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Algumas reflexões sobre saúde e doença na modernidade
– O caso do “Homossexualismo”
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE:
Homossexualidade, corporalidade, individualismo, saúde, biomedicina higienista.
ESTE CORPO NÃO TE PERTENCE!
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SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................................................. 1
1. Saúde e individualismo na modernidade: a quem pertence este corpo? ............................ 3
2. Médicos e juristas pela saúde da nação brasileira ................................................................ 6
2.1 O higienismo do século XIX.......................................................................................... 7
2.2 Psiquiatria e Endocrinologia......................................................................................... 12
2.3 Médicos e legistas .......................................................................................................... 14
3. A biomedicina e a domesticação dos corpos ..................................................................... 18
Conclusão: O Discurso da doença pode ser discurso da resistência? ................................. 22
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Introdução
No ano de 1869, o alemão Karl Maria Kertbeny cunhou pela primeira vez um ter-
mo que, na modernidade, iria descrever as pessoas que se relacionam afetiva e sexualmente
com outras de seu próprio sexo: homossexual denotaria um comportamento, palavra que
substituiria – pelo menos no discurso oficial – termos como sodomita e “pederasta passi-
vo”, preocupados em enfatizar a posição no ato sexual. A tentativa era a de evitar que mais
homens (em maior medida) e mulheres fossem condenados à prisão ou à morte por atos
homoeróticos. O deslocamento que se dá das relações de mesmo sexo, de ato sexual a
comportamento definidor de cada indivíduo, retira-a também da qualidade de crime para
colocá-la, num primeiro momento, na condição de determinada por uma natureza biológi-
ca, contida nos genes ou nos hormônios. Na seqüência, o termo homossexualismo vai defi-
nir – no bojo de uma biomedicina preocupada com a higiene da nação –, as relações de
mesmo sexo, para mais de 100 anos depois dar lugar à palavra homossexualidade, expressão
que se destaca na atualidade por não conotar o sentido de doença, como sua antecessora.
A diferença entre os dois termos faz das relações de mesmo sexo muito mais do
que um fenômeno social, passível de ser descrito e explicado. Elas são um campo de for-
ças, de lutas entre discursos que tentam dar conta de temas como liberdade individual,
direitos humanos e sexuais, finalidade reprodutiva dos seres humanos, natureza biológica,
criação divina, entre outros. Se, no início do século XXI, é possível dizer que há, em boa
parte do mundo ocidental, uma maior tolerância às relações de mesmo sexo, é porque,
nessa correlação de forças, esses discursos controladores de certas formas de sexualidade
perderam sua hegemonia, o que não significa dizer que são idéias arcaicas que ficaram para
trás. O que este artigo pretende levantar é como o discurso científico mantém sua força
nos discursos sobre as relações de mesmo sexo – e a sexualidade em geral –, absorvendo e
sendo absorvido por demandas contrárias à sua idéia original, partindo do pressuposto das
ciências ocidentais como descritoras fiéis de uma realidade, de uma natureza independente
da interferência humana e das questões sócio-políticas.
O trabalho que aqui se inicia tem por objetivo refletir sobre o período que se es-
tende da segunda metade do século XIX até a Segunda Guerra, quando um discurso sobre
a homossexualidade começa a ser moldado nas culturas ocidentais. Especificamente, inte-
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ressa pensar o caso brasileiro, em que um discurso sobre as relações de mesmo sexo come-
ça a se fazer circunscrito às políticas higienistas que vão ter seu auge nos primeiros anos da
República brasileira (1889). Quando digo que um discurso sobre a homossexualidade se
configura nesta época não estou sugerindo que as relações de mesmo sexo não existissem
anteriormente a tal período ou, ainda, que antes dessa época houvesse uma liberdade gene-
ralizada para qualquer forma de sexualidade. O que vai acontecer nesse período é o início
de uma preocupação com os corpos dos indivíduos que, ao tornarem-se cidadãos, tornam-
se também produtores potenciais e necessários para a máquina capitalista.
o surgimento progressivo da grande medicina do século XIX não pode ser dissociado da
organização, na mesma época, de uma política de saúde e de uma consideração das do-
enças como problema político e econômico, que se coloca às coletividades e que elas de-
vem tentar resolver no nível das suas decisões em conjunto (Foucault, 1979:194).
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Sem querer me aprofundar no assunto, parece estranha a afirmação de que as populações só passam a ser
preocupação do Estado numa determinada época. Havia, no caso da biomedicina, sociedades encarregadas
de assistência aos pobres, serviços especializados às classes mais abastadas, situações e práticas que não po-
deriam ser agrupadas sob uma mesma denominação, até porque suas ações não eram padronizadas. “Socie-
dades científicas, as Academias do século XVIII ou as sociedades de estatística do início do século XIX,
tentam organizar um saber global e quantificável dos fenômenos de morbidade. A saúde, a doença como
fato de grupo ou de população é problematizada no século XVIII a partir de instâncias múltiplas em relação
às quais o Estado desempenha papéis diversos” (Foucault, 1979:195). A transição que se dá é de um Estado
absolutista, em que o poder se confundia com o corpo do soberano – que deveria ser protegido para a manu-
tenção da governamentalidade –, para um Estado em que a preocupação central é a vida da população, cor-
pos que deveriam ser preservados e higienizados para a prosperidade do Estado. O que mudam não são as
concepções ocidentais de saúde mas de Estado.
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Mas há que se considerar outros vieses dessa história. Em primeiro lugar, o que di-
zer de certos fenômenos considerados doenças num determinado grupo ou contexto, não
serem compreendidos da mesma forma em outro? E quando uma prática, um comporta-
mento ou um estilo de vida não problematizados como doença passam a ter tal conota-
ção? E se, além disso, os que passam a ver tal fenômeno como doença dispõem de algum
poder hegemônico e permissão para agir em nome de uma lei suprema? É interessante
pensar que foi no bojo de uma cultura preocupada em valorizar mais o indivíduo, a inicia-
tiva privada e menos o Estado e as tradições coletivas que os saberes biomédicos vão cons-
tituir um rol cada vez mais visível de patologias, capazes de constituir personagens e mo-
ralidades, definindo categorias de cidadãos bons e saudáveis.
ao mesmo tempo como individual, social e político2. Se pensarmos na recente história oci-
dental, as noções de corpo que encontramos nestes três níveis mostram a sexualidade dis-
cursada a partir de uma biomedicina que descreve uma verdade interior dos indivíduos,
uma verdade que pode estar oculta da vontade de cada um e melhor amparada estará quan-
to mais se aproximar das imagens ideais do corpo social.
Quais os sentidos individual, político e social de corpo que podemos retirar das
concepções de sexualidade e gênero, saúde e doença que fazem parte do período aqui ana-
lisado? Resultado de um cartesianismo que separa corpo e mente, corpo e alma, o corpo é
relegado ao reino das coisas naturais e reveste-se de um materialismo biológico que vai
favorecer o desenvolvimento das ciências biológicas e biomédicas (Lock e Schepper-
Hughes, 1990:52). Uma separação cara à própria ideologia individualista, uma vez que
mantém o corpo dos indivíduos inscritos em regimes de poder-saber autônomos à vonta-
de individual mas sob o domínio da biomedicina. Como será exemplificado com as noções
higienistas sobre o “homossexualismo”, estudos que serão apresentados como referência
neste artigo, o corpo humano revela-se de uma natureza animal lapidada pela cultura civi-
lizatória, cujos desvios caberiam ao Estado, na figura dos médicos e juristas, resolver.
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O corpo individual refere-se à percepção fenomenológica do corpo enquanto experiência vivida. O corpo
social são os usos e representações que se fazem do corpo, no sentido de se pensar natureza, sociedade e
cultura a partir dele e vice-versa. Já o corpo político circunscreve as relações de poder que, em determinados
contextos culturais, tratam de domesticar, organizar e regular o corpo social ou a população e disciplinar
corpos individuais.
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A constatação então nos levaria a pensar que um movimento de direitos gays que
contestasse o viés moderno das políticas de Estado, se recusasse antes de tudo a aceitar a
validade do discurso científico por conta de suas próprias condições de estabelecimento.
Se nasceu dentro da biomedicina, o discurso da homossexualidade precisaria, sob certo
ponto de vista, cada vez mais sair dela, como forma de evitar o controle do Estado. Mas
curiosamente, como mostro adiante, esse mesmo discurso domesticador da ciência tem
sido, de várias formas, reatualizado em contextos que buscam uma compreensão positiva
das relações de mesmo sexo. Ou seja a sexualidade é indissociável de uma verdade última
de cada um, ditada por uma natureza genética independente de vontade individual, o que
faz com que qualquer alusão à sexualidade ou desejo sexual como escolha soe como baixa
moralidade.
Não cabe aqui realizar uma história das relações de mesmo sexo. Por mais que
queiramos, a tarefa revela-se imprópria, ao naturalizar práticas humanas, construídas sim-
bolicamente e que, em cada época, vão ter um lugar próprio numa cultura. O fato de dois
seres humanos do mesmo sexo fazerem amor na Grécia antiga só teria relação com a “ho-
mossexualidade” contemporânea, se abstrairmos as duas de seus contextos culturais. É o
que se faz quando se fala de “heterossexualidade” através dos tempos, abstraindo-a de suas
motivações sócio-culturais e fazendo-a recair no objetivo-mor da reprodução humana.
Até essa divisão entre um ser de corpo feminino e outro de corpo masculino, como vari-
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Nesta afirmação, não estou excluindo qualquer possibilidade de que houvesse anteriormente um discurso
diferenciador entre mulheres e homens. Ele havia, mas não estava demarcado pela naturalidade e na imutabi-
lidade de uma essência interior de cada corpo. “Por volta de 1800 todos os escritores determinaram-se a
basear o que insistiam ser as diferenças fundamentais entre os sexos masculino e feminino, entre o homem e
a mulher, em distinções biológicas constatáveis e expressá-la numa retórica radicalmente diferente” (La-
queur, 2001:17).
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Durante o século XIX, o estado liberal toma consciência da alta mortalidade infan-
til e das péssimas condições sanitárias do “lar patriarcal” (Trevisan, 2000:171). Têm início
as prescrições médicas ao lar, em que a saúde e a educação das crianças passam a ser temas
centrais. Os pais são agora responsabilizados pelo futuro dos filhos, através de uma higie-
ne racional que contribuiria para a grandeza da nação. O corpo dos cidadãos passa a ser
fonte de preocupação do Estado. Para as massas campanhas de moralização e higiene cole-
tiva que se revelava como uma normatização da família nuclear básica do Estado burguês
(idem, 172). O Estado invade o interior das famílias através do médico higienista.
Foi através do especialista em higiene que o Estado imiscuiu-se no interior das famílias.
Com livre trânsito neste espaço outrora impenetrável à ciência, o médico higienista aca-
bou impondo sua autoridade em vários níveis. Além do corpo, também as emoções e a
sexualidade dos cidadãos passaram a sofrer interferências desse especialista cujos pa-
drões higiênicos visavam melhorar a raça e, assim, engrandecer a pátria. A partir da idéia
de um corpo saudável, fiel aos ideais de superioridade racial da burguesia branca, cria-
vam-se rigorosos modelos de boa conduta moral, através da imposição de uma sexuali-
dade higienizada, dentro da família. Acreditava-se que a libertinagem enfraquecia as na-
ções (idem, 172).
era mais culpado por transgredir a norma, o que significa sua inimputabilidade, do ponto
de vista jurídico. Tal fato teria conseqüências imprevisíveis, por empurrar a sexualidade
para o território da psiquiatria” (idem, 177). Várias abordagens tentavam definir o que era
desvio e perversão sexual. A figura clínica do homossexual criada em 1869, no escritos de
Kertbeny, era a tentativa de encontrar um enfoque científico mais rigoroso e menos subje-
tivo. Definidos como portadores de uma anomalia manifestada no desejo erótico por indi-
víduos do mesmo sexo, aos poucos a prisão deixa de ser o destino destes homens e mulhe-
res. As idéias de crime e pecado vão ficando para trás, pelo menos nas condutas do Estado,
uma vez que se tratava de uma anomalia que fazia desses indivíduos vítimas de suas pró-
prias taras.
O que está na base da homossexualidade considerada doença é o patamar de nor-
malidade conferido às relações sexuais e afetivas entre pessoas de sexos opostos. Alguns
médicos recusaram o termo homossexualidade e defendiam outros como intersexualidade
ou missexualidade, que falariam melhor dessas formas de sexualidade “confusa” que, se-
gundo os biomédicos, misturavam características dos dois sexos. Ou seja, o desejo pelo
sexo oposto ou a heterossexualidade foi, desde sempre, naturalizada pela biomedicina.
Apesar de ainda manter uma parte da sexualidade humana como proibida, errada, desvian-
te, estes estudos tinham por objetivo enquadrar esses comportamentos a partir da medici-
na e assim retirá-lo do moralismo religioso ou jurídico. Suas descrições científicas, no en-
tanto, parecem recheadas de julgamentos morais, mas são compreendidas se levarmos em
conta o patamar de normalidade e naturalidade que se conferia às relações heterossexuais
procriadoras e às condutas “de homem” e “de mulher”:
Assim, os métodos mudam, mas são sempre os especialistas que definem as doenças, es-
tudam suas origens e prescrevem os tratamentos. Segundo o Dr. [José Francisco] Vivei-
ros de Castro4, as causas da anomalia homossexual podiam ser: “loucura erótica, resul-
tante de psicopatias sexuais em pessoas mentalmente alienadas; falhas no desenvolvi-
mento glandular, provocadas por hereditariedade; vida insalubre, alcoolismo ou excesso
de onanismo; e outras circunstâncias favoráveis à aquisição do vício, tais como prisões,
velhice, impotência. Segundo ele, os homossexuais sofrem de uma alteração psíquica
chamada “efeminização”, cujo quadro comportamental era assim apresentado: “Têm
como as mulheres a paixão da toilette, dos enfeites, das cores vistosas, das rendas, dos
perfumes. (...) Depilam-se cuidadosamente. (...) Designam-se por nomes femininos,
Maintenon, princesa Salomé, Foedora, Adriana Lecouvrer, Cora Pearl etc. São capricho-
sos, invejosos, vingativos. (...) Passam rapidamente de um egoísmo feroz à sensibilidade
que chora. Mentira, delação, covardia, obliteração do senso moral, tal é o seu apanágio.
A carta anônima é a expressão mais exata de sua coragem. Não seguem as profissões que
demandam qualidades viris, preferem ser alfaiates, modistas, lavadeiros, engomadores,
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Jurista especializado em Direito Criminal. Escreveu, em 1894, o livro Attentados ao pudor (estudos sobre as
aberrações do instincto sexual).
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cabeleireiros, floristas etc. (...) Seu ciúme é um misto de sensualidade em perigo, de a-
mor-próprio ferido. Narram-se casos de pederastas que em acesso de raiva ciumenta di-
laceraram a dentadas o ventre ou arrancaram a pele do escroto e do membro de seus ca-
maradas” (Trevisan, 2000:179).
A etiologia de Viveiros de Castro não indica um agente causador único. Ainda não
se fala em hormônios nesses estudos e a genética parece ter um papel não considerado. No
entanto, uma gama de comportamentos que na atualidade a própria biomedicina se recusa-
ria a considerá-los etiologicamente são por ele apresentados como sintomas. A construção
do homossexualismo como doença tipifica como a idéia de doença está inevitavelmente
ligada a padrões de um comportamento considerado normal e já representa uma cultura
marcada pela medicalização excessiva dos corpos, da qual não fogem nem as práticas cul-
turais compartilhadas.
Um dos biomédicos higienistas brasileiros que mais se debruçaram sobre o tema
foi José Ricardo Pires de Almeida que, em 1906, lança o livro Homossexualismo (a liberti-
nagem no Rio de Janeiro). Uma das suas principais teorias em relação ao tema é a de que
os homossexuais, assim como as mulheres, não sabem assobiar pelo incômodo produzido
pelo ânus. A literatura e a educação modernas, segundo Pires de Almeida, eram responsá-
veis pelo “homossexualismo” feminino, pois “retirou a mulher da penumbra silenciosa do
lar para as agitações tumultuosas do mundo, abrindo-lhe horizontes desconhecidos, inici-
ando-as no segredo do vício, despertando-lhes curiosidades indiscretas” (Pires de Almeida
apud Trevisan, 2000:180).
Os tratamentos na época eram geralmente pensados em termos de incentivo ao
padrão “normal” e de desprestígio do que era “anormal”. Pires de Almeida defendia como
formas de tratamento a tentativa de convencimento através de sugestão sobre a beleza das
formas femininas. O “doente” era obrigado a ler romances em que a beleza feminina des-
pertasse paixões ou, ainda, a dormir com mulheres nuas ou vestidas de homem. O médico
ainda recomendava de 30 a 100 sessões de hipnose para “incutir ao doente a repulsão, o
nojo, o horror pela sua anormalidade” (Pires de Almeida apud Trevisan, 2000:181). Às
mulheres poderia se ameaçar com o desprezo se não aceitassem docemente os conselhos.
O médico também acreditava que a “pederastia” poderia ser combatida com o aumento de
prostitutas no Rio de Janeiro. Ele inclusive argumentava que o número de pederastas na
então capital havia diminuído da primeira para a segunda metade do século XIX, uma vez
que em 1846 a cidade foi invadida por prostitutas européias, convidadas a imigrar e ali se
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estabelecerem pelas autoridades locais apoiadas pelo Consulado de Portugal. Nos colé-
gios, torna-se preocupante a convivência entre crianças do mesmo sexo e um controle
maior da sexualidade infantil torna-se necessário.
Num país positivista em que a ciência é vista como mola propulsora do progresso e
mantenedora da ordem social, foram os meios científicos que serviram de base para as in-
tervenções do Estado:
Assim, essa filosofia, que serviu ainda de estrutura ideológica para a maioria dos profis-
sionais nas décadas de 1920 e 1930, legitimava o papel de médicos, juristas e criminolo-
gistas em sua tentativa de descobrir e estudar as doenças, bem como em propor suas cu-
ras, de modo a promover uma nação saudável e vigorosa. A tradição positivista serviu
também como referência para os debates sobre raça, eugenia, papéis de gênero, o lugar
da mulher na sociedade brasileira e as causas da degeneração homossexual (Green,
2000:192-3).
Um país cheio de convulsões sociais, como a greve geral de 1917 que parou 40 mil
trabalhadores em São Paulo, precisava, na análise de alguns, de um Estado que promovesse
uma nação melhor e mais controlada. Projetos de eugenia foram a marca do período, pro-
movendo um branqueamento da população através do incentivo à imigração européia (i-
dem, 193). Tanto os eugenistas quanto os que estudavam a homossexualidade defendiam a
perspectiva de que médicos e juristas, ao lado do Estado, “deveriam desenvolver um papel
mais incisivo ao lidar com os problemas sociais”:
Até onde muitos dos doutores e advogados de classe média e alta podiam conceber, co-
munistas, fascistas, criminosos, negros degenerados, imigrantes e homossexuais deveri-
am ser contidos, controlados e, no caso destes últimos, se possível, curados. Os anos 30,
assim, transformaram-se num campo de testes sobre o qual o melhor meio de purificar a
nação brasileira e curar seus distúrbios sociais (Green, 2000:193).
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Até então, a própria biomedicina parece ainda ancorada em preceitos morais que
lhe impediam o sucesso. Os tratamentos fracassam e a justificativa mais plausível, a priori,
é que com vício antigo é impossível lidar. Para estes médicos, a explicação para tamanha
dificuldade encontraria uma solução na descoberta dos hormônios, por cientistas euro-
peus do início do século XX. A idéia de que substâncias presentes no organismo dão for-
ma e função aos corpos parece representar um passo adiante no cientificismo controlador
da sexualidade. Aliás a causa endocrinológica é a primeira palpável que se atribui à homos-
sexualidade. Para os médicos, tudo era glandular/hormonal e podia se explicar a partir dos
hormônios a sensibilidade artística de Michelangelo ou a literatura de João do Rio – apre-
sentados por esses médicos como “homossexuais clássicos”. Os grandes artistas são apre-
sentados como possuidores de problemas hormonais.
No Brasil, essa idéia foi defendida pelo médico Leonídio Ribeiro, autor de textos
como Homossexualismo e Endocrinologia (1937), Etiologia e Tratamento da Homossexua-
lidade (1938), ambos publicados nos Arquivos de Medicina Legal e Identificação. Uma das
teses de Ribeiro é que se tratava de um problema hormonal que, sendo também um pro-
blema social, deveria ser resolvido pela medicina (Trevisan, 2000:187). O tratamento
hormonal chegou a ser praticado, com a aplicação de hormônios extraídos de órgãos de
animais. Mas, para garantir, durante o tratamento, o paciente era obrigado a evitar ambien-
tes e atividades que envolvessem as artes e o contato com artistas. O mais interessante é
que tais explicações trazidas pela biomedicina e seus propósitos, colocando a causa nos
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hormônios ou em outros agentes – invisíveis a olho nu – vão mais tarde ser adotadas tam-
bém por esses homens e mulheres, no sentido de justificarem suas próprias condutas.
Com o desenvolvimento da questão da identificação criminal no Brasil, nas primei-
ras décadas do século XX, médicos legistas liderados por Leonídio Ribeiro adotam as teses
do criminologista italiano Cesare Lombroso e chegam a fazer treinamento no Instituto de
Polícia do Terceiro Reich, em Berlim.
Assim como os criminosos, os loucos e as prostitutas, também os homossexuais passa-
ram a ser meticulosamente estudados, visando a determinar seus caracteres biotipológi-
cos; para tanto, utilizavam-se fotografia íntimas, tiradas quando pederastas eram encar-
cerados. Em 1935, por exemplo, uma equipe do Laboratório de Antropologia do Insti-
tuto de Identificação do Rio de Janeiro, dirigida por Leonídio Ribeiro, estudou a consti-
tuição morfológica de 184 homossexuais – detidos pela polícia em casas de prostituição
fluminenses, algumas exclusivamente masculinas e fotografados pela equipe de pesqui-
sadores. Por seus trabalhos no campo da assim chamada “antropologia criminal”, Leoní-
dio Ribeiro foi contemplado com o prêmio Lombroso, na Itália, chegando a publicar os
resultados dessas experiências com homossexuais nas páginas de uma revista italiana es-
pecializada que os discípulos de Lombroso dirigiam (Trevisan, 2000:182).
No final dos anos 30, Leonídio Ribeiro era o maior entusiasta do dia em que se
descobriria a origem do problema glandular para agir sobre ele. Recentemente, havia sido
descoberta a insulina que já se utilizava em larga escala para o tratamento de diabéticos.
Mesmo com o isolamento da testosterona, anos depois, não se chegou à mesma situação.
Ironicamente, essas descobertas hormonais passaram a ser utilizados na contemporanei-
dade principalmente por homens, quer seja no sentido de exacerbar uma masculinidade (as
“barbies” ou homens que reforçam seus músculos muitas vezes com hormônios masculi-
nos) ou na construção de uma suposta feminilidade (travestis que se utilizam de hormô-
nios femininos), intensificando identidades que os endocrinologistas e higienistas do pas-
sados queriam solapar.
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Nos anos 30, toma corpo a preocupação do Estado com um controle mais efetivo
do “corpo social”: trabalhadores, agitadores e outros delinqüentes contavam agora com
teorias, como as de Lombroso, capazes de explicar o comportamento desviante. Os exem-
plos a seguir são pretextos para pensarmos nessas relações da biomedicina com seu con-
texto cultural, o que coloca em crise suas pretensões de neutralidade científica. Para co-
meçar, esses médicos foram os grandes incentivadores para que o Código Penal, vigente
desde 1940 – porém, discutido nos anos 20 e 30 –, tivesse um capítulo específico para o
homossexualismo, o que acabou não acontecendo5. Quando falhassem os meios científi-
cos, dever-se-ia apelar para os meios policiais de repressão e confinamento. Green faz um
levantamento de textos publicados entre os últimos anos da década de 1920 até o final dos
anos 30 por juristas e médicos que defenderam diferentes teses sobre a homossexualidade
e uma gama variada de curas possíveis. Eram professores universitários com trânsito na
biomedicina e no direito.
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Explico mais adiante.
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A base científica dos pesquisadores brasileiros eram os estudos europeus sobre se-
xualidade, influentes desde o final do século XIX até os anos 40 do século XX, sendo as-
sim uma forma de fugir da religiosidade e de criar um novo poder cultural. As teorias de
Lombroso têm grande influência no Brasil, com a idéia do “delinqüente nato” com um
sistema nervoso fragilizado que lhe deixava propenso ao desvio social. A partir de aspectos
físicos, seria possível averiguar a degeneração criminosa (idem, 199).
Mesmo tendo como base a endocrinologia com a primeira causa biológica atribuída
à homossexualidade, defendendo uma disfunção hormonal que juntaria aspectos masculi-
nos e femininos no mesmo indivíduo, estes cientistas se valiam de conceitos de sistemas
de sexo e gênero vigentes nas classes populares brasileiras. Significa dizer que para esses
médicos-juristas, homossexual não era qualquer homem que fizesse sexo com homens,
pois havia uma preocupação especial era em relação aos “pederastas passivos” (Green,
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Leonídio Ribeiro também inclui, em suas análise dos homossexuais presos no Rio,
um estudo dos pêlos pubianos, conectando homossexualidade com desequilíbrios endó-
crinos (idem, 204). Marañón já tinha encontrado pêlos “femininos” em 75% dos “homos-
sexuais” que estudara, mas Ribeiro só conseguiu chegar ao número de 18,5%. Pêlos femi-
ninos, na concepção desta biomedicina, seriam triangulares, o que poderia ser conseguido
através da depilação, um hábito já comum entre esses homens nos anos 30. Porém, o
mesmo estudo de Ribeiro não explicava como 90,7% dos pesquisados apresentavam sinais
de calvície, considerada um sinal de virilidade, ou que 34% dos homens avaliados não a-
presentassem nenhum indício de uma sexualidade invertida, apesar de “pederastas” con-
fessos.
E mesmo que tais características não apresentassem uma distribuição regular entre
o grupo estudado, Leonídio Ribeiro não se furtava em ilustrar a pesquisa com imagens de
“homossexuais típicos”, ainda que representassem uma pequena parcela dos examinados.
Não obstante ser aceitável, até certo ponto, uma parte dos argumentos apresentados pe-
la psicanálise, ganha terreno, cada vez mais, a teoria que afirma existir, na maioria dos
casos de inversão sexual, uma causa ou predisposição orgânica, para esses fenômenos
que seriam provocados, favorecidos ou agravados, pela influência do ambiente (Ribeiro
apud Green, 2000:206-7).
A medicina havia libertado os loucos das prisões. Uma vez ainda, seria ela que salvaria
da humilhação esses pobres indivíduos, muitos deles vítimas de suas taras e anomalias,
pelas quais não podiam ser responsáveis (Ribeiro6 apud Green, 2000: 214-5).
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O estudo a que se refere Green é Homossexualismo e Endocrinologia, publicado nos Arquivos de Medicina
Legal e Identificação, no Rio de Janeiro, em 1937.
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Nos anos 40, o Sanatório Pinel, referência para os invertidos sexuais começam a u-
tilizar procedimentos que iam deixando pra trás transplantes de genitais e hormônios a-
nimais. Era agora a vez das terapias de choque. A insulinoterapia e a convulsoterapia con-
sistiam na administração de medicamentos intravenosos. Na primeira, a insulina ocasiona-
va ao paciente um choque que lhe fazia entrar em coma. Na segunda, o medicamento car-
diozol provocava convulsões epilépticas. O eletrochoque passou a ser utilizado alguns
anos depois. Era indicado a esquizofrênicos mas se aplicava também aos homossexuais
“diagnosticados”. Terapias que, provavelmente, antes de serem cura, eram uma punição
(idem, 229-233).
É importante entender a lógica das idéias vigentes numa determinada época, pois
são elas que permitem que se estruturem discursos, instrumentos de controle, campos de
saber especializado e processos de subjetivação. Nesse sentido, mesmo sabendo que nem a
medicina nem a psicologia atingiram na contemporaneidade explicações uniformes e con-
sensuais sobre sexualidade, nem em termos de características físicas ou psicológicas (Ma-
cRae, 1990:48), como todos estes discursos atingem a constituição dos sujeitos?
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É importante frisar que, apesar das práticas sexuais serem atemporais, elas ganham diferentes significados
no tempo e no espaço (MacRae, 1990:48). Na cultura ocidental é apenas no século XVIII que vai surgir a
constituição de personagens sexuais como o homossexual, com características singulares, a idéia de uma
tendência individual. Nesta época, há a implantação daquilo que Foucault vai chamar de “dispositivo da
sexualidade”. Até ali, por exemplo, considerava-se a sodomia (sexo anal) como um “pecado nefando” ao
qual qualquer pessoa estaria suscetível. Ou seja, a prática sexual como exterior ao sujeito.
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de despropósitos sexuais, um rol de perversões que poderiam estar ocultas em cada sujei-
to, tornando necessário que ele afirme-se como forma de justamente de excluir-se de prá-
ticas “malditas”. O sexo é reduzido e classificado nessa atividade discursiva que, muitas
vezes pretendeu mascarar o sexo considerado sadio, na proliferação discursiva das perver-
sões, das aberrações, das extravagâncias. Sob a forma de normas médicas, as classificações
morais tornam-se científicas.
A pretexto de dizer a verdade, em todo lado provocava medo; atribuía às menores osci-
lações da sexualidade uma dinastia imaginária de males fadados a repercutirem sobre as
gerações; afirmou perigosos à sociedade inteira os hábitos furtivos dos tímidos e as pe-
quenas e mais solitárias manias; no final dos prazeres insólitos, colocou nada menos do
que a morte: a dos indivíduos, a das gerações, a da espécie (Foucault, 1988:54).
Mas, além desses dúbios prazeres, reivindicava outros poderes, arvorava-se em instância
soberana dos imperativos da higiene, somando os velhos medos do mal venéreo aos no-
vos temas da assepsia, os grandes mitos evolucionistas às modernas instituições de saúde
pública, pretendia assegurar o vigor físico e a pureza moral do corpo social, prometia e-
liminar os portadores de taras, os degenerados e as populações abastardadas. Em nome
de uma urgência biológica e histórica, justificava os racismos oficiais, então iminentes. E
os fundamentava como “verdade” (Foucault, 1988:54).
Se a ciência biológica estava atrás de alguma verdade sobre o sexo, a medicina sexu-
al tratou de impedir um discurso racional sobre ele, o impedimento da verdade. Para a bio-
logia, baseada na idéia de uma natureza que parecia se bastar, cabia buscar pensar esse sexo
dentro da racionalidade da reprodução, da união de células, os hormônios que constituíam
um corpo masculino e outro feminino, num desejo que não se direcionaria a uma região
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que não fosse a perpetuação da espécie. Já a medicina da reprodução calava-se sobre tais
áreas, mas era como se delas partisse para buscar tudo o que elas excluem, catalogando e
classificando, domesticando assim o perverso num discurso científico apropriado. “Uma
diria respeito a essa imensa vontade de saber que sustentou a instituição do discurso cien-
tífico no Ocidente, ao passo que a outra corresponderia a uma vontade obstinada de não
saber” (Foucault, 1988:55).
Nos rituais modernos que envolvem algum tipo de confissão – o consultório médi-
co, o confessionário religioso, ou mesmo as formas de auto-consciência que são de certa
forma uma maneira de confessar-se a si mesmo – o sexo é o que mais se confessa. O sexo
para Foucault não é o que é escondido – o que uma concepção não foucaultiana de poder
poderia supor –, mas o que é confessado de modo muito particular. “Para nós, é na confis-
são que se ligam a verdade e o sexo, pela expressão obrigatória e exaustiva de um segredo
individual” (Foucault, 1988:61). A verdade funciona como um suporte para o sexo, pois
ele está submetido a um regime de confissão. Enquanto outras sociedades atingem ou a-
tingiram tal verdade a partir de uma arte erótica, no Ocidente a verdade do sexo é resulta-
do de uma confissão. “Pertencemos [...] a uma sociedade que articulou o difícil saber do
sexo, não na transmissão do segredo, mas em torno da lenta ascensão da confidência”
(Foucault, 1988:62).
1. A “fazer falar” típico da confissão torna-se a matéria prima do trabalho médico, a con-
fissão transforma-se no exame. A narrativa de vida pode apresentar sinais e sintomas.
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2. O sexo é colocado no cerne de uma causalidade geral. O sexo será responsabilizado por
toda uma série de doenças e comportamentos, centro de perigos ilimitados.
deve ser confessado ao médico, capaz de interpretar em nossa fala quem somos, através de
sintomas presentes numa história de vida. Mas isso também porque a biologia, ao invadir
os corpos e mostrar o que o olho nu não percebe, parece trazer à tona uma certa essência
dos indivíduos. Essa forma de ciência e de controle também sugere, em suas entrelinhas,
que confessar-se é uma forma de não ser apenas discurso do outro. Para Foucault, a sexua-
lidade é uma prática discursiva que não se confunde com a representação ideológica do
sexo, mas tem como característica básica a produção de uma verdade do sexo (Foucault,
1988:67).
naturalizado que permite afastar a idéia de culpa e da de própria doença. Ou seja, o que
antes era uma tentativa domesticadora, torna-se uma forma de libertação.
Hoje, não são mais os hormônios o centro da questão, mas os genes que causariam
a homossexualidade. Dizer que algo é genético, nesse sentido, não significaria dizer que se
trata de uma doença. O problema é que tudo que cerca tal indagação leva a tal conclusão.
Essa pergunta tem sido feita e respondida em termos científicos, partindo-se da naturali-
dade de certas características do comportamento humano, prescritas e não apenas descri-
tas como prolongamento de algo que é anterior à cultura, contido em nossa animalidade,
tanto para defender um comportamento homossexual quanto para atacá-lo. As premissas
das ciências biológicas nunca são questionadas nestes discursos, uma vez que elas repre-
sentariam e apenas descreveriam uma natureza independente de qualquer simbolização
humana.
Bibliografia
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