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CONTOS

Moreira
Campos
O Cachorro
Ora, o diabo do cachorro me estragou o resto
da tarde! Havia bem dois meses que não nos
víamos. Eu vinha pela calçada do mercado
quando ele me avistou, e foi uma festa! Atirou-
se contra mim, patas erguidas, o rabo parecia
um espanador, porque ele é felpudo. Segurei-o
pelas orelhas, apertando-lhe a cabeça com
ternura, como sempre fiz. Isso como que o
enlouqueceu: eram os amigos que se
reencontravam. Talvez há muito tempo fizesse
a si mesmo esta pergunta: “Aonde ele anda?”
Embaraçava-se nas minhas pernas, correu até
a esquina, onde levantou a perna e urinou,
claro de alegria: uma inocência de criança. Não
me deixou mais, vinha ao meu lado.
A dona dele é Marta. Criou-o desde
pequeno, como me disse. Recebeu-o numa
caixa de papelão e lhe dava o leite na
mamadeira, ela ou a preta Nicota.
Namorei Marta quase um ano. Menina
tranquila, interessante, bem feita de pernas.
Nasceu para ser mãe, tudo nela fala de
maternidade, até a maneira como agarrava
Japi, agarrando-o nos braços e deixando que
ele lambesse o rosto. Namoro de janela.
Depois passamos a freqüentar o banco da
pracinha, porque as diversões aqui são poucas,
o próprio cinema fechou. Japi nos
acompanhava. Às vezes, Marta o prendia em
casa, mas ele pulava a janela. Com o tempo,
também me anunciava de longe. Evidente que
Marta sabia a hora da minha chegada: daria os
últimos retoques, a gota de perfume atrás das
orelhas bem feitas, muito coladas à cabeça.
Mas Japi dava o sinal: latia na porta, vinha ao
meu encontro, acompanhava-me.
Os pais de Marta aprovavam o namoro.
Sou o funcionário novo do Banco. Fazia o
segundo ano de Direito na capital, mas preferi
o concurso do Banco e me designaram para o
interior. O cumprimento respeitoso do pai de
Marta, um bater de cabeça. Homem calado,
sério. E funcionário público: dirige o posto
fiscal. Um dia apertou-me a mão ali na janela.
A mãe de Marta, muito simpática. O riso
manso, grande ternura pela filha única, que ela
discretamente examinava para saber se se
preparava bem para receber-me.
- Eu gosto mais daquela blusinha de
gola alta.
Marta tinha, e tem, independência:
- Não, esta está bem.
Ela própria me contava essas coisas,
rindo.
Eu já seria de dentro de casa. Em dia
de folga, um domingo ou feriado, Nicota me
trazia na bandeja a fatia de bolo, com o copo
de refresco e o pequeno guardanapo em bico
de renda, que eu apreciava. Requintes da mãe
de Marta, dona Dadá, porque Nicota, por ela
mesma, é preta velha solta dentro do vestido,
um pé na chinela. Dona Dadá é admirável em
trabalhos de agulha, bordados. Verdadeiras
filigranas. O pai de Marta, Seu Alfredo, já
brincava com a filha na minha presença e me
indagava dos negócios no Banco.
Tive a desconfiança de que a mãe de
Marta cuidava, com antecipação, de alguma
peça do enxoval para a filha. Digo isso porque
um dia surpreendi as duas na loja do Seu
Eurico, e ambas se vexaram. Dona Dadá se
explicava:
- Ando aqui atrás de umas linhas.
- Sei, sei.
Acontece que apareceu Denise, na
época das férias. Estuda em colégio de freiras
na Capital e é filha do prefeito Aniceto, quase
dono do município, com duas ou três fazendas
por aí. Ele e o gerente do Banco são bons
amigos. Tomam café no gabinete, riem, o
gerente o acompanha até a porta.
Denise é deliciosa. Em toda ela uma
exuberância de interna que se libertou das
freiras. A pele alva, os cabelos negros. Os
olhos fogem, enquanto finge examinar o
esmalte das unhas. Foi assim que a vi e
conversei com ela em noite de retreta. Os
encontros se repetiram. Apareço na janela de
sua casa, que é uma casa grande na esquina,
com varandas, ou passeamos pela calçada até
o fim da outra rua, que é lugar calmo e deserto,
a lâmpada do poste queimada. A mãe de
Denise, também muito simpática. O prefeito
sempre me atirou a mão de longe, expansivo.
Denise me disse que não quer mais
voltar para o colégio.
Foi difícil afastar-me de Marta. Pouparei
detalhes. Houve a necessidade de mentiras e
desculpas. Vexames. Tenho sabido que ela se
nega a falar até com as amigas. Tranca-se no
quarto. Em verdade, auxiliou-me muito a sua
própria dignidade. O pai me evita. Quando me
vê, torce caminho. Também faço o mesmo. E
quando isso não é possível, passamos um pelo
outro de olhos no chão, eu fingindo olhar os
meus sapatos.
Elvira, a amiga mais chegada de Marta,
diz na pracinha que eu sou um “canalha”.
- Deixa pra lá!
E agora me aparece o diabo desse
cachorro! A mesma alegria de sempre.
Conversa! Alegria bem maior, imensa.
Descobriu-me. Corre à minha frente, volta,
gruda-se, acompanha-me os passos pela
calçada que me leva à minha pensão. Pára de
repente: parece estranhar tudo, como se
quisesse dizer que a rua e a casa eram outras.
Já na porta da pensão, termino por
aborrecer-me. Enxoto-o, grito:
- Vá embora! Vá embora!
Ele permanece. Insisto:
- Vá embora!
Olha-me, baixa a cabeça e, por fim,
toma o seu caminho. Acabo de limpar com o
lenço, que trago sempre perfumado, o resto de
lama que as suas pequenas patas deixaram
nas minhas calças e entro na pensão. Pensão
medíocre, anônima, onde, já aquela hora, os
seres comem em silêncio, debruçados sobre os
pratos.
O PRESO
Dr. Antero, charuto na boca, em mangas de
camisa e suspensórios, derramava-se na
espreguiçadeira naquela tarde de sábado, os
braços para cima, no alto da calçada. Já a
sombra das casas deitava-se larga sobre a
praça da estação. Viera até ali para uma
questão de terras e hospedara-se na casa do
próprio tabelião, conhecido velho. Estudara o
processo, arrazoara, a pedido seu o do cartório
antedatou um documento, e o Dr. Antero
deveria voltar na manhã seguinte.
Ao lado, o tabelião, na blusa de pijama e
chinelos, jogava gamão com o farmacêutico,
figura seca e encurvada, num grande nariz.
- Quina, compadre! - disse o serventuário,
esfregando os pés um no outro embaixo da
cadeira. - Dou-lhe uma, dou-lhe duas. Tire esta.
O farmacêutico recolheu a pedra num
silêncio concentrado. Homem de poucas
palavras, quando perdia ficava mudo e
aborrecia as expansões do outro.
Dr. Antero tornou a estender a vista sobre a
praça. Tirou o charuto melado da boca,
cuspindo peles de fumo:
- Há vinte anos que conheço esta terra, e
não muda! Já vinte! A mesma coisa. Agora
pior, parece.
O do cartório, que era do situacionismo,
guardou silêncio. O da farmácia aproveitou-se:
- Falta de um homem na Prefeitura.
- Ah!, isso não, compadre, que ele até tem
se esforçado.
- Aonde? Quer dizer a mim?
Dr. Antero escarrou:
- A falta de administração é geral. Uns
irresponsáveis!
- Muito bem!
- Cinco e três. Casa de novo, compadre.
Tira a sua pedra.
Dr. Antero falava por fado. Mas no
momento até aprovava aquela falta de
progresso: saturado da capital, todo ele
repousava na paz dormente do lugarejo.
A estação em frente. Carros de carga no
desvio. Um empregado da estrada de ferro
passou firmado na muleta, a lanterna apagada
na mão. Um carro de boi esquecido à sombra
de velha mangabeira. Perto da cerca, mais à
distância, na grama verde, porque era fim de
inverno, crianças se divertiam com uma bola de
meia, possivelmente. Trecho de serra em
frente, saindo por trás da estação, onde as
nuvens caíam em grandes manchas na tarde.
O tabelião lembrou-se de que estava na
hora do café, e dali mesmo, curvando-se um
pouco, gritou para dentro de casa através do
corredor úmido e escuro:
- Belinha, um cafezinho aqui, nega.
- Vai já.
Foi aí que Dr. Antero resmungou na
cadeira:
- Lá vem gente presa.
Os olhos ergueram-se do gamão e o dono
da casa girou a cabeça para ver melhor:
- Vem mesmo.
Um velho mirrado e de pele escura puxava
um jumento pelo cabresto, entre dois soldados
do destacamento. Atrás vinham alguns
moleques, guardando distância, já enxotados
pelos soldados.
Ao aproximarem-se da casa, Dr. Antero
levantou-se:
- Que há?
O grupo estacou. Os moleques tomaram
chegada e se postaram de braços cruzados e
escorados nas pernas.
- Ele estava na feira... - iniciou-se um dos
soldados.
- Doutor, me solte pelo amor de Deus! Eu
peço a vosmecê pela sua bondade. Não fiz
nada, acredite.
Esqueceu-se o jogo. Já havia gente nas
calçadas e janelas das outras casas. Dona
Belinha trouxe a bandeja com café e ficou
esquecida também, nas pontas dos pés, para
olhar por cima do ombro de Dr. Antero. Alguém
derrubou o tabuleiro de gamão: bozó, pedras e
dados por baixo das cadeiras.
- Um momento. Mas, afinal? - tornou Dr.
Antero.
- Ele tem um apelido. Caroço.
- Mas me chamo Inácio! Que eu não posso
atender por um nome desses...
Houve risos em volta e os olhos se
detiveram num lobinho que quase cobria a vista
esquerda do velho.
- Como? - fez Dr. Antero, pondo a mão em
concha no ouvido.
- Caroço. É um apelido. Brincadeira de
menino. Começaram a aperrear ele na feira.
Zangou-se, deu com o cacete pra trás e pegou
no menino na altura da testa.
- Mas só foi na pele. E eu mesmo fiquei
agoniado e procurei estancar o sangue. Um
vexame, doutor. Frecham em riba de mim todo
o tempo. Empurram, atiram casca de banana,
toda porqueira que dão de garra (com licença
de vosmecê). Vem isto de anos. Já quis até me
mudar de canto, se pudesse. Apelo para vossa
senhoria.
Dr. Antero irritou-se:
- Isto vale nada! Soltem o pobre homem!
Inácio tomou-se de grande esperança,
enquanto olhava para os que o detinham:
- Muito bem, muito bem, doutor!
- Não pode. O menino ferido é filho de Dr.
Targino - falou o soldado.
- De quem?
- É filho do juiz de direito - esclareceu o
farmacêutico ao lado.
- Meu velho, pra que você fez isso! - disse
Dr. Antero, já sorvendo o café e perdendo um
pouco do primeiro entusiasmo.
- Não 'tava no meu propósito. Eu peço aos
senhores. Me soltem, que eu não tenho
paciência de ser preso. Nunca fui. É o que eu
digo aos meninos lá em casa. Não tenho
paciência de ser preso.
Riram muito com a frase. O tabelião
divertia-se, vermelho e todo sacudido pela
novidade. Sungava as calças com os cotovelos
e comentava em volta de um para outro:
- Hein? Hein? Que tal? Esta é boa! "Não
tenho paciência...". Como é que ele diz?
- Eles soltam logo, meu velhinho - adiantou
Dona Balinha, fazendo sinal ao marido para
conter-se.
- Soltam não, dona. Eu sei o que é isso.
O velho apanhava numa das mãos o
chapéu de palha desfiado nas abas, o cabresto
do jumento enrolado na outra. Pés descalços.
Os cotos de unhas negros, comidos pela terra,
lembravam nós. Calcanhares gretados. As
calças de morim ralo e sujo, curtas nas pernas
e com joelheiras. No pescoço fino e de pele
engelhada, uma medalha barata num cordão
sebento. Os olhos miúdos e escuros
confundiam-se com a pele, lá dentro, um deles
diminuído pelo lobinho.
Era grande o seu ar de aflição, dirigindo-se
a todos os lados, com apelos gerais:
- Vim vender banana nesses caçuás. Antes
não tivesse vindo.
Repetia-se, pedinte:
- Moços, vosmecês todos, me soltem, que
eu não tenho paciência de ser preso.
Voltavam a rir:
- Ora, veja!
O jumento, de quando em quando, soprava
forte nas narinas, baixando a cabeça, ou dava
com a pata traseira para tanger as moscas que
lhe mordiam a pisadura na cilha.
O soldado mais novo insistia em que a
prisão fosse feita. O outro quase não falava.
Limitava-se a soltar cusparadas de lado: nariz
vermelho, gordo, o casquete colocado
ridiculamente no alto da cabeça, o cinto frouxo
na barriga. Piscava e comia os beiços, num
tique comum aos que bebem. Dava a
impressão de que tudo aquilo para ele era uma
grande maçada. Obedecia.
- Toca! - falou o mais novo.
O grupo retomou a marcha.
- Eu não tenho paciência de ser preso.
Já iam distantes, e aqui na calçada o
tabelião rindo, enquanto procurava pelo chão
um dos dados:
- Como é que ele dizia mesmo?
- "Me soltem, que eu não tenho paciência
de ser preso".
- Aparece cada uma!
- Isto é uma judiação! - falou Dona Belinha.
- É assim mesmo. Talvez ele tenha bebido,
e foi violento - concluiu Dr. Antero,
derramando-se na espreguiçadeira.
Era frente à cadeia, amarraram-lhe o
jumento no tronco da mangueira e o meteram
na primeira cela, com grades para a praça. Ele
ainda se agarrou às barras de ferro da porta,
numa súplica:
- Me soltem... eu peço ao senhor.
O soldado girou o molho pesado de chaves
e os seus passos se perderam ao longo do
corredor.
Vindo da luz, Inácio enxergava pouco ali
dentro. Apertava os olhos, pondo a cabeça de
lado para orientar-se. Acocorou-se a um canto,
onde os olhos miúdos brilhavam. Por fim, foi-se
acostumando à sombra: a cela era espaçosa e
alta, chão de tijolo úmido, em cima um
travejamento forte e antigo. Passou o dedo no
tijolo e provou o barro vermelho, supondo que
ali tinham guardado sal noutros tempos.
Descobriu um caixão de querosene perto da
janela, e acomodou-se melhor. Revia os seus:
a filha, a mulher e os meninos. Dizia-lhes
sempre: "Nunca fui preso, e filho meu não me
dá esse desgosto. Está no bom comportamento
de cada um". Não sabia porquê, insistia o rosto
da filha, que tinha os seus pequenos olhos, o
cabelo apanhado num cocó. Encarregava-se
de levar-lhe o prato de comida ao roçado,
enrodilhado num pano, a colher de latão de
través. Ficavam os dois no canto da cerca, sob
a sombra do cajueiro, enquanto ele almoçava.
O rosto da filha agora encarava-o de perto, em
cima, sem compreender o olhar espantado.
Levantou-se e deu várias passadas na
cela. Parou em frente à janela. Os olhos
ficavam no plano do peitoril e podia avistar o
jumento, que cochilava paciente, o cabresto
muito curto, os caçuás ainda na cangalha. De
quando em quando dava com a pata traseira
para frente, tangendo varejeiras.
Ao fundo, a calçada alta, com batentes, de
um trecho do mercado. O sol cambava,
filtrando-se horizontal e vermelho na luz branda
da tarde, e punha na parede da cela os
retângulos da grade.
Inácio aproximou o caixão de querosene da
janela e alçou-se até a soleira.
O menino que ia passando em frente à
cadeia assustou-se vendo aquele braço escuro
a acenar-lhe entre as barras de ferro:
- Tenha medo não, meu filho.
- Hem?
- Ouça. Aí mesmo da ponta da calçada.
- Que e?
- Olhe, solte ali aquele jumento. Ele é meu.
Quer se deitar e não pode. Tire o cabresto e
me dê.
- Vai embora.
- Faz mal não. O menino obedeceu e
entregou-lhe a corda pela janela.
Quando no outro dia pela manhã o soldado
empurrou a porta pesada, Inácio pendia
enforcado da grade da janela, o nó apertando-
se no terceiro varão, o caixão de querosene
caído de lado.
- Oh!
O rosto estava arroxeado e intumescido, a
língua de fora, os pés esticados para baixo,
roçavam a parede. O lobinho parecia
tragicamente maior.
- Que coisa! Aqui, aqui! Ora, vejam!
Presos, soldados, gente das casas
vizinhas, e, dentro em pouco, uma grande
multidão à porta da cadeia.
A frase tomou conta das consciências.
Pelas nove horas, o tabelião, ao assinar uma
escritura, ainda a repetia, arrastando a pena no
papel:
- "Me soltem, que eu não tenho paciência
de ser preso".
Dona Belinha misturava-a com o caldo na
cozinha, enquanto girava a colher de pau. 0
farmacêutico triturava-a com o pó que mexia no
almofariz.
Já o trem de Dr. Antero partira. Tentou a
leitura de uma revista, que atirou de lado. - "Me
soltem, que eu não tenho paciência de ser
preso".
Ergueu-se, foi ao carro-restaurante, tornou
à sua cadeira. Olhou pela janela. Um açude,
bois que pastavam, carnaubeiras e, logo a
seguir, a ponte de ferro. As rodas do carro
matraqueavam nos trilhos num ritmo que
reproduzia a frase inesperada:
- "Me soltem, que eu não tenho paciência
de ser preso. Me soltem, que eu não tenho
paciência de ser preso".
O Peregrino
Chão rude, áspero, mais de pedregulhos. Um
que outro bode ou cabra nas escarpas. O vento
e os redemoinhos de folhas secas. Sobre os
lajedos, ao meio-dia, modorravam lagartos. Os
casebres em distância de léguas. Seres em
farrapos, as calças dos homens em tiras dos
joelhos para baixo, olho da enxada ao ombro.
As mulheres mal podendo apresentar-se: os
restos de roupa remendados não cobriam bem
as vergonhas. Esse o pudor com que elas se
entremostravam, escondidas no umbral da
porta para servir a caneca d'água, moringa na
mão, olhos em terra. Nesse mundo Belarmino
lavrava o roçado onde possível: o veio d'água,
o poço barrento, que os músculos rijos
aprofundavam no verão maior. Trabalhava o
roçado em companhia do filho, até o dia em
que a cobra, em mudança de pele, cega, muito
veneno nas presas, picou o rapaz perto do
buraco do antigo formigueiro sob a oiticica,
única mancha permanentemente verde naquele
mundo de cinzas. O garrote de tira de pano no
tornozelo, onde o beiço da pele já crescia duro
e roxo. A vista empanada, quase sem luz, o
delírio no fundo da tipóia: - Água. O ferro em
brasa, que a própria mulher do filho trou xe da
trempe de tijolos na cozinha. O gemido,
contorções do corpo. A pele de fumo voltou a
cobrir a ferida. Morreu três horas depois. Longe
os vizinhos. Légua e meia o mais próximo.
Belarmino teve de ir até lá (o cachorro
enrolavase no chão sob a tipóia do morto).
Trouxe outros seres em molambos e grunhidos.
E a marcha fúnebre - tipóia oscilante presa à
estaca de sabiá - se fez em direção ao distante
arruado, onde havia a capela e o telheiro
abatido do mercado. No mais, a solidão da
noite e dos seres. A viúvamenina, sem
lágrimas. Duro mundo, carente de umidades.
Muitas lições de renúncia. Tão trabalhados
todos como a escarpa fendida e crestada pelo
tempo, por onde subiam bodes e cabras. -
Ahn?
- Ô. Eram as palavras, na noite que se
comprimia, se fechava, vinda dos horizontes,
da ramaria seca, de onde voavam bacuraus.
Da folhagem do imbuzeiro chegava o rasgo da
coruja, sem que o mau agouro espantasse
mais. Apenas o cachorro erguia as orelhas,
consultava o imbuzeiro e latia, insistente. - Te
cala, bicho! O menino chorava no berço de
varas. A viúva-menina enfadava-se. Erguia-se,
limpava com a mão o cisco ligado aos
molambos do vestido (a nudez moça e magra
contra a chama da trempe na cozinha ou à luz
do dia) e servia o mingau de farinha ao filho.
Continuou a levar ao roçado o prato de comida
ao sogro, naquele tamanho meio-dia, a colher
de latão de través no amarrado do pano. O
cachorro a acompanhava, desviando-se pelas
veredas: o faro de um que outro preá, mais
presente, em pulsações de narinas, no cair da
tarde. Belarmino fincava a enxada no barro.
Voltava a correr o indicador na testa para livrar-
se do suor. Cuspia cuspo grosso. Deslocava-se
do canto da boca e punha na pedra a masca de
fumo. Sentava-se, benzia-se e iniciava o
almoço. Palavras poucas. Mais os
pressentimentos e a compreensão das duras
coisas do mundo. Tanto que ela não se
assustou quando ele um dia pousou a mão
áspera, de muitos calos, um casco, sobre a sua
coxa magra. Antes deu-se, sem espanto. Um
objeto. Sabia que os olhos dele já lhe varavam
o vestido ralo à luz da trempe ou do dia. Entre-
gou-se à sombra do oitizeiro, forrando-se com
o próprio pano em que envolvia os pratos. O
cachorro, apoiado nas patas traseiras, orelhas
sempre erguidas, foi a única testemunha, sem
contar o anum, que teve vôo rasteiro de uma
estaca para outra da cerca, ou o lagarto que
correu entre folhas secas. Ela pôs barriga,
apareceram as olheiras. A falta de ar já não lhe
permitia levar a comida ao roçado. Belarmino
valia-se da própria trempe de tijolos sob o
mesmo oitizeiro. A notícia correu de boca em
boca, de légua em légua, ouvidos apurados.
Uma velha benzeu-se. No nono mês, o próprio
Belarmino lhe fez o parto, panela d'água
fervente na trempe da cozinha, os molambos
molhados. O umbigo do filho ficou crescido
pelo corte sem arte. E assim, de grande
umbigo, ele começava a engatinhar no chão de
barro, o meio irmão já firme nas pernas, o
volume da barriga (não perdia o vício de comer
barro). Riam os dois, o cachorro entre eles
brincando de esconder-se, tudo menino. Um
dia, bateu à porta do casebre o Peregrino.
Grande chapéu de palha, o camisolão com o
cordão de São Francisco, as alpercatas e o
cajado. Nos tornozelos, grudado, o pódas
longas estradas. Pregava a Bíblia, os
ensinamentos de Deus, em febre de vozeirão e
chamas do inferno. As loucuras. A grande
barba negra, partida ao meio, tremia. Já trazia
notícia daquela mancebia e incesto. Baixou os
olhos diante do vestido ralo da viúva-menina,
que já se protegia no umbral da porta. Viu
todos: Belarmino, o menino mais crescido, o
filho do incesto, que engatinhava e ria sem
dentes, o grande umbigo. Pediu pousada, que
lhe foi dada na esteira de palha da sala. A noite
caiu. Os mesmos seres sem palavras. Mais,
em tom de voz e luta com as trevas, as
andanças do Peregrino, o mundo de chão que
lhe comera as sandálias. - Este mundo de meu
Deus! - dizia, abrangendo o todo num grande
gesto. Não teve recriminações bíblicas.
Cessaram ali as chamas do pecado, das
condenações eternas. Apagou-se o fogo do
inferno. Talvez tivesse tido a intuição de que a
palavra de Deus era pequena ou grande
demais para compreender a necessidade e a
solidão. A mão cabeluda, de unhas sujas,
voltou a agradar a cabeça dos meninos.
Agradeceu a dormida e o alimento. Apoiou-se
ao cajado, e as suas sandálias voltaram a
palmilhar os caminhos do mundo.
IRMÃ CIBELE E A
MENINA
Quando a mãe dos meninos morreu, Dona
Madalena, que é espírita e mulher de muito
prestígio (à tarde, toma o automóvel do marido,
dirigido pelo motorista, e sai em visita aos seus
pobres e doentes) recolheu as crianças e as
distribuiu como pôde. Falou com Irmã Cola
para ficar com a menina, que, por sinal, não é
tão menina: tem as pernas bem-feitas e os
cabelos bonitos, elogiados pela empregada da
casa, ainda na hora em que ela saía:
– São lindos os cabelos dela!
Dona Madalena chegou ao colégio na hora em
que as freiras merendavam na mesa grande da
área de travejamento forte. Irmã Cola se
levantou, outras freiras se levantaram. Dona
Madalena recusou a fatia de bolo. Queria
apenas a xícara de café com pouco açúcar,
que ela indicava com os dois dedos. Os
pombos desciam do pombal e vinham arrulhar
no parapeito da área. Irmã Cibele, a recente,
atirava-lhes miolo de pão, que antes
arredondava muito entre os dedos. O pavilhão
das órfãs, para onde ia a menina, fica no fundo
do longo corredor, que se projeta sob a
sucessão de arcadas e tem como piso lajes
antigas comidas por muitos passos. O
pavimento repousava escuro e tranqüilo, que
era domingo: as máquinas de costura
fechadas, as cadeiras vazias, as peças de linho
arranjadas sobre a mesa. Apenas algumas
órfãs se aproximaram interessadas pela
novidade da companheira. Examinavam-na.
Ela olhava o forro, voltava a descansar na outra
perna e insistia em estalar os dedos, para o
que Irmã Cola chamou a atenção. A maleta de
tábua da menina, comprada no mercado por
Dona Madalena, foi mais uma vez colocada a
um canto no largo dormitório. Dona Madalena
sentiu necessidade de reforçar conselhos. Ela
ia ser feliz, e útil. Aprender um ofício. Agora
falava mais para Irmã Cola:

– Crochê, que tanto serve para encher a vida


da gente.
Irmã Cola ria e confirmava. Pousou a mão
sobre os cabelos compridos da menina:
– Ela vai se dar bem.
A menina quis marejar os olhos, e mordeu o
lábio.
Quem se empolgou também com os cabelos da
menina foi Irmã Cibele, que é recente e atira
miolo de pão para os pombos. Alisa-os com as
próprias mãos, enquanto a menina se aplica no
bastidor, o que é inusitado. As outras órfãs
deixam cair os trabalhos no colo mais ou
menos surpresas, uma delas de boca aberta, a
agulha suspensa no ar. Irmã Cibele teve a idéia
do laço de fita, para compor o rabo-de-cavalo,
que apreciou recuando:
– Fica lindo!
– Cavilação...
Quem falou assim, de passagem, foi Irmã
Teresa. Irmã Cibele pareceu perturbar-se
muito. Baixou os olhos: ela tem esse jeito de os
escorregar pelo chão. Enfiou as mãos muito
alvas e finas nos bolsos largos do hábito,
apressou-se, sem muita necessidade, em
atender à velha milionária de lorgnon, com
automóvel parado sob o castanheiro no portão
do orfanato, que viera encomendar enxoval
para o casamento da neta. Irmã Cibele
explicava:
– São aplicações muito bonitas.
A velha milionária estava mais interessada na
toalha de labirinto. Irmã Cibele ainda olhava de
lado, disfarçadamente, sentindo os passos de
Irmã Teresa, que continuava o seu passeio de
inspeção. Irmã Teresa é pesadona, de
tornozelos inchados, meias grossas e velhas
sandálias, por causa dos joanetes. Toma de
manhã o seu remédio para o artritismo,
servindo-se do copo de água no filtro, e
examina os dedos doloridos e tortos à luz do
sol na arcada da área. O que mais lamenta é já
não poder dar um ponto de crochê. Não tem
tato, energia nos dedos, a agulha cai e ela
sente dificuldade em encontrá-la debaixo da
cadeira de balanço. Superintende o orfanato.
Irmã Cola tem mais a direção do colégio e o
cuidado da capela: é muito contrita nos seus
votos. Irmã Teresa vigia, superintende:
– Cavilação... muita cavilação.
Embirra com a simpatia de Irmã Cibele pela
menina, aquele agarradio tolo, que nem é
próprio de uma freira. Ainda assim, Irmã Cibele
encontra meio de pegar a menina pela mão e
correr com ela até o jardim, que é outra paixão
de Irmã Cola: tem verdadeira loucura pelo
canteiro de rosas e se contraria com as
formigas. Ela própria, Irmã Cola, está ali na
manhã de domingo e indica da calçada do pátio
as plantinhas que ela quer que as duas
mudem:
– Lá... perto da roseira.
As mãos da menina estão sujas de terra. Irmã
Cibele tem a barra do hábito umedecida pela
grama. Sacode-o na calçada, batendo com os
pés. As velhas, que balançam sempre as
cabeças e se xingam, continuam a aguação
dos outros canteiros com os pesados
aguadores. Irmã Cola já se afastou, e Irmã
Teresa apareceu sob a arcada, no seu jeito
meio míope de cerrar as pálpebras por trás dos
óculos, como se contemplasse o telheiro em
frente, onde os pombos voltam a arrulhar.
Vigia.
Tudo se deu com a cumplicidade da tarde. O
sino da capela já chamara para o terço. As
mesmas máquinas de costura fechadas no
pavilhão do orfanato, sobras de pano e fios
pelo chão, as peças de linho ordenadas sobre
a mesa. Irmã Cibele alcançou a menina no
corredor do dormitório, depois de ainda
consultar pela porta onde há a cortina. Estava
muito em cima da menina, e sem palavras, que
foram articuladas num sopro.
– Seus seios estão ficando lindos...
A menina propriamente não se surpreendeu.
Teve receio, porque também olhou para os
lados, para a porta da cortina. Tremia. Irmã
Cibele também tremia e ofegava, as narinas
acesas. Quis ver-lhe os seios, e ela mesma os
procurava, as mãos muito ágeis. Perdia a
cabeça. Beijou-os, e agora os sugava,
babando-se e repetindo incoerências:
– Ahnn!
A sensação da menina foi de cócegas. Quis
encolher-se. A excitação começou a empolgá-
la, levantava-a nas pontas dos pés: a língua de
Irmã Cibele era ativa e morna, os dentes
mordiam com muita delicadeza, quase roíam.
Um rumor qualquer? Irmã Cibele recompôs a
menina, compôs-se a ela mesma e marchou
rápida pelo corredor em direção à capela, os
olhos baixos, naquele jeito seu de os
escorregar pelo chão.
A menina meteu-se pelo dormitório. Está
sentada na beira da cama e rói a unha. Os
pensamentos são contraditórios. Sente-se
como que esvaziada, lassa. Lembra-se
distantemente de Dona Madalena, que viu pela
última vez na festa de bodas de prata de Irmã
Cola. Interfere a figura de Irmã Teresa. Talvez
procure sentar-se junto dela com o bastidor.
Nada é certo, há incoerências. Persiste a
sensação dos dentes nos mamilos, que ela
tenta mais uma vez desfazer com a mão, a
blusa ainda úmida pela saliva de Irmã Cibele.
PROFANAÇÃO
A cidade repousava na paz dormente da tarde.
Redemoinhos. Carneiros que ruminavam à
sombra da igreja. Outros animais pastavam na
praça principal, que o mato ia farto naquele fim
de águas. De repente, o relincho do jumento
cortou o espaço, vibrante, sincopado,
sacudindo concentrações. Jumento só relincha
em hora certa. À larga sombra do oitão na casa
da esquina, Seu Manduca, farmacêutico,
concluiu o lance no tabuleiro do gamão e
consultou o relógio: vinte para as cinco.
Inesperado! Um erro qualquer de cálculo. Novo
relincho, houve tropel de cascos. Já o jumento
se desembainhara: lança em riste, reluzente,
sugestão de um bacamarte boca-de-sino. O
beiço superior dobrado, em cheiro de sexo ou
de cio, um fauno. A jumenta, nova, um mimo de
ancas, talvez ainda intocada, atirou-lhe logo
uns dois pares de coices na queixada, de que
ele se livrava com dignidade e firmeza. Insistiu
em mordê-la no pescoço. Novos coices, toda
uma beleza de mocidade. Qualquer coisa, pela
própria violência e rápidas entregas e negaças,
a lembrar a festa necessária do sexo. A arma
poderosa erguia-se lenta contra o peito do
próprio jumento, como que se acamando, em
pancadas repetidas, mola, alavanca para
grandes pesos. Perseguia a fêmea, tentou
cavalgá-la, escorregou. D. Esmerina, da janela
de casa, a vista curta, apertava as pálpebras,
num esforço de verificação. Pressentiu coisas.
Mandou que a neta entrasse, menina de doze
anos. Sinha Terta parou no meio da praça,
equilibrando na cabeça a trouxa de roupa,
seduzida, esquecida de tudo. No bilhar de
Duca, os homens abandonaram o jogo e, do
alto da calçada, bateram palmas:
– Eita, cabra macho!
Mais coices. A jumenta apressava o passo em
trote gracioso, e o fauno atrás. Ela entrou por
uma das portas laterais da igreja, e ele
também, o beiço superior mais dobrado que
nunca. Quebraram bancos, o velho
confessionário foi deslocado. Alexandre
Sacristão, que espanava o altar e os santos,
ficou com o espanador parado no ar. Padre
Rolim tangia os brutos com a batina (porque
esta estória é antiga):
– Xô, demônios!
Tudo se consumou na sacristia, perto da
grande mesa coberta com a toalha de
gorgorão, onde aos domingos se realizavam as
conferências da Sociedade São Vicente de
Paulo e se pagava o óbolo.
A beata Inacinha assistira à cena por trás da
cortina, perplexa e hipnotizada. Seguira
detalhes: a penetração profunda, que lhe dera
estremecimentos, a contração da fêmea, os
movimentos rápidos. A própria Inacinha sentira
um dilaceramento íntimo, como se sangrasse,
desejo também de entrega:
– Oh!
Todos siderados: Padre Rolim, Inacinha,
Alexandre Sacristão, as outras beatas que
chegavam. Padre Rolim se recompôs logo e,
afinal, tangeu os dois. Já muitos curiosos no
oitão da igreja, um deles vindo do bilhar e ainda
esfregando o giz na ponteira do taco. Padre
Rolim insistia:
– Absurdo!
Virou-se para Alexandre Sacristão.
– De quem é esse jumento?
Alexandre não sabia. A beata Inacinha
conhecia o dono da jumenta:
– É Seu Dedé. Lá da beira do rio.
Padre Rolim, desabotoado, abanava-se com a
gola da própria batina:
– O que está faltando é um homem na
Prefeitura. Irresponsáveis! Um bando de
animais soltos!
Mais curiosos que chegavam. Por fim, foram-se
afastando. Alexandre Sacristão veio com o
chumaço de estopa e o balde de água para a
limpeza do piso da sacristia, onde restava a
grande sobra de sêmen e de onde subia um
cheiro de sexo, que dilatava as narinas, as de
Inacinha ainda mais inflamadas. Padre Rolim
decretou que era profanação. Não que fosse
preciso interditar a igreja, cerrar portas. Mas
pelo menos benzer a sacristia. Apanhou o
hissope, aspergiu água benta, disse orações,
acompanhado pelas beatas e por Alexandre
Sacristão, que terminou por repor no local a
grande mesa com toalha de gorgorão, que
também fora deslocada. A notícia correu a
cidade: Padre Rolim dissera que tinha havido
profanação. Benzera a sacristia. Na porta de
casa, Seu Apolinário, lido e surdo, levava a
mão em concha à orelha cabeluda, com certa
ironia.
– Tinha havido o quê?
– Profanação.
– Ah, sim.
A beata Inacinha sentia agora dificuldade de
concentrar-se nas orações. A imagem em
tanga de São Sebastião no oratório de casa, as
chagas, as setas profundas, o sangue, tudo se
confundia com a penetração enérgica,
dilacerante, quente, morna. Um verdadeiro
demônio, como dissera Padre Rolim, até pelo
retesado das patas, quase em pé, os cascos,
aquele espeto enorme. Inacinha voltava às
contas do terço. Na manhã do outro dia, os
soldados e os presos de confiança na calçada
da cadeia, divertidos, tentavam identificar o
jumento, que pastava perto, junto à cerca de
arame farpado, de mistura com outros animais.
Alguém o apontou. Lá estava ele: moço, inteiro,
forte no sopro das narinas. Tosava o mato e
erguia a cabeça, altivo, enquanto o rabo tangia
varejeiras. Seu Dedé, lá da beira do rio, já viera
recolher a jumenta. A cidade voltou à
tranqüilidade de sempre: à tarde, os carneiros
ruminavam à sombra da igreja.
Dizem que os
cães vêem coisas
Ela chegou diáfana, transparente, no vestido
branco que lhe descia até os pés calçados
pelas ricas sandálias de pluma. Ninguém lhe
ouviu os passos. Sentou-se à beira da grande
piscina, cruzando as pernas longas. Chegou
antiqüíssima, atual e eterna, com a sua cara de
máscara. Moldada em gesso? Apenas uma
presença, porque pousou como uma sombra.
Mas por um fragmento de tempo, um quase
nada, reinou entre todos um silêncio largo, que
se estendeu pelo vasto terreno murado da
mansão ensombrada pelas árvores, dominou a
enorme piscina e emudeceu as próprias
crianças pajeadas pelas babás de aventais
bordados, e vejam que as crianças são
indóceis.
Um presságio.
Fragmento de tempo apenas, porque o
homem gordo, de ventre imenso, saltou dentro
da piscina com o copo de uísque na mão.
Espadanou água por todos os lados, a piscina
transbordou. Muitos se molharam, outros
saltaram da cadeira de lona.
- Bruto! – disse alguém íntimo, sem
que ele se aborrecesse, bêbado.
A onda de água despejou-se sobre
Ela, que não se moveu: era trespassável e
transparente. Floco de névoa pronto a
esvoaçar. Permaneceu parada, a cara imóvel,
nenhum ricto. Apenas parecia consultar no
pulso um relógio invisível, para marcar o
tempo. O homem de ventre enorme já estava à
beira da piscina, gotejante e trôpego, para uma
nova dose de uísque, os dedos graúdos
catando no balde os cubos de gelo. Mulheres
seminuas, o cordão do biquíni, as nádegas
reluzentes de sol e gotas dágua. As rodas, as
conversas, os garçons que circulavam, as
bandejas de salgadinhos.
Uns óculos escuros sofisticados no
sutiã mínimo:
- Por favor.
O garçom atendia, solicito, perdendo
os olhos ávidos nos seios mal contidos,
oferecidos e inatingíveis.
- Obrigada.
O garçom mantinha a dignidade, ereto.
A menina chegou e segurou a mãe pelo queixo:
- Mãe-ê, quero uma coca-cola.
A mãe não lhe dava atenção em flerte
com o recente campeão de vôlei, uma estrutura
de tórax (a mãe da menina contrariava-se
apenas com o tufo de pêlos que ele tinha no
peito, quase imoral). A menina impacientava-
se:
- Mãe-ê, uma coca-cola.
- Deixa de ser chata!
O campeão levantou-se para apanhar
o refrigerante. Em roda mais distante
conversavam os homens graves: a última
medida do governo, a crise econômica.
- O país vai à bancarrota.
- Vai o quê?
- A bancarrota.
- Fazia tempo que eu não ouvia essa
palavra.
- Mas vai.
Aceitava-se a bancarrota sem muita
convicção. Na grande varanda, as senhoras
grisalhas e indesnudáveis, pulseiras tilintantes
na flacidez dos braços, discutiam os novos
valores morais e comentavam o recente
desquite.
- A menina dela não tem um ano de
casada.
- É a segunda que se separa.
- Como?
- A segunda.
Aniversário da dona da mansão, que
se acompanhava ao violão com graça,
aplaudida pelos que estavam em volta. O
garçom (ou maitre, porque era solene) curvou-
se ao seu ouvido. Ela se livrou do violão,
levantou-se e bateu palmas chamando todos
para o almoço à americana, as mesas sob as
árvores. Cada um apanhou o seu prato,
formaram-se as filas, o homem gentil cedeu
lugar a umas nádegas rijas, cortadas sempre
pelo cordão do biquíni:
- Faz favor.
- Obrigada.
Os cães de raça latiam e uivavam
desesperadamente nos canis (e dizem que os
cães vêem coisas). Foi preciso que o tratador
viesse acalmá-los, embora eles rodassem
sobre si mesmos e rosnassem. A distância, a
piscina quase olímpica, agora deserta: toalhas
esquecidas. O vidro de bronzeador, o cinzeiro
sobre a mesinha cheio de pontas de cigarro
marcadas de batom.
As filas. Alguém tangeu o gato que
lutava com um pedaço de osso. Lenita fez o
prato do marido, preparou também o seu.
Mordia a fatia de peru com farofa, quando se
lembrou do filho:
- Cadê o Netinho?
Certa angústia na voz. Chamou o
marido, gritou pela babá, que se distraía com
as outras na varanda. Olhos espantados e
repentino silêncio talvez maior de qualquer
outro. Refeições suspensas, uma senhora
mantinha no ar o garfo cheio. Tentavam
segurar Lenita. oEla se desvencilhava:
- Cadê o Netinho? Cadê?
As águas da grande piscina eram
tranqüilas, apenas levemente franjadas pelo
vento. Boiava sobre elas uma carteira de
cigarros vazia. Mas a moça que se aproximava
parecia divisar um corpo no fundo, preso à
escada. Voltaram a afastar Lenita, o marido a
envolveu nos braços possantes, talvez
procurando refúgio também. O campeão de
vôlei atirou-se à piscina e veio à tona
sacudindo com a cabeça os cabelos longos:
trazia sob o braço um corpo inerme, flácido, de
apenas quatro anos e de cabelos louros e
gotejantes.
O médico novo, de calção, tentou a
respiração artificial, e boca-a-boca (os lábios de
Netinho estavam arroxeados), e levantou-se
sem palavras e sem olhar para ninguém. Lenita
soltou-se e agarrou-se ao filho:
- Acorde, acorde! Pelo amor de Deus,
acorde?
Conseguiram afastá-la mais de uma
vez, quase desmaiou. A amiga limpava-lhe com
os dedos a sobra de farofa que se grudava ao
seu rosto. Os cães de raça voltavam a a latir
desesperadamente, e dizem que os cães vêem
coisas.
Lenita ficou para sempre com a
sensação do corpo inerte e mole entre os
braços. Uma marca, uma presença, que
procurava desfazer com as mãos. Cabelos
louros e gotejantes. Às vezes, ela despertava
na noite:
- Acorde, acorde!
A presença também daquele instante
de silencio que pesara sobre a piscina. Um
pressentimento apenas? Precisamente o
momento em que Ela chegara, transparente e
invisível, e se a senhora à beira da piscina,
cruzando as pernas longas, antiqüíssima, atual
e eterna.
“As Corujas”
Ele conversa muito consigo mesmo, repete-se,
os olhos no chão e metido no dólmã de brim
listrado, os pés redondos nas alpercatas.
Resmunga, insistente. Fecha as janelas do
velho necrotério. Apanha os pedaços de lona e,
com eles, cobre os mortos sobre a lousa.
Deixa-lhes apenas os pés de fora. A mulher
sem chinelas, com sangue coagulado entre os
dedos abertos; as grandes botas gastas e de
cadarços do alemão andarilho, que amanheceu
morto no oitão do armazém da praia, onde se
alojara: o enorme saco e o livro de impressões,
folheado por muitos dedos, foram recolhidos à
delegacia. É preciso cobrir os mortos, proteger-
lhes as cabeças. As corujas descem pela
clarabóia. Têm voo brando, impressentido, num
cair de asas leves, como num sopro de morte.
De repente, dá-se conta de sua presença, das
asas de pluma sem ruído. Alteiam-se e pousam
sobre o peito dos mortos, arranhando-lhes os
olhos parados, que fulgem na noite, divididos
no meio.
– Xô, praga!
Os pedaços de lona ficam dobrados a um canto
da sala escura, e ele os puxa sempre, curtos,
deixando à mostra os pés inertes.
Indispensável fazê-lo; depois fechar a luz triste
da lâmpada, que desce pelo fio longo com teias
de aranha. O facho da lâmpada de pilhas ainda
percorre o teto de travejamento antigo.
Crescem e oscilam as sombras: as botas de
cadarço do alemão contra a parede – umas
botas de muitas viagens. As corujas rasgam
mortalha a noite toda na copa das altas árvores
do terreno. O facho de luz tenta a densidade
das folhas, corre cinzentos telhados, passa
pela torre da capela, detém, ao longe, na janela
de vidro do nosocômio. Em qualquer parte, na
noite, estarão as corujas. Elas rasgam
mortalha, agourentas, cortam o silêncio,
sacudindo a vigília dos doentes. Recolhem-se,
de dia, ao sótão da capela, onde pegam os
ratos, que guincham nas suas garras.
Necessário subir ao sótão, desfazer-lhes os
ninhos. Falará com Irmã Jacinta, diretora do
nosocômio, quando ela vier para a ala dos
indigentes, ativa, tilintando as chaves no bolso
do hábito. Ela mandará que Antero, jardineiro,
trepe ao sótão. Ele é moço e divertido. Torcerá
o pescoço das corujas, com os cabelos cheios
de teia de aranha, e as atirará ao pátio do alto
da torre, pilheriando com as enfermeiras. É
preciso exterminar as malditas, que rasgam
mortalha na noite, enquanto o facho de luz as
procura na sombra densa das árvores:
–Xô, praga! Resmunga, conversa sozinho,
repete-se. Torna a experimentar as trancas das
janelas, teima em ajeitar os pedaços de lona,
que modelam saliências rígidas. O pedaço de
lono do alemão ficou curto como uma camisa:
têm presença apenas as botas. Resmunga. Se
pudesse, ele próprio poria uma teia de arame
na clarabóia. Já falou a Dr. Joca, que ele trata
por você, porque foram criados juntos, e um
xinga o outro. O bisturi do Joca corta sem
pressa, profissionalmente. Luvas
ensaguentadas, bigode branco amarelecido
pelo fumo, ele apanha o cigarro com a boca no
cinzeiro sobre o peitoril da janela. Secciona
pedaços:– Leva o balde.
O velho o recolhe, e conversa consigo mesmo,
o corpo atarracado mal contido no dólmã de
mescla.
Quando o homem que chegou do interior e se
hospedou no quarto da pensão veio fazer
velório ao corpo descarnado do filho, ele lhe
deu a lâmpada de pilhas e o advertiu para as
corujas. Elas desciam pela clarabóia, mesmo
com a luz da lâmpada. Era preciso manter as
velas acesas nos castiçais. Só assim as
desgraçadas não vinham: temiam queimar as
asas nas chamas. Ficavam rasgando mortalha
no alto das velhas árvores ou na torre da
capela. Sem a presença das velas, elas
surgem sempre, impressentidas, como num
sopro de morte: alteiam-se leves, pousam
sobre o peito dos mortos e com o bico
arranham-lhes os olhos, que fulgem parados e
indefesos na noite.

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