direitos
vez que o presidente da República homologa
Centenário conturbado
Política indigenista
passa por período de
mudanças e disputas;
desafio é efetivar
direitos constitucionais
e cumprir convenções.
Por Bianca Pyl e Maurício
Hashizume • foto agência Senado
N
este ano em que se comemora um sécu-
lo de criação do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI) pelo marechal Cândido Ron-
don, a política indigenista brasileira passa por
um período bastante agitado. A historicamente
tensa, complexa e sensível relação entre o Es-
tado e os povos indígenas provavelmente não
enfrentava um período tão movimentado, com
intensas mudanças e resistências, desde a As-
sembléia Constituinte (1987-1988).
Questões cruciais que envolvem passado,
presente e futuro dos índios têm sido tratadas
nas esferas dos Poderes da República – seja no
Palácio do Planalto, no Congresso Nacional
ou nos tribunais do Poder Judiciário. Por isso,
a apreensão dos povos indígenas é constan-
te. “Poucas pessoas de fato trabalham e defen-
dem os indígenas”, justifica Marcos dos Santos
Tupã, líder guarani mbyá da Aldeia Krukutu,
em São Paulo.
Para a subprocuradora da República Debo-
rah Duprat, a dívida do país com os povos in-
dígenas é imensa. “Recuperada a dignidade dos
índios por meio normativo, após a Constitui-
ção Federal de 1988, há um passivo enorme do
qual o Estado muito dificilmente dará conta.
Essas comunidades estavam de fato invisíveis
e relegadas ao mais puro abandono. Recobrir
todo esse passado, dentro de um curto espaço
de tempo, é uma utopia”, complementa a repre-
sentante do Ministério Público Federal (MPF).
O próprio presidente Luiz Inácio Lula da
Silva declarou este ano aos indígenas da Ra-
posa Serra do Sol, em plena comemoração do
Dia do Índio (19 de abril), que “nós (governo)
já fizemos muito, mas foram 500 anos de ex-
ploração e, por mais que a gente faça, sempre
teremos muito mais para fazer”, disse. “É pre-
ciso que a gente tenha maior responsabilidade
[diante das demandas dos povos indígenas]”,
completou Lula.
28 caros amigos especial indígena
te da Funai Mércio Gomes, pedem a revogação
ÍNononon on on on on on on on on on ição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.
A despeito das palavras presidenciais, o an-
tropólogo Ricardo Verdum, da ONG Instituto de
Estudos Socioeconômicos (Inesc), não tem dú-
vidas acerca da “subordinação da política indi-
genista” a outras políticas “consideradas priori-
tárias”, as quais se traduzem no incentivo e na
sustentação de grandes obras de infraestrutu-
ra e a expansão do agronegócio. “Era assim em
2002 e continua assim em 2010”, provoca Ri-
cardo, bastante crítico às alianças do governo
federal com setores que, na prática, têm ataca-
do os direitos indígenas.
“Não se quer a causa indígena. Os índios,
seus interesses, seus sonhos e seus direitos atra-
palham”, sintetiza dom Pedro Casaldáliga, bis-
po emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia
(MT), que atua há mais de 40 anos no Baixo
Araguaia na defesa dos indígenas.
TERRITÓRIOS E REPRESENTAÇÃO
Representante dos povos do Sudeste na Co-
missão Nacional de Política Indigenista (CNPI),
Marcos Tupã reconhece alguns esforços do go-
verno e classifica a comissão como primeiro es-
paço de diálogo, após décadas de reivindicações.
A abertura para a discussão de políticas públi-
cas esbarra, contudo, nos problemas fundiários.
“Nas demarcações, outros interesses atuam com
força”, diz, lembrando o exemplo do Mato Gros-
so do Sul. O resultado, avalia Ricardo Verdum,
pode ser percebido na redução do ritmo de de-
seção vinculada ao Ministério da Saúde (MS)
marcações nos últimos anos. De 2003 a 2009, fo-
ram homologadas 81 Terras Indígenas (TIs), que
somam cerca de 18,7 milhões de hectares. Em
2008 e 2009, apenas 10 áreas (6,6 milhões de
hectares) foram convertidas em TIs.
Já as tentativas de emplacar projetos de ex-
ploração econômica nessas áreas continuam
intensas. A preocupação é impedir que ações
nesse sentido, em prol da flexibilização da mi-
neração em TIs, por exemplo, distorçam o pro-
jeto do novo Estatuto dos Povos Indígenas,
atualmente em tramitação no Congresso – o
anterior, ainda em vigor, é de 1973, e tem pon-
tos em claro desacordo com a Constituição.
O representante mbya ressalta a importân-
cia de o Estatuto ser aprovado, mas avalia que
este ano talvez ainda não seja o momento ideal
para a votação: “Acreditamos que os próximos
congressistas possam fazer algum trabalho pelo
povo. Esses que estão aí só pensam no próprio
bolso. A gente tem esperança, mas o Brasil é
Brasil. Alguns demonstram compromisso, mas,
lá dentro, quem tem dinheiro pode mais”. Nas
eleições deste ano, candidatos indígenas de-
vem concorrer a cadeiras no Parlamento. “Va-
mos torcer e votar por eles. Para que alguém
chegue à Câmara para nos representar.”
Na visão da subprocuradora Débora é “difícil
dizer qual é o projeto mais perigoso” para as co-
munidades indígenas no Congresso. “Cada vez
que se baixa uma portaria declaratória, cada
uma área indígena, um decreto legislativo é
apresentado para sustar os atos”, observa a co-
ordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Re-
visão - Índios e Minorias da Procuradoria Geral
da República (PGR).
“Com relação aos projetos econômicos, pode
ser até que eles não dizimem fisicamente os povos
indígenas, mas, da maneira como eles estão sendo
conduzidos, comprometem o direito que esses po-
vos têm de se auto-organizar e traçar para eles o
destino que melhor lhes convenha”, adiciona.
LUTA PELO DIÁLOGO
“Os povos indígenas foram durante décadas
tornados dependentes do Estado. Para eles, é
um esforço enorme essa luta contra o Estado
e a despeito do Estado”, acrescenta a subpro-
curadora Deborah. “Todas as organizações in-
dígenas são extremamente aguerridas e lutam
com afinco uma luta desleal, desequilibrada. Há
um enfrentamento contra um Estado que vol-
tou historicamente as costas aos povos indí-
genas e que continua a se voltar de costas aos
casos que lhe convêm, como nos projetos eco-
nômicos em áreas indígenas”.
Sempre que se pronuncia sobre ao reitera-
do desrespeito à posição dos povos indígenas,
Marcos Tupã se refere à Convenção 169 da Or-
ganização Internacional do Trabalho (OIT), que
prevê consulta para todas as políticas e leis que
dizem respeito às comunidades, e à Declaração
da Organização das Nações Unidas (ONU) so-
bre os Direitos dos Povos Tradicionais e Indíge-
nas, de 2007, ambas firmadas pelo Brasil. “Es-
ses documentos foram assinados, mas não são
cumpridos. Na prática, é diferente”, critica o lí-
der mbya, lembrando o caso da Hidrelétrica de
Belo Monte, no Pará. “Não demos o nosso con-
sentimento”, resume.
“O Estado brasileiro não se habituou a tra-
tar as comunidades indígenas com o total res-
peito que lhes é devido”, aponta Deborah Du-
prat. “Continua-se fazendo as coisas de forma
ainda colonizadora, tutelar. Poucas são as prá-
ticas de consulta, para saber o que esses povos
de fato querem, de que modo vêem determina-
das questões.”
O governo afirma que as exigências da Con-
venção 169 da OIT (ratificada pelo Brasil, e por-
tanto parte do ordenamento jurídico do país
imediatamente abaixo da Constituição) estão
sendo implementadas na reestruturação da Fu-
nai (decreto 7056/09), baseada em Comitês Re-
gionais com participação indígena permanen-
te. Indígenas e entidades acusam justamente o
oposto. “O governo propôs mudanças sem que
houvesse a discussão com os povos. Por isso,
sofreu duras críticas. Agora, em vez de demar-
car, fiscalizar e proteger Terras Indígenas, que é
o papel da Funai, quer discutir a reestruturação
que já foi imposta”, critica Roberto Liebgott,
vice-presidente do Conselho Indígena Missio-
nário (Cimi). Participantes de um acampamen-
to montado na Esplanada dos Ministérios desde
janeiro de 2010, com suporte do ex-presiden-
das mudanças no órgão, bem como a demis-
são do atual presidente, Márcio Meira. A mani-
festação contrária de indígenas e organizações
também veio à tona em audiência realizada em
abril na Câmara dos Deputados.
Mário Moura, da Funai, discorda. A reestrutu-
ração, segundo ele, contou com participação da
CNPI e tende a aproximar os servidores do órgão
às TIs. “Agora os funcionários estão mais próxi-
mos, os indígenas não precisam ir para as capi-
tais, a Funai está indo até eles”. Uma das princi-
pais alterações na estrutura da Funai diz respeito
à sua gestão, anteriormente centrada na figura do
presidente e seus auxiliares diretos. No âmbito re-
gional, as responsabilidades serão das Coordena-
ções Regionais (36 no total) com seus respectivos
Comitês Regionais, órgãos colegiados que conta-
rão com representantes indígenas locais. “Lamen-
tavelmente esses Comitês Regionais não tiveram
suas atribuições definidas no novo Estatuto da
Funai”, critica o Cimi, em nota divulgada sobre a
reestruturação. A presidência da Funai tem apon-
tado que as resistências à reestruturação são lo-
calizadas (ver entrevista nesta edição) e vem sen-
do superadas com negociações.
Paralelamente, o governo federal tentou
promover a conversão da atual Comissão Na-
cional temática em Conselho Nacional de Polí-
tica Indigenista. O conselho, diferentemente da
comissão (que tem caráter consultivo e conta
com 20 representantes indígenas), teria caráter
deliberativo e pariticipação ampliada (com 36
índios, 18 deles com direito a voto).
Um projeto de lei nesse sentido está no Con-
gresso desde 2008, mas, para acelerar o proces-
so, a proposta de criação do conselho foi inse-
rida por meio da emenda sem alarde no texto
da Medida Provisória 472/2009, editada para
prover incentivos à indústria petroleira e pro-
gramas de adoção de computadores no sistema
escolar. A proposta chegou a ser aprovada no
Senado no início de maio, mas a emenda refe-
rente ao conselho foi rejeitada no mesmo mês
pelo plenário da Câmara. A MP 472/2009, sem
a previsão da nova instância indígena, acabou
sancionada na Lei 12.249/2010.
Com ou sem o conselho, pondera Verdum, o
misto de respeito e temor dos indígenas diante
do órgão indigenista federal não tende a se dis-
sipar de uma hora para outra. “A Funai ainda é
quem decide. Isso é muito forte”, afirma. Mes-
mo com todas as dificuldades, a causa indígena
acende a esperança de quem conhece bem o con-
texto das lutas dos indígenas. “Há 40 anos, era
bem pior”, relembra dom Pedro Casaldáliga. “Os
índios escondiam a sua própria identidade. Tem
crescido a consciência e a participação da socie-
dade civil, principalmente entre as mulheres.”
SECRETARIA E ATENDIMENTO
Reivindicação antiga de lideranças, o anún-
cio da criação da Secretaria de Saúde Indígena
(Sesai) trouxe alento diante do crônico e pro-
blemático atendimento da Fundação Nacional
de Saúde (Funasa). O funcionamento da nova
,
ainda depende de outro decreto. Aprovada na
Câmara e no Senado (no início de agosto), a Se-
sai aguarda ainda sanção presidencial.
Por enquanto, persistem incertezas. “Há
muitas dúvidas de como será daqui para frente.
Até os agentes da Funasa não sabem como será
a transição para a nova Secretaria”, sustenta
Liebgott, do Cimi. Segundo Rosângela Barre-
to Marquês de Oliveira, representante da Fu-
nasa, o diálogo com o ministério já se iniciou
por meio de reuniões entre técnicos. Atualmen-
te, a assistência aos indígenas é dada por meio
de convênios entre a Funasa e ONGs ou pre-
feituras. Com o anúncio da secretaria, denun-
cia Liebgott, muitos convênios estão sendo en-
cerrados. “A Funasa tem prestado assistência,
mas o órgão não tem estrutura e os atendimen-
tos são paliativos e precários”, emenda. Rosân-
gela informa que os convênios serão prorroga-
dos e, em casos necessários, novos convênios
serão celebrados para que não haja interrupção
dos atendimentos.
JUDICIÁRIO E PERSPECTIVAS
Os 19 itens condicionantes associados à de-
cisão judicial favorável à homologação em área
contínua da TI Raposa Serra do Sol também
permenecem como “fantasma” sobre a políti-
ca indigenista. O acórdão do Supremo Tribunal
Federal (STF) sobre o caso reflete as preocupa-
ções do ente máximo da Justiça com a questão
e sinaliza, por exemplo, com “regras” de restri-
ção às delimitações e impedimento de amplia-
ções de territórios.
Fontes do governo informam que pareceres
jurídicos sobre os condicionantes estão sendo
elaborados, com vista a evitar injustiça e parali-
sação de demarcações. Integrantes da 6a Câma-
ra da Procuradoria-Geral da República (PGR),
complementa Deborah Duprat, entendem que
esses condicionantes do julgamento da Rapo-
sa “não atingem outras áreas indígenas”. “Elas
podem ser entendidas como fundamento, e não
como decisão. Essa é uma ação em que houve
partes. Não é uma Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade (ADI) em que não há partes. Numa
ação em que há partes, qualquer tribunal, mes-
mo o STF, fica adstrito ao que se pede, e nada
disso foi pedido”, argumenta.
“Além disso, o procurador-geral da Repú-
blica já ingressou com embargos de declara-
ção a respeito dessas condicionantes. Grande
parte delas contraria a Convenção 169 da OIT,
sem que nada disso tenha sido dito”, acrescen-
ta. “Se isso tudo for superado e houver enten-
dimento que de fato essas condicionantes se
aplicam a todos os povos indígenas, nós va-
mos ter uma situação de absoluto retrocesso”,
prevê. “Mais do que retrocesso, será uma situa-
ção que ignora o que foi e o que é a Constitui-
ção de 1988.”
Bianca Pyl e Maurício Hashizume são jornalistas
da ONG Repórter Brasil.
especial indígena caros amigos
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