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A questão geral dos processos da natureza e dos assentamentos humanos não é propriamente de
Organização no universo macro, mas, de Composição de movimentos velozes ou retardados do
universo micro (molecular), o qual pressupõe Multiplicidade de agenciamentos enquanto
passagem de fluxos, intensidades, composição de micro poderes, e isso, numa formação social
no universo de uma micro política. Pois, as cidades comportam coexistências dinâmicas dessa
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Arquiteto, doutor, docente do PPGAU /UFBA.
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A noção de modelo arborescente de pensar relaciona-se, por analogia, com a árvore, pois, ela em seu desenvolvimento pressupõe
princípio e fim (nascimento e morte); relação causa/efeito; reprodução e filiação (genealogia); hierarquia do Todo entre suas partes,
evolução linear, pois, trata-se de um organismo, uma estrutura funcional, ou seja, um sistema regulável em si, atendendo assim, aos
pressupostos do pensamento estruturalista.
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Noção criada por Antoine Artaud e apropriada por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Contrapõe-se ao conceito de Organismo herdado
da antiguidade clássica e reciclado na modernidade e aderente à dualidade do pensamento ainda hegemônico (orgânico/não
orgânico), o qual convive no mesmo plano do pensamento com um conjunto de outros conceitos também do repertório
clássico/moderno.
multiplicidade e constroem complexas redes de conexões de elementos heterogêneos em
permanente transformação e onde emergem Acontecimentos de imprevisíveis destinos
caracterizados por sobreposições, misturas, zonas de vizinhança, contaminações, temporalidades
diferentes, entre outras modalidades de processos de composição, e isso, no sentido dinâmico de
uma Totalidade segmentaria.
De regra, vivemos imersos no mundo da representação do universo macro, molar, regido por
quatro tópicos que funcionam a guisa de princípios: Identidade do conceito: Analogia do juízo;
Oposição dos predicados e Semelhança do percebido (Deleuze, 1988). Tópicos estes que
configuram a lógica binária e o modelo arborescente de pensar. Entretanto, vale salientar que nos
processos urbanos, a percepção molar (macro) do mundo da representação, caracterizada por
sua visibilidade (exterioridade e finitude) possui natureza bem diferente daquela do universo
micro, molecular, pois, esta se caracteriza e pressupõe agenciamentos processuais que se
equivalem à fluxos, intensidades, ações, paixões e desejos que se caracterizam pela
invisibilidade (interioridade e infinitude) de seus componentes.
A questão/problema aqui colocado diz respeito ao termo Corpo sem Órgãos- CsO e mostrar
como é que ele entra em uma nova formação discursiva que tem como objeto a cidade. Não há
como falar dele sem um conjunto de outros conceitos que efetuam a sua construção, a exemplo
de: Estratos, Território, Agenciamentos, Desterritorialização, Acontecimento, Desejo, Devir, entre
outros.
O conceito de Estratos torna-se primordial para entender a construção de um CsO. Sabe-se que
os Estratos são fenômenos de acumulações, sedimentações, coagulações, dobramentos e são ao
mesmo tempo molares e moleculares em suas articulações, Os estratos são articulações a guisa
de “pinças” e pressupõem meios codificados e substâncias formadas (formas), pois, os
componentes abstratos de qualquer estrato (ou articulação) são: forma e substância, códigos e
meios, ou seja, tipos de organização formal e modos e de desenvolvimento substancial diferente
(Deleuze, Guattari,1997, p. 216).
Os estratos têm grande mobilidade, pois um estrato é sempre capaz de servir de substrato a
outro, ou de afetar, percutir em um outro, e isso, independente de uma ordem evolutiva. O
conceito de Estratos torna-se indissociável de algo que, embora distinto dos estratos se fazem
neles: Agenciamentos. Estes operam em zonas de decodificação dos meios e pressupõem uma
territorialidade que os envolve, um Território, ou melhor, dizendo: o Território cria o agenciamento.
Vale salientar, todavia, que o agenciamento não se reduz aos estratos, e isso, porque nele a
expressão torna-se um sistema semiótico, um regime de signos e o conteúdo um sistema
pragmático de ações e paixões e:
Apesar dessa caracterização sumária da noção de estrato, fica a questão: qual movimento, quais
elementos (no sentido de ações, forças, fluxos, intensidades, desejos) nos levam para fora dos
estratos, no sentido de uma destratificação? De regra, pergunta-se: existe uma matéria não
formada além da forma perceptiva dos estratos físico-químicos e dos estratos orgânicos que não
esgotam a Vida, sendo o organismo justamente aquilo a que a vida se opõe para limitar-se?
Existe, pois, vida tanto mais intensa e poderosa: a vida anorgânica, que são os Devires não
humanos do homem e extravasam por todos os lados os estratos antropomórficos? A questão
reside, pois, em como traçar uma linha de fuga que promova um processo de
Desterritorialização após a decodificação promovida pelos agenciamentos.
Anteriormente nos referimos à noção de “Corpo sem órgão”-CsO - e a sua aplicação à Cidade, no
sentido de superar o consensual entendimento da cidade enquanto Organismo (corpo com
órgãos, artéria/circulação, coração/centro, células/habitação). Vale observar que o CsO, não é
espaço nem está no espaço do mundo da representação; trata-se de “Matéria” não formada,
contrapondo-se à substância (da formação dos estratos) e povoada de intensidades e que
ocupará o espaço em tal ou qual grau enquanto intensidades produzidas. O CsO não se opõe aos
órgãos, mas a essa organização que se chama Organismo. Para um melhor entendimento: “O
CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o
desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta
que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo).” (Deleuze/Guattarri, 1999,15).
Vale lembrar que fora dos estratos ou sem os estratos, já não temos formas e substâncias, nem
organização nem desenvolvimento, nem conteúdo nem expressão. Nessa desarticulação já não
há como considerar os ritmos. A vida anorgânica como matéria desestratificada, não formada,
deve-se relacionar com o Caos (lugar de todas as partículas, lugar da criação, oceano da
dessemelhança), lembrando como advertem Deleuze/Guattari :
Em relação aos estratos que são multiplicidade de elementos heterogêneos enquanto Totalidade
segmentaria, a cidade constrói também uma multiplicidade de Corpos sem Órgãos, desfazendo-se
de organizações (organismo estratificados), abrindo-se para n novas articulações enquanto
experimentação, e isso, como operação sobre o plano de consistência (filosófico, nova forma de
pensar) sem significantes e interpretações, adotando o nomadismo como movimento:
(...) desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo
um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições, limiares, passagens e distribuições de
intensidades, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor. No limite,
desfazer o organismo não é mais difícil do que desfazer os outros estratos, significância ou
subjetivação. A significância cola na alma assim como o organismo cola no corpo e dela
não é fácil desfazer-se. (Deleuze/Guattari, 1999, 22). Grifos nossos.
O CsO não para de oscilar entre as superfícies que o estratificam e o Plano de consistência que o
libera. O pior não é permanecer estratificado, ou seja, organizado, significado, sujeitado, mas
precipitar os estratos numa queda suicida. Mesmo que se considera tal ou qual formação social e
tal ou qual Aparelho de Estado, pode-se afirmar que ambos têm seu CsO pronto para corroer,
para proliferar, para cobrir ou invadir o conjunto do campo social urbano, tanto em relações de
violência e de rivalidade quanto de aliança ou cumplicidade. A Inflação pode ser o CsO do
dinheiro, mas também CsO do Estado, do exército. da fábrica, da cidade.
(...) Desejo de dinheiro, desejo de exército, de policia e de Estado, desejo fascista, inclusive o
fascismo é desejo. Há desejo toda vez que há constituição de um CsO numa relação ou em
outra. Não é problema de ideologia, mas de pura matéria, fenômeno de matéria física, biológica,
psíquica, social ou cósmica. Por isto o problema material de uma esquizo-análise é o de saber
se nós possuímos os meios de realizar a seleção, de separar o CsO de seus duplos: corpos
vítreos, vazios, corpos cancerosos, totalitários e fascistas. A prova do desejo: não denunciar os
falsos desejos, mas, no desejo, distinguir o que remete à proliferação de estratos, ou bem à
desestratificação demasiada violenta, e que remete à construção do plano de consistência
(vigiar em nós mesmos o fascista, e também o suicida e o demente). O plano de consistência
não é simplesmente o que é constituído por todos os CsO. Há os que ele rejeita, é ele que faz a
escolha. (Deleuze/Guattari, 1997, 28).
Torna-se oportuno lembrar que a disciplina dos corpos em espaços confinados (moldes) enquanto
modelagem estudada por Foucault nas sociedades industriais, vem cedendo lugar ao processo
de modulação, como uma moldagem auto-deformante que varia continuamente, a cada instante,
a guisa de um controle ilimitado, uma moratória dos corpos que se tornam indissociáveis da
“coleira eletrônica” que os aprisiona.5 Fato este que dificulta a construção de um CsO enquanto
Acontecimento, criação, no sentido de um Devir-outro da existência, uma diferente visão de
mundo que, em última instância, pressupõe o desejo de um diferente comportamento ético, uma
Ética pautada numa “revolução molecular” da micro política do Desejo
Conclusão
Da limitação do espaço previsto e do que foi exposto sumariamente, pois, o tema exigiria uma
extensa abordagem, conclui-se:
CsO é desejo e é por ele que se deseja. O CsO é o campo de imanência do desejo, o
plano de consistência própria do desejo que se define como processo de produção. O
CsO é construído, todavia, se a desterritorialização do desejo for feito sem a devida
prudência, ele resulta num CsO de aniquilamento.
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Figuração criada por Deleuze no Post-scriptum: “Sobre as sociedades de controle” em “Conversações” (2000, p. 219).
A cidade constrói seus corpos sem órgãos, uma Multiplicidade deles, tanto no sentido
individual de seus habitantes quanto coletivamente de seus diferente grupos. Construção
que enquanto desejo visa transformações criativas, Devires-outros da cidade. E isso, no
sentido de uma nova visão de mundo, de uma nova Ética, enquanto revolução molecular
do Desejo.
Bibliografia