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Helena Maria Marques Araújo

Museu da Maré:
entre educação, memórias e identidades
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0811294/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação do Departamento de
Educação da PUC-Rio como parte dos
requisitos parciais para obtenção do título de
Doutor em Educação.

Orientador: Profª Vera Maria Ferrão Candau

Rio de Janeiro
Março de 2012
Helena Maria Marques Araújo

Museu da Maré:
entre educação, memórias e identidades

Tese apresentada como requisito parcial para


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0811294/CA

obtenção do título de Doutor pelo Programa de


Pós-Graduação em Educação do Departamento
de Educação do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.

Profª Vera Maria F. Candau


Orientadora
Departamento de Educação - PUC-Rio

Prof. Marcelo Gustavo Andrade de Souza


Departamento de Educação - PUC-Rio

Profª. Maria Cristina Monteiro Pereira de Carvalho


Departamento de Educação - PUC-Rio

Prof. Mário de Souza Chagas


UNIRIO

Profª. Carmem Teresa Gabriel Anhorn


UFRJ

Profª Denise Portinari


Coordenadora Setorial do Centro de
Teologia e Ciências Humanas

Rio de Janeiro, 26 de março de 2012.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e
do orientador.

Helena Maria Marques Araújo

Possui graduação em Historia pela Universidade do Estado do


Rio de Janeiro (1985) e Mestrado em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (1998). Professora
Assistente de História do Instituto de Aplicação- CAp/ UERJ (
Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e de Estágio
Supervisionado de História no Departamento de História da
UERJ. Tem experiência como professora de História na rede
municipal e particular de ensino. Atua na área de História e
Educação, com ênfase em Ensino de História, Formação
Docente, Didática de História, Prática de Ensino e Estágio
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Supervisionado de História, Memória, Espaços Educativos Não


Formais, Museus Comunitários e Ecomuseus.

Ficha Catalográfica
Araújo, Helena Maria Marques

Museu da Maré: entre educação, memórias e


identidades / Helena Maria Marques Araújo ; orientadora:
Vera Maria Ferrão Candau. – 2012.
238 f. il. ; 30 cm

Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do


Rio de Janeiro, Departamento de Educação, 2012.
Inclui bibliografia

1. Educação – Teses. 2. Museu da Maré. 3. Museus


comunitários. 4. Espaços educativos não formais. 5.
Ecomuseus. 6. Memória. 7. Identidade. 8. Nova museologia.
I. Candau, Vera Maria Ferrão. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. III.
Título.

CDD: 370
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Às minhas memórias:

Aos meus pais,


Eugénio (in memorian) e Marilda pela
possibilidade da vida, do amor e do
ensinamento do valor do estudo.

Aos meus avós, Duarte (in memorian) e


Celeste (in memorian) pelo carinho,
alegria, saudade e amor pela vida.

À minha irmã, Eugénia,


pela amizade, cumplicidade e
companheirismo incondicionais.

Aos meus alunos e alunas de todos os tempos e lugares com quem tanto aprendi!
Agradecimentos

Ao terminar uma tese de doutorado em Educação e Memória, fazer memória e


tornar este um “lugar das minhas memórias” é, no mínimo, desafiador!

É muito difícil até agradecer porque foram tantas as ajudas recebidas, os carinhos,
os favores, os apoios, os afagos, as cumplicidades, as benções, as alegrias e
tristezas compartilhadas, enfim um muito obrigado a tod@s amig@s, colegas, que
comigo caminharam ajudando cada um de sua forma e do jeito como podia!!

Porém, seria uma ingratidão imensa não nomear alguns que partilharam mais de
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perto esses quatro anos de caminhada acadêmica e existencial!! Portanto, a esses e


essas agradeço do fundo de minh`alma:

Aos diretores, funcionários e visitantes/ usuários do Museu da Maré sem o qual


esta tese não teria acontecido e com os quais compartilho o meu estudo e a minha
gratidão. Mas, mais diretamente ao Lourenço Cezar da Silva, Luís Antônio de
Oliveira, Terezinha Normandes Lanzellotti, JB (João Batista Henrique), Marilene
Nunes da Silva e muito especialmente, ao Carlinhos (Antonio Carlos Pinto Vieira)
pelo tempo repartido em todas as atividades que fizemos e por ter me recebido
desde o início com incansável generosidade, profissionalismo, dinamismo e boa
vontade, sempre!!

Aos pescadores dos três Núcleos de Pesca da Maré e do Canal do Fundão: Núcleo
de Pesca da Vila do Pinheiro, Núcleo de Pesca do Parque União e Núcleo de
Pesca da Vila Residencial da UFRJ minha gratidão, com quem também
compartilho parte deste estudo e que me geraram tanto encantamento com o tema
estudado. Pela sabedoria, generosidade e exemplo de vida com que nos
presentearam nas entrevistas concedidas, sem as quais parte deste trabalho
também não teria acontecido!!

À minha querida e sempre professora, orientadora, Vera Maria Candau, pela sua
orientação segura, competente, amiga e tranquila. Mas, especialmente por ter
aceito o desafio junto comigo dessa orientação por águas tão “novas”, ou melhor
por “marés” tão desconhecidas para nós!!

Ao meu querido coordenador de pesquisa na PUC-Rio, Marcelo Andrade, amigo


antigo e “chefe de pesquisa”, por sua competência teórica, metodológica, mas
acima de tudo relacional, ao conduzir o grupo do também GECEC de forma tão
brilhante e humana. A ele, minha admiração e gratidão!

Aos professores da Pós-graduação com quem tanto aprendi e compartilhei


momentos de estudo e conversas! Especialmente agradeço às professoras Alicia
Bonamino e Ana Waleska Mendonça pelo carinho e interlocução acadêmica desde
o mestrado. Grata também fico à prof. Sonia Kramer pelo aprendizado como
ouvinte em suas aulas sobre os textos de Benjamin e à prof. Rosália Duarte pelas
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discussões metodológicas coletivas em sala. Também sou grata à professora Isabel


Lélis que, com sua tese, me foi fonte de inspiração.

Aos professores que participaram generosamente das minhas duas bancas de


Qualificação indicando caminhos, análises e me auxiliando com sugestões
valiosas na pesquisa teórica e no trabalho de campo: Carmem Gabriel, Cristina
Carvalho e Mário Chagas.

Um singular agradecimento ao Professor Manoel Salgado Guimarães (in


memorian) por tanto ter me ensinado de forma tão generosa e competente no
estudo individual sobre Memória com que me ofertou. Onde quer que você esteja
no plano espiritual, Manoel, receba o meu eterno muito obrigado!!

Ao professor Mário Chagas um especial agradecimento pelas trocas profícuas e


pelo material teórico generosamente indicado, cedido e compartilhado.

À Cláudia Mesquita, pelas interlocuções atentas, preciosas e amigas durante todo


este percurso desde o mestrado.

A todo o grupo de pesquisa do GECEC no qual passamos estudando, analisando,


trabalhando, mas também conversando e rindo, as nossas sextas-feiras à tarde
durante quase quatro anos!! Muito especialmente aos amigos e colegas que já
tínhamos, se fortaleceram ou se fizeram na caminhada: Cláudia Miranda, Paulo
Rebello, Anna Carolina Barbosa, Eliana Palmeira, Luiz Câmara, Pedro Teixeira,
Viviane Amorim, Raquel Alexandre, Mônica Almeida, Monique Longo, Pamela
Cruz, Giselma Sampaio e Patrícia Nascimento.

Aos queridíssimos estagiários Rodrigo Goulart, Raquel Jerez e Laysa Rosa, assim
como ao meu filho Daniel, que fizeram o trabalho “insano” e cuidadoso das
transcrições das entrevistas.

Ao Leopoldo Erthal, que apesar de tão jovem, manejou com tanta habilidade a
confecção dos dados transformando-os nos gráficos aqui utilizados.

Aos meus colegas do curso de doutorado aonde iniciamos os desafios, crises e


questionamentos acadêmicos juntos através de conversas com muitos biscoitos,
risos e angústias, mas especialmente à Cinthia Araújo, à Daniela Valentim e à
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Roberta Araújo, companheiras de mesmo barco! Mas, especialmente ao José


Roberto Rodrigues pela amizade, cumplicidade e solidariedade que se fizeram e
só se ampliaram ao longo desses quatro anos!

A Ana Maria Santiago, querida amiga e coordenadora do Projeto DaMARÉ, que


não só me auxiliou como me permitiu através do Projeto uma entrada quase
“antropológica” no campo. A ela minha enorme gratidão pela confiança
depositada na escolha de meu nome para a coordenação do Grupo de Memória
junto a Antonio Carlos Pinto Vieira.

Ao Grupo de Memória do Projeto da DaMARÉ, com quem elaborei parte de meu


estudo me possibilitando diversas investidas e conhecimento do campo e da Maré,
nas presenças de Humberto Salustriano da Silva, Terezinha Normandes
Lanzellotti e Stela Caputo.

Ao Arquivo Nacional, na presença de seu diretor, Prof. Jaime Antunes, pela


concessão das imagens ao Grupo de Memória do Projeto DaMARÉ, algumas por
mim utilizadas também nessa tese.

À UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) pela licença de


doutoramento (PROCAD) concedida por dois anos me permitindo o afastamento
das atividades docentes e administrativas para maior dedicação e concentração na
minha pesquisa de doutoramento.

Ao CAp/ UERJ pela força sempre dada aos pedidos de concessão e renovação da
licença de PROCAD, especialmente aos diretores e amigos, Miguel Mathias pelo
carinho, amizade e compreensão em todos esses momentos e à Lícia Maria Vieira
Vasconcellos, pela grata amizade e luta incansável na concessão da minha licença.

À equipe de História do CAp/UERJ por estimular minha saída de licença através


de votação sempre favorável a que esta iniciativa se concretizasse na instituição.

Aos professores contratados de História do CAp/UERJ que com tanto carinho e


dedicação me substituíram nas minhas turmas da graduação e do CAp/UERJ:
Thiago Florêncio e Lucas Barros. Mas, um especialíssimo agradecimento ao
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Márcio Romão, ex-aluno, colega, querido amigo, que vêm compartilhando


comigo nos últimos anos de forma tão solidária todas essas lutas e conquistas.

Aos amigos e colegas do CAp /UERJ com quem compartilhamos lutas e sonhos
por uma educação pública, de qualidade e efetiva, especialmente ao Lincoln
Tavares da Silva, Maria Beatriz Porto, Andréa Fernandes e Maria Cristina Ferreira
dos Santos.

Ao Paulo Rogério Silly, querido colega de História, que me fez a sugestão do


tema de estudo da tese me levando à “descoberta” do Museu da Maré!

À Joana D`Arc Ferraz por ter me apresentado e aproximado do “pessoal” do


Museu da Maré.

À querida médica/ amiga, Dra. Gláucia de Azevedo Saad, pela generosidade e


competência em manobrar suas “agulhas mágicas” que me revigoraram quase
toda a semana suportando melhor a “caminhada acadêmica”!!

À Dra. Cândida Maria Camargo que me auxiliou guiando pelos caminhos do


inconsciente no início desta jornada e à Dra. Veronika Penãloza por ter me
oportunizado um mergulho mais profundo na procura de mim mesma através das
minhas “lembranças” e “memórias subterrâneas”!
A todo o pessoal do União Fraterna, particularmente à Kika, Lena, Mariângela,
Dora e Sônia.

À Cátia Regina de Souza pela incansável presença no cuidado com nossa família.

Aos amigos antigos e novos: Cristina Ferreira, Sandra Andrade, Antonio


Mendonça, Hilton Meliande, Dirceu Castilho Pacheco, Renata Augusta e Ronaldo
Padilha que em momentos diferenciados se fizeram presentes durante toda esta
jornada.

À Biba, um “anjo” disfarçado posto em nossa casa, que tanta alegria, ternura e
companhia me fez durante os inúmeros dias e noites de estudo e intensa “solidão
acadêmica”!
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Ao meu filho Pedro, tão atento, solidário e prestativo em seus carinhos e cuidados
comigo especialmente nos momentos finais desta tese.

À Beatriz, queridíssima sobrinha e afilhada, pelo amor, superação e alegria com


que leva a vida!

Ao Felipe, querido enteado, por sua amizade e presença me provando desde nova
que “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”!!!

Ao Daniel e Pedro, filhos amados, “amores da minha vida”, meus “tesouros


históricos”, minha gratidão por existirem e meu amor infinito!!!!!!!!

À espiritualidade maior, a gratidão eterna pela vida!!!


Resumo

Araújo, Helena Maria Marques; Candau, Vera Maria. Museu da Maré:


entre educação, memórias e identidades. Rio de Janeiro, 2012. 238p. Tese
de doutorado – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.

A pesquisa entrelaça memória, espaços educativos não formais e identidade.


O objetivo central é analisar a dimensão educativa do Museu da Maré no Rio de
Janeiro e suas possibilidades de contribuição para o fortalecimento identitário de
grupos populares através da valorização e ressignificação da história e da
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construção das memórias locais. Abordo o conceito, os pressupostos teóricos e


desafios dos museus comunitários como espaços educativos não formais,
enfocando como estudo de caso o Museu da Maré.
Os museus comunitários e ecomuseus emergem no Rio de Janeiro com o
Ecomuseu de Santa Cruz em 1983, porém ganham visibilidade com o Museu da
Maré a partir de 2006, por ser este o primeiro museu de favela no Brasil criado
pela própria comunidade.
O quadro teórico baseou-se para o conceito de memória, principalmente em
Paul Ricoeur, Jacques Le Goff e Beatriz Sarlo. Para o de identidade utilizamos
Stuart Hall, Manuel Castells, Vera Maria Candau e Tomaz Tadeu da Silva. Para
espaços educativos não formais privilegiei Maria Glória Gohn, Jaume Trilla e Elie
Ganem. Por fim, para os conceitos da Nova Museologia, museu comunitário e
ecomuseu me apoiei basicamente em Mário Chagas e Hugue de Varine.
De inspiração etnográfica, meu caminho metodológico baseou-se na história
oral. Na pesquisa de campo utilizou-se três tipos de aproximações ao objeto de
estudo: observação de diferentes atividades desenvolvidas no Museu e de diversos
ambientes da comunidade em geral, entrevistas semiestruturadas feitas aos
pescadores da Maré e aos diretores e funcionários do Museu da Maré e análise dos
Livros institucionais do Museu, a saber: o Livro de Assinaturas e o Livro de
Depoimentos dos visitantes.
Como uma das principais conclusões de minha pesquisa sobre a dimensão
educativa do Museu da Maré posso afirmar que me deparei de fato com um
Museu que tem significado para a região da Maré e dialoga com a cidade, o país e
outros lugares, embora não represente totalmente todas as suas comunidades. No
entanto, ele se fez comunitário, na medida em que foi criado e tem a participação
cotidiana do movimento social e da comunidade local de seu entorno.
Além disso, o fato do Museu da Maré apresentar uma linguagem
museográfica que suscita referências da história local e permite que seus visitantes
reflitam sobre as mesmas, se emocionem e construam memórias locais
possibilitando através das mesmas um fortalecimento identitário, torna
especialmente evidente e significativa sua dimensão educativa.
Por fim, o Museu da Maré gera visões “de nós e dos outros” estabelecendo
um jogo sutil e constante entre identidades e alteridades em suas memórias
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construídas e histórias narradas.

Palavras-chave:
Museu da Maré; museus comunitários; espaços educativos não formais;
ecomuseus; Memória; Identidade; Nova Museologia.
Abstract

Araújo, Helena Maria Marques; Candau, Vera Maria (Advisor). Maré`s


Museum: between education, memories and identities. Rio de Janeiro,
2012. 238p. Thesis - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.

The research intertwines memory, non-formal educational spaces and identity.


The main objective is to analyze the educational dimension of the Maré Museum
in Rio de Janeiro and its possible contributions to the strengthening of the group
identity related to popular groups through appreciation and reinterpretation of the
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history and construction of local memories. I approach the concept, the theoretical
assumptions and challenges of community museums as non-formal educative
spaces, by using the Maré Museum as a case study .
The community museums and ecomuseums emerge in Rio de Janeiro with
the Eco-museum of Santa Cruz in 1983, but became more visible with the Maré
Museum as of 2006, since this is the first museum in Brazil's slums created by the
community itself.
The theoretical framework related to the concept of memory was essentially
based on work of Paul Ricoeur, Jacques Le Goff and Beatriz Sarlo. For the
theoretical framework associated with identity development, I have chosen the
studies performed by Stuart Hall, Manuel Castells, Vera Maria Candau and
Tomaz Tadeu da Silva. For the non-formal educational spaces theoretical basis I
have privileged Maria Gloria Gohn, Jaume Trilla and Elie Ganem. Finally, for the
concepts of New Museology, community museum and ecomuseum I rely
primarily on Mario Chagas and Hugue de Varine.
My methodological approach of ethnographic inspiration was based on oral
history. In the field research I used three types of approaches to the object of
study: observation of different activities in the Museum and of the community at
large, semi-structured interviews to fishermen of the Maré and to the directors and
staff of the Museum of the Maré and analysis of the institutional books of the
Museum, namely the Book of Signatures and the Book of Testimonies from
visitors.
As one of the main conclusions of my research on the educational
dimension of the Mare Museum I can state that this museum does have meaning
for the region of Maré and dialogues with the city, the country and elsewhere,
although it does not fully represent all its communities. However, this museum
has been able to develop a community related feature , as it was created by and
has the daily involvement of the social movement and the local community of
their surroundings.
Moreover, the fact that the Mare Museum display a museographic language
which raises references of local history and allows visitors to reflect on them and
build local memories enabling a strengthening of identity, makes its educative
dimension particularly evident and significant.
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Finally, the Maré Museum generates visions "of ourselves and others" by
establishing a more subtle and constant dynamic between individuals' identities
and their constructed memories and narrated stories.

Key-words:
Maré`s Museum; community museums; non-formal educative spaces;
ecomuseums; Memory; Identity; New Museology.
Sumário

1. Introdução, ou como cheguei a meu objeto de estudo ................ 24

2. De quais memórias e identidades estamos falando? .................. 43


2.1. As “diferentes” memórias .......................................................... 43
2.1.1. A memória em Jacques Le Goff ............................................. 43
2.1.2. A memória em Paul Ricoeur .................................................. 45
2.1.3. A memória em Beatriz Sarlo .................................................. 48
2.2. Os diferentes conceitos de identidade ...................................... 51
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2.2.1. O contexto histórico do surgimento do multiculturalismo ....... 51


2.2.2. O que chamamos identidade (s) ............................................ 52

3. Na “Maré” da Nova Museologia ................................................... 67


3.1. Do colecionismo dos Gabinetes de Curiosidades ao
protagonismo comunitário dos Ecomuseus ..................................... 67
3.2. O que são os museus comunitários e ecomuseus? Por que e
para que os museus comunitários e os ecomuseus ........................ 75
3.3. Panorama geral dos museus comunitários no Rio de Janeiro .. 80

4. Onde fica a educação nisso tudo? ............................................... 86


4.1. Não é só na escola que se educa ............................................. 86
4.1.1. A educação não formal não é informal .................................. 86
4.1.2. Contexto e fatores do desenvolvimento da educação não
formal ............................................................................................... 87
4.2. Os “lugares de memória” também educam .............................. 93

5. A história da Maré, como tudo começou ...................................... 95


5.1. Do mar ao “sertão” .................................................................... 99
5.2. Da favela ao bairro .................................................................... 108
5.3. A criação do Museu da Maré .................................................... 117
6. Que “peixes” pescamos no Museu da Maré? .............................. 128
6.1. Apresentando os pescadores entrevistados ............................. 128
6.2. Memórias e lembranças dos pescadores ................................. 135
6.3. A rede da memória constrói a identidade dos pescadores ....... 143

7. “Os narradores da Maré” .............................................................. 154


7.1. Quem são “os narradores”? ...................................................... 154
7.2. Afinal de contas, o que eles querem narrar? ............................ 156
7.2.1. “Por que o museu em favela?” ............................................... 156
7.2.2. “Porque ele nasce desse projeto político de identidade e
pertencimento” ................................................................................. 162
7.2.3. “O Museu conta minha história, a minha história da
infância...” ......................................................................................... 172
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7.2.4. “O Museu da Maré é um aparelho muito visual e auto


educativo” ........................................................................................ 178
7.3. Retomando as narrativas ou “A possibilidade de você se
emocionar!” ...................................................................................... 186

8. Das presenças e das ausências nos Livros de Assinaturas e


Depoimentos, ou a hora e a vez das “memórias subterrâneas” ...... 189
8.1. O Livro de Assinaturas .............................................................. 189
8.1.1. Visitantes do ano de 2009 ...................................................... 190
8.1.2. Visitantes do ano de 2010 ...................................................... 196
8.1.3. Entrecruzando os dados ........................................................ 201
8.2. O Livro dos Depoimentos .......................................................... 204
8.2.1. De visitante a usuário: acompanhando Brenda ..................... 204
8.2.2. Os eixos temáticos ................................................................. 209
8.2.3. Que aspectos podemos destacar? ........................................ 213

9. “Marés de memórias” ou “memórias de Marés” ........................... 216

10. Referências bibliográficas ........................................................... 224

Anexos .............................................................................................. 232


Lista de Gráficos

Gráfico 1 – Gênero 2009 ....................................................................... 190

Gráfico 2 – Idade 2009 .......................................................................... 191

Gráfico 3 – Instituição 2009 ................................................................... 191

Gráfico 4 – Origem: Comunidades da Maré 2009 ................................. 193

Gráfico 5 – Origem: externa 2009 ......................................................... 194

Gráfico 6 – Gênero 2010 ....................................................................... 197

Gráfico 7 – Idade 2010 .......................................................................... 197


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Gráfico 8 – Instituição 2010 ................................................................... 198

Gráfico 9 – Origem: Comunidades da Maré .......................................... 199

Gráfico 10 – Origem total dos visitantes do Museu da Maré ................. 200

Gráfico 11 – Origem externa ao Complexo da Maré ............................. 201


Lista de Fotos

Foto 1 – Interior do Ecomuseu de Santa Cruz .................................. 81


Foto 2 – Fachada da sede do Ecomuseu de Santa Cruz ................. 82
Foto 3 – Associação dos Moradores do Cantagalo no percurso do
MUF 82
Foto 4 – Início do percurso do MUF ................................................. 83
Foto 5 – Fachada de casa contando a história da comunidade no
percurso do MUF .............................................................................. 83
Foto 6 – Percurso no território do Museu do Horto ........................... 83
Foto 7 - Percurso no território do Museu do Horto ........................... 84
Foto 8 – Fachada da entrada do Museu da Maré ............................. 84
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Foto 9 – Vista panorâmica dos “alagados” da Maré com suas


palafitas até à década de 80 ............................................................. 95
Foto 10 – Praia do Apicú, atual região da Maré ............................... 100
Foto 11 – Instituto Oswaldo Cruz com Baía de Guanabara ao
fundo e Ilhas do Pinheiro e do Fundão ............................................. 102
Foto 12 – Ilha do Pinheiro, pertencente ao Instituto Oswaldo Cruz .. 103
Foto 13 – Região do Aeroporto de Manguinhos ............................... 104
Foto 14 – Aterro da década de 70 feito com o Projeto Rio ............... 105
Foto 15 – Baía de Guanabara com Ilha do Fundão após anexação
das outras ilhas do entorno; Ilha do Pinheiro ainda separada e
ponte de ligação com a Ilha do Governador ..................................... 105
Foto 16 – Imagem emblemática das palafitas nos alagados da
Maré: Baixa do Sapateiro e Parque Maré ......................................... 112
Foto 17– “Pontes de tábuas” interligando as palafitas da Maré ....... 113
Foto 18 – Prédio amarelo: embaixo, a biblioteca; em cima, salas de
cursos; atrás, salas de informática e o Arquivo D.Orosina
Vieira ................................................................................................. 118
Foto 19 – Prédio vermelho: exposição permanente do Museu da
Maré .................................................................................................. 118
Foto 20 – O barquinho dos pescadores com a estátua de S. Pedro 119
Foto 21 – A emblemática palafita na entrada da exposição
permanente do Museu ...................................................................... 120
Foto 22 – Interior da palafita ............................................................. 121
Foto 23 – Interior da palafita e visão da favela pelo banner externo 121
Foto 24 – Cenário externo à palafita, mulher com lata de água na
cabeça e varal de roupas .................................................................. 122
Foto 25 – Os registros de posse das casas, jornal local e fotos ....... 123
Foto 26– O tempo dos “barracos” acabou, surgem as casas de
alvenaria e seu cotidiano .................................................................. 124
Foto 27 – Anexo de exposições temporárias no Museu da Maré ..... 125
Foto 28 – Loja “Arte da Maré” de vendas de artesanato e costuras
das Marias Maré no pátio do Museu ................................................. 125
Foto 29 –Píer do Núcleo de Pesca da Vila Residencial da UFRJ .... 128
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Foto 30 – Vila Residencial da UFRJ com obras de saneamento ..... 129


Foto 31 – Píer do Núcleo de pesca da Vila do Pinheiro ................... 129
Foto 32 – Ancoradouro de barcos do píer da Vila do Pinheiro e o
vão da Linha Vermelha por cima ...................................................... 130
Foto 33 – Píer do Núcleo de Pesca do Parque União e o vão da
Linha Vermelha por cima .................................................................. 130
Foto 34 – Píer da do Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro .............. 131
Foto 35 – “Seu” Jaqueta ................................................................... 132
Foto 36 – Pescadores da Vila Residencial da UFRJ: “Seu” Foca,
“Seu” Carlos e “Seu” Cordeiro .......................................................... 134
Foto 37 – O pescador Siri na entrevista realizada dentro do Museu
da Maré ............................................................................................. 135
Foto 38 – Vovô contando suas histórias na entrevista ..................... 139
Foto 39 – Píer do Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro ................... 142
Foto 40 – Píer do Núcleo de Pesca da Vila Residencial da UFRJ ... 142
Foto 41 – “Seu” Foca ........................................................................ 145
Fotos 42 e 43 – Imagens de São Pedro, Nossa Sra. de Aparecida
e Iemanjá no píer do Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro ........... 147
Foto 44 – Poluição do Canal do Fundão visto daVila Residencial
da UFRJ ............................................................................................ 147
Foto45 – Linha Vermelha ao fundo, embaixo da autoestrada o
Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro. Poluição do Canal do
Fundão vista da Ilha do Fundão ....................................................... 148
Foto 46 – Poluição no Canal do Fundão .......................................... 148
Foto 47 – Pescador Marcos do Parque União .................................. 149
Foto 48 – “Chá de memória” no pátio do Museu da Maré em 2011 . 174
Foto 49 – “Chá de memória” com um dos contadores de histórias
se apresentando ............................................................................... 175
Foto 50 – Alunos de escola municipal visitando o Museu da Maré
recebendo informações do arte educador do Museu na
entrada da exposição permanente ................................................... 192
Foto 51 – Painel na entrada da exposição permanente do Museu
da Maré ............................................................................................. 223
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Lista de mapas

Mapa 1: Área total do estado do Rio de Janeiro com destaque para a


localização do bairro da Maré ................................................................. 96

Mapa 2: Bairro da Maré com destaque para 16 comunidades ................ 97


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Lista de Abreviaturas e siglas

ABREMC – Associaçaõ Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários

BNH – Banco Nacional de Habitação

CAp/ UERJ – Instituto de Aplicação Fernando Rodrigeus da Silveira da


UERJ

CBPF – CENTRO BRASILEIRO DE PESQUISAS FÍSICAS

CEASM – Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré

CENPES/ PETROBRÁS – Centro de Pesquisas e Desenvolvimento


Leopoldo Miguez de Mello / PETROBRÁS

CEDAE – Companhia Estadual de Água e Esgoto


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CHP – Centro de Habitação Provisória

CIEP – Centro Integrado de Escola Pública

DNOS – Departamento Nacional de Obras e de Saneamento

ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ

FAPERJ – Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro

FGV – Fundação Getúlio Vargas

FIOCRUZ – Fundação Osvaldo Cruz

GECEC - Grupo de Estudos sobre o Cotidiano, Educação e Culturas

ICOM – Conselho Internacional de Museus

IPHAN – Instiuto do Patrimônio Histórico e Artíscico Cultural

MASP – Museu de São Paulo

MAST – Museu de Astronomia e Ciências Afins

MINOM – Movimento Internacional da Nova Museologia

MUF – Museu de Favela (do Pavão-Pavaozinho e Cantagalo)

NEPE – Núcleo de Editoração, Pesquisa e Extensão do CAp/ UERJ

NOPH – Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica


PROMORAR – Programa de Erradicação da Sub-habitação

PROVOC – Programa de Vocação Científica

SEA – Secretaria Estadual de Ambiente

UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro


UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNIRIO- Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

UPP – Unidade de Polícia Pacificadora


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Somos a memória que temos e a


responsabilidade que assumimos.
Sem memória não existimos, sem
responsabilidade talvez não mereçamos existir.”

José Saramago
1
Introdução, ou como cheguei a meu objeto de estudo

“A memória, onde cresce a história, que por sua vez a


alimenta, procura salvar o passado para servir o
presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que
a memória coletiva sirva para a libertação e não para a
servidão dos homens.”(Le Goff, 1990, p. 477)

Minha tese de doutorado se insere no tema sobre espaços educativos não


formais no âmbito das relações entre Memória e Identidade. Também, faz um
entrelaçamento entre a Nova Museologia e um conjunto de pensadores que se
situam na área dos Estudos Culturais1.
Nela procurei identificar e analisar a dimensão educativa do Museu da Maré
através da construção e ressignificação da história e memórias locais e sua relação
com o possível fortalecimento identitário de grupos sociais populares através de
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um museu comunitário.
Fazer a memória de minha caminhada profissional e existencial para chegar
até aqui, não é fácil para mim. Como escrevi nos meus agradecimentos, fazer
memória desse caminho é, no mínimo, desafiador!
Faço-me professora a cada dia (Freire, 1997) e cada vez mais! Porém, com
25 anos de magistério sem sair da sala de aula como professora de história, quer
na Educação Básica, quer na graduação e por ter entrado no CAp/ UERJ ainda
jovem, acabei tecendo minha rede profissional e acadêmica pela formação de
professores onde até hoje estou trabalhando, lecionando e me fazendo professora!
Entre 2004 e 2008 fiz parte da equipe da direção do CAp/ UERJ e assumi a
Coordenação da Iniciação Científica Júnior e a Coordenação Adjunta do NEPE
(Núcleo de Pesquisa, Editoração e Extensão) do CAp. Reencontrei-me com a
pesquisa na minha vida de professora. O trabalho mais de perto com os jovens do
Ensino Médio do CAp nos Programas de Vocação Científica (PROVOC) da
FIOCRUZ, CENPES/ PETROBRÁS e CBPF, além da própria UERJ, me fizeram
enveredar por caminhos fora da escola. Acompanhei a seleção dos alunos nessas

1 Os Estudos Culturais podem ser definidos segundo Silva (2002) como: “O que distingue os
Estudos Culturais de disciplinas acadêmicas tradicionais é seu envolvimento explicitamente
político. As análises feitas nos Estudos Culturais não pretendem nunca ser neutras ou imparciais.
Na crítica que fazem das relações de poder numa situação cultural ou social determinada, os
Estudos Culturais tomam claramente o partido dos grupos em desvantagem nessas relações. Os
Estudos Culturais pretendem que suas análises funcionem como uma intervenção na vida política e
social.” (p. 134).
25

instituições, seus estágios e suas descobertas. É maravilhoso vê-los encontrar o


prazer do conhecimento, da pesquisa científica, novos talentos e quem sabe
vocações, muitas vezes, se revelam. Aí então, novas reflexões me acometeram
naqueles quatro intensos anos: fora da escola, sem nota e sem obrigatoriedade de
assiduidade para passar de ano, vários estudantes se dedicam de “corpo e alma”,
com paixão (aquela que tantas vezes já não vemos em seus olhos nas salas de
aula...) ao que estudam! Soma-se a isso, de forma similar, a reação positiva dos
alunos aos passeios históricos e às excursões pedagógicas que já fazia com meus
alunos das turmas do CAp, de outras escolas e da graduação. Mas, com a
Iniciação Científica Júnior havia uma sistemática e constância de estudo/ estágio
fora do ambiente escolar.
Assim sendo, volto-me para minhas indagações e me pergunto o quanto a
escola não tem a aprender com esses espaços educativos não formais. Um dos
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meus campos de interesse e estudo era e ainda é o ensino de História, penso o


quanto os museus e centros culturais, se fossem sistematicamente utilizados e
visitados, não poderiam ser parceiros constantes da escola e tornar o ensino de
História, dentre outros, mais vivo e eficaz. Por isso, comecei a me interessar e
estudar a produção de saberes em espaços educativos não formais.
Nos últimos anos cresceram as pesquisas que analisam os processos de
ensino em tais espaços não escolares na perspectiva dos estudos sobre transposição
didática e/ ou recontextualização. Os “lugares de memória’2, como os museus,
assim como outros espaços educativos não formais, são produtores de saberes
próprios, produtos da experiência social e cultural, da memória, gerados em espaços
que também educam, pois tem a intenção não só de guardar a memória, mas
construí-la e transmiti-la, logo, ensinando, educando os visitantes e/ ou usuários.
Assim, chego eu aos museus, parte ainda genérica de meu objeto de estudo.
Mas, logo se torna claro, que não me interessava o estudo dos museus clássicos,
embora reconheça e saiba da importância e existência de tantos estudos sérios,
competentes e consagrados nessa área. Mas, meu olhar estava voltado para a
importância de se democratizar o acesso a esses “lugares de memória”,
especialmente os museus e como se manifestava a dimensão educativa desses
lugares.

2 A expressão “lugares de memória” foi cunhada por Pierre Nora, por isso, estamos usando-a entre
aspas. Será por nós discutida no capítulo 3, item 3.2.
26

Sendo assim, me fascinava pensar que fora da escola também, havia


parceiros incansáveis nessa luta de se democratizar o acesso à educação como um
todo envolvendo com isso, as práticas culturais.
Ainda fazendo os créditos do doutorado pensava sobre o assunto, queria os
espaços educativos não formais, dentre eles os “lugares de memória’, mas ainda
não tinha um recorte mais preciso do meu objeto de estudo. Já havia escrito alguns
pequenos artigos sobre o assunto e apresentado em Anais de Congressos de
Educação e Ensino de História, mas percebi que ainda não havia conseguido
aderir o suficiente a um estudo claro. E foi num encontro profissional com um
querido colega professor de História, Paulo Rogério Silly, que tomei
conhecimento da existência do Museu da Maré. Assim sendo, estava dada a
sugestão do tema e a partir daí, uma fagulha foi posta e a enorme curiosidade para
conhecer esta realidade tomou conta de mim.
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Cada vez mais me decidia por estudar os museus comunitários, por


apresentarem um viés que me parecia mais popular tanto de acesso pelo público,
mas principalmente, na própria concepção mais democrática de museu (Chagas,
2008). Buscas acadêmicas, conversas com pessoas da área, busca por parceiros ....
Enfim, chegou o momento de conhecer o Museu da Maré na I Jornada Formação
em Museologia Comunitária em Santa Cruz/ RJ em outubro de 2009. Daí em
diante foi encantamento, me fascinei por conhecer o projeto do Museu da Maré
ligado ao já famoso CEASM3. Tal qual as crianças ao visitarem o Museu, me
apaixonei pela palafita, pelas fotos, pela história de vida daqueles homens e
mulheres que conquistaram não só a terra, mas tiveram que fazer o próprio chão 4!
A exposição museográfica, a disposição dos objetos, o barquinho, o São Pedro, as
fotografias de época, tudo isso me emocionou!
Sendo assim, estava quase decidido que estudaria o Museu da Maré. Porém,
conversas com minha orientadora, minha família e alguns amigos próximos me
levam a uma única ponderação a respeito de focar no Museu da Maré, ou seja, fica
localizado numa área “dita” violenta no Rio de Janeiro devido à disputa pelo

3 Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré.


4 Referência à dissertação de Antonio Carlos Pinto Vieira, um dos diretores do CEASM e Museu
da Maré, intitulada Do engenho à favela, do mar ao chão, memórias da construção do espaço na
Maré. Vieira (2008) em sua pesquisa historiciza e analisa a conquista da terra na região da Maré,
desde os aterros nos alagados promovidos por seus moradores que tiveram que construir até
mesmo o chão.
27

controle do tráfico de drogas e da polícia na região da Maré. Afinal de contas nem


a UPP5 tinha chegado lá e ainda não chegou!
Sinto-me então, numa encruzilhada, o que fazer? Dá-se um impasse, minha
orientadora cautelosa e temerosa comigo faz ponderações pertinentes. Suas
sugestões de encontro com meus desejos acabaram fazendo com que optasse por
elaborar um panorama dos museus comunitários e ecomuseus do Rio de Janeiro
surgidos até janeiro de 2010. Faria algumas visitas a campo, mas não mergulharia
um tempo maior em nenhum deles. Que alívio, não “perdi” o tema!
Fui conhecer o MUF (Museu de Favela- Pavão-Pavãozinho e do Cantagalo),
que ainda me faltava visitar. O Ecomuseu de Santa Cruz já conhecia e o embrião
do futuro Museu de História Sankofa da Rocinha também. Todos me encantando,
em construção permanente de suas próprias memórias, mas cada um com uma
história, uma grande diversidade cultural, bairros totalmente diferentes e distantes!
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Um mundo em cada um deles se descortinava aos meus olhos... Como dar conta
disso tudo!!
Chega então, o momento da 1ª Qualificação em março de 2010. Apresento
um breve painel sobre os museus comunitários e ecomuseus do Rio de Janeiro
caracterizando-os. A banca me faz perguntas desafiadoras: Quanta diversidade
cultural, como você vai dar conta em apenas quatro anos, dois já haviam se
passado?” Por que não ficar com um só? Por que não escolher o Museu da
Maré? E a violência da região da Maré, como você vai lidar com isso, como vai
entrar no campo? Saí da Qualificação I com mais dúvidas do que entrei, estava
numa encruzilhada, era preciso redefinir o objeto, recortá-lo melhor. A banca
sugere que escolha apenas um museu comunitário ou um ecomuseu, pois havia
entre eles as duas categorias.
Sendo assim, aquele que além de me encantar, era o primeiro museu de
favela criado pela própria comunidade era o Museu da Maré. Por isso, era um
símbolo para o Rio de Janeiro, o Brasil e outros lugares do mundo. Mais uma vez,
encontros com a orientadora e finalmente, o recorte maior, estudaria o Museu da
Maré. Alívio por um lado, objeto de estudo a princípio definido, por outro um
enorme trabalho pela frente...

5 UPP (Unidade de Polícia Pacificadora)


28

Porém, fica uma dúvida no “ar”: E a dita violência da região da Maré? Como
você vai encarar? Comecei a enumerar os prós e os contra de ter que frequentar
periodicamente aquela região, ir para lá semanalmente de ônibus, duas vezes na
semana ... Primeira ponderação é que o Museu da Maré se situa no Timbau,
considerado por alguns “uma área mais nobre da Maré”, melhor urbanizada e
localizada. O Museu fica num antigo galpão de fábrica de transportes marítimos
numa região da Maré à beira da Avenida Brasil, próximo à Escola Municipal Bahia,
numa rua larga e asfaltada, cheia de galpões, ruas de acesso ao próprio Morro do
Timbau, restaurantes, bares, biroscas, quiosques, um Quartel do Exército no início
da rua, uma igreja próxima (Igreja dos Navegantes) e um Posto de Saúde no final da
mesma rua. Numa das pontas da mesma, como já dissemos, a Avenida Brasil, na
outra os acessos à Linha Amarela, Linha Vermelha e à Ilha do Fundão.
Outro fator favorável à minha ida para a Maré é de que havia farta condução
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pela Avenida Brasil e descer na Escola Bahia era tranquilo, andar a pé por ali até o
Museu também. Na volta, o desafio da passarela da Avenida Brasil, mas sempre
movimentada, cheia de trabalhadores e estudantes no vaivém do cotidiano.
Outro ponto fundamental foi a disponibilidade e acolhimento com que fui
recebida desde o início no Museu da Maré, sempre um dos diretores se
prontificava a dar uma carona, na ida ou na volta, até à Central, ao centro da
cidade, ou mesmo até ao ponto de ônibus na Escola Bahia. Os outros diretores
também eram sempre receptivos e muito solícitos. Tudo muito prazeroso. Os
funcionários rapidamente me incorporaram ao grupo e quando eu sumia e ainda
agora, me falam: “Sumida, não veio mais. Por que ?”. Todo esse carinho e
acolhimento era um estímulo constante para me sentir bem e querida e reforçar
minha opção. Com eles participei de várias atividades no Museu, conversas no
pátio, na Loja das Marias Maré, nos Galpões, nas reuniões, entrevistando os
pescadores, nas festas como “Maré do Samba”, dentre outros.
Soma-se a isso tudo, ter sido convidada para participar do Grupo de
Memória do Projeto DaMARÉ (que será melhor explicado nas linhas abaixo)
tendo em vista ser indicada na UERJ por estar estudando a região. Aí, foi bom
demais!!! Digamos que estava começando a acreditar que havia uma “conjuntura
favorável” para eu entrar em campo num mergulho mais profundo como queria de
fato!! Vivenciar o campo com um grupo institucionalmente organizado é sempre
mais fácil! As idas nos Núcleos de Pesca ficaram bem mais viáveis, os carros da
29

UERJ e seus motoristas nos levavam, ou um dos diretores do Museu - em geral, o


Carlinhos,- nos acompanhava em seu próprio carro, já que também fazia parte do
Projeto e conhecia a região. Andar por dentro da Maré de carro ou a pé, em várias
de suas comunidades, conhecer todos os presidentes das Associações de
Moradores das comunidades da Maré, seus restaurantes, conversar com os
habitantes, conhecer o CEASM, o comércio local, igrejas, escolas, as obras da
Construtora Queiroz Galvão, passou a ser rotina e sempre estávamos
acompanhados por alguém da localidade e que estava também vinculado ao
Projeto DaMARÉ6. Mergulho total no campo!
Assim sendo, não mais observo só o campo, mas interajo com ele! Éramos
um grupo enorme, umas 50 ou 60 pessoas, a comunidade foi contactada e já sabia
da existência do Projeto DaMARÉ vinculado à despoluição do Canal do Fundão.
Havia várias ramificações de atuação: formação de monitores ambientais, os
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catadores, os pescadores, as costureiras, os usuários dos cursos oferecidos às


comunidades pela UERJ no Museu da Maré e em outros locais. No Grupo de
Memória nós éramos apenas cinco pessoas. Com uma delas quase sempre nos
encontrávamos na Central e íamos para lá de ônibus, na volta quase sempre uma
carona com outro membro do grupo até à Cinelândia. E, assim, o cotidiano que
parecia inicialmente tão duro com os deslocamentos e com a possível violência
passa a ser tranquilo, oportunizando, inclusive nos tempos dos deslocamentos,
boas conversas e trocas maravilhosas de histórias, vivências e afetos!
Um tempo de buscas, encantamento, aprendizados, grandes desafios, contato
com realidades duras, pobreza, falta de recursos, desigualdades socioeconômicas,
mas também, lutas, resistências, alegrias, sabedorias, estratégias e táticas de vida
(Certeau,1994). Com o tempo fui descobrindo o quanto se constrói também de
memória da violência estigmatizando muitas vezes comunidades inteiras e
inviabilizando projetos e possibilidades. Não somos ingênuos em pensar que não
há violência na Maré, é claro que ela está posta, porém nem mais nem menos,
como em outros lugares do Rio de Janeiro, do Brasil ou do mundo, principalmente
nas megalópoles. A “cidade partida” (Ventura, 2000), que gera o nome do próprio
livro, é denominação dada à cidade do Rio de Janeiro por Ventura (id) devido à

6 O Projeto DaMARÉ só contratou profissionais da UERJ ou moradores da Maré, tendo em vista


ser executado pela Secretaria Estadual de Ambiente e ser a UERJ uma universidade estadual, além
do projeto se referir à obra de Despoluição do Canal do Fundão, região do entorno da Maré.
30

cisão da mesma pela violência na “favela e no asfalto”. Além da violência real,


também somos nós que a retroalimentamos na medida em que construímos
memórias da violência através de lembranças que nem sempre vivemos, mas que
nos foram passadas pelas redes educativas do cotidiano 7 ... Sendo assim,
cristalizamos territorialidades engessando-as como violentas etc.
Paralelo a todos esses estudos e acontecimentos, na “academia” já estava
envolvida com o GECEC (Grupo de Estudos sobre o Cotidiano, Educação e
Culturas), coordenado pela professora Vera Maria Candau, participando desde o
primeiro período do doutoramento do subgrupo de pesquisa coordenado pelo
professor Marcelo Andrade. A participação nesse grupo ampliou minhas leituras
sobre os Estudos Culturais e Interculturalidade e possibilitou-me discussões e
acessos a autores por mim desconhecidos até então.
Como já abordei anteriormente, quando já estava envolvida no campo de
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estudo da Maré, sou chamada pela UERJ em convênio com a Secretaria Estadual
de Ambiente para coordenar o grupo de Memória do Projeto DaMARÉ8 devido ao
meu trabalho de estudo que envolvia aquela região, precisamente o Museu da
Maré. Sem dúvida nenhuma, essa inserção facilitou em muito a minha entrada no
campo, nesse mergulho de inspiração etnográfica.
Novos encontros, novos encantamentos ... O Projeto DaMARÉ ,como
escrevi anteriormente, me permitiu conhecer os três Núcleos de Pesca da Maré e
da Ilha do Fundão (que descreverei detalhadamente no capítulo 5), andar por
diferentes comunidades da Maré, conhecer mais gente, sair dos muros do próprio
Museu da Maré. Passei então, a conhecer melhor - in loco- parte da história
narrada pelo Museu da Maré.
A história dos pescadores é também ressignificada no Museu da Maré, estão
lá as fotos, a palafita, o barquinho, a lanterna, o São Pedro etc. Os pescadores por
nós entrevistados foram muitos, as histórias contadas e ouvidas diversas. Cabe
lembrar que a Maré está até hoje ligada à pesca. O encontro com essas “águas” se

7 É muito forte no Rio de Janeiro, como em outras sociedades complexas, o poder da mídia em
colocar a questão da violência em foco indistintamente e discriminando determinados espaços
populares e demarcando territorialidades distintas.
8.O Grupo de Memória e História dos Pescadores da Maré vinculado ao Projeto DaMARÉ, nome
simplificado do Programa de Educação Ambiental vinculado ao Projeto de Revitalização e
Despoluição do Canal do Cunha e do Canal da UFRJ empreendido pela SEA (Secretaria Estadual
de Ambiente) em convênio com a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), tendo como
executora da obra de despoluição do Canal do Fundão a Construtora Queiroz Galvão.
31

deu literalmente e metaforicamente através das entrevistas feitas e conversas com


os pescadores e de um passeio de barco pelo entorno da região da Maré e da Ilha
do Fundão me permitindo um mergulho “naquelas águas, naquelas marés” mais
profundas e emocionantes! Os pescadores com sua sabedoria, lutas e resistências
serão algo inesquecível em minha vida! Como nos disse uma vez nossa
coordenadora executiva do Projeto DaMARÉ “Nós nunca mais seremos os
mesmos depois deste trabalho!”
Chega então, o momento da 2ª Qualificação em início de setembro de 2011,
quando após grande esforço teórico apresentei parte dos dados analisados. A
banca acadêmica mais uma vez colabora com inúmeras sugestões, me auxiliando
na busca e aprimoramento de meu instrumento teórico e prático. Particularmente a
presença do professor Mário Chagas nessa etapa, museólogo conceituado e
inspirador dos museus comunitários e ecomuseus no Brasil, engrandece em muito
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meu trabalho teórico e empírico através não só de sugestões como de materiais


cedidos para conhecimento e consulta.
Por outro lado, no campo acadêmico a escolha por esse objeto de estudo
logo me fez deparar com a lacuna sobre o tema, há uma enorme falta de pesquisas
sobre as relações entre museus comunitários, ecomuseus e educação. Com certeza
há trabalhos extremamente relevantes na área da Nova Museologia, relacionando
memória, história e protagonismo comunitário. Porém, arrolados à educação
existe uma carência quase que absoluta.
Portanto, esta pesquisa nos coloca de imediato duas interrogações centrais,
são elas:
1. Como e para que as comunidades populares constroem museus
comunitários e ecomuseus?
2. A construção dos museus comunitários pode fortalecer identidades nas
comunidades locais nas quais se inserem?
Porém, nossos estudos e essas questões nos traziam inúmeras outras
interrogações, são elas:
3. O que é um museu comunitário? Museu comunitário e ecomuseu são
sinônimos?
4. Como e por que surgem os museus comunitários no Rio de Janeiro? Em
que contexto?
5. Que conceito(s) de identidade(s) eles representam?
32

6. Será que esses museus representam de fato a(s) identidade(s) presentes


naquela(s) comunidade(s), ou apenas a identidade dominante no local?
7. A(s) comunidade(s) se sentem representadas nesses museus?
8. Como foram construídos? A comunidade participou da seleção dos
objetos/ fatos históricos que desejam lembrar ou esquecer?
9. Quais são os“silêncios” da história daquelas comunidades não
representados naqueles museus?
10. Possuem preocupação com programa educativo auxiliando no
fortalecimento identitário?
11. Qual o caminho educacional escolhido pelos museus para a exposição
museográfica?
12. Como é sua prática pedagógica museal?
13. Esse tipo de prática educativa facilita a democratização do acervo e o
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fortalecimento de identidades de resistência?

À medida que fomos estudando e entrando no campo várias dessas questões


foram sendo buriladas e vão sendo respondidas ao longo de toda esta pesquisa.
Assim sendo, como uma das primeiras iniciativas de pesquisa, era preciso
conhecer a história do surgimento dos museus comunitários e ecomuseus
especialmente no Rio de Janeiro. Eles emergem na cidade a partir de 1983 com o
Ecomuseu de Santa Cruz, porém é a partir de 2006 com a criação do Museu da
Maré que passam a ter maior visibilidade para a sociedade em geral, tendo em vista
o contexto social e político em que surgem, como será explicado posteriormente.
Sendo assim, minha investigação foi trilhada no caminho de uma abordagem
qualitativa, já que pretendia identificar e analisar a dimensão educativa do Museu
da Maré, entender como é construída a ressignificação da história da Maré e da
memória local para possíveis fortalecimentos identitários. Escolhi para estudo de
caso o Museu da Maré pelos seguintes motivos: foi o primeiro museu de favela do
Brasil criado pela comunidade local (como já foi afirmado anteriormente); tem
expressão local, regional e nacional; é considerado como um ícone brasileiro dos
museus comunitários e ecomuseus; fica na cidade do Rio de Janeiro; e apresenta
trabalho estruturado passível de investigação no presente momento.
33

A partir das questões apresentadas anteriormente, dos estudos e da


exploração do campo, os objetivos construídos em minha pesquisa foram os
seguintes:
1. Contextualizar o surgimento de museus comunitários e ecomuseus a
partir dos anos 80, enfatizando principalmente o boom ocorrido a partir
de 2006, mapeando-os na cidade do Rio de Janeiro até janeiro de 2010;
2. compreender como e para que as comunidades populares criam museus
comunitários e ecomuseus;
3. conceituar, diferenciar e relacionar museu comunitário e ecomuseu;
4. historicizar a história da Maré e contextualizar a criação do Museu da
Maré;
5. analisar a relação entre um museu comunitário - o Museu da Maré - e as
identidades locais, particularmente dos pescadores da Maré, dos
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funcionários e dos visitantes/ usuários do Museu;


6. identificar e analisar a dimensão educativa do Museu da Maré e seu papel
no possível fortalecimento identitário através da construção da história e
das memórias locais.

Temos consciência que não se constrói identidades apenas visitando museus


ou permitindo uma maior democratização dos acessos aos “lugares de memória”,
porém, com certeza, acreditamos que estas são possibilidades de fortalecimento
identitário de culturas subalternizadas.
O protagonismo das comunidades populares nos museus comunitários
permite que estes se façam e se transformem ao longo de sua própria história e do
movimento social no qual estão envolvidos. Para Chagas (2008), é importante não
apenas democratizar o acesso aos museus, mas democratizar o próprio museu, a
própria concepção de museu, exemplificado pelo Museu da Maré, que foi fundado
por um grupo de moradores ou ex-moradores da região da Maré.
Partilhar essas noções de pertencimento de uma comunidade, de um grupo
social, são fundamentais na construção de uma cidadania ativa, na reinvenção de
sociedades mais democráticas, como nos afirma Candau (2002) no trecho abaixo:

“Contudo, a busca da cidadania nos países da periferia esbarra na falta de


cumprimento de direitos universais básicos, embora muitas vezes suas
populações tenham esses direitos consagrados em lei. Além disso, num
34

mundo em constante transformação podem surgir novos direitos, fruto de


novas lutas e reivindicações. E é exatamente esse movimento que caracteriza
a cidadania.” (id, p. 37)

Acreditamos que a memória é sempre uma construção, onde a lembrança é


parte constitutiva da nossa identidade, do nosso sentimento de pertencimento.
O conhecimento histórico traz como vantagem a elaboração de arquiteturas de
sentido que excedem os próprios recursos da memória coletiva: articulação entre
acontecimentos, estruturas e conjunturas etc. A história pode ampliar, completar e
até refutar, o testemunho da memória sobre o passado, mas não pode aboli-lo.
Nessa tensão entre história e memória, como nos coloca Ricoeur (2007), em
meu trabalho de campo tive o “privilégio” da utilização da História, que estende a
memória coletiva além de toda lembrança afetiva, criticando e questionando a
memória de uma comunidade, quando esta pode se fechar sobre seus sofrimentos
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a ponto de se tornar cega e surda aos sofrimentos de outras comunidades (id).


Sabemos que cada vez mais novos instrumentos e/ ou aparelhos são usados
na produção da memória: rádio, TVs, arquivos orais e audiovisuais. Nas
sociedades contemporâneas constatamos uma luta pela democratização da
memória social e isto passou a ser fator de consciência coletiva de vários grupos.
Com objeto definido e na bagagem a teoria e metodologia adequada
(Duarte, 2002) chega o momento do trabalho de campo, que pode ser dividido em
blocos básicos que ocorreram simultaneamente: observações e entrevistas e
análise dos Livros de Assinaturas e de Depoimentos dos visitantes/ usuários.
Assim sendo, trabalhamos com uma metodologia qualitativa através de
observações de campo, entrevistas e análise documental.
Passei um tempo razoável trabalhando e observando a frequência ao Museu
da Maré desde agosto de 2010 a abril de 2011. Essas observações envolveram
acompanhar algumas visitas ao Museu (tanto de escola, pescadores, ou público em
geral), além de outras atividades que lá ocorrem, como:
1. observação das crianças brincando no pátio do Museu da Maré;
2. observação no pátio da participação de crianças no Programa PET –
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil;
3. conversas informais com as costureiras – loja das Marias Maré;
35

4. reuniões da quais participei com os pescadores através do Grupo de


Memória do Museu da Maré e com o Projeto DaMARÉ da
Secretaria Estadual de Ambiente/ UERJ;
5. observação e participação em atividades sociais/culturais lá
promovidas - como Maré do Samba, apresentações de teatro e
danças, palestras, dentre outras;
6. participação em duas rodas de “Chá de memória” com moradores
locais e dirigentes do Museu da Maré.

Sobre meu trabalho de campo de inspiração etnográfica e essas observações


participantes, Dauster (2003) nos afirma que é importante nas pesquisas de
Educação estarmos alertas para:
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“(...)a apropriação de atitudes emblemáticas do campo antropológico pelos


profissionais da educação é mais que pertinente, pois indispensável, e
possibilita a construção de um saber híbrido ou de fronteira, além de um
olhar mais complexo sobre os fenômenos educacionais.
Quais seriam estas atitudes? Refiro-me à produção de um
conhecimento dos fenômenos educacionais a partir de observação
participante e do “olhar” relativizador.
Sem querer transformar o educador em antropólogo, trata-se de
convidar o educador a mergulhar em um outro sistema de referências e
inspirar-se na prática antropológica.”(id, p. 13)

Cabe-nos descrever sucintamente essas observações participantes. Ao assistir


as crianças brincando no pátio do Museu, quer as do programa PET, ou outras,
chamava-me atenção a alegria e principalmente, a informalidade das mesmas.
Pareciam estar muito à vontade nas brincadeiras no pátio do Museu correndo de um
lado ao outro, sem parar, eram muito familiarizadas com o Museu.
A loja das Marias Maré vendem roupas e artesanato feito por costureiras da
Maré. Essas simpáticas senhoras ou jovens fazem artesanato em papel maché,
papel jornal, tecidos em geral, são um grupo pequeno por volta de umas dez
pessoas. Fazem roupas e objetos como lembranças com o logomarca do Museu da
Maré, imagens antigas de palafitas no meio dos alagados e precárias pontes de
madeira, dentre outras bem sugestivas e emblemáticas. São blusas, bolsas, estojos,
sempre escrito em algum canto Museu da Maré. Percebemos o quanto esses
objetos vendidos valorizam e reforçam identidades culturais locais. Le Goff
(1999) nos afirma o quanto o comércio desses souvenirs ganha impulso desde o
36

século XIX, são novos elementos de suporte nas comemorações, como moedas,
medalhas, selos de correio, dentre outros. No caso do Museu da Maré, a venda de
blusas com imagens antigas das palafitas na região são muito comuns.
Meu caminho metodológico envolveu também a opção por utilizar
entrevistas semiestruturadas, acompanhadas de um roteiro prévio (ver Anexo). As
entrevistas podem ser divididas em dois blocos: com os pescadores da Maré
(sendo que um deles ajudou na criação do Museu da Maré) e da região do entorno
do Canal do Fundão; e um segundo bloco de entrevistas que foram feitas com os
diretores, funcionários do Museu da Maré e um morador antigo da região. Duarte
(2002) nos afirma, sobre as entrevistas semiestruturadas e a postura do
pesquisador no campo, o seguinte:

“O recurso a entrevistas semiestruturadas como material empírico


privilegiado na pesquisa constitui uma opção teórico-metodológica que está
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no centro de vários debates entre pesquisadores das ciências sociais. Em


geral, a maior parte das discussões trata de problemas ligados à postura
adotada pelo pesquisador em situações de contato, ao seu grau de
familiaridade com o referencial teórico-metodológico adotado e, sobretudo,
à leitura, interpretação e análise do material recolhido (construído) no
trabalho de campo.
Para Queiroz (1988), a entrevista semiestruturada é uma técnica de
coleta de dados que supõe uma conversação continuada entre informante e
pesquisador e que deve ser dirigida por este de acordo com seus objetivos.
Desse modo, da vida do informante só interessa aquilo que vem se inserir
diretamente no domínio da pesquisa. A autora considera que, por essa razão,
existe uma distinção nítida entre narrador e pesquisador, pois ambos se
envolvem na situação de entrevista movidos por interesses diferentes.” (id, p.
147)

Por isso, era tão importante estarmos alerta no campo, pois se por um lado
meu apaixonamento pelo objeto de estudo me impulsionava, por outro corria o
risco de me perder e não tecer uma reflexão crítica sobre meu trabalho. Precisava
dialogar com os sujeitos entrevistados, retirando do material de coleta das
entrevistas apenas o que fosse necessário à minha tese fornecendo-lhes sentido e
relacionando nossas análises e conclusões ao objeto escolhido e às questões
/problemas levantados, como nos alerta Duarte (id). Esclarece-nos também sobre
as dificuldades comuns ao uso da metodologia qualitativa, especialmente
abordando aquelas inerentes aos trabalhos de campo, como delimitação do
universo de pesquisa, elaboração de roteiros para entrevistas etc.
37

Um dos motivos de escolha do grupo de entrevistados dos pescadores foi,


primeiramente, o fato da Maré ter se desenvolvido como um lugarejo também
ligado à pesca, já que vai se expandindo à beira da Baía de Guanabara. Em
segundo lugar, é importante ter presente que o Museu da Maré tem sua primeira
parte dedicada à pesca narrando a história do lugar.
Foram feitas 12 entrevistas com pescadores da Maré, cujas memórias se
constituem como parte “viva” do Museu da Maré.9 Visitei três núcleos de pesca,
são eles: Núcleos de Pesca da Vila do Pinheiro e do Parque União - esses dois na
Maré- e da Vila Residencial da UFRJ, na Ilha do Fundão.
Os pescadores entrevistados foram escolhidos dentro dos seguintes
critérios: primeiro, deveriam pertencer aos três Núcleos de Pesca do entorno da
Maré, núcleos esses encampados pelo Projeto DaMARÉ, o que facilitaria em
muito a minha entrada no campo e o suporte material para isso; em segundo lugar,
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era importante equilibrar o número de pescadores por núcleo de pesca, uma média
de 3 a 4 por cada grupo de pesca; em terceiro lugar só entrevistei aqueles que
assim o desejassem, pois não adiantava entrevistar “à força”, a conversa não
aconteceria como desejava; como último quesito, perguntei às lideranças dos
núcleos pesqueiros e aos diretores do Museu da Maré, quais eram alguns dos
pescadores emblemáticos na região, conhecidos, respeitados pela população local.
Também era importante mesclar esses nomes com os de jovens pescadores que
fossem receptivos à minha abordagem nas visitas aos Núcleos Pesqueiros.
Alguns pescadores foram entrevistados nos Núcleos de Pesca, como os três
da Vila Residencial da UFRJ, assim como todos os do Parque União. Isto porque
eram regiões mais distantes do Museu da Maré e por isso, mais difíceis para
deslocamento dos pescadores. No caso do Parque União, cabe a ressalva que vários
deles me disseram que também não iam ao Museu pelo fato dele ser localizado em
região dominada por grupo de traficantes rivais à comunidade em que viviam, daí
temerem não conseguir entrar lá. Em várias ocasiões os funcionários do Museu
negaram esse risco e afirmaram aos próprios pescadores que nada lhes aconteceria

9
Como já expus anteriormente essas 12 entrevistas são resultado do trabalho de pesquisa do Grupo
de Memória e História dos Pescadores da Maré vinculado ao Projeto DaMARÉ, nome
simplificado do Projeto de Revitalização e Despoluição do Canal do Cunha e do Canal da UFRJ
empreendido pela SEA (Secretaria Estadual de Ambiente) em convênio com a UERJ
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro), tendo como executora da obra a Construtora Queiroz
Galvão.
38

se fossem lá, mas o fato é que nenhum deles foi, pelo menos enquanto estive em
campo. No entanto, os pescadores da Vila do Pinheiro foram todos entrevistados
dentro do Museu da Maré porque essa colônia fica mais próxima, está sob o mesmo
domínio de comando de tráfico da região do Museu e também, não ser
recomendada para que nós a frequentássemos devido à violência nas redondezas.
As entrevistas com os pescadores foram todas gravadas, filmadas e
fotografadas por profissionais especializados tendo em vista que fizeram parte do
trabalho do Grupo de Memória do Projeto DaMARÉ, que elaborou um DVD sobre
os pescadores e editará um livro sobre os mesmos. Já as entrevistas do segundo
bloco que executei foram apenas gravadas e fotografadas por mim. Abordaremos
mais sobre isso no quinto capítulo que trata da análise dos dados dos pescadores.
Todas as entrevistas foram feitas num clima muito agradável e
descontraído. As dos pescadores foram precedidas de uma grande reunião em
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cada Núcleo de Pesca com todos os pescadores presentes e a explicação pela


coordenação geral de toda a atuação do Projeto DaMARÉ com a presença de todo
o Grupo de Memória.
Agendamos com os pescadores todas as entrevistas e estas transcorreram de
forma muito agradável e generosa. Meu encantamento com as hisstórias narradas
sobre a pesca e os “causos” e a prosa dos pescadores foi inesquecível e
encantador! Também, aquelas feitas com o pessoal do Museu não ficaram atrás
em paixão e envolvimento, cada vez que me respondiam aspectos diferenciados
para mim, ou que iam “cutucar” minhas indagações, vibrava fazendo conexões
teóricas, políticas e existenciais.
O segundo bloco de entrevistas foi composto pelos funcionários e diretores
do Museu da Maré. Os dirigentes foram escolhidos tendo em vista terem sido os
fundadores do Museu e do CEASM, ao qual ele ainda está relacionado
diretamente, ou seja, foram os mentores e ainda são os dirigentes do Museu. Os
dois funcionários foram escolhidos por desempenharem funções importantes na
instituição, principalmente por serem atividades ligadas à dimensão educativa do
Museu. Um deles foi responsável durante um bom tempo pelo preparo dos guias
da exposição permanente e das temporárias, era do grupo de Contadores de
histórias do Museu e representava peças dentro do mesmo para os visitantes e a
outra pessoa por ser, também, do grupo dos Contadores de histórias, da biblioteca,
da secretaria e pertencer ao Grupo de Memória do Museu e do Projeto DaMARÉ.
39

Além deles, entrevistamos um antigo morador da região, ex-ativista político na


comunidade e um dos colaboradores na criação do Museu da Maré.
Cabe lembrar que nosso trabalho de campo das entrevistas foi finalizado
quando começamos a perceber a possibilidade de estabelecer padrões simbólicos
no universo estudado, como nos afirma Duarte (id) no trecho abaixo:

“(...) se avaliou que com o material obtido seria possível: 1) identificar


padrões simbólicos e práticas empregadas no universo estudado; (...)
identificar valores, concepções, ideias, referenciais simbólicos que
organizam as relações no interior desse meio profissional, buscando
compreender seus códigos (...).” (id, p. 144)

As entrevistas com os diretores e funcionários do Museu foram feitas de


forma bastante descontraída dentro do espaço do próprio Museu: algumas no
pátio, ao ar livre, sob a brisa da Maré; outras na sala da biblioteca infantil e apenas
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a de um dos diretores, na sua instituição de trabalho no centro da cidade, devido a


problemas de agenda meu e dele. O morador antigo foi por mim entrevistado ao
final de um dos “Chá de memória” que participei. Algumas foram de 30 a 40
minutos, outras de duas horas. O tempo de duração foi dependendo da fala do
próprio entrevistado, tudo para nós era importante desde a voz, a desenvoltura, o
lugar, as informações dadas pelo entrevistado, as histórias narradas etc. A citação
abaixo de Duarte (id) nos coloca exatamente isso:

“As situações nas quais se verificam os contatos entre pesquisador e sujeitos


da pesquisa configuram-se como parte integrante do material de análise.
Registrar o modo como são estabelecidos esses contatos, a forma como o
entrevistador é recebido pelo entrevistado, o grau de disponibilidade para a
concessão do depoimento, o local em que é concedido (casa, escritório, espaço
público etc.), a postura adotada durante a coleta do depoimento, gestos, sinais
corporais e/ou mudanças de tom de voz etc, tudo fornece elementos
significativos para a leitura/interpretação posterior daquele depoimento, bem
como para a compreensão do universo investigado.” (id, p. 145)

Também fez parte da coleta de dados de campo, a análise dos Livros


institucionais do Museu, o Livro de Assinaturas e o Livro de Depoimentos dos
visitantes.
O resgate da história oral e a construção da(s) memória(s) através das
lembranças dos pescadores da Maré, dos funcionários e diretores do Museu, além
dos depoimentos dos Livros institucionais é o que procurei delinear articulando a
metodologia da história oral à teoria privilegiada em minha pesquisa.
40

Com certeza o grupo de maior impacto das entrevistas foi o dos pescadores,
talvez até mesmo pelo desconhecimento do campo que eles me apontavam. Na
verdade, até mesmo de pesca pouco entendo, só pesquei em “pesque-pague”,
nunca havia visitado uma colônia de pesca, muito menos tinha conhecimento
técnico sobre a “arte de pescar”. O universo cultural dos pescadores é rico e
mitológico, cheio de metáforas e imagens!
Beatriz Sarlo (2007) e Paul Ricoeur (2007) consideram história e memória
dois campos em conflito, pois nem sempre a história acredita na memória, assim
como a memória duvida da história, quando esta não coloca no centro os direitos
da lembrança. Esta tensão foi vivida ininterruptamente em minha pesquisa, ela é
visceral nesse tipo de trabalho.
Sarlo (id) nos fala sobre a reconstituição da subjetividade, da razão do
sujeito a partir dos anos 60 e 70. Afirma que atualmente vivemos uma época de
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forte subjetividade.

“Restaurou-se a razão do sujeito, que foi, há décadas, mera “ideologia” ou


“falsa consciência”, isto é, discurso que encobria esse depósito escuro de
impulsos ou mandatos que o sujeito necessariamente ignorava. Por
conseguinte, a história oral e o testemunho restituíram a confiança nessa
primeira pessoa que narra sua vida (privada, pública, afetiva, política) para
conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada.” (Sarlo,
2007, p. 19)

Sendo assim, como afirma o trecho acima de Sarlo (id), restaura-se a


credibilidade na história oral e no testemunho. Com certeza, nos museus
comunitários se tem a predominância do testemunho e da história oral de
determinadas comunidades.
Ainda segundo Sarlo (id), o testemunho é importante, há décadas atrás o eu
levantava suspeitas enormes, no entanto atualmente pode-se usar o testemunho em
primeira pessoa, mas exercitando o método crítico.
Na pós- modernidade a subjetividade adquire especial relevância e segundo
Sarlo (id, p. 39) o direito à palavra é reverenciado, fomenta-se uma ideologia da
“cura” identitária por meio da memória social ou pessoal. De certa forma, os
museus comunitários tentam fazer essa “cura” identitária através do
empoderamento de identidades em comunidades populares e excluídas do sistema
socioeconômico vigente.
41

Ao estudarmos os discursos identitários nos deparamos com um problema


epistemológico sobre a verdade dos mesmos. Precisamos analisar o que garante a
memória e a primeira pessoa como captação de um sentido de experiência social.
Na pós-modernidade se acredita fortemente em histórias com interpretações e
“verdades” plurais.
A memória é relacional e afetiva, já a história costuma ser mais distante e
inteligível segundo Sarlo (id). Porém, nas últimas décadas assistimos a um
crescimento da micro-história e das histórias orais mostrando que a história se
aproximou da memória.
Na estruturação de nossa tese optamos pela configuração da divisão em
introdução e mais oito capítulos. No primeiro capítulo (De quais memória(s) e
identidade(s) estamos falando?) apresento uma discussão teórica sobre diversos
conceitos de memória - privilegiando como teóricos: Le Goff, Ricoeur e Sarlo.
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Caracterizo e conceituo memória e analiso a permanente tensão entre história e


memória. Privilegio as reflexões sobre lembranças, relatos orais e testemunhos.
No âmbito de identidade enfoco as discussões conceituais trazidas por Candau,
Castells, Cuche, Hall e Silva. Relaciono a construção dos conceitos de identidade
e diferença, além de contextualizar o surgimento do multiculturalismo e nele das
temáticas sobre identidade(s).
No segundo capítulo (Na “Maré” da Nova Museologia) apresento um breve
histórico sobre os museus, focalizando particularmente os museus comunitários.
Além disso, conceituo e diferencio museu comunitário de ecomuseu, reflito para
que e por que surgem esses museus e elaboro um panorama geral sobre os museus
comunitários e ecomuseus na cidade do Rio de Janeiro.
No terceiro capítulo (Onde fica a educação nisso tudo?) conceituo e
diferencio educação formal, não formal e informal. Contextualizo e identifico os
fatores do desenvolvimento da educação não formal. Conceituo e caracterizo “os
lugares de memória” como espaços que também educam, sendo potenciais
transformadores de identidades.
No quarto capítulo (A história da Maré) contextualizo a região da Maré desde
os tempos coloniais até os dias de hoje, enfocando a Maré como uma região de
colônia de pesca. Também caracterizo brevemente as comunidades que formam o
mosaico do bairro da Maré. Além disso, descrevo o surgimento do Museu da Maré,
caracterizando-o e analisando suas formas de atuação na e para a comunidade.
42

No quinto capítulo (Que “peixes” pescamos no Museu da Maré?) inicio a


análise sobre os dados recolhidos no trabalho de campo. Nele apresento os
pescadores entrevistados, analiso as memórias e lembranças desses pescadores.
Também relaciono memória(s) e identidade(s) na construção das redes educativas
do cotidiano dos mesmos.
No sexto capítulo (“Os narradores da Maré”) identifico os “narradores’ do
Museu da Maré, os funcionários e diretores entrevistados, reflito sobre o que eles
querem narrar. Analiso os dados encontrados nas entrevistas segundo algumas
categorias relacionadas aos conceitos, como: favela, memória(s), história,
identidade(s) e espaços educativos não formais.
No sétimo capítulo (Das presenças e das ausências nos Livros de
Assinaturas e Depoimentos, ou a hora e a vez das “memórias subterrâneas”...)
apresento os gráficos feitos sobre os visitantes do Museu da Maré nos anos de
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2009 e 2010 através do estudo e análise dos seus Livros institucionais. Priorizo os
dados sobre gênero, idade, localidade/ origem e instituição a que está ligado o
visitante ou usuário, registrado no Livro dos Visitantes. Na análise do Livro de
Depoimentos priorizo alguns eixos temáticos, como a maioria daqueles abordados
no capítulo anterior (memória(s), história, espaços educativos não formais e
identidade(s)). Também analiso brevemente alguns depoimentos feitos por
estrangeiros que nos “saltaram aos olhos”.
No oitavo e último capítulo (Estamos quase chegando, mas a que futuro
queremos chegar?) concluo o trabalho retomando as indagações iniciais à luz da
teoria escolhida e dos dados e análises do trabalho de campo sobre a dimensão
educativa do Museu da Maré e as possibilidades de incidência na transformação de
subjetividades e produção de identidades. Também estabeleço as probabilidades de
futuro dos museus comunitários, devido às suas relações com os movimentos
sociais e a importância da sintonia dos mesmos com o protagonismo comunitário.
Por fim, esta tese teve o intuito de estabelecer um estudo e discussão sobre
caminhos ainda pouco trilhados estreitando a fronteira que ainda separa a
Memória da Educação. Portanto, tento aproximar a discussão dos “lugares de
memória” com a dos espaços educativos não formais que são seu nicho, também,
por excelência. Porém, sabemos que todas essas escolhas também passaram por
projetos e opções pessoais aqui expostas, vivenciadas e ampliadas através de
estudos, realizações e da intensa vivência do trabalho de campo.
2
De quais memórias e identidades estamos falando?

“Preocupação pública: perturba-me o inquietante espetáculo que


apresentam o excesso de memória aqui, o excesso de
esquecimento acolá, sem falar da influência das comemorações
e dos erros de memória -e de esquecimento. A ideia de uma
política da justa memória é, sob esse aspecto, um de meus
temas cívicos confessos.” (Ricoeur, Paul. A memória, a
história, o esquecimento. 2007)

Nessa parte apresentarei o quadro teórico por nós estudado relacionado aos
diversos conceitos de memória(s) e de identidade(s)
Vamos analisar as diferentes caracterizações de memória segundo o ponto
de vista de alguns autores fundamentais no tema, são eles: Jacques Le Goff, Paul
Ricoeur e Beatriz Sarlo.
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Também abordaremos os diferentes autores com que trabalhamos o conceito


de identidade, como: Dennis Cuche, Manuel Castells, Stuart Hall, Tomaz Tadeu
da Silva e Vera Candau.

2.1
As “diferentes” memórias

Nesse item discuto os diferentes conceitos de memória em Le Goff, Ricoeur


e Sarlo e relaciono os pontos comuns e as diferenças expostas por cada autor.

2.1.1
A memória em Jacques Le Goff

Segundo Le Goff (1990), através das funções psíquicas da memória temos a


capacidade de conservar informações. A noção de aprendizagem na aquisição da
memória gera interesse nos diversos sistemas de educação da memória
(menomotécnicas), sendo que neste processo há um grande papel desempenhado
pela inteligência na aquisição da memória.
Por outro lado, Le Goff (id) também nos fala da aproximação da memória e
da linguagem. A linguagem falada e depois escrita é uma possibilidade de
armazenamento da nossa memória, saindo assim, dos limites físicos de nosso
44

corpo. Quando há perturbações na memória do indivíduo que levam ao


esquecimento, dá-se a amnésia. Porém, quando ocorre perda da memória coletiva
gera-se graves perturbações na identidade coletiva.
Ainda segundo Le Goff (id), baseado em Leroi-Gourham (1964-65), há três
tipos de memória: a específica (que define os comportamentos de espécies animais),
a memória étnica (que assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades)
e a memória artificial (a memória eletrônica é a mais recente). Por isso, para os
homens tornarem-se “senhores” da memória e do esquecimento são envolvidos por
grandes lutas de classes e de grupos sociais, enfim, por relações de poder.
Esquecimentos e silêncios são reveladores dos mecanismos de manipulação
da memória coletiva (Le Goff, id). Por isso, o estudo da memória social é um dos
meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história.
Ainda segundo Le Goff (id), a rememoração exata é menos útil em algumas
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sociedades, pois dá-se maior importância à narrativa na transmissão da memória.


Para Le Goff (id) a memória representa a difícil invenção da conquista do
homem por um passado individual. Já a história representa a conquista por um
grupo social de seu passado coletivo. Portanto, a memória é vista como antítese do
esquecimento, uma fonte da imortalidade, mas se colocada fora do tempo, separa-
se totalmente da história. O autor nos chama atenção de que a memória pode
resultar em escatologia, quando nega a experiência temporal e histórica. Essa seria
uma das vias possíveis da memória.
Segundo Le Goff (id) é no Renascimento - com a invenção da imprensa -
que se revoluciona lentamente a memória ocidental. Com o impresso, o leitor é
colocado frente a uma memória coletiva enorme.
Com a Revolução Francesa, Le Goff (id) afirma haver uma explosão da
memória. Cada vez mais dispõem-se de memória intelectual, científica e técnica
mais rica. Sendo assim, no século XIX dá-se uma explosão do espírito
comemorativo. Alimenta-se através da festa a recordação da Revolução. O
Romantismo, como modo literário, encontra a sedução da memória.
Também, com a laicização das festas e do calendário multiplicam-se as
comemorações. Há necessidade das festas para as nações livres, festas nacionais.
Tanto conservadores, como revolucionários, querem comemorar. Nas
comemorações apropriam-se de novos elementos de suporte: moedas, medalhas,
45

selos de correio, multiplicam-se. Na França do século XIX há um impulso notável


ao comércio de souvenirs, assim como ao surgimento de museus e bibliotecas.
Le Goff (id) afirma, também, que no final do século XIX e início do XX
ocorreram manifestações significativas para a memória coletiva devido
principalmente a dois fenômenos: após a 1ª Guerra Mundial houve a construção
de monumentos aos mortos; e o surgimento da fotografia, que revoluciona a
memória multiplicando a imagem e democratizando-a, já que permite guardar a
memória do tempo e a evolução cronológica
Também no final do XIX e início do XX surge a memória familiar, fazem-se
novos arquivos familiares através dos retratos e postais.
Dando continuidade a esse histórico que Le Goff (id) faz da memória, é
sobretudo de 1950 em diante que ocorre um grande desenvolvimento da memória,
uma revolução na mesma. Surge também, a memória eletrônica (a máquina de
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calcular, função da memória no computador, dentre outros). Como consequência


do aparecimento dessa memória eletrônica temos a utilização de calculadoras, de
banco de dados nas Ciências Sociais, da memória social se expandindo no campo
da filosofia e da literatura etc.
A memória coletiva sofre grandes transformações com o desenvolvimento das
Ciências Sociais. Há pesquisas que passam a fazer uma exaltação da memória
coletiva ao longo do tempo. Dá-se a busca dessa memória não só nos textos, mas nos
gestos, imagens, ritos, festas etc. É também por isso, que Le Goff (id) chama atenção
ao fato de que hoje em dia há uma grande confusão entre história e memória.
Outra consequência do desenvolvimento das Ciências Sociais é que os
arquivos orais proliferam-se. Nos anos 50, nos EUA, surge a História Oral. Dá-se
o crescimento de histórias de vida, história da história, dentre outras, muito em
voga hoje em dia em diversos campos do conhecimento.

2.1.2
A memória em Paul Ricoeur

“Uma terceira pista se oferece a explorar: a de um


esquecimento que não seria mais nem estratégia, nem trabalho,
um esquecimento ocioso. Ele seria um duplo da memória, não
a título de rememoração do advinho, nem de memorização das
habilidades, nem tampouco, de comemoração de
acontecimentos fundadores de nossa identidade, mas de disposição
46

preocupada instalada na duração. De fato, embora a memória seja


uma capacidade, o poder de fazer-memória, ela é mais
fundamentalmente uma figura da preocupação, essa estrutura
antropológica básica da condição histórica.” (Ricouer, 2007, p. 511)

Para Ricoeur (id) é impossível se falar de memória sem se falar de


esquecimento, este é um binômio inseparável, são níveis intermediários entre
tempo e narrativa. Também demonstra-nos que a espacialidade corporal e
ambiental é inerente à evocação da lembrança. Por exemplo, as lembranças de
termos morado em tal casa, ou termos viajado a tal lugar do mundo, são precisas e
eloquentes. Há uma memória íntima e compartilhada entre pessoas próximas.
O trecho abaixo nos demonstra como passamos da memória compartilhada à
memória coletiva, segundo Ricoeur (id):

“Da memória compartilhada passa-se à memória coletiva e a suas


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comemorações ligadas a lugares consagrados pela tradição: foi por ocasião


dessas experiências vividas que fora introduzida a noção de lugar de
memória, anterior às expressões e às fixações que fizeram a fortuna ulterior
dessa expressão.” (id p. 157)

Ainda esse autor nos mostra como no urbanismo percebe-se melhor o


trabalho do tempo no espaço, ou seja, uma cidade confronta no mesmo território
épocas diferentes. O tempo narrado e o espaço habitado estão nela estreitamente
associados. A Geografia é então, o meio. Há uma dialética do espaço vivido,
espaço geométrico e do espaço habitado com o tempo vivido, cósmico e histórico.
Ricoeur (id) entende que a ação historiográfica origina-se de uma dupla
redução, ou seja, da experiência viva da memória e a da especulação
multimilenar sobre a ordem do tempo. Assim sendo, concordamos com ele (id)
quando afirma que é tarefa da memória instruída pela história preservar essa
história especulativa multisecular.

“Não seria então tarefa de uma memória instruída pela história preservar o
rastro dessa história especulativa multisecular e integrá-la a seu universo
simbólico? Seria essa a mais elevada destinação da memória, não mais antes,
mas depois da história.”(id, p. 170)

Ricoeur (id) aborda, também, a complexidade do testemunho. Afirma que


com este inaugura-se um processo epistemológico que parte da memória
declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental.
47

A questão crucial inerente ao testemunho é se ele é confiável e se ele, por


exemplo, atesta a realidade de uma cena diante de alguém. Há uma estrutura
dialogal no testemunho, pois a testemunha pede que lhe deem crédito. Dá-se uma
autenticação ao testemunho após a resposta daquele que o recebe e o aceita. A
partir daí, ele está não só autenticado, mas acreditado.
Outra característica do testemunho, segundo Ricoeur (id), é que além da
credibilidade e confiabilidade, há a disponibilidade da testemunha de reiterar seu
testemunho. A testemunha confiável é aquela que pode manter seu testemunho
através do tempo. Isto gera a similitude em humanidade dos membros da
comunidade, logo a memória é afetiva, já a história é crítica, argumentativa. Ainda
para Ricoeur (id), a operação historiográfica é conduzida por três momentos, são
eles: o arquivamento, a explicação/ compreensão e a representação histórica.
O esquecimento não é só inimigo da memória, mas da própria história. Porém,
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toda a memória guarda um potencial de esquecimento. Por isso, há um esquecimento


de reserva, que torna-se um recurso para a história memória. O esquecimento
demonstra o quanto nós somos vulneráveis. Ricoeur frisa bastante que a problemática
da memória é o esquecimento. Não existe história sem o ato investigativo.
Segundo Ricoeur (id) a subjetividade é outro fator que influencia na
interpretação do texto histórico, por isso a história pode ser revista, reinterpretada.
Ainda Ricoeur (id) nos alerta sobre a questão do perdão. A anistia enquanto
esquecimento institucional toca nas próprias raízes do político, na relação mais
profunda e mais dissimulada com um passado declarado proibido. Por isso, entre a
anistia e a memória há uma proximidade mais que fonética, um pacto secreto com
a denegação da memória. Muitas vezes a anistia faz o papel de um desígnio de
terapia social emergencial sob o signo da utilidade e não, da verdade.
Sendo assim, Ricoeur (id) conclui que a fronteira entre a anistia e a memória
pode ser preservada em sua integridade graças ao trabalho da primeira,
complementado pelo do luto e norteado pelo espírito do perdão.
Por outro lado, o perdão coloca o risco do esquecimento no plano da
memória e da história. Sendo assim, a falta, o “erro” constitui a oportunidade de
se perdoar. Portanto, segundo Ricoeur (id), o perdão é horizonte comum da
memória, da história e do esquecimento.
A falta é o pressuposto do perdão, logo não pode haver perdão, se não há
culpado. O perdão faz referência à culpabilidade e à reconciliação com o passado.
48

O perdão sana a dívida, mas não a esquece. O perdão é um incógnito, rompe o


ódio e a vingança, é um desafio difícil, mas possível. Por isso, Paul Ricoeur(id)
coloca o perdão no ramo do amor. Afirma que fé, esperança e caridade
permanecem, mas afirma que a caridade é que desculpa tudo, até o imperdoável.
Sendo assim, o perdão deveria se estabelecer nem como excepcional e nem como
extraordinário, pois é uma das virtualidades da ação humana. Acrescenta que os
homens só são capazes de perdoar aquilo que podem punir.

2.1.3
A memória em Beatriz Sarlo

Sarlo (2007), assim como os autores analisados acima, considera história e


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memória dois campos em conflito, pois nem sempre a história acredita na


memória, assim como a memória duvida da história, quando esta desconsidera
basicamente direitos da lembrança.
A autora acima nos mostra a reconstituição da subjetividade, da razão do
sujeito a partir dos anos 60 e 70 afirmando que atualmente vivemos uma época de
forte subjetividade.
Sendo assim, restaura-se a credibilidade na história oral e no testemunho.
Segundo Sarlo (id), sabe-se o quanto o testemunho é importante, há três ou quatro
décadas atrás o “eu” levantava suspeitas enormes, atualmente pode-se usar o
testemunho em primeira pessoa, mas não podemos esquecer de exercer a crítica,
como se usa em relação a outras fontes. Por isso, o exercício da crítica sobre os
relatos orais que coletei no trabalho de campo deve ser exercido, jamais
negligenciado ou ocultado.
Sarlo (id) questiona o uso da primeira pessoa do testemunho como única
fonte. Mais do que um excesso de memória, é importante compreender do que
lembrar, embora para entender do que lembrar seja preciso lembrar. Por isso,
segundo a mesma, podemos usar o testemunho da primeira pessoa, mas não só
esse tipo de testemunho.
Na citação abaixo encontramos a fala de Sarlo (id) e seu questionamento
sobre a tensão entre a história e a memória:
49

“Deve prevalecer a história sobre o discurso e renunciar-se àquilo que a


experiência teve de individual? Entre um horizonte utópico de narração da
experiência e um horizonte utópico de memória, que lugar resta para um
saber do passado? “ (id, p. 24)

Não há testemunho sem experiência, nem experiência sem narração para a


autora. Porém, não se pode representar tudo o que o sujeito viveu em sua
experiência. A apreensão do real sempre será parcial.
Tanto Sarlo (id), quanto Ricoeur (2007), entendem que o testemunho tem
funções sociais ou judiciais, mas que em seus usos historiográficos deve ser
submetido ao método crítico da história.
Na pós-modernidade o tom subjetivo é marcante. Assim sendo, na pós-
modernidade busca-se a palavra, o direito à mesma, daí nos depararmos, segundo
Sarlo (id, p, 39) com uma ideologia da “cura” identitária por meio da memória
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social ou pessoal. Logo, busca-se a reestruturação do “eu” comunitário local


retirando-o da alienação e da coisificação.
Também nos deparamos com outro problema de ordem epistemológica, ou
seja, a veracidade dos discursos identitários criam problemas para a filosofia e
para a história. Então, a questão é refletir sobre o que garante a memória e a
primeira pessoa como captação de um sentido de experiência. Na pós-
modernidade todos parecem estar mais dispostos a aceitar a crença nas verdades
de histórias no plural.
Para Sarlo (id) a memória apresenta uma relação afetiva, moral com o passado
(ganhou um grande status a partir da 2ª Guerra Mundial), já a história deve
apresentar um distanciamento e uma busca de inteligibilidade que são o ofício do
historiador. Mas, nas últimas décadas a história se aproximou da memória e
aprendeu a interrogá-la, vide o crescimento da micro-história e das “histórias orais”.
A memória, assim como a história, podem ser anacrônicas, pois falam do
passado no presente. Daí, termos que reconhecer esse problema para traçarmos
limites e ações no exercício do método historiográfico.
Segundo Sarlo (id) a memória organiza o passado e o coloniza com as
concepções do presente. Tanto a história, quanto a memória, ou a arte, tem interesse
no presente, mas de forma diferente. Afirma e dá exemplos de que há outras formas
de se trabalhar com a experiência. Podemos buscar explicações não somente na
50

verdade do testemunho, podemos não privilegiar a primeira pessoa no testemunho e


sim, submeter a experiência a um controle historiográfico e das Ciências Sociais.
Também, a autora aborda o caso do testemunho de terceiros e o caráter
duplo da utilização de “lembrar”, ou seja, “lembrar” o vivido ou “lembrar”
narrações, ou imagens alheias, e mais remotas no tempo.
Sarlo (id) denomina de pós-memória a geração seguinte àquela que
protagonizou os acontecimentos, ou seja, é a memória dos filhos sobre a memória
dos pais.
A pós-memória, além de se apoiar nos testemunhos, se apoia em outras
fontes. Para Sarlo toda experiência do passado é vicária, pois toda a narração do
passado é uma representação, como afirma na citação seguinte:

“Nessa dimensão identitária, a pós-memória cumpre as mesmas funções


clássicas da memória: fundar um presente em relação com um passado. A
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relação com esse passado não é diretamente pessoal, em termos de família e


pertencimento, mas se dá através do público e da memória coletiva
produzida institucionalmente.” (id, p. 97)

Também Sarlo (id) chama atenção para o caráter inacabado e fragmentário


das subjetividades que lembram e as subjetividades que produzem. Além disso,
acrescenta que os discursos da pós- modernidade renunciam à totalização.
Portanto, para finalizar, privilegiamos em nosso estudo esse binômio
lembrança/ esquecimento inerente à problemática da memória, referendados
principalmente em Ricoeur. Além disso, a discussão sobre o testemunho de Sarlo
e Ricoeur também foi extremamente útil e necessária na análise crítica dos
depoimentos dos nossos entrevistados, especialmente os pescadores.
Perpassando tudo isso, a tensão história e memória está presente em toda a
nossa pesquisa e para lidar com a mesma recorremos a Le Goff (1990) e Ricoeur
(2007) mais uma vez.
Não podemos também deixar de privilegiar em nosso estudo algo que
atravessa a memória (Le Goff, id), que são as relações de poder interferindo na
construção da própria memória
51

2.2
Os diferentes conceitos de identidade

Esta parte de nosso capítulo foi composta a partir do estudo do(s)


conceito(s) de identidade em cinco autores referenciais nesse tema, são eles:
Stuart Hall, Denys Cuche, Tomaz Tadeu da Silva, Manuel Castells e Vera Maria
Candau. Sendo assim, nosso texto está dividido em três partes: primeiramente,
apresentaremos uma contextualização sobre o surgimento do multiculturalismo,
tendo em vista que a relação entre identidade e cultura é indiscutível; em seguida,
abordaremos uma análise sintética sobre o pensamento de cada um dos autores
escolhidos; por fim, em nossa finalização estabelecemos um diálogo com cada um
dos autores trabalhados.
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2.2.1
O contexto histórico do surgimento do multiculturalismo

O multiculturalismo se originou nos EUA, particularmente a partir da


década de 1960, com os movimentos sociais, movimentos de pressão e
reivindicação de algumas minorias, principalmente negras. Envolveu protestos
anti-discriminatórios e luta pela implantação dos direitos civis reivindicados.
Na Europa a questão multicultural está ligada ao fenômeno da imigração,
principalmente nas últimas décadas. Por outro lado, na América Latina, ela surge
inicialmente referida às populações indígenas (missões, experiências de escolas
bilíngues interculturais etc). No nosso continente a Educação Popular, assim como
o Movimento Negro, também contribuem para o seu desenvolvimento.
Ao colocar em discussão os direitos das minorias e a questão das
identidades, o multiculturalismo desestabilizou a visão monocultural, pois
reafirmou, no contexto sociocultural de diferentes grupos sociais, a existência da
diversidade, da subjetividade e da relatividade.
A relação entre cultura e identidade é indiscutível, já que esta última é o
conjunto de elementos relativamente sistematizados e internalizados no nosso
processo de socialização. Reconhecemo-nos como idênticos a uns e,
consequentemente, diferentes de outros, e não seria possível pensar esta relação
52

dissociada do processo cultural. É na cultura que encontramos práticas, valores,


saberes, princípios com os quais nos identificamos, nos filiamos.
Nesse sentido, a identidade de cada um de nós está sempre em construção,
já que interage com as transformações vivenciadas no contexto social,
responsáveis pela infinita produção de cultura.
A identidade se constrói sempre na alteridade. A união do que é idêntico,
análogo, semelhante, se faz em um processo de diferenciação, no qual o
diferencial é sempre o outro, o diverso. Quando nos identificamos como
brasileiros, sempre o fazemos tendo como contraponto o que entendemos por
argentinos, franceses, alemães etc.

“Antes de tolerar, respeitar e admitir a diferença é preciso explicar como ela


é ativamente produzida. A diversidade biológica pode ser um produto da
natureza; o mesmo não se pode dizer da diversidade cultural. A diversidade
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cultural não é, nunca, um ponto de origem: ela é, em vez disso, o ponto final
de um processo conduzido por operações de diferenciação.” (Silva, 2000,
p.100)

2.2.2
O que chamamos identidade(s)

Como já foi citado anteriormente, na estruturação deste ite, fizemos a leitura


de cinco autores básicos, são eles: Dennys Cuche, Manuel Castells, Stuart Hall,
Tomaz Tadeu da Silva e Vera Maria Candau.
Em seus estudos Hall (2001) reflete sobre as concepções de identidade, o
caráter da mudança na modernidade tardia, o que está em jogo na questão das
identidades, a compreensão tempo-espaço relacionada a identidade, questiona se
estamos nos direcionando ao pós-moderno global, dentre outros.
Atualmente a questão da identidade para Hall (id) está sendo extensamente
discutida na teoria social, ou seja, as velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades
e fragmentando o indivíduo moderno, até então, visto como um sujeito unificado.
A assim chamada "crise de identidade" é vista como parte de um processo mais
amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das
sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos
indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.
53

Hall (id) explora algumas das questões sobre a identidade cultural na


modernidade tardia e avalia se existe uma "crise de identidade", em que consiste
essa crise e em que direção ela está indo. Reflete sobre as mudanças nos conceitos
de identidade e de sujeito. Além disso, afirma que as “identidades culturais” são
aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso "pertencimento" a
culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e nacionais.
Esse autor escreve a partir de uma posição basicamente alinhada à afirmação
de que as identidades modernas estão sendo "descentradas", isto é, deslocadas ou
fragmentadas. O conceito com o qual estamos lidando – identidade - é
demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco
compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto “à
prova”.
Ainda segundo Hall (id), um tipo diferente de mudança estrutural está
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transformando as sociedades modernas desde o final do século XX. Esta realidade


está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia,
raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações
como indivíduos sociais. Essas transformações estão também mudando nossas
identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos
integrados. Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento - descentração
dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos
- gera uma "crise de identidade" para o indivíduo, por isso acaba virando uma
questão nos dias atuais.
Também, Hall (id) aborda três concepções de identidade muito diferentes,
ou seja, as concepções de identidade: do sujeito do Iluminismo, do sujeito
sociológico e do sujeito pós-moderno.
O sujeito do Iluminismo estava, segundo este autor, baseado numa
concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado,
dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro" consistia
num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com
ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo ao longo da
existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa.
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo
moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e
54

auto suficiente, mas era formado na relação com outras pessoas importantes para
ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos - a cultura - dos
mundos que ele habitava, ou seja, se tornou a concepção sociológica clássica da
questão, a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. O sujeito
ainda tem um núcleo ou essência interior que é o "eu real", mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos "exteriores" e os sujeitos
presentes neles.
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o
"interior" e o "exterior" - entre o mundo pessoal e o mundo público. A identidade,
então, costura o sujeito à estrutura. Argumenta-se, entretanto, que são exatamente
essas realidades que agora estão "mudando". O sujeito, previamente vivido como
tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto
não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou em
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confronto. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens


sociais "lá fora" e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
"necessidades" objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de
mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através
do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-moderno,
conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.
Segundo Hall (id), a identidade torna-se uma "celebração móvel"(p. 13):
formada e continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente,
e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente.
Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. A
identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.
Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural
se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, e com cada uma das quais poderíamos nos
identificar - ao menos temporariamente.
55

Um outro aspecto desta questão da identidade está relacionado ao caráter da


mudança na modernidade tardia10, ou seja, ao processo de mudança conhecido
como "globalização" e seu impacto sobre a identidade cultural.
As sociedades da modernidade tardia, argumenta Hall (id), são
caracterizadas pela diferença, são atravessadas por diferentes divisões e
antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes "posições de
sujeito" - isto é, identidades - para os indivíduos. Se tais sociedades não se
desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus
diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser
conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da
identidade permanece aberta.
Segundo Hall (id), as identidades modernas estão se fragmentando, para ele
a concepção de sujeito moderno, na modernidade tardia, não apenas se
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desagregou, mas se deslocou. Isto se deu através de cinco rupturas básicas na


teoria social e nas Ciências Humanas, são elas: a primeira descentração refere-se
às reinterpretações das tradições do pensamento marxista na década de 60; a
segunda foi a descoberta do inconsciente por Freud; o terceiro descentramento do
pensamento ocidental está associado ao trabalho do linguista estrutural Ferdinand
de Saussure; o quarto descentramento da identidade e do sujeito está ligado ao
trabalho de Foucault; por fim, o quinto ponto do descentramento é o impacto do
feminismo, tanto como crítica teórica, como movimento social.
As identidades são contraditórias (Hall, id). Elas se cruzam ou se
"deslocam" mutuamente. As contradições atuam tanto "fora", na sociedade,
atravessando grupos políticos estabelecidos, quanto "dentro" de cada indivíduo.
Nenhuma identidade singular - por exemplo, de classe social - pode alinhar
todas as diferentes identidades com uma "identidade mestra", única, abrangente,
na qual se pode, de forma segura, basear uma política. As pessoas não identificam
mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe; a classe não
pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora
através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das
pessoas possam ser reconciliadas e representadas.

10
A modernidade tardia inicia-se em meados do século XX. O autor prefere esta expressão a de
“pós-modernidade”.
56

Hall (id) afirma que as paisagens políticas do mundo moderno são


fraturadas dessa forma por identificações rivais e deslocantes - advindas,
especialmente, da erosão da "identidade mestra" da classe e da emergência de
novas identidades, pertencentes à nova base política definida pelos novos
movimentos sociais: o feminismo, as lutas negras, os movimentos de libertação
nacional, os movimentos antinucleares e ecológicos.
Ainda segundo Hall (id), a identidade é politizada, muda de acordo com a
forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é
automática, mas pode ser perdida ou conquistada.
Hall (id) explora aquele aspecto da identidade cultural moderna que é
formado através do pertencimento a uma cultura nacional e como os processos de
mudança - uma mudança que efetua um deslocamento - compreendidos no
conceito de globalização estão afetando esta realidade. Além disso, Hall (id)
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questiona a ideia de que as identidades nacionais tenham sido alguma vez tão
unificadas ou homogêneas, quanto fazem crer as representações que delas se
fazem. Entretanto, na história moderna, as culturas nacionais têm dominado e as
identidades nacionais tendem a se sobrepor a outras fontes, mais particularistas, de
identificação cultural.
Para o autor, o que está tão poderosamente deslocando as identidades
culturais nacionais, desde o fim do século XX é um complexo de processos e
forças de mudança, que, por conveniência, pode ser sintetizado sob o termo
globalização. Ele argumenta que a globalização se refere àqueles processos,
atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e
conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo,
tornando o mundo, mais interconectado. Essas novas características temporais e
espaciais, que resultam na compressão de distâncias e de escalas temporais estão
entre os aspectos mais importantes da globalização a ter efeito sobre as
identidades culturais.
Desde os anos 70, tanto o alcance quanto o ritmo da integração global
aumentaram enormemente, acelerando os fluxos e os laços entre as nações. Hall
(id) irá descrever as consequências desses aspectos da globalização sobre as
identidades culturais, examinando três possíveis consequências: as identidades
nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da
homogeneização cultural e do pós-moderno global; as identidades nacionais e
57

outras identidades locais ou particulares estão sendo reforçadas pela resistência à


globalização; as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades __
híbridas __ estão tomando seu lugar.
Uma das características principais dos últimos anos de globalização é a
"compressão espaço-tempo", a aceleração dos processos globais, de forma que se
sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um
determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a
uma grande distância. O que é importante para Hall (id) quanto ao impacto da
globalização sobre a identidade é que o tempo e o espaço são também as
coordenadas básicas de todos os sistemas de representação. Todo meio de
representação - escrita, pintura, desenho, fotografia, simbolização através da arte
ou dos sistemas de telecomunicação - deve traduzir seu objeto em dimensões
espaciais e temporais. Assim, a narrativa traduz os eventos numa sequência
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temporal "começo-meio-fim"; os sistemas visuais de representação traduzem


objetos tridimensionais em duas dimensões. Diferentes épocas culturais têm
diferentes formas de combinar essas coordenadas espaço-tempo. Hall (id)
exemplificou afirmando que podemos ver novas relações espaço-tempo sendo
definidas em eventos tão diferentes quanto a teoria da relatividade de Einstein, as
pinturas cubistas de Picasso e Braque, os trabalhos dos surrealistas e dos
dadaístas, os experimentos com o tempo e a narrativa nos romances de Marcel
Proust e James Joyce e o uso de técnicas de montagem nos primeiros filmes de
Vertov e Eisenstein.
As identidades nacionais, para Hall (id), permanecem fortes, especialmente
com respeito a aspectos como direitos legais e de cidadania, mas as identidades
locais, regionais e comunitárias têm se tornado mais importantes. Colocadas
acima do nível da cultura nacional, as identificações "globais" começam a
deslocar e, algumas vezes, a apagar, as identidades nacionais.
Hall (id) afirma que alguns teóricos culturais argumentam que a tendência
em direção a uma maior interdependência global está levando ao colapso de
“todas” as identidades culturais fortes e está produzindo aquela fragmentação de
códigos culturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela ênfase no efêmero, no
flutuante, no impermanente e na diferença e no pluralismo cultural, o qual
denomina de pós-moderno global. Os fluxos culturais, entre as nações, e o
consumismo global criam possibilidades de "identidades partilhadas" - como
58

"consumidores" para os mesmos bens, "clientes" para os mesmos serviços,


"públicos" para as mesmas mensagens e imagens - entre pessoas que estão
bastante distantes umas das outras no espaço e no tempo.
As pessoas que moram em aldeias pequenas, aparentemente remotas, em
países pobres, podem receber, na privacidade de suas casas, as mensagens e
imagens das culturas ricas, consumistas do Ocidente, fornecidas através de
aparelhos de TV ou de rádios portáteis, que as prendem à "aldeia global" das
novas redes de comunicação. Outro exemplo fornecido por Hall (id) é o da
comida indiana como algo característico das tradições étnicas do subcontinente
asiático, porém presente em restaurantes no centro de cada cidade da Grã-
Bretanha. Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de
estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e
pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se
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__ __
tornam desvinculadas desalojadas de tempos, lugares, histórias e tradições
específicas parecem "flutuar livremente". Somos confrontados por uma gama de
diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a
diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a
difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu
para esse efeito de "supermercado cultural". No interior do discurso do
consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam
a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de
moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as
diferentes identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como
homogeneização cultural.
Em certa medida, o que está sendo discutido por Hall (id) é a tensão entre o
"global" e o "local" na transformação das identidades. As identidades nacionais,
como vimos, representam vínculos a lugares, eventos, símbolos, histórias
particulares. Elas representam o que algumas vezes é chamado de uma forma
particularista de vínculo ou pertencimento. Sempre houve uma tensão entre essas
identificações mais locais/ nacionais e identificações mais universalistas __ Hall usa
como exemplo uma identificação maior com a "humanidade" do que com a
"inglesidade" (Englishness). Esta tensão continuou a existir ao longo da
modernidade: o crescimento dos Estados-nação, das economias nacionais e das
59

culturas nacionais continuam a dar um foco para a primeira; a expansão do mercado


mundial e da modernidade como um sistema global dão o foco para a segunda.

“Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o


efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma
cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades,
produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de
identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas,
mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas.
Entretanto seu efeito geral permanece contraditório.(...)” (Hall, 2001, p. 87)

Além de Stuart Hall (id) foco básico de nosso trabalho sobre identidade
dialogamos com Tomaz Tadeu da Silva (2000), particularmente através do livro
intitulado “Identidade e diferença”.
A principal ideia de Silva (id) é afirmar que “identidade e diferença são
resultados de um processo de produção simbólica e discursiva” (p.81). Sob este
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prisma a linguagem não passa de um sistema de diferenças. Sendo assim, analisa


que a diferença não é apenas um produto, e sim, um processo básico de
funcionamento da língua e de instâncias culturais e sociais, como a identidade, por
exemplo. Logo, a diferença é parte ativa da formação da identidade. Tanto a
linguagem, quanto a identidade tendem à fixação.
Tomaz Tadeu da Silva (id) afirma, também, que o hibridismo produz
identidades novas, mas que mantém traços das anteriores. Essa hibridização se dá
entre identidades assimetricamente situadas em relação ao poder. Para ele
identidade não é essência, não é dada. Ela é instável, contraditória, fragmentada,
inconsistente, inacabada. Logo, está francamente ligada às estruturas discursivas e
narrativas, tendo estreita conexão com as relações de poder.

“Não se trata, entretanto, apenas do fato de que a definição da identidade e


da diferença seja objeto de disputa entre grupos sociais assimetricamente
situados relativamente ao poder. Na disputa pela identidade está envolvida
uma disputa mais ampla por recursos simbólicos e materiais da sociedade. A
afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos
diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso
privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em
estreita conexão com relações de poder. O poder de definir a identidade e de
marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder.
A identidade e a diferença não são, nunca inocentes.”(Silva, 2000, p.81)
60

O outro autor por nós estudado foi Denys Cuche (1999), cuja reflexão sobre
identidade muito nos interessa.
Segundo Cuche (id), o conceito de cultura é um grande sucesso fora das
Ciências Sociais e associado a ele frequentemente surge o conceito de identidade.
As crises culturais costumam ser vistas como crises de identidade. Para ele a
cultura pode existir sem consciência de identidade e as estratégias de identidade
podem manipular e até modificar uma cultura que não terá então, quase nada em
comum com o que ela era anteriormente.
A cultura depende em grande parte de processos inconscientes; já a
identidade remete a norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em
oposições simbólicas (Cuche, id).
Cuche (id) afirma que nas Ciências Sociais o conceito de identidade cultural
se caracteriza por ser polissêmico e fluido. Este conceito é relativamente recente e
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teve diversas definições e reinterpretações.


Nos anos 50 – nos EUA – conceituou-se identidade cultural, relacionando-a
com a análise dos problemas de integração dos imigrantes. Inicialmente o
conceito de identidade era visto como imutável, mas acabou por ser ultrapassado
por concepções dinâmicas, que não veem a identidade como um dado
independente do contexto relacional, logo a identidade cultural é um dos
componentes da identidade social.
Para a psicologia social a identidade é um instrumento que permite pensar a
articulação do psicológico e do social em um indivíduo. A identidade social se
caracteriza pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social: vinculação a
uma classe social, a um período de idade, etc. Tal identidade social não diz
respeito só ao indivíduo e sim, ao grupo, também, é ao mesmo tempo inclusão e
exclusão, pois ela identifica e distingue dos outros grupos.
Portanto, segundo Cuche (id), a identidade cultural é uma modalidade de
categorização da distinção nós/ eles, baseada na diferença cultural. Logo, ele parte
para definir duas concepções básicas de cultura: a objetivista (considera a cultura
como a segunda natureza, a identidade é definida como preexistente ao
indivíduo); a subjetivista (a identidade cultural não é recebida definitivamente, é
um sentimento de vinculação ou uma identificação a uma coletividade imaginária
em maior ou menor grau; a identidade é uma questão de escolha individual
61

arbitrária). Portanto, a identidade é uma construção social e não, um dado. A


construção da identidade se faz no interior de contextos específicos.
Cuche (id) apresenta uma concepção de identidade relacional que ultrapassa
a alternativa objetivismo/ subjetivismo, já que existe em relação ao outro
(identidade/ alteridade). Para definir a identidade de um grupo é importante
localizar os traços culturais que são usados pelas pessoas de um grupo para
afirmar e manter uma distinção cultural. Logo, a identidade se constrói e se
reconstrói no interior das trocas sociais.
Ainda segundo Cuche (id), a identidade é problemática porque é motivo de
lutas. O papel do pesquisador é explicar os processos de identificação, não julgá-
los. Com os Estados-nação a questão da identidade passou a ser assunto de
Estado. O Estado Moderno tende a ser monoidentitário, pois só reconhece a
ideologia da identidade dominante.
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“Há uma estreita relação entre a concepção que se faz de cultura e a


concepção que se tem de identidade cultural. Aqueles que integram a cultura
como uma “segunda natureza” que recebemos de herança e da qual não
podemos escapar, concebem a identidade com um dado que definiria de uma
vez por todas o indivíduo e que o marcaria de maneira quase indelével. (...)
Em uma abordagem culturalista, a ênfase não é colocada sobre a herança
biológica, não mais considerada como determinante, mas na herança
cultural, ligada à socialização do indivíduo no interior de seu grupo
cultural”. (Cuche, 1999 p. 179).

Outro autor por nós estudado foi Manuel Castells, sociólogo espanhol que
foi um dos precursores do estudo sobre o impacto das tecnologias na sociedade. O
estudo de Castells deu origem a uma trilogia de livros denominados: A Sociedade
em Rede (1996); O Fim do Milênio (1998) e o Poder da Identidade (1999).
Em nosso estudo nos detivemos no livro O Poder da Identidade. Neste Castells
examina de que forma a identidade do indivíduo, dos grupos, dos movimentos sociais
e dos Estados se refletem na transição para a organização em rede.
Castells (id) traz uma reflexão sobre o caráter múltiplo e fragmentário da
identidade e, empiricamente identifica que uma identidade, cultural ou individual,
pode sustentar múltiplas identidades (Castells, 1999, p. 22). No entanto o autor faz
uma distinção entre identidades e papéis sociais (trabalhador, mãe, vizinho,
militante socialista, sindicalista, jogador de basquete, frequentador de uma
determinada igreja e fumante, para utilizar os exemplos citados por ele), no
62

sentido de os últimos estabelecerem uma relação de segunda ordem com as


identidades. A relevância da influência desses papéis depende dos acordos e
negociações feitas dos indivíduos com as instituições e organizações.
Por outro lado, as identidades são fontes de significados para os próprios
atores. Partindo daí, Castells (id) propõe três categorizações de identidade
construídas a partir de relações de poder, que sinteticamente apresentamos: (1)
identidade legitimadora, com um caráter essencialista, instituída pelas instituições
dominantes, (2) identidade de resistência, que seriam de certa forma
essencializadas, que representam os grupos contra-hegemônicos e (3) identidades
de projeto, que diz respeito à perspectiva construtivista das identidades onde os
atores constroem uma nova identidade, capaz de redefinir sua posição na sociedade.
Castells (id), também, concorda com uma perspectiva construtivista de
identidade, de forma geral, como podemos confirmar no trecho abaixo:
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“Não é difícil concordar com o fato de que, do ponto de vista sociológico,


toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz
respeito a como, a partir de quê, por quem e para quê isso acontece. A
construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história,
geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória
coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de
cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos
indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em
função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura
social. (id, p. 23).

Por fim, também Candau em diversos de seus textos afirma ser a identidade
construída, fragmentada, múltipla e socialmente referendada. Ela defende a
interculturalidade, perspectiva que implica não só o respeito pelas diferentes
culturas (como nos apregoa o multiculturalismo), mas a prática do diálogo entre
diferentes grupos culturais, o dinamismo renovador das diferentes culturas, assim
como seu processo de hibridização cultural e a correlação entre diferença e
desigualdade (id, 2006).

“A interculturalidade orienta processos que têm por base o reconhecimento


do direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e
desigualdade social. Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre
pessoas e grupos que pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando
os conflitos inerentes a esta realidade. Não ignora as relações de poder
presentes nas relações sociais e interpessoais. Reconhece e assume os
conflitos procurando as estratégias mais adequadas para enfrentá-los.”
(Candau, 2003, p.148)
63

Segundo Candau & Koff (2006) há certos desafios a serem encarados na


educação intercultural, alguns para serem construídos, outros desconstruídos
como reconhecer que vivemos numa sociedade preconceituosa, excludente e
discriminatória, para lutarmos por práticas mais interculturais; assim como,
questionar o caráter monocultural e o etnocentrismo não só da escola, mas muita
vezes de nossas culturas e sociedade.
Por outro lado, segundo as autoras precisamos articular nessa perspectiva
intercultural: igualdade e diferença, valorizando a diversidade cultural com as
questões relativas à igualdade e aos direitos básicos, como direitos de todos (as);
resgatar pessoal e coletivamente os processos culturais de construção identitária,
as histórias de vida e da construção de diferentes comunidades socioculturais são
elementos fundamentais na perspectiva; os aspectos relativos à hibridização
cultural e à constituição de novas identidades culturais; um conceito dinâmico e
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histórico de cultura operacionalizando-o, capaz de integrar as raízes históricas e os


novos painéis, assim como uma visão das culturas como universos abertos e não
fechados e em busca do “puro”, do “autêntico” e do “genuíno”.
Na perspectiva intercultural devemos, também segundo Candau & Koff
(id), promover experiências de interação sistemática com os “outros” para
aprendermos a relativizar, respeitar as diferentes culturas e dialogar com as
mesmas; reconstruir a dinâmica educacional - a educação intercultural não pode
ser reduzida a algumas situações e/ ou atividades realizadas em momentos
específicos, nem focalizar sua atenção exclusivamente em determinados grupos
sociais – dando um enfoque global, que deve afetar todas as dimensões humanas;
favorecer processos de “empoderamento”, principalmente para grupos populares,
socialmente e historicamente excluídos; ‘empoderar` os indivíduos e os grupos
sociais liberando a potência e o poder de cada um, tornando-os sujeitos de sua
própria história e protagonistas de suas vidas.
Sendo assim, podemos perceber que as sugestões de uma agenda
intercultural oferecida por Candau e Koff (id) extrapolam a escola e abrangem
diferentes dimensões sociais, políticas, culturais e econômicas de nossas
sociedades em prol de maior justiça e igualdade social.
Ao estudar Hall (2002), Cuche (1999), Castells (1999), Silva (2000) e
Candau (2003, 2006) podemos perceber várias semelhanças e algumas diferenças
em suas propostas conceituais sobre identidade.
64

Com Hall (2001) aprendemos como se dá a construção da identidade


cultural na chamada modernidade tardia, buscando responder algumas perguntas
como: se há ou não há uma “crise” de identidade, em que ela consiste e quais suas
consequências. Para isso o autor apresenta a mudança do conceito de sujeito e
identidade a partir da década de 60 no século XX. Defende a posição que as
identidades estão sendo descentradas, apesar deste ser um processo complexo,
ainda pouco decifrado. Desenvolve sua reflexão considerando a fragmentação nas
sociedades atuais, apresentando de forma sintética as três concepções de sujeito
presentes na modernidade; as mudanças na modernidade tardia; e o “jogo de
identidades” nesse contexto.
Um outro olhar sobre a discussão das identidades culturais é a compreensão
de Denys Cuche (1999) que estabelece uma relação direta entre as noções de
cultura e identidade. Para ele, a cultura “pode existir sem a consciência de
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identidade” (id, p. 176), porém uma identidade cultural, evidentemente não pode
existir sem um sistema cultural. A identidade cultural, por sua vez, é
compreendida através de processos conscientes de vinculações classificados por
oposições binárias. A noção de identidade, portanto, está relacionada à noção de
cultura.
Além disso, dialogando com Cuche (id) percebemos que devido à dimensão
mutável da identidade, o indivíduo lança mão de estratégias de identificação, que
dependem da situação social, relação de força entre grupos etc. O conceito de
estratégia pode explicar as variações de identidade, também chamadas de
deslocamento de identidade criando a separação entre dois grupos não por
diferença cultural e sim, por desejo de se diferenciar. As fronteiras são mutáveis,
logo os deslocamentos de fronteira podem ser provocados por mudança de
situação social, econômica ou política. Para Cuche (id), assim como para alguns
dos outros autores focalizados, não existe identidade cultural em si mesma
definível.
Com Silva (2000) percebemos que identidade e diferença são parte de um
todo. Além de construções sociais, elas são partes de um processo, não há como
conceituar identidade sem se falar de diferença. Esse autor enfatiza que a
identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. Porém,
deixa registrado que identidade e diferença são processos de produção social, por
isso envolvem relações de poder, estando ligadas a sistemas de representação.
65

Dialogando com Castells (1999) identificamos que, apesar de o autor ter


apresentado pensamentos que contribuem para nossa reflexão sobre a identidade
cultural, temos alguns questionamentos quanto ao posicionamento de Castells
com relação aos papéis sociais que, em nossa opinião, podem constituir
identidades culturais próprias. Muitos dos exemplos citados por ele podem
constituir fontes de significados para os atores sociais que representam estes
papéis. Hall (2001 p. 32) desenvolveu um estudo sobre representações sociais na
vida cotidiana e considera a vivência dos papéis sociais como um processo de
descentração da concepção essencialista de identidade cultural. Logo,
consideramos que a vivência de diferentes papéis sociais possa significar, muitas
vezes, a vivência de múltiplas identidades culturais.
Já Candau entende, também, que toda a identidade é construída,
historicizada e socialmente referendada. Para ela a perspectiva intercultural nos
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permite avançar em relação à dimensão multicultural, pois permite não só o


respeito, mas o alargamento do diálogo entre diferentes culturas e identidades
culturais.
Para terminar entendemos que a temática das identidades culturais assume
centralidade em diversas pesquisas atuais, porém está longe de ser considerada um
assunto já definido sobre balizamentos estáveis e consensuais. O conceito de
identidade, neste momento, pode ser visto como uma ferramenta para o
empreendimento de pesquisas sociais em um tempo em que as narrativas
modernas passam por um panorama de crise, onde intensifica-se a busca por
entendimento dos efeitos da modernidade tardia e onde há uma procura por
identificações e legitimação dos processos sociais.
Concordamos com nossos autores quanto às características semelhantes de
identidade, ou seja, ela é construída, fragmentada, dinâmica, múltipla,
historicizada e socialmente referendada. Porém, cabe lembrar que devido à
natureza dessa pesquisa dialogamos mais intensamente com Hall (id), Candau (id)
e Castells (id).
Para concluir percebemos que uma das características marcantes
apresentadas por todos os autores analisados é a dimensão construtivista da
identidade, ou seja, a identidade como sendo resultado de uma construção social e
da complexidade do social. Por isso, a identidade é multidimensional e sincrética,
apresenta um caráter dinâmico que causa dificuldade de delimitá-la.
66

Portanto, é com todo esse instrumental teórico exposto acima que tentamos
compreender como o Museu da Maré constrói estratégias de possível
fortalecimento identitário tanto dos pescadores, quanto de outros sujeitos coletivos
da região da Maré, tendo em vista se configurar como um museu comunitário
nascido do movimento social. E é nessa sequência que o capítulo seguinte de
nossa pesquisa procura refletir sobre o surgimento e importância da Nova
Museologia, como também, conceituar museus comunitários e ecomuseus,
mapeando-os no Brasil e especialmente, no Rio de Janeiro.
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3
Na “Maré” da Nova Museologia

“Para o bem e para o mal os museus não são blocos


homogêneos e inteiramente coerentes. Ali mesmo em suas veias
circulam corpos e anticorpos, memória e contramemória, seres
vivos e mortos. De qualquer modo, para além dessa visão
microscópica, não se deve desconsiderar as tendências gerais
predominantes. Interessa aqui afirmar que alguns museus,
dando provas de que a mudança é possível, buscam
transformar-se em equipamentos voltados para o trabalho com o
poder da memória”.(Chagas, Mário. Memória e poder:
contribuição para a teoria e a prática nos ecomuseus. In:
Site:www.quarteirao.com.br/pdf/mchagas, 2000, p. 3).

Nesse capítulo apresentaremos um breve histórico sobre o desenvolvimento


dos museus e da Nova Museologia, conceituaremos ecomuseus e museus
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comunitários, além de apresentar uma pequena caracterização daqueles surgidos


no Rio de Janeiro até janeiro de 2010. Também relacionaremos museus
comunitários e ecomuseus como fruto do movimento social, museus na
“contracorrente”, criados e idealizados pela Nova Museologia.

3.1
Do colecionismo dos Gabinetes de Curiosidades ao protagonismo
comunitário dos Ecomuseus

A maioria dos museus no Ocidente começa a existir com o que se


denominou de “colecionismo”, Kersten e Bonin (2007, p.117), definem
colecionismo como:

“um agrupamento de objetos com características semelhantes, organizados


de diferentes maneiras, por diferentes pessoas, geralmente aquelas que
tinham melhores condições econômicas para adquiri-los.” (id, p. 117)

No entanto, Lacouture (1985, p. 5) nos fala sobre a necessidade de se pensar


o que vêm antes do colecionismo de objetos e que se encaminha no desejo de se
buscar elementos representativos de algo, ou seja, a busca da representatividade
outorgada aos objetos, elementos simbólicos. Não importa tanto o objeto, mas o
que ele representa.
68

O conceito de museu sofreu transformação histórico-cultural através de


muitos séculos. Nos remetemos à citação a seguir de Fernández (1999) que deixa
claro essa transformação:

“Os antecedentes remotos do museu há que buscar, não obstante, em uma


evolução histórico-cultural de cerca de vinte e cinco séculos, desde a
denominação etimológica de mousein griego (casa ou templo das musas em
Atenas, s. V a.C.), passando pela concepção Alexandrina como centro
científico e universal do saber, pelo museum romano (templo das musas ou
escola filosófica), e pelo museu-coleção renascentista e barroco, até chegar à
concepção ilustrada e à moderna e revolucionária do museo público no
século XVIII. No século XIX se aproximaria mais à realidade do fenômeno
europeu do museu moderno, enriquecendo-o com a tradição, o debate e a
experimentação anteriores.” (id, p.13)

Na Grécia e Roma Antigas, ou seja, na Antiguidade Clássica se


colecionavam objetos, assim como na Idade Média. Mas, foi neste período que a
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Igreja monopolizou no Ocidente os objetos de arte e fortaleceu concepção de um


tempo linear e evolutivo (Kersten e Bonin, 2007, p.117).
No século XVI e XVII essas coleções de objetos raros vão ser chamadas de
“gabinetes de curiosidades”. Os monarcas e alguns não nobres criaram museus e
arquivos, mas a maioria colecionava os objetos numa ordem muito particular (o
fabuloso, o curioso, o exótico), descontextualizado de sua origem. Essa concepção
era fruto de seu tempo histórico. A partir do século XVI, algumas exposições
foram sistematizadas e expostas em locais para este fim. O Renascimento agregou
aos objetos além do valor estético, o valor histórico. Com a Revolução Científica,
no século XVII, as exposições dos museus passaram a ter o ideal de reconstruir a
totalidade das culturas “exóticas”. Os museus expunham coleções de história
natural, antiguidades e objetos raros. A partir das coleções, dos encontros e
desencontros com culturas do Novo Mundo e do surgimento do cientificismo
surgiram os museus modernos. (id, p. 117-118)
Já no século XVIII o colecionismo, além do caráter estético, agregou o
cientificismo, tornando os museus espaços sacralizados, institucionalizados,
redefinindo simbolicamente os objetos que o espaço sacralizou (id, p. 121). Nesse
século vários museus foram abertos ao público, como o British Museum criado em
1753 e o Louvre entre 1750 e 1773. Porém, no final do século XVIII a cultura de
curiosidades foi banida e inicia-se a “era dos museus” no século seguinte. Com a
influência do cientificismo, os museus fortaleceram suas coleções com objetos
69

interessantes à ciência, a maior parte formada por coleções reais. Tornaram-se


centros de produção de conhecimento e passam a ser celeiro para o
desenvolvimento da antropologia.
Segundo Lacouture (1985, p.6-7) os museus surgem e se justificam
vinculados ao cientificismo, porém seu desenvolvimento e importância estão
relacionados à expansão imperialista européia do século XIX. O colecionismo
chega ao máximo em sua forma de acumulação de bens materiais e conservação
caracterizando esse momento histórico europeu e norte-americano e se
representando por sua monumentalidade e concentração, marcando dessa forma os
museus tradicionais. O trecho abaixo elucida o que acabamos de afirmar.

“(...) Como verdadeiros aparatos ideológicos de estado, os Museus


cumpriam uma função claramente e assim se reproduziam como templos
verdadeiros do nacionalismo, do prestígio e da cultura nacionais.
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Concentração e monumentalidade marcam o Museu tradicional.” (id, p.7)

Para Lacouture (1985), concentração patrimonial é “Juntar objetos de


diferente procedência em um espaço determinado(...)”(id, p.7). Sendo assim, o
objeto é descontextualizado e musealizado passando a ser cultuado. A
descontextualização, embora necessária, altera o vínculo do elemento/ objeto com
o contexto original. Podemos citar como exemplo o Museu do Louvre ilustrando
um momento de concentração de riqueza e domínio europeu sobre o mundo.
Segundo Kersten e Bonin (2007, p. 119), os museus pedagógicos e ativos
surgiram nos Estados Unidos, como por exemplo, o Metropolitan Museum em
1870, que serviu de modelo para outros museus americanos. Posteriormente, esses
museus influenciaram as visões de museus latino- americanos, como o MASP
(Museu de São Paulo) e o Museu de Antropologia na cidade do México.
Tal padrão museográfico, que se caracterizava pela monumentalidade,
descontextualização, concentração patrimonial e comunicação, serviu de modelo
para os museus nacionais da América Latina, como o Museu de Bogotá (1823) e o
Museu do México (1825). Cabe lembrar que tais países estavam vivendo seus
processos de independências e consolidação de seus Estados Nacionais. Os
grandes projetos de nação eram comunicados nesses museus, fortalecendo-se
através das exposições museográficas a identidade nacional. Portanto, os museus
nacionais nascem com as identidades que se iniciam.
70

Até ao final do século XIX, os museus tinham as funções de conservar e


pesquisar sujeitando assim, o desenvolvimento da etnologia à museografia.
No início do século XX, nos EUA, Franz Boas critica os museus
tradicionais, especialmente devido à arrumação de suas coleções, tanto
teoricamente, quanto museograficamente (id, p. 120). Não articulavam os objetos
das coleções ao contexto em que eram reproduzidos, os objetos eram expostos
descontextualizadamente e numa visão eurocêntrica. Boas acabou percebendo a
importância de se referendar o objeto em sua cultura contextualizando-o,
formando uma proposta teórica inovadora.
Também Franz Boas (id) vai falar da importante relação entre os museus e a
educação, pois considerava que as principais funções do museu eram educar e
entreter.
Portanto, desde o final do século XIX e início do XX, os objetos são
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recontextualizados no museu. Por isso, o museu é um espaço que sacraliza os


objetos (Kersten e Bonin, 2007, p.117), já que os redefine simbolicamente. Além
disso, o museu pode gerar ilusão de uma representação adequada de um mundo
fragmentado.
Na segunda metade do século XX o museu se tornou um meio e um fim de
ação cultural (Fernandez, 1999, p.16). A riqueza de um museu hoje tem a ver com
seu potencial de informação e comunicação, com a sua capacidade técnica de
pessoal especializado e o seu programa museológico. As exposições
museográficas tradicionais foram estruturadas para expor objetos ou espaços que
contam histórias ou ambos. Também, a arquitetura dos museus vai interferir na
exposição museográfica, quer na linguagem ou na representação.
Nos anos 80 ocorre uma profunda mudança na concepção do conceito de
museu porque se dá uma outra aproximação dos museus com a antropologia, só
que neste momento não mais para justificar a “corrida imperialista” e sim, para
representar as alteridades (Kersten e Bonin, 2007, p.122), ou seja, trabalhar com
identidades que geram visões de nós e do outro.
Alguns acham que os objetos de vários museus deveriam ser devolvidos às
suas sociedades de origem, em geral dominadas pelos europeus ou norte-
americanos. Por outro lado, os museus podem ser templos ou fóruns, ou seja,
apresentam objetos que referenciam determinadas culturas ou geram debates na
construção de uma determinada cidadania. Sendo assim, os museus suscitam
71

visões do outro como diferente ou como “exótico”. Também emitem juízos de


valor, logo, são instrumentos de poder, educação e experiência, como nos afirmam
Kersten e Bonin (2007) no trecho abaixo:

“Nesse sentido, os museus são arenas privilegiadas, que apresentam imagens


de nós mesmos e dos outros. Assim, as exposições museológicas podem
constituir-se em desafios para pensar os contrastes entre o que se sabe e o
que é preciso aprender sobre o outro.” (id, p.124)

Portanto, podemos perceber que vários estudiosos dos museus afirmam que
estes possuem um caráter educacional vinculado à sua própria origem, se
configurando desde o início como espaços de pesquisa e ensino, que poderíamos
denominar também, como espaços educativos não formais. Porém, somente ao
final do século XVIII o enciclopedismo gera uma preocupação educativa do
museu. Mesmo assim, o processo de mudança da relação do público com o museu
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foi lento. Somente no século XX proliferaram os museus que queriam divulgar as


coleções com base em propósitos mais populares, ampliando a divulgação do
saber dos museus, especialmente na França. Cabe lembrar que esta realidade não
atinge de forma uniforme a todos os tipos de museu. Sendo assim, os museus
classicamente apresentam ou exibem as coleções, mantendo uma recorrente falta
de participação do público.
Um grande diferencial dos museus atuais é a preocupação com a educação e
difusão (Lacouture, 1985, p.3). Para aliviar a falta de participação do público
dentro desse panorama herdado e exposto acima, os museus criaram serviços
educativos sistemáticos e programas especiais para jovens e adultos, como
trabalhos de expressão plástica, teatro etc, dentro do museu a partir de seus temas.
Também Lacouture (id, p.9) nos diz que são os especialistas que decidem o que e
como exibir nos museus. Em poucas ocasiões, diz ele, se sonda para conhecer o
público que o frequenta. É, em geral, uma comunicação sem diálogo, realizada no
nível abstrato, sem nível afetivo (id).
No Brasil cabe a primogenitura dos museus ao Museu Nacional no Rio de
Janeiro, que foi criado por Dom João VI em 1818, mas só começou a funcionar
em 1821. No entanto, só a partir de 1876 é que o estudo de história natural passou
a ser dominante em vários museus. Ainda no século XIX, no Brasil, foi criado o
Museu Paraense em Belém (1866) – que estudava a natureza amazônica- e o
Museu Paulista em São Paulo (1894) – que, também,estudava a história natural do
72

Brasil e de outros lugares da América do Sul. A partir de 1920 com a criação de


Institutos de Pesquisa, os museus de ciências sofreram uma certa decadência.
(Jacobucci, 2008), voltando a ter mais investimentos décadas mais tarde.
A maioria dos museus brasileiros recebeu maior impulso a partir de 1980,
com exceção do Instituto Butantan, que trabalha com a história natural das
serpentes desde 1921. Os anos 80 passam a ser estimuladores aos museus de
ciências do Brasil devido a implementos oriundos de programas de apoio do
governo e devido à preocupação e busca por uma função educativa porque as
exposições nos museus nos trazem a necessidade de tornar acessível as
informações científicas para o público. Também nessa década proliferaram os
chamados “museus vivos ou interativos”. Atualmente eles sofrem críticas no
Brasil e no mundo inteiro. Nos últimos anos surgiram diversos programas
educacionais proporcionados pelos museus de ciência em parceria com as escolas
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(Marandino, 2000).
No entanto, antes dos anos 80 a crise contemporânea que já se manifestava
nos museus se revela com intensidade na 9º Conferência do Conselho
Internacional de Museus ocorrida na França em 1971. A crise apresentava-se na
necessidade de dar ao museu uma dinâmica adequada para transformá-lo num
verdadeiro instrumento de desenvolvimento cultural da sociedade contemporânea
(Lacouture, 1985, p.1).
Assim sendo, a Nova Museologia toma forma na França em 1971, fruto da
insatisfação de vários museólogos que queriam renovar e alguns até mesmo
superar a instituição chamada museu sob a influência dos anseios populares dos
anos 70. No entanto, cabe lembrar que a expressão Nova Museologia foi cunhada
por G. Mills e R. Grove em 1958, segundo Fernandez (1999, p. 74).
No contexto da Nova Museologia nasceu o ecomuseu. No início dos anos
70, Hugues de Varine Bohan11 – então, Secretário Geral do Conselho
Internacional de Museus (ICOM) – e Georges-Henri Rivière12 – um dos primeiros
Secretários Gerais do ICOM – foram determinantes no surgimento do termo
Ecomuseu. Para alguns autores foi Varine que cunhou a palavra ecomuseu, para

11
Hugues de Varine é um pensador e gestor comunitário francês, foi presidente do ICOM
(Conselho Internacional de Museus), membro fundador do MINOM – Movimento Internacional da
Nova Museologia, consultor internacional em Comunidades, Patrimônio e Desenvolvimento.
12
O museólogo Georges-Henri Rivière serviu entre 1948-1965 como o primeiro diretor em
exercício do ICOM, o Conselho Internacional de Museus, sendo que a partir de 1966 permaneceu
como conselheiro permanente.
73

outros Rivière. Porém, o que temos certeza é que os dois foram fundamentais na
estruturação e difusão de tal conceito, segundo nos confirma a citação a seguir de
Priosti e do próprio Varine (2007):

“O Brasil e seu território continental é, como disse Georges- Henri Rivière,


cunhador com Hugues de Varine do conceito de ecomuseu, um celeiro de
ecomuseus, e se poderia acrescentar, de criações museológicas populares ou
comunitárias.” (Priosti, O.;Varine,H. id, p.61)

O ecomuseu surge precisamente da necessidade de abrir o museu


tradicional, ampliando-o de diversas formas. No Novo Museu não há edifício e
sim, região; não existe a coleção e valoriza-se o patrimônio regional; não se tem
preocupação com o público, a comunidade regional é a protagonista. O Museu
Novo tem suporte no triângulo “Território-patrimônio-comunidade”.
Cabe lembrar que Nova Museologia e Ecomuseu não são sinônimos.
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Segundo Fernandez (1999, p. 113) a Nova Museologia é a manifestação de uma


ideologia, de uma filosofia que distingue e norteia o trabalho de alguns
museólogos, é um sistema de valores aberto e interativo que utiliza um novo
modelo de trabalho museal. Já ecomuseu é um tipo de museu cuja filosofia e
princípios de atuação são norteados por essa ideologia e filosofia denominada
Nova Museologia. O conceito de ecomuseu ultrapassa as fronteiras de um museu
clássico de coletar objetos para que as comunidades aprendam sobre elas mesmas
ou outros povos. Está baseado na memória coletiva das comunidades e engloba os
lugares, as cerimônias e as relações sociais.
Para Scheiner. (1998 p. 162) ecomuseu pode também ser denominado de
Museu Integral, ou Museu Total, por lidar com um conjunto de referências em sua
integralidade. Aquino (2007) explicita o significado de museu integral no trecho
abaixo:

“Ocorre a passagem da coleção, que funda o museu tradicional, ao


patrimônio, fundando o que passa a ser denominado de museu integral.” (id,
p. 54)

As reflexões e resoluções sobre o Museu Novo aconteceram na Mesa


Redonda: “A importância e o desenvolvimento dos museus no mundo
contemporâneo”, ICOM-UNESCO, ocorrida em Santiago de Chile, em 31 de
Maio de 1972. Nessa conferência várias indagações revestem as preocupações de
alguns museólogos, tais como:
74

“Que fazer, ante as novas condições sociais, em seu urgente problema de


participação e diálogo, com as grandes concentrações de bens materiais
culturais, herdadas do século XIX, e inclusive de antes?” (Lacouture, 1985,
p. 1)

Em 1984 ocorre em Quebec o primeiro Atelier Internacional dos


Ecomuseus e Novas Museologias e é conhecido como a Declaração de Quebec,
onde se solicita ao ICOM o aceite para a criação de um comitê internacional de
ecomuseus e a criação de uma federação internacional para a Nova Museologia.
Mas, a primeira proposta não foi aceita. (id, p. 80)
Em 1985 foi criado o MINOM (Movimento Internacional para uma Nova
Museologia) em Lisboa. Como já afirmamos a Nova Museologia começou na
França, mas também se expandiu em outros lugares, especialmente em Quebec.
Segundo Fernandez (1999, p. 82) os parâmetros da Nova Museologia são:
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democracia cultural (respeito à diversidade cultural e valorização da própria


cultura de cada grupo); novo paradigma (da monodisciplinariedade à
multidisciplinariedade, do público à comunidade, do edifício ao território);
conscientização da comunidade da existência e valor de sua própria cultura;
modelo museológico aberto e interativo, tendo por objeto o patrimônio originado
da comunidade; diálogo com os sujeitos, com a participação ativa da comunidade
catalisando as necessidades da mesma; método colocado na exposição, ou seja, a
exposição passa a ser um método como um dos mais importantes instrumentos de
diálogo e conscientização.
Sendo assim, os museólogos se preocupam com todo esse enorme acervo
acumulado nos museus tradicionais, principalmente das grandes potências, e sua
vinculação, ou não, com as questões contemporâneas. Como os museus podem
dialogar e ou participar dessas questões? Os museus tradicionais não se
preocupavam com a comunicação e participação do público visitante como já
afirmamos anteriormente. Já a Nova Museologia devido a toda essa problemática
exposta, tem tido na questão educacional um dos seus alicerces.
Para finalizar este item resta-nos esclarecer que as expressões ecomuseu e
museu comunitário são muito utilizados por diversos pesquisadores, para alguns
tem o mesmo significado, para outros não. No subitem abaixo abordaremos e
analisaremos esse assunto entendendo que tais palavras não são sinônimas.
75

3.2
O que são os museus comunitários e ecomuseus? Para que e por
que museus comunitários e ecomuseus?

Como abordamos no capítulo 1 a importância da memória coletiva foi


reconhecida a partir da 2ª metade do séc. XX. A memória sempre tem uma mão-
dupla, ou seja, contempla o momento presente e o tempo passado que se está
lembrando. Sendo assim, podemos notar que nos museus, os objetos nos
convidam a lembrarmos. São essas marcas deixadas do passado que nos permitem
lembrar ou, quando não existem, esquecer. Chagas (2002) afirma no trecho abaixo
que esse jogo de lembrar e esquecer estão presentes em todo o tipo de museu, quer
tradicional, quer no “novo” museu.

“Nos grandes museus nacionais e nos pequenos museus voltados para o


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desenvolvimento de populações e comunidades locais, nos museus de arte,


nos de ciências sociais e humanas, bem como nos de ciências naturais o jogo
da memória e do poder está presente, e em consequência participam do jogo
o esquecimento e a resistência. Este jogo concreto é jogado por indivíduos e
coletividades em relação. Não há sentido imutável, não há orientação que
não possa ser refeita, não há conexão que não possa ser desfeita e refeita.”
(id, p 69)

Sabemos que a memória de uma época passada sempre pode ser


questionada, pode ser reinterpretada, reconstruída, por isso a fidelidade aos fatos é
sempre uma questão crucial nos estudos de memória e pode ser interrogada pela
crítica histórica. A tensão entre Memória e História está sempre presente nos
museus e em todos os lugares de memória (Ricoeur, 2007).
Para as comunidades subalternizadas é importante buscar um senso de
justiça através de uma memória feliz (id). É fundamental o resgate da história, da
luta de comunidades populares e/ ou de favelas pela posse da terra, pela melhoria
da qualidade de vida, pela ampliação do uso aos direitos básicos etc. Também já
afirmamos que a memória é um dever, um bem comum, uma necessidade jurídica,
moral e política (Sarlo, 2007). Sendo assim, os ecomuseus e museus comunitários
surgem na demanda do movimento social
A concepção museal proposta por Varine e outros participantes da Nova
Museologia levou vários especialistas a criarem o quadro comparativo abaixo
(Chagas, Memória e Poder, 2000, p. 5) até hoje utilizado:
76

MUSEU TRADICIONAL = edifício + coleção + público


ECOMUSEU/ MUSEU NOVO = território+ patrimônio+ população (comunidade)

Chagas (2000) nos alerta que o conceito de território exige cuidado, pois a
delimitação de um território também pode ser excludente e perversa. E acrescenta
a isso a tensão territorialização e desterritorialização como afirma no trecho
abaixo:

“Qual é afinal de contas o território do humano? Arrisco-me a pensar que as


práticas ecomuseológicas não têm sido sempre de territorialização, ao
contrário elas movimentam-se entre a territorialização e a
desterritorialização, sem assumir uma posição definitiva.” (id, p. 6)

Sendo assim, Chagas (id) nos fala sobre a ambiguidade da demarcação do


território, pois a delimitação desse pode favorecer a defesa dos saberes locais e da
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resistência frente a uma cultura globalizante, porém pode também, dificultar a


troca e o fortalecimento político-cultural dos agentes museais em questão.
Segundo o próprio Varine (2005) me afirmou, na 1ª Jornada Formação em
Museologia Comunitária13, ecomuseu e museu comunitário – para ele - são a
mesma coisa, como afirmamos anteriormente. Por outro lado, há autores que
entendem que ecomuseu e museu comunitário são diferentes, pois o ecomuseu
comportaria, também, a questão do território e muitas vezes não teria uma sede
específica para o museu, já que envolve todo o território e o patrimônio cultural e
natural daquela determinada comunidade.
Sendo assim, entendemos que o Museu da Maré constitui-se como um
museu comunitário e não fundamentalmente, um ecomuseu, tendo em vista não
envolver diretamente o território da Maré em sua configuração - o que nada
impede que possa vir a se constituir enquanto ecomuseu futuramente, caso passe a
englobar de modo mais central parte do espaço territorial “mareense”. Sobre isso,
resta-nos remeter à própria fala de Varine (id) quando afirma que:

“(...) Deixemos evoluir o termo, cujos avatares sucessivos, de toda maneira,


têm pouco a ver com o Museion de Alexandria e admitamos que ele possa
ter formas diferentes, em função de objetivos igualmente diferentes. Porém,
prossigamos o debate entre pessoas de boa vontade e continuemos a observar
o que se passa nas comunidades e a tirar disso os ensinamentos. (id, p.14)

13
A I Jornada Formação em Museologia Comunitária (sobre ecomuseus e museus comunitários)
ocorreu em Santa Cruz/ RJ em outubro de 2009.
77

Já afirmamos no item anterior que ecomuseu e museu comunitário não são a


mesma coisa para alguns autores, embora o próprio Hugue Varine não veja
diferença fundamental entre um e outro. Porém, entendemos que o conceito de
museu comunitário embora pautado nos princípios da Nova Museologia em
diversas das características do ecomuseu, como: patrimônio e protagonismo
comunitário, não apresenta a configuração do território físico propriamente dito
como característica fundamental e sim, os sujeitos e relações sociais que nele se
desenvolvem.
Os museus comunitários trazem uma nova concepção de museu, onde
segundo Chagas (2008) é importante não apenas democratizar o acesso aos
museus, mas democratizar a própria concepção de museu. Os Museus
Comunitários e os Ecomuseus são um tipo de museu que representam a(s)
cultura(s), a(s) história(s) e a(s) memória(s) de um ou mais grupos socialmente
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excluídos.
O ecomuseu envolve todo o patrimônio cultural e natural da comunidade.
Para Bellaigue (1992), são características para a constituição de um ecomuseu:
(1) identificar um território e seus habitantes, além de seus desejos e necessidades;
(2) atuar com os habitantes da comunidade, já que estes são os verdadeiros
herdeiros do passado e atores do presente;
(3) admitir que não seja necessário uma coleção para a existência de um museu.
Segundo Santos (2008), Hugues de Varine foi o mais inovador na
participação da Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972, na defesa da
existência dos museus comunitários e ecomuseus, como nos mostra o trecho
abaixo do próprio Varine:

“Esquecia-se, assim, aquilo que havia se constituído, durante mais de dois


séculos, na mais clara vocação do museu: a missão de coleta e conservação.
Chegou-se, em oposição, a um conceito de patrimônio global a ser
gerenciado no interesse do homem e de todos os homens (Varine, 1995,
p.18)

Através da leitura dos textos de Varine, segundo Priosti (2008), podemos


relacionar os conceitos de ecomuseu, patrimônio e desenvolvimento para tentar
entender porque, como e para quê uma sociedade constrói um museu, onde o
patrimônio é a própria vida natural e cultural daquele território.
78

“Por outro lado, se a investigação se fundamenta nas mais recentes


experiências museológicas, paralelas às convencionais, podem-se apresentar
a museologia comunitária e a ecomuseologia territorial de desenvolvimento
como alternativas de sucesso na construção da memória. Percebe-se que,
com ela, o desenvolvimento humano e comunitário é um potencial
importante para a formulação e gestão de políticas públicas coerentes com os
desejos de promoção da paz e da justiça social, na geração, captação e gestão
de recursos econômicos, culturais e naturais, através da propagação da
esperança, compreensão, ousadia e confiança, capazes de criar cidadãos
transformadores, conscientes de que sua participação cívica e política,
individual ou coletivamente organizada. Nesse caso, a construção da
memória pode contribuir para o redesenho de seu futuro comum.” (Priosti,
2008, p.2-3)

A Nova Museologia reconhece a contribuição de Paulo Freire


fundamentando seus princípios no conceito de patrimônio integral partilhado pela
comunidade internacional a partir da Mesa Redonda de Santiago do Chile, já
citada anteriormente.14
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Os ecomuseus e os museus comunitários no Brasil e no mundo procuram


revisitar o processo criador de subjetivação e de construção de memória como
resistência a uma nova ordem globalizada, a uma museologia estandardizada e/ ou
homogeneizada. Estão vinculados aos processos de transição democrática
tentando responder a situações de opressão, abandono ou esquecimento.
O México foi pioneiro no surgimento dos primeiros museus comunitários,
baseado na concepção de educação popular, processo teórico-metodológico de
educação não formal de uma comunidade ou grupo local. Os museus comunitários
mexicanos acabaram por delinear os primeiros caminhos da Nova Museologia,
trazendo novas concepções museológicas, baseadas em novas teorias de pesquisa
social, novas linguagens tecnológicas, com novas formas de conservar e guardar
acervos. Porém, cabe relembrar que é na França, nos Anos 70, que acaba surgindo
o primeiro ecomuseu.
Na Nova Museologia a exposição é um método de trabalho em diálogo
permanente com a comunidade (Marc Maure, apud: Fernandez, 1999, p.145), já
que o museólogo e a comunidade estão em permanente diálogo para o estudo,
preservação e difusão da cultura da mesma. A exposição é um dos meios mais
úteis para diálogo e conscientização, incluindo o público como protagonista.

14
Paulo Freire foi convidado a participar da Mesa Redonda em Santiago do Chile em 1972, mas o
Brasil, que vivia sob o regime da ditadura militar, acabou por impedir Paulo Freire de participar
desse evento.
79

O Museu Novo por si só não é incompatível com o museu tradicional, mas


gera diferentes atitudes e comportamentos com a comunidade originados de
concepção antropológica de serviço e desenvolvimento social. O povo sente-se
proprietário do museu devido a sua participação ser direta e ativa. Segundo
Fernandez (id, p. 142) com isso reforça-se a consciência de um povo por sua
história e sua atração pela identidade histórica. Ocorre a construção de uma
memória outra, que não a memória institucionalizada e/ ou oficial. Porém, cabe
lembrar que os museus são herdeiros de memória e de poder (Chagas, 2000, p. 2)
e nem os museus comunitários e ecomuseus escapam desse “princípio”
museológico.
Ao estudarmos todas essas questões não podemos deixar de nos questionar
sobre qual é a utilidade dos museus, particularmente dos museus comunitários.
Para que servem os museus em comunidades populares e/ ou favelas? Essa
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pergunta nos remete à complexidade da memória, ou seja, o que preservar/


lembrar e/ ou esquecer. Paul Ricoeur (2007) nos deixa claro que é impossível falar
de memória sem falar de esquecimento, como já afirmamos anteriormente. A
citação a seguir nos coloca o que o autor chama de esquecimento ocioso.

“Uma terceira pista se oferece a explorar: a de um esquecimento que não


seria mais nem estratégia, nem trabalho, um esquecimento ocioso. Ele seria
um duplo da memória, não a título de rememoração do advento, nem de
memorização das habilidades, nem tampouco, de comemoração de
acontecimentos fundadores de nossa identidade, mas de disposição
preocupada instalada na duração. De fato, embora a memória seja uma
capacidade, o poder de fazer-memória, ela é mais fundamentalmente uma
figura da preocupação, essa estrutura antropológica básica da condição
histórica.” (id, p. 511)

É via memória coletiva social que guardamos um conjunto de lembranças e


referências culturais comuns a um grupo, selecionamos alguns fatos e esquecemos
outros, para isso existem os museus e outros centros de memória. Logo, não
poderíamos negar o direito às comunidades populares de possuir o seu próprio
museu. Se os museus de elite representam uma determinada classe social, os
museus comunitários e ecomuseus representam (ou tentam representar) as
camadas populares. Esse binômio inseparável memória e poder é explicitado por
Chagas (2002) na citação abaixo:
80

“Reconhecer que existem relações entre o poder e a memória implica em


politizar as lembranças e os esquecimentos. A memória -voluntária ou
involuntária, individual ou coletiva - é, como se sabe, sempre seletiva. O seu
caráter seletivo deveria ser suficiente para indicar as suas articulações com
os dispositivos de poder. São essas articulações e a forma como elas
atravessam e utilizam determinadas sobrevivências, representações ou
reconstruções do passado no presente que pretendemos estudar, partindo do
princípio de que nenhuma forma de relação com o passado é, em si mesma
(Santos, 1993: p.83), emancipadora ou coercitiva”. (id, p. 44-45.)

Porém, resta-nos a interrogação: por que é importante preservarmos as


tradições, valores, língua, costumes de um povo? Porque é isso o que gera um
sentimento de pertencimento a um determinado grupo e não a outro (Le Goff, 1990).

3.3
Panorama geral dos museus comunitários no Rio de Janeiro
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Podemos entender o contexto de surgimento e quase boom de tantos museus


comunitários e ecomuseus na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil como um todo,
pois esses são capazes de trazer um sentimento e senso de justiça social com
certeza legítimo. Conta-se a história daquelas comunidades que são tratadas,
vistas pela sociedade e pelo poder público quase como que invisíveis, sem o
acesso muitas vezes aos chamados bens básicos. Daí, entendermos haver
legitimidade a priori na criação e existência desse tipo de museu.
Varine (2007, p.63) afirma que embora os museus comunitários e locais
cresçam cada vez mais em número, por outro lado sofrem cada vez mais, no
mundo todo, de falta de meios e de pessoal academicamente formados. Afirma,
também, que bem poucos desses museus são de fato comunitários, no sentido
pleno do termo.
O Ecomuseu de Itaipu (PR) é considerado o primeiro ecomuseu brasileiro
(Priosti, 2007) e foi criado em 1987. Foi a primeira vez que se usou o conceito de
ecomuseu no Brasil. Esse ecomuseu surge da criação do empreendimento Brasil-
Itaipu Binacional e foi feito para promover a integração regional e valorizar a
memória e a educação ambiental, buscando um desenvolvimento sustentável e o
fortalecimento da imagem institucional.
Em diversos estados do Brasil encontramos museus comunitários ou
ecomuseus, como por exemplo: no Pará, o Ecomuseu da Amazônia criado em
81

200715; na Bahia, o Museu Comunitário Mão Mirinha e Portão surgido da


musealização de um terreiro de candomblé em 2004; no Rio de Janeiro, o
Ecomuseu da Ilha Grande criado em 2008.
Inúmeras vezes os ecomuseus e os museus comunitários não começaram
como museus e sim, como movimentos comunitários, por exemplo: na favela da
Rocinha, no Rio de Janeiro, já havia uma Associação de Moradores atuante nas
reivindicações dos direitos da população local, esta sente a necessidade de
resgatar sua memória e cria o Centro de Memória da Rocinha e a partir dele está
construindo o Museu de História da Rocinha – Sankofa.
Abaixo elencaremos uma breve caracterização dos ecomuseus e museus
comunitários no município do Rio de Janeiro até final de 2010:

1) O Ecomuseu do Quarteirão Cultural do Matadouro, também conhecido


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como Ecomuseu Comunitário de Santa Cruz se localiza no quarteirão


histórico do Matadouro em Santa Cruz e foi criado em 1983, não se
localiza em região de favela. Foi o primeiro ecomuseu criado no
município do Rio de Janeiro. Segundo Priosti (2007), a comunidade de
Santa Cruz só percebeu que tinha um ecomuseu ao participar do I
Encontro Internacional de Ecomuseus realizado no Rio de Janeiro em
1992, sob as influências da ECO-92. Neste encontro se descobriu
protagonista desde 1983 a partir das ações do NOPH – Núcleo de
Orientação e Pesquisa Histórica (id);

Foto 1 de Helena Araújo - Interior do Ecomuseu de Santa Cruz

15
Este ano ocorrerá o IV Encontro Internacional de Ecomuseus e Museus Comunitários – IV
EIEMC no Ecomuseu da Amazônia no Pará entre 12 a 16 de junho de 2012.
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82

Foto 2 de Helena Araújo - Fachada da sede do Ecomuseu de Santa Cruz

2) O MUF (Museu de Favela) se localiza no Complexo Pavão-Pavãozinho e


Cantagalo e sua sede fica na Estrada do Cantagalo (é mais envolvido com
o turismo levado para a comunidade do que os outros museus semelhantes
no Rio de Janeiro). Foi criado em 2009. Tem como característica singular
a narração da história local contada através de grafites pintados nas
paredes das casas existentes no percurso do ecomuseu.

Foto 3 de Helena Araújo- Associação dos Moradores do Cantagalo no percurso do MUF


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83

Foto 4 de Helena Araújo- Início do percurso do MUF


Foto 5 de Helena Araújo–
história local contada nas paredes

3) Museu do Horto, no Caxinguelê, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro foi


criado recentemente em novembro de 2010. Fica localizado numa área de
grande valorização fundiária na cidade do Rio de Janeiro. Por isso, vive
grande tensão na luta dos antigos moradores permanecerem morando
naquela região do Horto Florestal.

Foto 6 de Helena Araújo - Percurso no território do Museu do Horto


84

Foto 7de Helena Araújo - Percurso no território do Museu do Horto


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4) O outro museu é o Museu da Maré, que por ser nosso estudo de caso será
abordado separadamente no capítulo 4, onde narramos a história da Maré
relacionando-a à criação do próprio Museu da Maré (subitem 4.3.)

Foto 8 de Helena Araújo– Fachada da entrada do Museu da Maré


85

Enfim, nesse capítulo de nossa pesquisa elencamos uma pequena história


dos museus e da Nova Museologia, caracterizando o surgimento dos mesmos
desde os “Gabinetes de curiosidades” até ao protagonismo comunitário dos
ecomuseus. Além disso, conceituamos e diferenciamos ecomuseus e museus
comunitários e pudemos perceber o quanto é polêmica essa conceituação.
Também, desenhamos sutilmente um panorama brasileiro sobre os ecomuseus e
museus comunitários privilegiando aqueles surgidos na cidade do Rio de Janeiro
até ao final de 2010. Refletimos sobre o que difere um museu tradicional de um
museu comunitário e ecomuseu e sua intrínseca relação com o poder – poder da
memória e memória do poder (Chagas, 2002).
Porém, uma das questões cruciais nesses novos museus é que a memória
poderá estar a serviço do passado ou do presente, pode servir à emancipação dos
indivíduos ou à sua submissão, pois “O modelo não tem funcionamento
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automatizado e a prática tem permitido compreender que ecomuseus também se


tradicionalizam.” (Chagas, 2000, p.6). Sendo assim, entendemos que esta é uma
reflexão e problemática que permeia nosso estudo sobre as relações entre
memória, educação e o Museu da Maré.
Podemos situar nossa pesquisa no âmbito do interesse recente pelos museus
como espaços de representação do outro e de grande potencial educativo - ou
pedagógico, como preferem denominar alguns pensadores -, além de guardiões e
divulgadores de culturas e ideologias de grupos sociais específicos. Por isso,
nosso próximo capítulo é entender onde fica a educação nisso tudo, conceituar e
diferenciar espaço educativo formal, não formal e informal. Tentar entender a
missão educativa dos museus (Appadurai e Breckenridge, 2007) e dos “lugares de
memória” em geral.
4
Onde fica a educação nisso tudo?

“Tal como a educação, as outras instâncias culturais também são


pedagógicas, também têm uma “pedagogia”, também ensinam alguma
coisa. Tanto a educação quanto a cultura em geral estão envolvidas em
processos de transformação da identidade e da subjetividade.” (Silva,
1999, p.139)

Nesse capítulo pretendemos analisar e diferenciar os conceitos de educação


formal, não formal e informal. Além disso, analisaremos a relação dos espaços
educativos não formais com o possível fortalecimento do sentimento de pertença e
empoderamento de identidades locais dos diferentes grupos sociais através da
construção das memórias e da ressignificação das histórias locais, principalmente
nos chamados “lugares de memória”.
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4.1
Não é só na escola que se educa...

A educação é uma prática social complexa, multiforme, permanente, por isso ela
não acontece só na escola, mas também nas bibliotecas, nos museus, nos cinemas, com
a televisão, a internet, na família, no clube, no bairro, com a vizinhança etc.

4.1.1
A educação não formal não é informal

Sabemos que muito se tem falado sobre educação formal, que tem como
lócus básico a escola. Com certeza a instituição escolar continua sendo o espaço
privilegiado do saber sistematizado na formação dos indivíduos. Mas, sabemos
também, que como seres humanos temos a capacidade de aprender em outros
lugares, muitas vezes de forma mais eficiente e prazerosa e não sistematizada.
Quais são esses lugares? Como eles se organizam? Qual a diferença então, entre
educação formal, não formal e informal? Como as práticas educativas desses
lugares podem fortalecer identidades?
São essas questões e suas relações com as práticas educativas de
empoderamento social e possível fortalecimento identitário através da construção
da memória coletiva que pretendemos analisar.
87

Na perspectiva dos Estudos Culturais, toda cultura é pedagógica e toda


pedagogia é cultural (Silva, 1999), como está na epígrafe desse capítulo. Por isso,
diversos programas de televisão, por exemplo, mesmo que não tenham o objetivo
explícito de ensinar, educam. Por outro lado, toda pedagogia está inserida num
contexto histórico e cultural. Todo conhecimento se constrói, portanto, num
sistema de significados historicamente referenciados.
Portanto, a escola não é o único “lugar de conhecimento” e de transformação de
subjetividades, como nos afirma Silva (1999), ela é o espaço da educação formal, da
construção sistematizada do conhecimento. Existem outros espaços de saber que
também educam, espaços não formais de educação, como já afirmamos anteriormente.
Primeiramente cabe-nos diferenciar e caracterizar educação formal, não
formal e educação informal. Sendo assim, paralelo à educação formal e não
formal, também existe a educação informal. Segundo Cazelli e Vergara (2007), a
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intencionalidade da instituição é o principal traço que diferencia a educação não


formal da informal, como podemos perceber no trecho abaixo:

“Reunindo essas características acima apresentadas, falta assinalar uma que


é o destaque da educação não formal e que a diferencia, por exemplo, da
informal. Esta característica é a intencionalidade de instituição, bem como a
dos idealizadores das ações (no caso dos museus, os conceptores das
exposições e das atividades de cunho educacional/ cultural), com objetivos
de unir cultura, saberes e lazer.” (Cazelli & Vergara, 2007, p.7 )

Por outro lado, em nossa pesquisa interessa-nos o estudo dos espaços


educativos não formais, pois todos os lugares, como os museus, arquivos etc,
possuem cultura própria, especificidades. Neste caso interessa-nos analisar a
dimensão educativa dos museus comunitários como “lugares de memória” e
portanto, de possibilidades de reforços identitários.

4.1.2
Contexto e fatores do desenvolvimento da educação não formal

Vamos examinar o contexto e fatores do desenvolvimento da educação não


formal, principalmente segundo o ponto de vista teórico de Jaume Trilla & Elie
Ganem (2008) e Maria da Glória Gohn (2010).
Primeiramente cabe lembrar que a educação não escolar sempre existiu
desde os primórdios da humanidade. Só a partir do século XIX a escola foi alçada
88

a paradigma da ação educativa. Nos séculos XIX e XX o objetivo das políticas


educacionais foi primordialmente o acesso de todos à escola o maior tempo
possível. Segundo Trilla (id), nessa época forma-se uma perspectiva pedagógica
em torno da escola, pois a educação passa a ser vista como essencial a toda a
sociedade e a escola é apenas uma de suas formas; mesmo assim, nas sociedades
escolarizadas, a escola é apenas um momento do processo educacional global.
Ainda segundo o pensamento desenvolvido por Trilla (id), a estrutura
educacional impõe limites. A escola não está apta para todo tipo de objetivo
educacional. Há, portanto, necessidade de se criar meios e ambientes educacionais
complementares àquela que passa a ser denominada de “não formal”.
Surgem propostas pedagógicas e discursos da educação não formal a partir
da 2ª metade do século XX, principalmente a partir dos anos 60 e 70. Esse
contexto se originou devido a fatores sociais, econômicos, políticos etc, como por
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exemplo, a demanda por educação de setores tradicionalmente excluídos (adultos,


minorias étnicas, idosos etc.). O contexto da Guerra Fria, os movimentos da
Contracultura, o Movimento Negro e outros movimentos impulsionam diferentes
grupos na luta por seus direitos políticos e sociais.
No Brasil, a teorização da educação não formal pode ser relacionada ao
surgimento da pedagogia libertadora de Paulo Freire nos anos 50 e 60, voltada
para a educação de adultos trabalhadores (Trilla, id).
Além disso, trabalhos como os de P.H.Combs, (A crise mundial da
educação, 1968), de Edgar Faure (Aprender a ser, 1972), e de Jacques Delors
(Educação – Um tesouro a descobrir, 1996 ) foram fundamentais para se entender
o desenvolvimento que se processou no setor educacional não formal.
Segundo Trilla (id), o que caracteriza a educação não formal é a
metodologia, ou o procedimento, ou o agente que gera o processo educacional.
Para este autor a educação formal compreenderia o “sistema educacional”
institucionalizado, graduado no tempo”; já a educação não formal seria toda
atividade organizada, sistemática, educativa, realizada fora do marco do sistema
oficial que facilite aprendizagens; e a educação informal, um processo
assistemático em que as pessoas adquirem e acumulam conhecimentos,
habilidades, atitudes na interação com o meio durante toda a vida.
89

Podemos fazer um paralelo no caso da educação informal com o que Nilda


Alves (1999) denomina redes educativas do cotidiano 16, ou seja, são as práticas,
os valores e saberes transmitidos num determinado universo cultural.
Para Trilla (id), segundo o critério metodológico, a educação não formal
seria aquela que se afasta dos procedimentos escolares convencionais. Segundo o
critério estrutural, a educação formal e a não formal se distinguiriam por sua
inclusão ou exclusão do sistema educativo regrado. Porém, a educação não
formal, por situar-se fora do sistema de ensino regrado, usufrui de características
que facilitam certas metodologias. Define então, a educação não formal como:

“Conjunto de processos, meios e instituições diferenciadamente concebidos


em função de objetivos explícitos de formação ou instrução não diretamente
voltados à outorga dos graus próprios do sistema educacional
regrado”.(Trilla, id, p. 42)
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Segundo Trilla (id), a educação não formal engloba diversos âmbitos como:
no trabalho (programas de reciclagem profissional, escolas-oficinas etc); no lazer e
na cultura (animação sociocultural, pedagogia do tempo livre etc); na educação
social (educadores de rua, programas para penitenciários etc); na própria escola
(atividades extracurriculares, visitação a museus, a outras instituições culturais etc).
Por outro lado, Ghanem (2008) afirma que a educação formal decorre de um
conjunto de mecanismos de certificação, além de referendar, também, seu caráter
sistemático e esquemático. Caracteriza o campo da educação formal como sendo
separado ou até contrário ao da educação não formal. Além disso, chama atenção
que na educação não formal os conteúdos, ao contrário da educação formal, são
selecionados e adaptados levando em consideração as necessidades autóctones e
imediatas das suas áreas de atuação, sendo mais contextualizados, funcionais, de
caráter “menos abstrato e intelectualista”. Por fim, frisa a não obrigatoriedade da
educação não formal de acoplar-se a estruturas, hábitos e formas organizativas
próprias da escola (calendários, horários e aspectos operacionais).
Cabe lembrar que a educação formal, não formal e informal se intercruzam
mutuamente. Por exemplo: na escola, os alunos recebem a educação formal
sistematizada, com a possibilidade da inclusão de atividades extracurriculares

16
Rede educativa do cotidiano é uma expressão cunhada por Nilda Alves em diversos de seus
escritos, como “O Sentido da Escola” (1999).
90

(educação não formal), além dos processos educacionais informais que resultam
das interações não planejadas entre os próprios alunos (educação informal).
Segundo Ghanem (2008) a educação não formal pode ser uma alternativa para
suprir as carências da educação formal para as classes menos favorecidas. Nesse
aspecto nos ancoramos novamente em Trilla (2008) quando afirma que não
podemos perder a crítica sobre a educação não formal, tendo em vista que ela pode
ser tão maléfica, elitista ou classista quanto à educação formal (id, p.54) porque
também pode ser tão alienante, burocrática, ineficiente, cara, obsoleta, estática,
manipuladora, estereotipada e uniformizadora quanto a formal. A educação não
formal não vai resolver magicamente todos os problemas da educação formal.
Assim como Trilla (id), Gohn (2010) entende que o aprendizado gerado e
compartilhado na educação não formal não é espontâneo, há intencionalidades e
propostas.
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Maria Glória Gohn (id) tem diversos pontos de encontro teóricos com Trilla
(id), porém em alguns se distancia dele. A seguir apresentaremos alguns aspectos
importantes do pensamento desta autora para nossa pesquisa.
A concepção de Gohn (id) sobre educação não formal se articula à educação
cidadã, pois ela entende que seu eixo deve ser formar para a cidadania e
emancipação social dos indivíduos. Além disso, afirma que essa educação está
muito articulada à ideia de cultura, tem um campo próprio, intencionalidades e
vem se consolidando desde as últimas décadas do século XX, embora para a mídia
e o senso comum não seja considerada educação porque não está constituída por
processos escolarizados.
Não discorda de Trilla (id) quanto à intencionalidade, mas apresenta uma
visão singular quando frisa que o eixo da educação não formal é formar para a
cidadania e emancipação social dos indivíduos.

“A intencionalidade não é o único marco diferencial entre a formal e a não


formal, porque existe nas duas, mas é ela que demarca um objetivo
específico na educação não formal – formar para a cidadania.” (id, p. 34)

Afirma que a educação que recebemos dos pais é a educação informal, já a


que recebemos na escola denomina-se educação formal e a educação do mundo,
aquela advinda da experiência, dos espaços e ações coletivos cotidianos chama-se
educação não formal.
91

As áreas, que segundo Gohn (id), demandam a educação não formal são as
áreas de formação para a cidadania e a de trabalhos voltados para a emancipação
social de indivíduos, grupos e coletivos sociais. A educação para a cidadania
incorpora a educação para a justiça social; os direitos humanos, sociais, políticos e
culturais; a liberdade; a igualdade e diversidade cultural; a democracia; a favor do
fim dos preconceitos e qualquer forma de discriminação; o exercício da cultura e
manifestações das diferenças culturais (Gohn, id.).
Sendo assim, Gohn (id) articula sua concepção de educação não formal ao
campo da educação cidadã, como fica registrado no trecho abaixo:

“(...) Na educação não formal, essa educação volta-se para a formação de


cidadãos (as) livres, emancipados, portadores de um leque diversificado de
direitos, assim como de deveres para com o (os) outro(s).
Chegamos portanto ao conceito que adotamos para educação não
formal. É um processo sociopolítico, cultural e pedagógico de formação para
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a cidadania, entendendo o político como a formação do indivíduo para


interagir com o outro em sociedade. Ela designa um conjunto de práticas
socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve
organizações/ instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como
uma multiplicidade de programas e projetos sociais.”(id, p. 33)

Na educação formal, nas escolas, Gohn (id) afirma que o educador é


fundamentalmente o professor; já na educação não formal existe o educador social,
mas o grande educador é o “outro”, aquele com quem interagimos ou nos integramos;
e na educação informal, são os pais, a família, em geral os amigos, os vizinhos, os
colegas de escola, a igreja paroquial, os meios de comunicação de massa etc.

“(...) A não formal ocorre em ambientes e situações interativas construídos


coletivamente segundo diretrizes de dados grupos, usualmente a participação
dos indivíduos é optativa, mas ela também poderá ocorrer por forças de
certas circunstâncias da vivência histórica de cada um, em seu processo de
experiência e socialização, pertencimentos adquiridos pelo ato da escolha em
dados processos ou ações coletivas. Há na educação não formal uma
intencionalidade na ação, no ato de participar, de aprender e de transmitir ou
trocar saberes. A informal opera em ambientes espontâneos, onde as relações
sociais se desenvolvem segundo gostos, preferências ou pertencimentos
herdados.” (Gohn, 2010, p. 18)

Gohn afirma que a expressão educação não formal se espalha nos anos 2000
e atribui a Combs (1968), o reconhecimento e a popularização de outras
concepções de formas e meios educacionais feitos fora da escola, mas com
objetivos educacionais. Na França, Alemanha e Espanha temos publicações com a
92

denominação de educação social, no campo da pedagogia social segundo Gohn


(id), que configuram a educação não formal.
Usualmente a educação não formal é definida pelo que não é, segundo Gohn,
mas é importante que passemos a defini-la pelo que é. Normalmente contrapõe-se
educação formal a não formal, mas a autora não concorda e acha que elas se
complementam. Porém não é complementar no sentido de fazer o que a escola não
faz, mas sim, na ideia de desenvolver campos de aprendizagem específicos.
A educação não formal não possui um caráter normatizador, nem
instituições certificadoras de titularidades. Lida com outra lógica de espaço e
tempo. Não tem currículo definido a priori, tanto em relação aos conteúdos, temas
ou habilidades a serem trabalhadas.
Ainda, essa autora afirma que a educação não formal é diferente da educação
informal, que é herdada e naturalizada, enquanto a primeira é adquirida de modo
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intencional. Também, capacita os indivíduos a se tornarem cidadãos do mundo. Os


objetivos são construídos durante a interação vivenciada, criando-se um processo
educativo. Uma meta na educação não formal é a transmissão da informação de
forma não escolarizada e a formação política e sociocultural dos indivíduos.
Gohn (id) lista os atributos de cada tipo de educação diferenciando a
educação informal da não formal, ou seja:
- educação informal: o conhecimento não é sistematizado, atua no campo
das emoções e dos sentimentos, é um processo permanente e não
organizado;
- educação não formal: não é organizada por séries, idades, conteúdos; atua
sobre aspectos subjetivos do grupo; trabalha e forma a cultura política de
um grupo; desenvolve laços de pertencimento; ajuda na construção da
identidade coletiva do grupo; atualmente dá-se destaque à mesma; ajuda na
formação do capital social de um grupo, que Gohn prefere chamar de
acervo sociocultural e político; é fundamentada, segundo ela, em vários
critérios de solidariedade e identificação de interesses comuns, parte da
cidadania coletiva e pública do grupo.

O processo político-pedagógico de aprendizagem e produção de saberes da


educação não formal possui várias dimensões para Gohn, dentre elas:
aprendizagem política dos direitos dos indivíduos como cidadãos, ou
93

aprendizagem para a cidadania; aprendizagem dos indivíduos para atuarem no


trabalho; aprendizagem pela cultura, de conteúdos que possibilitem aos indivíduos
fazer uma leitura do mundo do ponto de vista de compreensão do que se passa ao
seu redor, gerada pelo acesso a recursos culturais como museus, bibliotecas,
shows, palestras etc. Esses são aprendizados que se desdobram em auto-
aprendizagem e aprendizagem coletiva adquiridas a partir da experiência em
ações coletivas, organizadas por eixos temáticos (questões étnico-raciais, gênero,
geracionais e de idade etc) com apoio de organizações institucionalizadas ou não.

“As práticas da educação não formal se desenvolvem usualmente extramuros


escolares, nas organizações sociais, nos movimentos sociais, nas associações
comunitárias, nos programas de formação sobre direitos humanos, cidadania,
práticas identitárias, lutas contra desigualdades e exclusões sociais.” (Gohn,
id, p. 36)
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Além disso, Gohn afirma que os resultados da educação não formal são:
consciência de como agir em grupos coletivos; construção e reconstrução da
concepção de mundo; contribuição para um sentimento de identidade com uma
dada comunidade.
Sendo assim, veremos em seguida como esses espaços educativos não
formais também perpassam os territórios da memória.

4.2
Os “lugares de memória” também educam

A expressão “lugares de memória” foi cunhada por Pierre Nora (1993) e


engloba socialmente os museus, escolas, universidades, sindicatos, fundações
culturais, ruínas, conjuntos arquitetônicos, agremiações, clubes, arquivos, centros
de documentação, dentre outros.
Os “lugares de memória” são produzidos pelas diferentes sociedades através
do tempo para guardar a história a ser contada (id).
Para Nora os “lugares de memória” são os lugares onde se ancora a nossa
memória coletiva. É neles que se entrelaçam memórias individuais e coletivas,
que se materializam as memórias de camadas populares ou elites. Eles podem ser
materiais ou não materiais, como o sabor da comida, os ritmos musicais, os
valores religiosos etc.
94

Como já abordamos no capítulo 2, nos “lugares de memória”, por definição,


se entrelaçam relações de poder (Chagas, 2000, 2002). Logo, os “lugares de
memória” relacionados às camadas dominantes tem obras e práticas culturais
materiais e imateriais mais valorizadas do que aquelas das camadas populares.
Pierre Nora em seu famoso artigo intitulado Entre memória e história. A
problemática dos lugares (1993) analisa a situação do tempo presente em que a
aceleração vai gerando uma sensação de perda do passado e de um eterno
presente. Logo, surge a angustiosa necessidade humana de guardar, segurar os
vestígios do passado, os seus “restos”, devido ao efeito bombástico de tal
aceleração contemporânea.
Outro ponto importante abordado por Nora (id) é a diferenciação que faz
entre história e memória como podemos ver no trecho abaixo:
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“A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não


existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no
eterno presente, a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e
mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam, ela se
alimenta de lembranças vagas, telescópicas, cenas, censura ou projeções. A
história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso
crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta e a
torna sempre prosaica.” (id, p.9)

Gabriel (2005) afirma que o conceito de ‘lugares de memória” tem um duplo


pertencimento, são lugares híbridos, mistos e mutantes devido, dentre outros, à
mediação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, entre a memória
verdadeira e a memória alcançada pela história (Nora, id).
Concluindo, os “lugares de memória” nos dão a possibilidade de reconstruir
o passado, relembrá-lo, logo lembrar ou esquecer o que determinados grupos
sociais desejam e querem ensinar. Sendo assim, por excelência os “lugares de
memória” são espaços educativos não formais que permitem guardar o passado
(Nora), ressignificar a história, construir a memória e fortalecer valores, práticas
sociais e culturais, logo identidades por extensão. Não é isso o que os museus
tradicionais assim como, os ecomuseus e museus comunitários fazem ou desejam
fazê-lo?
5
A história da Maré, como tudo começou...

Todo dia o sol da manhã


Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços abertos
Num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real
Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal

Alagados, Trenchtown, Favela da Maré


A esperança não vem do mar
Vem das antenas de TV
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A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê

(Trecho da música Alagados, Paralamas do Sucesso)

Foto 9 do Acervo do Museu da Maré - Vista panorâmica dos “alagados” da Maré com suas
palafitas até à década de 80.
96

Para iniciarmos esse capítulo procuramos apresentar geograficamente a região da


Maré com os mapas abaixo: no primeiro podemos ver a região em relação ao estado
do Rio de Janeiro e no segundo mapa, as comunidades que constituem a Maré hoje,
com exceção de Marcílio Dias, que não está aí representada.

Mapa 1
ÁREA TOTAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO COM DESTAQUE PARA
A LOCALIZAÇÃO DO BAIRRO DA MARÉ
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Instituto Pereira Passos – Armazém dos Dados


HTTP: http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/index_bairro.htm
97

Mapa 2- BAIRRO DA MARÉ COM DESTAQUE PARA 16 COMUNIDADES17


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Mapa produzido por Luana Caruso Nóbrega - Programa de Desenvolvimento Local da Maré
Rede de Desenvolvimento da Maré/ REDES HTTP:
http://www.redesdamare.org.br/projetos/retrato-da-mare/

Ao procurarmos fontes sobre a história da Favela da Maré nos deparamos


com a pouquíssima quantidade de artigos, livros ou teses sobre o tema. Na
verdade, essa realidade também se alastra sobre outras comunidades favelizadas

17
Este mapa não inclui a delimitação da comunidade do Conjunto Marcílio Dias.
98

do Rio de Janeiro e do Brasil como mais um lamentável espelho de uma herança


colonial escravista que ainda se perpetua em formas sutis, ou não, de
discriminação e exclusão das comunidades populares que constroem este país.
Sendo assim, encontramos basicamente quatro trabalhos sobre essa temática, que
escolhemos como base, são eles: Chagas & Abreu (2007), Oliveira (2003), Silva
(2006) e Vieira (1999, 2008).
Devido à lacuna de pesquisas acadêmicas sobre o tema, os trabalhos de
Vieira (1998, 2008) crescem tornando-se fontes documentais relevantes e ele
interlocutor teórico e acadêmico privilegiado no processo de nossa pesquisa, tendo
em vista ter elaborado um histórico do surgimento e desenvolvimento da Maré
desde a época das capitanias hereditárias até os dias de hoje. Se por um lado
Vieira (id) é ex-morador do lugar, nascido e criado ali, totalmente comprometido
com suas causas sociais e políticas, por outro sua formação acadêmica como
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pesquisador na área de memória - intelectual competente e engajado nessa luta e


nesse posicionamento político e ideológico-, sua vivência e vasto conhecimento
prático e teórico do campo torna-o, também na academia, protagonista de sua
própria história registrando-a em seu trabalho intelectual, intitulado Do engenho à
favela, do mar ao chão, memórias da construção do espaço na Maré (id, 2008).
A afirmação anterior se conjuga com o trecho abaixo de Oliveira (2003)
sobre a dificuldade de informações sobre a história da Maré:

“Muito pouco da história da formação do bairro Maré foi escrito, e o pouco


do que se dispõe a respeito do assunto, pode ser encontrado em fragmentos
dispersos em documentos oficiais e livros que tratam da história geral da
cidade do Rio de Janeiro e de seus bairros.
No entanto, graças à ação militante de alguns indivíduos da Maré, em
especial pessoas ligadas ao CEASM18, estes dados vêm sendo reunidos,
ajudando a construir um histórico mais denso e substancial sobre as
ocupações e transformações urbanas do bairro. Antônio Carlos Vieira, um
dos fundadores do centro, a partir de extensa bibliografia, estudos em
arquivos e depoimentos de moradores, coletou e organizou um conjunto
de informações que deu origem ao trabalho denominado “História da
Maré” (Vieira, 2002), que contribui para a compreensão do discurso dos
militantes do CEASM sobre a região. Este texto inédito tem sido utilizado
como fonte bibliográfica para a realização de estudos e exposições, e é com
ele que passei a dialogar para a construção do histórico que se segue.”
(Oliveira, 2003, p. 33)

18
Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
99

5.1
Do mar ao “sertão” 19

Esse capítulo foi pensado tendo em vista que a essência do Museu da Maré,
seu “conteúdo” é exatamente ressignificar, narrar, ensinar a história da Maré e
construir, reelaborar as memórias locais. É claro que percebemos que cada
comunidade tem sua história peculiar e todas juntas formam um todo complexo no
contexto da região da Maré, compondo o mosaico do bairro de mesmo nome. 20.
Porém, poderíamos imaginar e pensar que há algo em comum entre tais
comunidades, o que diria Lourenço César - um dos diretores do CEASM e do
Museu da Maré por mim entrevistado -, “... há algo de universal nessa história
que perpassa todas as comunidades da Maré”, como a pesca, o carregamento da
água em “rola-rola” em tempos passados, a luta pela terra, pela sobrevivência, que
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são retratados em diversos objetos e construções existentes dentro do Museu.


A história da Maré é muito rica em detalhes, fatos históricos, lutas e
resistências, alegrias e tristezas, enfim é cheia de vida, de vida de homens e
mulheres que um dia acreditaram que poderiam até mesmo construir o seu
próprio chão, segundo expressão utilizada por Vieira (2008).
Desde os tempos coloniais a região da Maré é ocupada, pois era um refúgio
tranquilo às margens da Baía de Guanabara sem poluição, com muitas ilhas,
praias e manguezais. Naquela região havia como acidentes geográficos a Enseada
de Inhaúma, a Praia de Inhaúma, a Ponta da Pedra e a Praia do Apicú. Em frente
àquelas ficavam as ilhas do Fundão, do Pinheiro, Bom Jesus, Pindaís, das Cabras,
Baiacu e Catalão. Todas elas, no final da década de 40 e início dos anos 50, foram
anexadas à Ilha do Fundão para a construção da cidade universitária.

19
Este subtítulo baseia-se no título da dissertação de mestrado de Antônio Carlos Pinto Vieira,
defendida na UNIRIO em 2008, denominada Do engenho à favela , do mar ao chão, memórias da
construção do espaço na Maré.
20
Sobre a construção do bairro Maré temos a dissertação de Cláudia Rose Ribeiro da Silva
intitulada Maré: a invenção de um bairro, defendida na Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2006.
100

Foto 10 do Acervo do Museu da Maré - Praia do Apicú, atual região da Maré


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Os primeiros habitantes foram caçadores e coletores que ali viviam há 8000


anos atrás. Quando os portugueses chegaram viviam os índios Tupis-Guaranis,
como em vários pontos da Baía de Guanabara (Amador, 1997). Vários nomes da
região da Maré até hoje denotam a presença indígena na região, vide palavras
como: Inhaúma, Timbau, Sapucaia etc. Interessava aos portugueses a troca de
pau-brasil por meio de escambo. (Vieira, 1999, 2008)
Toda essa região foi concedida como sesmaria a Antonio da Costa, segundo
Vieira (1999):

“No mesmo ano de 1565, foi concedido outra sesmaria ao leigo Antônio da
Costa, com “700 braças ao largo do mar e 1000 pela terra dentro de Inhaúma”.
Destaca-se um fato para nós de particular interesse: o limite entre a sesmaria dos
jesuítas e a de Antônio da Costa ficava justamente na região abrangida hoje pela
Maré, designada a época como tapera de Inhaúma.” (id, p.8)

A sesmaria dos jesuítas se chamou Fazenda do Engenho Novo e de Fazenda


Engenho da Pedra a de Antonio da Costa (a primeira fazenda da região de
Inhaúma não pertencente aos jesuítas). A Coroa portuguesa dava terras à Igreja
Católica e a militares para garantir sua ocupação devido aos riscos de invasões,
ainda mais à beira da Baía de Guanabara.
Em 1570 foi aberto um porto na região, chamado Porto de Inhaúma, no final da
Rua Guilherme Maxwell, rua onde se localiza hoje o Museu da Maré. Os jesuítas
abriram esse porto para dar passagem aos produtos que vinham das fazendas para o
101

centro da cidade, principalmente açúcar e aguardente produzidos nos engenhos. O porto


comunicava principalmente São Cristóvão, Caju, centro da cidade e ilhas próximas.
Logo no seu entorno formou-se um núcleo populacional. Com a decadência do açúcar
o porto passa a escoar produções pequenas do local, principalmente das olarias da
região. Em meados do século XIX o porto entra em decadência total devido à melhoria
dos meios de comunicação terrestres, inclusive ferroviários.
A Fazenda do Engenho da Pedra ia do Porto do Caju até ao Porto de Maria
Angu, este localizado hoje em dia na Maré. Esta fazenda englobava os bairros de
Olaria, Ramos, Bonsucesso e parte de Manguinhos. Seus proprietários sempre
foram militares ou autoridades governamentais, provavelmente devido à
proximidade do litoral, para segurança do governo colonial e imperial, como
afirmamos anteriormente.
Segundo Vieira (id) o Engenho da Pedra produzia além do açúcar, milho,
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mandioca, feijão, legumes, arroz, cacau, hortaliças e frutas variadas. A partir de


meados do século XVII passou também a produzir café devido à decadência do
açúcar. Usava-se mão de obra escrava e arrendatários -que eram pequenos
lavradores- que produziam gêneros alimentícios para o centro da cidade e para a
região das minas. Da sede da antiga Fazenda do Engenho da Pedra ainda existem
ruínas onde hoje se localiza a Igreja de Nossa Sra. da Conceição de Ramos na
Favela da Igrejinha (Vieira, id).
Em meados do século XVIII cria-se a Freguesia de Inhaúma, que ia desde a
região da Praia Pequena (Benfica) até o rio Meriti.
Em 1763 com a transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro
devido ao auge da mineração, houve uma reaquecida da economia local tanto para
consumo interno como para o mercado externo, já que revitalizou-se os grandes
engenhos da região.
No século XIX as fazendas da região não eram tão rentáveis e por isso foi
necessário desmembrar e arrendar pequenas parcelas de terras a pequenos
agricultores. No final desse século apesar da Freguesia de Inhaúma ter sido
desmembrada e ter perdido 1/3 de sua área, a parte mais populosa e próxima ao
centro da cidade passa a fazer parte da freguesia criada e denominada Engenho
Novo. Porém, Inhaúma continua rural, mas próxima ao centro urbano, passa a
englobar da Praia de Maria Angu (atual Praia de Ramos) até à Praia Pequena (hoje
em dia o bairro de Benfica).
102

Com a criação da ferrovia, que em 1897 passa a ser controlada pela The
Leopoldina Railway, toda a região fica conhecida por subúrbios da Leopoldina.
Com a inauguração das estações ferroviárias desloca-se o desenvolvimento do
núcleo urbano para próximo das estações de trem e o transporte marítimo vai
declinando. Por isso, o Porto de Inhaúma vai declinando e passa a ser habitado por
pequenos proprietários rurais portugueses e italianos, além de ter próximo
atividades de olarias, onde os donos usavam os gravetos da região dos mangues
em seus fornos. Essas produções ainda saiam dali pelo porto e este passa a ter
atividades de pesca a partir dessa época (Vieira, id).
A estação de Bonsucesso torna-se agregadora em seu entorno de várias
atividades e nessa região organiza-se um núcleo urbano através da divisão de lotes
e do incentivo à construção de prédios.
O Instituto Oswaldo Cruz foi a primeira grande instituição a se instalar na
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região de Inhaúma. Primeiro instalaram-se grandes fornos para incinerar o lixo da


cidade. Em 1899 é que Campos Sales monta o Instituto Soroterápico. A
localização do Instituto Oswaldo Cruz chama atenção da cidade para melhores
meios de transporte e maior infraestrutura devido á importância daquela
instituição para nosso país (id).

Foto 11do Acervo do MIS (Museu da Imagem e do Som) - Instituto Oswaldo Cruz com Baía de
Guanabara ao fundo e Ilhas do Pinheiro e do Fundão.
103

Graças ao Instituto Oswaldo Cruz, a linda Ilha do Pinheiro foi preservada até
à década de 80, onde a instituição fazia pesquisas principalmente sobre fauna da
região. Foi usada para criação de macacos Rhesus para experiências e pesquisas
científicas, daí a população local da Maré chamar essa ilha de “Ilha dos Macacos”,
segundo Vieira (1999). A Ilha dos Macacos aparece na fala dos pescadores
entrevistados como algo paradisíaco. Em geral todos os moradores da Maré de
“meia idade” ou mais velhos se remetem à Ilha do Pinheiro com saudosismo.
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Foto 12 do Acervo do Museu da Maré - Ilha do Pinheiro, pertencente ao Instituto Oswaldo Cruz

A partir de 1902, o prefeito do Distrito Federal Pereira Passos moderniza a


cidade e com isto valoriza-se a região central, logo a população pobre começa a
ser “empurrada” para as regiões dos subúrbios. Com isso, a Freguesia de Inhaúma
começa a mudar seu perfil de rural para urbano devido à sua proximidade com o
centro da cidade (id).
O bairro de Bonsucesso começa a ter sua atual configuração em meados de
1914. Até à década de 20 a enseada de Manguinhos se manteve intacta, porém a
partir daí começaram a fazer diversos aterros que vão terminar com parte dos
manguezais da região. Em 1928 iniciam-se os primeiros aterros na região para
fazer o Aeroporto de Manguinhos.
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104

Foto 13 do Museu Aeroespacial - Região do Aeroporto de Manguinhos

Na década de 70 os aterros se estenderam em direção ao mar como depósito


de lixo sanitário do Ministério da Saúde. Na década de 80 com o Projeto - Rio nas
áreas aterradas a partir do Canal do Cunha serão feitos dois conjuntos da Maré,
que são a Vila do João e o Conjunto Esperança. Um dos diretores do Museu da
Maré em sua entrevista lembrou-se de quando ele e seus irmãos, na infância,
foram transferidos das palafitas para a Vila do João pelo Projeto Rio.

Foto 14 do Acervo do Arquivo Nacional - Aterro da década de 70 feito com o Projeto Rio
105

Segundo Oliveira (2003), os moradores pressionaram o término das obras


do Projeto Rio como podemos ilustrar no trecho abaixo:

“Concluído com bastante atraso e pressão dos moradores, que reivindicavam


o término das obras, o Projeto-Rio promoveu modificações na infraestrutura
urbana da Maré, desde a rede de abastecimento de água e canalização do
esgoto, passando pela regularização da rede elétrica e arruamento. Durante a
sua implementação foram construídos os primeiros Conjuntos Habitacionais
da Maré, que passaram a abrigar os moradores retirados dos barracos e
palafitas: Vila do João, Conjunto Pinheiro, Conjunto Esperança e Vila do
Pinheiro.” (id, p. 41)

O aterro do Arquipélago do Fundão foi feito entre 1949 e 1952 para


construção da cidade universitária, como já mencionamos. Para isto foram
anexadas 8 ilhas: Fundão, Pindaí do Ferreira, Pindaí do França, Sapucaia, Bom
Jesus, Baiacu, Cabras e Catalão interligadas através de aterro. A Ilha do Pinheiro
inicialmente não foi aterrada, isto só ocorreu no Projeto-Rio no final da década de
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70. Os aterros da região geraram o aumento dos problemas ambientais na área.

Foto 15 - Baía de Guanabara com Ilha do Fundão após anexação das outras ilhas do entorno; Ilha
do Pinheiro ainda separada e ponte de ligação com a Ilha do Governador

As pontes de acesso à Ilha do Fundão também mudaram a paisagem da


região, assim como o acesso à Ilha do Governador. Muitos trabalhadores que
foram construir a cidade universitária acabaram indo morar na Maré,
106

principalmente no Timbau e na Baixa do Sapateiro. Também, alguns


desapropriados das ilhas, foram para a Maré, principalmente na Colônia de
Pescadores da Praia de Inhaúma.
Na década de 60, com o governo de Carlos Lacerda (1961-1965) houve uma
modernização da cidade, construindo-se viadutos, túneis e parques e jardins na
zona sul e o estabelecimento e prática de uma política de remoção das favelas para
áreas distantes e desvalorizadas como a Maré. Nesta época diversas favelas da
Zona Sul foram removidas para as comunidades da Maré, principalmente Nova
Holanda, como abordamos mais adiante.
A escrita abaixo de Oliveira (2003) nos demonstra o quanto as remoções das
populações na época foram polêmicas.

“No entanto, a forte reação dos moradores fez com que a fase de remoções
não fosse totalmente implementada, limitando-se à remoção das áreas
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“palafitas” e a transferência dos moradores para construções pré-fabricadas.


Até então, segundo depoimento de moradores, a “Maré das palafitas era
símbolo da miséria nacional, como retrata a música “Alagados”, do
Paralamas do Sucesso” (Apud: Oliveira, 2003. In: Centro de Estudos e
Ações Solidárias da Maré, 2002)

Tal política de remoção das favelas permanece no governo Chagas Freitas,


com o Projeto de mesmo nome a partir de 1971, que incluiu a construção de uma
via paralela à Avenida Brasil e a remoção de parte dos favelados, o que gerou uma
reação ruim da imprensa. Essa intervenção seria feita da Ponta do Caju até à ponte
da Ilha do Fundão. Era uma área muito degradada, por isso, segundo Vieira (1999,
p. 69) o projeto tinha como metas:

“a) a construção de habitações, no espaço entre a nova via e a Av. Brasil,


para 100.000 pessoas, que seriam removidas da área favelada constituída de
palafitas. No Parque Maré e na Nova Holanda, seriam aproveitados 900 m2
de ruas já abertas pelos favelados, para evitar maior remoção inicial.
b) Entre a ponte Oswaldo Cruz e a Av. Brigadeiro Trompowski, estava
prevista a abertura de um canal de 150 metros de largura. A área entre esse
canal e a nova via projetada seria aterrada e destinada à expansão das
indústrias da região que, na época, somavam 84 unidades.
c) A nova via projetada para desafogar o trânsito da Av. Brasil teria uma
extensão de 6 km e, para evitar cruzamento, ela passaria por baixo da ponte
Oswaldo Cruz, seguiria pelo litoral, entrando pelas favelas com uma largura
de 40 metros, até atingir o canal de Ramos.
d) Outra meta era a regularização dos aterros nas proximidades da Colônia
de Pescadores existentes na região e o plantio de vegetais adequados à
contenção dos terrenos; construção de canais de concreto para os cursos
d`água e construção de ancoradouros.” (id, p. 69)
107

Também o governador Chagas Freitas decreta novos limites da orla


marítima da região do Caju a Ramos e a proibição de novos aterros clandestinos.
Porém, todo esse projeto acabou não sendo implantado e cedeu lugar ao Projeto
Rio (1979—1982), que executará diversas metas e foi anunciado pelo então
ministro Mário Andreazza em 1979. Tal projeto tinha por objetivo sanear a orla da
Baía de Guanabara e baseava-se nos anteriores, como o de Chagas Freitas, que
não haviam vingado.
O Projeto-Rio envolvia recuperar a orla da Baía de Guanabara em 27 km,
desde a Ponta do Caju aos Rios Sarapuí e Meriti em Caxias. Tinha como
objetivos: criação de espaços para abrigar populações de baixa renda e criar
condições de ambientação ecológica e paisagística do trecho mais poluído da Baía
de Guanabara. O BNH (Banco Nacional de Habitação) financiou o projeto e o
DNOS (Departamento Nacional de Obras e de Saneamento) fez os aterros e a
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enorme drenagem na região. A FUNDREM (Fundação para o Desenvolvimento


da Região Metropolitana) fez as pesquisas de levantamento cadastral. A primeira
fase do Projeto- Rio não funcionou, pois previa a remoção dos moradores de
favelas para conjuntos habitacionais, uma vez que a “grita” da população local e
da imprensa acabou gerando a desistência dessa medida por parte do governo.
Sendo assim, o projeto limita-se a erradicar as palafitas.
Nessa época um terço da população da Maré morava em palafitas. Estas se
concentravam na Baixa do Sapateiro e no Parque Maré.
O BNH criou o PROMORAR (Programa de Erradicação da Sub-habitação)
para resolver o problema de erradicação das palafitas. Tal projeto ainda previa a
regularização da propriedade dos terrenos, processo até hoje não resolvido, além
da urbanização da área do Timbau ao Parque União. Também previa o
alinhamento de ruas, instalação de rede de esgotos e abastecimento de água. Surge
nessa época, o poder das associações de moradores na década de 80, que já
existiam em algumas comunidades da Maré como expressão da pressão política
junto às autoridades governamentais.
Em 1985 a obra foi concluída, mas com 4889 títulos entregues e não, 12000.
A Associação dos Moradores da Nova Holanda promove uma articulação entre as
associações de moradores da região da Maré. Após pressão e passeatas acabou-se
conseguindo a retomada das obras de saneamento a cargo da CEDAE.
108

Em 1992 Fernando Collor oferta a Linha Vermelha no governo Brizola, algo


já imaginado por vários governos anteriores. Lamentavelmente esta vem a ser o
que faltava para abalar a Baía de Guanabara, pois os aterros feitos para sua
construção do Caju até à Maré, reduziram o canal a um canal de menos de 100
metros de largura, totalmente poluído. Tal via sempre foi pensada como uma
alternativa à Avenida Brasil, mas acabou se tornando uma via elitista, que
favorece os carros particulares (Vieira, id).
Ainda segundo Vieira (id) acabou-se com parte do manguezal, foram
realocados os trapiches utilizados pelos pescadores, ficando a Maré limitada entre
a Avenida Brasil e a Linha Vermelha. Foi feito um Parque com traçado de Burle
Marx, mas bem mais reduzido do que imaginavam. Para construir a Linha
Vermelha foram removidas famílias para o Parque Alegria e Boa Esperança e
ainda foi construído um conjunto de casas onde havia o Aterro Sanitário do Caju,
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que acabou desativado. Restou apenas a Usina de Lixo, que por falhas em suas
construções, atualmente não funciona regularmente.

5.2
Da favela ao bairro

“Quando olhamos um bairro como a Maré, temos a impressão


de contemplar algo inacabado, em constante construção:
paredes sem esboço, alvenaria aparente, vergalhões apontados
para o alto, puxadinhos aqui e acolá. Assim é a favela, um lugar
que muda a cada dia, que cresce para cima, para os lados, que se
multiplica e se sobrepõe. Um espaço em constante movimento.
“(Vieira, 2008, p. 4)

Foi a partir da década de 30 que surgiram os primeiros moradores do que


hoje se chama “Complexo da Maré” devido a vários fatores. A primeira
comunidade a surgir foi no Morro do Timbau e sua ‘primeira moradora lendária se
chamou Orosina. Essa já era uma região ocupada como já escrevemos
anteriormente, pois ali se localizava o Porto de Inhaúma. O nome Timbau
significa do tupi-guarani “entre as águas”.
A história quase épica conta que D. Orosina foi fazer um passeio e ficou
encantada com a beleza da região. Começou recolhendo as madeiras que vinham
com a maré e construiu um barraco. Logo depois o Morro do Timbau foi sendo
109

ocupado, seus terrenos eram pantanosos e não urbanizados. Paralelamente


começa-se a construir a “Variante”, nome dado à Avenida Brasil.
D. Orosina Vieira dará nome ao Arquivo de informações, documentos e
fotos iniciado pelo Rede de Memória da Maré e até hoje existente no Museu da
Maré. É um acervo muito importante para a história da região da Maré e das
favelas cariocas em geral. No trecho abaixo Oliveira (2003) nos ilustra algumas
informações a mais sobre D. Orosina apontando-a como “mãe fundadora” da
comunidade atual da Maré:

“Orosina Vieira, importante personagem local, que dá nome ao Arquivo,


aparece aí como “mãe fundadora” da comunidade, instituindo o marco da
ocupação da Maré pela população atual. É até hoje lembrada, como pude
comprovar em conversas e entrevistas, como uma mulher forte e
determinada, uma rezadeira que gozava do respeito da comunidade por suas
qualidades e serviços prestados. Contam que ela possuía uma “garrucha e
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um facão” com os quais impunha respeito e mantinha certa ordem na região,


estes objetos estão sendo almejados pelos integrantes como possível acervo
de um futuro ou reserva técnica. Seu papel como mito fundador da região
parece simbolizar o merecimento à terra que convida à construção das
moradias e a força dos indivíduos que resistiram às dificuldades para
permanecerem no local.” (id, p. 36)

Esse primeiro casal de moradores do Timbau vinha de uma casa simples de


cômodos localizada atrás da Central do Brasil. Ela era uma mulher mineira que não
se acostumara a viver num cômodo só. Escolheu um lugar seco e numa pequena
elevação, fez seu barraco, plantou árvores frutíferas e uma horta. Ela virou uma
figura simbólica no Timbau. Rapidamente outros quiseram fazer o mesmo e ela
estimulou e avisou que não havia propriedade da terra. Montou uma barraca de
frutas e alguns legumes. O maior problema era a água, que eles tinham que pegar
em Bonsucesso, do outro lado da Avenida Brasil e carregar morro acima.
No pós-guerra, em meados da década de 40, iniciou-se uma das principais
migrações brasileiras para o Rio de Janeiro e São Paulo. Há um intenso fluxo
migratório para o Rio de Janeiro e São Paulo vindo do Nordeste. No caso do Rio
de Janeiro isto só faz aumentar o problema da falta de moradias populares e a
ausência de uma política habitacional popular.
Sendo assim, desde a década de 40 as favelas tornam-se um fenômeno
urbano de proporções cada vez maiores. Os terrenos ocupados pelos migrantes
eram aqueles não cobiçados pela especulação imobiliária, como os morros,
encostas e pântanos da cidade, assim como áreas de propriedade duvidosa ou
110

pertencentes à União ou a órgãos governamentais (id, p. 47). Em 1950, o Brasil


era predominantemente rural, já hoje em dia inverte-se o quadro brasileiro, pois a
maioria da população brasileira vive nos centros urbanos.
Chagas e Abreu (2007) nos falam da chegada desses migrantes em São
Cristóvão no trecho a seguir:

“Gradualmente os migrantes, que vinham de pau-de-arara e desembarcavam


em grande número na área próxima onde hoje fica o Pavilhão de São
Cristóvão, foram se fixando na região do entorno do Morro do Timbau
denominada Baixa do Sapateiro”. (id, p. 136)

Em 1946 é construída a Avenida Brasil para melhorar a comunicação do centro


da cidade com os subúrbios e com as vias intermunicipais e interestaduais. Para isso
foram feitos diversos aterros, os canais de Benfica e Manguinhos foram unidos numa
única saída para a Baía de Guanabara sendo aquela denominada Canal do Cunha21.
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Com a “Variante Rio - Petrópolis”, posteriormente chamada Avenida Brasil,


diversas indústrias foram se instalando à sua beira. Surge a refinaria de
Manguinhos, como o próprio nome diz no aterro de Manguinhos. Foi a primeira
refinaria de petróleo da Baía. Com esse desenvolvimento econômico, há um
enorme crescimento populacional nas regiões do Caju, Benfica, São Cristóvão,
Manguinhos e Bonsucesso.
A construção da Avenida Brasil foi fundamental para o surgimento da Maré,
até porque muitos dos primeiros moradores acabaram trabalhando na construção
da Avenida Brasil, como nos apresenta o trecho abaixo de Vieira (1999):

“Sem considerar o fato de que em sua construção trabalharam muitos dos


primeiros moradores destas comunidades, a Avenida Brasil proporcionou o
crescimento de um cinturão industrial às suas margens, que somado ao
isolamento dos terrenos na orla da Baía de Guanabara e a facilidade de
acesso a tais áreas, criou condições bastante favoráveis para o surgimento
das comunidades da Maré.” (id, p.50)

Avenida Brasil faz parte da vida dos moradores da Maré de forma intrínseca
quer seja proporcionando trabalho, quer seja facilitando no deslocamento para o
centro da cidade ou proporcionando a chegada de material para aterros ou para
construir casas e barracos. Em compensação era perigoso atravessar a Avenida
Brasil e ir ao outro lado de Bonsucesso para apanhar água, trabalhar ou fazer
compras, pois com o crescimento esta passou a ter muitas pistas e ser a principal

21
O Canal do Cunha se localiza na região da Maré atual.
111

porta de entrada terrestre da cidade. A Avenida Brasil está presente no imaginário


de todos os nossos entrevistados.

- O Timbau

Foi a primeira comunidade surgida na Maré, a mais antiga. Em 1947 foi


transferido para aquela região da atual Maré o 1º Regimento de Carros de
Combate em frente ao Morro do Timbau. Nesse lugar os militares passaram a
controlar a comunidade com derrubada de barracos, controle da entrada de
moradores e cobrança por parte de alguns militares “de taxas de ocupação”
(Vieira,id, p. 52). Na história do Timbau há uma grande presença da resistência ao
exército que reclamava direito sobre aquelas terras e tenta impedir de todos os
jeitos a ocupação da área. É através de D. Orosina, que escreve uma carta ao
presidente Getúlio Vargas e é recebida no Palácio, que se consegue a continuidade
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deles na região. Em 1954 com o crescimento e organização da comunidade surge


a 1ª associação de moradores e a 3ª associação de favelas do Rio de Janeiro.
A comunidade que mais visitamos e convivemos na Maré foi o Timbau pelo
fato do Museu da Maré se localizar aí. Ao andar pelas ruas do local, conversar
com os moradores, comer nos restaurantes do local etc, percebemos que o Timbau
desfruta na região da Maré de um determinado status, é uma comunidade mais
organizada e melhor assistida, como se fosse a “zona Sul” daquela região.

- A Baixa do Sapateiro

Há várias hipóteses para o nome Baixa do Sapateiro, dentre elas: que aquela
região era propriedade de um morador do centro de Bonsucesso, que mantinha um
português como zelador, que era sapateiro. Outra versão era de que como na
comunidade havia alto índice de criminalidade e muitos nordestinos, especialmente
baianos, fazia-se uma alusão à “Baixa do Sapateiro”, numa referência à região com
esse nome em Salvador. Outra versão era de que como a região era de mangues,
cheia de vegetação chamada sapateiro no sopé do Morro do Timbau, era a Baixa do
Sapateiro, pois tinha essa vegetação na região baixa do morro.
A Baixa, assim chamada carinhosamente pelos moradores do local até hoje, era
um grande manguezal cheio de lama e caranguejos. No início sua ocupação se deu na
fronteira com Bonsucesso e foi se estendendo até á Baía de Guanabara. Logo, a Baixa
do Sapateiro é uma das mais antigas comunidades da Maré. Foi na década de 50 que
112

sua expansão foi em direção ao mangue e sobre a maré surgindo a construção das
palafitas, que deram uma marca muito forte à paisagem daquela região.
Diversos dos nossos entrevistados fizeram alusões às palafitas em que
moravam e alguns reconheceram nas fotografias do Museu da Maré seus
“barraquinhos”, como carinhosamente os denominaram.
Silva (2006) também nos fala da diferenciação positiva das comunidades do
Timbau e Baixa do Sapateiro inclusive pela inexistência nelas de palafitas como
demonstra o trecho abaixo.

“Com exceção do Timbau e de parte da Baixa do Sapateiro, o tipo de


moradia que passou a ser predominante nos núcleos de ocupação da região
foi a palafita. As condições de ocupação eram adversas: havia a repressão da
força policial, que impedia construções e derrubava os barracos; eram
difíceis as condições naturais, representadas principalmente pelo terreno
pantanoso; não existia qualquer garantia legal ou jurídica, o que criava uma
fragilidade dos moradores e imprimia um caráter de clandestinidade à
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ocupação; esses moradores estavam impossibilitados, por sua condição


econômica, de promover uma construção de melhor qualidade.” (id, p. 82)

Foto 16 do Acervo do Museu da Maré – Imagem emblemática das palafitas nos alagados da Maré:
Baixa do Sapateiro e Parque Maré

- Parque Maré

O Parque Maré é um prolongamento da Baixa do Sapateiro, cujos primeiros


barracos surgiram desde a década de 50. A área ocupada pelo Parque Maré era de
113

lama e mangue e sofria com o movimento das águas, tendo a partir da década de 60
ocorrido a grande expansão da ocupação em direção à Baía de Guanabara
predominando assim as palafitas nessa região. Os aterros nessa região eram rotineiros
até chegar o Projeto-Rio na década de 70 e eram feitos com carvão inicialmente e
depois com demolição. Eram executados em mutirão por familiares e vizinhos.
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Foto 17do Acervo do Museu da Maré - “Pontes de tábuas” interligando as palafitas da Maré

Não havia água, nem luz nas casas, inicialmente a luz era puxada por
“gatos” e depois por um medidor da Light e revendido para as demais casas. A
água chegava através de pequenas bicas, puxadas ilegalmente por ramais. Devido
114

às grandes filas, muitos moradores iam apanhar água do outro lado da Avenida
Brasil e para isso usavam os rola-rola (barril de madeiras com pneus em volta dele
puxados por uma alça de ferro). O esgoto era muito precário, feito pelos próprios
moradores. Na década de 60 surge a Associação de Moradores do Parque da
Maré, que foi muito importante na consolidação da comunidade, principalmente
na época do Projeto-Rio.

- Parque Rubens Vaz

O Parque Rubens Vaz surgiu em 1951, era uma região de areal. Os poucos
habitantes que moravam ali sofriam muito quando a maré enchia porque
apareciam cobras e lagartos e deixava lama em quase tudo.
Não demorou e surgiu um líder para eles, chamado de João Araújo, um
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paraibano, que organizou a área, alinhou as construções e abriu ruas. A água também
era trazida em barris (“rola-rola”). Quando as pessoas chegavam tinham que construir
seus barracos a 40 metros da “Variante”, pois ela seria alargada como de fato foi. Os
barracos eram de madeira, a polícia não deixava fazer de alvenaria, derrubando-os.
O Parque Rubens Vaz tem uma história um pouco diferente das demais, pois
em 1958 aparece lá um advogado chamado Margarino Torres do PCB (Partido
Comunista Brasileiro) que defendia o direito das pessoas permanecerem ali com
dignidade. Como a população estava aumentando, a polícia aumenta a pressão
para expulsar a comunidade. Margarino lidera a população e torna-se figura
fundamental na consolidação da ocupação. O local chegou a ter seu nome, devido
à sua importância na história local. Em 1959 a população invade a área do Parque
União e Margarino Torres lidera também essa invasão. Em 65 a população sente
necessidade de dar um nome oficial para o local e escolhe Major Rubens Vaz, em
homenagem ao Major assassinado em atentado na Rua Toneleros em Copacabana.

- Parque União

Chagas e Abreu (2007) nos chamam atenção no trecho abaixo da


importância da construção da Avenida Brasil impulsionando o aparecimento de
várias comunidades, como o Parque União e Rubens Vaz.

“A construção da Avenida Brasil – concluída em 1946 – foi


determinante para ocupação da área, que prosseguiu pela
115

década de 50, resultante na criação de outras comunidades,


como Rubens Vaz e Parque União.” (id, p. 137)

Como já escrevemos anteriormente, o Parque União também teve sua


origem ligada a Margarino Torres, que estruturou a área demarcando os lotes
comprados (Vieira, id).
Margarino Torres exigia dos moradores o pagamento de uma taxa, carteira
de trabalho indicando que o indivíduo estava em exercício e o dinheiro pago para
fazer benfeitorias do Parque e pagar os honorários de Margarino Torres.
Foi ele que exigiu dos policiais mandatos para entrar na região, proibiu casas
de prostituição e de jogos. Mesmo assim, a polícia muitas vezes destruía os
barracos. Era proibido construir barracos de alvenaria, a despeito disso a
população construía uma casca de madeira, só a retirando quando estivesse tudo
pronto. “Seu” Jaqueta e “Seu” Antonio, pescadores da Maré por nós entrevistados,
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se remeteram a este fato. Lembraram com graça das casas de alvenaria com
“cascas” de madeira para parecerem barracos.

- Nova Holanda

De todas as comunidades da Maré, a que tem uma formação mais peculiar é a


Nova Holanda, pois foi composta por um amontoado de pessoas removidas de vários
pontos da cidade e alojadas “provisoriamente” em CHPs (Centros de Habitação
Provisórias) que pareciam uns vagões, onde as pessoas jamais foram retiradas de lá.
O governo Carlos Lacerda tinha como política habitacional acabar com
várias favelas em lugares nobres da cidade e mandar sua população para o
subúrbio, como foi o caso da Favela do Pinto - localizada no Leblon (nos
conjuntos da Selva de Pedra)-, a Favela do Esqueleto - onde fica hoje a UERJ -,
dentre outras. Na verdade, não havia a intenção em resolver o problema da falta
de moradias da população mais pobre e sim, tirá-las das áreas nobres.
Assim como fizeram a Nova Holanda, também fizeram esse modelo
habitacional em Cordovil, Paciência, Manguinhos, Andaraí e Praia de Ramos. Essa
região foi chamada de Nova Holanda devido ao fato de ter sido construída em cima
de vários aterros feitos à Baía de Guanabara, como uma alusão à drenagem de terras
feitas na Holanda. Muitas famílias foram alojadas em espécies de vagões, que de
transitórios, tornaram-se definitivos, algumas morando lá até hoje.
116

Muitos desses moradores por virem de diferentes áreas da cidade com


culturas locais diferentes demoraram a se integrar entre si e com a Maré. Como
não podiam mexer nos CHPs, muitos se degradarem com o tempo e se tornaram
semelhantes aos barracos da favela. Além disso, havia uma deteriorização dos
serviços de água e esgoto, isto acabou levando os moradores da Nova Holanda a
se integrarem com outros moradores da Maré em torno de problemas comuns.

- A Vila do João

A Vila do João fica onde era antigamente o Aeroporto de Manguinhos como


já escrevemos anteriormente. Foram construídas 1400 casas para remover as
pessoas das palafitas. Foi tudo financiado pelo BNH e executado pelo
PROMORAR. Os primeiros barracos foram sendo derrubados e seus moradores
transferidos para conjuntos multicoloridos. O primeiro conjunto foi chamado
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“Vila do João” em homenagem ao ex-presidente João Figueiredo.


Até os moradores do Timbau e entorno referem-se à região da Vila do João e
arredores como área que já foi mais violenta. Cabe lembrar que a Maré é
atualmente (no ano de 2011) dividida geograficamente em duas regiões
comandadas pelo tráfico de drogas na região. A área do Museu da Maré e da Vila
do João hoje em dia são comandadas pela mesma facção de traficantes, mas há
tempos atrás eram rivais que estavam no comando. Já a região do Parque União e
entorno é comandada por grupo adversário.

- A Vila do Pinheiro

Em 1982 a Ilha do Pinheiro foi anexada pelo Projeto-Rio, como já explicamos


anteriormente. Para esse local houve uma remoção silenciosa de 15 mil pessoas
para que não houvesse mais invasões. Com a Vila do Pinheiro eliminou-se todas as
palafitas da área da Maré. As casas eram semelhantes às da Vila do João.
Nessa área ainda foram construídos apartamentos (1380) para famílias das
comunidades da área que se inscreveram. Esses conjuntos foram chamados
Conjunto Pinheiro e ocupados em 1989.
Além disso, é nessa região que a Prefeitura alojou uns galpões para onde são
transferidos temporariamente moradores de várias áreas de risco da cidade através
da Secretaria Municipal de Habitação, pelo projeto Morar sem riscos. Por serem
pequenos, desconfortáveis e coloridos, o povo apelidou-os de Kinder Ovo.
117

Ainda hoje há a construção de novas unidades habitacionais em forma de


vagão, para onde são removidas as famílias acomodadas nos galpões provisórios.
Esse conjunto localizado na Vila Pinheiro chama-se “Salsa e Merengue”, devido à
novela de sucesso na época.
Em 1996 a Maré torna-se um bairro reunindo uma unidade feita da
diversidade cultural e social de um amálgama de histórias e confluências de vidas.

“A Maré é o lugar construído sobre todas as adversidades, cuja


tarefa continua na reconstrução de si mesmo. Todas as
possibilidades estão postas, basta que nossa percepção lhes dê
sentido. O adensamento das instituições deve dar lugar à
flexibilidade, a inércia deve ser superada pela abertura aos
processos de mudança.” (Vieira, 2008, p. 215)

Silva (2006) nos chama atenção no trecho abaixo para o fato de que a Maré ter
sido transformada por decreto num bairro, não significa a eliminação de seu contexto
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plural e muitas vezes estigmatizado pela sociedade e poder público em geral.

“a identidade coletiva dos moradores é marcada pela violência e


pelo estigma, que separa a cidade “formal” das favelas. Portanto,
ao propor a criação do bairro da Maré como meio de integrar
essa região aos espaços “formais” do Rio, o poder público
restringiu-se a uma medida político-administrativa, que não
expressou o desejo dos moradores nem apresentou soluções para
o problema da violência, muito menos revestiu de simbolismo tal
criação para poder fazer frente ao estigma que norteia a relação
das pessoas com o lugar. Por esses fatores, o bairro da Maré não
se constitui enquanto lugar de memória para seus habitantes. No
entanto, outros agentes sociais buscam reverter essa realidade
como forma de superar os problemas locais.” (id, p. 166)

5.3
A criação do Museu da Maré

Por diversos motivos, já expostos na introdução, escolhemos como estudo


de caso o Museu da Maré. Este se localiza no Timbau, na Rua Guilherme
Maxwell, 26, comunidade pertencente à Maré e foi criado em 2006. Recebeu em
sua inauguração a presença do Ministro da Cultura de então, Gilberto Gil.
Destaca-se por ser o primeiro museu brasileiro localizado em uma favela criado
pela comunidade local.
É um dos museus comunitários na cidade do Rio de Janeiro, junto ao
Ecomuseu de Santa Cruz, que possui um trabalho de maior visibilidade de atuação
118

não só na comunidade local, como na cidade, assim como é referência para outros
museus comunitários e ecomuseus no Brasil inteiro.
O Museu fica localizado num antigo galpão de conserto de barcos, que foi
cedido ao grupo que o fundou22, como é mostrado em imagens abaixo. A oficina
dos barcos se localizava no prédio onde hoje está instalada a exposição
permanente do Museu da Maré.
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Foto 18 de Helena Araújo – Prédio amarelo: embaixo, biblioteca; em cima, salas de


cursos; atrás, salas de informática e o Arquivo D.Orosina Vieira.

Fotos 19 de Helena Araújo - Prédio vermelho: exposição permanente do Museu da Maré.

22
Este galpão foi cedido ao grupo dos fundadores do Museu da Maré por 10 anos.
119

Os objetos do Museu, ou melhor o Museu da Maré está em construção


permanente. Na parte de dentro do pátio do Museu, no galpão da antiga oficina de
fábrica de transportes marítimos, está instalado o acervo da exposição
permanente, como já mostramos nas fotos. Ela é dividida em 12 tempos não
cronológicos, que contam a história da Maré. Esses tempos ainda não estão todos
completos, alguns estão em construção, sempre se reconstruindo como os próprios
museus comunitários e a própria favela da Maré.
O primeiro tempo é o Tempo da água, onde tudo começou na Maré por ficar
situada à beira da Baía de Guanabara. Foi lá que seus moradores tiveram que
conquistar até o chão fazendo aterros em vários espaços. Neste local logo na entrada
da exposição permanente existem muitas fotos mostrando as palafitas, os alagados,
os aterros, o barco com o São Pedro (como mostra a imagem abaixo) etc.
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Foto 20de Helena Araújo - O barquinho dos pescadores com São Pedro

O segundo é o Tempo da casa, onde encontramos a emblemática palafita,


por dentro mobiliada com objetos doados pelos moradores - o que dá uma
dimensão muito real da história ali narrada. De dentro do “barraco” pelas janelas
vemos a paisagem enxergada pelos antigos moradores através de banners
colocados estrategicamente para que ao olharmos possamos ver tal paisagem de
“antigamente”.
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Foto 21de Helena Araújo - A emblemática palafita na entrada da exposição permanente do Museu
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Foto 22de Helena Araújo - Interior da palafita

Foto 23de Helena Araújo – Interior da palafita e “visão” da favela pelo banner externo
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Foto 24 – Cenário externo à palafita, mulher com lata de água na cabeça e varal de roupas.

Em seguida temos o Tempo do trabalho onde são exibidas fotos de


trabalhadores em várias atividades: carregando água nos rola-rola depois de
chegarem do trabalho, fazendo os aterros em geral aos domingos, nas construções
das bicas comunitárias, ou ainda na fila da água para encher as latas.
Ainda temos o Tempo da Migração como uma homenagem e referência há
grande quantidade de nordestinos que para a Maré vieram morar, muitos
trabalhando na construção da Avenida Brasil ou no centro da cidade
Também foi criado o Tempo da resistência, pois na Maré foi preciso resistir
a quase tudo: à maré, à polícia, à remoção, por isso acabaram descobrindo a
necessidade de se organizarem politicamente para revindicarem do governo
melhorias para a região etc. Neste espaço é mostrado a resistência através de
jornais das associações de moradores se mobilizando nas lutas por melhoria das
condições de vida, documentos de posse de casas etc.
123

Foto 25de Helena Araújo - Os registros de posse das casas, jornal local e fotos
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No Tempo da festa há referências às folias de reis, carnaval, festas juninas


através de diversas fotos e alguns objetos. Encontramos muitas fotos de alunos
nas danças Ed festas juninas das escolas em diferentes décadas.
Já o Tempo da feira é o tempo da negociação, feiras e vendedores
ambulantes, onde a vida acontece. Até hoje na Maré a rua da feira aos sábados é
um grande acontecimento na comunidade. Neste tempo existem fotos sobre o
tema e alguns objetos, como uma balança antiga de pesar alimentos na feira.
O Tempo da fé apresenta a fé dos moradores em diversos rituais, como:
procissões, igrejas, estátua de São Jorge, lojas de produtos de umbanda, enfim é
exibido um sincretismo religioso característicos de muitas comunidades
brasileiras através de fotos e estátuas.
O Tempo do cotidiano apresenta umas paredes de tijolo aparente com
janelas de vários tipos e abertas com fotos dentro sugerindo os acontecimentos do
interior da casa, do cotidiano. Também há fotos de barbearias, botequins, crianças
e jovens jogando bola na rua ou indo para a escola, por exemplo.
124

Foto 26 de Helena Araújo - O tempo dos barracos acabou, surgem as casas de alvenaria e seu
cotidiano...
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Por outro lado, piões, petecas, carrinho de rolimã, pipas, bolinhas de gude nos
trazem a infância de volta - principalmente para quem tem mais de 40 anos-, no
Tempo da criança. Há ainda uma homenagem a uma criança assassinada na porta
de sua casa na favela vítima da violência do confronto entre polícia e traficantes.
Em oposição, logo depois vem o Tempo do medo, as paredes são escuras, é
um ambiente mais fechado, sem colorido, apenas muitas e muitas cápsulas de
tiros, fotos com paredes perfuradas por tiros ... é a violências de várias favelas, do
Rio de Janeiro, das grandes cidades, do mundo. Se antes a luta dos moradores da
favela da Maré era acabar com os alagados, ter casas de alvenaria e saneamento
básico, atualmente é acabar e combater a violência no local.
O Tempo do futuro se faz por ser um tempo que já começou na luta por uma
cidadania mais plena e justa, neste é mostrado apenas uma maquete com as
habitações e referências geográficas da região, como se fosse um mapa em
terceira dimensão.
As duas fotos abaixo mostram o restante do pátio do Museu da Maré com a
loja das Marias Maré e o anexo à exposição permanente aonde são feitas as
exposições temporárias.
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125

Foto 27de Helena Araújo - Anexo de exposições temporárias no Museu da Maré

Foto 28 de Helena Araújo - Loja Arte da Maré de vendas de artesanato e costuras das
Marias Maré no pátio do Museu.

O site do Museu da Maré é bastante informativo e dinâmico e retrata


diversas dessas imagens de época, informações, vídeos etc. Seu endereço virtual é
http://www.museudamare.org.br).
126

O Museu da Maré foi gestado e fundado pelo mesmo grupo de moradores e


ex-moradores que criou o CEASM. O trecho abaixo de Oliveira (2003) mostra a
importância desse grupo de indivíduos que chegaram a cursos superiores e pós-
graduações e atuaram e atuam de forma determinante na Maré:

“Na Maré a iniciativa dos atores do CEASM tem sido justamente no sentido
de construir uma narrativa na qual o espaço compreendido pela região da
Maré e os seus moradores estejam intrinsecamente ligados à história da
cidade e do país, contada pela perspectiva de quem vive, ou viveu, do lado
até então esquecido pelos discursos historiográficos dominantes e pelas
instituições oficiais de memória.” (id, p. 29)

Também Chagas e Abreu (2007, p. 138) chamam atenção para o fato de que
num cenário tão desolador de uma comunidade carente carioca tenha surgido um
grupo de jovens moradores que tenham e continuam se empenhando na luta e
resistência cotidiana pela melhoria da qualidade de vida daquela população local.
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Esse grupo de jovens do CEASM, segundo Oliveira (2003, p. 60),possui


algumas características comuns, como: todos eram moradores da Maré pelo
menos há algum tempo, participavam da Pastoral da Igreja Católica, envolveram-
se com o Partido dos Trabalhadores e possuíam nível universitário.
Sendo assim, o Museu da Maré é fruto de uma parceria entre os membros do
CEASM, museólogos e integrantes do IPHAN, como demonstra o trecho abaixo
retirado do site do Museu da Maré:

“Quando surgiu a conversa para o projeto do Museu da Maré, houve algumas


reuniões da equipe do CEASM com profissionais da museologia e do
IPHAN, onde foram discutidos os temas nos quais seria focada a exposição
(os doze tempos). Depois dos encontros, e de muita discussão, fiquei
responsável pela montagem do projeto do Museu da Maré e por apresentar
uma proposta na semana seguinte.
Passei alguns dias imaginando a forma de ocupação do galpão ... fiz as
medidas do espaço, pesquisei o arquivo fotográfico e filmes antigos da Maré.
Busquei referências em livros de arte e arquitetura para complementar o
pensamento do projeto e também comecei a lembrar de quando ainda era
criança na Maré.
Com a pesquisa organizada, parti para a construção da maquete e
percebi várias questões espaciais no galpão como, por exemplo, o pé direito
alto. Por outro lado, isso tornou possível sua ocupação com algum elemento
que emocionasse a quem entrasse. Então este objeto foi o barraco, que é a
grande sensação e emoção do Museu.
Fomos então apresentar para a equipe do IPHAN, que gostou da
proposta, do conceito e da defesa do projeto.” Vieira, Marcelo. Cenógrafo do
Museu da Mar. (site: http://www.museudamare.org.br)
127

Os embriões do Museu da Maré foram gestados no CEASM e na Rede de


Memória da Maré. O CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré) foi
criado em 1997 fundado por moradores locais, sendo que alguns deles tinham
participado da TV Maré. Aliado a isso, houve da parte dos mesmos a
preocupação em resgatar e construir a história local e as memórias de seus
moradores, logo surgiu a Rede de Memória da Maré. Esta criou um arquivo
institucional, Acervo Orosina Vieira, com fotos, jornais e livros sobre a Maré.
Este acervo encontra-se disponível a consulta e pesquisa no Museu da Maré.
Ainda segundo o site do Museu da Maré:

“O trabalho da rede se desdobrou na criação de um arquivo


institucional destinado à pesquisa, preservação e divulgação
de documentação nos mais variados suportes sobre a história
local. Ainda se desenvolveu um programa de história oral,
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para coleta e registro do depoimento dos moradores e


lideranças da região e a criação do grupo de contadores de
histórias, com o objetivo de difundir as histórias e lendas
surgidas das vivências dos moradores”. (id)

No capítulo seguinte iniciaremos a análise dos dados sobre o campo


pesquisado. Sendo assim, iremos apresentar nossos dados e reflexões sobre os
pescadores da Maré - protagonistas fundamentais na história e memórias da Maré,
também narradas e construídas no próprio Museu.
6
Que “peixes” pescamos no Museu da Maré?

“Desses exemplos nos fica a ideia de uma apreensão do tempo


dependente da ação passada e da presente, diversa em cada
pessoa. Um tempo que fosse abstrato e a - social nunca poderia
abarcar lembranças e não constituiria a natureza humana. É
esse, que ouvimos, tempo represado e cheio de conteúdo, que
forma a substância da memória.” (Bosi, 1994, p. 422)

É essa memória feita de um tempo represado e cheio de conteúdo, de que nos


fala Ecléa Bosi, que vamos construir através dos dados parciais coletados no
trabalho de campo. Numa primeira etapa apresento os sujeitos entrevistados e em
seguida, analiso os depoimentos relacionando-os ao referencial teórico apresentado
anteriormente. Termino o capítulo apresentando algumas conclusões sobre os dados
coletados e analisados até o presente momento, estruturando toda essa “rede”.
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O roteiro de entrevistas dos pescadores encontra-se ao final da tese no Anexo 2.

6.1
Apresentando os pescadores entrevistados

Entrevistamos 12 pescadores de 3 Núcleos de Pesca na região da Maré, são eles:


Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro, do Parque União e da Vila Residencial da UFRJ.

Foto 29 de Terezinha Lanzelotti - Píer do Núcleo de Pesca da Vila Residencial da UFRJ


129

Foto 30de Terezinha Lanzelotti - Vila Residencial da UFRJ com obras de saneamento
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Foto 31 de Stela Caputo- Píer do Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro.


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130

Foto 32 de Stela Caputo - Ancoradouro de barcos do píer da Vila do Pinheiro e o vão da Linha
Vermelha por cima.

Foto 33 - Píer do Núcleo de Pesca do Parque União e o vão da Linha Vermelha por cima.

Cabe lembrar que o Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro é o mais precário


da região, onde encontramos a maior quantidade de pescadores que vivem só
131

dessa atividade. Foi a primeira colônia por nós visitada. Causou-nos enorme
impressão a miséria e pobreza do lugar. Fica exatamente embaixo da autoestrada
Linha Vermelha, num trecho cuja estrada é bem baixa, próximo ao mar, na área da
comunidade da Maré denominada Vila do Pinheiro. Apresenta um precário píer,
cheio de barcos pequenos e bem pequenos, denominados “caiaques”. Tem
pequenos boxes onde os pescadores guardam seu isopor, gelo e todo o material de
pesca (redes, anzóis, facas etc). Há também três imagens: de São Pedro, de Nossa
Senhora da Aparecida e de Iemanjá numa espécie de pequenos santuários ou
pequenas grutas. Ao lado do ancoradouro há ainda uma criação de porcos em
diferentes cercados, alguns andam soltos na lama imunda das águas daquela
região ao lado dos barcos, das redes, dos peixes pescados, dos gatos e de muito
lixo trazido da Baía. A água da Baía de Guanabara é muito poluída nesse local, é
preta e parece ser tão grossa, cheia de óleo que perto do píer é possível ver os
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porcos andarem por ali parecendo estarem pintados de preto, como mostra a
imagem abaixo! O cheiro do local é bastante desagradável.

Foto 34 de Stela Caputo - Píer do Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro

No núcleo de pesca da Vila do Pinheiro entrevistamos “Seu” Jaqueta,


“Seu” Antonio e o filho Alexandre, “Seu” Amaral e Edson.
132

Foto 35 de Stela Caputo - “Seu” Jaqueta

O pescador “Seu” Jaqueta participou da criação do Museu da Maré, doou


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vários objetos para seu acervo, como o barco da entrada do museu (feito por ele e
nele grafado JAQUETA), assim como a estátua de São Pedro colocada dentro do
mesmo. O conversador e encantador “Seu” Jaqueta, de nome Sérgio Jaqueta, é
muito querido e conhecido de todos no Museu da Maré. Tem 61 anos, nascido e
criado na Maré, morador do Timbau, sua casa fica muito próximo ao Museu da
Maré, casado com filhos e netos, hoje em dia é o único pescador por nós
entrevistado que trabalha na Construtora Queiroz Galvão, que está despoluindo o
Canal do Fundão. Em seus relatos apresenta sempre muita proximidade com os
diretores do Museu da Maré e suas atividades e demonstra muita apreensão com
os resultados do trabalho que a empresa vêm fazendo na obra de despoluição da
Baía de Guanabara. Sua fala é muito articulada e desembaraçada.
“Seu” Antonio é filho de um pescador famoso e lendário na região da Maré,
“Seu” Alvinho, já falecido. É casado e não tem outra atividade profissional, mora
na Vila do João. Tem 58 anos. Seu relato é muito rico e demonstra muita paixão e
tristeza com a situação da pesca na região. É de uma família tradicional de
pescadores, aprendeu com o pai a pescar e ensinou seus filhos. De todos os seus
descendentes, o único que pesca com ele é Alexandre.
Alexandre é relativamente jovem, tem 36 anos, pesca com o pai, mas
também trabalha com computadores. Demonstra certa timidez, mas aos poucos se
solta na entrevista. Percebe-se em sua relação com o pai admiração, respeito e
133

gratidão a tudo que ele lhe ensinou, principalmente os perigos do mar e como
pescar. Mora na Vila do João.
O Núcleo de Pesca do Parque União é bem mais arrumado, limpo e
agradável. Fica na extremidade oposta ao da Vila do Pinheiro, no Parque União,
uma das comunidades da Maré fronteira à Praia de Ramos. Ele apresenta barcos
bem maiores, alguns usados para lazer e pequeno turismo pela Baía de Guanabara.
Foi de lá que saímos de barco para conhecer o entorno da Maré na região da Baía
de Guanabara. Esse Núcleo também se localiza embaixo da Linha Vermelha,
porém tem como altura um vão bem maior do que o da Vila do Pinheiro, é
portanto, bem mais arejado, visível e agradável.
No Núcleo de Pesca de pesca do Parque União entrevistamos Jean, Vovô e
Marcos.
Jean é um dos mais jovens pescadores por nós entrevistado, tem apenas 29
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anos. Também possui outra profissão, tem uma firma de fazer obras, reformas de
casas, mas tem enorme prazer em pescar. É casado e tem filhos.
Por outro lado, Vovô, sugestivo do próprio apelido, é um dos mais “velhos”
desse Núcleo, tem 60 anos. Ensina muitas coisas aos outros, por isso desfruta de
certa autoridade entre os demais, é referência para quase todos ali e é apontado
como - daquele Núcleo- o que mais conhece a história da região e da pesca no local.
É casado com a mesma esposa há muitos anos e tem orgulho disso, é evangélico e
faz alusões bíblicas em seus depoimentos. Aluga seu barco para outros pescadores e
para passeios pela Baía. Mora no Parque União há muitos anos.
Marcos é o líder dos pescadores do Parque União. Tem 47 anos, já desempenhou
inúmeras profissões, como garçom no Hotel Copacabana Palace, já foi fotógrafo,
dentre outras atividades. Mora no Parque Rubem Vaz. Desfruta de certo prestígio entre
os pescadores e demonstra maior articulação no vocabulário e escolaridade.
O Núcleo de Pesca da Vila Residencial da UFRJ não se localiza na Maré,
mas fica do outro lado do Canal do Fundão, portanto, em frente à região da Maré.
Originou-se das moradias que aí foram deixadas da época da construção da Ponte
Rio - Niterói. É uma comunidade que já sofreu muito transbordamento das águas
em suas casas, falta de luz, de saneamento básico e de transporte, atualmente é a
mais beneficiada com as obras do Canal do Fundão. Suas ruas estão sendo
elevadas e urbanizadas para evitar o refluxo das águas. Possui uma Associação
dos Moradores muito arrumada e fomos lá recebidos para as entrevistas. Seu píer
134

é muito, muito simples e precário, o pior dos três que visitamos. Tem tanta lama,
areia e lixo na beira da ilha, que os pescadores quase não conseguem mais sair e
/ou voltar com seus barcos pelo Canal do Fundão. Não tem nem boxes dos
pescadores como os outros, a impressão que nos passou é que parece o mais
“amador” dos Núcleos de Pesca que visitamos.
Nesse Núcleo de Pesca entrevistamos “Seu” Cordeiro, “Seu” Foca e “Seu”
Carlos.
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Foto 36 de Helena Araújo - Pescadores da Vila Residencial da UFRJ,


respectivamente: “Seu” Foca, “Seu” Carlos e “Seu” Cordeiro

“Seu” Cordeiro é muito sério, mas muito generoso em sua entrevista, além
de pescador, é funcionário da UFRJ há muitos anos. Veio morar na ilha porque
tornou-se funcionário da instituição e se fez pescador, aprendeu a pescar com os
outros pescadores do lugar. Demonstra muito prazer na prática desse ofício
complementando sua renda com a pescaria. É casado e tem 49 anos.
“Seu” Foca tem menos do que 50 anos, gosta de pescar, porém também
desempenha outra atividade. Demonstra muita reserva em sua entrevista, sua fala
é curta, não se expõe, mas não se negou a dar a entrevista.
Já “Seu” Carlos demonstra simpatia em ser entrevistado, é animado, tem 51
anos. Tem outra atividade paralela à pesca, assim como quase todos os outros
companheiros.
O último sujeito por nós entrevistado é o presidente da Colônia de Pesca de
Ramos - a Z 11 – e chama-se Siri. Tem 52 anos, é separado, muito falante,
135

simpático, articulado e receptivo. Exerce grande influência política na região, pois


todos os Núcleos de Pesca citados anteriormente estão ligados
administrativamente à Z 11. Os pescadores tem que ser filiados à colônia para ter
carteira de pescador e poder exercer a profissão legalmente. A Colônia de Ramos
fica do lado do Piscinão de Ramos, é um espaço bonito, grande, cheio de boxes de
pescadores, salas da administração, possuindo até capelinha, além de uma boa
“fábrica” de gelo.
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Foto 37 de Helena Araújo – O pescador Siri na entrevista realizada dentro do Museu da Maré

6.2
Memórias e lembranças de pescadores

Vilarejo (Marisa Monte)


Há um vilarejo ali
Onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
(...)Toda gente cabe lá
Palestina, Shangri-lá
Vem andar e voa
Vem andar e voa
Vem andar e voa.
Lá o tempo espera
Lá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar

Cada Núcleo de Pesca nos remete, como na música Vilarejo de Marisa


Monte, a “um vilarejo” cheio de coisas boas ou desafios, cheio de lembranças e
136

afetos e lá o tempo espera e passa diferente como percebemos nas entrevistas com
os pescadores, pois o tempo é sempre relacionado à maré, à ida, à volta, à maré
cheia, à maré viva ... Porém, sempre Lá é primavera, porque sempre se espera
uma pesca melhor no dia seguinte, um momento melhor, a despoluição do Canal
do Cunha ou do Canal do Fundão e em tantos outros exemplos que aqui poderiam
ser dados, como a fala esperançosa de “Seu” Cordeiro ou prazerosa de Jean,
respectivamente, apresentadas abaixo:

Eu acredito que a Baía está se recuperando em relação, mas você ainda vê


muita sujeira na Baía de Guanabara ainda, existe muita sujeira, mas com
tudo isso, acho que ela sobrevive. Espero nesse verão matar muito peixe
ainda...
É gostoso você ir pescar. Pegar um peixe bom pra você vender ou levar pra
sua casa mesmo, pra família, é interessante. Até mesmo quando você não
pegue, só pelo passeio que você faz eu acho que é gratificante. Você
participa de outro mundo, pra mim é outro mundo. Saio pra pescar e
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esqueço de tudo.

Os pescadores são importantes, pois o desenvolvimento inicial e mais


significativo da Maré, se deu a partir da pesca, e ela se tornou uma colônia de
pesca devido ao fato de se localizar à beira da Baía de Guanabara. Além disso,
como já afirmamos o Museu da Maré tem uma parte significativa de seu acervo
narrando a história da relação do homem local com a água, com a Baía de
Guanabara e evidentemente, com a pesca.
Em meu trabalho de pesquisa sobre a memória e história dos pescadores da
Maré, me deparei com diversas questões, como: O que é memória? Para que
serve a memória? É importante para os pescadores da Maré construírem sua
história e memória? Como a memória se relaciona com a identidade dos
mesmos? Ao construir sua memória estão fortalecendo sua identidade? É dentro
desta rede de inquietações que fiz a pesquisa e acredito que possa refletir sobre
algumas delas imbricadas na fala dos pescadores por mim entrevistados.
O depoimento a seguir de “Seu” Antônio descreve situações do contexto e
da dificuldade da vida naquela da região da Maré de “antigamente”, refere-se à
memória construída:

Porque a Ilha, lá era a maior dificuldade esse negócio de águas, esses troços. Às
vezes pra ir ao hospital tinha (...). Tinha que atravessar na canoa. Naquele tempo
era Getúlio Vargas, o Getúlio Vargas é um hospital antigo. Tinha que atravessar
de canoa às vezes, era uma dificuldade, aí, eles vieram morar na praia de
Inhaúma, quando eles vieram, fez o primeiro barraco deles ali, entendeu?
137

A fala anterior de “Seu” Antonio nos remete à importância da memória


coletiva que é passada de geração em geração entre os pescadores e outros
moradores da região. Hoje em dia sabemos o quanto é necessário se escrever a
memória desses pescadores da Maré, ou outras memórias de outras comunidades
populares, como tentamos neste trabalho de pesquisa reconstruir através da fala e
relatos de diversos pescadores por nós entrevistados.
Le Goff (1990) nos faz lembrar o quanto é dado importância à memória coletiva
a partir da 2ª metade do século XX, já que existe uma relação intrínseca de memória e
poder e aquela é elemento essencial da identidade individual e coletiva, por isso é tão
desejada pelas sociedades atuais. E também, pelo mesmo motivo a memória dos
pescadores pode reforçar seus laços identitários e suas lutas específicas.
Outro trecho do depoimento emocionado de “Seu” Antônio nos revela a
descrição geográfica de outrora daquela região, a riqueza da pesca de
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“antigamente” e sua infância/ juventude passada nesse local:

Nadei muito aí mesmo, nessa praia aí. Aí onde tem esses prédios de
apartamentos, aqui no Pinheiro, ali era uma colônia de Inhaúma, esperava
a maré encher e (...) peixe pequenino, peixe que vinha entrando como a
maré. Agora acabaram com tudo mesmo.

Também os “esquecimentos” da história oficial - a história não contada


desses pescadores, por exemplo- nos permitem de alguma forma fazer uma
narrativa possível sobre isso. Assim sendo, reafirmamos a fala de Paul Ricouer
(2007) de que a condição histórica nos possibilita a representação do passado e o
esquecimento é a prova da vulnerabilidade da mesma. Por isso, há a possibilidade
de reinterpretação e revisitação da história que se dá exatamente pelo
esquecimento e pela ausência. Logo, é através da memória que sempre se faz uma
reconstrução, por isso as lembranças são tão importantes. Assim, ao ouvir as
lembranças dos pescadores podemos entender esse emaranhado e teia social que
perpassa a Maré e a própria cidade do Rio de Janeiro. Tais lembranças acabam
sendo parte constitutiva da nossa identidade.
Na Baía de Guanabara as águas eram limpinha ... dizia Sérgio Menezes
Jaqueta, o “Seu” Jaqueta, ou “Seu” Antônio. Eles se remetem ao passado nos
falando da limpeza das águas da Baía de Guanabara lembrando com nostalgia
dessas águas límpidas e com fartura de pescado. Quando trabalhamos com
memória estamos inevitavelmente envolvendo uma dupla dimensão temporal: o
138

momento presente e o tempo passado que estamos lembrando. Esse “duplo


tempo” se fez muito presente nos “bate-papos” com nossos entrevistados, onde
conversávamos com eles hoje, coisas, imagens e tudo mais de tempos “antigos” -
de quarenta, trinta, vinte, dez anos atrás ...
Ainda “Seu” Antonio em seu depoimento nostálgico nos falou sobre a dura
realidade do pescador hoje, sua tristeza com a falta de peixes e como era diferente
“antigamente”:

(...) o que eu tenho pra dizer pra vocês é:primeiro aí, na Praia de Inhaúma, era
bom demais pra se viver, pescaria era melhor, dava pra ganhar. Mas, agora,
com o decorrer do tempo, caiu mesmo, bastante, até tainha que é..., já tem uns
quatro ou cinco meses que a gente não mata peixe. Mas, é a realidade, de um
modo geral não sei o que tá havendo, que tá caindo mesmo a pesca, não sei! A
gente vai lá pescar, como eu fui a última vez, fui lá no Catalão, fui na Ponte
Rio-Niterói, fui até ao Cais do Porto, nada! Viemos em branco...
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A fala acima de “Seu’ Antonio nos mostra, com certeza, toda a reconstrução
de uma época, nos evoca a reflexão sobre a deteriorização da pesca, o aumento
enorme da poluição da Baía de Guanabara, a dificuldade de sobreviver desses
pescadores. Porém, sabemos que essa fidelidade da memória, pode ser interrogada
pela história. Essa tensão entre memória e História é uma questão central que
entrecruza toda a nossa pesquisa, embora saibamos que nesse caso específico da
resposta de “Seu’ Antonio não há dúvida que memória e história se encontram,
pois sabemos que “antigamente” havia mais peixe na Baía, menos poluição etc.
Nessa tensão memória e história, ás vezes convergente, outras vezes,
divergente, é a crítica histórica que nos permite pensar num viés mais equânime.
Foi assim, em vários momentos de nossas entrevistas quando tentávamos lembrar
aos nossos entrevistados se foi na época da construção da Linha Vermelha, ou por
exemplo, antes disso, como numa das frases muito repetida por nós: “Mas, o senhor
pescava tanta tainha até alguns anos atrás, antes da construção da Linha Vermelha
ou muito antes disso?”, ou “Será mesmo que foi antes até dos aterros na Maré,
antes do Projeto Rio ?”, ou “Foi na época das remoções ?”, perguntávamos.
Quando construímos ou reinterpretamos a história e a memória de um povo
ou comunidades populares afirmamos a importância da ideia de justiça, onde
todos falem, onde a comunidade ou comunidades se sintam mais representadas
(Ricoeur, 2007), onde através da história se elabore narrativas possíveis de gente
simples. Por isso, em minha pesquisa foi tão importante entrevistar alguns
139

pescadores, pelo menos aqueles mais emblemáticos, ou antigos, ou


representativos, para que possa construir a rede dessa memória e história, pois
sabemos o quanto é importante para as comunidades populares buscar seu senso
de justiça através de uma memória feliz (id).

Lá foi um ano só (Tubiacanga), foi quando começou a invadir, nós viemos


para cá. Isso aqui foi invasão. (...) Já, não tinha nada, era só barro (se
referindo que não havia mais as palafitas ali...). A gente fomos os primeiros
moradores. Botava a casa em pé hoje, a polícia derrubava, levantava de
novo qualquer barraquinho... Aí teve uma vez que eles abandonou (se
referindo ao fato da polícia ter parado de tentar expulsá-los da região da
Maré ...).”

O trecho do depoimento anterior de Vovô nos mostra a luta inicialmente


pela invasão da região da Maré e depois pela resistência quando a polícia chegava
e derrubava as casas, a família dele especificamente veio de São Fidélis (norte do
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estado do Rio de Janeiro) para Tubiacanga, na Ilha do Governador, e um ano após


se instalou na Maré. Para termos uma memória mais feliz, mais justa como nos
alerta Ricoeur (2007), é fundamental escrever a memória da resistência e da luta
das comunidades populares - no nosso caso dessas comunidades pesqueiras da
Maré – em prol da sobrevivência e da melhoria da qualidade de vida das mesmas.

Foto 38 de Terezinha Lanzelotti - Vovô contando suas histórias na entrevista

Acredito que a construção da memória dos pescadores da Maré através do


Museu da Maré, das entrevistas que fizemos, das pesquisas em andamento e de
tantas outras estratégias de ação, podem auxiliar no fortalecimento das identidades
desses grupos de pesca local.
140

“Seu” Antonio também nos fala com orgulho dessa memória de resistência e
luta quando reafirma o tempo de pesca ou sua própria lembrança sobre a
qualidade de vida e da água daquele lugar há décadas atrás.

Irmão do Picolé, Xanxão. O seu Alvinho era meu pai.... mas também de
colônia eu estou com 46 anos matriculado na Colônia de Ramos, a Z11.”

A água era boa, podia tomar banho, quase uns 8 metros de fundura, aí na
frente da ilha. Aí era uma ilha, Ilha dos Macacos, era fundo. A pessoa que
não sabia nadar pra atravessar pra lá tinha que saber nadar, que a maré
corria e era fundo. Tudo areal, não tinha lama, não tinha nada, agora....

Procurei trançar as narrativas desses sujeitos com a história das comunidades


pesqueiras da Maré, que são tratadas muitas vezes pela sociedade e pelo poder
público “quase como invisíveis”, nem sempre com acesso pleno se quer aos bens
básicos.
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Sensibilizou-nos enormemente a emoção de “Seu” Antonio quando ao


conhecer e visitar o Museu da Maré identifica o seu “barraquinho” numa das
fotografias das palafitas nos alagados da Maré. Seu filho Alexandre também se
identificou imediatamente com aquilo, mesmo sem ter vivido dentro das mesmas
condições. Esta situação nos revela o quanto o não vivido, pode ser incorporado
ao inconsciente coletivo, como a imagem das palafitas presente no inconsciente
coletivo de todos, mas vivido por apenas alguns deles, como no caso de “Seu”
Antonio (Le Goff, 1990).
“Seu” Antonio, “Seu” Jaqueta e tantos outros foram testemunhas oculares
dessa história cheia de lutas e resistência. Segundo Ricoeur (2007) é importante a
testemunha dar além da credibilidade e confiabilidade, a disponibilidade em reiterar
seu testemunho. A testemunha confiável é aquela cujo testemunho perpassa o
tempo permitindo a identificação em humanidade dos membros daquela
comunidade, logo a memória é afetiva, já a história é crítica, argumentativa. Os
depoimentos deles são importantes por si só e porque se referendam através do
tempo pela repetição e confirmação dos mesmos pela crítica história!
Como já afirmamos acima, a memória coletiva é sempre formada de
diversos elementos referenciais para a comunidade na qual o indivíduo vive, que
são transmitidos pela tradição e podem ter sido ou não vividos pelos sujeitos (Le
Goff, 1990). Mas, contados pela tradição e/ ou educação dão um sentimento de
pertencimento a um determinado grupo (id). Sendo assim, é importante
141

defendermos as tradições e costumes de um povo ou comunidade porque é isso


que gera tal sentimento de pertença, como nos contou “Seu” Antonio no
depoimento anterior, ou o Edson quando nos afirma Tudo o que eu sei aprendi
com meu vô!, ou ainda pela angústia de “Seu” Jaqueta quando afirma que Nenhum
dos meus filhos quer ser pescador, o que eu sei, por incrível que pareça, eu tenho
ensinado para a minha neta.
Vieira (2008) relaciona memória e espaço como elemento importante para
um possível empoderamento identitário.

“Por isso, podemos falar da emergência da memória relacionada ao espaço,


como meio de preservação de referência, de sentido de potenciamento, de
valorização das culturas e substrato de construção do futuro a partir do local,
como resposta ao processo de totalitarização do espaço.” (id, p. 11)

O depoimento a seguir de “Seu” Cordeiro também nos revela como a memória


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pode ser incorporada pela tradição e/ ou ensino ou pelo inconsciente coletivo.

Não tenho história de pescador, a única história de pescador que eu sei é


que tartaruga a gente não mata, o pescador que é pescador não mata a
tartaruga, ...
- O senhor não sabe por que ? (entrevistador)
- Tem, tem essa simbologia do avô do pescador...não sei dizer, talvez o pescador
mais antigo, como o Pelicano, talvez possa esclarecer mais esse detalhe. Eu já
soltei várias tartarugas, tartarugas imensas aqui dentro da baía.

A fala de “Seu” Jaqueta nos demonstra a “eficiência” da educação informal


(Gohon, 2010), tendo em vista declarar que aprendeu a nadar com seu pai.

Aprendi a nadar com meu pai. Eu sei nadar e todo mundo acha que
pescador sabe nadar, mas você sabe que uma vez fomos fazer um curso na
Marinha e teve pescador que não passou no curso porque não sabia nadar?
Nem boiar sabia! Então, ... todo mundo pensa, mas 80% dos pescadores
sabem nadar, o resto não sabe.

Não devemos perder de vista que os pescadores de cada Núcleo de Pesca


fazem parte de uma comunidade maior que é a Maré e o Rio de Janeiro, em última
instância do Brasil. E diversas outras comunidades de pesca vivem os mesmos
problemas que vivem na Maré, como: águas poluídas, descaso do poder público,
falta de infraestrutura nos piers etc.
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142

Foto 39de Stela Caputo - Píer do Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro

Foto 40 de Terezinha Lanzelotti - Píer do Núcleo de Pesca da Vila residencial da UFRJ


143

6.3
A rede da memória constrói a identidade dos pescadores

Alguns pescadores não viram, nem viveram no tempo da Baía de Guanabara


limpa com botos, mas incorporaram isso ao seu imaginário já que faz parte da
memória de seus pais, ou avós, ou mestres da pesca. Então, se remetem ao fato de
que o bom era que a Baía “voltasse a ficar limpa como antigamente”. Entenda-se
por antigamente, como já afirmei anteriormente, 10, 20, 30 ou 40 anos atrás.como
narra “Vovô”, “Seu” Isaías, que conta histórias passadas para seus colegas
pescadores. Ou ainda, “Seu” Foca que afirma que – Tinha, tinha casa lá que o
Carlinhos falou que era casa dos escravo, referindo-se à Casa de Pedra do
Catalão e o Carlinhos é o pescador “Seu” Carlos morador da Vila Residencial da
UFRJ, como ele próprio.
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Essa memória coletiva - como a que foi mostrada pelos pescadores- para
Halbwachs (1990) é formada de diversos elementos referenciais para a
comunidade na qual o indivíduo vive. Tais elementos de referência - situações,
monumentos, paisagens, músicas, comida etc - são transmitidos pela tradição e
podem ter sido ou não vividos pelos sujeitos, como já afirmamos em diversas
passagens anteriores.
Quando o Museu da Maré reconstrói uma palafita dentro de seu próprio
espaço ou expõe fotos da região da Maré em diferentes épocas históricas - de
sujeitos pescando, costurando redes, dentre outras - tem a intenção de fortalecer os
laços identitários daquelas comunidades, assim como construir ou elaborar uma
possível representação de sua história e/ou memória. “Seu Jaqueta" demonstra
orgulho em seu sorriso ao apontar uma fotografia dos alagados da Maré dentro do
Museu e nos fala empolgado: Olha aqui. Olha aqui a canoa que o meu pai
pescava!, ou quando aponta outra fotografia mostrando os aterros da Maré e diz:
Isso aqui já era área de aterro. Isso aqui já é esse prédio aqui e eu moro aí atrás.
Nesse momento percebemos mais uma vez como o Museu se faz vivo e interage
com os moradores locais, com esses pescadores, pois também fala deles, de suas
vidas e suas emoções, vivências, por isso lá existe uma memória que emociona ...
Todas essas memórias que emocionam são a base de uma determinada
identidade, que é composta pelas referências culturais que permitem um
sentimento de pertencimento a um grupo. Sendo assim, construir a memória é
144

fortalecer os laços de identidade desse grupo. Muitas dessas referências são


transmitidas nas redes educativas do cotidiano. Estas são espaços educativos
informais, onde saberes e fazeres são valiosamente transmitidos quer seja na
família, na vizinhança, e/ ou no trabalho, como no caso dos saberes e fazeres dos
pescadores da Maré..
A história de “Seu” Jaqueta, assim como de outros pescadores, se mistura à
história da Maré, da conquista do espaço daquela região e da luta e resistência da
permanência dos mesmos ali. Lembranças de alegrias e tristezas, sonhos e
desilusões, ganhos e perdas, tempo e espaço imbricados.

“A relação da memória e espaço é fundamental neste trabalho para a


compreensão das marcas do tempo sobre o espaço, que penso como a
pele que deixa registrada, nas cicatrizes, as marcas da vida. As diversas
vivências e relações existentes no espaço ao longo dos anos estão
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inscritas na memória transmitida e vivida, na memória comum


compartilhada pelos grupos sociais e nos lugares identificados como
referências de memória. Não se trata de uma memória de dor e
sofrimento, de conflitos e embates, como numa primeira impressão pode
parecer. Tratamos de memórias de vida, com todas as suas implicações,
também memórias de alegrias e sonhos, de ritos e festas, memórias de
um percurso de construção da felicidade.” (Vieira, id, p. 12)

Também em nossas entrevistas com os pescadores podemos perceber a


riqueza cultural que emerge direta ou indiretamente das falas dos mesmos. Seus
relatos são cheios de vida, de paixão e/ ou melancolia pela pesca, pelo ofício de
pescador, pela família que construíram, pelo casamento, pela casa, pelas festas
religiosas das quais participam, dentre outros.
Outra temática que acabou surgindo em diversas de nossas entrevistas foi a
alusão à festa de São Pedro, padroeiro dos pescadores. O depoimento a seguir de
“Seu” Foca sobre a festa de São Pedro revela essa memória de pertencimento e
participação, de mistura de espaço e tempo:

Antigamente no Caju, a gente se reunia no Caju pra fazer a procissão


dentro d’água... Umas cinco vezes, agora parou porque a maior parte
dos pescadores... também no Caju diminuiu, também... (referindo-se à
sua participação na procissão de São Pedro).
145

Foto 41 de Terezinha Lanzelotti – “Seu” Foca

Mais uma vez lembranças, memórias, pertencimentos e identidades se


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misturam nessas redes educativas cotidianas. Um traço singular da identidade dos


pescadores da Maré hoje em dia é o fato da maioria deles não viver mais somente
da pesca. Marcos aluga barcos e é pescador no Núcleo de Pesca do Parque União,
mas já foi fotógrafo, garçom etc; “Seu” Cordeiro virou pescador, mas já era
funcionário da UFRJ desde muito tempo antes e permanece nesse cargo até o
momento; o próprio “Seu” Jaqueta - que mesmo vindo de família de pescadores
históricos - é funcionário da empresa Queiroz Galvão, que está atualmente
fazendo a obra de despoluição do Canal do Fundão. Também, a maioria dos
outros, embora tenha outras atividades, fazem questão de se identificar e se
diferenciar como pescadores.

Porque 30, 40 quilos de peixe não é muito peixe, é pouco peixe e isso
íi você vende rápido. Pra quantidade de pessoas aqui dentro é pouco
e ainda tem outros colegas. Tem o Pelicano, que esse é que vive
exclusivamente atualmente da pesca mesmo, é um pescador...

O depoimento acima de “Seu” Cordeiro fala que na Vila Residencial da


UFRJ só vivem da pesca pouquíssimos pescadores, como o “Seu” Pelicano, que
lamentavelmente não conseguimos entrevistar.
A separação entre dois grupos não se dá por diferença cultural, segundo
Cuche (1999), e sim, pela vontade de se diferenciar. Por isso, essas fronteiras são
mutáveis e seus deslocamentos podem ser provocados por mudança de situação
146

social, econômica ou política. Sendo assim, não existe identidade cultural em si


mesma definível, por exemplo, os pescadores querem se identificar como
pescadores, embora exerçam outras funções concomitantemente.
No recorte identitário voltamos ao depoimento de “Seu” Antonio
demonstrando a ideia de pertencimento ao lugar:

Eles fizeram dragagem ali na época do Projeto Rio quando fizeram o aterro
do Pinheiro. Engraçado quando a draga puxava. Eu brinquei ali, a gente ia
brincar que era novidade. Quando aquela água vinha do fundo, ela vinha
cheia de areia, areia branquinha...”

A fala de “Seu” Antonio é cheia de intimidade e mistura sua história à


história daquele espaço social transformado pelo tempo, assim como o seu próprio
corpo e a sua vida ...
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Depois a gente foi lá pra onde é a área militar, onde mora o Waguinho. A
companhia onde passou a Linha Amarela deu uma “merrecazinha”.
Fizeram um barraco pra gente lá. Foi quando meu pai se preparou e fez a
casa dele. A gente morava aqui em frente á passarela, perto da passarela
que a gente morava, aquilo tudo era praia, tudo era mar. O estaleiro
McLaren, que fazia rebocador, fazia até navio, os mini navios eles faziam ali
naquela época, pra ver como era fundo em frente á ilha. Quem viu aquela
ilha, quem vê agora...

Outro eixo temático surgido nos depoimentos dos pescadores foi o


sincretismo religioso. O Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro é o mais pobre de
todos os que visitamos, não por acaso, o que apresenta o maior número de
pescadores que vivem só da pesca. Como já escrevemos, lá encontramos imagens
de São Pedro, de Nossa Sra., de Aparecida e de Iemanjá, não encontradas
conjuntamente nos outros núcleos de pesca, destacando um traço cultural
diferenciado das demais. Esse sincretismo é percebido em diversas falas dos
pescadores como quando Alexandre nos conta a história de que o pescador que
roubou as moedinhas do santo, no Núcleo de Pesca da do Pinheiro, Está com vida
ruim. Também sobre isso podemos estabelecer uma ponte com o Museu da Maré,
pois no Tempo da fé há diversas fotos expostas sobre a famosa procissão dos
pescadores na Baía de Guanabara com seus barcos enfeitados no dia de São
Pedro, padroeiro dos pescadores. Vários pescadores nos falam da tristeza de não
haver mais essa procissão na Maré.
147

Fotos 42 e 43de Stela Caputo - Imagem de São Pedro, Nossa Sra. de Aparecida e Iemanjá no
Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro
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Uma recorrência unânime nos depoimentos dos pescadores foi a necessidade


de se despoluir a Baía de Guanabara, para que a pesca no local possa melhorar
devido ao fato de todos sofrerem de alguma forma com aquilo. O trecho do
depoimento abaixo de “Seu” Amaral nos remete a essa problemática:

Se sente, é triste, porque isso ai vai piorando cada vez mais a Baía de
Guanabara, porque o certo da Ilha tinha que ter uma rede de tratamento na
Ilha toda, joga muito esgoto na Baía de Guanabara a Ilha, tinha que ter um
tratamento nela toda. Vê aí, tem uma vala negra, aí perto da pescaria Galeão
é um cheiro insuportável. Tinha que ter uma limpeza ali pelo menos...

Foto 44de Helena Araújo - Poluição do Canal do Fundão visto da Vila Residencial da UFRJ
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148

Foto 45 de Helena Araújo - Linha Vermelha ao fundo, embaixo da autoestrada o Núcleo de Pesca
da Vila do Pinheiro. Poluição do Canal do Fundão visto da Ilha do Fundão.

Foto 46 de Helena Araújo - Poluição no Canal do Fundão

Autores como Hall, Cuche, Castells, Candau e Silva afirmaram a dimensão


construtivista da identidade, ou seja, a identidade como sendo resultado de uma
construção social e da complexidade do social.
Outra característica da identidade é que ela é multidimensional e sincrética,
apresenta um caráter dinâmico, o que causa dificuldade de delimitá-la. Ainda no
eixo identidade poderíamos imaginar exatamente como é difícil dizer até que
149

ponto o Alexandre da Vila Residencial do Pinheiro é pescador, ou técnico de


computadores, mas, ele se identifica como pescador; ou Marcos, que já foi
fotógrafo, garçom, camareiro e atualmente se identifica como pescador, mas vive
do aluguel de barco e pesca muito pouco.
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Foto 47de Terezinha Lanzelotti - Pescador Marcos do Parque União

Os pescadores da Maré vivem aquela(s) cultura(s) locais de cada Núcleo de


Pesca, ou da Maré como um todo, estando, portanto, mergulhados numa cultura
que acaba identificando-os como pescadores da Maré e não, da Praia de
Copacabana, por exemplo. A noção de identidade está relacionada à noção de
cultura, segundo Cuche (1999). A cultura “pode existir sem a consciência de
identidade” (id, p. 176), porém uma identidade cultural, evidentemente, não pode
existir sem um sistema cultural. Mas, acima de tudo identifica-os como
pescadores, apesar de continuarem, na grande maioria, exercendo outras
profissões, como nos declara no trecho abaixo o pescador Vovô:

Aí, depois que eu troquei o NIT no INPS pra pescador... Já tenho uns 20
anos pra pescador...
Não vou dizer confortável, mas dá. (se referindo a poder viver da pesca). Aí,
eu faço serviço de pedreiro também.

“Fui trocador de ônibus, trabalhei com dedetização, já fui ajudante de


pedreiro”, declara, também, “Seu” Cordeiro, que mesmo antes de ser funcionário
da UFRJ já tinha exercido diversas atividades. Com “Seu” Jaqueta verificamos a
mesma situação de trabalhadores “multifuncionais”, como já abordamos
150

anteriormente, porém a identificação como pescador sobressaiu na paixão


expressa pela mesma em seus discursos. Devido à dimensão mutável da
identidade, o indivíduo lança mão de estratégias de identificação, que dependem
da situação social, relação de força entre grupos etc (Cuche, id). O conceito de
estratégia pode explicar as variações de identidade, também chamadas de
deslocamento de identidade. Sendo assim, para Cuche (id), o que cria a separação
entre dois grupos não é a diferença cultural e sim, a vontade de se diferenciar.
“Seu” Sérgio Jaqueta embora seja funcionário da Queiroz Galvão, faz questão de
se apresentar como pescador, assim como “Seu” Cordeiro tem vontade, desejo,
gosta de ser pescador, embora seja funcionário da UFRJ (Universidade Federal do
Rio de Janeiro).
Os pescadores tem seus códigos socais e administrativos influenciados e até
mesmo gerados por diversos fatores, alguns impostos pelas Colônias de Pesca Z
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10 ou Z 11, que impõe seus códigos e diferenciações para eles. Vovô fala sobre
essas relações do entreposto do Parque União com a Colônia de Pesca Z 10, que é
a colônia à qual estão ligados e legalizados:

Há muitos anos, só que ela não é registrada (se referindo ao entreposto do


Parque União), que não pode mais registrar Colônia aqui, que já tem a Z 10
e a Z 11. Aí, não pode, aí tem que ter entreposto, aí pode escolher qualquer
Colônia...”

Silva (2000) nos mostra como identidade e diferença são parte de um todo.
Além de construções sociais, elas são partes de um processo, não há como
conceituar identidade sem se falar de diferença. Portanto, a identidade é instável,
contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. Porém, também deixa
registrado que identidade e diferença são processos de produção social, por isso
envolvem relações de poder, estando ligadas a sistemas de representação.

“A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com


relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a
diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A
identidade e a diferença não são, nunca, inocentes.” (id, p.81)

Por outro lado, as identidades são fontes de significados para os próprios


atores. Partindo daí, Castells (1999) propõe três categorizações de identidade
construídas a partir de relações de poder, que sinteticamente apresentamos como:
identidade legitimadora (como os códigos impostos pelas Colônias de Pesca Z 10
151

ou Z 11); identidade de resistência (dos grupos socialmente organizados da Maré,


como do Museu da Maré e do CEASM e de alguns Núcleos de Pesca); e
identidades de projeto (como também poderíamos imaginar nesse duplo de
identidade, o próprio grupo do Museu da Maré e do CEASM e alguns grupos de
pescadores). Entendemos que algumas associações de pescadores da Maré
(principalmente, os do Parque União) se integram à identidade de projeto e
conjugam-na com identidades de resistência, assumindo uma posição ou outra,
como numa gangorra social, ideológica, política e econômica onde os sujeitos se
impulsionam ora para um lado, ora para o outro na luta por sua sobrevivência
física, cultural e econômica acima de tudo.
A citação abaixo de Castells afirma uma perspectiva construtivista da
identidade.
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Não é difícil concordar com o fato de que, do ponto de vista sociológico,


toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz
respeito a como, a partir de quê, por quem e para quê isso acontece. A
construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história,
geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória
coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de
cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos
indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em
função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura
social. (Castells, 1999: 23).

Os indivíduos e grupos sociais vão dando significado aos materiais segundo


suas origens sociais, conhecimentos históricos, geográficos, biológicos e
enraizamentos culturais (Castells, id).
O trecho abaixo da entrevista de Vovô revela fragmentos de seu imaginário,
de sua ideologia, de seus sonhos, de seus aprendizados/ ensinamentos, enfim de
sua “sabedoria” quando afirma que:

É da lua, como se diz, a natureza é uma coisa bonita, como acabou de falar
disso agora. É a natureza, o mar é vivo, não pode abusar dele. Eu não
mergulho, muito difícil, só quando for pra tirar algum lixo, aí, tu tem que
mergulhar... ou então, encho o caneco e tomo banho, dentro do barco tem
saída d’água, quando molhar, a água sai...

A clareza do depoimento abaixo de Jean nos demonstra como a vivência de


diferentes papéis sociais possa significar, muitas vezes, a vivência de múltiplas
identidades culturais, suas alegrais e angústias, sua vida:
152

Não, nasci aqui mesmo. Meu nome é Jean Castro Pereira. Sou do dia 03-08-
1982. Eu nasci aqui no Rio mesmo. Meus pais não são daqui, são do Norte e
desde criança já venho pescando aqui no Catalão de rede, de tarrafa,
pescando siri e fui gostando. Passei a mergulhar, não aqui, na Urca. Fui
gostando mais, fui gostando mais, comprei uma lancha, da lancha depois eu
fiz um barco, agora peguei essa traineira e daí vai. A pessoa vai gostando,
sendo que eu não vivo especificamente da pesca, eu tenho uma firma, eu
trabalho com obra também, entendeu? E nos fins de semana eu trabalho
levando o pessoal pra pescar e a pesca em si não está dando mais pra pessoa
viver da pesca. Acredito eu que, talvez, meu filho nem me siga mais o que eu
segui e o que sempre gostei de fazer. Meu filho praticamente não vem aqui...

Um dos pontos que mais me impressionou nas entrevistas feitas aos


pescadores foi a quase unanimidade deles nunca terem ido ao Museu da Maré.
Logo, o Museu que tem parte de seu acervo dedicado às marés, à água, às
palafitas, às procissões de São Pedro de outrora, à pesca – grande parte da história
da Maré e onde quase tudo começou!!! Se por um lado existe o “Seu” Jaqueta -
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exemplo de um pescador que doou objetos ao acervo do próprio Museu da Maré e


fala disso com muito carinho-, por outro, a grande maioria dos pescadores já
ouviu falar do Museu, mas não o conheciam antes das entrevistas lá ocorridas, ou
permaneceram sem conhecer porque as entrevistas foram feitas nos píers.
Paradoxalmente, entendo que mediante esse “achado de campo”, o Museu
da Maré se valida ainda mais e reafirma sua posição na região enquanto museu
comunitário, pois transita entre essas memórias de hoje e de ontem, entre esse
desconhecimento da população sobre sua existência, mas também, com a
possibilidade de ressignificando essa história e construindo essas memórias torná-
las conhecidas e “inesquecíveis” para diversas gerações!
Quando iniciamos nossa pesquisa optamos pela metodologia da história oral
para entrevistar os pescadores, para saber de suas vidas e interpretar essa trama
social que os envolve, que nos envolve, dando sentido e significado coletivo e
histórico ao que ouvíamos em seus depoimentos tão ricos de emoção,
transbordantes de vida, de ensinamentos e aprendizados.

“O fascínio da História Oral está em encontrar na pessoa comum, no


indivíduo anônimo, um narrador que tem uma história pra contar, a história
de sua própria vida. Nessa história perceber os acontecimentos, linhas
condutoras, conexões que nos levam a reconhecer a nossa própria história.
Sentir-se participante de uma mesma comunidade de histórias, percorrendo
trajetos comuns, tecendo uma rede na qual nos reconhecemos e encontramos
a nossa própria vida. Não se trata de “dar voz ao outro”, postura arrogante da
qual devemos nos afastar. Trata-se de ouvir para aprender, ouvir para se
153

reconhecer e perceber o quanto a vida é imensa, carregada de significados e


emoções, o quanto somos importantes pelo que somos, importantes porque
verdadeiramente construímos a história.” (Vieira, 2008, p.27)

Construir a memória desses pescadores, suas redes educativas cotidianas - ou


de outros grupos populares “esquecidos” da história oficial - é também um dever,
um bem comum, uma necessidade jurídica, moral e política (Sarlo, 2007).
Precisamos entender o contexto histórico de se escrever a memória dos pescadores
no momento em que são identificados como o grupo social mais vulnerável e frágil
da região da Maré pelo Programa de Educação Ambiental da SEA (Secretaria
Estadual de Ambiente do Rio de Janeiro). Sendo assim, evoca-se um sentimento de
justiça social (id), de necessidade de construção de um projeto coletivo mais
democrático e menos desigual, onde o perdão possibilite tal reconstrução, mas não
o esquecimento das falhas e sim, seus reparos (Ricoeur, 2007).
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É numa proposta intercultural, onde haja não só respeito, mas diálogo entre
as diferentes culturas que acreditamos na construção de um projeto coletivo
social, político e econômico. Na prática do diálogo entre diferentes grupos
culturais, como com os pescadores da Maré, podemos vivenciar o dinamismo
renovador das diferentes culturas, assim como seu processo de hibridização
cultural e a correlação entre diferença e desigualdade (Candau, 2006).
Foi entrevistando todos esses pescadores que aprendemos e trocamos não só
informações, mas vivências, lembranças, saberes ... Enfim, aprendemos,
dialogamos, nos emocionamos, muitas vezes, através da riqueza de seus
depoimentos, testemunhos, das alegrias e tristezas reveladas, das angústias e
esperanças depositadas, entrecruzando não só nossas identidades e memórias,
como nossas próprias vidas.
No próximo capítulo daremos continuidade à nossa trilogia de dados do
campo, apresentando e analisando as entrevistas com os diretores e funcionários
do Museu da Maré.
7
Os “narradores” da Maré

“Tudo o que é humano tem espaço nos museus.


Eles são bons para exercitar pensamentos, tocar
afetos, estimular ações, inspirações, intuições.”
(Chagas, Mário & Storino, Claudia, 2007, p. 6)

Esse capítulo de nossa tese continua fazendo parte da análise dos materiais
recolhidos nas entrevistas e observações de campo, trata da reflexão sobre os
depoimentos dos funcionários e diretores do Museu da Maré e o capítulo seguinte
tratará das incursões feitas pelo Livros de Depoimentos e de Assinaturas dos
visitantes do Museu.
O roteiro das entrevistas feitas aos diretores, funcionários do Museu da
Maré e um dos antigos moradores e liderança local encontra-se no Anexo 1.
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7.1
Quem são “os narradores”?

Começaremos identificando os “narradores”, ou seja, os diretores e


funcionários do Museu da Maré por nós entrevistados.
Optamos por dividir nossas análises e reflexões em três eixos temáticos à
luz dos principais conceitos por nós apresentados nos capítulos teóricos, ou seja,
memória, identidade e espaços educativos não formais. Esses eixos se justificam
pelo fato de nosso objetivo central ser analisar como o Museu da Maré pode
fortalecer as identidades locais e contribuir para a construção da memória e da
história local através de práticas educativas ressignificadas. Se todo o museu tem
uma missão educativa (Appadurai, 2007, p. 12), procuramos identificar a
dimensão educativa do desse Museu.
Na primeira parte apresentamos os sujeitos entrevistados: dois diretores do
Museu da Maré, dois funcionários e um morador colaborador do Museu23.
Sendo assim, iniciaremos por Carlinhos, de nome Antonio Carlos Pinto
Vieira, nascido e criado na Maré. Figura popular, querida e respeitada na
comunidade, apaixonado pela Maré e por tudo o que lhe diz respeito. Um dos
membros fundadores e diretores do Museu da Maré e do CEASM. Tem sido nosso
23
Toda vez que utilizamos apenas a expressão Museu em maiúsculas, estamos nos referindo ao
Museu da Maré, objeto de pesquisa e estudo desse trabalho.
155

principal interlocutor local durante todo o trabalho de campo e pesquisa. Advogado,


mestre em Memória Social com uma dissertação sobre a história da Maré24. Militou
na Pastoral da Juventude nos anos 80, depois no PT e também, na Associação dos
Moradores do Timbau. Tem 46 anos, é casado, foi criado no Timbau, atualmente
vive num bairro próximo à Maré. Embora tenha outra profissão e emprego, é
advogado e funcionário público, continua com horas dedicadas à Maré através de
sua contínua atuação no CEASM e no Museu da Maré.
Carlinhos conta a história da Maré com riqueza de detalhes, animação e
paixão, como um velho narrador benjaminiano. Preocupa-se com a imagem do
Museu da Maré também para o lado de fora, ou seja, para a cidade do Rio de
Janeiro, o Brasil e quiçá, o mundo.
O outro diretor por nós entrevistado é Lourenço César da Silva. Tem 41
anos, solteiro, morador na Vila do João. Nascido e criado na Maré, formado em
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Geografia. Gentil, de temperamento agradável e receptivo, sorriso franco, aquela


simpatia. É também um dos diretores do CEASM.
Dos funcionários do Museu entrevistamos Terezinha e JB. Terezinha de
Jesus Normandes Lanzelotti, 46 anos, funcionária do Museu da Maré, assistente
social, é a nossa terceira entrevistada. Casada, nascida e criada na Maré, residente
na Baixa do Sapateiro. Pessoa receptiva, dinâmica, generosa, faz de tudo no
museu - do secretariado à mediação nas visitas guiadas e dramatizações feitas para
o público dentro do Museu. Atualmente também auxilia no trabalho com as
crianças na Biblioteca Elias José do Museu da Maré.
J. B., João Batista Henrique, 24 anos, coordenador dos guias do Museu, arte
educador e colaborador no Projeto de Leitura da Biblioteca do próprio Museu.
Nordestino, veio criança para a Maré. Rapaz jovem, criativo, inteligente e ótimo
ator. Atua nas peças do Museu, quase todas envolvendo aspectos da história ou do
cotidiano da vida na Maré, algumas baseadas no Livro de Contos e Lendas da
Maré. Acabou saindo do Museu recentemente, no mês de novembro de 2011, para
trabalhar na FIOCRUZ.
Também entrevistamos “Seu” Atanásio, maranhense, morador da Maré há 57
anos, personagem “histórico” na região. Tem 80 anos, casado, aposentado.
Migrante nordestino, alfaiate por profissão, ativista político via ter exercido a

24
O capítulo desta tese sobre história da Maré se baseia principalmente em sua dissertação de
mestrado em Memória Social sobre a História da Maré, como já afirmamos anteriormente.
156

presidência da Associação de Moradores da Baixa do Sapateiro. Entusiasta do


Museu da Maré e um dos colaboradores desde sua criação. Frequentador assíduo
do Museu, sempre aparece nas reuniões dos “Chás de memória” e outras
atividades culturais.

7.2
Afinal de contas, o que eles querem narrar?

As narrativas construídas no Museu da Maré, tanto pelos objetos escolhidos,


quanto pelas fotografias, como pelas estórias contadas, se entrelaçam com os
personagens que criam o Museu, o administram e dirigem até os dias de hoje. Por
isso, nesse item vamos analisar as entrevistas que essas “testemunhas oculares da
história” nos concederam à luz dos referenciais teóricos trabalhados.
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Com o intuito apenas de facilitar nossa reflexão e análise dividiremos em


grandes subitens temáticos.

7.2.1
“Por que o museu em favela ?”

É de grande importância, né?! Logo, eu lembro que, logo no primeiro ano do


Museu, surgiram várias críticas ao Museu da Maré: “Por que o museu em
favela?”, “O que esse Museu vai mostrar, né?”.... Enfim, .... Mas, hoje, eu
acredito que cada comunidade, cada região deveria ter não um museu, mas um
centro de memória, onde se possa é... preservar, né? Resgatar, preservar e
valorizar essas histórias, essas vivências, essas memórias que são tão ricas, né?
Essa construção coletiva das comunidades, eu acho isso muito importante.

Essa foi a resposta dada por JB à pergunta que lhe fiz quando o entrevistei,
ou seja, indaguei: Você acha importante ter um Museu na Maré, ou em qualquer
outra comunidade popular ? Sem dúvida, em meu trabalho de campo, um dos
achados de campo foi a confirmação da crença que tínhamos de que toda a
comunidade popular também tem muitas vezes a vontade e sempre o direito de
narrar sua história e construir sua memória.

Eu acho que o Museu contribui muito para a comunidade porque o


Museu propriamente dito não é só para os moradores, se fosse só
para os moradores não tinha nem graça. Então, o Museu que nós
estamos fazendo, ou que eles fizeram é justamente para mostrar que
157

nessas áreas carentes não existe só coisa ruim, que nós temos aqui,
graças a Deus, boas coisas que podem ser mostradas, não só para os
moradores do Rio de Janeiro como pra qualquer cidade, tanto faz
brasileira como estrangeira, que venha para ver de perto o que
significa a Maré.
Eu vejo que o Museu traz muitas coisas que as crianças podem ver,
desfrutar, verem como era antigamente as coisas e qual o grau de
melhoria que traz para a gente essa coisa toda... Então, vai criando
uma nova mentalidade.

Os trechos acima de um dos “narradores da Maré” - “Seu” Atanásio - nos


remete ao marinheiro ou comerciante de Benjamin. Tal qual o comerciante, que não
sai do local, encontramos na fala de “Seu” Atanásio a preocupação de contar as coisas
boas da Maré, a sua história de luta e resistência naquele local, não só da Maré para a
Maré, mas deve ser contada para o mundo, para fora da Maré, uma forma de
afirmação de sua existência e do valor daquele “povo” que conseguiu permanecer ali
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a despeito de tudo e de todas as políticas públicas que tentaram removê-los. A “fala”


de “Seu” Atanásio e de outros moradores do local nos aponta para a interpretação
elaborada por Chagas & Abreu (2007), abaixo e com a qual nos identificamos:

“Foi pensando nestas questões que voltamos a visitar o Museu da Maré e,


depois da visita, concluímos que ele é mesmo um museu que extrapola as
fronteiras espaciais e geográficas, temporais e históricas. Trata-se a rigor, de
um museu impregnado de humanidade, de um museu que, sendo da
comunidade, rompe com a lógica do gueto, de um museu com excepcional
valor simbólico, notável capacidade de comunicação e que, por tudo isso,
torna-se a expressão viva de uma utopia museal de cidade que somente será
construída se formos capazes de integrar as narrativas que formam seu rico
acervo: as narrativas das camadas populares.” (id, p. 134)

“Seu” Atanásio é reconhecido e respeitado até pelos “meninos do tráfico”


como fica exemplificado na sua fala abaixo, o que intensifica sua condição de
velho e sábio “narrador da Maré”:

Da luta que nós fizemos... Essa coisa toda! Então, eu tive em Nova
Holanda25 há pouco tempo, e de lá eu digo “Vou aqui por dentro para
cortar caminho”. Aí, a moça: “Não... pelo amor de Deus! Não vai por aí...
que tem uma facção que é contra o teu lado.”Aí, eu digo: “Não filha, não
tem problema!”. Acontece o seguinte, que essa turma toda que hoje são
malandros, eu vi nascer!”
Às vezes eu vô passando: “Oi, Seu Atanásio!” Não tem problema! Graças a
Deus!...o cara tá lá, com escopeta na mão...pra mim não tá dizendo nada!

25
A Nova Holanda é uma das comunidades da Maré surgida nos anos 60 com a remoção de
diversos moradores da Favela do Pinto, do Esqueleto, dentre outras, para aquela região, como
explicamos no capítulo 4.
158

O depoimento de “Seu” Atanásio referenda o patamar social, respeitado e


legitimado que ele ocupa na comunidade, porém traz questões sérias e dados da
realidade de qualquer região de favela no Rio de Janeiro contemporâneo. Muito
embora muitas comunidades hoje em dia tenham recebido a UPP (Unidade
Policial Pacificadora). Cabe lembrar que a UPP ainda não havia chegado à Maré
na época de meu trabalho de campo, ou seja, em 2010 e 2011..
Nos depoimentos que encontrei sobre o tráfico e a visitação ao próprio Museu
da Maré há contradições entre seus próprios “narradores”, como o depoimento
anterior de “Seu” Atanásio que se contrapõe ao de Terezinha exposto abaixo.

Não percebo isso, o tráfico não impede ninguém de circular, pelo menos
eu não consigo ver, porque eu circulo para todos os lados. Só os mais
novos mesmo, que estão chegando há cinco, quatro, três anos que
provavelmente sentem esse problema, sentem esse medo! Ah, não vou para
o lado de lá, não vou para o outro lado por causa do tráfico.
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Por outro lado, a fala de JB abaixo endossa o depoimento de “Seu” Atanásio


quando afirma que questões do tráfico afetam a ida ao Museu da Maré. Em nosso
trabalho de campo percebemos que de fato isto ocorre, pois ao entrevistarmos os
pescadores, como já abordamos no capítulo anterior, vários se remeteram ao fato
de nunca terem ido ao Museu da Maré devido a esse problema, principalmente
aqueles do Parque União.

Te falar que cinco anos para o Museu tá bebê ainda. Claro que o Museu da
Maré hoje ainda tem é ... ainda precisa fazer uma ação mais efetiva de
divulgação, de ampliação em toda a comunidade. É difícil você trazer
pessoas do Parque União para o Museu da Maré, é muito difícil devido à
distância, até mesmo questões da região do tráfico mesmo.

Essa questão da existência do tráfico, também afeta a frequência ao Museu


da Maré, como nos confirma o depoimento abaixo de Lourenço.

Eu pelo menos não. Não sei se a Claudia, o Carlinhos, se dentro desse


movimento que eles já tinham participado se eles já tinham ouvido (falar do
primeiro ecomuseu, na França). A gente começou a falar, e o Museu correu
o risco de se tornar naquele ecomuseu. Isso eu lembro que a gente fez uma
discussão, a princípio, sobre isso. Porque era muito além de ter um espaço
de memória e sim, um território de memória, né? Praticamente. Mas aí, a
gente achou que era inviável pela questão da função do tráfico, a questão da
circulação e a questão principal, que a gente estava muito magoado com o
turismo que tava ocorrendo nas favelas da Zona Sul do Rio. A forma como a
favela estava sendo vista. E a gente desde o princípio não queria ser aquilo.
159

O depoimento acima de Lourenço, mais uma vez nos remete ao fato dos
museus comunitários e os ecomuseus serem museus que caminham com o
movimento social, contra-hegemônicos, pois o próprio Museu da Maré já nasce
contestando, também, o turismo feito nas favelas da zona sul da cidade do Rio de
Janeiro. Ainda, sua entrevista nos oferece um rico depoimento ao nos falar do
empoderamento positivo que os diretores do Museu da Maré tentam dar à palavra
favelado, tão estigmatizada na sociedade brasileira. Cabe lembrar que o Museu do
Cantagalo -Pavão-Pavãozinho chama-se Museu de Favela – MUF. Faz parte desse
movimento de museus populares e de outros movimentos, esse tipo de iniciativa,
ou seja, ressignificar palavras estigmatizadas, dentre ações.
Quando perguntamos ao nosso entrevistado quais as maiores mudanças
geradas pelo Museu da Maré, Lourenço respondeu: Ah, quer ver onde eu vejo uma
mudança mais gritante? É no comércio, os comércios todos estão usando o nome
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Maré nos nomes.”


Outro ângulo importante em nossa reflexão é que é impossível falarmos do
Museu da Maré sem nos remetermos ao CEASM, como já abordamos em capítulo
anterior. A fala abaixo de Carlinhos também deixa bem claro a importância do
CEASM no fortalecimento identitário dos moradores da Maré e relaciona o
Museu da Maré à existência do próprio e à militância desde a Pastoral da
Juventude desse mesmo grupo de jovens moradores do Complexo da Maré.

O Museu da Maré, na verdade é um desdobramento de todo um processo


nosso de militância dentro da comunidade, eu nasci na comunidade do
Morro do Timbau em 65(...). Eu não sei exatamente qual teria sido a razão
deles terem vindo morar ali, eu acho que tem relação com obras da Avenida
Brasil, meu avô trabalhou na obra da Avenida Brasil e como aquela região
era próxima ao local de trabalho, eu acho que isso favorecia a moradia ali
no local. (...) Eu morei no Timbau até os meus 34 anos, 35 anos (...)

Também as atividades educativas e culturais do Museu contribuem para o


processo de empoderamento social da comunidade na medida em que a
comunidade se sente valorizada, prestigiada, sua memória construída e sua
história ressignificada pelo Museu principalmente, não há mais porque se
esconder que se mora na Maré etc.
Isto detectamos no trecho abaixo da entrevista de Lourenço:
160

Não, porque. é o ganho e ele (o Museu da Maré) é um ganho, muito além do


que a gente imaginou, porque a gente (o Museu da Maré) nasceu da
discussão de identidade e pertencimento. Então, se o cara diz assim, meu
estabelecimento é Maré, então, é sinal que nosso trabalho surtiu efeito.

Antes de se tornar o Museu da Maré, ali funcionava a Casa da Cultura,


numa antiga fábrica de transportes marítimos cedida ao CEASM por dez anos
(Chagas, 2007, p. 134). Um dos incentivos de que a Casa de Cultura poderia virar
um Museu foi dado pelo próprio professor e pesquisador Mário Chagas, como nos
mostra o depoimento abaixo de Lourenço:

(...). E aí, quando veio essa ideia do Museu, a gente achou meio louco. Aí, a
gente ficou meio assim: Ah,.... Depois eu fiquei sabendo que foi dos
encontros, dos fóruns...que conheceram Mário Chagas, que foi uma das
pessoas que incentivou e meio que disse que existia um caminho para o
Museu.
Então, foi um trabalho que foi... e a comunidade recebia muito bem tudo que
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a gente fazia e adorava... adorava ver as fotos antigas, adorava a última


página do Jornal do Cidadão. Então, você vê, têm vários fatores aí. O
CEASM, a Rede de memória que a gente cria, o espaço lá embaixo, que é
cedido para o CEASM. A princípio a ideia era colocar ali uma escola de
dança, como desdobramento do espetáculo do Bertazzo... E a outra coisa é
essa relação com a Fiocruz e a relação com o Mário Chagas.

Também o depoimento acima de Carlinhos nos mostra a conjuntura


favorável que vai conduzindo e sendo conduzida por “nossos narradores” rumo ao
nascimento do Museu da Maré. Cabe lembrar que foi unânime em nossas
entrevistas a fala de todos os entrevistados de que não houve uma intenção inicial
em fazer um Museu na Maré. Esta iniciativa foi o desdobramento de um processo.

Então, foi assim muito bacana essa coisa. E aí, lá no Museu da República, a
gente então, resolveu... tiramos esse projeto e a ideia era fazer uma
exposição sobre a Maré no Museu da República. Quando o Mário soube
dessa coisa da dona Orosina, ficou muito encantado. Então, nós vamos fazer
a volta da dona Orosina ao Palácio do Catete, aí, ele fazia uma conexão
entre palácio e palafita; palácio - palafita.”

A fala acima e abaixo de Carlinhos mostra o quanto o auxílio de vários


intelectuais e artistas no projeto do que seria futuramente o Museu deu corpo e
força aos sonhos de nossos narradores.

É. Então, foi uma parceria muito bonita, disso ficou a exposição que eram
dois ambientes. Ficou uma exposição bonita, com fotos, e nessa exposição
nós colocamos, também, objetos e fizemos uma vitrine com objetos da dona
Orosina e muitas fotos, e dois ambientes, um ambiente palafita e um
ambiente alvenaria, que seria mostrando a transição da favela. E aí, eu
161

posso te dizer, Helena, que essa exposição já era o embrião do museu,


porque muita coisa que estava na exposição está hoje lá no Museu. (...)
Também, exatamente isso! O Museu, ele então, ele não é alguma coisa que
alguém pensa, faz e... ele é uma coisa que vai acontecendo.

Os depoimentos comprometidos e apaixonados de Carlinhos sintetizam o


envolvimento visceral de nossos entrevistados com a causa. Eles são ao mesmo
tempo testemunhas oculares dessa bonita história de resistência, mas também,
protagonistas e narradores da mesma.
Sarlo (2007) afirma que a memória é um direito e um dever, um bem
comum e uma necessidade. Logo, o sentimento de busca por uma memória feliz,
uma memória mais equânime, mais justa, como nos afirma Ricoeur (2007), acaba
levando esse grupo de moradores e intelectuais a procurar estratégias para a
construção da memória e história local, o que culmina com a criação do próprio
Museu da Maré.
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O Museu traz esse resgate histórico e essa afirmação de identidade. ...e me


empoderei, mesmo nesse momento de resgate histórico e me auto afirmo
mesmo, enquanto moradora da Maré, favelada, enquanto mulher. Eu não
tenho vergonha jamais de onde eu vá e sempre falo, com dignidade, que sou
moradora da Maré. Teve muitos sacrifícios, precariedades...... “
(...)
É um povo que lutou muito para chegar como está hoje, o Museu da Maré
me fortaleceu, só tenho a agradecer. Eu acho que eu estava um pouco
anestesiada. Quando jovem, e com o passar do tempo, e tudo, a gente vai
amadurecendo e percebendo que os valores são muito maiores. É ou não é?

Os dois trechos acima do depoimento de Terezinha nos demonstram a


importância do Museu da Maré no movimento social e na luta contra o
preconceito e a afirmação de populações excluídas socialmente numa cidade
como o Rio de Janeiro. Chagas & Abreu (2007) afirmam:

“A experiência do Museu como ferramenta de comunicação e trabalho


contribui para a luta contra o preconceito em relação aos museus –
tradicionalmente considerados como dispositivos de interesse exclusivo das
elites econômicas- e também em relação às favelas - comumente tratadas
como lugares de violência, de barbárie, de miséria e de desumanidade. A
polêmica provocada pelo Museu da Maré sublinhou um fato que mesmo
sendo óbvio, frequentemente não é levado em conta, qual seja: o da favela
como lugar de cultura, de memória, de poética, de trabalho, e não apenas
como território privilegiado da bala perdida ou teatro de guerra onde
policiais enfrentam bandidos e bandidos enfrentam policiais.” (id, p. 133)
162

Quando ao final da entrevista eu disse a Terezinha que se quisesse poderia


dizer algo sobre o Museu, ela reforçou tudo o que já havia dito e acrescentou sua
preocupação com o fato de desejar que as gerações mais novas deem continuidade
ao próprio Museu em si, como nos relata no trecho a seguir.

Que esse Museu venha resgatar mais histórias e auto afirmar essas pessoas
que trazem essas histórias. Que elas se empoderem disso, né, com a sua
autoestima também, que isso é muito importante! E que as pessoas que vem
após a gente, elas não deixem isso morrer; os jovens que vierem, as crianças
que vierem, elas segurem esse Museu, para que ele siga seu curso por
longas datas.”

7.2.2
“Porque ele nasce desse projeto político de identidade e
pertencimento”
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“Lá tudo é tenso, palco de conflitos variados. Tudo está submetido a uma
dramaturgia especial, as identidades são cambiantes, deslizantes e híbridas.
O trabalho com a memória da Maré não foge à regra: também ele é tenso,
denso e dramático, também ele pode ser utilizado como um dispositivo que
tanto serve para cerzir e produzir coesão social como para esgarçar e
fragmentar relações.” (Chagas & Abreu, 2007, p. 135)

Chagas e Abreu (id) nos alertam para a importância ideológica do trabalho


com a memória e a identidade. Portanto, todo trabalho com memória envolve
relações de poder, quer sejam elas de grupos dominantes ou dominados. O Museu
da Maré não escapa disso, mesmo tendo sido criado por moradores do lugar; na
verdade, há que se exercer uma contínua vigilância para que esse espaço
institucional represente o coletivo, não se afaste e fuja dessa sua origem
comunitária.
O Museu da Maré torna-se assim, o receptáculo da memória da Maré em seu
espaço construída e transmitida por vários de seus narradores. Os museus
comunitários, especialmente, trazem a função educativa em seu “estandarte”-, ou
seja, na frente, junto ao movimento social-, pois desejam a melhoria da qualidade
de vida daquelas populações e o fortalecimento identitário da própria comunidade.
Para isso, educar a população através da construção de sua memória e narração de
sua história é fundamental para o empoderamento e fortalecimento identitário
desses grupos populares.
163

Le Goff nos afirma que para os grupos sociais tornarem-se “senhores” da


memória e do esquecimento são envolvidos por lutas de classes, por relações de
poder, como nos deparamos em todos os museus, ou seja, o que se quer lembrar e
o que se quer esquecer. Tanto os museus clássicos, como os museus comunitários,
passam por estes processos e disputas, vivem o tempo todo nessa tensão.

Ah, com certeza o Museu da Maré, toda a sua construção foi feita
juntamente com a comunidade, né. Antes de toda essa história de Museu da
Maré, se fazia, se fez muitos e muitos encontros, fóruns, né, com os
moradores pensando nessa construção coletiva do Museu da Maré. Então, o
Museu da Maré é sim, comunitário e vêm junto, já que esse movimento, que
essa militância do CEASM com toda essa construção, assim como o
CEASM, também foi construído, também, por coletivo de moradores. O
Museu da Maré, também seguiu essa linha e como filho do CEASM, também
seguiu essa linha no movimento social.

A fala acima de JB nos redimensiona a participação efetiva dos moradores


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da comunidade na construção do Museu da Maré. Portanto, como museu


comunitário se define por aquele tipo de museu que foi construído e criado no e
pelo movimento social, o Museu da Maré assim se encaixa como comunitário.

Deve ter sido, já é uma extensão da ação do Museu da Maré,


né, além é claro, né, de dar um valor a mais aos moradores, né. Nos nossos
encontros com os moradores, chamado “Chá de memória”, eles falam
muito sobre isso, né, da importância que é o Museu, como isso é
importante.

A fala anterior de JB reforça o orgulho dele e segundo o mesmo, dos


moradores da Maré, em ter um museu na região em que vivem. A comunidade
participa também, de suas atividades e cobra se haverá ou não certas atividades,
shows, cursos etc. Com isso, também ela o constrói e ressignifica a cada
momento, no cotidiano, conforme a demanda do próprio movimento social. Vieira
(2008) nos demonstra no trecho abaixo o valor que o museu comunitário pode
desempenhar:

“Não se pode esquecer o papel dos grupos sociais. Na verdade, como


portadores das memórias coletivas, eles podem romper com esta lógica do
lugar de memória atrelado á história oficial e construir novos paradigmas
que deem novo sentido a este conceito e rompam com o que Nora diz ser o
‘esfacelamento da memória’ (Nora, 1993, p.17). Aos grupos sociais, cabe
ressignificar os lugares de memória, devendo assumir o papel ativo na sua
identificação. Um fator fundamental a ser considerado deve ser justamente o
da “utilidade” dessa memória como combustível de transformação social.”
(Vieira, 2007, p. 156)
164

Os museus comunitários, como o da Maré, tentam construir uma memória


contra-hegemônica, na contra corrente, a despeito das dificuldades que enfrentam e
da própria questão de alerta que nos é dada por Chagas e Abreu na citação acima
apresentada. Esse ponto nos leva a outro crucial na discussão sobre a importância e
o significado desses museus. Nessa linha reflexiva inevitavelmente podemos pensar
se o Museu representa ou não todas as comunidades da Maré. Por isso, a pergunta
feita por mim ao entrevistar “Seu” Atanásio: O senhor acha que por causa desse
problema do tráfico, e dessas divisões políticas internas, o Museu da Maré não
representa toda a Maré? Mas ele é importante de existir? Ao que ele respondeu:

Não, estritamente ele representa toda a Maré! Porque todo mundo que
conhece, que fala do Museu da Maré, fala do Museu da Maré, fala que
abrange a 16 comunidades. Então, ele representa a toda a comunidade.
(Entrevistadora pergunta): Então, ele representa? (...)
“Representa! Representa! Infelizmente não é bem frequentado pelas outras
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comunidades porque fica do lado de cá!” 26

Além disso, a fala de “Seu” Atanásio nos traz a preocupação de afirmar que
o Museu representa a história de todas as comunidades da Maré. Segundo ele, o
que muitas vezes atrapalha são as divisões internas do próprio tráfico restringindo
e intimidando as comunidades no seu direito de ir e vir. Essa fala, também, nos
conduz à questão sobre identidade, ou melhor, do possível fortalecimento
identitário da comunidade, ou das comunidades, através da construção da história
e memória da Maré.
Para Halbwachs (1990), a memória coletiva é constituída de vários pontos
de referência importantes para a coletividade à qual pertencemos. Tais elementos
de referência - situações, monumentos, paisagens, músicas, comida etc - são
transmitidos pela tradição e podem ter sido ou não vividos pelos sujeitos, como é
o caso da palafita, onde diversos indivíduos viveram nelas e outros não. Portanto,
a base de uma determinada identidade é composta pelas referências culturais que
permitem um sentimento de pertencimento a um grupo.

Eu acho que a identidade não deu para atingir a todas as comunidades,


porque infelizmente a gente tá com uma defasagem, uma deficiência de
comunicação, o Museu não consegue atingir a todas as comunidades. Tem

26
Nessa fala “Seu” Atanásio refere-se ao tráfico e suas divisões internas e territoriais do próprio
espaço da Maré, o medo da população local em frequentar áreas fora do domínio da facção do
tráfico que manda naquele local de sua residência. Isso também foi por nós abordado na análise
das entrevistas dos pescadores.
165

comunidades que ainda não se identificam como morador da Maré,


enquanto comunidade, enquanto favela. As pessoas, elas, ás vezes, preferem
não dizer que moram, então, nem todos foram (...) atingidos, nem todos
ainda foram contaminados.

O trecho transcrito acima da fala de Terezinha complexifica esse ponto


nevrálgico sobre a justificativa do Museu da Maré representar ou não toda a Maré.
Mostra-nos por outro lado, que de fato várias comunidades que visitam o Museu
não se sentem representadas e que a própria Terezinha percebe essa realidade.
Também, voltaremos a esse ponto no próximo capítulo ao analisarmos alguns dos
depoimentos dos moradores do local ao visitarem o Museu da Maré. Algumas
comunidades se sentem menos representadas, como o Conjunto Esperança e a
Vila do João, dentre outras, como nos afirma Terezinha.
Por outro lado, JB, embora ateste o mesmo que Terezinha, nos diz que as
comunidades que menos se sentem representadas no Museu, são o Parque União,
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Roquete Pinto e Rubens Vaz.27 Além disso, JB também nos chama atenção para
as fotos expostas no Museu, pois a maioria delas são das comunidades mais
antigas, como: Nova Holanda, Timbau, Baixa do Sapateiro, Vila do João, locais
também que tiveram muitas visitas de governantes e grandes construções
No entanto, embora pontualmente algumas comunidades não se sintam tão
representadas como nos afirma Terezinha, concordamos com Lourenço quando
afirma que os objetos do Museu são como palavras geradores que perpassam e
tocam a todos os moradores das comunidades da Maré e de diversas outras
comunidades populares. Os trechos abaixo de Chagas & Abreu (2007) ilustram o
que acabamos de expressar de forma mais clara e precisa:

“O Museu da Maré afirma-se como um museu universal, sem perder de vista


a sua dimensão nacional e regional e sem deixar de tratar das diferentes
localidades da favela, da vida social de mais de 130 mil pessoas e,
especialmente, do cotidiano delas, mergulhado em histórias, tradições,
festas, esperanças, projetos, sonhos e reflexões diversas.”

Portanto, construir essa memória é fortalecer os laços de identidade dos


grupos que integram a comunidade da Maré. A fala abaixo de Terezinha nos
remete a esse conceito de que lembrar é compartilhar vivências, sentimentos,
relações entre familiares, próximos, amigos, vizinhos etc.

27
Cabe lembrar que tanto Terezinha, quanto JB, foram e ela ainda é mediadora do Museu, logo
mantém um estreito contato com o público visitante e são guias dos mesmos nas visitas.
166

Eu gosto do “Tempo da casa”, que retrata toda vivência da relação familiar


e a relação...., quando eu digo familiar, eu não digo só família ...
moradores, pois nos consideramos uma grande família. Então, os barracos
eram muito próximos e tinham essa relação, nós éramos os vizinhos que
quando fomos solicitados, estávamos sempre disponíveis.

Essa relação a que Terezinha se refere nos mostra mais uma vez a
proximidade e a luta de comunidades populares – como a da Maré - que vivem
dramas e desafios, que devido à ausência do poder público, geraram a união dos
mesmos lutando por uma qualidade de vida, ou apenas para poderem sobreviver.
E são lembranças como essas que, segundo Pollack (1989), partilhamos através da
memória coletiva.

Eu não morei na casa de palafitas, quem morou foram meus pais, eu já


morava numa casa de aterramento. Meu pai também tinha essa iniciativa de
fazer as melhorias, enquanto participávamos da Associação de Moradores e
daí, em diante a coisa foi melhorando, mais ainda da construção do
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barraco, que era muito grande, mas não dentro da água, dentro do
aterramento. Mas, a família do meu pai morava toda; e nós circulávamos
diariamente, pois vínhamos visitar nossas tias e avós.

Esse depoimento comovente de Terezinha como protagonista dessa história


nos envolve e a envolve, pois quando mediou a visita ao Museu de alguns
pescadores que entrevistamos acabou chorando ao vê-los chorar por identificarem
nas fotos seus próprios “barraquinhos”. Alguns deles, como já afirmamos no
capítulo anterior, nunca tinham visitado o Museu, se emocionaram ao ver nos
objetos daquela palafita, o seu próprio “barraco”! Ou ainda, quando apontavam
em algumas fotos da década de 70 e 80, os seus próprios barracos e/ ou barcos.
São esses objetos, lembranças, afetos, enfim “modos de viver” que fazem parte da
memória compartilhada por aquele grupo. Com certeza o reforço dessa realidade
através de imagens e objetos facilita o fortalecimento dessas identidades locais no
contexto do universo cultural da Maré.

Não, sim, a palafita é um centro, né? Além de um acervo de um tempo, ela


também é um acervo do Museu, onde pode-se dizer que a maior
identificação, aí, com os moradores. Tem morador que chega no museu e se
depara com aquela palafita, ele começa a chorar, ele não consegue nem se
quer subir.”

JB nos chama atenção em sua fala anterior sobre o apelo que alguns objetos
geram no público, principalmente nos habitantes da Maré. Sem dúvida alguma a
palafita é a mais emblemática peça do acervo do Museu da Maré.
167

Não, morei quase nas palafitas, quer dizer, morei nas palafitas, porque meu
barraco tinha uma parte que aqui era no chão, outra parte era em cima
d`agua, tinha uns pés de madeira. Eu não tinha barraco não, quem tinha era
ela, e quando nos resolvemos nos casar...

Também o depoimento acima de “Seu” Atanásio nos remete ao fato dele ter
vivido nas palafitas e à situação de dificuldade passada por diversos desses
narradores. Assim sendo, eles se assumem como protagonistas dessa história local
e da construção dessa memória que será exposta ao público, recontada e revisitada
em momentos diferentes por eles mesmos e pelos outros moradores da região.
Mais uma vez a marca de museu comunitário se coloca ao Museu da Maré quando
a população local assume a autoria dessa iniciativa e construção.

Claudia, Carlinhos, Professor Marcelo Belford, o Edson, a Renata... tinha


uma turma boa! E já tinha essa discussão. Se eu não me engano, na época
eles já fizeram uma exposição de banners, e aí, toda festa a gente trabalhava
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com esses banners. Trabalhava muito nas festas, também, com slides. Foi
um nesses slides que vi meus irmãos na palafita. Só que isso se perdeu,
parece que foi devolvido para a Caixa Econômica e pegou fogo lá. E aquilo
me chamou muito a atenção, porque eu vi todos meus vizinhos da palafita...
criança ainda.

Lourenço inclusive acrescenta em conversa conosco que não se lembra de


sua vida na palafita, mas ao ver as fotos expostas (numa das primeiras exposições
feitas por esse grupo que irá fundar o Museu da Maré) é que reconhece seus
irmãos e vizinhos naquelas fotos.
Sarlo (2007) entende que não há testemunho sem experiência, sendo assim,
Carlinhos não chegou a viver nas palafitas, mas ajudou quem lá morava, se
solidarizou e sofreu com os mais pobres que ali viviam, pois trabalhou
voluntariamente no posto de saúde do local. Carlinhos na ajuda prestada á
comunidade é um testemunho e à luz da teoria de Sarlo (id) e Ricoeur (2007),
todo o testemunho desempenha funções sociais ou judiciais.

Tinha, tinha muita palafita ali também, e a gente fazia... tinha um posto
médico que eram uns médicos voluntários que iam atender as pessoas lá, eu
trabalhava nesse posto ajudando a preencher as fichas das pessoas e
auxiliando a médica lá para fornecer remédio para as pessoas, enfim, a
gente também fazia visita às famílias, as famílias mais pobres, a gente
aproveitava e levava alguns alimentos também. Então, era um trabalho
assim, dessa natureza social.
168

Tanta emoção assim ao ver a palafita nos remete ao sentido existencial da


casa para todo e qualquer ser humano. Vieira (2008) explicita sobre o significado
simbólico da casa, presente em diferentes povos em tempos e espaços diferentes.

“Sem dúvida, temos na casa um lugar de memória. A materialidade talvez


seja o caráter predominante deste “objeto”, já que existe e é concreto e, mais
do que um objeto em si, apresenta-se como um conjunto de objetos. Por
outro lado, a casa é portadora de uma extrema força simbólica, que não
poupa qualquer de seus visitantes, expõe sentimentos, impõe um ritual de
passagem, de imersão no tempo. É também funcional, explicada pelo
contexto no qual está inserida, que se pretende como um espaço-museu.” (id,
p. 157)

Nos museus comunitários esses objetos são entregues e doados pela


comunidade na maioria das vezes e isto gera e fortalece o sentimento de
pertencimento daquele espaço como deles. Encontramos esta realidade também na
fala de JB quando se refere ao Livro de Depoimentos e às demandas das diferentes
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comunidades aí registradas. Este ponto será melhor explorado no capítulo seguinte.

Sim, tanto é que há um caderno na exposição de comentários, onde os


moradores relatam, escrevem, fazem pedidos, né! Indicam algumas questões
também e eles são convidados a trazer fotos, documentos, a dar entrevistas
para que possa contemplar todas as 17 comunidades dali da região..

Também JB revelou em seu depoimento o quanto a construção de sua


identidade se deu no contato e mediação com os moradores nas visitas ao Museu
da Maré:

Sim, o próprio contato com os moradores, né. As experiências, as vivências


adquiridas, né. Eu ouvi muito, eu escutei bastante, e acho que isso tudo
proporcionou essa construção, né, essa moldura toda”

Vieira (2007, p. 158) reflete sobre a experiência bem sucedida do Museu da


Maré, como uma referência da construção da memória local como “um processo
de autoconstrução de uma “comunidade afetiva”, que se reforça nos sentimentos
de pertencimento, experiência singular num espaço marcado por silêncios e
fronteiras invisíveis.”, já que seus protagonistas são seus próprios moradores,
como ele próprio nascido e criado na Maré.

Sim, ele trabalhou nos aterros. A pavimentação que eles faziam de cimento,
recebiam um material de concreto, aí, durante a madrugada, as pessoas
acordavam duas horas da manhã correndo desesperadamente com resto de
concreto, e tinham que espalhar aquele concreto até que endurecesse.
Então, era um trabalho muito sacrificante.
169

No trecho acima Terezinha refere-se aos aterramentos feitos de madrugada,


escondido da polícia, pelos moradores. Afirma que seu pai também trabalhava em
prol disso e ela assistia esse trabalho e luta para a melhoria da qualidade de vida
de todos por ali.

Eles (os museus comunitários) querem perpetuar sua existência, suas lutas,
suas conquistas e derrotas também. E eu, acho que o museu tem muito essa
função. Porque ele nasce desse projeto político de identidade e
pertencimento. Então, ele nada mais é que um instrumento pra perpetuar a
luta política, fundamental que é de garantia de melhorias, discussão do
“eu”, justiça social... Então, era uma coisa diferente. Aí, quando veio
“museu”, museu pra quem, né? Para os moradores da Maré. A gente não
imaginava que muita gente de fora iria vir aqui ver o museu, né? A ficha só
caiu anos depois, quando começaram a fazer várias matérias...”

Lourenço no trecho acima remete-se, como escrevemos anteriormente sobre


a fala de “Seu” Atanásio, ao fato do porque da existência do Museu da Maré, ou
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melhor, para que ele existe. Mas, sua fala também nos traz a importância do
projeto político de fortalecimento identitário, de sentimento de pertencimento,
como nos elucida Halbwachs ao nos afirmar que a memória compartilhada é
aquela que é gerada pelo compartilhamento de lembranças comuns a um grupo de
pessoas, como a lembrança das palafitas, onde vários deles moraram e que se
deparam ao entrar no Museu da Maré; ou as fotos de vários momentos históricos
na favela, como carregar água no rola-rola, que é exibido nas fotos expostas na
exposição permanente do Museu, dentre outros exemplos que poderíamos dar.
Portanto, para Halbwachs as lembranças sempre são fruto de uma experiência
coletiva num contexto social específico.

Na verdade nosso discurso já tava assim, né? Contra hegemônico... fazia


toda essa discussão. Essa valorização da identidade enquanto favelado era
muito forte. Quando surgiu a ideia do Museu, foi uma reunião da diretoria,
e o Carlinhos, depois a Rose...e Luis Antônio também, e o Marcelo... são
uma galera que sempre circulavam mais no mundo da cultura, eu sempre
fiquei mais na parte da educação.

A fala acima de Lourenço nos coloca claramente a questão da identidade, ou


seja, a valorização de favelado enquanto identidade, o empoderamento positivo
até mesmo da palavra favelado revelado em diversas das falas dos diretores do
Museu da Maré, especialmente. Segundo Candau (2002, 2006 e 2009) a
identidade ora torna-se essencializada, ora pluralizada, dependendo da
necessidade da luta política no movimento social. Ora, segundo Lourenço e os
170

demais membros desse grupo, o empoderamento positivo da palavra favela e


favelado, fortalece essa população.

É. Tanto é que quando você fala com o Luiz28, por exemplo, ele sempre fala
que o incomodo dele é que ele quer que a Maré toda entre no Museu, né? E
se a gente fosse nessa onda do Ecomuseu, a impressão que dá é que você tá
mostrando muito mais pra fora do que pra dentro, né? Porque na realidade
nossa discussão era de identidade, de pertencimento, não necessariamente
do Museu pelo Museu, né?

Lourenço reforça a função do Um


seu, ou de outra instituição com outro nome que viessem a criar, o importante para
esse grupo de fundadores do Museu era, na verdade, a do fortalecimento
identitário através da construção das histórias e memórias locais.
Quando o Museu se preocupa em expor e construir essa história e memória,
ou melhor, essas histórias e memórias, sabemos o quanto há de intenção que não só
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essa memória não seja esquecida, mas seja, principalmente, ensinada às gerações
mais jovens. No capítulo seguinte abordaremos esse assunto melhor quando
analisaremos os depoimentos de moradores jovens que não viveram nas palafitas,
mas sabem dessa realidade pela história oral contada pelas comunidades, ou por
seus pais e avós que viveram em tal época e naquelas condições de precariedade.
Appadurai e Breckenridge (2007) reforçam o que acabamos de expor sobre a
importância desse processo educativo, que vão denominar de informal.

“Os meios informais de aprendizagem em sociedades como a da Índia não


são, portanto, meras curiosidades etnográficas. São recursos culturais
legítimos que corretamente compreendidos e utilizados) podem bem aliviar
as inúmeras pressões artificiais colocadas sobre a estrutura educacional
formal. Os museus constituem um componente emergente desse mundo da
educação informal, e o que aprendemos a respeito dos museus da Índia nos
revelará coisas importantes sobre aprendizagem, o ato de ver e os objetos, o
que, por sua vez, deverá estimular abordagens criativas e críticas dos museus
(e dos sistemas informais de aprendizado em outros lugares.” (id, p. 10)

Constatamos nas falas de nossos entrevistados que uma de nossas


formulações se confirma, pois imaginamos que o Museu da Maré nasce para
facilitar o empoderamento e fortalecimento de comunidades populares através da
construção de suas memórias e histórias, no caso de moradores de uma favela.

28
Luiz Antonio é o terceiro diretor do Museu da Maré e do CEASM que eu infelizmente acabei
não conseguindo entrevistar. Mas, que sempre foi muito receptivo e colaborador com o meu
trabalho de campo, quer nas observações, quer nas participações no Grupo de Memória do Projeto
DaMaré executadas no Museu.
171

Cada pessoa tem um sentimento diferente. Diferente principalmente entre o


morador da favela, independente de ser da favela da Maré ou não, da
pessoa que nunca morou em favela. E o que eu sinto, é que para o morador
de favela, primeiro tem aquele momento de nostalgia ...
(...) Eu acho que durante as últimas décadas a gente perdeu a rua na favela.
A rua sempre foi o local das realizações da favela.

A fala surpreendente de Lourenço diz que essa nostalgia se deve a uma


mudança nas práticas sociais no espaço territorial, ou seja, devido á violência do
tráfico, diversas atividades não ocorrerem mais na rua e disso eles tem saudades..
Na verdade, procura-se mostrar àquelas comunidades que elas tem história,
que tem glórias em sua resistência em não sair daquele lugar, assim como de
conquistar o próprio chão, porque em muitos lugares era água, mangue.
Em geral a identificação do público com o Museu da Maré é muito grande,
como o próprio JB nos fala no seu depoimento:
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Olha... É até engraçado que quando eu me despedi da instituição a parte


mais triste foi quando eu tive que devolver o chapéu do Juvenal.29

O depoimento acima nos ilustra o tanto que JB se envolve com paixão e arte
na divulgação da história da Maré, de sua própria comunidade.

Então, na verdade é... Esse ano com a minha saída é... Nós tivemos que nos
reorganizar, né, pra continuar esse trabalho. Então, hoje há uma equipe
interna composta por quatro pessoas que acompanham os trabalhos dos
mediadores. Mas, mesmo assim, eu dentro das minhas possibilidades, ainda
faço uma espécie de consultoria com a equipe até dezembro. Então, todos os
sábados eu venho fazendo formações extensivas de capacitação”.

JB afirma-nos acima o quanto cresceu como cidadão, como o Museu da


Maré foi importante para ele construir uma identidade pessoal, profissional e
valorizar mais as pessoas e os lugares onde mora. O Museu fortaleceu portanto,
sua identidade. Com certeza, há uma intenção do Museu em desejar fortalecer a
identidade da favela e dos moradores da Maré. Nesse sentido se fortalece uma
identidade de resistência ou de projeto dependendo do momento e da intenção.
(Castells, 1999)

Então, ás vezes eu me considero multifuncional, multiprofissional, também.


Porque além de serviço social, eu trabalho com outras questões e outras

29
Juvenal é um dos personagens principais de uma história do Livro Contos e Lendas da Maré,
intitulada “Casamento na palafita”, onde no meio da festa do casório, enquanto os convidados
dançavam, o chão da palafita caiu. Essa história é sempre contada com bastante alegria pelos
mediadores.dentro do espaço da exposição permanente do Museu da Maré.
172

funções, também. Eu trabalhei dentro do Museu e depois eu fui orientadora


dos Jovens Talentos, que a FAPERJ patrocina. No momento eu ainda estou
fazendo esta tarefa.

Também essa identidade multifuncional se fortalece e muda dependendo da


função, como nos afirma Terezinha no depoimento acima sobre suas variadas
funções dentro do próprio Museu da Maré.
Voltando a Ricoeur (2007) na questão do testemunho e na confiabilidade do
mesmo, percebemos a autenticação do testemunho na medida em que diversos
moradores das comunidades da Maré demonstram aceitar e referendar as
narrativas do Museu da Maré, pelo menos no universo por nós pesquisado.

7.2.3
“O Museu conta minha história, a minha história da infância...”
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Não, tinha uma coisa já nossa que era todo o projeto nosso independente do
que ele fosse que fosse, de dança, de educação... ele já abria com histórico
da Maré.

O depoimento de Lourenço se refere à pergunta que lhe fiz sobre O que vocês
pensaram neste sentido assim da metodologia para educar, para ensinar alguma
coisa pelo museu? Podemos perceber que sem nominar, os “narradores da Maré” se
preocupam em escrever essa história de resistência e luta, de dar-se a ler o mundo
“com olhos de ver”. Logo, o empoderamento passa por essa democratização da
história da Maré e esta só acontece de fato se for por caminho educativo.

Eu acho que em todas as comunidades poderia até ter para reforçar,


reforçar, né, que as pessoas ficam tão indignadas e realmente... a partir das
histórias, da sua história, de conhecer a sua história é que elas conseguem
se valorizar. Mas quando a gente não conhece a nossa historia, então...
porque quando se desconhece, você pela reação, não quero nem falar onde
eu moro, alguém que realmente não conhece a sua história.”

O depoimento acima de Terezinha nos mostra a importância, mais uma vez,


do Museu da Maré em sua plenitude, ou seja, na escrita da história local de grupos
excluídos socialmente. Diversos de nossos entrevistados nos confidenciaram que
dependendo de onde estivessem respondiam que moravam em Bonsucesso, caso
isto lhe fosse favorável, ou na Maré, se fosse mais vantajoso socialmente essa
resposta. Appadurai & Breckenridge (2007) nos falam que os museus continuam a
173

ser fundamentais para a formação dos cidadãos fazendo parte de um complexo


expositivo (id, p. 23)

Eu vejo essas mudanças porque as pessoas retornam, elas divulgam, elas


trazem outras pessoas. Quando elas veem, elas ah, eu já vi no Museu, o
Museu conta minha história, a minha história da infância...”

Sim, e elas gostam muito assim, isso é muito bom, né. Um Museu que traz a
história da gente, tem as fotos da gente, esse registro...

Os trechos dos depoimentos acima de Terezinha revelam o quanto de


orgulho existe em quem se identifica e se vê como protagonista daquela história,
do valor daquelas lutas e que são retratadas e revividas na exposição do Museu, na
construção da história e memória daquele lugar...

Não, era ordem da Secretaria de Desenvolvimento de não deixar fazer mais


casa na comunidade, só podia, é.... eles tinham um boletim que dizia podia
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reformar, se a casa tivesse caindo, mas não podia fazer novas casas. E
assim mesmo, só podia fazer com o mesmo material, não podia fazer com
material diferente. Então, nós, eu e um presidente da, do Parque União, com
a minuta com o Mário Andreazza me deu.
Não, é porque antigamente nas comunidades não tinha luz. A light chegava
na entrada da favela, plantava uma casinha ali, que duas pessoas da
comunidade se responsabilizavam pela luz. Então, ...

Toda essa história de luta contada oralmente por “Seu” Anastácio e outros,
se encontra narrada no Museu da Maré nos diferentes Tempos em que é dividido o
Museu. Chagas (2007) desvela o significado da divisão dos tempos no Museu da
Maré no trecho a seguir:

“Um museu concebido em 12 tempos, tempo da água, tempo da casa, tempo


da migração, tempo da resistência, tempo do trabalho, tempo da festa, tempo
da feira, tempo da fé, tempo do cotidiano, tempo da criança, tempo do medo
e tempo do futuro. Um museu que concebe o tempo, simultaneamente, de
modo diacrônico e sincrônico. Um museu que dialoga com relógios,
calendários, cronômetros e diferentes ritmos naturais e sociais.” (Chagas, id,
p. 140)

“Seu” Atanásio, assim como outros moradores que são “narradores” da


comunidade, doou ao Museu diversos objetos e papéis que descortinam e
convidam o visitante a conhecer esse passado. Tais elementos, como cartas de
associações de moradores, mandatos de prisão, cartas de posse dadas pelo BNH
(Banco Nacional de Habitação) são como “migalhas” desse passado recente que
teimam em contar uma história tão distante da história oficial e governamental. Le
174

Goff (1999) nos sinaliza o quanto a história oral tem se firmado nos dias atuais. A
partir de 1950 nota-se uma valorização e mesmo exaltação da memória coletiva,
busca-se a memória não só nos documentos e textos, mas nos gestos, nas imagens,
ritos, festas, dentre outros.

A: Nem sei bem...só vendo por aí! (risos).


A: Tem uma menção honrosa aí...
H: Mas, o senhor não colaborou com os objetos aqui do Museu?
A: Colaborei, colaborei...

O diálogo acima e abaixo feito entre “Seu” Atanásio (A) e eu (H) no


momento de sua entrevista, durante um “Chá de memória” no Museu na
“Primavera de Museus”30em 2011, nos comprova o quanto o acervo do Museu é
composto por pertences da comunidade.
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“A: Inclusive eu tenho uma máquina de costura que eu comprei quando eu


cheguei... aí, uma das diretoras daqui é doida: “- Traz essa máquina pro
museu!”
- Essa não! Essa é relíquia minha...essa não! Quem quiser conhecer vem
aqui na minha casa! (risos)”

Foto 48 de Helena Araújo - “Chá de memória” no pátio do Museu da Maré em 2011.

30
A “Primavera dos Museus” é um evento que ocorre todo ano envolvendo os Pontos de Cultura
do Brasil inteiro, ou seja, os museu comunitários, ecomuseus ou Pontos de Cultura promovendo ao
mesmo tempo uma semana de discussões e atividades sociais e culturais em seus espaços.
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175

Foto 49 de Helena Araújo - “Chá de memória” com um dos contadores de histórias se


apresentando.

A irreverência e simplicidade da resposta de “Seu” Atanásio ilustra o


quanto alguns membros da comunidade se sentem íntimos com o acervo e o
próprio Museu, chegando a misturar os seus próprios espaços público e privado.

Já estava atuando dentro do CEASM, que eu fazia pré-vestibular, e a partir


do pré-vestibular a gente foi fazer uma oficina de contação de história,
acreditando que era para uma outra história, não uma história local, e
quando nós começamos a fazer a oficina a gente viu que dava para
trabalhar as histórias locais, da Maré.

A descoberta da possibilidade de se narrar a história local, de construir uma


memória de resistência e luta daquelas comunidades se origina no trabalho feito
pelo CEASM. A fala acima de Terezinha, que assim como alguns outros membros
do Museu da Maré frequentaram o pré-vestibular do CEASM, elucida a
importância do projeto político e identitário construído por essas duas instituições.
Quando esse grupo fortalece e escreve sua história local como protagonistas que
são dessa mesma história, não só fortalece as identidades locais como se
diferencia ou quer se diferenciar.
Cuche (1999) nos fala da importância da questão identitária estar ligada ao
viés cultural, pois para ele a identidade se constrói através de processos de laços
176

conscientes escolhidas por oposições binárias, porém a cultura se dá por um


processo inconsciente de diferenciação.

Eu lembro que teve uma vez que a gente fez uma transmissão do desfile do
Corações Unidos de Bonsucesso que foi um alvoroço, todo mundo correndo
um para avisar o outro que estava na televisão aquela transmissão, "Ah, no
canal..." - acho que era o canal sete, ou nove - "...está passando o desfile do
Corações Unidos". Aí, todo mundo correu para assistir, foi muito
interessante essa experiência também; e aí nós tivemos a ideia de fazer um
vídeo sobre a história da região. Depois da gente conhecer, de ouvir várias
pessoas falando e começamos a fazer um roteiro e a fazer também algumas
entrevistas. O roteiro tinha a ideia das entrevistas e esses moradores que
davam entrevistas, eles falavam muito, eles tinham um carinho muito grande
pela história de vida deles, pela história da comunidade, como é que eles
chegaram ali, de onde eles vieram...
É... moradores mais antigos, a gente procurou aquelas pessoas que eram
referência, o pessoal mesmo dizia: "Vai lá, entrevista o “Seu” fulano,
entrevista o “Seu Manel”, entrevista o Atanásio, entrevista o Agamenon”.
Então, as pessoas... “Ah, entrevista o “Seu” Albano, que é pescador”.
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Então, nós fomos fazer todas essas entrevistas e essas entrevistas foram um
marco, porque elas revelaram uma memória do lugar que a gente não
conhecia

Os dois depoimentos acima de Carlinhos nos revelam a descoberta da


história da Maré, futuro fio condutor de todas as atividades desse grupo, quer na
educação ou na cultura.
Também o depoimento abaixo de Lourenço revela tanto o deslumbrando
com a descoberta da história da Maré, quanto demonstra a importância do
CEASM na construção de seu espírito crítico e cidadão, além de destacar o início
do surgimento da Rede de Memória.

Isso. Na realidade eu conheci foi o CEASM, meu irmão foi lá fazer o pré
vestibular, uma das primeiras turmas, em 98. Aí, naquela época eu
trabalhava em loja e não tinha como fazer o pré vestibular. Então, o
CEASM, na época estava contratando pessoas pra trabalhar num projeto,
num trabalho de prestação de serviços que tinha para a Light. E aí, eles
fizeram um concurso público na Maré. Aí eu fiquei em primeiro pela Vila do
João, que era um por cada comunidade. Aí, foi quando eu conheci o
CEASM. E aí, a partir disso, também, eu conheci a Maré, através desse
trabalho, porque era um trabalho que a gente ia de casa em casa. Aí, a
gente redescobriu a Maré! Era um trabalho de educação, de consumo de
energia. E foi muito legal. Aí, logo depois, no ano seguinte, aliás, no final do
ano de 98, quase 99, eu entrei para o vestibular. (...)continuei a fazer o pré-
vestibular e envolvido com um monte de coisas. Militância já dentro do pré-
vestibular. (...)´Aí, eles me chamaram pra trabalhar. Na verdade, eu fiz
prova do IBGE, passei, mas abri mão para trabalhar no censo daqui. Aí,
voltei para o CEASM. Mas naquela época dentro do CEASM já se discutia
essa questão da memória da Maré. E se eu não me engano, em 99, já
estavam fazendo a rede de memória.... começando a nascer o jornal.
177

Também na fala acima de Lourenço vemos a importância da publicação do


Jornal O Cidadão para toda a comunidade. Cabe lembrar que no final do Jornal, que
existe até hoje, há uma página dedicada à memória da Maré, à história do lugar.

(...) Em 92 acaba realmente o projeto da TV Maré. A gente fica com aquele


material, em 95 eu entro para a associação de moradores e na associação a
gente tem muitas ações que a gente começa a desenvolver, eu também vi que
a associação tinha um acervo de fotografias, de documentos, estava todo
estragado praticamente e eu vi que realmente era urgente a gente tentar
recuperar essa memória da comunidade que estava se perdendo por uma
falta de consciência mesmo das coisas. Quando em 97 a gente resolve
fundar o CEASM, a questão da memória já está também dentro da
perspectiva do CEASM. O CEASM, ele surge da questão de um reencontro
de pessoas que atuaram na Igreja e no PT local. Durante certo tempo a
gente começou a fazer algumas reuniões querendo reativar o PT já que a
gente estava fora da Igreja. A gente queria ter algum trabalho dentro da
comunidade, nesse meio tempo a Maristela, que era minha tesoureira na
associação, ela está trabalhando na Secretaria de Habitação e ela está
trabalhando com a Eliana. A Eliana também trabalha na Secretaria de
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Habitação. Então, a gente juntou essa coisa da Eliana estar lá: "Ah tá,
vamos tentar fazer alguma coisa? Vamos tentar reativar o PT aqui na
Maré?" e começamos a fazer as reuniões no espaço onde hoje é o CEASM
do Timbau, que era um espaço que o pessoal chamava de CETOT. Estava
muito degradado, algumas famílias estavam morando ali...

O depoimento denso de Carlinhos, sobre a origem do CEASM e sua


vinculação com a militância política desse grupo, nos permite entender a riqueza
dessas trajetórias de vidas individuais. Também, compreendemos que havia a
necessidade da construção da história local não apenas como história em si, mas
como metodologia disparadora para conscientizar e alcançar um fortalecimento
identitário.

E o Arquivo Orosina Vieira ele teve esse nome justamente por causa da
figura da dona Orosina, porque a gente quando fez a questão do vídeo, nós
acabamos descobrindo que a dona Orosina era uma figura fundamental.
Dona Orosina era uma moradora antiga. O pessoal dizia que era a mais
antiga; não era, depois a gente viu que tinha um pessoal da Praia de
Inhaúma, tinha os familiares do Conrado das Neves, que foi proprietário
daquela região e que a Maré também tinha sido formada por vários núcleos
de ocupação. Então, não era assim, cada núcleo tinha uma história, tinha
uma questão política envolvida de cada tempo. Então, a Maré não era uma
coisa única.

Carlinhos no depoimento acima nos fala sobre a origem do nome do


Arquivo Orosina Vieira, as descobertas históricas desse grupo de “narradores” e
como esse trabalho de memória foi sendo feito ao longo de um processo que
gerou o Museu da Maré.
178

Chagas & Abreu (2007) nos afirmam que existe essa vontade de memória,
vontade de patrimônio e vontade de museu de diferentes grupos sociais, como nos
deparamos todo o tempo nas falas de nossos entrevistados.

“Convém registrar que esse empreendimento museológico insere-se no


conjunto de ações que permitem identificar a manifestação da vontade de
memória, da vontade de patrimônio e da vontade de museu de diferentes
grupos sociais. Neste caso, trata-se de necessidade vital de um grupo de
jovens moradores do complexo de favelas da Maré, que, exercendo o direito
à memória e à escrita da história, passam a construir narrativas na primeira
pessoa (do singular e do plural) e a escrever uma história pouco conhecida,
cuja referência é o ponto de vista de quem nasceu, cresceu e experimentou a
vida a partir das suas diferentes comunidades.” (id, p. 132)

7.2.4
“O Museu da Maré é um aparelho muito visual e auto educativo”
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Ficou só Museu da Maré. E aí, assim, como eu estava te falando, todos os


projetos tinham esta ideia da história da Maré, como um viés político na
instituição para qualquer projeto que ela venha querer fazer e, como um
museu, ele é instrumentalizado, né? Ele é um aparelho assim, muito visual e
auto educativo para fazer este trabalho político, entendeu?! Então, ficou
muito mais fácil fazer a entrada e os questionamentos que surgem a partir
dali. (Lourenço César, um dos diretores do Museu da Maré

Assim como Appadurai e Breckenridge (2007) percebem nos museus


indianos, Lourenço afirma acima ter o Museu da Maré uma função auto-
educativa, ou seja, todos os projetos desse grupo - que também criou o CEASM -
tinham como eixo a história da Maré, queriam ensiná-la, valorizá-la e com isso,
proporcionar o fortalecimento identitário daquela população. A história da Maré é
então, o fio condutor da exposição permanente do próprio Museu.

Não, ele não representa, ele não representa e acho que nem pode representar,
é inviável representar, porque a gente tem aí, 16 ou 17 favelas, cada uma com
histórias diferentes umas das outras. E o que eu acho, que gosto do museu, é
que ele é, sabe aquilo que o Paulo Freire chama de palavras geradoras, o
museu para mim é isso: ele tem alguns objetos que fazem isso com a sua
mente, e você vê aquela foto, tanto é que ele não tem um roteiro, embaixo
assim desta foto aqui é referente a num sei o que ... num sei o que, porque
fulano fez tal, o museu não tem isso. Isso acho legal, porque a história, ela é
muito particular, a relação da pessoa com aquele objeto é muito particular.
Então, a pessoa olha aquela foto, aquela foto, abre uma gaveta na memória
da pessoa e vai transbordar aquele montão de coisas.

A fala acima de Lourenço deixa claro que não há intenção no Museu da


Maré dele representar todas as comunidades. Se o Museu é autoexplicativo é
179

porque os elementos que o compõem são emblemáticos e bastante significativos


para a maioria da população da Maré, que se identifica e de certa forma alguns
revivem aquele contexto (Halbwachs, 1990).
Não podemos nos furtar de analisar e compreender que todo esse projeto do
Museu da Maré está ligado a um processo muito maior educativo e claramente
político e ideológico.

É, já era Rede de memória, mas um dos trabalhos da... porque o CEASM era
dividido em redes: rede de educação, rede de cultura, rede de memória, rede
de trabalho, rede de não sei o que, era tudo baseado nesse princípio de redes.

O trecho acima da entrevista de Carlinhos ilustra o quanto o Museu da Maré


foi gestado numa instituição educacional, pois nasceu como uma “perna” ou um
“braço”, uma extensão do CEASM. A Rede de memória do CEASM vai constituir
o embrião do que viria a ser o próprio Museu da Maré, desde o início já imbricado
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numa proposta ideológica, política e educacional.


Na verdade, se amplificarmos a análise das práticas educativas do Museu da
Maré nos depararemos por vários ângulos com toda a criação do CEASM e com a
intencionalidade desse grupo de fundadores do Museu da Maré - cuja maior parte
deles também fundou o CEASM - de formar cidadãos críticos, protagonistas de sua
própria história. Portanto, intencionavam e intencionam educar através do CEASM
e do Museu da Maré em prol de uma cidadania plena e cultural (Candau, 2002).
A história da Maré entra como eixo, ponto nevrálgico de todo e qualquer
projeto do Museu ou do CEASM, portanto como princípio metodológico e
filosófico de ação. Mesmo que não haja a clareza plena de uma prática educativa
determinada, constatamos que há a intenção de que a memória e história da Maré
sejam narradas e transmitidas aos seus moradores. Sendo assim, de qualquer
forma esse aprendizado se dá mesmo que seja de forma auto educativa, como nos
afirma Lourenço em parte da sua entrevista relatada acima.
O Museu da Maré tem intencionalidade nesse tipo de projeto, ou seja, que
os moradores conheçam e valorizem a sua história, a história da Maré. Segundo
Trilla (2008) e Gohn (2010) o aprendizado gerado pela educação não formal não é
espontâneo, é propositivo e intencional, como acabamos de examinar no caso do
Museu da Maré.
180

“É neste cenário nada promissor que um grupo de jovens moradores – que, a


despeito das precárias condições de educação na região, conseguiu chegar à
universidade – organizou uma associação civil sem fins lucrativos, disposta a
mudar o rumo da história da Maré e a criar uma rede de solidariedade. Numa
sala cedida por uma igreja do Morro do Timbau, esses jovens fundaram o
CEASM – Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, cuja primeira
iniciativa centrou-se num Curso de Pré- Vestibular para estimular o ingresso
dos jovens nas universidades. Aos poucos, outros projetos foram surgindo,
como o Corpo de Dança da Maré, o jornal O Cidadão, o grupo Maré de
Histórias, a Biblioteca, o Laboratório de Informática, o ateliê de moda
Marias da Maré e a
Rede memória da Maré. “ (Chagas & Abreu, id, p. 138-139)

Chagas & Abreu (2007) apresentam em seu texto as relações intrínsecas de


todas essas instituições e iniciativas de cultura, educação e memória feitas por
esse grupo de jovens. Tais iniciativas foram se expandindo e ganhando
consistência até chegar à criação do CEASM e do próprio Museu da Maré. Tais
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iniciativas e instituições hoje em dia extrapolam a região da Maré e os muros de


CEASM e do Museu.

Eu já trabalhei como contadora de história e quando sou solicitada ainda


faço esse trabalho, trabalhei como monitora.
(...)
Nas exposições, em outros lugares que somos solicitados fora do Museu ...,
universidades, escolas.

Esse trabalho do Museu da Maré extrapola os muros do próprio Museu, como


nos afirma Terezinha no depoimento acima. Eles são chamados para apresentar seu
trabalho em diversas universidades, outros museus, pontos de cultura etc.

Então, toda a minha formação hoje como cidadão, né, vem do Museu da
Maré. Nesses cinco anos o Museu me proporcionou muitos aprendizados
enquanto profissional, enquanto pessoa, enquanto morador mareense,
né! Nesses cinco anos eu pude construir uma identidade, né, enquanto
pessoa, enquanto profissional; eu pude valorizar ainda mais o lugar
onde eu moro, as pessoas que me rodeiam.”

A fala acima e abaixo de JB reforça o que nos disse Terezinha, ou


Lourenço, por exemplo, que o Museu não só ensina, educa seus visitantes, ou
moradores da Maré, mas a seus próprios funcionários, na medida em que eles
também passam por uma formação continuada na medida em que são
protagonistas daquela mesma história e vivem imersos naquele mesmo contexto.
Além disso, o depoimento de JB chama muita atenção pela ênfase dada ao fato do
181

Museu da Maré ter revelado e afirmado sua identidade pessoal, profissional e de


um “ser mareense”, pois chegou à Maré quando tinha 5 ou 6 anos, porém
encontrou o Museu com 18 anos. JB desempenha diversas funções no Museu.
Como mediador de grupos agendados ou visitantes, também faz parte da ação de
contação de histórias do Museu e seus depoimentos se remetem à importância do
Museu em sua formação e aprendizado. Como desdobramento desse trabalho
chegou à coordenação do grupo de leitura na Biblioteca Elias José do Museu da
Maré e coordenou a equipe de mediadores, dando-lhes formação aos sábados31.

E já tiveram assim diversas falas de: “Olha, esse é o primeiro museu que eu
visito, né!”. Isso também é importante, né,? Essa referência hoje do Museu
da Maré. Eu fiz também um trabalho em uma escola no ano passado pelo
Museu da Maré, onde descobri que o plano pedagógico da escola era
justamente a memória local.”
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Portanto, o Museu da Maré mesmo que não deliberadamente já faz suas


interseções pelos espaços de educação formal, favorecendo a articulação entre
espaços educativos formais e não formais. Além disso, o depoimento acima de JB
nos mostra provavelmente os frutos das ações realizadas pelos “narradores da
Maré”, tendo em vista a valorização e construção da história e memória local nas
escolas públicas da região, tendo inclusive influenciado o plano pedagógico de
uma escola municipal da região.

Esse trabalho é fazer o resgate histórico da Maré, né, com todo o nosso
acervo, tanto bibliográfico quanto de foto. Aí, eles conhecem e diante disso
a gente também faz uma exposição dentro do Museu da Maré, fala para ele
de cada espaço, de cada tempo, porque o Museu é dividido em doze tempos.
Então, de cada tempo, a partir daí, eles visualizam e começam a reproduzir
o que eles viram enquanto contamos para eles o que é o Museu da Maré e
essa tarefa é diária.”

Terezinha refere-se na sua fala acima ao fato dos moradores da Maré ao


visitarem o Museu aprenderem a história da Maré, observando a memória ali
construída e reinventada através do acervo de fotos, objetos etc, que fazem parte
do acervo da exposição permanente do Museu. Sendo assim, após essa visita
guiada eles muitas vezes dão um significado outro à sua história e ao
entendimento sobre o próprio contexto geográfico e histórico no qual vivem.

31
No momento da entrevista JB ainda estava trabalhando no Museu da Maré, mas já em horário
restrito, pois estava deixando o trabalho lá para desenvolver um trabalho do gênero na Colônia
Juliano Moreira num Projeto vinculado à Fiocruz.
182

Assim sendo, mais uma vez fica claro que o Museu da Maré, como todo e
qualquer museu, possui um potencial pedagógico (Mesquita, 2006).

O Museu vem com a prática educativa quando ele traz as pessoas para
discutirem, né, a sua situação enquanto morador da Maré. Pré-vestibular,
ele fazia isso, ele trazia outras pessoas, ás vezes até de outras línguas.
Então, tinha um grupo muito grande de professores, também graduados,
pós-graduados, que vinham discutir dentro do Museu da Maré com os
alunos do pré-vestibular do CEASM.

A fala acima de Terezinha nos remete a uma recorrência em nossas


entrevistas ao fazermos a pergunta: E você acha que o Museu da Maré tem
práticas educativas? Quais que você percebe como práticas educativas? Na
verdade, vários “narradores da Maré” ao serem indagados sobre este tema não
falam de práticas especificamente pedagógicas, porém tem total consciência de
que determinadas práticas sociais educam ao construir memória e história local de
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forma eficiente e significativa, como por exemplo, a forma de exibir e selecionar


objetos, fotos ou contar lendas e estórias / histórias da Maré.

O que mais ensina, o que dá de exemplo é o modo de vida que as pessoas


tem aqui dentro, não só no Museu, mas como toda a área da Maré. O nosso
modo de vida, como as pessoas vivem, porque as pessoas que moram na
cidade ou em outras localidades, eles tem as comunidade proletárias, como
casas só de marginais, e não é! Então, o que o Museu quer, justamente, é
que eles venham nos visitar, para ver o que é que significa essa história. Eu,
por exemplo, moro aqui há cinquenta e sete anos.

O depoimento de “Seu” Atanásio ilustra a questão educativa do Museu.


“Seu” Atanásio demonstra sua preocupação de que as pessoas de fora da Maré
entendam que eles são uma comunidade proletária, com vida digna e decente. Até
mesmo pelo uso que faz da palavra ensina fica claro a intenção de educar. Nessa
fala “Seu” Atanásio se preocupa com a imagem dos moradores da Maré pelo
restante da cidade, se preocupa com o que o resto da cidade pensa sobre o local,
quer portanto, desfazer preconceitos socioeconômicos, desfazer guetos sociais,
enfim, colaborar com o ir e vir da “cidade partida”.
As interpretações das práticas educativas do Museu da Maré também se
desdobraram por caminhos inimagináveis no momento da realização das
entrevistas, pois cada um de nossos “narradores” contemplou diferentes visões e
observações cabíveis sobre esse processo educativo não formal.
183

(...) Porque dentro disso eu que, eu acho isso, os garotos que não entram
aqui, os garotos que não estão inseridos num (...) na questão educacional,
eu acho que é porque eles fazem parte de uma rede. Então, qual era a minha
ideia?! Esse espaço aqui deveria ser um espaço que influenciasse as redes,
que criasse uma outra rede. Então, um garoto que tá fora da escola, ele tem
uma rede dele, só de garoto fora da escola. Meu sobrinho faz parte desta
rede, não quer estudar de jeito nenhum, mas quando ele entra aqui, ele
entra em outra rede.

A resposta de Lourenço nos faz pensar o quanto a ideia de museu como


espaço de educação está junta o tempo todo para esse grupo, ou seja, como esse
Museu pode lidar com as crianças e jovens que se recusam a estudar, ou se quer a
ir à escola.
(...) essa questão de projeto pedagógico...Ou educativo, é uma coisa que a
gente nunca pensou de uma forma direcionada assim.

(...). Consciente. Vamos dizer assim: “Vamos fazer um projeto educativo,


para trabalhar com as crianças”. Por incrível que pareça, com a coisa do
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Museu, tudo era muito assim, muito a partir de experiências, e com essa
parte educativa assim, também não foi diferente. Então, a gente teve ali o
curso, a questão das entrevistas, o interesse das escolas da região pela
memória e pela história; a última página do jornal "O cidadão", que vinha
com a memória da Maré, era o nome da página com a história em capítulos,
fez um sucesso muito grande. Esse texto era usado nas salas de aula e os
professores começaram a demandar para os alunos pesquisas sobre a
história local. Então, isso nos chamou a atenção, ao mesmo tempo em que
você via o interesse desses alunos, você via que havia toda uma ... eles
tinham uma relação diferente com essa coisa da memória do lugar onde eles
viviam, que eles não conheciam, as mudanças que aconteceram ali. Então,
foi muito interessante [...]. Então, chamou a nossa atenção, e a gente viu
que precisava começar a desenvolver também, algumas ações que tocassem
mais os alunos da rede, os professores, que a gente pudesse também apoiar
esse trabalho que eles estavam desenvolvendo sobre a história local... E aí,
começamos a fazer assim, a pensar, primeiro a questão da construção de
história. Eu acho que é uma coisa ultra, super educativa, no sentido de que
você faz a encenação, a teatralização de histórias locais, e que criam um
contexto que abre possibilidade de você estar conversando e
contextualizando a forma de vida das pessoas ali no lugar. Então, foi uma
atividade bem interessante, [...] organizou um curso, é um curso de
contação de histórias, divulgamos esse curso e vieram várias pessoas fazer
esses cursos.

Carlinhos também nos “fala” acima sobre como as práticas educativas foram
sendo construídas. Em todas essas atividades identificamos o tempo todo uma
função inerente e visceral ao Museu da Maré, suas práticas educativas imersas no
universo cultural local.

É, por aí, 2005, 2006. Foi nesse processo que a gente começou já com essa
preocupação. Porque a preocupação da interlocução com as escolas, ela
184

veio antes do Museu, como trabalhar memória, como divulgar todo o


material que a gente tinha sobre a memória local, para as escolas, para que
os alunos se apropriassem desse material. Então, começou uma
preocupação maior da gente trabalhar dessa forma, mas não era um
trabalho, assim, pensado com metodologias, com... era um grupo de
contação de histórias, era o arquivo disponível para atendimento dos alunos
das escolas, a colocação de textos no jornal, na internet.

A fala acima de Carlinhos nos confirma que mesmo pelo bom senso ou pelo
lugar da experiência, sempre houve uma busca, mesmo que não consciente por
uma prática educativa baseada na vivência para que a história da Maré fosse
divulgada e aprendida pelos alunos das escolas do entorno e prioritariamente
moradores daquela região.

É o arquivo lá, com fotos, com material, que sempre é muito utilizado pelos
alunos das escolas, exposições das escolas. Mas quando a gente fala em
educação, a gente não está falando só em escola, do ensino formal... (...). A
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gente está falando da educação não formal, da educação das pessoas, do


papel da memória na vida delas, na consciência delas.

A fala acima de Carlinhos exemplifica exatamente o que estamos tentando


defender, poderia não haver consciência de quais técnicas pedagógicas usar,
porém houve intenção em construir e transmitir essa memória contra-hegemônica
dessas camadas populares e fazer com que aflorasse o sentimento de
pertencimento dos visitantes/ moradores através da experiência no Museu. A
intencionalidade e a não escolarização caracterizam fortemente os espaços
educativos não formais, como abordamos no capítulo 3.

É, muita coisa, é. Ele (o Museu da Maré) em si já é um processo educativo,


que vai contando, vai narrando sem muita... o que eu acho interessante é
que o Museu ele não tem um viés assim: "Foi assim!", de colocar uma
verdade ou de estabelecer uma identidade, como a gente estava até
conversando. Não é isso, o Museu ele dá subsídios para que você trabalhe, e
você... a tua identidade, a tua relação com o lugar e dá subsídios, também,
para que você se forme enquanto pessoa.

Ainda Carlinhos nos presenteia com a fala acima sobre o fato do Museu por
si só ser educativo. Esta afirmativa nos remete a Kersten & Bonin (2007, p.120)
quando nos dizem que os museus tem como principais funções educar e entreter.
Também, se mostrou em nossa entrevista com uma visão ampla da educação, não
a restringindo apenas ao espaço escolar.
185

Chagas & Abreu (2007) nos falam da importância dessa memória depositada
e construída no Museu da Maré possibilitar o ressignificado da geografia cultural
da cidade.

“Ao trabalhar com memórias, tempos, identidades, pertencimentos e


representações simbólicas, o Museu da Maré ressignifica o mapa cultural da
cidade e deixa patente para outras comunidades populares que é possível
exercer o direito à memória, ao patrimônio e ao museu. O exercício desses
direitos aqui e agora é peça-chave para a construção de futuro com dignidade
social.” (id, p. 150)

Quando abordamos mais diretamente o Museu da Maré como um espaço


educativo não formal, não podemos deixar de refletir sobre a existência e
funcionamento da Biblioteca Elias José do Museu da Maré. Os detalhes sobre seu
funcionamento já foram abordados no capítulo 4 que fala sobre a criação do
Museu da Maré. Porém alguns “narradores” se referiram a ela em nossas
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entrevistas. Em inúmeras vezes, em dias diferentes vimos crianças se dirigirem


para lá ou brincarem à sua porta.

Eu tô atuando, não tem nem trinta dias ainda. Tem pouquíssimo tempo que
eu tô... Então, não tenho como dar respostas concretas para você, porque eu
só percebo o seguinte, que o projeto “Prazer em ler”, que é da C&A,
patrocinado pela C&A, ele traz essas crianças para virem participar dentro
de uma biblioteca. Dá acesso a essas crianças a uma biblioteca, com um
acervo bem rico, e também ele... profissionaliza, ele prepara essas pessoas
para virem trabalhar na biblioteca do Museu da Maré, o nome da biblioteca
é Elias José:”

Pelo que nos disse acima Terezinha, o Projeto “Prazer em ler” funciona na
Biblioteca Elias José e traz muita alegria para a garotada. É um projeto de
incentivo à leitura e envolve profissionais competentes. Porém, o que nos chama
mais a atenção é o fato dele funcionar dentro das dependências do Museu da
Maré. E é tratado pela comunidade que frequenta o Museu, assim como pelos
funcionários e diretores do Museu como atividade do próprio Museu. Sendo
assim, mais uma vez nos revela um outro conceito de museu: um museu que de
fato vem ao encontro dos anseios da comunidade, serve ao movimento social e à
celebração da vida e do ser humano, como nos revela abaixo Vieira (2007).

“Com a criação do museu, há um movimento de valorização da experiência


vivida. O sentimento de pertencimento e orgulho desperta o desejo de
transformação da realidade. É por isso que o Museu da Maré se propõe a não
se limitar a uma exposição; o objetivo é atingir a vida das pessoas e chamá-
186

las a participar. Se elas fazem parte do que veem e se o que veem é um


momento de um processo contínuo, que elas se sintam convidadas a
permanecer como agentes neste processo, que é o processo de construção da
própria vida.” (Vieira, 2008, p. 159-160)

Outro ponto central de nossa discussão e pesquisa é a frequência ao Museu


da Maré, ou seja, ainda encontramos dados e observamos em nosso trabalho de
campo que os alunos e as escolas são o maior número de visitantes até os dias
atuais. Porém, abordaremos melhor esta realidade no capítulo seguinte sobre
visitações ao Museu.

Olha, mudanças são as de ver crianças frequentando, muitas, o Museu, e o


interesse dessas crianças de conhecer essa história, e o pai também trazer
essa criança, né. Isso é muito importante, de fazer esse resgate, e de mostrar
o diferencial do antes e do atual e também, da escola, isso é muito valoroso.
Hoje a escola dá esse valor ao Museu enquanto histórico, para trazer a
criança para fazer a pesquisa.”
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O depoimento acima de Terezinha confirma nossa observação de campo,


muito embora tenhamos nos deparado com outros grupos de visitantes, como:
turistas alemães levados ao Museu pelo Instituto Goethe, holandeses voluntários
que pintaram as paredes externas do próprio Museu, universitários de diferentes
lugares e faculdades, moradores locais, grupos especializados ligados a Pontos de
Memória de diferentes lugares do Brasil, dentre outros. Este aspecto será também
melhor explorado no capítulo seguinte em que discutiremos os dados analisados
nos Livros de Assinaturas e de Depoimentos do Museu.

7.3
Retomando nossas narrativas iniciais ou “A possibilidade de você se
emocionar!”

O que eu acho que é o diferencial? Porque por mais simples


que seja o Museu, mais elementar do ponto de vista de uma
visão museológica, social, sei lá; eu acho que ele tem essa
característica, não é uma coisa piegas não, eu acho que é uma
coisa que falta para as pessoas hoje, que é a possibilidade de
você se emocionar!
(...)
Se identificar, de você projetar para dentro de você mesmo,
fazer uma reflexão sobre a sua vida, sobre a sua existência,
sobre a sua história pessoal.(Carlinhos)

Emoção, sentimento, memória, pertencimento, educação são palavras, como


as de Carlinhos acima, que rechearam esse capítulo cheio de depoimentos e
187

reflexões. A despeito deste rico capítulo tão denso e emaranhado de informações,


de análises e dúvidas, de questionamentos, nos encaminhamos para algumas
conclusões parciais.
Primeiramente, todos os nossos entrevistados demonstraram consciência
política sobre o movimento social, político e ideológico no qual militam na área
cultural e/ ou museográfica. Não há dúvida em nenhum deles de que o Museu da
Maré surgiu na luta política, no movimento social e unido a uma outra
“instituição-mãe” denominada CEASM, à qual todos eles se vinculam, quer seja
por terem sido seus alunos, ou professores como membros fundadores, sendo a
exceção o “Seu” Atanásio (morador antigo e atuante na comunidade).
Um segundo ponto fundamental é a clareza, consciência e lucidez de todos
os nossos entrevistados em relação á valorização da história local. Todos
reafirmam a importância da história da Maré ser construída e narrada para todos.
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Todos entendem e valorizam a extrema importância disso para o fortalecimento


identitário e reconhecem o quanto cresceram socialmente e politicamente quando
descortinaram essa realidade histórica. Por isso, diversos deles falam da
importância de todos os projetos, quer do CEASM ou do Museu da Maré,
inserirem a história e a memória local. Todos os projetos ligados a esse grupo
abordam em diferentes linguagens a história da Maré.
O terceiro ponto a salientar é o fato de que a maioria de nossos “narradores”
demonstrarem conhecimento da existência de práticas sociais que possam facilitar
o fortalecimento identitário através da construção e transmissão da memória e
história local. Tais práticas sociais foram identificadas por nós, ao longo desse
processo, como práticas educativas mergulhadas em redes educativas num
universo cultural e praticadas num espaço educativo não formal específico, o
Museu da Maré.
Sendo assim, todos os entrevistados admitem que o Museu educa. Nesse
sentido, Lourenço foi o único que vinculou o Museu da Maré à Pedagogia de
Paulo Freire. Cabe-nos, a chamada de que Lourenço, de nossos entrevistados é o
único com Licenciatura em Geografia. Lembramos também, que a pedagogia
freiriana influenciou teoricamente os criadores do termo ecomuseu - como
Hugues Varine - e toda essa conceituação do que é e para que serve um museu
comunitário
188

Uma outra conclusão que pode parecer óbvia, mas é recorrente nas respostas
de nossos entrevistados é o reconhecimento unânime do papel do Museu da Maré
para a comunidade como um todo. Embora vários deles tenham nos falado da
necessidade de o Museu contemplar mais algumas comunidades, que ainda se
sentem pouco representadas nesse espaço, todos ratificaram a importância do
Museu da Maré para a comunidade em geral.
Um outro item colocado de forma diversa, mas sobre o mesmo tema, é o
fato de todos acharem importante que se vençam os preconceitos e a guetificação
sociais e econômicas e o Museu da Maré seja um Museu para além da
comunidade, para a cidade, o país e o mundo.
Somente alguns “narradores” percebem no teatro uma forma de linguagem
utilizada para didaticamente contar as memórias narradas no Museu da Maré.
Por fim, constamos o quanto as redes educativas do cotidiano emergem nas
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práticas do universo cultural da Maré e do próprio Museu da Maré, a despeito de


muitas vezes elas nos parecerem invisíveis, porém sempre presentes de forma sutil
e atuante.
A fala emblemática de Lourenço quando o questiono sobre o fato do Museu
da Maré representar ou não todas as comunidades da Maré, ilumina nossa reflexão
de forma lúcida e consistente sobre o papel do Museu da Maré para todas aquelas
comunidades. A palafita do Museu, as imagens das fotografias com cenas do
cotidiano (como o “rola-rola”, os caminhões de mudanças, as construções dos
barracos e das casas de alvenaria), as brincadeiras das crianças, os tijolos e janelas
das construções etc, são como palavras geradoras, freireanamente falando, que
fazem disparar a memória coletiva.
Se educar é transformar subjetividades e produzir identidades (Silva, 1999),
não é isso o que o Museu da Maré faz ou quer fazer?
No próximo capítulo apresentaremos os dados e análises dos Livros de
Assinaturas e Depoimentos dos visitantes do Museu da Maré.
8
Das presenças e das ausências nos Livros de Assinaturas
e Depoimentos, ou a hora e a vez das “memórias
subterrâneas”

“Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e


das minorias, a história oral ressaltou a importância de
memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas
minoritárias e dominadas, se opõem à memória nacional. (...)
Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem
seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase
imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos
bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os
objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe
conflito e competição entre memórias concorrentes.” (Pollack,
1989, p. 3)

Continuamos e terminamos neste capítulo a trilogia das reflexões dos


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materiais recolhidos na pesquisa de campo. Assim sendo, vamos analisar o Livro


de Assinaturas e o Livro de Depoimentos dos visitantes do Museu da Maré como
fazendo parte desse conjunto de memórias subterrâneas, assim denominadas por.
Pollack (id), que também entram em disputa com outras memórias concorrentes.
Para fins didáticos dividiremos o capítulo em duas partes: na primeira
analisaremos o Livro de Assinaturas dos visitantes do Museu da Maré relativos aos
anos de 2009 e 2010, assim como apresentando o quantitativo dos mesmos relativo
a número de visitantes, gênero, nacionalidade, idade e mais algum item surgido
durante a análise que consideramos relevante. Na segunda parte nos deteremos em
alguns depoimentos dos visitantes nos mesmos anos que nos chamaram mais
atenção quer por seu conteúdo, originalidade ou repetição do depoimento.

8.1
O Livro de Assinaturas

Começaremos identificando os dados quantitativos relativos ao Livro de


Assinaturas dos anos de 2009 e 2010. Cabe esclarecer que foram escolhidos esses
anos por corresponderem em parte ao tempo de nosso trabalho de campo (agosto
de 2010 a abril de 2011) e o ano anterior (2009), em que conhecemos o Museu da
Maré e começamos a frequentá-lo. Não seria possível ter escolhido o ano de 2011,
pois neste já estávamos desenvolvendo a análise de vários dados.
190

Trabalhamos com os dados recolhidos no Livro de Assinaturas que contém


informações do nome, gênero, localidade32 e idade. Muitas pessoas só assinam o
nome e colocam o gênero não respondendo aos outros itens. Neste sentido
trabalhamos com os dados conforme o que nos foi possível recolher ou evidenciar.
Estabelecemos alguns cruzamentos entre os dados que coletamos o que nos
permitiu concluir alguns itens ou apontar algumas pistas para a análise realizada.

8.1.1
Visitantes do Ano de 2009

Gráfico 1 - Gênero 2009

Gênero
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Masc.
43%
Fem.
57%

O total do número de visitantes no Museu da Maré em 2009 foi de 7803,


sendo 3389 de homens (43%) e 4414 de mulheres (57%) conforme mostra gráfico
1. Do percentual de visitantes que declarou a idade, 44% tem entre 11 a 20 anos
(4632 pessoas). Sendo que de quase mil visitantes que declararam sua instituição
de origem, 59% são de escolas municipais (vide gráfico abaixo). Pelo nome das
escolas e pelas observações do campo podemos perceber que a maioria são
localizadas dentro da Maré33 ou em bairros de seu entorno, como escolas de
Bonsucesso ou da Ilha do Governador.

32
Alguns visitantes ou usuários do Museu da Maré no item localidade do Livro de Assinaturas
escrevem, às vezes, o nome da instituição a que estão vinculados. E em geral, quando fazem isso,
não escrevem o nome do local em que moram.
33
A Maré possui diversas escolas municipais de Ensino Fundamental, segundo Nobrega Júnior em
2007 contabilizavam 16 unidades. Dentre elas, temos escolas bastante conhecidas na região, como
por exemplo: o CIEP Sérgio Perneta e a Escola Municipal Bahia.
191

Gráfico 2 - Idade 2009

Idade
A c im a 60
41 a 60
1% Até 10
10%
18%

31 a 40
10%

21 a 30
17%

11a 20
44%
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Em 2009 a maioria dos visitantes do Museu tem entre 11 e 20 anos. O segundo


grupo que mais visitou o Museu tem entre 21 e 30 anos. Sendo assim, constatamos
que como a maioria dos visitantes/usuários do Museu da Maré são estudantes da
Escola Básica acompanhamos uma das turmas na visita à exposição permanente. Era
uma turma de 9º ano de uma escola municipal da Ilha do Governador. Foram visitar o
Museu acompanhados do professor de História e uma outra professora. Totalizavam
uns 30 a 40 alunos e alunas animados e muitos vibrando com a descoberta da história
da Maré e a memória construída naquele local.

Gráfico 3 - Instituição 2009

Ins tituiç ão
O utros
31%

E sc ola
Munic ipa l
59%

Unive rsida de s
10%
192

Ao nos depararmos com esse resultado de que a maioria dos frequentadores


do Museu da Maré são escolares percebemos como esse espaço se faz forte como
um espaço educativo não formal, pois engloba diferentes atividades como: rodas
de leitura, dança de salão , Hip-Hop, dentre outras. Além disso, o espaço da
exposição por si só torna-se marcante por sua dimensão educativa, já que fornece
uma série de informações sobre a história da Maré, construindo memórias locais.
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Foto 50 de Terezinha Lanzelotti – Alunos de escola municipal visitando o Museu da Maré


recebendo informações do arte educador do Museu na entrada da exposição permanente.

Os estudantes e outros jovens se deparam assim com uma memória


instituída, musealizada e não uma memória espontânea, por isso podemos dizer
que o museu sacraliza os objetos porque os redefine simbolicamente formando
tais memórias. Portanto, se deparam com um “lugar de memória” como é por
excelência o Museu da Maré. Vieira (2004) baseado em Pierre Nora nos fala sobre
os “lugares de memória” no trecho abaixo:

“Para Nora, os lugares de memória são frutos de um sentimento de perda de


uma memória espontânea e, por isso, mesmo instituídos. É uma memória
comemorativa, referencial, formal, porque perdeu sua existência no mundo
social, não mais interage nas relações humanas, é uma memória
musealizada.” (Vieira, 2004, p. 156)
193

Com relação à comunidade de origem, apenas 2874 dos visitantes declara


onde vivem, sendo que a maioria se diz da Vila do Pinheiro (21%), em segundo
lugar com 20% da frequência temos o Conjunto Bento Ribeiro Dantas (também
chamado Fogo Cruzado34), em terceiro a Baixa do Sapateiro (16%), em quarta
colocação a Nova Holanda (8%), em quinta a Vila do João (7%). Nessa sequência,
paradoxalmente, os moradores do Timbau - aonde se localiza o Museu da Maré -
ocupam o nono lugar em termos de visitação, compondo apenas 2% do número de
visitantes (vide gráfico 4). O que de fato é um resultado que nos surpreendeu,
porque imaginávamos ter mais visitantes da comunidade onde se localiza o Museu.

Gráfico 4 - Origem: comunidades da Maré 2009

Orig em - C omunidade Maré


Ma ré
12%
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Vila d os P inh eiros


21%

B a ix a do S a pa te iro
16%

Vila do J oã o
7%

T im ba u
2%
S a lsa e Mereng ue
R oqu ete P into R
2%u ben s Va z
0% 1%
P ra ia de R a m os
0% Nova Ma ré B en to R ib eiro Da nta s
2% 20%
P a rq ue Un iã o
1% No va Ho la nd a
8%
Ma rc ílio Dia s
P a rq ue Ma ré C onjunto P inh eiros
C onju nto E spera n ça
0%
1% 5% 3%

Mostraremos no item a seguir referido ao ano 2010 que parte desses dados da
origem dos visitantes se invertem, pois o Timbau passa para primeiro lugar em
número de visitantes, pelo menos entre os que declararam a sua origem de localidade.
Ainda em números quantitativos podemos analisar outro gráfico abaixo que
nos mostra que 60% dos visitantes do Museu são do município do Rio de Janeiro.
Em segundo lugar a população que mais visita o Museu da Maré
surpreendentemente, empatada com aquela originária do estado do Rio de Janeiro

34
Fogo Cruzado é uma alusão às ações da polícia contra os traficantes naquele local.
194

(14%), é a dos estrangeiros (14%). Cabe lembrar que em diversos momentos de


nossa observação de campo nos deparamos com grupos de estrangeiros, como
holandeses, alemães etc. As outras regiões do país pouco visitam o Museu da Maré
como podemos conferir no gráfico 5 construído a partir Livro de Assinaturas.

Gráfico 5 - Origem: externa 2009

Orig em E xterna
Outro P aís
14%

R eg ião Norde ste


R e g ião
2% Norte
R eg ião C entro-Oe
1% ste
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2%
R e g iã o S ul
1%

R eg ião S udeste
6%

Munic ípio do R io
60%

E sta do do R J
14%

Portanto, nossa primeira conclusão analisando o ano de 2009 confirma o que


a observação do campo nos apontava inicialmente: a maioria dos visitantes do
Museu da Maré em termos quantitativos é de estudantes de escolas municipais da
Maré ou de seu entorno. Em síntese, dos 1963 visitantes que declararam
195

localidade, 59% são do município do Rio de Janeiro, tem entre 11 e 20 anos e são
alunos das escolas municipais, nos parecendo ser a maioria da própria Maré35.
Paralelo a essa conclusão nos deparamos com outra que já abordamos acima,
é o fato de que o grupo que mais visita o Museu da Maré é o do município do Rio
de Janeiro, depois vem empatado percentualmente os grupos de moradores do
estado do Rio de Janeiro e de estrangeiros. Na nossa observação de campo por
diversas vezes encontramos um grupo de holandeses36 bastante entrosado com a
comunidade, quer pintando os prédios do conjunto arquitetônico que compõe o
espaço do Museu, quer jogando bola no pátio ou participando da “Maré do
Samba”. Afora isso, nos deparamos também com alemães levados pelo Instituto
Goethe, franceses que ouviram falar do Museu e tinham interesse particular em
conhecer, dentre outros.
Em terceira colocação nos deparamos com os visitantes do Sudeste em geral.
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Muito embora caiba-nos o alerta de que encontramos visitantes de todas as regiões


brasileiras mesmo que em muitíssimo menor número. No Livro de Depoimentos
percebemos que muito desses visitantes de outros estados, fazem parte de redes de
memórias ou dos Pontos de Cultura e Memória de outros estados, ou até mesmo
de outros museus comunitários ou ecomuseus.
Como quarto ponto concluímos que mais da metade do público é de
estudantes entre 11 a 20 anos, ou crianças até 10 anos, perfazendo esses dois
grupos um total de 62%. Nos seus depoimentos encontramos algumas assinaturas
apenas, ou desenhos imitando pichações, ou apenas a repetição de gostei, gostei
muito, gostei demais, ou similar. O terceiro grupo que mais visita o museu pela
faixa etária é o de jovens adultos entre 21 e 30 anos. Cabe-nos aqui a inferência de
que alguns podem ser alunos do CEASM.
Em quinto lugar salientamos o fato de percebermos que o grupo que menos
vai ao Museu da Maré, diferente do turismo de classe média em muitos museus
tradicionais, é da faixa etária acima de 60 anos. Sobre esta realidade poderíamos

35
Percebemos que a maioria dos alunos devem ser de escolas municipais da própria Maré, já que
vários colocam os nomes das mesmas e sabemos que elas se localizam nas comunidades da Maré.
Porém, como não conseguimos o tabelamento de todos esses dados porque nem todos colocam o
nome da escola que estudam,, não podemos afirmar com toda a certeza que todos ou a maioria são
de lá, mas há grandes indícios que o sejam.
36
Alguns desses holandeses vieram para o Rio de Janeiro e aqui se instalaram para uma temporada
e como voluntários ligados a uma instituição holandesa estavam pintando as paredes externas do
Museu da Maré. O que de fato tornou-o mais bonito e agradável, bem colorido conforme fotos
mostradas em capítulo anterior.
196

fazer diversas deduções, como: isto se deve ao fato de tratar-se de grupos sociais
de menor poder aquisitivo e dificuldade de locomoção maior, ou o próprio fato de
haver menor longevidade nas camadas populares devido às circunstâncias de vida
inferiores, dentre outras causas. Enfim, não temos dados suficientes para
aprofundarmos essa questão, mas podemos levantar algumas pistas.
Como sexta conclusão percebemos que dos visitantes que declaram a que
instituição estão relacionados, o grupo que mais frequenta o Museu da Maré
depois dos escolares, são indivíduos ligados às universidades, quer sejam
universitários (em grande número) ou professores universitários e/ ou
pesquisadores. Porém, uma expressiva população dos visitantes não declara
instituição a que está vinculado, se é que está.

8.1.2
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Visitantes do ano de 2010

O total do número de visitantes no Museu da Maré em 2010 foi de 3802,


sendo 46% de homens (1742) e 57% de mulheres (2060). Temos uma frequência
ao Museu quase reduzida à metade em comparação com o ano anterior. Não
temos dados suficientes para explicar este fato, mas podemos fazer algumas
reflexões sobre isso, como por exemplo: o ano de 2009 foi o Ano dos Museus e
várias atividades ocorreram dentro do Museu da Maré e em outros museus que
atraíram maior público para esses locais; outra hipótese é de que alguns convênios
com o Museu tenham diminuído as verbas ou terminaram diminuindo o número
de cursos ofertados no espaço museal; um menor número de escolas foi visitar o
Museu devido a dificuldades da rede municipal de ensino no transporte para
deslocamento dos alunos, fato que nada tem a ver diretamente com o contexto do
Museu, mas que acaba interferindo no número de visitantes, tendo em vista que no
ano anterior o maior número foi de escolares, não podemos também desconsiderar
a questão da violência no local e a difusão da mesma no alardeamento da mídia,
dentre outras hipóteses possíveis para tal redução de visitantes.
197

Gráfico 6 - Gênero 2010


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Como podemos observar no gráfico 6 no ano de 2010, também, há um


número maior de visitantes do sexo feminino (57%), porém se pensarmos que o
número de mulheres é maior do que de homens na cidade do Rio de Janeiro,
vemos que não há tanta discrepância assim de gênero nos números dentre os
visitantes, principalmente no ano de 2010.

Gráfico 7 – Idade 2010


198

A maior parte dos visitantes do Museu da Maré, ou seja, 36% tem entre 11 a
20 anos37. Sendo que dos visitantes que declararam sua instituição de origem,
87% (422) são de escolas municipais (a maioria delas das comunidades da Maré
ou de seu entorno). Conforme mostramos a seguir no gráfico 8.

Gráfico 8 - Instituição 2010


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Um número maior percentualmente de visitantes de 2010 comparado a 2009,


declara sua localidade. 1074 visitantes se diz morador da Maré, desses 17% (182
pessoas) escreve genericamente que são da Maré; já os restantes são específicos no
nome da comunidade a que pertencem. Diametralmente oposto ao ano de 2009, o
maior número de visitantes é do próprio Timbau (25%), em segundo lugar da Vila
do Pinheiro (15%). O Conjunto Bento Ribeiro Dantas (Fogo Cruzado) ,que em
2009 foi o segundo no “ranqueamento”, no ano seguinte fica em terceiro lugar no
número de visitantes, ou seja, com 11% das visitações conforme mostra a tabela
abaixo. Em quarto lugar temos a Nova Holanda com 9% dos visitantes, já em quinta
colocação temos a Vila do João e a Baixa do Sapateiro, caindo esta de terceiro
lugar para quinto com 7% das visitações em 2010. Já a Vila do João permanece
também em quinto lugar em 2010 com 7% do total de visitantes da Maré.

37
Cabe lembrar que mais da metade dos visitantes não declararam idade.
199

Gráfico 9 --- Origem: comunidades da Maré


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Um percentual significativo de 32% do total de visitantes do Museu da Maré


não declarou a sua origem, como demonstra no gráfico abaixo legendado
“Origem-Total” comparando o total de frequentadores e sua localidade. Portanto,
ao analisá-lo percebemos que a maioria dos visitantes não declara sua origem, o
que será relatado na análise dos depoimentos com muita maior força.
O grupo seguinte que declara sua origem, 27% dos visitantes são da cidade do
Rio de Janeiro, mas não da Maré. Aqui temos um dado novo em relação a 2009, pois os
visitantes da Maré são percentualmente muito pouco a mais do que os do município e
não da Maré. Podemos então, concluir que por diferentes motivos o número de
frequentadores do Museu da Maré de fora da Maré aumentou. Cabe-nos lembrar que
embora de fora, a maioria ainda é de escolares. Entre alunos do município e da Maré
temos 29 %, sendo que 5% não especifica de que comunidade da Maré é. Apenas 24%
dos visitantes dizem de que comunidade da Maré fazem parte.
200

Outra mudança em 2010 é que os visitantes originários do estado do Rio de


Janeiro caiem apenas para 3%, sendo maior o número de visitantes de outros
países (6%). As outras regiões brasileiras também tem um percentual inexpressivo
quantitativamente nas visitações.

Gráfico10 - Origem total dos visitantes do Museu da Maré


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Aproveitamos para demonstrar o percentual de visitantes do Museu sem os


visitantes das comunidades da Maré no gráfico 11 abaixo.
201

Gráfico11- Origem externa ao Complexo da Maré -


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Concluímos que a classificação percentual dos grupos sociais se mantém na


maior parte dos casos, pois a maioria dos visitantes continua sendo do município
do Rio de Janeiro, sendo que as regiões brasileiras, com exceção do próprio
Sudeste se mantém pouquíssimo expressiva percentualmente. Mas, percebemos
nesse gráfico uma diferença em relação aos visitantes estrangeiros (15%), pois
eles ultrapassam os visitantes do estado do Rio de Janeiro (8%).

8.1. 3
Entrecruzando os dados

Portanto, nossas conclusões sobre o perfil dos visitantes do Museu da Maré


no ano de 2010 nos apontam muitas permanências em tal perfil do público que o
visitou em 2009 e apenas algumas mudanças. Analisemos as mesmas abaixo.
Primeira conclusão: confirma-se que o maior número de visitantes do Museu
da Maré é de mulheres tanto em 2009, quanto em 2010.
202

A segunda permanência é que percentualmente mais da metade do público é


de estudantes até 10 anos ou entre 11 a 20 anos, tanto em 2009, quanto em 2010,
logo de escolares e a grande maioria de estudantes das escolas municipais. Em
2010 percebemos um aumento declarado dos estudantes de escolas municipais,
pois este aumentou de 59% em 2009 para 87%. Vários fatores poderiam
determinar isto, como por exemplo: a facilitação da Secretaria Municipal de
Educação disponibilizando ônibus, através de um num projeto implantado nas
escolas municipais pela Secretaria de Educação nos últimos anos; a maior
popularidade do Museu da Maré na mídia e nas universidades; a implantação do
Projeto DaMARÉ ligado às obras de Revitalização do Canal do Fundão, levando
muita gente a frequentar o Museu - quer da universidade (UERJ), quer da própria
Maré - tendo em vista que diversos dos cursos oferecidos pelo Projeto foram
realizados no Museu; e com menor possibilidade, um aumento da consciência da
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importância dos museus comunitários e ecomuseus no movimento social e o


aumento de pesquisas que abordam esta temática. Ou simplesmente que esses
estudantes tenham visitado o Museu com professores ou guias que tenham
lembrado aos estudantes de que eles deveriam assinar os Livros institucionais.
O terceiro grupo que mais visita o Museu pela faixa etária é o de jovens
adultos entre 21 e 30 anos, apresentando tanto em 2009, quanto em 2010 um
percentual de visitação constante em 17%. Cabe-nos aqui a inferência de que
alguns podem ser alunos do pré-vestibular do CEASM.
A quarta conclusão é o fato de percebermos que o grupo percentualmente
que menos vai ao Museu da Maré, tanto em 2009 quanto em 2010, é o de faixa
etária acima de 60 anos. Como já afirmamos poderíamos levantar diversas
possíveis explicações: tratar-se de grupos sociais populares e com menor poder
aquisitivo, logo, a dificuldade de locomoção é maior, ou o próprio fato de haver
menor longevidade. Mesmo assim, cabe-nos a lembrança de Cazelli (2007) que
nos afirma que o público da maioria de museus brasileiros ainda é de escolares em
visitas escolares. Os pais ou familiares ainda levam pouco as crianças aos museus
e eles próprios, adultos vão pouco, comparativamente a outros países.
Como quinta conclusão percebemos que os grupos institucionais e que mais
frequentam percentualmente o Museu da Maré, depois das escolas municipais, são
indivíduos de instituições variadas e em terceiro lugar aqueles ligados às
universidades – 10% em 2009 e 6% em 2010 – nos dois anos pesquisados. Neste
203

ponto encontramos em nossas observações de campo um significativo número de


universitários ou professores universitários e/ ou pesquisadores que frequentam o
Museu em seu cotidiano, como encontramos em diversas vezes, por exemplo,
tanto o professor e pesquisador de música, como um grupo de universitários e seu
professor da área de Ciências Sociais de uma universidade pública que fazem um
trabalho regular no Museu da Maré. Cabe lembrar que foi em 2010 que se iniciou
o Projeto DaMARÉ, que conveniou o Museu da Maré com a Secretaria Estadual
de Ambiente, sob a responsabilidade da UERJ (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro). Logo, houve uma frequência maior de pessoas ligadas à universidade em
suas dependências e também maior divulgação do mesmo no ambiente acadêmico,
pelo menos da própria UERJ.
Outra diferença do ano de 2010 em relação a 2009, provavelmente
referendada à conclusão anterior, é que em 2009 31% dos visitantes do Museu não
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declarou sua instituição e em 2010 só 7%. Será que as escolas municipais e seus
professores em suas visitas se preocuparam mais em fazer os alunos assinarem o
livro de visitações e declararem o nome de suas escolas? Será que os guias do
Museu da Maré ficaram mais atentos no pedido dessas anotações nos livros de
visitação do Museu? Não sabemos, mas o fato é que em 2010 há dados mais
precisos em relação às instituições de origem. Ainda assim, uma expressiva
população dos visitantes não declarou a instituição a que está vinculado ou não
tinha nenhuma instituição a declarar.
Também como mudanças percebemos que em 2010 o Museu teve uma baixa
no número total de visitantes, de 7803 em 2009 para 3080, ou seja, menos do que
a metade do número de visitantes. Paradoxalmente aumentou significativamente
seu número de visitantes estrangeiros, o que de certa forma fala a favor da
intenção de alguns dos diretores entrevistados que não desejam que o Museu da
Maré seja apenas um museu da comunidade, querem que ele seja um museu da
cidade, do país e do mundo. Em relação ao restante das regiões brasileiras já não
podemos afirmar o mesmo, pois os números baixos de visitações permanecem
percentualmente inalterados, mas em relação aos estrangeiros os dados mostram
que sim, houve um crescimento percentual no número de visitantes. Com certeza
haverá diversos outros motivos para esse crescimento de visitantes estrangeiros,
além do que Appadurai & Breckenridge (2007) nos alertam genericamente que há
uma expansão da “indústria do patrimônio”,como escrevem na citação abaixo:
204

“É, também, verdade que os museus em toda parte parecem estar cada vez
mais envolvidos com experiências de veículos de comunicação de massa
(Lumley, 1988). Finalmente, os museus em toda parte parecem estar em
expansão na medida em que a “indústria do patrimônio” (Hewison, 1987)
decola.” (Id, p. 23)

8.2
O Livro dos Depoimentos

“Memória e esquecimento são duas cabeças de um mesmo


bicho-de-sete. Cabeças que cortadas, se regeneram, como as da
Hidra de Lerna. Cabeças que se alternam, binárias. Ora brotam,
ora decepam. Ora ali, ora não mais. Portanto, presentes ou
ausentes – como presentes ou ausentes são os que se fazem
registrar nos dois livros institucionais do Museu da Maré. Por
suas próprias, ou pelas mãos de outros, eles aparecem descritos
nas linhas que se emendam ao início e ao fim dos doze tempos
de relógio. As linhas pautadas de dois volumes, como os
chamo: o livro de presenças e o livro de ausências.” (Chagas,
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Viktor. 2007, p. 1)

O trecho acima foi retirado do texto de Viktor Chagas (id) denominado Museu
é como um lápis, fonte de minha inspiração para analisar alguns depoimentos e
recorrências no Livro de Depoimentos relativo aos anos de 2009 e 2010.

8.2.1
De visitante a usuário: acompanhando Brenda

Com relação ao Livro de Depoimentos dos visitantes do Museu da Maré


optamos por dividir nossas análises e reflexões em alguns eixos temáticos à luz
dos principais conceitos por nós apresentados nos capítulos teóricos. Esses eixos
se justificam pelo fato de nosso objetivo central ser analisar como o Museu da
Maré pode fortalecer as identidades locais e construir a memória e a história local
através de sua dimensão e práticas educativas.
Sendo assim, estruturamos nossa análise segundo alguns critérios, são eles: os
eixos temáticos, a repetição e constância de algumas afirmações que podem ser
interpretadas como evidências e alguns itens que nos chamaram atenção quer por
curiosidade, originalidade ou significância no contexto pesquisado. Cabe lembrar que
evitamos nos deter ou escolher depoimentos de pessoas acadêmicas, ou universitárias,
ou conhecidas do grande público como artistas etc. Demos preferência aos moradores
205

do local e eventualmente estrangeiros, pelo fato já afirmado acima de que esses


constituem em maior número os frequentadores do Museu.
Já constatamos no item anterior que o número de crianças e jovens que
frequenta o Museu da Maré é grande. Logo, merece a ressalva de que o Museu
desempenha um papel agregador na vida dessas crianças e jovens na medida em
que oferece para além da exposição, diversos cursos como: balé, informática,
instrumentos musicais, hip-hop, teatro, sala/ roda de leitura, exibição de filmes,
debates sobre diversos temas (como holocausto, violência), depoimentos como de
uma sobrevivente do holocausto etc, além do PET (Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil). Nesse sentido, o Museu da Maré de fato se configura como um
museu que surge e se transforma na demanda do movimento social (Varine, 1995).
Associa-se a essa ideia de museu pró-ativo, uma mudança no conceito de
visitante, que seria melhor ser chamado de usuário, como sugere Moreira (2007)
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devido à ampliação da oferta de serviços do próprio museu.

“Globalmente, entende-se por público o conjunto de usuários de um serviço.


No caso específico dos museus, os usuários são todos aqueles que utilizam
um serviço à disposição pela instituição museu. Assim, o público dos
museus corresponde não só aos visitantes (pessoas que entram ou entraram
no museu), mas também à parcela daqueles que, de alguma maneira, sem
uma relação presencial no museu, usufruíram dos serviços ou bens por ele
disponibilizados (p. e. encomenda de livros ou outros materiais por catálogo,
visitas a exposições itinerantes, destinatários de ações pedagógicas levadas a
efeito nas escolas...).” (id, p. 101)

Cabe lembrar que além de todas as atividades oferecidas acima pelo Museu
da Maré, ele oferece um site extremamente informativo e bem elaborado.
Sendo assim, nesse tipo de museu pró-ativo encontramos alguns pontos
reincidentes deslizando pelos depoimentos dos Livros do Museu. Por exemplo, há
várias crianças/ adolescentes que vão conhecer o Museu e ficam indo lá repetidas
vezes e assinam várias vezes também, tantas quantas forem ao Museu. Nesses
depoimentos encontramos muitas “falas” como a de Lilian Britto Shumlesh em
março de 2009 que afirma: É muito legal (sic) gostei apesar de ter vindo umas
500 vezes (sic) muito legal. Ao buscarmos no Livro das Assinaturas mais
informações sobre a Lilian não encontramos diretamente, pois ela não declara sua
localidade, nem escola que frequenta e também não diz sua idade. Porém, pela
proximidade com outras Assinaturas de crianças entre 11 e 13 anos, trata-se
provavelmente de menina de 11 /12 anos e moradora da Baixa do Sapateiro, pois
206

um pouco acima de sua assinatura no Livro das Presenças há uma outra pessoa,
provavelmente parente - com o mesmo sobrenome dela- que se declara da Baixa.
Outro depoimento anônimo e enfático nos diz Gostei, vim 11 vezes, ou ainda
Eu adorei o museu, venho aqui sempre que posso! BJKS!! (Sic) Foi muito legal
Juliana. Juliana é provavelmente mais uma menina entre 14 a 16 anos moradora
ali da Maré, provavelmente também da Baixa do Sapateiro, porque seu nome foi
assinado no meio de alunos de uma escola e nessa faixa etária.
A maioria dessas crianças ou adolescentes são moradoras do entorno, logo o
Museu faz parte do cotidiano das mesmas e se torna referência em suas próprias
vidas já que elas passam por lá cotidianamente, pedem para beber água, ir no
banheiro, brincam na “casinha”, como chamam a palafita, correm pelo pátio etc.
Marceley nos diz em novembro de 2010: Eu adorei a casinha e tudo.
Ainda inspirada na experiência de Viktor Chagas (2007) que acompanhou o
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percurso de algumas crianças nos Livros de Depoimentos e Assinaturas do Museu


da Maré, também tentamos acompanhar Brenda de Souza Carvalho em suas
aventuras pelo Museu, na medida do que nos foi possível pelos Livros
institucionais. Ela é uma menina que tinha 11 anos em 2009, moradora do
Conjunto Bento Ribeiro Dantas (Fogo Cruzado).
Brenda primeiramente nos saltou aos olhos pela repetição com que ela
escreve no Livro de Depoimentos e assina, além dela escrever coisas de criança,
simples, mas muitas vezes ocupando meia página com uma letra bonita, porém
enorme. Escreve por exemplo em 26 de março de 2009: Brenda Beijos (sic –
desenha vários corações); ou ainda em maio de 2009: Adorei o museu Ass:
Brenda BJS !!! (sic- desenha mais um coração), neste momento já assina o Livro
de Presenças declarando ter 12 anos, provavelmente tendo aniversariado por essa
época. Não conseguimos descobrir em que escola estuda, pois não declara isso,
pelo percentual estatístico deve estudar numa escola municipal da região. Nem
sempre quando assina o Livro de Presenças ela faz depoimentos ou vice-versa.
Mas, digamos que para uma criança de 11/12 anos é frequente as vezes que
aparece nos dois Livros e demonstra coerência. Tem letra legível e parece
expansiva a se julgar pelo espaço que ocupa nas páginas, sempre assina o nome
todo no Livro de Presenças e apenas Brenda no Livro de Depoimentos. Também
percebemos que neste último se sente muito à vontade para desenhar corações,
207

escrever com letra enorme, fazer frequentemente declarações carinhosas ao


Museu e ocupar meia página apenas com uma ou duas frases pequenas.
Portanto, no Livro de Depoimentos Brenda demonstra maior intimidade
com o livro e com o espaço do Museu. Também em relação à comunidade da
Maré, aonde mora, se refere muitas vezes apenas como Fogo, diminuição de Fogo
Cruzado, “codinome” do Conjunto Bento Ribeiro Dantas. Talvez faça cursos no
Museu ou participe do PET, ou ainda da Sala de leitura, não sei. Com seu
linguajar infantil e contemporâneo Brenda se refere à palafita falando Eu gostei da
cabana em novembro de 2009.
O caso de Brenda pode ser banal, passar despercebido, mas pode, também,
nos ser emblemático na medida em que exemplifica as ações do Museu da Maré
transcendendo em muito o espaço museográfico de um museu clássico. Mostra-
nos também na prática o valor daquele lugar para a população local, como nos
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declarou Carlinhos, Lourenço, Terezinha ou “Seu” Atanásio em suas entrevistas


em que todos desejam que o Museu narre a história da Maré, valorize aquela
população, valorize a favela, empodere as identidades locais e estabeleça uma
reflexão sobre aquela história e a construção daquelas memórias. Já escrevemos
anteriormente sobre isso, um dos principais motivos para o surgimento do Museu
é a busca do empoderamento identitário local, de uma cidadania crítica e ativa.
Portanto, mais uma vez a aposta nas práticas educativas conscientes, ou não tão
claras, emergem nas “águas da Maré”, ou melhor, do Museu da Maré. Com
certeza a intenção dos dirigentes e funcionários é transformar e criar com essas
práticas educativas novas mentalidades, atingindo prioritariamente uma população
de crianças, adolescentes e jovens de várias comunidades da Maré. È claro que
constatamos nos Livros que a maioria dessas crianças, assim como outros
visitantes da Maré, são de comunidades do entorno do Museu, como do próprio
Timbau, da Baixa do Sapateiro, do Conjunto Bento Ribeiro Dantas (Fogo
Cruzado) aonde mora Brenda.
No Livro de Depoimentos as crianças também escrevem sobre as brincadeiras
e a sensação de liberdade que vivenciam lá dentro, como podemos perceber no
depoimento anônimo a seguir: Ai amei, fizemos bagunça ai foi tão bom. E é
convivendo com tantos símbolos e memórias que elas vão interiorizando valores e
referências ali perpetuados e transmitidos através de práticas educativas não formais
em que de visitantes acabam se tornando usuárias daquele espaço educativo.
208

Uma provável colega de Brenda chamada Natalia, escreve logo abaixo dela
no dia 20/04/2009 e faz um depoimento interessante: “(Sic- é desenhado um
coração) Oi meu nome é Natalia tenho 12 Anos Adorei tudo do museu. (sic) é tudo
muito importante para sabermos como era o mundo antigamente Vocês estão de
Parabéns ! (sic – desenha um coração) Beijos: Natalia.
Como já escrevemos outras crianças e jovens pegam livros emprestados na
biblioteca do Museu, ou participam da sala de leitura, outras do PET ou ainda dos
cursos oferecidos no Museu, além de receberem toda a mensagem museográfica
transmitida na visita à exposição permanente e às temporárias do próprio Museu
através da livre observação e/ ou das explicações dos guias do espaço museal.
Portanto, mais uma vez o Museu se apresenta como um espaço não formal de
educação sob vários ângulos, tanto nas visitas às exposições, quanto na participação
nos cursos lá oferecidos de forma não escolar, mas sistematizada, não formal.
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O depoimento de Joyce Carvalho em 18/10/2010, estudante da Escola


Municipal Bernardo de Vasco, nos diz Eu gostei do museu da Maré por que é
simples é legal. Também é importante a história da Anne Frank38 por ela viveu 2
anos escondida eu nem você não conseguiria mais tudo aqui e bom. Escrito por
Joyce Carvalho” Joyce não diz quantos anos tem, mas podemos imaginar que tenha
por volta de 13 a 15 anos, que é a média de seus colegas declarantes nesse dia e
pertencentes à mesma escola e mesma turma. Também não diz em que bairro mora.
Como já abordamos em capítulo anterior, o Museu da Maré tem sua
exposição permanente e diversas outras temporárias, como a de Anne Frank, e em
alguns poucos depoimentos os visitantes fazem alusão às temporárias. Mas,
percebemos que o impacto da palafita e da forma museográfica como toda a
história da Maré é contada normalmente, geram muito maior impacto no público
do que qualquer exposição temporária.

38
Uma das exposições temporárias do Museu da Maré foi a”Exposição Anne Frank – Uma história
para hoje” que ocorreu de setembro a novembro de 2010 no Centro de Referência da Educação
Pública do Rio de Janeiro, no Museu da Maré e no Centro Cultural de Santa Cruz Dr. Antonio
Nicolau Jorge. Além da exposição houve também palestras com uma senhora sobrevivente do
holocausto aberta à comunidade e a algumas escolas públicas próximas.
209

8.2.2
Os eixos temáticos

No eixo temático espaço educativo não formal/ educação, encontramos


muito poucos depoimentos que utilizam diretamente a palavra educação, ou
aprendizagem, ou ensino, como por exemplo a escrita anônima de março de 2009
que diz Eu gostei muito é bom aprender sobre a Maré; ou ainda, a escrita de
Fernanda Bonfim de Araújo que revela Eu Fernanda, achei a exposição muito
educativa e interessante. A exposição explica que a Maré e não é só favela, tem
história. Também, o depoimento simplório de Isabela (11/11/2010) nos fala sobre
a possibilidade dessa aprendizagem e da consciência da mesma: Eu Isabela Eu
goste por que eu aprendi como os brinquedo eram de madeira aonde minha mãe
morava então eu agradeço muito a Deus pelos dias de hoje.” Percebemos em seu
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depoimento que Isabela é uma moradora da Maré e que sua mãe morou nas
palafitas, e ela valoriza e percebe as melhoras materiais na comunidade. Porém,
no Livro de Assinaturas não encontrei mais informações sobre ela.
Também, achamos vários depoimentos que falam da alegria de saber como
era a vida antigamente, da emoção de ver como a mãe ou o pai viveram, de
conhecer a história da Maré e declarações semelhantes. Sendo assim, percebemos
que em todos esses tipos de declarações nos deparamos com o fato de haver um
grande desconhecimento prévio da história da Maré anterior à visita, Mas, através
da mesma novas informações são recebidas, introjetadas, recolhidas, somadas e
porque não, aprendidas sobre a história da Maré e a memória local. Mais uma vez
me deparo a possibilidade de subjetividades transformadas (Silva, 1999) deixando
claro o alcance da dimensão educativa do Museu. O depoimento de Rosa Gabriela
em 21/09/2009 confirma isso: Eu achei super interessante, pois explica não só
para mim quanto pra todas as pessoas que o mundo antigamente era bem
diferente de hoje !!; ou ainda, o depoimento de Thais Can que diz “Relembrei
muitas coisas da minha infância, vou voltar com minha filha para que ela reviva
comigo tudo isso!”.
O segundo eixo temático é o da memória. Thayane foi com sua avó Josenia
ao Museu da Maré. Ambas são moradoras da Vila do Pinheiro e não declaram
suas idades, nem na possível instituição escolar de Thayane. Esta dá o seguinte
depoimento: Rio, 20/07/09. Thayane Ramos Soares da Silva. Foi bom conhecer a
210

história do museu da Maré e relembra como foi a infância da avó Josenia no


tempo das Palafitas de lá pra cá tudo mudou pra melhor. Eu Thayane e Josenia
foi bom (...)”. Ao ler esta mensagem recordamos Ricoeur (2007) que nos fala da
passagem da memória compartilhada à memória coletiva e da importância da
confiabilidade da testemunha. Quanto mais uma testemunha mantém seu
testemunho no tempo, maior a credibilidade da mesma. Logo, a avó Josenia ao se
identificar e emocionar com a exposição museográfica permanente permite que tal
memória das palafitas se faça presente com maior significado para sua neta e a
comunidade como um todo.
Sendo assim, o depoimento de Thayane nos recoloca a questão do
testemunho, que Ricoeur (id) nos alerta que para que seja válido, há que se ter
credibilidade. Mas, com certeza para ela sua avó tem credibilidade “ancestral” e o
Museu também passa a ter tal credibilidade, pois confirma as lembranças de sua
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avó e vice-versa, compreendendo assim o que Ricoeur (id) afirma ser a memória
afetiva. Tanto o que fica na memória da avó, quanto da neta passa diretamente
pela afetividade.
Em final de julho de 2009, Cláudia dá o seguinte depoimento: Trouxe várias
memórias! Obrigada!”. Neste depoimento memória também está associada a
lembrança. O que queremos lembrar e o que queremos esquecer. Com certeza o
Museu da Maré e muitas pessoas das comunidades – como Cláudia – agradecem
ao Museu por ter trazido as lembranças que não querem esquecer.
Essa correlação entre as lembranças dos moradores – como Thayane,
Josenia e Cláudia- e o que o Museu da Maré apresenta na sua reconstrução de
memórias locais formam a base comum imprescindível que Halbwachs (1968)
associa ao testemunho, como exposto no trecho abaixo:

“Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos
tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre
ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser
reconstruída sobre uma base comum.” (id, 1968, p.12)

Já o eixo temático história, assim como o de memória, é muito recorrente


nos depoimentos. Fora aqueles muito simplórios - como gostei, amei, demais etc-,
história junto à categoria memória é a que mais aparece. Às vezes a noção de
211

história está posta associada a pertencimento, identidade, como na fala de Gabriel


que iremos analisar a seguir.
A noção de que um povo que tem história tem mais valor, fica claro no
depoimento de Gabriel Maciel da Silva. Gabriel é morador de Anchieta, assim
como Rafael Maciel e Josi Maciel e os três, provavelmente mãe e filhos, vão
visitar o Museu da Maré. Gabriel tem 10 anos, Josi 31 e Rafael 7 anos. O
depoimento de Gabriel nos diz: Meu nome é Gabriel, Rafael e Josi. Nós moramos
em Anchieta, e achamos a história da Maré muito interessante. Este povo tem
história.” em 26/07/2009. Portanto, um povo que tem história tem mais valor,
logo sua identidade se fortalece, ou seja, se empodera socialmente.
Também Joselito Mendes de Souza no mês de outubro de 2010 nos dá o
seguinte depoimento: Eu achei legal em ver que eu venci essa história. Não
conseguimos saber mais nada da vida de Joselito, mas pelo depoimento
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percebemos que se trata de um morador da Maré e que viveu muito


provavelmente no tempo das palafitas, pois ele mesmo se considera um vitorioso
porque venceu essa história de pobreza e exclusão. Logo, se viveu nas palafitas
que duraram até aos anos 70 e início dos anos 80 é porque ele tem no mínimo 30
a 40 anos. Joselito, mesmo tendo provavelmente vivido tudo isso, valoriza a
exposição que narra a história e memórias construídas pelo Museu da Maré, que
permitem que ele reflita sobre essa realidade.
Outro eixo importante em nossa pesquisa é o conceito de identidade. Lídia
Felix Silva escreveu: Maré, lembranças inesquecíveis, vivo aqui desde pequena.
Sou Favelada com muito orgulho. Filha de nordestinos, nascida criada na Maré.
Maré é sinônimo de luta, cidadania, guerrilheiros de uma luta cotidiana. Lídia
Felix. Lídia tem 18 anos e vive no Conjunto Bento Ribeiro Dantas, mas assina
Fogo Cruzado também. Quando o Museu da Maré investe tanto na construção da
memória e história local tem um objetivo claro, tanto visto por nós, quanto
confirmado por vários de nossos “narradores da Maré”, que é o empoderamento e
fortalecimento das identidades locais. O empoderamento da palavra favela, a
valorização da história local, a construção de uma memória contra-hegemônica
etc, nos permitem pensar que esse é o objetivo central do Museu da Maré.
Lembrando mais uma vez as entrevistas dadas por Lourenço e Carlinhos, eles
afirmam ser a formação política do cidadão, a valorização da história local, a
construção da memória da Maré eixos da atuação desse grupo que acaba fundando
212

também o Museu da Maré conectado ao CEASM. O trecho abaixo de Antonio


Carlos Vieira (2004) deixa claro a intenção de construir essa memória e resgate da
história local, com a finalidade de transformação social:

“Não se pode esquecer o papel dos grupos sociais. Na verdade, como


portadores das memórias coletivas, eles podem romper com esta lógica do
lugar de memória atrelado à história oficial e construir novos paradigmas
que dêem novo sentido a este conceito e rompam com o que Nora diz ser o
esfacelamento da memória (Nora, 1993, p. 17). Aos grupos sociais, cabe
ressignificar os lugares de memória, devendo assumir o papel ativo na sua
identificação. Um fator fundamental a ser considerado deve ser justamente o
da “utilidade” dessa memória como combustível de transformação social.”
(id, p. 158)

Continuando nossa trilha pelos livros institucionais encontramos alguns


depoimentos saudosistas até mesmo em relação à vida precária em que viviam
grande parte dos moradores das comunidades da Maré, como o seguinte
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depoimento anônimo de um morador local: Deu saudades das palafitas em


dezembro de 2010. Esse depoimento nos chama atenção não só pelo saudosismo
de uma vida tão precária, mas também, pelo fato do Museu conseguir atingir de
tal forma a identidade daquele indivíduo que ele se emociona a ponto de sentir
saudades daquela realidade dura. Carlinhos, diretor do Museu da Maré, ao ser
entrevistado nos afirma exatamente isso, que um Museu tem que emocionar, que
ao entrar no Museu e se deparar com a palafita é uma emoção. E é exatamente isto
que intencionalmente foi planejado e que encontramos em muitos depoimentos.
Ora se já comentamos que a memória é afetiva (Ricoeur, 2007), no Museu da
Maré encontramos diversos portais abertos para a afetividade ... a palafita, todos
os móveis e utensílios do interior da mesma, como, o fogão, o bule de café, a
louça para colocar banha, dentre outros, o barco, o São Pedro, os brinquedos –
como o carrinho de rolimã, a pipa, o pião ...
Tanto o saudosismo da favela, das palafitas, quanto o aprendizado de
Thayane com o que sua avó Josenia viveu, nos remete a Appadurai &
Breckenridge (2007) quando afirmam que há uma enorme variação na apropriação
do passado por indivíduos do presente e a tensão inerente ao próprio
fortalecimento identitário:

“Estas vão desde problemas associados a etnicidade e identidade social,


nostalgia e busca de uma autenticidade “museificada” até a tensão entre os
interesses dos Estados em fixar identidades locais e as pressões que as
213

localidades exercem ao tentar transformar essas identidades. O resultado é


uma quantidade de pressões contraditórias, algumas no sentido de fixar e
estabilizar identidades grupais por meio de museus (e do potencial de se usar
seus artefatos para emblematizar identidades grupais existentes ou
emergentes), e outros que tentam libertar e desestabilizar essas identidades
por meio de modos diferentes de expor e observar os objetos.” (id, p. 13-4)

O último eixo a ser analisado é o que tem a ver com os depoimentos dos
estrangeiros, já que estes foram o grupo fora da Maré que mais visitou o Museu
num ano (2010) e em segundo lugar, no outro (2009). Resolvemos dar alguns
exemplos de depoimentos recebidos, como o de Soledad, argentina que declarou:
Qué bueno es vernos y reconocernos, es lucha, el trabajo, los miedos, la resistencia
y los sueños. Buena lucha! Soledad La Matarza – Argentina” Soledad não data
seu depoimento, tampouco escreve sua idade ou instituição que possa estar ligada,
porém suas palavras são claras na valorização daquele espaço, nas memórias de
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resistência e luta ali narradas e com as quais parece se identificar.


Alguns estrangeiros escrevem em espanhol, ou em suas línguas naturais,
como alemão ou holandês. Elim, da Noruega, escreveu em espanhol: Muchas
gracias por invitarnos a visitar a su historia, a su communidad. Me impresioné
mucho. Um gran saludo, Elim de Noruega. Elim não assinou o Livro de
Assinaturas no dia 24 de março de 2010, só o de Depoimentos.
Por outro lado, Harlmul Prasch, austríaco de 48 anos, visita o Museu da
Maré com outros estrangeiros no dia 31 de março de 2010, mas talvez pela
dificuldade da língua não deixa depoimento, apenas assina o Livro de Visitantes.
Diversos são os depoimentos de estrangeiros parabenizando o Museu da
Maré e encantados e solidarizados com a memória aí construída. Como nosso
campo de estudo é a população local, não nos deteremos nesse tipo de análise.

8.2.3
Que aspectos destacar ?

Alguns pontos nos chamaram atenção ao estudar os Livros de Visitantes e


Depoimentos de 2009 e 2010, por sua repetição, recorrência ou originalidade.
Há muitos depoimentos pequenos, quase “monossilábicos” em que crianças
ou adultos se expressam de forma simplória: Gostei, Amei, Muito legal ! Em
outros são feitos símbolos, gráficos como se fossem de grafite, “pichações”,. Estes
últimos, a maioria deles não conseguimos entender sua grafia e/ ou seu sentido ...
214

Outra constância é que em alguns grupos, escolares principalmente, às vezes


todos assinam e só um dá o depoimento, na maior parte das vezes o professor, ou
orientador do grupo. Encontramos isto também em turmas de faculdade, de
graduação. Já os grupos de Pontos de Memória, ou outros também conscientes da
importância desse tipo de museu comunitário, escrevem em geral depoimentos
“apaixonados” e vibrantes com o Museu da Maré.
Outra conclusão que nos impressionou muito é que encontramos
pouquíssimos depoimentos negativos, como: Não gostei, Um saco, Muito chato.
No total dos 2 anos analisados é bem pequeno o número de depoimentos de que
os visitantes não tenham gostado. Também poucos sugerem faltas, mas neste item
alguns conseguem apontar sugestões, por exemplo: querem mais fotos de suas
comunidades, gostariam de tirar o Tempo da violência da exposição permanente
tendo em vista que mostra diversos projéteis de armas recolhidos na comunidade
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da Maré, dentre outras.


Como uma terceira conclusão nos deparamos com o fato de que raros são os
depoimentos de deboche, em que o visitante escreva uma “maluquice” como no
dia 28/10/2009 que escreveram Ronaldo, brilha muito no Corinthians, ou mesmo
a escrita de palavrões é muito rara. Portanto, os visitantes ou usuários do Museu
em sua grande maioria parece levar a sério o depoimento aí registrado.
Segundo Viktor Chagas, o Livro de Depoimentos é o livro de ausências
como explica no trecho abaixo:

“Quando chamo, portanto, de livro de ausências, o Livro de Depoimentos


dos visitantes do Museu da Maré, tenho em conta que estou gerando a partir
disto um questionamento de minha própria avaliação. Mas, se o faço, é para
chamar a atenção para o fato de que o livro-caixa, com depoimentos
apaixonados sobre a experiência sensorial e narrativa do museu, é ele
próprio um espaço de representação e escrita memorialista, é ele próprio um
vetor, se não um lugar de memória.” (id, p. 18)

Outra permanência que encontramos é a raridade da expressão pelo desenho.


Porém, há momentos que os depoimentos são muito personalistas, por exemplo:
Brenda escreve várias vezes no livro de depoimentos, às vezes só anota Ótimo
museu. Ass. Brenda e ocupa meia página, outras vezes escreve Parabéns. Adorei.
Bjs e ocupa mais meia página. São muito personalistas esses e outros depoimentos
de Brenda, como muito outros, especialmente de crianças e adolescentes.
215

Para finalizar este capítulo gostaríamos de reforçar a ideia e hipótese de


quanto o Museu da Maré é um espaço não formal e até, ás vezes, informal, de
educação devido a todos esses argumentos já utilizados e explicados, para construir
a memória local e reinterpretar a história da Maré com fins de empoderamento
identitário. Sendo assim, concordamos com Vieira no trecho abaixo quando diz que
o Museu da Maré é um “lugar de memória” num local que insiste em resistir e se
fazer parte da cidade do Rio de Janeiro a despeito da grande exclusão social e
econômica que sofre do poder público e de parte de nossa sociedade.

“O Museu da Maré é um lugar de memória instituído por moradores da região


da Maré, bairro de conjuntos populares e favelas na cidade do Rio de Janeiro.
Onde justamente o senso comum insiste em dizer que não há nada para
lembrar se constitui um lugar de memória que trabalha o tempo a partir de
sentidos e significados, e não, a partir do cronológico.” (Vieira, 2007, pg. 6)
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Sendo assim, entendo que é essa “vontade de memória” que encontramos


entre os fundadores do Museu da Maré e no próprio espaço museográfico, que
podemos relacionar ao trecho abaixo de Gabriel (2005) nos elucidando sobre o
quanto há dessa tensão entre a memória e a história.

“Esses lugares de memória devem ser, de forma concomitante, materiais,


simbólicos e funcionais. Essas três dimensões coexistem sempre, mesmo que
a ênfase ou sua maior visibilidade esteja posta em apenas uma delas. Elas
tanto refletem uma ‘vontade de memória” (instala a lembrança do sagrado,
imóvel, eterno, coletivo, vivido internamente etc) como sofrem a intervenção
da história, mudam com o tempo, são construções intelectuais, mediadores
individuais, representação do passado, necessitam de suportes externos,
possuem dimensão crítica etc.’ (id, p. 70)
9
“Marés de memórias” ou “memórias de Marés”

Foi preciso coragem para começar essa caminhada, mas também, é preciso
coragem para finalizar a mesma, ou melhor, encerrá-la “provisoriamente”. Um
objeto de estudo tão querido e tão trabalhado deve ser deixado, no mínimo em
descanso... Depois do imenso caminho percorrido chegamos a algumas
conclusões e muitas reflexões. Quantas histórias vividas, quanto estudo e
interlocuções postas, quantas trocas intelectuais e afetivas, mas a hora é de saber
encerrar, para que possamos à frente continuar nossas buscas e inquietações
acadêmicas e existenciais...
O objetivo básico desta tese foi identificar e analisar a dimensão educativa
do Museu da Maré através da ressignificação da história e da construção das
memórias locais podendo, facilitar um empoderamento identitário de grupos
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populares através de um museu comunitário.


Sendo assim, diversas interrogações foram colocadas na introdução desta
pesquisa. Tentaremos então, retomá-las à luz da teoria e dos dados encontrados no
trabalho de campo. Iniciarei analisando as questões gerais e deixarei as duas
primeiras interrogações, escritas na Introdução desta tese, por último.
Quanto às questões levantadas - O que é um museu comunitário? Museu
comunitário e ecomuseu são sinônimos? – nos deparamos com divergências entre
alguns autores, para Varine (2005) ecomuseu e museu comunitário são a mesma
coisa, já para Chagas (2000) e outros, são diferentes, pois o ecomuseu envolve além
do patrimônio e protagonismo comunitário, a existência do território físico
propriamente dito. Desse modo, concordo com Chagas e entendo ser o Museu da
Maré um significativo exemplo de um museu comunitário, o que nada o impede de
vir a se desdobrar num ecomuseu, caso o espaço geográfico de seu território mais
amplo venha a ser incorporado às delimitações do seu espaço museográfico atual.
As nossas reflexões sobre Como e por que surgem os museus comunitários
no Rio de Janeiro? Em que contexto? levaram-nos a analisar que algumas
comunidades populares, como a Favela da Maré e outras, que sofrem há muito
tempo, ou melhor, quase sempre, um enorme descaso do poder público e da
sociedade em geral, passaram a se organizar e reivindicar através do movimento
social melhores condições e qualidade de vida, isto estende-se também, aos bens
217

culturais. Tais museus surgem num contexto brasileiro de maior democratização


da luta social e política a partir da década de 80 pelos acessos aos bens básicos do
cidadão, inclusive as práticas culturais. Os museus comunitários surgem na esteira
das reivindicações dos movimentos sociais liderados pelo protagonismo
comunitário. De certa forma isto já nos encaminha a responder a nossa oitava
inquietação, ou seja: Como foram construídos? A comunidade participou da
seleção dos objetos/ fatos históricos que desejam lembrar ou esquecer?
No caso do Museu da Maré, como um museu comunitário, encontramos a
participação da comunidade em diversos momentos desde sua criação. Se por um
lado, jovens moradores da região da Maré fundaram o CEASM e a Rede de
Memória, que vêm a dar origem ao Museu da Maré, este também foi por eles
criado; por outro lado, encontramos a presença da comunidade em geral não só na
sua criação, doando objetos e auxiliando na mesma, como comprovamos na
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participação de antigos moradores e lideranças locais, como “Seu” Atanásio e


“Seu” Jaqueta. Além disso, em nossas observações de campo nos deparamos a
todo o momento com a frequência da comunidade num entra e sai de crianças e
adultos no Museu, desde os cursos oferecidos, bem como a presença assídua das
crianças às rodas de leitura e à Biblioteca Elias José. Os moradores também estão
presentes nas palestras, cinema, visitas de escolas da redondeza às exposições
permanente e temporárias, aos eventos como “Maré de Samba” etc.
Assim sendo, a primogenitude do Museu da Maré se dá não por ser um
primeiro museu de favela do Brasil, mas por ser o primeiro museu de favela
criado pela população local, onde há de fato um protagonismo comunitário, como
nos confirma o trecho de Chagas & Abreu (2007) abaixo:

“A novidade, no entanto, não residia no fato de o Museu da Maré ser o


primeiro museu criado dentro de uma favela. Em 1996, por exemplo, foi
criado o Museu da Limpeza Urbana – Casa de Banhos Dom João VI, situado
no bairro-favela do Caju, (...). Todavia, tanto o Museu da Limpeza Urbana,
administrado pela Companhia de Limpeza Urbana – Comlurb como no
projeto Museu ao Ar Livre do Morro da Providência, administrado pela
prefeitura, não são as comunidades locais que estão no centro dos interesses,
das discussões e das ações administrativas e gerenciais. O que a imprensa de
modo singelo sublinhava não era a primogenitura de um museu dentro de
uma favela, mas a primogenitura de um museu sediado numa megafavela,
construído e administrado pela comunidade local, que trataria de temas
locais e universais (...).” (id, p.131)
218

Simultaneamente a essas questões, constatamos a preocupação com a


narração da história e da construção das memórias locais, não só na exposição
museográfica permanente, como no material analisado das falas e depoimentos
das entrevistas de seus diretores e funcionários. Nesse rico material coletado em
campo encontramos por parte de seus diretores e funcionários a intenção e busca
de uma “memória feliz” (Ricoeur, 2007), ou seja, na construção de uma memória
justa, de uma memória que insiste em se fazer presente na “contramão” da história
oficial, valorizando a luta e resistência daquelas comunidades da Maré em prol
não só de sua sobrevivência - quer aterrando os alagados, quer construindo suas
casa de alvenaria etc ou sonhando com o exercício de uma cidadania mais plena
(Candau, 2002).
As reflexões acima sobre as memórias construídas e histórias narradas no
Museu da Maré nos levam a outros questionamentos que me propus ao iniciar este
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trabalho, como: Que conceito(s) de identidade(s) eles representam? Será que


esses museus representam de fato a(s) identidade(s) presentes naquela(s)
comunidade(s), ou apenas a identidade dominante no local? A(s) comunidade(s)
se sentem representadas nesses museus? Essas perguntas “engessadas” são
escorregadias e perigosas, mas procurei desvelá-las gradativamente e com cautela.
Primeiramente ficou claro que o Museu da Maré não pretende representar todas as
comunidades da Maré plenamente, assim como poderíamos afirmar que o Museu
Nacional também não representa todo o Brasil, mas uma narrativa possível entre
outras.
Os diretores e fundadores do Museu da Maré deixam claro nas entrevistas a
intenção de valorizar a história local e memórias construídas, a fim de provocar
uma reflexão que envolve a vida deles e dos outros, destacando alguns elementos:
a luta pela terra, pela moradia, a questão da violência hoje. Aspectos que podem
perpassar a maioria das comunidades cada qual do seu jeito e dependendo de se
sua história. De certa forma, os 12 tempos temáticos do Museu representam esses
elos entre as comunidades. Ao estudarmos a história de cada comunidade da Maré
(Vieira, 2008), fica claro o que Silva (2006) nos mostra como sendo o tecido
social e histórico que compõe o mosaico com nuances diferenciadas desde a
origem da formação do bairro da Maré. Portanto, seria impossível representar
todas as identidades locais, ou fixá-las numa identidade dominante na região.
Lourenço em sua entrevista afirma que os objetos do Museu são como “as
219

palavras geradoras” de Paulo Freire, dinamizadoras de lembranças e sentimentos


de busca de si e do outro. O Museu entrosa identidades e alteridades num jogo
contínuo e transformador de identidades, capaz de emocionar seus visitantes
conforme nos afirma Carlinhos em seu depoimento.
O Museu da Maré não se quer um museu de “gueto”, deseja dialogar com a
cidade, o país e o mundo de acordo com seus dirigentes e seu site institucional.
Confirmamos esta intenção na análise dos Livros de Assinaturas e de
Depoimentos dos Visitantes, nos quais nos deparamos com diversas assinaturas de
alunos de escolas municipais da região, de moradores do Timbau ou da Baixa do
Sapateiro, por exemplo, e declarações de estrangeiros enaltecendo e se
identificando com vários objetos museológicos.
Entendo que o Museu da Maré traduz as narrativas modernas na busca por
identificações e legitimação dos processos sociais e na constituição de identidades
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plurais.
Ricoeur (2007) nos fala das lembranças e dos esquecimentos, do que queremos
lembrar e esquecer, Pollack (1989) também. Quais são os “silêncios” da história
daquelas comunidades não representados naquele (s) museu(s)? Com certeza todo o
trabalho de memória envolve sua tensão com a história, e são os esquecimentos que
possibilitam a sua reescrita da história, o devir (Ricoeur, id). Ao mesmo tempo em
que vários pescadores foram entrevistados e em seguida, conheceram o Museu da
Maré, se emocionavam ao verem as fotos antigas de seus “barraquinhos”, ao entrarem
na palafita etc. Isto também fica registrado no Livro de Depoimentos quando alguns
moradores “reclamam” porque queriam mais fotos de suas comunidades e não viram,
ou algo semelhante. Porém, é dialeticamente isto o que permite a sua própria
renovação, a sua reinvenção, o seu dinamismo, a sua recriação!
Por fim, nos deparamos com o eixo nodal de nossa tese, ou seja, as questões
sobre educação propriamente ditas relacionadas a memória e identidade, são elas: O
Museu da Maré possui preocupação com programa educativo auxiliando no
fortalecimento identitário? Qual o caminho educacional escolhido pelo(s) museus
comunitário(s ) para a exposição museográfica? Como é a sua prática pedagógica
museal?Esse tipo de prática educativa facilita a democratização do acervo e o
fortalecimento de identidades de resistência? Observamos que o Museu da Maré
constrói estratégias de possível fortalecimento identitário tanto dos pescadores,
quanto de outros sujeitos coletivos da região da Maré, tendo em vista se configurar
220

como um museu comunitário nascido do movimento social, em que diversos de


seus objetos suscitam- nos lembranças que emocionam ... Além disso, o Museu da
Maré apresenta uma linguagem museográfica com referências da história local e
permite que seus visitantes reflitam sobre as mesmas, se envolvam e construam
memórias locais possibilitando fortalecimentos identitários. Sendo assim,
percebemos e visualizamos que a dimensão educativa do Museu da Maré se faz
presente desde sua exposição museográfica até aos cursos lá oferecidos à
comunidade e outras atividades já descritas neste trabalho. Se através de todas essas
atividades seus visitantes e usuários transformam suas subjetividades e modificam
suas identidades (Silva, 1999), o Museu cumpre mais uma vez essa dimensão
fundamental como um espaço não formal de educação por excelência. Entendemos
que também é, muitas vezes, um espaço informal de educação através das redes
educativas do cotidiano que perpassam todo aquele universo cultural.
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Sendo assim, voltamos às nossas primeiras indagações: Como e para que as


comunidades populares constroem museus comunitários e ecomuseus? A
construção dos museus comunitários pode fortalecer identidades nas comunidades
locais nas quais se inserem? Devemos deixar claro que nosso estudo de caso refere-
se ao Museu da Maré e seu contexto, porém, entendemos que alguns eixos podem
perpassar outras realidades de outros museus comunitários em linhas gerais e vários
desses ângulos já foram respondidos acima. A título apenas de confirmação, no
nosso entendimento o Museu da Maré é um museu comunitário e se faz
comunitário, na medida em que foi criado e tem a participação cotidiana do
movimento social e da comunidade local. Porém, uma das questões cruciais em
nosso estudo é o fato de que ser comunitário não garante uma gestão democrática
como nos alerta Chagas (2000). A memória pode ser libertadora ou dominadora
depende do uso que fizermos dela. Entendemos que é necessário que os moradores
da Maré se sintam contemplados, protagonistas daquela história narrada não só na
exposição museológica permanente, mas também, nas histórias narradas e peças
montadas baseadas nos Contos e Lendas da Maré e em outras ações museológicas,
como confirmamos nos diferentes dados coletados.
Entendemos assim, que museus são espaços de representação do outro e de
grande potencial educativo, além de guardiões e divulgadores de culturas e
ideologias de grupos sociais específicos.
221

Por fim, a Nova Museologia nos traz novos conceitos de museu, alargando
suas fronteiras tradicionais como nos afirma Aquino (2007). O Museu da Maré,
como um representante dos museus comunitários, gera visões “de nós e dos
outros” estabelecendo um jogo sutil e constante entre identidades e alteridades em
suas memórias construídas e histórias narradas que possibilitam fortalecimentos
identitários de resistência e de projeto, como nos afirma Castells (1999), tendo em
vista valorizar as memórias locais e ressignificar a história da região, fatos que
sem dúvida nenhuma podem favorecer o empoderamento das comunidades da
Maré em suas lutas políticas, sociais e culturais. Enquanto o Museu da Maré atuar
nessa tensão entre o “nós e o outro”, ele se faz cotidianamente comunitário e
referenciado na coletividade como um importante “lugar de memória”,
possibilitando a reconstrução do passado e a transmissão de valores, práticas
sociais e culturais, logo de identidades por extensão.
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O Museu da Maré nos traz também a história da pesca na região, a Maré e


suas comunidades pesqueiras existentes até hoje à beira da Baía de Guanabara.
Diversos objetos museológicos nos incitam e falam da água, das marés, dos
“tempos dos pescadores”, elementos vivos dos tesouros históricos ali guardados,
também “guardiões da memória”, de saberes, de sabedorias para a vida... Eles,
pescadores, que tanto nos encantaram nessa trajetória nos mostrando como essas
memórias e saberes se perpetuam nas redes educativas do cotidiano. Construir as
memórias muitas vezes esquecidas desses pescadores,é um dever, uma
necessidade jurídica, moral e política (Sarlo, 2007), como já afirmamos nesta tese
e que também está posta no Museu da Maré.
Também, nos deparamos com a constatação de que essas redes educativas do
cotidiano emergem no universo cultural do próprio Museu da Maré, embora possam se
assemelhar a algo aparentemente invisível, mas presentificado de forma sutil e atuante.
Como já abordamos em capítulo anterior, Silva (1999) afirma que “educar é
transformar subjetividades e produzir identidades” e foi justamente isso que nós
encontramos nos desdobramentos das diversas ações do Museu da Maré.
Os Livros de Presenças e Depoimentos nos mostraram claramente que de
visitantes alguns tornam-se usuários, tal a frequência com que vão ao Museu,
especialmente as crianças e adolescentes. Raramente encontramos depoimentos
negativos, fazendo críticas ou questionando aquele trabalho, muitos se
emocionam, se vem refletidos nas memórias ali construídas e ressignificadas.
222

Para fechar o presente trabalho paradoxalmente “abrimos” com algumas questões


instigantes sobre o futuro dos ecomuseus, que nos são colocadas pelo próprio criador da
expressão ecomuseu - Hugues Varine - mas que vão para além da nossa pesquisa, se
constituindo como reflexões sobre o futuro - “as marés vindouras...”-, e que imagino
podem ser pensadas sobre os museus comunitários também ....
Varine (1996) nos fala que o chamado fracasso de alguns desses museus
deveriam ter outro nome, porque há várias possibilidades de se terminar o
processo dinâmico de construção de um ecomuseu: o ecomuseu pode desaparecer
após preencher sua função social, pode tornar-se uma ação política, educativa etc;
pode se institucionalizar e tornar-se um museu clássico emanado da comunidade;
ou transformar-se num outro processo, igualmente de natureza museológica, mas
muito diferente porque adaptado a uma nova geração (entrevista de Hugue Varine
a Mário Chagas, Cadernos de Museologia Nº 5, 1996). Logo, todas essas questões
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nos fazem pensar e refletir sobre o futuro dos ecomuseus e dos museus
comunitários e, em especial, do nosso objeto de estudo, o Museu da Maré . Quais
serão os fluxos vindouros das “marés” no Museu da Maré ?
Para concluir nos remetemos à alegoria trazida pela citação abaixo de Ecléa
Bosi (1979) e relacionamos memória aos espaços educativos não formais:

“Hoje, a função da memória é o conhecimento do passado que se organiza.


Ordena o tempo, localiza cronologicamente. Na aurora da civilização grega
ela era vidência e êxtase.” (BOSI, id, p.89)

Como nos afirma Bosi (id), a função da memória para os gregos antigos
significava vidência e êxtase. É com tal alegria e êxtase que esperamos construir
memórias através também de vivências extra -muros escolares nos espaços
educativos não formais e especialmente, nos “lugares de memória”, como os nos
museus comunitários. O experimento de vivências educativas diferenciadas
assegura, com certeza, uma ampliação da cidadania cultural.
Espero ressignificar a memória como esta aparece no conceito de
rememoração em Benjamin (1985), revisitando o passado para criar um presente e
futuro mais justos e igualitários para a construção de uma memória mais
equânime, segundo Ricoeur uma memória feliz (Ricoeur, 2007). Lembrando mais
uma vez Sarlo, a memória não é só um direito, é um dever, uma necessidade
moral, jurídica e política (Sarlo, 2007).
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223

Foto 51 de Helena Araújo – Painel na entrada da exposição permanente do Museu da Maré


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Anexos
232
233

Anexo 1

ROTEIRO DE ENTREVISTAS DE FUNCIONÁRIOS/ DIRETORES DO


MUSEU DA MARÉ No _____

I- Dados gerais:

1)Nome: ____________________________________ Nacionalidade_________

2)Endereço: ____________________________telefone:_______ e-mail: _____

3)Data de nascimento: ________________________ 4) Idade: _____________

5)Local de nascimento: ________________________6) Sexo_______________

7) Estado civil : __________ 8) Escolaridade: ___________________________

9) Profissão: ___________________________ 10) Religião: ________________


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11) Participação em movimentos comunitários, políticos ou religiosos: ( )


sim ( ) não? Quais? _______________________________________________

II – Entrevista

1. Como você conheceu o Museu da Maré?

2. Desde quando você trabalha no Museu da Maré?

3. De que parte do Museu você gosta mais? Por que?

4. O Museu da Maré lhe ensinou alguma coisa? O que você aprendeu ao


visitá-lo?

5. Você acha importante ter um Museu na Maré?

6. Você acha que ele representa as comunidades da Maré como um todo?


Justifique sua resposta.

7. Que mudanças na comunidade da Maré se podem atribuir ao Museu da


Maré?

8. Você faz ou já fez algum curso no Museu da Maré? Qual/ quais?

9. Você freqüenta as exposições, ou teatros, ou danças que se apresentam no


Museu da Maré? Quais? Com que frequência?
234

10. Você tem participação em movimentos comunitários, políticos ou sociais?


Quais?

11. De que modo sua formação contribuiu para a participação na vida


comunitária?

12. Você acha que o Museu da Maré tem práticas educativas? Quais?

13. Você pensa que as identidades dos moradores da Maré podem ser
fortalecidas pelo Museu da Maré ? Como isto se dá ou poderia se dar?

14. O que é mais marcante para você no Museu da Maré?

15. Deixe registrado algo que você acha importante sobre o Museu da Maré.
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Anexo 2

ROTEIRO DE ENTREVISTAS DOS PESCADORES


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