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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua

Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

FICHA CATALOGRÁFlCA ELABORADA PELO


Agradecimentos
SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP
DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
Bibliotecária: Helena Joana Flipsen - CRB-8' / 5283

R552m Robin, Régine, 1939-


A memória saturada / Régine Robin; tradução: Cristiane Dias, Greciely Costa.
- Campinas, SP: Editora da Unícarnp, 2016.

I. História - Filosofia. 2. Memória (Filosofia). 3. Historiografia. 4. Arquivos.


l. Dias, Cristiane Pereira, 1974- 11.Costa, Greciely Cristina da, 1980-111. Título.

CDD -901
-128.3
-907.2
ISBN 978-85-268-1339-7 -025.171

Certo número de pesquisadores, de organismos de fomento, de


índices para catálogo sistemático:
amigos e de estudantes acompanhou-me durante a preparação e
I. História - Filosofia 901
a redação desta obra. Gostaria de destacar o Conselho de Pesqui-
2. Memória (Filosofia) 128.3
3. Historiografia 907.2 sas em Ciências Humanas do Canadá, que me concedeu a ajuda
4. Arquivos 025.171
material de que eu precisava, em particular uma subvenção de
Título original: La mémoire saturée
Copyright © 2003, fditions Stock
pesquisa sobre hiperrexto de ficção e outra sobre "o fim das gran-
Copyright © 2016 by Editora da Unicamp des esperanças': com Marc Angenot, meu colega da universidade

••••
Copyrighr © by Régine Robin
McGill. Gostaria de agradecer a meus parceiros da equipe "A

LlbItlJ.t,411,j.f,.,I,"ill

RtpUBllQ.UE FRANÇAISE
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BRASIL
memória partida" do Fundo para Formação de Pesquisadores e
Amparo à Pesquisa (FCAR) do Quebec: Simon Harel, Alexis
Nouss, Michael Lachance, e àqueles que, sob a direção de Pierre
"Cer ouvrage, publié dans le cadre du Programme d'Aide à Ia Publication 2015
a bénéficié du soutien de I'Institut Français du Brésil," Ouellet, participam da equipe do "Si e o outro" do Centro de
Pesquisa em Ciências Humanas (CRSH), além daqueles do Cen-
"Este livro, publicado no âmbiro do Programa de Apoio à Publicação 2015,
contou com o apoio do Instituto Francês do Brasil." tro lnteruniversitário de Estudos sobre as Letras, as Artes e as
Tradições (Celat). Minha gratidão, também, à equipe "Memória
Direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19.2.1998.
Ê proibida a reprodução total ou parcial sem autorização,
e mídia", do Centro Canadense de Estudos Alemães e Europeus
por escrito, dos detentores dos direitos. da Universidade de Montreal, sob a direção de Walter Moser, e,
Primed in Brazil. particularmente à minha universidade - a Universidade do Que-
Foi feito o depósito legal. bec - em Montreal, assim como aos membros do Departamento
Direitos reservados à de Sociologia que me apoiaram e encorajaram. Muito obrigada à
Editora da Unicamp Fundação Langlois de Montreal e a Alain Depocas pela ajuda na
Rua Caio Graco Prado, 50 - Campus Unicamp
organização das jornadas de 2001 sobre o "hipertexto de ficção"
CEP 13083-892 - Campinas - SP - Brasil
Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 em Montreal. Agradeço também aos amigos das universidades
www.editoraunicamp.brvendas@editora.unicamp.br
Sumário

Introdução: Como se o passado nevasse sobre nós 13

PRIMEIRA PARTE
PRESENÇAS DO PASSADO

1. Repetições ... 31

A memória impossível.................... 32
Contratempo 40
Marx e a linguagem emprestada 41
A não contemporaneidade 50
Anacronismos 54

2. Os meandros de uma lenda. O Oeste americano.. 65

3. A cor do esquecimento. 81
Da destruição de lugares ao apagamento de vestígios... 81
81
82
85
93
o desaparecimento de anônimos . 96
A desconhecida de Modiano . 96
A enciclopédia de Danilo Kis . 101
o que resta do arquivo . 103 A trajetória jurídica de anulação das testemunhas... 254
O arquivista no romance .. 103 Metatestemunhas.. . 264
O historiador e o homem sem qualidades . 106
2. O discurso histórico à prova 271
4. Questão de 111 A história como memória pulverizada 271
O tempo curto da memória: O exemplo dos países A representância e o empobrecimento do imaginário... 278
do Leste . 111 Interrogar-se sobre sua própria escritura. Que lugar
lconoclasmos . 112 para os outros, para os mortos? 291
Exposições de escárnio . 116
3. Representar, figurar a Shoah.... 297
Cerimônias fúnebres . 120
Novos museus .
Conflitos em torno das imagens de campos de
123
Memórias sob medida .
concentração.. 297
127
O tempo médio da memória: O exemplo de Israel.. Polêmica em torno de uma exposição no Museu
144
Uma terra sem povo para um povo sem terra ..
Judaico de Nova York.. 307
145
Uma cidadania da memória .
Pós-memórias 314
148
As sombras: Shimon Attie 315
A autoridade semântica das testemunhas . 151
O efeito de arquivo .. 316
Uma lógica da cegueira . 156
Pais e filhos - "Você não estava em Auschwitz. Você
Uma outra memória . 162
estava em Rego Park": A história em quadrinhos
5. Novos tempos 169 Maus, de Art Spiegelman.... 318
Desvios, denegações, deslocamentos 169 As fotos nos passos do pai: A viagem de Mikael
O Japão e os massacres de Nanquim 169 Levin 320
Duas exposições americanas 173 O corpo como medium.. 324
Amnésias francesas 176 A presença física das cinzas: As fotos de Auschwitz
A Alemanha e a vitimização 184 de Marie-Ieanne Musiol... 324
A reviravolta da conjuntura 193 O corpo-grafite de Marina Vainshtein.. 326
A problemática do "totalitarismo": 194
4· Memória-prótese ou memória crítica? 329
Novas narrativas italianas e espanholas 203

SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
UMA MEMORIA AMEAÇADA: A SHOAH
DO MEMORIAL AO VIRTUAL

1. As evasões da consciência factual 215 1. Memória e mídia..... 367


O caso Wilkomirski.............. . 222 A carta e a foto 367
O desaparecimento das testemunhas . 237 "Escrever cartas é despir-se diante de fantasmas"... 367
Quem é testemunha? . 238 "O domínio do intocável e do imaginário": 372
Palavras de testemunhas . ..... 246 Nostalgias das mídias obsoletas 382
A exposição Hors d'usage, de Atom Egoyan .. 382 INTRODUÇÃO
As imagens e "o tempo que se foi com elas" ... 385

2. O império da memória morta.. 391


Como se o passado nevasse sobre nós
As catástrofes anunciadas 393
A imaterialidade do suporte 399
O eterno presente 401
Um novo espaço sem referências 406
O todo-imagem............................... .. 410
O original e a cópia 412
O corpo ciborgue 415
A fantasia de tudo conservar 425
Os artistas da armazenagem . 425
Saturações patrimoniais . 434
o quê!? Você já tinha esquecido? Eu não! Voltam-me fragmentos
3. Para uma memória hipertexto 439 de textos desprendidos do esquecimento, excertos de filmes aban-
Novos espaços de escritura 439 donados às lixeiras da história ou aos depósitos dos sonhos. Voltam-
Os hipertextos de ficção 441 -me imagens de cor sépia, cenas, tristes de chorar, marcadas pela
Práticas de desvio 447 estranheza da relação entre o presente e o passado, tão distantes e
Os novos flâneurs . ...........................······447 tão próximas ao mesmo tempo. Essa memória infiel, mas persistente
Dar outra chance ao tempo ............................................. 455 está fixada em alguns momentos essenciais do meu imaginário
Cibermigrâncias 463
familiar. Tal como neste, das primeiras páginas de minha primeira
obra de autoficção ou de metaficção sobre a história:
Bibliografia .. . 481
Foi no ano de 1920, no meio da confusão extrema. Na ida, todas as
esperanças. A população judaica de Kaluszyn simpatiza com os soldados
vermelhos. Vamos capturar os brancos, fomentadores de pogrom/ Todos
à Varsóvia! Em seguida, o refluxo, depois a derrota diante da Varsóvia.
Uma parte da população temendo as represálias dos exércitos brancos se
mistura ao exército vermelho, incorpora-se a ele ou o segue. Comboio de
fugitivos esperando ganhar a Terra Prometida. Até o rio Bug. A confusão
se generaliza. Pânico dos cavalos, pois o exército branco reforça sua pres-
são. Ele chega, vai massacrar tudo. Começa então a grande carnificina. As
pessoas são massacradas pelo exército branco? A população das cidades
costeiras insta o batalhão errante ao Bug, sabendo que ele é formado
principalmente por judeus? A memória de Kaluszyn nunca assumiu. O

13
1

Repetições

o passado não é livre. Nenhuma sociedade o deixa à mercê da


própria sorte. Ele é regido, gerido, preservado, explicado, contado,
comemorado ou odiado. Quer seja celebrado ou ocultado, per-
manece uma questão fundamental do presente. Por esse passado,
normalmente distante, mais ou menos imaginário, estamos pron-
tos para lutar, para estripar o vizinho em nome da experiência
anterior de seus ancestrais. Embora surja uma nova conjuntura,
um novo horizonte de expectativa, uma nova sede de fundação,
nós o apagamos, esquecemos, remetemos à frente de outros epi-
sódios, voltamos, reescrevemos a história, inventamos, em função
das exigências do momento e das antigas lendas.
Jan Assmann, em relação a Moisés', mostra como um trauma
pode fazer o papel de "estabilizado r da lembrança" por séculos,
pois ele vai autorizar todos os tipos de disrorções do episódio re-
calcado, e as lendas, que não puderam se inscrever na memória
oficial, vão, no entanto, doravante, poder se misturar a outras
histórias, meio reais, meio imaginárias. Recalque, deformações,
transferências e novas ligações com as lendas, tudo se mistura.
Subterraneamente, as lendas, os elementos de narrativas, ocultados,

J. Assmann. Moise I'Égyptien. Paris, Aubíer, 200 I.

31
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

interditos, censurados, se enriquecem com elementos advindos de lugares, para não dizer nada da influência das comemorações e dos
outras épocas, desconectados de seu núcleo contextual, e se arti- abusos da memória e do esquecimento. A ideia de uma justa me-
culam com os primeiros para viver uma vida clandestina, antes de mória é, neste contexto, um dos meus temas cívicos confessos'",
voltar à superfície, transformados e irreconhecíveis. Israel Finkels- escreve Paul Ricceur na advertência que abre sua obra -prirna sobre
tein e Neil Asher Silberman? revelam como as antigas lembranças a memória, um estudo fenomenológico das modalidades sociais
se amalgamam com lembranças mais recentes, desassociadas de do recordar coletivo e do esquecimento, no qual ele empresta
seu contexto, readaptadas, reconfiguradas, dando origem ao que conceitos da psicanálise. Com base nos célebres artigos de Freud
poderíamos chamar de quase lendas, apoiando-se parcialmente "Remémoration, répétition, perlaboration"5, i, e "Deuil et
em fatos, mas completamente defasados no tempo, antes ainda mélancolie"6, ii, ele retoma o conceito de Durcharbeit, a "perlabo-
que as narrativas sejam reconfiguradas, padronizadas, fixadas, ração", o processo complexo que, na cura, permite ao paciente
como textos fundadores para fins políticos, religiosos e nacionais. rememorar em vez de repetir, de substituir a lembrança e a narra-
Nesse caso, também, presente imediato, passado próximo, lem- tiva passando ao ato que não é senão a cornpulsão da repetição em
branças distantes e lendas se tecem e se deste cem uns nos outros. funcionamento.
Como a imagem de certos vulcões, a memória, mesmo ador- Em "Deuil et mélancolie", Freud evoca as diversas reações que
mecida, pode tornar-se explosiva'. uma pessoa pode ter em face da perda de um ente querido. Muitas
vezes, escreve o autor, ocorre que o luto não se processa. A pessoa
entra em uma fase de melancolia e depressão. Perda do sentimento
A memória impossível de estima de si, inibição de toda a atividade, às vezes, em casos de
extrema gravidade, suicídio. A maior parte do tempo, no entanto,
"Eu fico confuso com o espetáculo inquietante que transmite aqui um certo trabalho se concretiza, que é o trabalho do luto. "O teste
o excesso de memória, e o excesso do esquecimento em outros de realidade mostrou que o objeto amado não existe mais e insti-
tui a exigência de retirar toda a libido dos lugares que a retêm nesse
objeto'", Apesar das múltiplas revoltas do indivíduo que não quer
2
I. Finkelsreín & N. A. Silberman. La Bible dévoilée. Les nouuelles révélations de l'archéo- de forma alguma abandonar o ente querido perdido, a realidade
logie. Paris, Bayard, 2002. acaba prevalecendo. Esse trabalho demanda um grande dispêndio
Não encontraremos, nesta obra, uma nova definição de "memória coletiva", de "memória de tempo e de energia. O ente querido continua por muito tempo
comunicativa", ou "cultural", tampouco leremos nela um novo uso dos "lugares de
existindo psiquicamente. Freud fala, então, de uma atividade de
memória" ou das alusões às discussões e incontáveis comentários que foram consagrados
por elas. Considero que o leiror já as conhece. Meu trabalho se apoia nas pesquisas e nas compromisso, durante a qual o trabalho de desapego da libido
conquistas historiográficas anglo-saxã e alemã. É sem dúvida a vantagem de transitar pelos do ser amado se concretiza enquanto as lembranças ligadas a ele
dois continentes, mas é mais do que isso. Na reflexão sobre a memória coletiva em todas
as suas formas, a pesquisa francesa se apoiou sobre seu grande clássico, Maurice Halbwachs,
e sobre a obra coletiva monumental que Pierre Nora supervisionou e estimulou: Lieux 4
de mémoire, sem levar em conta, na maior parte do tempo, imensas obras de pesquisas, de P. Ricceur. La mémoire, i'bistoire, I'oubli. Paris, Le Seuíl, 2000, p. I.
reflexões, de conceiruações, de exemplos de todo tipo que as pesquisas inglesa, alemã e S. Freud. "Remémoration, répétition, perlaboration". La technique psychanalytique. Paris,
americana tinham estabelecido. Minhas deambulações através dos continentes, dos de- PUF,1970.

pósitos de arquivos e das bibliotecas me permitem um outro olhar e um deslocamento Idem. "Deuil et rnélancolíe". Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968.
7
de questões. Idem, p. 148.

32 33
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

permanecem infinitamente dolorosas. "Mas o fato é que o eu, e do retorno do recalcado, essa mesma que encontraremos muitas
depois de ter concluído o trabalho do luto, volta a ser livre e sem vezes no decorrer de nossa reflexão; a segunda designaria a me-
inibições'". No luto, prossegue Freud, o mundo parece pobre e mória artificial construída pela propaganda de Estados "totalitários':
vazio; na melancolia, é o próprio eu que é atacado. A autodepre- Paul Ricceur toma o exemplo de Henry Rousso, e de seu livro La
ciação não conhece limites e pode conduzir à morte. Essa análise syndrome de Vichy", para ilustrar um trabalho de historiador re-
da relação nocional trabalho do luto/melancolia se articula em lativo à memória impedida, ou seja, sobre o recalque.
uma outra reflexão, que é contemporânea a essa: trata-se da repe- Henry Rousso distingue quatro fases, da Libertação aos nossos
tição por oposição à rernernoraçâo", Contentamo-nos em dizer dias. A fase do luto, entre 1944 e 1955, no sentido de angústia mais
aqui que, se o passado não pode ser rememorado, principalmente, do que de trabalho do luto propriamente dito que, precisamente,
graças à transferência, ao dispositivo e ao método da técnica psica- não acontece, fase marcada pelas sequelas da guerra civil, da puri-
nalítica, rememoração daquilo que foi esquecido e recalcado, esse ficação à anistia. Depois, uma fase de recalque. Como em todos
passado é traduzido em ato: "Não é em forma de lembrança que os grandes recalques históricos, o período é marcado pelo estabe-
o fato esquecido reaparece, mas em forma de ação. A doença repete lecimento de um mito, como o do "resistencíalisrno", discurso
evidentemente esse ato sem saber que se trata de uma repetição" 10. gaulista ou discurso comunista, segundo os quais todos os france-
A compulsão de repetição será, portanto, a maneira específica ses eram resistentes. Em seguida vem, com o filme de Marcel
do sujeito se lembrar inconscientemente sem saber o que está em Ophuls Le chagrin et Ia pitié, em 1971, a fase do "retorno do re-
jogo. A transferência, na situação analítica, não é ela mesma senão calcado': o espelho quebra e o mito voa em estilhaços. Enfim, o
um fragmento de repetição e "a repetição é a transferência do estágio da obsessão, no qual parece que ainda estamos.
passado esquecido, não somente pela pessoa do médico, mas Para Rousso, esta última fase é marcada pelo despertar, pela
também por todos os outros domínios da situação apresentada"!'. intensidade da memória judaica e pela importância das reminis-
Trata-se de um trabalho difícil, que não acontece sem resistência. cências da Ocupação no debate político interno (como mostram
O tempo é necessário para que o sãjeito chegue a conhecer essa as desavenças de Mitterrand em torno de suas relações com Bous-
resistência que antes ignorava. Ele deve vencê-Ia, "perlaborá-la", O quer). Como escreve Paul Ricceur, "contar um drama é esquecer
passado perlaborado, submetido ao trabalho do luto, não é uma um outro"!'. O que tínhamos "esquecido", em um primeiro mo-
lembrança revivida tal e qual, mas um passado trabalhado na e mento, era o extermínio, simplesmente. O que retoma violen-
pela transferência, que passa a ser "aceitável" pelo sujeito. tamente no discurso. Paul Ricceur mostra, assim, a importância
Em seu livro La mémoire, l'bistoire, l'oubli, ao qual fizemos e da "memória impedida" acompanhada de seus esquecimentos
faremos mais de uma vez referência nesta obra, Paul Ricceur dis- inconscientes ou organizados (as leis da anistia) através desse
tingue uma "memória impedida" da simples memória manipulada, período da história francesa.
ou mesmo instrumentalizada. A primeira é da ordem do recalque Como verdadeiramente lidamos com o "recalque" ou, como
Benjamin Stora a evocava a propósito da guerra da Argélia, com

8 Ibidem.
9 Idem. "Remémoration, répétition, perlaborarion ...".
12
10 Idem, p. 108. H. Rousso. Le syndrome de Vichy. Paris. Le Seuil, 1987.
13
11 Idem, p. 109. P. Ricceur. La mémoire ..., p. 584.

34 35
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

uma encenação do recalque em função de conjunturas e novas "normais"lS, que poderiam ser assimilados com a perlaboração
versões de grandes narrativas do passado ou da fragmentação das na cura, processo que chamamos comumente de trabalho da me-
narrativas, com as suas decomposições, reorganização das confi- mória. Da perspectiva dos desenvolvimentos mortíferos, os "abu-
gurações e reconfigurações narrativas? Há sempre deslocamentos, sos da memória'" ou, talvez, "muito pouco" ou "muito" de memó-
deslizamentos, substituições, a invenção de novos mitos. Mas esse ria, "muito pouco" ou "muito" de esquecimento. O excesso de
processo é totalmente inconsciente? memória seria da ordem da compulsão de repetição interditando
Os historiadores, utilizando o conceito de forma metafórica toda reconciliação com o passado e toda distância crítica. A falta
(Henry Rousso não discorda deles), levam a pensar que os povos de memória seria também da ordem do recalque, pronta para
não têm nenhuma responsabilidade no fato de "recalcar", de es- voltar a atormentar um tecido social mal estabilizado e que "acre-
quecer no momento oportuno o que incomoda. Buscamos então ditava" poder fazer uma economia de sua relação com o passado.
o que seria no social o equivalente da perlaboração e do trabalho
do luto. o que uns cultivam com deleite moroso e o que outros abandonam
A operação é muito mais delicada, porque a história e a psica- com má consciência é a mesma memória repetição. Uns amam se perder,
nálise não têm a mesma concepção epísternológica do tempo. os outros têm medo de ser engolidos nessa repetição. Mas uns e outros
Podemos até dizer que duas estratégias do tempo se confrontam. sofrem da mesma falta de crítica. Eles não atingem o que Freud chamava
Para a psicanálise, o esquecimento é ativo. Ele se insinua, ele de trabalho de rernernoração'".
retoma, pode até governar o presente. Para a historiografia, e essa
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será sua própria dificuldade em tratar os problemas de memória, De minha parte, penso que não há memória justa, nem recon-
existe um corte entre o passado e o presente. Sem esse corte, nem ciliação total com o passado. Há sempre "muito pouco" e "muito",
a história, nem o saber, nem a operação cognitiva seriam possíveis. em função das conjunturas e das versões afetando as grandes
A história associa, quando a psicanálise desassocia. Michel de narrativas do passado.
Certeau falava de "duas maneiras diferentes de distribuir o espaço Minha reflexão cruzará mais de uma vez com a reflexão de Paul
da memáriaíí", Rícoeur, mas eu não acredito na separação radical entre "dever de
Estamos diante de uma dificuldade, já que os historiadores, memória" e "trabalho de memória". Desejo, ao contrário, mostrar
mesmo de maneira metafórica, têm "adotado" a noção de recalque. que é necessário afastar-se dessas categorias patológicas e procurar
Pois não é possível compreender o trabalho memorial sem consi- outros caminhos para identificar o que está em jogo nos problemas
derar as camadas do tempo, esses "esquecimentos" eficazes que da memória, de sua história, de seus trajetos, de suas transformações-
permanecem como bases, essas heterogeneidades, esses recuos e -deformações. Porque, para as sociedades, a "escolha" quase nunca
disjunções. é feita entre o trabalho do luto e a melancolia, os povos cedem
Paul Ricceur opõe os processos históricos "patológicos", que raramente à melancolia. Jamais vimos um povo se suicidar, exceto,
residem no tecido social das sociedades e seu devir, aos processos
15
o termo «normal" é aqui empregado por mim. O processo «normal", como o compreen-
demos, não se encontra nas sociedades reais, mesmo se a visada da reconciliação das so-
ciedades com o seu passado permanece um horizonte de pensamento indispensável.
16
14 M. de Certeau. "Psychanalyse et histoire". Histoire et psychanalyse. Paris, Folio Histoire, 17 Ver o livro de T. Todorov. Les abus de Ia mémoire. Paris, Arléa, 1995.
2002. P. Ricceur. La mémoire ... , p. 96.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

talvez, e isso nunca foi manchete nos jornais, algumas tribos na Se dermos uma rápida volta ao mundo, dificilmente encontra-
Amazônia, ou de vilarejos ameríndios, ou esquimós no Norte remos um lugar onde se tenderia para uma justa memória.
canadense, que estão para além do próprio desespero. Mas "nossas" A única verdadeira "boa notícia', do ponto de vista memorial,
nações gloriosas não cessam de realizar sua "vocação". No entanto, em escala mundial, advém da África do Sul, que deu fim ao apar-
em todo lugar há traumas, então, a necessidade de "lidar com isso". theid e cuja "Comissão para a verdade e reconciliação" estabeleceu
Em toda a parte, há, em funcionamento, princípios no trabalho um mecanismo original de circulação de memórias entre carrascos
de luto, em razão das conjunturas históricas, dos primeiros pas- e vítimas, embora as lembranças ainda estejam vivas". Nesse caso,
sos de um trabalho de desinvestimento da libido sobre o objeto nenhum ódio propagado, narrativas, o reconhecimento de que
perdido: grande homem, ideal, regime no qual se era reconhecido aconteceu, nenhuma condenação tampouco. Essa modalidade de
em um momento dado, ou, ao contrário, reencontrava-se vítima reconhecimento da verdade deve muito à personalidade fora do
absoluta de regimes criminosos que não chegaram a assumir seus comum de Nelson Mandela. Quem pode, como é meu caso, visi-
crimes; mas, por um truque da razão memorial, o trabalho é em tar a cela na qual ele foi aprisionado durante mais de 17 anos, na
toda a parte desviado, retomado, travestido, transferido, deslocado. ilha Robben, é imune às simplificações de discursos concernindo
As responsabilidades são atribuídas a outros, ou não há culpado, à memória dos oprimidos. Hoje, o problema memorial da adap-
ou somente alguns o são. Esquecemos, recalcamos, mantemos tação da ilha Robben - seja em museu, lugar de peregrinação, ou
longe, ou no mais profundo, o que incomoda; preenchemos os em reserva da vida selvagem ou outra - mostra que a ilha entra
baús da história de cadáveres, esperando abri-los e reencontrá-los para a história mais cedo do que o previsto. No entanto, essa me-
sem reconhecê-los. mória que emerge, frágil, sem ilusão, é uma construção: "Averdade
Em resumo, há apenas encontros perdidos com a história. A não tem sido medida, ela foi fabricada. Sendo generosos, podemos
memória baliza, precisamente, a história desses encontros perdidos, dizer que verdade foi negociada. Essa verdade salvou a África do
a história dos fracassos do trabalho do luto, e inscreve novas con- Sul do abismo revolucionário. Ela será o espectro que velará o
figurações, rearranjos das narrativas que as sociedades contam ou futuro incerto do país'?".
se contam sobre seu passado. Entre o "muito" e o "muito pouco': não encontramos nunca
Por conseguinte, prefiro falar de "ritmos" da memória, de sua uma boa "explicação", desde o Japão, que não chega a assumir seu
tecelagem e de seu desfilamento, levando a sério a metáfora central papel na Segunda Guerra Mundial, até a França, onde Vichy e a
de Walter Benjamin: guerra da Argélia retomam periodicamente com todos os cadáveres
dos baús de nossa história; desde a impossibilidade de organizar
É somente quando o desdobramento histórico desliza entre os dedos uma exposição sobre Hiroshima nos Estados Unidos; desde a
do historiador, tal como um fio liso, que podemos falar de "progresso". impossibilidade de construir um memorial ou um museu para os
Mas, trata-se de uma corda muito desfiada e desatada em mil mechas, que índios da América exterminados; desde o escândalo da revelação
prende assim tranças desfeitas. Nenhuma dessas mechas tem lugar deter-
minado, antes de serem recuperadas e entrançadas num penreado'". 19
S. Nuttall & C. Coetzee (orgs.). Negotiating the Pasto Tbe making ofMemory in Soutb
Aftica. Cape Town, Oxford University Press, 1998.
20
18 W. Benjamin. "Paralípomênes et variantes des Thêses sur le concept d'hístoire". Écrits Apud B. Jewsiewicki. "De Ia vérité de mérnoire à Ia réconciliation". Le Débat. Mémoires
français. Paris, Gallimard, 1991,pp. 348-349. du XXe siécle, n. 122, nov.-dez. de 2002, p. 63.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

do massacre de Jedwabne, na Polônia, às múltiplas revisões, releitu- muito mais problemas com essa heterogeneidade, com as estrati-
ras do passado no Leste Europeu; desde a Itália, onde um discurso ficações da temporalidade e da historicidade. Todos têm lidado
muito na moda tende a reabilitar Mussolini e a desvalorizar a com um fenômeno que dá ao passado das sociedades um ar estra-
Resistência; desde Pinochet, que pôde, finalmente, voltar ao Chile nho de déja vu, de algo que retoma, pelo menos aparentemente,
sem muito prejuízo, apesar de suas aflições em Londres, até Videla que age como uma força subterrânea, uma repetição. Repetição
e os responsáveis da ditadura argentina (1976-1983) que, de anis- de situações, repetição de argumentos, de slogans, de retóricas, de
tias em processos, de denegações em meias confissões, não estão citações presas em um imenso intertexto memorial de aconteci-
verdadeiramente preocupados etc. Dizendo isso, não quero mentos; repetição de cenas, resultados, repetição das derrotas
afirmar que um trabalho do luto, que um trabalho memorial não dos oprimidos, dos humilhados e dos ultrajados, repetição de
tenha sido empreendido aqui e lá - às vezes fundamental, como dominações.
na Alemanha -, mas esse trabalho de memória é difícil; no debate, Eis alguns exemplos de diferentes perspectivas e proposições
em conflito, está longe de triunfar, está sempre a retomar e sem- através do tempo desses esforços para pensar o "contratempo".
pre tomado em uma conjuntura em que ele próprio está em ques-
tão, preenche uma função social, é mais ou menos instrumentali-
zado - talvez seja impossível que seja diferente - politicamente, Marx e a linguagem emprestada
culturalmente, historiograficamente.
Lendas instáveis, formas diversas do esquecimento, mudanças Se quisermos reabrir o que se pareceria com um "velho livro de
de ritmo e novos tempos, muito frequentemente a memória oscila feitiços", mas que poderia se revelar muito útil, leremos:
ao capricho das razões e das razões do presente.
Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens
de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer,
Contratempo duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia,
a segunda como farsa. Caussidiêre por Danton, Luís Blanc por Robespierre,
Esses passados que nos esforçamos para gerir, perseguir, ou, ao a Montanha de 1848 a 1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho
contrário, para reavivar em ilusões de ressurreição, para restaurar, pelo tio21.

transformar, contornar, esses passados esburacados (o que resta


dos arquivos é aleatório, seções importantes foram apagadas), História teatral, dramática, que não chega a habitar seu tempo,
dístorcidos, reescritos, reinventados, simplesmente esquecidos, história anacrônica. A história não avança, ou só recua mascarada,
inacessíveis; esses passados lacunares se assemelham a camadas o acontecimento se refere somente a ele mesmo. Há repetição na
geológicas entrelaçadas, plissadas como depois da formação de história, para a qual Paul-Laurent Assoun dedicou um belo livro22•
uma cadeia de montanhas ou algum outro cataclismo. O presente Repetição, imitação, farsa, das quais umas são sérias e outras
não é um tempo homogêneo, mas uma estridente articulação de grotescas:
temporalidades diferentes, heterogêneas, polirrítmicas. Refletir
sobre essas articulações e rangidos sempre fascinou os filósofos, 21
K. Marx. Le J 8 Brumaire de Louis-Napoleon Bonaparte. Paris. Éditions Sociales, 1969. P: 1S.
22
os pensadores, os escritores ou os artistas. Os historiadores tiveram P.-L. Assoun. Marx et Ia répétition historique. Paris. PUF. 1978.

40 41
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de que lembravam 1848, as barricadas da Comuna, os cortejos do Front
1789-1794 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o popular, a lembrança ainda viva da Resistência; as revoluções dos sovié-
império romano ... e em outro estágio do desenvolvimento, um século ticos de Petrograd e a tomada de poder de Lênin; a revolução do terceiro
antes, Cromwell e o povo inglês haviam tomado emprestado a linguagem, mundo, da China a Cuba. Nunca se terminará de contabilizar a fantas-
as paixões e as ilusões do Velho Testamento para sua revolução burguesa 23. mago ria histórica da qual Maio de 68 foi a recapitulação puramente
simbólica. Os revolucionários de 68 queriam agir, eles não fizeram mais
Marx acrescenta ainda que, quando os atores tinham cumprido do que celebrar, em um último festival e em um reavivar mim ético, o fim
a tarefa que a história havia exigido deles, os costumes, as máscaras, da Revolução. O acontecimento tem apenas um sentido cornemorativo=.
as citações emprestadas a outras cenas históricas caíam por terra.
Pseudorrevolução autorreferencial, verdadeira entrada da
Uma vez estabelecida a nova forma de sociedade, desapareceram os política no espetáculo, na sociedade que Guy Debord desprezava,
colossos antediluvianos e, com eles, a Roma ressuscitada: os Brutus, os Maio de 68 teria sido um grande simulacro.
Gracos, os Publícolas, os tribunos, os senadores e o próprio César. A so- Parece-me que, apesar de seu caráter brilhante, a análise de
ciedade burguesa em sua sóbria realidade tinha criado seus verdadeiros Pierre Nora não deixa clara uma parte essencial que diz respeito
intérpretes e porta-vozes na pessoa dos Say, dos Cousin, dos Royer-Collard, ao estatuto da repetição na história. Pois Maio de 68 foi realmente
de Benjamin Constant e dos Guizot. Seus verdadeiros capitães sentavam- uma revolução, não no sentido clássico do termo, nem em função
-se atrás dos balcões de comércio e o "cérebro de roucinho" de Luís XVIII dos "modelos", mas em termos de sintomas que anunciam trans-
era sua cabeça política. Completamente absorvida pela produção da riqueza formações radicais e trazem o novo. O inventário das revoluções
e pela luta pacífica da concorrência, a sociedade burguesa havia esquecido anteriores, a bricolagem memorial à disposição dos atores, é o
os fantasmas da época romana que haviam velado seu berç024. ponto forte da demonstração de Pierre Nora: serrar árvores para
construir barricadas, atuar como Gavroches e Liberte guidant le
É esse caráter espectral que Pierre Nora não vê quando evoca peuple ao modo de Delacroix, mas também deliberar como os
os acontecimentos de 1968: primeiros soviéticos, bandeiras vermelhas e pretas em toda parte.
Nessa loja de acessórios, contudo, há hierarquias. Maio de 68
No que se refere à ação revolucionária, no que se refere à história que, também saiu da guerra do Vietnã, quando estava terminando, fim
no sentido hegelíano, se escreve com letras de sangue, cada um se pergun- triunfante para o Vietminh e catastrófico para os Estados Unidos.
tou, posteriormente, o que havia acontecido realmente. Nada de revolu- O terceiro-rnundismo dos atores, todas as tendências confundidas,
ção, nem mesmo nada de tangível e de palpável, mas, apesar dos atores era primordial, do mesmo modo que o forte investimento retórico
com seus corpos defendendo o retorno incoercível e o festival flamejante e simbólico sobre o marxismo, fosse ele tomado em sua variante
do lendário sucesso absoluto de todas as revoluções: as revoluções fran- trotskista, libertária, maoista ou outra. Nunca se ouviram tantos
cesas do século XIX e, também, do século XX, com os jovens das escolas, slogans repetindo, simulando outras revoluções, mas fortemente

2S
23 K. Marx. Le 18Brumaire .... pp. 15-J 7. P. Nora. "L'êre de Ia Commérnoration". Les Lieux de mémoire, m. Paris. Callimard, J 992.
24 Idem. p. 16. pp. 979-980.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

investidos de um vocabulário marxizante. Pode-se lembrar que o Eles vão ser desmantelados". A França verá sua paisagem comple-
próprio Debord, em La société du spectacle", fala como Feuerbach tamente desestruturada e reestruturada sobre novas bases. A velha
(do ponto de vista formal) e que sua crítica do espetáculo está, cultura operária tradicional sofrerá um ataque frontal. Ora, o
também, presa nessa retórica marxizante. À época, as referências partido comunista e a CGT, que dominam então a classe operária,
ao marxismo, compreendidas amplamente, estavam longe de ser não assumem, em suas análises, essas transformações fundamentais.
desvalorizadas! De Che a Mao, de Althusser a Trotski, uma pa- Eles permanecem no "capitalismo monopolista do Estado", noção
nóplia de textos, slogans, imagens, referências, modelos de análise que lhes serviu de base para pensar o retorno de De Gaulle ao
estavam à disposição dessa juventude que, como a França, estava poder em 1958 e as profundas reconfigurações do capitalismo na
ainda "entediada" alguns dias antes do início do mês de maio. França que exigiam um papel maior do executivo. Diante desse
Somente o partido comunista, ainda muito poderoso, não servia poder, ocorreram lutas frontais, centralizadas e, sobretudo, "quan-
de modelo, por razões históricas complexas ou por razões de classe. titativas": pela jornada de trabalho, pelo aumento dos salários,
A revolta partiu dos meios estudantis, pequeno-burgueses; os pelos regimes especiais de aposentadoria no setor público. Ora,
operários, como já afirmamos aqui, entraram em greve somente nos anos 1960, nascem novas reivindicações, particularmente nos
após o início do movimento. Não foram eles que tomaram a Estados Unidos, onde não existem essas tradições dos movimentos
iniciativa. operários: lutas libertárias, mais qualitativas que quantitativas,
Posteriormente, como sublinha Pierre Nora, nos perguntamos lutas regionais, locais, luta das mulheres por igualdade, a pílula, a
o que aconteceu. Devem-se ponderar o peso e o papel de Maio de liberdade da vida sexual, o aborto etc. Todas essas formas de novas
68 em médio prazo. Curiosamente, na ocasião do trigésimo ani- lutas estarão em primeiro plano em maio de 68.
versário dos acontecimentos, embora as livrarias estivessem repletas No domínio do saber e do ensino, atacam-se também as formas
de obras sobre Maio de 68, nenhuma análise séria foi lançada, autoritárias da transmissão que Marcuse, emL'Homme unidimen-
primeiramente porque a maioria dos livros era composta de "me- sionnel", havia denunciado e que Pierre Bourdieu e Jean-Claude
mórias", lembranças ou descrições dos próprios atores da revolução Passeron mostraram, dizendo que elas serviam apenas para repro-
que tinham dificuldade em tomar alguma distância diante de sua duzir o sistema em espelho, promovendo unicamente "herdeiros"
atuação, sua vivência, seu futuro pessoal ou de sua geração; depois, vindos dos meios burgueses'".
porque o recurso a Marx, nesses tempos de regressão generalizada, Tudo isso resultará no célebre: "Era preciso querer ser maoista
pareceria ultrapassado e um sacrilégio, e o livro, bastante ousado para se tornar americano ?", de Régis Debray". Esse autor tem,
para fazê-lo, não conseguiria verdadeiramente encontrar um público notadamenre, analisado a "língua de vento" de 68 e, ao mesmo
ou um editor. tempo, a realidade instável da sociedade francesa da qual Maio de
Em 1968, estamos a cinco anos da primeira grave crise de pe-
tróleo que vai afetar o Ocidente. Sem que se possa ainda analisar,
26 Primeiro ato da crise em 1962, em Valenciennes, e um dos últimos, o desmantelamento
o capitalismo e a tecnologia estão mudando, entrando em uma da bacia de Longwy em 1978.Entre essas duas datas, reestrururações, greves e o que ainda
nova era, pouco visível, mas, ainda assim, avançando. Já os antigos se intitula "planos sociais".
27
polos da indústria e de tudo aquilo que propiciou a importância 28
H. Marcuse. L'Homme unidimensionnel. Paris, Éditions de Minuit, 1968,na edição francesa.
P. Bourdieu & J. Passeron. Les Héritiers. Paris, Éditions de Minuit, 1964.
da siderúrgica no Norte e em Lorraine mostram sinais de fraqueza. 29
R. Debray. Modeste contribution aux discours et cérémonies officielles du dixiême anniuer-
saire. Paris, Maspero, 1978,P: 37.

44 45
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

68 é o sintoma. "Discurso duvidoso, sem ancoragem na mate ria- "gestão" - modelo da empresa em rede, descentralizada, que re-
lidade sensível ou histórica; sintaxe sem semântica na qual os jeitou as antigas relações hierárquicas, modelo ?a fluidez, da fle-
signos jogam entre si, no ar. ..", mas também aquilo que se move xibilidade, da multiplicidade, da mobilidade. E um mundo das
atrás dessa sintaxe sem semântica: redes, em que o essencial é o estabelecimento das conexões, dos
contatos:
Na França, todos os Colombos da modernidade acreditaram, depois
de Godard, que estavam descobrindo a China em Paris, quando atracaram A generalização da forma rizomática é recusada por meio de diferen-
na Califórnia. Era o vento do Oeste que içava as velas, porém, eles se tes metáforas que se referem seja de modo clássico à tece dura (retalho,
guiavam pelo Petit Livre rouge que dizia o contrário, como os descobri- laço, nós) ou aos dispositivos nos quais circulam fluidos (fluxo, oleoduto,
dores sobre a Géographiede Ptolomeu. O presidente Mao nunca teve uma canal, linhas elétricas) ou, ainda, de maneira mais moderna, à biologia do
tal aparência de infalibilidade aos olhos de seus discípulos europeus a não cérebro (sínapses, neurônios ...). O último registro é usado, particularmente,
ser neste momento da história, no qual o vento do Oeste começava a para acentuar a autonomia e mesmo a vontade da rede, mais forte do que
30 a dos seres que estão mergulhados nela, em que se descrevem as proprie-
prevalecer sobre o vento do Leste ...
dades na linguagem da auto-organização, da autorregulação, da morfo-
Tratava-se de sous lespavés, Ia pIagé V
, mas não era senão o do Club gênese espontânea ".
Méditerranée !V
Somente na segunda metade dos anos 1970, o movimento, tido O capitalismo soube se transformar, se reformar, adotando,
como sintoma, poderá ser analisado e colocado em uma cadeia adaptando o discurso de alguns dos seus adversários. Ele soube
complexa de acontecimentos. Será preciso então atravessar um endossar a "crítica artística" que, por todo o mundo, nos anos 1960,
grande "desarmamento da crítica", rejeitando não apenas o comu- apelava a "mudar a vida" e defendia as transformações mais qua-
nismo real, suas derrotas, suas repressões acompanhadas de revoltas litativas que quantitativas, a autonomia, a criatividade. Ele soube
ou tentativas de resistência (o ano húngaro de 1956, o ano tcheco tirar proveito da aspiração à segmentação, à fragmentação, à indi-
de 1968, a invasão do Afeganistão em 1979, o estado de sítio na vidualização. O novo espírito do capitalismo se apoia sobre as
11111
Polônia em 1981 etc.), mas também a própria ideia de comunismo críticas que denunciavam então a mecanização do mundo. Ele
e de revolução social. Os anos 1970 veem também a instalação da retomou por conta própria a reivindicação de autenticidade, a
sociedade pós-moderna das redes e o recuo de um movimento rejeição da rnassificação, da padronização, da inautenticidade. Ele
operário que perdeu sua identidade. entrou com os dois pés na sociedade pós-industrial, nessa sociedade
Luc Boltanski e Eve Chiapello analisam as transformações dos das redes, da informática, do apagamento das fronteiras, das iden-
últimos 30 anos e as novas configurações ideológicas que nos tidades porosas. Os novos mecanismos capitalistas de organização
governam. Eles tentam delimitar a confusão ideológica. Nenhuma do trabalho difundem, à sua maneira, a crítica artística dos anos
alternativa aos antigos dispositivos críticos veio substituir os dis- de contestação. Até mesmo L'Homme unidimensionnel de Marcuse
cursos revolucionários, reformistas ou mesmo o discurso do foi recuperado.
keynesianismo. Essa nova configuração emergiu do modelo de

30 Idem. p. 35-36. 31 L. Boltanski & É. Chiapello. Le NouvelEsprit du capitalisme. Paris. Gallímard, 1999.p. 178.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURA DA

Outros, segundo a compreensão de Michel Foucault, pensaram dos horrores que tinham acompanhado a edificação da sociedade
a passagem de uma sociedade da disciplinarização a uma sociedade soviética - que aliás eram conhecidos por quem quisesse vê-los
do controle". O grande período de acumulação do capitalismo há 50 anos - tornava ao mesmo tempo hediondo, quimérico e
viu a instauração de uma rede de instituições (o asilo, o hospital, ridícul033•
a prisão, depois a escola, o ateliê, a usina), um conjunto de meca- Fukuyama decreta o "fim da história" a morte das ideologias,
nismos estruturando o social, regendo os comportamentos, de tentação à qual não sucumbiremos, pois, se assistimos a uma mu-
forma a tornar dóceis os indivíduos e a sancionar os comportamen- dança de conjuntura, a uma inversão das polaridades do discurso,
tos desviantes. A sociedade de controle ou pós-moderna obedece na verdade, as ideologias não morreram. Assistimos, ao contrário,
a outros mecanismos. Ela é uma sociedade de comunicação, de ao retorno da "mão invisível" de Adam Smith, a ideia de que o
informação, em que os processos de singularização, de subjetivação, capitalismo era um modo de produção "natural", um dado no qual
repousam sobre a interiorização pelos indivíduos de seu "lugar", não se devia tocar, um pouco como a proibição do incesto no
muito mais que pelas estruturas de autoridade hierarquizadas. fundamento simbólico de nossa sociedade. Vimos, também, res-
Enquanto a modernidade havia visto a afirmação do poder dos surgir a ideia de que as estruturas de mercado e a democracia es-
Estados-nações, a sociedade de controle e de rede é testemunha tavam ligadas por natureza, esquecendo que a democracia tinha
de seu declínio. São sociedades cujas estruturas produtivas são sido historicamente uma conquista.
cada vez mais desterritorializadas, e que tendem a se tornar formas Retomemos a imagem de Marx que abre seu 18 Brumaire. O
de exploração e de controle das estruturas de trabalho. costume romano é o arsenal memorial das revoluções do passado,
As dificuldades dessa "transferência', dessa passagem, foram algumas imagens chocantes que se tornaram, depois de muito
precipitadas pela implosão dos regimes comunistas. tempo, arquétipos. A linguagem emprestada é a linguagem do
Na segunda metade dos anos 1980, com o fim da Guerra Fria, desejo ao modo de Deleuze, a linguagem de um marxismo ra-
o capitalismo se viu só, sem que nenhuma alternativa confiável dicalizado, a do "mudar a vida" e da rejeição da sociedade de
parecesse poder ser oposta a ele. Essa crença não se impôs somente consumo. Alguns anos depois, uma vez que todo esse simbolismo
aos gestores de um capitalismo triunfante. Ela foi amplamente e essa retórica não terão mais uma função social, eles se apagarão.
partilhada pelos simpatizantes e militantes dos antigos partidos Crise do esquerdismo, nova filosofia, entrada na era do vazio e do
de esquerda que, na sua grande maioria, e mesmo quando emer- hedonismo sem freio, deslegitimação de toda ideia de revolução,
giam de partidos comunistas fortemente em declínio, tinham publicação de L'Archipel du Goulag, de Soljenirsyne, apagamento
como desejo, para conservar uma legitimidade que lhes era cada do marxismo até mesmo em nível superficial, desaparecimento
vez menos facilmente reconhecida, mostrar que tinham renunciado das palavras "ideologia" e "alienação" no discurso social, desapa-
à violência revolucionária, ao projeto de uma mudança social recimento das bandeiras vermelhas ou pretas como símbolos co-
radical, à projeção no futuro de uma sociedade nova e de um locarão, definitivamente, fim ao imaginário revolucionário. Entram
homem novo, a um futuro promissor, cujo pleno reconhecimento a~simem cena os Royer-Collard, os Guizot etc. "Quando o obje-
tivo foi atingido, isto é, quando foi realizada a transformação

32 É o caso de M. Hardt & A. Negri em Empire (Exils, 2000). O quadro episternológíco não
tem nada a ver com o quadro de L. Boltanski & E. Chiapello, mas um certo número de
constarações converge. 33 L. Boltanski & E. Chiapello. Le NouvelEsprit ...• pp. 415-416.

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burguesa da sociedade inglesa, Locke expulsa Habacuc.P' Quando, vimento espartaquista em 1919. Ele utiliza uma noção-chave: a
após 68, a bandeira vermelha e a bandeira preta não representavam "não contemporaneidade".
mais nenhuma segurança, emergiram aqueles que Gramsci chamava As formas de pensar e de agir, ou de sentir, que não respondem
de "intelectuais orgânicos" da nova era do capitalismo, em uma às contradições do presente e que podem ser símbolos no passado,
constelação diversificada: La Pensée 6835 com o afastamento de às vezes em épocas remotas, não são contemporâneas. Em período
Althusser que desaparece do horizonte do discurso social bem de crise, ressurgem formas de consciência pré-industriais e pré-
antes do ato criminoso que o retira da sociedade, e de Foucault; -modernas, românticas, religiosas, irracionais. A hostilidade em
os novos pensadores do capitalismo e da resignação social, com relação ao progresso e um cristianismo muito conservador pode-
Alain Minc; os pensadores (não necessariamente os bajuladores) rão facilmente instrurnentalizar a nostalgia de tempos passados.
da era do vazio, da sociedade pós-moderna, como Lipovetsky": Os partidos de esquerda na Alemanha, em sua divisão mortífera,
os ideólogos da nova cultura livre das ideias de revolução e do deixaram o campo livre para todas as manipulações fascistas. Houve
conceito de classe. Reconheceremos facilmente a cena cultural a utilização de: palavras, símbolos de bandeiras, slogans, gestos,
francesa dessas últimas décadas. Não é surpresa encontrar um certo manifestações, e uma fina estratégia de desvio de sonhos perten-
número de líderes do movimento estudantil ou de diversas igrejas centes a épocas anteriores.
esquerdistas que estejam ocupando cargos de conselho adminis-
trativo, em posições de "conselheiros do príncipe" ou em minis- 1. Se começa roubando a cor vermelha, ela foi utilizada para diluir. As
térios. Não é tão surpreendente em função de uma propensão da primeiras proclamações dos nazistas eram impressas sobre um fundo
natureza humana a "pender para o lado mais forte': mas porque vermelho, espalhava-se essa cor sobre a falsa bandeira. Os cartazes torna-
as novas ideologias vindas deste período de transição dos anos ram-se cada vez mais pálidos, de maneira que não assustavam mais os
1960 e do início dos anos 1970 convinham perfeitamente aos que doadores de fundos. A bandeira trazia também desde o início o seu sím-
tinham pregado que era preciso "mudar a vida". bolo torcido e dobrado, é esse símbolo que lhe deu nome, e não a cor. No
entanto, quando um operário esperto recorta e remove a cruz suástica,
restam apenas metros de tecido vermelho. Com apenas um buraco no
A não contemporaneidade meio, como uma boca grande aberta e totalmente vazia.
2. Em seguida, se rouba a rua, a pressão que ela exerce. O desfile, as
Quando Ernst Bloch publica Héritage de ce temps, em 1935, ele já canções perigosas que tinham sido cantadas. O que os combatentes da
está exilado e tenta analisar as causas do triunfo do fascismo na Frente Vermelha haviam inaugurado, a floresta das bandeiras, entrada na
Alemanha, da derrota extraordinária de um poderoso movimento sala, é o que precisamente os nazistas imitaram ...37
operário, embora dividido em dois desde o esmagamento do mo-
Houve também a transformação da terminologia, de classe ope-
rária para "corpo operário", e um verdadeiro emprego de distorções.

34 K. Marx.Le 18 Brumaire ..., P: 17.


35 L. Ferry & A. Renaut. LaPensée 68. Sur l'anti-humanisme contemporain. Paris, GaIlimard,
1985.
37
36 G. Lipovetsky. L'Ere du uide. Paris, Gallimard, 1996. E. Bloch. Héritage de ce temps. Paris, Payor, 1978, p. 64.

I~
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A propaganda nazista s,eapropriava de uma parte dos símbolos belecer, no mesmo movimento, a memória do passado e a possibilidade
do movimento operário, mas também fazia empréstimos aos de futuro. Rejeitar a tirania de hoje supõe uma consciência histórica, in-
movimentos heréticos da Idade Média. É assim que Joachim de dispensável para quebrar a ilusão do fim da história e reabrir a perspectiva
Fiore desenvolveu a doutrina utópica e profética do "Terceiro de um futuro que não seja a repetição do presenre'",
Milênio", chamado para recuperar a pureza do cristianismo primi-
tivo. Era a imagem do "Terceiro Evangelho" que acompanhava as A valorização das estruturas sociais pré-capiralisras não é um
revoltas da Idade Média. Ela impregna a guerra dos camponeses fenômeno novo na tradição dos dominados, compreendido no
e perdura no decorrer dos séculos. A expressão foi destituída de movimento operário, mas o zapatismo traz algo de inédito. Ele
suas conotações utópicas e sociais e colocada a serviço da propa- joga com vários ritmos e articula várias temporalidades: primei-
li! ganda nazista sob o termo Drittes Reich (Terceiro Império ou, mais
especificamente, Terceiro Reich). Essa noção já havia sido utilizada
ramente, a época indígena, sem confinamento reacionário nos
tempos antigos; o tempo frágil e incerto da modernidade não é
e distorcida por Moeller van den Bruch no sentido reacionário. de forma alguma rejeitado, mas não saberia pensar em termos li-
Desfile de espectros, de lembranças pervertidas. Tudo vai ser neares, continuístas, evolucionistas; o presente eterno dos tempos
assim distorcido, colonizado, deturpado pela propaganda nazista de hoje, pós-modernos, época da nova dominação globalizante
que se instala em terras abandonadas pelo imaginário social- que eles rejeitam; o tempo de esperança, enfim, aquele de uma
-democrata ou comunista, incapaz de pensar a não contempo- outra sociedade que atravessa os três primeiros. Esse novo tempo,
raneidade. a vir, mas já presente nas lutas contra a nova dominação liga o
Em outro lugar, e mais perto de nosso tempo, as lutas repre- local (a reivindicação étnica, indígena), o nacional e o universal.
sentam plenamente, consciente ou inconscientemente, o mapa da Essa articulação de escalas é especificamente adaptada às lutas
não contemporaneidade, como mostraJérôme Baschet a propósito contra a reestruturação capitalista no mundo, à era da deslocalí-
dos discursos da revolta dos Chiapas". zação generalizada:
Nos textos do movimento EZLN, as referências ao passado são
onipresentes. É necessário salvar a memória de lutas do esqueci- De fato, uma luta exclusiva para a identidade e a autonomia indígena
mento induzido pela globalização. As fórmulas do movimento reconduziria ao etnicisrno e às idealizações que a acompanham frequen-
são paradoxais: "olhar para trás para seguir em frente", "avançar em temente; aceitar as fronteiras do México como horizonte político facilmente
direção ao passado". Compreende-se que não se trata de um retorno leva a um fechamento nacionalista, ou mesmo xenófobo; enfim, manter
fantasioso ao passado, mas de reconhecer nele uma certa positivi- somente uma perspectiva universal imporia negar as particularidades
dade, de promover uma aliança inédita entre passado e futuro: locais, étnicas e nacionais que são a base sólida de todo o movimento
social. O local, o nacional e o intercontinental, portanto, não podem ser
Se o presente contínuo fundamenta sua dominação no esquecimento opostos nem separados'",
do passado e na negação do futuro, a história deve se esforçar para resta-

38 J. Baschet. "La bistoire foee au présent perpetuei. Quelques remarques sur Ia relation passé/
39 Idem, p. 65.
[atur", In: F. Hartog & J. Revel (orgs.). Les usages politiques du passé. Paris, Éditions de
40 Idem, p. 71.
I'École des Haures Êtudes en Sciences Sociales, 2001, pp. 55-74.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

Utilizar, para fins de luta, as temporalidades em desacordo com do que com seus pais". Em todo caso, o que deve ser evitado em
a história significa reunir tempos desconexos sem tentar novas uma concepção científica da história é o anacronismo.
sínteses, pensar a articulação do todo sem totalização, seria um Jacques Ranciêre, que elaborou uma crítica magistral dessa
encontro improvável, uma ilustração do funcionamento da não concepção da história42, vii, lembra que todo trabalho sobre a his-
Ill!l!
contemporaneidade. toricidade tem lidado com uma heterogeneidade temporal, com
um atrito de temporalidades diversas, extemporâneas umas em
relação às outras, com um rangido, com uma incompatibilidade
Anacronismos temporal. Em La nuit des prolétaires43. viii, o autor mostra que os
operários da primeira metade do século XIX se afirmam como
Contra o remoer e a reutilização do passado, os historiadores proletários, à medida que eles tomam consciência de uma desco-
mantêm, apesar de todas as críticas, os laços da causalidade, da nexão do tempo do dia, no qual eles trabalham, e do tempo da
cronologia, da períodízação e da consonância crônica, no sentido noite, no qual eles fazem outra coisa que não se espera deles - re-
de que o pensamento, o discurso social, as produções simbólicas parar sua força de trabalho, ou, no limite, tramar, organizar-se -,
da literatura e da arte são filhos de seu tempo. o que teria tranquilizado a delegacia de polícia na qual foram fi-
É Lucien Febvre, em François Rabelais, que faz do anacronismo chados. Nada disso! Eles são terrivelmente precoces. Eles passam
o pecado mortal da história'!- vi. seu tempo escrevendo versos alexandrinos presentes nas tragédias
Não podemos fazer de Rabelais, escreve o autor, um incrédulo gregas. O que leva Jacques Ranciêre a postular que:
camuflado. Isso é tornar contemporânea de Rabelais uma ideia
que não é de sua época. Para Lucien Febvre, essa questão não é a Não existe anacronismo, mas modos de conexão que podemos chamar
única. O problema não é conhecer os pensamentos íntimos de positivamente de anacronias: acontecimentos, noções, significações que
Rabelais, mas questionar as condições de possibilidade do ateísmo rebobinam o tempo, que fazem circular o sentido de uma outra maneira
no século XVI. Na época, tudo é envolto pela religião, submisso que escapa a qualquer contemporaneidade, a toda identidade do tempo
ao cristianismo, ao catolicismo, nesse caso. Tanto a vida privada "consigo mesmo". Uma anacronia é uma palavra, um acontecimento, uma
quanto a vida profissional, ou mesmo os pensamentos públicos sequência significante extraída de "seu" tempo, dotada ao mesmo tempo
como os pensamentos íntimos são governados pela religião. A da capacidade de definir orientações temporais inéditas, de garantir o
pertença a um tempo condiciona para os mortais o próprio fato salto ou a conexão de uma linha temporal com uma outra. É graças a essas
de existir. Há muitos precursores, afirma Lucien Febvre, mas é bifurcações, esses saltos e conexões que existe um poder de "fazer" a
história ...44
necessário, para personalidades de exceção, apoiar-se em uma
alavanca. Impossível para Rabelais encontrar tal alavanca: nem
nas ciências de seu tempo, nem no pensamento crítico. Marc Bloch 42
]. Ranciére. "Le concept d'anachronisme er Ia vérité de l'historien", L'Inactuel, n. 6, 1996,
não dirá outra coisa: "Os homens se parecem mais com seu tempo pp.53-68.
43
44 Idem. La nuit des prolétaires. Paris, Fayard, 1981.
II Idem. "Le concept d'anachronisme ..:; pp. 67-68.Nicole Loraux (em "Éloge de l'anachronisme
en histoire", Le Genre humain, n. 27,1993) escreve: "Importa menos ter consciência de si
41 L. Febvre. Le Problême de l'incroyance au XV/e siêde. François Rabelais. Paris, Albin Michel, mesmo do que ter a audácia de ser historiador, o que talvez signifique assumir o risco do
111 1968. anacronismo (ou pelo menos de uma certa dose de anacronismo), com a condição de que
11

54 55
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

Sobre o plano estético, uma obra recente de Georges Didi- busca é aleatória, ele a deixa escapar, meio bêbado. Trapos de pa-
-Huberman retoma essa discussão com virulência, fazendo dessa lavras ou de coisas, ele não poderá constituí-Ias de modo coerente,
vez, deliberadamente, o elogio do anacronismov, de uma única vez. Em uma de suas crônicas de infância em Berlim,
Duas figuras simbolizam a extemporaneidade: o trapeiro, es- "La boite à ouvrage", W alter Benjamin relata como, enquanto sua
pécie de catador e colecionador de sucata, e o espectro. mãe lhe dava um molde de bordado, revoltado contra a costura,
O trapeiro é uma figura recorrente do século XIX. Benjamin contra os bordados de sua mãe e tudo que ele não compreendia,
o reconhece em Baudelaire: ele vai olhar do outro lado do molde: "E enquanto o molde cedia,
com um leve estrondo, o caminho da agulha, eu cedia de tempo
Eis aqui um homem encarregado de recolher os detritos de cada dia em tempo à tentação de comparar amorosamente o traçado revés,
da capital. Tudo o que a grande cidade rejeitou, tudo o que ela perdeu, que, a cada ponto que me aproximava do objetivo, tornava-se mais
tudo o que ela desdenhou, tudo o que ela destruiu, ele cataloga e coleciona. confuso"49.
Ele manuseia os arquivos da devassidão, o cafarnaum dos detritos. Faz Poderia ser a melhor descrição do que o trapeiro vai operar:
uma triagem, uma escolha inteligente; recolhe, como um avarento um quanto mais temos a sensação de que nos aproximamos do objetivo,
tesouro, os lixos, que, mastigados pela divindade da indústria, tornar-se-âo mais isso se torna confuso a partir do momento em que aceitamos
objetos de utilidade ou de prazer46. comparar os traçados do revés. Não se trata simplesmente de re-
combinar os dispersas fragmentos, mas de discernir nas montagens
E, a propósito de Employes", de Siegfried Kracauer, Benjamin inéditas algo das vozes esquecidas.
acrescenta: É o que faz Walter Benjamin quando acumula seus arquivos,
coleciona seus textos em vista de constituir uma nova forma para
Assim vemos um trapeiro que, cedo, na alvorada, junta com seu bastão a escritura de suas Passages:
os detritos de discursos e os farrapos de linguagem e os joga em seu carri-
nho, rnal-humorado, obstinado e um pouco bêbado, não sem ter deixado, Esse trabalho deve desenvolver em seu mais alto grau a arte de citar
zombeteiro, tremulando ao vento pela manhã, um ou outro desses trapos sem aspas. A teoria dessa arte está em correlação muito estreita com a da
desbotados, como "humanidade': "intcrioridade", "contemplação': Um montagem. [...] O método desse trabalho: a montagem literária. Eu não
trapeiro, ao amanhecer, na aurora do dia da revoluçãot", tinha nada a dizer. Apenas para mostrar. Eu não vou roubar nada de
precioso nem me apropriar de fórmulas espirituais. Mas, os farrapos, a
Nosso trapeiro vasculha as lixeiras da história, recolhe lixo, sucata: não quero fazer-lhes o inventário, mas lhes permitir obter justiça
restos. O que ele vai fazer com isso? Revendê-los em pedaços? Sua de uma única maneira possível: utilizando-os",

Recusa da síntese, à maneira dos historiadores, evidência de


seja com consciência de causa e escolhendo as modalidades de operação". Observações
prudentes, mas decisivas. documentos singulares, promoção do minúsculo, do detalhe
45 G. Didi-Huberman. Devant le temps. Paris, Éditions de Minuit, 2000. significante. Os dejetos e sucatas serão, pela montagem do autor,
46 C. Baudelaire, apudW. Benjamin. Charles Baudelaire. Paris, Payot, 1979,p. 279, nota 51.
47 S. Kracauer. Les employés. Paris, Avinus, 2000.
49
48 W. Benjamin. "Un marginal sort de l'ombre. À propos des Employés de Siegfried Kracauer Idem. Sens unique. Paris, Maurice Nadeau, 1978,p. 114.
50
(texto de 1930)". CEuvres, tomo 2. Paris, Folia Essais, pp. 179-188. Idem, apud G. Dídi-Huberrnan. Devant le temps ..., P: 121.

56 57
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

devolvidos à sua legibilidade sem uma construção sintética causal. passado que nunca foi presente e um futuro ainda desconhecido
Essa montagem permite pensar a heterogeneidade temporal em viveu somente em e por suas máscaras. Essas regressões originam
seu atrito, seus próprios estratos, seu polirritmo. Montagem sur- o novo, porque elas não são nunca um retorno ao mesmo. Elas
realista, como escreve Ernst Bloch a propósito de Walter Benjamin, copiam com vistas a produzir um original 53:

busca de um inconsciente da época. Adorno qualificava essa


montagem como "estética" e via nela uma limitação, uma aporia, É por isso que todo retorno ao mesmo (comemoração, conservação,
Benjamin e Kracauer, ao contrário, uma das condições das novas restauração) é sempre acompanhado por sua sombra que ele deverá deixar
escrituras da história. para trás ou fora dele para alcançar aquilo que está diante dele, como se
Segunda figura, o espectro, o fantasmagórico, o fantasma, aquilo que foi deixado para trás não cessasse de puxar pela manga isso ou
conotando o retorno do recalcado, mas também todas as bifurca- aquilo que corre à sua frente, condenando-o a nunca chegar54•
ções, as vias não falseadas pela história, os derrotados, as soluções
abandonadas, as utopias sufocadas. O espectro, aqui, é o terceiro Nessa busca do heterogêneo e do não contemporâneo, no
espaço que vai permitir transmitir uma parte da herança, o passado sentido de Ernst Bloch, daquilo que range no emergir do aconte-
aberto naquilo que ele tem ainda a nos dizer e no que temos ainda cimento, encontra-se a intempestividade nietzschiana. Pensar
a lhe dizer. O trabalho da ausência contra a presença plena, a contra seu tempo, com as sombras escondidas nas dobras do tempo,
inscrição da perda e da ruína, 'O traço da perda contra a memória o faz ser contemporâneo dos gregos, mas não apenas frequentar
saturada. os gregos que não eram de seu tempo, convocar um passado que
Essas descontinuidades temporais, essas incompatibilidades nunca foi presente. Para isso, recorreu às formas inéditas. Mais
passam por iluminações, tulgurações, encontros inesperados, pelo uma vez, trata-se de pensar a heterogeneidade do tempo e dos
imprevisto. Escutemos mais uma vez W. Benjamin: retornos. Nietzsche recusa a história antiquária, aquela que procura
verdadeiras filiações, continuidades, verdadeiras heranças no
A autêntica imagem do passado aparece apenas em um lampejo.lma- passado, em suma, toda problemática da identidade. "Só um pen-
gem que surge apenas para se eclipsar eternamente a partir do instante samento que se identifica com seu tempo necessita de identidade,"?
seguinte. A verdade imóvel, que, só espera o pesquisador, não corresponde O outro retorno é aquele que não aconteceu, de um tempo deses-
de maneira alguma ao conceito de verdade em matéria de história. Ele se tabilizado na figura do internpestivo. Como escreve Françoise
baseia muito mais no verso de Dante que diz: Tratá-se de uma imagem Prousr.
única, ínsubstituível do passado que se esvaiu com cada presente que não
soube se reconhecer visado por ela51• o presente é realmente alguém que nunca está na hora. O passado
chega tarde demais (sua hora passou) e o futuro cedo demais (ele ainda
Há, além da heterogeneidade, os atropelos do mesmo ou do não está na hora), a menos que seja o inverso: o passado sempre chega
outro não reconhecido. "Um espectro assombra a Europa: o es-
pectro do comunismo."52 O acontecimento no cruzamento de um
53
Ver as mais belas páginas de F. Proust, De Ia résistance. Paris, Le Cerf 1997, cuja reflexão
é muito inspiradora.
54
SI Idem. Sur le concept d'histoire. Apud G. Dídí-Huberrnan. Devant le temps..., P: 116. 55 F. Proust. De /a résistance ... , P: 95.

52 K. Marx. Le manifeste du parti communiste. Paris, 10/18, 1965, p. 19. Idem, p. 104.

58 59
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

cedo demais (O tempo, a geração, ainda não chegou quem vai ouvir e re- poderia ter sobre outra, a maneira específica que uma época tinha
tomar a herança) e o futuro sempre chega tarde demais (já o conhecíamos de ser não contemporânea de si mesma, em seu tempo.
1
1" em outras versões). O presente nunca é, portanto, atual e não saberia Culmina em Mnemosyne, esse atlas inacabado, essa obra hipo-
I111 chegar na hora, quer tivesse um ar de déjd-vu [já visto] (de fantasma ou tética! Da imensa coleção de fotografias e de documentos que se
I de figurante), ou de jamais vu [nunca visto] e que não fosse reconhecido acumulavam nas gavetas para formar um arquivo, de imensas fo-
como tal...56
tografias impressas que tinham sido extraídas dele, eram, primei-
ramente, coladas sobre painéis escuros, reagrupadas por temas e
Retornos, repetições, paródias, imitações, ilusões, em forma dispostas umas ao lado das outras. Depois, elas foram coladas
de fantasmas e de espectros, há retorno do recalcado no aconteci- sobre grandes telas de lona negra, esticada sobre quadros. Expunham-
mento, da "hantologia" como sublinha Derrida. Diga-me que -se essas fotos constituindo um quadro, de acordo com reagrupa-
cadáveres você escondeu nos baús da história, e eu lhe direi que rnentos complexos, sem cronologia. Os elementos são apresenta-
tipo de acontecimento você deve esperar. dos com o máximo de heterogeneidade possível, constituindo
Continuando sua busca por uma história da arte "outra", Geor- configurações perrnutáveis, arranjos efêmeros, elementos cornbi-
ges Didi-Huberrnan, em seu grande livro sobre Aby Warburg, natórios em deslocamento, impossível de fixar. O que persiste é a
introduz uma desterritorialização da imagem e do tempo. A his- maneira como as imagens vão e voltam. Multiplicidade de imagens
toricidade da imagem não é de forma alguma aquela da história, dispostas de modo hipertextual, precursoramente, nova forma de
mas diz respeito a uma história fantasmagórica, coleção e de exposição.

[...] no sentido de que o arquivo é considerado como um vestígio material Era necessário inventar uma nova forma que não fosse nem arrnaze-
do rumor dos mortos: Warburg escreve que se trata, para ele, com os "do- narnento (que consiste em agrupar as coisas menos diferentes possíveis,
cumentos de arquivos decifrados", de "restituir o timbre daquelas vozes sob a autoridade de um princípio de razão totalitária) nem miscelânea
1:11
inaudíveis" (den unhorbaren Stimmen wieder Klangforbe zu verleihen) - (que consiste em colocar juntas as coisas o menos diferentes possíveis, sob
1

vozes de desaparecidos, vozes todavia escondidas, duplicadas ainda na a não autoridade do arbitrário). Era necessário mostrar que o fluxo é feito
I
simples grafia ou nos espirais específicos de um diário do Quattrocento apenas de tensões, que os feixes reunidos acabam por explodir, mas tam-
exumado no Arquivo", bém as diferenças desenham as configurações e as dessemelhanças criam
juntas ordens desapercebidas de coerência. Nomeamos essa forma de
É O retorno que fascina Warburg e seu historiador. Lembramo- montagem 58.
-nos, frequentemente, doAdas Mnemosyne, de Aby Warburg, dos
painéis onde figuram não só a memória cultural da humanidade, Mnemosyne desdobra, assim, visualmente as descontinuidades
mas os traços, rastros, vestígios, gestos, pathos que uma época do tempo. Warburg justapõe sobre a mesma tela negra a agonia do
antigo derrotado e o triunfo do vencedor renascente, ele rompe
com a unidade temporal desse destino. Dá a ver a maneira como
"a fórmula" só terá sobrevivido à custa de um hiato identificável,
56 Idem, pp. 113-114.
57 G. Didi-Huberman. L'image survivante. Histoire de l'art et temps desjàntômes selon Aby
1#zrburg. Paris, Édirions de Minuir, 2002, p. 40. 58 Idem, p. 474.

60 61
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

nesse caso, a "inversão dinâmica" de sua significação. Temos lidado


Notas
bem com a montagem de uma nova forma, como o próprio War-
burg explica: S. Freud. "Recordar. repetir e elaborar. Novas recomendações sobre a técnica da psicaná-
lise n" Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XI!. Edição Standard Brasileira
(ESB).Rio de Janeiro. Imago, 1996. [N. da T.]
o Atlas de Mnemosyne, com seu material iconográfico, almeja ilustrar ii Idem. "Luto e melancolia". Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIV. Edição
o processo que podemos conceber como uma tentativa de assimilar, por Standard Brasileira (ESB). Rio de janeiro.Imago, 1976. [N. da T.]
meio da representação do movimento vivo, uma base de valores expressi- iii G. Debord.A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro. Contraponto, 1997. [N. da T.]
iv Expressão referente a um dos importantes slogam do movimento político de Maio de 68;
vos pré-formados. Mnemosyne, como revelam as reproduções do referido
por isso a mantivemos em francês. Em português. uma tradução aproximada seria "Sob
atlas, antes de mais nada, pretende ser somente um inventário de forças as calçadas. a praia". [N. da T.]
advindas da Antiguidade que marcaram o estilo das obras do Renascimento v Conhecido também como Club Med, o Club Méditerranée é uma empresa especializada
em sua maneira de representar o movimento vivo. Tal aproximação com- em serviços de hotelaria e lazer, Fundada em 1950.na França. a empresa se espalhou pelo
parativa (eine solcbe vergleichende Betrachtung) devia [...] procurar com- mundo. instalando-se em regiões turísticas. [N. da T.]
vi L. Febvre. O problema da incredulidade no século XVI: A religião de Rabelais. São Paulo.
preender, por uma reflexão sociopsicológica mais aprofundada, a função
Companhia das Letras. 2009. [N. da T.]
significativa que preenche os valores expressivos na técnica espiritual
vii J. Ranciêre. "O conceito de anacronismo e a verdade do historiador". In: Marlon Salomon
conservados na memória 59.
(org.). História, verdade e tempo. Chapecó, Argos, 2011. [N. da T.]

viii Idem. A noite dos proletários: Arquivos do sonho operário. São Paulo. Companhia das Letras.
É preciso, portanto, abordar a migração das imagens, sua 1988. [N. da T.]
transmissão por quebra-cabeça anacrônico, em uma sobrevivência
que em nada segue o fio do tempo. Trata-se de construir uma
memória social descontínua. Desconstruir, escreve ainda Didi-
-Huberrnan, o álbum de recordação historicista de influências da
Antiguidade para substituí-Io por um atlas

[...] da memória errática, regulado pelo inconsciente, saturado de imagens


heterogêneas, invadido por elementos anacrônicos e imemoriais, assom-
brado pelo negro da tela, que, na maioria das vezes, exerce o papel de
indicadores de lugares vazios, de elos perdidos, de buracos da memória.
Sendo a memória feita de buracos, o novo papel atribuído por Warburg,
ao historiador da cultura, é o de um intérprete de recalques, de um vidente
(Seher) de buracos negros da memória60.
II!:!III

59 Idem. p. 475.
60 Idem. p. 483.

62 63
RÉGINE ROBIN

descobrir que o passado nunca esteve totalmente morto, que ele


3
prepara surpresas, mas que, para lhe dar sua virulência, é preciso
chegar na hora, nem mais cedo nem mais tarde. Às vezes, é melhor A cor do esquecimento
virar a página ...Manifestamente, ela chegara muito tarde ou muito,
muito cedo. A menos que ela tivesse inventado totalmente essa
história de 1898 e que ele, de sua parte, lhe tivesse feito acreditar
que havia arquivos, um passado que dormia, pronto para ser acor-
dado; a menos ainda que um cineasta tivesse ele mesmo inventado
os dois personagens ... Fios do passado que não se articulam, reais
ou inventados, mas que devem permanecer juntos e, apesar de
tudo, se tecerem e se destecerem sem cessar.

Notas Da destruição de lugares ao apagamento de vestígios


George Arrnsrrong Custe r foi um conhecido general americano que chefiou a famosa
batalha de Lirtle Bíg Horn, na qual foi derrotado pelos índios, dentre os quais estava o
Demolir
líder Touro Sentado. [N. da T)
ii
No Brasil, a série baseada no romance intirulou-se O homem de Virginia e estreou em 1962. Evocarei primeiramente as destruições puras e simples. Quer se
[N.daT)
devam a um fenômeno natural (um terremoto, uma catastrófica
iii Optamos por manter o termo imagerie tal como aparece na obra devido ao faro de que,
além de aparecer em texros de autores brasileiros grafado em francês, ele diz respeito à
inundação), ou resultem de guerras e bombardeios, elas devastam
noção formulada por A1ain Rénaud (1989). Esse autor observa as mudanças a partir do a paisagem. Imaginem as cidades pesadamente danificadas como
processo de simulação interativa, no qual a imagem deixa seu caráter especular para ser Berlirn, ou quase eliminadas do mapa como Dresden ou Varsó-
não apenas reproduzída, mas manipulável, convertendo-se em um conjunto de produção
via - sem contar o vandalismo dos períodos revolucionários ou
de imagens. Daí o termo imagerie. Para saber mais sobre essa noção, ver A. Rénaud.
"Pensare I'Immagine Oggi. Nuove Immagini, Nuovo Regime dei Visíbile, Nuovo Immagi- contrarrevolucionários, no qual estátuas, monumentos, edifícios
nario"./n: VV.AA. Videoculture di Fine Secolo. Napoli, Liguori, 1989, pp. 11-27. [N. da T) simbólicos são atacados. Tal é o caso da destruição programada
iv Série de televisão americana criada por Alex Haley. [N. da T) do palácio da República da antiga República Democrática Alemã
(RDA), em Berlim, que não deveria tardar a ser substituída por
uma restauração "fiel" da fachada do antigo castelo de Hohenzol-
lern. Trata-se, também, de vandalismo, do apagamento de toda a
memória da RDA que estava em processo nos primeiros anos da
reunificação: mudança de nomes de ruas, demolição de edifícios,
projeto de remodelagem de Alexander Platz, destruição de estoques
de livros das antigas bibliotecas, dispersão de objetos e mobília
dos antigos edifícios públicos, desde então fadados aos mercados
de pulgas ou à decoração de bares e clubes noturnos ...

80 81
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

As destruições resultam também de renovações urbanas, res- Artigo 1. Primeiramente, que a memória de todas as coisas passadas
taurações que não são unicamente reabilitações, no sentido que de urna parte e de outra parte desde o início do mês de março de 1585 até
os urbanistas dão a esse termo. Mesmo as "restaurações idênticas", a nossa adesão à coroa, e durante os transtornos anteriores e por ocasião
como a da praça do Vieux-Marché, em Varsóvia, ou de certas ruas deles,permanecerá suprimida e adormecida como algo que não aconteceu.
de Buda, em Budapeste, mesmo a imitação da pátina e a cópia fiel Não será legítimo, nem permitido a nossos procuradores-gerais, nem a
do antigo são destruições. Nesses dois exemplos, a reconstrução outras pessoas quaisquer, públicas ou privadas, em algum momento, nem
se deu sobre ruínas devido à guerra. Porém, muito frequentemente, por qualquer razão que seja, fazer menção a ela, processo ou ação judicial
a própria restauração começa com uma demolição. Sem se deter em qualquer corte ou jurisdição que seja.
nas operações imobiliárias parisienses que começam no fim dos
Artigo 2. Defendamos todos os nossos interesses de qualquer estado
anos 1950 e avançam ao longo dos anos 1960 e 1970, é como ape-
ou qualidade quer sejam para renovar a memória, afrontar, ressentir,
nas comparar a "velha Paris" com o que os governos, os planeja-
abusar nem provocar um outro por censura daquilo que se passou por
dores e os urbanistas fizeram com Paris, com o 192 e 202 distritos,
qualquer causa e pretexto que seja, disputar, contestar, repreender, nem
mas, também, com o 132, da praça de Itália à porta de Itália, ou de
se insultar ou se ofender verbal ou fisicamente; mas se conter e viver pa-
Vitry, com o 162 em torno de Montparnasse e com o 152 até a beira
cificamente juntos como irmãos, amigos e concidadãos, sob pena aos
do Senna. Antes disso, o barão Haussmann já tinha destruído uma
contraventores de serem punidos como infratores da paz e perturbadores
Paris que não está mais em nossa memória coletiva. No entanto,
da tranquilidade pública.'.
Viollet-le- Duc não fazia outra coisa em sua teoria da "restauração".
Em seu Dictionnaire raisonné, no tomo VIII, Viollet -le- Duc definia
O passado "nulo e não ocorrido" é, então, o que as leis da anis-
assim o que convinha ser feito: "Restaurar um edifício não signi-
tia procuram fazer, a fim de acelerar os processos de reconciliação
fica mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo a um estado
nacional, evitar novas guerras civis, garantir a continuidade do
completo que pode nunca ter existido em um dado momento" I.
Estado.
Paisagens rurais e urbanas são assim totalmente ou parcialmente
Em princípio, essas proibições de citações não concernem aos
reconfiguradas, suscitando nostalgias ou ilusões de autenticidade.
pesquisadores e, em particular, aos historiadores. O passado não
é apagado pela anistia; ele simplesmente está fora de alcance dos
Anistiar
mortais comuns e não tem mais existência oficial: a anistia inibe
a ação pública, os procedimentos em curso são interrompidos, a
Os esquecimentos sistemáticos em forma de perdões ou de
condenação não consta mais nos registros criminais. Às vezes, no
anistias são uma outra maneira de realizar o apagamento do passado
entanto, historiadores ou jornalistas são perseguidos mesmo que,
das sociedades'. Como testemunha o perturbador texto do Édito
em princípio, fossem protegidos. Um julgamento de 1965 em re-
de Nantes promulgado por Henrique IV:
lação ao livro de Michele Cotta sobre a Colaboração', cujo autor
da denúncia perdeu, apresenta um parágrafo sobre o qual os histo-
Apud B. Foucart. "Violler-Ie-Duc et Ia restauration".ln: Pierre Nora (org.), Les lieux de
mémoire, tomo lI. Paris, Gallimard, 1986,p. 622.
2
Sobre a anistia na França, ver S. Gacon. Lamnistie: de la Commune ti Ia Guerre d'Algerie.
Paris, Le Seuil, 2002. Apud P. Ricceur. La mémoire, l'histoire, l'oubli. Paris, Le Seuil, 2000, p. 587.

82 83
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

riadores se apoiam: "Se o lembrete de um historiador do comporta- seu "monopólio", sua comunicação. A história está muiro bem
mento de pessoas envolvidas com acontecimentos que ele recons- vigiada, como lembrava Marc Ferro há alguns anos- iii.
trói não podia ser feito pelo fato de que a condenação penal que
esse comportamento tem conduzido se encontrava anistiada, todo Apagar
estudo histórico sério seria impossível". E o comentário a respeito
desse julgamento especifica: "Os historiadores, em razão de exi- O passado é apagado ainda pelos silêncios e tabus': iv que uma
gências próprias à sua disciplina, devem, no direito penal, se be- sociedade mantém. Essa espécie de amnésia não tem nada de legal
neficiar de um regime um pouco particular'", Mas, como mostra ou de regulamentar, mas pesa sobre o conjunto do tecido social.
Stéphane Gacon, a legislação endureceu nos anos 1980, estipulando Os silêncios são de diferentes tipos e propriedades.
que, a partir dali, era proibido a qualquer pessoa lembrar dos casos Um acontecimento pode se produzir sem testemunha, sem
anistiados, o que podia engendrar uma prática de auto censura. resto, sem ruína, sem nada que possa revelar que houve um acon-
Em 1994, o código penal elabora uma acepção menos restritiva tecimento. Neste caso, o silêncio não é nem voluntário nem invo-
dessa proibição, mas as fórmulas permanecem ambíguas. O autor luntário, ele é. Porém, podemos também decidir agir como se o
lembra, todavia, que vários livros foram escritos sobre a Colabo- acontecimento não tivesse acontecido. É o que a organização
ração, a purificação, a OASii, a guerra da Argélia, sem que seus nazista visava. Não só aniquilar a população judaica da Europa,
autores, historiadores ou jornalistas fossem perseguidos. Esses mas, também, os vestígios do crime e da passagem na terra das
historiadores evocam fatos que os anistiados não renegam: "Eles comunidades judaicas, destruindo seus vilarejos, suas sinagogas,
viveram muitas vezes sua condenação como uma injustiça e sua seus cemitérios, suprimindo até o nome daqueles que iam direta-
anistia como perdão ou reabilitação, ou mais geralmente, como mente para as câmaras de gás chegando em Auschwitz ou Treblinka
reconhecimento do fato de que seu combate não era completamente e que não foram sequer registrados ou listados. Um acontecimento
'1
1 egmmo ....
I' "S
sem rastro.
Além disso, a divulgação de arquivos, portanto, daquilo que Era também o que procurava fazer a damnatio memoriae dos
permite analisar o passado permanece uma prática opaca. Contra- romanos. O direito público e penal romano permitia atacar os
riamente ao que aconteceu com o Leste depois do colapso da URSS soberanos declarados inimigos públicos, incluindo os imperado-
!IIllii:111111
e o desaparecimento da RDA, quando os arquivos foram avidamente res anteriores, no momento de uma reviravolta política como
e imediatamente abertos, a França tem o hábito do sigilo. Os Roma experimentou várias. Decidia-se então destruir seus retratos,
ataques dos quais a primeira edição do livro de Sonia Combe - suas estátuas, suas efígies e eliminar as inscrições que levavam seu
Arcbioes interdites. Lbistoire confisquéé - foi alvo mostram muito nome. Os atos jurídicos que tinham sido aprovados durante a sua
bem a dificuldade de discutir a questão dos arquivos, seu controle, vida eram anulados. Eles se tornavam "não seres".Tratava-se, como
relata Suétone em relação a Domitien, de "abolir a memória" de
sua pessoa.

4
Apud S. Gacon.lAmnistie: de Ia Commune ti Ia guerre d'Algérie. Paris Le Seuil, 2002. p. 42.
5
Idem.p.44. 7
6 M. Ferro, L'bistoire sous surueillance. Paris. Calmann-Lévy, 1985.
S. Combe. Archioes interdites. L'histoire corifisquée. Paris. Albin Michel, 1994.A segunda 8
edição do livro foi publicada em 2001 pela editora La Découverte, Idem. Les tabous de l'histoire. Paris. Nil éditions, 2002.

84 85
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

Há acontecimentos que não deixam traço algum nos arquivos, por mais que tudo parecesse normal: não havia indicação que assina-
ou cujos arquivos foram destruídos ou perdidos, e mesmo se há lasseo desaparecimento de um infólio (uma ficha de arquivo, um fantasma
algumas testemunhas, ninguém está aqui para corroborar seus como se diz na National Gallery); parecia não haver nenhum branco,
frágeis dizeres. Há acontecimentos que deixam traços em cujos nenhum buraco vago. Não existia mais incômodo: a disposição do total
arquivos são conservados, mas nenhuma narrativa lhe é incorpo- ignoraVa (ou pior, mascarava, dissimulava) a omissão: era necessário
rada, porque elas não interessam a ninguém, a nenhum historiador, percorrê-Ia até o final para saber, com a ajuda da subtração (vinte cinco
a nenhum curioso. As pilhas e caixas de arquivos estão à espera, com subscrição do "UM" ao "VINTE E SEIS", ou seja, vinte e seis menos
mas não há ninguém para abri-l os ou consulrá-Ios. Eles não são vinte e cinco dá um), que faltava um infólio; era preciso um longo cálculo
nunca abertos, nem consultados, porque ninguém apareceu para para ver que se tratava do "CINCO"10.
tirar os seres do anonimato e os fatos da submersão, para fazer a
história daquilo que um dia aconteceu. Ou ainda:
Georges Perec foi assombrado pelo aniquilamento, e toda a
sua obra é marcada pelo desaparecimento de sua mãe em Auschwitz Faltava um. Havia um esquecimento, um branco, um buraco que
e pelo certificado de "desaparecimento" que ele recebeu em 1959. ninguém tinha percebido, não tinha visto, não podia, não queria ver.
Sua mãe não foi morta em 11 de fevereiro, data em que o comboio Havia um desaparecido, algo tinha desaparecido. [...] Tudo parece normal,
onde ela tinha sido encarcerada depois de sua detenção em Paris tudo parece são, tudo parece significativo, mas, sob o abrigo instável da
deixa Drancy. Mas quando então? Nos vagões selados com chumbo palavra, ingênuo talismã, amuleto peculiar, vê-se transparecer, aparecer
que partiam para Auschwitz? Imediatamente à sua chegada? um caos horrível: tudo parece normal, tudo parecerá normal, mas, em um
Depois? Um cálculo macabro estabelecido pela administração dia, em oito dias, em um mês, em um ano, tudo apodrecerá: haverá um
francesa supõe que esses trens chegavam a Auschwitz entre três e buraco que aumentará passo a passo, um enorme esquecimento, poço sem
cinco dias após sua partida, ou seja, Cyrla Schulewics teria chegado fundo, invasão do branco. Um a um, nos silenciaremos para sempre!'.
em 16 de fevereiro de 1943. Ora, o decreto oficial afirma que ela
foi morta em 11 de fevereiro em Drancy. Portanto, a data e o lugar A mesma obsessão pelo apagamento e pelo desaparecimento
declarados no documento são falsos. em outro livro de Perec, Le Voyage d'hiuer, joga com a cronologia
Desaparecimento, volatilizaçâo, ausência de rastros. O mais e refaz a história. Certa noite, um jovem professor de letras, Vin-
estranho e incômodo é o fato de que, quando não se presta atenção, cent Degrael, descobre na biblioteca de seus anfitriões a coleção
esse desaparecimento não é notado, exceto pelos mais próximos. de poesiaLe Voyage d'hiver, de um desconhecido: Hugo Vernier,
Parece que tudo retoma ao estado inicial, quase normal. O romance Lendo-a, ele fica surpreso, porque reconhece, mesmo estando fora
La Disparition'- v recusa esse "quase normal", pois Georges Perec de ordem, poemas muito conhecidos de Rimbaud, Mallarmé,
destacou maliciosamente que muitos críticos, ao comentarem o Baudelaire ... Ele observa na obra alguns empréstimos. A coleção
livro, não perceberam, ao longo de suas 312 páginas, a ausência da apenas se assemelhava com uma compilação dos poetas do século
letra e. Repetidas vezes, o romance coloca em palavras o vazio, o
buraco, o "sem deixar vestígios":

10 Idem, p. 27.
G. Perec. La Disparition. Paris, Denoél, 1969. 11 Idem, p. 28 e pp. 31-32.

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XIX. Em seguida, ele verifica a data de publicação da obra: 1848. tariamente destruídos pelas mesmas pessoas que foram tão diretamente
Estranha situação: inspiradas pelo lívro".

Isso queria dizer que Vernier tinha: "citado" um verso de Mallarmé Com dor e sofrimento, ele descobre que o autor, Hugo Vernier,
com dois anos de antecedência, plagiado Verlaine dez anos antes de nasceu em Vimy, no Pas-de-Calais, mas os documentos públicos
"Arietres oubliées", escrito Gustavo Kahn quase um quarto de século do registro civil do município foram queimados em 1916, bem
antes dele! Isso queria dizer que Lautréamont, Germain Nouveau, Rim- como as cópias do registro civil depositadas em Arras. Esse poeta
baud, Corbiere e muitos outros eram somente copistas de um poeta genial não deixou vestígios e o professor ficou louco.
e desconhecido que, em uma obra única, foi capaz de reunir a substância Certamente, poderíamos nos consolar dizendo que todo o
que iria nutrir depois dele três ou quatro gerações de autoresl+' mundo plagiou esse gênio anônimo e que, se ele não deixa seu
nome, deixa o legado de sua genialidade à cultura. Porém, essa não
Diante de tal fenômeno, Vincent Degraél se lança em uma é a perspectiva de Perec. Para ele, alguma coisa aconteceu para que
investigação que o leva da surpresa à desilusão, porque não encon- não se possam encontrar vestígios desse autor, que está perdido
tra nada, nenhum dicionário, nenhuma referência ao autor. Ele para sempre.
descobre apenas que o livro tinha sido comprado em um leilão, Em La vie mode d'emploi [A vida modo de usar], tudo é proje-
mas ninguém da família jamais havia dado a menor importância tado para retornar ao nada, tudo designa a destruição e o fracasso.
à obra. Anos mais tarde, após a guerra, ele acabou por encontrar O destino de Bartlebooth, este homem cujo nome (palavra-valise)
uma menção a essa coleção datando de 1864 e apresentada ao re- é um misto de Barnabooth, o viajante, herói de Valery Larbaud, e
positório da Biblioteca Nacional. Mas aí, infelizmente, ela "não de Bartleby, "o escrivão", personagem de Melville, desapareceu
estava lá" e não foi encontrada. após se envolver em uma extravagante aventura condenada a ser
apagada, mergulhada no nada. Cinquenta anos para chegar ao
Assim, quanto mais ele dava valor ao lugar preponderante que Hugo fracasso e à morte. Primeiro, 20 anos para aprender a aquarela.
Vernier devia ter ocupado na história literária da França no fim do último Ora, ele não era talentoso, isso lhe demanda um esforço sobre-
século, menos ele era capaz de fornecer provas objetivas disso: porque ele -humano, 10 anos precisamente, de 1925 a 1935. Os 20 anos que
nunca mais pôde pôr as mãos novamente em um exemplar de Voyage se seguiram foram ainda mais descabidos. Esse bilionário percorre
d'bioer. Aquele que ele tinha consultado havia sido destruído - ao mesmo o mundo, parando em portos marítimos, pintando marinas, todas
tempo que a mansão - durante os bombardeios de Havre; o exemplar do mesmo formato, a cada 15 dias. Uma vez que a pintura da
depositado na Biblioteca Nacional [cujo código é: Z 87912] não estava marina é concluída, ele a envia a Gérard Winckler, que mora no
no lugar quando ele o procurou e foi só depois de longos processos que 112 distrito, na Rua Simon-Crubellier, e que se ocupa de transfor-
ele soube que esse livro tinha sido enviado, em 1926, a um encadernador mar essas pinturas, de recortá-Ias em quebra-cabeça de 750 peças.
que nunca o recebeu. Todas as pesquisas que ele fez a dezenas e centenas Toda essa atividade se estendeu por 20 anos, de 1935 a 1955. Os
de bibliotecários, arquivistas e livreiros se mostraram inúteis, e Degrael 20 anos seguintes veem a reconstituição daquilo que tinha sido
logo se convenceu de que os 500 exemplares editados tinham sido volun- desfeito, antes da aniquilação final. Bartlebooth, uma vez de volta

12 Idem.Le Voyaged'hiver. Paris, Le Seuil, 1993. Reedição: Nantes, Le Passeur, 1997. 13 Idem, p. 29.

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à França, reconstitui um quebra-cabeça a cada 15 dias, de suas Se o duplo sentido tem uma significação fundamental em Pe-
próprias marinas. Depois, à medida que os quebra-cabeças são rec, designando o bilinguismo, ele designa de maneira muito
reconstituídos, eles são "reestruturados" Fazendo desaparecer a trágica o movimento que destrói e leva tudo o que foi construído.
marca do recorte. A marina parece nova tal como era antes de ser O romance de Serval toma por objeto de descrição, muito preci-
enviada a Gérard Winckler. Esses quebra-cabeças "reestruturados" samente, esse movimento: "La Crypte é um romance policial em
são transportados para o local exato onde foram pintados 20 anos duas partes, cuja segunda destrói meticulosamente tudo o que a
antes. Nesse local fatídico, eles são mergulhados em uma solução primeira se esforçou para estabelecer, procedimento clássico de
detersiva, e o que resulta do banho químico é uma folha de papel muitos romances enigmáticos, neste caso, levados a um clímax
branco, "intacto e virgem". Nenhum traço ficaria dessa opera- quase caricatural'i'",
ção, que "teria, durante 50 anos, completamente, mobilizado seu A história é, assim, para Perec, um texto-ruína, bem como para
autor" 14, vi. Não resta mais nada a Bartleboorh a não ser morrer, Kafka e Walter Benjamin. Do acúmulo dos esforços de uma civi-
após ter ficado cego, sem ter podido concluir seu último quebra- lização não resta nada ou muito pouco. Alain Goulet observa com
-cabeça. Tudo no romance vai em direção ao fracasso, ao aniqui- pertinência que
lamento, através de histórias sombrias de parentescos, de vingan-
ças, de aventuras inacreditáveis. [...] o fantástico labirinto de La vie mode demploi é [...] construido segundo
53jours é um romance no qual uma face devia destruir a outra, um duplo movimento contraditório: movimento da vida e do tempo que
uma antonírnia perfeita: o romance devia se escrever e se deses- leva tudo em direção à morte, e movimento inverso do arquivista, do
crever em um mesmo movimento através de uma intriga policial documentalista, do restaurador, do arqueólogo, do pesquisador, do cien-
complicada, de múltiplas atualizações e o intertexto de Stendhal. tista e, finalmente, do artista, que, pacientemente, pesquisa, procura,
Este é também, no texto, o objeto do romance de ServalLa Crypte. restitui, classifica e que, como um novo diabo aleijado, desliza seu olhar
A capa do romance é descrita da seguinte maneira: no vão de um edifício para a fabricação de seu molde, "marerialização fiel"
da vida que assim é preservada, suspensa diante do prazo mortal que nos
Em primeiro plano, à esquerda, um indígena sorridente, de frente, espreita. É em razão desse trabalho obstinado e minucioso que esse livro
retratado do meio peito até a extremidade do painel, segura um camelo escapa do desespero e do niilisrno'".
pelo cabresto, do qual se vê apenas o perfil da cabeça e do pescoço. Em
segundo plano, se dirigindo à direita, quatro cameleiros montados. No Daí a proliferação de maníacos e fanáticos, colecionadores de
céu, uma longa flecha apontada para a direita. Abaixo, uma grande ins- todos os gêneros, bibliotecários, livros dos quais se fala há muito
crição sobre o estêncil: TOMBOUCTOU 52DIAS. Essa mesma sobreposta tempo, catálogos obsoletos, cartões-postais encontrados em feiras
por uma inscrição em árabe que quer dizer, eu suponho, a mesma coisa de antiguidade, historiadores amadores, genealogistas, arquivistas
(mas em outro sentido)15. e arqueólogos, linguistas e lexicógrafos, artesões, químicos, enge-

14 Idem. La uie rnode demploi. Paris. Hachette, 1978. pp. 157'158. 16 Ibidem,
17
15 Idem. 53jours. Paris. POL. 1989. p. 42. Livro póstumo. Perec trabalhava nele no momento A. Goulet. La uie mode d'emploi: arcbiues en jeu. Cabiers Georges Perec. n. 1. Paris. POL.
de sua morte em 3 de março de 1892. 1985.p. 206.

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nhosos, inventores, falsários, artistas; daí essa obstinação diante lhares de lembranças anônimas arrancadas de um tempo perdido para
do fragmento, da peça do quebra-cabeça, da lembrança, do pedaço projetá-Ias sem piedade na vertigem de nossa história'",
de papel, do objeto, e também das listas e inventários.
A partir daí, também, essas acumulações, esses detalhes, essas Dessa memória fabulosa, Perec será o historiógrafo e o conserva-
l9
numerosas descrições, denominações, esses nomes próprios fun- dor como um baluarte contra o desaparecimento •

cionam em um estalo, na memória geracional; esses múltiplos "eu


me lembro" de todas as ordens, essa proliferação de termos publici- Substituir
tários de época, de números de ônibus ou de linhas de metrô,
títulos de filme, nomes de atores, famosas réplicas, nomes de ci- o verdadeiro esquecimento talvez não seja o vazio, mas o fato
nemas hoje desaparecidos, refrãos, coros, campeões de boxe, de de imediatamente colocar uma coisa no lugar de outra, em um
futebol, ciclistas do Tour da França ... Uma semiótica cultural, uma lugar já habitado, de um antigo monumento, de um antigo texto,
camada de significações, impulsos da memória textualizados de antigo nome. Ou ainda voltar atrás passando por cima de um
que constituem um lugar de substituição (o verdadeiro lugar?), passado recente, obliterado em favor de um mais antigo.
um escudo contra o nada, a dissolução. Em um comentário escrito A história de Frauenkirche de Dresden é, neste sentido, exem-
para La viefilmée, de Michel Pamart e Claude Ventura, média- plar. Suas cúpulas barrocas do século XVIII, um dos esplendores
-metragem sobre a fotografia e o cotidiano, lançado em 1975, da cidade antes da guerra, foram destruídas pelo bombardeamento
Georges Perec questiona: de 13 de fevereiro de 1945. Quase todo o entorno foi reconstruído
depois, mas da igreja restam ruínas, pilhas de escombros invadidos
o que resta quando tudo é esquecido e quando tudo isso ressurge de pelas ervas daninhas no meio da cidade. O local tomou então
repente? involuntariamente o aspecto de um memorial da Segunda Guerra
O que há, o que acontece atrás dessas imagens vacilantes, atrás do Mundial. Nos anos 1980, tornou-se, por uma lógica infernal, o
ruído do projetor? lugar de reuniões silenciosas contra a RDA. Em todos os 13 de
Sabemos bem que são mentiras, esses punhados de lembranças colhi- fevereiro, ele era recoberto de velas comemorativas.
das como flores do campo; sabemos bem o que se esconde atrás dessas Após a reunificaçâo, a maioria dos monumentos e estátuas
férias felizes, dessas canções e desses canoeiros, atrás desses completos erguidos durante o período comunista foi demolida. Depois foi
imaculados e dessas partes do campo, atrás desses avós atenciosos e dessas reconstruída no mesmo local a igreja que os bombardeios de fe-
crianças com babás ... vereiro de 1945 tinham destruído. Assim com um único golpe:
E, no entanto, isso brilha e absorve, tão longe e tão perto de nós. apagavam-se ao mesmo tempo a memória da RDA e o "monumento
Trata-se de um pequeno lampejo que palpita e nos conta qualquer coisa testemunhá' da Segunda Guerra Mundial. Duplo esquecimento
de secreto, de um pouco fútil, uma sensação frágil, a evocação fugitiva de e "duplo iconoclasmo", segundo as palavras de Adrian Forty, "pois
um instante, fragmentos de um tempo esquecido, algo um pouco antiquado
que não pertence a ninguém, mas talvez a um sonho que todos nós so-
18
nhamos, como uma fabulosa memória que produz esses milhares e mi- G. Perec. Comentário a respeito do documentário La viefilmée, de M. Pamart e C. Ven-
tura, 1975, inédito.
19
Ver R. Robin. Le deuil de l'origine: une langue en trop, la langue en moins. Vincennes,
Presses Universitaires de Vincennes, 1993. Nova edição publicada em 2003 por Kimé,

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trata-se de reconstruir algo para esquecer o que sua ausência escravidão e desembarca em São Domingos. O haitiano respon-
significava'?", O mesmo aconteceu em Moscou: a Catedral de sável pela região norte diante dos franceses e do general Charles
Cristo Salvador, que tinha sido edificada no século XIX e demolida Leclerc não é outro senão Henry Christophe. Após meses de re-
em 1930, foi reconstruída. Stálin queria construir em seu lugar um sistência, Christophe se rende e é alistado nas forças francesas, sem
"Palácio dos Soviéticos", que na verdade jamais foi concluído. O dúvida, com o assentimento de Toussaint-Louverture, que, em
local foi transformado em uma piscina ao ar livre. Após 1991, sua 1802, também se rende e é aprisionado na França. Porém, a resis-
reconstrução tornou-se um dos objetivos do regime a fim de apa- tência continua na ilha sob a direção de Dessalines, as tropas
gar a memória do comunismo. francesas são derrotadas e o Haiti obtém sua independência.
Contudo, o caso mais singular ainda é aquele relatado por Michel- Rolph Trouillot, em seu impecável estudo, mostra que
Michel- Rolph Trouillor". Nas montanhas, ao norte da República a guerra da independência haitiana é mais complexa do que parece.
do Haiti, se encontra um velho palácio em ruína que os morado- Na verdade, houve uma guerra civil no interior da guerra da inde-
res locais chamam de "Sans Souci". Esse lugar é venerado por pendência. É aqui que a figura do coronel J ean- Baptiste Sans-Souci
camponeses que lhe dedicam uma espécie de culto, e faz, também, aparece. Esse ex-escravo de origem congolesa, bom líder militar,
a alegria do turismo local. Ele foi construído no início do século subalterno imediato de Christophe, se opunha aos franceses, mas
XIX por Henry Chrisrophe, herói da revolução haitiana que lutou aceitou, como muitos outros líderes negros, a vitória de Leclerc
contra a França e a escravidão, e tornou-se rei do Haiti após a após o exílio de Toussaint- Louverture e foi, como outros, integrado
derrota da França e a independência em 1804. Na realidade, o Haiti ao Exército francês na luta contra os ingleses. Um alistamento de
era dividido em dois estados e Christophe reinava apenas do lado curta duração: suspeito de fomentar uma revolta, ameaçado de
norte, mas com a pompa que convém a um monarca, e a memória detenção, ele fugiu e assumiu a liderança de uma rebelião impor-
coletiva preservou muitas narrativas sobre ele. É o curioso nome tante, enquanto Christophe e Dessalines o perseguiam ao lado
do palácio que dá ao historiador a pista de um esquecimento, de dos franceses. Quando estes mudaram de lado e se tornaram seus
uma ocultação, de um não dito. Segundo alguns guias locais, esse chefes, ele não quis se submeter. Ele não aceitaria jurar fidelidade
nome qualificava Christophe, despreocupado e indolente. De a pessoas cuja lealdade à causa não estava acima de qualquer sus-
outros se ouve dizer que assim se chamava o coronel Jean-Baptiste peita. Finalmente, ele foi obrigado a se render à nova hierarquia
Sans-Souci. Logo após a França abolir a escravidão, em 1794, o e condenado à morte por Christophe.
chefe da rebelião haitiana, Toussaint-Louverture, se alista nas Assim, o palácio que Christophe construiu nos altos de Milot,
tropas francesas para lutar contra os espanhóis que controlam a palácio luxuoso no qual ele se exibia, leva o nome daquele que
parte leste da antiga São Domingos e contra os ingleses. Seu exér- tinha sido seu rival e que ele havia matado. Poucos historiadores ti-
cito, composto essencialmente de ex-escravos, é tão impressionante nham notado e nenhum tinha percebido que havia, em suma, três
quanto eficaz. Mas Bonaparte chega ao poder, decide restaurar a Sans-Souci. O homem em questão e dois castelos: o de Frédéric
IIda Prússia, em Potsdam, e o do "rei Christophe" no Haiti. Tal-
vez o primeiro tenha inspirado o luxo do segundo. Mas se há uma
20 A. Forty. "Introdução". In: A. Forty & S. Küchler (orgs.). The Art o/ Forgetting. Oxford, memória e uma história do castelo de Potsdam, é forçoso consta-
Berg, 1999.p. 10.
tar que o outro Sans-Souci caiu no esquecimento. Ele está em
21 M.- R. Trouillot, Silencing the pasto Power and the production o/ History. Boston, Beacon
Press, 1995.
ruína, desabou como seu construtor, Christophe, que se suicidou.

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Quanto aJean-Baptiste Sans-Souci, seu nome é muito mencionado cio de Paris-Sair" de 31 de dezembro de 1941, que constitui o
nas histórias do Haiti, mas seu fim é desconhecido, não se sabe início de sua narrativa: "Paris. Procura-se uma adolescente. Dora
onde ele foi enterrado e não há um retrato verdadeiro dele. Em Bruder, 15 anos, 1m55, rosto oval, olhos castanhos, casaco esporte
resumo, Christophe provocou o desaparecimento da memória de cinza, agasalho vinho, saia e chapéu azul-marinho, sapatos esporte
Sans-Souci dando seu nome-equívoco (alusão ao Sans-Souci marrom. Enviar todas as informações para o Sr. e Sra. Bruder.
alemão, locução designando a indolência?) ao palácio que vai se Bulevar Ornano, 41, Paris"22. Dessa forma, começa uma investi-
tornar o símbolo mais concreto de sua glória. Sans-Souci está li- gação, à maneira de um escritor, que não é bem a de um historia-
teralmente enterrado em seu nome, destituído de seu nome, de dor, uma vez que esse bairro é um daqueles que aparecem em vários
sua imagem, por seu assassino que o retoma nessas condições. romances e narrativas de Modiano. O autor vai proceder por as-
Lugar sem memória onde ronda o fantasma de um morto, cuja sociações, imagens-lembranças. Ele vai descrever o que esse bairro
própria morte não lhe pertence mais. evoca para ele em diferentes momentos de sua vida, em 1958, em
1965 e no momento em que escreve essa narrativa.
Como um romancista leva uma desconhecida a sair do anoni-
o desaparecimento de anônimos mato, não tendo ele acesso aos arquivos, ao registro civil, às fichas
da polícia? O escritor prossegue sua busca como um detetive. Ele
O verdadeiro desaparecimento é aquele da massa anônima. O que tem em mãos o endereço da família Bruder e essa necessidade de
se deixa depois de uma vida "norma!"? Vestígios em um registro saber que não o deixa. "Demora muito tempo para que ressurja o
civil, as certidões de nascimento e de óbito, uma referência de que foi apagado. Vestígios subsistem nos registros e se ignora onde
certificado de estudos no jornal local que indica os "comprovantes" eles estão escondidos e quais guardiões os protegem e se esses
do cantâo, alguns fragmentos. Um túmulo no cemitério, uma lápide guardiões consentirão em lhe mostrar os registros. Ou talvez eles
e, se o tempo não os apagar, um nome, uma inscrição, datas. Se tenham esquecido, simplesmente, que esses registros cxistiam'T',
houver descendentes, algumas lembranças transmitidas à família, Ele acaba por descobrir trechos da vida dos Bruder. Ele escreve
algumas fotos, às vezes, partes de correspondência em cartões- para diferentes escolas do bairro para saber qual a jovem Dora
-postais. Em casos ainda mais raros, diários íntimos. Depois de havia frequentado. Tempo desperdiçado! Ele leva quatro anos para
várias gerações, quando a lembrança desvanece, quando as con- descobrir sua data de nascimento: 25 de fevereiro de 1926. Ele vai
cessões ditas para perpetuidade chegam ao fim, não resta quase até a prefeitura do 122 distrito. Não tendo nenhum laço de paren-
mais nada. Esse desaparecimento, essa imersão dos anônimos no tesco com Dora Bruder, é impossível a ele obter uma cópia completa
nada é o destino comum da humanidade. Somente a curiosidade de sua certidão de nascimento. É preciso pedir ao Palácio da Justiça
de um historiador ou de um romancista pode dar vida novamente uma autorização. Depois de muitas tribulações, do Palácio da
aos desconhecidos, anônimos e esquecidos. Justiça à carta ao procurador da República e ao departamento de
polícia de Paris, ele consegue obtê-Ia:
A desconhecida de Modiano

Em um dia de dezembro de 1988, em um velho jornal, cuja 22


P. Modiano. Dora Bruder. Paris, Gallimard, 1997,p. 7.
23
leitura ele aprecia, Patrick Modiano encontra um pequeno anún- Idem, p. 15.

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Vinte e cinco de fevereiro de 1926, às 21 horas e 10 minutos, nasceu, São pessoas que deixam poucos vestígios sobre si mesmas. Quase
na Rua Santerre, 15, Dora, de sexo feminino, filha de Ernest Bruder, anônimos. Elas não se desprendem de certas ruas de Paris, de algumas
nascido em Viena (Áustria) em vinte e um de maio de 1899, operário, e paisagens da periferia onde descobri que elas tinham morado. O que
de Cécile Brudej, nascida em Budapeste (Hungria) em 17de abril de 1907, se sabe delas se resume muitas vezes em um simples endereço. E essa
sem profissão, sua esposa, domiciliados em Sevran (Seíne-et-Oise), avenida precisão topográfica contrasta com o que se ignorará para sempre sobre
Liégeard, 2. Lavrado em vinte e sete de fevereiro de 1926, às 15 horas e 30 suas vidas - esse branco, esse bloco de desconhecimento e de silêncio26•
minutos, com o testemunho de Gaspard Meyer, 63 anos, empregado e
domiciliado na Rua Picpus, 76, que, tendo assistido ao parto e feito a Pouco a pouco, porém, de pista em pista, retalhos de vida aparecem.
leitura, assinou conosco Auguste Guillaume Rossi, vice-prefeito do 12º O escritor encontra algumas fotos da época, e pode assim juntar
distrito de Paris24. rostoS aos nomes. Encontra vestígios de Dora em um internato
religioso que ela frequentava na Rua de Picpus, no 17º distrito de
Assim, uma família sai da sombra, extraída literalmente dos Paris. Ela fugiu em 14 de dezembro de 1941, por isso o pequeno
arquivos. Dora Bruder desapareceu no Holocausto, seus pais di- anúncio de seus pais no Paris-Sair.
vulgam o pequeno anúncio que abre a narrativa, em 1941, mas o Contudo, à margem da história pessoal, daquela das famílias,
escritor que parte à sua procura, que quer saber por que, não o a grande História já tinha feito sua estreia. Em 2 de outubro, foi
sabe ainda. Reconstruímos com ele essa linha do tempo, pista a publicado o decreto que obrigava os judeus a se identificarem à
pista. Quando não sabemos, imaginamos. O crível, o plausível no polícia de seu bairro. Ernest e Cécile aparecem nos documentos
lugar da verdade. O que seria proibido ao historiador está ao alcance sob o número 49.091, mas eles não declararam Dora, talvez para
do romancista. A maior parte do tempo, quando a imaginação protegê-Ia: "Quem sabe, ela tenha conseguido escapar até o fim.
complementa os fatos, sucumbimos ao nível estatístico, mas mui- Bastava ficar entre as paredes escuras do pensionato e de se mis-
tas vezes nos enganamos. O pai de Dora Bruder, nascido em Viena, turar com elas; e respeitar escrupulosamente o ritmo dos dias e
tinha sido, "sem dúvida': criado no bairro judeu de Leopoldstadt, das noites sem se fazer notar. Dormitório. Capela. Refeitório.
tinha conhecido, "sem dúvida", os cafés de Viena e o Prater: "Tal- Corredor. Sala de aula. Capela. Dormitório". Rapidamente, o
vez fosse de origem menos miserável que os refugiados do Leste? escritor descobre que Dora e seu pai estavam no comboio de 18
Filho de um comerciante da Taborstrasse? Como saber?"25. No de setembro de 1942, que deixa Drancy em direção a Auschwitz.
arquivo dosjudeus, esse arquivo que foi encontrado somente muito O autor explica que teve de fazer um longo desvio e escrever um
recentemente nos arquivos do Ministério dos Antigos Comba- romance, Voyage de noces, antes de voltar ao destino de Dora Bru-
tentes, seu nome aparece como "2ª categoria. Legionário francês". der, personagem que não é de ficção, que surge de um trágico real
Mas isso só leva a suposições. Impossível saber onde o casamento ainda próximo de nós. Dar-lhe novamente a vida não consiste em
aconteceu, nem se o casal morou em Viena ou Budapeste antes de mergulhar em sua própria experiência ou nas experiências das
Paris. O escritor metateorizador de sua pesquisa diz aqui, mais do pessoas que se conhecem; não consiste mais em inventar situações,
que eu, o que nos fascina a ambos: mas recuperar vestígios, fotos, documentos ou testemunhos, linhas

24 Idem, pp. 20-21.


25 Idem, p. 24. 26 Idem, p. 29.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

em papéis administrativos, datas. As questões que se coloca um Drancy, 13/8/42"27. Modiano imagina Dora em Drancy. Sua mãe
romancista e que escapariam ao historiador como sendo imperti- foi detida em 16 de julho de 1942 e internada em Drancy, onde se
nentes nos fazem tocar a materialidade do tempo perdido: "Dever- reencontrou com seu marido por alguns dias, enquanto sua filha
-se-á saber se o tempo estava bom em 14 de dezembro, dia da fuga ainda estava em Tourelles. Cécile Bruder foi liberada de Drancy,
de Dora. Talvez um desses domingos agradáveis e ensolarados de pois era da Hungria, e novamente presa em 9 de janeiro de 1943,
inverno nos quais se experimenta uma sensação de férias e de eter- sendo levada para Auschwitz em 11 de fevereiro de 1943, cinco
nidade - a sensação ilusória de que o curso do tempo é suspendido, meses após o comboio de Ernest e Dora Bruder.
e que basta se deixar deslizar por essa brecha para escapar da morsa Hoje que os edifícios foram destruídos, ou os nomes de ruas
que vai fechar-se sobre você". Patrick Modiano encontra, também, não correspondem mais a nada, tudo tomou a cor da amnésia.
rastros de Dora nos registros da delegacia de polícia do bairro Há muito tempo, os responsáveis por esses atos de perseguição
Clignancourt. "'27 de dezembro de 1941. Dora Bruder, nascida e os principais atores estão mortos ou estão muito velhos. O escri-
em 25 de fevereiro de 1926, em Paris, residente no 122 distrito, tor fez uma desconhecida sair do anonimato, no tempo de uma
Bulevar Ornano, 41. Ouvido Ernest Bruder, 42 anos, seu pai'. Na narrativa.
margem estão escritos os números seguintes: 702921/12, sem que
eu saiba a que correspondem". Dora retoma para seu domicílio Nunca saberei como ela passava seus dias, onde se escondia, em com-
familiar em 17 de abril de 1942, mas seu pai foi preso em 19 de panhia de quem se encontrava durante os meses de inverno de sua primeira
março de 1942 e internado em Drancy. A adolescente continua fuga e no decorrer de algumas semanas da primavera quando ela escapou
fugindo, embora a União Geral dos Israelenses da França tencio- novamente. Esse é seu segredo. Um pobre e precioso segredo além dos
nasse admiti-Ia em um reformatório. A paciência do escritor in- carrascos, decretos, autoridades ditas de ocupação, depósito, quartéis,
vestigador lhe permite recuperar datas, itinerários da fugitiva. Em campos de concentração. A história, o tempo - tudo que contamina e
certos momentos, ele compara os passos dela com os seus, identi- destrói - não conseguirão lhe roubar'",
ficando-se totalmente com ela, lembrando-se de sua experiência
no internato: Dito de outro modo, esse é o esquecimento eterno ou quase.
Bastava que os arquivos fossem destruí dos ou esmagados para que
Eu andei no bairro e em um instante senti pesar a tristeza de outros os frágeis fragmentos que comprovam a existência de milhões de
domingos, quando era preciso voltar ao pensionato. Eu tinha certeza de seres não pudessem nunca mais produzir memória.
que ela descia do metrô na estação Nation. Ela postergava o momento em
que percorreria a entrada e atravessaria o pátio. Ela passeava ainda um A enciclopédia de Danilo Kis
pouco, sem rumo, no bairro. A noite caía. A Avenida de Saint-Mandé é
calma, ladeada de árvores. Eu me esqueci se tem um canteiro central. Na Encyclopédie des morts, o narrado r, estando por acaso em
Passamos em frente à entrada do antigo metrô da estação Picpus. uma biblioteca especial, depara-se com uma enciclopédia dos
mOrtos comuns, espécie de dicionário biográfico dos mortais
Até que, em 19 de junho de 1942, ele encontra no registro de Tou-
relles: "Entradas em 19 de junho de 1942.439.19.6.42. 5ª Dora
27 Idem, p. 115.
Bruder 25.2.26. Paris 122. Francesa. Bulevar Ornano, 41. J. XX 28 Idem, p. 147.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

comuns. Seu pai acabara de morrer. Ele abre um dos volumes, quase inventar uma forma, porque os desconhecidos não passam
procura seu nome e fica estupefato. de "tipos" sociais, sem individualidade: "Um jovem judeu pobre
na polônia nos anos vinte" ou "Um militante comunista em um
Mas o que torna essa enciclopédia única em seu gênero, além de tratar- povoado judeu da Polônia em 1920". Ele, sua história e seu caráter
-se de um só exemplar existente, é a maneira pela qual são descritas as permaneceriam obscuros. Para mim, também, era preciso partir
relações humanas, os encontros, as paisagens; essa multiplicidade de em busca de seus documentos de identidade, de seus escritos, de
detalhes que constituem a vida humana - a referência (por exemplo) ao fragmentos de correspondência ainda disponíveis, cartões-postais,
local de nascimento de seu pai é exata e completa, Kraljevcani, comuna cartas da prisão que ele tinha enviado do campo l l-B, documentos
de Glina, cantão de Sisak, distrito de Banija, está acompanhada de infor- administrativos, álbuns de fotos. Eu precisava reconstituir seu
mações geográficas e históricas, porque, nesta enciclopédia, tudo é obser- percurso, sua árvore genealógica, o que resta da família (da Polô-
vado. Absolutamente tudo - as paisagens de sua região natal tornaram-se nia, ninguém), as razões de sua emigração em 1932. Pouco a pouco,
muito vivas enquanto eu lia, ou melhor, enquanto sobrevoava as linhas e Kaluszyn, esse pequeno shtetlviii insignificante, saiu da sombra,
os parágrafos, eu tinha a impressão de estar lá. [...] Depois eu vi, como por minhas narrativas, pois eu devolvi a vida à minha família, a
passasse diante dos meus olhos, um cortejo fúnebre a se dirigir em direção todos os desaparecidos conduzidos a Treblinka pela estrada de
ao cemitério da cidade. Quatro homens, cabeça descoberta, carregam o ferro local, exceto um de meus tios que conseguiu se esconder e
caixão de madeira sobre seus ombros, e à frente do cortejo, com o chapéu que foi fuzilado um ano mais tarde. Longas pesquisas foram ne-
na mão, caminha um homem que eu sei - é o que está escrito no livro - é cessárias para descobrir documentos do registro civil de Kaluszyn,
meu avô paterno Marko, o marido da falecida que ele acompanha até a intactos, com todos os nomes e sobrenomes assim como na enci-
sua última morada. Nada falta a respeito dos mortos, nem as causas da clopédia de Danilo Kis, inscritos em russo por uma escrita cuida-
doença e do falecimento, nem o ano de nascimento, nem a evolução de dosa, registros que me esperavam há muito tempo.
seu mal. Pode-se ler, também, com quais roupas ela foi enterrada, quem
a vestiu, quem colocou sobre seus olhos as moedas, quem lhe amarrou o
queixo, quem esculpiu o caixão, onde se encontrava a árvore derrubada o que resta do arquivo
para confeccioná-lo. Penso que isso nos dá uma ideia, aproximada ao
menos, da quantidade de informações registradas na Encyclopédie des morts o arquivista no romance
por aqueles que têm enfrentado a difícil tarefa, digna de elogio, de regis-
trar - seguramente com toda objetividade e de modo imparcial - tudo o Os arquivistas do romance, como personagens, possuem enormes
que é possível observar daqueles, cujo percurso na terra foi concluídoé", poderes. Do L'Archiuiste", de Martha Cooley, ao personagem de
Isrnail Kadaré no Le Palais des rêues", passando pelo genial senhor
Quem não sonha com uma enciclopédia assim, com uma bio- José, funcionário dos dossiês em Tous les noms32• -. de José Saramago,
grafia dos "não biografáveis"? Com a morte de meu pai, eu tentei até chegar ao narrado r da Muraille de Cbine', de Franz Kafka,
escrever a narrativa de sua vida. Mas, como eu tinha que lidar com
um desconhecido, compreendi que isso seria difícil, que era preciso 30
M. Cooley. LArchiviste. Paris, Plon, 2000.
31
L Kadaré. Le Palais des rêues. Paris, Fayard, 1990.
32
29 D. Kis.L'enciclopédiedes morts. Paris, Gallimard, 1983, pp. 46-47. J. Saramago. Tous les noms. Paris, Le Seui!, 1999.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

todos são acumuladores e manipuladores de vestígios. Assim, no o espaço nunca é suficiente. Todavia, eles trabalham em imó-
romance de Kadaré, Mark-Alem é, inicialmente, seletor de sonhos, veis imponentes, universidades, palácios, edifícios labirínticos. O
intérprete, depois chefe da seção do Guardião de sonhos, no pa- principal perigo é de se perderem neles. É necessário, literalmente,
lácio onde se preservam os sonhos de todos os sujeitos do Império um fio de Ariadne, um verdadeiro cordão que se deve desdobrar
e onde os arquivistas são encarregados de interpretá-los para saber com cuidado para não se perder. Mas se ele se quebra ... Em Tous
com antecedência se uma catástrofe, um cornplô, um assassinato les norns [Todos os nomes], um infeliz que estava perdido fazendo
ou uma inversão de poder podem acontecer. A seção mais temível, pesquisas heráldicas só foi encontrado quase morto ao final de
neste lugar, é a dos Estados mortos: uma semana, com fome, com sede, delirante e exausto. Ele tinha
se mantido comendo grandes quantidades de dossiês dos arquivos
Os Estados mortos e os que desceram ao inferno não se viam infligir que se desfaziam bem na boca, mas pesavam no estômago. Ele
punições do gênero daqueles que se imagina geralmente serem aplicados sobreviveu. Fechamos os olhos para a degradação atribuída mais
aos homens. Além disso, este inferno tinha uma particularidade, era uma vez às traças e aos ratos.
possível escapar e retomar à terra. Assim, um belo dia, os Estados mortos, Mas, atenção à culpa, aos passos em falso! Os arquivistas são
depois de muito tempo e depois de todos terem se transformado em es- espontaneamente infratores. Eles voltam aos arquivos após o en-
queletos, podiam lentamente se levantar e reaparecer na superfície do cerramento do expediente graças a uma chave secreta. Eles não
globo. Somente, a exemplo dos atores que se maquiam antes de subir ao recolocam no lugar o documento que clandestinamente consul-
palco para um novo papel, eles precisavam de alguns retoques indispen- taram, classificam-no mal, ou até mesmo o confiscam. Em Le
sáveis,mudavam de nome, símbolo, bandeira, porém elesnão permaneciam, Palais des rêoes, o chefe da seção do Guardião dos sonhos muda
no fundo, idênticos a eles mesmos+'. uma frase e faz uma falsificação, com medo de ter de interpretar
um sonho que lhe parece de mau agouro. Em Tous les noms, o
Mestres da memória por seu trabalho de classificação, triagem, encarregado de escrituras, Sr.José, que fora do expediente coleciona
acabamento, etiquetagem, preservação, comunicação ou de não secretamente dados sobre os personagens famosos e examina de
comunicação, os arquivistas são, também, mestres do tempo, maneira ilícita os dossiês do registro civil para encontrar o que diz
mestres da cidade dos mortos e dos vivos, portanto da boa ordem respeito a eles, descobre por acaso a ficha de uma completa desco-
do mundo. E é essa boa ordem que os preocupa. No romance de nhecida. Ele decide saber tudo sobre ela, conhecer sua vida, loca-
Saramago, o registro civil dos mortos fica separado do registro dos lizá-Ia. Isso o leva a cometer irregularidades cada vez mais graves:
vivos, mas "os documentos daqueles que deixaram este mundo ele elabora falsas autorizações, vai à casa de pessoas dizendo ser o
encontram-se guardados mais ou menos na parte detrás do edifí- encarregado de fazer uma entrevista oficial. Ele acabará descobrindo
cio, cuja parede do fundo deve ser periodicamente destruída e que ela morreu e foi enterrada na seção dos Suicidas no cemitério.
reconstruída alguns metros mais devido ao aumento inexorável Ele vai até lá e fica a noite toda, acreditando ter finalmente encon-
do número de defuntos'P'. trado a localização de seu túmulo. Mas um pastor lhe explica que
passa seu tempo, igualmente, criando dados falsos, trocando
placas, números e nomes dos túmulos. Desta forma, ninguém pode
localizar os defuntos. Essa revelação leva o Sr.José a cair no deses-
33 l.Kadaré.LePalais ... pp.1l6-117.
34 J. Saramago. Tous ...• pp. 12-13. pero. Não lhe resta mais nada a não ser esperar para ser descoberto,

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A MEMÓRIA SATURADA A MEMÓRIA SATURADA

demitido, talvez até preso. É então que o conservador chefe, que Pierre, "personagem que vive em arquivo': torna-se a base de
observou sua manobra, encoraja-o: se o Sr. José recolocasse em um texto, autor de uma peça de teatro, La Nuit blanche. "Este não
seu lugar, nos dossiês dos vivos, a ficha da desconhecida, seria como é um livro, nem uma peça de teatro, é uma forma de escrita que
se ela não tivesse morrido. Tal é o poder dos arquivos ... conta e que expõe. Obra aberta ao público. Narração, exposição,
ficção, história, narrativa [...]. Houve ali o desejo de defender esse
o historiador e o homem sem qualidades homem despedaçado que quis assumir uma demasiada parte de
responsa bilid
uma de..."36 .
Há muito anos, Arlette Farge cuida dos arquivos à sua maneira, Há alguns anos, Alain Corbin publicava a história de Louis-
diferente da maioria dos historiadores. Diante de um caso singu- -François Pinagot, um completo desconhecido:
lar, de uma "vida minúscula", para retomar a expressão do escritor
Pierre Michon, ela para e medita sobre os "fragmentos de arquivo". Louis-François Pinagot existiu. O registro civil comprova. Ele nasceu

A singularidade não combina com o discurso histórico. É neces- em meados do ano VI (20 de junho de 1798) "às três horas da tarde". Ele

sário reintroduzi-Ia nesse discurso. morreu em sua casa, em 31 de janeiro de 1876. Em seguida, ele caiu no
total esquecimento. Ele nunca tomou a palavra em nome de seus seme-

Como se sabe, o historiador expõe as formas e as estruturas das situa- lhantes. Sem dúvida não tinha ele qualquer sonho; tanto é que era anal-

ções sociais, ele estuda as evoluções delas notempo, às vezes marca as fabeto. Ele não se envolveu em nenhum negócio importante. Ele não

descontinuidades e rupturas. Algo me diz que é preciso ir além. Porque, aparece em nenhum dos documentos judiciários que escaparam da des-

no arquivo, se lê o peso dos seres falantes, o ritmo da história que a histó- truição. Ele não foi jamais objeto de vigilância particular da parte das

ria apaga sob sua narrativa oficial. Aqui, nos textos, existem esses locuto- autoridades. Nenhum etnólogo observou seus modos de dizer ou de fazer.

res que contam suas histórias e as histórias. Nenhuma narrativa se asse- Em suma, é exatamente aquele que eu procurav;37.

melha a outra. Cada uma se parece muito mais com a realidade do que
com a ficçã035. O projeto inovador e fascinante de Alain Corbin era reunir o que
restava de uma pessoa que não era ninguém:
Em seu último livro, ela dá vida novamente a um homem jovem,
Pierre Le Roy, executado em Cambrai em 1770. Ele tinha 18 anos. [...] trata-se de recompor um quebra-cabeça a partir de elementos inicial-

Ele passava seu tempo enviando cartas anônimas às autoridades mente dispersos; e, ao fazê-lo, de escrever sobre os devorados, os apagados,

municipais. Preso, esperando sua execução, ele teve de confessar. sem, no entanto, contar com um testemunho. Essa meditação sobre o

Como boa historiadora, Arlette Farge se esforça para retraçar o desaparecimento visa dar existência uma segunda vez a um ser cuja lem-

percurso e situar o meio social desse filho de um tecelão pobre. brança foi abolida, por quem não tenho nenhum laço afetivo; com o

Mas a historiadora não hesita em misturar a ficção com esses qual eu não compartilho a priori nenhuma crença, nenhuma missão,

"fragmentos de real" arrancados, na surdina, dos arquivos. Ela


assim faz surgir uma noiva, vozes, itinerários ...
36
Idem. La Nuir blanche. Paris, Le Seuil, 2002.
37
A. Corbin. Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot. Sur les traces d'un inconnu, 1798-
35 A. Farge. Le Cours ordinaire des choses. Paris, Le Seuil, 1994, contracapa. -1876. Paris, Flammarion, 1998, p. 7.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

nenhum compromisso. Trata-se de recriá-lo, de lhe oferecer uma segunda Seguiremos a longa vida do pobre sapateiro e não é somente
chance - muito sólida no imediato - de entrar na memória de seu século ". um vilarejo desfavorecido de uma das regiões mais pobres da França
que ressuscita diante de nossos olhos, mas um desconhecido cujo
o historiador vai admiravelmente dar a ele essa segunda chance. destino compreendemos. A história é um romance que se pode
Como ele procede para "escolher" Louis-François Pinagot? Ele provar, dizia Carlo Ginzburg. Alain Corbin mostra isso de forma
foi aos arquivos de Orne, sua região natal, serviu-se de um dos brilhante. Diferentemente da estética do século XIX, ele não
volumes do inventário dos arquivos municipais e o abriu por acaso. coloca em cena um personagem-tipo, mas um ser singular; não
Sua mão caiu sobre o município de Origny-le-Butin, um território um ser verossímil que ele teria inventado, mas um homem real, de
"sem qualidades". Ele abriu as tabelas decenais do registro civil e um real do passado.
escolheu Louis- François Pinagot, que teve uma vida longa. Qua-
renta anos de prática arquivista lhe permitem andar depressa nas
primeiras descobertas de sua investigação. Depois é uma outra Notas
história.
Repetidamente, o historiador nos diz que, em relação ao aspecto Tratava-se da política de cooperação entre França e Alemanha praticada durante a Segunda
Guerra Mundial (1940-1945) pelo governo de Víchy e determinados grupos políticos
do personagem, do acontecimento no vilarejo, ou sobre o modo
franceses. [N. da T.]
como os acontecimentos nacionais afetaram Louis-François, não A sigla OAS corresponde a Organização Armada Secreta. uma organização político-mi-
sabemos nada, pois os arquivos permanecem mudos sobre muitos litar clandestina francesa. que agia em defesa da França em território argelino. [N. da T.]
pontos. Como esse analfabeto se expressava? Ele era taciturno? iii M. Ferro. A história vigiada. São Paulo. Martins Fontes. 1989. [N. da T.]
iv Idem. Os tabus da história. Rio de Janeiro. Ediouro, 2003. (N. da T.]
Como imaginar sua representação do passado? Como sabê-Ia? O
v G. Perec. O sumiço. Rio de Janeiro. Travessia. 2016. [N. da T.]
discurso do historiador é pontilhado de dúvidas, de "talvez", hi- vi Idem. A vida, modo de usar: Romances. Trad. Ivo Barroso. São Paulo. Companhia das
póteses, incertezas. Sentimos o livro como se tivesse sendo escrito, Letras. 2009. [N. da T.]
suas descobertas, seus pontos sólidos apoiados sobre os arquivos, vii Jornal francês publicado no período de 1923a 1944. [N. da T.]
viii Do iídíche, esse termo refere-se a povoações ou bairros de cidades com uma população
e suas zonas de obscuridade, de silêncio, de experimentações.
. predominantemente judaica. [N. da T.]
IX J. Saramago. Todos os nomes. São Paulo. Planeta de Agostini, 2003. [N. da T.]
Claramente, estamos, sobre todos esses pontos, condenados à conjec- F. Kakfa. A muralha da China. São Paulo. Clube do Livro. 1968. [N. da T.]
tura. Portanto, vamos postular. Mas, afinal, que historiador pode se or-
gulhar de agir de outra forma? Notadamente quando, ao inverso, ele supõe
que todos os seres que vivem em uma mesma época a privam nas escansões,
segundo as lógicas e as leituras que são da comunidade dos historiadores;
procedimento redutor que autoriza, é verdade, a elaboração de um saber
fácil de compartilhar e transmitir.

38 Idem. p. 8.

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1

Memória e mídia

A carta e a foto

"Escrever cartas é despir-se diante de fantasmas"

"Nossas ferramentas de escrita afetam nossas ideias." Nietzsche


escreve essa frase apesar de estar doente, imobilizado por suas
enxaquecas e quase cego. Ele adquire uma máquina de escrever,
uma Hansen, invenção de um dinamarquês, destinada a ajudar
pessoas que sofrem de deficiências visuais e de outras limitações.
Trata-se de uma bola de escrever, uma bola cravada de hastes, tendo
a forma de um porco-espinho; na parte de cima dela, há teclas
redondas sobre as quais estão inscritos os números e as letras em
relevo para que os cegos os identifiquem mais rapidamente. Na
parte inferior da bola, fica um dispositivo cilíndrico sobre o qual
se coloca a folha de papel. Cada elemento da bola se inscreve sobre
o papel, mas aquele que datilografa não vê o que escreve. Nietzsche
diz que suas dores de cabeça e sua quase cegueira o fazem mudar
de estilo, passar de uma escrita ligada a aforismos, a fragmentos,
para um "estilo telegráfico" e lacônico. Na verdade, a máquina é
frágil, ela trava e muito rapidamente Nietzsche a abandona, à pro-
cura de pessoas capazes de copiar seu ditado, de recopiar, de cortar
° texto, de corrigi-lo. A Hansen serviu mais de suporte para reíle-

367
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

xões filosóficas sobre o homem como "superfície de inscrição", seus projetos, suas alas e veredas. K. recebe uma primeira carta
sobre a máquina-memória do que outros viam a partir do gramo- de Klamm, por intermédio do mensageiro Barnabás, que diz o
fone e do que Nietzsche concebe a partir da máquina de escrever. seguinte:
Pensar através do medium, teorizar sobre ele, ou, ainda, viver
através dele. A odisseia de Kafka e de sua correspondência, em Prezado Senhor, como sabes, estais admitido para fazer parte dos
particular, com Felice é um exemplo conhecido. Fora de questão serviços da Administração do Condado. Vosso superior imediato é o
vê-Ia pessoalmente, impossível pegar o trem de Praga a Berlim. oficial municipal do vilarejo, que vos dará a propósito todos os detalhes
Entre eles, cartas, telegramas, cartões-postais, o quanto se queira, a respeito de vossa função e as condições de vossa remuneração, e a quem
mas sem presença física. Ele, certamente, não suportava o telefone, tereis de prestar contas. No entanto, eu não vos perderei de vista por isso.
porque, mesmo à distância, trata-se ainda da voz do imediato, da Barnabás, que é portador dessa mensagem, vos entrevistará periodicamente
presença do corpo. a fim de conhecer vossas aspirações e de me informá-Ias. Encontrar-me-à
Em uma carta para Milena, ele explica que sempre disposto a ser-lhe agradável na medida do possível. Faço questão
de que todos os que trabalham conosco estejam satisfeitos'.
[...] a grande facilidade de escrever cartas deve ter introduzido no mundo
- do ponto de vista estritamente teórico - uma terrível desordem das Ora a assinatura não era legível, mas sob ela estava impresso:
almas: essa é uma troca com fantasmas, não só com o fantasma do destina- "Chefe da repartição".
tário, mas, ainda, com o seu próprio fantasma; o fantasma que escreve K. pendura a carta na parede no lugar de uma gravura. Ele a
cresce debaixo da mão que escreve, na carta que ela redige. [...] Escrever trata como um talismã e se lança em uma longa interpretação con-
cartas é despir-se diante de fantasmas. Eles esperam avidamente esse gesto. traditória: de um lado, a carta se dirige a ele como homem livre;
Os beijos escritos não chegam ao destino. Os fantasmas os sorvem no de outro lado, ela o rebaixa ao posto de "pequeno operário". O
camínho '. caráter oficial da carta é posto em questão pelo prefeito, que faz
com que K. observe que se trata de uma carta privada e não de
Em Le cbâteau', Kafka retrata uma terrível máquina textual. A uma carta oficial. Ele lhe explica por que, sem que cometa um erro,
impossibilidade de penetrar no castelo e de compreender o que no seu caso, um dossiê foi mal transmitido, um funcionário muito
quer que seja em suas mensagens constitui a encenação da midia- zeloso seguiu o processo, mas os escritórios não se comunicaram
tização. No Castelo, tudo é texto, produz texto. O destino de entre si. O documento no qual consta a decisão de, há muito
cartas, dossiês, telefonemas, tudo acaba mal. Um primeiro telefo- tempo, contratar um agrimensor está em algum lugar de um grande
nema nega que o castelo tenha contratado o agrimensor; em seguida, armário da prefeitura, em um local impossível de encontrar. Em
imediatamente depois, um segundo telefonema corrobora as seguida, o prefeito explica a K. o funcionamento do telefone que
afirmações de K., que continua sendo surpreendido pelo moder- liga o castelo ao vilarejo. Na realidade, o que acontece no aparelho
nismo do vilarejo (um telefone em um albergue um tanto sórdido) telefônico é um sussurro, um canto, um rumor suficiente para
e o conhecimento mesmo que pouco claro de que o castelo tem estabelecer uma comunicação telefônica contiável: tudo o mais é
enganoso. Porque, na verdade, no castelo, quase todos os telefones

2
F. Kafka. Lettres ti Milena. Paris, GaUimard, 1988. Carta do início de abril de 1922, p. 267. Idem. Le Cbâteau. Paris, Garnier-Flammarion, 1984, pp. 45-46.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

dos escritórios estão desligados: "Mas, de vez em quando, um discernimento como os canários nas feiras, quando colhem com o bico,
funcionário exausto sente necessidade de se distrair um pouco de um monte, o destino de alguém, admitamos que seja assim, então essas
(principalmente ao anoitecer ou durante a noite) e liga a campai- cartas têm minimamente alguma relação com meu trabalho, visivelmente
nha, aí então obtemos uma resposta, que, no entanto, não é senão elas se destinam a mim [...], elas têm [..] um significado particular e pouco
uma brincadeira" E o prefeito acrescenta: "Eu não compreendo claro, mas nem por isso é rnenor '.
como alguém, ainda que seja um estrangeiro, pode acreditar que,
quando se chama, por exemplo, Sordini, é realmente Sordíni quem o destino dos dossiês é tão opaco quanto o destino dos tele-
responde'", Pode-se ver que a conversa telefônica obedece ao arbi- fonemas ou das cartas. Eles são levados ao amanhecer do dia em
trário, ao acaso. Na realidade, não há transmissão da comunicação, carrinhos e depositados nas portas dos funcionários quando estes
simplesmente um jogo de aparências que desloca, desvia, difere, estão ausentes. Os dossiês se acumulam nas portas. Talvez fiquem
descentra. sem respostas eternamente. Em princípio, um registro serve de
alga, por sua vez, conta-lhe a maneira pela qual as cartas são garantia. Tal dossiê, tal porta. Na realidade, a distribuição dos
distribuídas no castelo. Barnabás recebe as mensagens. Ele é levado dossiês é ainda mais complexa. No castelo, tudo está em fluxo
a um escritório, mas não é o de Klamm. Trata-se de uma sala e esse fluxo se espalha pelos armários, ficheiros, carrinhos ... Todo
comprida, com uma grande mesa no centro que acompanha a esse processo é absurdamente midiatizado, tudo é comunicação,
largura do cômodo. Grandes livros estão abertos em cima da es- mas uma comunicação com "fantasmas".
crivaninha e os funcionários mudam de lugar, de livro em livro, No momento em que a América e a Europa Ocidental entram
um pouco à maneira do chá de loucos de Lewis Caroll. Secretários massivamente na era de uma nova midiatização, pela transmissão
escrevem a partir do ditado de funcionários que ditam em voz à distância da voz (o gramofone) e da imagem, primeiramente
baixa, de tal maneira que ninguém é capaz de ouvir. O secretário, imobilizada no instante (a fotografia), em seguida móvel e animada
após receber uma mensagem, sobressalta-se, não se sabe por quê. (o cinema), no momento em que a voz pode mesmo ser ouvida
Mas, e quanto às cartas que o agrimensor recebe de Klamm? instantaneamente (telefone), e muito antes da era digital, o pen-
alga lhe explica como se dá a circulação dessas cartas: "[ ...] entre samento está obcecado pelo tipo de memória implicada nessas
os inúmeros dossiês e correspondências que ele tem sobre sua mesa, novas mídias em relação a uma "imagem de memória", da qual o
o escrivão procura uma carta para você, portanto, não é uma carta homem é portador, ao menos, desde o fim da Idade Média. Essa
que ele acaba de escrever, mas, a julgar pelo aspecto do envelope, obsessão continua desde então até a angústia e a fascinação daquilo
uma carta muito antiga que se arrasta por ali há muito rernpo'", que ~epoderia tornar uma nova amnésia. Como se lembrar adiante?
K., persistente, não deixa de ver nisso algo importante e uma De um lado, no filme de David Lynch Lost Highway [Estrada
mensagem: perdida], o herói diz: "Eu não gosto das câmeras de vídeo. Eu gosto
de me lembrar das coisas da maneira como nos lembramos delas".
Mesmo que sejam cartas antigas sem valor, tiradas por acaso de um Porém, de outro lado, no final de Sans Soleil [Sem Sol], filme de
monte de cartas igualmente desprovidas de valor, sem critério e com pouco Chris Marker, ouve-se:

Idem, p. 102.
4
Idem, p. 222. idem, p. 227.

370 371
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

Perdido no fim do mundo, em minha ilha, em companhia de meus em sua vida". A avó morreu há muito tempo. Ela é apenas, a partir
cachorros que se pavoneiam, me lembro de janeiro em Tóquio, ou melhor, de sua foto, uma "aparição rodeada de sombras". Desde que a
me lembro das imagens que eu filmei em janeiro em Tóquio. Elas por si tradição oral desapareceu, ela voltou a ser uma jovem de 1864 como
sós se colocam no lugar de minha memória. Elas são minha memória. outra qualquer. O que chama atenção em primeiro lugar são as
Eu me pergunto como as pessoas fazem para se lembrar, se não fazem roupas antigas. Ela se transformou em "manequim arqueológico,
filmes, se não tiram fotos, se não registram, como tem feito a humanidade que serve para mostrar as roupas da época" No entanto, a fotogra-
para se lembrar ... fia assusta pela captura de um momento do tempo passado.
A fotografia da avó difere fundamentalmente de "uma imagem
Memória-rnídia ou "memória da forma que se lembra"? da memória" porque
Temos sempre que lidar com a decomposição do tempo; trata-
-se ainda de possibilidades e impossibilidades da anamnese. [...] a memória não engloba nem a totalidade de um fenômeno espacial,
nem a totalidade do desenvolvimento temporal de um fato. Comparada
"O domínio do intocável e do imaginário" à fotografia, suas anotações são incompletas. Que a avó já tenha sido
envolvida em uma história desagradável que continua a ser contada, por-
Um dos primeiros a refletirem com profundidade sobre os que não gostamos de falar dela, isso não quer dizer grande coisa do ponto
impasses e possibilidades da nova cultura de massa é Siegfried de vista do fotógrafo",
Kracauer, em Berlim, nos anos de 1920. Reiteradamente, ele escreve
sobre a fotografia, tomando-a como medium, nos seus folhetins Assim, a fotografia e a imagem de memória se opõem. A ima-
de Frankfurter Zeitung, em 1927 e em 1932, e depois, bem mais gem de memória só conserva aquilo que faz sentido para o indi-
tarde, em Theory ofFilm, em 1960, redigido em Nova York. Entre víduo, na lacuna, no pedaço, no fragmento, enquanto a foto dá a
os dois períodos, diferenças de sensibilidade e uma ambivalência ver "um emaranhado composto em parte por restos". A imagem
(que vamos encontrar em Walter Benjamin) diante das mídias da de memória está ligada ao seu conteúdo de verdade. A imagem
reprodutibilidade e suas consequências sobre a emergência de uma "final" de um ser humano e sua história real. Ela se parece com um
cultura de massa, a historicidade e a memória de uma época, uma monograma, ao passo que, "sob a fotografia de um ser humano,
ambivalência que encontramos hoje, quando estamos entrando sua história se encontra como se estivesse enterrada embaixo de
na era digital, da imagem de síntese, da imagem em três dimensões uma camada de neve".
e da comunicação que acaba de abolir o tempo e o espaço. Kracauer, ao longo de seu ensaio de 1927, aprofunda essa opo-
No texto de 1927, Kracauer opõe a foto de uma estrela de cinema sição. Ele toma o exemplo do pintor Trübner pintando um retrato
à de sua avó. A celebridade é imediatamente reconhecida. Na frente de um cliente. Este se preocupa. Ele vê os detalhes de seu rosto e
do hotel Excelsior, em Lido, ela simboliza o presente, o brilho da pede para o pintor não se esquecer de suas rugas. Trübner aponta
modernidade. A foto da avó, tirada 63 anos antes desse momento, para a janela e lhe diz: "Há um fotógrafo logo à frente; se você
é mais enigmática. A foto mostra uma jovem. Nós a conhecemos
como uma velha dama. É a tradição oral da família que nos faz
6
S. Kracauer. "La phorographíe" Le Voyage et Ia Danse. Figures de Ia uille et de uues defilms.
reconhecer o retrato, os segredos da família, os rumores que cor-
Textos escolhidos e apresentados por Philippe Despoix. Vincennes, Presses Universitaires
rem sobre ela e que são contados: "Uma história desagradável de Vincennes, 1996,p. 45.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

quer rugas e dobras, chame-o; ele vai retratá-Ias. De minha parte, restringe o campo da imaginação e, nesse sentido, uma diferença
eu pinto a história'". Kracauer não retoma a famosa discussão do intransponível se estabelece entre uma pintura e uma fotografia.
século XIX sobre a fotografia; ele a prolonga. Presa nos modos de A primeira não poderá jamais saciar o olhar, enquanto a segunda
reprodução do capitalismo, o momento mais importante para a se parece com o alimento que alivia a fome ou satisfaz a sede.
fotografia é o que faz dela banco de dados da história. A foto da Uma outra imagem da avó, emprestada de Proust, será retomada
avó, para retomar o exemplo anterior, uma vez que as narrativas por Kracauer, em 1960, em sua obra-prima sobre o cinema. Trata-
orais associadas a ela se vão, torna-se um dos elementos de um ar- -se de um momento em que o narrado r da Recberche' vai visitar
quivamento geral, um inventário temporal, diríamos hoje um sua avó doente. Ele não a avisa. Ele a surpreende quando ela está
armazenamento. Portanto, poder-se-ia apostar, pela primeira vez, lendo na cama. Ela não lhe parece familiar em seus traços, mas
em uma consciência livre, aparentemente "natural", uma consciên- como em uma fotografia:
cia totalmente artificial. Isso seria um ganho, mas haveria um preço
a pagar. A destruição da consciência poderia da mesma forma sair O que mecanicamente se passou, nesse momento, diante dos meus
desse banco de dados. As imagens se separam de sua disposição olhos quando vi minha avó, foi de fato uma fotografia. Vemos sempre os
natural, de seu contexto espacial. As imagens do conjunto natural, entes queridos no sistema animado, o movimento perpétuo de nossa in-
percebido pela consciência que as une, decompõem-se em elemen- cessante ternura, que, antes de deixar as imagens que nos apresentam
tos livres, embora provisórios, fantasmáticos: seus rostos chegar até nós, os toma no seu turbilhão, os rejeita baseado na
ideia que nós fazemos deles desde sempre, os faz aderir a essa ideia, coin-
Quando a roupa da avó perder sua relação com o presente, não será cidir com ela. [...] Mas que, em vez de nosso olhar, isso seja um objetivo
mais cômica, mas significativa como um pólipo dos mares. Um dia, o as- puramente material, uma lâmina fotográfica, que tinha então olhado [...]
pecto demoníaco da celebridade vai se dissipar, e seu penteado ti Ia garçon pela primeira vez, e somente por um instante, porque ela desaparece muito
permanecerá, assim como os coques. Assim os elementos se desagregam, rápido, eu vejo em cima do sofá, embaixo da lâmpada, vermelha, pesada
não sendo mais mantidos juntos. Os arquivos fotográficos recolhem em e vulgar, doente, sonhadora, passeando sobre um livro com olhos um
forma de cópias os últimos elementos da natureza alienada para significar''. pouco loucos, uma velha mulher devastada que eu não reconhecia mais",

Essa memória de arquivo que se opõe à imagem de memória É Proust que opõe a imagem de arquivo!", conforme a fotogra-
é, no máximo, um lembrete. É fato que a fotografia vai ampliar o fia a fornece, à imagem da memória involuntária. Daí, Walter
campo da memória voluntária, como atesta Baudelaire. Ela vai Benjamin extrai sua ideia de memória da experiência contra a
salvar do esquecimento livros, estampas, manuscritos e todo um memória-choque que se assemelha à amnésia. O que constitui
conjunto de elementos que o tempo devora a seu modo, tudo o que a memória involuntária não são as lembranças tais como elas
demanda um lugar nos arquivos de nossa memória. Mas, acrescenta foram vividas, registradas, mas o modo como elas são remernora-
Baudelaire, com a condição de respeitar "o domínio do intocável das, o "tecer dessas lembranças, o trabalho de Penélope do esque-
e do imaginário". O fato é que a lembrança discursiva e voluntária

9
M. Proust. Du cótéde Guermantes. Paris, Gallímard, Folio, 1988, p. 132.
7
Idem, P: 47. 10 Essa noção de memória de arquivo tinha sido esboçada nos anos 1920 pelo fotógrafo
S
Idem,p.56. August Sander (1876-1964). Em 1925, ele teve a ideia de forografar homens "típicos", de

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cimento". A memória involuntária de Proust é tanto trabalho da Um café ocupa o lugar de uma casa de chá que o autor costumava
lembrança quanto do esquecimento. Penélope desfaz à noite o que frequentar. Depois, o próprio café é demolido. Fragilidade do
foi tecido durante o dia. Essa memória involuntária está próxima tempo a despeito ou em virtude de sua aceleração: "A mudança
da imagem de Proust quando corrigia seus manuscritos para de- constante apaga a lembrança". Tudo se torna obsoleto antes que
sespero de seu editor. Quando as provas de revisão de seu livro as imagens da memória tenham integrado o que quer que seja.
chegavam a ele, Proust as devolvia com milhares de correções.
Cartazes ainda se espalham ao longo da cerca. Mas tornam-se inúteis
Nenhum erro de impressão tinha sido corrigido, mas as margens
e, em vez de levar vida a casa, somente testemunham o seu declínio precoce.
estavam repletas de paperolesiii e acréscimos.
Não é possível dar um termo para isso,porque a casa não encontra nenhum

Assim a lei da recordação se exercia até no volume da obra. Visto que apoio no que se passou. Ninguém lhe dedica um olhar, o tempo prevalece

um acontecimento vivido está encerrado, está, no mínimo, confinado em seu rápido cursol2.

em uma única esfera do acontecimento vivido, enquanto um aconteci-


mento remem orado é sem limites, porque ele é apenas uma chave para o Kracauer e Benjamin criticam algumas manifestações da
que precede e para o que continua. E, em outro sentido, ainda, é a recor- modernidade e a emergência de uma cultura de massa na Berlim
dação aqui que prescreve rigorosamente o modo de tecer. Porque uma
dos anos 1920, da qual eles são observadores, cronistas ou me-
unidade do texto não é senão o ato de rememoração, [...] o motivo do
morialistas.
ll
Kracauer, em Monde de calicot, rapidamente identifica a im-
avesso da tapeçaria .
portância dos estúdios de cinema da UFA e do simulacro genera-
Em seus fragmentos reunidos com o título de Rues de Berlin lizado. Novamente, a natureza, em sua viva realidade, é descartada.
et d'ailleurs, Kracauer fala da Avenida Kurfürstendamm como uma Nos cenários de Grunewald, o mundo parece fazer um retorno,
"rua sem memória', de como a vertigem da mudança é forte nela. "mas as coisas que se encontram não pertencem à realidade. São
cópias e visagens arrancadas do tempo, e misturadas desorde-
nadamente. Imóveis, elas esperam, à frente, cheias de significação,
atrás, nada absoluto. Um pesadelo sobre os objetos, que foi forçado
fazer o retrato da República de Weimar a partir de um conjunto de profissões que se
podiam ali encontrar. "Para estabelecer, verdadeiramente, agora, um corte através da época a entrar no mundo material'T'.
atual e nosso povo da Alemanha, reagrupei essas fotos em portfólíos: começo pelo agri- Todavia, seria um erro pensar que Benjamin e Kracauer se
cultor e termino com os representantes da aristocracia intelectual. Esse percurso é acom- instalam em uma crítica unilateral da indústria cultural, tal como
panhado por um conjunto de portfólios paralelos que ilustram a evolução da aldeia à cidade
ela será pensada e formulada por Adorno e a Escola de Frankfurt.
grande, a mais moderna. Por conseguinte, fIXando tanto as camadas isoladas quanto o seu
ambiente pela fotografia absoluta, espero apresentar uma verdadeira psicologia de nossa A abordagem desses dois autores é muito mais ambivalente e
época e de nosso povo". O conjunto de portfólios devia se chamar Hommes du XX siêcle volátil, até 1940, para Benjamin, e até 1966, para Kracauer. Entre
(Homens do século XX]. Em 1929, uma primeira publicação, Antlitz der Zeit (Visages de ce os anos 1920 e a catástrofe que os atinge e que presencia o desapa-
temps (Rostos do tempo]), coletânea de 60 fotos, obteve grande sucesso. Com suas séries
fragmentadas, ordenadas, Sander supunha apreender sua época em sua sociopsicologia
profunda e fiel à verdade, pelo "tipo". Ver Augusc Sander. Hommes du XX siêcle. Analyse
12 S. Kracauer. "Une rue sans rnérnoire" Rues de Berlin et d/ailleurs. Paris, Gallimard, "Le
de l'oeuvre. Paris, La Marríníere, 2001.
Prorneneur" 1995, p. 28.
II W. Benjamin. L'imag« proustienne. CEuvres completes, 11. Paris, Gallimard, Folio essais,
13 Idem. "Monde de calicor" Le Voyage et Ia Danse ... , P: 34.
2000, p. 37.

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•......
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recimento de Walter Benjamin e o exílio de Kracauer, aparece o A recepção através da distração, que se torna cada vez mais nitidamente
desejo de compreender as novas mídias, de compreender o seu sensível em quase todos os domínios da arte, é o sintoma de uma mudança
perigo para a consciência e a historicidade, e, também, o infinito de função decisiva do aparelho de apercepção humano, o qual se vê con-
de suas possibilidades. frontado com as tarefas que só podem ser realizadas de maneira coletiva.
Refletindo sobre a fotografia e o cinema, as novas mídias de Ao mesmo tempo, ela é o sintoma da importância crescente da apercepção
seu tempo, em uma primeira versão de L'(Euvre d'art ti l'époque tátil que, partindo da arquitetura, seu domínio original, se sobrepõe a
de sa reproductibilité tecbnique" Walter Benjamin afirma: outras artes. É o que acontece de maneira impressionante com a música
na qual um elemento essencial de sua evolução mais recente, a saber, o
o que enfraquece a obra de arte, na era da reprodutíbilidade técnica, jazz, encontra seu agente mais eficaz na música da dança. Essa tendência
é sua aura. Processo sintomático cuja significação vai muito além do do- aparece de maneira menos evidente, mas não menos profunda, no filme:
mínio da arte. A técnica da reprodutibilídade - essa poderia ser a fórmula o efeito de choque da sucessão de imagens transfere um elemento tátil em
geral- destaca o objeto reproduzido do domínio da tradição. Ao multi- sua própria épocal5.
plicar sua reprodução, ela substitui a existência única da obra por uma
existência serial, permitindo à reprodução vir ao encontro do espectador Muito rapidamente, no entanto, Benjamin vai especificar sua
ou do auditório; em qualquer situação, ela atualiza o objeto reproduzido. proposta, ou até mesmo invertê-Ia, e o curso trágico dos aconte-
Esses dois processos levam a uma poderosa reviravolta do objeto transmi- cimentos certamente não é estranho a essas mudanças. No período
tido, abalando a tradição, que constitui o reverso da crise e a renovação de 1936-1937, um pensamento sombrio vem à tona. Em "Le Con-
atual da humanidade. Esses dois processos se relacionam intimamente teur"16.v e em "Sur quelques thêmes baudelairiens"17,vi, a tonalidade
com os movimentos de massa contemporâneos. Seu agente mais poderoso muda. O autor opõe a estética do choque e da destruição à estética
é o filme. Sua significação social, mesmo considerada em sua função mais da experiência, baseando-se em Baudelaire, Proust, e, também, em
positiva, não é concebível sem a função destrutiva, catártica: a liquidação Dilthey e Bergson. Ele vai pôr em evidência a memória involun-
do valor tradicional do patrimônio cultural'". tária, a única capaz de resistir à instrumentalização. O Erfohrung
(a experiência) não é da ordem do imediatismo. "Ela se constitui
Entretanto, não se trata de simples técnicas de duplicação. No menos de dados isolados, rigorosamente fixados pela memória,
lugar da unidade na singularidade de uma única aparição, o objeto do que de dados acumulados, muitas vezes inconscientes, que se
produzido é atualizado em vários lugares. Essa revolução técnica unem a ela."18O homem das multidões vive sob o choque e a
é inseparável das massas, de sua recepção, de seu tempo livre e de instantaneidade, o anonimato, mas não se pode confiar na estética
urna "estética da distração" que lhe é própria, induzida pelo medium do choque e da distração, porque, diante de seu impacto, se torna
e pelas transformações do modo de vida e das formas artísticas da impossível narrar, contar. Não há mais narrativa. Ao citar Valéry,
época. Benjamin escreve ainda: Benjamin escreve:

14 W. Benjamin. L'(Euore d'art à lere de sa reproductibilué technique [1936].


Écrits français.
Paris, Gallimard, 1991,
pp. 142-143.
Por tudo a respeito desse trabalho sobre Benjamin e 15 Idem, p. 183.
as novas mídias, seus limites e suas potencial idades, sou grata à rica reflexão de lsabelle 16 Idem. "Le conreur" [1936].
(Euores complêtes, m. Paris, Gallimard, Folio, 2000,
pp. 114-151.
Rieusset-Lernarié, em especial em seu livro La société des clones li tere de Ia reproduction 17 Idem. "Sur quelques thêrnes baudelairiens". (Euores completes, I1I ... , pp. 329-390.
multimidia. Arles, Acres Sud, 1999. 18 Idem, p. 332.

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o homem antigamente imitava essa paciência. Iluminuras; marfins zoológico, Capitólio e Babylin, construídas por Poelzig, Palácio
profundamente recalcados; pedras duras perfeitamente polidas e nitida- Gloria, Maison de marbre, Haus Vaterland, que é uma Las Vegas
mente marcadas; lacas e pinturas obtidas pela sobreposiçâo de uma da época. Esse é o reino da superfície, outro conceito forjado e
quantidade de camadas finas e translúcidas ... todas essas produções de aprofundado por Kracauer, que não é necessariamente negativo,
uma indústria persistente e virtuosa não se iludem mais, e o tempo é ao contrário. É o "esplendor dessa superfície" que as caracteriza".
passado onde o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que Tudo aí é grandioso, dos halls de entrada até a sala e a tela. O
não pode ser abreviado. Na realidade, ele mesmo consegue abreviar a brilho dos enfeites, das luzes, da música. Trata-se de um caleidos-
narrativa. Temos visto nascer a short story, que foi arrancada da tradição cópio ao mesmo tempo visual e sonoro. "Representações como
oral e não permite mais essa lenta sobreposição de camadas finas e trans- essas constituem, hoje, em Berlim, com as autênticas revistas, a
lúcidas, na qual se pode ver a imagem com mais exatidão de modo que a atração decisiva. Com elas, a distração chega à sua própria cultura.
perfeita narrativa nasce do acúmulo de suas versões sucessivas'". Elas se destinam à massa,'?' Esse público é formado por todas as
classes sociais, constituído em
Única, como mostra Proust, a memória involuntária pode
compreender a experiência e o passado, restituir essas camadas [...] público homogêneo da cosmópole, que do diretor do banco ao
sucessivas. Essa memória, deslocada finamente pela literatura, empregado do comércio, da estrela de cinema à estenodatilógrafa, divide
nenhum suporte externo, nem o filme nem a fotografia, pode o mesmo espírito. As lamentações lamuriantes em relação a essareviravolta
imitar. Portanto, a memória involuntária vai se opor tanto às ao sabor das massas são ultrapassadas. Porque os bens culturais que as
formas de reprodutibilidade técnica quanto à lógica linear daque- massas se recusam a receber não são mais, em parte, uma possessão his-
les que escrevem a história. tórica, porque a realidade econômica e social da qual eles dependem
O trabalho de interpolação, de alteração, de modificação da mudou+',
imaginação que não conhece senão pequenos pedaços, fragmentos,
é decisivo. A duplicação pela via da fotografia acaba limitando esse A maior parte dessas massas é constituída de trabalhadores.
trabalho de interpolação. Não há mais alteração possível. Pode-se Kracauer dedica a eles uma de suas primeiras análises sociológicas".
somente interpolar um trabalho de palimpsesto, no qual há falta Ele descobre que seu número só aumenta, ao passo que o número
e esquecimento, transformação, vestígio e percurso. Um registro de operários da indústria estagna. Muito mal pagos, às vezes na
fiel dos dados viria bloquear o trabalho dessa memória viva, precariedade, eles se consideram abaixo dos operários; procuram
substituindo-o por uma memória artificial, incapaz de completar uma identidade cultural e social; eles serão grandes consumidores
essas faltas, uma memória plena. dos novos entretenimentos, do cinema em especial. Eles serão,
Kracauer forjou, desde o início de seus estudos, a noção de também, lamentavelmente, os primeiros a sucumbir aos mitos e
"distração" ou de "dispersão': em alemão Zerstreuung. Na renovada
Berlim de 1920, em um momento confuso, ele descreve as grandes
salas de cinema, as mais modernas da Europa: Palácio da Ufa no 20 Cf o belo estudo de]. Ward. Weimar Surfoces. Urban Visual Culture in 1920s Germany.
Berkeley, University ofCalifornia Press, 2001.
21 S. Kracauer. "Culrure de Ia distraction" Le Voyage et Ia Danse ...• P: 58.
22 Idem. p. 59.
19 Idem. "Le conteur" ..., pp. 128-129. 23 Idem. Les Employés. Paris, Avinus, 2000.

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às narrativas "encantadas" do nazismo. Essa distração exige a ex- Em seu último filme, Ararat, todas as mídias são utilizadas. Em
terioridade pura, aquela da rua, das vitrines iluminadas; trata-se primeiro lugar, o cinema, pois se trata de um diretor que faz um
de uma nova fantasmagoria urbana. Muito rapidamente, essa filme sobre o genocídio armênio de 1915. Na tela, aparecem, em
cultura torna-se culta, bloqueando todo pensamento crítico, certos momentos, as cenas de reconstituição histórica do filme,
embora suas potencialidades sejam enormes, especificamente a do que são kitsch, em primeiro plano. Outras mídias estão presentes,
poder de "destruição de tudo". Afirmam unicamente a pompa, o em diálogo, às vezes insignificante, com o cinema, tais como: a
idealismo, uma reorganização da ordem, enquanto a distração só última foto que o pintor Arshile Gorky tem de sua mãe, tirada em
se justificava como reflexo de uma desordem que não se controla, 1915, e o retrato que ele fez a partir dessa foto, muito mais tarde,
como representação da decadência. "Juntamos os pedaços." em Nova York, o livro de testemunhos de um médico americano
Kracauer é o cronista dessa cultura da superfície, do fugaz, do que estava trabalhando em Van no momento dos acontecimentos;
etêmero, do novo tempo da cidade, de seu ritmo. Flâneur, ele as fotos digitais tiradas com uma câmera digital pelo filho da
vagueia por Berlim, registra as metamorfoses da fisionomia urbana, historiadora encarregada pela documentação do filme, especialista
vê todos os filmes que são exibidos aí, como cronista do jornal na obra do pintor Gorky. Há ainda fitas cinematográficas à moda
Frankfurter Zeitung. Ele descobre o segredo de um novo consumo antiga, que essejovem trouxe da Armênia, mas, no lugar do suporte
cultural, novas formas estéticas, analisa a cultura e a distração, os do filme, havia heroína.
espaços culturais do público anônimo. Atorn Egoyan manifesta, abertamente, sua preocupação em
Muito mais tarde, ele "salvará" a fotografia e o cinema, ao real- relação à necessidade de recorrer às mídias digitais:
çar a especificidade do medium. Nos anos 1920, ele se preocupa
com o destino da memória do social pego pelas armadilhas da nova Gravamos em fitas, filmamos em bobinas. Nossa memória caía em
cultura da distração. Entre o potencial utópico do medium "cinema" caixas, desdobrava-se no chão, era captada por projetores. O som era es-
e sua recuperação imediata no consumo e no culto, a experiência tridente e, com o tempo, sempre mais impreciso. Hoje em dia, a tecnolo-
que irrompe no presente é uma grande aventura. gia digital, que não usa significantes de nosso processo mental natural,
está apagando a imagem gravada da experiência registrada e da função da
memória. Steenbeckett é uma produção construída com milhares de
efeitos naturais, herança da tecnologia analógica".
Nostalgias das mídias obsoletas

A exposição Hors d'usage, de Atom Egoyan 24 Arorn Egoyan, citado no catálogo da exposição Hors d'usage que foi realizada no Museu
de Arte Contemporânea de Montreal, de 19 a 20 de outubro de 2002. Catálogo apresentado
por Louise Isrnert, com a colaboração de Michael Tarantino. Steenbeckerr faz alusão a
Atorn Egoyan é um errante. Nascido no Egito, seus pais são arrnê-
uma instalação de Arom Egoyan que insere na peça La Derniêre Bande, de Beckett, pas-
nios, e ele é naturalizado canadense. Em seus filmes, essa errância, sagens de sua própria adaptação. Trata-se de uma ode ao passado do cinema, produzida
esse entredois, permite a ele constituir para si identidades alterna- para um museu abandonado, O antigo Museum ofMankind, de Londres, em um depósito,

tivas, graças às múltiplas mídias às quais recorre. Ele não é mais que convém perfeitamente para essa instalação de armazenagem de lembranças abando-
nadas. Ele foi convidado para filmar La Demiêre Bonde, de Beckctt. Para isso, utiliza uma
da Armênia, mesmo que suas origens o fascinem, também não é câmera 35 mm e uma mesa de montagem Steenbeck (daí a palavra-valise Steenbeckert),
totalmente de Toronto, onde vive há muito tempo. Na realidade, o que permite a ele contornar o sistema digital de pós-sincronização. "Essa é a última
ele não é de nenhum lugar. bobina desse fume - um plano-sequência de 20 minutos - que servirá em seguida para

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Continuando a busca por mecanismos de construção da me- Nostalgia das marcas deixadas. Hoje, não se trata mais de um
mória e efeitos técnicos de registro sobre a memória, Atorn Egoyan deslocamento da matéria, do óxido como na fita magnética, da
fez um apelo aos moradores de Montreal para que eles reunissem prata como na película fotográfica, do grafite como faz o lápis no
antigos gravadores em uso nos anos 1950 e 1960, a fim de criar uma papel. A matéria digital codificada, hoje, é abstrata.
instalação que seria, conforme suas palavras, "um mausoléu come-
morativo da tecnologia dos gravadores de bobina" Ele recebeu As imagens e 'o tempo que sefoi com elas"
muitas respostas. Era preciso tirar aqueles velhos gravadores dos
armários e sótãos, lembrar-se da última vez em que eles haviam Dominique Paíni lembra que, para Jean-Luc Godard, assim
sido utilizados e levá-l os para contar sua própria história, a da como para Atom Egoyan, algo de físico, de gestual reside no pro-
última utilização. Na instalação, as pessoas que atenderam ao cesso cinematográfico:
chamado de Atorn são filmadas contando sua história. A experiência
procura liberar a associação entre os gestos e a recordação, pelo o cineasta - Eisenstein, Chaplin, Godard - representado na película
ressurgimento do vivido, da experiência. O resultado é um mural sem instrumentos, examinando os foto gramas na transparência, não é a
de rostos, de velhas máquinas e de lembranças. O que impressionou versão cinematográfica de uma postura melancólica decorrente dessa ir-
Atorn Egoyan é a relação corporal, física, que as pessoas estabelecem redutível ausência de vestígios da manipulação da obra fílmica acabadar'",
com seu gravador. Ele faz referência ao momento em que uma das
participantes se abraçou com seu gravador: Muitos são aqueles que só acreditam nos antigos suportes e
modos de transmissão, diferentemente de Godard, que compreen-
Maior do que esse gesto particular é a conclusão de que esses aparelhos deu, rapidamente, a importância do vídeo. Em face da digitaliza-
têm caráter, algo que dá a eles "personalidade". Encontra-se nesses grava- ção, da restauração de filmes antigos que se deterioram, com fre-
dores um senso de proporção, uma determinada assimetria que evoca algo quência, encontramos uma atitude fetichista. Paini se refere a uma
de corporal. São prolongamentos de nosso corpo que têm sua personali- experiência de junho de 2000, quando aconteceu o congresso da
dade própria. Veja o pequeno "Sony" que trouxemos aqui naquela manhã. Federação Internacional de Arquivos do Filme. Nessa ocasião,
Você se lembra como ele era bonito. E também os Philips, muito redondos houve a projeção de um curta-metragem de Jean Arroy, realizado
e fáceis de usar, que nos convidam a tocá-Ias. Todos eles parecem muito em 1930, e que foi restaurado pela Cinemateca Francesa. O curta-
"corporais". Há alguma coisa de tocante nas propriedades físicas do ins- -metragem tinha, basicamente, uma única imagem, constituída
trumento e na fragilidade desses dispositivos que registram nossa memó- de duas películas. Em um projetor, um antigo filme positivo
ria; há, também, algo de tátil na maneira pela qual preparamos os grava- conservado em nitrato, e em outro, uma nova cópia em acetato.
dores ... e pela qual apagamos a fita acidentalmente+'. Os arquivistas que viram a projeção eram, com efeito, incapazes
de identificar qualquer diferença entre os dois materiais, embora
apostassem mais no nitrato do que no "valor da antiguidade" do

criar um labirinto de sons, de imagens e de lembranças na instalação Steenbeckett. Cerca


de dois mil metros de película saem da Steenbeck, para aí retomarem depois de ter sido
projetadas na sala".(Catálogo, p. 24). 26 D. Paini. Le temps exposé. Le cinema et Ia salle de musée. Paris, Cahiers du cinérna, "Essaís',
25 Atorn Egoyan, em entrevista com Louise Ismert, catálogo da exposição Hors d'usage ..., P: 11. 2002, p. 95.

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filme. Dominique Paíni, questionando-se sobre as razões dessa pre- -se à decupagem em capítulos, colocando em evidência as unida-
ferência, concluiu que, na realidade, "o nitrato não está na película; des narrativas.
ele está no olhar". Isso em razão do fetichismo que se vincula a uma
matéria pelicular ultrapassada, a uma "nostalgia de ruínas", a uma Contudo, o cinema moderno, o mais conceitual, aquele que, a partir
recusa à substituição de suportes. Ora, essa substituição sempre de diversas formas, de Godard e Rivette até as escolas asiáticas encarnadas
aconteceu. A arte se constitui tanto de memória quanto de esque- por Hou Hsio Hsien e Wong Kar-Wai:e sua fluida discursividade fílmica,
cimento. Mas a "pulsâo de morte", que consiste em abolir o tempo, não suportará, sem traição grave nem arbitrária torção estética, a sumari-
atua, hoje, em toda parte. Reviver o que pertence ao passado, não zação digital e a separação sequenciaf".
aceitar que o tempo esteja "preso nas imagens" contribui para um
movimento de patrimonialização que poderia bem ser o princípio Não somente os suportes de transmissão são afetados, mas
ideológico que governa o memorial atualmente. também a atividade restauradora. Quando se busca "limpar" um
Todavia, há muito tempo, um novo público e uma nova cine- filme com recursos da mais alta tecnologia, a que se visa? É neces-
filia se configuram. Primeiro com o videocassete e o magnetoscó- sário eliminar os traços do tempo, quer dizer, os traços da passagem
pio. Não estamos mais no cinema, submetidos aos fluxos luminosos do tempo sobre a película? Quando se restaura um quadro, as
do projetor, mas em casa, em um espaço privado. É o espectador manchas escuras de algumas telas conservadas nas igrejas que re-
que domina o filme, ainda que não se encontre no domínio da sultam da fumaça das velas que se acumularam e estão depositadas
interatividade. Podemos, a bel-prazer, parar a imagem, acelerar ou ao longo dos séculos devem ser limpas? O que fazer com os "de-
reduzir a velocidade do filme, rebobiná-lo e recorneçá-lo quantas pósitos da memória"?
vezes quisermos. Prático, fácil de utilizar, de pequenas proporções Dominique Paíni menciona dois exemplos para mostrar a
se comparado com as fitas aprisionadas em suas enormes caixas dimensão da problemática. As imagens cronofotográficas de
redondas reservadas para uso exclusivo do projecionista, o videocas- Etienne Jules Marey são do tempo registrado voluntariamente.
sete conquistou um público imenso. Logo em seguida, um novo Hoje, quando as restauramos, lidamos com dois tipos de tempo-
suporte chegou: o DVD, o disco de vídeo digital. Uma nova tran- ralidade. O tempo registrado que Marey filmou voluntariamente,
sição ainda mais abstrata, porque a fita cassete tinha a aparência e um outro tempo que se marca na película, "encarnado pelas vi-
de uma película de filme. Daí em diante, lidamos com um disco brações luminosas que interferem nos contornos dos objetos e dos
que permite um outro modo de leitura e de utilização. O especta- corpos, registrado involuntariamente no movimento das folhas
dor é todo-poderoso em seu modo de leitura, que pode ser hiper- abaixo da tela ou do cenário, perceptível de maneira ínfima, na
textual e hipermídia: informações liberadas com o filme (biogra- sombra do relevo dos objetos que vibra confrontada com o recurso
fia do diretor, filmografia, contexto artístico, histórico etc.), lurninoso'V.
utilização completamente deslinearizada do filme (podem-se Um caso de restauração catastrófica: a gravação sonora do
realçar os detalhes, aurnentá-los, opô-los a outros detalhes, escolher Crime de Monsieur Lange de Renoir foi "limpa'. É possível ouvir
as sequências a que se quer assistir, justapô-Ias a outras sequências). melhor os diálogos do que anteriormente no original. Mas, do
O filme é desestruturado e não tem mais nada a ver com a estrutura
narrativa desejada pelo diretor. É outro. Isso pode convir, perfei-
27 Idem. p. 42.
tamente, aos filmes clássicos, pois a desarticulação pode assemelhar- 28 Idem. p. 93.

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ponto de vista da matéria sonora e de sua dimensão, é uma terrível Mas eu não sou tudo isso de uma só vez, porque eu não apago
perda, pois perderam a desordem sonora característica de uma essa dimensão da memória, os vestígios e os depósitos do tempo,
época e sua voz. Os personagens principais aparecem em destaque a inscrição de gestos memoriais que talvez sejam obsoletos hoje,
como se não houvesse sonoridade suficiente. O autor dessa aná- mas sem os quais eu não posso me identificar na cultura. Como
lise afirma ainda: "Se um caso semelhante de limpeza ocorresse no caso dos museus do Holocausto que procuram se renovar e que
em outro filme de Renoir, como La nuit du carrefour, a relação visam eliminar os museus mais antigos, ou um estado da museo-
entre a obscuridade visual e sonora, essencial para o tema do filme, logia "ultrapassada", podendo assim se transformar em material
teria sido destruída, partes da encenação proposta por Renoir te- amnésico de um momento que eles querem imobilizar. Os mate-
riam sido traídas e apagadas'?". riais fílmicos, entre outros, devem poder, em sua renovação,
Portanto, não é fácil saber qual a melhor postura em relação à guardar vestígios da passagem do tempo, da decomposição e das
"restauração", em relação aos novos suportes e às novas formas de recomposições dos gestos memoriais.
difusão, de transmissão. Por um lado, é preciso reconhecer esse
movimento contínuo da técnica e não se ancorar na nostalgia
conservadora; por outro, é preciso ficar atento diante do entusiasmo Notas
intempestivo e da euforia de alguns restauradores.
Na verdade, tudo se processa em uma grande heterogeneidade F. Kafka. O castelo. São Paulo, Abril Cultural, 1985. [N. da T.]
ii M. Proust. O caminho de Guermantes - Em busca do tempo perdido, vol. 3. Trad. Mário
temporal. Existem, ainda, aqueles que utilizam os antigos gravado-
Quintana. Porto Alegre, Globo, 2000. [N. da T.]
res, que são fiéis às máquinas de escrever IBM, os adeptos do video- iii Termo que, no contexto literário, mais especificamente em relação a Proust, refere-se aos
cassete, os fanáticos pelo DVD e pelas câmeras digitais. Ocorre que, pequenos pedaços de papéis, nos quais o autor fazia anotações e acréscimos, depois os
em um dado momento, não é mais possível encontrar as peças de dobrava e os colava em seus manuscritos em processo de revisão. [N. da T.]
iv W. Benjamin. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre, L&PM,
reposição; o material torna-se obsoleto ou, no caso dos antigos
2014. [N. da T.]
softwares, eles já não podem mais ser programados, os novos com- v Idem. O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e
putadores não os aceitam mais ou não podem decodíficá-los. política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994,pp. 197-221.
Resta uma memória: [N.da T.]
vi Idem. "Sobre alguns temas em Baudelaire". Charles Baudelaire, um lirico no auge do capi-
talismo. Obras escolhidas llI. Trad. José Cados Martins Barbosa & Hemerson Alves
Trata-se de uma estratificação de memórias e de associações narrativas Baptista. São Paulo, Brasiliense, 1995. [N. da T.]
e de lendas incessantemente reativáveis, o repertório laminado dos supor-
tes e dos símbolos de todas as épocas anteriores. Eu sou papiro, pergami-
nho, papel e tela de computador. Eu sou o Decálogo, François Villon,
Lênin e Macintosh. Eu sou pictograma e alfabeto, texto e hipertexto,
manuscrito, página impressa e tela incandescenreê'',

29 Ibidem.
30 R. Debray. Manifestes médiologiques. Paris, Gallimard, 1994,P: 28.

388 389
2

o império da memória morta

Em uma narrativa datada do início da Segunda Guerra Mundial,


Adolfo Bioy Casares' não tinha como antecipar as imagens de
síntese, nem mesmo os hologramas, mas imaginou dispositivos
que imitariam alucinação, "aparições" espectrais que, sem terem
se tornado comuns, estão, 60 anos depois, prontas para o consumo.
Um andarilho, procurado pela polícia, fica preso em uma ilha
deserta do Hemisfério Sul atormentada pelos ventos, imprópria
para qualquer ser vivo. Às vezes mal consegue encontrar o que
comer e, de repente, é despertado pelo som de um fonógrafo. Ele
descobre na ilha uma espécie de palácio em ruínas, um "museu", e
vê visitantes no alto da colina com roupas que já não se usam mais.
O narrador se pergunta se se trata de seres reais ou de alucinações.
Intrigado, ele vai explorar o "museu".Lá, encontra túneis e estranhas
máquinas que ele não sabe para que servem. Posteriormente, as
aparições ressurgem, dentre elas a de uma mulher que ele procura
reencontrar. Ela retoma todas as noites no mesmo lugar. Às vezes,
as aparições são muitas, elas saem do fonógrafo e passam seu tempo
conversando sem vê-lo. Ele fica muito intrigado com o compor-
tamento dessa mulher pela qual ele se apaixona e que finge cruel-
mente ignorá-Io, mesmo quando ele atravessa seu caminho. Ela
parece afeiçoada à presença de um outro turista do museu, um
barbudo.

391
~

RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

o narrador faz uma primeira descoberta que o perturba. As ele cria resultam da consciência. A máquina não reproduz sua alma
cenas de aparições parecem reproduzir cenas anteriores. Suas original, mas confere a ela uma outra alma. O eterno retorno
palavras, seus movimentos são os mesmos que ele viu oito dias vislumbrado no início pelo narrador existe realmente. Trata-se de
antes. Ele fica à espreita. Vê 15 pessoas à mesa em torno de Morel, uma "eternidade por repetição". Morel confirma isso:
que era o companheiro de Faustine, a mulher pela qual ele se
apaixonou. Eles falam da imortalidade, de fantasmas. Em um Eu me encontro na presença de pessoasreconstruídas, que desapare-
determinado momento, ele acredita ter ficado louco. Em seguida, ceriamseeu desligasseo aparelhode projeção;elassóviviamos momentos
ouve uma conversa que pouco a pouco lhe dá as pistas para suas do passado enquanto a cena era reprisada até o fim, elas retomariam ao
descobertas. Morel confessa um primeiro crime: "Meu delito início, como se se tratasse de um disco ou de um filme que, ao chegar
consiste em tê-Ia fotografado sem autorização'". ao final, recomeçaindefinidamenre',
Isso começa como uma infração ética e jurídica. Mas o relato
de Morel parece misturar surpresas de outra ordem: Morel chamou de "museu" o edifício no qual eles se encontram,
porque ele tinha, primeiramente, previsto compor grandes álbuns
Eu devo lhe dizer, pois, que não se trata de uma fotografia como as nas paredes como em um museu. Trata-se de inventar um sistema
outras; trata-se de minha última invenção; estaremosvivos,nessa foto- para reconstituir a presença dos mortos, pois as cópias "sobrevivem
grafiapara sempre. Imagine uma cena na qual seria representada toda a incorruptíveis" Os convidados compreendem pouco a pouco que
nossa vida durante sete dias. Nós é que atuamos. Todos os nossos atos essa "reprodução" acontece arriscando sua vida, que seu destino é
foram registrados/. semelhante ao destino de Charles, que, capturado pela máquina,
nela está morto. O narrador, louco de desespero, voltará a entrar
Esse começo seduz muito o público, apesar da referência a uma no mecanismo para tentar decifrar o segredo. Seu testamento
experiência anterior, que colocava em cena um certo Charles, o é dirigido a um homem do futuro, àquele que saberá inventar
qual as pessoas demonstram conhecer, e apesar da evocação de sua uma máquina "capaz de reunir as presenças desagregadas" a fim
morte que se seguiu logo após essa fotografia de um gênero novo. de que ele possa enfim entrar na consciência de Faustine. Isso será,
Trata-se de remediar as ausências. Morel explica que, com seus sem dúvida, o destino das imagens de síntese, novos simulacros
aparelhos, ele pode "reconstituir" uma pessoa completamente. ainda mais perfeitos. Mas quem, então, terá ainda necessidade
Nem uma única testemunha admitirá que aqui se trata simples- de memória?
mente de imagens. Assiste-se a um perfeito simulacro em três di-
mensões. Essa máquina capta, registra e projeta as imagens.
"Eu teria composto dessa maneira um álbum de presenças As catástrofes anunciadas
muito nítidas e duradouras, que seria um legado de momentos
para outros momentos, agradável para filhos, amigos e gerações As metáforas utilizadas para designar a capacidade de armazena-
que teriam outros costumes", continua MoreI. Os simulacros que rnento e de processamento de texto, de aplicação da informação
de novas tecnologias informáticas fazem todas referência à me-
A. B. Casares. L'inuention de Morel. Paris, 10/18, 1973, p. 77.
2
Idem, pp. 77-78. Idem. p. 83.

392 393
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

mória: ROM (Read OnlyMemory) eRAM (RandonAcessMemory); que esqueceríamos o tempo todo de "proteger" e em que tudo
em francês, memória morta e memória viva. precisaria ser recomeçado, sempre. Diante das tecnologias infor-
A memória morta é a que permite guardar a informação, ar- máticas, o desafio consiste em obter o máximo de informações
mazená-Ia, conservá-Ia. Ela não é destrutível, grava de maneira sem, no entanto, impedir a maleabilidade, a capacidade criativa
permanente. É estática e tem como finalidade fazer funcionar os de sua aplicação.
sistemas de operação. É fixada em microplaquetas de silício, ou Para pensar sobre dois tipos de memória, Jacques Roubaud
em discos óticos. Como observaJean-Pierre Balpe, ela ultrapassa apresenta dois exemplos. Trata-se de dois pacientes do neurologista
o domínio da informática. Os museus, bibliotecas, arquivos, regis- soviético Alexandre Romanovitch Louria - menos conhecido que
tros e, ainda, os ficheiros, quaisquer anotações feitas por um indi- Funes de Borges - que concordam plenamente com sua demons-
víduo são inscrições, suportes de informação. São elementos da tração da existência de uma memória de armazenamento de in-
memória morta, puras potencialidades. Não se sabe se alguém vai formação - que Cherechevski apresenta com excesso, como nós
utilizá-Ias um dia, mas sua conservação está (pelo menos na teoria) veremos - e uma memória de controle que dá sentido, que permite
assegurada. É para esse fim que o arquivamento funciona. Veremos o pensamento reflexivo - o que Zazetski, o homem com a "me-
que inúmeros artistas contemporâneos são fascinados por esses mória fracassada", perdeu. Ele precisa recomeçar a se lembrar
arquivos sem a real possibilidade de acesso, gavetas cheias de ar- continuamente, tão grande é sua amnésia, com a imagem de dados
quivos que ninguém abre, bibliotecas das quais se perdeu o catálogo, que estariam escritos na tela graças a um soflware de processamento
bibliotecas ao estilo de Borges, estantes sem indexação etc, de texto, mas que não poderia "ser salva".
A memória viva, ao contrário, é uma memória de curto prazo. Cherechevski foi consultar Louria. Esse jornalista podia reter
Trata-se de circuitos nos quais as informações são armazenadas, tudo. Ele memorizava listas de palavras, de números, de tabelas.
embora unicamente enquanto são tratadas através do processamento Sua capacidade de memória não tinha limites. Louria, impressio-
de texto ou de outro programa adequado. Essa memória é da ordem nado, prolongou a experiência e quis medir não apenas o caráter
do efêmero. Ela é flexível, modificável, volátil, condenada ao esque- ilimitado dessa memória, mas também a estabilidade de seus
cimento parcial, às transformações, às lacunas. Desaparece logo traços memoriais. Mais uma vez, Louria pôde se dar conta de que
que o computador é desligado, exceto se foi gravada em outro ele não tinha limites para seu poder de conservação idêntica de
suporte, em uma memória auxiliar como o disco rígido, o disque te recordação, sem nenhuma alteração. A experiência se prolongou
ou o CD. Ela acolhe continuamente informações novas. É uma por mais de 30 anos. Dez anos depois da restituição de uma lista
memória dinâmica, aberta. Atualiza e reatualiza constantemente de palavras, Louria podia pedir a seu paciente para lhe repetir na
as informações que o espaço da memória morta fornece a ela. ordem o que ele tinha elaborado num dado dia. A resposta de
Certamente, precisamos sempre das duas memórias, sendo que Cherechevski era sempre exata. Além disso, ele era capaz de citar
esses dois modos de abordagem não se opõem. A memória morta, suas listas, seus fragmentos, de modo palíndromo, na ordem ou
para ser útil, deve poder ser utilizada, reativada, constantemente invertidos.
executada. É fácil imaginar uma biblioteca totalmente inutilizável, Louria descobre os processos mnemotécnicos de seu paciente:
arquivos inacessíveis, embora numerosos. Ao contrário, uma me-
mória viva sem o suporte da memória morta seria como a utili- Ele distribuía suas imagens ao longo de uma rua que se representava
zação de um computador muito produtivo, muito estimulante, visualmente em sua mente. Às vezes, era uma rua de sua cidade natal, sua

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

casa e o pátio no qual ele brincava quando criança ... Senão ele escolhia deira máquina de armazenar dados, não conseguia se libertar de
uma rua de Moscou. Ele começava a andar mentalmente na Rua Gorki, nada. Não pensava. Lembramos que Funes, o herói do romance
por exemplo, começando pela Praça Maiakovski, e avançava lentamente, de Jorge Luis Borges", tinha aprendido, sem esforço, inglês, fran-
"fixando" uma a uma suas imagens às paredes da casa, portões, vitrines cês, português e latim. Ele vê todas as fendas do chão, mas, afirma
de loja", o narrador: "Suspeito, contudo, que ele não seja muito capaz de
pensar. Pensar é esquecer diferenças, generalizar, abstrair. No
Ele podia cometer também alguns erros. Depois de dez anos, mundo abarrotado de Funes, não havia senão detalhes, quase
de uma longa série de palavras, ele esquece a palavra "lápis". Quando imediatos'".
Louria o faz observar esse esquecimento, ele reflete um momento, O segundo paciente de Louria é o subtenente Zazetski, grave-
repercorrendo em sua mente, mais lentamente, o curso mnemônico, mente ferido em 1943 por uma bala na cabeça. Sua vida tinha
e diz a ele: "Eu tinha colocado essa imagem do lápis perto de uma mudado. Ele não conseguia mais captar o contorno dos objetos,
cerca, você se lembra, aquela que estava embaixo da Rua Gorki, e não conseguia perceber nenhuma imagem estável. No início, ele
que, naquele momento, estava sendo refeita. Mas ela estava um queria recuperar sua memória, reencontrar sua identidade, voltar
pouco na sombra e se confundia com uma das estacas, e, quando a ser como era antes da lesão. Mais tarde, compreendeu que isso
eu voltei, não a Vi"5. seria impossível. Começou então a escrever a história de sua luta
Assim, Cherechevski retinha o que lhe passava pela visão, pela contra o aniquilamento. Escrever, sem poder se ler verdadeiramente.
imagem. Ele via, literalmente, as palavras, as sílabas à maneira de Louria relata essa imensa aventura:
Rimbaud: "A vogal A é branca e longa, o 'i longo' está sempre em
movimento como uma flecha, o 'i curto' é imóvel e pontudo, o 'iou' Eu tinha diante de mim, escreve ele, em 1972, uma pilha de blocos de
é ainda mais pontudo, e o 'ia' é tão grande que quase se pode rolar anotações; dentre eles, alguns antigos, com escrita envelhecida, em papel
sobre ele'". ruim dos anos da guerra, outros datados de um passado recente. Há mais
Essa espacialidade da memória, essa memória-percurso parece ou menos três mil páginas de escritura nesses blocos. Eles representam os
se confundir com as "artes da memória", com o teatro da memória, esforços de descrição, de uma luta de 2S anos",
tal como, desde Cícero até o século XVII, se cultivava. Chere-
chevski, sobrecarregado por tudo o que era obrigado a memorizar, Em busca de uma memória destruída, quase perdida. Se Zazetski
torturado por sua memória, procurava esquecer. Ele fazia listas esqueceu tudo, sua reflexividade permaneceu com ele. Ele sabe
de palavras para esquecer, depois escrevia em pedacinhos de pa- sempre que ele é. Ele sabe que não sabe mais. Ele não tenta restituir
pel as palavras das quais queria se desfazer. Tempo perdido! Ele esse passado enterrado, mas contar o que está fazendo, sua luta
decide, enfim, queimar esses papéis. Cherechevski era uma verda- contra o nada. Simétrica à memória brilhante e perfeita de Che-
rechevski está a de Zazetski, que luta por uma busca de sentido,
mesmo que não possa funcionar a não ser a partir de fragmentos.
4
J. Roubaud. L'inuention du fils de Leoprepes. Poésie et mémoire. Saulxures, Circé, 1993.p.
40. Jacques Roubaud refere-se. nessa obra. a A. Louria, autor de L'bomme dont le monde
7
uolait en éclats. Paris. Le Seuil, 1995.Acompanhamos aqui seu texto de perto. J. L. Borges. "Funes ou Ia rnémoire". CEuvres completes. I. Paris. Gallimard, La Pléíade,
5
Idem. p. 40. 1993.p. 517.
6 J. Roubaud. L'invention du fils de Leoprepes ...• p. 80.
Idem.p.43.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

Recentemente, contamos a história verídica de um homem que e de informação adentram nosso imaginário ou o que resta dele.
tinha sofrido de amnésia depois de um grave acidente de trânsito. Um verdadeiro desastre paira sobre nossas cabeças. Tentemos
Ele não se lembrava nem de seu passado, nem de sua família, de identificar, sumariamente, os elementos dessa catástrofe anunciada.
nada. Ele utilizou o computador e imitou a estrutura do Windows
e da Microsoft, criando pastas e subpastas. Uma pasta para sua A imaterialidade do suporte
infância, composta por documentos e fotos digitalizados doados
por suas irmãs e seus irmãos; uma pasta para os documentos pes- Nossa vida em tela, na internet, mergulha-nos na imaterialidade
soais; outra para as histórias que ele recolheu etc. Ele conseguiu, do suporte. Móvel, transitório, efêmero, inapreensível, mundo do
dizem-nos, e isso me entusiasma, escrever dessa forma sua auto- fluxo, fluido, que se esvai rapidamente. Quantos sites perdidos
biografia, sem memória, graças à estrutura dos arquivos, passando logo que concebidos, presentes apenas na aparência ... Contamos
de uma pasta para outra, por contiguidade ou associação. Isso se que 70% das páginas na web têm vida útil inferior a quatro meses.
parece um pouco com a estrutura do hipertexto autobiográfico Quantas páginas pessoais apagadas, quantos sites em nossa lista de
que pretendo escrever, exceto pelo fato de que minha pesquisa "favoritos" que, por uma falha inesperada, por uma manobra errada,
será um pouco mais complexa, porque as derivações serão múlti- são eliminados ... Se não imprimimos constantemente tudo (ato
plas: contexto histórico, documentos sonoros da época e, também, que seria a negação do próprio medium), as informações se perdem
intertexto literário, associações simulando o inconsciente etc. no deserto. Imenso espaço, vertigem do infinito onde tudo acaba
Para além dos casos patológicos, essas duas memórias estão por se perder, esquecer, inexistir, confrontado com milhões de
sempre intrincadas. Todavia, a primeira não assinalaria o arrnaze- sites existentes em 2001.
namento, o depósito, sem aplicação, sem um possível trabalho de Em 2000, a Biblioteca do Congresso, em Washington, continha
desenvolvimento, enquanto a segunda representaria um jogo de 20 milhões de livros, ou seja, o equivalente a 20 terabytes (20x1012
relações, conexões, associações, sem possibilidade de registro? A bytes), 13 milhões de fotos, 4 milhões de mapas, 550 mil filmes e
primeira não estaria na ordem da memória voluntária, aquela que 3,5 milhões documentos sonoros, o que representa 3 petabytes
Walter Benjamin estigmatiza, aquela que Baudelaire diz permitir (3x101S bytes). É enorme, mas menos do que o conjunto da me-
manter na lembrança o que está destinado ao esquecimento, mas mória eletrônica hoje. Em última análise, poderíamos digitalizar
sem permitir o trabalho de interpelação, sem o poder da imagi- e armazenar "tudo", mas é aí que os problemas começam, pois essa
nação? Uma memória artificial, destinada à duplicação, à repro- gigantesca memória é frágil e perecível. Em 1996, existiam 400 mil
dutíbilídade e à instrumentalização. A segunda, mais frágil, a sites na web, constituindo um volume de 1,5 terabyte. Em março
exemplo da memória involuntária, não chegaria mais a estocar o de 2000, o volume atingiu 13,8 TB, um crescimento monstruoso.
que quer que seja, talvez porque nossos novos suportes exijam Mas se perguntarmos, com Brewster Kahle, quanto tempo um
softwares sofisticados, embora binários, discretos, sem nuança, documento fica disponível, acessível na web, responderemos com
talvez sem memória verdadeira. ele: 75 dias. Eles não são arquivados e desaparecem no "nirvana"
Além disso, já se repetiu o suficiente, vivemos em um mundo da tela. Brewster Kahle e sua equipe da Internet Archive tiram
sem referências, sem estabilidade, sem orientação. Fim da história, fotos para visualizar o conjunto da web, paralisando-o em momento
fim do sentido, fim das utopias, da vetorização da história. O específico, a fim de saber em que ele consiste. A operação repetida
todo-mídia, a informática, os fluxos da sociedade da comunicação várias vezes permite fazer comparações, dá uma ideia do que ficou

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e do que desapareceu. É assim que se pode estudar até que ponto o eterno presente
a web é, de fato, uma gigantesca fábrica de desaparecimento e de
esquecimento de inúmeras criações efêmeras, impossíveis de fixar. Estaríamos imersos em um eterno presente. Uma nova lógica
Supondo que cheguemos a arquivar a web, o "cybraire"iii respon- do instante eliminaria do nosso horizonte o passado e o futuro, a
sável por sua preservação, encarregado de duplicar os sites e docu- espessura e a historicidade: logo, a memória.
mentos em dísquetes, fitas, DVD etc., saberia que sua vida útil vai Vivemos sob o domínio do imediato, do efêmero, do instante,
de 30 a 100 anos, e que ele precisaria, permanentemente, duplicá- do dique, do salto, da ubiquidade, sob o domínio do tempo real em
-los em novos suportes, para evitar problemas decorrentes da rápida que o que está se efetuando e sua representação se confundem, sem
obsolescência das máquinas, incapazes de decodificá-los. Os ar- falha, sem distorção temporal, em um eterno presente que, como
quivos digitais, para sobreviverem, não devem apenas ser conser- tal, tem a tendência a ignorar o passado, a anterioridade, e a não se
vados e reproduzidos, mas devem ser utilizados constantemente, preocupar com o futuro como uma reiteração do presente. Muitos
interpretados; ao contrário, como afirma Martin Warnke, tornam- críticos do virtual têm descrito, exaustivamente, esse fenômeno
-se "mausoléus que não contêm mais nada de útil, nos quais as sem relacioná-lo, contudo, com a história ou com a memória.
portas devem ser mantidas fechadas porque o seu conteúdo su- A memória se produz em uma velocidade semelhante à da luz.
cumbiu à lei de Moore [...]: a entropia, a informação perdida com Não se pode mais, por isso, distinguir um acontecimento de sua
a poeira que a recobre, o esquecirnenro'". apreensão, nem mesmo essa apreensão da recepção universal. Os
Estamos no mundo do salto contínuo, que dificulta a identi- três momentos acabam coincidindo. Não há mais tempo, mais
ficação de uma deambulação. A navegação é a metáfora generali- distância entre eles. O presente, o instante, significa tanto pelo
zada, utilizada para significar nossos passos, nosso percurso na acontecimento que se produz, sua apreensão, quanto por sua re-
internet, no ciberespaço. Mas a navegação é realmente a deambu- cepção. O acontecimento, desse modo, não tem nem mesmo tempo
lação? Seria necessário, antes, anotar e saber, para cada "dique", o para se converter em "passado".
itinerário que foi percorrido. Não são os mortais comuns que Estaríamos deslizando, ao menos desde 1989 - mas na realidade
recorrem a esses softwares, mesmo que eles estejam disponíveis. há muito mais tempo -, do regime da historicidade da modernidade
Aceitamos esse dado, o de privilegiar a descontinuidade, o choque, ao da pós-rnodernidade, ou em um presente contínuo, que oculta
o incoerente do encontro, a lógica associativa em detrimento da a espessura da historicidade.
lógica argumentativa, do marcador, da referência, no lugar da li- Reinhart Koselleck é quem introduziu essa semântica do tempo
gação causal. Tudo isso tem consequências para o pensamento, histórico'", A concepção, a visão de mundo e de tempo se constrói
ainda que muitos filósofos e pensadores tenham passado seu tempo, em função de dois parâmetros fundamentais: o campo da expe-
ao longo do século XIX, criticando a lógica causal, linear, desfa- riência, o campo do vivido, e o horizonte de expectativa, de es-
zendo a lógica metonímica, hipostática, para defender a associação peranças, dos contemporâneos. Reinhart Koselleck distingue três
das idéias, a parataxe, a metáfora. configurações que cadenciaram as sociedades ocidentais. As so-

10 R. Koselleck. Le fotur passé. Contribution a Ia sémantiqque des temps historiques. Paris,


9 Éditions de I'EHESS, 1990. Ver, também, do mesmo autor, Lexpérience de l'histoire. Paris,
M. Warnke. "Digital Archíves" Interarchive. Colônia, Verlag der Buchhandlung Walthet
Kõnig, 2002, p. 535. Gallimard/Le Seuil, 1997.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

ciedades tradicionais agrícolas viam o retorno cíclico dos trabalhos nicar-rne com qualquer pessoa na superfície da terra. Mais dia,
e dos dias. O horizonte de expectativa é, por sua vez, o retorno do mais noite, mais espaço, mais tempo, um ciberespaço abstrato no
mesmo, a imitação e a reiteração do gesto e do pensamento dos qual reina uma atemporalidade que se pode chamar de eterno
ancestrais, e, sobre o plano religioso, no quadro do cristianismo, presente. Sociedade da comunicação e da informação, porque a
a expectativa de uma vida feliz em outro mundo. Essa tensão entre qualquer momento, graças aos múltiplos bancos de dados que
o aqui na terra e o além, que não envolvem a mesma temporalidade, estão à minha disposição, eu posso dispor de uma gigantesca
explodirá e dará origem ao regime da modernidade, com sua con- quantidade de informação sobre qualquer assunto.
cepção de mundo linear, dividido entre o progresso e uma parúsia Na medida em que esse considerável avanço tecnológico per-
puramente terrestre. O tempo torna-se irreversível, e a história, mitiu a deriva de fantasias de juventude eterna, corpos perfeitos,
segundo a expressão de Napoleão, um destino. Tempo de revolu- domínio sobre o próprio corpo, clonagem etc., o "presentismo"
ções, de utopias políticas, mas tempos agitados com as formas de faz parte ele mesmo dessa maquinaria de fantasias. Mas teria sido
resistência tais como elas se encontram nesses períodos incertos, necessário encontrar um outro termo para esse regime da histori-
nos quais as referências antigas estão em fase de renovação. As cidade se um outro fenômeno não se conjugasse com os primeiros
crispações românticas, as aspirações de um retorno ao passado, ao referidos aqui. Trata-se da dissolução, ou mesmo da fragilização
paraíso perdido são essas. O paradigma da modernidade, esse re- das visões do passado, das grandes narrativas, dos mitos fundado-
gime de historicidade que considera articular crença ao progresso, res uníficadores que tinham constituído as bases ideológicas e
revoluções políticas, utopias e revoluções sociais, transformações imaginárias dos Estados-nações desde há alguns séculos e, princi-
científicas e técnicas inéditas, esse tempo do capitalismo triunfante palmente, desde o início do século XIX. É isso que está na origem
e de revoluções socialistas se esgotou em algum lugar dos anos de um investimento como o de Pierre Nora. É possível ressusci-
1970. Se for necessário escolher uma data emblemática, esta é com tarmos a narrativa ao modo de Michelet, repercutido nos manuais
certeza 1989, cuja ênfase deve ser dada à queda do Muro de Berlim de Ernest Lavisse que moldaram a mente dos pequenos franceses
e a tudo o que o acontecimento simboliza. Sobre as ruínas dessa durante tanto tempo? De uma ponta a outra do planeta, essas
modernidade, um outro regime se instala, como tendência, o de grandes narrativas perderam sua eficácia, sua legitimidade foi
um presente eterno. contestada. O todo se fragmentou, pulverizou-se (com bons resí-
Esse "presentisrno" tem início com o cruzamento de três fenô- duos, nem precisa dizer), e dezenas de mininarrativas, de memórias
menos concomitantes, que se conhecem e se reforçam. Por um de grupo lutaram por sua legitimação e seu reconhecimento po-
lado, a aceleração dos intercâmbios comerciais e financeiros, a nova lítico e social. Mais temporalidade nacional homogênea. Finalmente,
fase do capitalismo na qual nos encontramos, sociedade de fluxo nada resistiu ao império do instante, do presente.
e de rede, sociedade da globalização, da mundíalização, na qual a O "tempo real", o tempo industrial foram submersos. Trata-se
velocidade reina soberana. Por outro lado, o reino onipotente da do que Paul Virilio chama de "falso dia":
tela, da internet, da web, do e-mail, do telefone celular, das mais
diversas formas de conexão, o estágio da tela que exige um fluxo A partir do momento em que não abrimos mais somente as janelas,
contínuo, um imediatismo, uma instantaneidade absoluta, que mas, também, a televisão, o dia modificou-se: ao dia solar da astronomia,
elimina a temporalidade e torna o espaço obsoleto. Eu posso a ao dia incerto da luz de velas à luz elétrica se adiciona agora um falso dia
qualquer momento, independentemente do fuso horário, comu- eletrônico [...] Ao tempo que passa da cronologia e da história, sucede

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um tempo que se expõe instantaneamente. Na tela de um terminal, a Fredric Jameson tinha, há alguns anos, em suas análises do
duração transforma-se em "suporte-superfície" de inscrição, literalmente pós-modernismo, previsto esse fim, não da história, mas da histo-
ou mais cinematicamente: o tempo constitui superfície!'. ricidade". Para ele, o período do capitalismo tardio ou pós-moderno
é caracterizado pelo reino da imagem, do simulacro da ausência
Alain Gauthier e Henri- Pierre Jeudy tinham, há alguns anos, de profundidade, portanto pela proeminência da superfície cor-
imaginado um museu de buracos da memória, em que um dos relativa a uma perda de historicidade. Todos os modelos episte-
personagens era vítima do tempo real. No metrô de Paris, câmeras mológicos que opunham de maneira complexa a essência à exis-
de vigilância filmariam, a todo o momento, a multidão entrando tência, o latente ao manifesto, a autenticidade à inautenticidade,
e saindo dos vagões. Essas câmeras instaladas nas plataformas o significante ao significado ruíram. Eles foram substituídos por
permitiriam aos viajantes se ver à medida que fossem filmados. um pensamento e por uma estética da fragmentação, da multipli-
cidade, da intertextualidade, da interatividade, por tudo o que faz
Essa duplicação "em tempo real" dos movimentos do corpo dos usuá- com que uma superfície se comunique com uma outra superfície
rios provocaria efeitos de alucinação, fazendo com que a imagem e o real sem profundidade de campo, sem a real dimensão temporal.
coincidissem. Por exemplo, um citadino veria na tela uma cena de agressão Segundo Guy Debord, estamos na sociedade do intercâmbio
acontecendo; ele veria um indivíduo, segurando uma faca na mão, se generalizado, na qual a imagem passou a ser a forma máxima da
aproximar por detrás de outro e, no último momento, quando a lâmina mercadoria. Novamente, aqui, a imagem modificada do passado.
estivesse prestes a penetrar nas costas desse "desatento", ele perceberia que O que foi no romance histórico a genealogia do mundo burguês
o golpe mortal era direcionado a elel2• e sua experimentação, o projeto coletivo de uma classe,transformou-
-se em coleção de imagens estereotipadas. O passado como referente
Tóquio parece hoje a verdadeira cidade do fluxo, do novo se apagou. Restam textos do passado, textos sobre o passado,
nomadismo, a cidade na qual o real e o virtual se confundem, a imagens do passado e uma fascinação nostálgica, tal como no caso
cidade da flutuaçâo, da desterritorialização permanente. Cidade do cinema retrô na França dos anos 1970 (poderíamos acrescentar
rizoma, labirinto, na qual as camadas temporais se interpenetram; hoje a mania de comemorações e da museificação). Um filme como
a cidade da imagem-fluxo, da imagem "pós-efêrnera" American Graffiti [Loucuras de verão], de George Lucas (1973),
mostra aos Estados Unidos determinada América dos anos 1950.
[...] Tóquio não é a cidade da memória, mas a do futuro. Um futuro que Esse filme joga com múltiplas conotações, não da época que ele
é uma outra memória. Os templos são reconstruídos da mesma forma a supõe retratar, mas, em segundo ou terceiro plano, representações
cada 20 anos e o mesmo arquiteto (Tange) pôde projetar duas vezes na de imagens que dizem respeito a esses anos. O que encontramos
sua vida a imensa prefeitura de Tóquio, sucessivamente destruída e re- na identificação com as imagens não é a época, o passado, mas
construída13. nossa relação imaginária com esse passado, amplificado pelo kitsch
e um certo número de imagens ditas "típicas". O presente é colo-
II P. Virilio. Vitesse et Politique. Paris. Galilée, 1977. p. 136.
nizado pela nostalgia e constituído de remake.
l2 A. Gaurhier & H.-P. Jeudy. "Trou de mérnoire, image virale" Communications, n. 49. "La
mérnoire et Ioublí" .1989. P: 143.
J3 C. B.-Glucksman. Lestbétique du temps ali Japon. Du zen au uirtuel. Paris. Galílée, 2001. 14 EJameson. Postmodernism or the culturallogic oflate capitalismo Durham, Duke Univer-

p.27. sity Press, 1991.

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Um novo espaço sem referências justado maltratado no real, que não se sente verdadeiramente re-
viver a não ser neste mundo "outro", esse terceiro lugar que é a tela
a tempo seria substituído pelo espaço. Mais periodização, e sua interface com o que se passa nela, uma alternativa para todas
demonstração, temporalidade, tudo se tornaria topologia, orga- as identidades convencionais.
nização, superfície sem profundidade. Encontramos o termo caro Mundo da simulação, mundo virtual, da perspectiva de Phi-
a Siegfried Kracauer usado para caracterizar a novidade dessa lippe Quéau. Para o autor, o ciberespaço não é somente uma "nova
modernidade enigmática que ele tentou introduzir. Superfície da América", mas, também, uma nova maneira de ser.
cidade e de seu brilho artificial, superfície de vitrines, superfície A desrealização está em todo lugar,já que tudo é desmaterializado;
de rostos. temos lidado como nunca apenas com uma tela, com universos
A própria noção de lugar, apesar dessa espacialização genera- simulados, com interações instantâneas, mas à distância, interaçôes
lizada, sofreu uma grande modificação. Mais lugar, mais lugar autistas, segundo a forte expressão de Vivian Sobchack'".
antropológico, mas, no sentido de Marc Augé, um imenso não a virtual, temos dito e escrito muito sobre isso, tende a abolir
lugar. Como definir o ciberespaço? o espaço e o tempo. A rede das redes, em seu descentramento,
a termo cyberspace foi lançado por William Gibson em seu oferece, com efeito, infinitas possibilidades que vão todas na di-
romance Neuromancer (1984). Nele, Gibson fala da conexão com reção de uma desrealização, de uma descorporação, ao mesmo
um aparelho que "projetava sua consciência desencarnada no tempo em que aumentam as possibilidades de comunicação, de
centro da alucinação consensual que era a matriz'T'. Ele descreve interação, de informação. Não me referirei aqui a mais do que
assim a viagem que empreende sobre a tela: alguns usos entre os mais importantes. Pensemos em tudo o que
podemos fazer hoje, não excepcionalmente, mas no nosso cotidiano,
Regresso a casa: a Conurb, o Emab, o Eixo Metropolitano Atlanta- em tudo o que modifica a relação de si com outros, e de si consigo
-Boston. [...] Programe um mapa para representar a frequência das trocas mesmo. Desde há muito tempo nós nos falamos à distância graças
de dados, um único pixel por milhares de megabytes em uma tela gigante. ao telefone: não temos diante de nós a pessoa com a qual falamos.
Manhattan e Adanta brilham, com uma luz branca incandescente. Em Habituamo-nos com essa separação entre a presença da voz, a
seguida, começam a pulsar a ponto de o ritmo do trânsito sobrecarregar imedíatez da comunicação e a ausência da pessoa, de seu corpo.
sua simulação. Seu mapa está prestes a se transformar numa supernova. a que nos parece um milagre na conversa telefônica é a imediatez
Acalme-se. Diminua a escala. Cada pixel vale um milhão de megabytes, da comunicação, a abolição do tempo e do espaço. único limite a
começam-se a discernir alguns quarteirões de casas no centro de Manhat- é financeiro, o custo da ligação. Agora podemos enviar fax. Abo-
tan, os contornos das zonas industriais de um século, concernindo o lição das distâncias, sempre, pois é possível enviar uma mensagem
núcleo histórico de Adantal6. curta ou longa para o outro lado do mundo. Neste caso, não se
tem a presença da pessoa para a qual se endereça, nem a presença
aherói de Gibson, Case, sente somente desprezo por seu corpo, de sua voz (comunicação assíncrona). No centro de uma vasta
o qual ele chama de viande e não de cbair". Trata-se de um desa-

17 V. Sobchack. "New Age Murant Ninja Hackers, Reading Mondo 2000". In: Mark Dery
15 w. Gibson. Neuromancien. Paris, J'ai lu, 1998,p. 8. (org.). Flame ~rs. The Discourse ofCyberculture. Durham, Duke Universiry Press, 1994,
16 Idem, p. 53. pp.II-28.

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constelação de comunicações, não podemos jamais nos separarmos outra etc. O correio eletrônico vem juntar-se por acréscimo a todos
dessa rede. Há telefones sem fio que se levam de um cômodo para os telefones com secretária eletrônica, celulares, notebooks, correios
outro da casa, há telefones em carro, e celulares que se podem de voz, bipes de todos os tipos, todos os dispositivos de mensagens
guardar na bolsa, ou mesmo no bolso. Alguns não permitem a móveis, tudo o que faz com que o indivíduo esteja constantemente
comunicação a longa distância e exigem ser direcionados adequa- conectado a outros, que ele esteja acessível a todo instante. Co-
damente; outros são verdadeiros substitutos do telefone ao qual municação espectral da perspectiva de Jean Baudrillard e Marc
se está habituado. Podemos, também, dar um passeio com um Guillaume em Figures de l'altéritéI8• Há muito tempo nos acostu-
computador portátil e consultar o e-mail. É igualmente possível mamos a seguir os acontecimentos em tempo real. Assim, temos
reunir várias pessoas graças à teleconferência - um dos membros visto ao vivo na televisão a guerra do Golfo, ou pelo menos o que
desse novo tipo de reunião se encontra em Paris, o segundo em nos dão a ver sobre ela: pontos que se cruzam na tela, determina-
Nova York e o terceiro em Londres - e tomar decisões importan- ção da posição dos alvos, feixes luminosos abstratos. Esse ao vivo,
tes ali mesmo. Em resumo, se isso se mantém, o indivíduo pode esse tempo real nos acompanha continuamente. É precisamente
hoje a qualquer momento ser conectado a outros, de um lado ao isso que leva Paul Virilio, em uma de suas obras, a alertar contra
outro do planeta. Mas é possível, também, diferenciar essas men- os efeitos a longo prazo de tal fenômeno:
sagens, tanto por fax (a relecópia) quanto por secretária eletrônica
ou correio eletrônico. As caixas de mensagens eletrônicas são Atualmente, com a revolução das transmissões, assistimos às premis-
menos custosas do que o telefone, uma vez que o usuário paga sas de uma "chegada generalizada" em que tudo chega sem que seja neces-
apenas a ligação ao servidor central, seja qual for a distância entre sário partir, a dissolução da viagem (ou seja, do intervalo do espaço e do
o lugar de emissão e o lugar de recepção. Todos os que possuem tempo) no século XIX se desdobrando neste fim do século XX da elimi-
um endereço eletrônico podem assim enviar mensagens que são nação da partida, o trajeto perdendo assim os componentes sucessivos
lidas logo que se liga o computador. Podemos, portanto, armaze- que o constituíam em benefício da única chegada'".
nar mensagens eletrônicas como numa secretária eletrônica. Essas
caixas de mensagens eletrônicas são geralmente as mesmas que A ausência de distância cria, segundo Paul Virilio, o cidadão
dão acesso à internet, vasta rede descentralizada e descentrada de terminal, infinitamente conectado a uma ausência de espaço e de
mais de uma centena de países na qual é possível trocar informações tempo, que não tem mais relação com o distante, com o global,
de toda a natureza, na qual se consultam os bancos de dados so- que não conhece mais a proximidade, o local, o lugar. Não haverá
fisticados e na qual se fazem e se desfazem fóruns de discussão e mais do que uma mobilidade no local, uma nova forma de confi-
redes de convivência, comunidades virtuais. Tudo isso se relaciona namento:
com a velocidade dos aviões, dos trens do tipo TGV, com o hábito
de se deslocar, com ojet-set no turismo de massa, e com o distan- Televenda, home office, apartamentos e imóveis cabeados, encasula-
ciamento do local de casa e do local de trabalho, que fazem com mento, por assim dizer. Com a urbanização do espaço real, acontece,
que, de uma maneira ou de outra, o mundo se estreite, e com que, então, essa urbanização do tempo real, que é finalmente a do corpo-objeto
mesmo sem o dom da ubiquidade, seja cada vez mais frequente
viver em universos diferentes, passando da cidade ao campo, de
18 J. Baudrillard & M. Guillaume. Figures de l'altérité. Paris, Descartes et compagnie, 1994.
um continente a outro, de uma cidade a outra, de uma língua a 19 P. Virilio. La uitesse de libération, Paris, Galilée, 1995, pp. 28-29.

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do citadino, cidadão terminal logo superequipado de próteses interativas, patrimônio de tudo e qualquer coisa, o manifesto, como sintoma: sobres-
cujo modelo patológico é esse "deficiente motor" equipado para contro- salto desordenado condenado ao fracasso. Eu chamarei isso de época de
lar seu ambiente doméstico sem se deslocar fisicamente, figura catastrófica cabeças ocas".
de uma individualidade que perdeu, com sua motricidade natural, suas
faculdades de intervenção imediata, e que se abandona, na falta de algo Mas como, continua o autor, as cabeças não podem ficar vazias
melhor, às capacidades de captores, sensores e de outros detectores à por muito tempo, elas se enchem de imagens, de imagens externas,
distância que fazem dele um ser controlado pela máquina com a qual, se muito pobres, que substituem imagens memoriais internas, imagens
diz, ele dialoga20. impostas, inadequadas, que matam o imaginário.
Contudo, ao lado das imagens pobres, estamos mergulhados
o mundo tende a se transformar em um "eterno presente", o em imagens virtuais e imagens de síntese. A imagem virtual resulta
de uma tela por meio da qual indivíduo vive no instantâneo da da dígítalízação codificada de uma informação. Ela é "pixalizada',
comunicação e na ubiquidade de estar em todos os lugares ao sendo o pixel a menor unidade da informação que compõe a ima-
mesmo tempo. gem. Cada pixel, e essa é a perspectiva da imagem virtual, pode ser
As próprias condições da memorização mudaram. Bernard controlado, modificado, metamorfoseado, contrariamente aos
Stiegler fala de um "consumisrno da memória". Os novos critérios cristais de prata da imagem tradicional. Podemos, assim, tornar as
da memorização relativos ao apagamento, à seleção e ao esqueci- fotos híbridas, criar "rostos impossíveis", dar "vida" a pessoas de-
mento, à retenção, à antecipação são, eles próprios, regidos pela saparecidas. Mas podemos também, com as técnicas que ainda
lei da mais-valia e do "ganho de tempo". não são comercializadas, mergulhar na imagem, com capacetes de
estereovisão, sensores, óculos que permitem "entrar na imagem",
o todo-imagem em uma "neorrealidade" Com a "realidade aumentada", pela imer-
são estereoscópica em tempo real, entramos no mundo fluido, o
Esse "lugar não lugar" é simultaneamente um "todo-imagem", mundo da ilusão ótica, auditiva e muscular. Movemo-nos nesse
o mundo da aparência, confirmando as análises proféticas de Guy mundo paralelo. Com o acréscimo de informações à própria rea-
Debord e a transformação da imagem publicitária em ícone artís- lidade (daí a denominação "realidade aumentada"), estarnos em
tico, trabalho pelo qual Andy Warhol se consagrou. interação com a imagem, em um mundo que não é mais o mundo
Em seu livro dedicado à memória, Jacques Roubaud escreve: da representação, nem o da impressão, tal como acontece com a
foto tradicional, mas no mundo da simulação.
o momento presente pode se qualificar da seguinte forma: decom- O que tende a desaparecer é simplesmente o real que se dissolve,
posição acelerada, desorganização da memória interna, da memória indi- porque a imagem de síntese não tem mais necessidade de referente.
vidual. O desequilíbrio lentamente crescente entre memória externa e Ela é gerada pelo computador, a partir de uma maquete digital de
memória interna tornou-se evidente. A busca desesperada de "memórias", três dimensões, produzida por causa das linguagens simbólicas.
memória disso, memória daquilo, museumania, pesquisas genealógicas, Ela não resulta de uma ínteração entre superfícies sensíveis à luz.
O real presente na imagem de síntese é desrealizado pelo hiper-

20 Idem, p. 33. 21 J. Roubaud. L'inuention du fi!s de Leoprepes..., pp. 152-153.

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.....,

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-realismo da imagem com perspectivas perfeitas, sem indererrní- belas pinturas da história da arte. Até mesmo o rosto da Gioconda recebe
nação. As imagens de síntese inventam universos fantasmagóricos um jato de produto de limpeza antes de ser esfregado por uma mão forte
puramente artificiais. (e entusiasmada). Museu do falso? Milhares de quadros famosos estão
reunidos em uma construção arquiterural magnífica que está em parte
o original e a cópia incrustada na montanha. Todas as precauções antissísmicas foram toma-
das: o santuário da arte não deveria ser destruído em caso de terrernoto'".
o digital seria, enfim, o reino da falsificação de dados. Sendo
tudo digitalizável- o texto, a imagem, o som -, tudo seria, por- o Otsuka Art Museum é o exemplo de um desejo obsessivo
tanto, manipulável. Não só não poderíamos mais distinguir as de reconstituição artificial de toda a cultura artística ocidental.
imagens "reais" das imagens de síntese ou de "realidade aumentada" Da Idade Média até hoje, inúmeras pinturas foram reconstituídas
como não poderíamos distinguir mais nada do verdadeiro e do sobre mosaicos de cerâmica, com molduras douradas. Encontramos
falso, do original e de sua cópia. Há alguns anos, Umberto Eco aí a Capela Sistina em "tamanho real': e vasos gregos, mosaicos
apresentou de maneira divertida um fenômeno que parecia apenas romanos, pinturas murais de algumas igrejas. Esse museu de "arte
se referir aos Estados Unidos. Ele tinha dado como título geral reconstruída" significa um ato de reapropriação fantástico que
para suas investigações "viagem na hiper-realidade'?", "à procura torna definitivamente caduca a distinção entre o verdadeiro e o
de casos nos quais a imaginação americana quer o objeto verdadeiro falso. "Esse museu da cópia tomou como refém a cultura ociden-
e deve realizar o falso absoluto para obtê-lo, nos quais as fronteiras tal para salvá-Ia dos riscos de destruição que ela corre, se o Louvre
entre o jogo e a ilusão se confundem, nos quais o museu de arte pegar fogo um dia."26
está contaminado pelos circos das maravilhas e nos quais se goza Tudo não viria a se dissolver em um imenso simulacro genera-
da mentira 'plena, de sessão de borror'T". De
em uma situação lizado, como nos ensinava, há pouco tempo, Jean Baudrillard?
museus de cera com reproduções deA última ceia de Leonardo da Tudo é somente pastiche, paródia, cópia de estereótipos, remake,
Vinci, o que se propõe aos visitantes não é "dar-lhes a reprodução nível inferior, sem que seja mesmo possível encontrar um nível
para que sintam como o original, mas dar-lhes a reprodução a fim superior de primeira linha, algo de autêntico?
de que não sintam mais a necessidade do original"24. No 11 de setembro de 2001, quando vimos, ao vivo, o avião
Henri- Pierre Jeudy encontrou exemplos melhores no Japão. colidir com a segunda torre, fascinados ou petrificados por essas
imagens, tínhamos o sentimento contraditório de algo totalmente
Ora, existe no mundo um imenso santuário da cultura ocidental onde inédito, e ao mesmo tempo de déja vu. Vivíamos, com efeito, uma
a sensibilidade de nosso olhar transformou-se para sempre em mero enorme desrealização, e estávamos na impossibilidade de desema-
produto de nossa inteligibilidade. Esse é o museu de cópias no Japão. As ranhar o real da ficção. Essas imagens impressionantes, já as tínha-
mulheres do serviço passam seu pano úmido e seu esfregão sobre as mais mos visto ou lido sobre elas nos romances futuristas e nos filmes
de catástrofe que haviam canalizado nosso imaginário e nossa
22 U. Eco. Laguerre dufoux. Paris, Grassec, 1985. visão, desde La tour infernale [Inferno na torre] a Independence
23 Idem, pp. 22-23.
24 Idem, pp. 36-37. Sobre as relações entre o original e a cópia, ver HilleI Schwarez. The
Culture ofthe Copy. Striking Likeness, Unreasonable Facsimiles. Nova York, Zone Books, 25 H.-P.Jeudy. La machinerie patrimoniale. Paris, Sens & Tonka, 2001, p. 118.
1996. 26 Idem,p.1I7.

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Da}. Neste caso, a cópia precedeu o original, a ficção, o real. A his- de televisão e 300 mil horas de rádio fazem parte dos arquivos que
tória de Couvrefeu [Nova York sitiada], de Edward Zwick (1998), devem ser transferidos para novos suportes. O Instituto Nacional
evoca um governo americano muito ocupado por uma série de do Audiovisuallançou um projeto de digitalização. Trata-se,
atentados cometidos por terroristas islâmicos, em Nova York, e primeiramente, de preservar os arquivos anteriores a 1990. Depois,
que instaura o estado de emergência. Um general fascista se apro- proteger e digitalizar "sob demanda". Técnicas lentas que não estão
veita da situação, mas sem resolver a onda de atentados ... isentas de perigo. Pode-se imaginar um hacker brilhante, tentando
Com o digital, demos um passo a mais. Tudo é falsificável. O destruir, sem que seja notado, estoques inteiros de arquivos digi-
que os soviéticos, em seu gênio maléfico, demoraram para obter talizados ou, em outro cenário de ficção científica, depósitos in-
(fazer desaparecer, por exemplo, Trotski de uma foto), qualquer teiros digitalizados, mas impossíveis de visualizar em decorrência
software do gênero do photoshop permite fazê-lo em alguns segun- da falta de atualização adequada?
dos. Essa falsificação potencial começa com uma interrogação Essa indistinção entre o verdadeiro e o falso, entre o original e
angustiante que os especialistas da digitalização dos arquivos se a cópia é acompanhada por uma busca desenfreada por autocriação:
empenham em desmentir sem trégua. Os novos suportes são dar a si mesmo novas identidades, refazer seu corpo para dar a
frágeis, muitas vezes efêmeros, muito mais frágeis que o suporte- ele a aparência sexual desejada, a eterna juventude ou acessórios
-papel, incluindo os suportes fotográficos ou fílmicos. Eles exigem, exclusivos.
para ser utilizados, máquinas, softwares, programas, cuja evolu-
ção é tão rápida que, se não nos cuidarmos, eles serão inacessíveis o corpo ciborgue
para sempre.
O caráter imaterial do suporte, com efeito, é acompanhado O contexto da pró tese amplamente difundido permite o en-
por sua instabilidade tecnológica. Os progressos da técnica acon- trelaçamento da máquina e do corpo. Ainda mais que a ficção
tecem infinitamente mais rápido do que a possibilidade de utili- científica, o desenvolvimento de biotecnologias, nanotecnologias
zação dos clientes reais ou potenciais das máquinas. O tempo para e a inteligência artificial revelam o que era da ordem do devaneio
aprender um software expirou; a compra de uma câmera digital do futuro, ou das experimentações desenvolvidas em laboratório,
exige a mudança de computador, porque aquele que se tinha não e acabam disponibilizando ao público essas possibilidades.
possui memória suficiente; tal versão do Windows é uma novidade Avatares, duplicações, dones virtuais (à espera dos reais)
que é preciso adquirir. Assistimos a uma modernização incessante multiplicam-se. Entre essas transposições "pós-humanas': é preciso
de parâmetros que torna frágil a conservação de dados. Não há considerar, primeiro, o que David Le Breton chama de "adeus ao
mais formato padrão, mas uma corrida desenfreada para a novidade. corpo"27.v, a relação do homem com a máquina, a constituição de
O problema é extremamente grave no que se refere à conservação "híbridos", que há muito tempo encontramos na ficção científica.
de arquivos. Considerando o ritmo ao qual se pode digitalizar Essa ultrapassagem de todas as fronteiras, essa fragilização do
esses arquivos, é necessário tempo para mudar de suporte e de eu, essa impossível posição de sujeito sem próteses multíforrnes
técnicas, mas estes últimos são indispensáveis, apesar de sua mecânicas e químicas, a literatura antecipou, em particular o
fragilidade. Os arquivos sonoros são os mais frágeis. Mais de 60%
dos suportes de arquivos de televisão e 90% dos suportes de rádio
são únicos e, portanto, vulneráveis. Estima-se que 220 mil horas 27 David Le Breton. L/ldieu au corps. Paris. Méraílié, 1999.

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melhor da ficção científica. Ela colocou em cena, e o cinema re- Assim, o que não se encontrava senão na ficção científica torna-
transmitiu, um hibridismo generalizado, a relação homem/ animal -se real, mesmo que fosse ainda experimental.
e a superação da barreira das espécies, e a transgressão do simbólico O que é um ciborgue? "Um organismo cibernético, um híbrido
bem antes do "escândalo da vaca louca'. Basta lembrarmo-nos de de máquina e de organismo, uma criatura que tem ao mesmo tempo
The F/y [A mosca], que foi levado à tela por David Cronenberg uma realidade social e uma verdade de ficção."30O ciborgue, que
em um remake genial. Cronenberg é, aliás, especializado nessas se transformou em um nome comum para designar todas as cria-
zonas fronteiriças e na transgressão de limites: o vírus generalizado turas que se movem no ciberespaço, é um entredois que substitui
em Rabid [Enraivecida nafúria do sexo], as fronteiras de dentro- de uma vez só a natureza e a espécie humana, e é construído do
-fora em Dead Ringers [Gêmeos, mórbida semelhança], o homem artificial, da prótese ou da máquina inteligente. Ele não tem sexo
acoplado à máquina a ponto de transformar-se em máquina como ou todos os sexos, ele se reproduz sozinho. Não tem origem. Vemos
em Videodrome [Videodrome - A síndrome do vídeo]. O persona- em funcionamento, no ciborgue, todas as fantasias da queda de
gem principal torna-se uma espécie de videoscópio gigante, esva- limites e de fronteiras, sobretudo os que nos definem enquanto
ziado de qualquer memória, que cada um desprograma e reprograma humanos: matéria orgânica perecível, sexuação, reprodução se-
por sua vez. Vítima do professor O'Blivion (esquecimento), ele se xuada, relação com a alterídade.
suicidará. Vemos aqui intervir o problema da memória. Estamos acostumados com a cirurgia estética, ela não nos choca;
não mais do que nos chocam os transplantes de órgãos, as trans-
Tratava-se de ficções. Mas, em Le Monde, lemos o seguinte: fusões de sangue ou as múltiplas próteses, desde os membros até
os implantes dentários. Mais um passo e esses serão os implantes
Depois da isquemia cerebral que sofreu, em 1997, Johnny Ray ficou orgânicos, como em Johnny Mnemonic Uohnny Mnemonic - O
completamente paralisado. Ele enxerga, ouve, mas não pode se mexer nem Cyborg dofuturo], que tem um verdadeiro "disco rígido" implan-
falar. Preso em si mesmo, sobrevive de alguma forma, o corpo atravessado tado na cabeça, no qual são conservados dados secretos importan-
de tubos e de sondas, em um quarto do Hospital de Veteranos de Atlanta28. tes e que se torna, por isso mesmo, objeto de uma perseguição
infernal. Ainda mais um passo no real, esses são os extropistas, que
Isso começa como uma notícia trágica. Mas em seguida vem o se mutilam sem estar doentes (mulheres que removem as mamas
mais surpreendente: para prevenir um eventual câncer etc.), e é o corpo transformado
em lugar de múltiplas experimentações, desde o físioculturismo,
Contudo, quando consegue superar o cansaço e o sofrimento, ele o body art, até uma remodelação completa de si. Em todos esses
realiza um feito inédito: controla um computador com a força do pensa- tratamentos, recursos, novas práticas, é definitivamente o regime
mento, por meio de um aparelho eletrônico implantado em seu cérebro. da imagem de si, da aparência, da superfície que é privilegiado, e,
Quando se acaricia sua cabeça, percebem-se dois nódulos duros sob a pele, também, o do apagamento do simbólico, que faz do desejo do
abaixo da orelha e na parte superior do crânio/".

30 D. Haraway. Simians, Cyborgsand Women. Tbe Reinuention ofNature. Nova York, Rout-
28 Yves Eudes. "Des surhommes au bane d'essaí" Le Monde, 5-6 de dezembro de 1999, ledge, 1991, p. 65. Trata-se da retomada e do desenvolvimento de seu famoso manifesto
pp.12-13. de 1981,reelaborado em 1985,"A Manifesto for Cyborg. Science, Teenology and Socialíst
29 Idem, p. 12. Feminism in rhe 1980's".Socialist Reuieio, vol. 15, n. 80, pp. 65-108.

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~ c
II!II

I RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

II
indivíduo a fonte dessas "passagens ao ato". Não somente a fanta- da escultura ao software, mas também, se muito pouco foi dito, da foto-
sia se apagou, mas o real é considerado sem sombra, sem dimensão grafia àperformance, em ciclo. Ou, mais exatamente, em rede32.
de impossível.
Orlan explora assim suas fantasias de auto criação, sua necessi- Orlan se atribui uma identidade que não tem nada a ver com
dade de exibir seu corpo, em metamorfose contínua, esse corpo já a genética. Ela se escolhe continuamente, reformula sem parar
"pós-humano", esculpido pela cirurgia. Ela desenvolveu uma arte seu "eu", expõe suas transformações, seu corpo protético. Ela se
da carne e, para isso, foi necessário transformar totalmente seu instala além das fronteiras entre o real e o virtual e brinca para nos
rosto: ela sofreu sete operações desde 1990, como dispositivo confundir:
III1
daquilo que ela chama de "obra-prima suprema: a reencarnação
de santo Orlan"". Trata-se de compor um rosto a partir de imagens Contrariamente ao que eu empreendi com as operações cirúrgicas,
digitalizadas de quadros famosos: a testa de Monalisa, o nariz de as séries SelfHybridations não inscrevem as transformações em minha
Diane de uma pintura da escola de Fontainebleau, a boca da Europa carne - meu corpo fenomenal- mas nos pixels da carne virtual, mistura-
de Boucher, o queixo da Vênus de Botticelli. Cada operação é uma dos com as matérias não orgânicas e à minha própria representação, ela
performance, em todos os sentidos do termo: os atores vestem Paco mesma retrabalhada pela cirurgia. Para tanto, seria falso distinguir minhas
I Rabanne e a sala de cirurgia é decorada com um crucifixo e frutas operações-performances de meus SelfHybridations como aquilo que
I
de plástico. À paciente são administradas anestesias locais, o que abrangeria, por um lado, unicamente, o real, e por outro, um puro virtual.
lhe permite "conduzir" a manobra; durante uma das intervenções, Eu sempre procurei embaralhar as cartas, transformar o real em virtual e
I em 1993, ela leu um livro de psicanálise e respondeu por telefone vice-versa, por exemplo, a operação-performance nº 7 realizada em Nova
ou por fax aos correspondentes distantes que assistiram pela câmera York foi retransmitida em uma galeria da mesma cidade, mas também, no
de vídeo à operação. Ela declarou a um jornalista do New York centro Georges-Pompidou em Paris, no centro McLuhan em Toronto. A
Times que deixaria todo aquele maneio quando seu rosto estivesse imagem em vídeo, vista pelos espectadores ao vivo, podia, contudo, passar
mais perto da montagem preestabelecida pelo computador. O que por ficção, um produto digital, na medida em que o bloco operatório era
ela pretendia com aquela "loucura" era atingir um ideal de perfei- investido de um imaginário artístico'".
ção: que o corpo se tornasse a própria imagem digital! Como
afirma Dominique Bacqué: Quando o corpo não é diretamente tocado, o desejo de auto-
criação permanece imaginário, mas a confusão entre o real e o
Artista multimídia emblemática, no sentido de que todas as práticas imaginário, o verdadeiro e o falso, é tão complexa que se situa em
contemporâneas, contra o dogma greenbergiano da pureza modernista, uma zona onde se brinca com fogo. Ocupar todos os lugares é o
hibridizarn, mesclam, misturam, Orlan circula da performance ao vídeo, sonho de todo romancista, de todo poeta, de todo artista, ou
II1II1111
melhor, de todos. Representar todos os outros que estão em si,

I 32 D. Bacqué. "Devenirs phorographíques de l'Orlan-corps" Catálogo da Galeria Bellecour,


1
31 Ver M. Dery. Escape Velocity. Cyberadrure at the end o/ the cen/ury. Nova York, Grove 2001.
Press, 1996;e o catálogo da exposição de Encontros Internacionais da Fotografia realiza- 33 Trecho do catálogo Ornniprésence. Exposition. Hors Limites (1994), citado por Dominique
dos em Arles, em 1996,Réels.fictions, virtuel. Arles, Actes Sud, 1996. Bacqué, "Devenirs photographíques ...".

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

transformar-se em "outro", deixar livre todo o processo de tornar- o ponto de vista de Volpone, a posição do morto que observa como
-se outro, transformar seu próprio ser fictício ou, mais exatamente, os outros reagem, falam dele, e sua "importância" póstuma. Essa
esforçar-se para experimentar no texto o fictício da identidade ... passagem ao ato que perturba a fronteira entre o real, o princípio
quantas tentações fortes, quase ao nosso alcance e que saem atual- da realidade, a finitude e o imaginário no qual se pode fazer a
mente do domínio da ficção. Essas tentações definiriam o horizonte economia da castração simbólica é a fonte de um grande prazer,
da identidade pós-moderna, jogando ao mesmo tempo com "es- mesmo se ele se revela mortífero. Trata-se de dizer sobre si as
colhas" a Ia carte e com a fragmentação, a disseminação, a disper- "últimas palavras': Romain Gary afirma, sem rodeios: "Imaginem
são, a desconstrução do eu, em um jogo de espelhos em que não minha alegria profunda. A mais doce de toda minha vida de es-
há mais certeza, ancoragem estável, fíliação garantida. Entre o critor. Assistia a alguma coisa que, em literatura, intervém em
escritor, o narrador e os personagens, entre o artista e sua instala- geral, apenas, postumamente, uma vez que autor não estando mais
ção, entre o ser humano e sua tela, uma fronteira porosa, um jogo, aqui e não incomodando mais ninguém, podemos devolver a ele
uma descontinuidade, uma passagem perigosa. Farei referência o que a ele é devido":", Ele se explica ante a posteridade. Ele quis
aqui a apenas uma passagem do fictício ao social: a generalização sair da imagem de si mesmo, "o dano que lhe tínhamos causado".
na troca de lugares que afeta o individualismo contemporâneo, o Um autor considerado, catalogado, o gaulista, o resistente, o ho-
desejo de expressão de si que atravessa todos os traços do social mem de Hollywood, o diplomata, o autor de best-sellers bem
desde a escritura cotidiana, a auto ficção, o reality show, dando às ou mal construídos, embora aceitos. Um escritor "em fim de car-
identidades, hoje, a aparência de sombras errantes vindas direta- reira': Esse Gary, ele o representa no Tonton Macoute de Pseudo,
mente de uma grande loja ou de uma clínica onde se serve por acertando as contas com a crítica parisiense e, também, com ele
unidade, onde se fabrica e a Ia carte, na precariedade, no efêmero, mesmo, com sua própria complacência. É ainda com Pseudo que
ou mesmo nos pós-efêrneros". a mistificação está no auge: "Enquanto eu havia me metido aí tal
Ainda em relação a esse domínio, os escritores têm nos mostrado como me inventei e que todos os críticos me haviam reconhecido,
o caminho. A maneira pela qual Romain Gary balançou as fron- portanto, na personagem de "Ionton Macoute, não passou pela
teiras entre o real e o fictício é um exemplo. Ele não deixou, através cabeça de ninguém que, em vez de Paul Pavlowitch inventando
de pseudônimos, de textualizar a complexidade e a mistificação Romain Gary, era Romain Gary que inventava Paul Pavlowitch'P",
nas quais se sentiu renascer, autocriar-se, inventar-se e reinventar- Atrás da mistificação, a confissão capital:
-se, escapar às determinações pesadas que nos cercam - determi-
nações sociais, simbólicas e genealógicas, culturais ou psíquicas-, Eu sempre fui outro. [...] A verdade é que eu fui profundamente afetado
zombar das filiações e de seu lugar na fíliação, Em Vie et Mort pela mais antiga tentação rnultiforrne do homem: a da multiplicidade.
d'Émile Ajar, Gary fala do "alérn-túrnulo" Dos cinco aos sete anos [...] Era como um novo nascimento. Eu recomeçava. Tudo me era dado
de sua mistificação, desfrutou do que não é jamais dado a ninguém, ainda uma vez mais. Eu tinha a ilusão perfeita de uma nova criação de
mim mesmo, por mim rnesmo+'.

34 Seria necessário aqui evocar a remodelagem do corpo e as fantasias onipotentes que o


afetam, à espera da c1onagem. Apresento um esboço desse problema em meu livro Le 3S R. Gary. Vie et mort d'Émile Ajar. Paris, Mercure de France, 1988, p. nr.
Golem de l'écriture.De l'autofiction aú cybersoi.Montreal, XYZ, 1997, e em meu artigo "Du 36 Ibidem.
corps cyborg au stade de I'écran". Communications, n. 70, 2000, pp. 183-207. 37 Idem, p. VIIl.

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RÉGINE ROBIN
A MEMÓRIA SATURADA

Gary mostra sabiamente o laço profundo que une as obras fragilização das identidades hoje. Diremos que a identidade em si
assinadas como Gray e as assinadas como Ajar. Então, por que mesma é uma produção imaginária de que as sociedades e os in-
acabar com esse dispositivo que era fonte de prazer infinito e divíduos necessitam, porque eles não podem prescindir dos pro-
que ele dominava tão bem? Exatamente porque, atrás da ilusão de cessos de identificação de que fala Freud, ou, em outro plano,
controle, há a vingança do Golem, a vingança da estátua de barro da identidade narrativa. A autoficção é a forma pós-moderna da
viva que começa a existir por si mesma. narrativa de si, enquanto se espera o "cibersi"
A internet não é só um lugar de intercâmbio de comunicações
Mas é claro! Porque eu estava sem forças. Havia agora alguém que vivia ou de informações, um lugar de interaçâo em fóruns de discussão
a fantasia no meu lugar. Materializando-se, Ajar acabava com sua existên- de todos os tipos, nem mesmo um lugar de invasão publicitária
cia mitológica. Justo retorno das coisas: o sonho estava presente à minha ou pornográfica (ainda que o acesso aos sites pornográficos não
custa. [...] Na verdade, não acredito que uma duplicação seja possível ". seja na maioria das vezes gratuito), na expectativa do verdadeiro
cibersexo, nem apenas um lugar onde se experimentam novas
À medida que Pavlowitch encarna Ajar e começa a ter uma formas de comunidades civis transnacionais, mas, ainda, um verda-
existência autônoma, não aceita mais a situação, o controle de seu deiro laboratório onde se exploram as novas formas de identidades.
criador. Gary não tem mais o poder de retirar do Golem o nome Pudemos medir, a esserespeito, a importância do livro de Sherry
de Deus que lhe dá vida e essegolem se destrói, dá fim a sua "exis- Turkle Life on the Sereen. Nele, ela apresenta diversas experimen-
tência mitológica" mais vale dizer à sua curta existência. Romain tações identitárias às quais a internet dá origem. Seu diagnóstico
Gary não se deixa abalar apesar disso. "Eu me diverti muito, adeus é variado: a internet acentua ou revela o que já está em funciona-
e obrigado" são as últimas palavras dessa carta testamentária, mas mento no indivíduo, e isso pode revelar-se benéfico - assim, se as
o justo retorno é a vingança da finitude, o momento em que a pessoas conhecem inibições "na vida verdadeira': as experimenta-
autocriação e a onipotência se decompõem diante da incontorná- ções identitárias podem ser terapêuticas. Sherry Turkle mostra
vel realidade e a da passagem do tempo. que, entre as identidades fixadas em nossos documentos pessoais
Todos nós nos tornamos espécies de Gary / Ajar. No ciberespaço, e a fragmentação total, há um espaço enorme que os pseudônimos
na internet, podemos mudar de nome, adotar pseudônimos, alte- e as simulações identitárias ou as páginas pessoais da internet
rando-os à vontade, inventamos para nós outra personalidade, podem ocupar de maneira positiva. Na capa de seu livro, lê-se:
outra idade, outra aparência física, outra profissão, outro sexo, em "'RL' é apenas uma das minhas janelas, e, geralmente, não é o meu
resumo, outra vida. Desse modo, experimentamos de uma só melhor". Essas são palavras de um estudante americano que vê o
vez o declínio dos limites que caracteriza o mundo contemporâneo, mundo a partir de seu computador: ele passa seu tempo sendo três
o declínio do simbólico, e a alteridade, a narrativa de si, a identidade ou quatro personalidades diferentes na web, nos Mud's (Multi-user
narrativa no sentido que Paul Ricceur dá a esse termo. Somos todos domains) [Domínios de múltiplos usuários]; ele explora faces
produtores de auto ficção, esse gênero híbrido de encenação de si. escondidas de si mesmo. É realmente o que ele finge ser em cada
Pelo texto, foto ou instalação, a auto ficção levanta o problema da caso ou ele é o que ele diz sobre si mesmo?
O ciberespaço exige que façamos um novo exame de nosso eu,
das relações com os outros, com a comunidade, com a cidadania,
38 Idem. p. X. com o sexo, com o gênero. Exige, também, que repensemos as

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fronteiras, todas as fronteiras. O ciberespaço exige que pensemos A fantasia de tudo conservar
a identidade como fluida, uma identidade vista através de janelas
diversas, no sentido informático. Desde os tempos mais remotos da Antiguidade, procuramos
Steven Rubio, em um site dedicado à revista Bad Subjects, de melhorar as técnicas da memória morta. As artes da memória são
24 de fevereiro de 1996, examina no Yahoo as 16.923 páginas apenas uma dentre essas técnicas. Hoje, uma nova utopia se ins-
pessoais atribuídas às pessoas que se apresentam como sendo do talou; trata-se da utopia do armazenamento de tudo, sem perda,
meio do "entretenimento". Na maior parte do tempo, os "miniau- sem resíduo, utopia que as novas tecnologias tornam "pensável"
torretraros" ou "autobiografias" e histórico são muito estereotipados, na falta de "possível".
inspiram-se em uma cibercultura básica que todos os usuários da
rede têm em comum, de tal forma que a apresentação de si acaba Os artistas da armazenagem
se tornando uma imagem que se imagina que os outros esperam
ver e ler: foto, texto curto (tipo CV), preferências, leituras e filmes Georges Perec desenvolve assim uma hipermnésia: lembrar-se
preferidos. Entretanto, um certo número de páginas foge do comum de tudo e tudo conservar. Listas de nomes próprios como emJe
e constitui uma experimentação narrativa e identitária. Tem sido me souviens, listas de lugares, descrições desses lugares visto que
dito frequentemente que a web incita o narcisismo, e em certo são frágeis e vão desaparecer (Georges Perec viu seu bairro de
sentido é verdade. Uma incursão em alguns sites destinados ao infância totalmente reestruturado pelas empresas imobiliárias da
diário pessoal - particularmente em inglês e em francês - mostra transformação de Paris nos anos 1960 e 1970, e especificamente
isso claramente, ainda que um determinado uso lúdico permita desaparecer a rua de sua infância: Rua Vilín). Em "Les lieux d'une
todos os desvios. Com efeito, a internet suprime as mediações: ruse" ele afirma, sobre sua psicanálise com Pontalis:
nela podemos nos mostrar e desenvolver nossos escritos sem o
intermédio de crivo e filtros que fazem parte de um comitê de Esse pânico de perder meus vestígios é acompanhado de uma obsessão
leitura, de uma editora, e sem o segredo do verdadeiro diário. de tudo conservar e classificar.Eu guardava tudo: cartas com seus envelopes,
Dever-se-ia postular que a internet permite ao mesmo tempo entradas de cinema, bilhetes de avião, faturas, talões de cheque, prospec-
a experiência da mudança de identidade e a do mínimo de consis- tos, recibos, catálogos, convocações, semanários, pincéis atômicos, isquei-
tência. A questão é muito bem caracterizada pela proliferação de ros vazios, até recibos de pagamento de gás e de eletricidade referentes a
je = [eu], de moi = eu", esse moi fragmentado, desassociado, satu- um apartamento que eu não habitava mais desde os seis anos, e, às vezes,
rado ou múltiplo, tão maltratado na "vida real". passava um dia inteiro a separar e selecionar, imaginando uma classificação
Está na hora de mostrar que, se a memória é afetada pela inter- que preencheria cada ano, cada mês, cada dia de minha vida39.
net, os problemas levantados pelo novo mediam são acompanha-
dos de uma ideologia vaga que afeta o memorial em primeiro lugar. Aqui a seleção é coerente com o tudo conservar. O que é preciso
Já encontramos essa ideologia em nosso percurso; ela é, sem dúvida, é arquivar a si mesmo e, para isso, encontrar modos de classificação
a mais característica da nova era da reprodutibilidade técnica: a originais. Como o inventário de "lugares': projeto de grande en-
patrimonialização, o tudo armazenar e o tudo conservar, a satu- vergadura, que Perec abandonou.
ração da memória.
39 G. Perec. "Les lieux d'une ruse" Penser/classer. Paris, Hachetre, 1985,pp. 69-70.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

Em 1969, ele escolheu, em Paris, 12 lugares nos quais havia Guardar tudo. Os quartos onde ele dormiu também fazem
vivido, ou aos quais estava ligado por lembranças particulares. parte do inventário, assim como "a tentativa de fazer o inventário
Desde então, dizia ele, fazia, a cada mês, a descrição de dois da- de líquidos e sólidos que ingeri ao longo do ano de 1974"41.
queles lugares. Uma dessas descrições foi realizada no próprio O que nos dá, na leitura, um inventário curioso do que um
local, e ele pretendeu que fosse o mais neutra possível: "Sentado homem, amante da boa comida, pode comer e beber, desde as
em um café, ou andando na rua, uma caderneta e uma caneta na carnes com cebola até as vísceras, desde a vitela assada até os sete
mão, eu me esforço para descrever as casas, as lojas, as pessoas que pés de porco. A carta de vinhos e bebidas espirituosas é que é
encontro, os cartazes e, de um modo geral, todos os detalhes que impressionante:
chamam minha atenção". A outra descrição foi feita em local di-
ferente e ele se esforçava então para descrever o lugar de memória Treze beaujolais, quatro beaujolais noveau, três brouilly, sete chiroubles,
e evocar tudo a respeito das lembranças que lhe vinham à mente. quatro chenas, dois fleurie, umjuliénas, três saint-amour. Nove côtes-du-
Uma vez concluídas essas duas descrições, ele as guardava em -rhône, nove châteauneufdu-pape 67, três vaqueyras. Nove bordeaux, um
envelopes que lacrava com cera. Se ele fosse acompanhado, aos bordeaux clairet, um lamarzelle 64, três saint-émilion, um saint-émilion
lugares que descrevia, por amigos fotógrafos, em seguida enfiava 61, sete château-la-pelleterie 70, um cbâteau-canon 29, um château-canan
suas fotos nos envelopes correspondentes, nos quais colocava, 62, cinco château-négrit, um lalande-de-pomerol, um lalande-de-pomerol
também, ocasionalmente, tíquetes de metrô ou entradas de cinema. ~umm~~~~~~~um~~~~um~~~~um
Ele recomeçava a operação todos os anos. Esse investimento, que saint-estéphe 61, um saintjulien 59. Sete savigny-les-beaune, três aloxe-cor-
é, em princípio, uma reminiscência das "bombas-relógio", devia ton, um aloxe-corton, um beaune 61, um chassagne-montrachet blanc 66,
durar 12 anos. dois mercurey, um pommard, um pommard 66, dois santenay 62, um volnay
Todo o projeto devia ser encerrado em 1981. Perec tinha 288 59. Um chambolle-musigny 70, dois chambolle-musigny les Amouresses 70,
envelopes selados, 288 textos resultantes dessa experiência. "Eu um chambertin 62, um romanée-conti, um romanée-conti 64. Um bergerac,
saberia então se valeu a pena: o que espero, com efeito, nada mais dois bouzy rouge, quatro bourgueil, um chalosse, um champagne, um chablis,
é do que o vestígio de um triplo envelhecimento: dos próprios um câtes-de-prouence rouge, 26 cahors, um chanteperdrix, quatro gama},
lugares, de minhas lembranças e de minha escritura't". dois madiran, um mandiran 70, um pinot noir, um passe-tout-grain, um
A abertura sistemática dos envelopes nunca aconteceu, mas pécharmant, um saumur, dez tursan, um vinho sarda, vinhos diversos.
poderíamos considerar os textos que foram retirados de seus en- Nove cervejas, duas Tuborg, quatro Guinness. Cinquenta e quatro arma-
velopes, com as fotos e os tíquetes de metrô e tudo o mais que eles nhaque, um Bourbon, oito calvados, uma cerise ti leau-de-oie, seis licores
continham, como uma espécie de hipertexto autobiográfico, co- chartreuses vertes, um chivas, quatro conhaques, um conhaque Delamain,
locando em relação o "objeto visto", a rua, em um momento preciso dois Grand Marnier, um gin-pink, um irish cofJee,um Jack Daniel, quatro
do tempo, e a rede de lembranças que se encontram associadas ao conhaques, três conhaques do Bugey, um conhaque de Provence, uma
lugar: cadernetas de deambulação e de memória. aguardente mirabelle, nove aguardentes Souillac, uma aguardente leau-
-de-uie, um destilado de pera Williams, um vinho do porto, um sliuoeitz,

40 Idem. Espêces d'espaces. Paris. Galílée, 1974, pp. 76-77. 41 Idem.L'infra-ordinaire. Paris, Le Seuil, 1989, pp. 97-106.

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um aperitivo Suze, 36 vodcas, quatro uísques. "N" cafés. Uma infusão de caixas nas quais Andy Warhol de vez em quando esvaziava, por exemplo,
ervas. Três águas Vichl2• toda a superfície de seu escritório antes de fechá-Ias, datá-Ias e guardá-Ias.
Há 608 delas. Andy Warhol não podia jogar nada, era uma obsessão. Suas
Esse "rnernorial do ínfimo", como o chama Claude Burgelin, famosas perucas, suas faturas, seus cheques, sua correspondência, suas
nos dá, além da irreverência e do refinamento incontestável que revistas, os brinquedos mecânicos do mundo inteiro que ele colecionava,
denota o tal inventário, uma biografia também do íntimo: os um velho par de botas, as fitas magnéticas de suas conversas telefônicas,
gostos "mais franceses" de Perec em relação à culinária e essa an- pedaços de bolo de aniversário: tudo isso se encontra nas "cápsulas do
siedade de se transformar a si mesmo em arquivo. tempo".
EmJe me souviens, existem 480 frases que começam com "eu
me lembro", seguidas de um nome próprio, de um acontecimento Assim, existem em Pittsburgh 610 caixas de papelão que não
específico, de uma música, de uma marca publicitária, às vezes estão inventariadas, caixas de mudança que permitiram a ele
de uma recordação pessoal. Fragmentos memoriais que são aque- guardar-jogar tudo o que ele tinha na mão. Ele registrava assim
les de um indivíduo nascido em 1936, mas também daqueles de sua vida cotidiana.
uma geração. Em uma entrevista com Franck Venaille, Georges Inúmeros são os artistas que se tornaram especialistas desse
Perec diz: arquivamento-armazenagem, como Ilya Kabakov que se dedica a
criar instalações restituindo sem nostalgia a via cotidiana, a atmos-
o que está mais claro para mim no trabalho sobre Je me souviens é que fera, os mitos e os problemas da ex-União Soviética.
eu não sou o único a me lembrar. Esse é um livro que eu poderia chamar Ilya Kabakov promove o "não memorável"44 se colocando em
de "simpático"; eu quero dizer que ele está em sintonia com os leitores, arquivo, em armazenamento, se instalando em si mesmo, pelas
que os leitores se identificam com ele perfeitamente. Isso funciona como histórias que conta, como aquela do homem "que nunca se desfa-
um tipo de apelo à memória, porque é algo que é compartilhado. É muito zia de nadà'.
diferente da autobiografia, da exploração de suas próprias lembranças, Trata-se de um cômodo apertado, cheio de armários, pratelei-
marcantes, ocultas. Trata-se de um trabalho que parte de uma memória ras, caixas, estantes. Existe aí uma quantidade de pequenos objetos
comum, de uma memória coletiva43. sem valor, caixinhas, pontas de lápis, fósforos, recortes velhos de
jornal, recibos, todos os tipos de restos de papel. O que é estranho
Conservar-se é, ainda, a tentativa de Andy Warhol. nessa instalação é que cada elemento está etiquetado, classificado.
Lê-se no Le Monde de 3 de junho de 1994, a respeito do museu No meio do cômodo, um sofá. É aqui que vive o "dono da casa',
Andy Warhol de Pittsburgh, o seguinte: esse curador do museu de si, um tipo especial. Sua sala é seu reduto
pessoal, pois ele divide um apartamento comunitário como mui-
Atrás de uma grande parede de vidro, fileiras metódicas de caixas tos soviéticos. Ninguém sabe o que ele "trafica" em seu quarto-
idênticas, com as quais trabalham os arquivistas. São as "cápsulas do tempo': -escritório.

42 Idem,pp.l05-106.
43 G. Perec. "Le travai! de Ia mémoire. Entretien avec Franck Venaille".Je suis né. Paris, Le 44 F. Barré. "L'inaliénable" Ilya Kabakov. Installations, 1983-1995. Paris, Publications du
Seuil, 1990,p. 83. Centre Georges-Pompidou, 1995,p. 7.

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Em um dia que o responsável não está em casa e que os agentes aquele da própria vida do artista. Cada caixa representa um episódio de
de medição do gás querem anotar o número de seu medidor, o tio sua vida, ela carrega seu nome. A última fica vazia'",
do narrado r os autoriza a entrar no quarto. Não vendo o medidor,
vão embora. Mas o tio fica estarrecido com o que viu: Fazer o inventário de tudo, manter-se em seus pequenos obje-
tos e papéis sem importância, não poder discriminar, não poder
Nas paredes, entre as pilhas de detritos, elevavam-se prateleiras que mais fazer a triagem, armazenar tudo, esse é o fascínio de vários
abrigavam uma enorme quantidade de caixinhas, de pontas de tecido, artistas contemporâneos destes últimos anos.
pedaços de madeira, sempre, impecavelmente, organizados ... Os objetos, Duas grandes exposições foram dedicadas à arte da armazena-
que possuíam um número de cinco ou seis números e uma etiqueta, eram gem. A primeira, Deep Storage, realizada em Munique, em 1997.
colocados nas prateleiras e nas estantes, elas, também, minuciosamente Ela é resultado de um longo trabalho coletivo desenvolvido pela
etiquetadas. Em cima da mesa grande que ocupava o centro do cômodo galeria de arte Haus der Kunsr, de Munique, e o programa cultu-
se acumulavam outros objetos ainda não numerados nem etiquetados: ral da Siemens. O catálogo faz o inventário de instalações contem-
pilhas de papéis, manuscritos ...45. porâneas que tornam como objeto a coleta, o armazenamento ea
constituição de arquivos47. Caixas de Duchamp, do movimento
Em cima da mesa, ainda aberto, um artigo intirulado "La Fluxus ou de Cornell, prateleiras cheias de caixas de arquivos de
poubelle" ["A lixeira"], no qual o homem que nunca se desfazia Boltanski, acumulação de bens de Arman, coleções de fotos ou de
de nada explica que qualquer um se afunda no fluxo, na enxurrada objetos de Hans-Peter Feldmann, colagens ou séries na forma de
de papéis que manipula e que acumulou diariamente. Diante dessa atlas, como no caso de Warburg ou Richter, embalagens tais como
enxurrada, continua ele, é preciso, permanentemente, selecionar, foram encontradas na casa de Kantor e Christo ... Todo um setor
separar os papéis importantes dos inúteis. Ele imagina, também, de arte contemporânea é dedicado ao arquivo e mais ainda ao
o que aconteceria se renunciássemos a selecionar os documentos, armazenamento em um fascínio que é o da morte.
a separar o que, claramente, merece ser conservado daquilo que é A segunda exposição, Interarchive, é resultado de um projeto
para se desfazer. Se guardássemos tudo ... que se estendeu de 1997 a 2002, associado a universidade de Lü-
Em uma outra instalação, Ilya Kabakov transforma um barco neburg, Hans-Peter Feldmann e Hans-Ulrich Obrist. O conjunto
de madeira, medindo 17 metros de comprimento, em "memória foi exposto na universidade de Lüneburg48.
armazenada". No convés, 25 caixas de papelão contendo objetos De uma exposição à outra, é possível medir o lugar tomado
de sua vida cotidiana. Colados na tampa, fotos e textos, contando pela multimídia, e as transformações violentas do regime da me-
diversos episódios da vida do artista. Guiava-se, também, o percurso mória, o lugar e o estatuto dos museus. A passagem de uma me-
do visitante do barco: mória de arquivo analógica a uma memória de arquivo digital

Vagando de caixa em caixa, avançando até a extremidade, o visitante


46 A. Wallach. Ilya Kllbakov. The Man Who Neuer Threw Anything Away. Nova York. Abrams,
compreende que está lidando com o que constituiu um ser e que o movi- 1996. p. 230.
mento de sua passagem de caixa em caixa, em direção à saída do barco, é 47 r. Schaffner & M. Winzen (orgs.). Deep Storage. Collecting, Storing and Archiving in Art.
Munique/Nova York, Prestel, 1998.

48 Interarchiue. Archivarische Pmktiken und Handlrmgsriiume im Zeitgenossischen Kunstftld.


45 Idem. p. 83. Colônia. Verlag der Buchhandlung Walter Kõnig, 2002.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

apresenta, com efeito, problemas singulares. A memória interme- fazendas, os mais diversos documentos, documentação oficial e,
diária, hipermídia, apresenta-se como um mero presente, confun- também, os mais diversos documentos pessoais, álbuns de fotos
dindo as referências temporais. Memória reciclada continuamente, de família com correspondências privadas, agenda de telefones
flutuante, de fluxo, de circuiros e redes, ela não é fixável, é móvel, com e-mails. Tudo é arquivável. Movemo-nos em uma ideologia
e se opõe às memórias rígidas de armazenamento tradicionais. da conservação de tudo, em um fetichismo do guardar tudo. Esse
Encontramo-nos em pleno paradoxo. O ciberespaço está sem pesadelo do desaparecimento poderia desembocar em uma fábrica
memória e deve constituir, por seu vasto espaço, mais exatamente de petrificação. Algo que quisesse se salvar definitivamente de
sua imensa configuração topológica, uma nova forma de arquivar, qualquer acidente de transmissão.
de triagem. O arquivo não lida mais com objetos singulares e Deve-se observar que o arquivo não é absolutamente o arma-
discretos, tais como livros, dossiês, obras de arte, armazenados em zenamento. Jacques Derrida esclarece isso em sua reflexão sobre
lugares específicos como os museus, os "arquivos", as bibliotecas. o arquivo:
Os arquivos nas redes são constituídos de fluxos contínuos de
informações que chegam de todos os lugares. O arquivamento (e Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma
as obras de arte que simulam esse gesto) é o que garante o acesso significação, não será jamais a memória nem a amnésia em sua experiência
à documentação, sua utilização, ou ainda a interatividade exercida espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo se instala no lugar
em seu local. da falta originária e estrutural da chamada memória.
O arquivamento tradicional foi ilustrado de maneira caricatu- Não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repe-
ral pela grande agência de polícia secreta da República Democrá- tição e sem uma certa exterioridade. Não há arquivo sem exterior.
tica Alemã (RDA). De certo modo, poderíamos dizer que aRDA [...] E notamos de passagem um paradoxo decisivo. [...] se não há ar-
morreu devido à saturação de seu armazenamento da vida privada quivo sem consignação em um lugar exterior que assegure a possibilidade
de seus cidadãos, abrigada nos arquivos do Ministério para a Se- da memorização, da repetição, da reprodução, da reimpressão, então,
gurança do Estado (Stasi). Tudo estava lá, à disposição das auto- lembremo-nos também de que a própria repetição, a lógica de repetição,
ridades, mas, praticamente, inacessível. Para abrir, selecionar, in- e até mesmo da compulsão à repetição, é, segundo Freud, indissociável da
terpretar esse material amontoado em milhares de prateleiras, pulsão de morte. Portanto, da destruição. [...] O arquivo trabalha sempre
teria sido necessário que os cidadãos da metade do país se trans- a priori contra si mesmo'?' vii,

formassem em especialistas em espionagem, em escritura de rela-


tos. Foi exatamente isso que a Stasi tentou fazer, recuperada, entre Para representar o funcionamento do psiquismo e da memória,
outros, pela rigidez do armazenamento. Para tornar-se um "Big Freud imaginou um "bloco mágico", máquina de registrar e me-
Brorher" eficaz, teriam sido necessários computadores de alta morizar, permitindo o apagamento e o esquecimento como a
perflrmance, capazes de cruzar dados. O superministério criado memória faz. A máquina inscreve a própria finitude da memória.
recentemente nos Estados Unidos por iniciativa de George W. Essa descrição é muito diferente das fantasias da conservação in-
Busch beneficiar-se-a de uma tecnologia de ponta, controlando tegral dos vestígios e do armazenamento sem perda que atravessam
as redes, os fluxos, a extrema velocidade da informação.
Tudo se transformou em arquivo, depósito, patrimônio. Tudo
é "patrimoniável": os monumentos, os edifícios, as cidades, as 49 J. Derrida. Mal d'archioe. Paris, Galilée, 1995, pp. 26- 27.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

o pensamento do virtual. Não há arquivamento sem um gesto de fragmentos por algumas moedas, quando se tratava de pequenos
separação, de triagem, de hierarquia, de seleção: pedaços insignificantes, mas muito mais caros quando se tratava
de pedaços mais importantes e decorados. Rapidamente os ga-
Essa revolução deve sobretudo nos recordar que a chamada técnica leristas se interessaram por esse fenômeno. As grandes galerias
arquivística não determina mais, e nunca o terá determinado, o momento de Nova York e de Londres adquiriram partes inteiras do Muro.
único do registro conservador, mas sim a própria instituição do aconte- Novamente, o resto, o resíduo era museificado no exato momento
cimento arquivável. Ela condiciona não somente a forma ou a estrutura do acontecimento, museificado em tempo real, em suma.
impressora, mas, também, o conteúdo impresso da impressão: a pressão Henri-Pierre Jeudy descreve um estranho ecomuseu japonês,
da impressão antes da divisão entre o impresso e o impressor. Essa técnica ao norte da região de Aomori, nas antigas minas de prata. Trata-se
de arquivamento comandou aquilo que no próprio passado instituía e de fazer reviver as atividades do passado em uma região devastada.
constituía o que quer que fosse como antecipação do futuro". O que é menos clássico é o recurso aos autômatos:

o arquivo não é totalizável como o seria um armazenamento Em Osarizawa, no labirinto de caminhos subterrâneos da mina, mais
sem falha. No entanto, é para esse armazenamento que tende a de uma centena de autômatos são postos em funcionamento, um após o
patrimonialização de tudo no social. outro, para recordar como se praticava a extração de prata e como viviam
os mineiros. A mina se parece com uma "discoteca" com seus raios laser,
Saturações patrimoniais suas células fotoelétricas que permitem controlar o movimento dos autô-
matos. Os visitantes, pouco numerosos, percorrem as galerias enquanto
Com os ecomuseus, a patrimonialização se generalizou a par- os autômatos repetem, por sua vez com uma autonomia absoluta, os
tir dos anos 1970, depois do movimento de 68, quando as culturas gestos programados. O "tesouro vivo", o representante da "memória dos
operárias foram rompidas pela reorganização e pelas reestrutura- mineradores" é um autômato ".
ções industriais. Praticamente, qualquer prática obsoleta a partir
de então é "embalsamada" naturalizada, exposta em vitrine, petri- O autor observa que, paralelamente a essedispositivo, o visitante
ficada. Assim, era possível encontrar nas vitrines do museu de pode assistir a uma representação teatral no verdadeiro teatro onde
História em Berlim, logo após a queda do Muro, as roupas dos os verdadeiros dramas e comédias continuam uma tradição. Regime
pioneiros, os objetos usuais da RDA, as bandeirolas que os berli- memorial impressionante! A tradição do drama ficcional é autên-
nenses haviam carregado durante a grande manifestação de 4 de tica, enquanto a representação do "passado real" é feita de autô-
novembro de 1989, na Praça Alexanderplatz. Esses elementos que matos. Torna-se paródia da memória.
eram muito vivos, cotidianos, até mesmo militantes foram musei- Na França, assistimos às reconsrituiçôes museais de bairros
ficados quase tão rapidamente como experimentados, expostos antigos que não têm mais nada de habitável. Muito recentemente,
em vitrines, imobilizados, antes de desaparecerem para sempre. E o povoado de Soulaines-Dhuys, em Aube, foi objeto de uma res-
do próprio Muro de Berlim, quase desmantelado, foram vendidos tauração patrimonial extravagante. O objetivo era agradecê-Io por

50 Idem, pp. 36- 37. 51 H.-P.Jeudy. La machinerie petrimoniale. Paris, Sens & Tonka 2001, p. 41.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

ter aceitado em seu solo os depósitos de lixo nuclear que ninguém transmissão de um passado abolido. Vivemos a passagem do
queria. O vilarejo tornou-se decoração teatral artificial. Postes de simbólico ao virtual:
iluminação antigos, pias de flores com placas de ruas em letras
douradas, todo um passado verdadeiro ou suposto é encenado. Não há dois mundos que convivem lado a lado: o mundo da ordem
Temos a impressão, afirma Henri-Pierre Jeudy, "de andar em um simbólica protegido e o da fluidez de uma ordem virtual dificilmente
vilarejo reconstruído após uma terrível carástrofe'V. O povoado controlável. As riquezas simbólicas das sociedades já eram virtualizadas
está literalmente petrificado. Bastaria vestir as pessoas com roupas antes mesmo do desenvolvimento das novas tecnologias da comunicação.
da época para concluir a petrificação. Parada no tempo que é o Os próprios etnólogos foram os seus artesâos, Desde os índios em suas
contrário da memória e da transmissão! reservas até os últimos operários em suas minas protegidas, passando
pelas tradições conservadas, as memórias reatualizadas, as lembranças
Com essasencenações locais, revisitar a história revela-se uma atividade tratadas pela museografia, nada escapa mais à virtualizaçâo das riquezas
turística reconfortante, pois permite viagens retrospectivas, expondo o simbólicas das sociedades 54.
quanto aquilo que foi permanece digno do maior interesse, mas, também,
testemunha de preocupações presumíveis que nos reserva o futuro. Essa Esse simbolismo memorial está ele mesmo preso na comer-
restituição por vezes tão fria do passado parece ser o objeto da gestão das cialização.
memórias coletivas, conforme o modelo de uma representação futurista Mesmo em uma conjuntura na qual se reconhece o luto da
da posteridade.". autenticidade por fazer, tal decisão petrificada sobre um falso
passado deve inquietar.
O que está em jogo no gesto patrimonial é o controle do me- Procura-se conter o movimento natural do esquecimento. Ora,
morável, a conjuração do singular, do inconveniente, da surpresa, a verdadeira transmissão nos escapa, ela não é controlável, digira-
do indeterminado. Trata-se de impedir o perigo de uma transmis- lizável, nem simulável de antemão. Ninguém sabe o que restará.
são que seria vaga, não entraria nos parâmetros daquilo que se quer Essa fantasia da "gestão da memória" é mortal. Entramos, efetiva-
entregar ao tempo e daquilo que se quer expor como memorável mente, na era de uma memória programada. Comemoramos com
a transmitir. Gestão coletiva de uma transmissão programada que base em uma programação, calendário planejado, aniversários,
poderia ser o maior perigo encontrado pela memória hoje. Essa reconstituímos, simulamos, museificamos, restauramos os centros
patrimonialização generalizada não tem mesmo necessidade das das cidades, sem sombras, sem surpresa, sem intempestividade.
imagens virtuais para desrealizar o passado, sem representá-lo,
provocando um curto-circuito em toda mediação. Quando não
restar mais nada, será "isso" não o vestígio do passado, mas o clone Notas
artificial daquilo que propomos aos homens do futuro como
A. B. Casares. A invenção de Morel. São Paulo, Cosac Naify, 2006. (N. da T.]
ii
J. L. Borges. "Funes, o mernorioso" Ficções.São Paulo, Círculo do Livro, 1975. (N. da T.]

52 Idem. "La transmission d'un passé idéalísé semble être l'expression de Ia peur de l'avenir".
Libération, 19 de setembro de 2002.
53 Ibidem. 54 Idem. La machinarie patrimoniale ..., pp. 126-127.

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RÉGINE ROBIN

iii
Relativo a biblioteca virtual (cíberteca), é também considerado um neologismo de origem 3
inglesa (cybrairian) que se refere a pessoa que gerencia dados eletrônicos da internet, tal

iv
como um bibliotecário faria com dados impressos. [N. da T.)
Em francês, tanto a palavra viande quanto a palavra chair podem ser traduzidas por "carne".
Para uma memória hipertexto
Por isso, mantemos, no texto, as palavras em francês, uma vez que viande cornumente está
associada à carne animal que é consumida, e chair à carne do corpo humano. [N. da T.)
v
David Le Breton.Adeus ao corpo. Campinas, Papirus, 2007. [N. da T.)
vi Je e moi são traduzíveis do francês por "eu". Porém, conceitualrnenre, na teoria psicanalítica,
há diferenças entre esses dois. Optamos aqui por adotar a grafia e a distinção utilizadas
nos Escritos (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998), traduzidos por Vera Ribeiro. [N. da T.)
vii ]. Derrida. Mal de Arquivo - Uma impressãofreudiana. Rio de Janeiro, Relume-Dumará,
2001, pp. 22-23. [N. da T.)

Novos espaços de escritura

Todas as práticas socioculturais se encontram perturbadas pela


entrada da era do virtual, particularmente as práticas de escritura
literária. Mas é talvez por aí que a memória programada poderia
dar lugar a uma outra memória, mais "verdadeira"
Uma nova textualidade se impõe hoje na internet, cuja dimen-
são é considerável. O hipertexto se inscreve numa era em que a
complexidade, a multiplicidade, a heterogeneidade, o aleatório, a
instabilidade, a fragmentação, a redefiniçâo de nosso meio ambiente
e de nossas identidades reinam na nossa vida cotidiana.
Como definir o hipertexto r' Trata-se de um "conjunto cons-
tituído de 'documentos' não hierarquizados ligados entre si por
'links' que o leitor pode clicar e que permitem um acesso rápido

Nesta imensa literatura consagrada ao hípertcxro de ficção, assinalamos. a título de


exemplo. algumas obras ou artigos teóricos que se tornaram clássicos:]. Clérnent. "L'hy-
pertexte de fiction: naissance d'um nouveau gente". In: M. Lenoble & A. Vuillemin
(orgs.). Litterature et informatique, Ia littérature générée par ordinateur. Arras. Presses
universitaires de l'Artois, 1995; G. Landow (org.). Hypertext and Theory. Balrimore, Johns
Hopkins Uníversity Press, 1997; M.-L. Ryan (org.). Cybertext Textuality. Computer
Technology and Literary Theory. Bloomingron, Indiana University Press, 1999. Assina-

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

a cada um dos elementos constitutivos do conjunto", como diz um Enquanto o livro de ficção tem um início e um fim, o hipertexto
dos melhores especialistas,]ean Clément. Mais brevemente ainda: de ficção, ainda que tenha um início aparente, pode ser tomado
"Por hipertexto, entendo simplesmente a escritura não sequencial', em qualquer momento de suas potencialidades e abandonado em
afirmava o pioneiro, Ted Nelson. qualquer outro momento. Ele desaponta, portanto, nossos hábitos
a hipertexto exige novas competências, ao mesmo tempo, da de leitores de romance por uma certa circularidade, uma indeter-
parte do leitor, que deve poder "navegar" através dos elementos minação, uma abertura infinita. Longe de estar na estética da re-
do conjunto, e da parte do escritor, que deve organizar a complexa presentação, ele se assemelha aos textos modernistas cuja narrati-
rede dos links potenciais, dos caminhos a seguir ou a abandonar vidade foi precisamente a de destruir a lógica, os laços hipotáxicos
na obra assim constituída. do romance realista.
Para melhor compreender a importância do hipertexto, Não linearidade, abertura infinita, versão sempre diferente,
comparemo-Ia à organização do códice, o livro tal como temos o imaterialidade, tudo isso conduz a uma nova atividade do leitor.
hábito de ler, com a página como espaço de leitura. Nós sabemos hoje que o leitor nunca foi uma figura passiva, mas é
Enquanto o livro é um dado material que temos em mãos, que verdade que o hipertexto, por sua parte, demanda uma nova ati-
podemos manipular, um objeto que podemos mover, o hipertexto, vidade. Não que o hipertexto seja verdadeiramente interativo (não
que tem a tela como suporte, é totalmente imaterial. Para contem- é o leitor que escreve o texto), mas o leitor cria seu caminho na
plar um dado concreto, é preciso imprimir a versão que temos obra, ele escolhe os links que o fazem passar de uma página de tela
diante dos olhos. É o que explica, talvez, o fracasso dos e-books. a outra, constrói para si caminhos alternativos, pelo que George
Enquanto o livro constitui uma totalidade finita, o hípertexto, Landow pôde propor uma nova figura, a do wreader, para mostrar
objeto virtual, é infinito. Eu não apreendo nunca senão uma ver- a cooperação do autor e do leitor, um novo lugar de coleitor e co-
são do percurso que efetuei entre as páginas da tela, os nós e as autor.
relações que estabeleci pelos links que consistiram em clicar sobre A "escrita literária" se torna outra coisa, apagando as fronteiras
palavras, quer estejam selecionadas ou não. Constituí um caminho de gêneros, provocando uma "indefinição" na perpétua meta-
através de uma potencialidade aberta na obra, quer esse caminho morfose.
tenha sido programado pelo autor ou estabelecido por mim se o
software permitir. Os hipertextos de ficção
a hipertexto de ficção não é linear. Ele não é para ser lido em
continuidade, página após página, as quais são, num livro, nume- Todo O movimento modernista, depois pós-moderno e expe-
radas. Posso passar pelos links propostos, voltar atrás, encontrar rimental da literatura esteve inclinado para a dissolução das formas
outros percursos, outros caminhos, que devem poder fazer sentido, tradicionais, para a descontinuidade, a fragmentação, a ruína do
mas num outro tipo de narratividade. Decididamente rizomático, sentido, a deslinearidade. Ele reuniu-se às práticas do romance
o hipertexto rompe com nossos hábitos enciclopédicos. popular, às do jornalismo e às do cinema, assim como à estética
da montagem e da colagem. a movimento da hipermodernidade
e da pós-modernidade nos é familiar. As possibilidades da máquina
lamos igualmente algumas realizações, entre as mais conhecidas sobre hipertextos de
apenas generalizaram esse movimento ao mesmo tempo no nosso
ficção: M. Joyce. Afternoon, a Story. Eastgate Sysrerns, 1987; S. Moulthrop. Victory
Garden. Esatgate System, 1992. ambiente cotidiano e nas novas possibilidade literárias.

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Em Le jardin aux sentiers qui bifurquent [Ojardim dos cami- Outros textos poderiam ser convocados neste contexto, como
nhos que se bifurcam ],Jorge Luis Borges imagina um livro infinito, 6.810.000 litres d'eaupar seconde', de Michel Butor, ou Cent mille
cujo autor morreu deixando uma montanha de rascunhos contradi- milliards de poémes", de Raymond Queneau",
tórios impossíveis de ordenar, com esta frase enigmática: "Eu deixo Inúmeros hipertextos de ficção e obras romanescas desse tipo
aos numerosos futuros (não a todos) meu jardim dos caminhos foram elaborados graças a um soflware especial, Story Space, pro-
que se bifurcam". O narrado r tenta explicar essa frase e encontrar duzido por Eastgate System. Auxiliar indispensável, ele permite
um sentido à heterogeneidade dos rascunhos. Enquanto, nas que os escritores proponham aos leitores que cliquem em lugares
ficções tradicionais, uma vez feita a escolha, todos os outros per- privilegiados, caminhem de acordo com o percurso programado
cursos são descartados, nesse autor, todas as soluções são adotadas pelo software, ou que encontrem seu próprio caminho na obra,
simultaneamente. com base em um certo número de combinações e trajetos possíveis.
Não é fácil imaginar a forma que poderia tomar essa rnultipli- Dois exemplos dessas criações ainda pouco conhecidas.
cidade de soluções, essa simultaneidade de temporalidades dife- Afternoon, de Michael Joyce, compõe-se de 539 páginas de tela
rentes. A literatura modernista tentou, contudo, a experiência de ligadas por 950 links (dispositivo informático que permite passar
múltiplas formas. Eis dois exemplos: de um espaço-texto a outro). É impossível ler na sequência essas
Composition nº 1, de Marc Saporta, é um texto de 150 páginas 539 páginas, pois o autor assim o quis. Se nos contentássemos em
desconectadas, que não se apresentam, pois, como um livro'. As ler as telas de forma sequencial, em um dado momento não pode-
páginas estão numa pasta. Trata-se de 150 fragmentos indepen- ríamos prosseguir. O leitor, para se mover na história, deve, em
dentes. O leitor está diante de uma vasta combinatória. No seu certos lugares, responder sim ou não a perguntas, o que lhe abre
prefácio, Marc Saporta escreve: "O leitor é chamado a embaralhar novos percursos no espaço-texto. Ele pode também clicar sobre
estas páginas como um jogo de cartas. Cortar, se ele desejar, com algumas palavras para se movimentar no texto, mas essas palavras
a mão esquerda, como uma cartomante. A ordem na qual as pági- não estão destacadas, é preciso que o leitor as descubra. Aliás, a
nas sairão do jogo orientará o destino de x.". Como há inúmeras sequência da história dependerá do caminho percorrido. Ela não
combinações possíveis, o leitor irá traçar apenas algumas leituras será a mesma para todo mundo. Trata-se de uma narrativa "bor-
e percursos. gesiana", Iabiríntica, em eterna metamorfose e recomposição sem
Em Le Grand lncendie de Londres' e em La Boucle', Jacques verdadeiro início nem fim. O autor diz, logo no início: "Em toda
Roubaud utiliza a imagem da tela e um conjunto de parênteses, ficção, o fecho é uma qualidade suspeita, mas aqui é ainda mais
de acréscimos e de bifurcações para explicitar seu dispositivo, o evidente. Quando a história não progride mais, ou quando ela gira
mais próximo do hipertexto como se as experimentações literárias em círculo ou quando vocês estiverem cansados de seguir os ca-
mais modernistas se perturbassem com os meios, possibilidades,
perigos, apelos do eletrônico, da internet, da web, da revolução 5
Michel Butor, 6.810.000 litres d'eau par seconde. Paris, Gallimard, 1965.
tecnológica na qual estamos imersos. 6
Raymond Queneau, Cent mille milliards de poêmes. Paris, Gallimard, 1961.
7
Notemos que há outras práticas de escrituras literárias na interner, tais como os ptogramas
desenvolvidos por Oulipo ou Alamo (Paul Brafforr), ptogramas que simulam as escritu-
2
M. Saporta. Composition n' 1. Paris, Le Seuil, 1965. ras automáticas dos surrealistas, aqueles que consistem em criar engendramentos 'de
3
J. Roubaud. Le Grand Incendie de Londres. Paris, Le Seuil, 1989. poemas, de textos em fórmula (Denize, Magné) ou textos romanescos diretamente criados
4
Idem. La Boucle. Paris, Le Seuil, 1993. de forma informática.

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••••
RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

minhos, a experiência da sua leitura terminou". Há com efeito 20 suscitaram entusiasmos como os de Robert Coover, de George
inícios possíveis, 20 formas de entrar no dispositivo textual. Tudo Landaw, mas também questionamentos. Recentemente, especia-
começa com esta frase: "I want to say I may have seen my son díe listas em hipertexto como Michael Joyce e Stuart Moulthrop
today" ou "Eu gostaria de dizer que talvez eu tenha visto meu filho emitiram dúvidas sobre o infinito de possibilidades do hipertexto
UIIII! morrer hoje". É impossível conhecer o todo da história, a totalidade de ficção. É ainda muito cedo para testar as conquistas e os pro-
r das possibilidades, a totalidade dos percursos. Mas o leitor é ativo blemas colocados por essa prática. No ambiente eletrônico, sabe-
o tempo todo, à espreita. De alguma forma, ele constrói seu próprio mos que os usos cotidianos não são literários, mas fortemente
texto, seus próprios percursos. No caso de Afternoon, Michael interativos. Do correio eletrônico aos grupos de discussão, nume-
Joyce retomou seu texto de 1986 a 1992, e o modificou constan- rosas comunidades virtuais se constroem em torno de participan-
temente. O medium acentua a insistência da obra aberta, sempre tes reunidos por um centro de interesse comum. As pessoas que
a retomar e sempre retomada. se falam em tais ambientes, na realidade, se escrevem, pois tudo
Como, com efeito, não ser ativo, interativo, "autor associado" passa pelo texto. As apresentações de si, assim como os diálogos,
diante do seguinte exemplo, outro hipertexto de ficção canônico, dão, assim, origem a formas narrativas que não são do oral, mas
Uncle Buddy's Phantom, de John MacNaid? De que se trata? De do escrito, um escrito que imita a oralidade, mas que deve ter em
um hipertexto de ficção apresentando todos os bens de Arthur conta procedimentos técnicos, uma forma de inscrever por gestos,
Newkirk. O leitor herda sua fortuna. Não se sabe se ele está vivo por emoticons, signos que indicam o sorrir, a emoção, a cólera, o
ou morto; ele desapareceu deixando um conjunto de lembranças, contentamento etc. Essas novas formas de expressão transformam
entre as quais cadernos, desenhos, fotos, correio eletrônico, video- a escritura, pela adoção de formas mais curtas, numa sintaxe mais
clipes, histórias em quadrinhos, um baralho, cenários etc. Romance ou menos desestruturada, por usar onomatopeias, ícones e abre-
multimídia, ele é composto por uma dezena de prateleiras de viações. Submetidas a menos pressão normativa, essas micronar-
documentos e cassetes. Christopher Keep, ao comentar essaenorme rações recuam as fronteiras entre o oral e o escrito numa hetero-
construção, mostra que "o corpo" está, nesse caso, literalmente glossia generalizada. Esses usos já transformaram nossas práticas
fragmentado: quebrado em pequenos pedaços, espalhado pelo culturais, assim como já alteraram radicalmente nossas identidades.
texto. Temos a impressão, num primeiro momento, de que vamos Sobretudo as novas práticas literárias. Com TwelveBlue, de Michael
acabar captando o conjunto dos dados e entendendo o personagem joyce", o leitor internauta pode voltar atrás, reler o que ele já leu,
desaparecido, não exatamente na forma de um romance, mas seguir a trama do texto e deslocar-se para um segmento da narra-
praticamente. Mas é tempo perdido, pois o leitor se perde na es- tiva por um simples clique.
trutura labiríntica do romance hipertextual. Jamais poderemos Outros propõem um fio condutor. Em Trip, de Matthew
superar a coleção deixada por Newkirk. O leitor "sem lugar" é Miller, a navegação se organiza a partir do mapa dos Estados
constantemente desorientado, a não ser que aceitemos essa captura, Unidos. Basta clicar no mapa de um dos Estados para se deslocar
uma navegação por derivação, por associação de ideias, à maneira e seguir o fio da narrativa. Anne-Cécile Brandebourger nos faz
da exigência primeira da psicanálise, do sonho, ou das experiências partilhar da atmosfera de mistério que seu site provoca. A Hiper
surrealistas. Web, de Adrian Miles, é totalmente notável. Cada página é um
Esses exemplos mostram a importância desses novos modos
de escritura que datam no máximo de uma quinzena de anos. Eles M.Joyce < http://www.easrgare.com/TwelveBlue/>.

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quadro com algo semelhante a uma frase e elementos visuais, o Roma, de Fellini, assim que eles são expostos à luz. A própria
todo dando uma impressão de caligrama. Há, assim, continuidade maleta acaba por ser esquecida, na estação Rosa-Luxemburgo do
textual sem desorientação, pois se trata, apesar de tudo, de conju- U-Bahn. Quanto à verdadeira Rosa, o que a memória fez dela ...
rar a desorientação que suscita um dispositivo sem começo, sem
fim, sem paginação, sem pontos de referência.
Em que o hipertexto de ficção constitui uma renovação das Práticas de desvio
formas literárias e, portanto, das formas memoriais? Em que ele
contribui com o romancista, o poeta ou o novelista? Que novas Os novos flâneurs
práticas de leitura podemos destacar? Devemos temer um novo
"isso matará aquilo", como havia previsto um personagem de Diante das "catástrofes anunciadas", da amnésia generalizada, que
Victor Hugo diante do desenvolvimento do livro que seria levado desembocam mais sobre o esquecimento do que sobre um percurso
a matar a linguagem viva da catedral? É enquanto escritor, assim memorial, seria bom reencontrar o gesto ambivalente de pensa-
como enquanto leitor, que é preciso pôr à prova esses jogos de dores e escritores como Benjamin, Kracauer e Hessel, na frenética
escritura e buscar antecipar seu funcionamento memorial. Berlim dos anos 1920. Se denunciavam os perigos das novas rnídias
Imaginemos um dispositivo híbrido hipermídia (texto, fotos de sua época, eles igualmente viam nelas imensas possibilidades.
e documentos sonoros) sobre um personagem que teve sua maleta, Ojlâneur, como sabemos, é uma figura do século XIX. Figura
com conteúdo misterioso, extraviada num vagão de metrô de baudelairiana, se é que efetivamente o foi. Benjamin faz dele um
Berlim. O leitor encontra-se diante do mapa de Berlim com algu- ícone da Paris do século XIX, já na contracorrente. Ajlânerie se
mas estações de U-Bahn ou de S-Bahn linkadas. Assim que clicar, efetua sobretudo nas famosas "passagens", pois, antes de Hauss-
ele se encontra diante de um texto, uma "lexia",um bloco de texto mann, Paris tem poucas calçadas e elas são estreitas. Baudelaire se
que deve ser autônomo e ao mesmo tempo exigir uma sequência, pauta em "o homem das multidões': do conto de Edgar Allan Poe.
um esboço narrativo. O leitor deve percorrer um itinerário parti- O personagem no conto de Poe se esconde literalmente na mul-
cular, cuja significação é polissêrnica. Ele remete ao mesmo tempo tidão, ele é o anônimo das novas sociedades de solidão. Ojlâneur
à "história", à narração esboçada, e à história da Alemanha e de de Baudelaire, diz ainda Walter Benjamin, "será ocioso como um
Berlim. O leitor tomará conhecimento do conteúdo da maleta homem que tem uma personalidade; ele protesta contra a divisão
graças a esse itinerário, seguindo-o até o fim. O programa Story do trabalho que faz das pessoas especialistas. Ele ptotesta igual-
Space (versão francesa) permite constituir esse dispositivo. A es- mente contra sua atividade diligente. Por volta de 1840, era costume
critura de fragmentos, a pesquisa de links de tipo "mosaico", de levar tartarugas para passear nas passagens. Ojlâneur se compraz
links paratáticos, metafóricos mais que lógicos, convêm particu- em seguir o ritmo de sua caminhada ..."9. O homem da multidão
larmente à deambulação urbana, à poética das ruas, à errância, à é um "cliente" que não pode escapar ao fetichismo da mercadoria;
descontinuidade, à heterogeneidade das metrópoles pluriculturais ojlâneur, ao contrário, procura o prazer do ócio. O jlâneur está
contemporâneas, esses universos caóticos, nômades, às conexões diante da cidade como diante dos panoramas que exibem as ima-
fluidas onde se misturam estratos memoriais heterogêneos. gens. Ele simboliza um tempo que recusa a aceleração.
Pouco a pouco, ao longo do percurso, os objetos da maleta
começam a desaparecer, um pouco à maneira dos afrescos do filme 9
W. Benjamin. CharLes BaudeLaire. Paris, Payor, 1979, p. 83.

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Os jlâneurs dos anos 1920, como Hessel, têm, igualmente, própria história. As aberturas que ela propõe são a cena imensa daflâne-
um tempo que não se harmoniza com o ritmo da multidão, são rie que acreditamos nunca terminar. E eis que ela reviveria aqui, em
suspeitos. Berlim, onde ela nunca floresceu de tal maneira! 12

Caminhar lentamente nas ruas movimentadas proporciona um pra- Não se trata, no entanto, de subjetividades flutuantes, mas de
zer particular. Estamos assolados pela pressa dos outros, é um banho na umajlânerie que evita choques e busca reencontrar a experiência.
ressaca do mar. Mas, por mais hábil que você seja em lhes ceder a passagem, É assim que as "expedições" de um Kracauer na cidade, suasjlâ-
meus caros concidadãos berlinenses não me facilitam as coisas. Eu recebo neries, são experiências sociológicas que demandam uma nova arte
sempre olhares de desprezo quando tento flanar entre essas pessoas ata- de escrever, que será o "folhetim" do jornal ou a vinheta, a minia-
refadas. Eu tenho a impressão de que me tomam por um batedor de tura urbana:
carteira 10.
Resistir a ela é precisamente a intenção de um gênero literário do qual
Assim começam os Promenades dans Berlin, de Franz Hessel. as diferentes obras são igualmente, no sentido figurado, narrativas de
Todos o olham de viés. Ele quer entrar nos pátios interiores que viagem. À diferença de que as viagens às quais elas se dedicam realizam-se
são um dos charmes de Berlim. E ele consegue pela manhã, na em sentido inverso. Essas expedições não partem para a África, para a
hora dos tocadores de realejo. Ásia, elas exploram o território que nós habitamos; elas não viram as
costas, mas começam a elucidar o ser social que condiciona nossos atos e
Mas eu também gostaria muito de participar das festas desses pátios, nossos pensamentos. Em suma, trata-se de uma literatura sociológica que
viver as últimas brincadeiras infantis de que recordamos constantemente parece mais e mais se afirmar13.
do alto das janelas, e ver as meninas entrarem e quererem sair; só, não
encontro nem coragem nem pretexto para forçar a entrada, minha qua- Esta jlânerie está em perigo. Não é só porque ela não estaria
lidade de intruso é muito aparentell. mais em condições de absorver a memória da cidade; é porque
suas condições de possibilidade estão em vias de desaparecimento:
Walter Benjamin celebrou, a propósito de Hessel, "o retorno tecido urbano, lugares e, sobretudo, ruas.
do jlâneur", assim como a propósito de Kracauer, o do trapeiro, Há alguns anos, em Las Vegas, no Mirage, um desses grandes
outra figura Baudelairiana. hotéis dedicados ao jogo, ao glamour e ao espetáculo, ao falso, ao
simulacro, eu pude sentir que o estabelecimento era uma totalidade
No asfalto onde ele caminha, seus passos despertam ressonância sin-
comercial da qual era difícil escapar, pois tinha tudo: grandes halls
gular. O lampadário que ilumina apetit pavé ijoga uma luz equívoca nesse
com máquinas de jogo, restaurantes de toda espécie, bares que
fundo duplo. A cidade, auxiliar mnemotécnica do caminhante solitário,
ficavam abertos quando os restaurantes fechavam, bares com or-
interpela mais que sua infância e sua juventude; ela interpela mais que sua

12 W. Benjamin. "Le retour du flâneur". In. Franz Hessel. Promenades dans Berlin ..., p. 255.
10 F. Hessel. "Le suspect". Promenades dans Berlin. GrenobIe, Presses Universitaires de 13 Siegfried Kracauer, apud Gérard Raulet, "Socío-myrhologie de Ia vilIe".ln: Nia Perivola-
GrenobIe, 1989,p. 3l. topouIou & Philíppe Despoix (orgs.). Culture de masse etmodernité. Paris, Editions de Ia
II Idem, p. 33. Maison des sciences de l'homme, 2001, P: 156.

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

questras de jazz, todo tipo de lojas, desde a banca de jornais até a cionalidade, mudar de ritmo, transgredir ... É precisamente isso
drogaria, desde a loja de roupas de luxo, de praia, até aquela onde que decidem fazer Julio Cortazar e Carol Dunlop em Les Auto-
se vendiam camisetas baratas. Não havia ainda, na época, conexão nautes de Ia cosmoroute": Eles pegam a auto estrada de Paris a
à internet nos quartos (é o caso hoje), mas caixas de correio. Havia, Marseille, como milhares de outros turistas. Mas, ao invés de
certamente, piscinas com ar-condicionado, academias efitness com utilizarem a auto estrada para ir o mais rápido possível, parando
o material mais moderno. Havia agências de viagens que organi- apenas nos pedágios e em alguns postos de combustível para
zavam excursões para o Grande Canyon do Colorado ou o Vale abastecer, se refrescar ou almoçar rapidamente, eles apostam no
da Morte em minicarro climatizado. No limite, não tínhamos que inverso, parando em todos os estacionamentos, com diário de
colocar o pé para fora, onde fazia permanentemente cerca de bordo, fotos, localização de lugares, descrições, como se se tratasse
43 graus na sombra, para o caso, bastante improvável, de haver de uma expedição longínqua, de uma aventura épica. Emologia
sombra no deserto. Eu tentei a aventura de sair sem carro e ir de vagabunda do "turista" ao modo de "como podemos ser persas ?"ii,
um hotel a outro. Isso é quase impossível, tão grande são os obs- essa "expedição" é totalmente exótica e toma a auto estrada no
táculos. Entre essas dificuldades, o fato de que um pedestre seja, contrauso, tal como essas famílias que instalam bancos de lona
como oflãneur de Hessel, um suspeito. "No loitering" ("Aqui não nos acostamentos para apreciar a "paisagem".
se demora") estava escrito em toda parte. Ora, é precisamente o Uma outra experiência de desvio do não lugar, no sentido em
que eu gostaria de fazer: demorar. O novo flãneur seria aquele que que o entende Marc Augé, foi prevista por George Perec.
"contempla", que resiste à funcionalidade dos lugares, à sua amné- Um de seus amigos tinha feito o projeto de viver durante um
sia, ao seu ritmo. Walter Benjamin destaca, de forma muito fina, mês num aeroporto internacional, sem nunca sair. Na verdade, ele
a que ponto a percepção e, portanto, a memorização variam em poderia deixar o aeroporto apenas para pegar um avião e se des-
função do ritmo com o qual se aborda a realidade. Em Sens unique, locar para um outro aeroporto internacional. Não vemos, meditava
ele escreve: Georges Perec, o que teria podido impedir tal projeto de ser co-
locado em prática:
A força do campo é outra, se o percorremos a pé ou o sobrevoamos
num aeroplano. A força de um texto é outra, igualmente, se o lemos ou o essencial das atividades vitais e a maior parte das atividades sociais
se o copiamos. Quem voa vê somente a estrada se afastar através da pai- podem sem dificuldade se realizar nas dependências de um aeroporto
sagem: ela se desenrola diante de seus olhos segundo as mesmas leis do internacional: ali encontramos poltronas grandes, e bancos não tão des-
campo que o rodeia. Somente quem caminha nessa estrada aprende alguma confortáveis, e mesmo frequentemente, locais de descanso onde o viajante
coisa de sua dominação, e descobre como, nesse espaço que é para o avia- em trânsito pode dar um ligeiro cochilo; encontramos banheiros, chuveiro
dor apenas uma planície estirada, a estrada liberta, em cada uma de suas e, frequentemente, saunas e hamams. [...] Encontramos lojas de alimento,
curvas, distâncias, mirantes, clareiras, perspectívas'", cinemas, correio, serviços de secretariado itinerante e, evidentemente,
uma frota de bancos ...16.
Caminhar a pé, ver as curvas da estrada enquanto todo mundo
está num automóvel ou avião, evitar os usos, os lugares e sua fun-

15 J. Corrazar & C. Dunlop, Les Autonautes de Ia cosmoroute. Paris, Gallimard, 1984.


14 W. Benjamin. Sem unique. Paris, Maurice Nadeau, 1978,pp. 156-157. 16 G. Perec. Espêces d'espaces. Paris, Galilée, 1974,pp. 39-40.

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Mas o projeto não foi executado, sem dúvida porque não po- Às vezes, é difícil para ele colocar o "tempo", a narrativa no
demos viver nos não lugares e porque a polícia logo teria identifi- meio dessas instalações. É assim que em Sip my Ocean, de Pipilotti
cado um "não viajante". Rist, o dispositivo não tem nem começo, nem fim. As imagens
Podemos continuar a usar desses desvios, a fazer um uso inde- estão acompanhadas de uma música que é sempre a mesma. Ne-
pendente das áreas de estacionamento, dos aeroportos, do metrô, nhuma história é contada. O tempo parece ter desaparecido e o
ou da internet? Diante de todas as catástrofes anunciadas, e em visitante pode entrar a qualquer momento. O espaço, ao contrário,
particular dos tempos amnésicos do ciberespaço, medium sem toma um lugar desrnultiplicado com dois muros onde as imagens
memória, podemos ainda encontrar flâneurs na tela? se desdobram, com uma confusão entre o espaço real e o espaço
Dominique Paini se coloca essa questão a propósito de artistas virtual, criando um sentimento de inquietante estranheza. Numa
que escolhem as videoinstalações em vez de cimalha. Nessa arte outra instalação de Rist, Remake of tbe Week-End, o visitante é
de interstícios, é o visitante que organiza seus percursos. De Wolf convidado a deambular num apartamento, e são seus passos que
Vostell, NamJune Paik a Pipilotti Rist e Sam Taylor-Wood, a vi- constroem a narrativa. A imagem se desmultiplica e a duração do
deoarte se consagrou. Jean-Luc Godard gosta de dizer que é em percurso determina a da ficção. Dessa vez, o tempo é palpável,
vídeo que ele realiza suas Histôriats) do cinema. Em instalações exibido. Em outras instalações ainda, a narrativa se impõe de
em que a imagem projetada é onipresente, o "flâneur de instalação" imediato, como naquela de Sam Taylor-Wood em que três proje-
entra numa sala onde um filme passa num muro, numa tela gigante ções em três muros envolvem o visitante em um drama intenso, o
ou em diversos monitores. Ele vai e vem, entra e sai. Se ele retoma rompimento de um casal. As tecnologias digitais permitem ao
depois de algumas horas, o filme continua sendo transmitido. Ele visitante participar da própria elaboração da instalação, ao invés
captou apenas alguns instantes, algumas cenas. O dispositivo é de ser passivo, de se contentar em deambular. George Legrady
totalmente diferente daquele ao qual estamos habituados numa propunha assim, em 2001, no Centro Georges Pompidou, aos
sala de cinema. Confrontado a uma instalação com imagens, cujo espectadores de sua instalação PocketsfullMemories, estabelecerem
encadeamento é difícil de compreender, o visitante deve criar o seu próprio cenário, escaneando os objetos que lhes pertencessem
fio narrativo, dar sentido àquilo que vê e percebe corporalmente, como seu isqueiro, seu relógio ou o que tivessem em seus bolsos.
nesses deslocamentos. Em última instância, o visitante se torna um artista, se essa distin-
ção ainda tem um sentido com tais dispositivos democratizando
Trata-seaqui de interatividade,aquelaque decorreriada deambulação os pontos de vista.
nômade de um visitante que absorveria a ficção? É um dos traços parti- Entretanto, essas novas deambulações não são fáceis e exigem,
cularesdessaprática artísticaprocurar uma dramaturgia flutuante, enig- da parte do espectador, uma atividade interativa que talvez ainda
mática, uma sedução pretensiosa à altura da tecnologia sofisticadafre- não esteja integrada em seus hábitos mentais, mas que mobiliza
quentemente imposta ao visitante!". seu espírito crítico e sua memória:

o visitanteinicialmentedotado de intenção (artística)e confrontado


com a exposição de imagens instáveis cujo encadeamento engendra a
narrativa é violentamentetransformadoem espectadordesapontado com
17 D. Paíne. Le Temps exposé. Le cinema et Ia salte de musée. Paris, Cahiers du cinérna, "Essais",
2002, p. 71. o enigmadessasimagens,já que seconcentrar sobreelas,dar-lhessentido,

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supõe seja se deslocar, seja entender a duração de um ciclo repetitivo que vida nós encontraríamos continentes, ilhas, desertos, pântanos, territórios
essas imagens impõem'". superpovoados e terrae incognitae. Dessa memória nós poderíamos dese-
nhar o mapa, extrair imagens com mais facilidade (e verdade) que contos
Apesar dessas dificuldades, Dominique Paíni se maravilha, e e lendas. Que o sujeito dessa memória por acaso seja um fotógrafo e um
com razão, com esse retorno insólito e inesperado do flâneur, cineasta não quer dizer que sua memória seja em si mais interessante do
deambulando nas instalações nas quais as tecnologias digitais que a do senhor que passa (e ainda menos do que a da senhora), mas
estão onipresentes. simplesmente significa que ele deixou vestígios sobre os quais podemos
Mas podemos deambular também num CD-ROM, de forma trabalhar, e contornos para elaborar seus mapas20•
bem diferente que num livro. Aqui, a metáfora da navegação ad-
quire todo seu sentido. Por meio de cliques sucessivos, o internauta Chris Marcker quer reencontrar os percursos das antigas artes
cria seus percursos, como num hipertexto de ficção, e elabora sua da memória, espacializar a memória, o que os novos dispositivos
própria narrativa. Além da web, com efeito, que ainda não pode eletrônicos permitem sem simplificação ou redução do sentido.
acolher dispositivos muito pesados, há o CD-ROM. Chris Mar-
ker, com Immemory One em 1997, quis explorar suas possibili- Dar outra chance ao tempo
dades, como inscrição da complexidade do funcionamento
rnernorial'". Segundo o texto inaugural de Cícero, o inventor da arte da
Immemory One é dividido em oito zonas constituídas a maior memória é Simonide de Céos, que viveu a cavalgar nos séculos IV
parte do tempo de arquivos pessoais de Chris Marker: viagem, e V antes da nossa era. O texto fundador de Cícero relata um
fotografia, cinema, memória, museu, poesia, guerra, morte. O acontecimento ocorrido durante um jantar na casa de um certo
internauta é convidado a navegar no interior dessas zonas que Scopas, em Crannon, na Tessália. Simonide estava lá como poeta,
supõem um certo número de bifurcações internas e de conexões. pago para cantar louvores ao mestre da casa. Num dado momento
O conjunto é concebido de forma interativa num jogo de percursos da festa, o teto da casa desmorona e mata os convidados, a ponto
de diferentes zonas. de seus corpos ficarem irreconhecíveis. Simonide utiliza então a
força da memória, sendo capaz de restituir o lugar onde se encon-
Nos nossos momentos de loucura megalomaníaca, nós temos a ten- trava cada convidado, e portanto de identificar seus restos.
dência a ver nossa memória como uma espécie de livro de história: nós É, pois, associando uma imagem à de um convidado presente
ganhamos e perdemos batalhas, encontramos e perdemos impérios. No no momento do tremor de terra, a um espaço, a um lugar, ao local
mínimo somos os personagens de um romance clássico ("Que romance onde ele se encontrava, que Simonide pode reconstruir a cena, tal
a minha vida!"). como ela se apresentava antes do cataclismo.
Uma abordagem mais modesta e talvez mais frutuosa seria considerar Posteriormente, naquilo que chamaremos as artes da memória,
os fragmentos de uma memória em termos de geografia. Em qualquer a imagem associada a um lugar será predominante. A memória é
percurso, itinerário. É preciso encontrar os meios mnemônicos

18 Ibidem.
19 C. Marker. Immemory One. CD-ROM. Paris, produção e edição do Centro Georges
Pompidou, 1997. 20 Idem. Apresentação de Immemory One na inrernet.

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para restituir esses percursos. Inúmeros estudos tentam desenvol- cursos que possam enfrentar a arte de se perder, cara a Walter Benjamin.
ver técnicas para aguçar a faculdade de rernemoração". Ora, essa possibilidade é aquela, precisamente, que nos oferecem os per-
! II Com a tipografia, essas artes caíram em desuso. Não tínhamos cursos hipertextuais+'.
mais necessidade desse suporte para memorizar. Mas com o hiper-
texto e as possibilidades da internet, as artes da memória, sob a Nos novos palácios da memória, nas artes que utilizam a mul-
figura dos "palácios da memória", foram colocadas em primeiro timídia, nas criações literárias que usufruem do dique e da deso-
plano. rientação, é possível criar a complexidade, a memória viva e não a
Nos dois casos, a espacialidade da memória é primordial, a simples duplicação, escreve ainda Isabelle Rieusset-Lemarié, e não
relação entre uma imagem, uma ideia e um lugar. Nos dois casos, confundir a linearidade e a sequencialidade, o que fazem os mo-
a ideia de percurso é decisiva, assim como qualquer rede de metá- dernistas que têm "ódio da narrativa".
foras e de analogias. A diferença essencial está no estatuto da Walter Benjamin, em busca de um modo de escritura e de re-
"memória artificial". No caso do hipertexto, é alguma coisa da presentação que viria romper com os modos de escritura historicista,
"memória humana" que é exteriorizada, extraída da maquinaria opõe a musa épica ou Mnemosine à musa da narração, única
psíquica e projetada numa máquina, no exterior. O hipertexto é portadora de rememoração:
assim uma "memória do espírito" inseparável de seu suporte, do
computador. As artes da memória, ao contrário, buscavam no A memória funda a cadeia da tradição que transmite de geração em
exterior a ordem do mundo da qual elas queriam se apropriar geração os acontecimentos do passado [...]. Ela é a musa do gênero épico
constituindo uma memória artificial que transcendesse a memória na sua acepção mais ampla. Ela abrange todos os subgêneros da epopeia.
natural. A memória artificial era então um espelho do mundo. Entre estes, figura em primeiro lugar a arte encarnada pelo narrador. É a
Hoje, no retorno do palácio da memória, trata-se de equilibrar memória que tece a rede que todas as histórias formam, definitivamente.
memória involuntária e memória voluntária, memória interna e Pois todas elas se contam entre elas, como os grandes narradores+'.
memória externa, memória natural e memória artificial.
No mundo virtual, podemos também criar paisagens, arqui- O propósito hipertextual, se quiser parecer um verdadeiro
teturas, percursos que seriam o equivalente desses flâneurs dos percurso, deve dar ao usuário a possibilidade de criar seus pró-
anos 1920. prios percursos, seu próprio domínio de memória. Esses novos
Segundo Isabelle Rieusset-Lemarié: "palácios da memória assistidos por computador" recuperam a
experiência, transcendendo a estética do choque. Por isso, é preciso
o que é fator de empobrecimento da memória interior é o fato de se reatar com a narrativa, não temer a linearidade.
poder apenas suportar as imagens de memória transmitidas pelo viés das A atividade reticular tem limites e a desorientação induzida
técnicas de reprodução, sem ter a possibilidade de trabalhá-Ias, de trans- pelo ciberespaço não pode ser total. É preciso lhe dar limites. A
formá-Ias, de organizá-Ias numa arquitetura personalizada em que possa-
mos operar não somente percursos balizados, mas também outros per-
22 1. Rieusser- Lernarié, La Soeiété des clones ti tere de Ia reproduction multimédia. Arles, Acres
Sud, 1999, p. 382.
21 Sobre as artes da memória, consultaremos a obra clássica de F. Yates, L 'Art de Ia mémoire. 23 W. Benjamin. "Le conteur" [1936]. (Euures completes, 1Il. Paris, Gallimard, Folio, 2000,
Paris, Gallimard, 1975. p.135.

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leitura linear não implica obrigatoriamente percursos únicos, flânerie. Quer se trate de escritura ou de web arte, não está em
determinados de forma autoritária. causa um retorno tradicional à narrativa, uma regressão que não
Quando manuseamos um videocassete, somos obrigados a daria conta da especificidade do medium. É exatamente neste
fazer correr toda a fita para retomar a sequência que queremos último que é preciso apostar. Não, como propunha jean-Pierre
rever. Com as tecnologias digitais e a hipermídia, podemos ir Balpe, para "sair da literatura do livro", o que não me parece um
diretamente para essa cena, e compará-Ia com outra, mais distante. empreendimento oximoro, mas para originar um tipo de literatura
Desestrutura-se completamente a narrativa, na operação. ou de arte, ancorado no fragmentário, no deslocamento, na de-
sestruturação da sequencialidade, que manteria, pelos meios que
Mas por que a possibilidade de se deslocar numa obra, de poder con- lhe seriam próprios, um laço narrativo, permitindo limitar a de-
frontar fragmentos dessa obra entre eles, ou com fragmentos de outras sorientação e organizar percursos inéditos.
obras, por que essa liberdade acompanharia o ódio de tudo aquilo que Podemos, igualmente, com Louise Merzeau, especialista em
não é estruturado sequencialmente, mas linearmente? A estrutura linear rnultimídia, artista dedicada à fotografia na web e midióloga,
das narrativas nunca impediu as obras de serem abertas à leitura paradig- pensar que as novas tecnologias não são unicamente máquinas a
mática da intertextualidade, mas, para tanto, esse fio linear da narração, produzir simulacro, mas, segundo suas próprias palavras, "máqui-
não somente no desenrolar da leitura, mas no desenrolar da intriga até nas a explorar o tempo". Ela propõe, em diversas séries, criações
seu desfecho, é fundamental. O que essa estrutura linear permite é muito ligadas à memória. Em Strates", revisita a metáfora geológica da
simplesmente a estruturação da narrativa do início ao fim24. memória. Superpõe fotografias, reproduções de quadros, cartas,
documentos: "Procedendo por deslocamento e condensação de
o obstáculo seria a ideologia da destruição da narrativa. Toda provas analógicas, a montagem visa mostrar na extensão da imagem
a modernidade e as vanguardas do fim do século XIX e do século a hibridação e a estratificaçâo de camadas ligadas por cadeias
XX estão, com efeito, empenhadas com a narração, com as marcas mernoriais'T'. Lembranças imaginárias da Europa central emergem
cronológicas, a consistência dos personagens e o realismo da con- combinando-se, por camadas digitais, com cenas históricas e
textualização. Tudo foi progressivamente desestruturado: a histó- lembranças verdadeiras. O todo coloca em evidência uma memória
ria, a intriga, o contexto sócio-histórico, os eixos de temporalidade, itinerante pessoal, confrontada com uma memória familiar e com
os personagens. Uma nova concepção da literatura nasceu, muito um tempo histórico coletivo. Assistimos assim a uma verdadeira
mais polissêrnica, plural, autorreferencial. Ora, a internet vai não experimentação da memória, um medium dito "sem memória".
somente no sentido de uma dessequencialização, mas de uma Louise Merzeau faz o elogio do filme de Spielberg Minority
deslinearização, pelo salto, os blocos de sentido, a escritura, imagens Report que constitui uma manifestação das novas tecnologias:
e documentos sonoros. Trata-se de um suporte e de um medium hologramas, disquetes, telas translúcidas, telefonia móvel, OGM,
em que é particularmente difícil totalizar ou dar um sentido, ligar informação em tempo real, comando de voz, reconhecimento
os fragmentos. O que Isabelle Rieusset-Lemarié propõe é um ótico dos consumidores, auto estradas futuristas, biotecnologias
desvio das potencialidades da internet, uma transgressão da ur- por tráficos de órgãos etc,
gência, a fim de lhe insuflar tempo, alma, rememo ração, percursos,

24 L Rieussct-Lemarié. La Société des clones ..., P: 386. 25 Louise Merzeau, página pessoal na web.

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Spielberg tem o mérito de assumir a posição oposta a todos os não digitalizáveis, não quantificáveis na realidade poderiam resis-
discursos que denunciam os efeitos perversos das imagens. O que tir sem ser "reacionárias" ou nostálgicas, recontextualizantes e
ele denuncia, no filme, é de outra ordem: a deriva autoritária de reterritorializantes, sem cair nas ilusões da "autenticidade". Elas
uma sociedade de vigilância. Louise Merzeau vê no filme uma poderiam, por sua própria desaceleração, servir de "alerta de in-
reflexão sobre a memória e a filiação. "Através desta temática do cêndio". Um belo programa!
duplo, o filme conclui sua reflexão sobre a antecipação, interro- Caso contrário, sobre nossa memória saturada, ou totalmente
gando suas relações com a memória e a transmissão. [...] Os mor- amnésica, de qualquer forma, passará o tempo que não poderemos
tos não morrem", repete Agatha a Anderton. Não porque as parar, mas um tempo que se assemelhará a uma imagem de síntese,
imagens poderiam ressuscitá-los, mas porque elas permitem que que bloqueará toda transmissão na sua própria indeterminação,
os vivos escolham sua herança assim como seu futuro. Entre o nas suas possibilidades de abertura, na sua capacidade de singula-
destino e o futuro programado, abre-se uma terceira via: o exercí- ridade, um tempo sem poeira.
cio de um olhar e de uma memória reinventados. Pois, "aquele que Memórias saturadas. Nós teríamos sobretudo necessidade de
vê tem a escolha'". silêncio, de seguir o exemplo desse personagem de Heinrich Bõll,
Aqui, novas tecnologias e novas práticas memoriais não são Senhor Murke. Ele trabalha na rádio de sua cidade. Coleciona
contraditórias. pedaços de silêncio que gravou. "Quando eu devo cortar os bran-
Não é preciso, pois, renunciar às novas tecnologias e sobrecar- cos - suspiro, hesitação, ou pausa muito prolongada -, ao invés
regá-Ias de todos os males, inclusive da nova amnésia, duplicando de descartá-los, eu os guardo". E para o seu interlocutor que finge
a obsessão memorial que vivemos. Poder-se-ia, sem cair nos dis- não compreender e que lhe pergunta o que ele faz com esses resí-
cursos nostálgicos da recusa (do gênero: eu escrevo com uma velha duos, Murke responde: "Eu os colo pedaço por pedaço, e à noite,
máquina de escrever, ou com uma velha caneta, à tinta, eu não em casa, eu rodo a gravação ..."27. Colecionar fragmentos, pedaços
tenho nem telefone celular, nem e-mail, nem computador ...), de silêncio, seria um primeiro passo para um abandono dos pas-
desviar esses usos, contorná-los, medi-los, combater a amnésia sados fatais, o princípio de uma desapropriação, a tessitura de uma
fascinante do dispositivo por estratégias pedonais, mestiças, arte- outra memória.
sanais, na contracorrente, e reencontrar o gesto ambivalente que
tinha sido o de Benjamin e de Kracauer diante da modernidade
que era a sua, reencontrar essas práticas purificadoras como as Notas
chama Michel de Certeau.
Isso não inverteria a tendência atual para um consumismo da Calçada feita em mosaico. [N. da T.]
ii A aurora faz referência ao livro Cartas persas, de Barão de Montesquíeu. São Paulo, WMF
memória e uma desterritorialização da transmissão, para o que
Martins Fontes, 2009 [rzz r]. [N. da T.]
Bernard Stiegler chama de uma descontextualização generalizada, iii Montagem digital. Ver em <http://phorographie.merzeau.net/stratesl/>; acesso em
mas essas práticas de desvio, de "desaceleração", de inutilidade no 8/2/2016. [N. da T.]
plano funcional, essas práticas não instrumentais, não aproveitáveis,

26 Idem. "Gratteurs d'images. A propos de Minority Report de S. Spíelberg" Les Cachier de


médiologie, n. 15, novembro 2002. 27 H. Bõll. "Les silences de Monsieur Murke" Loin de Ia troupe. Paris, Le Seuil, 1966,P: 31.

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Cibermigrâncias

Eu transformei meu fascínio pelo e-mail, pela clavardage1• i, em


assunto de notícias, em fragmentos paródicos e lúdicos. Esses
fragmentos de cibermigrâncias sãojlâneries melancólicas e livres
entre passado e presente, entre mim e eu, entre Montreal, Berlim
e Paris.
Demail a pior. Em Paris, naquele inverno, eu não tinha acesso
à internet, portanto, sem correio eletrônico, não podia consultar
as mensagens que provavelmente se acumulavam. Em Montreal,
tornara-se um ritual: antes mesmo de escovar os dentes pela manhã,
eu ligava meu computador e consultava meu e-mail. A manhã era
a hora das mensagens do além-Atlântico. Eu estava à espreita.
Sabia que a manhã trazia uma nova cota. Mas, em Paris, nada.
Como fazer? Foi então que descobri o café Orbital, um cibercafé,
próximo ao Rostand, em frente ao Luxemburgo. Em posse de um
novo endereço, com um "Fr" para França, e um "Ca" para Canadá,
eu tinha um ar de orgulho. Aquilo dava continuidade à série
de dois: duas cidades, Montreal e Paris, dois apartamentos, o de

Palavra formada por bavardage [bate-papo). que os especialistas de fóruns na ínternet


utilizam para designar as infinitas discussões que são mantidas nesses fÓruns. as bavarda-
ges intermediadas por clavier [teclado].

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A MEMÓRIA SATURADA

Outremont e o de Montparnasse, duas contas no banco (as duas vindo de um outro. Valeria a pena tentar essa experiência. Eu não
no vermelho), duas chaves, duas carteiras que não tinham o mesmo apenas daria sequência a uma longa linhagem de originais que se
formato, dois climas, duas vidas, duas identidades e, agota, dois escrevem a eles mesmos ou que se enviam por fax. Em Le Golem
e-mails. Entrei no café apenas pelo lado prático da coisa. Assim, de l'écriture, conheci Ricardo Altmann, que tem um apartamento
eu poderia enviar mensagens e receber as respostas durante o tempo em Paris e outro em Liechtenstein e que passa seu tempo a se es-
de minha estada parisiense, mensagens profissionais ou de amigos. crever... Se a experiência não oferecesse nenhum interesse no meu
O fio não seria interrompido. Eu passaria uma vez por dia no caso, seria fácil colocar fim nela.
Quartier Latin, então! Mas, claro, eu tinha me tornado dependente,
uma viciada em comunicação. Eu sonhava não somente com esse RivkaA., do café Orbital em Paris, em 18 de dezembro de 1997,
pequeno telefone celular que todos os imbecis tiram de seus bol- a Régine Robin, em Montreal.
sos em todos os cantos da rua, mas também com um telefone desse Penso em você, Andrômaca. Que será de você nas suas neves
tipo que teria um cartão de conexão com a internet e que me quase eternas? Imagino você com suas botas, seu grosso casaco e
permitiria enviar ou receber mensagens de toda parte do mundo, seu chapéu. Você vai comprar Le Monde e Libération na livraria
sentada no terraço do Select, a cabeça nas nuvens como minha da Rua Bernard em Outremont antes de lê-Ios no Second Cup em
personagem de L'immense Fatigue des pierres. Esperando que a frente. Você fica lá uma hora, ou uma hora e meia, antes de ir para
tecnologia e, sobretudo, meus rendimentos tornassem a coisa o trabalho. Esse pequeno passeio deve lhe exigir cerro esforço.
possível, o recurso era o café Orbital e minha mail-identidade Basta que a neve das calçadas não tenha sido bem removida para
parisiense. Primeiras mensagens enviadas, saí e atravessei a Rua que o obstáculo seja intransponível. Como você faz para viver
Médicis. Era um dezembro enevoado, mas ameno, quase aveludado. numa cidade onde não se passeia no inverno? Sem passeios, deam-
Fui ler o Le Monde no Luxemburgo, próximo ao lago central. bulações ao acaso, sem tempo livre por aÍ. Vamos de um ponto a
Poucos transeuntes àquela hora, alguns apaixonados, alguns lei- outro de ônibus, de metrô, de táxi. Resolvemos o máximo de
tores, mães de família. As estátuas dormiam, as árvores nuas pa- coisas por telefone, vamos à casa de amigos (de táxi), à universidade
reciam esperar a primavera ainda distante. Tudo estava calmo. De (às vezes de táxi também), mas não passeamos. Eu pensava em
repente, a iluminação!
você esta manhã no Luxemburgo. Coitada! Dizia a mim mesma.
É a mim que devo enviar mensagens. Rivka A. escreve a Régine Mas não vou me queixar perpetuamente. Você quis assim, Georges
Robin e reciprocamente. Rivka A. escreverá quando estiver em Dandin! Precisaria que você me fizesse um favor. Eu preciso de
Paris e Régine Robin lhe responderá quando estiver em Montreal. um livro em inglês publicado há alguns anos na Johns Hopkins.
O tempo que as separará dará mais profundidade às suas mensa- Aqui, como você sabe, não vale a pena procurar. Você não poderia
gens. Nada da urgência que o medium supostamente traz. Ao me enviar-caso o encontre na Paragraphe ou na Chapters, ou ainda
contrário! Apenas adiamento, desaceleração do tempo, lembretes, na biblioteca de McGill? Eu retorno em dez dias, você pode colocá-
retorno, como uma caixa postal na qual encontramos diferentes -10 na minha sala na universidade. Você tem a chave, não é muito
vozes ao voltar de uma longa viagem, com a ressalva de que a voz difícil. Aqui eu vi M. Sempre introspectivo, mas simpático mesmo
seria ao mesmo tempo a minha e a de uma outra. Com alguma assim. Encontrei no cinema (a propósito, você vai ao cinema?)
chance, eu teria esquecido as circunstâncias e os pormenores de uma de minhas antigas alunas. Foi ela que me reconheceu. Sensa-
minhas mensagens. Issocriaria a estranheza, a alteridade, como ção estranha! Ao mesmo tempo o golpe da idade e um prazer

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RÉGINE ROBIN
A MEMÓRIA SATURADA

louco. Eu gostava dela. Seria preciso você ligar para P. para preveni-
cos onde a vida é sem dúvida, mais fácil. Nossa obscuridade! Você
-10 de meu retorno em dez dias. Ele tinha marcado um encontro
como professora universitária, eu como escritora inútil, verbena.
comigo para falar de algo que lhe aconteceu e eu não tive tempo
Nós não conseguimos mais nos encontrar. Tudo se passa por e-
de lhe dizer que iria tomar o avião. Vai cair na caixa postal, mas
-mail, hoje. Um verdadeiro jogo de esconde-esconde. Porém, sinto
basta lhe deixar o recado. Amigavelmente. Grande beijo. Cuide-se
saudades. Não se esqueça de preparar sua conferência sobre a
do frio. Até breve. Rivka A.
memória e a transferência para Austin e, para isso, de ler as últimas
publicações sobre o assunto. Uma pequena busca no CD-ROM
Rivka A. a Régine Robin, em 19 de dezembro.
do MLA talvez seja útil. Mantenha seu ritmo, não desista, mesmo
Sei que você não me responderá, não imediatamente, em todo
que você se canse. Você sabe onde estão as anotações que você fez
caso. Eu gostaria de lhe enviar um pequeno recado. Não esqueça,
sobre o L'Emploi du temps de Butor antes de partir?
ao retomar, de colocar os dossiês referentes à estada em Austin em
cima da pilha. Está uma bagunça tão grande na sua mesa que, se
Rivka A. a Régine Robin, em 20 de dezembro.
você não o fizer de imediato, não encontrará nada. Seu diário
Chove. Uma tempestade no mar da Irlanda. Teremos instabi-
igualmente, aquele de capa azul, deveria estar mais em evidência,
lidade, mas nos prometem um vento forte. Mais nenhum guarda-
de forma que você não precisasse passar horas procurando por ele.
-chuva aguenta. É preciso sair com essas pequenas capas de chuva
Ontem eu passeei ao lado de Grenelle, próximo ao metrô aéreo.
de plástico que enrolamos em volta do pescoço e que achatam o
Lá há um pequeno café, não muito longe do Kinopanorama, onde
cabelo. Putz! Eu me refugio no cinema. Muitos filmes em Paris
vemos passar o metrô com seu barulho metálico e sua poesia
como sempre. Fui assistir Paris, de Raymond Depardon, e pensei
melancólica. Fiquei lá muito tempo com minha máquina fotográ-
em você. Ele poderia muito bem se chamar "Gare Saint-Lazare"
fica. Assim que o metrô aparecia, eu tirava uma foto. Eu veria no
ou "Salle des pas perdus", Genial. Não deixe de assisti-Io quando
que isso daria em algumas horas. Eu sei que você gosta desse tipo
ele passar em Montreal, se ele passar. Você conhece a qualidade
de experiência. Você deveria tentar em Montreal, seria divertido.
plástica das fotos, dos planos de Depardon, suas formas de sobex-
Trocaríamos nossas experiências. Eu imagino que esteja nevando
por, ou de superexpor, seu ritmo lento que não faz nenhuma
aí e que você esteja refugiada em seu escritório, que você leia coi-
concessão, sua câmera ao mesmo tempo terna e impiedosa. O tema
sas eruditas sobre Proust e companhia, que você prepare seus
é clássico no início. Um diretor quer fazer um filme, mas não sabe
cursos, faça um café, telefone a este e àquele. É engraçado, mas,
exatamente sobre o quê. Ele quer encontrar ao acaso jovens me-
com o passar dos anos, eu me pergunto o que você faz aí. Partir
ninas e lhes pedir para contarem sua vida, para se contarem. Ele
para Montreal para seguir um cara, eu posso compreender. It verá no que isso dará. Ele não tem nenhum domínio do processo,
happens in the bestfomilies. Não é isso que me intriga, mas o fato ele se deixa guiar pelo acaso. No entanto, ele tem a contribuição
de você ter ficado, de você não ter voltado para junto de nós para
de uma colaboradora que sabe encontrar numa multidão o rosto
viver o cotidiano, em Paris, nem que seja apenas para continuar
que comove. Na verdade, aquela que ele procura é ela, mas ele
nossas caminhadas um tanto inúteis e nossas leituras sempre na
nunca saberá. Ela lhe sugere, em um dado momento, encontrar
contracorrente, para saborear esta obscuridade na qual nos insta-
atrizes, mas isso não dá em nada. Elas desviam o dispositivo e é ele
lamos enquanto, como vários de nossos amigos e conhecidos,
que acaba por ser questionado. Ele quer pessoas comuns, não
poderíamos ter sido conhecidos e lançados nesses meios rnidiáti-
profissionais. No fim, ele decidirá por não continuar, por falta de

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

desejo. Alguns momentos muito fortes pontuam o filme. Há aquela todos os anos, até o momento em que o movimento dos desem-
que passa sua vida no café, na estação Saint -Lazare (eu pensei em pregados se alastra e arrisca colocar Jospin em dificuldade. Parabéns,
você, bastaria que passássemos da estação Saint- Lazare à Montpar- trabalhadores! Se há uma manifestação, eu irei. E você aí? Estranho
nasse). Ele lhe pergunta por quê. Ela lhe diz que é o lugar ideal uso do e-mail! Evidentemente, você não responde. M. me propôs
para ela. Estamos ao mesmo tempo sozinhos e com todo mundo. passar o fim de semana na sua casa de campo na Picardia. Que
É um lugar onde vemos passar muitas pessoas. Sentimos pulsar a nada! Eu estou bem em Paris; não saio daqui mesmo que faça um
vida, o cotidiano. Ao mesmo tempo, estamos no anonimato, não tempo horrível. Sempre a tempestade na Bretanha. Pobre de você!
somos importunados, podemos saborear essa dupla postura. Essa Eu soube da morte de Georges Marchal, muito sozinho e aban-
moça era realmente surpreendente. Há também aquela que se sente donado. Segundo minhas lembranças, na sua infância, ele era seu
libertada pela morte de sua mãe e que repete sem parar que é mais ator preferido. Ele havia se separado de sua mulher Dany Robin,
fácil fazer as pazes com os pais mortos do que com os pais vivos. que morreu acidentalmente num incêndio em Paris em 1991. Você
No final, quando ele abandona o filme, ele se vê diante de uma não sabia de tudo isso, não é? Ainda um pouco de seu mundo que
jovem que o acusou de não saber fazê-lo, de ser desajeitado, ou se foi. Mas claro! Não brigue comigo. São pequenas novidades.
mesmo agressivo. Você que trabalha com narrativas de vida, você Eu as trago para você quentinhas. Se você vir M., não esqueça de
estaria nos céus. É delicioso e trágico com a vida. convidá-lo para o colóquio X. O que ele faz é interessante. Não
Eu vi também Titanic no Champs-Elysées, mas você o verá deixe de lado. Fique bem, no frio. Beijos. Rivka A.
porque não se pode perder esse. Se estamos passeando e queremos
descontrair, tudo bem. Na saída, eu estava contente em voltar para Régine Robin a Rivka A. Montreal, em 13 de janeiro.
um lugar seco e ter sobrevivido. Fui ao Fouquet's pegar um uísque Estou de volta. Encontrei todas as suas mensagens. Obrigada.
esperando V. com quem eu tinha um encontro. Passemos! Os Algumas me arrancaram lágrimas. A morte de Georges Marchal
caras não são mais suportáveis aos 50 que aos 30 anos, mas você e de Dany Robin, por exemplo. Você fez de propósito. Você sabe
sabe tudo isso tão bem quanto eu. Eu gostaria muito que você me que minha filha se chama Anny Robin. Você acredita, explicação
desse notícias. Grande beijo. Rivka A. psicanalítica de botequim, que eu me casei antigamente com
um Robin e que eu dei esse nome para minha filha por causa de
Rivka A. a Régine Robin em 21 de dezembro. Dany Robin? Um golpe do inconsciente assim? Sem dúvida é mais
O Natal se aproxima e, como todos os anos, o dilúvio de bes- complicado! Estou ansiosa para ver o Depardon. O Titanic pode
teiras que acompanha uma festa que se tornou puramente comer- esperar, eu vou correr para o último Woody Allen que passa no
cial. O bservação, eu prefiro ainda o comércio as carolices que nos Égyptien. Eu lhe darei notícias assim que o tiver visto. Faz frio,
impingem na televisão ou nas grandes lojas. Ah! O White Cbrist- neva. Eu não saio muito. Trabalho. Penso em você em Paris. Invejo
mas! Era um filme com Dany Kaye. Eu tinha 15 anos. Estava em você, mas são necessários momentos de pausa, de trabalho, de
Londres. Era meu primeiro amor. Ele se chamava Norbert. "Eu te reflexão, é preciso abrir seu próprio espaço de meditação. Montreal
amarei para sempre': disse, imaginando estar dizendo algo total- é para mim uma cidade propícia à meditação. Em Paris, não con-
mente inédito. Ele tinha alguns anos a mais do que eu. "Sempre é sigo trabalhar seriamente. Em Paris, eu vou ao teatro, ao cinema
muito longo': ele respondeu enquanto a música melosa de Wbite (um filme por dia), eu vejo exposições de pintura, eu passeio horas
Christmas nos envolvia ... Em suma, eu me acabei em foi gras como pelas livrarias, pelos cafés, vou ver amigos, conhecidos, editores,

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

participo de seminários, assisto a uma ou duas conferências no A próxima vez eu lhe contarei a catástrofe que nos ocorreu: a
voo, eu vejo minha psicanalista, passeio sem fim pela cidade com tempestade de gelo. Você deve ter visto o espetáculo apocalíptico
minhas pequenas experiências formais e minha câmera fotográfica. no jornal de TV. Beijos afetuosos. Régine Robin.
Há também minha vida familiar, filial, meu irmão, minha filha.
Tudo isso me toma tempo, energia, e se consigo passar um tempo Régine Robin a Rivka A.
na Biblioteca Nacional, eu me sinto imediatamente culpada. Como Você deve saber tudo com detalhes: a cidade devastada, as
você está na biblioteca enquanto há um festival de filme policial antenas caídas, os postes quebrados, os transformadores com
americano dos anos 50 na Rua Champollion? Como você se fecha torrentes de raios, os galhos das árvores caindo num estranho
enquanto faz um lindo dia e você poderia estar no Luxemburgo? estrondo, as pessoas mergulhadas no escuro, o frio, às vezes sem
Como você se cansa penosamente com essa revista, esse velho água potável, sem telefone. Um fim do mundo.
grimório, quando deveria estar num bistrô na Bastilha? Aqui, há, Mas o que mais me chocou foram os discursos que se instituí-
naturalmente, meu esposo. Há meus cursos, meus alunos, minhas ram; eu resumirei rapidamente.
pesquisas, a escritura, meus diários e os livros que eu escrevo. Hoje, No começo, houve o retorno do lenhador. As pessoas do Sa-
por exemplo. Neva. Não vou sair. Meu marido vai fazer as compras. guenay, ourras regiões do Quebec não atingidas pelo gelo, come-
Ele trará o Le Monde também. Eu me encerro. Reflito, leio, res- çaram a enviar massivamente "feixes" de lenha às vítimas. Nós
pondo aos meus e-mails, às suas mensagens para começar. Tenho vimos apenas lenhadores. O retorno dos velhos valores do tempo
necessidade desse silêncio, dessa profundidade, dessa estagnação em que cada família tinha seu fogão a lenha no centro da casa. Ah,
do tempo, da repetição do cotidiano, dessa lentidão. Em Paris, a sabedoria dos ancestrais! O que nós perdemos na grande cidade
mesmo quando eu fico muito tempo, tudo é sempre precipitado. eletrificada pela boa fada Eletricidade!
Lembro-me que, em ano sabático, eu quis quebrar a espiral dessa Em seguida, há o discurso do realismo socialista versão quebe-
precipitação. As semanas em que eu não passava todo meu tempo quense. Se, para Lênin, o socialismo era "os sovietes mais a eletri-
na Biblioteca Nacional, eu tentava me reapropriar da cidade no cidade", aqui nem sovietes, nem eletricidade, mas nossos valorosos
nível cotidiano. Reencontrar os gestos simples, comprar a baguete, "montadores de linhas de transmissão", trabalhando dia e noite
os jornais, fazer compras, falar com os comerciantes, fazer mercado, nos postes, não temendo nem o frio nem a neve, trabalhadores da
ir ao caixa eletrônico pegar dinheiro, comprar selos, enviar uma reconstrução. Ah! Eu já vi isso em alguma parte do lado das bar-
carta registrada, ir à tabacaria comprar cigarros, comentar sobre a ragens de Magnitogorsk.
atualidade tomando um aperitivo" etc. Há finalmente a versão do Pai carismático para os dias de ca-
Não esqueça de telefonar a L. Eu esqueci de fazê-lo quando tástrofe. O primeiro-ministro, tal como o Messias aparecendo
estava em Paris. Diga-lhe que, se ele passar por Montreal, eu o todas as noites na televisão, ladeado por um playhoy de volta às
apresentarei à X. e P. Compre para mim o último livro de M. Se suntuosas golas altas, carregando um grande Q de Hydro-Québec
eu esperar que as livrarias o recebam, levará mais de um mês. Nem no pescoço. Foi um belo espetáculo e o bom povo como sempre
pensar. Onde estão os desempregados? Penso que o movimento abandonou o fogo, assim que pôde rever a luz.
não está perto de desaparecer mesmo que inevitavelmente ele se Falando sério, isso foi um episódio engraçado de viver. Veja que
desgaste. não nos entediamos.
O que você escreve neste momento?

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RÉGINE ROBIN

A MEMÓRIA SATURADA

Eu lhe imagino andando por aí numa Paris um pouco triste.


Você entra numa livraria. Para durante um longo tempo, medita. um dia de atraso. Não faz mal. Leio todo o editorial, as páginas
Sai, vira a esquina, para no quiosque para comprar o Le Monde, consagradas à política internacional, à política interior, as páginas
apressa o passo e termina por se instalar ao fundo do Select. Dois culturais, a previsão do tempo, o que está indicado para Montreal,
mundos, mas, veja, eu também preciso da América. para verificar que Le Monde não se enganou, as cotações da Bolsa,
neste momento o destino do euro, o obituário, tudo. Eu devoro
Régine Robin a Rivka A. minhas duas torradas, termino minha leitura do Monde, passo ao
Impossível me levantar cedo pela manhã. Eu escuto rádio. Libération ao me servir de uma outra xícara de café.
Pergunto-me sobre o tempo. Deve nevar ou cair uma chuva con- Vou me lavar, me vestir, volto ao meu escritório, desta vez, por
gelante. Tempo horrível de qualquer forma! Escuto as informações, longas horas. Tenho muito trabalho: dois artigos em andamento,
as notícias locais, algumas canções. Três coisas me fazem sair da diversas notas para classificar, cursos para preparar. Mas, antes,
cama regularmente: o xixi da manhã, ou a fome, a vontade de preciso voltar às minhas mensagens, àquelas que não respondi.
tomar um bom café da manhã, o desejo de entrar no meu escritó- Conecto-me novamente. Sem novas mensagens, mas eu volto
rio para ver se minha secretária eletrônica está piscando, se alguém àquelas que tinha recebido esta manhã. A metade delas exige
me telefonou. Eu ainda estou de camisola. Esquento água, ligo respostas rápidas. Uma por uma, abro essas mensagens e respondo.
meu computador. Na tela do Windows, clico no ícone que vai me Sim, eu estarei em Veneza no fim do mês de maio; não, para Lon-
conectar à interner e verei se há e-mails. You havemail é a mensa- dres é impossível em novembro, mas eu terminarei o artigo como
gem. Nove horas da manhã, ou 15 horas em Paris, em Berlim, em previsto em outubro; sim, é preciso reservar um lugar no Ópera
Roma. A manhã é a descoberta das mensagens da Europa. Em para minha chegada em Paris etc. A resposta a esses diversos e-mails
geral, convites para colóquios internacionais, ou mexericos me tomou uma hora. Foi o tempo de terminar este tipo de corres-
parisienses,as últimas notícias vistas na televisão ou no Le Monde pondência, e uma nova mensagem chegou de Nova York, desta
que eu ainda não li. Mas meu Eudoraiii ligth, como há a Pepsi light, vez. Trata-se de uma mensagem de N., que eu esperava havia muito
está em pane. Acontece o mesmo com o meu velho "Telix"iv. Uma tempo. Ele aproveita para me dar a referência bibliográfica de que
mensagem estranha I can't understand
me impede de continuar: eu tinha muita necessidade. Sinto-me leve. Deixo meu correio
keyword "keypad"in line 131 in "elmlelmrc"file. I can't understand eletrônico, mas não ainda a internet, Se vou ver minha página web?
keyword "softkeys"in line 171 in "elmlelmrc''file. Fix elmlelmrc or Ver de onde vêm as últimas 15 visitas? De que país? Verificar as
let elm rebuild elmrc with option "to". Dá no mesmo dizer em chi- porcentagens? Eu constato que a página inicial de meu site é muito
nês. Foi preciso passar para velhas geringonças como Kerrnír" e visitada, assim como meu CV. É incrível como as pessoas se sentem
Pine'", pois meu Ouclook Express não funcionava mais. Mas, enfim, curiosas em relação ao meu CV! Eu devo mexer com a imaginação
estou conectada de novo. delas. Uma parte das pessoas que o consultam deve achar que eu
Disseram-me que me enviaram um fax, já que meu file attached tenho sorte, que publico muitos livros e artigos, que faço coisas
está em pane. Da mesma maneira há uma dezena de mensagens a diversas, que viajo muito, que levo uma vida excitante ("Mamãe!
cada manhã. Fico sabendo disso antes do café da manhã. A chaleira Não se estresse na vida': repete constantemente minha filha); a
apita, vou, então, à cozinha. É o momento em que leio o jornal outra parte deve pensar que eu sou completamente louca, mas sem
parisiense que fui buscar na livraria Outrement. Estou sempre com dúvida isso dá no mesmo. Minha autoficção experimental?', ao
contrário, recebe menos visitantes. Que pena! Mas isso pode

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A MEMÓRIA SATURADA

mudar. Basta que eu a torne conhecida. Nada substitui o boca a


tenho uma dúvida. Eu realmente respondi a este e àquele e-mailt
boca. Saio de minha página web, faço uma última verificação: you
Parece-me que sim. Verei mais tarde. Concentro-me, prossigo
have mail. Uma nova mensagem é exibida. É Paris, é a reposta à
minha leitura. Duas horas se passam, mais ou menos sem inter-
resposta. Eu tenho sorte. Avalio, então, o que o e-mail significa, o
rupção. Avancei nas minhas leituras, menos nas anotações. Está
COntato imediato, ou quase imediato, de uma ponta a outra da
na hora de me reconectar. Duas mensagens não muito empolgan-
terra pelo preço de uma comunicação local, isto é, quase nada para
tes. Pelo menos, elas podem esperar. Pelo Google, decido ver o
mim. Pequenos júbilos matinais. Eu respondo imediatamente,
que posso encontrar numa pequena cidade do Texas onde devo ir
Mail sent, depois saio da rede para entrar no meu editor de texto,
brevemente. Que clima fará lá no final de fevereiro? Sonho com
minhas pastas, meus arquivos. São 11 horas da manhã. Neva, uma
esses céus desconhecidos, no país dos cowboys. Isso me faz pensar
neve fina com o ar tenaz. Por vezes, a neve rodopia, por vezes, o
que eu não prestei atenção naquilo que está em cartaz neste mo-
vento sibila, espirais brilhantes sob o sol pálido. Eu tento me ab-
mento no Grand Action, na Rua das Écoles. É um exercício que
sorver na preparação da comunicação sobre a língua materna que
eu faço todas as semanas. Eu brinco de "O que eu perco em Paris
devo proferir em breve. Eu gostaria de partir do exemplo da sin-
neste momento ?".Sigo uma lista mais ou menos longa de filmes,
gular reapropriação-invenção do hebreu moderno operada por
peças de teatro, exposições de pintura ou instalações. Com isso,
Ben Yehouda. Li excertos de sua autobiografia, tomei algumas
tenho uma espécie de calendário semanal e mensal, uma agenda
notas, algumas citações que eu sei que me serão úteis. Duas horas
fictícia: que eu faria se estivesse em Paris? Preencho agendas fic-
se passam. Levanto a cabeça, ainda neva. Desfaleço, começo a
tícias. Semana do Festival de Filme Brasileiro, o último Woody
sentir fome. Antes de parar para fazer um ovo cozido com salada,
Allen, tal ou tal peça de teatro etc. Levanto-me para tentar encon-
entro novamente na internet para ver se tenho mensagens: You
trar um velho número do Monde. Tempo perdido! Já fiz a mudança.
have mail. Eu tenho três mensagens. A primeira não tem nenhuma
Eu tento não deixar meu espírito vagabundear, volto ao trabalho.
importância: publicidade, ou lista em que eu infelizmente figuto.
Chegam as 17 horas. Eu decido fazer uma xícara de chá, não sem
Preciso pensar em sair dessa lista; o segundo indica: Host unknown.
ter olhado se havia e-mail. Três mensagens de leitores ocasionais
O endereço eletrônico estava errado. Devo ter colocado um ponto
que caíram por acaso na minha página web e que me dizem tudo
onde era preciso um hífen ou o inverso. A verdade é que minha
de bom que pensam sobre ela. Estou encantada. Bom para o nar-
longa mensagem retornou sem ter sido encaminhada. Preciso
cisismo. Verifico então se respondi seja lá o que for. Sim, eu tinha
reencaminhá-Ia prestando atenção desta vez no endereço correto.
respondido. Não ficar gagá antes da hora! Eu verifico então quem
A terceira é uma nova mensagem, local, cuja resposta pode esperar.
tinha me telefonado. Droga! Era urgente. Disco imediatamente
Retorno ao editor de texto. Decido parar para almoçar. Levanto-
o número. Muito tarde, depois das 17 horas X. deixa seu escritório.
-me, vou à cozinha, ligo o rádio, preparo o molho da salada etc.
Vou lhe enviar um e-mail; não, pensando melhor.prefiro esperar
Depois dessa leve refeição, ainda preciso esticar as pernas. Saio,
até amanhã para lhe falar diretamente. Tenho à minha disposição
vou tomar um expresso no café République, no Second cup ou
meu telefone com a secretária eletrônica, fax e, naturalmente, o
em outro lugar. Não fico muito tempo. Retorno para casa. Último
correio eletrônico. Utilizo o correio apenas para correspondência
controle do e-mail antes de recomeçar o trabalho.
oficial, administrativa, ocasiões importantes. Ainda não tenho
O telefone toca, tirei a campainha mas escuto o barulho da
telefone celular, nem deste, nem do outro lado do Atlântico, mas
secretária eletrônica. Não atendo. Começo a trabalhar. De repente,
isso não vai demorar. Estou ansiosa para andar por aí com um

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A MEMÓRIA SATURADA

celular. Eu obviamente tenho também os cartões eletrônicos para day. É hora de ver se minha página web foi vista hoje. Seria melhor
telefonar de uma cabine em qualquer lugar do mundo. Eu não alimentá-Ia, mas me sinto cansada. Chegou a hora de ir comprar
faço, de modo algum, o mesmo uso desses diferentes meios de o Le Monde e o Lib« na livraria da esquina. Ao retomar, instalo-me
comunicação. O fax, para enviar excertos de jornais, artigos, pro- para ler os jornais, mas, antes, uma pequena verificação. Nada. ME
vas, escritos; o e-mail, para tudo o que queremos; mas, quando ESQUECERAM. EU NÃO EXISTO MAIS. ESTOU DEPRIMIDA!
preciso falar com alguém, eu simultaneamente envio um e-mail São 19 horas.
(isso não custa nada) e dou um telefonema (às vezes muito caro) Mais nenhuma mensagem pode vir da Europa, onde é 1 hora
para ouvir a voz, especificar isso ou aquilo. O e-mail não é imediato. da manhã. É hora do jornal da TV das 2 na TV5. Impossível perder.
Mas o telefone é. Acontece mesmo de enviar um e-rnail: "Atenção, É minha missa cotidiana. Precisamente, falam da moda do telefone
eu vou lhe telefonar em tal hora. Considerando o fuso horário". celular e de seus efeitos na sociabilidade dos indivíduos, informam
Estou segura apenas quando tenho meu correspondente ao telefone, que somos obrigados, no teatro ou na ópera, a pedir às pessoas
mas você, eu não consigo ter. Sonho com um escritório onde haverá para desligar seus telefones, que no café elas não se falam mais,
permanentemente correio eletrônico com as mensagens sendo que no ônibus elas estão constantemente ligando: "Alô, sou eu.
exibidas constantemente. Numa outra linha, o fax cintilaria, numa Estou no ônibus. Estou na Rua de Rennes, 96. Em cinco minutos
terceira, a secretária eletrônica agitar-se-ia. Enquanto isso, eu, num estarei no terminal, em Montparnasse. Estarei em casa em 15
terraço de bistrô, telefonaria a X. do meu celular. Ao voltar para minutos. Alô, não te ouço bem. Estou no ônibus ...". Depois do
casa, abriria minha caixa de correio. Que pena! Nada além de fa- jornal da TV, faço um bife e macarrão. Olha um pouco a TV ame-
turas! Por essa razão, eu as deixaria na caixa. Eu subiria os degraus ricana, mas sem convicção. Meu dia de trabalho está quase termi-
de quatro em quatro. É uma forma de falar. Na verdade, eu subo nado e eu não fiz grande coisa. Lamento. No entanto, tenho aulas
penosamente, como uma velhinha. Tiraria meu casaco, entraria para preparar, comunicações para elaborar, inúmeras leituras para
no meu escritório: três páginas de fax, quatro mensagens na se- terminar e um capítulo de livro para avançar. Começo a trabalhar,
cretária eletrônica e outras quatro mensagens de e-mail me espe- mas antes penso que, se é muito tarde para a Europa, é uma boa
rando. PENSAM EM MIM. NÃO ME ESQUECEM. EU EXISTO. hora para meus correspondentes do Texas e da Costa Oeste, os de
Tempo perdido! A voz na secretária eletrônica é quatro vezes Vancouver, de Seattle, da Califórnia. Eu me reconecto. Impossível!
a mesma. É a American Express que está preocupada. E não paguei Deve ter muita gente na rede. Sinto-me órfã. Não consigo acessar
a minha última fatura. As três páginas de fax são de publicidade o essencial; é como se tivessem roubado minha existência! Sinto
de um plano funerário. Se eu morro subitamente, meu esposo que vou receber uma mensagem absolutamente fundamental.
feliz embolsará a bela quantia de ... Coloco tudo no lixo. Sobre os O que eu espero? O Messias, ora! É claro! Aliás, na mesma hora
quatro e-mails, um deles chegou como Host unknown. Ainda um em que eu me sinto abandonada, o telefone toca. Atendo. É Z.,
endereço errado ou um erro ínfimo. Recomeçar. O segundo é uma que me diz que ela não consegue falar comigo por e-mail, que quer
mensagem administrativa. Chatice. Apago antes de ler. O terceiro me convidar para ir a Los Angeles para um colóquio em maio de
envia a última piada que corre sobre Clinton. Engraçado, mas não 2000 sobre Shabbatai Zvi, o falso messias do século XVII, e que
urgente. Quanto ao quarto, chega em "hindu', com caracteres gostaria que eu lesse um texto de ficção nesse colóquio. A univer-
totalmente ilegíveis. Não saberei jamais o que meu interlocutor sidade pagará o avião e quatro noites de hotel próximo à UCLA,
disse. Faço pouco. Estou decepcionada, mas tomorrow is another sem dúvida no Wilshire Boulevard. Eu lhe respondo imediatamente:

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RÉGINE ROBIN A MEMÓRIA SATURADA

"You made my day". Adoro Los Angeles, adoro Shabbatai Zvi e mal de Alzheimer, se eu não lembrasse mais? Não. Envelhecemos,
tenho fascínio por viagens. Z. me diz que encontrarei detalhes do certo, mas mesmo assim!
colóquio no e-mail amanhã pela manhã. É chegado o momento Envio uma mensagem a Z. para desanuviar. Em Los Angeles,
de desligar o computador. Uma última tentativa. Funciona. Ne- são apenas 22 horas. Uma ficção sobre uma misteriosa mensagem
nhuma mensagem, mas no Yahoo olho fotos do Texas. Coloquei de e-mail que seria assinada: Shabbatai Zvi, isso lhe serve?
um CD comprado na Fnac em dezembro. A música de Johnny Deixo, enfim, a morte na alma, minha tela. Vou tomar minha
Guitar, do filme de Nicholas Ray que eu vou rever pelo menos ducha e me deitar. Levarei para a cama um romance policial: Morte
uma vez por ano. Deixo-me levar pela música. Sou uma Emma por e-mail. Estou entusiasmada para mergulhar nele.
Bovary do western. Antes de desligar, olho uma última vez meu Na cama, penso que eu deveria telefonar a Y. Em Paris, já são
correio eletrônico. Um chato me diz para prestar atenção aos vírus 8 horas da manhã. Eu não a acordarei. Ela me falaria sobre o tempo.
que invadem a rede, que se eu vir tal endereço chegar, não devo Ficará para amanhã. Eu lhe enviarei uma mensagem. You have
absolutamente abrir a mensagem etc, Desanimador, eu vou desli- mail. EU EXISTO. Penso em você.
gar quando uma nova mensagem chega, estranha e assustadora.
"Fui sua aluna em 68, em Nanterre. A senhora não se lembra de Rivka a Régine Robin
mim, mas eu lembro da senhora. Eu tive muita dificuldade em Você deveria viajar, isso faria bem a você. Volto de Berlim e
achar alguma pista sua, mas a senhora é muito conhecida, então gostaria de falar com você. Comprei lindos cartões-postais que
eu tentei pelo Google e caí no seu site web. A senhora não mudou. colocarei em sua mesa. Você os terá quando voltar. A cidade muda
Sempre tão 'louca: se me permite. Não sei se a senhora tem uma muito. Eu não me encontro muito bem entre o Leste e o Oeste
boa memória, mas em 68 a senhora teve um romance com um hoje reunidos. Eu tinha tanto o hábito desses dois mundos. Está-
estudante. Talvez fosse segredo, mas eu soube. Certamente, isso vamos tão bem à sombra do muro em Kreuzberg nos anos 1970.
faz 30 e poucos anos, mas eu fiquei muito próxima de M. Infeliz- Você se lembra? Sobrevivemos. Sem tolas nostalgias! Comecei um
mente, M. morreu de Aids há quase dez anos. Revendo hoje velhos texto sobre Berlim que você vai gostar.
papéis, deparei com uma velha foto na qual creio reconhecê-Ia. É. O cheiro embriagante de tílias depois da chuva em Dahlem.
Nunca sabemos. Apenas gostaria que soubesse. Boa-noite. Assi- As rosas de Potsdam.
natura ilegível". Disse a mim mesma: "You made my day!". Que Os pássaros no quintal de meu prédio em Friedrichshain, nas
história é essa? Eu nunca tive um romance com um estudante em bétulas, nos plátanos e nas castanheiras.
68. Aliás, eu sempre lamentei isso. Passei ao largo, ao largo de tudo. Então, essa liberdade, isso não é tão produzido assim, hein?
O que essa imbecil procura? Fazer-me acreditar que eu poderia Então, a liberdade não é totalmente produzida dessa forma? Escrita
ter Aids? Fazer-me chantagem (a mulher respeitável que não em Karlshorst, em letras grandes sobre o painel do teatro de verão,
. queria que contasse sua vida)? Que história é essa? Ela acreditou perto do Biergarten onde vibravam ainda as canecas de cerveja.
ter me reconhecido. Deve estar brincando! A farra em Oberbaumbrücke quando o metrô dos vagões
Não, eu não tive romance com um estudante em maio de 1968, amarelos aparece no horizonte de repente. Todas essas manhãs
e isso nem me passou pela cabeça. Uma estúpida! A cara nos livros. frescas de Berlim. Meus percursos. Passei minha vida esperando.
Amanhã eu responderei e direi umas verdades a ela. E se eu tivesse Os trens, os metrôs, o ônibus. Eu tinha muito tempo ocioso. Eu

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RÉGINE ROBIN

preciso desses tempos ociosos, tempos em que tudo parece suspenso. Bibliografia
Minha vida de saltimbanco. O artista trabalha sem rede.
Coloque o mapa de Berlim na mesa perto da balança pesa-
-cartas de sequoia; eu vou precisar ao voltar.

E é assim que Rivka A. e Régine Robin continuam a se falar, a


se escrever, a se enviar mensagens, a se pedir coisas, a remem orar
lembranças comuns. Uma é mais excêntrica, a outra mais séria ou
mais resignada, mas cúmplice. Durante os meses de inverno, Régine
Robin vai bombardear Rivka de pequenas mensagens, do café
Orbital. No verão, será a vez de Rivka A. Qual é a máquina ele-
trônica que vai poder reuni-Ias, dar-lhes enfim o dom da ubiquidade?
Por enquanto, é ainda o livro, este livro que pode reuni-Ias.
ADORNO, Theodor. Dialectique négative. Paris, Payot, 1978. Traduzido do
alemão pelo grupo de tradução do Collêge Internacional de Filosofia.
Notas AGAMBEN, Giorgio. Ce qui reste d'Auschwitz. Paris, Payot-Rivages, 1999.
Traduzido do italiano por Pierre Alféri.
Optamos por manter a palavra no original [clavardage). [N. da T.) AITMATOV, Tchinguiz. Une Journée plus longue qu'un siécle. Paris, Temps
ii No original a autora se refere ao «calva",forma coloquial para "Calvado', uma cachaça da Actuels, 1982. Traduzido do russo por Frêdérique Longueville.
Normandia. [N. da T.) __ . Le Rêves de Ia louve. Paris Messídor, 1987. Traduzido do russo por
iii Eudora - Software usado para ler e enviar e-mail, desenvolvido em 1988 por Steve Dornier.
Christine Zeytounian- Beloüs.
[N.da T.)
iv Telix - Software escrito para MS-DOS, desenvolvido por Colin Sampaleanu em 1986.
ANDERS, Günrer, Nous,jils d'Eichmann: lettre ouverte a Klaus Eichmann.
[N.da T.) Paris, Payot et Rivages, 1999. Traduzido do alemão e apresentado por
v Protocolo de transferência de arquivos. [N. da T.) & Philippe Ivernel.
Sabine Cornille
vi Software usado para ler e enviar e-mail e notícias. Pine é o acrônimo de Program for In- ANGENOT, Mare. 1889: un état du discours social. Montreal, Le Préambule,
ternet News & Email. [N. da T.)
1989.
vii Página na intcrnct que a autora mantém como uma autoficção. [N. da T.)
APEL, Dora. Memory Effects. The Holocaust and the Art of Secondary
Witnessing. New Brunswick, Rutgers University Press, 2002.
ARENDT, Hannah. Le Systême totalitaire. Paris, Le Seuil, 1972. Traduzido
do inglês por Jean-Loup Bourget; Robert Davreu & Patrick Levy.
__ . Eichmann à férusalem. Paris, Gallimard, 1991. Traduzido do inglês
por Anne Guérin.
ASSMANN, Aleida. Erinnerungsrdume. Formen und "Wàndlungen des Kul-
turellen Geddchtnisses. Munique, c.H. Beck, 1999.
ASSMANN, Aleida & FREVERT, Ute. Geschichtsvergessenheit/ Gescbichts-
versessenheit. Vom Umgang mit deutschen Vergangenheiten nach 1945.
Stuttgart, Deutsche Verlags-Anstalt, 1999.

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