O ano de 1932 não é um ano fácil para Pessoa. Ele tinha
reatado a sua relação com a suanamorada Ophélia, em 1930, mas tinham acabado definitivamente nos últimos meses de 1931e Pessoa verá esse fim com um misto de alívio e desespero. A sua saúde deteriorava- seprogressivamente e estava com muito pouco dinheiro. Os seus planos passavam por mudar-separa Cascais e ter um emprego estável - com esse intuito concorre em Setembro de 1932 aolugar de conservador num museu daquela vila, sem sucesso.Há quase um ano não escrevo.Pesada, a meditaçãoTorna-me alguém que não devoInterromper na atenção.Lendo com mais atenção vemos que o poeta não diz - literalmente - que não escreve há umano, mas antes nos diz que lhe algo lhe está a impedir a inspiração pura na escrita: "Pesada, ameditação / Torna-se alguém que não devo / Interromper na atenção", ou seja, ele passa porum período em que o pensamento, a reflexão, está a ser um impedimento a uma escrita maisfluída e fácil. É muito provável que estivesse muito perturbado com a sua vida, com o facto deestar novamente completamente sozinho e passando grandes dificuldades financeiras, físicas ementais.Tenho saudades de mim,De quando, de alma alheada,Eu era não ser assim,E os versos vinham de nada.A segunda estrofe confirma o que dissemos. "Tenho saudades de mim", diz Pessoa. Saudadesde um "outro ele", de um tempo em que "de alma alheada" ele "não era assim". Estar de almaalheada, neste sentido, era ter menos preocupações com a vida, certamente. Nessa altura "osversos vinham de nada", ou seja, ele escrevia mais facilmente, por pura inspiração. De facto háque notar - pelo menos na obra ortónima - uma quebra na produção literária entre os anos de1930-33 em comparação com outros períodos da sua vida (se bem que provavelmente outrasobras mais "depressivas", como o Livro do Desassossego, pudessem ter beneficiado).Hoje penso quanto faço,Escrevo sabendo o que digo...Para quem desce do espaçoEste crepúsculo antigo?Seja como for, vemos bem que a temática deste poema se vira claramente para a falta deinspiração: "Hoje penso quanto faço, / Escrevo sabendo o que digo...". É curioso que Pessoa -sempre caracterizado como um poeta eminentemente racional - diga isto da sua obra, porquetoda a sua obra se diria planeada, pensada. Mas parece que não, que a sua melhor poesia lheaparecia "de nada", ou seja, era produto de inspiração e não de planeamento. Aliá todos os grandes artistas - se bem que há muito trabalho envolvido na edição,correcção e aperfeiçoamento de qualquer obra de arte, nada se pode substituir aos momentosde pura inspiração no momento da sua criação.O poema termina com uma espécie de invocação dos antigos. O crepúsculo desce no céu - é,por definição, um dos períodos que mais poderão inspirar os poetas - mas Pessoa interroga-separa quem ele descerá, visto que já nada o inspira como dantes... You're reading a free preview. Pages 2 to 3 are not shown in this preview.