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Symanski, L. C. P. e Osório, S. R. 1996.

Artefatos reciclados em sítios históricos de Africanos no Mato Grosso –


Porto Alegre. Revista de Arqueologia 9: 43-54.
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Voss, B. L. 2008. The Archaeology of Ethnogenesis: Race and Sexuality in Colonial San XVIII e XIX, complementadas por pesquisas etnoarqueológicas no vale do alto
Francisco. Berkeley: University of California Press. rio Guaporé, têm revelado uma diversidade de informações sobre a escravi-
Wilkie, L. A. 1996. Glass-Knaping at a Louisiana Plantation: African-American Tools? dão de africanos e seus descendentes nessa região. Ao passo que o estudo das
Historical Archaeology 30(4): 37-49. fontes documentais fornece informações sobre a composição desses grupos
______. 1997. Secret and Sacred: Contextualizing the Artifacts of African-American escravizados em termos de identidades, gênero, perfil etário, atividades, con-
Magic and Religion. Historical Archaeology 31(4): 81-106.
formação de famílias e saúde, o registro arqueológico complementa este qua-
______. 1999. Evidence of African Continuities in the Material Culture of Clifton
dro, lançando luzes sobre as práticas cotidianas, os processos de reconstrução
Plantation, Bahamas. In: Haviser, J. B. (org.). African sites in the Caribbean.
Princeton: Marcus Wiener Publishers, p. 264-275. de identidades e a manutenção de sistemas de crenças de matriz africana.
______. 2000a. Creating freedom: Material Culture and African American Identity Neste trabalho pretendo discutir, com base em registros arqueológicos, docu-
at Oakley Plantation, Louisiana, 1840-1950. Baton Rouge: Louisiana State mentais e etnográficos, os usos ativos que os grupos escravizados fizeram da
University Press. cultura material, visando reafirmar identidades diferenciadas e reconstruir
______. 2000b. Culture Bought: Evidence of Creolization in the Consumer Goods of sistemas de crenças de suas regiões de origem.
an Enslaved Bahamian family. Historical Archaeology 34(3): 10-26.
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do século XIX. Revista de História 119: 101-113.
contexto histórico
Wüst, I. 1990. Continuidade e mudança: para uma interpretação dos grupos ceramistas O território do atual estado de Mato Grosso começou a ser colonizado em
pré-coloniais da bacia do Rio Vermelho, Mato Grosso. Tese de doutorado, Faculdade
1718, quando uma bandeira da capitania de São Paulo, que penetrou nesta
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, usp.
região para capturar índios, descobriu ouro nas margens do rio Coxipó. No
______. 2006. Arqueologia da Casa da Fundição de Ouro, Relatório 2. Instituto
Nacional do Patrimônio e Artístico Nacional Goiânia. local foi fundada, em 1719, a vila de Cuiabá (Corrêa Filho, 1969: 206-207).
Young, A. 1997. Risk Management Strategies among African-American Slaves at A mineração do ouro foi a atividade responsável pela colonização deste ter-
Locus Grove Plantation. International Journal of Historical Archaeology 1(1): 5-37. ritório. As minas porém se exauriam rapidamente, forçando a população a
Zanettini, P. e Wichers, C. A. M. 2009. A cerâmica de produção local/regional em frequentes deslocamentos, em busca de novas jazidas (Volpato, 1987: 92).
São Paulo colonial. In: Morales, W. F. e Moi, F. P. (org.). Cenários regionais em Assim, o povoamento se expandiu para a região do rio Guaporé, fronteira
arqueologia brasileira. São Paulo: Anablume, p. 311-334. com o então Vice-Reinado do Peru, onde, a partir de 1734, foram descober-
tas diversas minas de ouro. Para consolidar a colonização dessa região de

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fronteira o governo português criou, em 1748, a capitania de Mato Grosso. Doze (22,6%) mantiveram entre 50 e 99 escravos, e outras doze entre 9 e 19.
No ano de 1752 foi instalada, à margem direita do rio Guaporé, a capital, Vila Apenas os escravos do Engenho Bom Jardim somavam mais de 100. Esses enge-
Bela da Santíssima Trindade (Siqueira et al., 1992: 20). Os escravos da região nhos, portanto, tenderam a manter mais de 20 escravos – o tamanho médio de
de Vila Bela eram alocados nos trabalhos de mineração, agricultura, pecuária suas escravarias aumentou de 38 indivíduos entre 1790 e 1809 para 53 entre 1810
e em obras públicas, como a construção de fortes e núcleos de povoamento e 1829, decrescendo então para 27 entre 1830 e 1849, 33 entre 1850 e 1869 e, final-
fortificados, como o Forte Príncipe da Beira, os destacamentos militares de mente, 23 entre 1870 e 1888. Verifica-se, assim, que no período entre 1790 e 1829
Coimbra, Jauru, e a fazenda real de Casalvasco, necessários para proteger a as escravarias dessa região eram bem maiores do que nas duas décadas finais da
zona de fronteira. Era a mineração do ouro, contudo, que mais consumia o escravidão (Symanski, 2006: 44-45).
trabalho cativo, com alguns mineradores possuindo escravarias que variavam A economia dos engenhos de açúcar na região de Chapada dos
entre vinte a cinquenta indivíduos (Volpato, 1996: 215). Guimarães manteve-se desde meados do século XVIII até a abolição da escra-
A mineração manteve-se como a principal atividade produtiva até o final vatura, em 1888. Com a abolição, a maioria dos agora ex-escravos abandonou
daquele século, quando as minas começaram a exaurir e, no vale do Guaporé, essas fazendas, e diversos senhores de engenho, sem força de trabalho sufi-
a camada branca dominante começou a abandonar Vila Bela. Na década ciente para con­tinuar desenvolvendo as atividades produtivas, tiveram que
de 1820, as repartições públicas locais mudaram-se para Cuiabá e, em 1835, abandonar suas propriedades (Corrêa Filho, 1969: 111).
ocorreu a mudança definitiva da capital para Cuiabá (Bandeira, 1988: 108).
Neste processo, a grande maioria dos escravos antes envolvida na minera- africanos no mato grosso: cultura material e cosmologias
ção foi realocada para as fazendas de gado e os en­genhos de açúcar, os quais
aumentaram substancialmente em número entre este período e as primeiras Pesquisas arqueológicas realizadas na região da Chapada dos Guimarães
décadas do século XIX. A região da Chapada dos Guimarães, por dispor de (Symanski e Souza, 2001; Symanski, 2006, 2007, 2010; Souza e Symanski,
solos férteis para a agricultura e estar próxima a Cuiabá, passou a concentrar 2009; Symanski e Hirooka, no prelo), complementadas por pesquisas rea-
a grande maioria dos enge­nhos de açúcar. De acordo com Mesquita (1931: 33), lizadas no vale do Guaporé (Symanski e Zanettini, 2010), têm gerado uma
em 1796 havia 20 engenhos nesta região, os quais empregavam um total de rica fonte de dados sobre a vida material de grupos escravizados africanos e
728 escravos. Em 1815, o número de escravos nessa região havia aumentado afro-descendentes nessa região central da América do Sul, lançando novas
substancialmente para 2.147 indivíduos, indicando a forte intensificação das luzes sobre as práticas cotidianas, resistência cultural, processos de constru-
atividades produtivas dos engenhos (Crivelente, 2001: 33). ção e reconstrução de identidades, cosmologias e sistemas de crenças dessas
O trabalho nesses engenhos era principalmente direcionado para a planta- populações na diáspora. Pesquisas em inventários post-mortem de 53 senho-
ção e processamento da cana-de-açúcar, sobretudo para a produção de açúcar res de engenho da região da Chapada e adjacências, constantes no Arquivo
e cachaça, sendo ainda cultivado algodão, tabaco, café e cacau, além de gêne- Público de Mato Grosso, permitiram levantar informações sobre os grupos
ros de subsistência diversificados, como arroz, feijão, milho, mandioca, inhame de escravos desses engenhos para o período entre 1790 e 1888. As listagens
e batata doce (Corrêa Filho, 1969: 455). A significância econômica desses de escravos presentes nesses documentos apresentam, em sua quase totali-
estabelecimentos, contudo, era limitada ao nível regional, sendo os seus produ- dade, informações sobre procedência, gênero e idade dos mesmos, e, mais
tos fundamentais para o abastecimento de Cuiabá (Siqueira et al., 1992: 34). raramente, sobre estado civil, ocupação, doenças e problemas físicos. Esses
Logicamente, os escravos, de origem africana, eram os principais responsáveis documentos demonstram que a origem dos escravos apresentou significa-
pelas atividades produtivas realizadas nos engenhos. Esses engenhos eram de tivas variações através do tempo. Para o período entre 1790 e 1869, foram
tamanhos variados, com os menores mantendo entre nove e 19 escravos e os identificadas 33 nações africanas. Esses grupos eram predominantemente
maiores entre 50 e 99 escravos. Porém, o tamanho dessas escravarias apresentou procedentes da África central, seguidos pela África ocidental, e, em menor
variações entre 1790 e 1888. A maioria (54,7%) conteve entre 20 e 49 escravos. quantidade, África oriental (tabela 1).

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tabela 1 – nações africanas identificadas metade do século XIX – a qual indicou que os escravos, particularmente os
nos engenhos de chapada dos guimarães (1790-1869) africanos, usaram esse material para expressar diferenças culturais e sociais.
Já os chamados escravos crioulos, em sua grande maioria nascidos na região,
Angola, Benguela, Cabinda, Cassange, Congo, Loango,
áfrica central Manuama, Massangano, Mazumbo, Mobundo, Monjolo, aparentemente não atribuíram à cerâmica os mesmos significados, dado que
Quissama, Rebolo, Songo e Sunde a variabilidade decorativa desse material decaiu enormemente quando eles se
tornaram o grupo demograficamente hegemônico, a partir de 1860. Esses estu-
áfrica ocidental Beni, Cabo Verde, Gege, Hausa (Aussá), Mina, Nagô, Sobo e Tapa
dos indicam que o processo cultural de crioulização nesta região foi fortemente
áfrica oriental
Baca, Macumbe, Missena, Moçambique, Mujaca, Nhambanda, atrelado às mudanças geracionais dos grupos escravizados, de uma população
Quilungi e Pambá culturalmente heterogênea africana para uma população mais homogênea,
não identificadas Chumbo e Mampuia afro-brasileira, demonstrando que tal processo não segue uma via linear, em
que grupos com diferentes backgrounds culturais rapidamente constroem uma
nova cultura como resposta à vida comum em cativeiro. Antes, deve ser con-
As nações numericamente dominantes foram, em ordem decrescente,
textualmente avaliado, pois pode apresentar ritmos distintos de acordo com
Benguela, Mina, Congo, Moçambique, Angola, Hausa, Cabinda e Cassange.
as especificidades da escravidão em diferentes regiões das Américas, podendo,
As quatro primeiras, por sua vez, tenderam a ser grupos majoritários em dife-
como no caso da Chapada, ser marcado por períodos de expressão de diferen-
rentes períodos entre 1790 e 1869 (tabela 2). Assim, as nações Mina e Benguela
ças e reconstrução de identidades pautadas em referenciais diversificados.
foram majoritárias entre 1790 e 1829, com os Benguela constituindo o grupo
O universo físico dos engenhos da Chapada foi estruturado de um modo
mais numeroso entre 1810 e 1849. Nota-se, ainda, um aumento gradual de
que afirmasse uma rígida ordem hierárquica, definida de acordo com a maior
escravos da nação Congo, os quais tornaram-se o grupo majoritário entre
ou menor proximidade da sede do engenho, visando impor ordem e con-
1850 e 1869, seguidos, neste último período, pelos Moçambique.
trole visual sobre esse espaço e sobre os grupos subordinados. Assim, a casa
do senhor de engenho ocupava um espaço central, tendo nas suas proximi-
tabela 2 – nações africanas majoritárias (1790-1869)
dades as casas dos agregados e demais trabalhadores livres, enquanto que as
Nações 1790-1809 1810-1829 1830-1849 1850-1869 habitações dos escravos eram localizadas mais distantes das demais habitações.
N % N % N % N % Desse modo, a distância espacial era igualizada com distanciamento social. As
mina 38 34,86 79 28,01 13 7,83 06 2,71 casas dos senhores de engenho representavam a expressão material máxima do
benguela 30 27,52 96 34,04 39 23,49 17 7,69 poder senhorial, sendo não somente as maiores construções dos engenhos, mas
congo 9 8,25 22 7,80 23 13,85 63 28,50 também as únicas habitações construídas com pedras e cobertas de telhas, em
moçambique 0 0 0 0 20 12,04 44 19,90 contraste com as casas dos escravos, construídas apenas com materiais pere-
outros 32 29,35 85 30,14 71 42,77 91 41,17 cíveis, argila e palha. O caráter durável do material usado para construir essas
Σ 109 99,98 282 99,99 166 99,98 221 99,97 casas dava a elas um caráter de continuidade temporal, assim servindo para
legitimar e reproduzir relacionamentos sociais hierárquicos através do tempo.
Em estudos anteriores (Symanski, 2006; Souza e Symanski, 2009; Da mesma forma, a distribuição dos itens materiais industrializados, sobretudo
Symanski, 2010) foram destacadas as correlações entre a variabilidade diacrô- louças e vidros, conforme estudada nos engenhos Rio da Casca e Água Fria,
nica dos padrões decorativos e das técnicas de decoração da cerâmica, entre reafirmava essa ordem hierárquica, ocorrendo uma maior disponibilidade dos
1780 e 1890, e as mudanças na composição das escravarias dos engenhos dessa mesmos na área da casa grande e uma gradual diminuição entre as áreas adja-
região em termos de procedências africanas e das mudanças nos padrões centes (trabalhadores livres) e periféricas (escravos), à medida que as propor-
demográficos em favor de uma população afrodescendente a partir da segunda ções da cerâmica de produção local aumentavam (Symanski, 2006: 201-213).

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A imposição da ideologia da Igreja Católica sobre os escravos foi outro escravos que eram concentrados em sua capital, Mbanza Kongo (Thornton,
importante elemento desse sistema de dominação. Essa ideologia visava incul- 1998: 93). O reino perdeu sua unidade política em 1765, devido a conflitos com
car nos escravos a importância da passividade cristã perante a vontade de os portugueses, que capturaram e assassinaram seu rei. O reino foi assim frag-
Deus. Assim, na qualidade de bons cristãos, os escravos deveriam aceitar sua mentado em pequenos estados autônomos cujos senhores lutavam entre si pelo
condição servil passivamente. Nesse sentido, a escravidão adquiria significado título cristão de rei do Kongo (Birminghan, 1966: 122-123; Miller, 1988: 35). A
como uma penitência necessária para alcançar o Reino de Deus (Vainfas, população desses estados era falante do kikongo, sendo referente a grupos que,
1986: 101, 127). Para o caso dos engenhos da Chapada dos Guimarães a impo- embora mantivessem diferentes etnicidades, alegavam manter uma descendên-
sição da religião católica sobre os escravos era evidente na onipresença das cia comum, que remontava a uma mesma mulher, chamada Nguunu. Devido à
capelas (Mesquita, 1931: 36-37; Symanski, 2006: 40), na preocupação dos escassez de terra, seus filhos teriam migrado por toda a região de língua kikongo,
senhores de engenho em casar seus escravos na igreja (Crivelente, 2001) estabelecendo os reinos de Mayumba, Chikongo, Loango, Kakongo e Ngoyo
e, sobretudo, na imposição da prática cotidiana da oração. A primeira obri- (Hall, 2005: 153). Não surpreende, assim, que no Brasil muitos desses grupos
gação dos escravos ao acordar era agruparem-se para rezar orações católicas tenham vindo a assumir uma identidade étnica mais inclusiva, sob o nome de
sob a supervisão dos capatazes, sendo punidos fisicamente caso faltassem a nação Congo. O caso do escravo José Congo, de 50 anos, um agricultor do dis-
essa obrigação (Volpato, 1993: 149). Ao visitar essa região, em 1827, Hercules trito de Brotas (MT), é bastante elucidativo dessa identidade congo diaspórica.
Florence (s.d.: 118) observou que o senhor do Engenho do Quilombo, o por- Acusado de um assassinato, no ano de 1881, ele respondeu, quando as autori-
tuguês Domingos José de Azevedo, agrupava os seus escravos todas as noites dades judiciais lhe perguntaram aonde havia nascido: “Eu sou da África, da
antes do jantar na frente de sua casa para rezar. terra dos Congos” (Symanski, 2006: 143). No Rio de Janeiro, os bakongo eram
Porém, a adoção de elementos da religiosidade cristã pelos escravos pode conhecidos como um povo orgulhoso, que preservava suas tradições e celebrava
ter tido um caráter tático de negociação com a sociedade dominante, não alte- o reino do Kongo em suas canções (Karasch, 2000: 54-55).
rando o centro dos sistemas de crenças de origem africana, como sugerem as
evidências arqueológicas. A mais clara evidência da manutenção de sistemas
de crenças de base africana nos engenhos da Chapada são os signos crucifor-
mes presentes nos vasilhames cerâmicos, incisos em apliques circulares ou, mais
raramente, impressos (figura 1). Essa representação de uma cruz ou asterisco
dentro de um círculo tem sido associada a um cosmograma bakongo por diver-
sos arqueólogos trabalhando em contextos afro-americanos (Ferguson, 1992:
110-116, 1999; Sanford, 1996: 104-106; Russel, 1997: 64; Wilkie, 1999: 274,
2000: 20-21; Young, 1997: 22). Os bakongo são um povo que habita o norte
de Angola e o sul da República Popular do Congo, os quais eram incluídos,
no Brasil, sobretudo na nação de escravos denominada Congo (Karasch,
2000: 54). Na Chapada, escravos da nação Congo já constam em documentos
do final do século XVIII, porém é somente a partir de 1830 que eles começam
a se destacar demograficamente, tornando-se o grupo africano demografica-
mente dominante entre 1850 e 1870, quando passam a representar 28,5% do
componente africano (Symanski, 2006: 133-134). figura 1: Representações do círculo quadripartido
O Reino do Kongo foi o maior estado da África central. Originou-se no em fragmentos cerâmicos dos engenhos da Chapada.
século XV, de uma confederação de estados, obtendo seu poder do comércio de (Foto: Luís Cláudio Pereira Symanski.)

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Nos Estados Unidos, a atribuição do signo da cruz inserida em um círculo um sistema representacional e cosmológico Dikenga que parece ter se man-
a uma origem bakongo foi inicialmente feita por Ferguson (1992) aos sinais mar- tido até, pelo menos, meados do século XX. Essa região foi abandonada pela
cados na base de cerâmicas artesanais do século XVIII (Colonoware) de planta- elite luso-brasileira no começo do século XIX, e o complexo material relacio-
tions da Carolina do Sul, encontradas, sobretudo, em leitos de rios. De acordo nado ao processo de colonização foi reapropriado pela população africana
com Thompson (1983: 109), entre os bakongo esse signo, denominado Dikenga, e afrodescendente remanescente, composta, sobretudo, por escravos forros
representa os quatro momentos do sol, no qual a divindade suprema, Nzambi e quilombolas, estes últimos oriundos dos quilombos que se instalaram na
Mpungu, é referenciada no topo, o mundo dos mortos na base, enquanto que região desde meados do século XVIII. Essa população conformou um terri-
o traço horizontal representa a água, a Kalunga, vista como a divisão entre o tório afro-brasileiro que se estendeu por todo o vale do Guaporé, o qual se
mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Trata-se de um signo crucial na cos- manteve autônomo até meados do século XX, simultaneamente construindo
mologia bakongo, pois representa a concepção de todas as criaturas vivas, e, uma identidade própria, fortemente embasada em referenciais culturais cen-
nesse sentido, a própria energia do universo (Martínez-Ruiz, 2007: 188). tro-africanos (Symanski e Zanettini, 2010).
Essa atribuição identitária, contudo, tem sido questionada por alguns A religiosidade da população afro-guaporeana, embora pautada no cris-
acadêmicos, que atribuem à colonoware com esse signo uma provável origem tianismo, apresenta uma série de elementos relacionados aos sistemas reli-
vinculada a grupos indígenas do sudeste dos Estados Unidos (Steen, 2011), giosos centro-africanos, nos quais o universo é dividido entre o mundo dos
ou mesmo uma influência cristã sobre populações escravizadas afro-america- vivos e o mundo dos espíritos, separados por um largo corpo de água, que
nas (Espenshade, 2007). De fato, o círculo quadripartido é um signo comum os mortos têm que atravessar para alcançar o mundo espiritual, conforme
a culturas diversas, tendo sido utilizado, inclusive, pela Ordem Jesuítica, com representado no signo Dikenga. Não há, contudo, um isolamento entre esses
o significado “tudo nos une em torno da cruz” (March, 1988: 13). É tam- dois mundos, pois os espíritos ancestrais permanecem engajados na vida
bém um signo empregado por diferentes sociedades da África central, como cotidiana de seus parentes (Sweet, 2003: 103-106). Na tradicional Festança
os chokwe, luena (Redinha, 1948: 74, 80) e ovimbundu (Hambly, 1934: do Congo, realizada em Vila Bela no mês de julho, é ainda feita uma referên-
300). Pelo menos os chokwe, habitantes do nordeste de Angola e oeste da cia explícita à Kalunga, sendo a palavra pronunciada justamente no momento
Zâmbia, atribuem a este signo significados muito similares aos da cosmologia da representação da matança dos soldados invasores do reino de Matamba,
bakongo, considerando-o uma representação do sol (Redinha, 1948: 74, 80), conforme transcrito por Bandeira (1988: 207): “Galalá mutém, galalá mutém.
o que se deve, provavelmente, ao fato das influências e interrelações entre os Calunga, galalá mutém”. Do mesmo modo, a relação da água com o mundo
bakongo e seus povos vizinhos, dentre os quais os chokwe, que compartilham dos mortos é ainda mantida na região, conforme relatos que consideram o
dos signos Dikenga, atribuindo a estes os mesmos significados filosóficos que porto do Bastos, no rio Alegre, como um lugar encantado, onde teria desa-
os bakongo (Martínez-Ruiz, 2007: 191). parecido, no tempo da escravidão, uma carruagem cheia de bois. Um escravo
Para o caso dos contextos da Chapada, contudo, a estreita correlação entre teria sido obrigado a mergulhar no local para descobrir o que aconteceu,
a emergência desses signos, que somente aparecem nos contextos posteriores encontrando, no fundo do rio, uma cidade, cujos habitantes lhe pediram para
à década de 1830, e o forte aumento demográfico de escravos da nação Congo guardar segredo sobre a sua existência. Ao voltar à margem o escravo, por
– assim como de outros grupos de procedência de fala kikongo, como os insistência do senhor, acabou revelando o segredo, tendo morrido logo em
escravos das nações Cabinda e Monjolo –, fortemente sugere que grupos com seguida. Desde então os moradores da região fazem silêncio quando passam
background cultural bakongo e/ou vizinhos aos mesmos, foram os principais de barco sobre esse local (Projeto Guyagrofor, 2006: 52).
responsáveis pela introdução desse signo na região. Esse signo apresenta, nos Outra possível evidência do sistema cosmológico Dikenga está presente
contextos estudados, um pico de popularidade entre 1830 e 1870, aparente- em um vasilhame globular cerâmico produzido por uma ceramista da comuni-
mente desaparecendo no final do século XIX. Contudo, na região de Vila Bela, dade na primeira metade do século XX, o qual se encontra atualmente exposto
no alto Guaporé, há certas evidências que apontam para a manutenção de no Museu de Vila Bela. A peça em questão é decorada com quatro apliques na

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porção superior do bojo em forma de espiral dupla. Entre esses apliques inter- Nos pontos riscados, as representações de flechas exercem um papel central,
põem-se combinações de desenhos pintados em amarelo. Um desses desenhos sendo sempre orientadas para o alto, em louvor às divindades. Em adição, as
(figura 2.1) apresenta um círculo de cujo centro irradia, para a sua porção supe- espirais duplas aplicadas na porção superior do bojo do vasilhame, que delimi-
rior, a representação de três sóis antropomorfizados, com as prováveis pernas tam os desenhos pintados, têm uma forte conotação simbólica entre as popula-
representadas na porção inferior do círculo. Há uma clara analogia deste dese- ções bakongo e vizinhas, representando a criação mítica do mundo, o começo
nho com o cosmograma bakongo, com o nascer, pico, e poente do sol repre- dos tempos, a vida eterna e o ciclo da vida humana, estando assim estreitamente
sentados na porção superior, enquanto as pernas podem representar a noite e vinculadas ao conceito do Dikenga (Martínez-Ruiz, 2007: 190).
o mundo sobrenatural. No lado oposto do vasilhame destaca-se o desenho de Outras possíveis evidências de práticas vinculadas a sistemas de crenças
um quadrado, do centro do qual irradiam cinco flechas, todas apontando para de matriz africana provêm da camada arqueológica situada abaixo do piso da
o alto (figura 2.3), com a mesma ordem estrutural da figura 2.1. casa grande do Engenho Rio da Casca, na Chapada. A escavação de 50% desse
espaço permitiu a identificação de uma série de objetos relacionados à com-
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partimentação interna dessa estrutura, cuja disposição sugere que eles foram
intencionalmente colocados abaixo do piso de habitação (figura 3).

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figura 2: Vasilhame cerâmico de Vila Bela, produzido em meados do século XX (foto do autor).
Acervo: Museu Arqueológico de Vila Bela.

De acordo com Robert Thompson (Comunicação pessoal, 2008) esses


desenhos assemelham-se aos pontos riscados da umbanda, a religião afro-bra-
sileira fortemente influenciada pelas religiões curativas de Angola (Karasch,
2000: 354). Os pontos riscados são cosmogramas feitos a giz, no chão, que refle-
figura 3: Casa grande do Engenho Rio da Casca – itens com possíveis
tem influências do Congo e da religião católica, também sendo aplicados em significados mágico-religiosos encontrados sob o piso.
vasilhames, para consagrar líquidos para os espíritos (Thompson, 1983: 113).

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O que a maioria desses objetos tem em comum é o fato de serem exógenos dos três cristais encontrados próximos à porta de entrada da casa, colocados
ou de pouco significado para a cultura hegemônica dos senhores, ao mesmo muito próximos dos três únicos cachimbos de cerâmica encontrados nessa casa.
tempo em que são altamente significantes em diversos sistemas de crença afri- No Brasil há referências de que cachimbos tiveram conotação mágico-religiosa,
canos e afro-brasileiros, apontando para uma notável subversão do espaço do sendo encontrados em altares de casas religiosas afro-brasileiras junto com
senhor de engenho pelos escravos. O vestígio mais evidente encontrado no outros itens como figas e contas de colar (Sampaio, 2001: 162).
interior da casa grande foi um prato de cerâmica com uma moeda de cobre, É notável o caráter subversivo, tático, das práticas que envolveram escon-
cunhada em 1869, colocada no seu centro. Esse conjunto foi colocado no canto der e enterrar tais objetos, visto que os escravos, muito provavelmente os
de uma das salas, abaixo do piso, sobre a fundação da casa. A dimensão ritual domésticos, tiveram que buscar oportunidades, pelo tempo certo, para agir,
afro-orientada deste material é sugerida por uma descrição histórica fornecida tomando vantagem daqueles momentos nos quais a vigilância sobre eles
por Sweet (2003: 130), sobre um escravo mina preso em João Pessoa, em 1799, estava enfraquecida. Tais evidências apontam ainda para uma dialética nas
o qual, visando prever seu futuro, colocou uma moeda no centro de um prato relações de poder na paisagem dos engenhos, sugerindo que da mesma forma
com água. A prática de esconder itens de conjuro na casa dos inimigos, geral- que os senhores tentavam controlar as vontades dos escravos a partir do con-
mente perto da porta de entrada, é também comum entre os bantos de Angola trole do mundo físico, os escravos tentavam fazer o mesmo com os senhores,
(Capelo e Ivens, s.d. [1886]: 134-136; Figueira, 1938: 201). No Mato Grosso, porém a partir da manipulação do mundo espiritual.
práticas divinatórias similares foram registradas entre africanos acusados de A presença de um substrato cultural bakongo no Mato Grosso não está
feitiçaria por ocasião da visita Diocesana entre 1785 e 1787 (Rosa, 1996: 213), somente evidenciada pela reprodução de signos e objetos tão caros à cosmo-
como foi o caso do centro-africano Manuel Quiçama, acusado de enterrar logia desses povos, mas também na morfologia e nos padrões decorativos dos
itens de conjuro junto à porteira de um homem branco (Rosa, 1996: 215). vasilhames cerâmicos presentes nos contextos do século XIX (figura 4).
O contexto do prato com a moeda na casa grande do Engenho Rio da Casca
é ainda paralelo ao dos “cachés” – agrupamentos de artefatos de uso ritual relacio-
nados ao controle de espíritos – encontrados em sítios domésticos de Anápolis,
nos Estados Unidos. Leone e Fry (2001) descrevem esses “cachés” como compos-
tos por pregos, alfinetes, cacos de vidro, botões, ossos, contas de colar, moedas,
sobretudo perfuradas, e fragmentos de cerâmicas, geralmente colocados abaixo
das bases das chaminés, no canto nordeste das salas, e próximo às portas. Entre
os bakongo esses “cachés” são denominados minkisi (Thompson, 1983: 117-121).
Fennell (2003: 13) nota que itens com superfícies refletivas, tais como cristais de
quartzo, conchas marinhas, e fragmentos de espelhos são componentes comuns
nos minkisi, porque eles são metafóricos da fronteira entre o mundo dos vivos e
o mundo dos mortos, que é representado pela superfície da água, e assim comu-
nicam a invocação das forças espirituais no mundo dos vivos. Além do prato
com a moeda, abaixo do piso da casa grande do Engenho Rio da Casca foram
encontrados onze cristais de quartzo, uma panela de cerâmica apresentando
aplique circular com o signo de um asterisco inciso sobre ele, e uma pedra preta
brilhante. Porém, diferentemente dos “cachés” presentes em contextos norte-a-
mericanos, esses itens não estão concentrados em um ponto exclusivo da casa.
Não apresentam, contudo, uma distribuição aleatória, estando sempre próximos figura 4: Padrões decorativos típicos dos vasilhames cerâmicos
de outro cristal, assim como de outros itens também significantes. Este é o caso de contextos do século XIX dos engenhos da Chapada.

48 49
Nos padrões decorativos são comuns os motivos ondulados em arcos, escarificações de escravos mina e nagô provenientes da Nigéria e do Benin
produzidos em incisões triplas e quádruplas, e os motivos em linhas curtas (Souza e Agostini, 2012), também foram empregados por grupos bakongo,
triplas e quádruplas diagonais, formando sequências, que são idênticos aos como foi o caso dos monjolo, descritos no Rio de Janeiro por Charles Wilkes
padrões decorativos incisos registrados nos vasilhames cerâmicos das popu- em 1838 como apresentando escarificações em linhas quádruplas paralelas
lações tradicionais da República Democrática do Congo, sobretudos aquelas nas bochechas e nas laterais da testa (Wilkes, 1852: 22, 24) (figura 6).
localizadas na região costeira e no baixo e médio Zaire, no final do século XIX
e início do XX (figura 5) (Annales du Musée du Congo, 1907).

figura 6: Esquerda – escravo da nação Monjolo retratado


por Charles Wilkes no Rio de Janeiro em 1838 (Wilkes, 1852:22).
Direita – fragmento cerâmico do Engenho Bom Jardim.

A reprodução, nos vasilhames cerâmicos dos engenhos da Chapada dos


Figura 5: a e b – motivos do baixo e médio [antigo] Congo; c – motivo do Aruwimi; Guimarães, de signos comuns entre grupos que mantinham referenciais cul-
d e e – motivos encontrados da região litorânea de Stanley Pool; turais altamente diferenciados – como os de fala yorubá da África ocidental
f – motivo encontrado entre os rios Kwango e Kasai e os de fala kikongo da África centro-ocidental – pode ter atuado como um
(Annales du Musée du Congo, 1907).
referencial mais amplo, ajudando a forjar, nos plantéis, laços de identifica-
ção que atuaram na construção de um senso de comunidade. Essas peças,
Alguns desses padrões representam, ainda, signos de escarificações cor- assim, atuaram como veículos de transmissão de memórias e representações
porais típicos de determinados grupos da África subsaariana. Este é o caso de origem africana. A partir das práticas relacionadas ao preparo e consumo
do motivo dos semicírculos concêntricos, presente no Engenho Bom Jardim de alimentos, em que essas peças eram utilizadas como suportes, tais memó-
(figura 4c), que foi um motivo comum entre os macua de Moçambique, rias e representações eram cotidianamente referenciadas, e assim atualizadas
embora também ocorra entre os grupos chokwe-lunda do leste de Angola na comunidade escravizada dos engenhos, nutrindo concepções de identi-
(Agostini, 2011; Souza e Agostini, 2012). Já as incisões em linhas retas dade bastante diferenciadas daquelas da sociedade luso-brasileira dominante.
paralelas triplas e quadrúplas, comumente descritas como características das Indica, ainda, a manutenção de cosmologias amplamente dispersas entre as

50 51
populações da África subsaariana, relacionadas com a concepção antropo-
mórfica das cerâmicas (Symanski e Souza, 2001: 164-165; Symanski, 2006:
221-227). Esta diz respeito à identificação conceitual dos vasilhames cerâmi-
cos com os corpos humanos, dado que em muitos mitos de origem africanos
os seres humanos foram criados a partir de vasilhames cerâmicos. Assim, os
mesmos tipos de tratamento dados aos corpos dos seres humanos também
são dados aos vasilhames, incluindo decorá-los com escarificações e tatua-
gens, designar suas diferentes partes com os mesmos nomes de partes do
corpo humano e realçar partes diferentes de seus corpos visando especificar
gênero, masculino ou feminino (David et al., 1988; Posnanski, 1999: 27-28;
Pikirayi, 1993: 145-146; Darish, 1990: 11-12).
Enquanto que os vasilhames de cerâmica de produção local-regional são,
portanto, desde o início do processo de produção, provavelmente representati-
vos da agência dos grupos escravos, sobretudo das escravas, no espaço da plan-
tation, outros itens referentes ao repertório material da sociedade luso-brasi- figura 7: Moedas de cobre perfuradas do Engenho Bom Jardim.
(Foto: Luís Cláudio Pereira Symanski.)
leira dominante foram reapropriados por aqueles grupos, tendo sido imbuídos
com significados relacionados com as culturas de origem dos mesmos. Este é
o caso de duas moedas de cobre, uma proveniente da senzala e a outra da roda
da água do Engenho Bom Jardim, que apresentam perfurações em seu cen- considerações finais
tro (figura 7) (Symanski e Hirooka, no prelo). Esses itens apontam para a
A arqueologia histórica, por basear sua produção de conhecimento nas evi-
manutenção de sistemas de crenças que parecem ter sido amplamente disper-
dências materiais dos diversos grupos que compuseram uma sociedade, antes
sos na diáspora africana nas Américas, posto que é comum de serem encon-
do que somente nos documentos escritos pelos grupos dominantes, encon-
trados em contextos dos Estados Unidos nos “cachés” acima referidos bem
tra-se em uma posição privilegiada para resgatar a agência dos grupos excluí-
como em sepultamentos de afro-americanos (Davidson, 2004). Deve ser
dos, e assim construir uma história mais inclusiva. Em uma proposta de atua-
considerado que em muitas sociedades africanas são atribuídas propriedades
lização da teoria da prática, Ortner (2006: 136-139) chamou a atenção para
mágicas ao cobre, relacionadas à fertilidade e à proteção (Herbert, 1983: 81).
os dois campos de significados relacionados à noção de agência. O primeiro
Nos Estados Unidos os afro-americanos também atribuíam tais propriedades
vincula-se à intencionalidade e à realização do que a autora chama de projetos
às moedas de cobre, as quais eram utilizadas para proteger do perigo e impedir
culturalmente estabelecidos. O segundo relaciona-se ao poder propriamente
a morte (Davidson, 2004: 23; Wilkie, 1995: 144). Assim, do mesmo modo
dito, relativo à ação dentro de relações de desigualdade social, assimetria e
que as cerâmicas de produção local-regional, as moedas perfuradas de cobre
força, considerando que o poder sempre apresenta duas feições, operando de
no Engenho Bom Jardim apontam para a manutenção, entre os cativos, de
cima como dominação e de baixo como resistência. Para Ortner, a agência
cosmologias e sistemas de crenças de origem africana.
será sempre um misto desses dois campos de significados. Esta estrutura con-
ceitual é potencialmente produtiva para abordar os contextos da escravidão,
dado que essas duas feições do poder diretamente atuaram na estruturação
das práticas cotidianas dos grupos escravos.

52 53
Os registros escritos comumente utilizados para escrever a história da cRIVELENTE, M. A. 2001. Casamentos de escravos africanos em Mato Grosso. Um
escravidão foram, na enorme maioria dos casos, produzidos pelos segmentos estudo sobre Chapada dos Guimarães, 1798-1830. Dissertação de mestrado,
Cuiabá, ufmt.
dominantes, de modo que tendem a apresentar uma perspectiva tendenciosa
DAVID, N., STERNER, J. e GAVUA, K. 1988. Why Pots are Decorated. Current Anthropology,
sobre a vida dos escravos. Deve ainda ser considerado que muitas das práti-
29: 365-89.
cas culturais dos escravos eram duramente reprimidas pela classe senhorial e
DAVIDSON, J. 2004. Rituals captured in Context and Time: Charm use in North Dallas
pelo poder público, sendo assim realizadas fora do alcance da vista dos seg- Freedman’s Town (1869-1907), Dallas, Texas. Historical Archaeology 38 (2): 22-54.
mentos dominantes, de modo que muito raramente foram descritas nas fon- DARISH, P. 1990. Fired Brilliance: Ceramic Vessels from Zaire. Kansas City: University
tes históricas. Nesse sentido, o registro arqueológico desses grupos, composto of Missouri.
pelas evidências materializadas de sua vida cotidiana, tem um enorme poten- ESPENSHADE, C. 2007. A River of Doubt: Marked Colonoware, Underwater Sampling,
cial de revelar os hidden transcripts aos quais se refere James Scott (1990), and Questions of Inference. The African Diaspora Archaeology Newsletter.
ou seja, as práticas de resistência dos subalternos, comuns em seus cenários March. African Diaspora Archaeology Network, University of Illinois, Urbana-
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de existência social que situam-se fora do controle imediato do segmento news0307.html#1>. Acesso em 30 de jul. de 2012.
dominante. A cultura material da escravidão dos contextos de Mato Grosso FENNELL, C. 2003. Group Identity, Individual Creativity, and Symbolic Generation in
é reveladora dessas práticas de resistência cultural, relacionadas à manuten- a Bakongo Diaspora. International Journal of Historical Archaeology, 7 (01): 1-31.
ção de memórias e cosmologias de origem africana. Embora seja óbvio que FERGUSON, L. 1992. Uncommon Ground. Archaeology and Early African America,
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dadas as novas condições econômicas, sociais e culturais dos contextos de FIGUEIRA, L. 1938. Africa Bantu – raças e tribos de Angola. Lisboa: Oficinas Fernandes.
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origem. Antes, essas memórias foram constantemente referenciadas por meio Cultrix.
da cultura material, nutrindo, nessa população escravizada, um forte senso de HALL, G. M. 2005. Slavery and African Ethnicities in the Americas: Restoring the Links.
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