei se é FM, se é AM, eu não cheguei a
testar, mas aqui tem uma estação que está pegando. Bem, na floresta ele
pega muito bem, eu garanto para vocês, aqui eu não sei como é que está a
sintonia das emissoras, mas eu queria, realmente, que funcionasse, a pobre
da antena, até entortou. Deixa-me colocá-lo ali, pois ele está estranhando
o ambiente, esse rádio está acostumado com floresta.
Estou trazendo, justamente, o rádio porque eu “navego” nessas ondas
há 30 anos; comecei pelos microfones da Rádio Nacional da Amazônia, em
346
uma época em que era preciso integrar o Brasil e havia, por parte dos
militares, um pavor de que a população amazônica, ou seja, os povos da
floresta estivessem à mercê das comunicações das rádios cubanas. E, nesse
contexto, nasce a Rádio Nacional da Amazônia para tentar falar com aquelas
populações. Eu estava finalizando meu curso na universidade e comecei a
“navegar” nessas ondas, uma história bastante acidentada. Ao longo desses
anos, nós fizemos, concretamente, do rádio, em muitos momentos, um
instrumento de mobilização. Houve um período em que saí das ondas
tropicais, das ondas curtas da Rádio Nacional da Amazônia, para fazer uma
Rádio Mulher, em Brasília. O rádio não só é o principal meio de
comunicação comunitário, mas continua sendo uma das maiores e únicas
fontes de informação para a maioria dos brasileiros.
Eu participei, recentemente, de um encontro e fiquei impressionada com
alguns dados que foram alvos de uma reflexão no painel da cultura. Apenas
13% dos brasileiros vão ao cinema; 92% dos brasileiros nunca foram a
museus; 93,4% dos brasileiros jamais estiveram em uma exposição de arte;
78% dos brasileiros nunca assistiram a um espetáculo de dança e mais de
90% dos municípios brasileiros não têm sala de cinema, teatro, museu e
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outros espaços culturais. Então, a média brasileira de despesa mensal com
cultura, por família, é de 4,4%. Fiquei abismada com esses dados e, no
contraponto com essa relação de comunicação, vemos que o rádio,
realmente, universaliza. Da mesma forma que, antigamente, faziam
programas de rádios especiais, inclusive, fazendo o personagem do
Papanicolaou, o amigo número um das mulheres, que era distribuído em
fita k7, para universalizar.
Então, às vezes, a gente pensa em comunicação com as novas tecnologias
e todo o sistema digital. Para vocês terem uma ideia, no que pese a Inglaterra
que tem até 2012 para acabar com o sistema analógico, até agora, apenas
um por cento da população amazônica comprou o rádio digital. O fato de
você apostar uma grana violenta para comprar um aparelho que só vai ter
um letreiro, com uma comunicação a mais sobre o que você está ouvindo,
não chega a ser um apelo significativo. Eu tenho minhas dúvidas quanto ao
sistema digital, inclusive, no Brasil, até porque, para a gente que navega
pelos rios da Amazônia nas ondas do rádio, o problema ainda é a luz.
Eu tenho, aqui, usando o que estou aprendendo nessa conferência de
vocês, um tesouro imaterial que são as cartas de pessoas que me escrevem
periodicamente. Esta carta, eu recebi esta semana e cada carta dessas vem,
por exemplo, de municípios que estão lá em Riozinho do Anfrísio, que fica 347
na terra do meio, onde, desde o boom da borracha, não existe uma escola
sequer. Toda a população se diz cega porque ninguém sabe ler, e se a gente
chega lá de óculos as pessoas acham que chegou a professora. Existe uma
carência enorme de assistência, principalmente, nessa época do ano em que
as cachoeiras estão muito volumosas, nem a Funasa chega lá. E eu já recebi
muitas denúncias de pessoas que não conseguiram vacinar os filhos. Agora,
com esse programa Luz para Todos, recebo, também, o relato de populações
com problemas até com os bichos, porque antes, a população estava na
maior escuridão e, de repente, abre uma clareira, surge luz na floresta e os
bichos vão chegando. O resultado é que as pessoas não estão conseguindo
desligar a luz nem durante o dia porque é muito mosquito, se desligar ele
pica a família. Então, nós temos outro problema para resolver, além da luz.
Mas vamos seguindo com a apresentação, só como uma reflexão de até
onde a gente vai com esse rádio. Como ele trabalha o sentido mais profundo
que é o ouvido, porque o olho é terrível, o olho julga, é preconceituoso,
avalia se é feio, bonito, gordo, magro... Eu, então, sempre causo a maior
decepção quando chego às comunidades, lá na floresta. Geralmente, o
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pessoal diz: “Ah! Mara Régia, você não é loura, que decepção!” Então, acho
que eles ainda pensam, “Mas tu é baixinha” e “gorducha”...
|

E, realmente, se é para a gente imaginar, eu acho que essa é a maravilha


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

mesma do rádio. Ele trabalha esse sentido do coração porque é dirigido ao


ouvido somente, é como aquela música que faz parte da sua vida, é como
o nome daquela pessoa que você ama; que aquilo é mel para você, porque
vai direto ao seu coração, não tem olho, que bom! Sou somente eu comigo
mesma, criando. Quantas vezes a gente já viu uma adaptação de filme e
ficou decepcionado porque comparado ao livro que você ajudou a escrever,
não é nada, é zero.
Nesses 30 anos de trabalho desenvolvi uma metodologia e faço oficinas
com mulheres, homens e com os extrativistas que ficam muito lá no seringal
Cachoeira, no Acre. Dos Estados da Amazônia, o Acre é o que mais amo,
talvez, pela força da história de Chico Mendes e pelas experiências
apaixonantes. Há um encantamento, principalmente nas mulheres. Lá eu
tenho uma rede de repórteres “maritacas”, que são mulheres muito falantes.
Na verdade, tenho uma rede de “mulheres-tronco”, pois têm muita força.
Depois que começaram a dominar o microfone, essas elas estão fazendo e
acontecendo porque comunicação é poder. Não é à toa que, hoje, a gente
348
tem a I Conferência de Comunicação, em Brasília.
As pessoas têm paixão pelo rádio; com ele os ouvintes interagem, ligam,
escrevem, falam. Ontem mesmo ouvimos o Ulpiano Bezerra de Meneses
falar sobre a interatividade, sobre a questão da construção coletiva e vejo que
essa interação, essa dinâmica, o rádio possibilita como nenhum outro canal.
Eu já tive a oportunidade de estar no ar com um programa e, de repente,
receber uma mulher da zona rural que estava há três dias na cidade de
Brasília tentando enterrar sua filha, de três meses, vítima de desidratação.
Ela não conseguia a liberação do hospital porque a criança não tinha a
certidão de nascimento. Então, na frieza da lei se você não nasceu não pode
morrer. Há três dias aquela mãe tentava enterrar a criança, sem que
ninguém resolvesse seu problema. No momento em que você divulga o fato
no ar é impressionante como as pessoas todas se mobilizam. Houve até um
deputado que estava ouvindo, fez um pronunciamento e nós conseguimos
falar com o diretor do hospital. No dia seguinte, estávamos cobrindo,
jornalisticamente, o enterro daquela criança.
Existem coisas que o rádio consegue fazer de uma forma imediata; posso
ligar o rádio agora e falar diretamente para toda Amazônia. Direto de Ouro
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Preto, instantaneamente, não precisa câmara, não precisa do aparato que a
TV, que também propõe essa interatividade, exige. Eu já consegui falar com
este rádio, a manivela, para as crianças todas lá na ilha de São Miguel, que
é a mais linda do nosso Pará. Fica na Amazônia que é minha vida e o lugar
mais lindo que Deus criou. É assim que elas cantam, lá no Pará, vestidas de
pirarucu. Botam aquelas escamas do peixe, fazem roupas no tom do
pirarucu e dançam. E, como falei, estou nesse projeto, com essas mulheres,
falando ao vivo, porque havia uma antena de celular que estava sendo
instalada. Subi numa árvore e consegui pegar o sinal, falando longe das
terras civilizadas. Isso é uma maravilha! Por isso, o rádio tem protagonizado
os grandes momentos da comunicação no Brasil.
Tive o privilégio de morar na Inglaterra e de participar das primeiras
manifestações das mulheres que lutavam contra a alteração da lei do aborto
no Parlamento. Eu trabalhava na biblioteca da Embaixada do Brasil, em
Londres, num dos períodos em que tinha de ceder um espaço para Gilberto
Freire, que vivia lá tentando conseguir recursos para a Fundação Joaquim
Nabuco. E eu fazia militância no terreno do feminismo. Quando voltei, na
década de 1970, criei a Rádio Mulher e o programa Viva Maria, que
atravessou os anos definitivos para a cidadania brasileira porque, não fosse
a mobilização das mulheres, nem mesmo os homens teriam o direito à
licença paternidade de cinco dias. Naquela época, éramos tachadas de 349
loucas, alucinadas, diziam: “Que é isso, licença para homem tomar
cachaça?” Nós queríamos, por meio da licença paternidade, mostrar que
filho não é só da mãe.
Enfim, tive o privilégio de passar os anos de ouro da cidadania brasileira
pilotando os microfones, chamando as mulheres do Distrito Federal, nos
momentos decisivos do lobby, para dar o nosso recado. Gostaria de contar
um fato engraçado vivido por mim. Na época em que ainda se podia fumar
em empresas públicas, havia na Rádio um operador fumante inveterado.
Ele fazia o seguinte: tinha um listão de música e, nos intervalos, ele corria
para dar uma “fumadinha” e numa daquelas corridas estava tocando uma
música da Sandra de Sá. Ele parou a música para entrar um flash em que
eu estava conversando com uma repórter e ela diz: “Nesse momento
Jaqueline Pitangui entrega a carta das mulheres aos constituintes”. Em
seguida, entra o dr. Ulisses Guimarães dizendo: “Eu prometo fazer e
acontecer”... o operador retorna no instante em que eu afirmava: Espero
que as mulheres do Brasil tenham o destino proposto por esta carta entregue
aos constituintes. Dei o sinal para o operador colocar uma música; imaginei
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algo como Maria Maria que era o tema do programa, como é até hoje.
Sabem o que música ele colocou no ar? “Vou jogar fora no lixo”. Foi um
horror! Enfim, desse trabalho com as mulheres nasceu um livro intitulado
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Como trabalhar com mulheres.


E foi assim que fui trabalhar no Rádio da Floresta. Trago comigo um
CD de Sebastião Tapajós que é uma preciosidade, com os cantos e lendas
da Amazônia. Tem a história de Iara: Iara eu vim para te ouvir cantar Iara,
e Erivone Laranjeira, outra artista lá da Foz do Tapajós que diz: “Eu sou a
grande floresta, eu vim me apresentar, às vezes fico tão triste com a
devastação do lugar...” Então, só com esse programa Natureza Viva da
Rádio da Floresta, eu venho falando há 17 anos com essas populações
ribeirinhas, com essas populações extrativistas. Falo de Brasília nesse alcance
de raio que vocês estão vendo, simultaneamente, para os nove Estados da
Amazônia Legal.
O programa é uma revista radiofônica; nele eu vou para as comunidades
ouvir a voz das mulheres e seu protagonismo. Por causa desse trabalho
desenvolvi um projeto com o apoio da Fundação MacArthur, chamado
Mulher nas Ondas do Rádio, Corpo e Alma Rompem o Silêncio. As
mulheres escreviam cartas, falando de direitos reprodutivos e de saúde, mas
350
sempre com pseudônimo. Então, a proposta do projeto para a fundação foi
transformar essas cartas em um caminho para se buscar a interlocução com
essas mulheres da floresta que queriam falar desse universo. Criamos uma
rede de repórteres “maritacas” formada por criaturas lindas treinadas para
usar os meios de comunicação e dar o seu recado. Uma delas mandou uma
carta dizendo: “Mara Régia, depois que minha voz começou a correr mundo
por essa Amazônia – elas falam comigo do orelhão – eu estou tão
importante aqui na comunidade que até meu marido está falando mais
baixo”. Isso é uma maravilha não é? Esse projeto foi muito interessante.
Venho, portanto, desde esse período, capacitando mulheres, já fiz mais
de 300 oficinas e tem muita carta de ouvinte que eu selecionei, depois se
vocês tiverem interesse, inclusive, um poema de uma trabalhadora rural que
conseguimos que ilustrasse o calendário da Embrapa. Ele diz: “Eu sou uma
Maria quarqué... Uma dessas mulheres que vai a pé, que vive de carroça...”
Enfim, é incrível, outras cantam, essas mulheres têm um vigor...
Estamos às vésperas do dia de nascimento de Chico Mendes, o mês de
dezembro é o mês de seu nascimento e da sua morte e é impossível a gente
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deixar de lembrar a presença, a força do nosso herói e contar para vocês um
caso que eu ouvi lá na Cachoeira, que é o seringal. O Sebastião que é
sobrinho do Chico Mendes estava lá, fazendo um talho na seringueira e
falei: como é quando os gringos vêm aqui – agora tem uma pousada em
Cachoeira, dentro do seringal –, eles ficam encantados? Ele me respondeu:
“Mara Régia, eles acham que a borracha tem que ficar branca para sempre,
não entendem porque as árvores escurecem. Agora o pior não é isso, eles
vêm aqui querendo achar a cachoeira e, quando nós contamos que aqui
não tem cachoeira nenhuma, nós só ‘butemo’ esse nome porque ‘nós gosta’,
nós acha bonito esse nome de Cachoeira”. Então, imaginem a decepção dos
franceses, ingleses que vão para ver uma cachoeira no seringal e não
encontram cachoeira nenhuma.
Outro trabalho que estou desenvolvendo é uma radionovela feita com
base nas cartas que as mulheres escrevem. Por exemplo, tinha uma CPI da
mortalidade materna cujo roteiro foi encaminhado para os canais
responsáveis. Das oficinas, fazemos os livros, a partir dos relatos das
mulheres, e são coisas muito lindas. Também traduzo publicações como
essas, sobre as quais, ao longo de dez anos, os pesquisadores do Centro
Internacional de Pesquisa Florestal – Cifor e da Embrapa se debruçaram. A
população narra histórias em torno de cipós, palmeiras e tudo o mais, só que
a população, não tem acesso porque é um livro caro e raro. Além do mais, 351
houve apenas uma tiragem. Eles adoram quando falam de plantas e ervas-
medicinais da Amazônia.
A abertura deste CD que trago comigo é feito na voz do “seu Brás” que
soube guardar o “Piqui” na mata, como herança para os seus filhos e netos.
No momento em que eu estava entrevistando o “seu Brás”, ele,
simplesmente, começou a cantar aqueles pontos do caboclo, do indígena e
meu pai era índio, meu avô era índio, indígena do pé duro. E não é
brincadeira não, ele foi, apagou os olhinhos, assim, e caiu do lado e eu falei:
“seu Brás, seu Brás, ele morreu durante a entrevista”. Então, este CD é uma
homenagem a ele e espero que vocês honrem essa brava gente brasileira,
gente que é genuína, matéria-prima mesmo. Pessoas que não foram
contaminadas por uma mídia perversa, gente que tem contato com essa
maravilha. Então, acho que essa região do Brasil tem a riqueza que nos falta,
não no bolso, mas na alma, no entendimento do que é a nossa brasilidade,
que é nosso patrimônio imaterial.
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D E S A F I O S PA R A O S I S T E M A
N A C I O N A L D E C U LT U R A
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Frederico Barbosa*

RESUMO
* Pesquisador do O texto busca traçar as perspectivas para o setor cultural, a partir dos
Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada
cenários nos quais a política de cultura se insere, hoje. A perspectiva é que
– Ipea o Sistema Nacional de Cultura seja consolidado, com capacidade para
articular atores públicos e privados. Para que isso aconteça, no entanto, será
necessário criar mecanismos de coordenação, de planos, sejam eles gerais
ou localizados, além de ter a capacidade de articulação de um arco de atores
em instituições participativas estáveis e promover a discussão participativa
desses elementos todos. Além desses pontos, o trabalho aponta ainda a
importância de estabelecer com um “S” só, mecanismos estáveis de
pactuação entre os gestores públicos, nos três níveis de governo. Esses são
alguns dos principais pilares para que o Sistema Nacional de Cultura se
consolide.
352

PALAVRAS-CHAVE
Sistema Nacional de Cultura, Recursos financeiros, Articulação.

INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre as perspectivas para a área
cultural até o ano de 2022. A estratégia analítica central é a elaboração de
cenários que permitam explorar possibilidades para o futuro e ao mesmo
tempo organizar a reflexão a respeito de desafios do presente. Em geral, a
técnica de elaboração de cenários deve lidar com simplificações, em contextos
de incerteza e complexidade. Em muitos casos, o processo de reflexão e
organização de hipóteses é mais importante do que os cenários gerados.
Nesse espírito, foram elaborados quatro cenários possíveis para a área
cultural em 2022, tendo como variável central comum os recursos
financeiros, ou mais precisamente, o sistema de financiamento subjacente.
Os cenários têm significados em termos de prospecção do futuro, mas
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também permitem problematizar as linhas de força da organização e das 1. A definição do
SNC encontra-se em
estratégias de construção do Sistema Nacional de Cultura (SNC).1 Então, vários documentos
foi possível usar os cenários para uma reflexão sobre necessidade políticas de da SAI/MinC,
dentre eles o
mais curto prazo, que permitiriam ordenar, hierarquizar e priorizar ações. “Cultura, cidade e
desenvolvimento
Como se disse, a questão do financiamento será aqui tratada com certa local”, que o
minúcia, pois é central no Cenário Normativo (CN),2 expressão do cenário descreve como “um
processo de
desejado. Existe uma proposta de Emenda Constitucional voltada para esse articulação, gestão e
assunto, a PEC 150/2003, que atribuiria ao setor cultural, caso aprovada, promoção conjunta
e coordenada de
um sistema de financiamento com base fiscal-orçamentária de caráter iniciativas, na área
nacional e público. O problema do financiamento, na verdade, é o ponto cultural, entre
governos federal,
forte e ao mesmo tempo o problema nuclear nas estratégias de consolidação estaduais e
do Sistema Nacional de Cultura (SNC). Então, deve ser considerado municipais e destes
com a sociedade
quando da reforma e da construção das instâncias organizativas, nas civil, com o objetivo
estratégias de ampliação da infraestrutura e no desenvolvimento da de implementar uma
política pública de
produção cultural. cultura democrática
e permanente,
A reflexão sobre os quatro cenários vai procurar responder pelas visando ao
desenvolvimento do
condições de consolidação de um SNC. Parte das premissas de que a setor, com pleno
Constituição Federal de 1988 estabeleceu a ideia de um federalismo cultural exercício dos direitos
e acesso às fontes da
cooperativo, que o Estado e a sociedade brasileira não garantiram efetiva e cultura nacional”.
substancialmente sua realização e que a PEC 150 oferece os recursos para a Esse documento
353
também aponta os
realização do programa constitucional. Assume-se que, como os diretos acordos de
culturais são direitos de cidadãos, as instituições básicas que os realizam cooperação
federativa como um
devem ser universais e os recursos devem atender a todos segundo princípios dos instrumentos
de igualdade e equidade. básicos para a
implantação do
Em primeiro lugar, o texto estabelece que o problema central da área SNC.
cultural é a sua dificuldade de estabelecer uma política nacional abrangente. 2. Os conceitos aqui
utilizados foram em
Mostra a fragmentação e a desarticulação das instituições da área ao grande parte
apresentar o padrão de distribuição e as carências dos municípios brasileiros aproveitados de
Buarque, S. C.
em termos de instituições culturais. Depois apresenta os pressupostos Metodologia e
conceituais para delimitar uma das estratégias que viria responder ao técnicas de
construção de
problema selecionado. O SNC organizaria e criaria capacidades estatais para cenários globais e
enfrentar a fragmentação e a escassez de recursos na área, otimizando-os e regionais. TD nº
939. Brasília,
racionalizando os usos dos recursos disponíveis. Então, nessa parte a análise fevereiro de 2003.
tenta responder provisoriamente a algumas questões. O que é o SNC?
Como pode ser interpretado à luz do arcabouço jurídico-constitucional no
sentido de consolidar o federalismo cooperativo? Qual o papel do
financiamento, quais os desafios da PEC 150 e como se integram aos
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princípios do federalismo cooperativo? No mesmo movimento, já se começa


a delimitar o Cenário Normativo ou desejado.
|

Esse quadro permite delimitar os potenciais de um SNC e seus desafios,


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

que convergem em torno da necessidade de encontrar fórmulas para a


garantia de equipamentos urbanos culturais em quantidade suficiente em
especial para aqueles municípios com maiores dificuldades fiscais e
econômicas. Embora seja possível estabelecer estratégias diferenciais para a
adesão dos municípios aos mecanismos de um SNC, não é razoável e nem
é compatível com as premissas constitucionais excluí-los do sistema, sequer
provisoriamente, com o argumento da estratégia política ou de processo
gradualista.
Além disso, ao refletirmos sobre perspectivas futuras, lançaremos
também um breve olhar sobre o passado e sobre o padrão de
desenvolvimento da infraestrutura cultural dos municípios. O olhar para o
passado tem uma função analítica e metodológica específica, a de permitir
que se levante a hipótese de que essa infraestrutura deve ser objeto de
reflexão específica e deve ser pensada politicamente como parte do pacto
federativo. Também nos permite assentar outra premissa, qual seja a
necessidade de fortalecimento dessa mesma infraestrutura.
354 Por exemplo, sabe-se que os usos e a frequência aos equipamentos
culturais dependem de variantes socioculturais locais específicas e que não
é razoável esperar que cada município brasileiro tenha o mesmo rol de
equipamentos com as mesmas funções. O desafio aqui é repensar o papel e
funções dos equipamentos e da infraestrutura cultural, dadas as
peculiaridades de cada localidade, mas, sobretudo, o desafio é pensar em
políticas que permitam potencializar e de fato articular essas instituições
em quadro global de ações.
Para construir os cenários, partimos da ideia de um SNC descentralizado
e participativo, portanto a partir da ideia de espaços públicos institucionais
articulados em nível nacional. Numa hipótese inicial, esse Sistema pode ser
estruturado com significativo aporte de recursos fiscais das três instâncias de
governo ou não. Outra hipótese ergue-se sobre a existência de um eficaz
arranjo de interlocução entre atores. Como terceira hipótese, considera-se
a possibilidade da criação de fortes incentivos para o fortalecimento da
infraestrutura institucional dos municípios. Nesse caso, tanto o espaço de
atuação pode ser o próprio município quanto pode vir a ser agrupamentos
deles, ou territórios mais ou menos abrangentes.
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O uso de recursos analíticos variados para o estabelecimento das
hipóteses de base não deve confundir o leitor. Ao se pensarem os desafios
da consolidação de um sistema de financiamento a partir da análise de
probabilidades feitas segundo premissas políticas não realizadas – como a
aprovação de vinculação de recursos proposta na emenda constitucional
(PEC 150/2003) –, o que se faz é estabelecer como premissa que os recursos
financeiros têm centralidade na discussão de federalismo cultural, sejam
eles os previstos na PEC ou em outro arranjo de financiamento,
simplificando em grande parte a discussão a respeito de capacidades estatais.
Por fim, o estabelecimento de cenário permite que se organizem
discussões mais substantivas a respeito do federalismo cooperativo,
especificamente no que diz respeito ao desenho das atribuições, ou seja,
quais são – ou devem ser – as responsabilidades e as competências de cada
esfera de governo no processo de garantia dos direitos culturais.

PROBLEMA: A FRAGMENTAÇÃO E DESARTICULAÇÃO DAS


INSTITUIÇÕES CULTURAIS
Os municípios brasileiros em geral têm grandes carências no que se refere
às instituições que garantem os direitos culturais. As redes de orquestras,
museus, bibliotecas, livrarias, as emissoras de rádio e televisão, arquivos, 355
equipamentos culturais de Estados e municípios integram o SNC. Por isso,
a reflexão sobre as condições de existência da cultura como objeto da
política de Estado (o Estado supõe o território nacional) não prescinde do
dimensionamento constante da presença e importância da oferta
territorializada de equipamentos culturais, por mais controvertidos que
sejam os seus papéis nas políticas culturais.
Dos 5.556 municípios brasileiros, 152 não têm nenhum equipamento
cultural e apenas 53 possuem todos eles. Para efetuar a análise da densidade
da oferta de equipamentos nos municípios criaram-se alguns agrupamentos,
a partir de 15 tipos de equipamentos culturais.
Foram considerados de alta densidade de oferta os municípios onde se
encontram pelo menos 12 equipamentos (80%); média densidade de oferta
– pelo menos 6 (40%) dos equipamentos; baixa – menos de 6
equipamentos com presença superior a 50%.
De acordo com essa categorização, 82% dos municípios apresentam
baixa densidade de oferta de equipamentos culturais, sendo que a região
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Norte apresenta 85% de municípios nessa categoria, dos quais 16,6% se


situam como municípios com média densidade de oferta de equipamentos.
Com alta densidade apenas 1% das municipalidades brasileiras.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Alguns Estados estão um pouco melhor relativamente à média: Rio de


Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, no Sudeste; Santa Catarina, Rio Grande
do Sul e Paraná, na região Sul; os Estados do Centro-Oeste, Ceará na região
Nordeste, e Acre, Amazonas, Amapá e Rondônia na região Norte têm
percentual de municípios com equipamentos acima do percentual nacional.
É importante destacar que cada grupo de municípios por densidade de
oferta de equipamentos apresenta heterogeneidades, mas pode-se
caracterizá-los como conjuntos relativa e comparativamente homogêneos.
Os municípios de alta densidade de oferta detêm 38% do Produto Interno
Bruto (PIB) e 26% da população. Seu PIB per capita é 43% superior ao do
Brasil. O PIB médio dos 53 municípios da categoria alta densidade é muito
superior ao do Brasil. Aqui está 1% dos municípios brasileiros, ou seja,
apenas 53 municípios têm alta densidade de oferta de equipamentos.
Os municípios de média densidade de oferta representam 42% do PIB
e 41% da população. Seu PIB per capita é pouco superior ao nacional (3%).
356 A mesma distribuição do PIB pela categoria indicaria que os municípios
de média densidade têm um PIB médio quase 260 vezes o do Brasil. Nesta
categoria estão 83% dos municípios brasileiros.
Os municípios de baixa densidade de equipamentos detêm 20% do PIB
e 30% da população. Seu PIB per capita é 61% do Brasil. O PIB médio dos
municípios de baixa densidade de oferta é apenas 24% do nacional. Esta
categoria tem 83% dos municípios brasileiros.
Essas breves considerações apresentam tentativas que, embora parciais,
já permitem pôr ordem às informações sobre os municípios e seus
equipamentos culturais. Esse quadro convoca a enunciação de duas
questões. A primeira é a necessidade de estabelecer políticas territoriais
diferenciais, pois os municípios, muitos diminutos e sem recursos, devem
ser objeto e sujeito de políticas específicas e próprias para cada tipo de
necessidade local. A segunda é que, sozinhos, os municípios dificilmente
conseguirão articular capacidades para implementação de políticas culturais
abrangentes. Dessa maneira, é necessário se pensar em articulações entre
municípios a partir de uma agenda de problemas construída entre eles.
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 357

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A oferta de equipamentos culturais obedece às motivações locais, sem
esforços significativos dos governos federal, estaduais e municipais, no
estabelecimento de políticas para a criação e aproveitamento racional de
equipamentos culturais. Estes foram distribuídos de forma aleatória (sem
coordenação ou planejamento mínimo) seguindo razões locais e não
políticas nacionais, estaduais ou municipais.
De modo geral, a densidade da oferta de equipamentos culturais nos
municípios brasileiros é baixa. Esse constitui um dos problemas do SNC:
a insuficiência da oferta institucional de espaços de produção, fruição e
acesso a bens culturais e, por decorrência, da democratização da cultura.
Diante dessa situação, algumas indagações precisam ser feitas. Nas
concepções de cultura vigentes, é estritamente necessária e desejável a
presença de todos os tipos de equipamentos culturais no espaço local? Na
presença de equipamentos, quais as funções que cada um deles pode
adquirir? Como conectá-los entre si e qual o melhor caminho para isso?
Qual o custo financeiro das opções? A mesma questão aparece no que se
refere à interconexão entre instituições culturais.
Portanto, estamos diante de questões relativas às concepções e ao lugar
que deve ser assumido pelos equipamentos culturais e, por outro lado, à
questão das prioridades alocativas, tanto referente ao objeto (tipo de 357
equipamento ou ação), ao lugar de investimento (regiões de exclusão ou
territórios culturais diferenciados) e ainda das competências relativas aos
entes federados.
Em resumo, a iniciativa de criar o SNC já avança em termos políticos
com uma extensa e interessante rede de interlocução entre atores, mas
deverá enfrentar indagações operacionais, ou seja, que tratamento dar a
uma possível rede de informações e à sua rede física de maneira a
interconectá-los na forma sinérgica de um sistema? Como fazer para que as
decisões sejam subsidiadas por informações oportunas? Quais os critérios de
alocação de recursos? Quais os mecanismos institucionais que permitam
ações coordenadas e a negociação de conflitos?
Diante do exposto, é possível afirmar que o panorama atual e seus desafios
apontam para a existência dos seguintes problemas: a) insuficiência de
recursos locais, sejam financeiros ou de gestão; b) vigência de mecanismo de
financiamento que não tem referência com as diretrizes políticas; e c) ausência
de instituições federais, regionais e locais capazes de organizar a demanda.
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 358

Vo l . 1

Ensejam-se assim os delineamentos de quatro cenários para a área da


cultura, no ano de 2022 – quais sejam: Cenário de Crise; Cenário
Extrapolativo, Cenário de Referência ou o mais provável; Cenário
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Normativo ou Alternativo (o desejável) –, que serão considerados adiante.

O FEDERALISMO COOPERATIVO E O
SISTEMA NACIONAL DE CULTURA
CENÁRIO DESEJADO
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu os direitos culturais e a
participação como bens primários. São direitos para os quais a própria CF indica
responsáveis pela sua garantia. No caso da cultura, é dever do Estado constituir
as condições institucionais para o exercício dos direitos pelos cidadãos.
No entanto, além do poder público e das suas três instâncias
organizadoras, ou seja, União, Estados e DF e municípios, cabe também aos
mercados e à sociedade, ainda interpretando a CF 1988, a ação contínua na
proteção, dinamização e valorização do patrimônio cultural, tanto material,
quanto imaterial.
A forma mais frequentemente discutida para a potencialização e
358 racionalização das ações do poder público na garantia dos direitos consiste
no Plano Nacional de Cultura (PNC) e no Sistema Nacional de Cultura
(SNC). O elemento mais central – embora sempre acompanhado de
recursos humanos, de gestão e tecnológicos – é o financiamento. O Plano
foi inserido na CF pela Emenda Bene, o Sistema tem a PEC 416 e o
financiamento, a PEC 150. Com a aprovação dessas propostas, a área teria
um conjunto de elementos jurídicos capaz de delinear o Sistema Nacional
de Cultura de forma clara e explícita.
A Constituição de 1988 institui, em seu artigo 23, o federalismo cooperativo,
elencando matérias de competência comum entre os entes federados. Ressalva
ainda que lei complementar fixe normas para essa cooperação.
O artigo 24 define competências concorrentes entre a União, Estados e
DF, ressalvando aqui a limitação da união em estabelecer normas gerais, e
conferindo aos Estados e municípios a prerrogativa de adaptá-las às suas
especificidades, desde que não contrariem as leis federais. Os municípios não
estão situados na área de competências concorrentes, mas têm competência
para suplementar as legislações federais e estaduais quando lhes couber.
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 359

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ORGANIZAÇÃO DO FEDERALISMO COOPERATIVO
CULTURAL NOS ARTIGOS DA CF/1988

Art. 22 - Explorar, diretamente ou mediante Lei complementar pode


Competência da autorização, concessão ou permissão, autorizar os Estados a legislar
União os serviços de radiodifusão sonora, e sobre questões específicas das
de sons e imagens; matérias relacionadas neste
- Exercer a classificação, para efeito artigo
indicativo, de diversões públicas e de
programas de rádio e televisão;
- Legislar sobre populações indígenas;
- Legislar diretrizes e bases da
educação nacional;

Art. 23 - Proteger os documentos, as obras e Leis complementares fixarão


Competências outros bens de valor histórico, artístico normas para a cooperação
comuns e cultural, os monumentos, as entre a União e os Estados, o
paisagens naturais notáveis e os sítios Distrito Federal e os
arqueológicos; municípios, tendo em vista o
- Impedir a evasão, a destruição e a equilíbrio do desenvolvimento
descaracterização de obras de arte e de e do bem-estar em âmbito
outros bens de valor histórico, artístico nacional
ou cultural;
- Proporcionar os meios de acesso à 359
cultura, à educação e à ciência;

Art. 24 - Proteger o patrimônio histórico, - No âmbito da legislação


Competências cultural, artístico, turístico e concorrente, a competência da
concorrentes paisagístico; União limitar-se-á a
(União, Estado e - Legislar sobre responsabilidade por estabelecer normas gerais;
DF) dano ao meio ambiente, ao - A competência da União
consumidor, a bens e direitos de valor para legislar sobre normas
artístico, estético, histórico, turístico e gerais não exclui a
paisagístico; educação, cultura, ensino competência suplementar dos
e desporto; Estados;
- Inexistindo lei federal sobre
normas gerais, os Estados
exercerão a competência
legislativa plena, para atender
a suas peculiaridades;
- A superveniência de lei federal
sobre normas gerais suspende a
eficácia da lei estadual, no que
lhe for contrário.
Elaboração dos autores
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 360

Vo l . 1

O desenho de federalismo cooperativo é justificável não apenas no


quadro de enormes heterogeneidades dos territórios, populações e
economias, mas também pelas necessidades de tratamento adequado a cada
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

uma das realidades locais, pelas suas diferentes capacidades institucionais e


financeiras. É um instrumento de atuação pragmática para solução de
problemas concretos, de maneira a racionalizar a atuação dos entes
federativos e dos recursos disponíveis. De certa maneira, esse formato
implica unidade e complementaridade na atuação das esferas de governo.
O objetivo desse tipo de federalismo é exatamente a cooperação para a
qual são necessários mecanismos operacionais de coordenação das ações e
na definição de objetivos. Sendo assim, os processos de decisão, em geral,
são conjuntos, embora a execução possa ser realizada de forma separada.
Não há modelo padrão aqui.
O que há de elemento comum é a cooperação e a possibilidade do
planejamento compartilhado. Entretanto, as leis complementares que
dariam vigência a um sistema com competências definidas para União,
Estados, municípios e DF jamais foram discutidas.
Dessa forma, pode-se afirmar que o que há de característico ao
federalismo cultural brasileiro, tanto em termos jurídico-constitucionais
360 quanto na atualidade política, é a presença, por um lado, de um sentido
geral e potencial de cooperação; por outro, na realidade política, por uma
falta de iniciativas políticas suficientes para dar-lhes um caráter substantivo
e operacional.
Assim sendo, a CF/1988 trouxe, no seu desenho, a possibilidade do
federalismo cooperativo no âmbito cultural. As PECs ora em trâmite no
Congresso Nacional apenas explicitam certo espírito de sistema, já presente
no conjunto do texto constitucional. É verdade que a PEC/150 traz uma
novidade, que é a vinculação de recursos para a área cultural, mas deve-se
dizer que, em caso de aprovação, tal qual expressam os artigos 22, 23 e 24,
a consecução disso dependerá da discussão e aprovação de leis
complementares.
Muito provavelmente, será no espaço político de discussão das leis
complementares que o SNC ganhará contornos mais concretos e
consistentes. Sem descuido dos processos políticos e sociais postos em
marcha nos anos 2000 para a construção do SNC – sejam eles traduzidos em
seminários, fóruns, conferências, convênios, criação de fundos, conselhos
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 361

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estaduais e municipais, subsistemas setoriais ou movimentos sociais –, parece
que a prova dos nove da institucionalização é a inscrição, na Constituição,
de dispositivos que expressem definições mais substantivas e politicamente
mais consistentes com o espírito já presente no constituinte de 1988.

O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA:


QUATRO COMPONENTES
O Sistema Nacional de Cultura, na sua engenharia e desenho, é de
grande complexidade. E o que significa isso? Primeiro, que esse sistema,
como um todo integrado, vai ter capacidade de articular atores públicos e
privados em um conjunto de relações de interdependência e coordenação. O
sistema, na verdade, visa a potencializar capacidades e a otimizar a ação dos
atores. A melhor forma de fazer isso é através de mecanismos de
coordenação, seja através de planos, seja através de normas gerais, de seu
ajustamento a planos localizados, com vários níveis territoriais, e assim por
diante. A ideia básica é que deve haver uma articulação e uma coordenação
entre os atores que estão presentes no sistema em torno de estratégias,
diretrizes e prioridades políticas.
Segundo ponto: que o sistema terá capacidade de articulação de um arco
de atores em instituições participativas estáveis. O sistema tem um conjunto 361
de mecanismos gerais de articulação. São várias as formas de articular um
sistema. Ele pode ser articulado através de incentivos fiscais, linhas de
créditos, repasses orçamentários, organização de espaços e estruturas que
permitam e signifiquem o exercício efetivo da cultura; ou seja, a articulação
pode se relacionar com um sistema de incentivos financeiros a projetos, a
planos, a comportamentos institucionais e assim por diante. Mas há outro
elemento também presente que é existência de órgão de participação e
pactuação. Então, esse será o segundo mecanismo, ou seja, um sistema de
interlocução entre os atores. Em suma, têm-se dois componentes,
diferenciados analiticamente, mas podem na prática estar articulados:
conjunto de operações de coordenação e conjunto de mecanismos de participação.
Terceiro ponto: nesse contexto participativo abrangente, onde se
encontram atores da sociedade civil e públicos, podem-se destacar espaços
específicos de discussão de temas relacionados à gestão do sistema. Isso não
implica impermeabilidade da gestão à participação ampliada e nem a sua
redução a um tecnicismo. A ênfase é dada aqui aos mecanismos estáveis de
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 362

Vo l . 1

pactuação entre os gestores públicos nos três níveis de governo. Então, já está
aqui um terceiro elemento: mecanismo de pactuação intergestores. Também
aqui a separação tem finalidade analítica, não sendo de todo impossível que
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

participação ampliada reforce a pactuação intergestores e vice-versa.


Recapitulando. O primeiro elemento relaciona-se com o exercício do
sistema, analiticamente falando, separado do elemento participativo e
separado do terceiro elemento que é a pactuação de diretrizes, linhas,
objetivos pelos gestores. Aqui se enfatiza e se separa analiticamente a
participação social ampliada dos elementos propriamente técnicos, políticos
que envolvem as atribuições administrativas dos gestores.
O quarto ponto será abordado com mais calma mais adiante e é central
na conformação do SNC, ou seja, trata-se dos recursos ou do sistema de
financiamento que dá materialidade e amplitude ao conjunto de elementos
descritos até aqui. O financiamento deve ser separado em dois tipos:
orçamentário e via incentivos fiscais gasto tributário indireto. Quanto ao
financiamento via gasto tributário indireto e à discussão das leis de
incentivo, considerou-se que os marcos legais não seriam alterados. Essa
aposta decorre da análise das amplas divergências que cercam a nova
proposta do Procultura, que substituiria a Lei Rouanet. Se ajustes houver,
362
serão ajustes laterais e não estruturais que recairiam, sobretudo, na política
de alíquotas, o que manteria os montantes, não alteraria os mecanismos
básicos de decisão, mas provavelmente mudariam as proporções entre
recursos próprios das empresas e os da renúncia fiscal; então, a mudança da
Lei Rouanet é um elemento fixo nos três cenários.
Portanto, o sistema ganha quatro dimensões:
a) sistema como conjunto de relações e operações institucionais;
b) sistema como conjunto de mecanismos de participação e comunicação
ampliada entre atores;
c) sistema como conjunto de comunicações e decisões entre os gestores;
d) sistema de financiamento.

Assim, o sistema nacional é composto por quatro elementos que são


fundamentais, separados analiticamente e que, no seu efetivo funcio-
namento, devem ter relações bastante densas.
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 363

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A TRÊS INSTÂNCIAS REGULADORAS
Ainda será abordado outro ponto, mas que deve ser aqui adiantado. A
cultura pode ser organizada em três grandes instâncias. E deve-se dizer que
não se dá ênfase aqui ao elemento ideológico e discursivo associado a essas
instâncias, mas ao fato histórico e sociológico de que a cultura tem nelas
referência normativa e elas oferecem elementos reguladores. Ou seja, as práticas
no campo cultural são referenciadas a essas três instâncias e o entendimento de
qualquer padrão de funcionamento do “sistema” tem que considerá-las.
A primeira instância é o mercado. A predominância da instância mercado
significaria ou significa, para alguns analistas, neoliberalismo ou liberalismo.
Ao contrário dessa posição, ao se associar aqui cultura e mercado não se faz
um julgamento moral ou político, mas se descreve um fenômeno.
Efetivamente o mundo da cultura tem uma regulação e dinamismo
importantes, ligados aos mercados.
Grande parte da atividade cultural, na indústria cultural, no audiovisual,
nas comunicações, uma parte das artes, consideradas belas-artes ou belas-
letras têm um elemento de mercado e encontram no mercado (como
sistema de produção e demanda por bens simbólicos) uma instância
organizacional importante.
363
A segunda instância é o próprio Estado. O papel do Estado é considerado
central ao se narrarem estórias sobre a política pública. O Estado, com suas
capacidades organizativas, com capacidades de articulação, de indução, de
incentivo e assim por diante, tal qual preconizado na Constituição, reflete
possibilidades de conferir à cultura uma densidade normativa e de recursos.
Ao alocar e direcionar recursos financeiros, humanos e de gestão, além de
criar normas, o Estado provê a sociedade de elementos próprios ao exercício
dos direitos culturais.
A terceira instância é constituída pelas comunidades e pela sociedade civil
propriamente, que cuidam ou desenvolvem atividades culturais que não
dependem nem do Estado e nem dos mercados. Hoje é possível exemplificar
ações nesse sentido com o Programa Arte Cultura e Cidadania, o famoso
Pontos de Cultura, e o Programa Mais Cultura como programas que
captam e estimulam essas formas de organização comunitária e locais, que
se associam com a indução do Governo Federal, depois dos Estados e
municípios, tendo na instância comunitária e local, os elementos mais
presentes na dinamização dos processos culturais.
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Vo l . 1

Então, têm-se três instâncias que devem ser pensadas sem preconceitos:
mercado, Estado e comunidade ou a sociedade. A partir desses elementos,
e considerando-se as dimensões constituintes de um Sistema Nacional de
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Cultura – relações e operações institucionais; mecanismos de participação


e comunicação ampliada entre atores; comunicações e decisões entre os
gestores; financiamento –, elaboraram-se quatro cenários diferenciados,
como apresentados da seção seguinte.

OS QUATRO CENÁRIOS
O quadro a seguir apresenta os cenários construídos para a área cultural
em 2022.

CENÁRIOS PARA A ÁREA CULTURAL EM 2022

CENÁRIO INSTÂNCIA SISTEMA ELEMENTOS


ORGANIZADORA NACIONAL DE
DOMINANTE CULTURA

Cenário de crise Mercado Recessivo a) Não aprovação da PEC 150;


b) Não consideração de planos
nacionais e locais para a
364 articulação de diretrizes, objetivos
e metas políticas;
c) Não operacionalização de
sistemas de participação;
d) Não participação de sistemas
de pactuação intergestores;
e) Manutenção dos incentivos
fiscais com mesmo desenho atual.

Cenário Sociedade- Fragmentado a) Não aprovação da PEC 150 e


Extrapolativo Estado aumento “natural” dos recursos
orçamentários;
b) Articulação de planos nacionais
e locais;
c) Operacionalização de sistemas
de participação;
d) Operacionalização de sistema
de pactuação intergestores;
e) Manutenção dos incentivos
fiscais com mesmo desenho atual.
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Cenário de Estado- Integrado- a) Não aprovação da PEC 150 e
Referência ou o sociedade focalizado aumentos significativos de
mais provável recursos (1% dos três níveis de
governo);
b) Articulação de planos nacionais
e locais;
c) Operacionalização de sistemas
de participação;
d) Operacionalização de sistema
de pactuação intergestores;
e) Manutenção dos incentivos
fiscais com mesmo desenho atual.

Cenário Estado- Integrado a) Aprovação da PEC 150;


Alternativo ou sociedade b) Articulação de planos nacionais
normativo e locais;
c) Operacionalização de sistemas
de participação;
d) Operacionalização de sistema
de pactuação intergestores;
e) Manutenção dos incentivos
fiscais com mesmo desenho atual.

365

Cenário de crise: se o problema é a construção do SNC, este é o pior dos


cenários. Então, o que acontece neste cenário? Aqui, delineia-se a
desarticulação do sistema de financiamento público orçamentário e não se criam
condições para um amplo leque de relações federativas cooperativas. Algo
análogo ao que ocorreu na década de 1990. O início dessa década não foi
realmente de desarticulação do sistema de financiamento orçamentário,
nem de supressão do papel do Estado, embora, de fato, tenha mantido
muito de suas fragilidades.
A área encontrou um primeiro momento no início da década de 1990
de grande desorganização, mas depois ocorreu uma estabilidade desses
recursos orçamentários. Mesmo que continuassem pequenos e insuficientes,
esses recursos não deixaram de crescer. Não foi, portanto, um momento de 3. Algo em torno
desarticulação completa. Até se pode dizer o contrário, o esforço de gasto 0,14% e 0,17% da
execução
foi em termos de participação nos orçamentos, similar ao da década de orçamentária.
2000.3
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 366

Vo l . 1

O terceiro elemento do cenário se refere à mitigação das iniciativas de


capacitação do Governo Federal para realização de políticas federativas.
Atualmente acontecem diversas iniciativas de aproximação do Governo
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Federal com governos estaduais e municipais e vice-versa. Já estavam


presentes no período discussões a respeito de políticas nacionais e sobre
possibilidades de um sistema, mas nenhuma iniciativa contundente se deu
nesta direção.
Atualmente, há um processo de interlocução cada vez mais intenso, o
que significa capacitação gradual para se consolidar o sistema. Para o
primeiro cenário, essa premissa é vista de forma pessimista. Com a
desarticulação de recursos financeiros, essa aproximação acaba sendo
problemática, o que é potencializado por lógicas políticas relacionadas aos
cenários regionais e municipais. Se estas forem contraditórias, podem gerar
dificuldades e mitigação das iniciativas de aproximação entre os níveis locais
de Governo e Governo Federal. Apenas um nível de recursos ponderáveis é
capaz de estabelecer incentivos e condicionar a aproximação entre atores
com recursos tão desiguais.
Cenário extrapolativo: no segundo cenário, a hipótese é a manutenção
das coisas como estão, em especial em termos de capacidades estatais. O
366
primeiro item é espelho daquele primeiro cenário, ou seja, se lá se tinha a
desorganização do financiamento, aqui a hipótese é a manutenção do
sistema de financiamento público orçamentário com suas tendências atuais.
Nos últimos anos, houve uma tendência de aumento dos recursos
orçamentários; aumentos bem significativos na década de 2000, mas na
lógica orçamentária que oferece acréscimos conforme parâmetros fiscais e
capacidades de execução dos órgãos setoriais. Essa lógica responde a
condições macroeconômicas e às políticas fiscais. Seguiu-se uma lógica
orçamentária que tem um componente político, mas também um
componente técnico-orçamentário muito forte.
Então, como se disse, a premissa aqui é a manutenção das tendências
atuais: manutenção dos incentivos fiscais e das capacidades vigentes do
Estado para realização das políticas federativas, que são ainda bastante
pequenas. Mas nesse segundo cenário se mantém a mesma trajetória de
articulação e de tentativas de capacitação. Então, ele é positivo, mas bastante
conservador, seria como se coisas continuassem mais ou menos como estão.
Cenário de referência ou o mais provável: este mostra uma ruptura nas
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 367

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tendências atuais, sobretudo com o aumento dos recursos, sem a aprovação
da PEC 150 e com aumentos de recursos fiscais significativos. Então, com
esse aumento dos recursos, presume-se que aumentarão todas as outras
capacidades – de articulação, de pactuação, de interlocução entre atores e
também de articulação entre os gestores. Dadas as movimentações em torno
do sistema, com a destinação de recursos para projetos locais, interlocução
entre agentes públicos e atores sociais, esse cenário torna-se o mais provável.
Obviamente, apresenta riscos significativos de não implementação, mas
dadas as tendências e as forças sociais presentes pode ser qualificado como
cenário de referência.
Cenário normativo ou alternativo: já extensamente abordado neste texto,
este seria o ideal. Plasmaria, na realidade brasileira, as prescrições da
Constituição Federal de 1988, que preconiza a vigência de um federalismo
cooperativo cultural no país. Em geral o cenário normativo é também o
desejado. Aqui, no entanto, optou-se por aproximá-lo do cenário
alternativo, pois esse expressa o compromisso com uma hipótese altamente
restritiva e improvável, que em caso de realização transformaria todo o jogo
político da área cultural. No entanto, mesmo com todo o apoio social já
registrado nas duas Conferências Nacionais de Cultura realizadas na década
de 2000, a aprovação é improvável, dadas as resistências da área econômica
às vinculações de recursos orçamentários, aos montantes que entrarão em 367
disputa com outras políticas e também em razão da presença de elementos
de imprecisão e generalidade da proposta.

PROBABILIDADE DE REALIZAÇÃO DOS CENÁRIOS


O primeiro cenário é pouco provável de se desenhar no horizonte
histórico atual. A área cultural formou uma ampla coalizão de defesa, e a
forma como vem se articulando torna pouco provável o recuo para formas
de regulação apenas mantidas pelo mercado. As duas Conferências
Nacionais e a mobilização para a discussão de temas da área comprovam
o amplo espectro do arco de alianças da área. Aliás, nem na década que
usualmente se chama de neoliberal, conseguiu-se pulverizar a presença da
instância estatal como fonte normativa, de regulação e incentivo à cultura.
Desde então, muita capacidade de resistência e de recriação de instituições
tem sido demonstrada na área cultural. Parece pouco provável, dado o
cenário de composição de força, de articulação e que o primeiro cenário
se cristalize.
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Vo l . 1

O segundo cenário, pelo seu caráter inercial, pareceria o mais verossímil.


O aumento do número de operações políticas de cooperação e de
direcionamento das ações dos níveis de governo para fortalecimento de
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

políticas culturais é um dos elementos que parece guardar forte dinamismo.


No entanto, parece evidente pelo comportamento das três esferas de governo,
que a inércia no aumento de recursos pode ser transposta. Dessa forma, a
pactuação de aumento de recursos até 1% dos recursos próprios pode ser
considerada de alta probabilidade, desde que os problemas de processamento
técnico e político, que estão sob certa governabilidade dos atores, sejam
trabalhados com a maior celeridade e responsabilidade. Nesse caso, pode-se
considerar que o limite entre o cenário extrapolativo, que apenas realiza
mudanças conservadoras ou canônicas, e o cenário de referência é a intenção
política de cada nível de governo em aumentar seus recursos para a cultura.
O terceiro cenário seria assim o mais provável dado o potencial de
mobilização e apoio. Também há que se considerar que o cenário 2 não aloca
recursos em nível suficiente para a construção de um sistema, mas mantém
um alto nível de fragmentariedade. As condições para um sistema nacional
estão presentes apenas no cenário de referência e no normativo.
Com relação ao quarto cenário, é intuitivo que, dificilmente, a PEC 150
venha a ser aprovada. Isso torna esse cenário pouco provável em sua
368 realização. Mudanças no sistema de financiamento, mediante a aprovação
de vinculação de recursos, que é o cerne desse cenário, têm aparentemente
pouca probabilidade de confirmação, dados os conflitos alocativos com
outras políticas e dados os problemas operacionais, que logo de início terão
que ser enfrentados. No entanto, nada impede que sejam feitos esforços de
aumentos de gastos tributários orçamentários nos três níveis de governo.
Dado o amplo leque da coalizão política e social na área, o principal óbice
é a disputa por recursos e as necessidades experimentadas por outras
políticas públicas. Diante desses fatores, esse cenário torna-se pouco
verossímil.
De qualquer maneira, vale voltar a atenção brevemente para questões
que envolvem a PEC 150 e a fragilizam para uma aplicação em curto espaço
de tempo. Ainda mais porque a PEC 150 permite interpretações
divergentes, pois apenas trata da vinculação de impostos e nada diz sobre
transferências constitucionais. Ao contrário, por exemplo, da Emenda
Constitucional nº 14 de 1996, que instituiu o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério
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– Fundef e definiu critérios operacionais, objetivos e a forma do
financiamento. Ali é tudo muito mais claro, em termos da destinação,
competências, quem faz o quê e assim por diante.

A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 150/2003


E O FEDERALISMO COOPERATIVO
A PEC 150 garante a vinculação de receitas de impostos para a Cultura:
determina que anualmente a União aplique 2%; os Estados, 1,5% e os
municípios, 1% das receitas resultantes de impostos diretamente em
Cultura. O aumento de recursos para o setor é um dos elementos
necessários para a estruturação do SNC.
Em qualquer das opções, o aporte de recursos será bastante significativo
e fundamental para a construção do Sistema Nacional de Cultura (SNC).
A definição dos mecanismos operacionais e dos critérios de repasse dos
recursos deverá ter um papel central na conformação do Sistema. Dessa
maneira, prováveis conflitos de interpretações devem ser considerados parte
de cenários que dificultem a aprovação ou aplicação da Emenda.
Portanto, cabem considerações a respeito da interpretação e aplicação
da PEC nº 150 e sobre o aporte de recursos que ela significará. A tabela 1
369
resume o problema. Apresenta duas interpretações possíveis para a Emenda.
A primeira considera que os percentuais se aplicam à arrecadação de
impostos (o que exclui taxas e contribuições) antes da dedução de
transferências constitucionais. A segunda considera impostos depois de
deduzidas aquelas transferências e a última considera uma posição defensiva
de cada nível de governo que procura o menor nível de alocação de recursos.
A expectativa de que essas interpretações se tornem objeto de conflito é
plausível, dado o fato de que a vinculação implicará pressões maiores ou
menores nos recursos de outras áreas tais quais, educação e saúde. Os
gestores dos níveis de governo tratarão de oferecer interpretações segundo
seus interesses como é visível na discussão da Emenda 29/2000 na área da
saúde, controvertida na definição de seus critérios de aplicação.
A PEC nº 150/2003 não se define, por exemplo, se a gestão de
documentos e os recursos destinados ao patrimônio e à cultura quilombola,
que são parte da área cultural na CF/1988, deverão ser considerados para
efeito de aplicação das alíquotas, ou se bibliotecas de órgãos públicos e de
universidades, claramente parte de políticas culturais, embora não
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 370

Vo l . 1

vinculadas ao MINC, também o serão. Além disso, a emenda de vinculação


de recursos para a cultura é bastante genérica com respeito às transferências
de recursos da União para Estados e Municípios.
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

A tabela abstrai essas questões simulando diferentes interpretações para


a aplicação de PEC 150.

TABELA – SIMULAÇÃO DA APLICAÇÃO DA PEC Nº 150/2003

Elaboração: Ipea/Disoc.

Observa-se que as opções 1, 2 e 3 resultam de diferentes interpretações


da PEC 150. No primeiro caso, a aplicação da EC resultaria em R$ 9
370 bilhões e se refere aos percentuais da emenda aplicados aos recursos antes
das transferências constitucionais. Nesse caso a participação da União nos
recursos seria de 54%, enquanto os Estados teriam 40% e os municípios,
4,6%.
A segunda opção considera a aplicação dos percentuais depois das
transferências e significa um aporte menor de recursos, em torno de 10%
inferiores aos da primeira opção. A participação da União cai para 27% (R$
2,2 milhões), a participação dos Estados e municípios sobe para 54,3% (R$
4,4 bilhões) e R$ 18,5% (R$ 1,5 milhões), respectivamente.
Na última alternativa os governos interpretam a PEC de forma defensiva
ou conservadora, destinando o menor nível de recursos, os recursos são
nessa estimativa, 30% inferiores à primeira opção. A participação dos
Estados passa a ser de 58%; a da União, 35% e dos municípios, de 6,8%.
Não se deve descuidar do forte potencial conflitivo da Proposta de
Emenda Constitucional, pois implica pressões sobre os recursos destinados
a outras políticas, sendo que os recursos financeiros das políticas federais se
tornam objeto de muita sensibilidade, pois, a depender da opção,
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significariam, aproximadamente, mais ou menos três bilhões de reais no
orçamento da União. Mas, problemas alocativos e políticos similares
envolveriam Estados e municípios. Outro ponto é o da equidade regional,
ou seja, as opções implicariam diferentes resultados distributivos.

EQUIDADE REGIONAL E ATRIBUIÇÕES DAS ESFERAS DE


GOVERNO
Não custa bater na mesma tecla: o financiamento das políticas culturais
governamentais é insuficiente e penaliza os diferentes segmentos culturais
e a população que se vê diante da deterioração do patrimônio cultural e da
infraestrutura cultural básica. Os efeitos são obviamente perversos, no que
se refere à promoção dos direitos culturais. Em que pesem os problemas
anteriormente apresentados, é clara a necessidade de dar tratamento
adequado à questão do financiamento cultural e é desejável o aumento de
recursos.
Ao mesmo tempo é necessária uma distribuição de encargos entre as
esferas de governo. Atualmente as competências são concorrentes, ou seja,
não são claras as responsabilidades específicas de cada uma das esferas
governamentais. Dados os montantes de recursos, certamente serão
necessárias definições pactuadas sobre as responsabilidades respectivas, que 371
permitam a ações coordenadas entre níveis de governo para a redução das
desigualdades e desenvolvimento da institucionalidade da cultura.
O grande desafio, parece-nos, será o de conciliar descentralização com
capacidade de redução de desigualdades regionais. Esse desafio apresenta-
se na forma da necessária conciliação da centralidade do papel dos
municípios na execução de políticas culturais e o papel da União e dos
Estados na articulação de interesses federativos.
Dada a escala diminuta dos municípios, é imprescindível a articulação
em níveis territoriais e em escala ampliada. Os consórcios constituem
componente de uma alternativa interessante, pois partem da ação e de
iniciativas das próprias municipalidades. Há outras possibilidades, a
exemplo de redesenho de territórios culturais, de uso de microrregiões e
mesorregiões como espaços de representação de interesse e planejamento
de ações.
Embora o conceito de descentralização comporte múltiplos significados,
importa aqui um, em especial: o de que a descentralização significa
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redistribuição de recursos, espaços de decisão e responsabilidades. A


montagem do SNC implica, então, a busca de um equilíbrio entre essas
dimensões.
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Entretanto, dada a reconhecida heterogeneidade dos municípios e a sua


baixa densidade econômica, social e cultural, seguida das suas carências em
termos de infraestrutura cultural básica e capacidades financeiras, é razoável
postular que a atuação administrativa e política na área cultural tenha de
partir de unidades territoriais maiores do que a do próprio Município. Não
é razoável esperar, por exemplo, que todos os municípios menores de 50
mil habitantes tenham todos os equipamentos culturais, mas é possível uma
administração pactuada por parte de aglomerados de municípios de
tamanhos diversos.
Apesar desses desafios, de qualquer ângulo que nos situarmos, a PEC
150, se aprovada, aportará recursos significativos para a cultura, mas, em
termos de equidade regional, dependerá das atribuições da União e dos
Estados. A compensação pelas desigualdades poderá estar alicerçada, no que
se refere ao papel da União, na parte dos repasses obrigatórios para os
Estados e municípios.
Há ainda a questão nada trivial que diz respeito à definição do que se
372 constitui desenvolvimento cultural ou mais precisamente o que é ou como
se define “dispêndio cultural”. Qual é o objeto do financiamento cultural?
Essa questão ganha relevância, dadas as esperadas resistências às
transferências vinculadas para a cultura, resistências que são naturais, dados
os impactos sobre os recursos de outras políticas. Mas as resistências podem
ser minimizadas com definições abrangentes para essa questão, com ações
estruturantes sobre a qualidade de vida, educação, geração de empregos e
ações transversais com outras áreas (políticas urbanas, de segurança,
transportes, etc.).

ALGUNS DESAFIOS E UM DESAFIO ESTRUTURAL


Os municípios e Estados brasileiros são, em graus variados, dependentes
de recursos de outros níveis de governo. Um complexo sistema de repasses
financeiros da União para Estados e municípios e de Estados para
municípios foi criado para compensar algumas das assimetrias presentes
entre os níveis de governo e garantir que eles pudessem exercer suas
prerrogativas constitucionais.
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Na verdade, é a estrutura tributária, com repasses constitucionais
obrigatórios, com a divisão de recursos tributários, que compensam as
dificuldades de Estados e municípios. A grande parte dos municípios e boa
parte dos Estados dependem de recursos recolhidos pela União para
realização de políticas. Essa é a estrutura federativa brasileira.
As assimetrias na distribuição de capacidades, de articulação de realização
de políticas e de recursos humanos seguem a mesma lógica aqui dos recursos
financeiros. Onde se tem mais recursos financeiros, provavelmente
encontram-se maiores capacidades institucionais, de recursos humanos e
também de gestão.
A cooperação é de níveis múltiplos. Pode estar presente na formatação e
desenho das políticas, na estruturação de capacidades estatais de diferentes
tipos e modalidades, a exemplo das capacidades de planejamento, gestão,
formação de recursos humanos, conhecimentos técnicos, procedimentais,
jurídicos, financeiros, entre outros.
A fixação de focos e objetivos precisos para realização das políticas e
ampliação de capacidades é necessária. Complementarmente, devem ser
desenvolvidas visões de conjuntos dos problemas a serem enfrentados.
O que se afirma aqui é que, no processo de construção de um Sistema
373
Nacional de Cultura, ainda se está na fase de articulação e que, para sua
consolidação, será essencial uma produção normativa muito forte, como
aconteceu no SUS, com as diversas normas operacionais.
Portanto, há uma necessidade de criação de normas. No caso do SUS,
são normas gerais, que atingem níveis operacionais muito específicos, tanto
na transferência de recursos, quanto nas atribuições de Estados, municípios
e da própria União em um sistema integrado. Portanto, não parece suficiente
simplesmente postular um sistema de articulação, mas há necessidade de
uma produção normativa muito complexa para que essa articulação seja
eficaz em termo de políticas.
Em resumo, se a prática mostra desde já que o SNC avança em função
de capacidades institucionais subjetivas, isto é, de informação técnica e de
formação de pessoal qualificado, dotado de grande plasticidade – potencial
de adaptação criativa aos contextos –, também mostra a carência de recursos
para a ampliação e qualificação intensiva desse capital humano e para a
pactuação de linhas de ação e estratégias de médio e longo prazos.
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Vo l . 1

Por outro lado, as capacidades dobram-se em capacidades objetivas, isto


é, recursos financeiros e de gestão. Não se quer dizer aqui nada próximo ao
discurso da gestão flexível. Mas como a área cultural é muito complexa,
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deve-se falar o tempo todo da questão da transversalidade de suas atividades.


A área exige transversalidade e os recursos têm de ser muito qualificados
para aplicar esse princípio ou critério. Um técnico formado em uma
determinada área que só domina a sua especialidade discute e dialoga mal
com as outras áreas. Então, a formação de capacidades de diálogo
qualificado aqui é muito importante: diálogo técnico e diálogo referente à
programação orçamentária, diálogo referente às operações necessárias, por
exemplo, a uma licitação; tudo isso é muito importante na área, além da
sensibilidade e a capacidade de estabelecer articulações e ações qualificadas
com agentes culturais propriamente.
Outro ponto é o da unidade territorial da política. Provavelmente, os
municípios não têm escala suficiente para gerenciamento de uma série de
recursos – se não têm nem na área de saúde, que em alguns casos é mais
padronizada, muito menos teriam na cultura. Nesse caso, as escalas de
gestão territorial talvez devam ser objeto de reflexão política diferenciada.
Os consórcios municipais, as associações de municípios, etc. resolvem em
374
parte essa questão.
O consorciamento de municípios significa que eles podem discutir a
distribuição de equipamentos, de atividades, de atribuições relativas à
capacitação, entre outras. Então, isso é uma possibilidade a ser tentada de
uma forma mais radical na área de cultura.
Existem algumas iniciativas, mas a ampliação das experiências talvez seja
um elemento importante de simplificação desse sistema, que tem que lidar
com um grau de heterogeneidade muito grande, que não é só financeira; é
também de capacidades. Então, repensar a unidade territorial de gestão
talvez seja um elemento importante para área, ao mesmo tempo em que se
faz necessário estabelecer e consolidar instrumentos de interlocução e
planejamento conjunto.
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P RO J E T O B A RC O S DO BRASIL

Luiz Phelipe Andrés*

RESUMO
O Projeto Barcos do Brasil foi criado no âmbito da Diretoria do * Diretor do Centro
Vocacional
Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan com o propósito de estabelecer Tecnológico
um sistema integrado de salvaguarda do patrimônio naval brasileiro. O Estaleiro-Escola
presente trabalho se inicia com breve histórico, evidenciando o papel
preponderante das embarcações artesanais de pequeno porte na saga de
conquista e ocupação do território brasileiro e sua função como principal
meio de transporte até o período do primeiro quartel do século XX. Enfatiza
o valor e a riqueza da diversidade de modelos navais e as implicações de
natureza econômica na vida das populações que habitam cidades que
nasceram das navegações. Mostra os riscos de desaparecimento de séculos
de conhecimentos acumulados na cabeça de alguns mestres carpinteiros
navais e ressalta as dificuldades que ocorrem na luta para preservar estes
valores ameaçados.
375

PALAVRAS-CHAVE
Barcos, Patrimônio, Salvaguarda.

Foi com muita satisfação que aceitei o honroso convite para apresentar
este valioso projeto denominado Barcos do Brasil que vem sendo
implementado pelo Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização
do Iphan, por iniciativa do arquiteto Dalmo Vieira Filho e sua equipe.
Considero que se trata de uma excelente oportunidade de abordagem
de um tema em que a instituição, mais uma vez, cumpre suas atribuições.
E o faz de forma exemplar, como vem sendo conduzido o projeto Barcos do
Brasil, em que testemunhamos a criação de um sistema de proteção para
uma parcela significativa da cultura do país, que é o patrimônio náutico.
É gratificante, para quem conhece as imensas dificuldades que existem
nesse setor, poder acompanhar a evolução desse processo e também
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demonstrar como o sistema de defesa e conservação de embarcações


tradicionais e suas técnicas construtivas já começam a funcionar. Através
de iniciativas como essas o Iphan vem contribuindo para a ampliação dos
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conceitos de patrimônio cultural. E quando menciono esse fato acho


importante fazer justiça e reconhecer os méritos dos que nos antecederam
em momentos mais difíceis, dispondo de menos recursos.
De fato, só agora estamos tendo a oportunidade de realizar aspectos mais
abrangentes da missão para a qual a instituição foi originalmente criada,
no sentido de que no presente somos favorecidos com os meios que nos
permitem concretizar antigas intenções e consolidar políticas que de longa
data faziam parte do ideário do Iphan. E o grande mérito dessa geração é
decorrente da capacidade de elaborar bons projetos e, mesmo com
dificuldades, ampliar os recursos técnicos, humanos e financeiros; articular
as parcerias e criar as mínimas condições para, finalmente, realizar aspirações
que já estavam na “cabeça” dos fundadores do Iphan, desde Mário de
Andrade, que percorreu o país nos anos 30 e 40, em longas e difíceis
jornadas pelo Norte e Nordeste, em busca de manifestações genuínas de
brasilidade, as quais, reconhecemos hoje, compõem o panorama do que se
convencionou denominar patrimônio imaterial.

376
O assunto do patrimônio náutico de que trata o Projeto Barcos do Brasil
se localiza bem na fronteira entre os conceitos de patrimônio material e
imaterial. Temos, de imediato, a materialidade das embarcações, mas
sempre presente a “imaterialidade” dos conhecimentos tradicionais, do
modo de fazer, que estão ameaçados de desaparecimento em muitas regiões.
Está na memória de velhos mestres carpinteiros navais e artesãos,
construtores de embarcações, que guardam segredos seculares,
transmitindo-os de pai para filho no anonimato de seus estaleiros artesanais,
muitas vezes perdidos em longínquas praias desertas ou margens e curvas de
rios e lagos navegáveis.
E nele está presente uma forte característica de nosso patrimônio
cultural, que é a riqueza oriunda da diversidade. Aí também está a
complementaridade nas interfaces com outras formas de patrimônio, o que
impede que esse tema seja tratado de forma isolada.
E como todo patrimônio cultural, para além de seu valor histórico e
artístico seu estudo também nos propicia maior clareza e compreensão de
grandes problemas do país contemporâneo. Nesse caso, evidenciando as
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consequências do abandono do transporte hidroviário, pelo exagerado
privilégio concedido ao transporte rodoviário.
O tema das embarcações e das navegações está ligado à origem de grande
parte das nossas cidades que hoje são consideradas patrimônio nacional.
Gravuras de época nos revelam que as cidades portuárias têm, incorporadas
à sua paisagem, a figura majestosa de grandes veleiros oceânicos ancorados,
cercados por pequenas embarcações ou batéis, catraios e canoas, que tinham
o papel vicinal de transferir cargas e passageiros, e procederem às operações
de embarque e desembarque.
Até hoje muitas cidades do nosso extenso litoral (8 mil km) têm, na
presença das embarcações, um traço marcante de sua paisagem. Paisagem
que se modifica de acordo com a presença ou ausência delas com suas velas
coloridas. E sempre em função de um relógio diferente, que é o relógio do
tempo regido pelas marés.
Em algumas cidades marítimas os barcos costumam figurar mesmo
como um alter ego dos conjuntos urbanos, diante dos quais eles ancoram
como protagonistas que são de um peculiar modo de vida que é o das
pessoas que trabalham nas atividades dos portos.
Em São Luís do Maranhão, por exemplo, uma das cidades brasileiras
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que nasceram do mar e têm esse caráter marcante de cidade portuária, e
onde tenho o privilégio de viver e de trabalhar há mais de três décadas com
a questão do centro histórico, a presença cambiante dessas velas coloridas
soa como uma espécie de alma daqueles sobradões presentes na paisagem
urbana.
Talvez o mais importante dos traços de caráter, que são reveladores da
alma do nosso povo, são os hábitos da gente que lida no dia a dia naquelas
atividades. Não só os que constroem embarcações, mas também os que
delas se utilizam. São personagens fascinantes que revelam sabedoria e
conhecimento íntimo e profundo da natureza, o que, aliás, é imposição de
seu ofício, como uma verdadeira estratégia de sobrevivência.
Aqui, como no caso dos acervos arquitetônicos, o Iphan terá de enfrentar
os obstáculos para a preservação, dentre os quais podemos tomar um
exemplo: O lobby das embarcações de fibra de vidro ou de alumínio
apresenta argumentos fortes para tentar convencer a sociedade
contemporânea de que barcos de madeira não prestam, são perigosos,
ultrapassados e que devem ser substituídos por novos de material sintético.
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Sempre será necessário evitar armadilhas como essas, como se existisse


lugar para esse tipo de maniqueísmo, da mesma forma como não se pode
aceitar um confronto entre o tradicional e o moderno na arquitetura, e o
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Iphan trabalha no sentido de impedir o abandono e a destruição de nossos


centros históricos sob o pretexto de substituí-los por uma arquitetura
contemporânea. Porque essas são falsas polêmicas, uma coisa não está
necessariamente em confronto com a outra.
Como ponto de partida para as suas ações, o projeto Barcos do Brasil
vem concatenar uma série de iniciativas que surgiram de norte a sul do país,
multiplicando-as e aplicando metodologia já consagrada em outras áreas
do Iphan, mas que exige criatividade, devido à peculiaridade desse acervo.
E o faz consoante com a abordagem sistêmica do patrimônio e com a visão
integrada às atividades da vida das populações, das quais não se desvincula.
A preservação desses acervos é mais um desafio para a instituição. Um
belo desafio, porque lida com uma parcela do que há de mais expressivo
nas atividades humanas. Um desafio que exige esforço de concertação com
outros ministérios e áreas vizinhas, como meio ambiente, tecnologia,
aquicultura e pesca, turismo, educação, trabalho, etc.
E pode-se recorrer ao tema da transversalidade, nesse caso. O princípio
378 da transversalidade, que perpassa esse assunto, estabelece obrigatórias
ligações nos domínios da gestão pública, exigindo novos pactos com
instituições diversas e entidades de classe e do terceiro setor, e também a
criação de novos marcos regulatórios.
O tema se manifesta também diverso em suas condições localizadas. Em
algumas regiões os barcos tradicionais já se encontram praticamente
desaparecidos ou em processo de extinção, em outras, como no Litoral
Norte do país, e à margem de grandes rios navegáveis, como os rios
amazônicos, são atividades vivas e de subsistência de milhares de famílias,
que não têm outras formas de transporte e comunicação.
Nesses casos temos um “viés” que estabelece uma interface com o tema
da economia da cultura, uma vez que sua salvaguarda está associada ao dia
a dia das comunidades que delas dependem.
Assim, torna-se importante, neste momento, realizar um brevíssimo
histórico capaz de ressaltar o papel importante da navegação e das
embarcações na trajetória de ocupação do território brasileiro, desde o
século XVI, como único meio de transporte e de comunicação, no sentido
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do litoral para o interior, realizada a partir dos portos marítimos e de onde
se fez a penetração pelos rios navegáveis.
Aos hábitos e costumes, já praticados pelos índios, somaram-se os
conhecimentos náuticos de marinharia e engenharia naval, trazidos pelos
europeus. Portanto, do período do descobrimento até o século XIX, o
transporte hidroviário marítimo e fluvial exerceu um papel preponderante
no desenvolvimento do país.
Estaleiros funcionavam em toda extensão da costa do Brasil, fabricando
embarcações. Há notícias deles no litoral de São Paulo, do Rio de Janeiro,
da Bahia, de Pernambuco, do Ceará, do Amazonas, do Pará e do Maranhão.
Ali funcionava, também, empresa de navegação fluvial ou de cabotagem
com navios a vapor de norte a sul, para transporte de passageiros e de cargas.
Grandes rios navegáveis, em todo território, eram servidos por essa
modalidade de transporte, como o Amazonas, o São Francisco, ou o Ribeira
do Iguape, só para lembrar alguns exemplos. Lagoas e lagunas eram,
igualmente, cenários da faina das embarcações.
Essa modalidade de transporte perdurou até as primeiras décadas do
século XX. E ainda tivemos navegação de cabotagem, através de companhias
atuantes que ofereciam serviços de transporte mais barato de norte a sul do
379
país. Havia empresas bastante ativas, como o ITA, e a Companhia de
Navegação do Norte – Conam.
Mas, na segunda metade do século XX, alguns episódios históricos
lançaram uma pá de cal nas alternativas remanescentes de transporte
hidroviário. Vale registrar aqui, à guisa de depoimento, algo que não está nas
publicações e na mídia, mas que tive o privilégio de conhecer, quando fui
incumbido, como membro do Conselho Consultivo do Iphan, de elaborar
o parecer de tombamento da ferrovia Madeira-Mamoré.
Para cumprir minha tarefa viajei a Porto Velho, onde fiquei por uma
semana, em missão de reconhecimento do parque ferroviário remanescente
e avaliei um dossiê de quase mil páginas e encontrei um decreto de 1966,
assinado pelo presidente Marechal Castelo Branco, e pelo ministro Otávio
Gouveia de Bulhões, que determinava a “extinção” e a “erradicação” da
ferrovia. Páginas adiante, no mesmo processo, encontrei outro decreto,
determinando o “sucateamento” do parque ferroviário da Madeira-Mamoré.
A ferrovia havia sido construída ainda no século XIX, à custa de milhares
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de vidas, para servir de acesso à navegação do rio Amazonas para as


mercadorias que viessem da Bolívia. Era, portanto, parte de um sistema
importantíssimo de transporte intermodal que conjugava transporte
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hidroviário e ferroviário, servindo a um imenso território da região


amazônica.
Tempos depois, fui também encarregado de elaborar o parecer para o
processo de tombamento da cidade histórica de Piranhas, que também
nasceu de uma ferrovia que, por sua vez, fora construída para vencer o
grande desnível da cachoeira do Xingó e estabelecer a ligação entre o baixo
e o alto São Francisco, de forma a viabilizar o transporte fluvial em toda a
extensão do rio.
Nesse processo pude ler a cópia de um decreto muito similar, igualmente
datado de 1966 e assinado pelas mesmas autoridades nacionais,
determinando a extinção e a erradicação da ferrovia, dessa forma recriando
o hiato para o transporte hidroviário da região.
Ao observar a coincidência das datas não pude deixar de me lembrar de
minha cidade natal, Juiz de Fora, onde, na infância, me utilizava de bondes
que percorriam toda a cidade. Lá, também em 1966, assistimos à Prefeitura
da cidade retirar os bondes da cidade com o pretexto de que os bondes
380 atrapalhavam o trânsito.
Tempos depois, quando fui trabalhar no Maranhão, encontrei uma
planta do centro histórico, datada de 1959, que mostrava que a cidade toda
era servida de bondes. E também os documentos mostrando que em 1966
retiraram esse agradável, barato e não poluente meio transporte de São Luís.
Nessa mesma década deixaram de operar, por vários motivos, as
companhias de navegação de cabotagem e, antes ainda, as de navegação
fluvial. São ocorrências que, vistas de per si, de forma isolada, não chamam
tanta atenção, mas que quando cotejadas lado a lado, pela coincidência de
datas, nos permitem fazer uma leitura e demonstram que, de fato, houve
uma política federal direcionada e uma determinação muito forte no
sentido de extinguir alternativas de transportes que não fosse o rodoviário.
Em recente debate, que participei, no Congresso Nacional, sobre o
abandono do transporte hidroviário no país, o representante do Ministério
dos Transportes nos informou, em sua explanação, que o transporte
rodoviário, que hoje reina absoluto em todo território nacional, é 12 vezes
mais caro que o hidroviário e 10 vezes mais caro que o ferroviário. Podemos
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intuir por que o patrimônio náutico foi tão relegado, tão abandonado e
quase riscado do mapa do Brasil.
E cabe a nós nos questionarmos: quem de nós, de nossos pais e avós
participou ou, pelo menos, tomou ciência dessas decisões de acabar com
importantes alternativas de transporte mais baratos e vantajosos num país
com dimensões continentais.
Chico Buarque tem uma letra de música que pondera assim:
Num tempo, página infeliz da nossa história, passagem desbotada na
memória das nossas novas gerações. Dormia a nossa pátria mãe tão
distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações.
Achei que isso cabia muito bem nesse episódio de sucateamento, por
decreto, das alternativas de transportes. Então, hoje nós temos o problema
da perda da cultura náutica pela destruição e abandono sistemático e
deliberado da pouca infraestrutura que o país chegou a ter. A perda do
conhecimento, do modo de fazer embarcações, a ameaça, senão a extinção,
de muitos modelos navais e as atividades decorrentes de sua fabricação, que
são potencialmente capazes de gerar milhares de empregos. Por detrás de
todo fenômeno cultural sempre tem a influência da modalidade da
economia de cada região.
381
Temos contabilizado um século de políticas públicas que só favorecem
o transporte rodoviário e toda vez que se constrói uma estrada desaparece
um centro de construção naval; isso multiplica o desemprego e estimula o
êxodo das regiões onde a navegação poderia oferecer alternativas de vida e
trabalho.
De fato, a retração do uso de embarcações (de madeira) está ligada a
uma esmagadora política de transportes que abandonou, deliberadamente,
qualquer outra modalidade que não o meio rodoviário. O que significa um
desastre para a economia e para a cultura.
O resultado disso é o abandono da profissão. Uma pesquisa feita pela
equipe do Projeto Embarcações do Maranhão nos informa que os jovens
não têm interesse em abraçar uma profissão na qual eles assistem o mestre
do ofício terminar a vida na miséria.
O aprendizado atual nos estaleiros artesanais é escasso e precário, e a
dificuldade de obtenção de matérias-primas contribui para ampliar as
dificuldades. Esta se constitui em outro óbice, pois os órgãos de proteção
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ambiental, no exercício de suas atribuições, fiscalizam com o mesmo rigor


um carpinteiro naval perdido na curva do rio, fabricando uma pequena
canoa para a própria subsistência, ou as grandes madeireiras, que cortam
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milhares de árvores para contrabando de madeira.


Sem dúvida, será preciso negociar com os órgãos de proteção ambiental
e lembrar que não é a madeira usada na construção naval que destrói as
florestas, mas sim a devastação de extensas áreas que determinam a
extirpação de milhões de árvores de uma só vez para a monocultura
intensiva e mecanizada, que, por seu turno, gera escassos empregos e exaure
a camada fértil do solo, que demanda centenas de milhares de anos para se
recompor. Ou, ainda, para a pecuária e ampliação de rebanhos de gado,
contados aos milhões de cabeças. Considerar, ainda, que essas atividades,
além de poluírem os rios com a aplicação maciça de agrotóxicos, aumentam
o seu assoreamento, reduzindo, em muito, as chances de tornarem a ser
navegáveis. Um desastre de múltiplas consequências.
Por outro lado, a madeira retirada para construção de embarcações é
feita de uma forma pontual. É como naquele caso em que a autoridade
chega a prender uma velhinha que tem um papagaio há 40 anos dentro de
casa, enquanto contrabandistas de animais carregam milhares de filhotes
382
de papagaio dentro de tubos de PVC.
Situações que, às vezes, acontecem pela necessidade de aplicação dos
rigores da lei, mas que devem ser negociados para evitar distorções, já vêm
sendo tratadas de forma competente pelo Departamento de Patrimônio
Material e Fiscalização – Depam/Iphan, através do projeto Barcos do Brasil.
Não obstante os obstáculos já mencionados, os barcos tradicionais, por
sua força imanente, que certamente encontra respaldo no fato de que vem
das origens e da gênese do nosso país, mantêm, ainda, fortes ligações com
o peculiar modo de vida das populações litorâneas e ribeirinhas, nas cidades
portuárias do Brasil que nasceram da navegação.
Nas interfaces, o assunto ainda é enriquecido por muitas ligações com
hábitos e costumes, com a culinária, com as festas populares. A arte popular,
como prematuramente já havia evidenciado por Clarival do Prado
Valladares no seu estudo sobre as carrancas do rio São Francisco, tem muita
ligação com essa atividade.
A questão emergente do novo conceito de paisagem cultural está
também fortemente relacionada ao tema dos barcos do Brasil. Já no capítulo
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da história das técnicas, que é tão caro ao patrimônio cultural, evidenciam-
se as ligações com a construção das igrejas, em que as abóbodas de berço são
como cascos de navios emborcados, e utilizam os mesmos detalhes
construtivos na montagem de suas estruturas. A tal ponto que, na
restauração dos telhados das igrejas, se utiliza a mão de obra do carpinteiro
naval.
Encontramos, ainda, similaridade com estruturas de teatros, onde as
armações de palco, varas de iluminação ou cenários são erguidos com
sistemas de cabos que passam por roldanas, cadernais e moitões. Em tudo
iguais ao aparelho vélico das embarcações, inclusive nas denominações.
E é nesse cenário onde contrastam valores excepcionais a serem
preservados e grandes obstáculos à preservação que o projeto Barcos do
Brasil se anuncia como alternativa consistente de salvaguarda. E será
importante citar aqui os principais estudos realizados anteriormente e que
tem se constituído em fonte de inspiração e referência obrigatória a tudo o
que se faz atualmente.
Retrocedendo no tempo, podemos iniciar com a obra de Alexandre
Rodrigues Ferreira, considerado um dos maiores naturalistas brasileiros que,
no final do século XVIII, entre 1783 e 1792, empreendeu uma expedição
científica percorrendo grandes extensões dos rios amazônicos e publicou 383
um compêndio – Viagem philosóphica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio
Negro, Mato Grosso e Cuyabá –, registrando suas observações, e no qual
dedica várias páginas e ilustrações sobre as embarcações que avistou nos rios
da região.
Em seguida, e obedecendo à cronologia, vem a pesquisa do almirante
Antônio Álvares Câmara, e que chegou aos nossos dias graças a uma
publicação datada de 1888, denominada Ensaio sobre as construções navaes
indígenas do Brasil.
Câmara Cascudo lança, em 1957, dois livros sobre as jangadas e os
jangadeiros, resultantes de suas pesquisas etnográficas.
Pedro Agostinho, em 1973, publica a obra denominada Embarcações do
Recôncavo – um estudo de origens sobre as embarcações artesanais da Bahia.
Em 1981, Clarival do Prado Valladares e Paulo Pardal lançam o livro
denominado Carrancas do rio São Francisco. A vida de Francisco Biquiba dy
Lafuente Guarany, mestre carranqueiro, uma personagem extraordinária.
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 384

Vo l . 1

O arquiteto, artista plástico, desenhista e professor da UFC, Nearco


Araújo, fez a pesquisa sobre as jangadas do Ceará e a transformou em
primorosa publicação ricamente ilustrada com desenhos de sua autoria.
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

É notável o trabalho de Lev Smarcevski, russo radicado na Bahia e que


desvendou o mistério do “graminho”, uma espécie de ábaco contido em
uma única peça de madeira que cabe na palma da mão e que, para os
mestres carpinteiros, traduz todas as proporções necessárias para a
construção de um saveiro. O resultado de suas pesquisas está materializado
na publicação de seu livro denominado O graminho.
Não podemos deixar de fora deste relato outras iniciativas mais recentes
espalhadas pelo Brasil. A começar pela criação do Museu Nacional do Mar,
em São Francisco do Sul, em Santa Catarina, pelo arquiteto Dalmo Vieira
Filho, atualmente diretor do Depam/Iphan que reúne a maior e mais
completa coleção brasileira de barcos tradicionais em escala natural,
expostos em dioramas e um precioso acervo de modelos navais. Esse museu
se tornou uma referência no país e tem uma rica biblioteca que hoje abriga
e conserva o acervo da coleção Kelvin de Palmer Rothier Duarte.
Pesquisa sobre as embarcações do Maranhão, realizada em 1986/87, em
convênio com a Financiadora de Estudos e Projetos – Finep/MCT e que em
384 1996 recebeu o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, gerou a
publicação de um livro com o mesmo nome, em 1998, e finalmente
suscitou a criação do primeiro estaleiro-escola do Maranhão, em convênio
com o Ministério da Ciência e Tecnologia, como alternativa de salvaguarda
dos conhecimentos tradicionais.
Ali estamos tratando velhos mestres artesãos do ofício como professores
“doutores” e juntando aos conhecimentos que eles transmitem aqueles que
a academia universitária pode propiciar, no sentido de formar uma geração
de construtores navais preparada para os desafios do mercado de trabalho
do mundo de hoje.
No estaleiro-escola ensinamos informática, muito desenho técnico,
aquilo que se convenciona chamar hoje de empreendedorismo, segurança
no trabalho e tocamos fortemente na questão ambiental. Essa escola está
funcionando desde 2007.
O trabalho realizado pelo projetista naval Carlos Eduardo Ribeiro com
sua estoica empreitada de resgatar e restaurar, com recursos muito parcos,
em um esforço admirável e de sacrifício pessoal, a Luzitânia, evitando que
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se perdesse o último exemplar da legítima canoa de tolda do rio São
Francisco.
Para tanto, criou uma organização sem fins lucrativos denominada
Sociedade Canoa de Tolda, que mantém, ainda, um movimento popular em
defesa do rio São Francisco e publica periodicamente outra pequena obra
de arte que é o boletim A Margem, que faz chegar a todas as comunidades
do velho São Chico.
Lembramos o que realiza o oceanógrafo e museólogo Lauro Barcellos,
diretor do Complexo de Museus da Fundação Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, trabalhando a cultura náutica do Rio Grande, seu resgate e
sua preservação, especialmente através do Museu Oceanográfico do Rio
Grande, que tem uma escola de marinharia.
A obra do arquiteto Edson Fogaça, da Unesco, ex-integrante da equipe
de pesquisas, autor das ilustrações e do projeto gráfico do livro Embarcações
do Maranhão e que está, hoje, envolvido com projeto denominado
Embarcações do Brasil, que realiza uma série de documentários em vídeo
como Mestres carpinteiros navais tradicionais do Maranhão; As jangadas de
raiz de Timbaúba do Ceará e Terra com Água é a terra do mar, o mais recente,
que registra a vida no entorno das embarcações dos pescadores de
385
Camocim, o maior centro vivo de barcos à vela do país.
O economista e pesquisador das embarcações tradicionais da Bahia, José
Raimundo Zacarias, estuda os últimos saveiros, avaliando as condições que
determinaram sua decadência e as possibilidades de resgate.
O trabalho exemplar e abnegado, realizado pelos modelistas navais Lauro
Pereira Lima e Carlos Heitor Chaves, que hoje estão assegurando a
reprodução ampliada de toda a Coleção Alves Câmara como alternativa
segura de perpetuar sua preservação para as futuras gerações. Lauro Pereira
Lima, inclusive, vem realizando uma série de cadernos técnicos com o
inventário completo de cada um dos modelos da nova coleção.
O fotógrafo Edgar Rocha, radicado no Maranhão, fez a pesquisa que
resultou no livro Embarcações de sentimentos, com depoimentos tocantes de
mestres marinheiros e, em especial, do Mestre Alvino, que sabe reconhecer
a profundidade da água pelo barulho que ela faz no encontro com o casco
da embarcação, como se tivesse um “sonar” na cabeça.
O arqueólogo Ulisses Pernambucano de Mello Neto, diretor da Célula
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 386

Vo l . 1

de Arqueologia da Fundarpe, que, com toda sua rica experiência e vivência


de arqueólogo submarino e conhecimento dos naufrágios, estuda, hoje, os
barcos de areia da Paraíba.
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

A arquiteta Carmen Lúcia Muraro, do Iphan de Pernambuco, diretora


do Parque Histórico Nacional dos Guararapes, realiza um projeto de
monitoramento dos barcos de Pernambuco.
O projeto Mar sem Fim do jornalista João Lara Mesquita, que durante
dois anos navegou de norte a sul da costa brasileira, produziu uma série de
documentários que foram veiculados em todo o país através da TV Cultura-
Fundação Padre Anchieta, transformando seu conteúdo em publicação
composta de três volumes e acaba de lançar outro importante documentário
fotográfico sobre as embarcações tradicionais.
O movimento preservacionista de Pedro Bocca e sua equipe de
colaboradores voluntários na Associação Viva o Saveiro, na Bahia, estão
conseguindo viabilizar recursos não governamentais para restaurar e
devolver à atividade os últimos exemplares de legítimos saveiros da Bahia
ameaçados de extinção. Além de realizar bem-sucedidas atividades de regatas
e divulgação na mídia, como estratégia de valorização e reconhecimento da
arte dos velhos mestres carpinteiros navais.
386
Christiane Rothier Duarte, que dá continuidade ao trabalho iniciado
pelo pai – Kelvin de Palmer Rothier Duarte – hoje é responsável pelo
Projeto Aviso aos Pequenos Navegantes!, no Espaço Cultural da Marinha,
no Rio de Janeiro, e pela criação do site do Pequeno Navegante, registrando
a importância do trabalho educativo na contribuição para a preservação do
nosso patrimônio naval;
O trabalho quase anônimo do construtor naval Rimandas Jonas
Krisciúnas há mais de 30 anos difunde no sul do país a técnica dos mestres
carpinteiros navais do Maranhão, atraindo encomendas de embarcações
que ajudam a conseguir mais trabalho para manter os estaleiros artesanais
da região de Cururupu no litoral maranhense.
São expressões dessa escola de construtores de Cururupu, a escuna
Travessia, que foi escolhida recentemente como um dos 20 barcos mais
bonitos do país por uma comissão de especialistas, e publicada pela revista
Náutica, ou as recentemente fabricadas escunas Folia de Reis e Yamandu.
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:20 PM Page 387

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São trabalhos realizados pontualmente em várias partes do Brasil. Enfim,
uma série de iniciativas importantes que aconteciam de forma isolada, e
uma das missões do projeto Barcos do Brasil, através do Iphan, é estabelecer
uma coordenação entre eles e fomentar parcerias que possam permitir a
troca de experiências e potencializar seus resultados, padronizando, mas
respeitando diversidades e estabelecendo procedimentos, pactos e uma série
de ações integradas que permitam que esse patrimônio naval ou náutico do
país seja doravante preservado.
Por oportuno, apresentamos aqui uma súmula das ações já previstas no
escopo do projeto Barcos do Brasil:
• Aplicar o instrumento “Paisagem cultural do Brasil” para valorizar
o contexto socioambiental de pescadores artesanais;
• Estimular a construção de barcos tradicionais em espaços públicos,
em diversas regiões do Brasil;
• Buscar parceria e/ou patrocínio dos iates clubes, e associações ligadas
ao mar, para o apadrinhamento de barcos tradicionais em todos os
estados brasileiros;
• Realizar ou fomentar o estudo de madeiras e materiais alternativos
para a aplicação no restauro e na construção de barcos tradicionais; 387
• Realizar reunião técnica sobre “Conservação de madeiras”;
• Participar da reedição de livros sob a temática do patrimônio naval
– iniciando por Jangadas, do professor Nearco Araújo, e Velas do
Recôncavo, de Pedro Agostinho da Silva;
• Investir em educação patrimonial na vertente sobre o patrimônio
naval brasileiro;
• Estimular, por todos os meios possíveis, o artesanato naval e a
capacitação de artesãos, mestres e carpinteiros (incluindo
monitoramento e incentivo aos modelistas formados pelos dois
Liceus de Modelismo Naval, promovidos pelo Museu Nacional do
Mar);
• Estimular a confecção de barcos de brinquedos flutuantes,
reforçando o imaginário ligado aos barcos e ao seu universo;
• Dar continuidade à sequência de Seminários do Patrimônio Naval
Brasileiro.
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Vo l . 1

Há uma interdisciplinaridade muito grande, que deverá ser utilizada


nesse processo. Finalizando, vamos citar o que já foi iniciado concretamente:
|

• Protocolo de intenções assinado com o Ministério do Meio Ambiente,


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

com o Instituto Chico Mendes, no sentido de se equacionar a questão


ambiental, do problema da falta de matéria-prima;
• O projeto de conservação de barcos ameaçados de extinção, que o
Iphan já está financiando, em situação de quase desaparecimento na
Bahia, no Maranhão e em Santa Catarina. De tal forma que, após a
restauração, o projeto permitirá que o barco seja devolvido àquele
homem que trabalha com ele. Não para ser colocado no museu;
• O inventário de varredura que o arquiteto Dalmo Vieira realizou
pessoalmente, percorrendo todo esse litoral, identificando novos
exemplares raros e colhendo manifestações e diagnósticos quantitativos.
E, também, é justo que se revele aqui os investimentos ainda modestos,
mas são importantes, pois já servem de modelos para outras ações. Foram
R$511.000,00 em 2008 e mais R$673.000,00 em 2009.
Enfim, já são ações concretas, porque elas são didáticas e estimulam a
adesão ao processo de recuperação dessa memória, além dos acordos
388 bilaterais que o Ministério da Cultura vem “costurando” com o recém-
criado Ministério de Aquicultura e Pesca ou com o Instituto Chico Mendes,
neste último caso para equacionar a questão das matérias-primas.
E aí estão postos os desafios de incentivar a participação local da qual não
se pode prescindir. Os municípios, órgãos estaduais, iniciativa privada,
organizações do terceiro setor, buscando sempre a compatibilização entre os
ministérios que têm essas interfaces, criando linhas de investimentos para
beneficiar o pescador, que é usuário direto das embarcações de madeira.
E mais, quase como consequência, poder-se-ia contar também com a
vocação turística dos barcos, como alternativa de agregar valor ao
patrimônio naval, fomentando ações de geração de renda, aplicando essa
visão sistêmica que hoje o Iphan tem com tanta clareza, embalado por uma
nova geração de profissionais que chegam com vontade, mas sem esquecer
as lições do passado, como procurei demonstrar nesta breve apresentação.
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PLANOS D E A Ç Ã O PA R A C I D A D E S
HISTÓRICAS

Yole Milani Medeiros*

RESUMO
O texto fala sobre os Planos de Ação e aponta suas potencialidades para * Coordenadora
geral de Cidades
a estruturação do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural e para a Históricas do
formação da Política Nacional. Para que isso, efetivamente, aconteça a Departamento de
Patrimônio Material
autora entende como fundamental a consolidação dos Planos de Ação como e Fiscalização/Iphan
instrumentos compartilhados nas três esferas, funcionando como
planejamentos voltados para a preservação do patrimônio cultural. Outra
meta é o reforço do caráter dos Planos de Ação como ferramentas para o
desenvolvimento social das cidades históricas. Esses planos foram elaborados
a partir da identificação de 173 cidades que seriam de interesse de
participação no processo, todas com bens tombados, registrados ou em
processo de tombamento e registro. Os Planos de Ação tiveram êxito,
sobretudo nas pequenas cidades.
389

PALAVRAS-CHAVE
Planos de Ação, Cidades históricas, Potencialidades.

Houve um trabalho intenso, muito importante para a elaboração do


Planos de Ação nas cidades históricas nesse curtíssimo prazo de três a quatro
meses. E foi um trabalho de articulação que, seguramente, será fundamental
para a etapa de implantação e gestão desses planos num futuro breve. A
minha apresentação seguirá a estrutura de relato, mas não vou descrever a
experiência e sim um trabalho de dois a quatro meses atrás. Tentarei falar
sobre o que entendi como principais potencialidades, desafios e
participações estratégicas para a formação da política nacional e para a
estruturação do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, além de algumas
ações em curto prazo para o ano que vem e, até, no prazo de cinco anos.
Encerrarei, falando sobre os objetivos para os próximos dois anos. Weber
Sutti falou com um pouco mais de profundidade sobre os Planos de Ação
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:21 PM Page 390

Vo l . 1

na conferência de introdução, mas achei importante falar de alguns


conceitos e objetivos.
|

O planos são instrumentos estratégicos integrados das cidades históricas,


I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

o que significa que eles têm características muito peculiares em um


horizonte relativamente curto de quatro anos. Têm esse enfoque do
território do qual falamos muito pela capacidade de integrar ações e não
dividi-las em setores – habitação, saúde, etc. –, como o planejamento
tradicional faz. O que, de saída, já vejo como uma potencialidade. Outra
característica foi a dificuldade na elaboração, mas entendo que obtivemos
relativo sucesso no processo de selecionar as ações transformadoras para
aquele território e não um rol de ações ideais que passaremos o resto da
vida tentando implantar sem ter a oportunidade de avaliar sua efetividade.
Além disso, são ações que orientam atuação do poder público nas três esferas
do governo, que considero fundamental para a priorização do sistema. Sem
contar que buscam contribuir para a estruturação das cidades históricas e
têm como objetivo macro, o desenvolvimento social, através das
potencialidades do patrimônio cultural.
Uma consideração importante a destacar: o Plano é um instrumento de
planejamento em construção. Sem entrar em grandes teorias do
390
planejamento, mas é importante lembrar que o planejamento estratégico,
nessa última versão, tem origem na iniciativa privada, mais precisamente,
na escola de economia de Harvard. Precisa sofrer algumas readequações
quando é transportado para a esfera pública. Parte do trabalho é executado
pelo poder público, pelo ambiente público, que tem mais chance de expor
conflitos, de trazer à tona diversos interesses diferentes do ambiente privado
que tem um objetivo único. Os Planos de Ação como instrumento de
planejamento estratégico têm de se adequar à nossa obrigação como entes
públicos e dar transparência a nossas ações. Isso quer dizer que não somente
na elaboração, mas na execução, acompanhamento e revisão.
Falarei brevemente sobre o processo de elaboração. Houve a identificação
de 173 cidades de interesse para o processo, e o critério especificado no
edital de chamada pública foi que essas cidades deveriam apresentar bens
tombados, registrados ou em processo de tombamento e registro. É
importante dizer que, hoje, temos 82 cidades históricas tombadas. Então,
de saída, já estamos trabalhando com o dobro do universo hoje tratado pelo
Iphan. A adesão inicial dessas 173 foi de pouco mais de 90%. Quase dois
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terços concluíram a parte documental do processo. Foi um processo rápido
que aconteceu entre agosto e dezembro deste ano.
Quanto à distribuição de bens que temos hoje, a participação dos
municípios por região é de 35% do Sudeste, 16% do Sul, 28% do Nordeste,
15% do Norte, e 6% do Centro-Oeste. É a distribuição das cidades
participantes desse curto processo de elaboração, somados ao trabalho
muito maior que o anterior de articulação.
O que conseguimos enxergar como potencialidades para formação da
Política Nacional e estruturação do Sistema Nacional é que os Planos de
Ação são instrumentos de monitoração e de avaliação das políticas
fundamentais, porque eles conseguem se adaptar aos programas das cidades.
O planejamento estratégico é muito querido pelos planejadores urbanos,
justamente por que ele consegue se adaptar.
Outra potencialidade é o horizonte de execuções que, normalmente, é
muito curto e viável na esfera pública porque chama os agentes, a sociedade
civil, a iniciativa privada e outras organizações públicas para participar da
implantação e revisão do processo. O acompanhamento e o monitoramento
são prioritários para a avaliação em si. Não quero desanimar ninguém que
se apressou para concluir o trabalho nesses três, quatro meses. Mas creio
que a fala da representante da cidade de Havana Velha foi muito feliz 391
quando esse assunto veio à tona. Ela comentou que o projeto de reabilitação
de Havana Velha nunca foi entregue à população, obviamente, não por falta
de respeito aos moradores, mas porque sempre houve uma porção de
mudanças, muitas vezes estruturantes, políticas, econômicas, enfim, que
obrigaram a revisão do plano, não necessariamente das suas metas, mas da
forma de alcançar essas metas, ou seja, nas ações específicas.
Podemos, ainda, falar do Plano de Ação, sem dúvida alguma, como
potencial de trabalho por meio da articulação realizada até agora, entre as
superintendências estaduais do Iphan e os governos estaduais. Efetivamente,
trata-se de um processo dinâmico e efetivo a aproximação das nossas
superintendências com os municípios brasileiros. Isso nos leva a crer que as
parcerias são estratégicas para alcançarmos as prioridades. Essa forma
coordenada de trabalho adotada pelo Iphan e por suas superintendências
estaduais deverá se consolidar até mesmo naqueles Estados onde tal prática
ainda não é tão disseminada.
Isso é muito variável, pois os governos estaduais têm uma capacidade de
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Vo l . 1

estrutura instalada que, por vezes, o município não tem, ou o próprio


Iphan, quando se trata de escritórios técnicos que também não dispõem da
estrutura de recursos humanos necessária. E, especificamente, foi possível
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

perceber que o centro da articulação é a Superintendência do Iphan e não


sua área central que tem, a meu ver, um papel preponderante na consertação
das políticas de desenvolvimento hoje em processo.
Ao vislumbrar o desenvolvimento social e econômico das cidades
históricas como objetivo maior dos Planos de Ação percebe-se a
internalização de algumas propostas hoje em curso no Iphan,
principalmente no Depam. Assim, coloca-se como desafio a necessidade de
integração entre a fase de elaboração e a de execução dos Planos de Ação.
Isso ainda não foi possível ser realizado, mas tenho certeza que é viável. E
eu vejo isso na proposta das redes de patrimônio, porque elas são um critério
para a inserção de novas cidades no Sistema Nacional.
Os Planos de Ação conseguem traduzir a leitura da cultura no território
nacional na proposta que está sendo elaborada através de abordagens
temáticas e processos econômicos como os da borracha, do café, etc. São
temas que o brasileiro consegue perceber e seria muito importante
protegermos no espaço, enfim, no patrimônio material nacional. O que
392
acontece é que nem todas as cidades identificadas nesse estudo são
protegidas ou apresentaram interesse pelo tema. Então, há um esforço de
aproximação com essas cidades, da mesma forma que a internalização das
redes de patrimônio pode promover outras políticas de desenvolvimento. O
próprio Ministério da Integração Nacional, que convidamos para participar
deste Fórum, e outros órgãos federais não têm essa atuação regionalizada em
grande escala, que transcende os limites de Estado muitas vezes, e também
têm esse mesmo entendimento da leitura conjunta do território,
características culturais, sociais, econômicas, fator importante para esse
diálogo político.
Obviamente, minimizar redundâncias, sobreposições, ações e
investimentos de recursos humanos e materiais que o poder público vem
fazendo com o desenvolvimento. Também vejo como um desafio e tenho
de admitir que a análise não foi feita com a profundidade merecida, mas é
possível ampliar a participação pública no processo. Houve muita
aproximação entre o Iphan e os governos estaduais e municípios, mas ainda
há um passo adiante.
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Nós, do Desenvolvimento Urbano e do Patrimônio Cultural,
seguramente, temos de trabalhar com o ente privado. Porque ele altera toda
a configuração, especialmente, em se tratando de cidades históricas.
Acredito que nem preciso dar grandes justificativas. É um agente presente
que precisamos convidar à discussão e execução de ações da mesma maneira.
Principalmente pela necessidade da transparência de nossas ações, é
fundamental que chamemos a sociedade civil em todas as etapas do
processo.
Um desafio que julgo importante é avaliar o Plano de Ação na sua
capacidade para buscar o desenvolvimento social. Ele é um instrumento
possível de ser aprimorado na busca desse objetivo maior. Acredito que não
podemos perder de vista a efetividade dessa intenção maior que é o
desenvolvimento das cidades. No processo, acho que, especificamente, é
necessário para a consolidação dessas parcerias e para o desenvolvimento.
Isso está relacionado com as políticas regionais, que eu já havia comentado,
de alguns parceiros em nível federal e estadual. E eu acho possível que
reforcemos essa parceria, ainda para as ações futuras.
Concluindo, como a proposta era trabalhar num horizonte curto para
estabelecimento de objetivos, selecionei apenas dois, sou favorável a poucas
e boas atividades, em detrimento de uma relação extensa, impossível de ser 393
concretizada. Considero importantíssimo que consolidemos os Planos de
Ação como instrumentos compartilhados nas três esferas, planejamento esse
voltado para a preservação do patrimônio cultural e que precisa ser
internalizado em cada um dos agentes. Não é um trabalho fácil, não só para
o Iphan, mas seguramente para os municípios e Estados, além da iniciativa
privada e sociedade civil, e é emergencial. O segundo objetivo diz respeito
ao reforço do caráter dos Planos de Ação como instrumentos para o
desenvolvimento social das cidades históricas.
A partir das potencialidades do patrimônio cultural é possível ter um
acompanhamento para verificar se estamos efetivamente avançando ou não.
Entretanto, é necessário que se consiga vencer o desafio de indicadores
apropriados e ter clareza do alcance desse objetivo de desenvolvimento
social, que não se dá em dois anos. Ou, se teremos de escolher outras
estratégias ou até mesmo para elaboração dos Planos. Entendo como
importante fazer uma análise desses indicadores das ações levantadas, e
possibilitar adequações, se for o caso, não perdendo de vista o objetivo
maior de todo o trabalho.
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Vo l . 1

PLANOS DE AÇÃO E OS DESAFIOS


DOS MUNICÍPIOS
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

Alexandra Moreira Carvalho Gomes*

RESUMO
* Presidente da A autora fala sobre os Planos de Ação dos municípios e os define como
Fundação Cultural
de Quissamã (RJ) um instrumento que identifica problemas e potencialidades para definir
objetivos e prioridades comuns. Por isso vê extrema importância na
integração entre os entes da federação, a sociedade civil organizada e a
iniciativa privada para propor e implementar ações que visem à revitalização
e à proteção do patrimônio histórico. Chama atenção para a necessidade de
despertar os municípios para a participação efetiva nesses planos e defende
uma campanha de conscientização e mobilização das cidades, além da
capacitação técnica.

PALAVRAS-CHAVE
394 Planos de ação, Integração, Gestores de cultura.

Tenho formação na área jurídica; no município sou funcionária pública


concursada e estou à frente da Fundação Cultural de Quissamã há mais ou
menos dois anos. Gostaria de destacar a importância deste I Fórum
Nacional do Patrimônio Cultural. Nunca antes na história do nosso país se
falou e se cuidou tanto dessas questões. Tínhamos o Iphan como um órgão
tombado, com aquele “h” no meio, como algo inacessível e, hoje, temos
uma realidade muito diferente. Gostaria, portanto, de parabenizar o
presidente, Luiz Fernando de Almeida, através de Weber Sutti.
Quando fui convidada para falar sobre os Planos de Ação, e vou me ater
ao tema, achei por bem fazer um relato pessoal do quanto é importante
assumir o nosso papel nesse processo. Porque, nos vários encontros que vou,
ou que estou com gestores de cultura, vejo a ausência de representantes dos
municípios, dos Estados, e também da iniciativa privada, enfim, da
sociedade civil organizada questionando o que o Governo Federal faz, o
que o governo pode fazer e o que ele fez até então. Acredito, no entanto,
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que a responsabilidade maior é nossa, dos gestores de cultura. Quantos
gestores de cultura têm aqui, hoje? Encaramos o Plano de Ação, como um
instrumento que identifica problemas e potencialidades para definir
objetivos e prioridades. Para tanto, integra entes da federação, a sociedade
civil organizada e a iniciativa privada com o objetivo de propor e
implementar ações que visem à revitalização e a proteção do patrimônio
histórico. O desafio é a palavra-chave, é estar neste fórum discutindo
estratégias e experiências de uma nova gestão. É importante despertar os
municípios, porque cabe a eles a realização dos planos e o desenvolvimento
de ações conjuntas em cada governo, diretamente, envolvidas com as ações
propostas no Plano. Daí, a nossa atuação na mobilização das nossas cidades,
dos conselhos municipais de cultura, da sociedade civil organizada, dos
vários segmentos e associações de moradores.
Para a implementação dos Planos de Ação, nós vamos, necessariamente,
precisar desses parceiros, precisamos da chancela dos conselhos constituídos,
dos conselhos de patrimônio histórico, dos conselhos comunitários e dos
conselhos representativos. Em Quissamã, a partir de todo esse fomento, de
todo esse trabalho em prol do patrimônio foi criado o Fundo do
Patrimônio. A própria Fundação de Cultura com certa autonomia cuidou
dessa questão, como disse o prefeito da cidade. Essa não é a realidade de
todos os municípios deste país. E eu aqui não estou para fazer chororô, até 395
vivemos uma realidade diferenciada em Quissamã que é beneficiada pelos
royalties do petróleo, muitos de vocês sabem disso, mas existem gestores de
cultura que, às vezes, estão ligados a uma Secretaria de Educação, não
dispõem de carro, e quando o prefeito resolve contingenciar uma secretaria,
escolhe a Secretaria de Cultura e desfalca todas as verbas.
Então, é preciso fazer essa mobilização. Primeiramente, conseguir
conscientizar o gestor, o prefeito, da importância de investir em patrimônio
cultural já é uma tarefa árdua. E, depois, mobilizar toda a sociedade, todos
os conselhos para que haja uma participação efetiva é algo mais complicado
ainda, mas é necessário porque essa é a proposta do Sistema Brasileiro de
Preservação: mapear todas as cidades, as suas potencialidades, enfim, a
contrapartida que nós temos de dar.
Falando das etapas, uma delas é a realização de um diagnóstico da
situação local, pois a partir dele é possível definir os objetivos das ações, as
linhas de ações elegíveis e quais as suas proposições. E, finalizar, com a
consolidação dos acordos de preservação que é a pactuação desse projeto.
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Vo l . 1

Priorizar as linhas de ações elegíveis foi a maior dificuldade encontrada


pelos responsáveis pela elaboração dos Planos de Ação, pois cada qual vive
e elege suas prioridades, e querem sempre que as suas ações sejam
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

encampadas pelo Instituto. E, eleger prioridades é complicado. O que é


prioridade? É preciso conversar com a sociedade civil e com os conselhos.
Por exemplo, a banda vai dizer que a sua prioridade é que o Iphan a
reconheça; espera que o município lhe passe a subvenção, então, é difícil o
papel do gestor nesse momento.
A etapa mais importante e mais difícil é a arregimentação dos técnicos,
também, em nível governamental. Nós sabemos que todos os entes da
federação têm dificuldades, seja com pessoal e sua movimentação por causa
da própria geografia do Estado do Rio de Janeiro. A cidade de Quissamã fica
ao norte do Estado, na divisa com Campos. A distância entre Quissamã e
o Rio de Janeiro é de 400 km. Para nós, estar na Secretaria Estadual de
Cultura é muito difícil. Enfrentamos dificuldade semelhante para nos
reunirmos com os técnicos do Iphan, pois sua unidade mais próxima está
situada em Cabo Frio. Em situações assim, vale a capacidade técnica da
equipe e do gestor, de articulação que esses órgãos têm. E, em particular, no
caso do nosso entrosamento com o Instituto Estadual de Patrimônio
Cultural – Inepac e com o Iphan. Na cidade, existem cinco bens tombados
396 pelo Inepac e nenhum pelo Iphan. Por isso, estou muito feliz por estar aqui
falando sobre o Plano de Ação. Eu falo a respeito de uma cidade sem
patrimônio tombado pelo Iphan, onde existe a estação Conde de Araruama
cuja cessão pela Secretaria de Patrimônio da União – SPU só ocorreu graças
ao esforço e à interveniência do Iphan. A tramitação do processo para se
conseguir a posse da estação demorou um ano.
E, agora, o Iphan sinaliza com a possibilidade de fazer a intervenção na estação
de Conde de Araruama. E, também, com a possibilidade do tombamento da
Usina de Quissamã, primeiro engenho central de açúcar da América Latina,
inaugurado em 1877. Enfim, é importante dizer para os gestores que se trata de
uma atitude maravilhosa e eficiente direcionar essas ações para integrar
municípios que não abrigam patrimônio tombado pelo Iphan.
Muito se fala que o turismo não é tudo. Mas, em Quissamã o turismo é
muita importante. A cidade não recebia visitantes; toda a visibilidade do
Estado do Rio de Janeiro se concentra na sua capital e, principalmente, os
municípios do norte e noroeste do Estado, por anos, foram relegados ao
esquecimento.
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Mesa-redonda 4 | SNPC - Estrutura e Formas de Funcionamento


A partir da implementação de todo esse projeto a cidade mudou. E o
turista para nós representa desenvolvimento econômico e geração de
emprego e renda; significa a autoestima da comunidade quilombola que
habita o município de Quissamã e que vivia nas antigas senzalas, quase em
ruínas, da Fazenda Machadinha. Na década passada as instalações da
fazenda passaram por uma ampla reforma e foram transformadas em
Complexo Cultural. Os descendentes de escravos ainda moram nas senzalas
onde mostram a força viva da sua herança cultural, através de suas festas,
arte e tradições. Vocês não têm ideia do quanto isso representa para a
comunidade quilombola de Machadinha. Estar ali, ser fotografado, ser
retratado, contar a sua história, e a de seus antepassados. Isso é muito
importante para nós gestores de cultura. O turismo, em alguns lugares é
vital.
Somente através da cultura e do trabalho de educação patrimonial é que
podemos chegar a resultados como este. Em relação aos Planos de Ação,
gostaria de dizer que tivemos sim, dificuldades no preenchimento das
planilhas. Na verdade, é um trabalho exaustivo, mas que não vai se exaurir
nesse primeiro momento. Tem um segundo momento que é a identificação
e a implementação. Enfim, colocar em prática tudo que foi idealizado, mas
esse momento foi um grande passo para a história do nosso país, do nosso
estado. 397
ForumPatrimonioCap7:Layout 3 5/30/12 4:21 PM Page 398

Vo l . 1

SISTEMA NACIONAL DE
P AT R I M Ô N I O C U LT U R A L ( SN PC)
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

ESTRUTURA E FORMAS DE FUNCIONAMENTO


Coordenador: Weber Sutti (Iphan)
Relatora: Otilie Macedo Pinheiro (consultora Iphan)

COMUNICAÇÕES
A experiência do SUS e os desafios para o SNPC, Adson França
(Ministério da Saúde)
Mobilização social para o SNPC, Mara Régia Di Perna (Empresa Brasil
de Comunicação)
Desafios para o SNPC, Frederico Barbosa (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada - Ipea)
398
Projeto Barcos do Brasil, Luiz Phelipe Andrés (Estaleiro Escola/Centro
Vocacional Tecnológico - CVT)
Planos de ação para Cidades Históricas, Yole Milani Medeiros (Iphan)
Planos de ação e os desafios dos municípios, Alexandra Moreira Carvalho
Gomes (Fundação Cultural de Quissamã/RJ)

RELATO
DESAFIOS PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL
• Elaborar, aprovar e regulamentar lei que estabeleça a política
(objetivos e diretrizes) e o sistema (estrutura, mecanismos de
articulação dos atores, competências e responsabilidades,
instrumentos, mecanismos de controle e auditoria, fontes de fomento
e formas de repasse de recursos, penalidades pelo não cumprimento);
• Ampliar o conceito de patrimônio (abarcar aspectos que
contemplem diversidade, território, redes);
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Relatório síntese
• Considerar os diferentes portes de população e de capacidade dos
municípios e as diversidades regionais e locais;
• Despertar no gestor municipal o interesse pelo patrimônio, e a
prática da ação integrada e participativa.

DESAFIOS PARA A ESTRUTURAÇÃO DO SNPC


• Superar a fragmentação/segmentação das redes de patrimônio (rede
dispersa, muitos agentes, interesses corporativos);
• Estabelecer mecanismos estáveis de interdependência, pactuação e
coordenação entre gestores públicos dos três níveis de governo;
• Conciliar descentralização com capacidade de redução de desi-
gualdades regionais;
• Instituir indicadores e instrumentos de monitoramento e avaliação
que se adaptem à dinâmica das cidades.

POTENCIALIDADES PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA E


ESTRUTURAÇÃO DO SNPC
• A existência das 27 superintendências estaduais;
• A existência de instituições de gestores (Fórum de Secretários 399
Estaduais de Cultura, Associação de Cidades Históricas, etc.) e canais
de integração de atores (redes do patrimônio cultural, conselhos
municipais de cultura, fóruns regionalizados);
• A experiência do PAC Cidades Históricas: a concepção do Plano de
Ação; 162 municípios e vários Estados envolvidos; Planos de Ação
pactuados e que integram os diversos temas no território.

PARCERIAS ESTRATÉGICAS PARA A FORMULAÇÃO DA POLÍTICA E DO


SISTEMA NACIONAL
• Os fóruns de gestores (ABCH, FNSEC);
• Conselhos Municipais e Estaduais de Cultura e/ou Patrimônio
Cultural;
• Entidades associativas municipais e regionais;
• Canais de comunicação (rádios);
• Universidades e Centros de pesquisa.
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Vo l . 1

AÇÕES ESTRATÉGICAS QUE DEVEM SER IMPLEMENTADAS NOS


PRÓXIMOS CINCO ANOS (2010-2014)
• Fortalecer a prática de ação integrada no território;
|
I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

• Aprovar e regulamentar a Proposta de Emenda à Constituição


(PEC) 150 definindo objetivos, critérios operacionais e de alocação
dos recursos;
• Estabelecer uma Agenda Nacional (nos moldes do pacto da vida –
SUS);
• Estabelecer um Pacto de Gestão – indicadores e metas a cada dois
anos em todas as áreas;
• Ampliar a capacidade do Estado para realização de políticas
federativas: fortalecer a prática do planejamento compartilhado em
cada uma das esferas de governo e entre elas;
• Definir espaços territoriais de identidade cultural que englobam
diversos municípios por meio consórcios públicos;
• Estabelecer mecanismos estáveis de pactuação (interdependência e
coordenação) entre gestores públicos dos três níveis de governo:
reuniões anuais com a Associação das Cidades Históricas, fóruns do
400 SNPC a cada dois anos;
• Consolidar e articular as redes e atores que atuam no patrimônio
por meio de canais de participação estáveis (ex. fóruns estaduais,
Câmaras Setoriais e/ou Regionais para subsidiar e monitorar a
implantação das políticas temáticas);
• Articular e implementar de um plano de comunicação para o setor
com destaque para as cidades históricas;
• Estruturação de um sistema de informações que favoreça a
integração e o acesso presencial e remoto às fontes de informação de
interesse do patrimônio cultural;
• Estabelecer programas de qualificação e capacitação: técnicos e
gestores públicos dos três níveis de governo; setor empresarial;
diversos atores que atuam na área do patrimônio (investir na
qualificação à distancia para cobrir o território nacional);
• Implantação de um programa de educação patrimonial direcionado
à sociedade e às escolas.
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Relatório síntese
AÇÕES ESTRATÉGICAS QUE DEVEM SER IMPLEMENTADAS EM 2010
• Elaboração e aprovação da Lei da Política e do Sistema Nacional
do Patrimônio Cultural;
• Definir normas operativas para ajustar comportamento dos agentes
para atender as diretrizes da Política;
• Elaborar cadastro nacional de entidades e atores que atuam no
patrimônio cultural.

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Vo l . 1
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I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural

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2
I Fórum Nacional do
Patrimônio Cultural
SISTEMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO CULTURAL:

I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural


DESAFIOS, ESTRATÉGIAS E EXPERIÊNCIAS PARA
UMA NOVA GESTÃO - OURO PRETO - MG | 2009

Anais VOLUME 1

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