Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Fronteiras do Mito
Jean-Pierre Vernant
Apresentação
Pedro Paulo A. Funari1
O estudo da Antigüidade, no Brasil, tem sido facilitado, nos últimos anos, pela
publicação, de forma cada mais intensa, de documentos antigos, assim como de livros
e artigos científicos. Traduzem-se livros de autores estrangeiros e a produção nacional
cresce de maneira notável, com compêndios e obras especializadas publicadas tanto
em editoras comerciais como acadêmicas. Os alunos de graduação, portanto, nunca
tiveram acesso a tanta bibliografia em vernáculo, o que atesta o amadurecimento dos
1
Professor Titular do Departamento de História, IFCH-UNICAMP, C.Postal 6110, Campinas, SP, 13081-970,
ppfunari@uol.com.br.
1
estudos sobre o mundo antigo em nosso país. Neste contexto, a História cultural,
em geral, e o estudo da História da própria ciência sobre o mundo antigo constituem
campos de particular interesse e florescimento no âmbito internacional e no Brasil. Não
são tão numerosos, contudo, os estudos específicos nesses campos publicados em
português, até porque essa é uma produção recente. A publicação dos dois textos
seminais de Vernant e Hingley, traduzidos ao português e para o uso na Graduação,
levou a que a primeira edição logo se esgotasse. O primeiro deles um texto, inédito em
vernáculo, do helenista Jean-Pierre Vernant, sobre um tema importante da Histórica
cultural, enquanto Richard Hingley, estudioso britânico, produziu, especialmente para
este volume, um texto sobre a construção historiográfica inglesa do mundo romano, em
uma análise original e crítica da historiografia sobre a Antigüidade romana. A
publicação deste volume permitiu, pois, aos alunos de graduação, um acesso
excepcional ao que de mais original se tem produzido sobre a Antigüidade. Para esta
segunda edição, por sugestão de alunos e colegas, incluímos dois novos estudos, a
começar por um ensaio sobre as formas do discurso historiográfico, resultado de aulas
ministradas sobre tema sugerido por Janice Theodoro da Silva. Trata-se, pois, de
anotações ou apontamentos que serviram de base para as reflexões desenvolvidas em
sala de aula e mantém, nesta publicação, o caráter ensaístico que está em sua origem.
Em seguida, apresentamos outro texto de Jean-Pierre Vernant, inédito em vernáculo,
sobre a morte heróica entre os gregos, estudo que condensa, de forma notável, as
reflexões do helenista francês sobre um dos aspectos mais debatidos da Antigüidade
grega, a morte.
2
Apresentação,
por Renata Cardoso Beleboni
3
Fronteiras do Mito
Pode-se, assim, aproximar o mundo das lendas gregas, de uma parte, aos
textos sagrados das grandes civilizações do Oriente-Próximo antigo e da Índia védica,
de outra parte, dos relatos tradicionais que os etnólogos recolhem entre os povos sem
escrita. Daí a estabelecer a existência de um "pensamento mítico" constituindo, na
história da humanidade, um estado primitivo, igualmente distante do espírito dos
2
Vernant, Jean-Pierre. "Frontières du Mythe". In. VERNANT, Jean-Pierre et GERGOUD, Stella (Dir.) Mythes
Grecs au Figuré de l'Antiquité au Baroque. Paris: Gallimard, coll. "Le Temps des Images", 1996, pp. 25-42.
*
Mestra, doutoranda do IFCH/UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari. Prof. do
Programa de Estágio Docente - UNICAMP. Prof. de História Antiga - FESB - Bragança Paulista.
4
autênticos religiosos monoteístas e dos meios da razão científica, haveria uma
distância: os especialistas do século XIX superaram, felizmente, seguindo sobre este
ponto pela opinião comum. Este esquema evolucionista relega o mito ao fundo de seu
gueto, realizando uma etapa que é necessário superar, para entregar ao religioso, sua
verdadeira face, purificado do mágico, das superstições, da idolatria e para isentar o
pensamento da mentalidade pré-lógica na qual ele estaria inicialmente engajado. Esta
concepção foi vigorosamente atacada por toda uma série de abordagens novas que
conduziram a colocar, em outros termos, os problemas do mito. Comecemos pelos
historiadores das religiões. Eles mostraram que todo sistema religioso comporta
diversos aspectos, por vezes, distintos e interdependentes. Primeiramente, o que se
faz: os atos, os gestos rituais, o conjunto das práticas constitutivas do culto; em
seguida, o que se apresenta à vista: os fatos de figuração que conferem às divindades
um lugar, uma categoria, uma figura visível, quer se trate de imagens ou de formas
anicônicas; enfim, o que é dito: palavras pronunciadas, invocações, preces, hinos,
discursos sagrados relacionados às potências do além e exprimindo a natureza, as
funções, as transformações, os relacionamentos mútuos, as relações com os humanos
pelos meios de que dispõe a linguagem. O mito delineia-se, não mais como uma etapa
completa que deixaria somente aqui ou ali alguns vestígios, mas como uma das facetas
da experiência religiosa, sua parte verbal associada à suas dimensões rituais e
figuradas. A questão é, não definir por ausência e defeito: irracional, ilógico, irreal e
infantil. O problema é, ao contrário, de lhe encontrar um sentido ou antes, de tornar
possível reconhecer as significações às quais ele é autenticamente portador. Neste
sentido dois tipos de interpretação foram propostas. Primeiramente uma leitura
"alegórica" que os Gregos muito cedo praticaram. Trata-se de substituir tal texto como
se apresenta na sua literalidade, por uma tradução que faça desaparecer as
inverosimilhanças, as anomalias, o fantástico. Decifra-se o relato das aventuras divinas
ou heróicas transpondo os acontecimentos relatados do plano lendário onde se situam
para um registro de fatos diferentes dos quais seriam a expressão simbólica. Quando
coloca em cena Zeus, Hera, Hefaístos, Atena, Afrodite, Apolo, Héracles, Dioniso, o mito
falaria da realidade, envolvendo-os de segredo, de forças e da natureza, de noções
5
morais, de asserções filosóficas ou de acontecimentos pertencentes à vida de
personagens humanos de antigamente. Para restituir sua verdade, o mito deveria,
portanto, parar de ser ele mesmo e manifestar-se, sob seu disfarce fabuloso,
conhecimento da natureza, ética, filosofia, saber histórico.
É Schelling que, contrário a esta versão alegórica, o que ele chama o "caráter
tautegórigo" do mito, inaugurou uma abordagem nova que os especialistas modernos
explicaram. O mito não diz "outra coisa", ele não tem outro sentido que este que ele diz
e que não se poderia exprimir em outra linguagem que não a sua. Seu silêncio só
reside nele mesmo, na sua forma narrativa. É na sua composição interna, no
desenvolvimento do relato, na ordem articulada das seqüências, nas suas homologias
ou oposições, nas funções dos diversos atuantes, na natureza das ações onde estão
os iniciadores ou as vítimas, que é preciso pesquisá-lo.
De seu lado, os historiadores da religião romana, após ter por muito tempo
oposto à Grécia dos mitos e lendas uma Roma que os teria seja ignorado, seja
descartado, uma Roma "desmitologizada", mostrou com Georges Dumézil que os
grandes quadros da mitologia indo-européia, seus mecanismos de fabulação,
encontravam-se nos anais dos primeiros tempos de Roma e nas tradições citadas por
aqueles que consideramos como historiadores. Os especialistas neste domínio deram,
hoje, um passo a mais. "Constatamos, escreve Philippe Borgeaud, que se esboça a
pertinência de uma oposição teórica que não teria razão de existir entre mito e História.
Isto num sentido ligeiramente novo em relação à lição duméziliana: antes de uma
7
"aterrissagem" do mito sobre a História (o que supõe a anterioridade do primeiro
sobre o segundo) observamos o jogo de suas interferências". É sem descontinuidade
que em certas circunstâncias a fabulação, que se poderia crer própria ao mito, insinua-
se na História. Desde que se abandona as categorias, a priori, para interrogar os textos
mais de perto, a fronteira entre mito e História deixa de oscilar ao ponto de parecer
impossível decidir.
Paradoxo: é quando Roma lhe impõe sua dominação, quando a Grécia das
cidades não é mais a mesma dos relatos lendários de suas origens, enraizadas na
gênese do mundo, no nascimento dos deuses, nas façanhas de antanho, na sorte e
desdita dos heróis, que se fornece o saber comum, a memória partilhada suscetível de
unir os povos diferentes, de confirmar, por uma igual familiaridade, com um vasto
universo de contos tradicionais, a convicção de partilhar uma mesma identidade
cultural.
18
Apresentação,
por Renata Senna Garraffoni
19
Outras publicações do autor sobre o tema:
Hingley, R. 1991. “Past, present and future—the study of the Roman period in Britain”,
Scottish Archaeological Review, 8: 90–101.
Hingley, R. 1995. “Britannia, Origin Myths and the British Empire,” in S. Cottam, D.
Dungworth, S. Scott and J. Taylor (edd.), TRAC94. proceedings of the fourth
annual Roman Theoretical Archaeology Conference, Durham 1994 (Oxford): 11-
23.
Hingley, R. 1996. “The ‘legacy’ of Rome: the rise, decline and fall of the theory of
Romanization,” in J. Webster and N. Cooper (edd.), Roman Imperialism: post-
colonial perspectives (Leicester): 35-48.
Hingley, R., 1999. “The imperial context of Roman studies and a proposal toward a new
understanding of the process of social change”, in: P. Funari, M. Hall, S. Jones,
Historical Achaeology: Back from the Edge, Routledge, Londres.
Hingley, R. 2000. Roman Officers and English Gentlemen: imperialism and the origin of
archaeology (Londres).
20
Concepções de Roma: uma perspectiva inglesa
1. Introdução
Este artigo versa sobre como as imagens proporcionadas pela Roma clássica
foram redesenhadas para ajudar a definir as idéias da origem inglesa e a justificativa do
império de 1880 até por volta de 19304. Era o auge do imperialismo britânico. Nesta
época, a “ideologia imperial” tornou-se parte da linguagem do patriotismo britânico5.
Também foi um período em que novas correntes intelectuais se desenvolveram para
definir e sustentar o controle britânico por extensas partes do mundo 6. Trabalhos
acadêmicos, escritos políticos e literatura popular refletem esta necessidade imperial e
o passado imperial romano foi diretamente recrutado para ajudar a tornar conhecida a
“missão” imperial britânica.
3
Texto especialmente escrito pelo autor para publicação em versão portuguesa.
*
Licenciada e Mestre em História, Doutoranda em História, IFCH/Unicamp, bolsista Fapesp.
4
Muitos destes argumentos foram desenvolvidos com mais detalhes em meu livro recentemente
publicado (Hingley 2000) e também em dois papers a sair na próxima edição do Journal of Roman
Archaeology. Para um resumo atualizado sobre as atitudes dos séculos XVIII e XIX como relação a
antiga Roma na Britânia, cf. Vance 1997. Uma imagem alternativa proporcionada pela Grécia também
foi importante nos séculos XVIII e XIX na Britânia (cf. Jenkyns (ed.) 1980 e Turner 1981), mas não será
discutida neste artigo.
5
Eldridge 1996, 2.
6
Koebner e Schmidt 1964; Baumgart 1982 e Judd 1996. Em Hingley 2000 textos datados do final do
século XIX e início do XX são analisados a partir do conceito de “discurso imperial”.
**
Nota da tradutora: no original o termo empregado pelo autor é Englishness. Assim, por analogia ao
termo em português brasilidade, optamos por traduzir Englishness por Anglicidade em todo o texto.
21
definição de anglicidade baseou-se em uma variedade de fontes de informações,
incluindo as fontes históricas clássicas que descreveram a invasão romana na Britânia
no século primeiro d.C e as descrições de vestígios arqueológicos recolhidos por
antiquários e arqueólogos. Como resultado disto, a Arqueologia teve uma grande
participação na definição do propósito imperial da Inglaterra.
7
Meskell 1999:3.
8
Smith 1986: 180-1.
9
Edwards 1999: 2-3; Wyke e Biddiss 1999; Farrell 2001.
10
Edwards 1999 2-3. A complexa variedade das imagens proporcionadas por Roma também era
percebida por autores clássicos (Hardie 1992).
11
Veja, por exemplo, Deletant 1998, Edwards (ed.) 1999, Galinsky 1992, Hingley (ed.) no prelo, Jenkyns
(ed.) 1992, Moatti 1993, Pagden 1995, Vance 1997, Wyke 1997 e Wyke e Biddiss (edd.) 1999.
22
Uma dicotomia entre a imagem romana e aquelas munidas pelas idéias de
uma identidade nativa pode ser extraída das concepções de Roma 12. A efígie do
império romano proporcionou um mito de origem para muitos povos da Europa e, em
particular, para História do Ocidente como um todo. A elite de várias nações ocidentais,
durante os séculos XVI ao XX, usaram a imagem de Roma para ordenar caminhos
para o desenvolvimento da educação, arte, arquitetura, literatura e política 13. Em
relação à contrastante idéia de identidade nativa, as fontes escritas romanas serviram
para prover a idéia de “alteridade” que foi usada para ajudar a definir e unir povos
dentro de nações individuais na Europa Ocidental. Ao definir sua própria civilização em
oposição aos “outros” bárbaros14, autores clássicos proporcionaram um poderoso
instrumento interpretativo para aqueles, que ajudou a criar nações e impérios
modernos. Autores romanos, que escreveram durante o período de expansão no final
do primeiro milênio a. C. e início do primeiro milênio d. C., registraram os nomes e
feitos de vários grupos “étnicos” significativos no império ocidental ou em outros locais
(incluindo gauleses, batavos, germanos, bretões, dácios, entre outros). Alguns textos
romanos importantes se tornaram disponíveis a uma elite ilustrada na Europa Ocidental
do século XVI em diante. Tais textos continham informações sobre estes primeiros
povos, histórias sobre seus hábitos cotidianos e seus atos de resistência ante o
imperialismo romano. Ocasionalmente, os textos também indicavam uma localização
geográfica aproximada na qual estes povos teriam vivido.
12
Hingley, no prelo a.
13
Stray 1998; Wyke and Biddiss 1999.
14
Para a definição clássica do “outro” como bárbaro veja Habinek 1998, 157; Hall 1989; Jones 1971;
Patterson 1997: 30-32, Romm 1992; Shaw 1983 e Webster 1996, 1999.
23
de conhecimento15. No final do século XIX e início do XX, arqueólogos usavam
técnicas para localizar, datar, descrever e classificar vestígios materiais, mas eles
também proporcionaram “histórias” sobre a origem dos monumentos e artefatos que
auxiliaram no desenvolvimento de uma identidade nacional própria 16. Nestas histórias,
os elementos físicos de uma cultura herdada – os artefatos, edifícios e paisagens –
propiciaram uma conexão tangível e particular com um passado étnico imaginado. O
sentido de pertencimento é vital para uma definição própria de identidade nacional e a
ligação de identidades étnicas a certos tipos de evidências arqueológicas tornou-se um
instrumento poderoso na Inglaterra como em vários outros países europeus.
15
Smith 1986: 180; veja também Trigger 1989: 174.
24
da Roma clássica. Autores romanos falaram em latim às aulas de uma elite
ilustrada européia dos séculos XIX e XX – uma língua que ajudou a definir sua
identidade e de qualquer um que eles pudessem entender. Como resultado, muitos
membros destas classes sentiram uma associação com os romanos clássicos como
uma herança de uma tradição, religião e civilização clássica em comum – uma
associação que foi de todas a mais influente devido ao domínio da língua latina na
educação da elite contemporânea17.
16
Para publicações recentes sobre Arqueologia e nacionalismo, veja Atkinson et al. (edd.) 1996; Díaz-
Andreu e Champion (edd.) 1996; Kohl e Fawcett (edd.) 1995 e Meskell (ed.) 1999.
17
Stray 1998: 11; Wyke e Biddiss 1999; Farrell 2001.
18
Stobart 1912: 3; Vance 1997: 16.
19
A idéia da origem teutônica do inglês foi influente no início e meados do período vitoriano e sobreviveu
durante o século XX (veja: Bowler 1989: 51; Colls 1986; Levine 1986: 4; MacDougall 1982; Robbins
1998: 29; Samuel 1998: 23; Smiles 1994: 113-28 e Stocking 1987: 62-3). Para uma história do contraste
entre as escolas “germânica” e “romana” nos séculos XIX e XX, veja White 1971 and Jones 1996.
25
dos interesses imperiais próximos ao final do século. Uma nova representação, que
se desenvolveu neste período, argumentava que o espírito imperial inglês era derivado
de uma herança genética mista que incluía antigos bretões, romanos clássicos, anglo-
saxões e dinamarqueses. Neste contexto, a herança da civilização romana era sempre
considerada particularmente fundamental. A missão do Império Romano, em alguns
trabalhos de literatura (incluindo livros para crianças e trabalhos políticos), passaram a
retratar a transmissão da civilização clássica (e cristandade) para antigos bretões, que,
então, formavam uma parte importante da origem racial mista da população inglesa
moderna. A herança romana também serviu para retratar as classes inglesas educadas
como sucessoras da elite imperial romana.
Examinarei alguns dos caminhos nas quais as duas idéias, “romana” e “nativa”,
começaram a ser incorporadas como uma representação da anglicidade no final do
século XIX e início do XX e o papel da Arqueologia neste processo. Durante o final do
século XIX e início do XX, um grande número de trabalhos populares relacionados a
origem do inglês foram produzidos e alguns relatos serão levados em consideração a
seguir. Cientistas naturais, geógrafos e antropólogos procuravam usar as necessidades
do império para justificar a expansão do ensino e pesquisa em seus campos de
investigação neste período20. Assim como objetos que eram dominados por cavaleiros
amadores passaram a ter um caráter acadêmico crescente dado por estudiosos,
estruturas para carreira começaram a existir21. A Arqueologia Romana, sob influência
de Francis Haverfield, foi um dos objetos de estudos que conseguiram credibilidade
acadêmica22
20
Symonds 1986: 1. Veja também Stray (1998: 247, note 33) para a fundação de várias sociedades
acadêmicas em diversos campos entre 1892 e 1907.
21
Stray 1998: 136.
22
Freeman 1997.
26
que sugeria que um pouco da civilização romana fora transmitida para os antigos
bretões. Esta idéia foi alcançada a partir do desenvolvimento de um significado no qual
civilização era tida como algo que poderia ser transferido. A Romanização estava
baseada em uma definição de oposição binária entre nativos bárbaros e romanos
civilizados – era o processo pelo qual o bretão (ou europeu) não civilizado alcançava a
civilização23.
23
O trabalho de Haverfield proporcionou a base que irá ser chamada interpretação “progressiva” da
romanização. A interpretação progressiva levou crenças sobre a civilização imperial além dos anos de
1970 (Hingley 1996, 2000).
24
Raphael Samuel sugeriu que, embora os historiadores estejam preocupados com a pesquisa
empírica, eles incorporam, sem se darem inteiramente conta, as estruturas profundas do “pensamento
mítico” (1998: 14). O pensamento mítico refere-se a visões mais amplas da sociedade como as
representadas em grandes grupos de idéias e mídia como os trabalhos populares e os escritos políticos.
Samuel atribui a adoção deste pensamento místico ao desejo dos estudiosos em estabelecer linhas de
continuidade ou a importância simbólica ligada à permanência da vida nacional ou a uma teleologia não
discutida e não explícita, mas que a tudo engloba.
27
valor distinto como parte da representação da anglicidade. Os tipos de analogias que
foram feitos entre Britânia e Roma, durante os séculos XIX e XX, influenciaram,
profundamente, o caráter dos estudos de Haverfield que, por sua vez, influenciou
aqueles que estavam por vir. Acadêmicos selecionaram imagens de uma história mítica
que projetaria a estabilidade da vida nacional e contribuíram para a representação da
anglicidade. Será argumentado que um dos resultados deste processo foi o
desenvolvimento da Arqueologia Romana na Britânia sob um caráter nacional distinto.
De fato, a teoria arqueológica durante o século XX serviu para projetar muitas visões
populares que substituíram os limites do estado nacional inglês pelo passado romano 25.
Para examinar estes pontos em seguida, estabelecerei cinco tópicos que serão
produzidos para ilustrar a contribuição do romano clássico a representação da
anglicidade.
2. Cinco Tópicos:
Estes tópicos são: os antigos celtas como indianos; o inglês como romano
clássico; a resistência nativa aos romanos; a herança imperial da tocha da “civilização”
e anglicidade.
25
Veja Braund 1996: 179.
26
Por exemplo, Conybeare 1903, Green 1900 e Scarth 1883.
28
não civilizado – os antigos bretões. Muitos perceberam que os antigos bretões eram
mais semelhantes aos povos nativos das colônias do império Britânico moderno do que
a população da Inglaterra. A presença dos romanos também foi atestada por meio da
evidência física dos edifícios e estruturas construídas durante o período de ocupação.
As ruínas dos monumentais e impressionantes edifícios da época romana
sobreviveram ao período moderno (por exemplo, a muralha de Adriano, Wroxeter e
Pevensey)27.
O paralelo entre Índia Britânica e Britânia Romana não era sempre exata, mas
isto não parece ter afetado seu valor. Bertram Windle em seu Vida no início da Britânia
(1897), considerou o caráter essencialmente militar da ocupação romana na Britânia e
mencionou fortes, estradas militares, grandes cidades fortificadas, as muralhas
romanas e as “magníficas villae” que foram construídas por oficiais romanos 30. A villa
em Vectis, no romance de A. J. Church de 1887 era propriedade do Conde da Costa
Saxônica, um oficial que retornou para Roma com o exército durante sua retirada.
Fletcher e Kipling, escrevendo em 1911, viram as villae da Britânia como as casa dos
27
Veja Johnson 1989.
28
Veja Haverfield 1912, Hingley 1995 e Majeed 1999.
29
Haverfield 1912: 19.
29
oficiais imperiais romanos que foram enviados a Britânia ou se estabeleceram
lá; outros autores e artistas também tiveram interpretações similares.
30
Windle 1897: 11. Para visões comparativas veja, por exemplo, Green, 1900: 4-5 e Rait e Parrott 1909:
11.
***
Nota do revisor da tradução: o norte e o oeste representam as duas áreas não inglesas da Grã-
Bretanha, respectivamente a Escócia e o País de Gales.
31
Haverfield 1912: 19.
32
Church 1887: 286.
30
No contexto da imagem das origens teutônicas, muitas das atividades dos
antiquaristas deste período estavam diretamente relacionadas aos monumentos e
vestígios deixados pelos primeiros ingleses medievais – esta época ocupava o espírito
como resultado de sua “religiosidade” e o desejo de permanecer próximo a uma
identidade inglesa34. A Arqueologia dos antigos bretões e dos bretões-romanos
permaneceu relativamente sem desenvolvimento até o início do século XX. A
relevância de ambos, romanos e antigos bretões, para as origens raciais e o destino da
nação parece limitado a muitos vitorianos. Os monumentos de populações pré-
históricas sempre parecem ter tido relevância limitada, enquanto que os fortes
romanos, as villae e cidades, freqüentemente, foram interpretados como as casas e
postos de oficiais e outros colonos da própria Roma 35. Eles eram percebidos, talvez,
para apresentar um paralelo histórico para o estilo de vida dos oficiais britânicos na
Índia, mas não tinham uma ligação direta a história nacional inglesa.
A resistência nativa
33
Ibid.
34
Levine 1986: 98. Veja também Haverfield e Macdonald 1924: 84-7; Smiles 1994: 125 e Henig 1995:
186
35
Haverfield e MacDonald 1924: 84; Levine 1986: 79-84 e Hingley 2000.
36
Por exemplo Trevelyan 1900; Marshall 1905 e O’Neill 1912.
37
Ver Warner 1996, Macdonald 1987, Mikalachki 1998, Williams 1999 e Hingley 2000.
38
O uso de Boadicea como uma figura de inspiração imperial emerge em um poema do século XVIII de
William Cowper (veja Hingley 2000).
31
imagem de Boadicea foi a confecção e levantamento de uma estátua sua por
Thornyscroft na ponte de Westminster em 190239. O desenvolvimento deste culto de
resistência nacional a Roma espelha acontecimentos similares em outros países
europeus durante a segunda metade do século XIX, como a criação de um “teatro
memória” a Vercingetorix por Napoleão III na Alesia40.
39
Thornyscoft 1932, Webster 1978: 2.
40
Dietler 1996; Smiles 1994 e MAN 1994. O conceito de “teatro memória” é derivado de Dietler.
41
Vance 1997: 198.
42
Cramb 1900.
32
No início do século XX escritores sempre expressaram visões semelhantes
ao projetar a Europa moderna e, em particular, a Britânia como herdeira de Roma. O
livro popular de J.C. Stobart A grandeza que era Roma foi publicado em 1912, quando
ele era professor no Trinity College, Cambridge, e o trabalho tem sido reimpresso até
os dias de hoje. Neste livro, o autor argumenta que Roma preencheu um “destino” ou
“função” na história mundial que foi “a criação da Europa” 43. Além disso, a história
romana teve uma função. Roma era “a maior força civilizadora em toda a história da
Europa”. Patriotas britânicos sempre argumentaram que estariam exportando a mais
iluminada forma desta herança da civilização ocidental para diversas partes do globo.
Neste contexto, uma ligação histórica direta entre Roma e Bretanha fora criada.
Em muitos trabalhos eduardianos, o papel fundamental de Roma na civilização dos
bretões é recolocado. No livro popular infantil de H. E. Marshall, A História de nossa
Ilha (1905), o papel de Roma como aquela que trouxe paz e civilização depois da
conquista de 43 d. C. é considerado: os romanos introduziram boas casas, estradas, a
escrita e o cristianismo44. Desta maneira, a conquista romana de quase toda Britânia
tem sido sempre representada como a chave para a origem da História inglesa ou
britânica. A civilização foi introduzida; estradas, cidades e casas de campo foram
construídas. Na cabeça de alguns autores, uma perspectiva teleológica foi
desenvolvida na qual parece que os romanos teriam transferido sua própria civilização
para a Britânia e a Inglaterra, por sua vez, civilizava os povos de seu próprio império.
43
Stobart 1912: 5.
44
Marshall 1905: x.
33
estado ideal. Também era freqüentemente argumentado que estes povos iriam
progredir para um estado moderno através da influência do Império Britânico 46. Esta
tradição redesenhou o passado romano e se tornou parte daquilo se tornou conhecido
como uma perspectiva “eurocêntrica” na qual Roma teria sustentado uma
particularidade singular uma vez que permitiu que a cultura grega clássica fosse
transmitida pelo Ocidente47.
45
Bowler 1989; Bahrani 1999.
46
Bowler 1989: 19; veja também Levine 1986: 74.
47
Bernal 1985, 1994; Lefkowitz e MacLean Rogers (edd.) 1996.
48
1998, 54-60.
49
Ibid.
50
Bernal 1994: 119. Lefkowitz e Maclean Rogers (edd.) 1996 contém um número de respostas aos
comentários levantados por Bernal.
51
Bernal 1994, 119.
34
uma permanente ajudar era tida como necessária52, mas na cabeça dos
colonizadores, isto não invalidava o valor de tal dádiva.
Anglicidade
52
Hingley 2000: 51.
53
Howkins 1986; Stray 1998: 173-9.
54
Howkins 1986.
35
sudeste55. Sugeriu-se que esta era uma história coesiva, oficial e inerentemente
conservadora para ser contada diante da insegurança doméstica e imperial 56. Nos anos
de 1920 desenvolveu-se mais como uma resposta da grande perda de vidas durante a
I Guerra Mundial. Uma grande quantidade de livros de histórias populares, romances e
livros para viagem foram publicados no período entre-guerras com “Inglaterra” em seus
títulos e muitos produziram imagens retrógradas ou passadistas57.
55
Uma grande quantidade de livros importantes focalizava a região rural inglesa do sudeste e ignorava
as do norte e oeste (Breese 1998).
56
Breese 1998.
57
Ibid.
58
Veja observações de Samuel sobre a permanência d vida nacional.
59
Para uma visão contrastante do século XX sobre as origens nacionais que continuaram a ser
produzidas a partir de grupos germânicos veja White 1971.
36
civilizados sobreviveram à invasão anglo- saxã para trazer a civilização a mistura
racial que formou a moderna nação inglesa.
60
Rhys 1882: 100.
61
Scarth 1883: 220.
62
Ibid.
63
Ibid: 181.
64
Ibid: ix.
65
Alguns destes são explorados em Hingley 2000.
37
bretões. Haverfield também argumentou enfaticamente que a idéia de um grande
grupo de colonos romanos vivendo em cidades, fortes e villae entre uma imensa
população de nativos bretões era imprecisa; esta postura ajudou a erradicar a idéia do
celta como indiano67.
Como a civilização romana pode ser transmitida para aos ingleses modernos se
os anglo-saxões massacraram todos os bretões depois da retirada dos romanos? No
final das eras vitorianas e eduardianas, um grande número de autores argumentaram
que elementos da civilização dos romanos passaram para os britânicos modernos
devido à sobrevivência de algumas populações durante a invasão anglo-saxã68. A
existência do cristianismo na antiga Britânia e moderna Bretanha e a suposta
sobrevivência de uma para outra, proporcionou parte do contexto para este desejo de
encontrar a continuidade69.
66
Haverfield 1905, 1912 e 1915.
67
Mesmo depois da publicação deste importante trabalho de Haverfield, no entanto, muitas imagens da
romanização persistiram, como a imagem do indiano/celta que persistiu em alguns segmentos da
sociedade (veja Hingley 2000).
68
Por exemplo, J. Rhys afirmou que era provável que as populações antigas da Britânia sobreviveram a
conquista anglo-saxã (1882), enquanto que H. M. Scarth argumenta que as “colônias” de Roma e a
cultura se espalhou na Britânia sobreviveu a partida dos romanos e a invasão anglo-saxã (1883: ix).
69
Outros trabalhos desenvolveram idéias semelhantes sobre cristianismo e sobrevivência racial (veja
Conybeare 1903 e Locke 1878).
70
1915: 6.
71
Ibid.
38
O autor afirmou que esta mistura produziu “um povo forte e de sucesso” e
argumentou que “as muitas e grandes diversidades ... no Império Britânico irá ... ser,
em última instância, uma fonte de força e não de fraqueza” 72. Na visão de Lucas, esta
herança romana tem um papel imperial distinto para o inglês no mundo moderno 73.
Depois da I Guerra Mundial, esta idéia da força racial derivada de uma mistura
étnica continuou a ser desenvolvida. Alguns relatos deste período consideram, com
grandes detalhes, as maneiras nas quais a Bretanha moderna estava relacionada a
Roma clássica. Neste sentido, eles redefiniram o caminho no qual a tocha da
civilização foi transferida entre os dois impérios tão distanciados pelo tempo. Como
72
Ibid.
73
Hingley 2000.
74
Symonds 1986: 51-3.
75
Os “distritos civis” da Britânia romana de Haverfield cobrem somente as terras baixas, o norte e oeste
permaneceram como um “distrito militar” .
39
resultado, uma forte idéia teleológica das origens nacionais lineares inglesas
continuaram a se desenvolver mesmo depois do final da Primeira Guerra.
76
Collingwood 1923: 100.
77
Ibid: 101.
78
Baldwin (1867-1947) foi educado no Harrow e Trinity College, Cambridge. Foi primeiro-ministro da
Grã-Bretanha em várias ocasiões entre 1923 e 1936.
40
A idéia da ancestralidade romana dos ingleses parece ter se tornado um tópico
importante nos anos de 1920. Arthur Weigall, seu livro Errantes pela Britânia Romana
(1926) expressa um desejo de demonstrar uma conexão próxima dos britânicos “do
presente” e os romanos80. Os romanos trouxeram civilização para os britânicos, mas “...
o sangue dos romanos” somente passou por 45 pessoas para “atingir nossas
veias...”81. Aceitou que depois da queda de Roma, a chegada dos anglo-saxões e
normandos aumentaram a mistura; no entanto, considerou que o sangue de diversos
romanos está nas veias dos ingleses82. Observando a invasão romana, considerou que
ela “introduziu em nosso sangue algo da ‘grandeza que foi Roma’ que ajudou a enviar-
nos a aventura e conquista de toda a face da terra”83.
A popularidade do conceito de origem racial mista, nesta época, pode ser vista
em um contexto de desejo de encontrar uma ideologia que pudesse unir supostas
raças brancas da Inglaterra, Grã-Bretanha e o Império. Ao mesmo tempo, como
pudemos perceber, isto deu ao inglês um papel imperial diferenciado dentro do Reino
Unido, como herdeiros da civilização imperial romana. Isto pode também, no entanto,
refletir um consenso sobre a crescente ameaça política da Alemanha neste período e o
desejo de criar uma clara distinção racial entre ingleses e alemães.
79
1926: x.
80
Weigall 1926: 16.
81
Ibid: 20. Também considerou uma certa mistura do sangue anglo-saxão e normando, mas desejou,
evidentemente, enfatizar a conexão das populações britânicas modernas com os bretões/romanos
civilizados.
82
Weigall, 1926: 20.
83
Ibid: 28.
84
Alguns outros relatos importantes são considerados em Hingley 2000.
41
se desenvolver muito bem ainda no século XX85. Por exemplo, Humfrey Grose-Hodge
publicou seu livro Panorama romano: a base para hoje em 1944, um pouco antes do
final da II Guerra Mundial. Grose-Hodge sugeriu que embora o povo romano tivesse
morrido há muito tempo, a Itália fascista não percebeu o fato. O caráter do povo
romano, no entanto, continuou como “ancestral direto” dos ingleses 86. Afirmou que “...
em ações, somos romanos”87.
85
A idéia de que a força da nação inglesa deriva mistura racial no estabelecimento da ilha ainda existe
na sociedade contemporânea britânica (veja o comentário de Norman Tebbit, destacado por Wlash,
1997: 87).
86
1944: 10.
87
Ibid.
42
3. Resumo:
88
Veja Clark 1939; Manacorda e Tamassia 1985; Moati 1993: 130-42; Quatermaine 1995; Stone 1999 e
Terrenato 1998.
89
Por exemplo, Hawkes e Hawkes 1947. Jones discute uma idéia contrária ao mito germânico nos
primórdios da arqueologia medieval (1996), mas a idéia de origem racial mista dominou muito o
pensamento arqueológico, particularmente nos estudos de pré-história.
90
Rivet 1958: 29.
43
deveriam estar em sua cabeça92. Muitos textos de princípios do século XX possuem
uma visão linear e teleológica da história doméstica inglesa. Alguns relatos parecem
sugerir que os romanos transmitiram para os ingleses uma civilização romano/britânica
singular que conduziu diretamente a Inglaterra moderna. Como resultado, o espírito
inglês é traçado em direção ao passado romano de uma maneira na qual os nativos
puderam adotar a civilização romana e aperfeiçoá-la em um esforço ativo de criar a
Inglaterra moderna. O bravo espírito dos antigos bretões que se opuseram a Roma fora
incorporado a esta distinta mistura racial inglesa. Como Rivet enfatizou, algumas
gravuras populares da Britânia romana deu uma visão nacionalista de uma província
britânica civilizada – um conceito inerentemente excludente. O interesse sobre linhas
de continuidade na vida nacional da Inglaterra estruturou trabalhos acadêmicos e
populares e a Arqueologia romana teve um papel distinto. Teorias arqueológicas e
objetos recolhidos por meio da prática arqueológica ajudaram a justificar as imagens de
anglicidade.
91
Ibid.
92
Acrescenta-se ainda que neste artigo Rivet criticou a interpretação Britânia romana de Rudyard Kipling
no livro Puck of Pook’s Hill pela interpretação nacionalista do passado e este trabalho deveria estar em
sua cabeça quando escreveu os comentários de 1958 (Rivet 1976, Hingley 2000).
44
O trabalho de Haverfield teve a maior influência no desenvolvimento desta
ênfase nacionalista na Arqueologia romana sobre a Britânia. A teoria de Haverfield
sobre a Romanização serviu para sustentar uma tradição que se desenvolvia em seu
tempo. Proporcionou credibilidade acadêmica para a idéia que uma ligação racial direta
levava a civilização romana até a moderna Inglaterra. O trabalho de Haverfield foi
utilizado por outros estudiosos de uma maneira não pretendida por ele 94; de fato, os
comentários de Rivet sugerem que este é o ponto. É provável, no entanto, que o
trabalho de Haverfield fora inspirado em um desejo inconsciente de estabelecer linha
de continuidade na história nacional por meio da herança da Inglaterra da civilização
européia. Isto pode ter gerado um caminho lógico para desenvolver uma idéia de
romanização no período eduardiano, mas argumentaria que tais interesses sobre a
herança da civilização ocidental criaram uma ênfase nacional particular na
aproximação da Britânia romana e a identidade ocidental 95. Estudiosos modernos que
estudaram a Britânia romana herdaram esta ênfase nacional e gostariam, agora, de
reconsiderar tais aproximações ao passado romano. A reintegração dos estudos
romano/britânicos nos estudos clássicos mais amplos serve para questionar este
problema96, mas para procurar acabar com esta situação, é fundamental que aspectos
eurocêntricos da Arqueologia Clássica também sejam objeto de uma crítica adequada.
93
Hingley 2000.
94
Freeman indicou, claramente, os contatos europeus de Haverfield e o interesse sobre os estudos dos
romanos no Continente e, portanto, sua sugestão que o interesse de Haverfield está focalizado na
Europa Ocidental como um todo é apropriado (Freeman 1996. Veja também MacDonald 1924).
95
Veja os comentários da introdução como base para esta hipótese.
96
Veja Hingley 2000, 165.
45
Bibliografia citada:
46
Colls, R. 1986. “Englishness and the Political Culture,” in R. Colls e P. Dodd
(edd.), Englishness: politics and culture 1880-1920 (London): 29-61.
Conybeare, E. 1903. Early Britain, Roman Britain. Society for Promoting Christian
Knowledge (London).
Cowper, W. 1782. “Boadicea: an ode,” in H. S. Milford (ed.) Cowper: poetical works (4th
edition, London): 310-311.
Cramb, J. A. 1900. Reflections on the Origins and Destiny of Imperial Britain (London).
Deletant, D. 1998. “Rewriting the Past: trends in contemporary Romanian
Historiography”, in D. Daletant e M. Pearton (edd.) Romania Observed: studies in
contemporary Romanian History (Bucharest): 276-303.
Díaz-Andreu, M. e Champion, T. (edd.) 1996.Nationalism and Archaeology in Europe
(London).
Dietler, M. 1998. “A tale of three sites: the monumentalization of Celtic oppida and the
politics of collective memory and identity,” World Archaeology 30: 72-89.
Edwards, C. 1999. “Introduction: shadows and fragments,” in C. Edwards (ed.), Roman
Presences: receptions of Rome in European Culture, 1789-1945 (Cambridge): 1-
18.
Edwards, C. (ed.) 1999. Roman Presences: receptions of Rome in European Culture,
1789-1945 (Cambridge).
Eldridge, C. 1996 The Imperial Experience from Carlyle to Forster (London).
Farrell, J. 2001. Latin Language and Latin Culture: from ancient to modern times
(Cambridge).
Freeman, P. W. M. 1996. “British imperialism and the Roman Empire,” in J. Webster
and N. Cooper (edd.), Roman Imperialism: post-colonial perspectives (Leicester):
19-33.
Freeman, P. W. M. 1997. “Mommsen through to Haverfield: the origins of Romanization
studies in late 19th-c. Britain,” in D. Mattingly, (ed.), Dialogues in Roman
imperialism: power, discourse, and discrepant experiences in the Roman Empire
(Journal of Roman Archaeology, Portsmouth. Rhode Island): 27-50.
47
Galinsky, K. 1992. Classical and Modern Interactions: postmodern architecture,
multiculturalism, decline and other issues (Austin).
Graves-Brown, P., Jones, S. e Gamble, C. (edd.) 1996. Cultural Identity and
Archaeology: the construction of European Communities (London).
Green, G. E. 1900. A Short History of the British Empire for the use of junior forms
(London).
Grose-Hodge, H. 1944. Roman panorama: a background for to-day (Cambridge).
Habinek, T. N. 1998 The Politics of Latin Literature: writing, identity, and empire in
ancient Rome (Princeton).
Hall, E. 1989. Inventing the Barbarian: Greek self-identification (Oxford).
Hardie, P. 1992. “Augustan Poets and the Mutability of Rome”, in Powell, A. (ed.)
Roman Poetry and Propaganda in the Age of Augustus (Bristol): 59-82.
Haverfield, F. 1905. “The Romanization of Roman Britain,” Proceedings of the British
Academy, 2: 185–217.
Haverfield, F. 1912. The Romanization of Roman Britain (2nd edition, Oxford).
Haverfield, F. 1915. The Romanization of Roman Britain (3rd edition, Oxford).
Haverfield, F. and Macdonald, G 1924. “The study of Roman Britain: a retrospect,” in F.
Haverfield and G. Macdonald, The Roman Occupation of Britain: being six Ford
Lectures delivered by F. Haverfield (Oxford): 59-88.
Hawkes, J. e Hawkes, C. 1947. “Land and People,” in E. Barker (ed.), The Character of
England (Oxford): 1-28.
Henig, M. 1995. The Art of Roman Britain (London).
Hingley, R. 1991. “Past, present and future—the study of the Roman period in Britain”,
Scottish Archaeological Review, 8: 90–101.
Hingley, R. 1995. “Britannia, Origin Myths and the British Empire,” in S. Cottam, D.
Dungworth, S. Scott and J. Taylor (edd.), TRAC94. proceedings of the fourth
annual Roman Theoretical Archaeology Conference, Durham 1994 (Oxford): 11-
23.
48
Hingley, R. 1996. “The ‘legacy’ of Rome: the rise, decline and fall of the theory of
Romanization,” in J. Webster and N. Cooper (edd.), Roman Imperialism: post-
colonial perspectives (Leicester): 35-48.
Hingley, R. 2000. Roman Officers and English Gentlemen: imperialism and the origin of
archaeology (London).
Hingley, R. No prelo a. ‘Images of Rome’, in R. Hingley (ed.) forthcoming Images of
Rome: Perceptions of Rome in Europe and the United States of America in the
Modern World (Journal of Roman Archaeology 2001).
Hingley, R. No prelo b. ‘An imperial legacy – the contribution of classical Rome to the
character of the English’, in R. Hingley (ed.) forthcoming Images of Rome:
Perceptions of Rome in Europe and the United States of America in the Modern
World (Journal of Roman Archaeology 2001).
Hingley, R. (ed.) No prelo. Images of Rome: Perceptions of Rome in Europe and the
United States of America in the Modern World (Journal of Roman Archaeology
2001).
Howkins, A. 1986. “The discovery of rural England,” in R. Colls and P. Dodd (edd.),
Englishness: politics and culture 1880-1920 (London): 62-88.
Hupchick, D.P. 1994. Culture and History in Eastern Europe (New York).
Jenkyns, R. (ed.) 1980. The Victorians and Ancient Greece (Oxford).
Jenkyns, R. (ed.) 1992. The Legacy of Rome: a new appraisal (Oxford).
Johnson, S. 1989. Rome and its Empire (London).
Jones, M 1996. The End of Roman Britain (London).
Jones, S. e Graves-Brown, P. 1996. “Introduction: archaeology and cultural identity in
Europe”, in P. Graves-Brown, S. Jones and C. Gamble (edd.) Cultural Identity
and Archaeology: the construction of European Communities (London): 1-24.
Jones, W. R. 1971. “The image of the barbarian in Medieval Europe”, Comparative
Studies in Society and History 13: 376-407.
Judd, D. 1996. Empire: the British imperial experience, from 1765 to the present
(London).
Kipling, R. 1906. Puck of Pook’s Hill. Reprinted 1989 (London).
49
Koebner, R. e Schmidt, H. Dan 1964. Imperialism: the story and significance of a
political word (Cambridge).
Kohl, P. C. e Fawcett, C. (edd.) 1995. Nationalism, Politics and the practice of
archaeology (Cambridge).
Lefkowitz, M. R. e MacLean Rogers, G. 1996. Black Athena Revisted (London).
Levine, P. 1986. The amateur and the professional: antiquarians, historians and
archaeologists in Victorian England, 1838-1883 (Cambridge).
Liverani, M 1996. “The Bathwater and the Baby”, in M. R. Lefkowitz. and G. MacLean
Rogers Black Athena Revisted (London): 421-27.
Locke, W. 1878. Stories of the Land we Live in: or England’s history in simple language
(London).
Lucas, C. P. 1915. The British Empire: six lectures (London).
Macdonald, G. 1924. “Bibliographical notice,” in F. Haverfield and G. Macdonald The
Roman Occupation of Britain: being six Ford Lectures delivered by F. Haverfield
(Oxford): 15-37.
Macdonald, S. 1987. “Boadicea: warrior, mother and myth,” in S. Macdonald, P. Holden
and S. Ardener (edd.), Images of Women in Peace and War (London): 40-62.
MacDougall, H. A. 1982. Racial Myths in English History: Trojans, Teutons and Anglo-
Saxons (London).
Majeed, J. 1999. “Comparativism and references to Rome in British imperial attitudes to
India,” in C. Edwards (ed.), Roman Presences: receptions of Rome in European
Culture, 1789-1945 (Cambridge): 88-109.
MAN 1994. (Musée des Antiquités nationales) Vercingetorix et Alesia (Paris).
Manacorda, D. and Tamassia, R. 1985. Il piccone del regime (Rome).
Marshall, H. E. 1905. Our Island Story: A history of Britain for boys and girls (London).
Mattingly, D. 1996. “From one colonialism to another: imperialism and the Maghreb”, in
J. Webster and N. Cooper (edd.) Roman Imperialism: post-colonial perspectives
(Leicester:): 49-70.
50
Meskell, L. 1999. “Introduction: archaeology matters”, in L. Meskell (ed.)
Archaeology under fire: nationalism, politics and heritage in the Eastern
Mediterranean and Middle East (London): 1-12.
Meskell, L. (ed.) 1999. Archaeology under fire: nationalism, politics and heritage in the
Eastern Mediterranean and Middle East (London).
Mikalachki, J. 1998. The Legacy of Boadicea: Gender and nation in early modern
England (London).
Moatti, C. 1993. The Search for Ancient Rome (London).
O’Neill, E. 1912. A Nursery History of England (London).
Pagden, A. 1995. Lords of all the world: ideologies of Empire in Spain, Britain and
France c 1500-c1800 (London).
Patterson, T. C. 1997. Inventing Western Civilization (New York).
Quartermaine, L 1995. “‘Slouching towards Rome’: Mussolini’s imperial vision,” in T.J.
Cornell and K. Lomas (edd.), Urban Society in Roman Italy (London): 203-216.
Rait, R. S. e Parrott, J. E. 1909. Finger-Posts to British History: a summary with notes,
of the historical events from the earliest time to the year 1908 (London).
Rhys, J. 1882. Early Britain – Celtic Britain (London).
Rivet, A. L. F. 1958. Town and Country in Roman Britain (London).
Rivet, A. L. F. 1976. Rudyard Kipling’s Roman Britain: fact or fiction (Keele).
Robbins, K. 1998. Great Britain: identities, institutions and the idea of Britishness
(London).
Romm, J.S. 1992. The Edges of the Earth in Ancient Thought: geography, exploration,
and fiction (Princeton).
Samuel, R. 1998. Island Stories: Unravelling Britain - Theatres of Memory, Volume II
(London).
Scarth, H. M. 1883. Early Britain, Roman Britain (London).
Shaw, B.D. 1983. “‘Eaters of Flesh, Drinkers of Milk’: the ancient Mediterranean
ideology of the pastoral nomad”, Ancient Society 13/14: 5-31.
Smiles, S. 1994. The Image of Antiquity: Ancient Britain and the romantic imagination
(London).
51
Smith, A. D. 1986. The Ethnic Origins of Nations (Oxford).
Stobart, J. C. 1912. The Grandeur that was Rome: A survey of Roman culture and
civilization (London).
Stocking, G. W. 1987. Victorian Anthropology (Oxford).
Stone, M. 1999. “A flexible Rome: Fascism and the cult of romanità,” in C. Edwards
(ed.), Roman Presences: receptions of Rome in European Culture, 1789-1945
(Cambridge): 205-220.
Stray, C. 1998. Classics Transformed: schools, universities, and society in England,
1830-1960 (Oxford).
Symonds, R. 1986. Oxford and Empire: the last lost cause? (London).
Terrenato, N. 1998. “The Romanization of Italy: global acculturation or cultural
bricolage?” in C. Forcey, J. Hawthorne, e R. Witcher (edd.), TRAC97:
Proceedings of the Seventh Annual Theoretical Roman Archaeology Conference
Nottingham 1997 (Oxford): 20-7.
Thornycroft. E. 1932. Bronze and Steel: the life of Thomas Thornycroft, sculptor and
engineer (Long Compton).
Trevelyan, M 1900. Britain’s Greatness Foretold: the story of Boadicea, the British
Warrior-Queen (London).
Trigger, B. G. 1984 “Alternative archaeologies: nationalist, colonialist, imperialist”, Man
19, 355-70.
Trigger, B. G. 1989. A History of Archaeological Thought (Cambridge)
Turner, F. M. 1981. The Greek Heritage in Victorian Britain (London).
Vance, N. 1997. The Victorians and Ancient Rome (Oxford).
Walsh, K. 1997. The Representation of the Past: museums and heritage in the post-
modern world (Reprint, London).
Warner, M. 1996. Monuments & Maidens: the allegory of the female form (Reprint,
London).
Webster, G. 1978. Boudica: the British Revolt against Rome AD 60 (London).
52
Webster, J. 1996. “Ethnographic barbarity: colonial discourse and ‘Celtic Warrior
Societies’”, in J. Webster and N. Cooper (edd.) Roman Imperialism: post-colonial
perspectives (Leicester): 111-124.
Webster, J. 1999. “Here be Dragons! The continuing influence of Roman attitudes to
northern Britain”, in B. Bevan (ed.) Northern Exposure: interpretative devolution
and the Iron Ages in Britain (Leicester): 21-32.
Webster, J. e Cooper, N. (edd.) 1996. Roman Imperialism: post-colonial perspectives
(Leicester).
Weigall, A. 1926. Wanderings in Roman Britain (London).
White, D. A. 1971. “Changing Views of the Adventus Saxonicum in Nineteenth and
Twentieth Century English Scholarship,” Journal of the History of Ideas, 32: 585-
94.
Williams, C. 1999. “‘This frantic woman’: Boadicea and English neo-classical
embarrassment,” in M. Wyke and M. Biddiss (edd.) The Uses and Abuses of
Antiquity (Bern): 19-36.
Windle, B. C. A. 1897. Life in early Britain: being an account of the early inhabitants of
the island and the memorials which they have left behind them (London).
Windle, B. C. A. 1923. The Romans in Britain (London).
Woolf, G. 1998. Becoming Roman: the origins of provincial civilisation in Gaul
(Cambridge).
Wyke, M. 1997. Projecting the past: ancient Rome, cinema and history (London).
Wyke, M. 1999. “Sawdust Caesar: Mussolini, Julius Caesar, and the drama of
dictatorship”, in M. Wyke and M. Biddiss (edd.) The Uses and Abuses of
Antiquity (Bern): 167-86.
Wyke, M. e Biddiss, M. 1999. “Introduction: using and abusing antiquity”, in M. Wyke
and M. Biddiss (edd.) The Uses and Abuses of Antiquity (Bern): 13-18.
Wyke, M. e Biddiss, M. (edd.) 1999 The Uses and Abuses of Antiquity (Bern).
A História é definida por sua forma, antes que por seu conteúdo. O quê é a História? Para que possamos
tratar disso, convém começar por diferenciar dois sentidos muito diferentes da palavra ‘História’. Com H maiúsculo,
é o nome de uma disciplina, que não se confunde com história, aquilo que ocorreu no passado. Em nossa língua,
assim com em diversas outras línguas de origem latina, história costuma designar, a um só tempo, aquilo que se
passou e o relato sobre o passado. Os dois termos, contudo, não se confundem. Em alemão, diferencia-se, de forma
clara, o passado, aquilo que se passou (die Geschichte) e o relato do passado (die Historie), usando o alemão o verbo
Notemos que a própria palavra História, hoje tão corriqueira, é uma adventícia, um termo erudito que não
possui sentido em nossa língua portuguesa ou em qualquer das outras línguas modernas ocidentais. Historie, history,
histoire, storia, História, nenhuma delas encontra explicação para seu sentido no alemão, inglês, françês, italiano ou
português. Historia é uma palavra do grego antigo, derivada de histor, “investigar, pesquisar” e significava, em sua
língua de origem, “pequisa” em geral. Este sentido lato da palavra, de certa forma, ainda persiste em português, por
Heródoto foi o primeiro a usar a expressão historia para designar uma pesquisa sobre as causas dos
conflitos entre gregos e persas, incluindo uma investigação sobre o passado, mas não restrito a ele. Heródoto
investigou os costumes dos povos, ouviu seus relatos sobre seu passado e redigiu um grande apanhado que trata, ao
mesmo, do presente de sua época e do passado. Heródoto, já na antigüidade foi, por isso, chamado de pai da
História, pois ele inventou uma nova forma literária, um novo gênero: o relato de pesquisa que inclui o passado. O
termo historia passou, assim, a designar uma forma de expressão literária, preocupada com a aisthesis, com a
percepção e com a impressão estética que este relato causa no leitor. História como gênero literário, iniciado por
97
Professor Titular, Departamento de História, IFCH-UNICAMP, C. Postal 6110, Campinas, SP, 13081-970,
ppfunari@uol.com.br, Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP.
54
Heródoto, continuará no Ocidente até o século XIX, quando da introdução de novos conceitos, como veremos
adiante.
Tucídides será o grande consolidador da nova forma literária História, com seu relato sobre a Guerra do
Peloponeso. Sua narrativa, assim como para Heródoto, parte do presente, da busca das causas (aitiai) da Guerra que
testemunhou entre os próprios gregos. Tucídides, testemunha ocular de muitos episódios que narra, recria, em sua
obra, inúmeros discursos de personagens, como no caso notável de Péricles. Os discursos foram escritos por
Tucídides e são verdadeiros exercícios de retórica e, em certo sentido, podemos dizer que a própria forma literária
De fato, foi a vida citadina, a disputa em praça pública, por meio do embate de um rhetor (“autor de uma
arenga”) com outro, que surgiu a nova forma de expressão. A polis criou o cidadão (polités), sujeito autônomo em
seu poder de fala em praça pública. A agorá (praça do mercado e local de reuniões da assembléia) era o local onde
se podia falar (legein), juntar (legein) conceitos e argumentos, em um discurso (logos), resultado da razão (logos). O
conceito mesmo central de logos deriva da importância da arte da persuasão retórica (peithein).
A forma narrativa “História”, neste contexto, não poderia deixar de representar um tipo específico de
persuasão, de retórica sobre as causas dos acontecimentos. Heródoto e Tucídides não queriam apenas narrar ou
explicar, defendiam, mirando-se nos logoi da praça pública, um ponto de vista sobre a sociedade da qual faziam
parte, Atenas, e seu sistema político, fundado, precisamente, na isegoria (“igualdade de fala, liberdade de
expressão”). Assim como os discursos, a narrativa histórica deve convencer pela beleza, forma, palavra latina que
significa, a uma só vez, a aparência e a formosura e que bem traduz os conceitos gregos de morphé (forma), skhêma
(esquema), taksis (ordem), pois a forma implica uma estruturação, uma ordenação dos argumentos e dos elementos.
A forma histórica consolida-se, a partir do século V a.C. e perdura, em ambiente latino, calcada em
recursos narrativos retóricos, em particular nos discursos reportados em linguagem direta ou indireta. Essa narrativa
histórica aparece, também, na iconografia antiga, como no famoso mosaico da Casa do Fauno, em Pompéia, baseado
55
em pintura de época helenística, da Batalha de Issus. O mosaico pompeiano deve ter sido executado antes de 100
a.C. e reproduz, com relativa fidelidade, o original. O tema do confronto entre Alexandre, o Grande, e Dario, entre a
civilização helênica e o mundo oriental, consubstanciava-se, de forma extraordinária, nesta representação. A ordem
(taksis) das tropas gregas opõem-se à desordem das fileiras persas, assim como a razão (logos) se contrapõe à
desrazão oriental. Alexandre é apresentado com suas feições, semelhante aos seus companheiros, um homem entre
homens, a comandar pela razão e em nome da razão. Dario aparece todo paramentado, um soberano que não possui
concidadãos, mas súditos, constituindo não uma koinonia (comunidade) sob regras (nomoi, “regras feitas pelos
homens”), mas um bando, uma horda desregrada que apenas deve obedecer ao despotés (“senhor de escravos”)
Dario.
Ocidente, irracional, imutável, entregue ao despotismo e cuja libertação dependeria da ação providencial do discurso
lógico, da racionalidade e da retórica ocidentais, filhas da Grécia clássica. Ao longo das décadas de domínio
colonial, até a descolonização dos anos 1960, fazia-se uma analogia entre a ação civilizadora dos europeus e a
vitória helênica sobre o oriente, como Pierre Jouguet deixava claro em 1927 a respeito desta vitória de Alexandre:
“O Helenismo consquistou o Oriente pelas armas da Macedônia e por suas próprias instituições...não há
dúvida de que a civilização ocidental se apoia na concepção grega e que ela seja constituída pelo livre jogo das
A História continua, pois, como uma narrativa impregnada de retórica. Desde o século XIX, a disciplina
adquiriu, contudo, feições próprias, abandonando sua postura de forma literária, para constituir-se em ciência, uma
forma de conhecimento, Wissenschaft (wissen significa conhecer). Para Leopold von Ranke, em 1823, a História
deveria descrever aquilo que efetivamente aconteceu, wie es eingentlich gewesen. Afastava-se, assim, de forma
programática, a forma literária, em benefício da descrição positiva do passado, tal como reportado nos documentos.
Seria apenas no século XX que o caráter narrativo, a forma do discurso historiográfico, voltaria à baila e retornaria a
56
A retórica, na Antigüidade presente, de forma direta, nos discursos dos personagens históricos e na
iconografia, aparece, em nossa época, de forma mais mediada. A persuasão dá-se pela uso seletivo das fontes, pelo
arranjo dos argumentos, pela seleção de um repertório de imagens e de elementos da cultura material que se
conformam à cadeia explicativa posta em marcha pelo historiador. A forma volta a ser importante, a beleza de uma
frase ou de título de livro adquire importância e retorna-se, de maneira original, a uma história ancorada na forma,
volta-se à forma literária, ainda que em um contexto muito diverso daquele antigo.
A História é uma forma literária surgida no século V a.C., mas o relato é muito anterior. Mythos significa,
justamente, “relato”, “uma narrativa”, uma “história”, sem qualquer conotação de veracidade ou falsidade. Os mitos
são histórias repetidas, trazidas de pai para filho pela repetição. Como diziam os latinos, trazidas e, daí, tornadas
tradição. Os relatos míticos eram aceitos como parte da transmissão dos antigos sobre o universo, suas origens e seu
funcionamento. Segundo essa tradição, haveria os imortais (os deuses), os mortais e os heróis, mortais que podiam
se tornar imortais ou deuses. Os heróis foram os principais protagonistas da épica, dos grandes poemas fundadores
A forma épica corresponde a um período histórico preciso, a uma sociedade aristocrática de princípios do
primeiro milênio a.C. Os heróis representam bem essa sociedade aristocrática, pois são os “melhores” (aristoi),
superiores aos outros, mas, em princípio, simples mortais, mesmo se filhos de deuses ou deusas. Não se distinguem
dos outros mortais, não são invulneráveis ou possuem poderes físicos ou metafísicos extraordinários. Representam,
contudo, a excelência humana, grandes, belos, fortes, são os nobres reis e poderosos guerreiros. São dotados de
coragem, a quintessência da aristocracia, como mostra um passo qualquer da Ilíada (XII, 310-322):
“Glauco, porquê nos dão tantos privilégios na Lícia, lugares de honra, carnes, taças cheias? Porquê nos
tratam todos ali como se fossemos deuses? Porquê possuímos, às margens do Ksanto, uma imensa propriedade, uma
57
bela herdade apropriada tanto para a criação como para o cultivo do trigo? Nosso dever, então, não é, hoje, por
justiça, estarmos na primeira fila dos Licianos, para responder ao chamado a uma dura batalha? Os licianos
encouraçados poderão, assim, se expressar: ‘Não são sem glória, os reis que comandam na nossa Lícia, comem
carneiros pingues e bebem o vinho doce escolhido. Possuem também, parece, o vigor dos bravos, já que estão na
Possuem glória (timé, a boa fama), são como deuses, possuem a coragem dos grandes homens, areté. São,
também e de forma sintomática, agraciados com grandes propriedades, pois os heróis são uma representação dos
A historiografia surgida no século V a.C. virá a florescer em outro contexto, na polis onde já não dominam
(“conjunto de cidadãos, república, constituição”) é o conjunto de politai, cidadãos de iguais direitos (isonomia,
“submetidos à mesma lei humana”). Já não é a justiça divina a governar os heróis, a themis, mas a ordem jurídica
feita pelos homens, por meio de leis (nomoi), mutáveis, resultado da ação de membros livres da comunidade. Neste
novo contexto, surge a historiografia e os heróis já não são aqueles da épica aristocrática. Tucídides (2, 65) assim
“Péricles, por sua posição, habilidade e reconhecida integridade, era capaz de controlar, de forma
independente, a multidão, conduzir os muitos, em vez de ser conduzido. Nunca tentou obter o poder de forma
imprópria e, por isso, nunca teve que adulá-los mas, ao contrário, era tão estimado que podia contradizer seus
desejos. Quando os via descontrolados de forma insolente e devido às circunstâncias, ele os deixaria alarmados. Se,
ao contrário, estivessem em meio ao pânico, de imediato lhes faria tornar a confiança. Em resumo, o que era, no
As virtudes do herói já não são aquelas da épica homérica, pois estava centrada em suas habilidades
oratórias, no logos. Não se tratava de impor decisões, mas de apresentar argumentos bem estruturados, lógicos e
58
racionais, conceitos encapsulados no próprio termo logos. O herói não passa de um concidadão, ainda que, por
convencimento pela retórica, seja considerado como o primeiro cidadão. No mundo das cidades, só existem
cidadãos e as virtudes não estão apenas na força bruta da bravura militar, mas no domínio da palavra.
Como resultado, na historiografia antiga destacam-se os discursos dos grandes personagens, cuja oratória
constitui, de certa forma, a prova da sua excelência. O primeiro historiador latino, Salústio, construiu sua narrativa a
partir da recriação dos grandes discursos em praça pública. O discurso de Mário, ao assumir o consulado pela
primeira vez, homem sem origem nobre e cujos méritos eram só seus, na recriação de Salústio (Guerra de Jugurta,
85), desafiava:
“Comparai-me, homem novo, com a arrogância daqueles [sc. nobres], ó concidadãos. Isto que costumam
ouvir dizer ou ler, vi ser feito, ou eu mesmo fiz. Aprendem-nas pelo estudo e eu no campo de batalha. Agora,
estimai o que vale mais, atos ou palavras? Eles condenam minha condição de homem novo; eu, sua covardia. O que
levantam contra mim é um fruto acaso; o que se reprova neles é a desonestidade. Ainda que considere a natureza
humana única e comum a todos, penso que o mais nobre é o mais corajoso. E se me fosse dado perguntar, agora, aos
pais de Albino e de Béstia [sc. nobres] se prefeririam a mim ou àqueles como descendentes, que pensais que
O herói não possui nobreza de sangue, não possui nome e sobrenome, não tem antepassados ilustres, só lhe
restam seus próprios méritos. Este herói, muito propositadamente, com este discurso, estava por iniciar o
recrutamento de proletários no exército romano, em 111 a.C., até então composto somente por quem pudesse se
armar. Mário é um herói por méritos próprios, assim como aqueles cuja pobreza serão arrolados na milícia. É pela
arenga do herói que Salústio descreve uma importante mudança social, econômica e, em última instância, política.
Este processo, iniciado por Mário, irá culminar com seu herdeiro político, Caio Júlio César, outro grande heroi, cuja
figura marcará o grande historiador moderno Theodor Mommsen, autor de “César, Retrato de uma estadista” (1857),
cujas palavras conclusivas são claras: “Assim atuou e agiu César, como nenhum mortal, antes ou depois dele”. O
59
uso da palavra “mortal”, Sterblicher, relaciona o personagem do historiador aos heróis “mortais” da mais
Não apenas a historiografia expressou, plasticamente, a heroicidade. A Estátua de Augusto como Pontifex
Maximus, encontrada em 1910 na Via Labicana, em Roma, e hoje custodiada no Museo Nazionale Romano
representa a expressão material e icônica dessa forma heróica. Augusto está representado em sua maturidade, sua
cabeça coberta com uma toga, a sacrificar. A face é representada com grauitas, irradiando um ar majestático e de
domínio. Augusto é, à semelhança de Péricles, um princeps, o primeiro cidadão, nunca rei, um homem de
qualidades excepcionais, à maneira de Mário, que se forjou a si mesmo, ainda que patrício (como César). Augusto,
título que lhe foi conferido pelo senado, significa “abençoado” pelos deuses e, assim como César, após a morte, sua
deificação aproxima, uma vez mais, os mortais dos deuses. Augusto, sintomaticamente, será homenageado pelo
maior poema épico latino, a Eneida, de Virgílio e pela mais ampla obra historiográfica romana, a História de Tito
Agradecimentos
Uma versão deste ensaio foi publicada em www.historiaehistoria.com.br. Agradeço a Janice Theodoro da Silva e
menciono o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP), FAPESP, CNPq e Centro de
Apresentação,
por Renata Cardoso Beleboni
60
Nesta conferência, Vernant aborda a questão da morte heróica, principalmente nos
textos literários antigos, comparando-a com o problema da morte comum. Neste contexto, o
helenista procurou esclarecer algumas atitudes e reflexões relacionadas à morte dentro de um
contexto cultural maior no qual compreende haver uma tentativa de ‘civilizar a morte’.
Jean-Pierre Vernant
Devo vos falar, nesta noite, da morte heróica na Grécia. Não é fácil. Não sei realmente
por qual parte começar, pois são numerosas. O mais simples é começar pelo personagem que
encarna aos nossos olhos e, antes aos olhos dos Gregos, o ideal de homem heróico e da morte
heróica: Aquiles. Nas narrativas que fazem referência a ele, não somente na Ilíada, mas nas
histórias lendárias que nos foram transmitidas por outras fontes, o dilema está claramente
colocado conforme sua decisão sobre uma escolha, quase metafísica, entre duas formas de vida
que se opõem. Aquiles é filho de um simples mortal, Peleu, e de uma deusa, Tétis – ela tentou
escapar desta união com um mortal que os deuses lhe impuseram, tomando toda espécie de
forma. Finalmente, o velho Peleu uniu-se a ela e tiveram muitos filhos de natureza ambígua e
que Tétis queria imortalizar. No caso de Aquiles, tomando-o pelo calcanhar, ela o imerge, recém-
98
VERNANT, Jean-Pierre. La Mort Heroïque Chez Les Grecs. Paris: Èditions Pleins Feux, 2001, pp. 11-34.
Tradução de Renata Cardoso Beleboni e revisão de Pedro Paulo A. Funari. Os nomes próprios gregos foram vertidos
segundo o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Lisboa, Academia de Ciências de Lisboa, 1940, salvo
nos casos de vocábulos não coligidos pela Academia.
61
nascido, nas águas do Estige. Se ele chegasse a escapar desta prova terrificante, pois Estige é,
de uma certa maneira, a morte - , todas as partes do corpo que entrassem em contato com a água
se tornariam imortais. É o que acontece com Aquiles. Ele é, portanto, um ser humano cuja
individualidade, passado, genealogia, situa-se na fronteira entre o divino e o humano. Somente
uma pequena parte de seu corpo restou mortal: o calcanhar – como deveria, posto que Tétis o
segurou pelos pés – e é por esse ponto que ele perecerá.
Assim, este homem tem a imagem própria do guerreiro e de suas virtudes: não somente a
coragem, mas também esta forma de moral aristocrática que é, ao mesmo tempo, o último
desígnio da morte heróica, em que um homem é kalos kagathos, “belo e bom”, como se sua
qualidade de homem eminente, incomparável se manifestasse sobre seu corpo, sobre sua
nobreza, seu gestual, seu modo de andar, sua maneira de se apresentar. Quando um desses
homens como Aquiles aparecia em um círculo, era como se vissem um deus que se aproxima e
que encarna esta espécie de excelência que se manifesta num clarão luminoso, como a beleza de
uma jovem moça semelhante a uma deusa. É mais ou menos deste modo que os Gregos viam
Aquiles, ele não tem uma moral do pecado, do erro, do dever, existe a idéia que é preciso ser um
indivíduo bom, não fazer coisas indignas, desonrosas, invejosas, que é preciso se dominar.
Aquiles teve que fazer uma escolha entre duas vidas. Ou bem uma vida pacífica e doce,
uma vida longa com uma mulher, seus filhos, seu pai e depois a morte, no fim do caminho, como
ela chega a todos os anciãos, sobre seu leito; ele desapareceria em uma espécie de mundo
obscuro, de cabeças vestidas de noite, onde ninguém tem nome ou individualidade, no Hades, se
tornaria uma sombra inconsistente, depois mais nada, ninguém. Ou bem ao contrário, esta que os
Gregos chamam a vida breve e a bela morte, kalos thanatos. Não há bela morte se não há vida
breve. Isto significa que, no ideal heróico, um homem pode escolher querer ser sempre e em tudo
o melhor e, para provar isso, vai continuamente – esta é a moral guerreira -, no combate,
posicionar-se na linha de frente e colocar em jogo a cada dia, em cada afrontamento, sua psykhè,
ele próprio, sua própria vida, sem hesitar, tudo. Por que tudo? Esta concepção de uma forma de
vida que se apoia em um sentido de honra, a timè, faz também com que todas as honras de
estado, as honras estabelecidas, não valham nada.
No início da Ilíada, os reis estão reunidos, cada um com seu exército, os basileis, e
Agamêmnon, o rei dos reis, basileutatos, tem a honra de ser o maior na hierarquia social. Ele
62
deve sacrificar, ao sacerdote de Apolo, sua filha. Em troca, toma a jovem Briseis, que tinha
sido dada a Aquiles como sua parte da honra – quando se distribui o espólio, de um lado se dá a
cada um uma parte igual àquela dos outros, por outro lado, à elite, se dá uma parte pela honra,
um géras especial. Briseis representava para Aquiles o reconhecimento que todo o exército
Grego lhe concedeu por mostrar que não era como os outros, mas um indivíduo à parte e que,
com ele, a guerra não tinha exatamente o mesmo aspecto, pois ele lhe confere um sentido
particular por sua coragem, por seu arrojo. É este géras que Agamêmnon toma. Então, o exército
se reúne, faz um círculo, deixa um espaço no centro, uma espécie de agora onde podem falar
todos os reis. Aquiles vem e humilha Agamêmnon: com que direito tu me tomas aquela? É uma
grande ofensa que tu me fazes! Tu és apenas um covarde. Tu, tu te refugias nas últimas fileiras,
tu não sabes o que é, no corpo a corpo, o face-a-face contra o inimigo, o empenhar sua psykhè.
Vê-se bem nesta cena, opor-se de um lado, a honra ligada ao mérito e à virtude particular de um
combatente e, por outro lado, as honras ordinárias, sociais. Agamêmnon é o rei, mas ao mesmo
tempo a honra de Agamêmnon é incomensuravelmente inferior àquela de Aquiles. É uma
verdadeira inversão do status social e Aquiles faz com que ele o compreenda. E quando
Agamêmnon tenta reconciliar-se com Aquiles, que se retirou do combate – sem ele o exército
aqueu não resiste diante dos troianos -, envia uma delegação. Esta delegação explica que
Agamêmnon reconhece suas injustiças: devolve Briseis que ele não tocou, oferece toda espécie
de riquezas, trípodes, animais, uma de suas terras e mesmo uma de suas filhas sem exigir dote.
Mas Aquiles recusa porque, neste contexto da honra heróica que conduz à morte heróica, o
indivíduo se encontra sempre perante o “tudo ou nada”. Se na vida social existem hierarquias
equilibrando-se, conduzindo seus negócios, em compensação, a ofensa que foi feita não pode ser
reparada. Aquiles explica que pouco importa a honra ordinária que os Gregos oferecem a ele,
pouco importam todos os presentes que oferecem, porque existem duas formas de bens
diferentes: existem os bens que se trocam, ganham, perdem e que se pode repor quando os
perdeu; e os bens que são essenciais do ponto de vista dos valores humanos – novamente o “tudo
ou nada” -, este que, quando perdido, não se recupera jamais, isto é, a vida, si mesmo. É isto que,
a cada momento decisivo, não é comprável, nem permutável, é o que se perde definitivamente.
Eis a honra heróica que é uma outra categoria que não aquela da honra ordinária.
63
E quando se joga assim, segundo “tudo ou nada”, pode-se estar seguro de morrer um
dia ou outro, pois nenhum homem é imortal, nem mesmo Aquiles. Aquele que vive sua própria
existência, sua própria individualidade, desta maneira depende da escolha em colocar tudo em
jogo, si mesmo, a fim de se manifestar, de se demonstrar, de se provar que se é realmente um
homem sem acomodação, sem covardia, então, este está certo de morrer jovem. E esta morte não
é uma morte como as outras. Da mesma maneira que existe uma honra heróica que não é a honra
ordinária, existe uma morte heróica no combate que não é uma morte ordinária. Por quê Porque
o jovem homem na flor de sua idade e de sua beleza, que morre em combate, desconhecerá sobre
o seu corpo as cicatrizes, o enfraquecimento que a idade traz a todas as criaturas mortais. Esta é,
portanto, a lei do gênero humano: nasce-se, cresce-se, torna-se um efebo, um jovem homem, um
homem “feito” e depois, pouco a pouco, contrariamente ao que se passa entre os deuses, se
debilita, se deteriora, se degrada, tornando-se um ancião fatigado que delira e que vai, por
conseguinte, embora; e é como se ele não tivesse vivido. Enquanto que se tu morres no momento
em que fazes a demonstração disto que es na beleza da tua juventude, tua existência vai livrar-te
do desgaste do tempo, da mortalidade ordinária. Na Ilíada, no momento em que Heitor é
perseguido por Aquiles, indo afrontar o herói, Príamo, que se encontra sobre as torres, pede a seu
filho que fuja, atravesse a porta e volte ao abrigo das muralhas. Ele lhe diz mais ou menos isto:
para o jovem guerreiro que morre no campo de batalha, tudo é belo, tudo é conveniente, panta
kala, pant’epeoiken, mas a morte para um velho como eu, Príamo, se tu sucumbires, será
horrível. Príamo acrescenta que ele será coberto de sangue e que os cães aos quais ele deu no
passado o que comer, no pátio do palácio, virão devorar as suas partes sexuais. Tirtaios, em
Esparta, retoma a mesma imagem dizendo que para o jovem guerreiro que cai na linha de frente
na flor de sua juventude, jogando com sua própria vida e sua individualidade, “tudo é belo, tudo
convém”, para que os homens o admirem, as mulheres o venerem e para que as gerações futuras
continuem a admirá-lo. Ele não perecerá através desta morte – que se não a escolheu pelo menos
a aceitou – de continuar a ser o que era quando estava vivo, isto é, um homem jovem no brilho
de sua força e de sua beleza. Seus funerais considerarão isso igualmente. Por quê
A Grécia do século IX era ainda uma Grécia onde não existia a escrita deveras
desenvolvida. Ora, toda sociedade deve ter raízes, um passado para manter sua identidade. Para
os Gregos deste tempo que não tinham escritos, nem arquivos, na época de um casamento ou de
64
um nascimento, não existia nenhuma declaração, a memória social era assegurada por
uma pessoa, o mnémon, aquele que se lembra, que deve armazenar em sua mente todo o saber,
permitindo que qualquer um conheça sua identidade, quem é seu pai, quem são seus avós e mais
longe, as genealogias, mas também os limites de suas terras. Ao mesmo tempo, é preciso que
este grupo tenha em comum um certo número de assuntos conhecidos, de valores, de
representação de mundo, de concepções de si, de tradições intelectuais e espirituais: estes são os
aedos, os cantores que têm essa obrigação. Eles são inspirados por uma divindade que os Gregos
chamavam Mnémosunè, Memória. A memória é divinizada na medida em que não existem
escritos que podem ter o registro disto que os antropólogos denominam “o saber partilhado”.
Esta memória é o canto dos poetas, a tradição da Ilíada e da Odisséia, dos Cantos de Cipros e de
muitas outras ainda. É o que constitui a memória, as raízes do grupo e isto que no V ou IV
séculos e ainda durante a época helenística, as crianças Gregas vão aprender de cor e
compreenderão. Neste sentido, o texto da Ilíada, que é para nós um simples texto, foi em um
dado momento o canto tradicional que de geração em geração os poetas cantaram, repetiram,
modificaram às vezes, retomando o que lhes teriam ensinado e improvisando para relacioná-lo a
um novo público. Tudo isto era a base comum intelectual e espiritual de todos estes Gregos e
permanecia de um certo modo mais vivo, mais atual que eles próprios. No quadro desta
civilização grega que mudou muito desde a época homérica, Aquiles é um personagem sempre
presente a cada geração mais que qualquer outro; assim ele não é um Grego como
compreenderam Platão, Xenofonte ou Alcebíades, que não tiveram Aquiles a seu lado.
A morte heróica não procura somente um honra incomparável, mas afirma o paradoxo de
uma criatura humana mortal, efêmera, consagrada ao ciclo – a passagem pelos estágios até a
morte lamentável – que caracteriza o homem e que o opõe aos deuses. Aquiles escapa. Neste
mundo grego, não existe esta idéia, própria à nossa civilização judaico-cristã, que em cada um de
nós há uma parte que é nós mesmos, a alma, o espírito imortal, individualizado e até mais que
individualizado, pois finalmente terá também a ressurreição da carne, nossos corpos voltarão e,
portanto, estamos predestinados a uma imortalidade bem-aventurada. Para os Gregos, ela não
existe. Para eles, somos um corpo, a alma se compõe de sopros inconstantes e quando se morre,
vai para o Hades, não é mais nada.
65
A Resposta Grega ao Problema da Morte
Nesta visão tão positiva disto que é o homem, apesar disso, era preciso para os
Gregos que existisse uma resposta a este problema que todas as culturas devem
resolver, por diferentes que sejam uma das outras. Por exemplo: por que razão é
necessário que existam dois sexos Por que razão é necessário que existam homens e
mulheres Assim Hipólito se pergunta por que existem mulheres. Deveriam existir
apenas homens! Isto seria muito melhor e mais simples. Mas existem homens e
mulheres, e aliás isto não é o pior, pois somente as mulheres geram, o nascimento
implica um ventre feminino. E isto ainda não é o pior, pois não somente elas geram
mulheres, mas dão à luz também homens! Todas as culturas tentaram resolver estes
problemas. É o mito de Pandora entre os Gregos.
Mas existe também o problema da morte. De onde ela vem Por que morremos Os
Gregos responderam a isto estabelecendo relações com a cultura aristocrática da honra heróica,
com a idéia da morte heróica. Ele vai portanto ter, independente disto que venho vos dizer, uma
dimensão metafísica. Na Ilíada, quando Aquiles é retirado do combate, os Troianos encurralam
os Gregos em suas naus e havia dois Lícios, Glauco e Sarpedon que são personagens de caráter
heróico, dois jovens vigorosos que desejavam, que se dispunham a lutar na linha de frente. Não
era fácil lutar na linha de frente, expor no afrontamento do combate a sua própria existência,
“tudo ou nada”. Eles hesitam e uma discussão interessante começa entre os dois jovens.
Sarpedon diz: é preciso ir; se, entre nós, os homens, os Lícios, nos rendem tantas honras, nos
festejam, nos estão dando suas melhores terras, nos oferecem as mais belas mulheres, os mais
belos cavalos, nos conduzem a uma vida maravilhosa de honra, é por que somos reis, por que
combatemos na linha de frente. Ele pondera, falsamente, como se tivesse, obrigatoriamente, um
acordo preestabelecido entre o fato de ser rei como o é Agamêmnon, e o fato de ser heróico
como o é Aquiles. Mas neste caso, Agamêmnon fica atrás e Aquiles se lança na linha de frente:
seu status é diferente.E Sarpédon diz que se ele é reconhecido como rei, é por que acreditam que
seja capaz da morte heróica, como se por ser rei, seria preciso aceitar a morte heróica e, como se
somente fossem aceitar a morte aqueles que são reis socialmente. O que não é verdade. Em
seguida, Sarpédon retrata-se e dá a verdadeira razão a seu companheiro: se podemos viver, nós
outros, pobres humanos, mortais e efêmeros, como os deuses, eternamente, sem conhecer a
morte, e sempre jovens, sempre o joelho e os braços em forma, então não deveria dizer-lhe para
66
arriscar sua vida na linha de frente. Mas não posso fazer isto! À velhice, à idade avançada, à
fadiga, à morte no fim do caminho, não escaparemos!É a verdadeira razão pela qual eu digo para
irmos.
Vejamos bem que o risco da morte heróica – o que está realmente em questão – é o fato
de que nós humanos, apesar de tudo, não podemos deixar de nos colocar a questão do sentido de
tudo isto. Para que fiz tantas coisas, lutas, fadigas das quais não restará nada Como é que eu
poderia chegar, por uma proeza, a qualquer coisa que me diferenciasse em relação àquilo que é
comum aos mortais, não como um deus, mas como ser humano, como a beleza de Afrodite sobre
uma bela jovem donzela, e é como se subitamente a vida humana fosse esclarecida, tornando-se
outra, única, como se a vida humana tornasse outra também pelo heroísmo de certos
combatentes.
Eis, creio, um dos sentidos da morte heróica e isto nos convida a compreender que neste
esforço no interior mesmo desta concepção grega de homem – uma concepção muito
insignificante -, a vida, a felicidade da vida, a coragem, a força, a impetuosidade, a juventude, o
prazer amoroso são os verdadeiros valores que competem. Mas tudo isto se dissipa, não é nada.
Então, como é que posso encontrar o meio de esperar um pouco da estabilidade desta existência,
que atribuo aos deuses Esta estabilidade é o fato de que o meu nome, nossa existência singular,
o que fiz, o que fui, ficarão inscritos para sempre na memória dos homens de duas maneiras.
Primeiramente, os poetas nos seus cantos vão celebrar o que os Gregos chamam kléos aphthiton,
uma glória cantada, imperecível; indefinidamente, Aquiles será cantado de geração em geração.
Em seguida, o memorial fúnebre: uma tumba será elevada com uma estela onde o nome de
Aquiles e quaisquer palavras, um verso ou dois às vezes, serão gravados.
Por que insisto sobre este ponto Para um cristão, hoje, a morte não é nada, é uma
passagem que não impede sua individualidade: os seres que ele amou partiram para outro lugar
com sua individualidade. Este cuidado da individualidade no interior do pensamento cristão
distingui-se justamente pela idéia da ressurreição dos corpos. Por que a alma de cada um poderia
ser, também, inteiramente espiritual – independente de sua visão, de seus gestos, de sua pele, de
sua distinção Se existe realmente uma imortalidade das pessoas na sua singularidade, é preciso
que os corpos também ressuscitem. A idéia de uma ressurreição dos corpos para os Gregos
67
antigos é impensável. A questão da individualidade permite, portanto, distinguir
nitidamente a cultura cristã da cultura grega. Permite também distinguir a cultura grega da
cultura hindu.
Entre nossos Gregos, quer dizer, homéricos, cremam-se os cadáveres. Pátroclo é
queimado, Heitor igualmente, há uma grande cerimônia durante a qual se eleva uma espécie de
fogueira; deposita-se o cadáver do jovem guerreiro heróico que o canto vai imortalizar para
sempre. Quando Heitor morre no campo de batalha – Heitor que os Gregos temiam e detestavam
– os Gregos ficam em torno dele; despojam-lhe do que possuía como armas e couraça, e ele fica
nu, gumnos e como narra a Ilíada, “eles admiram a beleza de Heitor”. Heitor também é um
homem jovem e os primeiros cuidados fúnebres consistem em devolver a este corpo que agora é
um soma, um cadáver, toda a beleza de sua juventude. Encobrem-se suas feridas, perfumam-no,
untam-no com azeite, ele é belo de se ver contrariamente ao corpo de um velho. Depois o
colocam sobre a fogueira e o cremam. Quando o ardor do fogo é abrandado pelas libações, as
ossadas do cadáver sobre as cinzas da madeira ficam bastante visíveis e destacadas. Estas
ossadas são recolhidas com o maior cuidado, colocam-nas em uma urna, freqüentemente untada
com azeite, envolta em um tecido e as enterram. Enfim, colocam-nas em uma elevação para que
este lugar onde as ossadas do morto são colocadas fique visível para todo o mundo, exatamente
como todo o mundo ouvirá os cantos. Há a Mnémosunè, a memória cantada, a mnèmè do morto.
Na Índia, também há a cremação do morto, mas quando o fogo se apaga e que ainda se
vêem as ossadas brancas, recolhem-nas e fazem o que chamam, do ponto de vista fúnebre, uma
segunda cremação: colocam os ossos brancos para queimar até que sejam completamente
consumidos também. Depois, ao invés de os colocar em um lugar determinado, com uma estela
que marcará o ponto específico da superfície da terra onde o homem e suas ossadas foram
colocadas, elas são lançadas nas águas de um rio ou as dispersam para que não subsista nenhum
traço daquilo que o defunto foi.
Nesse caso, como fazer para que isto que um homem foi durante sua vida e os atos
heróicos que executou não sejam esquecidos, para que a civilização detenha e de certo modo
transmita o que alguém fez e que isto seja um princípio da vida para todas as gerações seguintes
Na Índia, é preciso que tudo isto que o homem fez seja disperso frente ao Todo, a um Absoluto
68
que é ao mesmo tempo o Nada99. É preciso que a importância dos atos, da singularidade, da
individualização seja dispersada. Na Índia, quando um homem sacrifica um animal ou outra
coisa, é a si próprio que quer queimar no fogo e toda sua ação consiste em conduzir a este
momento no qual ele próprio vai se sacrificar, ele mesmo vai entrar nesta espécie de nada
cósmico de onde não deverá jamais ser separado. Mas para os Gregos, isto não é, como escreve
Weber, uma religião extramundana, o religioso, o sagrado está no mundo, os deuses fazem parte
do cosmos, é a vida que é sagrada. O problema é, então, diferente: como podem manter uma
individualidade em tais condições
A solução do heroísmo, que se conservou perpassando todas as cidades gregas, é
justamente um esforço para resolver este paradoxo. E este paradoxo implica também, como
lembram, a afirmação de que a morte heróica está relacionada a uma glória imortal, aquela que o
afrontou, que vem pelo seu kléos, imortal e vive entre todos e ainda mais intensa no pensamento
dos vivos como os próprios vivos; este paradoxo implica que contrariamente a esta idéia indiana
de um retorno ao Absoluto que é uma transformação no nada (mais uma vez o autor utiliza-se do
termo néantisation), a morte teria um aspecto medonho, horrorizante. É por que a morte é vivida
como algo monstruoso que a morte heróica foi assim idealizada como solução rápida e
excepcional para uma condição humana marcada pela mortalidade. E por conseguinte, o herói
que escolhe a morte heróica, aceita também a idéia que existem potências que simbolizam a
morte.
A morte na Grécia, Thánatos, é um nome masculino, a morte heróica é masculina, e,
sobre os vasos quando aparece Thánatos freqüentemente com seu irmão Hýpnos, Sono, Thanatos
não tem nada de medonho. Ele está vestido com um capacete, encontrando-se na beleza da morte
juvenil. Mas existem também as Keres que são descritas por Hesíodo de uma maneira
assustadora: elas agarram os cadáveres, os degolam, e sobretudo existe a imagem própria da
morte que é a Górgona, a Medusa, isto é, uma visão monstruosa que vos congela em pedra.
Quando lemos os textos sobre Perseu e a Górgona, vemos que a Górgona retrata, com efeito, que
a morte é algo impensável para um homem. Esta Górgona, portanto, nos indica que ela é um
monstro que não podemos fazer ver e que não podemos exprimir, indizível e irrepresentável, ela
99
Vernant utilizou o termo Néantisation.
69
é absurda, o não-sentido, o não-humano. Alguém que estaria vivo e que não está mais,
eis o absurdo, o impensável, a morte. E é este impensável que é preciso evitar.
Eis, portanto, uma solução à condição humana: encontrar na morte o meio de ultrapassar
esta condição humana, vencer a morte pela própria morte, fazendo com que se dê à morte um
sentido que ela não tem, porque ela é absolutamente desprovida deste.
A Lição da Odisséia
72