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resolvidos. Os curandeiros, com uma grande criatividade, desenvolvem
técnicas pessoais, cerimónias, feitiços, estranhos remédios como enemas
de café com leite, parafusos% oxidados, compressas de puré de papas,
pílulas de excremento animal ou ovos de traça. Alguns têm mais
imaginação ou talento que outros, mas todos, se forem consultados com
fé, são úteis. Falam ao ser primitivo, supersticioso, que cada cidadão traz
dentro de si.
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mão esquerda. Imediatamente se acalmou. Dei-me conta de que, para o
inconsciente, os objectos que nos acompanham e rodeiam fazem parte da
sua linguagem. Assim como ao colocar um anel numa pessoa se pode
encadeá-la$, tirando-lhe o anel, se pode aliviá-la… Houve outra
experiência que mostrou ser muito reveladora: o meu filho Adán, com seis
meses de idade, padecia$ de uma forte bronquite. Um médico amigo,
fitoterapeuta, havia-lhe receitado umas gotas de azeite essencial% de
plantas. A minha ex-mulher Valeria, mãe de Adán, devia verter-lhe na
boca trinta gotas três vezes ao dia. Logo se queixou que a criança não
melhorava. Disse-lhe: «O que se passa é que tu não acreditas no remédio.
Em que religião foste educada?». «Como todas as mexicanas: católica!»
«Então vamos acrescentar$ fé a essas gotas. Cada vez que lhas dês, reza
um pai-nosso.» Valeria assim o fez. Adán melhorou rapidamente.
Comecei então, com muita prudência, nas minhas leituras de Tarot,
quando o consultante perguntava como solucionar um problema, a
receitar actos aos quais chamei «psicomagia». Porque não «magia»?
Para que a sua terapia primitiva funcione, o curandeiro, apoiando-se
no espírito supersticioso do paciente, deve manter algum mistério,
apresentar-se como possuidor$ de poderes sobre-humanos, obtidos por
uma iniciação secreta, contando com aliados divinos e infernais para
curar. Os remédios que dá devem ingerir-se sem se conhecer a sua
composição e os actos recomendados devem realizar-se sem se procurar
saber porquê. Na Psicomagia, em vez de uma crença supersticiosa, é
necessária a compreensão do consultante. Ele deve saber o porquê de
cada uma das suas acções. O psicomago, de curandeiro passa a ser
conselheiro: graças às suas receitas o paciente converte-se no seu próprio
curador$.
Esta terapia não me veio como uma iluminação súbita mas através de
um aperfeiçoamento, passo a passo, ao longo de muitos anos… No
começo parecia tão extravagante, tao pouco “científica”, que só pude
experimentá-la com amigos e familiares…
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De vez em quando, nas minhas conferências em Paris, fazia-lhe
referência… Uma vez fui convidado pelo centro de estudos fundado pelo
mestre espiritual Arnaud Desjardins. Este, que se havia inteirado das
minhas pesquisas, perguntou-me se podia solucionar um mal de que
padecia a sua sogra, um eczema na palma das mãos… Pensei que a
senhora, ao mostrar as suas mãos afectadas, fazia um gesto de petição,
pois sentia-se excluída do casal formado pela sua filha. Pedi ao Mestre que
ele e a sua esposa, diante da doente$, cuspissem abundantemente sobre
um monte de argila verde para espalhar de seguida a pasta resultante
sobre o eczema. O mal desapareceu rapidamente.
Gilles Farcet, um jovem discípulo de Desjardins, aconselhado pelo seu
guia, veio ver-me, a pretexto de uma entrevista, para conhecer as minhas
estranhas teorias. Do nosso encontro resultou um pequeno livro em
forma de biografia, intitulado La trampa sagrada, que conquistou um bom
número de leitores. Gilles, então, propôs-me que desenvolvesse mais
extensamente as minhas ideias ao mesmo tempo que, querendo
comprovar os seus efeitos, me solicitou um conselho de psicomagia para
chegar a ser um «escritor profundamente espiritual». Propus-lhe que
escrevesse um livro de entrevistas comigo que se chamaria Psicomagia,
com o subtítulo Esboços de uma terapia pânica. O meu jovem amigo tinha
dúvidas: não conhecendo nada o tema, sentia-se incapaz de me fazer
perguntas interessantes. «É precisamente por isso que te receito este
acto. A ave do espírito deve libertar-se da jaula racional. Para isso iremos
de quebrar a ordem lógica. Em vez de tu me perguntares e eu te
responder, primeiro responder-te-ei e a seguir farás as perguntas… Ou
seja, o efeito vem antes da causa.» Assim o fizemos: Farcet sentou-se à
minha frente com um gravador e eu fui dando respostas a perguntas
inexistentes durante dez horas seguidas. Por momentos, o meu jovem
entrevistador adormecia agarrado à sua máquina. Gilles depois dividiu
esse material em fragmentos ordenados, precedendo-os de perguntas.
Como se introduzia% em terrenos desconhecidos (havia-me dito: «Não sei
se se pode conciliar a busca artística com a busca$
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terapêutica), escreveu-as num tom objectivo declarando: «Não sou um
dos seus fiéis. Não escrevi este livro como aprendiz mas como amigo. Daí
a saudável perplexidade que por vezes oponho às suas palavras, a qual por
um feliz$ efeito o obriga a precisar$ o seu pensamento».
Quando Marc de Smedt, o director da colecção «Espaces libres» na
Albin Michel, em França, aceitou publicar o livro fê-lo com a condição de
alterar o título. «Ninguém conhece a palavra psicomagia. É melhor
chamar-lhe: Le theâtre de la guérison, une thérapie panique».
El teatro de la sanación apareceu em 1995. Houve% uma grande
interesse. Recebi uma nutrida correspondência em que me pediam actos
psicomágicos. Para desenvolver esta técnica, até agora praticada de forma
exclusivamente intuitiva, decidi aceitar dois consultantes diários, de
segunda a sexta, em sessões de uma hora e meia. Depois de estabelecer
as suas árvores genealógicas – irmãos, pais, tios, avós e bisavós –,
aconselhei-lhes$ actos psicomágicos que produziram resultados notáveis.
Pude assim descobrir um certo número de leis que me permitiram ensinar
esta arte a uma grande quantidade de alunos, muitos deles terapeutas já
estabelecidos. Concedi$ sessões privadas durante dois anos, ao cabo dos
quais comecei a escrever a minha Danza de la realidad. Gilles Farcet
realizou$ a sua carreira de escritor espiritual e hoje em dia, um nobre pai
de família, encaminha muitos espíritos perdidos colaborando com Arnaud
Desjardins na sua árdua tarefa.
Depois da publicação em Espanha, pela Siruela, de La danza de la
realidad (2001), para além das generosas entrevistas que Fernando
Sánchez Dragó me fez na televisão, a Psicomagia tornou-se conhecido
pelo grande público. Não faltaram entusiastas que temerariamente, sem
nunca terem tido uma honesta actividade artística nem terapêutica,
quiseram praticá-la dando$, por incapacidade criativa, conselhos que
eram ingénuas imitações dos meus.
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Habilmente conduzidos pelo meu apresentador, o jovem professor
Javier Esteban, os alunos apresentaram-me$ os seus problemas,
solicitando conselhos de psicomagia para os resolver. No final do acto,
Javier presenteou-me com o seu livro Duermevela, em que ele descreve os
seus sonhos. («Vou a uma tenda onde vendem milhares de aparelhos de
pesca gigantescos. O anzol chega-me ao joelho. O homem que me
acompanha ensina-me a pescar, mas diz-me que não é preciso cana nem
qualquer aparelho. Deixo-os ali e atravessamos um bosque até chegar a
um rio. Os peixes saltam para as nossas mãos.») Considero que os seus
escritos têm um sentido curativo\sanador. Javier, por sua vez, expressa a
sua adesão às minhas ideias e pede-me uma reunião como objectivo de
fazer-me perguntas que a juventude faz, perguntas às quais o sistema
educativo actual não responde. «Os alunos mutaram, desgraçadamente$
os professores mantêm a sua arcaica maneira de pensar», diz-me ele.
Viaja para Paris e questiona-me$ durante alguns dias. «Pense sem limites,
fale para os jovens mutantes.» Assim nasceram a segunda e a terceira
parte deste livro.
Em apêndice, o testemunho de Martín Bakero, poeta e doutor em
psicopatologia, que assistiu a um atelier dado por mim em Santiago do
Chile e depois viajou para Paris para aperfeiçoar a sua compreensão do
meu trabalho. Tem o mérito de ter aplicado a psicomagia à cura$ de
doentes mentais. Graças a ele, posso ter\conceber a esperança de que
esta arte de curar seja usada$ um dia como complemento da medicina
oficial.
Alejandro Jodorowsky
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Psicomagia. Esboços de uma terapia pânica
(conversas com Gilles Farcet)
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Nota preliminar
Veado Coxo
(bruxo sioux da tribo lakota)
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El Topo ou A montanha sagrada, os quais os norte-americanos –
impagáveis – dedicam teses e estudos sábios, escritor, autor de histórias
de banda-desenhada que se dá ao luxo% de trabalhar com os nossos
melhores desenhadores; pai atento de cinco filhos com os quais mantém
actualmente uma relação iridescente$, Jodorowsky é hoje o tarólogo sem
normas cujas intuições deixam muitos boquiabertos; é, para além disto, o
palhaço convulsivo do Cabaret Místico1 que, num momento em que o
público parisiense vira as costas a conferências, consegue abarrotar os
seus auditórios com o melhor poder publicitário boca a boca; mago
internacional – interestelar, poderíamos dizer, sob a influência de
Moebius – consultado por estrelas de rock e artistas de todo mundo.
Este chileno de origem russa, radicado durante muitos anos no México
e agora enraizado na França, é um personagem que os romancistas de
hoje, demasiado gélidos$, não poderiam criar, um ser que levou a
imaginação ao poder em todos os recantos da sua existência
multidimensional.
A sua casa, sábia aliança de ordem e desordem, de organização e caos,
é um fiel espelho do seu hóspede ou, simplesmente, da vida. Visitar esta
mina semeada de livros, vídeos, jogos infantis, etc. constitui em si uma
experiência. Ali podemos deparar-nos com os desenhadores Moebius,
Boucq ou Besse, ou até com um gato ou uma mulher vinda não se sabe de
onde e que parece estar a cuidar da casa por algum tempo… É um lugar de
potência poética, uma concentração de energias sobreabundantes e, sem
embrago, dominadas.
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Desde há muitos anos, e sem qualquer publicidade, Jodorowsky anima a cada quarta-
feira em Paris uma conferencia-happening onde aborda temas terapêuticos. A entrada
é livre, quinhentos espectadores assistem a cada semana. No final da sessão do
Cabaret Místico alguns voluntários fazem uma colecta, o que permite pagar o aluguer
da sala. Três dias antes do começo da conferência, e sempre gratuitamente, Jodorosky
lê o tarot a uma trinta pessoas. Estas, após concluida a leitura, em forma de
pagamento, devem desenhar com o indicador a palavra «obrigado» sobre as mãos de
Alejandro.
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Resta dizer que trabalhar com um personagem pânico não é nenhuma
sinecura$. E isto, em primeiro lugar, porque Jodorowsky ignora os
plannings, as agendas e outro tipo de restrições temporais que regem a
vida dos terrestres. Quando me propus pôr em papel a sua aventura
psicomágica, compreendi que tinha de dedicar-me exclusivamente a tal
empresa. Com ele não há previsões, prazos fixados de antemão, reuniões
devidamente anotadas$: as coisas fazem-se a cada instante. Tudo nele
tem a qualidade do fulgor. Não é que seja incapaz de se submeter a uma
disciplina ou aderir$ a horários, pelo contrário; mas, depois de tudo, há
aqui um mistério: como é que este homem que, assim que se concluíssem
as nossas reuniões psicomágicas, partia para realizar um filme de nome
evocador$ – The Rainbow Thief (1990) –, pode realizar uma rodagem de
tão grande orçamento, domar monstros sagrados como Peter O’Toole,
Omar Sharif ou Christopher Lee, impor a sua sensibilidade a produtores
tão materialistas como inquietos e, por outro lado, não tomar nota de
nenhum dos seus compromissos futuros e aceitar em Setembro uma
conferencia para maio sem apontar o dia numa agenda, razão pela qual, à
medida que se aproxima a data da sua intervenção, há que localizá-lo,
com receio que se tenha esquecido do seu compromisso e desapareça em
qualquer ponto do planeta?
Alejandro é um crente no carácter convulsivo% da realidade, e daí esse
aspecto fascinante e esgotador$ que o torna desmesurado em todas as
suas manifestações. Quando alguém lhe coloca um público em frente, são
raras as vezes em que resiste à tentação de levá-lo até ao limite. Traço
muito sul-americano o deste ser excepcional que, em privado, sabe como
ser$ a pessoa mais doce e humilde e que de repente pode, num abrir e
fechar de olhos, transformar-se numa ópera barroca do mesmo calibre
que os seus filmes, onde o grotesco compete com o grave, o obsceno com
o sagrado. Jodorowsky mantém-se sempre no limite\fronteira; dança
sobre a subtil fonteira que separa a criação da provocação gratuita, a
inovação do atentado selvagem ao gosto, a audácia de indecência…
Moebius, o genial desenhador de El Incal, familiarizado com estes
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métodos após quinze anos de colaboração, vê neles «a técnica empregue
por Alejandro a fim de minar$ a resistência do universo…»
Em todo o caso, com Jodorowsky as coisas acabam sempre por se
ajustar, pese embora os traumas infligidos nos nervos dos organizadores.
Este homem não tem comparação na capacidade de dar a volta a uma
situação e virar a realidade do avesso como se fosse uma luva.
Mencionarei aqui uma anedota, que mais à frente recordaremos [na
pág. 92], que ilustra bem esta capacidade de dar a volta à realidade,
operação para a qual convém estar preparado, se se tiver a audácia de
andar em sua companhia.
Tínhamos combinado fazer uma actuação conjunta para uma feira em
que todos os anos se reúnem herbários biológicos, vendedores de banhos
de espuma%, esotéricos de toda a espécie, poetas da mãe natureza,
editores e médicos alternativos… foi um erro táctico? O que se passou foi
que, quando cheguei a Vincennes à procura do meu herói, encontrei-o
totalmente absorto na composição de um guião de uma história de banda
desenhada que se negava a abandonar para ir «à Mejorana%», como ele
dizia, dar uma palestra…
Eu insisti, alegando que estavam à nossa espera e que não podíamos
faltar com a nossa palavra, até que finalmente Jodorowsky aceitou
relutantemente entrar no meu carro, não sem me repetir durante todo o
trajecto: «Isto, eu não sinto, compreendes…? Não me parece que
tenhamos alguma coisa a ver com a Mejorana…». Quando chegámos ao
lugar em questão, encontrámos o pior: uma sala aberta aos quatro
ventos%, sem microfone nem cadeiras, e uma centena de pessoas que
tinham vindo ouvir, não o Jodorowsky, mas, devido a um erro de
programação, o doutos Woestlandt, simpático autor de best-sellers
medico-esotéricos…
Enquanto eu me enraivecia, o meu genial cúmplice, após captar com
uma olhadela a magnitude da catástrofe, replicou-me% em tom fatalista:
«Estás a ver? Era o que eu te dizia!», deu meia volta e foi-se embora sem
mais…
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A minha companheira correu atrás dele e suplicou-lhe que falasse de
qualquer forma. Naturalmente sensível às razões$ femininas, Alejandro
voltou atrás e disse-me: «Está bem, essa gente quer ouvir o doutor
Westphaler; ok, porque não me apresentas como se eu fosse ele’ diz-lhe
que sou o doutor Wiesen-Wiesen e que lhes vou falar…»
Talvez hoje eu tivesse aceitado de bom grado o desafio; mas na altura
estava ainda convencido dessa ideia tradicional de que o doutor
Woestland é o doutor Woestland, o Gilles é o Gilles e o Jodorowsky é o
Jodorowsky… Esse conceito de realidade tornava impossível que me
prestasse a tamanha mascarada$. Nessas condições, improvisei umas
palavras sinceras para apresentar o meu perigoso amigo, o qual,
chegando-se á frente do seu público desconcertado, começou a falar em
tom conciliador: «Olhem, eu não sou o doutor Westphallus; mas isso é o
menos, a pessoa não tem importância. Imaginem que eu sou o doutor
Wiesen-Wiesen e façam-me perguntas- pouco importa a pessoa,
responder-vos-ei como se fosse o doutor Wuf-Wuf…».
As pessoas, ao princípio, pareciam atónitas, mas muito rapidamente se
entregou ao sortilégio\repto e entrou no jogo do Jodorowsky, que, frente
ao meu olhar incrédulo, conseguiu um êxito rotundo$. À hora do coloquio,
convidou os seus ouvintes improvisados, com uma entoação cantante, a
contarem-lhe os seus problemas e aproveitassem assim a sorte que o
destino lhes havia entregue$: «Atenção, façam as vossas perguntas
porque esta é a última vez que venho à Mejorana…».
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Depois de visitar o stand das edições Dervy para comprar o livro do
doutro Woestland («há que saber ao menos que é esse doutor
Westphaler, não?»), Alejandro entrou na cafetaria, onde, em poucos
segundos, se achou rodeado de admiradores, e continuou a oferecer$
conselhos e observações iluminadas, com uma amabilidade
extraordinária.
E foi assim que uma tarde, começando por ser um fiasco, terminou em
apoteose.
Seria necessário$ falar aqui também da sua incrível intuição: não raras
vezes Alejandro, ao ver pela primeira vez uma pessoa, lhe diga
categoricamente$ alguma verdade que ela cria ter perfeitamente
ocultada, deixando no seu interlocutor a tremenda impressão de estar em
frente de um mago omnisciente.
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Um amigo – o qual chamaremos Claude Salzmann – não poderá nunca
esquecer essa noite, à saída de uma conferencia que por si já tinha sido
épica, em que nos sentámos no terraço de um café da Place Saint Sulpice
e Alejandro, de repente mas com delicadeza, se empenhou$ em fazer-lhe$
uma dessas revelações: «Escuta Salzmann, posso falar contigo? És amigo
do meu amigo e por isso vou falar contigo, pode ser? Escuta, Salzmann,
quando olho para ti, vejo um homem de natureza dividida: o teu lábio
superior é muito diferente do teu lábio inferior». (Olhei para o Claude e vi,
pela primeira vez, esse rasgo notável$ da sua fisionomia.) «O teu lábio
superior, muito estreito, é o de um homem sério, espiritual, quase rígido,
o lábio de um asceta… Mas o teu lábio inferior, grosso, carnudo, é o lábio
de um homem sensual, amante do prazer… Sim, coexistem em ti essas
duas naturezas, Salzmann, e deves conciliá-las…» Ainda que parecesse
bastante óbvio, o comentário impressionou o meu amigo, que parecia
precisamente naquela altura concentrado como nunca em harmonizar
essas duas inclinações, contraditórias para a lógica tradicional, mas
complementares para uma lógica mais profunda.
Quantas pessoas não ouvi já dizer que Alejandro, baseado numa carta
do seu tarot, ou apenas na sua capacidade de observação, lhes havia
mostrado, numa só palavra, o conflito que enfrentavam nesse momento,
sacando$ à luz um misterioso segredo da sua personalidade?
Um dia fui visitá-lo com uma amiga sobre a qual Alejandro nada sabia.
Recordo-me de ter ficado totalmente surpreendido ao observar como,
sem que ela tivesse perguntado, ele concentrava$ em duas frases, após
lhe ter lançado as cartas, o essencial da situação em que se encontrava.
Não é então estranho que o nosso homem suscite paixões e devoção.
O rei Jodorowsky impera na sua corte, rodeado de uma abundância de
fiéis para os quais o Cabaret Místico representa uma verdadeira missa.
Alguns vêm mesmo há anos ao ofício$ e seguem com devoção os mais
peregrinos aparecimentos% do mestre…
Escusado será dizer que eu não faço parte desse rebanho. O nosso
diálogo é, sobretudo, um diálogo entre amigos. Daí essa saudável
perplexidade com que às vezes recebo os seus comentários, e que
também devido a essa amizade tem o bom efeito de obrigá-lo a precisar o
seu pensamento.
Porque o seu extraordinário livro, que provoca sempre o fascínio,
pode levar também à dúvida e mesmo à irritação: por mais exactas que
sejam, muitas vezes as suas incisivas intuições podem parecer apressadas.
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Depois de vê-lo entregue às suas terapias-relâmpago dentro$ do Cabaret,
onde se orgulha de desfazer velhos nós psicológicos numa só noite, num
só golpe$ de árvore genealógica, temperado com uma dose de
«psicomagia», o espectador bem-disposto, que por seu lado conserva o
seu sentido crítico, não poderá senão oscilar entre a admiração e o
cepticismo, a estupefacção e a dúvida. Admiração e estupefacção, pois a
actuação deste actor sem igual, o seu poder para suster$ e conduzir a
energia de quinhentas pessoas numa sala e a férrea$ pertinência das suas
observações cortam a respiração. Cepticismo e dúvida, por outro lado,
pois essas noites cheias de riso e emoção, nas quais a miséria humana é
colocada em cena com enorme ousadia, onde complexos e traumas são
sacados$ à luz e tratados pelo «mestre» com uma sábia mistura de
perspicácia, exagero e benevolência, são o primeiro fruto de um novo
género, o do reality-show analítico-espiritual. Dali saímos ao mesmo
tempo convencidos e inquietos, perguntando-nos sobre o verdadeiro
alcance e sobre os efeitos a longo prazo desta alvoroço$ artístico-
terapêutico.
Há algo de charlatão e de curandeiro de feira neste visionário que se
autodenomina «trapaceiro sagrado». Mas, finalmente, essa faceta de
«charlatão transcendente», que é uma parte importante da personagem
Jodorowsky, está +posta ao serviço de uma rara energia compassiva$.
Poderia dizer-se que Alejandro é um bodhisattva à salsa sul-americana,
uma salsa com muita pimenta…
Não se é um trapaceiro sagrado apenas tentando sê-lo; debaixo da
desproporção% e aparente desenvoltura deste artista que afasta de todos
os cânones, há muito rigor – um rigor muito particular, mas que não deixa
de ser rigor – um potencial de criatividade inesgotável, uma profunda
visão poética e, estou convencido, muita bondade.
Porque o nosso homem tem um coração puro. Ainda que seja rei,
Jodorowsky não abusa do poder quase absoluto que lhe outorgam muitos
dos seus súbditos. Sua Majestade é o seu próprio bobo; nunca teme
colocar os seus próprios ensinamentos em julgamento%$ com uma boa
dose de humor. Ainda que não afaste$ a homenagem dos seus seguidores,
nem por isso mostra a menor intensão de ser ver convertido em ídolo.
Desinteressado por excelência – como pude comprovar em tantas
ocasiões – Jodorowsky continua a ser, aos meus olhos, crucialmente$
lúcido, consciente, tanto dos seus poderes como das suas limitações. Teve
a sorte de se ter aproximado de verdadeiros mestres – como o japonês Ejo
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Takata, que o marcou com o ferro escaldante do zazen – e, no entanto,
nem por isso se limita a ser guru no sentido estrito e nobre da palavra; ele
é mais como que um génio benévolo e inquietante com o qual cada um
pode percorrer uma parte do caminho.
– Cresce um bocado – disse um dia Jodorowsky à sua filha Eugenia, de
vinte anos.
Ao que esta respondeu:
– E tu encolhe um bocado!
Que o mesmo Jodorowsky cite, não sem orgulho, essa incisiva
resposta da sua filha diz muito acerca deste personagem.
Servidor da verdade, ainda que por vezes com um certo ar farsante$,
saltimbanco descarado que não pode senão calar-se e inclinar-se ante$
quem o supera, Jodorowsky pertence claramente à raça dos loucos sábios.
Se por um lado o clown místico pode inspirar fascínio ou aversão
imediatas – e muitas vezes também ambas ao mesmo tempo – há sempre
muito a ganhar conhecendo este homem em toda a sua riqueza interior.
Ainda que tenha publicado várias novelas e uma infinidade de contos,
Jodorowsky esperou pela idade da reforma% para escrever sobre o que
mais lhe importa. Pelo fio$ das nossas conversas, Alejandro conduziu-me
numa viagem mágica com a arte de um Castaneda que havia feito teatro.
É para esta viagem que agora nos convida. Este livro tem tanto de
autobiografia artístico-espiritual como de guia numa nova terapia. Janela
aberta a um mundo no qual a poesia se encarna em tumultos, em que o
teatro se torna sacrifício ritual e em que uma bruxa real, armada com uma
faca de cozinha, cura cancros, transplanta$troca corações e alimenta os
sonhos da noite, esta obra permanecerá, assim o espero, como a pegada,
entre nós, dos passos de um ser de uma dimensão pouco comum.
Gilles Farcet
Paris, 1989-1993
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O acto poético
Adivinhava o futuro?
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nessa situação de morte. Por exemplo, aos 33 anos – a idade de Jesus
Cristo – ou aos 45 – idade com que morreu o seu pai ou mãe, ou quando o
seu filho fez 7 anos – porque nessa idade a pessoa ficou órfã. São exemplo
de uma espécie de realização automática das previsões pessoais ou
familiares». Desta forma, como assinala Rosenthal, se um professor prevê
que um mau aluno continuará igual, o mais provável é que nada se altere.
Pelo contrário, quando o professor estima$ que a criança é inteligente,
ainda que tímida, e prevê que apesar disso fará progressos, ela começa a
progredir…
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Eu considerava o tarot como um teste projectivo$ que me permitia
localizar as necessidades da pessoa e saber onde residiam os seus
problemas. É bem sabido que a mera actualização%$ de uma dificuldade
inconsciente ou pouco conhecida constitui já um esboço de solução. Ao
trabalhar comigo, as pessoas tomavam consciência da sua identidade, das
suas dificuldades, do que as levava a actuar. Fazia-as passear através da
sua árvore genealógica para lhes mostrar a origem antiga de alguns dos
seus mal-estares$. No entanto, dei-me conta depois disso que não poderia
haver nenhuma cura verdadeira se não se chegava a uma acção concreta.
Para que a consulta tivesse um efeito terapêutico, teria que desembocar
numa acção criativa levada a cabo no âmbito real. Para o conseguir, tive
que indicar a quem vinha ver-me um ou dois actos a realizar. A pessoa e
eu tínhamos que, em acordo comum$ e plena consciência, fixar um
programa de acção muito preciso. Foi assim que cheguei a praticar a
psicomagia.
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que embarcaram os levou até ao Chile? Gosto de imaginar que
escolhemos
à partida$ o nosso destino e que nada do que nos sucede é fruto do azar.
Então, se não há azar, tudo tem sentido. Para mim, é o meu encontro com
a poesia o que justifica ter nascido no Chile.
Podia explicá-lo?
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chilena. No Chile, até mesmo os bêbados em pleno serão alcoólico
declamam versos de Neruda! A sua poesia era recitada tanto nos colégios
como na rua. Toda agente queria ser poeta, como ele. Não falo apenas
dos estudantes, mas dos trabalhadores e mesmo dos bêbados que
falavam em verso! Soube captar nos seus textos todo o ambiente louco do
país.
Ouve este poema que me vem à cabeça e que recitávamos em coro
quando, enquanto estudantes universitários nos embriagávamos com o
vinho patriótico da nossa terra chilena:
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linguagem da poesia é proporcionalmente directa ao seu afastamento da
linguagem que se fala… A linguagem converte-se num cerimonial de
encantamento e apresenta-se na luminosidade da sua nudez inicial, alheia
a todo o vestuário inicial convencional fixado de antemão… A poesia é
nada mais que o último horizonte, que é, por sua vez, a aresta onde os
extremos se tocam, onde não há contradição nem dúvida. Ao chegar a
esse limite$ final, o encadeamento habitual dos fenómenos quebra a sua
lógica, e do outro lado, onde começam as terras do poeta, a cadeia refaz-
se numa lógica nova. O poeta estende-vos a mão para vos conduzir para
além da vida e da morte, para além do verdadeiro e do falso, para além do
espaço e do tempo, para além da razão e da fantasia, para além do
espírito e da matéria… Há na sua garganta um incêndio inextinguível.
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O quarto chamava-se Pablo de Rokha. Também ele era um ser
exuberante, uma espécie de boxeur da poesia sobre o qual corriam os
rumores mais loucos. Eram-lhe atribuídos atentados anarquistas,
fraudes\scams… Na realidade era um dadaísta expressionista que trouxe
ao Chile a provocação cultural. Era turbulento, capaz de insultar, e nos
círculos literários tinha uma aura terrível e negra. Estas frases soltas, que
ressoam como uma descarga, deveriam bastar para dar uma ideia do seu
ardor furibundo:
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A minha poesia pode perfeitamente não ir a lado nenhum:
«Os risos deste livro são falsos!», argumentariam os meus detratores$
«As suas lágrimas, artificiais!»
«Em vez de suspirar nestas páginas, boceja»
«Agita-se$ como uma criança de colo»
«O autor dá-se a entender com espirros»
Conforme: convido-vos a queimar os vossos navios,
Como os fenícios, pretendo criar o meu próprio alfabeto.
«Porquê incomodar o público então?», perguntam-se os amigos
leitores
«Se o próprio autor começa por desprestigiar os seus escritos,
Que se poderá esperar deles!»
Cuidado, eu não desprestigio nada
O, melhor dizendo, eu exalto o meu ponto de vista,
Vanglorio-me das minhas limitações,
Levo% às nuvens as minhas criações.
Os pássaros de Aristófanes
Enterravam nas suas próprias cabeças
Os cadáveres dos seus pais.
(Cada pássaro era um verdadeiro cemitério voador)
No meu modo de ver
Chegou a hora de modernizar esta cerimónia
E eu enterro as minhas penas na cabeça dos senhores leitores!
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Estas pessoas expunham-se, não tinham medo de viver as suas
paixões. Quanto a nós, abraçávamos a causa de um, logo a seguir a de
outro… Estávamos imersos na poesia desde manhã até à noite, ela estava
realmente no centro das nossas vidas. Estes cinco poetas formavam, para
nós, um mandala alquímico: Neruda era a água, Parra o ar, De Rokha o
fogo, Gabriela Mistral a terra e Huidobro, no centro, a quintessência.
Queríamos ir mais além dos nosso predecessores, os quais, por outro lado,
já haviam antecipado as nossas buscas.
Tive a sorte de ter a mesma idade que o famoso poeta Erique Lihn,
hoje falecido. Um dia, com ele e outros companheiros, encontrámos um
livro obre o futurismo italiano uma frase iluminadora de Marinetti: «A
poesia é um acto». A partir desse momento, decidimos prestar mais
atenção ao acto poético que à escrita em si. Durante três ou quatro anos,
dedicámo-nos a realizar actos poéticos. Pensávamos neles todo o ia.
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a árvore para continuar a nossa conversa, se um carro se cruzava com o
nosso caminho, subíamos e caminhávamos por cima dele… O importante
era manter a linha recta e não prestar nenhuma atenção ao obstáculo,
fazer como se não existisse.
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Também nos dedicámos a actos muito inocentes e não menos
poderosos, como pôr na mão do revisor que vinha pedir-nos o bilhete do
autocarro uma bonita concha… O homem ficava tão estupefacto que
continuava sem dizer nada.
Tinha apenas vinte anos nessa altura. Com que olhos via a sua família
todas essas excentricidades?
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O meu pai praticava psicomagia sem o saber: estava convencido de
que quantas mais artigos tivesse mais venderia. Era preciso dar aos
clientes uma imagem de superabundância. Houve um tempo em que ele
tinha atrás de si uma fila de gavetas supostamente cheias de meias. Punha
uma das meias um pouco de fora de uma das caixas para dar a sensação
de que estavam abarrotadas quando, na verdade, não tinham
absolutamente nada lá dentro. Um dia em que a loja estava cheia de
clientes, um dos meus amigos, bêbado, pôs-se a abrir todas as gavetas,
fazendo$ de seguida um poema proclamando que o meu pai era um
homem excepcional, comparável aos grandes místicos: tal como eles
vendia puro vazio!
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como se o tempo tivesse parado. Tinha passado um ano, mas era para ele
como se isto tivesse acontecido na semana anterior.
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trémula. Nada permanecia fixo, tudo tremia!... (Risos) Todos viviam
precariamente, tanto no plano material como relacional. Nunca se sabia
como iria terminar uma festa: o casal casado às seis da tarde podia
desfazer-se às seis da manhã, os convidados podiam atirar os móveis pela
janela… Naturalmente, a angústia habitava no coração de toda essa
loucura. O país era pobre, as classes sociais muito diferenciadas.
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a toda a gente, a tocar essa mão morta. Ninguém se atreveu a comentar
que estava fria, sem vida, porque ninguém queria reconhecer a crua
realidade de que esse membro estava morto. Ao falar-te, dou-me conta
de que de certa forma me estou a confessar. Sei que tudo isto pode
parecer fantasioso. Para nós, tratava-se certamente de um jogo, mas
também de um acto profundamente dramático! O acto recriava outra
realidade no próprio interior da realidade habitual. Permitia-nos aceder a
outro nível, e continuo convencido de que com novos actos abre-se a
porta a outra dimensão.
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arrebatamento. O acto poético permite expressar energias normalmente
reprimidas ou adormecidas dentro de nós. O acto não consciente é uma
porta aberta ao vandalismo, à violência. Quando as multidões se
excitam$, quando as manifestações degeneram e as pessoas começam a
incendiar automóveis ou a lançar pedras, trata-se também de uma
libertação de energias reprimidas. Não por isso essas manifestações
merecem ser qualificadas de acto poético.
A resposta do mestre foi imediata: «Não, não; isso não é assim, deixa-
me corrigir o teu poema»:
Um pimento:
coloco-lhe umas asas
e torna-se borboleta!
Sim, mas cuidado com a destruição como fim em si! o acto é acção e
não reacção vândala.
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Nesse caso, como qualificaria alguns dos «actos» que comentou?
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O acto teatral
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Finalmente, tinha a impressão de estar a ser conduzido, manipulado
pelo boneco! Esta relação tão profunda com os fantoches fez nascer em
mim o desejo de me tornar um deles, ou seja, um actor de teatro.
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percorria a cidade. De repente havia que parar e entrar num bar, numa
maternidade, num matadouro; em suma$, entrar onde estivesse a
acontecer alguma coisa e retomar a marcha$... As experiencias que
realizei foram depois retomadas por outros. Quando estava anunciado
que o meu espectáculo iria decorrer num teatro, às vezes levava os
espectadores aos sótãos, às casas de banho ou ao telhado. Mais à frente,
acorreu-me a ideia de que o teatro podia prescindir de espectadores e não
deveria ter mais do que actores. Então organizei grandes festas em que
toda a gente podia representar. Finalmente, pareceu-me que interpretar
um personagem era inútil. O actor, pensei então, deve interpretar o seu
próprio mistério, exteriorizar o que tem dentro de si. Não vamos ao teatro
para escapar de nós próprios, mas para estabelecer contacto com o
mistério que todos somos. O teatro interessava-me menos como
distracção que como instrumento de autoconhecimento. Por isso,
substituí a «representação» clássica pelo que chamei o «efémero pânico».
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praça p´blica um quirófano, uma piscina, uma casa em ruínas ou até um
teatro tradicional, mas usado$ em todo o seu volume. Manifestaç~ies
eufóricas no pátio de butacas, nos camarins ou nas casas de banho,
desbordando-se ao longo dos corredores, no sótão, no telhado, etc.
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