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indústria cultural y

Uma revolução
na telenovela
Digitalização dos arquivos da TV Tupi permite
reavaliar a importância de Beto Rockfeller

Márcio Ferrari

A
telenovela Beto Rockfeller foi consi- observado durante a recuperação e digitalização
derada revolucionária já na época em de seus sete capítulos sobreviventes. “Esse tipo
que foi exibida pela extinta TV Tupi, de merchandising, tal como a exibição de moda,
entre 1968 e 1969. Num tempo em que cigarro, uísque, telefones ou motocicletas, cons-
a teledramaturgia se apoiava em dramalhões titui uma via de acesso dos espectadores ao uni-
anacrônicos e quase totalmente gravados em verso dos personagens”, diz Esther. “É como se,
estúdio, a narrativa escrita por Bráulio Pedroso ao adotar acessórios sugeridos pelos personagens,
e dirigida por Lima Duarte trazia uma ambien- os espectadores compartilhassem seu posiciona-
tação contemporânea e urbana, um anti-herói mento no mundo.”
malandro e alpinista social, imagens externas, Esther esteve à frente do trabalho que se ini-
improvisação dos atores, comportamentos re- ciou em 2009, a partir da publicação pela FA-
beldes e um tom de ironia. Quase tudo era novo, PESP de um edital de digitalização, preservação
incluindo o primeiro caso, também improvisado e organização de arquivos. As fitas VHS da tele-
e casual, de merchandising. É conhecida a his- dramaturgia da Tupi estavam na sede da Cine-
tória que envolveu o ator que representava o mateca Brasileira, em São Paulo, depois de um
personagem-título, Luis Gustavo, e a marca de périplo por vários órgãos públicos, à espera de
remédio Engov, contra a indigestão e a ressaca. condições técnicas adequadas à sua preserva-
Segundo ele, o acordo de incluir cenas explícitas ção. O projeto terminou com a digitalização das
da marca era um modo de compensar os atrasos 100 horas de material previstas no projeto, mas
de salário comuns na TV Tupi, que, apesar de ainda há cerca de 3 mil aguardando tratamen-
líder de audiência, era cronicamente mal gerida. to nos arquivos da Cinemateca. O que havia de
Para Esther Hamburger, professora da Escola Beto Rockfeller, no entanto, já está resguardado.
de Comunicações e Artes da Universidade de São “O trabalho foi muito mais demorado do que
Paulo (ECA-USP), o merchandising do remédio a gente esperava”, diz Esther. A recuperação dos
pode ser considerado uma indicação da presença, arquivos dependeu da aquisição de uma ilha de
na novela, de uma sensibilidade maior em relação edição Quadruplex, o primeiro formato de vídeo Luis Gustavo
a um estilo de vida e a um estágio de modernidade usado pela televisão, criado em 1956. Anterior- protagonizou a novela
que, entre outras
que marcaram a época em que foi produzida. É um mente, os telejornais da TV Tupi, gravados em inovações, apresentou o
elemento que, segundo ela, não estava tão claro no película, já haviam sido digitalizados por meio primeiro merchandising
momento da transmissão de Beto Rockfeller e foi de outro projeto, parceria da Cinemateca com o na TV brasileira

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Acervo UH / Folhapress

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1 Plínio Marcos, parceiro da
personagem de Luis
Gustavo, do teatro maldito
para as telas da TV Tupi

2 Da esquerda para o centro:


os atores Bete Mendes,
Rodrigo Santiago, Luiz
Gustavo e Debora Duarte

Ministério da Justiça. Tanto os arquivos


de telenovelas quanto os de jornalismo
estão disponíveis no Banco de Conteúdos
Culturais, site da Cinemateca Brasileira
(bcc.gov.br).
Todos esses trabalhos aconteceram
num contexto novo, em que os arquivos
televisivos começam a ser valorizados. Por
questões legais relativas a direitos autorais
e um antigo desprezo acadêmico pela pro- 1

dução televisiva como produto cultural,


grande parte dos arquivos das primeiras nagem (cujo nome alude ao milionário é um pretexto para mostrar uma nova
décadas da televisão brasileira se perdeu. americano Nelson Rockefeller, com um avenida em obras, a Sumaré, um sinal do
As próprias emissoras tinham o hábito de erro de grafia talvez intencional), é um cosmopolitismo de São Paulo e do país.
reutilizar as fitas de vídeo, além de descui- funcionário de sapataria na rua Teodo- Além de ser levada ao ar no mundial-
darem de sua manutenção. “Não existia a ro Sampaio – então um símbolo do co- mente agitado ano de 1968, a novela co-
cultura de preservação da TV no Brasil, ao mércio de classe média em São Paulo meçou em 4 de novembro de 1968, pouco
contrário do que aconteceu em países da – que se finge de rico para se integrar mais de um mês antes da decretação do
Europa, cujos acervos normalmente estão à alta sociedade, cuja vida de consumo AI-5, marco do endurecimento da dita-
disponíveis em bibliotecas nacionais, com se concentrava na então sofisticada rua dura militar no Brasil. Contava mesmo
direitos autorais garantidos”, diz Esther. Augusta. É um “bicão”, termo da época no elenco com a atriz Bete Mendes, estu-
A pesquisadora se deteve nos capítulos para os alpinistas sociais que se com- dante de ciências sociais, que viria a ser
restantes de Beto Rockfeller, que, por reve- portavam como penetras num mundo presa e torturada pelo regime. Não havia
lar vários aspectos inovadores no tema e que não era o seu. “Beto é o indivíduo na trama, no entanto, nenhuma premoni-
na forma, mostra as muitas possibilidades capaz de superar os limites do bairro ção do que estava por vir. “A novela dava
de abordagem dos arquivos televisivos. aprendendo a lidar com as referências mais forma a uma imaginação do que se
Em seu estudo sobre Beto Rockfeller, Es- dos ricos”, diz Esther. queria ter, relacionada ao ‘milagre econô-
ther foi buscar um contraponto nas pes- mico’ que viria depois”, diz Esther. “Tudo
quisas mais recentes sobre o “primeiro ascensão social era muito ambíguo. Apesar da rebeldia
cinema”, que revelam a arte da tela gran- Um episódio em particular, presente nas presente no tom da novela, o personagem
de como um elemento constituinte da fitas digitalizadas e destacado pela pes- principal levava o espectador a espiar
modernidade já em seu surgimento, com quisadora, é um “racha” de motocicletas num buraco da fechadura para o fasci-
a presença frequente de máquinas, velo- entre Beto e seu rival rico, em competi- nante mundo dos ricos. A sensibilidade
cidade e movimento urbano, enquanto a ção pelo coração da mocinha. As motos presente era bem despolitizada. Parece
teoria tradicional só identificava a pre- já significam muito na trama – são ao que previa a onipresença do consumo a
sença moderna nos filmes feitos a partir mesmo tempo um símbolo de status, um que a gente assiste hoje.”
dos anos 1960. “O cinema é moderno por sonho de consumo e um ícone de rebel- A ambiguidade também se dava na
excelência e é parte da modernidade”, dia, como no pôster de Marlon Brando criação. Se de um lado estavam incluídos
diz. “No Brasil, nunca houve propriamen- no filme O rebelde que decora o quarto nomes ligados à telenovela tradicional,
te uma indústria do cinema, mas houve de Beto. São também um símbolo de es- como o produtor Cassiano Gabus Men-
uma indústria televisiva. A TV é parte do forço de ascensão social (e capacidade des e o diretor Lima Duarte, por outro
processo de modernização, não apenas de conquistar uma garota rica e mais ou foram procurados destaques atuais do
uma representação de um determinado menos liberada sexualmente) na medida teatro paulistano, como a “dama” Maria
momento histórico.” em que Beto precisa aprender a dirigir della Costa em sua primeira participa-
No caso de Beto Rockfeller, está pre- a moto com a ajuda de seu melhor ami- ção em meio televisivo e o iconoclasta
sente, segundo Esther, uma “utopia da go, o mecânico pobre interpretado pelo Plínio Marcos (autor da peça Navalha
modernidade”. Beto Rockfeller, a perso- dramaturgo Plínio Marcos. Finalmente, na carne), além do dramaturgo Bráulio

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fotos 1 Acervo UH / Folhapress 2 reprodução revista intervalo - acervo Orias elias

Pedroso, convidado especialmente para redor de Fórmula 1, num momento em


escrever o texto. “A novela conectou uni- que o piloto Emerson Fittipaldi era um
versos eruditos e da indústria cultural em herói nacional. “As modificações se ins-
“A novela torno de um repertório de liberalização piraram no modelo introduzido por Beto
dos costumes associada à ascensão social Rockfeller, mas com uma organização
conectou e ao consumo”, diz Esther. de produção mais próxima do modelo
Era um grande caldeirão que mistu- industrial”, diz Esther. Tanto assim que
universos rava tradição e sinais de modernidade, a emissora criou em 1971 um departa-
eruditos e da algo que a TV Globo tratou de normati- mento de pesquisa para monitorar mo-
zar em seguida, começando sua ascensão vimentos quantitativos e qualitativos da
indústria cultural definitiva na área da telenovela. Até 1969, audiência, como parte de uma política
o departamento de novelas da emissora “de profissionalizar suas relações com
em torno de um era chefiado por Gloria Magadan, cuba- anunciantes e agências de publicida-
na exilada no Brasil, que imprimia aos de”. “Antes disso, TV ainda não era um
repertório de folhetins da casa “seu estilo de produzir negócio muito lucrativo”, diz Esther.
liberalização histórias rocambolescas que se passavam “Seria interessante que economistas
em terras e/ou tempos distantes”, nas começassem a estudar essa indústria.”
dos costumes”, palavras de Esther. Eram títulos como O Eis aí mais um filão promissor que a
sheik de Agadir e Sangue e areia. Naquele preservação dos arquivos televisivos
diz Esther ano, a Globo, coincidindo com o início pode estimular. n
da rede nacional, demitiu Magadan e a
Hamburger substituiu por Daniel Filho, inauguran-
do uma nova dramaturgia, com temas Projeto
contemporâneos e brasileiros. Acervo quadruplex da extinta TV Tupi (nº 2009/54923-7);
Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Infra-estrutu-
Já para começar, a novela Véu de noi- ra; Pesquisadora responsável Esther Império Hamburger
va, de Janete Clair, tinha um galã cor- (USP); Investimento R$ 446.934,77 (FAPESP).

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