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Revista Interdisciplinar de Direito v. 16, n. 1, pp.173-189, jan./jun. 2018.

Faculdade de Direito de Valença DOI: 10.24859/fdv.2018.1.010

O papel da vontade na
interpretação dos contratos
Gustavo Tepedino1

Resumo
A evolução do papel da vontade nas relações contratuais associa-se a diferentes graus
de intervenção legislativa sobre a autonomia privada. Sob a influência voluntarista nas
codificações civis, o legislador preocupava-se em assegurar exclusivamente a higidez formal
da declaração de vontade na celebração do negócio jurídico, cujo conteúdo, livremente
avençado, fazia lei entre as partes. O dirigismo contratual agregou gradualmente fontes
heterônomas à autonomia privada (auto nomos), com a imputação imperativa aos
contratantes de deveres destinados à promoção de valores existenciais e sociais alcançados
pelas relações contratuais. Nesta esteira, os princípios da boa-fé objetiva, da função social e
do equilíbrio das prestações flexibilizam a obrigatoriedade dos pactos e tutelam interesses
socialmente relevantes nas atividades contratuais, mesmo quando ausentes os pressupostos
e requisitos de validade do negócio jurídico subjacente.
Neste cenário, supera-se o rigor formal da teoria das invalidades, admitindo-se a
eficácia de comportamentos socialmente típicos, bem como a formação progressiva das
relações contratuais.

Palavras-chave: Direito privado; negócios jurídicos; contratos; autonomia privada.

Abstract
The evolution of the role of will in contractual relations is associated with different
degrees of legislative intervention on private autonomy. Under the voluntarist influence in
civil codifications, the legislator was concerned only with ensuring the formal integrity of
the declaration of will. Therefore, the content of the agreement, once freely agreed upon,
made law between parties. The contractual dirigisme gradually added external influences
to the private autonomy (auto nomos), with the imperative imputation to contractors
of especific duties destined to the promotion of existential and social values ​​reached
by the contractual relations. Accordingly, principles of objective good faith, the social
function and the balance of provision flexibilize the covenants compulsory and protect
socially relevant interests in contractual activities, even when the validity requisites of
the underlying juridical relation are absent. Thus, the formal stringency of the theory of
invalidities is surpassed, admitting the effectiveness of socially typical behaviors, as well as
the progressive formation of contractual relations.

Keywords: Private law; juridical relations; contracts; private autonomy.

1
Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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Gustavo Tepedino

Evolução das categorias de direito privado e critérios


interpretativos
A análise dos institutos fundamentais do direito civil impõe, como premissa
metodológica indispensável, a reflexão acerca dos critérios interpretativos que
devem nortear o intérprete na contínua reconstrução das categorias de direito
privado, examinando-se, a partir daí as inovações legislativas. Para tanto,
apresenta-se atualíssima a lição admirável do Professor Tullio Ascarelli dedicada
à teoria da interpretação,2 em que procurou ressaltar dois aspectos fundamentais:
em primeiro lugar, a função criativa do intérprete, que em sua atividade deve
proceder a uma ricostruzione tipologica della realtà, de tal modo que “a uma
reconstrução tipológica da realidade se reporte depois todas as normas como
pressuposto para sua aplicação. Esta reconstrução tipológica não pode ser, por
sua vez, integralmente realizada dentro do sistema normativo. Isto porque este
tem em mira a disciplina de uma mutante realidade, em relação à qual quer
oferecer critério de valoração e decisão. A realidade econômica, dada a sua
própria mutabilidade, não pode ser objeto de exaustiva classificação por parte de
qualquer corpus iuris, importando a sua aplicabilidade uma contínua reconstrução
tipológica da realidade disciplinada”.3
Na esteira de tal construção, conclui Ascarelli: “para aplicar a uma realidade
concreta um corpus iuris qualquer que se apresenta como certo e unitário, o
intérprete deve reconduzir com unidade ao sistema normas fruto de tendências
diversas e reconstruir tipologicamente a realidade em função das normas,
enquadrando depois o caso em relação à referida reconstrução, para superar,
portanto, o momento meramente declaratório” da atividade interpretativa.4
2
Cfr. Norma giuridica e realtà sociale, in Il diritto dell’economia, 1955, pp. 1179-1223; Proprietà
e controllo della ricchezza, in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1950, pp. 753-759
e disciplina delle società per azioni e legge antimonopolistica, in Rivista trimestrale di diritto
e procedura civile, 1955, 273-317.
3
Tradução livre. No original: “ad una ricostruzione tipologica della realtà si riporta poi ogni
norma per i presupposti della sua applicazione. Questa ricostruzione tipologica non può
essere a sua volta compiutamente data dal sistema normativo. Ciò appunto perché questo
[sistema normativo] mira alla disciplina di una mutevole realtà nei cui confronti vuole offrire
un criterio di valutazione e decisione. Questa realtà, data la sua stessa mutevolezza, non può
essere oggetto di compiuta classificazione da parte di nessun copus iuris, importando perciò la
stessa applicabilità di questo una continua ricostruzione tipologica della realtà disciplinata”.
4
Tradução livre. No original: “Per applicare a una realtà concreta un qualunque corpus iuris
che si pone come dato e unitario, l’interprete deve coordinare unitariamente a sistema norme
frutto di tendenze diverse e ricostruire tipologicamente la realtà in funzione della norma
inquadrando poi il caso in relazione a detta riconstruzione e supera pertanto il momento
meramente dichiarativo”. Aduz ainda o autor a belíssima síntese: “É perciò che l’oggetto della
giurisprudenza non è il mero studio delle norme e seppure si possa soggiungere in funzione
della realtà, ma proprio quello della realtà in funzione delle norme, a loro volta oggetto di
studio ai fini della loro applicazione alla realtà e così un ordinamento normativo della realtà”.
La norma non è intelligibile in sè, ma solo in funzione di una realtà e compito del giurista è
necessariamente e sempre quello di una valutazione normativa di questa realtà”.

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Em segundo lugar, a necessidade de se superar o descompasso entre as


categorias jurídicas ultrapassadas e a realidade emergente, mediante atividade
interpretativa que tenha em conta a concepção aberta e unitária do sistema jurídico,
que não se contenha nos limites do dado normativo. Desta forma, segundo
Ascarelli, procede-se a um equilíbrio constante entre as atividades do legislador
e do intérprete, mecanismo que aproxima os sistemas da common law e civil law,
sendo igualmente verificado em ambos os ambientes culturais, como antevisto,
com argúcia, pelo professor italiano.5
A advertência de Ascarelli apresenta renovada importância no momento
em que setores nostálgicos do voluntarismo parecem pretender atribuir
à codificação de 2002, ou a pretendido projeto de Código Comercial, a
solução para o aperfeiçoamento do sistema. Como se uma lei nova pudesse
tornar desnecessário, a partir de sua promulgação, o esforço hermenêutico de
compatibilização das fontes normativas em torno da Constituição da República.6
Segundo tal raciocínio, a nova codificação restauraria ao civilista o seu estatuto
orgânico das relações patrimoniais, servindo o Código como mediador entre
as normas de direito público e a autonomia privada. O mesmo entendimento
assegura que um novo Código Comercial permitira uma espécie de purificação
do tratamento interpretativo das relações mercantis. A tese, contudo, mostra-se
inteiramente descabida. Em primeiro lugar, porque a aplicação direta das normas
constitucionais não se reduz a mera questão de localização topográfica das normas
aplicáveis às relações privadas. Trata-se, de maneira muito mais ampla, da inserção
permanente e contínua da tábua axiológica constitucional nas categorias do direito
5
Ainda nas palavras de Ascarelli: “I codici, così come il sistema dispregato nei precedenti
giurisprudenziali, stanno perdendo quel carattere di definitività e completezza, di specchio
di un ordine naturale che sotoricamente rivendicavano. In ambedue i sistemi – diritto
codificati e common law – viene accentuandosi l’importanza della produzione legislativa
la cui frequente variazione accompagnata da un caractere regolamentare diminuisce la
portata dell’opera dell’interpretazione e, a sua volta, risponde alla necessità di una soluzione
autoritaria de fronte a una fenomenologia nuova nel contrasto di valutazione diversa (...) La
soluzione legislativa è spesso la risposta a una mancata evoluzione interpretaive e la soluzione
interpretativa la replica a una non gradita soluzione legislativa. É notissiimo il peso di questo
constrasto nell’evoluzione costituzionale americana – contrasto fra il poter esecutivo e
legislativo, più sensivili alle esigenze popolari, e quello giudiziario naturalmente più legato
a critreri conservatori”. E conclui: “Nell’Europa continentale il fenomeno è meno evidente,
ma non sarebbe forse difficile ritrovarlo nell’atteggiamento della dottrina e della magistratura
nei riguardi della valutazionie delle nuove costituzioni, della persisitenza in vigore di norme
dettate in regime precedenti, dell´interpretazioni di leggi dettate dopo la seconda guerra ai fini
di una modificazione della struttura sociale”.
6
Ao excessivo apego às categorias cristalizadas pelo legislador, Ascarelli adverte para a indevida
substituição sostituisce “all’esame della realtà effettuale quella di una realtà ideale. Ciò che
sì apre inevitabilmente il cammino a una dottrina aulica e concettuale, che trascura una
valutazoine normativa della realtà presente, ciò che si traduce non (come a volte si pensa) in
una accentuazione di quella funzione di conservazione che è sempre e necessariamente propria
di ogni diritto costituito, ma in un’accentuzione del potere delle forze economicamente
prevalenti in quanto operanti in una realtà diversa da quella visualizzata nella normativa”.

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Gustavo Tepedino

privado, processo que se intensifica com o advento de novos diplomas legislativos,


codificados ou extracodificados.
Por outro lado, as novas tecnologias, que despontam no cenário
contemporâneo, rompem com os compartimentos do direito público e do direito
privado, invocando regulação a um só tempo de natureza privada e de ordem
pública. A dignidade da pessoa humana há de ser tutelada e promovida, em última
análise, nos espaços públicos e privados, daí resultando a imprescindibilidade de
o controle da atividade econômica segundo os valores constitucionais, processo
hermenêutico que, em definitivo, há de ser intensificado – e jamais arrefecido –
com a promulgação de leis infraconstitucionais.
O desafio do jurista de hoje, especialmente quando trata de institutos
fundamentais como a autonomia privada, consiste na harmonização das fontes
normativas, a partir dos valores e princípios constitucionais. O Código Civil
deve contribuir para tal esforço hermenêutico – que em última análise significa
a abertura do sistema –, não devendo o intérprete deixar-se levar por eventual
sedução de nele imaginar um microclima de conceitos e liberdades patrimoniais
descomprometidas com a legalidade constitucional.

Voluntarismo, autonomia privada e negócio jurídico


como instrumento privilegiado de autorregulamentação:
controle exclusivamente dos meios e não dos fins.
Negócio jurídico e obrigatoriedade dos pactos.
As liberdades fundamentais, asseguradas pela ordem constitucional,
permitem a livre atuação das pessoas na sociedade. Expressão de tais liberdades no
âmbito das relações privadas é a autonomia privada, tradicionalmente entendida
como poder de autorregulamentação e de autogestão conferido aos particulares
em suas atividades. Tal poder, cujo conteúdo se comprime e se expande de acordo
com opções legislativas, constitui-se em princípio fundamental do direito civil,
com particular inserção tanto no plano das relações patrimoniais – na teoria
contratual, por legitimar a regulamentação da iniciativa econômica pelos próprios
interessados –, quanto no campo das relações existenciais – por coroar a livre
afirmação dos valores da personalidade inerentes à pessoa humana.
No apogeu do liberalismo econômico dos Séculos XVII e XVIII, a vontade
assumiu importância formidável. Tanto assim que, para muitos autores, as
liberdades fundamentais, das quais decorre o papel da vontade, constituem noção
pré-jurídica, que seria apenas reconhecida pelos ordenamentos nacionais.
A teoria do negócio jurídico, formulada no esplendor do voluntarismo e
dotada de substrato teórico de rara sofisticação, serviu de instrumento técnico para
a segurança da autonomia privada, subordinando os efeitos obrigacionais a uma
série de pressupostos, requisitos e modalidades associados a elementos subjetivos,
objetivos e formais. Com a teoria do negócio jurídico, logrou o direito assegurar-

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se de que os efeitos obrigacionais tivessem por fonte, inicialmente, a vontade real


dos agentes, e, posteriormente, a vontade declarada, valorando-se, assim, à luz
de disciplina legal extensa e analítica, o livre discernimento e o conteúdo das
declarações tais quais manifestadas, em homenagem a maior segurança social.7
O contrato, compreendido pelo voluntarismo nos termos pactuados no negócio
jurídico que o instaura, fazia lei entre as partes, para as quais vale essencialmente
a vontade manifestada.
Compreende-se, nessa vertente, a análise dos três planos do negócio
jurídico, cronologicamente investigados, na perspectiva de sua existência, validade
e eficácia. Solução tão engenhosa quanto artificial, já que a existência revela
valoração fenomenológica (existir ou não existir), enquanto o controle jurídico
se mostra eminentemente deontológico (comportamento devido). Com o plano
da existência, contudo, permitiu-se estabelecer o controle jurídico sumário de
manifestações despidas de vontade, antecipando-se o desfazimento do negócio ao
controle de validade, este a demandar cognição judicial demorada e profunda, já
que destinado a privar de efeitos determinado negócio jurídico – a lei instaurada
voluntariamente entre as partes.
A análise do negócio em seus três planos desenha-se, assim, como solução de
compromisso entre a segurança que deve despertar o negócio jurídico (a justificar,
por isso mesmo, a dificuldade anteposta para a declaração de sua nulidade mesmo
na presença de vícios graves em seus elementos essenciais) e a inadmissibilidade
de vínculos jurídicos assumidos na ausência da vontade do agente ou dos demais
elementos essenciais.
Entende-se, portanto, facilmente o porquê de as codificações romano-
germânicas terem consagrado portentoso espaço ao negócio jurídico e à
obrigatoriedade dos vínculos dele decorrentes.

Dirigismo contratual e o ocaso do voluntarismo.


Flexibilização da obrigatoriedade dos pactos, o
surgimento das relações de fato e a admissibilidade de
comportamentos socialmente típicos.
A despeito da prevalência, até os dias de hoje, da dogmática voluntarista assim
concebida, a evolução política e econômica da sociedade, desde o final do Século
XIX, exigiu a interferência do Estado nas relações privadas, mitigando-se a força
vinculante da vontade negocial. Especialmente diante de situações específicas de
vulnerabilidade, arrefeceu-se a tutela concedida ao interesse individual em favor
de outros interesses jurídicos socialmente protegidos.
Por conta da eclosão de movimentos sociais, no Brasil e alhures, a
intervenção nas atividades contratuais incidiu primeiramente nas relações
7
A magnitude do tema é traduzida em bibliografia clássica. V, por todos, Emilio Betti, Teoria
generale del negozio giuridico, Torino, UTET, 1952.

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Gustavo Tepedino

laborais, tendo sido o direito do trabalho precursor do que se convencionou


chamar de dirigismo contratual, destinado a proteger a parte mais desfavorecida –
técnica e economicamente – do contrato de trabalho. O desconforto do direito
privado clássico com a intervenção heteronímica8 na deliberação das partes levou
à autonomia do direito do trabalho, afastando-se do direito civil tudo o que
se considerava destinado a reduzir o papel da vontade como fonte soberana de
vínculos obrigacionais.9
Esse processo de intervenção legislativa, que muitos julgavam contingências
momentâneas de crises econômicas, mostrou-se inevitável e irreversível, acirrando-se
na primeira metade do Século XX como mecanismo de equilíbrio do mercado e do
próprio regime capitalista. Nessa esteira, as locações também foram objeto de forte
intervenção legislativa, com o intuito de gerir a escassez de imóveis e as crescentes
demandas locatícias. Ao longo do tempo, tem-se tutelado de modo imperativo tanto
o direito à moradia quanto o fundo de comércio, assegurando-se desde os anos 30
do Século passado a renovação do contrato de locação para fins comerciais (Decreto
24.150, de 20 de abril de 1934). O legislador interveio também intensamente na
economia popular, combatendo os juros extorsivos, o curso de moeda estrangeira e
assim por diante (cfr., dentre outras normas, o Decreto nº 22.626, de 7 de abril de
1933; Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951).
8
Sobre a referida intervenção heterônoma nos contratos, afirma Stefano Rodotà que o
contrato, embora decorrente da vontade das partes, uma vez formado, sujeita-se à intervenção
de fontes exteriores, alheias à vontade individual: “è evidente, allora, che le diverse fonti si
ispirano ciascuna a peculiari valutazioni: ma qui interessa rilevare soltanto che tutte convergono
nella finalità comune della costruzione del regolamento contrattuale; rispetto a quest’ultimo
la particolare ratio delle singole fonti non viene in questione, riguardando esclusivamente il
modo in cui ciascuna di esse, in sé considerata, opera” (Le fonti di integrazione del contrato,
Giuffrè, Milano, 2004, p. 87).
9
Conforme se afirmou em outra sede: “Coincide, em certa medida, por isso mesmo, o
movimento teórico de sustentação do direito de trabalho com construções antiformalistas
surgidas no final dos anos 60 do século passado, que se opunham aos princípios dogmáticos do
direito privado, inflexíveis no assegurar a vontade do proprietário e do contratante. Em certa
medida, o crescimento do direito do trabalho, na segunda metade do século XX, coincide com
a legitimação política do Welfare State e se aproxima a formulações teóricas que, na tentativa
de romperem com a lógica da igualdade formal, notabilizaram-se como o uso alternativo
do direito. A afirmação de direitos subjetivos extraproprietários, capazes de vergar as forças
hegemônicas e de fazer prevalecer direitos sociais, afigurava-se sediciosa, sendo significativa
a alusão, por parte de conceituado teórico do direito francês, à criação de contradireitos”
(Gustavo Tepedino, “Direito civil e direito do trabalho: diálogo indispensável”, In Gustavo
Tepedino et al. (coords.), Diálogos entre o direito civil e o direito do trabalho, São Paulo: RT,
2013, pp. 14-15). Sobre a expressão “contradireitos”, veja-se Michel Miaille: “Todas as
lutas políticas e sociais dos séculos XIX e XX se desenrolaram sob esta palavra de ordem; todas
as leis liberais que foram, assim, arrancadas à ordem burguesa se justificam pelos direitos
subjetivos, do direito à instrução ao direito de defesa, passando pelo direito de associação.
Neste sentido, como toda a ideologia de combate, a afirmação dos direitos subjetivos faz parte
de uma luta viva, ainda eficaz nos nossos dias [...] É o ‘contradireito’” (Uma introdução crítica
ao direito, Lisboa: Moraes, 1919, p. 143‑144).

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Esse processo de intervenção legislativa, que se acirrou na Europa a partir da


Segunda Grande Guerra, destinada à tutela de direitos fundamentais alcançados
pela iniciativa econômica privada e que, no Brasil, culminou com a Constituição
da República de 1988, acaba por colocar em crise a noção de autonomia privada
e a teoria do negócio jurídico, incapazes de abranger a variedade de modelos e
interesses mediante os quais a atividade privada se estabelece e é socialmente
reconhecida.
Anotem-se, nesse longo itinerário histórico, ao menos duas relevantes
consequências para a teoria dos contratos. De um lado, o aparecimento
de princípios mitigadores da obrigatoriedade e da relatividade dos pactos,
notadamente a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico e a função social, que desde
o início do Século XX foram incorporados gradualmente às legislações nacionais,
dando margem ao surgimento de numerosos instrumentos de controle da justiça
contratual (como a lesão, a revisão e a resolução por excessiva onerosidade, o
adimplemento substancial, a vinculação a deveres anexos, o dever de mitigar
danos, a proibição de comportamento contraditório, o abuso de direito). Essas
e tantas outras figuras, na experiência brasileira, foram absorvidas pela doutrina,
legislação e jurisprudência somente no final do Século XX, especialmente a partir
da Constituição da República de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor,
de 1990.
De outra parte, como espécie de válvula de escape para o rigor técnico imposto
pelo excessivo controle de validade dos negócios jurídicos, desenvolveu-se, a partir
do final da primeira metade do Século XX, a teoria das relações contratuais de
fato, a qual, ao confrontar a realidade jurídica à realidade fática, teve o mérito de
alargar a admissibilidade, pelo direito, de relações admitidas socialmente embora
sem a proteção conferida pelo Direito ao negócio. De maneira geral, os países da
família romano-germânica que adotam, de forma direta ou indireta, a doutrina
do negócio jurídico, encontram dificuldade semelhante: o excessivo controle
de validade do negócio acaba por excluir de seu espectro de incidência certas
atividades que, em sua substância, despidas do aparato negocial, são admitidas
como socialmente úteis e legítimas pelo corpo social.
Diante do contraste entre a legitimidade da atividade desenvolvida e a
invalidação do ato negocial que a constitui, autores de renome sustentaram a
preservação dos efeitos de tais atos a despeito de sua invalidade. No início do
Século XX, Haupt construiu teoria pioneira nesta direção.10 Com resultados
semelhantes, Larenz produziu trabalho importantíssimo no qual concebeu a
categoria dos comportamentos socialmente típicos.11 De outra parte, na doutrina
italiana, Ascarelli12 e inúmeros outros conceituados autores desenvolveram, em
10
Günther Haupt, Über faktische Vertragsverhältnisse, 1941.
11
Karl Larenz, O estabelecimento de relações obrigacionais por meio de comportamento social
típico (1956), in Revista Direito GV, vol. 2, n. 1, jan-jun/2006.
12
Ao propósito, a obra de Tullio Ascarelli mostra-se particularmente importante. Cfr. Lezioni
di diritto commerciale - Introduzione,1955, Milano, Giuffrè, pp. 102 a 108, onde se lê: “L’attività

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diversos campos da autonomia privada, o que seria a teoria das relações jurídicas
de fato, a qual atingiu o seu apogeu nos anos 60 e 70, com o seu reconhecimento
pela Corte Suprema Alemã – BGH (Bundesgerichtshof ).13

Declínio da teoria das relações de fato e do


comportamento socialmente típico. Vontade negocial e
vontade contratual. Ocaso da subsunção, qualificação
contratual, e juízo de merecimento de tutela das
atividades apartadas de negócio jurídico.
Paradoxalmente, o principal motor da teoria do comportamento socialmente
típico, consubstanciado na crítica à exasperação da vontade negocial como
fonte primordial das obrigações, transformou-se em sua maior vulnerabilidade.
Associada ao processo histórico de crítica ao poder impositivo das forças
econômicas nos regulamentos contratuais, no âmbito da massificação da economia
e do fortalecimento dos mercados consumidores, a teoria do comportamento
típico passa a ser admitida a prescindir do elemento volitivo. Buscava-se proteger
a vontade do vulnerável, estigmatizando-se o poder da vontade como inevitável
imposição das forças econômicos na celebração dos negócios jurídicos.
Em última análise, da crítica ao voluntarismo opressor decorreu a hostilidade à
vontade e a rejeição de seu papel como motor da livre iniciativa. Tal perspectiva não
resistiria à retomada dos movimentos liberais que, ao lado do declínio do Welfare
State, acabaram por sepultar a doutrina do comportamento socialmente típico.

dovrà essere valutata in via autonomia, indipendentemente cioè dalla valutazione dei singoli atti,
singolarmente considerati. Indipendentemente dalla disciplina dei singoli atti può essere illecito
(o sottoposto a norme particolari) l’esercizio dell’attività” (p. 103). Sobre o tema, v. também o
verbete fundamental de Giuseppe Auletta (Attività (dir. priv.), in Enciclopedia del diritto, vol.
III, Milano, Giuffrè, 1958, p. 982), que define attività “quale insieme di atti di diritto privato
coordinati o unificati sul piano funzionale dalla unicità dello scopo”.
13
Na doutrina italiana, Carlo Angelici analisa o caso julgado em 28 de janeiro de 1976
pelo Bundesgerichtshof em que uma criança se acidentou no supermercado enquanto a mãe
comprava, e estava pagando no caixa. Discutiu-se se a responsabilidade era contratual ou
extracontratual e se haveria responsabilidade pré-contratual. Exclui-se a responsabilidade pré-
contratual já que a autora, sendo criança, não efetuaria compra alguma, ou seja, não teria
nada a comprar, o que a impediria de intentar a ação contra o supermercado (Responsabilità
precontrattuale e protezioine dei terzi in uma recente sentenza del Bundesgerichtshof, in Rivista
del diritto commerciale e del diritto generale delle obbligazioni, I, ano LXXV, 1977, pp. 23-30).
Segundo observa o autor, o dever de boa-fé serve de fundamento para a relação de proteção em
face de terceiros, aplicando-se a teoria designada como Vertrag mit Schutzwirkung sugunsten
Dritter, de modo a proteger terceiros alcançados pela atividade contratual independentemente
de qualquer vínculo negocial: “il Bundesgerischtshof accentua il profilo del rapporto di
protezione che deve intercorrere tra il contraente ed il terzo danneggiato e riconduce la vicenda
ad una sua rilevanza, tramite il contratto o l’attività precontrattuale, pure nei confronti della
controparte” (p. 25).

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Com efeito, a partir dos anos 70 do Século passado, assistiu-se, tanto


na Alemanha quanto na Itália e em Portugal, à progressiva substituição dessa
construção por uma ampliação da categoria do negócio jurídico, cuja abrangência
o tornaria apto a compreender numerosas atividades socialmente típicas, ora
mediante a invocação de vontade presumida dos seus agentes (a ampliar o conceito
de negócio jurídico), ora por meio da ratificação de atos inválidos, ora mediante
a mera admissão de efeitos patrimoniais ressarcitórios decorrentes de negócios
inválidos – cuja fonte, portanto, seria o ato ilícito, não já o contrato.
Do ponto de vista dogmático, não parece convincente a legitimação de
efeitos obrigacionais com base na técnica da vontade presumida ou, por outro
lado, como mera liquidação de danos. Basta lembrar a hipótese do incapaz
que compra e vende artigos de suas necessidades pessoais, faz-se transportar e
assim por diante. Não seria razoável admitir como válidos tais negócios com
fundamento em suposta vontade presumida de seus responsáveis, já que, por vez,
as atividades desenvolvidas são levadas a cabo contra a vontade expressa de quem
deveria autorizá-las. Também em outras hipóteses de atividades desenvolvidas
por pessoas capazes, mostra-se insustentável cogitar-se de vontade presumida
pelo simples fato de que o agente se recusa a celebrar o negócio. E tampouco se
sustentaria a explicação circunscrita à liquidação de danos quando se pensa na
execução específica de certos contratos fundados em negócio nulo, na esteira de
tendência progressiva do direito obrigacional.
Daí ser plausível a suspeita de que a rejeição à doutrina do comportamento
social típico se associe mais ao contexto histórico e ideológico em que se insere
do que aos seus fundamentos teóricos. Por ter sido germinada em oposição à
Teoria do Negócio Jurídico, aquela doutrina acabou sendo desenvolvida como
construção crítica ao papel da vontade na teoria contratual, associando-se a
orientações que, por diversos matizes, enalteceram, ao longo do Século XX, o
papel do Estado intervencionista, seja em regimes autoritários de diversos países,
seja no dirigismo contratual.14
14
Bastaria, para comprovar tal percepção, a crítica de Dieter Medicus à expressão
“comportamento socialmente típico” (Il ruolo centrale delle disposizioni relative al negozio
giuridico, in I Cento anni del codice civile tedesco in Germania e nella cultura giuridica italiana –
Atti del convegno di Ferrara, 26-28 settembre 1996, Padova, Cedam, 2002, pp. 155 a 176). O
autor critica (p.165) especialmente a decisão da Corte alemã (sentenza de 1966, Landgericht
di Brema, in NJW 1966, p. 2360) que obrigou o pagamento de bilhete de trem em face de
um menino de 8 anos que havia realizado o trajeto, imputando-lhe também a multa. Invoca
o festejadíssimo Flume (civilista liberal que se transformou em uma lenda viva na Alemanha,
por sua posição de resistência ao regime nazista, quando se exonerou da Cátedra), que reduz
a construção à retroatividade de efeitos para relações obrigacionais inválidas. Afirma a p.
166: “Il ricorso alla formula ‘contratto di fatto’ ha consentito di trattare come efficaci, per il
periodo in cui era stata ad essi data esecuzione, contratti di lavoro subordinato e contratti di
società conclusi sulla base di accordi giuridicamente inefficaci (…). In definitiva, essa non fa
altro che sostituire l’effetto retroattivo della nullità, dell’annullamento e del recesso operante
ex tunc (Rücktritt), con una causa di scioglimento del rapporto non pienamente retroattiva,
assimilabile al recesso operante ex nunc (Kündigung)”. E remata de forma sarcástica: “In

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As duas últimas décadas do Século passado, por outro lado, coincidem, em


diversos países europeus e da América Latina, com a densificação do neoliberalismo
e, especificamente na esfera jurídica, com a retomada entusiasmada do prestígio
da autonomia privada, reduzindo-se, em diversos setores – mercado de locação,
relações de trabalho, setores da economia privatizados – o grau de intervenção do
Estado, que adquire feição regulamentar, com suas agências e instrumentos que
enaltecem o papel da livre contratação, ainda que sob rígido controle do Estado.
A Europa, neste particular, diferencia-se da América Latina, onde, talvez
pelas contradições sociais ainda muito evidentes, e por não se terem alcançado
níveis médios satisfatórios na promoção dos direitos sociais, é compreensível que se
propugne por um grau de intervenção e de promoção de políticas públicas maior,
capaz de favorecer a distribuição de rendas e diminuir a desigualdade social. Tal
diferença, superficialmente percebida, explica, em certa medida, intensificação
mais visível, na doutrina europeia, da retomada do papel da vontade nas atividades
privadas.
A preocupação com a preservação da vontade como elemento relevante da
iniciativa privada, associada à reação liberal ao dirigismo contratual, mostram-se
eloquentes para a compreensão do alargamento das doutrinas do negócio jurídico
e da rejeição da doutrina do comportamento social típico.
Entretanto, a análise dos comportamentos socialmente típicos, especialmente
na perspectiva ascarelliana de atividade contratual sem negócio, não renega o papel
da vontade, limitando-se a considerar secundária, para determinadas atividades
socialmente típicas, a vontade negocial, ou seja, a existência de negócio jurídico
que inaugure a atividade já existente de fato.
Considerando-se a insuficiência do negócio jurídico – e da vontade
presumida – para justificar a presença de atividades admitidas pelo grupo social,
que produzem efeitos jurídicos carecedores de qualificação, ainda que desprovidas
de negócio fundante, torna-se oportuno revisitar a doutrina dos comportamentos
socialmente típicos.
Do ponto de vista metodológico, a atividade contratual sem negócio
exige qualificação da concreta relação jurídica a partir da sucessão de atos
funcionalmente interligados, sem prévia tipificação e reconhecimento jurídico
do negócio. Corrobora-se o ocaso da subsunção, como técnica hermenêutica a
reclamar premissa legal abstrata, correspondente a suporte negocial determinado,
em favor da verificação em concreto da disciplina aplicável ao conjunto de atos
de natureza diversa. Amplia-se, dessa forma, o controle da atividade privada,
permitindo-se proteger efeitos socialmente relevantes decorrentes de negócios
nulos ou inexistentes, sem que a presença de negócio válido seja um pressuposto
para a tutela jurídica.
conclusione, si può dire che, nel complesso, il diritto classico dei contratti, imperniato sulla
volontà negoziale, ha saputo difendersi dagli attacchi che gli sono stati portati: i tentativi
operati in questo senso da quella che Flume ha efficacemente definito ‘giurisprudenza della
corsa in tram’ sono falliti (Jurisprudenz der Straßenbahnfahrt)”.

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Releitura da doutrina dos comportamentos socialmente


típicos na legalidade constitucional. Consequências nos
planos das Teorias dos Contratos e da Responsabilidade
Civil. Notas conclusivas.
O que se pretende propor, para a reflexão contemporânea, é a necessidade
de se reler a doutrina dos comportamentos socialmente típicos, a partir, não já do
afastamento do elemento volitivo como motor da livre iniciativa, mas da distinção
entre a vontade negocial e a vontade contratual.
O negócio jurídico mantém-se vinculado ao controle estabelecido pelo
Código Civil. Ao seu lado, contudo, uma série de atividades socialmente
típicas, decorrentes de atos não negociais, é valorada positivamente e a ordem
jurídica reconhece, como jurígenos, seus efeitos. Enquanto no negócio jurídico a
declaração de vontade hígida é um prius para a sua validade (elemento essencial),
nas atividades socialmente típicas a vontade suscita verificação in posterius, a partir
dos efeitos por elas produzidos, independentemente de declaração destinada à
instauração do vínculo, conferindo-se juridicidade a situações jurídicas que, de
outra forma, não poderiam ser admitidas.
Duas ordens de consequências decorrem de tal construção: em primeiro
lugar, no plano contratual, podem-se admitir como válidos efeitos de atividades
desprovidas de negócios jurídicos fundantes. Em tais hipóteses, inexiste o negócio
de origem ou este é nulo por (i) ilicitude do objeto, (ii) incapacidade das partes
ou (iii) violação da forma exigida por lei.
Manifesta é a insuficiência, nestes casos, de teorias expansionistas do
negócio, mediante a vontade presumida, já que muitas vezes a atividade e a
vontade contratual se desenvolvem (independentemente, em desacordo ou até
mesmo) em oposição à vontade negocial. Além disso, restaurar o negócio, em
situações como essas, equivale à fraude à lei, alcançando-se os efeitos vedados pelo
legislador mediante exótica flexibilização de elementos essenciais.
Ao contrário, a admissão da relação contratual sem negócio permite
atribuir juridicidade a efeitos socialmente reconhecidos, a partir de qualificação a
posteriori da função da atividade realizada, estabelecendo-se, dessa forma, controle
de merecimento de tutela, à luz da legalidade constitucional, acerca de atos
praticados sem negócio jurídico de instauração (mas que, nem por isso, podem
ser considerados fora da lei), cuja eficácia, de ordinário, é mais restrita do que a
gama de efeitos almejados pelo negócio. Basta lembrar as hipóteses do funcionário
público cujo acesso à carreira não se deu por concurso público;15 ou do vínculo
15
A respeito, v. o Enunciado nº 363 da Súmula do TST: “Contrato nulo. Efeitos (nova redação)
- Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003. A contratação de servidor público, após a CF/1988,
sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º,
somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao
número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores
referentes aos depósitos do FGTS”.

183
Gustavo Tepedino

empregatício do apontador de jogo do bicho;16 ou do policial militar em empresa


de segurança privada, a despeito de vedação legal expressa;17 ou do menor que
adquire, por si mesmo, produtos ou serviços; ou ainda o exemplo dos sócios de
sociedade irregular ou da pessoa que integra modalidade de família inadmitida
pelo direito.18
Em todos esses casos, a invalidade dos negócios não exclui a admissibilidade,
para certos fins, de eficácia jurídica à atividade desenvolvida19. E somente graças
a artificialismo retórico se poderia afirmar que se pretendeu, em tais hipóteses,
celebrar ou extinguir uma série de negócios, alçando-se o mesmo efeito rejeitado
ora pela vontade expressa do declarante, ora pela lei. Torna-se, assim, incongruente,
nesses casos, falar-se em negócio jurídico, cuja admissão colidiria com matéria de
ordem pública, que pauta a teoria das capacidades, das formas ad substantiam e da
licitude dos bens passíveis de circulação.
A segunda ordem de consequências, no plano da responsabilidade, diz
respeito à teoria do inadimplemento, permitindo-se superar a rígida distinção
entre responsabilidade contratual e extracontratual, baseada na existência ou não
de negócio jurídico. Pela doutrina tradicional, a aplicação da responsabilidade
contratual depende exclusivamente do conteúdo do negócio celebrado entre as
partes, permanecendo a teoria da culpa in contrahendo, engendrada pelo gênio
16
A respeito, v. a O.J. nº 199 da SDI-1: “Jogo do bicho. Contrato de trabalho. Nulidade. Objeto
ilícito (título alterado e inserido dispositivo) - DEJT divulgado em 16, 17 e 18.11.2010. É
nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática
do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a
formação do ato jurídico”.
17
A hipótese é disciplinada pelo art. 22 do Decreto-lei n.º 667/1969: “Art. 22. Ao
pessoal das Polícias Militares, em serviço ativo, é vedado fazer parte de firmas
comerciais de empresas industriais de qualquer natureza ou nelas exercer função ou
emprego remunerados”.
18
Em interessante precedente, o Superior Tribunal de Justiça, baseado no princípio da
monogamia (compreendido pela Egrégia Corte como essencial ao regime das famílias
no ordenamento brasileiro), decidiu, ao analisar pretensões sucessórias das partes, pela
impossibilidade de reconhecimento de duas uniões estáveis simultâneas do de cujus – que,
após se divorciar, manteve união estável com a própria ex-esposa, bem como com segunda
mulher. In casu, foi privilegiada a união estável com a companheira com a qual não foi casado,
em detrimento da união com a ex-esposa (iniciada após o divórcio), reputada concubinato
diante da pré-existência da outra união (STJ, REsp. 1.157.273, 3ª T., Rel. Min. Nancy
Andrighi, julg. 18.5.2010).
19
Nessa esteira, entendeu o STJ que “a assertiva segundo a qual o negócio jurídico nulo é
desprovido de qualquer efeito é um evidente exagero. Na verdade, os efeitos de que é
desvestido o negócio nulo são aqueles próprios para os quais o ato foi praticado, não havendo
empeço a que, em razão da própria natureza das coisas, outro efeito a ele possa ser atribuído,
desde que não afronte lei imperativa. Assim, mesmo que se considere nula a escritura pública
de compra e venda, o documento pode ser considerado à conta de ato particular apto a gerar
direito à posse, o que já seria o bastante para viabilizar a procedência do pedido deduzido
em ação de imissão, sobretudo contra terceiros que não detêm nem justo título nem boa-fé”.
(STJ, 4ª T., REsp 1273955, Rel Min. Luis Felipe Salomão, j. 24.4.2014).

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de Jhering20 há mais de século, como único recurso para a responsabilidade


(extracontratual) de quem culposamente rompeu tratativas ou deixou de cumprir
o negócio preliminar, daí decorrendo a reparação por interesses negativos (o
prejuízo causado por quem deixou de contratar). Já o comportamento socialmente
típico permite verificar, a partir dos efeitos produzidos pelas tratativas efetivamente
levadas a cabo, o conteúdo contratual estabelecido na atividade realizada sem a
celebração de negócio jurídico, propiciando a deflagração de indenização por
interesses positivos.21
20
Culpa in contrahendo oder Schadensersaltz bei nichtigen oder nicht yur Perfektion gelangten
Veatragen, in Ihering Jahrbucher, 4, 1861, 1.
21
A matéria, de extrema atualidade, foi objeto de tese exaustiva, em dois densos volumes,
de Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo,
Coimbra, Coimbra Editora, 2009. Em rara referência expressa à indenização por interesse
positivo, entende o Superior Tribunal de Justiça pela proximidade do conceito com o de
lucro cessante: “Indenização. Contrato de mediação de seguros. Quebra da exclusividade.
Pretensão da corretora de receber comissão a título de lucros cessantes. Interesse positivo.
Prova. Ausência de dano. O lucro cessante não se presume, nem pode ser imaginário. A perda
indenizável é aquela que razoavelmente se deixou de ganhar. A prova da existência do dano
efetivo constitui pressuposto ao acolhimento da ação indenizatória. Caso em que a corretora
não se desincumbiu do ônus de comprovar a existência do dano sofrido com a quebra da
exclusividade” (STJ, REsp. 107.426/RS, 4ª T., Rel. Min. Barros Monteiro, julg. 20.2.2001).
Interessante precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo indenizou, por interesse positivo, o
contratante que se viu surpreendido pela ruptura das negociações em processo de licitação com
o Poder Público: “Direito civil. Responsabilidade civil pré-contratual. Sociedade de economia
mista. Ruptura da confiança depositada após negociação para formalização do contrato e
ausência de ato revocatório. Violação do princípio da boa-fé objetiva. Responsabilidade
aquiliana. Dever de indenizar. Cabimento. A ruptura injustificada das negociações para
celebração do contrato após adjudicação em procedimento licitatório, aliada à inexistência
de ato revocatório formal para dar ciência da vontade administrativa, proporcionando ao
licitante vencedor a ampla defesa e o contraditório, configura ofensa ao princípio da boa-
fé objetiva por deslealdade e rompimento do confiança depositada, impondo à sociedade
de economia mista o dever de indenizar ante a sua responsabilidade civil pré-contratual”
(TJSP, Ap. Civ. 0139502-81.2005.8.26.0000, 27ª C.D.Priv., Rel. Des. Gilberto Leme, julg.
9.8.2011). Mais recentemente, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul entendeu que
enseja responsabilidade civil pré-contratual a atitude desempenhada por empreendedor que
realiza e não cumpre promessa de instalação de redes âncoras em shopping center, de maneira
que tal informação teria sido crucial para a realização do contrato pelo comerciante, que se viu
surpreendido pela não instalação, a qual teria gerado o fechamento de sua unidade, inclusive.
Nesse sentido: “Caracteriza-se, na espécie, a responsabilidade civil pré-contratual. A boa-fé
contratual permeia o negócio jurídico antes, durante e depois da celebração do respectivo
contrato, seja qual for sua natureza. Existe uma relação de confiança na fase pré-contratual
que leva o comerciante a adquirir uma unidade no condomínio diante das garantias ainda
que meramente verbais que são dadas pelo empreendedor quanto ao sucesso do shopping,
atraindo o adquirente, o qual se convence, durante as fases de negociação, de que o contrato
a ser celebrado realmente poderia ensejar a cobertura de suas expectativas vendidas como
esperança pelo empreendedor quanto ao sucesso do negócio” (TJMS, 3ª C.C., Apel. Cív.
0016241-22.2012.8.12.0001, Rel. Des. Odemilson Roberto Castro Fassa, j. 9.11.2017).Vê-
se, contudo, que a boa-fé nem sempre se mostra suficiente à antecipação de efeitos contratuais,

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Gustavo Tepedino

A atividade contratual precede, por vezes, a celebração do negócio, quando


nas tratativas, minutas ou acordos preliminares se desenvolvem vínculos com
propósitos definitivos, parciais embora inteiramente aperfeiçoados, a despeito
da inexistência ainda do negócio jurídico, cuja celebração se encontra pendente,
na dependência da consecução de elementos essenciais, naturais ou acidentais,
pretendidos pelas partes (formação contratual progressiva). Em outras hipóteses,
embora consumados todos os efeitos previstos no negócio, extinguindo-se
inteiramente o conteúdo negocial, remanesce a atividade empreendida entre as
partes, sendo razoável cogitar-se da expansão da relação contratual para além
da extinção do negócio (poder-se-ia falar, então, em uma extinção contratual
progressiva). Não se trata aqui, convém anotar, de projeção de deveres anexos para
além da extinção do contrato, senão de atividade levada a cabo após o exaurimento
dos efeitos do negócio jurídico originário.
Em ambos os cenários acima descritos, as atividades anteriores e posteriores
ao negócio coincidem com uma espécie de contratação em etapas.22 Na formação
progressiva do contrato, no que concerne aos vínculos efetivamente assumidos,
mostra-se legítimo reconhecer a existência de relação contratual, a despeito da
inocorrência de celebração do negócio jurídico pretendido pelas partes. Em
consequência, o descumprimento, nestas fases, relativamente a determinados
vínculos, constitui-se em inadimplemento contratual. Basta pensar nos vínculos

quando ainda não se aperfeiçoou, sendo mais seguro, por isso mesmo, reconhecer interesses
positivos desde que em presença de atividade contratual.
22
Embora com matizes diferenciados, a formação progressiva do contrato não se constitui
em designação recente, tendo sido sugerida por Franceso Carnelutti no início do Séc.
XX: Formazione progressiva del contratto, in Rivista di diritto commerciale, 1916, I, pp. 308
a 319. Em sugestiva síntese, Carnelutti observa: “la strada del contratto viene percorsa
a tappe” (p. 315; em tradução livre: A estrada do contrato é percorrida por etapas). V.,
ainda, sobre o tema, Vincenzo Riucciuto, La formazione progressiva del contrato,in Enrico
Gabrielli (a cura di) contratti in generale, in Trattato dei Contratti diretto da Pietro Rescigno
ed Enrico Gabrielli, tomo I, Torino, UTET 2006, 2° ed. p. 177 a 322. Para o autor,
durante as tratativas, trata-se de “individuar o conteúdo de tais momentos intermediários, e
reconstruir-lhes a função, na perspectiva de compreender sua idoneidade para a produção
de efeitos juridicamente relevantes, que poderão mostrar-se ora finalizados à definição do
regulamento de interesses querido pelas partes, a ser alcançado tão somente com a avença
contratual; ora eles próprios definitivos, configurando-se aquele momento, a bem observar,
só aparentemente intermediário; mas em realidade, segundo a reconstrução da vontade
das partes, compreendido em uma fattispecie negocial, a qual, por sua estrutura e função,
bem se apresenta com os característicos de natureza definitiva e de completude de um
regulamento contratual. No original: trata-se de “individuare il contenuto di tali momento
intermedi e ricostruirne la funzione, nella prospettiva di comprenderne l’idoneità a produrre
effetti giuridicamente apprezzabili, che potranno apparire ora finalizzati alla definizione
dell’assetto di interessi voluti dalle parti, che si avrà solo con la regola contrattuale; ora
essi stessi definitivi, configurandosi, quel momento, a ben vedere, solo apparentemente
intermedio, ma in realtà, secondo la ricostruzione della volontà delle parti, riconducibile a
una fattispecie negoziale, che, per struttura e funzione, ben si presenti con i caratteri della
definitività e della completezza di un regolamento contrattuale” (p. 179).

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(definitivos) de confidencialidade e de exclusividade que usualmente se estabelecem


durante certa tratativa contratual.23
Há de se ampliar, portanto, a eficácia do contato social vinculante.
Portentosa afigura-se a jurisprudência a reconhecer, intuitivamente, efeitos de
atividades decorrentes de negócios nulos por ausência de capacidade das partes, de
forma exigida por lei ou de objeto lícito, sendo significativa a solução preconizada
na Justiça do Trabalho – que cogita, em tais hipóteses, para o reconhecimento
da eficácia da relação laboral, do “princípio da primazia da realidade”.24 Embora
louvável pelos resultados positivos produzidos em favor do trabalhador, tal solução
acaba por decretar a vitória dos fatos contra o direito,25 como se este não desse conta
de promover a pessoa humana, e como se, por outro lado, o elemento formal se
circunscrevesse à tutela patrimonial, podendo ser afastado, pura e simplesmente,
como mero “formalismo”, quando defasado do fato social, embora a forma
essencial configure matéria de ordem pública. Já no campo do inadimplemento
pré ou pós-contratual, hesitante se mostra a jurisprudência, sem conseguir definir
critérios estáveis para a produção de efeitos (contratuais) na ausência de negócio
jurídico válido de instauração da atividade desenvolvida26.
23
A literatura italiana é copiosa acerca da eficácia jurídica da fase pré-contratual. V., dentre
outros, Aurelio Candian, Questioni in tema di formazione dei contratti, in Rivista di diritto
commerciale, 1916, I, pp. 854 a 886; Lucio Ricca, Carattere vincolativo della minuta nella
fase precontrattuale, in, Giustizia Civile, I, 1961, p. 1668 a 1673; Angelo Luminoso, La
lesione dell’interesse contrattuale negativo (e dell’interesse positivo) nella responsabilità civile in
Contratto e impresa, 1988, n. 1., Cedam, Padova, pp. 792 a 803; Pier Giuseppe Monateri,
La responsabilità contrattuale e precontrattuale, Torino, UTET, 1998; Renato Speciale,
Contratti preliminari e intese precontrattuali, Milano, Giuffrè, 1990; Giovanni D’Amicco,
Regole di validità e regole di comportamento nella formazione del contratto, in, AAVV, Studi in
onore di Piero Schlesinger, Tomo II, Proprietà e diritti reali, Milano, Giuffrè, 2004, pp. 1.043
a 1.073; Rodolfo Sacco, La conclusione del accordo, in Enrico Gabrielli, (a cura di) Contratti
in generale, in Trattato dei Contratti diretto da Pietro Rescigno ed Enrico Gabrieli, tomo I,
Torino, UTET, 2006, 2° ed., p. 7 a 173; Natalino Sapone, La responsabilità precontrattuale,
Milano, Giuffrè, 2008.
24
Relata Américo Plá Rodriguez que, em sua formulação original, o termo
“contrato‑realidade”, cunhado por Mario de La Cueva, fazia alusão apenas ao fato de que o
contrato de trabalho seria fundamentalmente distinto dos contratos civis, na medida em que
estes dependeriam tão somente do acordo de vontades para sua configuração, ao passo que o
contrato de trabalho é também necessário à efetiva prestação do serviço, de tal modo que a
existência da relação contratual de trabalho depende da situação real em que o trabalhador se
ache colocado. A expressão, porém, adquiriu posteriormente o sentido de que, “em matéria
trabalhista, há de primar sempre a verdade dos fatos sobre os acordos formais”, acepção que
acabou por prevalecer na prática jurisprudencial (Princípios de direito do trabalho, São Paulo:
Ed. LTr, 1996, p. 217‑222).
25
Toma-se por empréstimo o célebre título de Gaston Morand, “A revolta dos fatos contra os
Códigos”, que se consagrou no século XIX como verdadeiro libelo contra a escola da exegese,
denunciando justamente seu excessivo formalismo.
26
A propósito, destacou o Superior Tribunal de Justiça:“A responsabilidade pela confiança é
autônoma em relação à responsabilidade contratual e à extracontratual, constituindo-se em
um terceiro fundamento ou ‘terceira pista’ (dritte Spur) da responsabilidade civil, tendo caráter
subsidiário: onde houver o dano efetivo, requisito essencial para a responsabilidade civil e não

187
Gustavo Tepedino

Para que se possam suplantar tais dificuldades teóricas, há de se


abandonar o negócio como único instrumento de aferição do papel da
vontade. Supera-se, nessa linha de raciocínio, a perspectiva que circunscreve
a atuação da vontade à seara do negócio jurídico e à ausência de fontes
heteronímicas de integração. Se a liberdade há de ser exercida à luz da
legalidade constitucional, em respeito e em harmonia com a solidariedade
social, o exame de licitude e de merecimento de tutela dos atos se projeta
tanto nos negócios como em atividades realizadas mediante a prática de atos
extranegociais.
O princípio da autonomia privada, longe de ser absoluto 27, insere-se
no tecido axiológico do ordenamento, no âmbito do qual se pode extrair
seu verdadeiro significado. Encontra-se informado pelo valor social da
livre iniciativa, que se constitui em fundamento da República (art. 1º, IV,
C.R.), 28 corroborado por numerosas garantias fundamentais às liberdades,
que têm sede constitucional em diversos preceitos, com conteúdo negativo
(princípio da legalidade, ex vi do arts. 5º, II, 170, parágrafo único, C.R.) e
positivo (arts. 1º, III, 3º, I e III, C.R.).
Segundo o Texto Constitucional, a liberdade de agir, objeto das
garantias fundamentais insculpidas no art. 5º, associa-se intimamente aos
princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1, III), fundamento da
República, da solidariedade social (art. 3º, I) e da igualdade substancial
(art. 3º, III), objetivos fundamentais da República. Significa dizer que a
livre iniciativa, além dos limites fixados por lei, para reprimir atuação ilícita,
deve perseguir a justiça social, com a diminuição das desigualdades sociais
e regionais e com a promoção da dignidade humana. A autonomia privada
for possível obter uma solução satisfatória pelos caminhos tradicionais da responsabilidade,
a teoria da confiança será a opção válida. (...) A responsabilidade pela quebra da confiança
possui a mesma ratio da responsabilidade pré-contratual, cuja aplicação já fora reconhecida
pelo STJ (REsp 1051065/AM, REsp 1367955/SP). O ponto que as aproxima é o fato de
uma das partes gerar na outra uma expectativa legítima de determinado comportamento,
que, após, não se concretiza. O ponto que as diferencia é o fato de, na responsabilidade
pré-contratual, a formalização de um contrato ser o escopo perseguido por uma das partes,
enquanto que na responsabilidade pela confiança, o contrato, em sentido estrito, não será, ao
menos necessariamente, o objetivo almejado” (STJ, 4ª T., REsp 1309972/SP, Rel. Min. Luis
Felipe Salomão, j. 27.4.2017).
27
Sobre o tema, anota Ricardo Lorenzetti: “O exercício da liberdade deriva em uma regra
de autonomia que importa a possibilidade de decidir sem condicionamentos externos. Não
se trata de decidir sem limites, já que estes existem, como temos visto no ponto anterior,
e são derivados dos direitos dos outros e dos bens públicos. Trata-se que dentro do espaço
de autonomia concedido pelo ordenamento jurídico o sujeito possa decidir por si mesmo”
(Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do direito privado, São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1998. P. 502).
28
Destacam a proteção constitucional da livre iniciativa como princípio informador da
autonomia privada, Orlando Gomes, Transformações do Direito das Obrigações, Rio: Forense,
1967; Francisco Amaral¸ Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 359.

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adquire, assim, conteúdo positivo, impondo deveres à autorregulamentação


dos interesses individuais, de tal modo a vincular, já em sua definição
conceitual, liberdade à responsabilidade.29
Como se vê, a ideologização da vontade (a exasperá-la ou demonizá-la) acaba
por prejudicar a dogmática do direito civil, reduzindo, de maneira inquietante, o
debate jurisprudencial (relacionado ao controle da atividade econômica privada,
à execução específica das obrigações e à responsabilidade civil) à posição política
do magistrado em relação ao consumidor, ao fornecedor, à Fazenda Pública,
ao empresário, ao empregado e assim por diante. Daí o empobrecimento da
dogmática e da jurisprudência. O caminho parece ser, em contrapartida, o respeito
à autonomia privada sem mistificá-la, controlando-se evidentemente as forças de
produção e o mercado, para que não venham estes a moldar a doutrina contratual
e a teoria da interpretação.
A partir do controle (positivo e negativo) da autonomia privada nas relações
concretas, fragmenta-se o tratamento abstrato que reduz a atividade contratual
a standards estáticos, incapazes de qualificar funcionalmente a autonomia de
acordo com os interesses em jogo. Em seguida, e em consequência, autonomia
patrimonial e existencial hão de ser apartadas, sendo incompatível com o sistema
a utilização da técnica patrimonial para a tutela da personalidade.
A atividade privada, em última análise, estabelece-se mediante atos de natureza
diversa, funcionalmente convergentes, pouco importando tratar-se de atos stricto
sensu, atos-fatos ou mesmo negócios jurídicos, integral ou parcialmente válidos. A
valoração funcional desse conjunto de manifestações amplia as possibilidades de
controle social e de promoção dos valores existenciais, mantendo-se o intérprete
atento não às suas escolhas pessoais, mas à tábua axiológica complexa e unitária
definida pela Constituição da República.

29
Nesta direção, leciona Federico Castro y Bravo, El Negocio Jurídico, Instituto Nacional de
Estudios Politicos, Madrid, 1967, p. 29, segundo o qual, na dinâmica dos negócios jurídicos,
a definição de finalidades a serem alcançadas pelos particulares “no sopone disminuir el
alcance de la autonomía de la volontad, sino pó el contrario tenerla em cuenta em su doble
aspecto de libertad y de responsabilitad”.

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