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AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W.

WINNICOTT 43

AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE


DE D. W. WINNICOTT*

THERAPEUTIC CONSULTATIONS AND


WINNICOTT’S PSYCHOANALYSIS

Gabriel Zaia LESCOVAR**

RESUMO

O presente artigo aborda alguns eixos fundamentais da prática de consultas


terapêuticas, tais como: a posição metodológica de investigação clínica de
Winnicott (envolvendo a construção do conhecimento psicanalítico), o valor
intrínseco da experiência na prática clínica, do manejo temporal e do contexto
(meio ambiente) favorecedor de experiências constitutivas ao si-mesmo
(self) do paciente. Tais aspectos servirão como contextualizadores dessa
revolucionária modalidade de trabalho psicológico no interior da clínica
winnicottiana, por sua vez, fundamentada segundo o paradigma em
psicanálise, guiado pela relação mãe-bebê e pela busca de atualização e
constituição do si-mesmo.
Palavras-chave: consultas terapêuticas, psicanálise, Winnicott,
amadurecimento.

ABSTRACT

The aim of this paper is to present some of the core elements involved in
therapeutic consultations, such as the Winnicott’s clinical research
methodology perspective (involving the construction of psychoanalytical
knowledge), the intrinsic value of experience in clinical practice, and of
temporal management and facilitating environment in the constitutive
experience of the patient’s inner self. Such aspects will provide the context for

(*)
Este artigo foi baseado em dissertação de mestrado, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da
Pontifícia Universidade de São Paulo no ano de 2001, sob orientação do Prof. Dr. Zeljko Loparic. Essa mesma dissertação
também deve seu favorecimento à CAPES. Para maiores desenvolvimentos e esclarecimentos/ilustrações clínicas: Lescovar,
Gabriel Z. (2001) Um estudo sobre as consultas terapêuticas de D. W. Winnicott. Dissertação de mestrado,
PUC-SP.
(**)
Psicólogo, Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP, Doutorando pelo IPUSP/SP e Bolsista FAPESP. Endereço
para Correspondência: R. Ministro Gastão Mesquita, 769 Aptº 24 – Perdizes – São Paulo/SP – CEP 05012-010. E-mail:
gabriellescovar@uol.com.br.

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a revolutionary way of performing psychological activities within a winnicottian


clinic which is grounded on psychoanalytical paradigm; which is, in its turn,
based on the mother-baby relationship, and on a search for improvement
and self-constitution.
Key-words: therapeutic consultation, psychoanalysis, Winnicott, maturational
processes.

1. AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A ambientais na saúde psíquica dos indivíduos e


TEORIA DO AMADURECIMENTO HUMANO também sobre o reconhecimento da obrigato-
riedade da inclusão da avaliação ambiental para
Donald W. Winnicott (1896-1971), realização de um diagnóstico completo em saúde
renomado psicanalista inglês, responsável pela mental. Finalmente, conforme descrito em seu
apresentação de aspectos “tão evidentes, mas artigo de 1954, Winnicott entrou em contato com
tão raramente abordados” (Khan, 1978) da pacientes esquizóides e esquizofrênicos em
natureza humana no universo psicanalítico, foi, estado de regressão à dependência (Winnicott,
antes de tudo, um homem atento à especificidade 1954), quando pôde lançar luz sobre os fatores
de sua prática. Como um “psicanalista agarrado iniciais da constituição psíquica, inacessíveis
à pediatria”, Winnicott constatou a importância pela observação direta das interações entre pais
das primeiras sessões em psicanálise e psiquiatria e bebês.
infantil. Pressionado pelo grande número de
Referências à prática de consultas tera-
crianças que buscavam seu auxílio, gradualmente
pêuticas surgem ao longo de toda a sua obra,
configurou o que posteriormente denominou
mesmo quando não explicitadas nos objetivos ou
consultas terapêuticas.
títulos de seus artigos. A freqüência de menções
Como herdeiro do método psicanalítico às consultas terapêuticas sinaliza a mútua
freudiano de investigação científica do psiquismo influência entre esta prática e a conceituação da
humano, suas constantes reformulações teórico- clínica psicanalítica winnicottiana.
técnicas só podem ser devidamente compreen-
No prefácio de Consultas terapêuticas em
didas à luz de sua prática clínica, que lhe impunha
psiquiatria infantil (Winnicott, 1971b), Winnicott
novos desafios à psicanálise como, por exemplo,
localizou explicitamente o início de suas atividades
o trabalho de consultas terapêuticas.
em consultas terapêuticas nos anos vinte:
No exercício da pediatria, deparou com um
Minha concepção do lugar especial da
grande número de casos de crianças que
consulta terapêutica e da exploração da
adoeciam precoce e psicossomaticamente,
primeira entrevista (ou primeira entrevista
apesar de diagnosticadas pelos médicos pediatras
reduplicada) surgiu gradualmente no
como fisicamente saudáveis (Winnicott, 1958a). decorrer do tempo em minhas experiências
Tal constatação obrigou Winnicott a considerar a clínica e privada. Há contudo um ponto que
dependência do bebê dos cuidados circunstantes se pode dizer teve significação especial.
ambientais como necessariamente constituintes Em meados dos anos vinte, quando ainda
de seu psiquismo. Na evacuação durante a era pediatra praticante vendo muitos
Segunda Guerra Mundial, como consultor pacientes no hospital-escola e dando
psiquiátrico de crianças encaminhadas a oportunidade a quantas crianças fosse
albergues, pôde verificar os efeitos nocivos da possível se comunicarem comigo,
privação ambiental que resultavam em tendências desenharem figuras e me contarem sonhos,
anti-sociais e comportamentos delinqüenciais fiquei surpreso com a freqüência com que
juvenis. Este novo fato veio corroborar suas as crianças sonhavam comigo na noite
hipóteses anteriores sobre a influência dos fatores anterior à consulta. Esse sonho com o

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médico que elas iriam ver obviamente refletia (variando aproximadamente de uma a três
o preparo mental imaginativo delas mesmas sessões) torna-se possível graças ao elemento
em relação a médicos, dentistas e outras norteador do trabalho terapêutico, segundo a
pessoas que se supõe sejam auxiliadoras. clínica winnicottiana, respaldado nas
Também refletiam, em graus variados, a necessidades do si-mesmo (self) e de suas
atitude dos pais e a preparação para a efetivações, que exigem um outro ser humano
visita. Contudo, lá estava eu quando, para para cumprir-se.
minha surpresa, descobri ajustando-me a Como o ser humano se encontra em
uma noção preconcebida. (Winnicott, processo de contínuo amadurecimento – desde
1971b, p. 12) o nascimento até a morte –, as consultas surgem
Em linhas gerais, as consultas terapêuticas como uma possibilidade de intercomunicação e
representam uma possibilidade nova e breve de ajuda nas mais diferentes etapas da vida.
coligir a história de um caso clínico por meio de No entanto, apesar de as consultas tera-
contato com o paciente, ou seja, obter e conduzir pêuticas serem consideradas uma nova
os elementos vitais que possam ajudá-lo na modalidade de prática psicológica, não podem
elaboração de um sofrimento ou dificuldade. ser definidas a partir de procedimentos técnicos
Buscando esclarecer o trabalho de consultas estanques. A comunicação significativa, isto é, o
terapêuticas, Winnicott descreve: ponto-ápice dessa modalidade de intervenção e
Os princípios aqui enumerados são os avaliação psicológicas, gradualmente se configura
mesmos que caracterizam um tratamento ao longo do próprio processo de comunicação e
psicanalítico. A diferença entre a psicanálise contato entre analista e paciente. Para surpresa
e a psiquiatria infantil [o autor está se de ambos, em um dado momento, a comunicação
referindo às consultas terapêuticas] é significativa apresenta-se muito claramente, por
principalmente que, na primeira, tenta-se meio da fala, das brincadeiras ou de desenhos
ter a oportunidade de fazer tanto quanto comuns aos participantes. A dupla analítica
possível [...], enquanto que na última surpreende-se com a emergência de aspectos
pergunto-me: qual é o mínimo que se precisa essenciais da biografia do paciente, relacionados
fazer? O que se perde fazendo-se tão pouco à problemática que o paciente buscava tratar – e
quanto possível é balanceado por um lucro que sequer tinha consciência dessa abrangência
imenso, uma vez que na psiquiatria infantil que o motivava a buscar auxílio. Diante desse
tem-se acesso a um vasto número de fato comunicacional, o psicoterapeuta conclui
casos [...] para os quais a psicanálise não um psicodiagnóstico compreensivo psicanalítico.
constitui uma proposta prática. (Winnicott,
Em virtude desse caráter surpreendente e
1965a, p. 261)
flexível das consultas, estas não podem ser
As consultas terapêuticas, ou a exploração definidas por meio de técnicas rígidas, conforme
integral das primeiras entrevistas psicológicas, já destacado, ou mesmo estabelecidas ante-
representam uma nova possibilidade de avaliação, riormente ao contato analítico. Assim sendo,
intervenção e ajuda psicológica, em que o encontro
cada encontro analítico adquire uma configuração
analítico se respalda basicamente numa
própria, resultado da conjunção das interações e
comunicação significativa entre os membros do
características tanto do analista quanto de seus
encontro. Tal possibilidade surge exatamente
pacientes.
pelo caráter peculiar que marca o momento de
pedido de ajuda do paciente, que espera encontrar, Ainda no prefácio de Consultas terapêuticas
na comunicação com o psicoterapeuta, o objeto (Winnicott, 1971b), Winnicott salientou insis-
necessitado para a superação de sua dificuldade tentemente a flexibilidade das conduções clínicas
e, conseqüentemente, a retomada de seu das consultas a rigores técnicos, obrigando a
processo de amadurecimento. A brevidade uma reflexão crítica e paralela acerca de sua

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teoria do amadurecimento humano para passa a construir gradualmente a realidade


efetivamente compreendê-la. Para Winnicott, a compartilhada. Tais relacionamentos objetais
aplicação cega de uma técnica (e iniciais são, quando favorecedores do desenvol-
conseqüentemente, enquadre) é inútil para o vimento do bebê, necessariamente subjetivos.
paciente, porque inadequada às suas Para condução de um bom trabalho terapêutico,
necessidades, estabelecidas a priori e sem essa mesma qualidade subjetiva inicial deverá
qualquer contato com o mesmo e sua realidade. estar presente na transferência das relações
Os princípios norteadores da escuta, prática e terapêuticas de cuidado.
flexibilidade clínica que regem a condução de (...) o bebê tem a capacidade, quando a
consultas terapêuticas (Winnicott, 1971b) advêm função de ego auxiliar da mãe está em
da teoria do amadurecimento pessoal, respaldada operação, de se relacionar com objetos
essencialmente na comunicação humana e nos subjetivos. Neste aspecto o bebê pode
vários sentidos de realidades que constituem a chegar de vez em quando ao princípio de
existência. Por sua vez, tal teoria psicanalítica realidade, mas nunca em toda a parte de
somente pôde ser gradualmente construída a uma vez só – o bebê mantém áreas de
partir da própria prática clínica de Winnicott. Esta objetos subjetivos juntamente com outras
configura uma das características hermenêuticas em que há algum relacionamento com
ou, como outros comentadores da obra objetos percebidos objetivamente, ou,
winnicottiana denominam, “paradoxais”, que objetos ‘não-eu’. (Winnicott, 1962b, p. 56)
definem a obra desse pediatra psicanalista.
Segundo Winnicott, as experiências de
Ao circunscrever essa modalidade de vida de uma criança tornam-se pessoais somente
trabalho, Winnicott afirma: enquanto obrigatoriamente submetidas à sua
A única companhia que tenho ao explorar o criatividade originária, ou seja, justamente ali,
território desconhecido de um novo caso é onde a mãe se coloca a serviço do objeto subjetivo
a teoria que levo comigo e que se tem necessitado. O mesmo torna-se válido para as
tornado parte de mim e em relação à qual relações e conduções transferenciais.
sequer tenho que pensar de maneira O início das relações objetais é complexo.
deliberada. Essa é a teoria do desenvolvi- Não pode ocorrer se o meio não propiciar a
mento emocional do indivíduo, que inclui, apresentação de um objeto, feito de um
para mim, a história total do relacionamen- modo que seja o bebê quem crie o objeto.
to individual da criança até seu meio O padrão é o seguinte: o bebê desenvolve
ambiente específico. (Winnicott, 1971b, a expectativa vaga que se origina em uma
p. 06, grifos meus) necessidade não-formulada. A mãe, em se
Dito de outra forma, a fundamentação das adaptando, apresenta um objeto ou um
consultas terapêuticas encontra-se no próprio manejo corporal que satisfaz as necessi-
movimento de busca de auxílio da criança e na dades do bebê, de modo que o bebê começa
constatação de que, durante as primeiras entre- a se sentir confiante em ser capaz de criar
vistas, o paciente se encontrava particularmente objetos e criar o mundo real. A mãe
ávido para informar o terapeuta sobre sua proporciona ao bebê um breve período em
dificuldade. Em termos teóricos, Winnicott que a onipotência é um fato da experiência.
fundamentou este trabalho segundo sua releitura Deve-se ressaltar que, ao me referir ao
dos processos transferenciais. início das relações objetais, não estou me
referindo às satisfações e frustrações do id.
Winnicott realizou uma releitura da
(Winnicott, 1962b, p. 60)
transferência a partir do estudo da primeira
infância. De acordo com sua teoria do Em Consultas terapêuticas em psiquiatria
amadurecimento humano, somente por meio dos infantil (Winnicott, 1971b), Winnicott fundamenta
processos de apercepção e ilusão é que o bebê a prática de consultas na relação subjetiva de

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objeto da criança, relação esta capaz de favorecer devendo-se sentir inclinado a explorar o
a emergência do brincar mútuo e da comunicação que pode ser feito mediante ‘tratamento
significativa. cuidado’ ou ainda instituir uma terapia que
Uma primeira implicação dessa concepção possa dar à criança a oportunidade para um
é a necessidade de o analista reconhecer ao relacionamento pessoal do tipo geralmente
longo do(s) encontro(s) qual é a problemática que conhecido como transferência. (Winnicott,
o paciente anseia tratar, isto é, a partir de que 1971b, p. 05)
necessidade a criança o coloca em lugar de Para ele, o caráter primordial desses
objeto subjetivo? Qual a necessidade mais encontros é a adaptação ativa do analista às
premente que o paciente anseia por comunicar? necessidades e expectativas do paciente,
Dessa forma, Winnicott restringe o uso das segundo a sua compreensão do que se passava
consultas terapêuticas não por intermédio de com o paciente (por meio da teoria do amadureci-
quadros psicopatológicos, mas em relação a mento pessoal) e, conseqüentemente, se
dois fatores intimamente imbricados: a necessária, a comunicação verbal desse entendi-
capacidade/incapacidade da criança em ter mento no momento adequado. Os objetivos
esperança em um encontro humano que venha últimos são favorecer (por meio da experiência de
em seu auxílio, e também em relação ao ambiente surpreender-se) ao paciente uma integração de
imediato da criança que poderá ou não fazer bom seus aspectos dissociados e/ou não vividos e a
uso do progresso alcançado por ela por meio da realização concomitante de seu diagnóstico (e
integração favorecida pela consulta. Haverá conseqüente compreensão do melhor procedi-
provisão ambiental familiar (e/ou escolar e/ou da mento a ser adotado).
comunidade) capaz de ir ao encontro das No entanto, é preciso destacar que existem
necessidades e comunicações da criança pré-requisitos para o trabalho do psicoterapeuta,
(Winnicott, 1965c) após o desbloqueio em seu para que a comunicação significativa ocorra na(s)
desenvolvimento decorrente das consultas? consulta(s). Todo o trabalho anterior do psicotera-
Há uma categoria de casos em que essa peuta é favorecer o processo de ilusão por meio
espécie de entrevista psicoterapêutica deve de sua postura de confiabilidade e previsibilidade
ser evitada. Não diria que com uma criança profissional/pessoal e ambiental. (cf. Dias, 1999)
muito doente não é possível se fazer um À medida que o paciente começa a sentir
trabalho eficaz. Mas diria que, se a criança que alguma compreensão do seu sofrimento
sai da consulta terapêutica e retorna para poderá ser atingida, as consultas terapêuticas
uma situação familiar ou social anormal, passam a constituir uma espécie de jogo e
então não há provisão ambiental alguma da interação em que os participantes estabelecem
espécie necessária e que eu julgaria um diálogo por meio de um brincar mútuo.
admissível. Confio em um ‘ambiente Conforme destacado anteriormente, isso se deve
expectável médio’ para encontrar e utilizar ao fato de o terapeuta colocar-se à disposição do
as mudanças que ocorrem no menino ou na paciente (em estado de devoção e concentração),
menina durante a entrevista, mudanças ciente da oportunidade particular das primeiras
que indicam uma anulação da dificuldade entrevistas em psicanálise; por outro lado, o
no processo de desenvolvimento. paciente (em busca de auxílio) é movido pela
De fato, a principal dificuldade na avaliação própria expectativa (relação objetal inicialmente
dos casos para essa espécie de trabalho é subjetiva), pela aliança terapêutica e tendência à
a de avaliar o meio ambiente imediato da integração.
criança. Onde há um poderoso e contínuo Conforme exposto, durante a realização de
fator externo adverso ou ausência de consulta(s) terapêutica(s), qualquer condução
consistente cuidado pessoal, é preciso clínica poderá ser utilizada, dependendo do
evitar essa espécie de procedimento, caminho possível e escolhido pelo paciente em

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questão (e sua necessidade). Poder-se-ão usar freqüentemente compreendido psicanalitica-


desenhos, jogos, brinquedos, diálogos... ou os mente.
jogos de rabisco que Winnicott criou. Ele utilizava Desejo afastar a atenção da seqüência:
esse jogo porque gostava, porque facilitava a psicanálise, psicoterapia, material da
tomada de notas sobre os acontecimentos das brincadeira, brincar, e propor tudo isso
consultas (que eram registrados pelos desenhos novamente, ao inverso. Em outros termos,
produzidos), e não como uma técnica necessária é a brincadeira que é universal e que é
para a realização de consultas. própria à saúde: o brincar facilita o cresci-
O jogo de rabisco é apenas uma maneira de mento e, portanto, a saúde; o brincar conduz
entrar em contato com o paciente pelo uso de aos relacionamentos grupais; o brincar pode
lápis e papel. Caracteriza-se pela flexibilidade ser uma forma de comunicação na
(diferentemente dos jogos de regras, em que psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi
está em questão ganhar ou perder) e consiste no desenvolvida como forma altamente
seguinte: o analista faz um rabisco a esmo, que especializada do brincar, a serviço da
pode ser transformado pelo paciente em um comunicação consigo mesmo e com os
desenho. Depois o paciente faz o seu rabisco e outros. (Winnicott, 1971a, p. 63)
o analista o transforma em um outro desenho, Para Winnicott, o jogo e o brincar sempre
construindo paulatinamente um caminho de foram os veículos úteis e necessários ao processo
comunicação... Durante o jogo, o analista deixa de comunicação entre paciente e analista, mesmo
o paciente escolher livremente se prefere desenhar antes de tomar contato com as contribuições de
sozinho, nomear os rabiscos, em vez de produzir M. Klein.
ativamente transformações gráficas, ou parar o
Quando repasso os artigos que assinalam
jogo e conversar...
o desenvolvimento de meu próprio
O jogo de rabisco não deve ser confundido pensamento e compreensão, verifico que
com as consultas terapêuticas em si mesmas, meu presente interesse pela brincadeira,
mas considerado elemento facilitador dessas no relacionamento de confiança que pode
consultas. desenvolver-se entre o bebê e a mãe,
Para Winnicott, o modelo de condução do sempre constituiu característica de minha
trabalho analítico repousa sobre sua concepção técnica de consulta, tal como [...] meu
de mãe suficientemente boa. Nesse sentido, o primeiro livro o demonstra (Winnicott, 1931).
trabalho psicológico realizado na perspectiva de Dez anos depois, deveria elaborá-lo em
Winnicott, incluindo as consultas terapêuticas, meu artigo The Observation of Infants in a
reserva ao analista um posicionamento seme- Set Situation (Winnicott, 1941). (Winnicott,
lhante ao da mãe em estado de devoção no 1971a, p. 72)
cuidado de seu bebê. Para Winnicott, o analista
só pode realizar um bom trabalho se puder
favorecer o estabelecimento de um espaço 2. AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E OS
potencial, decorrente da confiabilidade e MÉTODOS TERAPÊUTICOS
previsibilidade ambiental fornecida. Um analista PSICANALÍTICOS DE WINNICOTT
que consegue brincar pode identificar-se com
seu paciente e, ao mesmo tempo, preservar sua As consultas terapêuticas encontram-se
identidade pessoal, além de poder iluminar os sustentadas pela exploração do período de “lua-
acontecimentos por meio dos conhecimentos de-mel” que caracteriza tanto as consultas em si
segundo sua teoria do amadurecimento humano mesmas quanto o início do processo de análise,
(Winnicott, 1971b, p. 10). Originalmente, isto é, no caráter particular da transferência, em
Winnicott subverte a ordem e submete a psicote- que o psicoterapeuta é colocado no lugar de
rapia ao brincar e não o seu contrário, conforme objeto subjetivo por qualquer paciente: adulto,

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adolescente ou criança. Dessa forma, em termos Winnicott, ao incorporar o estudo da


clínicos, o analista não deve interpretar ou primeiríssima infância à constituição do ego e do
decodificar esse sentido de realidade subjetiva, si-mesmo na criança, ampliou consideravelmente
mas conduzi-la, facilitando a emergência do a compreensão dos manejos clínicos em
brincar, assim como os fenômenos transicionais psicanálise. Em consultas terapêuticas, o desen-
que emergem nas consultas, ou os objetos volvimento primitivo do bebê aponta para um tipo
transicionais que se apresentam. particular de comunicação transferencial, na qual
Em linhas gerais, Winnicott (1971b) o paciente (para alcançar a integração de aspectos
desenvolveu as consultas terapêuticas a partir da cindidos, não vividos e/ou dissociados do si-
otimização do maior instrumento do psicólogo: mesmo) precisa estabelecer uma comunicação
as entrevistas clínicas. Com uma nova maneira silenciosa e indiferenciada entre eu e não-eu
de conceber a natureza humana, Winnicott (mãe-ambiente), na qual o terapeuta passa a ser
descobriu no brincar os elementos constitutivos concebido como objeto subjetivo (mãe-objeto).
do ser humano, do espaço propício à ajuda Nas consultas terapêuticas, a qualidade da
psicológica e dos correspondentes fins tera- interação estabelecida (transferência e
pêuticos. Nas consultas terapêuticas, por contratransferência) está diretamente vinculada
intermédio da intimidade da interação, uma área ao clima de confiabilidade e previsibilidade que o
comum entre os participantes se constitui, terapeuta pode oferecer e que a criança
alicerçando comunicações entre os envolvidos a ansiosamente espera encontrar. Em consultas,
partir da mutualidade da experiência. Para analista e criança estabelecem uma identificação
compreensão da área comum de trabalho nas mútua, homóloga à relação mãe-bebê inicial dos
consultas – o brincar –, Winnicott empregou processos primitivos do desenvolvimento. Assim
seus conhecimentos sobre as comunicações como a mãe em estado de devoção, o analista
mãe-bebê: transita entre a realidade subjetiva e a realidade
Considerando-se o par bebê e seio da mãe compartilhada, isto é, entre uma identificação
(não estou afirmando que o seio seja maciça com o paciente e a preservação da
essencial como veículo de amor materno), lucidez quanto à sua obrigação de favorecer e
o bebê tem ímpetos instintivos e idéias colocar-se à disposição do amadurecimento da
predatórias. A mãe tem um seio e o poder criança, buscando reconhecer suas necessidades
de produzir leite, e a idéia de ser atacada e, conseqüentemente, adequar seus cuidados,
por um bebê faminto lhe é agradável. Esses via compreensão, à luz da teoria do amadure-
dois fenômenos não entram em relação um cimento humano.
com o outro até que a mãe e a criança vivam A partir da expectativa e da qualidade do
uma experiência juntos. [...] Vejo o processo encontro analítico por meio da comunicação
como se duas linhas viessem de direções subjetiva e silenciosa com o analista, o paciente
opostas, com a possibilidade de se poderá baixar as guardas defensivas (falso si-
aproximarem uma da outra. Se elas se mesmo patológico), aproveitando um estado de
sobrepõem, há um momento de ilusão, relaxamento e não integração, e estabelecer (em
uma experiência que o bebê pode tomar, ou seu próprio ritmo) comunicação a partir de seu si-
como alucinação sua, ou como algo que mesmo verdadeiro, no espaço potencial cons-
pertence à realidade externa. (Winnicott, truído entre analista e paciente. A espontaneidade
1941, p. 279) pessoal (gesto espontâneo)1 deverá surgir como

(1)
Note-se que, na clínica psicanalítica, segundo Winnicott, necessariamente há a inclusão e a participação corporal dos
membros dos encontros analíticos (mesmo que de forma simbólica, por meio das elaborações imaginativas do próprio
funcionamento corporal). Ao referir-se ao gesto espontâneo e ao valor clínico da experiência de mutualidade,
Winnicott inclui a sensorialidade nos acontecimentos clínicos (inclusive como veículo de trocas comunicacionais
transferenciais-contratransferenciais), tal como no jogo de rabiscos.

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expressão autêntica do paciente a partir da não palavras, da acontecência da natureza humana).


integração, e a consulta passará a ser guiada Uma vez que os processos integrativos necessa-
pela imprevisibilidade da comunicação e pela riamente envolvem algum grau de integração
necessidade pessoal da criança. psicossomática, o experienciar pode conduzir ao
Em consultas terapêuticas, o setting conhecer, diretamente vinculado à situação vivida
analítico necessariamente comporta os aspectos (e não dissociado, como patologicamente
relacionados à mãe-ambiente, em que o analista Winnicott concebeu por meio do splitting-off
oferece constância, previsibilidade e confiabi- intelect). O conhecer é favorecido pela interpre-
lidade tanto pelo ambiente físico quanto pela tação do analista, quando necessária. (Winnicott,
qualidade do cuidado pessoal (em que aceita 1962a; Khan, 1984, p. 248)
ajustar-se às expectativas da criança e, com É axiomático que, se um setting profissional
isso, estabelece comunicações por meio do correto é fornecido, o paciente, isto é, a criança
si-mesmo verdadeiro). (ou adulto) que se acha em sofrimento trará a
A razão pela qual o início de tudo isso é aflição para a entrevista sob uma forma ou outra.
insidioso é que o paciente só gradativamente A motivação é muito profundamente determinada.
começa a ter esperanças de que essas Talvez seja desconfiança o que se demonstra, ou
exigências sejam atendidas. [...] nunca se uma confiança grande demais, ou a confiança é
trata de dar satisfações à maneira ordinária logo estabelecida e as confidências cedo se
de sucumbir a uma sedução. Sempre que seguem. Seja o que for que aconteça [surpreen-
se proporcionam certas condições, pode- da], é o acontecer que é importante. (Winnicott,
se trabalhar, e, se não se as fornece, não 1965b, p. 246)
se pode, e poder-se-ia igualmente nem Na medida em que as consultas tera-
tentar. O paciente não está ali para trabalhar pêuticas buscam favorecer estados de regressão
conosco, exceto quando fornecemos as à dependência e, como isso, à emergência de
condições necessárias. (Winnicott, 1964, aspectos da história primitiva da criança (portanto,
p. 78) pré-verbais), o experienciar (fruto da integração
O resultado da confiabilidade, em termos alcançada na personalidade) torna-se a principal
de integração no tempo e no espaço (e, intervenção das consultas, estando a fala
conseqüentemente, da existência psicosso- secundariamente imbricada ou implicada como
mática), para o paciente, é a experiência de facilitadora do experienciar – procurando dissipar
continuidade de ser, advinda da adaptação viva resistências. A particularidade das consultas
às necessidades da criança daquilo que Winnicott terapêuticas reside fundamentalmente na
postulou como holding materno2. Sobre a elaboração do material não defendido do paciente,
confiabilidade, a transferência se desenvolve por próprio à natureza (e da transferência) das
meio de uma relação objetal inicialmente primeiras consultas em psicanálise.
subjetiva, a qual oferece as condições e Aquilo que eu estou chamando de entrevista
possibilidades para a aquisição de experiências psicoterapêutica faz o mais complexo uso possí-
pessoais (advindas da integração ou, em outras vel desse material relativamente não-‘defendido’.

(2)
Os estudos das relações mãe-bebê, em termos de manejo clínico e interação (comunicação) entre analista e paciente,
trouxeram para o primeiro plano a investigação da transferência e contratransferência para real compreensão da natureza
do processo analítico. De acordo com Winnicott, “Apesar de não podermos trabalhar sem a teoria que construímos a partir
de nossas discussões, seremos inevitavelmente desmascarados por este trabalho, caso nossa compreensão das
necessidades do nosso paciente seja mais uma questão de mente do que de psique-soma.” (Winnicott, 1955, p. 488).
Portanto, as mútuas interações entre transferência e contratransferência, enquanto comunicações (em nível pré-verbal)
entre analista e paciente, estão implícitas na prática clínica da psicanálise winnicottiana. (Winnicott, 1960). A maior
dificuldade na comunicação aos colegas psicanalistas daquilo de que é feito em situação analítica se deve ao
caráter pré-verbal de certas experiências constitutivas do si-mesmo do paciente, as quais Winnicott designou como
sagradas em consultas terapêuticas (1971b).

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Há perigo real nesse trabalho, mas há o perigo de processo comunicacional. Só por meio dos
não se fazer absolutamente nada, e os riscos manejos adequados do analista é que a
provêm da timidez ou da ignorância do terapeuta, comunicação significativa se torna possível, uma
antes que o paciente sinta que foi enganado. vez que a brincadeira não foi interrompida pelo
(Winnicott, 1965b, p. 245) interpretar prematuro do analista. Dito de outra
Nas consultas terapêuticas, Winnicott forma, o psicoterapeuta não precisa “caçar”
considera que as interpretações orais não significados ou procurar desvelar sentidos; é
produzem o principal resultado mutativo (segundo preciso que ele saiba ouvir o que o paciente tem
terminologia cara a James Strachey3), mas a comunicar, respeitando o ritmo, as
auxiliam na descoberta, pela própria criança, “do características pessoais do seu paciente e,
que se achava lá, nela própria” (Winnicott, 1964- principalmente, a realidade experiencial em que
1968, p. 243) – por meio da relação de mutualidade. a dupla se encontra a cada momento da entrevista
Nas consultas terapêuticas, o setting analítico e psicoterapêutica. Para Winnicott, interpretar os
os manejos clínicos assumem primordialmente objetos subjetivos e/ou transicionais é reduzi-los
a função de devolver a criança à própria criança às representações do mundo interno da criança,
(1971a: BR). Para Winnicott, esta é a essência ou seja, é violentar o próprio campo experiencial
da terapia: o favorecimento dos processos de do paciente, minando o caminho mesmo que
integração da personalidade sustentado pelo possibilita qualquer trabalho terapêutico. O que
holding (inclusive handling e apresentações de Winnicott realizava nas consultas era fruto do
objetos) e pela função especular do analista uso dado ao analista e dos vários sentidos de
(inclusive dos aspectos psíquicos referentes ao realidades experienciados pela criança no decorrer
inconsciente reprimido). da própria consulta.

Neste momento, cabe destacar que objetivo Em virtude das características das consul-
subjetivo não é o mesmo que objeto transicional; tas terapêuticas, estas possibilitam o apareci-
sendo o primeiro necessário à emergência da mento de necessidades e questões psíquicas do
segunda realidade experienciada. Enquanto paciente nos diferentes momentos do processo
Winnicott reserva ao objeto subjetivo o uso dado de amadurecimento, dependendo da história de
pelo bebê aos objetos iniciais criados a partir de vida e cronologia da criança.
sua criatividade originária (graças ao apoio egóico Partindo do mesmo princípio de que nenhum
materno capaz de promover a dupla dependência), acontecimento em consulta deve ser despregado
ele reserva aos objetos transicionais o uso posterior de seu contexto de surgimento, isto é, de sua
dado pela criança à primeira possessão não-eu, realidade experiencial (quer subjetiva, transicional
decorrente da área de experiência intermediária ou simbólica compartilhada), na própria introdução
da vida humana (entre a realidade subjetiva e às Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil
objetivamente compartilhada). (1971b), Winnicott contrasta a sua maneira
No trabalho de consultas, o que é solicitado particular de fazer uso dos desenhos das crianças
ao analista é manejo clínico, sustentação da em consultas com a maneira tradicional de
experiência da criança ao longo do tempo, do compreendê-los psicanaliticamente, isto é,
espaço e da realidade construída pela própria freqüentemente reduzidos aos seus conteúdos
necessidade da criança, a cada momento do representacionais.

(3)
Ao se referir à clínica de Winnicott em comparação com o destaque dado por Strachey aos insights interpretativos na
transferência, diz Khan (1984): “A interpretação mutativa, para usar a expressão de James Strachey (1934), é facilitada,
alimentada e possibilitada por muitos outros fatores além da linguagem falada e compreendida na situação analítica e da
relação total entre o paciente e o analista. [...] O argumento básico deste trabalho é que as realidades experienciais
humanas empregam e se comunicam por outros meios além da linguagem [como a comunicação silenciosa, subjetiva,
transicional...], e trocam importantes dados através de aparelhos de ego que não a fala. As consultas com crianças, em
que Winnicott (1971b) emprega o jogo de rabiscos (...), não deixam dúvidas a respeito.” (Khan 1984, p. 301)

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52 G.Z. LESCOVAR

Alguém pode possuir uma leve tendência Com relação ao conhecimento psicanalítico,
doutrinária a pensar que todas as cobras as consultas terapêuticas não podem ser
são símbolos fálicos, e é claro que podem definidas como psicanálise, no sentido tradicional
ser. Contudo, se se pegar o material primitivo do termo, nem mesmo como psicoterapia breve
e as raízes do que um pênis pode significar psicanalítica, exatamente pela brevidade de sua
para uma criança, ver-se-á que o desenho intervenção (uma a três sessões) e principalmente
feito por ela de uma cobra pode ser a (tal como destacado anteriormente) por
configuração do eu (si-mesmo) que ainda responderem a uma necessidade específica do
não usa braços, dedos, pernas e artelhos. paciente, não sendo realizado um tratamento
Pode-se ver quantas vezes pacientes exaustivo ou focal da transferência. Em outras
não conseguem exprimir um senso de eu palavras, o que realmente define as consultas
(si-mesmo) porque o terapeuta interpretou são a utilização e a condução da transferência
uma cobra como um símbolo fálico. relacionada ao lugar subjetivo atribuído ao
(Winnicott, 1971b, p. 18) psicoterapeuta pela criança (preestabelecida
Winnicott jamais compreendia qualquer antes da consulta)4, de forma que a transferência
produção da criança deslocada de seu contexto seja utilizada no favorecimento ao paciente de
de produção, ou momento característico da uma experiência constitutiva completa (Winnicott,
consulta. O desenho isoladamente destacado 1941). Desse modo, não se busca uma “resolu-
pode ser mal compreendido se não for tomado no ção” ou uma “resposta conclusiva” à problemática
interior do caminho de comunicação que se do paciente, mas a integração, na presença de
estabelece na consulta. Tal como insinuado outrem significativo, de alguma dificuldade,
anteriormente, este é um eixo fundamental do sofrimento ou qualquer aspecto dissociado da
modelo investigativo de Winnicott – jamais personalidade.
compreender qualquer acontecimento clínico Winnicott postula que a existência humana
despregado de seu contexto originário. Jamais parte da não integração primária e da dependência
compreender o homem desprovido de seu meio absoluta, sendo o processo de amadurecimento
ambiente. humano fruto da tendência ao crescimento e à
Coerentemente com toda a clínica psica- integração dos vários aspectos da personalidade,
nalítica winnicottiana, as consultas terapêuticas que deverá adquirir o estatuto de unidade
são modalidades específicas de intervenção e psicossomática no tempo e espaço. Para isso, a
ajuda que se fundamentam no favorecimento de tendência à integração (que não é uma
situações (um tempo, um espaço e uma relação determinação) ou as tendências hereditárias
analítica) facilitadoras dos processos integrativos precisam encontrar uma ambiência favorável para
e constituintes do si-mesmo do paciente. Assim concretizar-se. Tal ambiência é promovida,
sendo, tal aspecto das consultas aglutina a inicialmente, pelo cuidado humano e pessoal
concepção de Winnicott, a qual define a materno (assim como toda a família e socieda-
indissociabilidade entre a compreensão do ser de – em um contexto mais amplo) para com as
humano e as condições ambientais que permitem necessidades de seu filho, que, à medida que se
que a natureza humana aconteça. Winnicott desenvolve, adquire um eu individualizado.
freqüentemente afirmava: “Não existe essa coisa Quais as condições ambientais destacadas
chamada o bebê” – como forma de salientar o por Winnicott e necessárias ao acontecer do
contexto, o qual favorece que a criança continue processo de amadurecimento humano? Quais
existindo. as condições proporcionadas pela família a fim

(4)
A criança vem à(s) consulta(s) almejando encontrar o objeto necessitado para retomada de seu processo de amadurecimento
humano e superação de sua dificuldade, tal como belamente descrito e apresentado por meio de suas consultas terapêuticas
em Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil (Winnicott, 1971b).

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AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 53

de que o si-mesmo da criança venha a se atualizar resultante das relações objetais iniciais entre
e se constituir? A partir das considerações mãe-bebê em que mãe em estado de devoção
psicológicas sobre a importância constitutiva do fornecia o objeto necessitado pela criança, no
meio ambiente, quais as condições ambientais momento mesmo de sua necessidade, conferindo
necessárias ao terapeuta para promoção e ao gesto materno a qualidade de precisão. Tal
realização das consultas? cuidado era guiado não por uma técnica
Por intermédio de suas práticas clínicas artificialmente compreendida e aplicada, mas
como pediatra e psicanalista de pacientes até pelo reconhecimento materno das necessidades
então “intratáveis” pela psicanálise (crianças com do bebê em um período de vida pré-verbal deste.
meses de idade, pacientes psicóticos e Por intermédio da apresentação de objetos,
bordelines, pacientes com traços anti-sociais), Winnicott postulou o estabelecimento gradual da
Winnicott renomeou e conceitualizou os detalhes realidade compartilhada e o senso de realização
e as sutilezas do cuidado materno – holding, pessoal.
handling, apresentação de objeto e função
À medida em que o ambiente facilitador, ou
especular. Estes aspectos são decorrentes das
expectável médio, se modifica e se ajusta às
noções, do próprio autor, de preocupação materna
necessidades dinâmicas emocionais da criança
ou apoio egóico às experiências do bebê.
em crescimento e desenvolvimento por meio da
Por holding, Winnicott compreendia o reciprocidade, da mutualidade e dos cuidados
favorecimento ambiental à integração pessoal do
adaptados, este passa a constituir o que Winnicott
bebê no tempo e espaço advinda do segurar
denominou de função especular, que nada mais
físico e emocional realizado pelo meio ambiente,
é que o favorecimento de experiências à criança,
resultando em experiências fornecidas à criança
que estão relacionadas com a estabilidade do de tal forma que esta possa reencontrar-se por
meio ambiente, constância objetal e autenticidade meio dessas experiências, tornando-as
dos cuidados maternos. Para Winnicott, o gradativamente como pessoais. Pode-se
essencial residia na maneira de ser da mãe, em denominar a função especular como a integração
seu estado de devoção/identificação com seu gradual pessoal do bebê por meio do olhar
filho, que, por sua vez, lhe conferia uma certa materno/ambiental que reconhece a sua
qualidade no cuidar de seu bebê. Para esse singularidade pessoal.
exímio observador, o ser humano jamais poderia Se, por intermédio da teoria do amadure-
ser tratado como um ser natural reduzido a
cimento pessoal, Winnicott conceituou as
cuidados puramente técnicos. Por meio do holding
condições necessárias ao processo de
fornecido à criança, Winnicott postulou que esta,
amadurecimento pessoal; em termos clínicos
gradualmente, viria a adquirir um senso de
identidade pessoal. significou a promoção de situações facilitadoras
da constituição do si-mesmo do paciente, seja
Quanto ao handling, Winnicott entendia o
na análise padrão (Winnicott, 1986a), nas
favorecimento do meio ambiente ao alojamento
consultas terapêuticas (Winnicott, 1971b), ou
da psique no corpo facilitado pelas experiências
mãe-bebê, em que a interação entre eles era mesmo de acordo com o “trabalho segundo a
mediada pelo contato corporal, e também pelas demanda”, descrito em Piggle: relato do atendi-
compreensões maternas das manifestações mento psicanalítico de uma menina (Winnicott,
corporais do bebê como comunicações pessoais. 1977).
Por meio do handling, Winnicott conceituou o Na clínica winnicottiana o essencial da
estabelecimento da personalização. condução clínica encontra-se no favorecimento
Por sua vez, a apresentação de objetos, de experiências constitutivas ao paciente. A
Winnicott a compreendia como o benefício clínica winnicottiana é uma clínica da

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acontecência5 , uma vez que o si-mesmo se imediato da experiência da consulta; e o conceito


constitui a partir de experiências e do brincar. de interpretação como verbalização do consciente
Em Consultas terapêuticas em psiquiatria nascente não se aplica exatamente aqui.
infantil (1971b), Winnicott afirma: (Winnicott, 1971a, p. 163/4)

Deve-se observar que neste trabalho eu Em outras palavras, o que Winnicott reafirma
geralmente não faço interpretações, mas é que a “psicanálise é uma forma altamente
espero até que o traço essencial da especializada do brincar” em que a própria
comunicação da criança seja revelado. interpretação deve ser submetida à capacidade
Assim, falo sobre o traço essencial, mas o do paciente de jogar, a partir de sua criatividade
mais importante não é tanto eu falar quanto originária.
o fato de a criança ter encontrado alguma Conforme exposto, outro aspecto importante
coisa. (Winnicott, 1971b, p. 79) da psicanálise winnicottiana, e essencial para
Para Winnicott, interpretar é tão importante compreensão dos procedimentos clínicos e fins
quanto não interpretar; isso porque as interpre- terapêuticos das consultas terapêuticas,
tações devem estar submetidas à criatividade encontra-se na concepção particular winnicottiana
originária do paciente e ao brincar. A interpretação que envolve a saúde psíquica dos indivíduos.
fora da área comum construída a partir do espaço Winnicott passa a deduzir o grau de sanidade de
potencial é doutrinação ou produz traumas ao alguém não pelo seu quadro psicopatológico,
paciente, obrigando-o a submeter-se ou a reagir mas pela presença ou ausência do sentimento
à invasão. de esperança na busca pelo encontro com o
objeto necessitado. Se, na psicanálise tradicional,
Os pacientes que manifestam capacidade
o ser humano é movido pelos representantes do
limitada de identificação introjetiva e projetiva
desejo, para a psicanálise winnicottiana, o que
apresentam sérias dificuldades para o
move o homem é a tendência à integração.
psicoterapeuta, que necessita sujeitar-se
ao que é chamado de atuação (acting out) No final da vida (Winnicott, 1986a), diante
e de fenômenos transferenciais que dispõem de uma platéia de padres anglicanos, Winnicott,
de apoio instintual. Em casos assim, a de acordo com sua particular concepção de
principal esperança do terapeuta é ampliar saúde, resumiu, de forma simples, quando um
o campo de ação do paciente com respeito indivíduo necessita de ajuda psicológica ou quando
a identificações cruzadas, e isso surge não o próprio meio ambiente social e familiar pode
tanto pelo trabalho de interpretação quanto suprir suas necessidades:
através de certas experiências específicas Se uma pessoa vem falar com você e, ao
que ocorrem nas sessões analíticas. Para ouvi-la, você sente que ela o está entediando,
chegar a essas experiências, o terapeuta então ela está doente e precisa de trata-
tem de levar em consideração um fator mento psiquiátrico. Mas, se ela mantém o
temporal e não se podem esperar resultados seu interesse independente da gravidade
terapêuticos de tipo instantâneo. As do seu conflito ou sofrimento, então você
interpretações, por precisas e oportunas pode ajudá-la. (Winnicott, 1986a, p. 01)
que sejam, não podem conceber a resposta Winnicott só pôde responder aos padres
completa. depois de muito pensar, pois estava diante da
Nessa parte específica do trabalho do dificuldade de postular a aparente obviedade:
terapeuta, as interpretações têm mais a natureza quando alguém está realmente doente e precisa
de uma verbalização de experiências no presente de ajuda especializada? Como destacou Khan

(5)
Este termo é usado pelo Prof. Dr. Zeljko Loparic, não apenas em seus trabalhos filosóficos sobre a ontologia de M.
Heidegger, como também em sua leitura de Winnicott, feita à luz da filosofia heideggeriana.

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AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 55

(1986, IN: Winnicott, 1986a, p. 03), Winnicott As perguntas a serem feitas são: de que
respondeu à “simples” questão a partir da teoria maneira o ambiente imediato da criança falhou
da comunicação em psicanálise: para que resultasse em uma estagnação de seu
O paciente que nos oferece uma narrativa processo de amadurecimento? De que forma
entediante não está permitindo que a poderá ser auxiliada pela relação analítica?
linguagem e a metáfora elaborem ou As respostas a essas questões só poderão
modifiquem a sua experiência. Ele cria um ser compreendidas se, primordialmente, o
espaço de comunicação onde ambos – ele psicoterapeuta puder brincar com a criança,
e o analista – ficam paralisados pela técnica sustentar essa relação no tempo e espaço da
da narrativa, assim como pela monotonia e consulta e, principalmente, esperar a comuni-
pela repetição do conteúdo.6 (Khan, Masud cação da criança em sofrimento, acreditando
M. 1986. IN: Winnicott, 1986a, p. 03) nos processos integrativos da própria criança.
O paciente impede o real contato pessoal, Esperar significa conduzir clinicamente o
processo da consulta ou sessão analítica a partir
a troca, as comunicações significativas, as
do ritmo e do manejo da temporalidade própria a
experiências de mutualidade, o brincar e a
cada criança. O tempo na constituição psíquica
autêntica associação livre. Ele teme repetições
dos indivíduos é tão importante para Winnicott a
de invasões ambientais que o obriguem a
ponto de afirmar, em Natureza humana (1988)
reagir. Este é o conceito de trauma adotado por
que o ser humano é uma amostra temporal dessa
Winnicott – “a quebra de continuidade na
natureza.
existência” (Winnicott, 1967, p. 04) –, que
necessariamente varia de acordo com o grau de Já em 1941, Winnicott, ao descrever o jogo
imaturidade, dependência da criança e de da espátula (Winnicott, 1941), destacou a
presentificação do senso de desesperança que a importância do manejo da temporalidade nas
impede de ter um real encontro humano. situações clínicas.
Esse jogo criado com finalidade diagnóstica,
Como relatado acima, o paciente, ou a
e desenvolvido por meio do contato com crianças
criança, tenta ter controle onipotente (contra-
muito pequenas, surgiu a partir de sua prática
riamente às experiências de onipotência
pediátrica. O jogo da espátula pode ser tomado
decorrentes do processo de ilusão, que gradual-
como uma ilustração do método terapêutico de
mente favorecerão a aquisição da externalidade)
Winnicott, da instrumentalização analítica a partir
sobre seu estado emocional, buscando restringir
de suas observações e do desenvolvimento de
as possibilidades de que algo aconteça. Essa é seu pensamento. (Safra, 1999a)
a raiz de seu sofrimento: não pode ter esperanças,
Neste artigo, traduzido sob o título
não pode ser surpreendido, não pode aconte-
Observação de bebês em uma situação
cer – seu processo de amadurecimento está
estabelecida (1941), Winnicott conta o desenrolar
estagnado. A vida está presa a uma perpétua da situação clínica (e, conseqüentemente, o
repetição de seu sofrimento. Contrariamente à manejo da temporalidade) caracterizada por três
saúde, esses indivíduos não desenvolvem um etapas distintas, em que descreve os comporta-
senso de existir, nem podem realizar alguns de mentos dos bebês (inicialmente no colo de suas
seus potenciais, não conseguem brincar. mães) diante de uma espátula disponível sobre
(Winnicott, 1970, p. 282) uma mesa.

(6)
Cabe destacar que os comportamentos artificialmente saudáveis (a que Winnicott chama de “fuga para a sanidade”) ou
agradáveis – reações contradepressivas e tentativas de sedução – chegam a provocar irritação no analista (pela falta de
autenticidade). A “performance”, em determinado momento, torna-se repetitiva e entediante, tendendo a escravizar o
analista, que se vê obrigado a assistir a uma falsa tentativa de comunicação; contudo, ele “terá que aprender a tolerar esse
discurso forjado, a fim de ajudar o paciente.” (Winnicott, 1986a, p. 04). Para Winnicott, não há nada mais entediante que a
ausência de dúvidas, fruto da doença e da negação da precariedade da condição humana. (Winnicott, 1969, p. 205)

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56 G.Z. LESCOVAR

A partir do momento em que o bebê se nicação e mutualidade entre analista e paciente


sentia atraído pela espátula, uma seqüência de e, principalmente, o veio terapêutico analítico
eventos era esperada. Após o despertar do voltado à promoção de experiências constitutivas
interesse, o bebê passava a hesitar diante da e lições de objeto (Winnicott, 1941). Em
possibilidade de apreender a espátula. Durante Consultas terapêuticas (Winnicott, 1971b), esses
esse primeiro período, após observar as reações aspectos reaparecem em toda a sua importância.
das pessoas à sua volta, o interesse gradualmente As consultas terapêuticas se fundam sobre as
voltava a aparecer, se não interrompido ou lições de objeto, que nada mais são que o favore-
apressado pelas pessoas envolvidas. cimento pelo psicoterapeuta ao paciente – por
Em um segundo momento, o interesse meio do campo transferencial – das funções
aumentava e ocorria uma verdadeira transformação ambientais necessárias à efetivação de aspectos
na criança. Sua boca ficava flácida, a língua fundamentais do si-mesmo (self) do paciente
espessa e a saliva ficava abundante. Em vez de que até então não haviam tido possibilidade de se
hesitação, surgia autoconfiança e, assim, o bebê constituir. (Safra 1995, 1999a, 1999b, 2000)
agarrava a espátula, que passava a ser manipulada O importante é que o encontro possa ser
para auto-expressão, ou para iniciar um jogo em criado pelo paciente no momento da
que a criança brincava7 de alimentar o médico e/ necessidade. Aspectos fundamentais para
ou a mãe. o estabelecimento na clínica, do que
Em um terceiro momento, o bebê, como Winnicott denominou espaço potencial,
que descuidadamente, deixava cair a espátula campo inter-humano, fruto do encontro do
no chão. Sendo-lhe restituída, a espátula passava gesto da necessidade com o objeto
a ser jogada propositalmente, dando grande necessitado. Uma vez que a comunicação
alegria à criança. Com o passar do tempo, o bebê é estabelecida, segundo esses princípios,
estabelecia interesse por outros objetos da sala. em algum momento ela precisa ser
Nesse momento, Winnicott entendia que a finalizada. A finalização ocorre no momento
em que o objeto criado pela necessidade
consulta podia ser terminada. Diante dessas
deixa de ser necessitado [Isso porque o
consultas com bebês muito jovens, Winnicott
paciente encontrou-o através do encontro
compreendeu a experiência vivida pela criança
analítico, isto é, houve uma lição de objeto].
como um processo terapêutico de lição de objeto. O paciente ‘livra-se’ do psicoterapeuta como
Winnicott considerou essa seqüência de interlocutor, como objeto necessitado, para
eventos como normal em crianças psiquicamente colocá-lo fora da área dos seus objetos
sadias dentro da faixa dos cinco aos treze meses subjetivos (objeto criado pela necessidade).
de idade. Depois disso, em geral, o interesse da (Safra, 2000, p. 137)
criança torna-se tão amplo e variado, que para tal Apesar de, nesse artigo de 1941, Winnicott
procedimento, nada pode ser predito em relação afirmar que seu objetivo não era o desenvolvimento
a inibições, ansiedades ou paradas no seu de uma terapêutica, ele não deixa de salientar o
desenvolvimento. valor terapêutico da possibilidade de realização
Em 1941 Winnicott já havia demarcado de uma experiência completa significativa para a
alguns dos pontos que o guiariam ao longo de criança e que Safra destaca como a principal
todo o seu trabalho analítico: a indissociabilidade finalidade terapêutica das consultas.
entre diagnóstico e tratamento psicanalítico, a A experiência de ousar querer e pegar a
importância do brincar na vivência de comu- espátula, tomar posse dela, sem na verdade

(7)
Em seu artigo de 1941, Winnicott procurou destacar o fato de que o bebê se zangava quando suas brincadeiras eram
estragadas pelos adultos que haviam compreendido seus comportamentos enquanto tentativas efetivas de alimentação.
Já em 1941, Winnicott, diante da rica observação clínica que acumulara no exercício da pediatria, salientou a precocidade
com que o brincar surge, assim como o seu caráter primordial relativo ao estabelecimento da saúde psíquica humana.

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AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 57

alterar a estabilidade do meio ambiente corpo, a existência psicossomática, a senso-


imediato, age como uma espécie de lição rialidade e as dimensões espaço e tempo são
de objeto que tem um valor terapêutico para revalorizados e reconsiderados como necessários
a criança. [...] O que há de terapêutico à constituição de um certo sentido de ser (si-
nesse trabalho está, penso eu, no fato de o mesmo), do psiquismo e da situação analítica.
desenvolvimento completo de uma (Safra, 1999b)
experiência ser permitido. (Winnicott, 1941, Por meio da prontidão psicossomática do
p. 66-67) analista e da identificação com o seu paciente,
A permissão de um desenvolvimento busca-se favorecer uma relação pessoal
completo de uma experiência significa, em termos especializada em um espaço-tempo da consulta,
técnicos analíticos, a sujeição dos objetivos em que o brincar é franqueado ao paciente,
terapêuticos ao ritmo dado pelo próprio paciente podendo ambos serem surpreendidos com a
ao processo, tão bem ilustrado pelo desenvolvi- comunicação (da dificuldade do paciente) que
mento das consultas terapêuticas, em que surge inesperadamente do encontro.
assumem uma duração de acordo com cada Uma vez favorecida a previsibilidade e a
criança atendida. Favorecendo experiências confiabilidade ambientais/profissionais para a
totais, Winnicott procurava encaminhar seus efetivação do processo de ilusão, de que maneira
atendimentos, quer em seu trabalho segundo a a emergência do brincar possibilita a
demanda, descrito em Piggle: relato do comunicação autêntica entre os membros do
atendimento psicanalítico de uma menina encontro analítico?
(Winnicott, 1977), quer em suas sessões regulares
Segundo Winnicott, é somente por meio da
de psicoterapia (Winnicott, 1986a), quer em
terceira área de experiência que a comunicação
suas consultas terapêuticas (Winnicott, 1971b).
autêntica se torna possível, graças à peculiaridade
Como já se disse, todos os procedimentos da linguagem lúdica que, ao mesmo tempo que
clínicos de Winnicott são decorrência direta ou revela, oculta. Isso se deve porque, somente por
indireta de suas observações das interações meio do brincar mútuo, a comunicação humana
mãe-bebê, protótipo da relação analista-paciente se realiza sem violar o núcleo mais secreto do
na clínica winnicottiana (Dias, 1999, 1998; si-mesmo do paciente. (Winnicott, 1963). Tal
Loparic, 1996) e na condução do trabalho clínico como afirma Winnicott: “É uma alegria estar
em consultas terapêuticas. escondido, mas um desastre não ser encontrado”.
No manejo intuitivo de um bebê, uma mãe (Winnicott, 1958b)
permite, de forma natural, a ocorrência do Sugiro que normalmente há um núcleo da
completo desenvolvimento de várias personalidade que corresponde ao si-
experiências, mantendo essa atitude até mesmo verdadeiro da personalidade split;
que a criança tenha idade suficiente para sugiro que este núcleo nunca se comunica
compreender seu ponto de vista. Ela detesta com o mundo dos objetos percebidos, e
violar experiências tais como a amamenta- que a pessoa percebe que não deve nunca
ção, o sono, ou a evacuação. Nas minhas se comunicar com, ou ser influenciado pela
observações, artificialmente dou ao bebê o realidade externa. Este é meu ponto
direito de completar uma experiência que principal,o ponto do pensamento que é o
tem particular valor para ele como uma centro de um mundo intelectual e de meu
lição de objeto. (Winnicott, 1941, p. 67) estudo. Embora as pessoas normais se
Sem dúvida alguma, a clínica winnicottiana comuniquem e apreciem se comunicar, o
está respaldada no valor atribuído à experiência. outro fato é igualmente verdadeiro, que
Dessa forma, na clínica de Winnicott, ocorre uma cada indivíduo é isolado, permanentemente
reordenação da prática psicanalítica, em que o sem se comunicar, permanentemente

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58 G.Z. LESCOVAR

desconhecido, na realidade nunca processo de amadurecimento, no prefácio de


encontrado.[...] eu diria que as experiências Consultas terapêuticas (1971b), afirma:
traumáticas que levam à organização das É desnecessário dizer que o terapeuta
defesas primitivas fazem parte da ameaça deve ter a confiança profissional como algo
ao núcleo isolado, da ameaça dele ser que acontece com facilidade; é possível,
encontrado, alterado, e de se comunicar para uma pessoa séria, manter uma atitude
com ele. A defesa consiste no ocultamento profissional, mesmo quando experimenta
ulterior do si-mesmo [self], mesmo no tensões pessoais muito fortes na vida
extremo de suas projeções e de sua privada e no processo de crescimento
disseminação infindável. (Winnicott, 1963, pessoal que, esperamos, nunca cessa.
p. 170) [...] Uma experiência de intenso tratamento
Winnicott define que os instrumentos analítico pessoal é, tanto quanto possível,
psicanalíticos, se mal empregados, poderão essencial. (Winnicott, 1971b, p. 10)
perpetuar certos graus de violência aos indivíduos. Não podendo ser diferente, como criador da
Assim sendo, por intermédio do brincar, até teoria do amadurecimento humano, Winnicott
mesmo os procedimentos aceitos nas análises não submete somente as conduções clínicas ao
de adultos foram modificados por Winnicott em seu quadro teórico (e vice-versa), mas inclui a
virtude de sua ênfase no gesto espontâneo do própria pessoa do analista.
paciente, nas coesões psicossomáticas entre
Em última instância, o psicoterapeuta
analista e paciente e no que denominou
busca favorecer a comunicação do paciente
“experiências de mutualidade” na situação
sobre sua problemática, recolocada sob domínio
analítica, ou “continuidade do ser”.
do eu, graças à presença viva e sensível de um
Uma vez que a clínica winnicottiana susten- outro ser humano, que funciona como apoio
ta-se sobre a acontecência das comunicações e egóico à integridade buscada pelo paciente. Nos
dos encontros humanos, o psicoterapeuta passa casos em que a criança é incapaz de brincar, ou
a estar em disponibilidade para o paciente como seja, de desfrutar do estabelecimento do espaço
pessoa que ele é, de tal maneira que, por meio do potencial, o objetivo da intervenção concentra-se
jogo participativo e mútuo dos rabiscos (em em dar condições para que um dia venha a
consultas terapêuticas), o paciente possa usar brincar. Nesses casos, a incapacidade para a
dessa relação para manifestar suas necessidades. brincadeira é o maior sintoma do sofrimento
Nesse sentido, Winnicott afirma: psíquico da criança, havendo uma variação dos
Eu mesmo trouxe a público essas descri- objetivos terapêuticos das consultas em virtude
ções como um ser humano não exatamente da situação psíquica de cada paciente em
igual a qualquer outro ser humano, de modo questão.
que em nenhum caso o mesmo resultado
teria sido obtido se em meu lugar estivesse
qualquer outro psiquiatra. (Winnicott, 1971b, 3. AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A
p. 14) CLÍNICA WINNICOTTIANA
Assim sendo, cada consulta tem um
desfecho próprio, ditado inclusive pelas limitações Por meio de um breve apanhado teórico
e capacidades daquele que oferece auxílio. Na buscou-se demonstrar não somente uma nova
realização das consultas, o psicoterapeuta modalidade de intervenção, avaliação e ajuda
responsabiliza-se pelas suas ações, e precisa psicológica criada por Donald W. Winnicott e
ser capaz de transformar suas falhas em auxílio denominada consultas terapêuticas, mas também
ao paciente. Com relação à importância dada por apresentar uma ampliação na forma de realizar
Winnicott à pessoa do analista e ao seu próprio clínica psicanalítica.

Rev. Estudos de Psicologia, PUC-Campinas, v. 21, n. 2, p. 43-61, maio/agosto 2004


AS CONSULTAS TERAPÊUTICAS E A PSICANÁLISE DE D.W. WINNICOTT 59

Neste breve artigo, buscou-se iluminar a KHAN, Masud M. (1984). Psicanálise: teoria,
consulta terapêutica enquanto uma nova técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro,
possibilidade de intervenção psicológica realizada Francisco Alves.
sob a condução do manejo do tempo em relação KHAN, Masud M. (1986). Prefácio. Em:
ao pedido de ajuda do paciente. WINNICOTT, D. W. 1986a. Holding e
A consulta terapêutica busca favorecer um interpretação. São Paulo, Martins Fontes.
tempo, um espaço e uma relação humana
LESCOVAR, Gabriel Z. (2001). Um estudo sobre
especial dos quais possa emergir, pelo contato as consultas terapêuticas de D. W. Winnicott.
analítico, a problemática mais significativa do Dissertação (mestrado). Pontifícia
paciente, por um fenômeno marcado pela surpresa Universidade Católica de São Paulo, São
(tanto para o paciente quanto para o analista). Tal Paulo.
fenômeno, fruto do processo de comunicação
estabelecida entre paciente e terapeuta, aglutina LOPARIC, Zeljko (1996). Winnicott: uma
psicanálise não-edipiana, Percurso, no. 17
a problemática mais significativa do paciente
(02), 41-47.
devido à confiabilidade e previsibilidade fornecidas
pelo psicoterapeuta. O elemento-surpresa indica ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (1993).
que aspectos anteriormente dissociados da Classificação de transtornos mentais e de
personalidade do paciente foram integrados por comportamento da CID-10: descrições clínicas
meio do encontro. e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre, Artes
Médicas.
A partir da valorização dos manejos clínicos
(em oposição ao uso exclusivo da interpretação SAFRA, Gilberto. (1995). Momentos mutativos
oral como único veículo de intervenção em psicanálise: uma visão winnicottiana. São
psicanalítica) e das experiências constitutivas Paulo, Casa do Psicólogo.
do si-mesmo do paciente por meio do brincar SAFRA, Gilberto. (1999a). A clínica em Winnicott,
compartilhado, demonstrou-se a mútua influência Natureza Humana, I (01), 91-102.
entre a prática clínica de Winnicott e seu modelo
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conceitual – fundamentado em sua teoria do self: teoria e clínica. São Paulo, Unimarco.
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