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Políticas culturais, democracia e o projeto neoliberal

    

       

Evelina Dagnino**

Resumo – Neste texto, exploram-se os contornos de uma crise discursiva que parece
atravessar as experiências contemporâneas de construção democrática em vários países da
América Latina. Essa dinâmica resulta de uma confluência perversa entre, de um lado, o
projeto neoliberal e, de outro, um projeto democratizante, participativo, que emerge a partir
das crises dos regimes autoritários e dos diferentes esforços nacionais de aprofundamento
democrático. Discutem-se essas especificidades no contexto brasileiro marcado pela disputa
político-cultural entre esses dois projetos e pelos deslocamentos de sentido que se operam
em três noções: sociedade civil, participação e cidadania - que constituem as referências
centrais para o entendimento dessa confluência. Discutem-se, ainda, de forma muito
preliminar, as implicações desse processo de re-significação para as representações vigentes
de política e de democracia e as possibilidades de enfrentamento dessa crise.
Palavras-chave: cultura; democracia; sociedade civil; participação; cidadania; projeto
neoliberal.

Este texto reproduz o que foi publicado construção dessa hegemonia, constituem o
como “Confluência perversa, deslocamentos de instrumento privilegiado da “confluência per-
sentido, crise discursiva”, em La cultura en las versa” que discuto neste texto: a apropriação
crisis latinoamericanas (Grimson, 2004). Isto e re-significação de referências caras ao pro-
porque me pareceu que a crise discursiva que jeto democrático que, redefinidas, passam a
analiso como parte da “crise latino-america- abrigar significados fundamentais do projeto
na” está profundamente imbricada com as po- neoliberal. Entre essas referências, destaco três
líticas culturais formuladas sob a hegemonia que me parecem as mais importantes neste
neoliberal. Estas políticas, tanto as formuladas processo de re-significação: as noções de so-
pelo Estado como as que são produzidas pe- ciedade civil, de participação e de cidadania.
los vários setores da sociedade envolvidos na A disseminação das versões neoliberais

*
Agradeço ao CNPq o apoio concedido para a investigação da qual faz parte essa discussão.
**
Professora Titular do IFCH/UNICAMP. E-mail: evelina@unicamp.br.

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dessas referências vem obscurecendo as pro- qualificado nossas condições de existência


fundas diferenças entre esses dois projetos e aí como sociedades – assume hoje várias dimen-
reside a perversidade dessa confluência entre sões. Entre elas, este texto explora os contor-
eles no Brasil de hoje. nos de uma crise discursiva, que parece atra-
Se essa análise tem alguma pertinência, as vessar as experiências contemporâneas de
suas conseqüências apontam para o desafio construção democrática em grande parte do
que confronta hoje a formulação de políticas continente. Essa crise discursiva resulta de uma
culturais com sentido efetivamente democráti- confluência perversa entre, de um lado, o pro-
co. Do meu ponto de vista, a primeira tarefa no jeto neoliberal que se instala em nossos países
enfrentamento desse desafio passa exatamente ao longo das últimas décadas e, de outro, um
pela visibilidade e exacerbação das diferenças projeto democratizante, participativo, que emer-
entre os dois projetos. Ou seja, pela exposição ge a partir das crises dos regimes autoritários e
clara das relações de conflito e antagonismo dos diferentes esforços nacionais de aprofun-
que se mantêm, hoje, diluídas e encobertas por damento democrático. Essa confluência e a crise
essa aparente homogeneidade de discurso. que dela se origina são particularmente visíveis
Neste sentido, me parece crucial que as políti- no Brasil, embora me pareça possível defender
cas culturais democratizantes tenham como seu a idéia de que, com diferenças de intensidade,
eixo organizador a clara distinção e o caráter considerando os diferentes ritmos e modos de
antagônico em relação ao projeto neoliberal. implementação das medidas neoliberais e dos
Assim, já não é suficiente que essas políticas se processos democratizantes nacionais, este ce-
refiram à construção da participação e da cida- nário é compartilhado por muitos dos países
dania e que incluam a sociedade civil como co- da América Latina. Focalizo a seguir o que me
partícipe. É preciso que o significado demo- parecem ser as especificidades dessa crise no
crático desses princípios seja reafirmado e ex- contexto brasileiro, marcada pela disputa polí-
pandido, para que as políticas culturais que tico-cultural entre esses dois projetos e pelos
eles venham a orientar possam efetivamente se deslocamentos de sentido que ela opera em
contrapor à hegemonia neoliberal e seus efei- três noções – Sociedade Civil, Participação e
tos de aprofundamento da desigualdade, de Cidadania – que constituem as referências cen-
consolidação do mercado e do interesse priva- trais para o entendimento dessa confluência.
do como parâmetros de todas as coisas e de Finalmente, discuto de forma muito preliminar
minimalização da política e da democracia. as implicações desse processo de re-significa-
A crise latino-americana – esta expressão ção para as representações vigentes de política
com a qual, desde há muito tempo, tanto os e de democracia e as possibilidades de enfren-
nativos como os outros têm recorrentemente tamento dessa crise.

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O processo de construção democrática en- Assim, os anos 90 foram cenário de numero-


frenta hoje no Brasil um dilema cujas raízes sos exemplos desse trânsito da sociedade civil
estão na existência de uma confluência perver- para o Estado. Segundo, e como conseqüên-
sa entre dois processos distintos, ligados a dois cia, durante esse mesmo período, o confronto
projetos políticos distintos.1 De um lado, um e o antagonismo que tinham marcado profun-
processo de alargamento da democracia, que damente a relação entre o Estado e a sociedade
se expressa na criação de espaços públicos e civil nas décadas anteriores cederam lugar a
na crescente participação da sociedade civil nos uma aposta na possibilidade da sua ação con-
processos de discussão e de tomada de deci- junta para o aprofundamento democrático. Essa
são relacionados com as questões e políticas aposta deve ser entendida num contexto no qual
públicas (Teixeira e Silva, 2002). O marco for- o princípio de participação da sociedade se tor-
mal desse processo é a Constituição de 1988, nou central como característica distintiva desse
que consagrou o princípio de participação da projeto, subjacente ao próprio esforço de cria-
sociedade civil.2 As principais forças envolvidas ção de espaços públicos nos quais o poder do
nesse processo compartilham um projeto de- Estado pudesse ser compartilhado com a socie-
mocratizante e participativo, construído desde dade. Entre os espaços implementados durante
os anos 80 ao redor da expansão da cidadania esse período destacam-se os Conselhos Gestores
e do aprofundamento da democracia. Esse pro- de Políticas Públicas, instituídos por lei, e os Orça-
jeto emerge da luta contra o regime militar em- mentos Participativos, que, a partir da experiência
preendida por setores da sociedade civil, entre pioneira de Porto Alegre, foram implementados
os quais os movimentos sociais desempenha- em cerca de 100 cidades brasileiras, a maioria
ram um papel fundamental. No percurso desse governada por partidos de esquerda, principal-
projeto, desde então, dois marcos importantes mente o Partido dos Trabalhadores (PT).3
devem ser mencionados. Primeiro, o restabe- De outro lado, com a eleição de Collor em
lecimento da democracia formal, com eleições 1989 e como parte da estratégia do Estado para
livres e a reorganização partidária, abriu a pos- a implementação do ajuste neoliberal, ocorre a
sibilidade de que este projeto, configurado no emergência de um projeto de Estado mínimo
interior da sociedade e que orientou a prática que se isenta progressivamente de seu papel de
de vários dos seus setores, pudesse ser levado garantidor de direitos, por meio do encolhi-
para o âmbito do poder do Estado, no nível mento de suas responsabilidades sociais e de
dos executivos municipais e estaduais e dos sua transferência para a sociedade civil. Este
parlamentos e, mais recentemente, no execu- projeto constitui o núcleo duro do bem conhe-
tivo federal, com a eleição de Luís Inácio Lula cido processo global de adequação das socie-
da Silva como Presidente da República. dades ao modelo neoliberal produzido pelo

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Consenso de Washington. Meu argumento é Daí a perversidade e o dilema que ela coloca,
então que a última década é marcada por uma instaurando uma tensão que atravessa hoje a
confluência perversa3 entre esses dois proje- dinâmica do avanço democrático no Brasil. Por
tos. A perversidade estaria colocada, desde logo, um lado, a constituição dos espaços públicos
em que, apontando para direções opostas e até representa o saldo positivo das décadas de luta
antagônicas, ambos os projetos requerem uma pela democratização, expresso especialmente
sociedade civil ativa e propositiva. – mas não só – pela Constituição de 1988, que
Essa identidade de propósitos, no que toca foi fundamental na implementação destes es-
à participação da sociedade civil, é evidente. paços de participação da sociedade civil na
Mas essa aparência é sólida e cuidadosamente gestão da sociedade. Por outro lado, o proces-
construída através da utilização de referências so de encolhimento do Estado e de progressiva
comuns, que tornam seu deciframento uma ta- transferência de suas responsabilidades soci-
refa difícil, especialmente para os atores da so- ais para a sociedade civil, que tem caracteriza-
ciedade civil envolvidos, a cuja participação se do os últimos anos, estaria conferindo uma di-
apela tão veementemente e em termos tão fami- mensão perversa a essas jovens experiências,
liares e sedutores. A disputa política entre pro- acentuada pela nebulosidade que cerca as di-
jetos políticos distintos assume então o caráter ferentes intenções que orientam a participação.
de uma disputa de significados para referênci- Essa perversidade é claramente exposta nas
as aparentemente comuns: participação, soci- avaliações dos movimentos sociais, de repre-
edade civil, cidadania, democracia. A utilização sentantes da sociedade civil nos Conselhos ges-
dessas referências, que são comuns, mas abri- tores, de membros das organizações não-go-
gam significados muito distintos, instala o que vernamentais envolvidas em parcerias com o
se pode chamar de crise discursiva: a lingua- Estado e de outras pessoas que, de uma ma-
gem corrente, na homogeneidade de seu voca- neira ou de outra, vivenciam a experiência
bulário, obscurece diferenças, dilui nuances e desses espaços ou se empenharam na sua
reduz antagonismos. Nesse obscurecimento se criação, apostando no potencial democrati-
constroem sub-repticiamente os canais pelos zante que eles trariam. Elas percebem essa
quais avançam as concepções neoliberais, que confluência perversa como um dilema que
passam a ocupar terrenos insuspeitados. Nes- questiona o seu próprio papel político: “o que
sa disputa, na qual os deslizamentos semânti- estamos fazendo aqui?”, “que projeto estamos
cos, os deslocamentos de sentido, são as armas fortalecendo?”, “não ganharíamos mais com
principais, o terreno da prática política se cons- outro tipo de estratégia que priorizasse a
titui num terreno minado, onde qualquer pas- organização e a mobilização da sociedade,
so em falso nos leva ao campo adversário. ao invés de atuar junto com o Estado?”. 4

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O risco – real – que elas percebem é que a A virtude específica dessa abordagem, sobre a
participação da sociedade civil nas instâncias de- qual já trabalhamos largamente (Dagnino,
cisórias, defendida pelas forças que sustentam o 1998, 2000) está no vínculo indissolúvel que
projeto participativo democratizante como um estabelece entre a cultura e a política. Nesse
mecanismo de aprofundamento democrático e sentido, nossa hipótese central sobre a noção
de redução da exclusão, possa acabar servindo de projetos políticos é que eles não se reduzem
aos objetivos do projeto que lhe é antagônico. a estratégias de atuação política no sentido es-
O reconhecimento dos dilemas colocados trito, mas expressam e veiculam e produzem
por essa confluência perversa impõe, do meu significados que integram matrizes culturais
ponto de vista, inflexões necessárias no modo mais amplas. Assim, por exemplo, determina-
como temos analisado o processo de constru- das versões das noções que destacamos aqui
ção democrática no Brasil, as relações entre como temas principais da confluência perver-
Estado e sociedade civil e a problemática da sa – sociedade civil, participação e cidadania –
constituição de espaços públicos e sua dinâmi- ao mesmo tempo encontram raízes e produ-
ca de funcionamento. Na verdade, o que essa zem ecos na lenta emergência de uma cultura
confluência perversa veio ressaltar é uma di- mais igualitária que confronta as várias dimen-
mensão freqüentemente esquecida: a imensa sões do autoritarismo social da sociedade bra-
complexidade desse processo, que resiste a sileira. Outras reiteram sob novas roupagens as
análises simplistas e unidimensionais. Uma visões de uma democracia elitista e restrita que
dessas inflexões é a necessidade de conferir têm caracterizado o projeto dominante nestas
um maior peso explicativo à noção de projeto últimas décadas.
político, no nível teórico, e em conseqüência, Uma primeira implicação dessa inflexão,
investir, no nível empírico, na investigação e que não analisaremos aqui, se refere às rela-
análise dos distintos projetos políticos em dis- ções Estado-sociedade civil e à necessidade de
puta, e especialmente no esforço de desvendar repensar, a partir dessa perspectiva, a análise
a crescente opacidade construída por refe- recorrente dessas relações que tem como seu
rências comuns, através da explicitação dos eixo central a clivagem entre a sociedade civil –
deslocamentos de sentido que sofrem. Esta- considerada como “pólo de virtudes democra-
mos usando a expressão “projetos políticos” tizantes” – e o Estado, freqüentemente visto
num sentido próximo ao da visão gramsciana, como “encarnação do mal” e obstáculo funda-
para designar os conjuntos de crenças, inte- mental à participação e à democratização. As
resses, concepções de mundo, representações conseqüências negativas dessa visão homoge-
do que deve ser a vida em sociedade, que ori- neizadora se agravam na medida em que ela
entam a ação política dos diferentes sujeitos. tende a simplificar a imensa complexidade do

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processo de construção democrática e das re- A confluência perversa e o


lações que o constituem. Assim, o ritmo e a deslocamento de significados
natureza da construção democrática encontrari-
A investigação dos distintos projetos de cons-
am grande parte de sua explicação na análise do
trução democrática e dos significados que os
conflito que deriva dessa clivagem entre Estado e
constituem se põe como tarefa analítica no Brasil
sociedade civil. A noção de projetos políticos pode
pelo menos desde os anos 80, com a ruptura
contribuir para superar essa visão homogeneiza-
da momentânea “unidade” da sociedade civil
dora tanto do Estado quanto da sociedade civil e o
que se havia construído em torno do restabele-
reconhecimento da sua diversidade interna, como
cimento do Estado de Direito e das instituições
base para repensar as suas relações. A identifica-
ção e a distinção clara dos diferentes projetos po- democráticas. O debate entre as várias concep-
líticos presentes no interior do aparato de Estado ções de democracia que se inicia naqueles anos,
e na sociedade civil nos levam a perceber que a expressando a diversidade que sucedeu àque-
clivagem estrutural entre Estado e Sociedade civil la “unidade”, catalisou boa parte das energias
não é suficiente para entender as suas relações. intelectuais e políticas do país. No entanto, nos
Ela deve então ser combinada com outras cliva- últimos anos, o que denominamos acima de
gens, constituídas por esses distintos projetos, que “confluência perversa” e a crise discursiva que
não necessariamente coincidem com ela, mas a ela determina agudizaram, desde o nosso pon-
atravessam. Essa perspectiva de análise pode for- to de vista, a necessidade dessa tarefa.
necer um cenário muito mais complexo da dinâ- O avanço da estratégia neoliberal determi-
mica da construção democrática do que a tão nou uma profunda inflexão na cultura política
difundida redução maniqueísta dos dois pólos no Brasil e na América Latina. Assim, menos
principais dessa dinâmica. reconhecida e debatida do que a reestrutura-
Um segundo ponto propõe um exercício ção do Estado e da economia que têm resul-
preliminar de análise dos deslocamentos de tado da implementação desse projeto, há
sentido pelos quais têm passado as noções de uma redefinição de significados no âmbito
sociedade civil, participação e cidadania, e suas da cultura que integram a transformação
implicações para o significado de política e de- que têm se operado nos nossos países. No
mocracia. Se esses deslocamentos expressam caso do Brasil, o que há talvez de específico
e configuram uma disputa política, sua análise nesse processo seja que ele se defronta com
deve expor os distintos projetos que esses sen- um projeto político democratizante, amadu-
tidos escondem e revelam, contribuindo para recido desde o período da resistência ao re-
diluir a crise discursiva que o seu obscureci- gime militar, fundado na ampliação da cida-
mento tem provocado. dania e na participação da sociedade civil.

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Ao contrário de outros países do continente, natureza dessa interlocução se lembrarmos que


esse projeto, gerado no interior de uma socie- os anos 90 no Brasil são caracterizados por
dade civil bastante consolidada, encontra su- uma inflexão nas relações entre o Estado e os
porte significativo em vários dos seus setores, setores da sociedade civil comprometidos com
tendo sido capaz, como vimos, de inspirar a cri- o projeto participativo democratizante, na qual
ação de novas instituições que abrigassem seus estes últimos substituem o confronto aberto da
princípios, tais como os conselhos gestores, os década anterior por uma aposta na possibili-
orçamentos participativos etc. A constituição desse dade de uma atuação conjunta com o Estado. A
campo ético-político, que tem um papel funda- chamada “inserção institucional” dos movimen-
mental na transição democrática, foi analisada tos sociais é evidência dessa inflexão (Carvalho,
por vários autores (Alvarez e Escobar, 1998; 1997; GECD, 2000). Assim, grande parte da in-
Doimo, 1995; Baierle, 1998). Mais recentemen- terlocução entre o projeto neoliberal, que ocu-
te, o seu trânsito para o aparato do Estado em pa majoritariamente o aparato do Estado, com o
vários níveis possibilitou a emergência de ex- projeto participativo se dá justamente por inter-
periências participativas democratizantes que médio daqueles setores da sociedade civil que
pipocam por todo o país. se engajam nessa aposta e passam a atuar nas
Em outras palavras, o projeto neoliberal novas instâncias de participação no Estado.
encontra no Brasil um contendor relativamen- Nesse sentido, a coincidência na exigência
te consolidado, embora evidentemente não de uma sociedade civil ativa e propositiva, que
hegemônico, capaz de constituir um campo de estes dois projetos antagônicos apresentam, é,
disputa. A existência desse contendor e dessa de fato, emblemática de uma série de outras
disputa determina, na nossa perspectiva, dire- “coincidências” no nível do discurso, referên-
ções específicas às estratégias e formas de atu- cias comuns que, examinadas com cuidado,
ação das forças vinculadas ao projeto neolibe- escondem distinções e divergências funda-
ral em nosso país que, se não se afastam das mentais. Assim, o que essa “confluência per-
direções adotadas no nível global, adquirem versa” determina é um obscurecimento des-
especificidade própria na medida em que são sas distinções e divergências, por meio de um
forçadas a estabelecer relações de sentido e vocabulário comum e de procedimentos e
um terreno de interlocução com o campo ad- mecanismos institucionais que guardam uma
versário. A necessidade dessa interlocução se similaridade significativa.
acentua no interior dos espaços públicos de As noções de sociedade civil, participação
participação do Estado e da sociedade civil e cidadania mantêm entre si uma estreita rela-
quando se defrontam face a face esses dois pro- ção e foram selecionadas porque são, da nossa
jetos. É possível entender melhor o cenário e a perspectiva, elementos centrais desse desloca-

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mento de sentidos que constitui o mecanismo produção transnacional das representações


privilegiado na disputa política que se trava hoje daquelas noções. Ou seja, reconhecendo que
ao redor do desenho democrático da socieda- essa produção se constitui, pelo menos para o
de brasileira. Essa centralidade, de um lado, se caso brasileiro, mas suspeito que em parte sig-
relaciona com o papel que elas desempenha- nificativa de outros casos, também em diálogo
ram na origem e na consolidação do projeto com e como re-significação ativa dos elemen-
participativo. De outro lado, e em conseqüên- tos oposicionais com potencial hegemônico
cia, elas são fundamentais exatamente porque alternativo. Isto significa reconhecer e, de certa
constituem os canais de mediação entre os dois forma, reabilitar o espaço do local, do nacio-
campos ético-políticos. Além disso, para além nal, como parceiro ativo na construção, quali-
do cenário específico onde essas noções se in- ficação e confronto do projeto neoliberal.
serem no debate brasileiro, elas também são A redefinição da noção de sociedade civil
parte constitutiva da implementação do projeto e do que ela designa talvez tenha constituído o
neoliberal no nível global. Nesse sentido, esta- deslocamento mais visível produzido no âmbi-
mos nos diferenciando aqui de uma análise que to da hegemonia do projeto neoliberal; por isso
veria esses deslocamentos como predominan- mesmo o mais estudado. O crescimento acele-
temente determinados pela imposição global rado e o novo papel desempenhado pelas Or-
dos elementos político-culturais “adequados” ganizações Não-Governamentais; a emergên-
à implementação do modelo neoliberal. Se a cia do chamado Terceiro Setor e das Funda-
velha teoria da dependência deixou uma lição, ções Empresariais, com a forte ênfase numa
foi ressaltar o mecanismo da “internalização” filantropia redefinida (Fernandes, 1994; Lan-
dos elementos “externos”. Essa internalização dim, 1993; Alvarez, 1999; Paoli, 2002; Sala-
se dá, no mais das vezes, como parte integrante mon, 1997); e a marginalização, a que alguns
da formulação de projetos políticos próprios autores se referem como “criminalização” (Oli-
dos atores locais. Isso não nos exime de reco- veira, 1997) dos movimentos sociais, evidenci-
nhecer que os graus de autonomia na formula- am esse movimento de redefinição. O resultado
ção desses projetos estão muito longe de se- tem sido uma crescente identificação entre “so-
rem ilimitados. Mas significa também reafirmar ciedade civil” e ONGs onde o significado da
o óbvio: a adoção do modelo neoliberal cor- expressão “sociedade civil” se restringe cada
responde a e expressa uma enorme fatia dos vez mais a designar apenas essas organizações,
interesses, desejos, crenças e aspirações pre- quando não em mero sinônimo de “Terceiro
sentes nos países latino-americanos: nas suas Setor”. Reforçada pelo que tem sido chama-
sociedades civis e nos seus Estados. É nesse do de “onguização” dos movimentos sociais
sentido, me parece, que devemos entender a (Alvarez, 1999), essa tendência é mundial.

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Mas seria necessário aprofundar os significa- quando ela se defronta com a possibilidade
dos locais específicos desse deslocamento, bem concreta de produzir resultados positivos – frag-
como apontar a heterogeneidade constitutiva mentados, pontuais, provisórios, limitados, mas
do campo das ONGs (Teixeira, 2000) que ten- positivos – com relação à diminuição da desi-
demos a ignorar. O papel das agências interna- gualdade e à melhoria das condições de vida
cionais tem sido abundantemente apontado na dos setores sociais atingidos.
raiz desse deslocamento (Mato, 2003). Mas O predomínio maciço das ONGs expressa,
seria necessário investigar os diferentes papéis por um lado, a difusão de um paradigma global
que desempenham nele, em primeiro lugar, as que mantém estreitos vínculos com o modelo
distintas organizações não governamentais. Seu neoliberal, na medida em que responde às exi-
desempenho, vinculado aos diferentes proje- gências dos ajustes estruturais por ele determi-
tos políticos que as mobilizam, é, com freqüên- nados. Por outro lado, com o crescente aban-
cia, também afetado pela necessidade de asse- dono de vínculos orgânicos com os movimen-
gurar sua própria sobrevivência. Além delas, tos sociais que as caracterizava em períodos
papel fundamental têm os diferentes Governos anteriores, a autonomização política das ONGs
locais, em todos os seus níveis (municipal, es- cria uma situação peculiar na qual essas orga-
tadual e federal, no caso brasileiro), que, de- nizações são responsáveis perante as agências
pendendo de seus respectivos projetos, bus- internacionais que as financiam e o Estado que
cam parceiros confiáveis e temem a politização as contrata como prestadoras de serviços, mas
da interlocução com os movimentos sociais e não perante a sociedade civil, da qual se intitu-
com as organizações de trabalhadores, uma lam representantes, nem tampouco perante os
tendência alimentada pela mídia, com freqüên- setores sociais de cujos interesses são portado-
cia por motivos semelhantes. ras, ou perante qualquer outra instância de
As relações entre Estado e ONGs parecem caráter propriamente público. Por mais bem
constituir um campo exemplar da confluência intencionadas que sejam, sua atuação traduz
perversa que mencionamos antes. Dotadas de fundamentalmente os desejos de suas equipes
competência técnica e inserção social, interlo- diretivas (Dagnino, 2002).
cutores “confiáveis” entre os vários possíveis Talvez menos exploradas sejam as importan-
interlocutores na sociedade civil, elas são fre- tes implicações dessa reconfiguração da socie-
qüentemente vistas como os parceiros ideais dade civil para uma dimensão fundamental, inti-
pelos setores do Estado empenhados na trans- mamente ligada à idéia de participação e à cons-
ferência de suas responsabilidades para o âm- tituição de espaços públicos, que é a representa-
bito da sociedade civil. Uma eventual recusa ção/representatividade da sociedade civil. A ques-
desse papel (Galgani e Said, 2002) se dramatiza tão da representatividade assume facetas variadas

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ou é entendida de formas diversas por parte de Esse deslocamento da noção de represen-


diferentes setores da sociedade civil. Por um lado, tatividade não é obviamente inocente nem em
a capacidade de pressão do Movimento dos Tra- suas intenções nem em suas conseqüências
balhadores Rurais Sem Terra (MST), por exem- políticas. Seu exemplo mais extremo é a com-
plo, se evidencia na realização de protestos e posição do Conselho da Comunidade Solidá-
manifestações de massa que, assim como o nú- ria,5 criado pelo Governo Fernando Henrique
mero de participantes no Orçamento Participati- Cardoso e centro das políticas sociais durante
vo e sua capacidade de mobilização atestam as seu mandato, no qual a representação da soci-
suas respectivas representatividades, entendi- edade civil se dava através de convites a indiví-
das num sentido clássico. Por outro lado, há duos com alta “visibilidade” na sociedade, ar-
um deslocamento no entendimento da repre- tistas de televisão, pessoas que escrevem com
sentatividade, tanto por parte do Estado quanto freqüência na mídia impressa, etc. Esse enten-
por parte de atores da sociedade civil. No caso dimento particular da noção de representativi-
das ONGs, por exemplo, essa representativida- dade a reduz à visibilidade social, entendida,
de parece se deslocar para o tipo de compe- por sua vez, como o espaço ocupado nos vári-
tência que possuem: o Estado as vê como inter- os tipos de mídia.
locutoras representativas na medida em que Estreitamente ligada a esse processo de des-
detêm um conhecimento específico que pro- locamento, a noção de participação, que cons-
vém do seu vínculo (passado ou presente) com tituiu o núcleo central do projeto participativo
determinados setores sociais: jovens, negros, e democratizante, percorre os mesmos cami-
mulheres, portadores de HIV, movimentos am- nhos. Por um lado, a re-significação da partici-
bientais, etc. Portadoras dessa capacidade es- pação acompanha a mesma direção seguida
pecífica, muitas ONGs passam também a se ver pela reconfiguração da sociedade civil, com a
como “representantes da sociedade civil”, num emergência da chamada “participação solidá-
entendimento particular da noção de repre- ria” e a ênfase no trabalho voluntário e na “res-
sentatividade. Consideram ainda que sua re- ponsabilidade social”, tanto de indivíduos como
presentatividade vem do fato de que expres- de empresas. O princípio básico aqui parece
sam interesses difusos na sociedade, aos quais ser a adoção de uma perspectiva privatista e
“dariam voz”. Essa representatividade adviria individualista, capaz de substituir e redefinir o
então muito mais de uma coincidência entre significado coletivo da participação social. A pró-
esses interesses e os defendidos pelas ONGs pria idéia de “solidariedade”, a grande “ban-
do que de uma articulação explícita, ou rela- deira” dessa participação redefinida, é despi-
ção orgânica, entre estas e os portadores des- da de seu significado político e coletivo, pas-
tes interesses. sando a apoiar-se no terreno privado da moral.

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Além disso, este princípio tem demonstrado sua e reduzido à gestão. A ênfase gerencialista e
efetividade em redefinir um outro elemento cru- empreendorista transita da área da administra-
cial no projeto participativo, promovendo a des- ção privada para o âmbito da gestão estatal (Ta-
politização da participação: na medida em que tagiba, 2003) com todas as implicações despo-
essas novas definições dispensam os espaços litizadoras delas decorrentes. Estes significados
públicos onde o debate dos próprios objetivos vêm se contrapor ao conteúdo propriamente
da participação pode ter lugar, o seu significa- político da participação tal como concebida no
do político e potencial democratizante é substi- interior do projeto participativo, marcada pelo
tuído por formas estritamente individualizadas objetivo da “partilha efetiva do poder” entre
de tratar questões tais como a desigualdade Estado e sociedade civil (Dagnino, 2002), por
social e a pobreza (Telles, 2001). meio do exercício da deliberação no interior
Por outro lado, em grande parte dos espa- dos novos espaços públicos.
ços abertos à participação de setores da socie- Finalmente, a noção de cidadania oferece
dade civil na discussão e formulação das políti- talvez o caso mais dramático desse processo de
cas públicas com respeito a essas questões, es- deslocamento de significado. Dramático, em
tes se defrontam com situações nas quais o que primeiro lugar, porque foi precisamente por
se espera deles é muito mais assumir funções e meio dessa noção que o projeto participativo
responsabilidades restritas à implementação e obteve seus maiores ganhos culturais e políti-
execução de políticas públicas, provendo ser- cos, na medida em que foi capaz de fundar uma
viços antes considerados como deveres do Es- redefinição inovadora dos seus conteúdos que
tado, do que compartilhar o poder de decisão penetrou profundamente no cenário político e
quanto à formulação dessas políticas. O papel cultural da sociedade brasileira. Retomar alguns
das chamadas “organizações sociais”, a deno- dos elementos fundamentais dessa redefinição,
minação utilizada na Reforma Administrativa do trabalhada em outro lugar,6 pode ajudar a escla-
Estado, implementada pelo então Ministro Luiz recer o significado dramático da apropriação
Carlos Bresser Pereira a partir de 1995, para neoliberal da noção de cidadania.
designar a forma de participação da sociedade A então chamada nova cidadania, ou cida-
civil nas políticas públicas, instituída pela Cons- dania ampliada começou a ser formulada pelos
tituição de 1988, se reduz àquela função e é movimentos sociais que, a partir do final dos anos
claramente excluído dos poderes de decisão, 70 e ao longo da década de 80, se organizaram
reservados ao chamado “núcleo estratégico” no Brasil em torno de demandas de acesso
do Estado (Bresser Pereira, 1996). aos equipamentos urbanos como moradia,
Aqui, mais uma vez, o significado político água, luz, transporte, educação, saúde, etc.
crucial da participação é radicalmente redefinido e de questões como gênero, raça, etnia, etc.

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Dossiê Nacional

Inspirada na sua origem pela luta pelos direitos legal de um conjunto de direitos e, portanto, ao
humanos (e contribuindo para a progressiva sistema político-jurídico. A nova cidadania é um
ampliação do seu significado) como parte da projeto para uma nova sociabilidade: não so-
resistência contra a ditadura, essa concepção mente a incorporação no sistema político em
buscava implementar um projeto de constru- sentido estrito, mas um formato mais igualitário
ção democrática, de transformação social, que de relações sociais em todos os níveis, inclusive
impõe um laço constitutivo entre cultura e polí- novas regras para viver em sociedade (negoci-
tica. Incorporando características de socieda- ação de conflitos, um novo sentido de ordem
des contemporâneas, tais como o papel das pública e de responsabilidade pública, um novo
subjetividades, o surgimento de sujeitos sociais contrato social etc.). Um formato mais igualitá-
de um novo tipo e de direitos também de novo rio de relações sociais em todos os níveis impli-
tipo,7 bem como a ampliação do espaço da ca o “reconhecimento do outro como sujeito
política, esse projeto reconhece e enfatiza o portador de interesses válidos e de direitos le-
caráter intrínseco da transformação cultural gítimos” (Telles 1994: 46). Isso implica tam-
com respeito à construção da democracia. Nes- bém a constituição de uma dimensão pública
se sentido, a nova cidadania interpela constru- da sociedade, em que os direitos possam con-
ções culturais, como as subjacentes ao autori- solidar-se como parâmetros públicos para a
tarismo social, como alvos políticos fundamen- interlocução, o debate e a negociação de con-
tais da democratização. Assim, a redefinição da flitos, tornando possível a reconfiguração de
noção de cidadania, formulada pelos movimen- uma dimensão ética da vida social.
tos sociais, expressa não somente uma estraté- A conquista da cidadania foi freqüentemente
gia política, mas também uma política cultural. definida por aqueles que lutavam por ela como
Distinguindo-se de outras versões, a cidadania sendo o próprio processo de constituição de
assim definida não está mais confinada dentro sujeitos sociais ativos (agentes políticos),8 defi-
dos limites das relações com o Estado, ou entre nindo coletivamente o que consideram ser seus
Estado e indivíduo, mas deve ser estabelecida direitos e lutando para seu reconhecimento
no interior da própria sociedade, como parâ- enquanto tais. Profundamente vinculada à idéia
metro das relações sociais que nela se travam. da ampliação da política, portanto, essa con-
O processo de construção de cidadania como cepção apontava na direção da redefinição de
afirmação e reconhecimento de direitos é, es- uma referência central da sua contrapartida li-
pecialmente na sociedade brasileira, um pro- beral: a reivindicação ao acesso, inclusão, par-
cesso de transformação de práticas arraigadas ticipação e pertencimento a um sistema políti-
na sociedade como um todo, cujo significado co já dado. O que está em jogo, de fato, é o
está longe de ficar limitado à aquisição formal e direito de participar na própria definição desse

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Políticas culturais, democracia e o projeto neoliberal

sistema, para definir de que queremos ser mem- transformação de práticas arraigadas na soci-
bros, isto é, a invenção de uma nova sociedade. edade como um todo, cujo significado está
O reconhecimento dos direitos de cidadania, longe de ficar limitado à aquisição formal e
tal como é definido por aqueles que são exclu- legal de um conjunto de direitos e, portanto,
ídos dela no Brasil de hoje, aponta para trans- ao sistema político-judicial. A nova cidadania
formações radicais em nossa sociedade e em é um projeto para uma nova sociabilidade:
sua estrutura de relações de poder. Daí a im- não somente a incorporação no sistema polí-
portância que essa noção adquiriu na emer- tico em sentido estrito, mas um formato mais
gência de experiências participativas como os igualitário de relações sociais em todos os ní-
Orçamentos Participativos e outras, nas quais veis, inclusive novas regras para viver em soci-
os setores populares e suas organizações lu- edade (negociação de conflitos, um novo sen-
tam para abrir espaço para o controle demo- tido de ordem pública e de responsabilidade
crático do Estado mediante a participação efe- pública, um novo contrato social etc.). Um
tiva dos cidadãos no poder. Além disso, não há formato mais igualitário de relações sociais
dúvida de que essas experiências expressam e em todos os níveis implica o “reconhecimen-
contribuem para reforçar a existência de cida- to do outro como sujeito portador de interes-
dãos-sujeitos e de uma cultura de direitos que ses válidos e de direitos legítimos” (Telles,
inclui o direito a ser co-participante em gover- 1994, p. 46). Isso implica também a constitui-
nos locais. Ademais, esse tipo de experiência ção de uma dimensão pública da sociedade,
contribui para a criação de espaços públicos em que os direitos possam consolidar-se como
onde os interesses comuns e privados, as espe- parâmetros públicos para a interlocução, o
cificidades e as diferenças, podem ser expos- debate e a negociação de conflitos, tornando
tos, discutidos e negociados. possível a reconfiguração de uma dimensão
Apontando também para a superação do ética da vida social.
conceito liberal de cidadania, um outro ele- Esse projeto significa uma reforma moral
mento dessa visão ampliada é que a cidadania e intelectual: um processo de aprendizagem
não está mais confinada aos limites das rela- social, de construção de novos tipos de rela-
ções com o Estado, ou entre Estado e indiví- ções sociais, que implicam, obviamente, a cons-
duo, mas deve ser estabelecida no interior da tituição de cidadãos como sujeitos sociais ati-
própria sociedade, como parâmetro das rela- vos. Mas para a sociedade em seu conjunto,
ções sociais que nela se travam. O processo requer também aprender a viver em termos
de construção de cidadania como afirmação diferentes com esses cidadãos emergentes
e reconhecimento de direitos é, especialmen- que se recusam a permanecer nos lugares
te na sociedade brasileira, um processo de definidos social e culturalmente para eles.

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Dossiê Nacional

Esse é um dos pontos em que o radicalismo da cidadania”, isto é, aprender como iniciar mi-
cidadania como política cultural parece bas- croempresas, tornar-se qualificado para os
tante claro. poucos empregos ainda disponíveis, etc. Num
A disseminação dessa concepção de cidada- contexto no qual o Estado se isenta progressi-
nia foi expressiva, e ela orientou não só as práti- vamente de seu papel de garantidor de direitos,
cas políticas de movimentos sociais de vários ti- o mercado é oferecido como uma instância
pos, mas também mudanças institucionais, como substituta para a cidadania.
as incluídas na Constituição de 1988, conheci- Os direitos trabalhistas estão sendo elimi-
da, como já mencionado, como a “Constituição nados em nome da livre negociação entre pa-
Cidadã”.9 Foi graças a essa disseminação que, trões e empregados, da “flexibilidade” do tra-
diferentemente de outros países do continente, balho, etc., e os direitos sociais garantidos pela
no Brasil a expressão “cidadania” esteve longe Constituição Brasileira desde os anos 40 eli-
de se limitar a meramente designar o conjunto minados sob a lógica de que eles constituem
da população, mas foi preenchida por um signi- obstáculos ao livre funcionamento do merca-
ficado político claro. É esse significado político, do, restringindo assim o desenvolvimento e a
no seu potencial transformador, que passa a ser modernização. Essa mesma lógica transforma
alvo das concepções neoliberais de cidadania. os cidadãos/portadores de direitos nos novos
As redefinições neoliberais de cidadania vilãos da nação: inimigos das reformas dese-
repousam sobre um conjunto de procedimen- nhadas para encolher as responsabilidades do
tos. Alguns ressuscitam a concepção liberal tra- Estado. Assim, se registra uma inversão peculi-
dicional de cidadania, outros são inovadores e ar: o reconhecimento de direitos, considerado
contemplam elementos novos das configura- no passado recente como indicador de moder-
ções sociais e políticas da contemporaneidade. nidade, torna-se símbolo de “atraso”, um “ana-
Em primeiro lugar, de novo, eles reduzem o cronismo” que bloqueia o potencial moderni-
significado coletivo da redefinição de cidada- zante do mercado. (Telles, 2001) Aqui encon-
nia anteriormente empreendida pelos movi- tramos uma poderosa legitimação da concep-
mentos sociais a um entendimento estritamen- ção do Mercado como instância alternativa de
te individualista dessa noção. Segundo, se esta- cidadania, na medida em que o mercado se
belece uma sedutora conexão entre cidadania torna a encarnação das virtudes modernas e o
e mercado. Tornar-se cidadão passa a signifi- único caminho para o sonho latino-americano
car a integração individual ao mercado, como de inclusão no Primeiro Mundo.
consumidor e como produtor. Esse parece ser O deslocamento de significados que sofre a
o princípio subjacente a um enorme número de noção de cidadania é também dramático por-
programas para ajudar as pessoas a “adquirir que se vincula diretamente à gestão do que é a

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Políticas culturais, democracia e o projeto neoliberal

nossa questão mais premente: a pobreza. terceiro setor, que proliferou no Brasil nos últi-
Na contramão do movimento que se enunciava mos anos. Caracterizado por uma ambigüida-
no final dos anos 80 e início dos 90, quando a de constitutiva entre os interesses mercantis de
questão social e a pobreza passam a ser vistas maximização de lucros através da sua imagem
sob a ótica da construção da cidadania e da pública baseada na “responsabilidade social”,
igualdade de direitos, tal como paradigmatica- essas fundações são os novos campeões da ci-
mente evidencia a criação do Conselho de Se- dadania no Brasil. Tal como nos setores do Esta-
gurança Alimentar (CONSEA), o projeto neoli- do, ocupados pelas forças neoliberais, esse dis-
beral propõe uma outra forma de gestão do curso da cidadania é marcado pela total ausên-
social.10 Principal recurso dessa forma de ges- cia de qualquer referência a direitos universais
tão, o apelo à solidariedade se restringe à res- ou ao debate político sobre as causas da pobre-
ponsabilidade moral da sociedade, bloquean- za e da desigualdade. Uma das conseqüências é
do a sua dimensão política e desmontando as o deslocamento dessas questões: tratadas estri-
referências à responsabilidade pública e ao bem tamente sob o ângulo da gestão técnica ou filan-
público, precária e penosamente construídas trópica, a pobreza e a desigualdade estão sendo
desde os anos 80 (Telles, 2001). É através des- retiradas da arena pública (política) e do seu
se entendimento de cidadania restrito à res- domínio próprio, o da justiça, igualdade e cida-
ponsabilidade moral privada que a sociedade dania. A própria substituição do termo socieda-
é chamada a se engajar no trabalho voluntário de civil pela importação do termo Terceiro Setor
e filantrópico, que se torna cada vez mais o (o primeiro e o segundo seriam o Estado e o
hobby favorito da classe média brasileira, quan- Mercado) para substituir o de sociedade civil
do não mais uma alternativa terapêutica para designa o intento de retirar a cidadania do terre-
aflições individuais.11 A cidadania é identificada no da política, retomado novamente pelo seu
com e reduzida à solidariedade para com os detentor exclusivo, o Estado. Vale lembrar que
pobres, por sua vez, entendida, no mais das ve- um dos pontos fundamentais do esforço demo-
zes, como mera caridade: numa propaganda na cratizante dos anos 80, que se inicia nos anos 70
televisão, num modelo exaustivamente repetido com a luta contra um Estado autoritário e cen-
hoje no Brasil, uma conhecida atriz brasileira, tralizador, era também uma batalha contra uma
convidando o público a doar o equivalente a concepção estatista de poder e de política e por
cinco dólares americanos por mês para um pro- uma visão ampliada da política e seus agentes.
grama de assistência à criança, termina enfatica- Essa visão ampliada incluía a sociedade civil
mente sua fala dizendo: “Isto é cidadania!”. como uma arena política legítima e enfatizava a
Esse entendimento de cidadania domina as cidadania, como vimos, como um processo de
ações das fundações empresariais, o chamado constituição de sujeitos políticos.

Revista Rio de Janeiro, n. 15, jan.-abr. 2005 59


Dossiê Nacional

É na formulação de políticas sociais com benefícios sociais passa cada vez mais a ocupar
respeito à pobreza e à desigualdade, em cuja o lugar dos direitos e da cidadania, obstruindo
definição se concentrou grande parte das lutas não só a demanda por direitos – não há instân-
organizadas pela demanda de direitos iguais e cias para isso já que essa distribuição depende
pela extensão da cidadania e para onde se diri- apenas da boa vontade e da competência dos
giu a participação da sociedade no esforço de setores envolvidos – mas, mais grave, obstando
assegurar direitos universais a todos os cida- a própria formulação dos direitos e da cidada-
dãos, portanto, no terreno privilegiado do pro- nia e a enunciação da questão pública. Quando
jeto democratizante, que se evidencia com mais se processa a desmontagem das mediações ins-
clareza o avanço dessas versões neoliberais da titucionais e políticas que possibilitam que o di-
cidadania. Com o avanço do modelo neolibe- reito possa ser formulado, reivindicado e institu-
ral e a redução do papel do Estado, as políticas ído como parâmetro na negociação do conflito,
sociais são cada vez mais formuladas estrita- o significado da idéia da pobreza como denega-
mente como esforços emergenciais dirigidos a ção de direitos se completa (Telles, 2001). A
determinados setores sociais, cuja sobrevivên- eficácia simbólica dos direitos na construção de
cia está ameaçada. Os alvos dessas políticas não uma sociedade igualitária e democrática se per-
são vistos como cidadãos, com direitos a ter de, reforçando ainda mais um já poderoso pri-
direitos, mas como seres humanos “carentes”, vatismo como a orientação dominante no con-
a serem atendidos pela caridade, pública ou junto das relações sociais.
privada.12 Ao serem confrontados com essa vi- Todos esses deslocamentos parecem estar
são, reforçada pela escassez de recursos públi- articulados por um eixo mais amplo, a cuja iden-
cos destinados a essas políticas e pela gravida- tificação mais precisa ainda pretendemos che-
de e urgência da situação a ser enfrentada, se- gar, que propõe uma despolitização dessas três
tores da sociedade civil chamados a participar noções, referências centrais das lutas demo-
em nome da “construção da cidadania” com cratizantes, e, assim uma redefinição das pró-
freqüência subordinam sua visão universalista prias noções de política e de democracia esta-
de direitos e se rendem à possibilidade concre- belecidas e conquistadas por essas lutas. As-
ta de atender um punhado de desvalidos. sim, o projeto neoliberal operaria não apenas
Esse deslocamento de “cidadania” e “soli- com uma concepção de Estado mínimo,13 mas
dariedade” obscurece sua dimensão política e também com uma concepção minimalista tan-
corrói as referências à responsabilidade pública to da política como da democracia. Minimalista
e interesse público, construídas com tanta difi- porque restringe não apenas o espaço, a arena
culdade pelas lutas democratizantes do nosso da política, mas seus participantes, processos,
passado recente. A distribuição de serviços e agenda e campo de ação.

60 Revista Rio de Janeiro, n. 15, jan.-abr. 2005


Políticas culturais, democracia e o projeto neoliberal

Assim, o encolhimento das responsabilida- Confluência perversa, crise


des sociais do Estado encontra sua contrapar- discursiva e agenda intelectual,
tida no encolhimento do espaço da política e cultural e política
da democracia. Ambas devem ser limitadas ao
mínimo indispensável. Como no Estado míni- O esforço de identificação dos distintos pro-
mo, esse encolhimento é seletivo e suas conse- jetos políticos em disputa ganha sentido se pu-
qüências são o aprofundamento da exclusão der contribuir para o enfrentamento da crise
exatamente daqueles sujeitos, temas e proces- discursiva que ajuda a atravancar o avanço do
sos que possam ameaçar o avanço do projeto processo de construção democrática no Bra-
neoliberal. Menciono apenas dois exemplos sil. Essa identificação pode ajudar a expor o
expressivos dessa concepção, que podem in- conflito e, nessa medida, reafirmar a política
dicar a intensidade com que ela confronta os como âmbito apropriado para o seu tratamen-
avanços da construção democrática no Brasil. to e a democracia como formato capaz de abri-
O primeiro é a acusação dirigida, tanto pela gá-lo. A exposição do conflito – que a conflu-
mídia como pelo Governo de Cardoso, ao mais ência perversa dificulta – pode retirar dela o
importante movimento social no Brasil hoje, o seu caráter perverso e mostrá-la naquilo que é,
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Ter- uma disputa político-cultural entre distintos
ra (MST), para desqualificá-lo como interlocu- desenhos de sociedade e os respectivos seto-
tor: “É um movimento político”. O segundo é a res sociais neles empenhados.
resposta dada por Fernando Henrique Cardoso Se a transparência do conflito pode se cons-
às críticas que recebeu quando, logo no início tituir numa alternativa eficaz, um caminho possí-
de seu governo, enviou tanques do Exército para vel passa pela exacerbação das diferenças entre
enfrentar uma greve dos trabalhadores petrolei- esses projetos, de um lado, e o debate aberto e o
ros, considerada como “política” porque defen- confronto claro entre eles, de outro. Nessa dire-
dia, entre outras coisas, a manutenção do mo- ção, a alternativa que se delineia passaria pela
nopólio estatal do petróleo. Inquirido sobre se exploração de forma mais radical e efetiva do
este seria um procedimento democrático, res- que se poderia chamar de “núcleos duros” do
pondeu: “Democracia se faz é no Congresso”. O projeto participativo democratizante. O primeiro
projeto participativo e democratizante se arti- deles parece ser a noção de direitos que, profun-
culou precisamente para combater essas visões damente marcada pela carga igualitária da sua
estreitas, reducionistas e excludentes da políti- história e pela experiência recente dos movimen-
ca e da democracia. Aqui, portanto, se configu- tos sociais que lhe adicionaram a idéia da in-
ram projetos nitidamente distintos, não há con- venção de novos direitos, pode talvez resistir
fluência, nem tampouco perversidade. mais duramente às re-significações neoliberais.

Revista Rio de Janeiro, n. 15, jan.-abr. 2005 61


Dossiê Nacional

Um outro “núcleo duro” residiria no segundo cos e o que ele promete. A existência de espa-
termo da noção de espaços públicos: a ênfase ços efetivamente públicos só se garante pela
na constituição desses espaços, que no Brasil efetiva pluralidade e diversidade de seus parti-
ocupou parte significativa da ação política dos cipantes, pela equivalência de seus recursos de
setores democratizantes durante os últimos informação, conhecimento e poder. O que se-
anos, se reorientaria para a luta pela sua quali- guramente remete a uma outra, larga e difícil,
dade, para assegurar o seu qualificativo públi- agenda cultural e política.

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Revista Rio de Janeiro, n. 15, jan.-abr. 2005 63


Dossiê Nacional

Abstract – This text circumscribes a discursive crisis which seems to be permeating the
contemporary experience of democratic construction in several Latin American
countries. This dynamics stems from a perverse criss-cross between the neoliberal project,
on the one hand, and a participatory, democracy-wise project, on the other hand – the
latter emerging out of crises affecting the authoritarian regimen and out of different
nation-wide efforts to deepen democracy. Light is shed on the specificities of the Brazilian
context, shaped by the political-cultural dispute between these two projects and by the
displacement of meaning operating on three notions: civil society, participation and
citizenship – all of which comprising major references illuminating this convergence.
In addition, preliminary discussion is initiated on the implications of this resignification
process to the on-going representations of politics and democracy and the possibilities of
coping with this crisis.
Keywords
Keywords: culture; democracy; civil society; participation; citizenship; neoliberal project.

Resumen – En este texto, se investigan los perímetros de una crisis discursiva que
parece atravesar las experiencias contemporáneas de construcción democrática en
varios países de América Latina. Esa dinámica resulta de una confluencia perversa
entre, de un lado, el proyecto neoliberal y, de otro, un proyecto democratizador,
participativo, que emerge de las crisis de los regímenes autoritarios y de los diferentes
esfuerzos nacionales de profundización democrática. Se plantean esas especificidades
en el contexto brasileño marcado por la disputa político-cultural entre esos dos proyectos
y por los desplazamientos de sentido que se operan en tres nociones: sociedad civil,
participación y ciudadanía - que constituyen las referencias centrales para el
entendimiento de esa confluencia. Se plantean, además, de forma muy preliminar,
los alcances de ese proceso de re-significación para las representaciones vigentes de
política y de democracia y las posibilidades de enfrentamiento de la crisis.
Palabras-clave
Palabras-clave: cultura; democracia; sociedad civil; participación; ciudadanía; proyecto
neoliberal.

Notas
1
A Constituição brasileira de 1988, conhecida como a “Constituição Cidadã”, incluiu mecanismos de democracia direta e
participativa. Entre eles, o estabelecimento de Conselhos Gestores de Políticas Públicas, nos níveis municipal, estadual e federal, com
representação paritária do Estado e da sociedade civil, destinados a formular políticas sobre questões relacionadas com a saúde,
crianças e adolescentes, assistência social, mulheres, etc.
2
Os orçamentos Participativos são espaços públicos para deliberação sobre o orçamento das administrações municipais, onde a
população decide sobre onde e como os investimentos devem ser realizados. Diferentemente dos Conselhos Gestores, cuja existência
é uma existência legal, os Orçamentos Participativos derivam de escolhas políticas dos diferentes governos municipais e estaduais.
3
Por perversa, me refiro aqui a um fenômeno cujas conseqüências contrariam sua aparência, cujos efeitos não são imediatamente evidentes
e se revelam distintos do que se poderia esperar. Em espanhol a palavra mais adequada, conforme sugestões que recebi, seria tramposa.

64 Revista Rio de Janeiro, n. 15, jan.-abr. 2005


Políticas culturais, democracia e o projeto neoliberal

4
Depoimentos de ativistas da sociedade civil, recolhidos pelos estudos de Luciana Tatagiba, Gema Galgani e Magnólia Said e Ana
Cláudia Chaves Teixeira, reunidos em Dagnino (2002).
5
O Conselho da Comunidade Solidária, criado no governo de Cardoso e presidido pela primeira dama, a antropóloga Ruth Cardoso,
encontra similares por toda a América Latina (o Fondo de Solidariedad e Inversión Social – Fosis – no Chile, o Programa Nacional
de Solidariedad – Pronasol – no México, a Red de Solidariedad na Colômbia) e é exemplar da política neoliberal de envolvimento
da sociedade civil e das empresas privadas nas políticas sociais. Num exemplo claro da confluência perversa que mencionamos,
depois de seu período inicial, vários dos representantes da sociedade civil ligados ao projeto participativo retiraram-se do Conselho.
6
A discussão dessa redefinição, resumida aqui, pode ser encontrada em Dagnino (1994, 2001).
7
O direito à autonomia sobre o corpo, o direito à proteção do meio ambiente, o direito à moradia, são exemplos (intencionalmente
muito diferentes) dessa criação de direitos novos. Além disso, essa redefinição inclui não somente o direito à igualdade, como
também o direito à diferença, que especifica, aprofunda e amplia o direito à igualdade. Para uma discussão específica da relação
entre o direito à igualdade e o direito à diferença, ver: Dagnino (1994).
8
Conforme resultados de pesquisa com movimentos sociais, realizada em Campinas, em 1993, ver em Dagnino et. al. (1998).
9
Para análises desse impacto no nível institucional, ver: Benevides (1998); para um exemplo, entre muitos, do significado dessa
noção de cidadania nas práticas dos movimentos sociais, ver: Dagnino (1995).
10
O Conselho de Segurança Alimentar, que afirmava a alimentação como um direito, foi dissolvido nos primeiros dias do governo
de Fernando Henrique Cardoso e substituído pelo já mencionado Conselho da Comunidade Solidária.
11
Um estudo sobre as motivações subjacentes ao trabalho voluntário no Brasil provavelmente reforçaria nosso argumento, ao ilumi-
nar a emergência de concepções privatistas, individualistas e autocentradas que tendem a orientar a prática do voluntarismo no
mundo todo. Ver: Leslie Hustinx e Frans Lammertyn (2003).
12
As expectativas de mudança radical desse quadro, anunciadas pela eleição de Lula, se viram relativamente frustradas pelo Progra-
ma Fome Zero, que ainda não conseguiu romper de maneira clara com essa concepção.
13
Mínimo, não custa lembrar, quando se trata de alocar recursos para as políticas sociais de redução da desigualdade; não quando
se trata de subsidiar empresários e banqueiros.

Revista Rio de Janeiro, n. 15, jan.-abr. 2005 65

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