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Evelina Dagnino**
Resumo – Neste texto, exploram-se os contornos de uma crise discursiva que parece
atravessar as experiências contemporâneas de construção democrática em vários países da
América Latina. Essa dinâmica resulta de uma confluência perversa entre, de um lado, o
projeto neoliberal e, de outro, um projeto democratizante, participativo, que emerge a partir
das crises dos regimes autoritários e dos diferentes esforços nacionais de aprofundamento
democrático. Discutem-se essas especificidades no contexto brasileiro marcado pela disputa
político-cultural entre esses dois projetos e pelos deslocamentos de sentido que se operam
em três noções: sociedade civil, participação e cidadania - que constituem as referências
centrais para o entendimento dessa confluência. Discutem-se, ainda, de forma muito
preliminar, as implicações desse processo de re-significação para as representações vigentes
de política e de democracia e as possibilidades de enfrentamento dessa crise.
Palavras-chave: cultura; democracia; sociedade civil; participação; cidadania; projeto
neoliberal.
Este texto reproduz o que foi publicado construção dessa hegemonia, constituem o
como “Confluência perversa, deslocamentos de instrumento privilegiado da “confluência per-
sentido, crise discursiva”, em La cultura en las versa” que discuto neste texto: a apropriação
crisis latinoamericanas (Grimson, 2004). Isto e re-significação de referências caras ao pro-
porque me pareceu que a crise discursiva que jeto democrático que, redefinidas, passam a
analiso como parte da “crise latino-america- abrigar significados fundamentais do projeto
na” está profundamente imbricada com as po- neoliberal. Entre essas referências, destaco três
líticas culturais formuladas sob a hegemonia que me parecem as mais importantes neste
neoliberal. Estas políticas, tanto as formuladas processo de re-significação: as noções de so-
pelo Estado como as que são produzidas pe- ciedade civil, de participação e de cidadania.
los vários setores da sociedade envolvidos na A disseminação das versões neoliberais
*
Agradeço ao CNPq o apoio concedido para a investigação da qual faz parte essa discussão.
**
Professora Titular do IFCH/UNICAMP. E-mail: evelina@unicamp.br.
Consenso de Washington. Meu argumento é Daí a perversidade e o dilema que ela coloca,
então que a última década é marcada por uma instaurando uma tensão que atravessa hoje a
confluência perversa3 entre esses dois proje- dinâmica do avanço democrático no Brasil. Por
tos. A perversidade estaria colocada, desde logo, um lado, a constituição dos espaços públicos
em que, apontando para direções opostas e até representa o saldo positivo das décadas de luta
antagônicas, ambos os projetos requerem uma pela democratização, expresso especialmente
sociedade civil ativa e propositiva. – mas não só – pela Constituição de 1988, que
Essa identidade de propósitos, no que toca foi fundamental na implementação destes es-
à participação da sociedade civil, é evidente. paços de participação da sociedade civil na
Mas essa aparência é sólida e cuidadosamente gestão da sociedade. Por outro lado, o proces-
construída através da utilização de referências so de encolhimento do Estado e de progressiva
comuns, que tornam seu deciframento uma ta- transferência de suas responsabilidades soci-
refa difícil, especialmente para os atores da so- ais para a sociedade civil, que tem caracteriza-
ciedade civil envolvidos, a cuja participação se do os últimos anos, estaria conferindo uma di-
apela tão veementemente e em termos tão fami- mensão perversa a essas jovens experiências,
liares e sedutores. A disputa política entre pro- acentuada pela nebulosidade que cerca as di-
jetos políticos distintos assume então o caráter ferentes intenções que orientam a participação.
de uma disputa de significados para referênci- Essa perversidade é claramente exposta nas
as aparentemente comuns: participação, soci- avaliações dos movimentos sociais, de repre-
edade civil, cidadania, democracia. A utilização sentantes da sociedade civil nos Conselhos ges-
dessas referências, que são comuns, mas abri- tores, de membros das organizações não-go-
gam significados muito distintos, instala o que vernamentais envolvidas em parcerias com o
se pode chamar de crise discursiva: a lingua- Estado e de outras pessoas que, de uma ma-
gem corrente, na homogeneidade de seu voca- neira ou de outra, vivenciam a experiência
bulário, obscurece diferenças, dilui nuances e desses espaços ou se empenharam na sua
reduz antagonismos. Nesse obscurecimento se criação, apostando no potencial democrati-
constroem sub-repticiamente os canais pelos zante que eles trariam. Elas percebem essa
quais avançam as concepções neoliberais, que confluência perversa como um dilema que
passam a ocupar terrenos insuspeitados. Nes- questiona o seu próprio papel político: “o que
sa disputa, na qual os deslizamentos semânti- estamos fazendo aqui?”, “que projeto estamos
cos, os deslocamentos de sentido, são as armas fortalecendo?”, “não ganharíamos mais com
principais, o terreno da prática política se cons- outro tipo de estratégia que priorizasse a
titui num terreno minado, onde qualquer pas- organização e a mobilização da sociedade,
so em falso nos leva ao campo adversário. ao invés de atuar junto com o Estado?”. 4
O risco – real – que elas percebem é que a A virtude específica dessa abordagem, sobre a
participação da sociedade civil nas instâncias de- qual já trabalhamos largamente (Dagnino,
cisórias, defendida pelas forças que sustentam o 1998, 2000) está no vínculo indissolúvel que
projeto participativo democratizante como um estabelece entre a cultura e a política. Nesse
mecanismo de aprofundamento democrático e sentido, nossa hipótese central sobre a noção
de redução da exclusão, possa acabar servindo de projetos políticos é que eles não se reduzem
aos objetivos do projeto que lhe é antagônico. a estratégias de atuação política no sentido es-
O reconhecimento dos dilemas colocados trito, mas expressam e veiculam e produzem
por essa confluência perversa impõe, do meu significados que integram matrizes culturais
ponto de vista, inflexões necessárias no modo mais amplas. Assim, por exemplo, determina-
como temos analisado o processo de constru- das versões das noções que destacamos aqui
ção democrática no Brasil, as relações entre como temas principais da confluência perver-
Estado e sociedade civil e a problemática da sa – sociedade civil, participação e cidadania –
constituição de espaços públicos e sua dinâmi- ao mesmo tempo encontram raízes e produ-
ca de funcionamento. Na verdade, o que essa zem ecos na lenta emergência de uma cultura
confluência perversa veio ressaltar é uma di- mais igualitária que confronta as várias dimen-
mensão freqüentemente esquecida: a imensa sões do autoritarismo social da sociedade bra-
complexidade desse processo, que resiste a sileira. Outras reiteram sob novas roupagens as
análises simplistas e unidimensionais. Uma visões de uma democracia elitista e restrita que
dessas inflexões é a necessidade de conferir têm caracterizado o projeto dominante nestas
um maior peso explicativo à noção de projeto últimas décadas.
político, no nível teórico, e em conseqüência, Uma primeira implicação dessa inflexão,
investir, no nível empírico, na investigação e que não analisaremos aqui, se refere às rela-
análise dos distintos projetos políticos em dis- ções Estado-sociedade civil e à necessidade de
puta, e especialmente no esforço de desvendar repensar, a partir dessa perspectiva, a análise
a crescente opacidade construída por refe- recorrente dessas relações que tem como seu
rências comuns, através da explicitação dos eixo central a clivagem entre a sociedade civil –
deslocamentos de sentido que sofrem. Esta- considerada como “pólo de virtudes democra-
mos usando a expressão “projetos políticos” tizantes” – e o Estado, freqüentemente visto
num sentido próximo ao da visão gramsciana, como “encarnação do mal” e obstáculo funda-
para designar os conjuntos de crenças, inte- mental à participação e à democratização. As
resses, concepções de mundo, representações conseqüências negativas dessa visão homoge-
do que deve ser a vida em sociedade, que ori- neizadora se agravam na medida em que ela
entam a ação política dos diferentes sujeitos. tende a simplificar a imensa complexidade do
Mas seria necessário aprofundar os significa- quando ela se defronta com a possibilidade
dos locais específicos desse deslocamento, bem concreta de produzir resultados positivos – frag-
como apontar a heterogeneidade constitutiva mentados, pontuais, provisórios, limitados, mas
do campo das ONGs (Teixeira, 2000) que ten- positivos – com relação à diminuição da desi-
demos a ignorar. O papel das agências interna- gualdade e à melhoria das condições de vida
cionais tem sido abundantemente apontado na dos setores sociais atingidos.
raiz desse deslocamento (Mato, 2003). Mas O predomínio maciço das ONGs expressa,
seria necessário investigar os diferentes papéis por um lado, a difusão de um paradigma global
que desempenham nele, em primeiro lugar, as que mantém estreitos vínculos com o modelo
distintas organizações não governamentais. Seu neoliberal, na medida em que responde às exi-
desempenho, vinculado aos diferentes proje- gências dos ajustes estruturais por ele determi-
tos políticos que as mobilizam, é, com freqüên- nados. Por outro lado, com o crescente aban-
cia, também afetado pela necessidade de asse- dono de vínculos orgânicos com os movimen-
gurar sua própria sobrevivência. Além delas, tos sociais que as caracterizava em períodos
papel fundamental têm os diferentes Governos anteriores, a autonomização política das ONGs
locais, em todos os seus níveis (municipal, es- cria uma situação peculiar na qual essas orga-
tadual e federal, no caso brasileiro), que, de- nizações são responsáveis perante as agências
pendendo de seus respectivos projetos, bus- internacionais que as financiam e o Estado que
cam parceiros confiáveis e temem a politização as contrata como prestadoras de serviços, mas
da interlocução com os movimentos sociais e não perante a sociedade civil, da qual se intitu-
com as organizações de trabalhadores, uma lam representantes, nem tampouco perante os
tendência alimentada pela mídia, com freqüên- setores sociais de cujos interesses são portado-
cia por motivos semelhantes. ras, ou perante qualquer outra instância de
As relações entre Estado e ONGs parecem caráter propriamente público. Por mais bem
constituir um campo exemplar da confluência intencionadas que sejam, sua atuação traduz
perversa que mencionamos antes. Dotadas de fundamentalmente os desejos de suas equipes
competência técnica e inserção social, interlo- diretivas (Dagnino, 2002).
cutores “confiáveis” entre os vários possíveis Talvez menos exploradas sejam as importan-
interlocutores na sociedade civil, elas são fre- tes implicações dessa reconfiguração da socie-
qüentemente vistas como os parceiros ideais dade civil para uma dimensão fundamental, inti-
pelos setores do Estado empenhados na trans- mamente ligada à idéia de participação e à cons-
ferência de suas responsabilidades para o âm- tituição de espaços públicos, que é a representa-
bito da sociedade civil. Uma eventual recusa ção/representatividade da sociedade civil. A ques-
desse papel (Galgani e Said, 2002) se dramatiza tão da representatividade assume facetas variadas
Além disso, este princípio tem demonstrado sua e reduzido à gestão. A ênfase gerencialista e
efetividade em redefinir um outro elemento cru- empreendorista transita da área da administra-
cial no projeto participativo, promovendo a des- ção privada para o âmbito da gestão estatal (Ta-
politização da participação: na medida em que tagiba, 2003) com todas as implicações despo-
essas novas definições dispensam os espaços litizadoras delas decorrentes. Estes significados
públicos onde o debate dos próprios objetivos vêm se contrapor ao conteúdo propriamente
da participação pode ter lugar, o seu significa- político da participação tal como concebida no
do político e potencial democratizante é substi- interior do projeto participativo, marcada pelo
tuído por formas estritamente individualizadas objetivo da “partilha efetiva do poder” entre
de tratar questões tais como a desigualdade Estado e sociedade civil (Dagnino, 2002), por
social e a pobreza (Telles, 2001). meio do exercício da deliberação no interior
Por outro lado, em grande parte dos espa- dos novos espaços públicos.
ços abertos à participação de setores da socie- Finalmente, a noção de cidadania oferece
dade civil na discussão e formulação das políti- talvez o caso mais dramático desse processo de
cas públicas com respeito a essas questões, es- deslocamento de significado. Dramático, em
tes se defrontam com situações nas quais o que primeiro lugar, porque foi precisamente por
se espera deles é muito mais assumir funções e meio dessa noção que o projeto participativo
responsabilidades restritas à implementação e obteve seus maiores ganhos culturais e políti-
execução de políticas públicas, provendo ser- cos, na medida em que foi capaz de fundar uma
viços antes considerados como deveres do Es- redefinição inovadora dos seus conteúdos que
tado, do que compartilhar o poder de decisão penetrou profundamente no cenário político e
quanto à formulação dessas políticas. O papel cultural da sociedade brasileira. Retomar alguns
das chamadas “organizações sociais”, a deno- dos elementos fundamentais dessa redefinição,
minação utilizada na Reforma Administrativa do trabalhada em outro lugar,6 pode ajudar a escla-
Estado, implementada pelo então Ministro Luiz recer o significado dramático da apropriação
Carlos Bresser Pereira a partir de 1995, para neoliberal da noção de cidadania.
designar a forma de participação da sociedade A então chamada nova cidadania, ou cida-
civil nas políticas públicas, instituída pela Cons- dania ampliada começou a ser formulada pelos
tituição de 1988, se reduz àquela função e é movimentos sociais que, a partir do final dos anos
claramente excluído dos poderes de decisão, 70 e ao longo da década de 80, se organizaram
reservados ao chamado “núcleo estratégico” no Brasil em torno de demandas de acesso
do Estado (Bresser Pereira, 1996). aos equipamentos urbanos como moradia,
Aqui, mais uma vez, o significado político água, luz, transporte, educação, saúde, etc.
crucial da participação é radicalmente redefinido e de questões como gênero, raça, etnia, etc.
Inspirada na sua origem pela luta pelos direitos legal de um conjunto de direitos e, portanto, ao
humanos (e contribuindo para a progressiva sistema político-jurídico. A nova cidadania é um
ampliação do seu significado) como parte da projeto para uma nova sociabilidade: não so-
resistência contra a ditadura, essa concepção mente a incorporação no sistema político em
buscava implementar um projeto de constru- sentido estrito, mas um formato mais igualitário
ção democrática, de transformação social, que de relações sociais em todos os níveis, inclusive
impõe um laço constitutivo entre cultura e polí- novas regras para viver em sociedade (negoci-
tica. Incorporando características de socieda- ação de conflitos, um novo sentido de ordem
des contemporâneas, tais como o papel das pública e de responsabilidade pública, um novo
subjetividades, o surgimento de sujeitos sociais contrato social etc.). Um formato mais igualitá-
de um novo tipo e de direitos também de novo rio de relações sociais em todos os níveis impli-
tipo,7 bem como a ampliação do espaço da ca o “reconhecimento do outro como sujeito
política, esse projeto reconhece e enfatiza o portador de interesses válidos e de direitos le-
caráter intrínseco da transformação cultural gítimos” (Telles 1994: 46). Isso implica tam-
com respeito à construção da democracia. Nes- bém a constituição de uma dimensão pública
se sentido, a nova cidadania interpela constru- da sociedade, em que os direitos possam con-
ções culturais, como as subjacentes ao autori- solidar-se como parâmetros públicos para a
tarismo social, como alvos políticos fundamen- interlocução, o debate e a negociação de con-
tais da democratização. Assim, a redefinição da flitos, tornando possível a reconfiguração de
noção de cidadania, formulada pelos movimen- uma dimensão ética da vida social.
tos sociais, expressa não somente uma estraté- A conquista da cidadania foi freqüentemente
gia política, mas também uma política cultural. definida por aqueles que lutavam por ela como
Distinguindo-se de outras versões, a cidadania sendo o próprio processo de constituição de
assim definida não está mais confinada dentro sujeitos sociais ativos (agentes políticos),8 defi-
dos limites das relações com o Estado, ou entre nindo coletivamente o que consideram ser seus
Estado e indivíduo, mas deve ser estabelecida direitos e lutando para seu reconhecimento
no interior da própria sociedade, como parâ- enquanto tais. Profundamente vinculada à idéia
metro das relações sociais que nela se travam. da ampliação da política, portanto, essa con-
O processo de construção de cidadania como cepção apontava na direção da redefinição de
afirmação e reconhecimento de direitos é, es- uma referência central da sua contrapartida li-
pecialmente na sociedade brasileira, um pro- beral: a reivindicação ao acesso, inclusão, par-
cesso de transformação de práticas arraigadas ticipação e pertencimento a um sistema políti-
na sociedade como um todo, cujo significado co já dado. O que está em jogo, de fato, é o
está longe de ficar limitado à aquisição formal e direito de participar na própria definição desse
sistema, para definir de que queremos ser mem- transformação de práticas arraigadas na soci-
bros, isto é, a invenção de uma nova sociedade. edade como um todo, cujo significado está
O reconhecimento dos direitos de cidadania, longe de ficar limitado à aquisição formal e
tal como é definido por aqueles que são exclu- legal de um conjunto de direitos e, portanto,
ídos dela no Brasil de hoje, aponta para trans- ao sistema político-judicial. A nova cidadania
formações radicais em nossa sociedade e em é um projeto para uma nova sociabilidade:
sua estrutura de relações de poder. Daí a im- não somente a incorporação no sistema polí-
portância que essa noção adquiriu na emer- tico em sentido estrito, mas um formato mais
gência de experiências participativas como os igualitário de relações sociais em todos os ní-
Orçamentos Participativos e outras, nas quais veis, inclusive novas regras para viver em soci-
os setores populares e suas organizações lu- edade (negociação de conflitos, um novo sen-
tam para abrir espaço para o controle demo- tido de ordem pública e de responsabilidade
crático do Estado mediante a participação efe- pública, um novo contrato social etc.). Um
tiva dos cidadãos no poder. Além disso, não há formato mais igualitário de relações sociais
dúvida de que essas experiências expressam e em todos os níveis implica o “reconhecimen-
contribuem para reforçar a existência de cida- to do outro como sujeito portador de interes-
dãos-sujeitos e de uma cultura de direitos que ses válidos e de direitos legítimos” (Telles,
inclui o direito a ser co-participante em gover- 1994, p. 46). Isso implica também a constitui-
nos locais. Ademais, esse tipo de experiência ção de uma dimensão pública da sociedade,
contribui para a criação de espaços públicos em que os direitos possam consolidar-se como
onde os interesses comuns e privados, as espe- parâmetros públicos para a interlocução, o
cificidades e as diferenças, podem ser expos- debate e a negociação de conflitos, tornando
tos, discutidos e negociados. possível a reconfiguração de uma dimensão
Apontando também para a superação do ética da vida social.
conceito liberal de cidadania, um outro ele- Esse projeto significa uma reforma moral
mento dessa visão ampliada é que a cidadania e intelectual: um processo de aprendizagem
não está mais confinada aos limites das rela- social, de construção de novos tipos de rela-
ções com o Estado, ou entre Estado e indiví- ções sociais, que implicam, obviamente, a cons-
duo, mas deve ser estabelecida no interior da tituição de cidadãos como sujeitos sociais ati-
própria sociedade, como parâmetro das rela- vos. Mas para a sociedade em seu conjunto,
ções sociais que nela se travam. O processo requer também aprender a viver em termos
de construção de cidadania como afirmação diferentes com esses cidadãos emergentes
e reconhecimento de direitos é, especialmen- que se recusam a permanecer nos lugares
te na sociedade brasileira, um processo de definidos social e culturalmente para eles.
Esse é um dos pontos em que o radicalismo da cidadania”, isto é, aprender como iniciar mi-
cidadania como política cultural parece bas- croempresas, tornar-se qualificado para os
tante claro. poucos empregos ainda disponíveis, etc. Num
A disseminação dessa concepção de cidada- contexto no qual o Estado se isenta progressi-
nia foi expressiva, e ela orientou não só as práti- vamente de seu papel de garantidor de direitos,
cas políticas de movimentos sociais de vários ti- o mercado é oferecido como uma instância
pos, mas também mudanças institucionais, como substituta para a cidadania.
as incluídas na Constituição de 1988, conheci- Os direitos trabalhistas estão sendo elimi-
da, como já mencionado, como a “Constituição nados em nome da livre negociação entre pa-
Cidadã”.9 Foi graças a essa disseminação que, trões e empregados, da “flexibilidade” do tra-
diferentemente de outros países do continente, balho, etc., e os direitos sociais garantidos pela
no Brasil a expressão “cidadania” esteve longe Constituição Brasileira desde os anos 40 eli-
de se limitar a meramente designar o conjunto minados sob a lógica de que eles constituem
da população, mas foi preenchida por um signi- obstáculos ao livre funcionamento do merca-
ficado político claro. É esse significado político, do, restringindo assim o desenvolvimento e a
no seu potencial transformador, que passa a ser modernização. Essa mesma lógica transforma
alvo das concepções neoliberais de cidadania. os cidadãos/portadores de direitos nos novos
As redefinições neoliberais de cidadania vilãos da nação: inimigos das reformas dese-
repousam sobre um conjunto de procedimen- nhadas para encolher as responsabilidades do
tos. Alguns ressuscitam a concepção liberal tra- Estado. Assim, se registra uma inversão peculi-
dicional de cidadania, outros são inovadores e ar: o reconhecimento de direitos, considerado
contemplam elementos novos das configura- no passado recente como indicador de moder-
ções sociais e políticas da contemporaneidade. nidade, torna-se símbolo de “atraso”, um “ana-
Em primeiro lugar, de novo, eles reduzem o cronismo” que bloqueia o potencial moderni-
significado coletivo da redefinição de cidada- zante do mercado. (Telles, 2001) Aqui encon-
nia anteriormente empreendida pelos movi- tramos uma poderosa legitimação da concep-
mentos sociais a um entendimento estritamen- ção do Mercado como instância alternativa de
te individualista dessa noção. Segundo, se esta- cidadania, na medida em que o mercado se
belece uma sedutora conexão entre cidadania torna a encarnação das virtudes modernas e o
e mercado. Tornar-se cidadão passa a signifi- único caminho para o sonho latino-americano
car a integração individual ao mercado, como de inclusão no Primeiro Mundo.
consumidor e como produtor. Esse parece ser O deslocamento de significados que sofre a
o princípio subjacente a um enorme número de noção de cidadania é também dramático por-
programas para ajudar as pessoas a “adquirir que se vincula diretamente à gestão do que é a
nossa questão mais premente: a pobreza. terceiro setor, que proliferou no Brasil nos últi-
Na contramão do movimento que se enunciava mos anos. Caracterizado por uma ambigüida-
no final dos anos 80 e início dos 90, quando a de constitutiva entre os interesses mercantis de
questão social e a pobreza passam a ser vistas maximização de lucros através da sua imagem
sob a ótica da construção da cidadania e da pública baseada na “responsabilidade social”,
igualdade de direitos, tal como paradigmatica- essas fundações são os novos campeões da ci-
mente evidencia a criação do Conselho de Se- dadania no Brasil. Tal como nos setores do Esta-
gurança Alimentar (CONSEA), o projeto neoli- do, ocupados pelas forças neoliberais, esse dis-
beral propõe uma outra forma de gestão do curso da cidadania é marcado pela total ausên-
social.10 Principal recurso dessa forma de ges- cia de qualquer referência a direitos universais
tão, o apelo à solidariedade se restringe à res- ou ao debate político sobre as causas da pobre-
ponsabilidade moral da sociedade, bloquean- za e da desigualdade. Uma das conseqüências é
do a sua dimensão política e desmontando as o deslocamento dessas questões: tratadas estri-
referências à responsabilidade pública e ao bem tamente sob o ângulo da gestão técnica ou filan-
público, precária e penosamente construídas trópica, a pobreza e a desigualdade estão sendo
desde os anos 80 (Telles, 2001). É através des- retiradas da arena pública (política) e do seu
se entendimento de cidadania restrito à res- domínio próprio, o da justiça, igualdade e cida-
ponsabilidade moral privada que a sociedade dania. A própria substituição do termo socieda-
é chamada a se engajar no trabalho voluntário de civil pela importação do termo Terceiro Setor
e filantrópico, que se torna cada vez mais o (o primeiro e o segundo seriam o Estado e o
hobby favorito da classe média brasileira, quan- Mercado) para substituir o de sociedade civil
do não mais uma alternativa terapêutica para designa o intento de retirar a cidadania do terre-
aflições individuais.11 A cidadania é identificada no da política, retomado novamente pelo seu
com e reduzida à solidariedade para com os detentor exclusivo, o Estado. Vale lembrar que
pobres, por sua vez, entendida, no mais das ve- um dos pontos fundamentais do esforço demo-
zes, como mera caridade: numa propaganda na cratizante dos anos 80, que se inicia nos anos 70
televisão, num modelo exaustivamente repetido com a luta contra um Estado autoritário e cen-
hoje no Brasil, uma conhecida atriz brasileira, tralizador, era também uma batalha contra uma
convidando o público a doar o equivalente a concepção estatista de poder e de política e por
cinco dólares americanos por mês para um pro- uma visão ampliada da política e seus agentes.
grama de assistência à criança, termina enfatica- Essa visão ampliada incluía a sociedade civil
mente sua fala dizendo: “Isto é cidadania!”. como uma arena política legítima e enfatizava a
Esse entendimento de cidadania domina as cidadania, como vimos, como um processo de
ações das fundações empresariais, o chamado constituição de sujeitos políticos.
É na formulação de políticas sociais com benefícios sociais passa cada vez mais a ocupar
respeito à pobreza e à desigualdade, em cuja o lugar dos direitos e da cidadania, obstruindo
definição se concentrou grande parte das lutas não só a demanda por direitos – não há instân-
organizadas pela demanda de direitos iguais e cias para isso já que essa distribuição depende
pela extensão da cidadania e para onde se diri- apenas da boa vontade e da competência dos
giu a participação da sociedade no esforço de setores envolvidos – mas, mais grave, obstando
assegurar direitos universais a todos os cida- a própria formulação dos direitos e da cidada-
dãos, portanto, no terreno privilegiado do pro- nia e a enunciação da questão pública. Quando
jeto democratizante, que se evidencia com mais se processa a desmontagem das mediações ins-
clareza o avanço dessas versões neoliberais da titucionais e políticas que possibilitam que o di-
cidadania. Com o avanço do modelo neolibe- reito possa ser formulado, reivindicado e institu-
ral e a redução do papel do Estado, as políticas ído como parâmetro na negociação do conflito,
sociais são cada vez mais formuladas estrita- o significado da idéia da pobreza como denega-
mente como esforços emergenciais dirigidos a ção de direitos se completa (Telles, 2001). A
determinados setores sociais, cuja sobrevivên- eficácia simbólica dos direitos na construção de
cia está ameaçada. Os alvos dessas políticas não uma sociedade igualitária e democrática se per-
são vistos como cidadãos, com direitos a ter de, reforçando ainda mais um já poderoso pri-
direitos, mas como seres humanos “carentes”, vatismo como a orientação dominante no con-
a serem atendidos pela caridade, pública ou junto das relações sociais.
privada.12 Ao serem confrontados com essa vi- Todos esses deslocamentos parecem estar
são, reforçada pela escassez de recursos públi- articulados por um eixo mais amplo, a cuja iden-
cos destinados a essas políticas e pela gravida- tificação mais precisa ainda pretendemos che-
de e urgência da situação a ser enfrentada, se- gar, que propõe uma despolitização dessas três
tores da sociedade civil chamados a participar noções, referências centrais das lutas demo-
em nome da “construção da cidadania” com cratizantes, e, assim uma redefinição das pró-
freqüência subordinam sua visão universalista prias noções de política e de democracia esta-
de direitos e se rendem à possibilidade concre- belecidas e conquistadas por essas lutas. As-
ta de atender um punhado de desvalidos. sim, o projeto neoliberal operaria não apenas
Esse deslocamento de “cidadania” e “soli- com uma concepção de Estado mínimo,13 mas
dariedade” obscurece sua dimensão política e também com uma concepção minimalista tan-
corrói as referências à responsabilidade pública to da política como da democracia. Minimalista
e interesse público, construídas com tanta difi- porque restringe não apenas o espaço, a arena
culdade pelas lutas democratizantes do nosso da política, mas seus participantes, processos,
passado recente. A distribuição de serviços e agenda e campo de ação.
Um outro “núcleo duro” residiria no segundo cos e o que ele promete. A existência de espa-
termo da noção de espaços públicos: a ênfase ços efetivamente públicos só se garante pela
na constituição desses espaços, que no Brasil efetiva pluralidade e diversidade de seus parti-
ocupou parte significativa da ação política dos cipantes, pela equivalência de seus recursos de
setores democratizantes durante os últimos informação, conhecimento e poder. O que se-
anos, se reorientaria para a luta pela sua quali- guramente remete a uma outra, larga e difícil,
dade, para assegurar o seu qualificativo públi- agenda cultural e política.
Abstract – This text circumscribes a discursive crisis which seems to be permeating the
contemporary experience of democratic construction in several Latin American
countries. This dynamics stems from a perverse criss-cross between the neoliberal project,
on the one hand, and a participatory, democracy-wise project, on the other hand – the
latter emerging out of crises affecting the authoritarian regimen and out of different
nation-wide efforts to deepen democracy. Light is shed on the specificities of the Brazilian
context, shaped by the political-cultural dispute between these two projects and by the
displacement of meaning operating on three notions: civil society, participation and
citizenship – all of which comprising major references illuminating this convergence.
In addition, preliminary discussion is initiated on the implications of this resignification
process to the on-going representations of politics and democracy and the possibilities of
coping with this crisis.
Keywords
Keywords: culture; democracy; civil society; participation; citizenship; neoliberal project.
Resumen – En este texto, se investigan los perímetros de una crisis discursiva que
parece atravesar las experiencias contemporáneas de construcción democrática en
varios países de América Latina. Esa dinámica resulta de una confluencia perversa
entre, de un lado, el proyecto neoliberal y, de otro, un proyecto democratizador,
participativo, que emerge de las crisis de los regímenes autoritarios y de los diferentes
esfuerzos nacionales de profundización democrática. Se plantean esas especificidades
en el contexto brasileño marcado por la disputa político-cultural entre esos dos proyectos
y por los desplazamientos de sentido que se operan en tres nociones: sociedad civil,
participación y ciudadanía - que constituyen las referencias centrales para el
entendimiento de esa confluencia. Se plantean, además, de forma muy preliminar,
los alcances de ese proceso de re-significación para las representaciones vigentes de
política y de democracia y las posibilidades de enfrentamiento de la crisis.
Palabras-clave
Palabras-clave: cultura; democracia; sociedad civil; participación; ciudadanía; proyecto
neoliberal.
Notas
1
A Constituição brasileira de 1988, conhecida como a “Constituição Cidadã”, incluiu mecanismos de democracia direta e
participativa. Entre eles, o estabelecimento de Conselhos Gestores de Políticas Públicas, nos níveis municipal, estadual e federal, com
representação paritária do Estado e da sociedade civil, destinados a formular políticas sobre questões relacionadas com a saúde,
crianças e adolescentes, assistência social, mulheres, etc.
2
Os orçamentos Participativos são espaços públicos para deliberação sobre o orçamento das administrações municipais, onde a
população decide sobre onde e como os investimentos devem ser realizados. Diferentemente dos Conselhos Gestores, cuja existência
é uma existência legal, os Orçamentos Participativos derivam de escolhas políticas dos diferentes governos municipais e estaduais.
3
Por perversa, me refiro aqui a um fenômeno cujas conseqüências contrariam sua aparência, cujos efeitos não são imediatamente evidentes
e se revelam distintos do que se poderia esperar. Em espanhol a palavra mais adequada, conforme sugestões que recebi, seria tramposa.
4
Depoimentos de ativistas da sociedade civil, recolhidos pelos estudos de Luciana Tatagiba, Gema Galgani e Magnólia Said e Ana
Cláudia Chaves Teixeira, reunidos em Dagnino (2002).
5
O Conselho da Comunidade Solidária, criado no governo de Cardoso e presidido pela primeira dama, a antropóloga Ruth Cardoso,
encontra similares por toda a América Latina (o Fondo de Solidariedad e Inversión Social – Fosis – no Chile, o Programa Nacional
de Solidariedad – Pronasol – no México, a Red de Solidariedad na Colômbia) e é exemplar da política neoliberal de envolvimento
da sociedade civil e das empresas privadas nas políticas sociais. Num exemplo claro da confluência perversa que mencionamos,
depois de seu período inicial, vários dos representantes da sociedade civil ligados ao projeto participativo retiraram-se do Conselho.
6
A discussão dessa redefinição, resumida aqui, pode ser encontrada em Dagnino (1994, 2001).
7
O direito à autonomia sobre o corpo, o direito à proteção do meio ambiente, o direito à moradia, são exemplos (intencionalmente
muito diferentes) dessa criação de direitos novos. Além disso, essa redefinição inclui não somente o direito à igualdade, como
também o direito à diferença, que especifica, aprofunda e amplia o direito à igualdade. Para uma discussão específica da relação
entre o direito à igualdade e o direito à diferença, ver: Dagnino (1994).
8
Conforme resultados de pesquisa com movimentos sociais, realizada em Campinas, em 1993, ver em Dagnino et. al. (1998).
9
Para análises desse impacto no nível institucional, ver: Benevides (1998); para um exemplo, entre muitos, do significado dessa
noção de cidadania nas práticas dos movimentos sociais, ver: Dagnino (1995).
10
O Conselho de Segurança Alimentar, que afirmava a alimentação como um direito, foi dissolvido nos primeiros dias do governo
de Fernando Henrique Cardoso e substituído pelo já mencionado Conselho da Comunidade Solidária.
11
Um estudo sobre as motivações subjacentes ao trabalho voluntário no Brasil provavelmente reforçaria nosso argumento, ao ilumi-
nar a emergência de concepções privatistas, individualistas e autocentradas que tendem a orientar a prática do voluntarismo no
mundo todo. Ver: Leslie Hustinx e Frans Lammertyn (2003).
12
As expectativas de mudança radical desse quadro, anunciadas pela eleição de Lula, se viram relativamente frustradas pelo Progra-
ma Fome Zero, que ainda não conseguiu romper de maneira clara com essa concepção.
13
Mínimo, não custa lembrar, quando se trata de alocar recursos para as políticas sociais de redução da desigualdade; não quando
se trata de subsidiar empresários e banqueiros.