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mações. Interioridade e exterioridade arti- quivo, para a história e para a memória en-
culavam-se nas sobras de um tempo que quanto espaço de uma ferida. Dito de outra
aspira à memória, mas enfrenta o atrito do maneira, Danziger organiza o material sensí-
esquecimento. A membrana densa desses vel sob perspectiva conceitual e política. Se
papéis volumosos, organizados na forma de não há sequer uma imagem fotográfica no
livros, parecia conservar as cicatrizes de um painel (nos livros há imagens), há o procedi-
tempo insubordinado às separações de pú- mento indicial da impressão. O processo da
blico e privado, prolongando apenas a pre- fotogravura instaura uma referência pelo
cariedade própria à memória. Danziger co- contato do papel com a matriz de metal
menta em texto recente que dá continuida- preparada com a emulsão fotossensível. A
de às reflexões da época da exposição Pe- matriz em metal cria sensações que a
quenos impérios: “Se cada resto, cada ‘pe- serigrafia em tela certamente não produzi-
queno império’ é um arquivo, cabe pergun- ria, pois os sulcos que o ácido escavou na
tar o que está arquivado na matéria que os placa para inscrever aqueles nomes são as
constitui e sobre o modo mesmo como são feridas impressas no papel. A marca da cica-
constituídos”.6 triz deixada no metal da gravura era o índice
de um acontecimento profundo que seria
Entre 1996 e 1998, Leila Danziger produziu impresso na superfície do papel. À
uma série de trabalhos em que listava no- materialidade corporal dos papéis tratados
mes de judeus alemães, com o mesmo so- com óleo de linhaça por Leila Danziger, im-
brenome da artista, pessoas desaparecidas pregnam-se os índices impressos dos crimes
nos campos de concentração da Segunda nazistas perpetrados em Auschwitz.
Guerra Mundial. A série Nomes próprios é
composta por 76 gravuras de matrizes em Listando junto aos nomes algumas informa-
metal e um conjunto de 12 livros feitos so- ções como data e local de nascimento e
bre imagens extraídas de jornais alemães, morte, a série de gravuras de Danziger
reproduzidas em serigrafia. Os livros, encor- desdramatiza o evento histórico sem nem
pados em sua materialidade com óleo de mesmo tentar dar imagens aos nomes va-
linhaça, foram mostrados junto às gravuras zios. Tampouco há narrações ou represen-
na exposição Nomes próprios.7 O painel tações de vidas. Há apenas a lembrança do
dessa exposição media 4,20m x 2m e reunia esquecido e os documentos-nome da feri-
todos os nomes extraídos do Livro da Lem- da sobre o corpo do papel, ferida que não
brança, guardado na biblioteca da comuni- cessa de doer e que, por isso mesmo, não
dade judaica de Berlim, em Charlottenburg. pode ser esquecida.9 O painel de Danziger
Nenhuma fotografia, nenhum desenho, ape- apenas toma aqueles nomes de um lugar
nas os nomes. Com a coleção desses no- próprio da memória: o arquivo da bibliote-
mes-documento retirados dos arquivos de ca em Charlottenburg. Mas na leveza do
Charlottenburg, Leila Danziger criava um papel com os nomes gravados, fantasmas
espaço de visibilidade no campo da arte vol- invisíveis parecem insinuar-se e criar um es-
tado para o esquecimento. Segundo a artis- paço outro. Ou seriam as palavras que se
ta, “estamos longe do esquecimento produ-
tornam imagens? Enquanto o observador se
tivo recomendado por Nietzsche como an-
delonga para ler as palavras vazias de senti-
tídoto contra o historicismo”.8
do, um espaço de melancolia penetra os
Transcendendo a estética, em certa medida, nomes do frágil papel embebido em linhaça.
Danziger volta-se, com sua poética do ar- Com a demora da leitura de uma simples
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há somente a distância que permite um es- de exposição da fotografia e o lugar de sua
paço crítico penetrar e realizar uma visibili- guarda era o arquivo e não as paredes do
dade não aparente do dispositivo apropria- museu. Ela não pertencia ao arquivo da arte.
do. Transformando esses jornais pelas A fotografia pertencia até meados do século
investidas físicas sobre eles, Danziger expõe 19 ao discurso topográfico da geologia e não
e problematiza a cultura do esquecimento ao saber estético, cujo código visual de re-
conveniente aos meios de comunicação. presentação aplainada e comprimida transfor-
Abrindo fendas no arquivo da informação mou as vistas em paisagens. Foi só depois de
diária, faz atravessar nele o movimento da 1860 que a fotografia entrou verdadeiramente
dimensão poética do real. O tempo, que ha- para a instituição arte e passou a ter lugar no
via refluído para fora da imagem instantânea discurso da história da arte e nas paredes
dos jornais diários, penetra vazio como me- das galerias. Mais contemporaneamente,
mória sem lugar, ativando espaços críticos nos entretanto, segundo a autora, os especialis-
lugares próprios da cultura da informação. tas da fotografia aplicaram aqueles “concei-
tos fundamentais do discurso estético ao
A fotografia, guardando uma memória sin- arquivo visual”.14 A noção de “arquivo visu-
gular do visível, teve papel fundamental para al” no texto de Krauss remete tanto ao móvel
as poéticas críticas que aqui destaco por em que se guardavam e expunham as vistas
constituírem o efeito-arquivo que desloca quanto à noção de “formação histórica” pro-
sentidos e afetos estratificados. Rosalind veniente da teoria foucaultiana sobre os dis-
Krauss em O espaço discursivo da fotografia cursos e as visibilidades do saber em A ar-
afirma que em meados do século 19, o modo queologia do saber.
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cício heterogêneo de práticas apropriadas, a 8 Danziger, Leila. O jornal e o esquecimento. Ipotesi, Re-
autorreflexividade modernista vista de Estudos Literários, julho-dezembro de 2007,