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Marcelo P. Marques1
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Universidade Federal de Belo Horizonte.
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Este texto faz parte de meu projeto maior de pesquisa sobre “os modos do apa-
recer na República”, no qual estudo as múltiplas dimensões do problema da aparência
e da imagem em Platão, com diversas publicações parciais.
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577A3-5. Linhas difíceis que Pachet traduz «par cette mise en scène d´objets
tyranniques dont ils destinent les figures aux gens de l´extérieur». Ana Lia Amaral tra-
duz «a aparência do luxo que os tiranos forjam para os que estão do lado exterior».
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República IX 576D9-577B4.
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Ver Sofista 234B, passagem na qual o efeito de encantamento do sofista só funcio-
na com jovens que os assistem à distância de sua pouca idade e inexperiência.
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Princípio da homologia estrutural entre o psiquismo individual e a constituição
da cidade. Ver IV 434D-445E; IX 577C-D.
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Quanto a uma possível referência à experiência direta que Platão teve em Siracu-
sa, ver Adam, 1963, p. 331, que recomenda reserva, mas insiste na referência; Annas,
1981, p. 304, considera a possível referência absurda, parecendo superestimar o tirano
Dionísio I; Bignotto, 1991, p. 157-168, avalia as diferenças entre as tiranias concretas
e a “tirania paradigmática” do livro IX; Gastaldi, 2005, p. 506, adota uma postura
moderada, indicando a Carta VII como uma fonte importante; Giorgini, 2005, p. 423
fala que na Atenas de Platão o tirano marca presença através de uma “ausência rumo-
rosa”, e também indica as possíveis referências aos tiranos de Siracusa, p. 434, n. 20.
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Ver Hartog, 1999, p. 273-314, que estuda, em Heródoto, o princípio segundo o
qual “quem viu ou ouviu é quem sabe”; Desclos, 1992, que discute em que medida o
“ver” ou “ouvir” dos diálogos mantém ou revê criticamente os critérios dos historia-
dores. Na sequência, o próprio texto relativiza a importância da empeiría, indicando
que ela deve ser articulada ao discernimento e à racionalidade (582A).
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Ver, por exemplo, Saïd, 1999, p. 503-513. Bignotto, 1991, 43-83, analisa a gêne-
se trágica do tirano, através de passagens de Ésquilo e Sófocles.
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Como mostra Gastaldi, 2005, p. 504-505, a ekpléxis sugere uma exibição deli-
berada e organizada de recursos cênicos para impressionar o público, seja no teatro,
seja na vida política. Podemos ainda evocar a cena trágica descrita por Heródoto I,
116, na qual, atento ao aspecto físico de uma criança, Astíages julga reconhecer nela o
neto que ele próprio sacrificara, ficando tão impressionado (ekplageìs) que fica mudo.
Já no final do livro IX, o filósofo não se deixará impressionar (ouk ekplettómenos) por
aquilo que os muitos consideram ser a felicidade (591D7-8).
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Prefigurando a noção de Ilimitado do Filebo (23C-27C).
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Isolado, imaginariamente, das relações com outros homens livres, o tirano teria
um medo imenso de ser assassinado pelos seus servidores; ele, sua mulher e filhos
estariam expostos à vingança dos escravos.
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com alguém cujo corpo está doente e tivesse que combater indivíduos
saudáveis).
A cidade governada de modo tirânico é a que menos faz o que quer,
e o tirano, na verdade, não satisfaz a nenhum de seus desejos13. Se
considerarmos sua alma como um todo, ele aparecerá como despro-
vida da maior parte das coisas, ou seja, como realmente pobre.
O juízo conclusivo é que o homem nobre ou “real” (cuja educação
deve ser a dialética filosófica), ou seja, o que efetivamente governa so-
bre si mesmo, é o mais feliz; o tirano é o mais infeliz, o pior e mais in-
justo, exercendo a tirania sobre si próprio e sobre a cidade (580B-C).
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Temas discutidos no Górgias: no contexto do discurso de Pólo, recusar cometer
injustiça significa recusar o poder que tem um tirano (469B-470A); a partir do discur-
so de Cálicles, vale mencionar a discussão sobre quem ama quem, e ainda o tema da
tentativa de se satisfazer todos os desejos. Tentar satisfazer a todos os apetites significa
ser incapaz de exercer o desejo e amor verdadeiros, poderes que implicam, certa-
mente, numa dinâmica de busca, mas também de discernimento, exercício de limite,
processo de conhecimento, escolha e produção (na beleza). Ver Vigo, 2009.
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IX 573B6-7 – kaì to pálai dià to toioûton týrannos ho éros légetai;
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Ver a discussão recente de Pradeau, 2008, p. 60-62, sobre a noção de “partes”
da alma.
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República IX 588B-589E, Filebo 46A, Leis V 732E.
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Frère, 1993, faz um estudo lexical exaustivo que associa afetividade, desejo e bu-
sca de conhecimento (epithymeîn, boulésthai, erán, phileîn, prothýmesthai / élpis, eros,
thymós, póthos, hormé, prothymía), de Homero a Aristóteles, passando por Platão.
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durante o sono, quando a parte que calcula e comanda (ou que deveria
comandar) está adormecida e a parte selvagem está liberada; é uma
estratégia de análise interessante, essa de observar o que acontece na
alma, mas durante o sono, ou seja, em sonhos, na medida em que tenta
surpreender na experiência uma dimensão do psiquismo que, de outro
modo, seria dificilmente “visível” e separável da complexidade que lhe
é estrutural. Nessas circunstâncias, em sonho, ou seja, sem o governo
da parte que calcula e governa, o indivíduo não tem critérios para de-
cidir com quem vai ter relações eróticas; pode ser com a própria mãe,
ou com qualquer outro, deuses, homens ou animais; o mesmo pode
ser dito com relação aos impulsos violentos. Tudo depende, é claro, do
modo como o indivíduo se prepara para dormir, o que remete a análise
psíquica à crítica ética dos modos de agir e viver (571C-D)19.
Assim, por oposição, algumas condições são necessárias para que,
na alma, seja bem encaminhada essa dimensão apetitiva: ter uma re-
lação saudável e refletida consigo próprio, alimentar a parte racional
com belos argumentos, examinar através da melhor parte as coisas que
foram, que são e que serão, acalmar a parte impulsiva; só assim, o in-
divíduo poderá conter os apetites violentos (ou selvagens) e poderá ter
mais contato com a verdade, evitando as visões e tendências contrárias
às leis (572A-B).
A argumentação parece simplesmente visar a estabelecer20 que
existe uma espécie de desejos selvagens, que tendem a ir contra a lei,
mesmo nas almas «daqueles poucos dentre nós que parecem ser come-
didos» (kaì pány dokoûsin hemôn eníois metríois eînai) (572B). “Ser
tirânico” é, antes de tudo, um gênero, um modo genérico de ser e de
pensar (573B-C), de se estruturar internamente que determina modos
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Holowchak, 2007, compreende que mostrar que o tirano vive sua vida como se
estivesse sonhando implica na degradação moral e na confusão epistêmica máximas.
Ele pretende ainda desenvolver uma classificação dos tipos de sonho, de acordo com
a predominância de uma das três partes da alma.
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Ou relembrar o que foi feito no livro IV. Naquele contexto, a questão era pensar
o que é a justiça e o obstáculo inicial era a aparente “contradição” inerente ao psiqui-
smo. Ver Marques, 2010. A alma teria que ser mais forte e mais fraca que si mesma,
donde a démarche de diferenciação compatibilizadora das diferenças internas à alma.
Aqui, no livro IX, o contexto é avaliar o modo de vida do tirano para, finalmente, po-
dermos condená-lo como injusto, mostrando como ele efetivamente é o pior e o mais
anti-filosófico dos homens. De qualquer modo, fica claro que o livro IX conta com os
ganhos da construção argumentativa do livro IV.
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Agón que pode ser pensado tanto dramaticamente, como juridicamente, mas
que, no diálogo platônico é argumentativo e filosófico; afinal, em última análise, o juiz
(krités) é o filósofo. Adam, 1963, p. 347.
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Efetivamente, cabe perguntar: o que mede o que? O que é medida para que?
É o prazer que mede a superioridade do modo de vida? Ou é o modo de vida que
determina a qualidade do prazer? Como se mede o prazer? Pela quantidade, pela qua-
lidade, pela pureza ou pela autenticidade? Pela disposição do sujeito ou pela natureza
do objeto desejado?
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582A5 – empeiríai te kaì phronései kaì lógoi.
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A crítica platônica à pintura com sombras está associada a uma teoria crítica
da imagem que perpassa toda sua obra e que está longe de ser simples ou unívoca.
Ver, por exemplo, Marques, 2009. O mesmo livro VI, que enumera as objeções de
Adimanto contra a possibilidade de o natural filosófico propiciar a formação de um
governante justo (qualidades não necessárias, insuficiência e arbitrariedade do diálo-
go, inutilidade da boa natureza) é construído através de uma sucessão de imagens,
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cada vez mais sofisticadas, que se revelam decisivas para o movimento argumentativo
do diálogo como um todo.
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A comparação entre opostos que admitem intermediários e que nem sempre são,
mas que deviam ser, avaliados como tais, tal como a visão do preto e do cinza, sem
referência ao branco e do baixo e do meio, sem referência ao alto, são lugares clássicos
do texto platônico. Sobre a aplicação desta gradação na análise do conhecimento e de
seus objetos, ver, por exemplo, V 477A-B.
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é mais real nele mesmo se preenche mais realmente do que aquilo que se
preenche com coisas menos reais e que é, nele mesmo, menos real27.
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IX 585D – oukoûn tò tôn mâllon ónton pleroúmenon kaì autò mâllon òn óntos
mâllon pleroùtai è tò tôn êtton ónton kaì autò êtton òn;
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Ver a perplexidade de Adam, p. 354.
29
Permito-me remeter a outro texto, no qual trato desta questão mais detalhada-
mente, Contra a teoria dos dois mundos na filosofia de Platão – República V 476E-478E
(no prelo).
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A escolha pelo sentido predicativo do verbo ser se impõe: ser é igual a ser al-
go, ter um certo predicado ou, ontologicamente, ser determinado de algum modo. A
determinação varia, sendo maior ou menor e, ela sim, pode ser pensada em termos
de quantidade: como, por exemplo, a beleza, maior ou menor das coisas belas, por
oposição à beleza pura e plena do belo em si, que não varia, sendo o princípio de toda
determinação. Ver, por exemplo, Kahn, 2003.
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Podemos recorrer tanto à própria seqüência do livro IX, que fala de outros tipos
de prazer, como aquele proporcionado pelo olfato, ou a uma passagem conhecida do
Banquete, quando Sócrates responde a Agathón que não basta se sentar ao lado de um
sábio para receber mecanicamente sua sabedoria (175C-E).
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Bravo, 2009.
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Sobre a impossibilidade de “tudo saber”, ver Sofista 233E-234A. Sobre a discus-
são dos sentidos de “verdade” em Platão, ver Casertano, 2010. Sobre a análise dos
sentidos de prazeres verdadeiros, prazeres falsos, no Filebo, ver Teisserenc, 1999.
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IX 576A4-6 – en pantì àra toi bioi zôsi phíloi mèn oudépote oudení, aeí dé tou
despózontes è douleúontes álloi, eleutherías dè kaì philías alethoùs tyrannikè phýsis aeì
ágeustos.
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Tema que retoma, adaptando-as e resignificando-as, as características da Raça de
Ferro, Hesíodo, Os trabalhos e os dias, vv. 174-201.
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Exagerar num sentido tende a provocar uma grande mudança em sentido con-
trário, nas estações, nas plantas e nos corpos, e muito mais ainda nos regimes políticos.
VIII 563E9-A1 – kaì tôi ónti tò ágan ti poieîn megálen phileî eis tonantíon metabolèn
antapodidónai, en hórais te kaì en phytoîs kaì en sómasin, kaì dè kai en politeíais oukh
hékista.
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564C9-D1 – dividamos em três, em palavra, a cidade governada de modo de-
mocrático, como de fato ela acontece de ser dividida – trikhêi diastesómetha tôi lógoi
demokratouménen pólin, hósper oûn kaì ékhei.
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No final das Troianas, Hécuba lamenta a morte de Heitor, dizendo que, se pe-
lo menos ele tivesse morrido por sua cidade, tendo experimentado o poder (tirania)
semelhante ao dos deuses (tês isothéou tyrannídos), ele teria sido feliz (abençoado).
Eurípides, Troianas, vv. 1165-1170.
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577C-1-3 – tèn homóióteta anamimneskómenos tês te póleos kaì toû andrós, hoúto
kath’hékaston en mérei athrôn, tà pathémata hekatérou lége. 577D1-2 – ei oûn hómoios
anèr têi pólei, ou kaì en ekeínoi anánke tèn autèn táxin eneînai.
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A incapacidade de “fazer o que quer”, contrariamente ao que pensam os muitos
com relação ao tirano, decorre da submissão da parte racional, que impede que ele
compreenda o que é bom e que oriente suas escolhas para o que é melhor. Ver tema da
auto-indulgência, Górgias 491A-492C; o não saber que impede a boa escolha, Mênon
77B-78A.
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Os males políticos do tirano são listados diversas vezes no texto: ele é invejoso,
desleal, injusto, sem amigos (aphíloi), ímpio, cheio de vícios, portanto, infeliz, e todos
os que lhe são próximos também são infelizes com ele (580A).
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VIII569B8-C4 – tò legómenon, ho dêmos pheúgon àn kapnòn douleías eleuthéron
eis pýr doúlon despoteías àn empeptokòs eíe, antì tês pollês ekeínes kaì akaírou eleu-
therías tèn khalepotáten te kaì pikrotáten doúlon douleían metampiskhómenos.
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Sobre minha leitura de Giges, me permito indicar meu texto Aparecer e vida
política: sobre República II (no prelo). A vigência dos valores ético-políticos se dá na
visibilidade da cena pública, perante o olhar de todos; tanto o filósofo como o tirano
só são o que são perante o olhar, crédulo ou crítico, dos muitos, na cena pública que
é a cidade. Giorgini, 2005, p. 426, n. 4 indica as referências à figura de Giges como
o mais antigo dos tiranos; o comentador ainda decompõe alguns dos componentes
históricos e literários da figura platônica do tirano, evidenciando a originalidade de
suas formulações, p. 438-450.
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Referências
Euripide. Les Troyennes. Trad. C. Nancy. In: Trédé, Monique. (Dir.) Euripi-
de. Théâtre complet. Paris: GF-Flammarion, 2000.
Heródoto. História. Trad. J. Brito Broca. 2 vols. São Paulo: Ed. Jackson,
1964.
Hesíodo. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary Lafer. São Paulo: Iluminuras,
1991.
Platonis Opera, recognovit brevique adnotatione critica instrvxit Ioannes
Burnet, Tomes I-V. Oxford: Clarendon Press, 1900-1907.
Platon. La République. Trad. Pachet. Paris: Gallimard, 1993.
Platão. A República. Trad. Ana Lia Amaral. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
Platon. Oeuvres complètes. Dir. Luc Brisson. Paris: Flammarion, 2008.
Abstract The article aims at showing how, in books VIII and IX of Plato’s
Republic, in order to go deep into the character of the tyrant, Socrates’ argu-
mentative strategy consists in describing his actions as a scene set up on the
city stage. That is how he develops a political reflection that shifts between
the psychological and ontological dimensions of the problem, analyzing both
the nature of the soul and the object of pleasure. Socrates’ proposal that the
philosopher should be king can only be built upon the critical dismantling of
the tyrant’s political mise en scène.