Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Dar-se conta de algo possui uma dupla significação. O termo aponta ao mesmo tempo
para um movimento reflexivo interior e para uma performance no mundo exterior. No processo
de se dar conta de que algo está errado deve-se tomar distância do momento presente e
retroceder ao passado. Coisas antigas, palavras esquecidas, atos concluídos, voltam à
mente da pessoa através de um processo seletivo que os relaciona a fim de produzir uma
narrativa que faça sentido. Essa volta retrospectiva interrompe o curso da ação. Pg 4
Estas justificações precisam seguir regras de aceitabilidade. Não podemos dizer, por
exemplo: “Eu não concordo contigo porque não vou com a sua cara”. E não há razão
para pensar que estas regras de aceitabilidade sejam diferentes para aquele que
critica e para aquele que deve responder às críticas. Assim, um quadro de análise da
atividade de disputa deve, com as mesmas ferramentas, ser hábil em ocupar-se das
críticas, a qualquer ordem, social ou situacional, assim como da sua justificação. Pgb 5
Uma sociologia que deseja estudar tais operações – uma sociologia que se debruça sobre a
crítica como seu objeto de estudo específico – deve, portanto, abandonar (se não,
temporariamente apenas) a postura crítica, a fim de reconhecer os princípios normativos que
sustentam a atividade crítica das pessoas comuns. Pg 9
Nosso objetivo é descrever o senso de justiça dos atores – ou, mais precisamente, seu senso
de injustiça – e construir modelos de competência com os quais os atores devem estar equipados
para enfrentar situações críticas comuns. Pg 10
Teorias morais devotadas à análise das pré-condições de uma sociedade justa são, ao contrário,
na maioria das vezes dedicadas à busca de um método universal capaz de dar suporte à
fundação de uma convenção geral. A utilidade de tais construções para o trabalho
sociológico depende essencialmente de que elas se tornem sistemáticas e consistentes. Pg
10-1
Usamos então este caminho indireto pela filosofia política a fim de aperfeiçoar o nosso
entendimento das competências que os atores cumprem quando devem justificar suas ações ou
críticas. O processo de disputa não pode ser reduzido nem a uma expressão direta de interesses
egoístas, muito menos a uma confrontação anárquica e incessante de visões de mundo
heterogêneas. Observando o curso das disputas, ou, mais precisamente, de disputas nas quais a
violência está excluída, não se podem deixar de observar os requisitos comuns que formam o
comportamento das pessoas envolvidas. Pg 12 [ as competências críticas são os discursos
baseados nas convenções reconhecidas e aceitas por todos]
[...] tem por objetivo principal fornecer um instrumento para analisar as operações que os atores
realizam quando, engajando-se na crítica, devem justificar as críticas que antecipam, mas
também quando devem se justificar frente à crítica ou colaborar na busca de um acordo
justificado. 129
[...] o modelo de análise tem por vocação servir às pesquisas que versam sobre a forma como as
pessoas colocam em prática seu sentido de justiça para se engajar à crítica, justificar suas ações
ou convergir ao acordo. 130
Ora, quando comparamos os relatórios da pesquisa como os relatórios dos atores, procurando
afastar, na medida do possível, os dispositivos frequentemente retóricos os estilísticos que
sustentam a assimetria entre esses dois tipos de texto, nos surpreendemos com suas semelhanças
de forma r conteúdo. [...] a realidade que os atores conhecem e a realidade que o pesquisador
desvela não são mundos opacos um ao outro. 137
Daquele que diz como deve ser uma sociedade para ser justa, daquele que tenta pintar o quadro
de uma cite justa, harmoniosa, o sociólogo moderno, de uma perspectiva cientifica, dirá que o
que ele faz é filosofia social, o que desqualifica o valor cientifico do seu trabalho. 142
Nota de roda pé [...] cité se refere à cidade histórica, à polis, e no sentido figurado também se
refere a uma construção ideal que coloca o mundo sob novos aspectos.
A sociologia crítica deve enrijecer o corte entre fatos e valores para manter uma ilha de
positividade abrigada de todo empreendimento crítico, incluindo aqui o seu próprio, sobre a
qual se funda a ambição de um desvelamento radical. [...] Mas essa competência não é
apanágio do filósofo ou do sociólogo: ela é constantemente posta em prática pelos próprios
atores. É precisamente esse trabalho incessante de construção de casos, no sentido de “bons
casos” para justificar a ação, e de colocar em questão, no sentido da crítica, que a sociologia
crítica não pode mais tomar como objeto da fortaleza na qual ela se fechou. 143 [ se o sociólogo
faz uma separação entre fatos e valores para construir seu objeto de estudo e orientar sua
pesquisa, isso não significa uma atribuição somente de uma observação treinada. Para os atores
em seus momentos críticos também fazem essa separação entre valor (no discurso) e fatos ( dos
objetos) para justificar suas ações e críticas
Ora, esse objeto é essencial para a compreensão das nossas sociedades, as quais pode ser
definidas como sociedades críticas, no sentido em que os atores dispõem de capacidade críticas,
têm acesso – embora em níveis desiguais – aos recursos críticos e os colocam em prática de
forma quase permanentes no curso da vida social. 143
Sua abordagem exige que nós modifiquemos nossa posição em relação ao objeto e, de início,
que nós renunciemos a ter a última palavra sobre os atores, produzindo e lhes impondo um
relatório mais forte do que aquele que eles próprios estão a produzir. Isso supõe renunciar à
forma sob a qual a sociologia crítica concebia a assimetria entre pesquisador e os atores.
144 [ Boltanski está interessado nas discussões e construções dos atores e defende uma
sociologia simétrica (como Roy Wagner) em detrimento da tradição da sociologi a assimétrica
De fato, nossa atividade vai consistir, essencialmente, em tentar reconstituir da forma mais
completa possível o espaço crítico no interior do qual o caso se estabelece e é jogado. 145
[ como o sociólogo irá proceder em campo
Para esclarecer os enunciados das pessoas, devemos, então, colocá-los à prova confrontando-
os com uma estabilidade de outra ordem. Ou seja, mais precisamente, relacioná-los às
convenções que sustentam sua inteligibilidade e sua aceitabilidade para um número indefinido
de atores. 148 [ essa estabilidade é no discurso e nas práticas construídas pelos próprios atores,
onde sua justificação está na convenção do discurso e no objetos de intermédio das práticas,
para Boltanski o que prevalece não é uma estrutura social camuflada e inconsciente na prática
social, mas numa classificação e ordenamento constituído e revisto pelos atores, desde modo
essa epistemologia está baseada no campo da etnometodologia
Para realizar essas operações, necessitamos de modelos que validem enunciados gerais e que
representem de forma explícita as convenções sobre as quais eles repousam, aos quais possamos
confrontar os enunciados recolhidos pelo procedimentos empíricos. 148
Ele visa a reconstruir a competência à qual os atores devem poder ter acesso para produzirem,
em situações determinadas, argumentos que sejam aceitáveis pelos outros, ou, como dizemos,
convincentes, ou seja, argumentos capazes de sustentar uma pretensão à inteligibilidade e
dotados também de um grau elevado de objetividade e, por isso, de universidade. Na verdade, é
a possibilidade de um argumento pretender a uma validade universal que sustenta sua
objetividade e que lhe torna aceitável pelos outros ou, como dizem as pessoas, incontestável.
150 [ as próprias identidades como enunciação e negociação são instáveis teoricamente, mas no
mundo vivido mantém uma estabilidade de sua evocação, para isso, a identidade quilombola
está inserida dentro de uma prática social justificada através da convenção social.
Nós tomamos os argumentos dos atores tais quais eles se apresentam, sem submetê-los à nossa
crítica, contentando-nos de confrontá-los a modelos que são o produto de um trabalho de
explicação e de sistematização da competência comum. 152
[lahier e Archer] a aposta é que somente sondando as conversações interiores que as pessoas
têm consigo mesmas torna-se possível mostrar como projetos pessoais são formados na
mediação entre cultura, estrutura e agência. De fato, na longa trajetória intelectual de Archer
(2007), as conversações internas intervêm como a última peça de um arcabouço complexo que
inter-relaciona os poderes causais da estrutura social, da cultura e da pessoa para repensar o
binômio agência-estrutura. 13
O “homem” ou, talvez melhor, o “ator plural” revelado por Bernard Lahie (1998) é
analiticamente perceptível apenas à medida que o sociólogo livra-se da lente grossa e
homogeneizante do habitus para exergar a complexidade do patrimônio de disposições
incorporadas que faz o indivíduo pensar, sentir e agir de um modo determinado. 13
Nas suas mais recentes reflexões sobre a modernidade reflexiva, Archer (2012) conceitua a
“sociedade morfogenética” como uma formação social pós-tradicional, na qual a reprodução
semiautomática do habitus perde o seu poder explicativo e torna-se simplesmente obsoleta. [...]
a reflexividade existencial torna-se não apenas constante, como atravessa e perpassa todas as
esferas da vida. 14
Será que os abalos no conceito de sociedade explicam o fato de que os principais avanços
teóricos na sociologia de hoje não vêm mais da macrossociologia, mas da teoria da ação? 27
Todos aqueles que trilham seu caminho pela Bourdieusiana sabem que a agência
(compreendida, com Giddens, como a “capacidade de agir de outro modo”), ou melhor, a
falta dela, é o que transforma sua sociologia crítica em uma máquina de reprodução. A
elaboração de uma sociologia reflexiva por Bourdieu não deveria esconder o fato de que quase
não há reflexividade no seu sistema. Em sua sociologia crítica, o único agente reflexivo é o
sociólogo! 29-30
Nossos autores não apenas desconectam habitus do campo, considerando o último como um
mero pano de fundo das práticas a que dão destaque. Mas, se o pluralismo abre novas
perspectivas acerca do alcance e dos tipos de ação, deve-se ser justo com Bourdieu e admitir
que uma atitude pluralista já estava presente em sua insistência sobre a necessidade de mapear
cuidadosamente o espaço de possibilidade. 31
Por sua vez, no Groupe de Sociologie Politique et Morale (GSPM), Luc Boltanski e Laurent
Thévenot modificaram o enfoque sobre o acordo social, não mais considerado o resultado da
interiorização de expectativas normativas (Parsons) ou de estruturas objetivas (Bourdieu), e sim
como a resultante de um processo de investigação (inquiry) axiológica dos atores em
momentos críticos. Pg 69 [ essa investigação propõem uma sistematização dos valores
normativos e de classificação do conhecimento dos objetos em que os atores se orienta nas sua
práticas de sociabilidade, portanto o objetivo é descrever essas práticas orientadoras da ação
social.
A noção de simetria foi, decerto, um dos princípios que nortearam essa nova constelação. Pg 69
Classificar, criticar, julgar, justificar foram então tomadas como algumas das operações
compartilhadas entre leigos e especialistas. Pg 70 [ de fato essas características estão
presentes no ser humano como ser genérico. A própria teoria do conhecimento se baseia nesse
preceito de capacidade de todo o humano.
O objetivo, com isso, foi o de restituir ao mundo a incerteza e a pluralidade que lhe são
constitutivas. Pg 71
Primeiro, a relação entre as classificações científicas e o senso ordinário (Boltanski & Thévenot
1983) numa investigação sobre o vínculo entre as operações de classificação e de julgamento
através da observação de exercícios nos quais os participantes precisavam manipular categorias
relativas ao gosto e às condutas privadas e associá-las a “categorias socioprofissionais”
(Desroisières, Goy & Thévenot 1983). Os atores justificavam as suas classificações de uma
personalidade não apenas em termos de coerência lógica, mas também de justiça,
mostrando a inseparabilidade prática entre a apreciação dos fatos e dos valores. O
exercício explicitava também os impasses e as soluções que a manipulação ordinária das
categorias sociológicas gerava. Pg 71 [ nesses estudos de boltanski as classificações de
conhecimento do mundo do trabalho foram baseadas nos valores morais e fatos, ou seja, valores
e objetos. Entre as conclusões desse estudo está a relação entre subjetividade e objeto para
produzir conhecimento.
O uso e os limites da categoria são inseparáveis de sua definição prática nos casos concretos. Pg
72 [ essas categorias elas só tem sentido explicativo em seus usos locais
O estabelecimento de uma simetria formal a priori das posições em disputa não teve outra
função a não ser a busca pela descrição, com o mínimo de deformação possível, do modo como
as assimetrias são feitas, desfeitas e refeitas efetivamente na prática. Pg 73
Exatamente porque dominamos as gramáticas que perpassam essas situações, sabemos que a
arte, a política, a vida familiar e o trabalho são domínios distintos, com suas regras próprias,
seus interditos e suas exigências e configurações específicas. Pg 75
É nela que ele apreende e aprende aquilo do que ele é capaz. A prova, neste sentido, é um
dispositivo de experimentação e de revelação de capacidades. Pg 80
Uma visão mais consistente do mundo, segundo a sensibilidade pragmatista que remonta ao
mundo da experiência pura de William James ou ao naturalismo de John Dewey, reconhece a
realidade como um fluxo contínuo de estabilidades e instabilidades. Pg 80-1
Nota de roda pé 19: Recentemente em De la critique (2009), Luc Boltanski propôs uma
distinção mais simplificada entre o regime prático e o regime metapragmático. O primeiro diz
respeito ao gênero de ação no qual os atores estão engajados no cumprimento de uma
tarefa e no qual o acordo é tácito. As contradições permanecem implícitas, o nível de
reflexividade é frágil e a tolerância com os erros e as faltas alheias cumpre um papel
fundamental. O segundo regime diz respeito à eclosão de uma crise na qual está presente um
elevado nível de reflexividade e a questão é “saber como convém qualificar aquilo que se passa”
(:107).
E indubitável que as ideias de valor são “subjetivas”. Entre o interesse pela evolução dos
maiores fenômenos imagináveis, que durante largas épocas foram e continuam a ser comuns a
uma nação ou a toda a humanidade, existe uma escala infinita de “significações”, cujos graus
se apresentarão, para cada um de nos, numa ordem diferente. E naturalmente esta ordem
também varia historicamente de acordo com o caráter da cultura e do pensamento que
domina os homens. 99
A ordem lógica dos conceitos, por um lado, e a distribuição empírica daquilo que e
conceitualizado no espaço, no tempo e na conexão causal, por outro, aparecem então de tal
modo ligados entre si, que quase chega a ser irresistível a tentação de violentar a realidade para
consolidar a validade efetiva da construção na realidade. 118
Porque nenhum desses sistemas de pensamento que são imprescindíveis para a compreensão
dos elementos significativos da realidade pode esgotar a sua infinita riqueza. Todos estes
sistemas não passam de tentativas para conferir uma ordem ao caos dos fatos que incluímos no
âmbito do nosso interesse, e que são realizadas com base no estado atual dos nossos
conhecimentos e nas estruturas conceituais de que dispomos. 120